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Pensamento Monogâmico, Terror Poliamoroso

Brigitte Vasallo

2018
Nota Provisória das Tradutoras

Essa tradução está sendo construída, de forma que esse texto ainda não passou por uma revisão final
em português. Portanto, pedimos desculpas antecipadamente por quaisquer problemas de
entendimento e erros não revisados por conta disso. Para além dos erros, algumas decisões foram
tomadas conscientemente sobre a forma de escrita do português:
1) mantivemos e por vezes ampliamos a decisão da autora de manter o gênero feminino
como genérico, conforme ela explica na introdução;
2) utilizamos a próclise mesmo nos casos em que a ênclise seria gramaticalmente correta,
por entendermos que é a forma mais coloquial e natural de fala. Assim, ao invés de “Pensar-nos
radicalmente”, escrevemos “Nos pensar radicalmente”, por exemplo. Apesar disso, mantivemos a
colocação do pronome no final nos casos em que entendemos que facilitaria o entendimento.
3) Não usamos o pronome pessoal “lhe”, também por entender que só é utilizado na norma
culta e, portanto, o substituímos por “te” ou “a você”. Em alguns momentos, por conta disso,
acontece a mistura entre os usos de “você” e “te” (exemplo: “te trouxe o livro que você pediu”, ao
invés de “trouxe-lhe o livro que você pediu”).
Nossa intenção com essa escrita foi a de contribuir com a opção da autora de usar a língua
como uma ferramenta viva e orgânica, capaz de mudança, politização e consciência. Esperamos que
essas decisões contribuam para uma leitura mais fluida, próxima e prazerosa. As notas que
inserimos na tradução estão marcadas por [N.T.] e todas as demais, sem marcação, são da autora.
Por fim, ficamos felizes em contribuir com um material que sentimos que faz muito
sentido circular no mundo e estar o mais acessível possível. Apenas pediremos que não o publiquem
na internet nesse momento para evitar a circulação de um material incompleto e não revisado.
Quando a tradução estiver concluída, a disponibilizaremos gratuita e integralmente.
Dito isso, boa leitura!
Introdução

Vivi boa parte da minha vida adulta no Marrocos e, ainda que não more mais lá, segue
sendo minha casa. Ou é minha casa, pelo menos, um bairro periférico e popular de uma grande
cidade gentrificada, uma casa em perpétuo processo de construção, uma família escolhida quase
sem me dar conta, que me chama e me trata como “a-filha-cristã-que-é-como-uma-filha-a-mais”.
Um idioma de subúrbio indomável (o subúrbio e o idioma), um ritmo, uma forma de rir e de ter
paciência na vida, um modo efervescente de discutir e parar de repente, uma maneira de entrar nas
casas, de cumprimentar as pessoas mais velhas, de as mulheres sentarem no pátio para conversar,
cantar ou ficar em silêncio. Minha casa são as brigas da minha Mãe Escolhida na mesquita para
defender o espaço de rezo das mulheres, as brigas de minhas irmãs pelo controle remoto da tevê, as
brigas de minhas tias sobre a quantidade de sal que se deve pôr no pão, as brigas entre todas sobre a
feminilidade, sobre o machismo, sobre o preço das verduras na tenda da esquina, sobre um
hammam ou o outro, o mais de lá. Essa “minha casa” é uma forma de escaparmos para as discotecas
da moda como se as mais velhas da casa não soubessem que fomos, de voltar antes da oração da
manhã para que todo o bairro não nos pegue, de passar mensagens de namorados às minhas costas
como se eu não me inteirasse ou como se não me importasse. É uma forma de me querer porque
sim, porque estou, porque sou parte. É uma forma de me mostrar minha ignorância, de me ensinar,
de me explicarem tudo: de me explicar a vida, de me fazer parte de seus problemas, de seus anseios,
de seu cotidiano.
Em 2003, ao voltar de uma viagem, encontrei o bairro em meio à revolta. Uma palavra que
eu nunca tinha ouvido, ou que não tinha registrado, estava no centro das conversas passionais nos
cafés, nos ônibus, na televisão. Quando cheguei em casa, perguntei a essa mãe: Mudawana? A lei
do código de família, me explicou, tinha sido modificada, de maneira que os matrimônios entre um
homem e até quatro mulheres tinham se tornado quase impossíveis na prática. As mulheres de meu
entorno estavam muito contentes; os homens, nem tanto, apesar de a poligamia ser mais um mito
que uma prática real, ao menos entre as classes populares. Até a super estrela da música tradicional
chaabi, Najat Aatabu, fez uma música para difundir a reforma: “Entenderam a mudawana, ou eu
explico pra vocês?”, cantava. Pouco depois, eu vi a música em um show e as mulheres da multidão
dançavam e gritavam em coro “uma, uma”, enquanto os homens, incluindo os policiais que faziam
a segurança do evento, zoavam e gritavam em coro “quatro, quatro”.
Esse livro fala da monogamia e de relações múltiplas; mas não pretende fazer isso a partir
de uma forma de pensamento universal, e sim de uma situada em um lugar, em um tempo, em uma
visão e uma experiência concreta. Escrevo do sul da Europa e o faço desde a perspectiva do
pensamento político. Sou uma mulher branca que se relaciona sexual e afetivamente com mulheres
e vivo em uma grande cidade.
Em nossas genealogias, a raça, a classe e o gênero são centrais – não podemos evitá-las,
especialmente se quisermos pensar a monogamia e suas rachaduras. Na Suécia esterilizações foram
praticadas, em muitas ocasiões de forma forçada ou sob coerção, até 1996. Se calcula que 230.000
mulheres foram esterilizadas. Muitas delas sob vieses racistas, mulheres laponas e ciganas, mas
também mulheres brancas com antecedentes de alcoolismo, com diagnósticos de sofrimento mental
ou com crianças sem um pai reconhecido. As chamadas “mães solteiras”. Gênero, raça, classe,
orientação sexual, capacitismo…
Esse livro é escrito a partir de uma experiência específica e de uma perspectiva específica.
Se algum dia as mulheres de minha família extensa marroquina lerem esse livro e algumas das
reflexões aqui incluídas forem úteis a elas para pensarem seus contextos e suas experiências, que
sejam bem-vindas. Se serve para adicionar informação às companheiras que, a partir de outras
perspectivas e espaços, estão pensando estas questões, ótimo. Mas esse livro só é uma peça do
mapa, do quebra-cabeças; ele não é o quebra-cabeças.
Nele tentei analisar como isso que na Europa denominamos monogamia é um sistema de
controle sobre os afetos que são marcados pelo neoliberalismo e que geram uma forma de
pensamento constitutiva e necessária à construção nacional europeia e ao seu projeto colonial. E fiz
isso a partir do pensamento ativista, aquele que se pretende uma ferramenta de mudança em um
mundo injusto até o ponto da atrocidade. Se algum resultado me interessa, é o de vislumbrar como
desativar esse sistema enquanto maneira de nos relacionarmos com o entorno, com o mundo, para
além de se decidimos construir núcleos afetivos a duas, a cinco ou a uma.
A possibilidade alternativa ao sistema monogâmico não é a de pegação e de namoricos,
mas sim da coletivização dos afetos, dos cuidados, dos desejos e das dores. Para resistir à violência
individualista, tecer redes rizomáticas. Mas, para isso, temos que desmascarar o sistema que nos
confronta e nos converte em sujeitos ativos de uma competição sangrenta.

Ativismo afetivo

Apesar de estar há 20 anos tendo relações que tentam não ser exclusivas, o ativismo e a visibilidade
nem sempre foram uma opção. Durante muito tempo, minhas formas de relação eram uma questão
privada que concernia ao meu entorno mais próximo e um pouco mais. O neoliberalismo 1 e o
feminismo me tiraram à tapa do armário.

1 Essa doutrina capitalista que aplica a liberdade em benefício do setor privado: cada qual por si e que ganhe o mais
forte.
De um lado, as relações não-monogâmicas, sob a etiqueta de poliamor, foram tomando
importância nos meios de comunicação. Essa gente curiosa que trepava muito e não ficava com
ciúmes se converteu no assunto da vez: a desculpa perfeita para encher páginas e mais páginas de
revistas e frases vazias para se distrair da angústia cotidiana. Éramos bizarros, engraçados, e tão
sumamente inofensivos que qualquer meio de comunicação se atrevia conosco. Nesse furacão
midiático, o discurso neoliberal, por um lado, e o acadêmico, por outro, foram ganhando posições.
O discurso neoliberal propõe relações não-monogâmicas como quem vende traquitanas em
uma feira de telefonia móvel. Tudo cheio de brilho, facilidades e superficialidades: pagar a prazos,
seguros contra imprevistos, glamour, capital social, capital sexual, diversão assegurada e um pouco
mais. Felicidade de supermercado. Muita liberdade e poucos cuidados. Muitas possibilidades e
poucas dores. Muita heteronormatividade. Muito macho dando palestrinha e muitas mulheres
acatando. Muitas namoradas de, esposas de, amantes de. Muito do de sempre disfarçado de outra
coisa. Muita modernidade antiquada, muita aventura de viagem organizada e muita crise dos trinta,
quarenta, cinquenta…
Há ainda outra forma neoliberal que é o consumismo afetivo nos espaços libertários que,
sem dúvida, me toca mais de perto e mais fundo. Quase diria que há uma forma de depreciação
afetiva. Com a liberdade (individual) como álibi, os cuidados, a empatia, a paciência, a construção
em comum são conceitos preciosos para fazer oficinas de coesão grupal, mas em muitas ocasiões as
palavras ficam ali, na ata da assembleia. Talvez porque mudar as condições requer um esforço que
não estamos sempre dispostas a fazer. Talvez porque estamos habituadas demais a usar e tirar os
afetos, por mais que reciclemos as roupas e os móveis. Porque sabemos palavras complexas, mas
não assumimos a complexidade das palavras. Ou porque estamos contaminadas demais por um
romantismo que nos diz que o amor é êxtase e tudo que não contenha adrenalina não nos serve, não
é bom o bastante. É assim que enchemos de adrenalina tanto os afetos como a gestão dos afetos,
tudo tão superlativo, tão cheio de possibilidades, tudo baseado em um esforço individual por aceitar
algo que nunca ninguém te ensinou como aceitar. Tudo urgente, tudo imediato, tudo imprescindível.
Até entregarmos as entranhas. Sobrará alguém dentro de uns anos em toda essa orgia poliamorosa
libertária que estamos montando? Talvez só as mais duras sobreviverão. Um mundo poliamoroso
para as mais duras, como em um faroeste série B.
...mas só as mais feridas conseguirão criar algo novo. Disso tampouco resta a menor
dúvida…
Para o discurso acadêmico, somos objetos de estudo, gentinha que se mete em algo que
nem sequer entende, que não sabe explicar e que necessita de senhores e senhoras importantes,
legítimas e majoritariamente monogâmicas para analisar nossa experiência. Para nos estudarem a
partir disso que denominam “observação participante”, nos “ajudam” com o ativismo pelo tempinho
que dura sua pesquisa. Denominar isso participação é como chamar de feminismo a entrada grátis
de mulheres nas festas. A observação participante ainda embrutece mais a relação entre pesquisador
e bicho pesquisado, porque acaba estabelecendo laços afetivos que, sem dúvida, não subverterão as
categorias de pesquisador e de bicho. Laços afetivos em proveito da pesquisa. No lugar da
“observação participante”, a “participação observadora” é o que fazem as pessoas poliamorosas e
não-monogâmicas, algumas também a partir da Academia. Há pessoas poliamorosas e não
monogâmicas pesquisando, mas quantas pesquisadoras monogâmicas abriram suas relações e suas
tripas durante o doutorado sobre poliamor, deixando o coração em todo o processo? O
conhecimento necessita ser situado, e não se situa fazendo sanduíches para um poliencontro. O
conflito está na hierarquia intrínseca entre pesquisador e bicho e no quadro referencial que nos leva
a ter sujeitos que se creem neutros analisando dissidências que não os atravessam em lugar nenhum.
Porque as pessoas monogâmicas que na Academia andam observando nossos movimentos só se
interessam naquilo que entra dentro de sua própria estrutura monogâmica.
Vi quantidades escandalosas de estudos de doutorados sobre não-monogamia falando de
“casais”, como se esse termo fosse extrapolável tão facilmente, obcecados por esquadrinhar nossas
casas, observando nossas crianças como se criar em rede fosse algo de outro mundo ou
completamente novo e, como disse Jillian Deri, ela mesma queer, poliamorosa e pesquisadora da
Academia, em seu livro Love’s Refraction2, absolutamente ofuscados por nossa gestão do tempo e
dos ciúmes. Mas raras vezes se perguntam se nossas relações afetivas nos posicionam de maneira
diferente ante o nacionalismo, ante a mercantilização, ante as fronteiras. Para a Academia
monogâmica, relações não-monogâmicas se tratam de trepar com muita gente. E assim garantem, de
quebra, que não oferecemos risco algum para o status quo.
Claro, isso não significa que só as pessoas poliamorosas podem se estudar entre si.
Significa que se você não é poliamorosa, deve tomar consciência de qual é sua posição. E de como
sua posição te impede de ver. Nada mais, nada menos.
Neoliberalismo e parasitismo foram, pois, os dois primeiros motivadores que me
impulsionaram a me visibilizar como ativista e tentar gerar pensamento, referência, linguagem, a
partir do risco de minha própria experiência. A partir das minhas próprias dores e de minhas
alegrias. E começar a construir redes de conhecimento e aprendizado com outras pessoas que
também vivem e se pensam: amantes e ativistas com visão política e bichos poliamorosos que
trabalham na (e não para a) Academia, que se arriscam a pôr seu corpo em jogo, que se sabem e se
querem atravessadas pela realidade.

2 Jilian Deri, Love’s Refraction: jealousy and compersion in queer women’s polyamorous relationships, University
Toronto Press, Toronto, 2015.
O terceiro ingrediente foi um feminismo que me explicou que o pessoal é político, que o
que estava acontecendo comigo não começava nem acabava comigo. E que uma revolução que
deixe de fora os afetos será uma revolução que acontece em pedaços, por alguns instantes.
Nesses anos de visibilidade, tenho recebido abuso e violência por parte de grupos
poliamorosos de pensamento único, precisamente por assinalar as violências associadas ao amor,
por atribuir ao poliamor os privilégios associados a gênero, à classe, à raça, à capacidade física e
psicológica e a todos os demais eixos da diferença. Por dizer que a multiplicidade, em si mesma,
não muda nada substancial. Por questionar a fantasia do galo de galinheiro deboísta3.
Mas também tenho encontrado vários grupos e experiências não-monogâmicas radicais,
transformadoras, inclusivas e generosas; várias pessoas que boicotam a monogamia de uma maneira
profunda e radical a partir de uma infinidade de estruturas relacionais: a dois, em rede, em
comunidade ou anarquias amatórias várias; muitas pessoas pensando e vivendo já em mundos que
apenas tinha imaginado chegar por mim mesma e os quais estou muito longe de poder alcançar. A
elas está dedicado esse livro. Com o agradecimento por ter compartilhado comigo, conosco, seu
tempo, suas experiências, suas reflexões, seus conhecimentos, suas emoções, suas dúvidas e suas
vontades de transformação.

Nos pensar radicalmente

Esse livro, pois, vem a defender posições radicais, das que requerem mente, corpo e vida. Não é um
livro escrito, já se vê, para fazer amizades: para isso reservo os bares e as festas. É um livro escrito
a partir da necessidade de um oxigênio, de um fôlego que não admite meias palavras. Só entendo a
escrita como um espaço de afirmação radical. Como salto ao vazio, como abismo, como exposição,
como risco ao erro, à incompreensão, à vulnerabilidade. Me pareceria obsceno desperdiçar tantas
horas suas e minhas, tantos recursos, tanta emoção para construir textinhos complacentes que
propunham mundos pequenos. Se vamos nos lançar à aventura desse livro, que seja para nos
rasgarmos. Venho a pôr ideias sobre a mesa para que circulem, para que se modifiquem, se
trabalhem ou se descartem. Não é um texto que venha a dar mãos com o Sistema, a propor reformas
e retoques de cor que dissimulem e nos façam parecer mais amáveis. Os pactos se fazem entre
pessoas, entre circunstâncias, entre vivências concretas para fazer com que essas ideias sejam,
precisamente, vivíveis. As ideias não se pactam, mas se alimentam, se enriquecem, se contradizem,
se contaminam. Se pode pactar como concretizar as ideias sobre o terreno, como combiná-las, como
cruzá-las, como fazê-las possíveis.
Mas as ideias não podem nascer prontas.

3 No original, buenrollista, se refere a uma pessoa exageradamente positiva, que não vê problema em nada. [N.T.]
Aqui, agora, vamos nos sonhar com intensidade. Vamos nos incomodar. Vamos ver até que
ponto somos capazes de nos pensar radicalmente.

Feminino honorífico, masculino excepcional

Esse livro está escrito em feminino. Uso, mais concretamente, o feminino genérico e o masculino
intencional, o masculino como exceção, para variar. Escrevo assim porque reivindico ao mesmo
tempo que a perspectiva masculina se visibilize como tal, mais ainda em uma temática como a
sexo-afetiva que está tão extraordinariamente mediada por questões de gênero. Não quero com isso
reduzir o gênero ao binário nem feminizar a ninguém que não queira isso, mas é a enunciação que
me faz sentir mais confortável para avançar nesse livro.
Por último, também escrevo no feminino por uma questão política. Como dizia Heidegger,
não falamos a linguagem, ela nos fala. O debate sobre o masculino como gênero neutro pertence a
um mundo agonizante sem futuro possível. Um mundo que morre matando, mas que morre. Se é
masculino, não é neutro. É masculino. Que se tenha sido utilizado como genérico há séculos não é
por um acordo linguístico, senão pela sensível razão de que o mundo sobre o qual se mantinham
narrativas era masculino, literalmente. Mas se esse mundo já não existe, não podemos seguir
narrando como se existisse.
Frente ao puritanismo linguístico, pessoalmente me causa pouquíssimos problemas forçar
a língua, bem ao contrário. A linguagem é um instrumento e como tal deve exprimir-se, expandir-se,
transformar-se, reinventar-se a cada linha. A língua não se empobrece com a transformação: se
empobrece com a estagnação. A linguagem, por mais que as Academias da Língua detestem,
pertence à gente que a usa, que a vive, que se nomina através dela. Nos atrever a usar uma
linguagem que nos represente, sem necessidade de ter a permissão da Academia, é uma forma de
subversão. Escrever este livro no feminino não acabará com as desigualdades de gênero nem com o
binarismo, mas põe o acento sobre a questão e confirma que o problema não está resolvido.
Para além disso, o feminino desse livro não é genérico: é honorífico. Não pretende
“feminizar” a todas as pessoas leitoras, nem quer invisibilizar as infinitas maneiras de se nomear de
pessoas de gêneros não-binários. Poderia ter usado outras fórmulas, mas quis também deixar a
recordação constante de que o gênero, muito a nosso pesar, segue existindo e seguimos habitando
um mundo regido por essa existência, pelas leituras que o entorno faz de nossos corpos e nossas
identidades. Assim, o feminino desse livro é uma homenagem a todas as pessoas que, mais além de
sua identidade de gênero e orientação sexual, merecem ser nomeadas em um feminino de rebeldia.
Pelas dissidências que estão fazendo a partir de seus lugares de enunciação, pelos infinitos espaços
de existência que estão criando mais além do binômio, pelas múltiplas resistências ao mandato no
dia a dia, pelo boicote à normatividade que nos instiga a ser homens-de-verdade®, mulheres-de-
verdade®4.
E é possível que o feminino seja também um filtro para os e as leitoras. Quem se ofende
por ser nomeado no feminino encontrará nesse livro motivos muitíssimos maiores de ofensa. Porque
é um livro escrito a partir da dissidência para pessoas que se sentem orgulhosas de ser nomeadas
dissidência. Para pessoas que não se sentem ameaçadas por uns quantos gêneros marginalizados
aqui e lá.

4 Utilizo o símbolo de “marca registrada” para marcar de maneira irônica as construções sociais que tomam posse de
nosso imaginário como modelos a seguir. O homem-de-verdade® e a mulher-de-verdade® não são nenhuma de
nós, se não esse modelo inalcançável que nos ensinam a perseguir.
LO PERSONAL: all you need is love, tá tararará
O sistema monogâmico

“Um sistema de parentesco é uma imposição de fins sociais sobre uma parte do mundo natural”
Gayle Rubin

Expanded é uma série de televisão que reflete uma humanidade futura repartida por vários planetas
mas que segue arrastando os conflitos habituais no ser humano, como as guerras, as lutas de poder,
etc. Ao retratar este devir, os e as roteiristas tinham em conta vários aspectos que deveriam estar
solucionados nesse futuro: por exemplo, a presença de grupos minoritários em lugares de liderança
e formas de exercer essa liderança diferentes das de sempre. As estruturas amorosas também foram
levadas em conta, e um dos protagonistas nasceu da mescla genética de oito pessoas, todas
consideradas por ele como pais e mães: uma família poliamorosa.
O interessante da questão são as estruturas. Da mesma maneira que se colocou em posição
de liderança pessoas racializadas, a raça segue existindo e operando, como segue existindo a
heterossexualidade e a homossexualidade ou o gênero. Também em questões amorosas, à parte
dessas famílias-comunas, o resto da série e o resto das relações que são retratadas seguem sendo o
mesmo conhecido esquema do amor romântico, heterossexual e monogâmico. Quer dizer, por mais
que nesse mundo futuro o poliamor ou a não-monogamia tenham encontrado seu espaço, estas
possibilidades não permearam em absoluto as maneiras de se amar, não supuseram objetivo
nenhum, nem arranharam nenhuma estrutura.
Há uma infinidade de paralelismos entre essa maneira de entender as relações não-
monogâmicas e a forma mainstream de entender as relações homossexuais, outra dissidência
normalizada. Muda a forma mas não o fundo e, da mesma maneira que uma boa parte da
comunidade LGBT se esforça para ser normal (quer dizer, por viver o mais “heterossexualmente”
possível) uma boa parte da produção de pensamento, do ativismo e da vivência das relações
poliamorosas param aí, em construir relações não-monogâmicas baseadas na produção da
monogamia.

Casal de três
Um exemplo disso, talvez algo extravagante mas muito significativo, é a reportagem
“Poliamor: a vida em um casal de três”, publicado na revista online Playground.net em 2015. Evita,
Conrad e Nena afirmam na reportagem que são um casal “como outro qualquer”. A única
particularidade, segundo eles, é que sua união é formada por três pessoas. Para além disso, tudo é
igual. Os mesmos problemas, as mesmas situações afetivas, e as mesmas vantagens que se pode
encontrar em um casal de dois, entre as quais, aponta Conrad, a dificuldade adicional de ter “duas
sogras”.
(foto)
O elo entre as três pessoas é o homem. É ele quem tem, de fato, duas companheiras
(heterossexuais) mais jovens que ele. Ante a possibilidade de incluir alguém novo a esse núcleo de
três, é a resposta de Conrad que fica registrada “eu penso que não é que não se possa ter uma
relação a quatro, é que é inviável por questões de espaço e por questão de tempo. Já não podemos,
eu ao menos pessoalmente, destinar mais tempo a mais pessoas. Apenas tenho tempo com elas,
coincidir os três, coincidir os dois…”. Se assume, parece ser, que seria ele quem incorporaria outra
pessoa. Não sabemos se isso é assumido pelas três ou pelo jornalista ao editar o vídeo.
Neste exemplo interagem várias perspectivas (visões, formas de pensar) monogâmicos. O
de Conrad, Evita e Nena, sem dúvida, que entendem sua relação em termos estritamente
monogâmicos, ainda que com mais de duas pessoas. Parecem ser dois casais (Conrad-Evita e
Conrad-Nena) simultâneos, mesmo que com uma relação que parece impregnada de carinhos e
cuidados de múltiplas vias. E também opera o viés monogâmico do jornalista, ao qual não ocorre
perguntar ou captar nada fora das possibilidades óbvias monogâmicas (“como dormem?”, “onde
carregam três celulares?”).
O que faz com que esse casal de três lembre tanto a qualquer casal monogâmico apesar de
não ser a dois? Por que Evita, Conrad e Nena são entrevistados por meios que se pretendem cool e
vanguardistas que jamais teriam convidado uma família muçulmana poligâmica para explicar sua
vida? Por que depois de ler essas últimas frases algumas pessoas poliamorosas se incomodaram,
lançaram esse livro contra a parede e estão a ponto de me escrachar nas redes sociais? O que faz
com que a monogamia seja monogâmica, que o poliamor seja poliamor, e que a poligamia seja
outra coisa totalmente distinta?
Isso é o que vamos tentar pensar nesse livro, porque são todos esses os fatores causantes de
que estejamos deixando as tripas e a alma ao tratar de desmontar a monogamia a partir de somar
amantes, sem nada mais, de engolirmos as dores, de nos ferirmos infinitamente em troca de alguns
poucos instantes de luz. E isso está nos acontecendo porque partimos de um conhecimento errôneo
da questão, de premissas falsas que precisamos desmantelar antes de seguir nos implicando de
corpo e alma. Ou enquanto nos implicamos. E temos que fazer isso antes que a captura neoliberal
de nossas experiências seja definitiva. Da mesma forma que não podemos desconstruir o gênero
sem entender o que é o gênero, não podemos desconstruir a monogamia sem saber o que ela é.

O que é a monogamia?
Segundo os produtos culturais como anúncios publicitários ou arte, a monogamia é, na
atualidade, sinônimo de amor (de uma forma de amor romântica e sexualizada “autêntica”) e
sinônimo de casal, que é a construção prática que se entende como natural desse amor “autêntico”.
O que chamamos monogamia é o campo invisível em que se joga a partida do amor, o tabuleiro.
Tanto é assim que nem se nomeia: vem dado sem questionamento. Que elementos contém esse
tabuleiro onde jogam os casais? Como eixos vertebradores estão a romantização do vínculo, o
compromisso sexual, a exclusividade de ambos e o futuro reprodutivo, que perambula como um
fantasma sobre os amores e os casais. Para fixá-los em um percurso concreto, se instalaram uma
série de práticas de convivência e dependência, também econômica, que dão materialidade à
construção amorosa.
As linhas das definições de amor, casal e monogamia mordem o próprio rabo5. Segundo o
dicionário da Real Academia Espanhola, a monogamia é “estado ou condição da pessoa ou animal
monogâmicos” e um “regime familiar que não admite a pluralidade de cônjuges”, enquanto que
monogâmico se refere a “casado com uma só pessoa”. Porém, ao seguir o fio nesse mesmo
dicionário da definição de casal e cônjuge, entramos em um círculo infinito que não termina de
definir o que motiva que uma união seja chamada casal ou que não. Trabalhos específicos em torno
do conceito de casamento em termos ocidentalizados nos aproximam mais da ideia habitual de
monogamia: “enlace exclusivo e permanente entre um homem e uma mulher que concerne à
designação de direitos sexuais sobre cada uma das partes, e estabelece responsabilidade parental
sobre as crianças surgidas dessa união”6.
A essa trilogia central amor-casal-monogamia heterossexual e reprodutora, se vão somando
exceções. A homossexualidade é uma delas, a não reprodução também, como também são a
temporalidade dos laços e, finalmente, a não-exclusividade. As primeiras não põem em risco o
conceito que temos de monogamia. Um casal homossexual pode ser reconhecido pelo ponto de
vista geral como casal. Mesmo quem a considera antinatural ou uma forma de amor pouco
autêntica, questiona que possa ser um matrimônio, mas não um casal. As relações sem pretensão
reprodutiva sofrem de pressão e estranheza social, mas nem por isso se põe em dúvida que se trata
de um casal. Os casais temporais, que são a maioria na atualidade, também se reconhecem como
uniões monogâmicas. Monogamias consecutivas, como são denominadas. Uma relação com
pretensão de eterna, seguida de outra relação também com pretensão de eterna. São tentativas
falidas de perdurabilidade.

5 No original, son un pez que se muerde la cola, “são um peixe que morde o rabo”, expressão que se refere a algo
circular, vicioso, contraditório ou confuso. [N.T.]
6 Brian Schwimmer, Defining Marriage, http://www.umanitoba.ca/faculties/arts/anthropology/tutor/marriage/
toc.html
Mas o que acontece com a exclusividade? Vamos parar um instante nessa questão, porque
é uma das centrais em toda essa trama. As exclusividades.
Um dos casos mais pomposos em questão de exclusividade sexual a nível planetário foi a
relação entre Bill Clinton, presidente dos Estados Unidos, e Mônica Lewinsky, então estagiária da
Casa Branca. Quando surgiram os rumores de seus encontros sexuais (em nove ocasiões durante o
transcurso de um ano e meio… nada para soltar foguetes) foram desencadeadas várias engrenagens
simultâneas. Por um lado, criminalizar infinitamente o fato de haver tido relações sexuais. Por
outro, vitimizar infinitamente Hillary Clinton, esposa de Bill. De todas as possibilidades que
surgiram nos anos do processo (recordemos que foi uma questão de estado que quase levou à
destituição do presidente), nunca se levantou a possibilidade de que na relação Clinton & Clinton
houvesse um pacto de não-exclusividade sexual e de que Hillary estivesse perfeitamente de acordo
com todo o ocorrido. Ainda que tivesse sido assim, nunca poderia ter sido formulado publicamente,
pois semelhante visão teria destroçado a imagem idílica do casal presidencial. O amor autêntico,
recordemos, implica exclusividade. Assim, o par Clinton seguiu se nomeando como casal
monogâmico, apesar do fato de que suas práticas, consensuais ou não, não eram de exclusividade
sexual. De fato, há uma categoria específica para nomear a questão: infidelidade (o que se
denominou classicamente como “adultério”).
Por que destaco essa questão? Porque, apesar da força que tem a ideia de exclusividade
sexual na definição habitual de monogamia, essa é uma prática com uma alta taxa de exceções. As
flutuações de números e estatísticas, ainda que muito díspares entre si, raras vezes baixam de 30%
de infidelidade entre casados. Um 30% que entende a infidelidade somente em termos de relação
sexual com penetração (porque as estatísticas, como o mundo em geral, são falocêntricas e
heteromórficas, quer dizer, com perspectiva heterossexual e com forma de pênis).
O que aconteceria se 30% das pessoas vegetarianas comesse carne de vez em quando? E se
30% das mulheres heterossexuais tivesse sexo ocasional com mulheres? E se fosse 30% dos homens
heterossexuais que ocasionalmente dormissem com outros homens? Seguiriam sendo nomeados
como heterossexuais? E as vegetarianas, seguiriam sendo críveis? Em que momento a não-
exclusividade adúltera modifica a definição da monogamia, a partir de que frequência?
A ideia de exclusividade não delimita exatamente as práticas – apesar dos esforços da
polícia da monogamia por penalizar, perseguir e desencorajar as sexualidades promíscuas – mas
vem a dar marca de legitimidade a um tipo de relação sexual frente a outras possíveis
eventualidades. As e os amantes, as infidelidades, os adultérios e toda a variação de denominações
desses mesmos conceitos formam parte disso que chamamos monogamia. Não são outra coisa, não
estão fora do sistema, e sim são a exceção que delimita o que está certo e o que está errado, o que é
legítimo e o que não é, o que é normal e o que é anormal, escandaloso, vergonhoso. O que é o casal
e o que é o/a amante, com um esquema de interpretação de papéis, também extremamente raso e
estável.
Quando dava as oficinas #OccupyLove: como quebrar a monogamia sem deixar as tripas
nem o feminismo na tentativa, propunha um role playing7 para ensaiar as possibilidades com a
audiência com o fim de evidenciar as dinâmicas que temos naturalizadas e, portanto, invisibilizadas.
Usava para isso quatro posições, que eram ocupadas por assistentes conforme queriam lançar
alguma situação, bastante baseadas na metodologia do Teatro do Oprimido ou do Teatro Fórum.
Tirei seus nomes de um filme de Pedro Almodóvar: Pepi, Luci, Bom e outras meninas do grupo. A
ideia era: Pepi e Luci têm uma relação. Luci e Bom ficam. As meninas do grupo são o entorno. As
especificidades de cada história iam sendo construídas com o público. O entorno é amigo de Pepi
ou de Bom? Como muda sua opinião em função de um ou de outro? Pepi e Luci estão há muito
tempo juntas? Luci e Bom só ficaram ou estão começando uma relação? Sempre é interessante ver
em que muda a história a percepção da posição destas personagens em função de uma coisa ou
outra, ver o que é mais fácil de lidar, ou que esquema nos é mais familiar. É claro que esta
perspectiva está dentro do viés monogâmico, mas a intenção da dinâmica era precisamente fazer
uma foto do lugar em que estamos para poder intuir até onde queremos ir.
A primeira parte consistia em fazer com que a personagem falasse em primeira pessoa
sobre como se sentia, e pedir ao público que também pensasse como estava se sentindo essa
personagem. Dei talvez cinquenta oficinas deste tipo em todo o Estado espanhol, em cidades
grandes e pequenas, com diversidade de idades, em centros okupados 8, em centros cívicos e em
universidades, com público majoritariamente homossexual ou majoritariamente heterossexual, em
entornos poliamorosos ou não, e uma das coisas que mais me marcaram é que jamais, nem uma
única vez, ninguém disse nada positivo sobre a posição de Pepi. Nunca. Pepi é a encarnação da
chifruda, a enganada, a abandonada. Não importa que esteja em uma relação poliamorosa, não
importa que esteja saturada de Luci, que é uma chata que precisa de muita atenção, não importa
nada: não temos imaginário pra uma Pepi feliz, nem para a positivação do fato de estar apaixonada
por alguém que se apaixona também por outra pessoa. Não ter um imaginário construído nem
experiências positivas incorporadas deixam a vivência extremamente difícil, porque todo o entorno,
todas as mensagens que chegam de todas as partes convergem no fato de que nessa situação não se
pode estar bem.
Na monogamia, a posição de amante está tão penalizada quanto a posição de amada não-
exclusiva. Mas toda esta penalização não evita que a infidelidade esteja dentro dos mesmos

7 Em português, “jogo de papéis”, técnica vivencial do psicodrama em que pessoas de um grupo ocupam dinâmica e
improvisadamente papéis de atrizes e espectadoras em cenas que representam situações cotidianas ou experiências
pessoais, com objetivo terapêutico ou educativo e, no teatro do oprimido, para trabalhar questões de opressão
social. [N.T.]
8 Usa-se a grafia com k para se referir a ocupações de cunho político. [N.T.]
mecanismos de reafirmação da monogamia. São estes mecanismos que geram o terror poliamoroso
que faz emergir as relações fechadas e exclusivas como a única forma suportável. Hillary Clinton
perdoando a infidelidade de Bill é a máxima representação do triunfo do amor por cima das
contingências da vida. O amor® se impõe até mesmo sobre as aventuras e é, certamente, a mulher
quem perdoa o Don Juan da vez. Coisinhas de gênero, vocês me entendem. Nem sempre é assim, e
a infidelidade é uma causa certificada e reforçada de ruptura mas, também neste caso, se ergue
como a grande ameaça contra o amor de verdade, contra a forma correta de construir o amor.
Certamente, a monogamia também inclui a multiplicidade de afetos. Já nem mencionamos
os amores “secundários”, como é o amor às amizades, às filhas e filhos, que não se entendem como
amores no mesmo nível. Mas sim inclui o apaixonamento por outras pessoas sempre e quando não
se materializem no carnal, na pele, e ficam na esfera do platonismo. Assim, o que define a
monogamia não é a exclusividade, senão a importância do casal frente às amantes ou outros amores.
A hierarquia de uns afetos sobre os outros. A exclusividade sexual serve como marca hierárquica.
Podem existir outras relações sexuais, mas só uma tem o apoio social, só uma está certificada como
correta, apropriada. A exclusividade sexual é um compromisso simbólico, é o preço que se paga
para adquirir essa legitimidade: eu não dormirei com ninguém mais mas, em troca, nossa relação
será superior às demais, você e eu teremos uma relação privilegiada, com uma gama de privilégios
em uma infinidade de níveis, e com uma ampla tolerância, também social, às violências
incorporadas nesses privilégios.
Quando pensamos que acabar com a monogamia é eliminar a questão da exclusividade
sexual, estamos nos fixando somente na moeda, na ferramenta: eliminamos o símbolo da estrutura
mas sem tocar nem questionar a estrutura em si mesma, quando o realmente importante é poder ver
que partes queremos desarmar e em que ordem, quais podemos assumir, quais são necessárias, quais
supérfluas, quais contribuem para a violência e quais não. A monogamia não se destrói fodendo
mais, nem se apaixonando simultaneamente por mais gente, mas construindo relações de maneira
diferente, que permitam foder mais e nos apaixonarmos simultaneamente por mais gente sem que
ninguém se quebre no caminho.
Se não prestarmos atenção à estrutura, não só estamos reproduzindo o mesmo sistema com
um nome diferente, como também estamos adicionando violências e dores às já implícitas no
sistema. E, o pior de tudo, isso não está servindo para nada mais além de criar um rolinho divertido
e com ares de cool que nos durará apenas uns anos ou meses, até que não nos sobrem tripas para
rasgar ou até que encontremos essa meia laranja com a qual sim queiramos nos comprometer e
deixemos para trás, definitivamente, nossos experimentos juvenis poliamorosos, mesmo que isso
implique deixar uns quantos cadáveres emocionais pelo caminho. Ao fim e ao cabo, que é um
cadáver mais ou menos frente a um amor-de-verdade®!
Por outro lado, ninguém é poliamorosa por si mesma: o poliamor e as relações não-
monogâmicas são uma conquista coletiva. Ter muitas amantes simultâneas é algo que se faz desde
sempre: inclusive com o conhecimento das pessoas envolvidas e às vezes com seu consentimento.
Jackie Kennedy sabia da relação de seu marido com Marilyn Monroe. Conhecia mas dizem que não
consentia. Pescaílla, marido de Lola Flores, conhecia a existência de Junco, o bailarino com quem
ela teve uma relação amorosa durante seus últimos vinte anos de vida. Duas décadas, não dá nada.
Conhecido, portanto, e de alguma maneira consentido ou aceitado ou assimilado. Para poder falar
de relação não monogâmica ainda falta algo além da multiplicidade.
Não é o que, nem o quando: é o como.

Não é a exclusividade, é a hierarquia

Se mudamos o foco da quantidade de pessoas envolvidas para as dinâmicas relacionais, a questão


fica muito mais interessante. Não só porque é inútil seguir pensando em nossas vidas privadas como
um pequeno reduto de “autenticidade essencial primordial”, independente de toda influência e
alheio a toda construção, mas porque pôr acento nas dinâmicas relacionais permite também
visualizar nossas relações com o mundo a partir da vivência não-monogâmica, fazer de nossa
experiência amorosa coletiva uma ferramenta de transformação política.
Vamos tecer os primeiros passos de uma nova definição. A monogamia não é uma prática:
é um sistema, uma forma de pensamento. É uma superestrutura que determina aquilo que
denominamos nossa “vida privada”, nossas práticas sexo-afetivas, nossas relações amorosas. O
sistema monogâmico dita como, quando, a quem e de que maneira amar e desejar, e também que
circunstâncias são motivo de tristeza, quais de raiva, o que nos dói e o que não. O sistema
monogâmico é uma roda distribuidora de privilégios a partir dos vínculos afetivos e é, também, um
sistema de organização desses vínculos.
De que maneira organiza isso e a partir de que elementos? O sistema monogâmico gera
uma estrutura hierárquica que situa no lugar mais alto da escala os vínculos reprodutivos, o casal
heterossexual, se quisermos simplificar assim. Esse é o eixo principal, seguido pela
consanguinidade e, situados em um terceiro grau, os vínculos afetivos não-consanguíneos. Quer
dizer, o núcleo central e o mais importante, o amor mais amor de todos, é o casal reprodutivo e sua
descendência, o secundário é o resto da família (de sangue) e o terceiro, as amizades. Para
privilegiar estes vínculos em detrimento de outros, o sistema monogâmico coloca em movimento
toda uma série de mecanismos que estabelecem a superioridade (administrativa, emocional, ética)
de umas formas de relações específicas de maneira que essas passam a ser consideradas melhores
em termos absolutos. Esta forma de aprender as relações e a vinculação determinará de que maneira
nos sentimos frente a uns vínculos e frente a outros.
Um exemplo disso: a esmagadora maioria das pessoas na Europa vivem a dois. Não fazer
isso é uma exceção entendida como um fracasso vital, como uma falha no currículo. Há poucos
exemplos de vidas em comum fora desse formato. Nem sequer a arquitetura está preparada para isso
e as casas e andares se distribuem em uma suíte para o casal e quartos individuais para as crianças.
Os carros têm dois lugares na frente (papai e mamãe) e as motos têm dois lugares (para você e para
seu amor). E assim ao infinito.
Como se consegue essa centralidade e superioridade do núcleo reprodutor diante de outros
vínculos não reprodutivos? Através de três mecanismos, que não são os únicos, mas são os
imprescindíveis para o funcionamento do sistema: a positivação da exclusividade, a conjunção
identitária e a potencialização da competitividade e da confrontação.
Comecemos por esmiuçar a reprodução e analisar que carga simbólica ela tem, mesmo
entre pessoas que escolhem não se reproduzir.

Me reproduzo ergo sum

A reprodução não é uma questão menor, mas a materialização de questões mais amplas como a
sobrevivência e a transcendência, que nos interpelam tanto de maneira particular como grupal. É
uma questão que trata de infinitude e de identidade, do medo de desaparecer e se diluir,
problemáticas obsessivamente centrais na construção da subjetividade ocidentalizada. Em termos
monogâmicos, a reprodução tem dois níveis: o nível genético – literal, dos filhos e das filhas do
núcleo reprodutor – e o nível identitário grupal. Porque a forma de reprodução que legitima o
sistema monogâmico não é qualquer forma senão aquela que confirma o indivíduo como tal,
entendido em seu isolamento e solidão contemporâneas. O sistema monogâmico é uma ferramenta
de construção do sujeito ensimesmado, fechado em si mesmo. Como tal, é evidente que o mandato
do sistema não se refere à reprodução como espécie, mas à sobrevivência, reprodução e
perdurabilidade do eu (concreto ou grupal, do eu e do eu-nós): é uma corrida de obstáculos infinita
para garantir a transmissão do meu mais além de mim. E, ao mesmo tempo, é um aparato infinito de
propaganda – tanto para construir a ideia do meu quanto para legitimar o desejo de transmissão.
Ainda quando o meu é grupal, o nós por definição nunca inclui todo mundo. Onde há um nós há um
elas, pois dinâmicas de pensamento binário se geram de maneira automática em um fenômeno de
interdependência conceitual. O nós se define a partir das características inclusivas e, ao mesmo
tempo, das exclusivas. Quem faz parte delimita, simultaneamente, quem não. O sistema
monogâmico não organiza uma forma de sobrevivência coletiva, mas quer que nos reproduzamos
de maneira identitária e excludente, com nomes e sobrenomes, com linhagem, com marcas de
nascimento. É reproduzir nossa casta e colocar nela nossa marca, o copyright, a denominação de
origem, o código de barras, para saber exatamente quem pertence a onde, e o que pertence a quem.
As crianças que, para o sistema monogâmico, não são filhas de uma comunidade, são filhas de um
pai com nome e sobrenome e de uma mãe com nome e sobrenome. E não ter sobrenomes é tão
grave quanto ter e não querer transmitir.
O peso da transmissão genética é tão grande que os vínculos de criação, por exemplo,
ficam em segundo plano, exceto em casos de adoção em que se concede à criança o status de
filha/o. O privilégio biológico é grande o suficiente para passar a denominar “pai” ou “pai
biológico” a um simples doador de esperma em caso de maternidades lésbicas. As crianças não
certificadas, isso é, não reconhecidas pelo pai, também ficam em segundo plano dentro do núcleo.
São as crianças bastardas, sem acesso aos privilégios familiares. “Mãe só tem uma”, o dia dos pais
no El Corte Inglés9, ou essa terrível fórmula burocrática em que se pergunta o nome do
pai/mãe/tutor legal da criança em qualquer formulário do Estado. Há um abismo entre a carga
emocional da denominação pai/mãe e a de tutor legal. Sem falar da violência com que se retrata a
figura da “madrasta”, essa que nunca será a mãe porque, como vimos, mãe só tem uma. No sistema
monogâmico, esta estrutura de consanguinidade genética compartilhada goza de um surpreendente
status que a valoriza como vínculo indestrutível e imprescindível, inclusive entre pessoas que foram
excluídas de seus núcleos. Até quando a família é um manancial de violências – algo
surpreendentemente comum se atentarmos à quantidade de terapias que se dedicam exclusivamente
a resolver traumas causados pelas estruturas familiares, ou à quantidade de twits de desgosto que
circulam sobre os reencontros consanguíneos nas datas festivas –, a família nuclear, tanto sua
presença como sua ausência, ainda tem um extraordinário poder para marcar nossas vidas pois, no
fundo, não temos alternativa. A filiação, a família, parece o único vínculo indelével, inquestionável,
irrenunciável: a única estrutura de vínculo que estamos condenados a carregar por toda a vida,
queiramos ou não; a única possibilidade de permanência e refúgio incondicional. E é certo, porque
no fundo é o único vínculo que mantemos pela vida porque nos vem predestinado, prefixado.
Somos nós mesmas que fazemos com que a família sanguínea seja o único vínculo que perdura ao
não nos permitir ver outras possibilidades e fazer com que sejam reais.
Se estas unidades persistem e na prática são tão difíceis de serem desmanchadas, é porque,
sem dúvida e apesar de tudo, têm a capacidade de dar abrigo, são identidades refúgio frente a um
entorno indubitavelmente agreste. É certo que a linha entre o abrigo e a prisão é extremamente fina
e, em termos identitários, a balança costuma pender na direção de soluções perversas. A identidade

9 Cadeia de lojas de departamento espanhola. [N.T.]


monogâmica gera núcleos de significado fechados em si mesmos, excludentes e articulados por
medos e penalizações (em ocasiões simbólicas e em ocasiões esmagadoramente tangíveis).
Essa marca de sangue nos enlaça em uma linhagem em um contexto onde essa ainda tem
muita importância prática e também emocional. É o que denominamos “nossas raízes” e que tem a
capacidade de nos reconfortar frente à mísera fugacidade de nossa existência. As “raízes” nos dão a
sensação de pertencimento e perdurabilidade. De alguma maneira já estávamos antes de estar, antes
mesmo de existir e, de alguma maneira, seguiremos existindo depois de existir. A passagem
histórica de nosso sangue explica quem somos e assinala o que devemos ser. Desde o nascimento
nos é atribuído um nome e alguns sobrenomes que levam informações indeléveis sobre nosso
gênero, lugar de origem, classe, até mesmo racialização e, frequentemente, estado civil no caso das
mulheres (o nome real de Clinton é Hillary Rodham). Os sobrenomes funcionam como um sistema
demarcador de questões como o pertencimento nacional e que funciona como roda distribuidora de
privilégios10. Ter um sobrenome ou outro te visibiliza de maneiras muito específicas e em absoluto
neutras em relação ao entorno11. Para manter este sistema de filiação e manter intacta a ordem que
acarreta é necessário assegurar a consanguinidade na descendência e sacralizar isso tanto que
mesmo as pessoas que saem prejudicadas por este sistema acatem seus desígnios e o defendam
como natural e necessário. A transmissão inclui os bens materiais, mas não acaba neles: inclui as
oportunidades, os contatos, o status, uma espécie de “pureza” de sangue que só através da
monogamia como prática, e de suas artimanhas como sistema, é possível manter.
O que há de toda essa teoria nas práticas concretas dos amores queer, anticapitalistas,
lésbicos, pós12? Nós sapatonas vivemos obcecadas por transmitir nosso sobrenome? A precariedade
concebe o conceito de herança?
Se o centro de toda essa trama é a reprodução, poderíamos ficar tentadas a crer que, se
desaparece esse objetivo, tudo o mais não opera. Mas não: nossa programação interna é bastante
mais complexa e temos uma infinidade de reflexos induzidos que seguem operando para além de o
estímulo estar presente ou não. Por outro lado, no contexto de hegemonia heteronormativa não há
diversas maneiras de nos culturalizar amorosamente, conforme sejamos heterossexuais ou lésbicas,
queiramos nos reproduzir ou não, queiramos uma relação de casal ou uma rede afetiva: há uma só

10. No ano de 2008, o parlamento francês implantou como medida para garantir a igualdade de
oportunidades que os currículos não tivessem nome, gênero, idade, raça (sic) ou fotografia.
11. Carme Cámara me explicava que, em seus anos escolares, os professores tinham problemas para
pronunciar seu nome e inventavam coisas do tipo “Carue Cambra”, pois não podiam conceber uma pessoa
negra que se chamasse Carme Cámara sem mais nem menos.
12 No original, post, como uma abreviação genérica de linhas de filosóficas pós-estruturais, pós-modernas,
pós-democráticas, etc. [N.T.]
maneira legítima que é monogâmica e heterossexual, e com isso todas nós temos que ir fazendo
malabares13.
A reprodução, a sobrevivência, a transmissão e a transcendência vão mais além do objeto
concreto de transmissão. Definem a partir de ângulos diversos o mesmo fenômeno: o medo de nos
desvanecermos. Isso é o que fica ao fim, o que está por trás de tudo, dos amores burgueses e dos
amores bastardos, dos desejos héteros e das paixões queer, dos encontros lésbicos, dos
arrebatamentos bichas, tanto das pansexualidades apaixonadas e apaixonantes quanto dos chats de
flerte heteronormativos. Por trás de Wapa, Grindr, Tinder e Meetic. Porque a última obsessão deste
sistema monogâmico a partir do qual amamos e fodemos é o pertencimento e, consequentemente, a
perdurabilidade.
É possível que, com tudo o que somos, (tão modernas, tão pós, tão trans, tão queer, tão de
tudo que não se pode mais) ainda estejamos presas ao medo de nos desvanecemos, ao pânico da
intranscendência, da momentaneidade?
Não, talvez não estejamos presas aí.
O que eu de fato afirmo é que herdamos essas formas amorosas e as reproduzimos como se
estivéssemos ainda presas aí.
Infinitamente presas ao medo da finitude ou infinitamente capturadas pela miragem da
infinitude.
O medo da finitude, de desaparecer, se traduz no terror e violência contra a alteridade. A
miragem da infinitude, de crer que somos eternas e perduráveis apesar das circunstâncias, se traduz
em um individualismo selvagem. As duas faces do mesmo desastre.

O ser e o estar em casal

O vínculo monogâmico tem caráter identitário: sua lógica não é “estamos em” casal, mas
sim que nós o somos. Fulaninha é namorada de Siclaninha. Porque, uma vez em casal, passamos a
nos entender como dupla (“sem ti não sou nada, uma gota de chuva molhando minha cara”, canta

13. Como explica Leonor Silvestri na entrevista a Pikara Magazine: “Família, do latim famulus, escravo
rústico, significa conjunto de escravos. Para criar novas formas de afetação se deve criar novas linguagens. A
família, o sangue, o Édipo e o casal formam parte dos grandes dispositivos de controle, com uma coerção
subjetiva muito sutil. É quase um insulto e motivo de expulsão ir contra a família, quando o feminismo
radical dos anos 70 já pleitava por isso. Parece que a heterossexualidade como regime político dá a volta e
ganha a nível subjetivo, à altura dos desejos. Dado que não pode vencer extinguindo os desvios sexuais,
produzem desejos heteronormais mesmo entre pessoas não heterossexuais: desejo de família, reprodução,
matrimônio, casal monogâmico, etc. Também tenta convencer de que qualquer escolha que façamos, seja por
preguiça, incapacidade ou ímpeto intencional para fugirmos do sistema, é radical, desconstrutiva e
subversiva. Quer dizer, desconhece que estamos programadas subjetivamente para ter certos desejos e não
outros.” (https://www.pikaramagazine.com/2015/07/creo-que-el-feminismo-de-seguir-asi-un-dia-estara-en-
contra-del-aborto/).
Amaral), como unidade de dependência inquestionável. O mito da metade da laranja, do amor-da-
minha-vida®. Os mitos trágicos do amor como horizonte são infinitos (e heterossexuais), desde
Romeu e Julieta até Amy Whinehouse e Blake Fielder-Civil: o amor como naufrágio a dois. Quanto
maior o naufrágio, mais poético. E este vínculo tem caráter de permanente porque aspira a ser e
porque momentaneamente se vive como permanente, apesar de a contemporaneidade nos
demonstrar toda vez que tal permanência amorosa é escassa. E não só porque o amor se acaba, mas
porque vivemos nessa liquidez, explicada à exaustão pelo sociólogo Zigmund Baumam, onde tudo é
efêmero, tudo é presente, como se estivéssemos enfrentando o fim do mundo. E, de fato, talvez
estejamos enfrentando o fim do mundo. E o fazemos cheios de hedonismo, de carpe diem, com o
compromisso em direção ao vínculo tratado como uma coisa do passado, como a debilidade de uma
nostalgia fora de moda. Ainda assim, enquanto dura o amor-paixão, o amor apaixonado, nossas
uniões têm qualidade de permanentes e essa qualidade dará a elas caráter identitário: somos o tanto
quanto estamos com. O casal também é uma forma de aumentar nosso valor de mercado: o quanto
agrada é o quanto vale.
Com estes dois elementos sobre a mesa, a hierarquia e a identidade, o resto vem dado:
competição para alcançar esse núcleo hierárquico, para constituir um casal, e confrontação para
alcançá-lo e conservá-lo.
A polícia da monogamia

O que é mais natural, a monogamia ou a Coca-Cola?

A cada verão, essa dúvida existencial assalta revistas, jornais e televisões. “A monogamia poderia
ser antinatural!” era a manchete literal da revista Quo em julho de 2011. O debate sobre se a
exclusividade sexual é natural ou se, pelo contrário, o ser humano é promíscuo por natureza é
irrelevante e insustentável, por mais que constitua a base de uma grande quantidade de literatura
científica, teses de doutorado, programas de divulgação e carreiras tão midiáticas como a da
antropóloga Helen Fisher, especialista no assunto. Estes trabalhos, sem dúvida, só contribuem para
legitimar a pergunta com seus escâneres cerebrais e seu heterocentrismo binário enquadrado em e
para o pensamento monogâmico.
Será natural, pois, isso de monogamia? Ou estaremos sendo antinaturais, nós que somos
todas harmonia com o universo dentro dos nossos carros, dormindo em nossas casas de tijolo e
cimento, trabalhando em nossas fábricas e bombardeando as vizinhas com nossos mísseis? Alguém
se pôs a estudar se o capitalismo é natural e quais os hormônios que regem a compra e venda ou as
bolhas imobiliárias? São naturais Helen Fisher e seus escâneres ou as pesquisas acadêmicas? O
argumento da naturalidade ou antinaturalidade, se não é feito em uma análise que vá mais além de
uma simples retórica do essencialismo, é só uma maneira eficiente de invisibilizar estruturas sociais
e de poder, nos deixando presas no enigma de se há milhões de anos o ser humano foi tal coisa ou o
contrário, como se esse dado, sem mais, pudesse solucionar a questão ou nos tirar dessa confusão.
O debate sobre a hipotética naturalidade das formas sociais vem sempre a reforçar o estado das
coisas: é sempre um argumento imobilista e hegemônico. A utilidade de buscar na antropologia, na
biologia, na arqueologia é precisamente visualizar as construções, entender como se articulam e de
que maneira se transformaram através do tempo. A armadilha que utiliza habitualmente quem
argumenta a favor da naturalidade desativante é a de não esclarecer nunca em que momento e lugar
se situa esse pré-estado a que devemos atender e que deveria resolver os debates. Natural significa
que a maioria dos animais fazem isso assim? A maioria dos mamíferos? A maioria das sociedades
humanas? Onde situamos o natural, e para quê?
A bióloga Lynn Margulis14, que tem livros maravilhosos de divulgação ao alcance de
qualquer leitora sem conhecimentos técnicos, nos oferece uma visão de uma vida no planeta
totalmente alheia às questões humanas sobre sexo e gênero. Inúmeros bichos que mudam de sexo
(de sexo!) conforme as necessidades da comunidade e transformam seus corpos de fêmeas para
machos e vice-versa, machos que engendrar, fêmeas que fertilizam a si mesmas, e toda a variedade

14 Um livro seu de que gosto muito é Danza misteriosa (Lynn Margulis y Dorion Sagan, Kairós, Barcelona, 1992).
imensa de seres inclassificáveis segundo nossas convenções que não são nem macho, nem fêmea,
nem nada… ou tudo de uma vez.
Mais que sobre sua naturalidade, pode ser interessante nos perguntarmos sobre sua
consistência, a consistência da exclusividade sexual. O hackeamento, no verão de 2015, do site de
encontros para pessoas casadas Ashley Madison (“A vida é curta: tenha uma aventura”) deu a cifra
de uns 30 milhões de usuários que potencialmente estavam na web à espera de um flerte
extraconjugal. Em sites de flerte como OkCupid há uma consigna para detectar homens com
companheira que buscam sexo sem que suas esposas saibam: “sem rolos ruins”, dizem. Esta frase
em um perfil ou em um chat é marca inconfundível de cornos no par oficial. Quando manejamos
imagens do mundo heterossexual, não podemos deixar óbvia a imensa diferença nas construções de
gênero que operam sobre homens e mulheres (recordemos que no mundo heterossexual só existem
homens e mulheres). Para seguir com o exemplo de Ashley Madison, o hackeamento encontrou
resultados de 31 milhões de usuários diante de 5 milhões de usuárias e, entre elas, grande
quantidade de perfis falsos e grande quantidade de perfis nunca utilizados. Em Adult Friend Finder,
oferecem bonificações como acesso premium a perfis de mulheres ativos e “certificados” por
usuárias/os que se encontraram com a pessoa no mundo real. Tudo isso acontece porque mulheres
heterossexuais não utilizam muito estes serviços ou tardaram em incorporar seu uso. Não só porque
a polícia da monogamia atua de maneira específica sobre elas, mas porque os próprios sites são
perfeitamente androcêntricos e se publicizam com fotos de muitas mulheres seminuas se oferecendo
a um só homem, ao melhor estilo Bond, James Bond. A tudo isso, acrescentar que as pessoas que
não se encaixam ou não querem se encaixar no binômio homem/mulher apenas têm espaço nessas
redes.
Podemos também revisar nossos currículos amorosos e de nosso entorno: como andam
nossos índices de exclusividade sexual? Com todo seu aparato de propaganda, a monogamia não
teve sucesso em consolidar a exclusividade sexual como prática, mas teve sucesso em consolidar
sua imagem e parnafenália: o triângulo sexo-amor-fidelidade e a ideia de que o sexo fora do núcleo
legitimado (o casal) é uma anomalia, que o desejo puramente carnal de mulheres por mulheres, o
desejo do corpo, o desejo de foder sem aditivos, é visto como uma forma de coisificação e não pode
compreender cuidados se não se romantiza e que, tanto ter sexo com várias pessoas como ter sem a
escalada do amor romântico é uma falta reprovável.

O exclusivo nos dará a felicidade

A monogamia é um sistema de pensamento que organiza as relações em grupos identitários,


hierárquicos e concorrentes através de estruturas binárias com polos reciprocamente excludentes.
A exclusividade sexual é a condição necessária para um sistema como o monogâmico. Não
é a causa do sistema: é sua consequência e sua condição. Seu sintoma. Isso quer dizer que não é a
exclusividade sexual que faz com que a monogamia seja o que é, mas que para que ela seja esse
sistema que organiza as relações em núcleos identitários, hierárquicos e concorrentes, precisa da
exclusividade sexual. Porque sem ela não funciona nem a identidade, nem a hierarquia e nem, em
última instância, a concorrência. E a necessita, por um lado, por ser a única maneira de garantir a
filiação, a patermaternidade, e, por outro, por ser a marca para hierarquizar.
A exclusividade sexual, com tudo o que implica, é uma construção social. É uma obrigação
e uma forma disciplinar que atua de maneira especialmente feroz nos corpos daquilo que veio a ser
denominado tradicionalmente como mulheres. Mulheres com vagina enquanto corpos
engravidáveis. Os que têm o poder de filiação. As mulheres trans, como veremos mais adiante,
formam parte das margens do sistema, com todas as violências tanto do sistema quanto das margens
interseccionadas.
Através de todas as derivas históricas que veremos nos próximos capítulos e de outras
muitas como a construção (tardia) do amor romântico, vai se gerando a biopolítica dos afetos, a
polícia da monogamia que não esta fora de nós, e sim dentro.
Para garantir algo tão estranho como a exclusividade sexual, é necessário gerar uma
espécie de terror constante e uma espécie de drama contínuo. Um caso de uma noite é o fim do
mundo. E não minimizo o impacto emocional do caso de uma noite fora do pacto de exclusividade
sexual, ao contrário. Tento entender o que nos aconteceu, a nível biopolítico, para que tenha tanta
consequência emocional. Nesse caso se rompe um pacto, sem dúvida. E os pactos são importantes
nas relações porque lhes dão segurança, dão as bordas da relação, e as bordas, os limites, por mais
negativos que sejam em ambientes libertários e liberais, é o que dá forma a qualquer questão, é
aquilo que define: seja o feminismo, como o veganismo, como a escrita. As bordas são
circunstanciais, não essenciais, e enquanto circunstanciais são movediças. Mas essa mobilidade,
quando está em relação, deveria ser pactuada dentro da relação; não fora, nem unilateralmente, nem
depois. Assim, uma noite de sexo fora do pacto de exclusividade rompe um acordo, mas rompe a
exclusividade dessa relação? No filme 3 (Drei) de Tom Tykwer, Simon, depois de transar com
Adam nos vestiários da piscina lhe explica que, até então, não era gay. Ao que Adam responde, com
ironia: “aham… e agora é?”. É gay ou lésbica por se deitar com alguém uma vez, por um momento?
É fumante por fumar um cigarro em uma noite de festa?
Se deitar com alguém de maneira ocasional ainda dentro do pacto monogâmico poderia ser
uma travessura explicada sem maior problema ao seu parceiro na manhã seguinte. Ou explicada
com um pouco de problema, mas sem maior drama. Algo do tipo: “te prometi que não beberia mas
no final tomei um whisky”. Mas não é assim.
Positivação da exclusividade: exclusividade e hierarquia

“Exclusivo” designa aquilo que afeta a um grupo determinado e que deixa fora de seu desfrute os
demais. Tem, portanto, duas vias: a primeira marca a especificidade de quem ostenta o exclusivo; a
segunda gera uma exceção. Se refere, pois, a uma especificidade e a uma alteridade. Ao “eu/nós”
frente ao “elas”.
A positivação da exclusividade só pode se inscrever em uma forma de pensamento
hierárquica, onde a máxima aspiração seja pertencer à elite, ao topo. Para conseguir isso, para
escalar sobre os cadáveres de nossas vizinhas, necessitamos marcas de superioridade, medalhas que
gerem uma barreira, uma fronteira. Essas marcas são os ícones da exclusividade. A positivação da
exclusividade está amplamente trabalhada através dos mecanismos de consumo e da publicidade.
Produtos exclusivos, férias exclusivas, clubes exclusivos, assentos exclusivos. Também
terminologia exclusiva para os ensaios acadêmicos. A marca da diferenciação não deixa de ser
paradoxal em um contexto cultural com sérias dificuldades para aceitar a diferença. Mas a diferença
que confere o exclusivo se refere a ser melhor, não a ser distinto. Tão exclusiva pode ser uma
mansão nos bairros ricos como a gonorreia, mas a exclusividade se refere ao inalcançável para os
demais, a estar em lugares onde as demais não poderiam estar ainda que quisessem. Assim,
exclusivas são as coisas mais caras (quanto mais caras, mais exclusivas), mais escassas (e, na lógica
de mercado, mais caras porque mais escassas). A exclusividade se refere ao eu sim e você não.
Inclusive ao eu sim porque você não. Eu estou aqui porque você não está: meu lugar lhe exclui por
padrão. Assim, só pode estar inscrito na normatividade: se refere ao ser e ao ter o que todo mundo
quer ser ou ter mas que não pode. Em nenhum caso ao ser e ao ter o que ninguém quer. Se refere à
inveja.
Quando alguma coisa está ao alcance de todo mundo, perde seu valor. Na gestão de
eventos culturais se recomenda por preço na entrada, pois a gratuidade desvaloriza o ato. Tão
incrustada temos essa ideia, que a prática funciona inclusive nos entornos alternativos onde se
critica amplamente o intercâmbio monetário. Não poder acessar estimula o desejo de acessar e a
sensação de estar presenciando algo importante. O tesão pelo proibido, dizem. Do inalcançável.
As marcas comerciais fazem essa mesma função de alimentar o desejo através do
imaginário da exclusividade. As comparações de produtos publicadas pela Organização de
Consumidores e Usuários (OCU) mostram que não necessariamente os mais caros são os de mais
qualidade. Em 2014, por exemplo, publicou um estudo sobre cremes antirrugas segundo o qual o
mais eficaz valia três euros. E, sem dúvida, os cremes muito mais caros seguem sendo vendidos,
ainda que seja um produto do qual não fazemos ostentação direta (não se leva a etiqueta pendurada
nas sobrancelhas). Quando se escolhe um celular ou outro, nos baseamos só na qualidade? E um
carro? E um jersey? Essa maçazinha que se ilumina em nosso celular é um sinal para nós, que
sabemos perfeitamente que celular temos, ou é um sinal para que as demais saibam que poder
ostentamos, em que escala da hierarquia nos encontramos? Nós definimos a maçã, ou é a maçã que
nos define? Marcas de roupas como a Mango têm uma linha específica para gordas (tamanhos
grandes é o eufemismo escolhido). Sob a etiqueta “Violeta” se comercializam prendas para as
mulheres que não entram nos tamanhos habituais da Mango. A distinção não é trivial: assinala quem
é Mango e quem não é e nem pode ser, ainda que continue sendo um segmento de mercado que
explorar… mas sem confundir as classes nem misturar tudo.
A ideologia da exclusividade se extende a todos os aspectos da vida contemporânea. O
documento de identidade marca quem pertence ao Estado-nação e quem não. Quem tem privilégios
e quem não pode nem deve acessá-los. As fronteiras são marcas de exclusividade. Nosso país.
Nosso espaço Schengen. Mesmo quando é necessário nacionalizar esses “aliens” que não pertencem
ao nós, os testes de acesso exigidos reforçam a ideia de ingresso em algo exclusivo, ao grupo de
eleitas. Para conseguir a nacionalidade espanhola, por exemplo, as perguntas se referem à profissão
de Enrique Iglesias (as opções de resposta são “cantor”, “guitarrista” ou “ator”) ou “como se
chamam as normas extraordinárias que dita o Governo em circunstâncias especiais que têm caráter
de lei”, algo que poucas pessoas com nacionalidade espanhola por padrão poderiam responder.
É realmente importante saber a profissão de Enrique Iglesias para ser uma boa espanhola?
É necessário ser uma boa espanhola para ter direito a ser espanhola ou catalona ou
européia?
Obviamente não. Mas todas estas barreiras assinalam a marca de pertencimento, de
exclusividade. De exclusão. Quando em 2012 o Brasil decidiu aplicar a lógica de reciprocidade à
obtenção de vistos para entrar em seu território, na Europa houve um choque. Que significava isso
de precisar de um convite com firma reconhecida para poder ficar na casa de amigos? E isso de ter
que demostrar o dinheiro da manutenção? A partir da lógica hierárquica, Europa está em situação de
exigir estas condições de seus visitantes, mas o resto do mundo, não. Com este gesto, o Brasil se
tornou mais interessante ainda: se tornou exclusivo, pois já não estava ao alcance de todo mundo.
De qualquer um.
A positivação da exclusividade, portanto, alimenta três constantes em nosso imaginário: a
primeira é o conceito de supremacia, de ter ou ser algo que o resto do mundo deseja ser ou ter; a
segunda é a positivação do poder que nos confere essa situação, que vem da positivação do poder
mesmo (uma ideia que relacionamos com a força despótica mas não necessariamente, por exemplo,
com o cuidado ou a responsabilidade que também deveriam incluir o poder); e a terceira é a
consequência de tudo isso, a competitividade.
Competir nos fará livres

“A competição nos unirá”, dizia o Facebook para dar boas-vindas aos Jogos Olímpicos do Rio de
Janeiro, seguindo uma lógica já muito generalizada. Competir, se se faz de maneira justa, é
saudável, nos irmana, nos reconcilia e sei lá quantas coisas mais. A competição no mundo
capitalista está extremamente sobrevalorizada: a superação, o mais alto, mais longe, mais forte. E
essa competição se espalha como uma mancha de oleo por todas nossas formas de relação e
interação com o mundo. A relação com o que é percebido como exógeno, como externo, se torna
competição. E esse inimigo comum é o elemento aglutinador interno. Somos quanto não-somos o
que consideramos nosso contrário. Esta questão pode parecer superada no âmbito abstrato. Já
conhecemos as teorias pós-identitárias e todas essas coisas. Mas ao aterrizar na realidade, a
perspectiva é muito diferente.
A competitividade é o mecanismo básico de todos os processos e estruturas que sucedem
no mundo capitalista. A forma é simples: construir a ficção de uma estrutura hierárquica com um
paraíso no alto e um inferno na base, e pôr os indivíduos, bem individualizados, a competir para
alcançar o topo. Para que a competição funcione, a estrutura deve ser piramidal, com uma base
ampla que se estreita até em cima. Se todo o mundo cabe no paraíso proposto, não é necessária a
competição e todo o sistema perde sentido (e eficácia). Mas no cume nem todo mundo cabe. Assim,
a pirâmide consegue que as bases (desiguais também entre si) compitam para alcançar o cume,
gerando um amplo espaço de distúrbios mas não de disrupção. Quer dizer, as bases competem entre
elas gerando distúrbios, ruídos, confrontações, mas é confrontação em horizontal, nunca afetando ao
funcionamento da própria estrutura, nunca a existência da própria estrutura. De fato, os distúrbios
na base para alcançar o topo legitimam a existência do topo.
As decepções nos ativismos, de fato, surgem uma que outra vez do mesmo erro: não é o
objeto concreto da luta o que podemos articular, mas sim nossa relação com as estruturas, com a
pirâmide. Por mais que o objeto seja o mesmo (digamos, a luta antirracista, o gênero e o ativismo
poliamoroso), têm pouco em comum um ativismo que busque ascender ao cume e um ativismo que
busque desmantelar a pirâmide, ainda que ambas formas de resistência sejam em algumas ocasiões
necessárias e compatíveis. E sublinho: em algumas ocasiões.
A estrutura piramidal nos ensina a nos confrontarmos para sobreviver. Os paraísos que
habitam o cume são múltiplos e há um para cada ocasião. Desde a própria vida, a sobrevivência, até
um conforto capitalista, a supremacia econômica, os méritos acadêmicos, a fama ou, claro, o sexo e
o amor.
Faz uns anos que me explicaram uma anedota em algumas atividades interculturais para
adolescentes da Fundação Migra Studium de Barcelona. Um dos jogos propostos consistia em fazer
duas equipes e repatir quatro pedras (de papelão) a cada um. Com elas tinham que idear a maneira
de atravessar um rio desenhado no chão. A graça do jogo é que era impossível atravessar o rio com
quatro pedras, mas era muito simples fazer isso com oito. Curiosamente, nunca a ninguém ocorreu
cooperar. No momento em que há duas equipes, se inicia a competição.
A própria competitividade gera a ideia de alteridade ameaçadora. Todo o mundo é, por
padrão, uma adversária. Todo mundo é alguém com quem se comparar e de quem se defender. Seus
méritos vão em detrimento dos meus; seus êxitos constituem meus fracassos; seu prazer é minha
desgraça. Em um mundo onde a nossa felicidade se mede em termos da inveja alheia e da
admiração que geramos, como podemos nos pensar em relações livres de ciúmes e competitividade?

A exclusividade como marca de autenticidade

O imaginário monogâmico nos convence, também, de que se você ama de verdade (ama-de-
verdade®) não desejará ninguém mais: a exclusividade devém marca de autenticidade. Nessa forma
de pensamento competitiva e hierárquica, você se apaixona por “o melhor” ou “a melhor”. Talvez
não o ou a melhor em termos absolutos, mas sim “a melhor pra você”, “sua metade da laranja”, a
pessoa que está predestinada e que será a peça que faltava nessa engrenagem capenga que somos
cada uma de nós. Quando se está, portanto, com “a melhor”, é impossível que se deseje alguém
mais: a corrida está ganha, já não é necessário seguir buscando. O pensamento monogâmico, não
esqueçamos, é substitutivo: desejar alguém novo significa de alguma forma deixar de desejar a
pessoa que se desejava previamente ou, no mínimo, diminuir o desejo. É, de novo, a estrutura
piramidal: para que alguém mais chegue ao cume, o cume deve ser desocupado, rebaixado ou
alargado, e então perde a exclusividade e, portanto, o valor.
A isso adicionamos muitos outros fatores: a penalização da sexualidade é um deles e a
avidez por pureza que leva a rechaçar tudo aquilo que seja duvidoso, misto, mestiço, bastardo,
variável, flexível… É a necessidade (a obrigação) de nos definirmos em termos essenciais, a
estrutura do pensamento binário também presente aqui: ou branco ou preto, ou homem ou mulher,
ou Barça ou Madri15.
A partir destas premissas, o imaginário monogâmico nos ensina que a multiplicidade é
descuido (uma multiplicidade que nos estimula a desconfortos bem incrustados em torno da avareza
ou gula, dois dos sete pecados capitais segundo o cristianismo, que incluem também a luxúria).
Assim, ter várias relações simultâneas, ou desejar várias pessoas, é extremamente penalizado por
15 Se refere a dois grandes times rivais do futebol espanhol. [N.T.]
esse imaginário que, imediatamente, aplica as ideias de maltrato, descuido, indiferença, desamor,
negligência e banalidade a essas relações. Mas isso não é consequência da multiplicidade, senão da
maneira em que nos situamos nessa multiplicidade, como utilizamos a multiplicidade a favor do
capitalismo sanguinário dos afetos. Sem dúvida, não necessariamente tem que ser assim, nem
sempre é.
Por outro lado, o entorno monogâmico dificilmente é boa companhia em termos de
poliamor e polidrama16. Porque raramente leva a sério nossas relações (o Amor-de-Verdade®, já se
sabe, é único) e porque está totalmente impregnado de ideias de competição e guerra, que é a
maneira que funciona a monogamia quando aparece outra pessoa. Destruição massiva. É muito
importante, do meu ponto de vista, encontrar os pontos de ancoragem em pessoas poliamorosas e
que praticam um poliamor que nos agrada, seja qual for, e que possam nos acompanhar nas dúvidas,
nos abismos, nos erros e na variedade de situações que surgem no intenso caminho das emoções e
dos vínculos.
É interessante observar aqui como o mandato da exclusividade com todos os seus
mecanismos entra em colisão com a construção da masculinidade hegemônica. O constructo social
de homem-muito-homem não pode ser objeto exclusivo de ninguém, pois só pode ser sujeito, com o
que sua arquitetura de gênero fica presa nessa colisão entre o mandato da exclusividade e o mandato
da proatividade. Em uma tertúlia radiofônica, uma co-tertuliana (autora de livros sobre a fidelidade)
me atirou à queima-roupa em resposta à minha explicação sobre as redes afetivas e a desconstrução
de gênero: “Vamos lá, você está falando de bundas-moles17 da vida inteira.”
O dilema da masculinidade hegemônica e heterocentrada dentro do pensamento
monogâmico, portanto, é o debate entre James Bond e o bunda-mole que “permite” (sic!) que “sua
mulher” (sic!) vá com os outros.
Partindo desse lamaçal, qualquer ideia de gerar amores inclusivos é automaticamente
desestimada. Se a exclusividade tem todas as virtudes, tanto a diversificação como a inclusividade
tem todos os defeitos. E não só são indesejáveis, como também impossíveis. Tanto diversificar
como incluir só podem conduzir à dor e à destruição, a viver no permanente campo de batalha da
competição instalado na sala de sua própria casa, em seus espaços íntimos e de segurança. A
competição é, sem dúvida alguma, o inferno.
E é assim, com toda esta acumulação de violência, rapina, egoísmo, insegurança,
instabilidade, competição e exclusão que o sistema monogâmico nos prepara para habitar o mundo.

16 Amarna Miller, atriz e ativista pró-sexo e poliamorosa, descreve os “polidramas como aqueles problemas que
derivam de ter relações poliamorosas e que só se dão dentro deste modelo relacional. Por exemplo, a dificuldade na
hora de gerir duas companheiras simultâneas, que uma de suas parceiras sinta ciúmes da outra, ou que você mesma
não saiba manejar de forma construtiva certas situações”. Disponível em
https://verne.elpais.com/verne/2018/02/10/articulo/1518282311_099196.html. [N.T.]
17 No original, calzonazos, expressão coloquial pejorativa referente a homens passivos que se deixam dominar com
facilidade, significando especialmente homens subordinados às esposas. [N.T.]
Significados e significantes

A exclusividade sexual não é nomeada assim, ninguém fala cotidianamente de exclusividade sexual.
Fulana é exclusivista ou Beltrana tem sido des-exclusiva sexualmente. Tem, neste imaginário, um
nome específico, e a naturalização deste nome vem a ser a consagração de um mecanismo de
estímulo em si mesmo. A exclusividade sexual é conhecida como fidelidade.

Fidelidade

Antes de submergirmos no bulevar das fodas perdidas, antes de se converter em sinônimo (ou
eufemismo) de “não dormirás com ninguém mais além da parceira legítima”, a fidelidade se refere à
lealdade com o vínculo de maneira ampla. Se refere à vontade e ao compromisso de atuar e pensar a
respeito de algumas necessidades comuns (em um “comum” autodefinido para cada caso) e a
respeito de uma série de acordos pactuados ou tácitos e que têm a ver com o cuidado e a proteção
mútua e recíproca. Cuidado também entendido de forma ampla e não necessariamente vinculado ao
lado emocional. A fidelidade no sentido amplo está ligada à consciência de não poder viver sozinha,
assim como à necessidade de firmar alianças duráveis nas quais a pessoa pode, simplesmente,
abandonar-se. A fidelidade se refere ao espaço de segurança, à zona sem risco, de proteção, e às
identidades relacionais.
Para pensar, porém, que não podemos sobreviver sozinhas devemos crer que “estar
sozinhas” existe, que é possível estar sozinha mais além de se crer sozinha, que é possível uma
existência individual e individualizada em relação às demais existências. Como podemos conceber
a solidão em um mundo onde não há vazio algum? Agora mesmo, enquanto escrevo, posso afirmar
que estou sozinha. E faço isso porque não considero os tijolos da parede, o computador ou a leitora
hipotética e futura que está do outro lado deste texto como parte de minha própria natureza. Não são
companhia, são cenário. O cenário em que eu me movo. Meu decorado. Além disso, não considero
que o resto das relações que me atravessam estejam operando agora mesmo em mim. Afirmo que
estou sozinha porque não tenho em conta a pessoa que está dormindo na minha cama, um par de
portas mais além, e que mesmo na inconsciência do sono está me acompanhando simplesmente por
dormir aqui e não em qualquer outra cama possível. Afirmo estar sozinha, também, por não lembrar
que há uma rede afetiva que conta com minha existência e que não necessariamente está aqui agora.
Quando falamos de solidão nos referimos, em primeiro lugar, à falta de presença física e imediata
de alguém que eu considere uma igual.
De um ponto de vista mais amplo, a solidão se refere à ausência de certos vínculos
afetivos. Falamos de estar sozinha ao não estar “em casal”, o que remete à hierarquia monogâmica
segundo a qual o casal é o vínculo superior que articula todas as demais relações. Segundo esta
forma de pensar, na ausência de casal, qualquer relação será uma espécie de substituto sem
importância suficiente para nos dizermos acompanhadas. Porque, por mais emaranhada de afetos
que seja sua vida, sem parceira não é o mesmo. Mas, além disso, estou considerando aqui se as
redes afetivas também são compostas pelos afetos negativos. As pessoas que você odeia, as pessoas
com quem você mantém, mesmo a contragosto, relações de desamor, as histórias falidas que te
doem, as pessoas que lhe fazem mal. Se esse tipo de relações negativas não têm espaço quando nos
dizemos em relação, é porque a solidão não remete a ter ou não ter redes, mas a ter ou não ter redes
concretas de apoio. Há pessoas que estão sozinhas, francamente sozinhas no abismo de nossas vidas
contemporâneas, mas não porque não tenham parceiras, mas porque ninguém se preocupa com elas.
É que, no mundo de onde eu escrevo, se preocupar com os demais e os apoiar é opcional. Se pode
apoiar ou se pode não apoiar. Ou, melhor, vivemos na fantasia de poder apoiar ou poder escolher
não fazê-lo, na absoluta ignorância da interdependência, na constante vergonha da impossibilidade
da autossuficiência. Na afirmação de solidão há uma rachadura temporal, também. Há uma pose
romântica que afirma que se escreve para si mesma e que não importa publicar o escrito, pois o
importante é escrever. Não é a partir disso que eu escrevo: para mim, fazer isso é uma forma de
comunicação, é um grito que busca suas ressonâncias, suas respostas e suas consequências. É uma
intenção de dinamitar o tempo, de boicotá-lo. De poder dialogar mais além da contemporaneidade,
mesmo da instantaneidade. As leitoras futuras, portanto, estão (está) no ato mesmo de escrever.
Afirmar que estou sozinha neste instante que escrevo é obviar que não tenho existência por mim
mesma. Que o decorado em que vivo, as redes nas que me inscrevo, o passado e o futuro e eu
formamos parte de um todo, nos inter-relacionamos para coexistir.
Esta ideia de existência individualizada e fragmentada está na base necessária para o
sistema monogâmico em toda sua amplitude. Não é a única forma de se ver e se entender. O Nawpa
andino, tal como é explicado por César Pilataxi18, contem isso que chamamos passado, presente e
futuro integrado e interagindo constantemente; o Tawhid islâmico se refere ao todo contido no todo,
sem fragmentações, ou o povo tojolabal não tem em seu vocabulário a palavra “eu”. Só existe
“nós”.
A fidelidade, portanto, é um conceito imprescindível para uma sociedade que se crê
formada por indivíduos sós e, obviamente, aterrorizados ante essa solidão. Indivíduos que
necessitam um respiro, um espaço mínimo de segurança no qual se sabem acompanhados, unidos
através da promessa da fidelidade. É o reflexo de um mundo que usa fechaduras nas portas. Não nos

18 Nawpa 2007, Xavier Hurtado, com César Pilataxi, https://vimeo.com/7785711


ocorre pensar se nosso cérebro é fiel ou infiel a nossos braços. Ou se o estômago está vinculado ou
não ao rim. Somente os entendendo como elementos separados podemos nos perguntar a questão da
fidelidade ou da infidelidade. É o tabu que nos mantém unidos em um contexto onde é possível, é
imaginável, dar a volta e cravar uma faca na sua vizinha, sem mais, porque sua vizinha é algo
externo a você mesma e, portanto, é descartável, desprezível, substituível. E, quando digo a vizinha,
digo as habitantes do bairro da frente, ou da cidade de frente, ou do país da frente ou do continente
da frente. Seja qual for a linha onde colocamos a alteridade (e sempre é uma linha móvel e
oportunista), esse Outro (essa Outra) passa a ser um objeto utilitário e uma potencial inimiga. Por
isso é necessário por tanta ênfase na fidelidade: para nos assegurarmos de que essa pessoa que agora
se chama amiga não moverá repentinamente a linha da alteridade, nos convertendo, sem mais, em
inimigas e toda a violência que será de repente desencadeada.
Este tabu da fidelidade, que vem a substituir conceitos mais completos como a
responsabilidade ou a corresponsabilidade, o compromisso ou a interdependência, opera em
espectros muito amplos. Da questão da sexualidade em torno das relações sexo-afetivas (mas
também a respeito de sua identidade nacional) até seu time de futebol, a sua marca de roupa favorita
ou a teoria revolucionária a que você adere. Deve escolher um e se manter fiel. Sem mais.

Isso não vai comigo: a falácia da liberdade

Pensemos em um cinema, mas não em um convencional organizado segundo a lógica plateia-tela.


Estamos na sofisticação de uma sala abobadada, onde as imagens constroem uma esfera que te
envolve: no próprio centro da esfera está você, olhando. Parece que não há espaços nos que fixar os
olhos para além da tenda de imagens. Não há cantos, não há esquinas que a façam pensar em uma
construção artificial. Não se veem os cabos que alimentam a tela, nem se distingue, ao fim, seu
corpo como algo exógeno, como algo estranho do conjunto. Você está dentro de um engenho que
reproduz as formas do próprio universo, que recria um céu noturno cheio, lotado de estrelas. E tão
poderosa é a força das imagens, tão envolvente de forma literal, que você se sente dentro da própria
esfera. De fato, você está. Está na esfera. Está, mas não é.
As grandes produções do cinema exprimiram intensamente a ideia da humanidade presa
debaixo de uma abóbada produzida artificialmente. O filme de animação Wall-e (Pixar, 2008)
mostra uma nave espacial com os e as sobreviventes da humanidade onde a vida acontece a partir
de uma cadeira. A poucos centímetros da cara, uma tela; e, ao alcance dos dedos, um painel de
controle para interagir com o que acontece na tela. O corpo é praticamente um resquício irritante,
um incômodo da natureza que nos impede viver, completa e intensamente, o virtual. A ideia dos
corpos abandonados enquanto os cérebros vivem uma existência virtual e passiva já tem
continuação no real através da realidade aumentada: diversas companhias comercializam óculos em
que se pode instalar o telefone móvel de maneira que se pode ficar imersa no que acontece na tela
sem quase nenhum outro estímulo externo. Uma das marcas mais conhecidas, Freefly Vr, anuncia as
maravilhas de seu produto na web. “Freefly Vr é suficientemente leve e portátil para acompanhar
você sempre, ideal para quando você necessita fugir dos maus tempos”. A foto que acompanha o
texto mostra, em sépia, a um rapaz literalmente atirado em um beco, apoiado em containers de lixo,
no meio do caminho entre o êxtase da heroína e a deprê pós-MDMA, mas com a máscara posta e o
cérebro, ao que parece, em uma praia isolada onde a vida, simplesmente, está bem. Até o momento,
esta experiência não inclui o sentido do gosto, do olfato ou o tato, mas chegará lá.
Outras, como LovePalz, propõem dildos19 interativos para se masturbar sozinha ou com
alguém através de um aplicativo que permite ao resto das usuárias controlar seu dildo enquanto
conversam. De alguma maneira, possibilita que as demais a toquem a distância sem o incômodo de
ter que entrar em contato real com outros corpos, e sem ter que dar acesso verídico a sua intimidade.
É a realização definitiva da amante ideal no imaginário individualista, a que se pode ligar e desligar
sem mais, ao seu capricho. A ficção virtual de estar acompanhada sem ter que se comprometer na
relação, sem se pôr em risco. Há, nesse sentido, uma intensa produção artístico-científica sobre
empatia artificial e outras maravilhas do capitalismo pós-moderno, ou como se queira que se chame
a época em que mal-vivemos20. Uma de minhas preferidas, o I.E.D. (Improvised Empathy Device)
de S.W.A.M.P (Matt Kenyon e Doug Easterly), é um aparelho que provoca uma dor física, uma
picada, na pessoa que o segura em relação à dor de outra pessoa. Essa dor é o que tradicionalmente
denominamos empatia, a afetação por questões que não te atravessam diretamente, que não
impactam em seu corpo literal, mas em seu corpo social, no corpo dos demais que se sente como
próprio. Essa bugiganga de empatia (Empathy Device) é a antítese daquilo que propõe. Não é
empatia se você sente literalmente. A picada faz com que doa seu corpo literal, sua carne, não que a
dor venha de sua humanidade em si mesma. Nesse caso, além disso, a bugiganga está sincronizada
com as mortes de soldados estadunidenses no Iraque (das mortes iranianas não temos notícia: só
algumas vidas picam, parece).
Nestes três exemplos, vemos o controle sobre o corpo a partir de agentes externos que não
têm em conta o próprio corpo e que o reduzem a uma funcionalidade concreta, o corpo-ferramenta,
corpo-meio para finalidades externas ao corpo. Estes artigos são a metáfora mecânica dos sistemas
e sua construção de imaginário. Longe de ser uma sofisticação, são seu paralelo mecânico e
decadente. Para os óculos de realidade virtual, a corporalidade é um incômodo, uma massa física a
que estamos atadas mas que podemos, tranquilamente, deixar atirada em um beco; para os dildos, o
corpo é a ferramenta para ter orgasmos e esses são o objetivo último do prazer: a orgasmização
19 Joguetes sexuais inapropriadamente chamados de “consolos”, como se fossem um consolo ante a falta de… pênis?
20 malvivimos, no original. [N.T.]
(genital) da sexualidade; para o I.E.D., o corpo é uma espécie de tela tátil a partir da qual ativar
reações próprias de uma emocionalidade perdida no caminho. Seu denominador comum é que
entendem o corpo enquanto carne: tanto o pensamento como as emoções são lugares relacionados
de maneiras diversas com o corpo que não são corpo. Estes três artigos são ferramentas para dizer
ao corpo quando e como sentir. E para indicar, também, de maneiras sutís, que sensações são
legítimas e quais não: não é neutro o fato de que o I.E.D. incida no corpo só quando morrem
soldados estadunidenses, mas não quando morrem soldados ou população civil iraquianas. A
devastação do corpo atirado no beco do anúncio de Freefly Vr nos lembra que a vida pode ser uma
merda, mas que se sentir mal a respeito ou se articular para fazer resistência é coisa de otária. O
cool é deixar o corpo como um resíduo e pôr a mente a viver em um anúncio de Coca-Cola. O dildo
online nos propõe sexo sem suor nem lágrimas, sem risco algum para além de ficar sem pilhas
(ainda que, avisa a web, os aparelhos tenham autonomia de até quatro horas, para que se possa
gozar amplamente). São, todos eles, redes de segurança para um mundo inevitavelmente cruel. O
sistema monogâmico, como o capitalista, o colonial e o patriarcal, como todos os sistemas que nos
mantêm ligadas a estrutura de opressão e dor, são promessas de felicidade. Se somos boas, se
seguimos as instruções, tudo correrá bem. Se temos relações monogâmicas, não sofreremos:
encontraremos um grande amor que durará toda a vida sem muitos imprevistos mas com
intensidade constante, nos reproduziremos sem contratempos e teremos uma família feliz que nos
fará nos sentirmos acompanhadas. Seguras. Se trabalhamos e não fazemos muito barulho, se não
nos sindicalizamos para além do permitido oficialmente, se não pedimos melhorias demais nas
condições laborais nem tentamos desarticular o sistema, e se estamos agradecidas pelo próprio
trabalho (o trabalho dignifica, ironizava Pepe Rubianes), ascenderemos ao precioso mundo da
estabilidade econômica e ao bem-estar consumista para poder comprar os objetos da felicidade:
casas com jardim, carros com ar-condicionado, cremes anti-idade e férias em paraísos de papel
machê. O sistema colonial exige boas colonizadas, que aceitem sem reclamar regimes e que não
exijam direitos para além de pequenas camadas de pintura que jamais apontem contra o
funcionamento global. Assim, um dia vamos sair da pauperização, o Banco Mundial dará créditos,
Zara abrirá uma loja de moda low cost na esquina de casa e a vida será outra coisa. Se alguém
decide fazer as malas e se mudar para a zona de bem-estar planetário (literal ou metafórico,
geográfico ou social), deverá fazer isso na ponta dos pés e pedindo perdão: será a eterna migrante
sem direito a se queixar nem a fazer barulho, ou a eterna impostora com identidade sob suspeita.
Imigrantes de terceira ou quarta geração, nouvingudes, europeias mas não. Se somos boas mulheres,
a vida irá bem. Só precisa abrir as revistas de meninas para comprová-lo: se você está magra, é loira
e jovem, se não se queixa muito, o mundo estará a seus pés. Biquinhos, aplausos e sorrisos
congelados por toda a eternidade. Você pode até mesmo performar masculinidade se fizer isso de
maneira sexy: a atriz Ruby Rose, suposto paradigma da androginia, não deixa de ser o sonho erétil
do desejo masculino heteronormativo.
Para chegar a essas promessas, se deve deixar o corpo de lado. O corpo particular e o
corpo coletivo, abandonar a vontade, os sentimentos, as emoções, os próprios pensamentos e
desejos e entregar tudo, como garantia, ao sistema, o maquinário, que passará a decidir por nós
quando e como sentir. É o sonho da governabilidade, o panóptico definitivo: o sistema (os sistemas)
quase não necessita nos vigiar diretamente: nos vigiamos sozinhas. Assim, o sistema monogâmico
também nos diz como e quando sentir, também nos dá picadas diante de algumas imagens
concretas, aciona mecanismos remotos de prazer orgásmico e romantização das relações frente a
outras conexões concretas e nos obriga a ler as circunstâncias sob um único prisma concreto. O
sistema monogâmico são os óculos de realidade aumentada aos que estamos permanentemente
conectadas. Que imagens se projetam neles, e quais delas nos dão prazer ou nos produzem
dolorosas descargas elétricas?
O grande choque de trens entre isso que chamam de monogamia e aquilo que denominam
poliamor acontece nesses níveis. Se deitar com mais de uma pessoa todo mundo sabe fazer. Mas, ou
isso se faz coisificando essa pessoa, a partir da perspectiva de uma amante que não voltará a ver
nunca e não merece “investimento” de cuidados (tudo muito na linha do imaginário bancário), ou
bem o fará a partir da romantização com a que se iniciam as relações monogâmicas que se querem
perduráveis, fazendo uma escalada até a relação monogâmica por mais que não pretenda ser e por
mais que exista uma rede afetiva já em marcha. E nenhuma destas formas é compatível com um
novo paradigma amoroso.

Amores lésbicos

Entre lésbicas, a situação é ainda mais complexa. A penalização extra da sexualidade nas mulheres e
da sexualidade homossexual se juntam, se mesclam para gerar um coquetel no qual a sexualidade se
romantiza de maneira exponencial. O sexo ocasional é visto como uma forma de coisificação que
nada tem a ver com o sexo ocasional, mas com a coisificação a que nos submete o sistema
heterocentrado. Assim, à sexualidade deve ser adicionado o romance, sentimentos muitas vezes
fixados ainda quando não se teve tempo de desenvolvê-los. Em uma das oficinas #OccupyLove,
estávamos tentando identificar qual é o momento exato em que surgem os ciúmes e a ameaça. O
público heterossexual identificou a segunda noite de sexo. A continuidade. Quando falo de decorar
o sexo casual com sentimentos fictícios, não me refiro ao companheirismo, à simpatia, à atração, ao
cuidado, que são totalmente compatíveis com o sexo ocasional. Mas a ideia mesma de
ocasionalidade, de não gerar uma continuidade, ou que esta continuidade não seja romântica, a ideia
de que aquele é sexo com alguém que te atrai e não uma paixão a primeira vista e o início de uma
escala relacional é sumamente complicada de levar a cabo entre lésbicas. E quando se faz, é através
de um trabalho de desconstrução de todos esses códigos aprendidos, nada fácil de fazer. Isto, junto
com as violências adicionais que sofremos e a necessidade extra de um refúgio estável, para além
da precarização específica de nossas vidas econômicas, faz do poliamor entre lésbicas um contexto
específico mais dificultoso sem dúvida, mas que também, atenção, conta com ferramentas próprias
precisamente saídas da necessidade de criar redes afetivas perduráveis e extensas.

Conclusões

Este é o imaginário que opera em nós cada vez que uma de nossas relações monogâmicas se rompe
por questões relacionadas com a exclusividade e, no entanto, nos lançamos em outra relação de
novo sob os mesmos parâmetros. Este é o imaginário, também, que opera em toda nossa construção
de alteridade e que herda o poliamor e outras formas de não-monogamia. O imaginário é tão potente
que não conseguimos nem mesmo considerar que o disfuncional é o sistema e não nós, assim que
construímos infinitamente segundo o mesmo paradigma. Para lograr consolidar este paradigma são
e tem sido necessárias uma série de mecanismos de estímulos e de coação que operam sobre nosso
marco referencial. São as ferramentas do pensamento monogâmico. Para apontar a hierarquia é
necessária a exclusão e a confrontação, a exclusividade e a competitividade amorosa que passam a
fazer parte do amor em si.
Desmontar a monogamia é desmontar o sistema piramidal. Não serve reclamar uma cume
mais larga para os amores, porque enquanto haja pirâmide, o resultado é monogâmico. Com dois,
cinco ou vinte pessoas envolvidas. Por outro lado, é inútil pretender desmontar a monogamia sem
desmantelar a competição em todos seus âmbitos. Deve-se mudar o paradigma relacional em sua
totalidade, porque a forma como nos situamos em relações treina nosso corpo para reproduzir
constantemente essas mesmas sensações frente a situações similares. Não adianta competir no
mundo laboral e colaborar no amoroso: o corpo não nos deixa, o sistema não nos deixa entrar e sair
como se nada tivesse acontecido. Devemos desmantelá-lo, devemos jogar fora o baralho inteiro. De
outro modo, vamos nos gabar tanto quanto quisermos de não sentir ciúmes, nem nos sentirmos
ameaçadas, nem ter nenhum problema com as amantes de nossas amantes, mas só serão isso, blefes
ou ilusões momentâneas, possivelmente ligadas a nossa posição (também momentânea) de poder.
Como diz a minha Manu21, e não me cansarei de repetir ao longo do livro, o poliamor não
vem definido pelo número de relações, mas pelo tipo de relações que têm os meta-amores entre si:
se de cooperação e cuidados mútuos, ou de confrontação e batalha pelo cume.

21 A denomino assim com seu pedido expresso e fico muito orgulhosa de fazer isso.
Bons filhos, quando há muito alvoroço é porque algo está acontecendo.
Creio que tanto os negros do Sul como as mulheres do Norte estão todas falando de direitos e aos
homens brancos não resta mais que ceder em breve.
Mas de que se trata o que estamos falando aqui?
Os cavalheiros dizem que as mulheres necessitam ajuda para subir as carroças e para passar sobre
os buracos na rua e que devem ter o melhor lugar em todas as partes.
Mas a mim ninguém nunca ajudou a subir as carroças e a saltar as poças de lodo ou deu o melhor
lugar! E por acaso não sou uma mulher? Olhe-me! Olhem meus braços! Arei e semeei, e trabalho
nos estábulos e nenhum homem o fez nunca melhor que eu! E por acaso não sou uma mulher?
Posso trabalhar e comer tanto quanto um homem se é que consigo alimento – e posso aguentar o
chicote também! E por acaso não sou uma mulher? Pari treze filhos e vi como todos foram
vendidos como escravos, quando chorei junto às pernas da minha mãe ninguém, exceto Jesus
Cristo, me escutou e por acaso não sou uma mulher?
Então se perguntam o que é que tem na cabeça? O que significa isso? (Um membro da
audiência sugere “Intelecto”) - Exato! Que tem a ver tudo isso com os direitos das mulheres e dos
negros?
Se meu jarro só pode ter uma pinta e o de vocês um quarto, não seria muito egoísta da
parte de vocês não deixar ter minha pequena metade cheia? Então o pequeno homem vestido de
preto diz que as mulheres não podem ter tantos direitos quanto os homens, porque Cristo não era
uma mulher. De onde veio Cristo? De onde veio Cristo? De Deus e de uma mulher! O homem não
teve nada a ver com Ele!
Obrigada por terem me escutado, agora a velha peregrina não tem mais nada a adicionar.

Soujourner Truth, dezembro de 1851, convenção de mulheres, Akron, Ohio, EUA.


[https://perspectivaafrodescendiente.wordpress.com/2012/03/15/acaso-no-soy-una-mujer/]

Exclusões do Sistema

O conto da Aia, de Margaret Atwood, retrata um mundo distópico em que não nascem crianças. Os
produtos químicos ocasionaram taxas insustentáveis de fertilidade. Nos Estados Unidos se inicia
uma guerra civil para instaurar um novo regime. O que se segue é um atentado terrorista levado a
cabo por uma suposta célula muçulmana, o que acaba se provando errado – detalhe presente no
livro mas que desapareceu na série de televisão posterior. Atwood já tinha detectado em 1985 o uso
interessado da islamofobia que estamos vivendo a cada dia em nossos meios de comunicação.
No novo regime, as mulheres férteis são sequestradas e utilizadas como criadas
reprodutoras para as famílias poderosas. Sua missão é gestar e entregar as crianças. As mulheres
que não são férteis são encarregadas das tarefas domésticas destas famílias privilegiadas e aquelas
que tem comportamentos rebeldes são nomeadas não mulheres e enviadas às “colônias” para retirar
cadáveres e limpá-las de contaminação química. Sobre um dos personagens, o chofer, a autora nos
diz que, por ser de classe baixa, não lhe foi designada uma mulher.
Quando tentamos analisar um sistema impositivo, temos que olhar sempre as margens.
Estas formam parte do sistema em si, que é quem os cria. São vidas que ficam impossibilitadas de
entrar no sistema que, simultaneamente, é imposto a elas. Sua imposição não é estar fora do
sistema, mas ser a margem desse. São os monstruosos que confirmam o normal da normalidade. O
centro do sistema monogâmico tem suas margens, não é acessível para todo mundo. É obrigatório
para os corpos que o sistema quer reproduzir, para os corpos e as vidas desejáveis para o sistema e
está proibido para os corpos excluídos. E esta proibição é da mesma forma imposta pelo sistema.
Jaques Donzelot analisou a criação do orfanato como instituição na França do século XIX.
Explica, por exemplo, que era necessário dotes para se casar, tanto por parte dos homens como das
mulheres. Assim, as pessoas sem possibilidade de ter um dote não podiam se casar e as crianças
ficavam sem reconhecimento paterno e acabavam, em muitas ocasiões, em orfanatos que chegaram
a ser uma carga econômica importante para o Estado. Uma das soluções foi enviar aos órfãos, tão
logo tivessem idade para disparar, a missões militares de colonização, que na França do século XIX
representava o norte da África, boa parte da África subsaariana, o sudeste asiático e alguns
territórios da América central ou da Oceania que ainda hoje pertencem aos territórios chamados de
ultramar franceses22. No caso das mulheres solteiras, ficava a opção de entrar em um convento, mas
para isso também era necessário um dote, de tal modo que as mulheres pobres que não podiam se
casar passavam a ser uma carga pra família de origem, uma marca.
Michel Foucault, em sua História da Sexualidade, dedica pouco espaço às mulheres.
Quando fala dos hábitos do mundo clássico grego e romano, esclarece que o costume de ter amantes
jovens, que eram tomados como protegidos, era algo permitido só aos homens com homens. As
mulheres, as esposas, tinham tarefa reprodutiva e estavam vigiadas de perto para que sua castidade
fosse assegurada. O que não analisa Foucault é a sexualidade das escravas e dos escravos. Elas
estavam obrigadas a uma forte promiscuidade e suas crianças passavam a fazer parte do patrimônio
(da riqueza) do amo23. Não estavam permitidas as relações paternas nem maternas com essas
crianças em situação de escravidão, o que se repete nas diferentes etapas da colonização europeia e
nas plantações americanas, onde as mulheres brancas estavam obrigadas a relações exclusivamente
conjugais para dar filhos legítimos que perpetuassem o nome e herdassem o capital, enquanto as
22 Jaques Donzelot, La policía de las famílias, Nueva Visión, Buenos Aires, 2005.
23 Montserrat Galcerán Huguet, La bárbara Europa, Traficantes de Sueños, Madrid, 2017.
mulheres racializadas estavam obrigadas a se reproduzirem mas eram excluídas da possibilidade de
formar família e de criar seus filhos e filhas.
Não estamos falando de uma história remota. Na atualidade há uma infinidade de práticas
e dispositivos para impedir acesso dos corpos indesejáveis à zona de conforto do sistema
monogâmico. Isto é: à criação, à hierarquização e à conservação do seu núcleo reprodutor
escolhido.
É importante entender que o problema do sistema monogâmico, como de qualquer sistema,
não é sua prática concreta, mas a obrigatoriedade dessa prática e o desaparecimento de qualquer
outra possibilidade de existência. Como esses peixes que são implantados artificialmente em um
habitat e acabam com tudo, como a música comercial que acaba atrofiando a escuta e
impossibilitando o desfrute de qualquer outro tipo de música que, de repente, nos soa mal. O
problema não é a música comercial, o problema é o monopólio, o desaparecimento de opções reais.
Voltamos à ideia de que a biopolítica não funciona colocando pistolas nas testas ou proibindo certas
músicas. Cada uma de nós faz essa função de maneira inconsciente e sem necessidade de nos
sentirmos obrigadas. Esse é seu grande sucesso. Quando dou oficinas de gênero, depois de horas
explicando, mostrando vídeos, gerando dúvidas sobre o “natural” de nossas construções,
frequentemente há alguém que conclui dizendo “ta bom… mas as meninas gostam de rosa”.
Compro. Digamos que as meninas gostem de rosa. As perguntas são: o que acontece com as
meninas que não gostam de rosa? O que faz com que tantas meninas gostem de rosa? O que
acontece com os meninos que também gostam de rosa e que não são permitidos a acessar essa cor?
Essas são as questões, não o rosa, que é uma cor, só isso. Mas há vidas obrigadas ao rosa, e vidas
excluídas do rosa. E ambas questões formam parte da mesma violência 24. Assim, a prática
monogâmica não é uma prática “má” por si mesma. O sistema no qual ela se firma é um sistema
violento, mas não é porque a prática seja violenta: necessitou gerar essa violência em sua estrutura
para se impôr, para se inocular no nosso interior, como se inoculou o rosa ou as servidões de gênero.
Para serem naturalizadas. Esse é o problema. E a pergunta não é sobre a prática monogâmica. É
sobre quem está obrigada e através de que estruturas, o que acontece com as pessoas que não se
encaixam, o que acontece com quem fica excluída. E tudo, também, faz parte da mesma violência.
Por tanto, nós, as pessoas que estão buscando as rachaduras do sistema monogâmico, e as
pessoas que estão buscando rachaduras para ter acesso a ele fazemos parte de uma mesma
resistência. Porque gera o mesmo desajuste sair quando se deve estar que entrar quando não se tem
permissão. Não são opções opostas: são a mesma em contextos vitais distintos.
Não pretendo fazer uma lista exaustiva das exclusões, mas sim refletir sobre algumas delas
para atender também às alianças que poderíamos estar fazendo com os movimentos não-

24 http://www.eldiario.es/zonacritica/Infancias-color-rosa_6_308379191.html
monogâmicos que nos escapam. Como já disse há algumas páginas, em numerosos países europeus
se praticou a esterilização forçada de populações subalternizadas, que o Estado não considerou
desejáveis para reprodução: a Suécia esterilizou 230.000 pessoas entre 1935 e 1996 (sic) com
intenção de melhorar a raça e eliminar a população cigana, pessoas de raça mista, lapões, portadores
de câncer e pobres (já que se aplicou também em “mães sozinhas com filhos, depressivas,
alcoólatras, marginais”25). A maioria dos países europeus praticou as esterilizações forçadas em sua
população metropolitana até passado um bom tempo da entrada do século XX e, claro, todos as
praticaram em seus territórios colonizados. As mulheres ciganas26 de toda a Europa conhecem bem
esta situação. Na República Tcheca há esterilizações forçadas registradas até o ano de 200727.
O anticoncepcional injetável Depo-Provera, que garante o controle reprodutivo por três
meses, foi usado em Israel com as mulheres judias etíopes migrantes sem o consentimento delas,
com a mentira de que era uma vacina, ou sob a ameaça de não as deixar entrar28 no país.
Em 2017, os órgãos de justiça europeia condenaram a França por obrigar as pessoas trans a
passar por operações cirúrgicas ou tratamentos hormonais esterilizadores para reconhecer sua
identidade de gênero. Esta é uma prática habitual em toda a Europa. Não são denominados
tratamentos esterilizadores, mas se exige das pessoas trans um tempo e nível hormonal para o
reconhecimento de gênero que, na prática, é esterilizante e não tem outra função social além dessa29.
Os casamentos entre pessoas europeias e pessoas de pessoas de países do Sul global têm
que passar por procedimentos administrativos ridículos nos quais se deve demonstrar que seu
casamento é por amor e não por qualquer outra causa. É impensável algo assim para um matrimônio
entre pessoas europeias e classe média ou alta: nenhuma administração investigaria se se casam por
status social, para fazer uma boda falsa e vender a notícia exclusiva a uma revista, ou por capricho.
Na permissão de residência da pessoa estrangeira aparece o nome da pessoa nativa com quem está
casada. E isso não supôs uma revolta feminista, saber que há um monte de mulheres por aí afora
que levam o nome de seus maridos estampados em seu documento de identidade. Os e as
estrangeiras não são sujeitos de reprodução desejável para o Estado, pois carregam o risco de
mestiçagem da identidade nacional e a ingovernabilidade através da armadilha identitária, um dos
mecanismos prediletos para a atomização e a docilidade sociais.
Também é importante refletir, em torno do casamento “igualitário” e sua urgência social,
quantas pessoas homossexuais, lésbicas e trans tiveram que se casar em regime de
heterossexualidade para conseguir a permissão de residência e que tipo de violência implicam essas

25 http://www.elpais.com/diario/2000/03/29/internacional/954280813_850215.html
26 No original, romanís. [N. T.]
27 https://www.pikaramagazine.com/2017/07/relato-de-un-parto-gitanofobia-de-genero-y-violencia-obstetrica/
28 https://www.theguardian.com/commentisfree/2013/jan/30/forced-contraception-jewish-ethopian-women
29 https://www.dosmanzanas.com/2017/04/el-tribunal-europeo-de-derechos-humanos-condena-a-francia-por-exigir-la-
esterilizacion-de-las-personas-trans-como-requisito-para-reconocer-su-identidad-de-genero.html
práticas. Também, no caso das pessoas LGBT, a impossibilidade do casamento nos deixa nas mãos
de nossas famílias em caso de enfermidade ou deixa nossas companheiras em total abandono
quando morremos. E sabemos que, para pessoas queer, ficar nas mãos de nossas famílias naturais
nem sempre é uma opção agradável, com as taxas de violência que vivemos nesses núcleos por
causa de nossa identidade de gênero e orientação sexual.
No caso dos diagnósticos por saúde mental, cito um artigo publicado no jornal El Mundo:
“Outra dificuldade que enfrentam os doutores é a de “canalizar” a conduta sexual mal adaptada. ‘A
alta prevalência de abusos sexuais nestes pacientes psiquiátricos graves, mais nas mulheres que nos
homens, os efeitos secundários da medicação e sua vulnerabilidade psíquica dificultam o
estabelecimento de relações íntimas sãs’, recorda o presidente da AESC.
‘Se considera que entre 8% e 24% dos enfermos têm algum tipo de conduta mal adaptada como por
exemplo exibicionismo, manter o uso de relações sem preservativo, praticar sexo em público ou
permitir que abusem deles, entrem outros’, adiciona.
Um trabalho recente, publicado British Journal of Psychiatric, no qual se entrevistou 113 homens e
mulheres esquizofrênicos, constatou que 8% eram promíscuos e que 23% tinham outros desvios não
específicos.”30

A sexualidade de pessoas diagnosticadas com esquizofrenia passa a ser um “problema”


adicional para a medicina que se traduz na problematização da sexualidade das pessoas
categorizadas como esquizofrênicas. A medicina, a partir do que pode-se ver nesse artigo, é a
geradora do problema, sendo que ela define quais são as relações sãs e as doentias, e toma o poder
de canalizar estas pessoas dentro da norma que a própria medicina cria. É, por tanto, legisladora,
juíza e executora. Estas condutas prejudiciais incluem o sexo (a penetração) sem preservativo. No
entanto, a pesquisa realizada na Espanha pelo CIS 31 sobre atitudes e práticas sexuais do ano de
2008 tem como resultado que 31,8% da população não usa nenhum método contraceptivo em
encontros sexuais com “alguém que conhece pouco ou que acaba de conhecer”, e 44% não usa
nenhum método com seu par estável. Além disso, 10% das pessoas entrevistadas tinham tido sexo
na praia, 5,6% em lugares públicos como centros comerciais, 14,6% em campos ou parques. Aquilo
que o sistema médico considera anormal para pessoas categorizadas como esquizofrênicas são
práticas sexuais habituais em toda a população, sem mencionar a promiscuidade ou esses outros
desvios “não específicos” que poderiam incluir fetichismo, voyeurismo ou a homossexualidade,
todas elas práticas prejudiciais só aos olhos do sistema repressivo.
O controle da sexualidade dentro do núcleo reprodutor se dá através de métodos de
propaganda que classificam em “boas”, “morais”, “sãs” ou “naturais” algumas práticas sexuais que

30 https://www.elmundo.es/elmundosalud/2008/03/07/neurocienciadossiers/1204912958.html
31 Centro de Investigaciones Sociológicas. [N.T.]
restringem o desejo ou a prática de outras possibilidades dentro do núcleo reprodutor privilegiado.
Ainda assim, os métodos de vigilância são indiretos e enquanto as práticas fiquem dentro das
alcovas não há uma intervenção direta sobre elas (algo que propicia, por exemplo, as violações
dentro do contexto dos casais estáveis, em que o Estado tende a não intervir mesmo em caso de
denúncia). O método de diagnóstico psiquiátrico é a fórmula utilizada pelo Estado para poder
intervir diretamente na reprodução dos monstruosos, se fazendo responsáveis pelos seus corpos e
seus prazeres, ficando excluídos do privilégio da reprodução e construção de núcleos reprodutores,
algo que se torna, no entanto, um mandato para o resto da população.
As trabalhadoras sexuais também carregam o estigma da indesejabilidade para o sistema
monogâmico. “Filho da puta” segue sendo um insulto usual, que assinala na linguagem cotidiana
que essas mulheres são não-mulheres, que não devem acessar ao direito de reprodução e ao vínculo
meterno-filial, ao que outras estamos irremediavelmente condenadas.
Na Espanha, o Partido Popular deixou em seus anos de governo fora dos programas de
reprodução assistida da medicina pública as mulheres sem um homem, literalmente, o que inclui
lésbicas e mulheres heterossexuais sem companheiro32.
Estes são alguns exemplos das exclusões de um sistema que, como aponto, é obrigatório
para todo o mundo, também para as excluídas. Mas a lista, sem dúvida, é muitíssimo mais extensa e
muitíssimo mais sutil. Os horários de trabalho impossíveis e incompatíveis com as relações sociais
que se aplicam às classes mais desfavorecidas formam parte da sutileza do problema.

32 https://www.pikaramagazine.com/2017/06/autogestion-reproductiva-lesbianas/

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