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Édouard Louis
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Método
tradução
Marília Scalzo
Capa
Folha de Rosto
Dois prólogos
1. Elena
2. Didier
3. Breves cartas para um longo adeus
4. Desenlace
Créditos
Para Giovanni S.
Eu não sou nada além de um pretexto
Jean Genet, Diário de um ladrão
Dois prólogos
É meia-noite e trinta e três e eu começo a escrever neste quarto
escuro e silencioso. Lá fora, pela janela aberta, ouço vozes na noite
e as sirenes da polícia, ao longe.
Tenho vinte e seis anos e uns meses, a maioria das pessoas diria
que tenho a vida pela frente, que nada começou ainda, e no
entanto, vivo já há muito tempo com a sensação de ter vivido
demais; imagino que é por isso que a necessidade de escrever é tão
profunda, como uma maneira de fixar o passado no escrito e assim,
suponho, me livrar dele; ou talvez, pelo contrário, que o passado
está tão enraizado em mim agora que me obriga a falar dele, o
tempo todo, a cada instante, que tenha me dominado e,
acreditando me livrar dele, apenas reforço sua existência e seu
poder sobre minha vida, talvez eu esteja preso — não sei.
Eu tinha vinte e um anos e já era tarde demais, já tinha vivido
demais — tinha conhecido a miséria, a pobreza na infância, as
repetidas cenas da minha mãe me pedindo para ir bater na porta
dos vizinhos ou da minha tia, a voz suplicante, para que nos
dessem um pacote de macarrão e uma lata de molho de tomate,
porque ela não tinha mais dinheiro e sabia que uma criança
despertaria mais facilmente pena do que um adulto.
Tinha conhecido a violência, meu primo morto na prisão aos
trinta anos, meu irmão mais velho doente de alcoolismo desde a
adolescência, que acordava bêbado de manhã antes de ter bebido,
de tanto que o álcool estava impregnado no seu corpo, minha mãe
que negava isso com todas as suas forças para proteger o filho, que
jurava para nós sempre que ele bebia que era a última vez, que
depois daquela não beberia mais. As brigas no bar da cidade, o
racismo obsessivo das comunidades rurais isoladas, presente atrás
de cada palavra ou quase, de cada frase, Aqui não é mais a França, é
a África, a gente só vê estrangeiros pra todo lado; o medo constante
de não conseguir chegar ao fim do mês, de não poder comprar lenha
para aquecer a casa ou não poder substituir os sapatos furados dos
filhos, as frases da minha mãe, Não quero meus filhos passando
vergonha na escola, e meu pai; meu pai doente pela mesma vida de
trabalho na fábrica, na linha de produção, e depois nas ruas
varrendo a sujeira dos outros, meu avô doente por causa da mesma
vida, doente porque sua vida era a reprodução quase exata da vida
de seu bisavô, de seu avô, de seu pai e de seu filho: privação,
precariedade, abandono escolar aos catorze ou quinze anos, vida
na fábrica, doença. Quando eu tinha seis ou sete anos, via esses
homens à minha volta e achava que a vida deles seria a minha, que
um dia eu iria para a fábrica como eles e que a fábrica me faria
curvar as costas também.
Tinha falado com ele pela primeira vez havia cerca de duas horas
por um site. Fora ele que entrara em contato. Tinha me dito que
gostava de garotos como eu, jovens, magros, louros, de olhos azuis
— especificara: tipo ariano. Havia pedido que eu me vestisse como
um estudante e fiz isso, pelo menos como a ideia que ele tinha de
um estudante, eu usava uma blusa com capuz grande demais que
peguei emprestado de Geoffroy e um par de tênis azul-anil, meu
preferido, tinha me dobrado a seu desejo porque esperava que ele
me pagasse mais do que havia prometido, para me recompensar
por minha dedicação.
Fiquei esperando.
Ele enfim abriu a porta e, vendo seu corpo, tive que contrair os
músculos do rosto para não fazer uma careta — ele não se parecia
com as fotos que tinha me enviado, seu corpo era flácido, pesado,
nem sei como dizer, como se caísse ou, melhor, como se
escorresse para o chão.
Ele sofria só por ter se deslocado até a porta, eu via o cansaço, a
falta de ar, a transpiração na forma de dezenas de gotículas
minúsculas que brilhavam em sua testa; tentei olhar para ele o
mínimo possível, queria evitar ver os detalhes de seu rosto;
pensava Em menos de uma hora você vai estar longe daqui com o
dinheiro. Seu cheiro chegava até mim, um cheiro artificial de
baunilha, de leite azedo. Eu me concentrava nessa frase, Em
menos de uma hora, o dinheiro, quando de repente ouvi vozes
atrás dele, no apartamento. Eram vozes de homens, havia alguns
ali, talvez três ou quatro; perguntei a ele quem eram; ele sorriu e
disse: Não é nada. Você pode agir como se eles não estivessem
aqui, eles estão acostumados, sempre chamo prostitutos, você não
é o primeiro. Vamos para o meu quarto, pode ignorá-los.
À
Você foi um dos primeiros a ficar preocupado. À noite, quando
ia se deitar no quarto com a minha mãe, eu ouvia você dizer a ela
— não havia portas entre os quartos, comprar portas teria custado
muito caro para nós e você dividiu os quartos com cortinas achadas
no brechó da nossa cidade. Eu sentia o cheiro dos cigarros que
você fumava um atrás do outro na cama, a fumaça chegava até
mim, e principalmente ouvia sua voz, que viajava pelo interior da
escuridão, Por que o Eddy fala assim? Nós não criamos ele para ser
viado, eu não entendo. Ele não pode agir um pouco de maneira
normal?
Viado. Aos cinco ou seis anos entendi que essa palavra me
definiria e me acompanharia pelo resto da minha existência.
O que você não sabe, porque eu escondia de você, é que essa
palavra me seguia por todos os lugares, não apenas em casa, mas
também nas ruas da cidade, na escola, por toda parte, e que você
não era o único que estava preocupado.
(Ou será que você tinha entendido, mas não dizia para se proteger
da verdade?)
O que você também não sabe, é que o insulto fazia com que todo o
resto fosse insuportável para mim, a pobreza, nosso estilo de vida,
o racismo constante na cidade, como se a exclusão me obrigasse a
inventar um sistema próprio de valores — um sistema no qual eu
teria meu lugar.
Quando à noite minha mãe nos dizia que não tinha mais nada
para comer, porque faltava dinheiro, a fome ficava ainda pior por
causa do Insulto. Quando não havia mais lenha para aquecer a casa,
eu sofria mais violentamente de frio do que os outros por causa do
Insulto. Quando ouvia as mulheres na praça ou na padaria dizerem
Tem muito estrangeiro na França, a gente só vê negros por todo
lado, eu as desprezava e ficava espontaneamente do lado daqueles
que elas queriam oprimir e destruir.
Não sei como é possível ter ideias tão precisas e, de certa forma,
tão adultas e tão anacrônicas na infância, mas, me lembro, eu
queria ir embora da cidade e ficar rico, ser renomado e poderoso
porque achava que esse poder que adquiriria com a riqueza ou com
a fama seria uma vingança contra você e o mundo que me rejeitara.
Eu poderia olhar para todos aqueles que tinha conhecido na
primeira parte da minha vida, você e todos os outros, e dizer,
Vejam onde estou agora. Vocês me insultaram, mas hoje sou mais
poderoso do que vocês, vocês se enganaram me tratando como
fraco e me desprezando e vão sofrer por causa dos seus erros. Vão
sofrer por não terem me amado.
Eu queria vencer para me vingar.*
Também não contei a você por que não quis ir esquiar com a
escola. Era uma viagem que a escola organizava anualmente para os
alunos do sétimo ano, uma semana esquiando por um valor
baixíssimo, só cinquenta euros, e esses cinquenta euros ainda
podiam ser pagos com auxílio social. Ali, quase nenhuma família
tinha meios para pagar uma viagem para esquiar, para a maioria
delas era a única vez em toda a vida que saíam de férias, a única
oportunidade de deixar por alguns dias o frio úmido do norte da
França.
Eu disse a você que não queria ir. Você insistiu. Disse não de novo
e me agarrei à minha recusa. Ninguém entendia. Eu mentia, dizia
que não tinha vontade e que esquiar não me interessava, e você se
irritava, dizia que eu não sabia, que não podia dizer que não
gostava se nunca tinha esquiado antes.
Não disse a você que era porque eu sabia que na estação de esqui
os dormitórios eram coletivos, que eu dormiria vários dias
seguidos com outros garotos da escola no mesmo quarto, e que
esses garotos eram os que me chamavam de viado no pátio da
escola, os que me davam tapas passando pelo corredor, entre uma
aula e outra, por nada, só por prazer, os que enfiavam bilhetes na
minha mochila, “Morre seu viadinho”, que suspiravam de
decepção quando tinham que me aceitar em seu time na educação
física.
Nunca disse a você que não queria ir esquiar porque tinha
medo. Porque esses garotos me davam medo. Não disse a você
que, claro, como qualquer criança, eu sonhava em ver a neve e a
montanha.
O que eu ainda não sabia é que os insultos e o medo iam me
salvar de você, da cidadezinha, da reprodução idêntica da sua vida.
Eu ainda não sabia que a humilhação ia me obrigar a ser livre.
A casa da infância.
Isso eu também não disse, nem a você nem a ninguém: quando
entendi que a única opção era fugir, procurei todas as saídas
possíveis.* Não passava um dia sequer sem que eu pensasse,
Tenho que ir embora, tenho que ir embora — essa frase se tornou
parte de mim.
Depois dessa cena eu a via cada vez com mais frequência. Ela não
era da minha classe — seria no ano seguinte —, mas eu a
encontrava no intervalo para o almoço ou à noite, depois que o
colégio fechava. Era nesses momentos com ela que eu entendia a
que ponto Elena era diferente. Ela tinha lido centenas de livros, eu
não tinha lido nenhum. Ela tinha ido a Berlim, a Londres, eu nunca
tinha viajado. Quando ela voltava para o colégio na segunda-feira
me contava que durante o fim de semana tinha assistido a
concertos de música clássica com a mãe no teatro de Amiens, a
Maison de la Culture, e eu não conhecia nada daquilo, nunca tinha
ouvido falar dos compositores e das obras que ela citava.
O que aconteceu foi que eu quis me parecer com Elena,
imediatamente. Quis ter sua vida e participar daquele universo que
eu descobria por meio dela, não porque eu fosse mais sensível à
arte ou mais inteligente do que os outros, não porque estivesse
mais destinado que qualquer outro àquela vida, mas porque
percebia uma existência na qual eu poderia ter um lugar. Eu havia
fracassado em ser o filho que você gostaria de ter tido, havia
fracassado em corresponder às expectativas da nossa cidade,
fracassado com Romain, fracassava em toda parte e precisava
encontrar um tipo de existência em que meu corpo e minha
história pudessem ser possíveis, só isso.
O que sei é que eu estava cada vez mais consciente de que queria
mudar, que queria me parecer com ela, saber tantas coisas quanto
ela, poder responder e estar no nível dela nas conversas, e
inevitavelmente minhas primeiras tentativas foram ridículas; uma
tarde nos corredores do colégio ouvi uma menina falar do
compositor “Richard Wagner”. Era a primeira vez que ouvia falar
esse nome, mas vi no rosto da garota que falava dele o sentimento
de distinção que sobressaía quando dizia Richard Wagner. À noite
no dormitório me conectei em um dos computadores da sala de
informática e procurei quem era Wagner. Anotei num papel todas
as informações que podia, escrevi freneticamente, com as costas
curvadas, o olhar obcecado, e algumas horas depois, antes de ir
dormir, tentei decorar as anotações ainda frescas no papel. No dia
seguinte, entre duas aulas, disse ao primeiro garoto que passou ao
É
meu lado: “Você conhece Richard Wagner? É um compositor
incrível, adoro Tristão e Isolda”. Eu blefava. Ele me olhou surpreso:
Por que você está me dizendo isso?
Eu tentava ler os mesmos livros que Elena para parecer com ela,
imitava sua postura na sala de aula, sua escrita tortuosa, sentava ao
seu lado no teatro quando o colégio nos levava, uma vez por mês,
eu a seguia nas mostras de cinema de arte da cidade (também
sobre isso aprendi, sobre a existência dos cinemas de arte, e
repetia essas palavras sem parar na minha cabeça, porque pareciam
condensar em suas sílabas a cara da minha nova vida — eu andava
junto de Elena na rua e pensava em silêncio, vou a um cinema de
arte, vou ver cinema autoral).
O teatro, a literatura, o cinema, eu tinha o pressentimento de
que seriam as ferramentas que me levariam a uma nova vida.
Alice Walker escreveu “Quando deixei a cidade onde nasci no
estado da Geórgia com dezessete anos para ir à universidade,
experimentei o fim da minha sempre-precária relação com meu
pai. Aquele homem brilhante, com talento para matemática,
imbatível quando se tratava de contar histórias, mas que tinha
parado de estudar no ensino fundamental, subitamente percebeu
os modos burgueses de sua filha (burguesa apenas pelo fato de
estudar na universidade) como um obstáculo para qualquer forma
de relação simples, para não dizer um obstáculo aterrorizante. Eu
sofria por expressar minhas ideias numa linguagem que para ele
mais escondia do que revelava. Essa separação, que nenhum de nós
dois quis, é o que a pobreza engendra. É a própria definição da
Injustiça”.
Eu detestava você por não poder lhe contar o que tinha sentido
quando entrei na casa de Elena pela primeira vez, o mundo que se
abria para mim, o continente que eu descobria por meio dela. Teria
adorado falar disso para alguém, acredito, poder falar da violência
por que passava meu corpo, não uma violência destruidora, não, ao
contrário, uma bela violência, a do desenraizamento, da
possibilidade de uma forma de liberdade.
Não encontro as palavras, não sei como dizer, eu sabia que
existiam outras vidas diferentes da nossa antes de conhecer Elena,
é claro, ricos e pobres, privilegiados e excluídos, pessoas à nossa
volta que tinham vantagens que você não tinha, como a
farmacêutica da cidade ou o prefeito, que tinham dinheiro e belas
casas, e que nós invejávamos, mas é preciso entrar nesses mundos
para sentir a que ponto a diferença é real, e a que ponto ela está por
toda parte, não apenas no dinheiro, mas nos jeitos de pensar, de
andar, de respirar, por toda parte. Queria ter podido descrever para
alguém essa distância e meu fascínio, o fato de compreender nosso
mundo por meio do mundo de Elena e o de Elena pelo nosso (mas
talvez eu também diga “queria ter contado isso tudo para você”
apenas porque é tarde demais, e protegido pela impossibilidade
radical, cronológica, possa me atribuir todas as mais belas e
poéticas intenções; talvez, no fundo, eu estivesse feliz guardando
essas descobertas para mim, e feliz com esse novo silêncio entre
mim e você).
Em casa me tornei um estranho. Você e minha mãe perceberam
essa mudança no meu jeito de ser. Eu imitava o que tinha visto em
Amiens, não dizia mais que queria comer, mas que queria jantar,
não queria mais ver televisão à noite. Não suportava mais as frases
feitas, “o que eles têm que fazer é voltar com a pena de morte” ou
“direita, esquerda, no fim das contas é tudo a mesma coisa”, ficava
irritado quando vocês diziam isso, suspirava “mas que bobagem”.
Estava magoado por não ter pais como os de Elena, que
questionavam todos os princípios em suas conversas, e tenho
vergonha de ter pensado isso porque sei que é falso, mas no meu
íntimo criticava vocês por não terem inteligência e complexidade,
diferentemente dos pais de Elena. É como se na casa de Elena eu
descobrisse emoções que nunca conhecera na minha infância, não
por causa da idade ou porque antes fosse jovem demais, mas
porque eu não sabia nem mesmo que existiam, a melancolia, o
êxtase artístico, o torpor, e talvez em parte seja verdade, talvez
algumas emoções sejam invenções burguesas (isso foi antes que eu
me desse conta de que a burguesia frequentemente é incapaz
também de sentir algumas emoções, como a raiva ou a compaixão,
mas eu ainda não enxergava isso). Dava conselhos à minha mãe de
como educar meu irmão e minha irmã menores, Ele não devia
assistir tanto à televisão, por que você não põe música clássica para
eles escutarem, ela se irritava. Eu empregava minhas novas
palavras, palavras sem importância, mas que me pareciam
distintas, fastidioso, extraordinário, bucólico, eu não dizia mais
oito horas da noite, mas vinte horas, as palavras de um outro
mundo, e minha mãe zombava de mim, “ele fala que nem um
médico”.
Escrevia mensagens para Elena para dizer que detestava a
minha mãe, que detestava você. Eu me queixava do fato de minha
família não entender o que eu estava me tornando, de que vocês
não podiam entender por que ninguém na família tinha estudado e
vivido o que eu vivia, mas não era verdade, minhas queixas eram
falsas, eu ficava lisonjeado com essa incompreensão e essa
distância.
Uma noite, depois do jantar, eu disse para a minha mãe, Vou
preparar o chá, você aceita? — não disse fazer chá, mas preparar o
chá, como Elena. Fiz isso para mostrar a nova pessoa que eu achava
que era. Minha mãe me olhou e riu, Cuidado, ele está fazendo
papel de Senhor esse aí agora, ele é nobre, ele prepara O chá. Ela
fingiu rir, mas vi a mágoa na sua voz e no seu rosto.
Você não dizia nada. Você assistia à televisão, em silêncio, como
sempre, e eu não sabia o que você pensava sobre a minha
transformação.
Depois da primeira vez na casa de Elena, passei a visitá-la com
cada vez mais regularidade. Sua mãe me convidava para comer
com elas no fim de semana, para dormir na casa no quarto de
hóspedes, no último andar, e eu fazia de tudo para voltar o mínimo
possível para nossa cidade, para me distanciar ainda mais
radicalmente da minha mãe e de você. Queria ouvir Elena falar,
mais e mais, estar em sua casa, escutar com ela os discos de Glenn
Gould ou de Keith Jarrett, que ela adorava, ou os de Brahms, que a
mãe dela admirava. Todo o resto tinha virado perda de tempo para
mim. Mesmo nas noites durante a semana eu evitava o dormitório
onde deveria ficar; Nadya me dizia que sua casa era minha também
e que eu podia passar o tempo que quisesse lá.* Enquanto
comíamos, a irmã mais nova de Elena tocava sonatas ao piano,
Nadya indicava livros para as filhas, García Lorca, Victor Hugo,
Sylvia Plath.
Mas não é sobre isso que quero falar com você. Escrevo para
contar sobre a primeira vez que senti minha existência se
contorcer dentro de mim. Foi numa noite na casa de Nadya, a
atmosfera era sempre a mesma, um ritual, como um sonho que se
reproduzia infinitamente: as velas, a música clássica ao longe na
cozinha, as garrafas de vinho à nossa volta, o silêncio entre as
nossas frases — não um silêncio como o que eu conhecia quando
minha mãe acabava de terminar a faxina da casa, quando você saía
para ir ao bar e ela adormecia no sofá, exausta, com a TV ligada sem
som, não era esse silêncio, mas um silêncio confortável,
privilegiado —, mesmo no silêncio não há igualdade.
Nadya me perguntou O que sua família faz da vida? Se não
estiver sendo indiscreta, claro. Não me dei a liberdade de
perguntar o mesmo a Elena.
Fiquei travado, paralisado. Algo em mim não queria dizer a ela
que você tinha sido operário na fábrica durante toda a vida até o
acidente que triturou suas costas e que o impediu de continuar,
antes de você se converter em varredor, ou que minha mãe
limpava o corpo de idosos doentes na nossa cidade, de repente, eu
não conseguia dizer nada disso. A vergonha era enorme. Eu me
sentia culpado pela minha história, como poderia contá-la, ali,
cercado pelas velas e pelo silêncio?
Pensei. Tinha certeza de que, ao contrário do que ela dizia,
Elena já tinha lhe contado, eu não poderia mentir (depois, em
Paris, farei isso, quando os homens que conhecer nos bares me
perguntarem o que meus pais fazem, responderei que você é
advogado ou professor universitário, a vergonha vai me fazer
mentir).
Então, optei pela estratégia inversa. Em vez de mentir ou de me
livrar da pergunta, respondi para Nadya, Venho de uma família de
alcoólatras e presidiários. Nadya ergueu as sobrancelhas. Não sei se
sua surpresa era verdadeira ou fingida. Continuei, Aposto que a
essa hora minha família deve estar assistindo a um reality show
idiota rindo sem parar e comendo o terceiro pacote de salgadinho
da noite. Aposto que meu pai deve estar bebendo seu oitavo copo
de pastis com as mãos em cima daquele barrigão enorme.
Eu tinha vergonha do que dizia, mas dizia. Você detestava
salgadinho, nunca comia, você bebia, é verdade, bastante, bastante
pastis, mas eu nunca usaria a palavra alcoólatra em relação a você,
era uma palavra que condenava, quando minha mãe a usava para
falar de você eu ficava com raiva dela, e agora eu a empregava,
exagerava, não mentia de fato, mas apresentava a realidade de uma
forma que a desagradasse, eu sabia disso, como se, no fundo, o
silêncio ou o exagero fossem a mesma coisa, como se não
responder ou exagerar fossem o mesmo gesto, o mesmo ato,
porque diante de Nadya os dois me permitiam manter meu
passado à distância.
Queria mostrar para Nadya que eu agora estava do lado dela,
contra esse passado, e para ser contra esse passado deveria rebaixá-
lo o máximo possível. Nadya sorriu, um sorriso crispado, como se
se preparasse para me ouvir dizer que tudo que eu tinha contado
era brincadeira. Eu me odiei, mas não podia parar, era tarde
demais, as palavras que eu dizia me desagradavam, mas ao mesmo
tempo, devo confessar, ao mesmo tempo me reconfortavam,
porque me tranquilizavam com relação a meu lugar no mundo. Eu
não era mais como vocês, minha mãe e você, é o que transmitia a
Nadya sob a superfície do que dizia, Não sou mais como eles.
Nadya sustentava meu olhar, muito tempo, tempo demais; ela
sustentava meu olhar para saber se eu falava sério e eu sustentava o
dela para que entendesse que sim.
Ela sorriu mais uma vez e disse: Ah, tenho certeza de que você
está exagerando, estou certa de que seus pais estão conversando ou
então se perguntando o que você está fazendo hoje. É o que ela
dizia, mas através dos seus olhos eu tinha a impressão de que ela
me suplicava: Diga para mim que você não está exagerando, diga
que é pior ainda.
Acrescentei: Eles não estão nem aí para mim. E não conversam.
Nunca conversam. O que diriam um ao outro? Estão vendo
televisão como sempre.
Nadya ergueu as sobrancelhas. Que horror. Eu sempre detestei
TV. Ela encheu meu copo, o vermelho do vinho cintilava à luz das
velas, as velas bruxuleavam na minha retina. Elena e seu pai
estavam em silêncio, eles nos ouviam, e durante esses instantes
em que Nadya concentrava sua atenção em mim, não havia
nenhum barulho, nada além do barulho da cidade, ao longe, na
noite.
Nadya respirou fundo ruidosamente e nós mudamos de
assunto. Foi a primeira vez que fiz isso. Dentro de mim, eu me
detestei. Pensei em você, na sua dor se tivesse ouvido o que falei,
na sua surpresa talvez, sua pergunta: Por que você está falando isso
da gente. Eu queria tanto ser aceito por Nadya. Eu queria tanto
pertencer ao mundo dela. Pertencer ao mundo dela era me salvar
da minha infância — é possível me perdoar? Sofri, mas depois,
quando fui dormir no quarto de hóspedes ao lado do quarto de
Elena, me deitei e fechei os olhos, em paz, com a impressão de
pertencer um pouco menos ao meu passado.
Me desculpe.
Apesar de tudo sei que vocês também estavam orgulhosos, você e
a minha mãe, orgulhosos de terem um filho que estava se dando
bem, que estudava, que era praticamente o único garoto da cidade
nessa situação, orgulhosos de terem um filho que, no fim das
contas, era um candidato à burguesia.
A mágoa e o orgulho coexistiam em vocês como as duas faces
de um mesmo sentimento. Quando iam pescar no fim de semana e
algum dos seus colegas que os acompanhava via que eu não ia
junto, que ficava sozinho em casa, e perguntava por quê, você
respondia que era porque eu preferia ler e estudar, e eu ouvia o
orgulho na sua voz. Ouvia o orgulho e o esforço para dizer isso da
maneira mais natural possível, como algo sem muita importância,
para que seus colegas não pensassem que você se achava superior a
eles.
Minha mãe pedia cópias dos meus boletins e andava pela cidade
com eles, mostrando-os para todo mundo com quem cruzava, dizia
que seu filho fazia “estudos avançados” (os estudos eram tão raros
que um simples exame final parecia ser “estudos avançados” para
ela). As outras mulheres tiravam sarro dela, até para mim elas
diziam, Sua mãe enche a gente contando a sua vida, mas ela não
lhes dava ouvidos, continuava, ela se sentia mais forte do que essas
mulheres, achava que os papéis que tinha em mãos eram a prova
de sua superioridade.
Ela se vingava de todas aquelas que tinham se achado
superiores a ela, a dona da mercearia que a olhava de cima quando
minha mãe pedia para pagar no dia seguinte, as secretárias da
prefeitura que a desprezavam por causa de suas dificuldades para
se expressar, ela me usava como vingança, para mostrar a essas
mulheres que elas estavam erradas em levá-la tão pouco em
consideração.
(Não é simples para mim fazer todas essas imagens ressurgirem, foi
necessário um trabalho enorme de memória para me lembrar, porque
durante anos enterrei essas cenas, que não correspondiam exatamente à
história que eu queria contar à época, aquela do filho que vence apesar
de tudo, e sobretudo apesar de sua família.)
Por que você não me dizia nada? Quando eu quase morri com uma
peritonite, durante as férias escolares, e precisei ficar várias
semanas no hospital, você foi me visitar e me deu revistas sobre
política, chocolate. Ninguém jamais lia nada na imprensa à nossa
volta, você nunca tinha comprado jornais ou revistas. Nem os
conhecia, e por causa desse desconhecimento, comprou revistas
de direita para mim, coisas que eu nunca lia, que a família de Elena
me ensinou a desprezar. Agradeci, peguei as revistas e você me
disse que tinha escolhido aquelas porque sabia que eu me
interessava por política. Você me disse que também traziam
reportagens sobre os reis da França, e que isso talvez pudesse
ajudar nos meus estudos.
Naquele dia ali, no quarto do hospital, entendi que talvez, às
vezes, você pensasse na minha vida, nos meus estudos e no meu
futuro.
Eu quase não via mais você. Passava minhas noites na casa de
Elena. Eu a conhecia havia seis meses e durante os jantares na casa
dela eu ficava cada vez mais à vontade. Não falava tão bem quanto
ela, é claro, não sabia tantas coisas quanto ela, mas me sentia
menos intimidado, e durante as conversas sobre literatura ou
cinema (as mais frequentes) eu falava de livros que não tinha lido,
de filmes ou peças a que não tinha assistido (uma expressão inglesa
diz: fake it until you make it, represente ser o que não é até que se
torne, até que seu papel se torne seu ser, e durante os jantares na
casa de Elena foi essa a experiência que vivi, eu interpretava um
papel, o dela, fingia ser ela, conversando como ela, com suas
entonações, porque esperava me transformar nela, de tanto imitá-
la). Tudo mudava em mim, e paradoxalmente, porque eu me
distanciava de você, você se tornava mais presente na minha vida.
Então, quanto à risada, fiz a mesma coisa que havia feito com o
sotaque: treinei. Decidi aprender uma nova risada, à força. Ficava
diante do espelho e todos os dias treinava rir de outra maneira,
mais baixo, com a boca menos aberta, menos expressiva. Treinava
rir uma risada mais adequada à minha nova vida, ao meu novo
mundo, à Elena e à urgência de minha metamorfose. No colégio,
quando estava com amigos, Morgan, Julie ou Étienne, aqueles com
quem eu passava mais tempo nas vezes em que não estava com
Elena, e eles diziam alguma coisa engraçada, tentava rir com
minha risada nova, mesmo nos momentos mais engraçados,
aqueles em que, por definição, uma pessoa se deixa levar, perde o
controle, eu devia ficar concentrado para rir a nova risada, aquela
que tinha inventado na frente do espelho.
Pouco a pouco, progressivamente, essa risada artificial,
mimética, tornou-se a minha risada — e hoje, quando ouço essa
risada, gravada num vídeo por exemplo, não posso deixar de
detectar algo artificial nela. Escuto na minha risada os vestígios da
sua fabricação, daquelas horas inteiras comigo como única
testemunha passadas diante do espelho, aprendendo minha vida
como se aprenderia um papel no teatro. Toda a minha vida se
tornava um esforço de concentração. Eu estava concentrado
quando falava, quando ria, quando espirrava, quando comia, tudo
isso se tornava um exercício para mim.
Eu tinha uma voz nova, sem sotaque — pelo menos era o que eu
achava —, uma risada nova, uma aparência nova. Contemplava
meu reflexo no espelho e pensava: você é outra pessoa. Elena
continuava a participar da minha transformação, tinha me
ensinado a dar nós de gravata, os nós Windsor que ela achava os
mais bonitos, e eu usava para ir para o colégio. Na noite em que
Nadya me viu com uma gravata, ela quase pulou: Bem, Eddy, você
está se aburguesando. Ela não sabia que aquela era a frase mais bela
que poderia me dizer, e nos dias seguintes eu a repeti para mim
mesmo à exaustão.
Não acho que você se preocupava com isso, mas no primeiro ano
do colégio minhas notas eram medíocres, muitas vezes ruins,
porque eu não gostava de estudar, não sabia como fazer, como me
aplicar ou aprender. Entendia que não era apenas questão de
conhecimento, de coisas que sabia ou que não sabia, mas também
questão de método. Durante todos os anos em que vivi com você
fiz minhas lições no único cômodo comum da casa, você assistia à
televisão, fumava, dava de ombros dizendo que a escola não servia
para nada, e meus irmãos e irmãs conversavam enquanto minha
mãe cozinhava na mesma mesa, na mesa em que eu tentava
terminar a lição. Não havia escrivaninha nos quartos, que eram
pequenos demais, e de qualquer modo, como não havia porta, os
quartos eram tão barulhentos quanto a sala. Na escola, quando eu
entregava minhas tarefas cobertas de manchas de gordura e de
molho de tomate, porque minha mãe cozinhava na mesma mesa
em que eu estudava, a professora de francês ria, Pelo menos, sr.
Bellegueule, sabemos o que você comeu ontem, e eu ria também.
Conto essa cena para você porque, relendo o que escrevi até agora,
vejo que fatalmente seleciono momentos em minha história e
esqueço de outros. Há coisas que não sei ou que não quero contar,
e não quero que você ache que eu via Elena apenas como uma
ferramenta de reaprendizagem de mim mesmo, não quero que
imagine que minha relação com ela fosse instrumental. Se essa é a
impressão que ressalta do que escrevi até agora, então fracassei. Eu
amava Elena, eu a amava mais do que tudo (mesmo escrevendo
estas palavras me sinto um idiota). Não era uma relação amorosa,
não havia desejo entre mim e ela — eu desejava homens, era claro,
mesmo que escondesse isso —, mas o que se passava entre nós
ultrapassava a amizade. Eu a amava.
E então, teve o nome. Minha mãe disse que essa foi a parte mais
difícil para você durante a minha mudança, foi a única vez que ela
mencionou uma de suas reações relacionadas à minha
transformação.
Uma noite cheguei na casa de Elena às vinte horas, como
combinado. Usava uma de minhas camisas novas, que eu lavara
para tirar o cheiro impregnado de loja, mas não tinha passado e, no
caminho para a casa de Elena, fui esticando o tecido com todas as
forças para tentar fazer as dobras sumirem. Toquei a campainha e
foi Nadya quem abriu a porta.
Oi, Édouard.
Fiquei imóvel. Era a primeira vez, eu não entendia por que ela
me chamava por um nome que não era o meu. Ela notou a surpresa
no meu rosto.
Você se incomoda se eu chamá-lo de Édouard? Eddy, no fundo,
é um diminutivo de Édouard, Eddy não é um nome de verdade, e
eu prefiro Édouard, acho bem mais elegante. Você se incomoda?
Eddy. Era o nome que você tinha escolhido por causa dos filmes
americanos ou das séries que você adorava ver na TV, era como se
chamavam os vilões e os bandidos nesses filmes, e foi por isso que
você gostou dele, era um nome masculino, um nome de homem
durão. Nadya achava que o nome que você tinha escolhido para
mim não era um nome. Respondi para Nadya que não me
incomodava. Ela me batizou. Ela não sabia que esse nome um dia
seria o meu, para sempre, que quando eu fosse embora de Amiens
o registraria na minha carteira de identidade.
Ela me convidou para ir com ela até a sala onde Elena e a irmã
estavam
Édouard chegou
Elena olhou para a mãe, depois para mim
Édouard?
Ela deu de ombros. O.k., tá certo, Édouard, então. A partir
dessa noite Elena nunca mais me chamou de Eddy, ela disse nessa
mesma noite depois do jantar, deitada na sua cama ao meu lado,
que concordava com a mãe, que esse nome combinava mais
comigo, que é um nome de príncipe e de rei.
Nadya pediu para a irmã de Elena tocar alguma coisa ao piano,
Por que você não toca um trecho para dar as boas-vindas ao
Édouard em nossa casa. Ela se levantou, sentou-se ao piano e
começou a tocar. A música invadiu a sala, bela, profunda e,
ouvindo-a, meu novo nome reverberava em mim.
Foi para minha mãe que contei primeiro. Ela tinha acabado de se
separar de você, fazia só uma semana, ela tinha embalado todas as
suas coisas em sacos de lixo e jogado tudo na calçada, dizendo a
você que não voltasse nunca mais. Eu disse a ela que a partir
daquele dia queria que me chamasse de Édouard. Ela riu, Senhor
Édouard é nobre agora, sempre me chamando de Senhor para
caçoar de mim — e depois mudou de assunto. Não sei se ela ficou
magoada ou se pensou que era apenas uma loucura passageira, uma
revolta de adolescente.
Quando penso nisso agora, acho que quando ela disse que você
tinha ficado magoado com minha mudança de nome, talvez
também fosse dela que quisesse falar, talvez ela tivesse falado de
sua mágoa para não falar da mágoa dela mesma.
Conversa imaginária diante do espelho
Ainda tem uma coisa bem misteriosa... se você era tão diferente
no início, como essa sua aproximação de Elena e de seu universo
pôde acontecer tão rapidamente? Por que será que, no começo,
suas tentativas frustradas para se parecer com ela não o afastaram
dela?
Mas você passou meses na biblioteca sem ler nada? Os outros não
achavam isso estranho?
Quando as datas das provas finais foram anunciadas, achei que era
preciso conseguir ultrapassar todos os outros — você não sabe
nada disso, nada do que se passava dentro de mim naquela época.
Durante dois ou três meses antes dos exames estudei com todas as
minhas forças, até tarde da noite, na hora do almoço, de manhã no
ônibus. Passava meus fins de semana com Elena na biblioteca
municipal para revisar a matéria, amigos nos convidavam para ir ao
parque com eles passar o dia, era primavera, o tempo estava bom, e
eu me sentia orgulhoso de dizer não, dizer que preferia estudar. Na
manhã em que o resultado ia sair, fui com Elena esperar no
McDonald’s perto do colégio. Ela tinha medo de decepcionar os
pais, eu tinha medo de fracassar no meu sonho de revanche. Ela
segurava minha mão por baixo da mesa em que tomávamos café
em copos de plástico. Ela passava a mão nos meus cabelos, dizendo
vai dar certo, vai dar certo. Quando chegamos à rua do colégio,
procurei meu nome e o de Elena nas folhas coladas nas paredes e
vi que eu tinha passado e ela também. Recebi uma distinção, nós
gritamos de alegria e ela me abraçou. Sua mãe, Nadya, sugeriu
fazer uma festa à noite na casa delas, e nessa noite decidi que me
inscreveria no Departamento de História da universidade, como
Elena, para imitá-la. Eu ia me tornar universitário, e a palavra
universitário me separava radicalmente de você e de nosso mundo,
na nossa cidade alguém que dizia Sou estudante universitário era
como alguém que dizia Minha casa de campo ou Minha empregada,
como uma expressão que marcava uma fronteira nítida, definitiva,
intransponível — e eu passava para o outro lado dessa fronteira.
E havia, sobretudo, a política. Durante o segundo ano em Amiens
eu tinha me filiado a um partido de extrema esquerda. Fiz isso
contra minha infância e contra nossa cidade, para continuar me
diferenciando, porque na nossa cidade a maioria dos habitantes
apoiava os partidos de extrema direita, e em todos os lugares, na
padaria, na praça da igreja, nas ruas, as mesmas frases eram
repetidas, sempre: A gente não está mais na nossa casa, Aqui não é
mais a França é a África, e na minha metamorfose eu quis rejeitar
todas essas ideias que minhas noites na casa de Nadya me
ensinaram a identificar como primárias. Fiz isso, claro, por não
gostar da injustiça e da pobreza, porque as conhecera e vivenciara
no meu corpo. A terceira razão, a menos nobre, é justamente
porque a política me permitia existir aos olhos dos outros e então
ir mais longe na minha revanche — eu teria preferido dizer a você
que meu engajamento político era ligado unicamente à minha
revolta contra o mundo, mas seria mentira, devo contar para você
o que, por definição, é o mais difícil de contar, o menos
confessável. Alguns meses antes dos exames um movimento de
protesto contra o governo se formou; eu participava, organizava as
reuniões, as manifestações, punha em contato diferentes colégios
da cidade para elaborar as estratégias. Pouco a pouco, me tornei
um dos líderes do movimento. Eu pedia a palavra ao microfone
diante de centenas de pessoas antes da saída das manifestações,
segurava bandeiras na frente das marchas, os jornais locais me
entrevistavam — até o dia em que recebi o convite para um debate
na televisão, pouco antes da minha mãe expulsar você de casa,
quando você ainda vivia com ela. Era um programa da TV local, um
programa a que grande parte dos habitantes da nossa cidade
assistia, a que toda a nossa família assistia.
Eu lhe disse que tinha sido convidado, que tinha aceitado, e
você se viu diante de uma situação paradoxal: detestava meu
engajamento político de esquerda, pois era oposto à sua visão de
mundo — você não era idiota e compreendera que um dos
objetivos era me distanciar de você —, mas a TV sempre tinha sido
o centro da nossa vida, ela nos fascinava. Era ela que nos ajudava a
lutar contra o tédio, que nos ligava ao mundo, e graças a esse poder
que tinha sobre nós você não podia deixar de sentir uma forma de
respeito e de admiração pelas pessoas que via na tela.
Quando contei para você que eu tinha sido convidado, vi a
emoção no seu olhar. Você provavelmente pensou que seu filho
tinha se dado bem, mais do que poderia imaginar. Seu filho estaria
na TV, os vizinhos iam vê-lo. Então você cedeu, apesar de tudo o
que detestava em meu engajamento.
Voltei tarde para casa, quase no início da noite (não sei por que não
fui à casa de Elena), o cheiro de gordura por causa da comida que
minha mãe estava fritando, o cheiro forte do óleo, o barulho da TV.
Você veio ao meu encontro, me agarrou pelo colarinho e
perguntou Por que você fez isso? Por que é que me envergonhou
desse jeito falando dessas bobagens de quem não tem visto?
(Devo ser justo e não esquecer de dizer uma coisa, você protestava
contra meu envolvimento político não apenas porque era oposto à sua
concepção de mundo, mas também porque eu participava de
manifestações ilegais, muitas vezes apanhava da polícia, que também
atirava bombas de gás, e você tinha medo de que o meu ativismo me
causasse problemas com a justiça, que por causa do meu ativismo toda a
ascensão social que estava em curso se perdesse e que todos os meus
esforços fossem reduzidos a nada, sei disso porque quando voltava para
casa depois de uma manifestação, com marcas roxas na pele ou com
adesivos pela roupa dizendo Abaixo o capitalismo, Nossas vidas valem
mais que os lucros deles, Liberdade para o povo palestino ou França
Estado racista, você me dizia: O que é que você quer fazer agora, quer
virar bandido e ter ficha na polícia? Quer ser expulso do colégio? E em
suas palavras havia mais preocupação do que raiva.)
De qualquer forma meus retornos à nossa cidade foram se
tornando quase impossíveis antes da história do programa de
televisão, já desde os primeiros fins de semana quando eu voltava
da casa de Elena. A situação continuava a se degradar. Eu tinha
mudado demais. Minha vida em Amiens estava por todas as partes
do meu corpo, a presença de Elena colonizava todos os meus
movimentos, todas as minhas conversas.
Nos dias seguintes ele continua a pensar. Fala sobre isso com
Elena, e é ela quem lhe sugere tentar encontrar um trabalho no
grande teatro de Amiens, a Maison de la Culture. Ela conta que é
ali que vários estudantes trabalham, não é um trabalho muito
difícil, basta abrir as portas do teatro, controlar as entradas,
destacar os ingressos daqueles que entram, depois é preciso se
sentar dentro da sala e vigiar para que tudo corra bem durante as
apresentações, aqueles que fazem esse trabalho assistem então a
todos os espetáculos, durante todo o ano, gratuitamente, é por isso
que os estudantes querem trabalhar lá, não se cansam, guardam a
energia para os estudos, e assistem aos espetáculos à vontade. Ela
lhe diz que com o salário ele pode alugar um apartamentinho e não
voltar mais para a casa da família nos fins de semana.
Ele não sabe se foi por causa da sua frase ou do seu olhar, talvez
por causa de sua entonação, talvez ela saiba ler pensamentos e
tenha ouvido todas as frases que ele gritou dentro dele, ela lhe
disse, Venha para a minha sala, então, vamos conversar.
Ele diz que sim. Diz que estudou teatro no colégio, que faz nove,
dez horas de teatro por semana e que quer ser ator, diz que não
quer sobrecarregá-la contando sua vida mas que para ele o teatro
foi mais do que uma arte, foi um instrumento de reinvenção da
vida, porque graças ao teatro foi o primeiro de sua família a cursar
o ensino médio e graças ao teatro aprendeu que era possível
interpretar papéis, quer dizer produzir um distanciamento em
relação à sua vida, sua vida imposta, seu passado, sua história
familiar, o teatro o fez entender que se quisesse ser outra coisa ou
outra pessoa, não importa, seria preciso representar, até se tornar,
entendeu que não existia outra coisa além dos papéis. Ela olha para
ele, impressionada, em silêncio. Ele ouve sua respiração, muito
leve. Ele se pergunta se sua declaração não foi um pouco ridícula,
um pouco proclamatória demais, talvez tenha falado demais, talvez
tenha ido longe demais. Seu coração bate forte no peito, até isso
ele tem medo de que ela ouça, tenta se controlar, diz: Desculpe,
talvez eu esteja dizendo besteira.
Ela inspira delicadamente pelo nariz, sorri e diz a ele Não, de jeito
nenhum, por que seria besteira, não vejo nada de besteira em ser
apaixonado. O que é besteira é a falta de paixão. Ele não consegue
interpretar os sinais, não sabe se ela diz isso por educação, por
pena daquele pobre menino perdido ou se realmente pensa assim.
Mas o sorriso em seu rosto lhe dá confiança, não é um sorriso
normal, não é um sorriso educado ou irônico, é um sorriso que o
abraça, é isso o que diz a si mesmo, o sorriso de Babeth parece
mais com a ação de um corpo que abraça outro do que com um
sorriso.
*
Na segunda seguinte ele é chamado à Maison de la Culture de
Amiens para assinar o contrato de trabalho. No caminho para o
teatro pensa que essa assinatura é mais uma ruptura em sua vida.
Ele vai trabalhar num teatro, ninguém na sua família teria nem a
ideia nem a possibilidade de fazer isso. Em sua sala Babeth lhe
entrega o contrato de trabalho que ele deve rubricar, página por
página. Ela lhe mostra a calça social preta e a camisa violeta que
acabara de comprar numa loja do centro da cidade, Burton, e que
ele deverá usar, ainda dentro de um saco plástico, e então o leva até
uma salinha escondida atrás da recepção. Nesse espaço estreito e
sem janelas as paredes são cobertas com armários para os
arrumadores — é o nome de sua nova profissão. Ela indica com o
dedo o armário destinado a ele dizendo que vai colar uma etiqueta
ali; e então, depois de um ou dois segundos de silêncio, limpa a
garganta, Você prefere que eu escreva Eddy ou Édouard? Quando
nos conhecemos você se apresentou como Édouard mas nos
documentos que me mandou estava escrito Eddy. E sem deixar
que ele respondesse acrescentou, É como você quiser, podemos
escrever o nome que você quiser, aqui todo mundo é livre.
Ele queria abraçá-la (me dou conta agora de que escrever minha
história é escrever a história dessas mulheres que se sucederam
para me salvar, Pascale Boulnois, Stéphanie Morel, Aude Detrez,
Martine Coquet, Elena, Babeth, de que minha história é a da
vontade e da generosidade delas).
Ele praticamente sussurra, Prefiro Édouard, se for possível, mas
logo acrescenta que, claro, se for muito complicado, já que não é o
nome que aparece no seu contrato e em seus documentos, ela
pode escrever Eddy, ele vai entender, não tem nenhum problema,
tem consciência das impossibilidades administrativas, pede
desculpas por sua resposta, como se pedisse perdão por sua
metamorfose, e como sempre Babeth sorri antes de falar Mas você
parece que não escuta, acabei de explicar que é você quem
É
escolhe. Aliás, eu acho que Édouard combina muito mais com
você, combina muito mais com a doçura do seu rosto.
Três ou quatro vezes por semana, agora, ele atravessa a cidade para
trabalhar no teatro. Lá encontra Léa, Satine, Lucas, Alexandre,
Cécile, todos futuros artistas ou estudantes que trabalham ali para
pagar os estudos. Eles são para ele espelhos de seu futuro, fica
inchado de orgulho de estar cercado de artistas e de pessoas que
quando têm um tempo livre vão ao teatro, aos concertos, leem
ensaios e romances; no processo de mudança aqueles que nos
cercam são tão importantes quanto o que nos tornamos, e ele
compara seus colegas do teatro com os colegas de seu pai, com as
pessoas que iam à casa de seus pais quando era criança, no fim da
tarde, e com quem seu pai assistia à TV bebendo copos de pastis.
Quando chega ao teatro, entra na salinha dos armários atrás da
recepção e vê as sete letras de seu novo nome se destacarem na
etiqueta impressa por Élisabeth.
Édouard não é mais apenas um nome que Elena lhe deu e que
ele pronuncia, não é mais apenas um som que existe na voz de
Nadya, na de Elena e na sua, mas está inscrito na objetividade do
mundo em um pedaço de cartolina colado em seu armário,
impresso, é possível pegá-lo, tocá-lo. É o que diz a si próprio, que
um som não é uma prova, mas algo escrito, sim. Sua metamorfose
está visível, ali, para toda a humanidade.
Uma lembrança: o colégio tinha nos levado à praia para um
passeio. Eu estava com Elena. Imagens do norte, tudo era cinza e
frio, chovia na praia, e até a areia era cinza. Eu caminhava distante
do grupo com ela. Ela sugeriu, Vamos mergulhar? E corri junto
com ela até o mar, meu corpo ao lado do seu, minha mão na mão
dela, nossas risadas. Ela mergulhou, e mergulhei também, nós dois
vestidos, a água glacial. Mesmo no mar não larguei a mão dela.
Na volta, quando os adultos que nos acompanhavam viram
nossas roupas ensopadas de água salgada e glacial, ficaram tão
surpresos que nem mesmo pensaram em nos castigar.
Agora era preciso encontrar o apartamento.
Comecei a procurar, mas os apartamentos eram muito caros, o
dinheiro da Maison de la Culture não era suficiente, seria preciso
dividir o aluguel com alguém; cruzei com Cynthia quase por acaso
durante um de meus últimos fins de semana na cidade e ela me
disse que tinha um projeto, que iria se mudar para Amiens. Era da
minha idade, e era a única outra pessoa da cidade que começava a
estudar (ela abandonaria apenas alguns meses depois de ter
começado, como se a maldição da cidade acabasse sempre se
abatendo sobre aquelas e aqueles que queriam fugir).
Não sei o que foi que desencadeou, se houve uma cena, uma
imagem ou uma aparição, mas numa noite em que Cynthia tinha
ido para a casa do seu pai e eu estava sozinho no apartamento,
decidi me conectar à internet para fazer o que eu sempre quis e
sonhei fazer; queria tentar encontrar alguém, um homem. Tinha
esperado demais, mentido demais, e naquela noite prometi a mim
mesmo que acabaria com isso; levantei do sofá com os ecos da
minha decisão em todo o corpo; pensava: você é gay, a frase pulsava
dentro da minha cabeça — a palavra gay me parecia tão estranha,
tão violenta, quase grotesca por sua sonoridade e sua simplicidade,
ela não podia conter nela mesma toda a complexidade do que tinha
sentido desde que nasci, meu desejo, meu medo, minha
esperança, minha vergonha, meu segredo —, ela me machucava e
ao mesmo tempo me fascinava, eu a repetia milhares de vezes na
minha cabeça havia semanas, gay, gay, gay, gay, como se repetindo
pudesse descobrir alguma coisa sobre mim mesmo, eu a repetia, e
a dor aumentava — não falo de uma dor abstrata como as pessoas
fazem quando dizem “palavras que machucam”, mas da dor real,
dos ossos e de todas as articulações se repuxando, todo meu corpo
tremia, eu sentia frio; dei alguns passos na direção do meu
computador e juro que esses foram os passos mais difíceis de toda
a minha vida; minhas pernas resistiam, se enrijeceram, meu corpo
se revoltava contra minha decisão. Eu queria andar, mas meus
músculos não obedeciam, eles queriam me impedir. Me sentei na
frente do computador, liguei, e procurei recuperar meu fôlego e
escrevi na página de busca “Encontro homem gay”, eu me lembro,
exatamente essas palavras. Eu olhava em volta na sala, como se
alguém pudesse me ver, sentia o suor nos dedos, o suor na testa —
e sempre o frio no meu corpo, os tremores. Era primavera lá fora,
mas o frio vinha de mim, de dentro da minha caixa torácica. Como
é que três palavras tão simples podiam ter sido tão difíceis de
escrever, por que tinha precisado de dezessete anos para ousar
fazer um gesto tão banal, tão trivial quanto digitar essas palavras
num teclado? Eu não conseguia apertar a tecla “enter” para
começar a busca, não conseguia mais respirar, ia morrer, aqui,
nessa sala, ia morrer, queria morrer, tinha medo de morrer, eu
estava sufocando. Respirei bem fundo, bem profundamente, e
continuei. Deixei passar dois, três segundos, pensei, Conte até
três, e dei a busca. Dezenas de sites apareceram, fóruns de
discussão e de encontros, não sabia qual escolher; cliquei num link
ao acaso. Era preciso se cadastrar, dar um endereço de e-mail e um
pseudônimo para poder falar com outros homens no site. Abri
outra janela para criar um novo endereço de e-mail, um diferente
do que usava para me comunicar com Elena ou com a Maison de la
Culture, não podia correr o risco de abrir meus e-mails na frente
de pessoas que eu conhecia em Amiens e receber mensagens desse
site — estava com medo, era o medo que gerava o frio, não sabia
antes dessa noite que os sentimentos tinham uma temperatura que
lhes é própria. Voltei à página do fórum e criei um perfil. Não tinha
posto meu nome verdadeiro. Escrevi algumas linhas para me
descrever, alguma coisa como Romain, jovem, dezessete anos,
procura primeiro encontro com um homem, e não podia acreditar
que estava escrevendo palavras tão corajosas. Queria voltar atrás,
desligar o computador e recomeçar toda a minha vida como antes,
você não precisa disso, você conseguiu viver todos esses anos em
segredo, eu sabia, estava consciente de que se saísse com um
homem toda a minha vida mudaria — mas segui, continuei na
frente do computador. Em alguns segundos recebi dezenas de
mensagens, a maioria me perguntando se eu estava bem, outros
me mandavam fotos de seus paus.
Respondi algumas mensagens mas tive que parar; de repente,
meu estômago se contraiu; alguma coisa se deslocava dentro de
mim; eu me sentia sujo por causa do que estava fazendo, todo o
passado despertava dentro de mim, todos os insultos na escola, as
frases da cidadezinha contra a homossexualidade, tudo estava
gravado em mim e o nojo dos outros tentava me parar agora, o eu
do meu desejo e o eu do meu passado se enfrentavam no meu
corpo, me sentia a coisa mais repugnante do mundo, um viado, um
viadinho, uma bicha, um maricas, um pederasta, a pior coisa do
mundo, a metáfora de todas as sujeiras e de todas as desonras.
Eu me levantei, corri até o banheiro e vomitei. Meu corpo
implodia. Vomitei agachado no chão com o rosto curvado por cima
da privada, todos os meus músculos doíam, não era mais um
sopro, mas um arquejo que escapava da minha boca, eu me
arrastava no chão, era um animal, as mãos agarradas à privada, o
rosto por cima da água pegajosa e do fedor.
Eu sofria, mas já era tarde demais, não podia mais parar.
Enxaguei a boca, voltei para o computador, e, com as mãos
trêmulas, continuei escrevendo para desconhecidos.
Houve um homem com quem falei um pouco mais do que com
os outros. Ele se chamava Pierre. Parecia mais delicado, mais
paciente do que os outros. Eu tinha medo, mas respondia a ele.
Disse que meu verdadeiro nome não era Romain mas Eddy — não
ousei dizer Édouard, não me considerava legítimo a ponto de usar
meu nome escolhido fora do círculo dos meus amigos mais
próximos. Falei com ele até o meio da noite, e ele sugeriu me
encontrar na semana seguinte.
Eu aceitei.
Toda minha vida virava de cabeça para baixo.
Encontrei Pierre. Ele veio me ver no apartamento do boulevard
Carnot e nós fizemos amor. Eu me lembro de cada detalhe, o sol lá
fora, a janela aberta e o sopro morno do ar que entrava no
apartamento, sua aparência quando estacionou o carro, o barulho
seco e violento do portão. Quando ele entrou no apartamento e o
beijei, pensei, Estou beijando um homem, a frase reverberou
enquanto meus lábios tocavam os dele. Cada pedaço dele era um
sinônimo da palavra Liberdade, Liberdade conquistada contra
você, contra toda a minha vida, Liberdade a barba no rosto dele,
Liberdade os músculos sob o tecido de sua camiseta, Liberdade os
pelos dos seus braços, Liberdade seu pau que enrijecia sob a calça
jeans, Liberdade contra o que o mundo quisera de mim.
Não acho que seja uma coisa normal, não sei, mas quando ele se
deitou em cima de mim, nu, foi em você que pensei (dizendo isso a
você lhe digo o indizível). Ter um homem nu sobre meu corpo, o
sexo dele pressionando minha pele, era transgredir o que você
considerava a infâmia total, absoluta. Fazer o que eu fazia era
acessar uma realidade radicalmente oposta à classe social da minha
infância, na nossa cidade, era romper definitivamente com o meio
que compartilhara com você e seu ódio e seu nojo só de imaginar a
hipótese da existência de uma imagem como aquela. Fazer amor
com um homem, deixá-lo me penetrar, ou aprender a falar sem o
sotaque do norte e ir ao cinema eram o resultado de uma mesma
vontade, de um mesmo processo, o da fuga para longe do passado.
Ao fazer amor com um homem, eu rejeitava todos os valores do
meu meio, eu me tornava um burguês.
Eu não dizia nada sobre minha outra vida para Elena, nem para
ninguém. Eu vivia duas vidas: uma que se articulava na linguagem
em minhas conversas de todos os dias e outra silenciosa e secreta,
dentro de mim. Quando eu falava com meus amigos de Amiens, ou
meus colegas, Lucas, Satine, pensava em minha outra vida, em
minhas viagens secretas para o subúrbio de Paris e me sentia mais
vivo do que eles, minha vida secreta somada à minha vida visível
tornava minha existência mais profunda e mais densa.
*
Eu lia, mas não entendia o que lia, as frases eram muito complexas,
os livros faziam referência a ideias e conceitos que eu não
conhecia, não entendia. Eu me forçava, dizia a mim mesmo que
entenderia depois, após ter lido, que cada livro me daria a
posteriori as chaves para entender o que eu lera na véspera, tentava
me convencer de que, se compreendesse uma página em
cinquenta páginas, então já teria conseguido muito — nem sempre
eu conseguia me convencer, mentir para mim mesmo —, e em
algumas noites, me desencorajava diante das páginas de um livro
aberto, incapaz de decifrar uma simples sucessão de letras e
palavras, eu me odiava, me desprezava, Nunca vou conseguir. Girava
em torno do livro que resistia a mim e me impedia de penetrar
nele, como se as frases me rejeitassem, fisicamente. Eu sofria por
ser quem era. Mas continuava lendo, pensava: Se você não se
tornar um autor, então terá perdido tudo. Tentava escrever textos
curtos depois de algumas horas de leitura; me dedicava. Não
mostrava a ninguém o que eu fazia. Sei que o que digo pode
parecer estranho, que é difícil imaginar que alguém que nunca
tivesse lido ou escrito de verdade antes de repente dedicasse a isso
todo seu tempo, toda sua loucura, toda sua energia, mas foi o que
aconteceu.
Mais imagens.
O dia em que meu irmão caçula me disse, durante uma briga, com
minha mãe de testemunha, De qualquer jeito todo mundo na
cidade diz que você é viado, e eu fiquei apavorado achando que
minha mãe tinha ouvido. Saí de casa correndo e passei parte da
noite fora, nos campos, até o meio da noite. Não queria voltar e
olhar para a minha mãe, enfrentar sua pergunta, É verdade o que o
seu irmão tá dizendo?
No dia em que aos doze anos eu tinha escrito uma pequena peça
de teatro para a escola, não exatamente uma peça, mas algumas
cenas cômicas que se encadeavam, para as comemorações de fim
do ano, que apresentamos para alunos e professores e todos me
aplaudiram de pé ao final, centenas de pessoas, e eu pensei
Ninguém mais vai ousar me insultar agora, eu ganhei, você
ganhou.
Num outro dia em que a sra. Roger, que dava aula de história no
colégio, me disse, sorrindo: Você é simplesmente excelente sr.
Bellegueule.
*
Se eu escrevesse um livro, sentiria essa mesma sensação, dez vezes
mais forte. Provaria ao mundo que eu era alguém e que o mundo
estava errado em querer me inferiorizar.
Havia Elena, mas eu estava certo de que ela iria embora comigo
para Paris.
Ou melhor: acho que sabia que ela não iria embora comigo, mas
queria acreditar que ela faria isso para não enfrentar o que eu
estava fazendo; eu me preparava para abandoná-la.
Eu via Didier uma vez por semana desde que começara a assistir a
suas aulas e desde a primeira vez que ele aceitara beber alguma
coisa comigo. Falei para ele do meu projeto de escrever livros e de
ir embora para Paris — de imitar, no fundo, o que ele fizera mais
ou menos com a minha idade e que havia contado na noite de sua
palestra. Uma noite, ele me convidou para jantar num restaurante,
era terça-feira, e esse primeiro convite foi o início de um ritual, de
um hábito, eu o encontrava toda terça à noite no mesmo
restaurante, estava me aproximando dele. Nunca tinha ido a um
restaurante antes, exceto uma ou duas vezes em um contexto
excepcional, e quando me sentava à mesa reservada por ele, ficava
inebriado com a sensação de estar num lugar onde eu era servido
— como se vivesse uma vida que não era a minha, e o prazer que
me atravessava era igual ao que sente um ladrão. Durante essas
noites ele me fazia entrar em um universo diferente de tudo o que
eu conhecera, pelas histórias que me contava sobre seus amigos
escritores, filósofos, artistas, pelo relato de seus dias escrevendo e
revisando seus manuscritos, a vida gay em Paris — isto é,
frequentar bares gays e sua comunidade de amigos com quem
compartilhava uma mesma sexualidade e uma cumplicidade
baseada nessa sexualidade. Autores que Elena admirava eram
amigos dele, de seu círculo íntimo, e ele os chamava pelo primeiro
nome. Eu sentia uma urgência transbordar do meu corpo: eu não
podia esperar, queria ir para Paris o mais rápido possível. Além de
ter pressa de viver minha nova vida e querer vivê-la o mais rápido
possível, eu também sabia que em Paris poderia encontrar
homens, e meu desejo ocupava cada vez mais espaço em mim
depois da etapa ultrapassada com Pierre. Disse isso a Didier e ele
me incentivou. Disse que eu teria belos encontros, que em Paris
experimentaria uma liberdade que nunca conhecera, e depois
dessa conversa decidi ir para lá todos os fins de semana.
As primeiras vezes em Paris foram como explorações de uma
vida totalmente nova, mais forte e mais bonita. Conhecia pessoas
que tinham vidas que eu jamais poderia ter imaginado e que faziam
sonhar, estudantes do conservatório de teatro que à noite faziam
improvisações em bares decadentes, artistas que não tinham a
carreira que queriam e que davam aulas de teatro ou de dança nas
associações de seu bairro — mas mesmo o que para eles parecia
ser fracasso e renúncia para mim era sinal de uma vida boêmia e
livre em comparação com a vida de Amiens, que me parecia
fechada e limitada; eu queria ter a vida deles. Nos bares em que ia,
eu conhecia advogados, jornalistas, arquitetos — nomes de
profissões que em Paris pareciam esconder privilégios infinitos,
vidas de riqueza e de independência, de importância, de viagens
pelo mundo. Com essas pessoas eu punha em prática o que tinha
aprendido com Elena, as referências culturais, o modo de comer,
de falar. (Será que é disso que Nadya vai falar anos mais tarde quando
disser que eu aproveitei tudo o que ela me transmitira?)
Eu andava durante dias inteiros para descobrir a cidade, seis,
sete horas de caminhada sem parar, almoçava um chocolate quente
ou um suco de tomate num café; estava feliz. Descobri as
Memórias de Simone de Beauvoir que Didier havia me
recomendado e queria viver uma vida igual à dela, de Beauvoir,
uma vida de intelectual; lia nos terraços dos cafés, encontrava
Didier nas brasseries de Montparnasse, ele me falava do
manuscrito em que estava trabalhando, das palestras que dava ou
dos colóquios de que participava, dizia frases diretamente ligadas à
sua vida de autor, “tenho que preparar minha palestra para a
próxima semana”, “tenho que responder meu editor”, e eu sonhava
poder dizer essas palavras também. Ele me convidou para ir à
ópera uma tarde e eu fiquei transtornado, não sei se pela beleza da
música ou porque ir à ópera me passava a impressão de ser um
perfeito burguês, e não é mesmo possível distinguir as duas coisas.
Que imagem poderia estar mais distante do meu pai do que aquela
de mim, ali, sentado no Opéra de Paris, ao lado de um escritor?
É preciso ter vivido para entender, mas mesmo assim vou
tentar explicar, tudo o que eu fazia tinha um significado
vertiginoso, porque toda a história do mundo deslizava para as
cenas da minha vida, a história do mundo e suas divisões, suas
injustiças. Eu entrava na ópera e pensava Eu nunca deveria entrar
nesta sala, me sentava no terraço de um café no Marais para ler
uma obra de Derrida ou de Arendt e pensava Eu nunca deveria
estar aqui, eu nunca deveria saber que esses autores existem.
Experimentava uma certa pena ou ao menos uma tristeza por
aqueles que iam aos grandes teatros parisienses ou que se
sentavam no terraço de um café sem entender a sorte que tinham,
sem se maravilhar, que realizavam esses gestos como tinham feito
na infância, como seus pais e avós fizeram antes deles, porque
nasceram num mundo mais privilegiado do que eu. Meu privilégio
era o de ter conhecido a vida sem privilégio.
Entremeio
É
Entrar na École Normale podia me salvar desse erro.
Eu ouvia tudo o que ele dizia, absorvia até as frases mais simples,
os menores movimentos. (Vou me lembrar um dia, muitos anos
depois, desses momentos com Didier — um dia, quero dizer,
quando tudo o que fora energia, desespero, lutas, se tornar
lembrança —, vou me lembrar que na primeira vez em que
encontrei Didier num café no centro de Amiens, Didier pediu para
o garçom, num tom baixo e suave, um expresso e um copo d’água,
e durante meses depois eu pedia a mesma coisa que ele sempre
que a situação se apresentava, sempre que era possível, a
associação do café e do copo d’água, além do tom aveludado que
Didier tinha usado, me parecia o símbolo de uma distinção
extrema, um sinal de pertencimento a uma classe inacessível para
mim — e à qual eu queria pertencer, exatamente por causa desse
sentimento de inacessibilidade.)
Era preciso, porém, me concentrar no concurso para a École
Normale, eu tinha que redigir o projeto de pesquisa. Não sabia o
que fazer e fazia como sempre fiz quando queria mudar: imitava. Li
em algum lugar que Jean-Paul Sartre lia um livro por dia durante
sua juventude, e eu achava que era preciso fazer a mesma coisa. Lia
durante grande parte da noite para manter esse ritmo
humanamente impossível, Elena achava que eu parecia cansado e
me dizia isso, eu perdia peso. A partir de minhas leituras fiz um
rascunho do projeto, expus minhas ideias para Didier e ele me
dava conselhos, outros títulos de livros para ler, É preciso continuar,
é preciso continuar. E eu continuava, todos os dias e até várias vezes
por dia entrava no site da instituição, contemplava as fotos dos
prédios, do pátio, da fonte que reinava no meio do pátio e
suplicava dentro da minha cabeça, faça com que eu seja aceito,
uma prece tão simples e banal quanto essa, sem saber exatamente
a quem esse faça se dirigia.
Pedia a Babeth na Maison de la Culture horas extras no teatro
para ganhar mais dinheiro e poder comprar mais livros, eu
trabalhava, eu comprava livros, eu os lia, a falta de sono se
acumulava em meus músculos, mas me tranquilizava dizendo a
mim mesmo que descansaria depois, quando estivesse a salvo de
uma vez por todas; o repouso se transformara numa promessa.
Ludovic
À
mas depois de cada resposta pensava: nunca vou conseguir. À noite
dormi no hotel. Didier tinha reservado um quarto para que eu
pudesse passar a noite em boas condições antes da prova oral do
dia seguinte, ele havia pagado — como Babeth, Ludovic, e de certa
forma, Elena, eu me pergunto: por que será que ele decidira se
encarregar do meu destino? Será que era eu que suscitava esse
movimento nas pessoas, será que meu desespero infinito e minha
esperança sem limites, sua coexistência dentro de mim eram
visíveis?
E depois?
Ela me disse novamente que sua vida não era em Paris, mas ali.
Não insisti mais. Fiquei junto dela sem dizer nada. Lá fora, as
pessoas caminhavam, davam risada, era a ação do sol sobre a pele
que as fazia rir. Eu procurava alguma coisa, uma frase para dizer,
mas quanto mais procurava, mais a possibilidade de encontrar uma
frase parecia ficar longe. Eu tentava não chorar porque sabia que
minhas lágrimas tornariam minha partida mais real, tornariam
mais real meu abandono. No silêncio, as imagens voltavam, a da
primeira vez, quando Romain me mostrou Elena no meio do pátio
do colégio; a primeira vez que li a seu lado, na biblioteca, fascinado
com sua capacidade de concentração; o mergulho com ela no mar
gelado, a primeira vez que dancei com ela e que cheirei seus
cabelos; cenas da sua risada, sua risada sonora que preenchia todo
o cômodo em que estava. Me lembrei da noite em que depois de
beber demais dormi aconchegado a seu corpo, na sua cama
minúscula, aquecido pela temperatura da sua pele, quase
inconsciente, mas tranquilizado por ela; da vez em que quase
morri de uma peritonite e ela passou duas semanas comigo na
cama, me alimentando, enxugando minha testa coberta de suor.
Eu pensava: não chore, você não deve chorar. Eu não sabia o que
Elena pensava ao meu lado, imagino que estivesse me odiando.
Depois de quase uma hora sem dizer nada, me levantei e disse que
precisava ir embora. Tinha acabado.
Não foram os meus erros que fizeram você ir embora, e sim o seu
egoísmo,
A resposta não está em lugar nenhum dentro de mim
Ela está totalmente fora de mim
Não posso me enganar a esse respeito
Não posso me deixar manipular
Você queria viver sua vida,
Era você mesmo quem dizia essa frase quando eu o criticava
Era seu jeito de não responder
Tenho que viver a minha vida
E para você eu era apenas uma etapa.
Eu queria ser seu ponto de chegada, mas era apenas seu ponto de
partida.
É idiota,
Eu achava que viveria a vida com você.
A gente falava disso, a gente sonhava,
Você seria professor de história e eu jornalista ou artista,
Não uma grande artista,
não,
isso não me interessava,
Nunca sonhei com a glória,
Só uma artistazinha numa cidadezinha do interior,
Com alguma coisa para fazer
Uma artista sem público,
Mas nós teríamos sido felizes.
Não sei se é assim para todo mundo, mas, para mim, quando o
processo da minha transformação começou, ele se tornou um
trabalho mais do que consciente, uma obsessão permanente.
Algumas pessoas contam sua transformação como um processo
lento, como uma superposição de mudanças sucessivas do corpo,
dos estados do corpo, da maneira de ser, de existir, tão espalhadas
e difundidas ao longo do tempo que nem precisam da consciência
ou da força de vontade para se realizar, algumas pessoas explicam
que é no contato com outros tipos de corpos e de indivíduos
diferentes daqueles que tinham conhecido na primeira parte da
vida que mudaram, interiorizando, muitas vezes de forma difusa,
as atitudes desses corpos e desses indivíduos novos. Não foi o meu
caso. Eu queria mudar tudo, e que tudo no meu processo de
mudança fosse resultado de uma decisão. Não queria que mais
nada escapasse à minha vontade.
Olhei pela janela à minha esquerda no pequeno apartamento de
Ludovic, observei o céu, os telhados dos prédios e os corpos na
rua, ao longe, e pensei “Tudo está começando”.
3.
Breves cartas para um longo adeus
(explicações fictícias para Elena)
Nos primeiros dias quando cheguei a Paris foi a liberdade dos
inícios que vivi e senti, tão particular, que não se compara a
nenhuma outra forma de liberdade, igual àquela que experimentei
com você quando me mudei para o apartamento do boulevard
Carnot. Eu acordava de manhã e olhava à minha volta. Via o sofá-
cama sobre o qual estava deitado, a cozinha, a mesinha e a cadeira
que a acompanhava para estudar e para comer, os livros que tinha
trazido de Amiens e pensava: Estou na minha casa. Estou livre.
Pensava: Nunca poderia ter esperado chegar tão longe.
Tinha medo de falar com você nesse momento para não
acentuar a distância entre nós, mas era como se tudo fosse bonito
em Paris, posso contar tudo para você agora, os anos passaram,
tudo era bonito, mesmo as coisas mais insignificantes, comprar
água no mercadinho embaixo de casa, levar minhas roupas de cama
à lavanderia, comprar produtos de limpeza, mesmo as piores
coisas, as mais banais e entediantes, como preencher formulários
administrativos, porque tudo o que eu fazia era como uma
confirmação da minha liberdade, como a prova de que eu tinha
vencido.
É
aulas da École Normale Supérieure com a sensação inebriante e
ingênua de pertencer a uma elite, experimentava todos esses
gestos cotidianos como atos conquistados contra a fatalidade.
Tentava esquecer você. A frase que voltava à minha cabeça, que
eu repetia, era que eu devia viver todas as vidas, e acho que dizia a
mim mesmo que esse imperativo havia nos separado, não eu ou
minhas decisões, mas uma necessidade mais forte do que eu. Que
eu não era a causa. O que eu me dizia é que, logicamente, deveria
conhecer apenas a vida no norte, já que todos aqueles com quem
tinha crescido não puderam escapar dela, você sabe, cresciam e
morriam na região onde tinham nascido, e todos os dias sentia em
mim o movimento de uma felicidade de sobrevivente. Eu me
lembrava das vezes em que os garotos da minha cidade contavam
que iam morar fora, numa cidade grande, para serem cozinheiros
ou garçons, os únicos trabalhos acessíveis a eles, sem diplomas e
sem conhecimentos, e voltavam algumas semanas depois dizendo,
envergonhados, que tinham fracassado, que era muito difícil,
muito caro, que tinham perdido o emprego, como se a cidade os
tivesse chamado de volta. Já eu queria que nada pudesse me
escapar. Viver tudo era me vingar do lugar que me fora destinado
no mundo desde o meu nascimento. E isso, estou enganado?, você
não entendia.
Eu vivia tudo.
Quero que saiba que a minha vida não se parecia nem com aquela
que você imaginava nem com a que eu fantasiei antes de ir embora.
Geralmente, à noite, quando estava sozinho, eu retomava a lista
que havia feito num pedaço de papel ao chegar a Paris. Lia as linhas
uma a uma, em cada uma tinha escrito um objetivo de mudança,
Mudar meu nome, mudar meus dentes, mudar minha aparência,
mudar minha risada. Eu punha umas cruzinhas minúsculas ao lado
do que considerava realizado, e me prometia que logo a
metamorfose estaria terminada.
O mais urgente era transformar meus dentes. Era a parte de
mim que mais provocava perguntas e que mais me ligava à minha
infância. A maior parte dos meus dentes eram tortos na minha
mandíbula, é verdade, até você ria deles, e em Paris me
perguntavam por que estavam tão estragados.
Foi Ludovic que me ajudou, de novo ele. Ele me levara para
almoçar num restaurante do faubourg Saint-Honoré, num dos
bairros mais ricos de Paris. Quando chegávamos a esse restaurante
homens e mulheres tiravam nossos casacos, nos acompanhavam
até nossas mesas, puxavam a cadeira para que nos sentássemos.
Ofereciam aperitivos apresentando as garrafas num carrinho de
madeira e de prata, e quando íamos embora Ludovic lhes dava uma
nota de gorjeta. Uma nota.
Queria contar a você como aprendi a criar o presente, para que ele
não desaparecesse completamente da minha vida e para não
sufocar com minha obsessão pela metamorfose: eu caminho à
noite. É verão, eu caminho à noite, devagar, porque espero que
alguma coisa aconteça, e sei que aqui, nessas ruas que cercam a
place de la République, perto do apartamento de Ludovic, onde
moro, não é uma coisa impossível. Eu contava com a madrugada
para me fazer esquecer meus esforços, minha transformação.
Soube que tinha vencido quando ouvi um barulho atrás de mim,
“ei!”. Antes mesmo de me virar entendi que o amaria e o desejaria,
como se pudesse ouvir a beleza em seu grito. Não me virei. Queria
que ele falasse de novo. Queria ouvir o barulho de sua beleza mais
uma vez.
Continuei andando, ele falou de novo, “ei!”, e foi só aí que me
virei e vi o rosto sem olhos, escondidos debaixo do boné; eu via
apenas seu maxilar e seu corpo sob a camiseta, seu corpo forte e
compacto, a forma de seu corpo que transparecia no tecido branco
e fino da camiseta, como se sua carne fosse dotada de vontade
própria, independente dele.
Ele disse: Você tem fogo? Preciso de fogo para acender meu
cigarro.
Eu sabia que a pergunta dele era mentira. Ele não queria fogo,
não precisava acender um cigarro, mas entrei no jogo; fingi
acreditar na pergunta, ou melhor, acreditar que a pergunta dele era
uma pergunta e me desculpei, disse que não fumava; ele deixou
passar um tempinho. O que significava nosso silêncio era que ele
sabia e eu sabia também exatamente o que ia acontecer, que o
silêncio era apenas a espera de um futuro já definido. Vi que ele
procurava a melhor maneira de se aproximar. Eu ainda não tinha
visto seus olhos; eu os imaginava, os inventava. Mesmo do resto de
seu rosto eu só conseguia ver os reflexos na noite. Então ele me
disse: Eu sou um tubarão. (Silêncio.) E você, gosta de tubarões?
(Silêncio de novo.) Eu ri e ele ficou preocupado: Não? Então
respondi, de um modo entre o engraçado e o sério: Sim, bem, sim,
quero dizer sim.
Ele sorriu sob o boné e de repente diante da visão de seu sorriso
não achei mais sua frase engraçada ou ridícula, ao contrário, era
como se eu nunca tivesse ouvido algo tão sério e profundo. Ele era
um tubarão, ali, na noite; eu acreditava nisso. Ele falou de novo:
Você mora longe? Eu disse que não e sugeri que caminhasse
comigo. Andamos juntos uma distância de trezentos ou
quatrocentos metros. Quando chegamos na frente da porta do meu
prédio — era azul-escura —, pus a senha para entrar; ele estava
atrás de mim, eu sentia sua respiração morna na minha nuca.
Pensei: é a respiração de um tubarão. Sei que os tubarões não
respiram, mas eu repetia, é a respiração de um tubarão.
(É possível escrever essas frases e esses pensamentos? É
possível escrever essas frases quando sua beleza vinha da
densidade da noite e da carga de desejo e de paixão que as cercava?
Jean Genet diz: “Os jogos eróticos descobrem um mundo
indescritível revelado pela linguagem noturna dos amantes. Uma
linguagem assim não pode ser escrita. É sussurrada no ouvido à
noite, com voz rouca. Ao amanhecer, é esquecida”. Eu não
esqueci.)
Subi os degraus da escada de dois em dois, ele me seguia, e no
meu apartamento ele tirou o boné. Descobri seu olhar pela
primeira vez. Passei a mão em sua cabeça raspada, seus cabelos
pretos só com pouco mais de um milímetro arranhavam minha
pele. Encostei os lábios na sua nuca e foi nesse exato momento,
quando meus lábios roçaram a pele escondida atrás de sua orelha,
que ele pegou meu corpo inteiro e o deitou na minha cama com
uma força tão segura de si e tão tranquila que seria possível
acreditar — quero dizer, olhando de fora — que ele estava na casa
dele e que eu era o desconhecido encontrado na noite.
Ele possuía tudo, o espaço, a situação, meu corpo. Meu rosto
estava pressionado contra o colchão, meu olhar mergulhado no
escuro. Ouvia o barulho de seu cinto se abrindo, do zíper
baixando, do tecido da sua calça jeans que escorregava em suas
coxas, a tepidez de seu corpo contra o meu. Senti minha própria
respiração no meu rosto; ele continuava sem dizer nada — e juro
que nunca tinha ouvido um silêncio tão bonito.
Fizemos amor várias vezes. Entre uma e outra ele me falava, me
dizia: Você vai embora comigo. Vamos para longe daqui e vamos
ficar juntos a vida inteira.
Eu não sabia o nome dele.
Ele sussurrava: Você vai ser minha mulher. Você vai virar minha
mulher e vai ser minha, e eu dizia sim, dizia sim.
Na manhã seguinte ele foi embora. Pôs seu boné e seus olhos
desapareceram como na véspera. Saiu da minha casa sem dizer
uma palavra, eu o olhei se lavando no banheiro sem dizer nada.
Pensei: talvez tenha se arrependido das palavras que a noite fez
com que dissesse; observei suas costas, seus ombros pela última
vez.
Hoje, muitos anos se passaram, e quando conto para você essa
lembrança, eu o imagino novamente à noite, surgindo das sombras
ao acaso e recitando para outros as mesmas palavras que disse para
mim na noite do nosso encontro. Imagino o sorriso de quem ainda
não entende até que ponto essas frases vão ser as mais bonitas, as
mais fortes e as mais sérias que irá ouvir, as palavras mais nobres e
mais sagradas que lhe serão ditas.
Devo dizer uma coisa: durante esses encontros na madrugada
— houve outros — o futuro e o passado desapareciam. Eu não
tinha mais medo. Todos os meus medos, do meu futuro, da minha
metamorfose, todas as sombras do passado, Amiens, você, tudo se
dissolvia na madrugada. Esses encontros eram os únicos em que
eu vivia nessa realidade que chamamos de presente.*
O apartamento.
O que eu queria, no fundo, em Paris? Ainda hoje não está claro
para mim, será que queria me tornar um burguês? ficar rico? virar
um intelectual? ser reconhecido? ficar protegido para sempre e
definitivamente do risco da pobreza? queria especialmente mudar
ou mudar sobretudo na direção daquilo que chamamos de
ascensão social? Me parece que era tudo isso ao mesmo tempo,
acho que meu desejo evoluía de acordo com os contextos e as
situações, de acordo com as pessoas com quem eu estava.
O certo é que, desde que parei de escrever, eu me fazia cada vez
mais perguntas, estava com medo. O que iria me tornar? Poderia
dizer a mim mesmo que estudava numa instituição de prestígio,
que morava em Paris, podia ter a segurança de ter uma profissão
bem paga e um lugar no mundo dos privilegiados, mas não bastava.
Meu corpo me pedia para fazer mais, Elena, a violência dos
primeiros anos da minha vida exigia uma compensação maior, eu
não tinha escolha, meu corpo me pedia para ir mais longe — meu
corpo, isto é, a superposição de todas as experiências passadas e
acumuladas.
Procurei ajuda. Como cheguei a essa ideia não me lembro, mas
pensei que se não conseguisse sobreviver sozinho, escrevendo,
teria que encontrar alguém que me acolhesse em sua vida, e que se
tornasse aquele por meio de quem eu obteria minha vingança
sobre o passado. Era preciso que fosse um milionário, um príncipe,
um político importante, não importa, mas que a vida para a qual
me levasse fosse na medida e à altura de minha necessidade de
vingança.
Era por cenas como essa que eu abandonava você — mas eu tinha
esse direito, me parece que tinha esse direito.
Uma última imagem dessa vida. Uma noite, uma mulher que
trabalhava para os amigos de Philippe estava me servindo salada
para acompanhar os queijos e o bordeaux — Chasse-Spleen, o
vinho preferido de Philippe. Ela estava bem atrás de mim, de pé,
pronta para me servir quando os dois talheres que segurava
escorregaram entre seus dedos. Eles caíram na saladeira de metal
e, caindo, ressoaram como um sino. O homem que morava lá, o
que nos recebia, o amigo de Philippe, interrompeu o que estava
falando e disse: Cuidado, Katia. Depois, para os outros: Como
pode ser tão desajeitada, ela faz coisas assim várias vezes por
semana. Ela estava ali, em pé, do nosso lado, a alguns centímetros,
o ouvia, mas ele falava dela na terceira pessoa, como se ela não
estivesse ali, como se sua reação e seus sentimentos tivessem tão
pouca importância que ela não merecesse que ele a esperasse sair.
Sua frase entrou na minha carne. Tive vontade de me levantar e
dizer àquela mulher que eu não era como eles, que não estava do
lado deles, mas fiquei quieto.
Depois contei para Didier sobre esse jantar e lhe disse que tinha
defendido Katia na frente dos outros, mas não era verdade. Eu
mentira porque tinha vergonha de não ter dito nada, esperava que
minha mentira fosse a prova de que eu sabia ainda ter vergonha, e
que a vergonha me tornava mais aceitável. Queria que Didier
soubesse que eu tinha vergonha de não ter confessado meu
silêncio a ele.
Um dia essa vida com Philippe acabou. Ela durou vários meses,
durante os quais pensara ter me livrado da minha infância e dos
meus medos.
Não tenho um acontecimento específico para contar, nenhuma
ruptura brutal ou uma briga que tenha ficado na minha memória,
um dia acabou, e só.
Será que estava cansado, depois de ter experimentado essa
vida? Será que entendi que nunca estaria em meu lugar naquele
mundo? Será que eu mesmo me convenci de que devia me retirar,
para não ser confrontado com o fato de que tinha sido aquela vida
que não me quisera, de que eu era radicalmente incompatível com
ela? Ou será que, simplesmente, aquela vida e aquelas pessoas me
enjoaram e eu disse a mim mesmo que não queria ser como elas?
Acho que é principalmente isso, mas não sei, tenho medo de
escolher essa razão por ser a mais nobre, a mais lisonjeira (e, no
entanto, acredito nisso de verdade, me lembro de ter pensado que
detestava, não Philippe, mas aquelas festas com ele).
Agora era preciso escrever um livro, estava certo disso, era assim
que me salvaria definitivamente. Ludovic, de quem eu tinha
escondido quase totalmente as noites passadas com Philippe, por
vergonha, me incentivava, comprava livros para mim.
Eu tinha que fazer tudo de novo, na ordem.
Recomecei a fazer todos os dias o que fazia antes de conhecer
Philippe. Eu me sentava de manhã na frente do computador para
escrever, me obrigava, me levantava e andava em círculos no
apartamento minúsculo, dava ordens a mim mesmo Você tem que
chegar lá, você tem que chegar lá, mas o incentivo que eu me dava
não mudava nada, nenhuma palavra me vinha.
Eu ia aos cafés, tomava notas numa caderneta, tentava fazer
rascunhos de livros, mas tudo o que escrevia me desanimava ainda
mais, quando relia pela manhã o que rascunhara na véspera me
sentia sujo e ridicularizado por mim mesmo, tudo o que escrevia
parecia um plágio malfeito de escritores de quem gostava, eu
apagava tudo, o desespero me impedia de continuar.
Barcelona
Para o tempo em que mudar não era uma urgência para mim, para
o tempo em que eu saía com os filhos da vizinha ou com Amélie,
minha melhor amiga, pelos campos de trigo que cercavam a cidade
e construíamos cabanas de madeira com tábuas que pegávamos no
centro de reciclagem municipal, que carregávamos em nossas
bicicletas — e então havia o cheiro da madeira, da terra, dos
pregos enferrujados que ficava vários dias nos meus dedos, e as
noites úmidas que passávamos nessas cabanas querendo acreditar
que estávamos confortáveis ali, ainda que estivéssemos com frio e
com dores nas costas, mas felizes por dormir naqueles abrigos que
tínhamos construído com nossas próprias mãos, nosso trabalho.
Para o tempo em que meu pai assistia aos filmes de terror à noite e
me obrigava a vê-los junto com ele porque dizia que aquilo me
endureceria. Eu lhe dizia que queria ir dormir, mas ele me
mandava ficar na cozinha e ver o filme, me ameaçava, dizia que
tinha que aprender a não ter mais medo, a ser um homem, e eu,
vendo aquelas imagens de assassinatos, de monstros e de corpos
decepados, chorava, urrava.
Para o tempo em que minha mãe gritava na cozinha, no meio das
manchas de gordura e de umidade que cobriam as paredes Quem
quer macarrão com queijo?!!! E meu pai respondia levantando a
mão Eu, eu, eu, de repente ele tinha a minha idade, e eu implorava
junto com ele para minha mãe.
Para o tempo em que meu pai me dizia quando ouvia o barulho que
faz a rolha quando se abre uma garrafa de vinho, “opa, estão me
chamando!”.
Para o tempo em que assistíamos à televisão oito, nove horas por
dia porque a TV nos permitia pensar apenas no presente e não ter
que pensar no dia seguinte, isto é, na preocupação e na vida.
(Claro que a infância era também quando ele me dizia que eu não
era o filho que ele queria ter tido, quando a angústia de faltar
dinheiro definia nosso dia a dia — mas todas essas coisas me
marcam cada vez menos quando penso nelas, não sei por quê, não
tenho explicação.)
Voltar
Para o tempo em que minha mãe dava de ombros e dizia Que vida
de merda a gente tem.
capa
Luciana Facchini
foto de capa
Trent Parke/ Magnum Photos/ Fotoarena
preparação
Érika Nogueira Vieira
revisão
Jane Pessoa
Karina Okamoto
versão digital
Antonio Hermida
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
CDD 843
* No meu primeiro livro contei como tinha feito de tudo para não
fugir, para não ser diferente. As duas histórias são verdadeiras,
contam simplesmente as duas faces de um mesmo fenômeno, de
uma mesma vida.
[ «« ]
* Não falo mais disso porque não tenho nada a dizer sobre a vida
no dormitório, só me restam algumas lembranças sombrias e
nebulosas, o cheiro forte de legumes cozidos à noite no refeitório,
o tédio, as roupas roubadas nos vestiários, meu desejo reprimido
por Karim, o zelador — não tenho mais nada a dizer, ficaram mais
sensações do que lembranças.
[ «« ]
* Na verdade não foi com Elena que eu assisti a essa palestra, mas
com outro amigo — foi ele também que imitei me inscrevendo no
departamento de história da Universidade de Amiens. Prefiro
substituí-lo por Elena aqui pela coerência e principalmente para
não precisar contar toda a história que me levou a ir com ele e não
com ela. De qualquer modo, eu contava tudo a Elena, em detalhes,
e é como se ela estivesse sempre presente, mesmo quando não
estava.
[ «« ]