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Édouard Louis

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Método

tradução
Marília Scalzo
Capa
Folha de Rosto

Dois prólogos
1. Elena
2. Didier
3. Breves cartas para um longo adeus
4. Desenlace
Créditos
Para Giovanni S.
Eu não sou nada além de um pretexto
Jean Genet, Diário de um ladrão
Dois prólogos
É meia-noite e trinta e três e eu começo a escrever neste quarto
escuro e silencioso. Lá fora, pela janela aberta, ouço vozes na noite
e as sirenes da polícia, ao longe.
Tenho vinte e seis anos e uns meses, a maioria das pessoas diria
que tenho a vida pela frente, que nada começou ainda, e no
entanto, vivo já há muito tempo com a sensação de ter vivido
demais; imagino que é por isso que a necessidade de escrever é tão
profunda, como uma maneira de fixar o passado no escrito e assim,
suponho, me livrar dele; ou talvez, pelo contrário, que o passado
está tão enraizado em mim agora que me obriga a falar dele, o
tempo todo, a cada instante, que tenha me dominado e,
acreditando me livrar dele, apenas reforço sua existência e seu
poder sobre minha vida, talvez eu esteja preso — não sei.
Eu tinha vinte e um anos e já era tarde demais, já tinha vivido
demais — tinha conhecido a miséria, a pobreza na infância, as
repetidas cenas da minha mãe me pedindo para ir bater na porta
dos vizinhos ou da minha tia, a voz suplicante, para que nos
dessem um pacote de macarrão e uma lata de molho de tomate,
porque ela não tinha mais dinheiro e sabia que uma criança
despertaria mais facilmente pena do que um adulto.
Tinha conhecido a violência, meu primo morto na prisão aos
trinta anos, meu irmão mais velho doente de alcoolismo desde a
adolescência, que acordava bêbado de manhã antes de ter bebido,
de tanto que o álcool estava impregnado no seu corpo, minha mãe
que negava isso com todas as suas forças para proteger o filho, que
jurava para nós sempre que ele bebia que era a última vez, que
depois daquela não beberia mais. As brigas no bar da cidade, o
racismo obsessivo das comunidades rurais isoladas, presente atrás
de cada palavra ou quase, de cada frase, Aqui não é mais a França, é
a África, a gente só vê estrangeiros pra todo lado; o medo constante
de não conseguir chegar ao fim do mês, de não poder comprar lenha
para aquecer a casa ou não poder substituir os sapatos furados dos
filhos, as frases da minha mãe, Não quero meus filhos passando
vergonha na escola, e meu pai; meu pai doente pela mesma vida de
trabalho na fábrica, na linha de produção, e depois nas ruas
varrendo a sujeira dos outros, meu avô doente por causa da mesma
vida, doente porque sua vida era a reprodução quase exata da vida
de seu bisavô, de seu avô, de seu pai e de seu filho: privação,
precariedade, abandono escolar aos catorze ou quinze anos, vida
na fábrica, doença. Quando eu tinha seis ou sete anos, via esses
homens à minha volta e achava que a vida deles seria a minha, que
um dia eu iria para a fábrica como eles e que a fábrica me faria
curvar as costas também.

Fugi desse destino e fui atendente numa padaria, zelador,


vendedor em uma livraria, garçom, arrumador em vários teatros,
secretário, professor particular, garoto de programa, monitor em
colônias de férias, cobaia em experiências médicas. Por milagre
estudei numa instituição de ensino superior considerada uma das
mais famosas da Europa, de onde saí com um diploma em filosofia
e em sociologia, sendo que ninguém na minha família estudou. Li
Platão, Kant, Derrida, Beauvoir. Conheci, depois das classes mais
pobres do norte da França, a pequena burguesia provinciana, seu
amargor, e, logo em seguida, o mundo intelectual parisiense, a
grande burguesia francesa e internacional. Frequentei as pessoas
mais ricas do mundo. Fiz amor com homens que tinham em suas
salas obras de Picasso, de Monet, de Soulages, que só viajavam de
avião particular e que ficavam em hotéis cuja diária, uma única,
custava o que toda a minha família ganhava em um ano de trabalho
quando eu era criança, para uma família de sete pessoas.
Estive perto — fisicamente pelo menos — da aristocracia,
jantava com duques e princesas, comia caviar e bebia várias vezes
por semana champanhes raros com eles, passava as férias em
mansões na Suíça na casa do prefeito de Genebra, que se tornara
meu amigo. Conheci a vida de traficantes, amei um homem que
consertava ferrovias e outro que, com pouco mais de trinta anos,
passara um terço da vida na prisão, dormi nos braços de outro
ainda numa das periferias mais perigosas da França.
Com pouco mais de vinte anos troquei meu sobrenome na
justiça, mudei de nome, transformei meu rosto, redesenhei o
contorno das entradas de meu cabelo, passei por diversas cirurgias,
reinventei a maneira de me mover, de andar, de falar, fiz
desaparecer o sotaque nortista da minha infância. Fugi para
Barcelona para recomeçar a vida lá com um aristocrata decadente,
tentei ir para a Índia e abandonar tudo, vivi numa quitinete
minúscula em Paris, tive um grande apartamento num dos bairros
mais ricos de Nova York, andei sozinho durante semanas por
cidades americanas de tamanho médio, desconhecidas e
fantasmagóricas, para tentar me livrar do que minha vida havia se
tornado. Quando voltava para ver meu pai ou minha mãe, não
sabíamos mais o que dizer uns aos outros, não falávamos mais a
mesma língua, tudo o que eu tinha vivido em tão pouco tempo,
tudo o que tinha atravessado, tudo nos separava.
Escrevi e publiquei livros antes de fazer vinte e cinco anos,
viajei pelo mundo inteiro para divulgá-los, Japão, Chile, Kosovo,
Malásia e Singapura. Fiz conferências em Harvard, Berkeley, na
Sorbonne, primeiro impressionado com essa vida, depois
indiferente e enfastiado.
Escapei por pouco da morte, vivi a morte, provei sua realidade,
perdi o controle de meu corpo por semanas.
Desejei fugir da minha infância mais do que tudo, desejei
escapar do céu cinza do norte e da vida condenada dos meus
amigos de infância, privados de tudo pela sociedade, tendo como
única perspectiva de felicidade as noites, várias vezes por semana,
no ponto de ônibus da cidadezinha, bebendo cerveja e pastis em
copos de plástico para esquecer, esquecer a realidade. Sonhei ser
reconhecido na rua, sonhei ser invisível, sonhei desaparecer,
sonhei acordar um dia de manhã sendo uma menina, sonhei ser
rico, sonhei recomeçar tudo.

Às vezes queria me deitar num canto, longe de tudo, cavar um


buraco, me enterrar nele e não falar nunca mais, nunca mais me
mexer, à semelhança do que Nietzsche chama de fatalismo russo,
ou seja, daqueles soldados que, exaustos de lutar por tanto tempo,
devastados pelo cansaço dos combates, com o corpo dolorido,
pesado, se deitam no chão, em algum lugar longe dos outros, na
neve, e esperam que a morte chegue.

É essa história — essa odisseia — que eu gostaria de tentar contar


aqui.
Subo as escadas de dois em dois degraus, nem sei mais em que
pensava nessa escadaria, imagino que contasse os degraus para não
pensar em outra coisa.
Cheguei diante da porta, recuperei o fôlego e toquei a campai­-
nha. O homem se aproximou do outro lado da porta, dava para
ouvi-lo, dava para perceber o som dos seus passos no assoalho.

Tinha falado com ele pela primeira vez havia cerca de duas horas
por um site. Fora ele que entrara em contato. Tinha me dito que
gostava de garotos como eu, jovens, magros, louros, de olhos azuis
— especificara: tipo ariano. Havia pedido que eu me vestisse como
um estudante e fiz isso, pelo menos como a ideia que ele tinha de
um estudante, eu usava uma blusa com capuz grande demais que
peguei emprestado de Geoffroy e um par de tênis azul-anil, meu
preferido, tinha me dobrado a seu desejo porque esperava que ele
me pagasse mais do que havia prometido, para me recompensar
por minha dedicação.

Fiquei esperando.

Ele enfim abriu a porta e, vendo seu corpo, tive que contrair os
músculos do rosto para não fazer uma careta — ele não se parecia
com as fotos que tinha me enviado, seu corpo era flácido, pesado,
nem sei como dizer, como se caísse ou, melhor, como se
escorresse para o chão.
Ele sofria só por ter se deslocado até a porta, eu via o cansaço, a
falta de ar, a transpiração na forma de dezenas de gotículas
minúsculas que brilhavam em sua testa; tentei olhar para ele o
mínimo possível, queria evitar ver os detalhes de seu rosto;
pensava Em menos de uma hora você vai estar longe daqui com o
dinheiro. Seu cheiro chegava até mim, um cheiro artificial de
baunilha, de leite azedo. Eu me concentrava nessa frase, Em
menos de uma hora, o dinheiro, quando de repente ouvi vozes
atrás dele, no apartamento. Eram vozes de homens, havia alguns
ali, talvez três ou quatro; perguntei a ele quem eram; ele sorriu e
disse: Não é nada. Você pode agir como se eles não estivessem
aqui, eles estão acostumados, sempre chamo prostitutos, você não
é o primeiro. Vamos para o meu quarto, pode ignorá-los.

Pensei: não quero que os outros vejam meu rosto — a vergonha


começou a subir, a invadir meu corpo desde a ponta dos dedos até
a nuca, como um fluido morno, paralisante, eu reconhecia sua
ardência. Eu o ameacei dizendo que ia voltar para casa. Achei que
minha frase o machucaria ou irritaria, mas ele não tentou me
segurar, me propôs, calmamente, me dar cinquenta euros pelo
deslocamento se eu quisesse dar meia-volta e ir embora, e eu o
odiei por não ter se irritado. Precisava de mais do que cinquenta
euros. Eu disse Tá bom, vamos direto para o seu quarto, eles não
vão me ver, eu ponho o capuz.
Jurou que seus amigos não iam tentar ver meu rosto, Eles não
estão nem aí, ele começou a se virar, eu via sua nuca branca e
sebosa, Pensa no dinheiro, pensa no dinheiro.

Atravessei a sala com ele, que andava na minha frente. Abaixei a


cabeça, o capuz escondia meu rosto. No quarto ele se sentou na
beirada da cama, o contato de seu corpo pesado com o colchão
produziu um barulho seco e agudo.
O colchão gritava em meu lugar.
Eu estava de pé, diante de seu corpo, não ousava me mexer, ele
me olhava, Porra você é um tesão com essa carinha de nazista. Eu
não disse nada, sabia que meu silêncio lhe agradaria, que era isso
que ele queria e que era por isso que me pagava, pela minha
dureza, minha frieza. Eu desempenhava um papel. Ele pediu para
que eu me despisse, dizendo: o mais devagar possível, e assim eu
fiz.
Então estava nu diante dele, e esperava. Ele disse apenas: Eu
queria que você me comesse como uma vagabunda. Ele se ergueu,
abaixou as calças até os joelhos, sem tirá-las completamente, e
virou de costas para ficar de quatro em cima da cama — sua bunda
na minha frente muito branca e muito vermelha, emaciada,
molenga, coberta de pequenos pelos castanhos — ele repetia,
Anda, me come, me come como se eu fosse sua putinha. Esfreguei
meu pau em seu corpo, mas nada acontecia, meu pau continuava
inerte, eu falhava, não conseguia pensar em outra coisa, nem me
imaginar em outra situação, a realidade de seu corpo se impunha,
como se a realidade de seu corpo fosse tão brutal, tão total que
tornasse impossível qualquer tentativa de imaginação. Ele
perguntou Então, você não está conseguindo, e para ganhar tempo
respondi Cala a boca. Senti seu corpo estremecer sob meus dedos
com essa frase, ele gostava.

Tentei de novo, me esfregava nele, em cima dele,


desesperadamente, tentava imaginar outro corpo em vez do dele,
imaginar outro corpo sob o meu corpo, ou melhor, sobre meu
corpo, pois sabia que era essa configuração que costumava
despertar meu desejo, me concentrei, mas o contato com sua pele
seca e fria me fazia voltar à realidade, à sua presença. Ele suspirava
para me mostrar sua impaciência. Eu disse de novo, Já mandei
você calar a boca e não se mexer, mas sabia que não funcionaria tão
bem uma segunda vez. Ele queria outra coisa. Me esfreguei nele
com ainda mais força, mas sabia que tinha perdido, já tinha
perdido desde o início, hoje percebo que tinha compreendido isso
assim que entrei em seu quarto.

Pensei no dinheiro de que eu precisava, na vergonha no dia


seguinte se tivesse que dizer para o dentista que não poderia pagar,
meu olhar no dele e aquelas frases que ele devia saber de cor, Será
que posso pagar da próxima vez, sinto muito, não trouxe a carteira,
esqueci, ele sabendo que eu estava mentindo e eu sabendo que ele
sabia, e a vergonha provocada por esse jogo de espelhos infinito —
era simples assim, tão banal quanto isso, e era por esse motivo que
eu estava na casa desse homem, nu, roçando nele.
Ele continuava na mesma posição, imóvel, de quatro. Recuei
um pouco, dei a volta na cama e cheguei na frente de seu rosto. Ele
tinha os traços deformados, o rosto exausto de esperar, suplicante.
Eu lhe disse Chupa, e ele pegou meu pau, que continuava mole
dentro da sua boca. Fechei os olhos. Não sei como consegui, mas
depois de uns vinte minutos em pé diante dele meu pau endureceu
e eu gozei, tirei o pau da sua boca para encobrir seu rosto, baixei a
cabeça e vi o líquido branco e espesso na sua testa, nas suas
bochechas, nas suas pálpebras.
Minha respiração estremeceu.

Eu me vesti. Pensava: Está quase no fim. Quase no fim. Ele pegou


uma toalha que estava na mesa de cabeceira e que provavelmente
tinha deixado ali sabendo que eu viria, limpou o rosto e se dirigiu a
uma cômoda. Tirou dali um maço de dinheiro e se virou para mim.
Me deu cem euros; não me mexi. Ele sabia exatamente o que eu
esperava e por que não me mexia, mas fingia não entender. Ele
brincava comigo, estava ciente de que eu entendia o que estava
acontecendo, que sabia que ele estava brincando, mas que eu tinha
medo demais para dizer alguma coisa. Finalmente ele disse Você
fez as coisas só pela metade e por isso estou pagando só a metade.
Você deveria ter me comido, e não fez isso. Uma puta que não fode
não é uma puta. Você devia ficar feliz por eu te dar cem. Não disse
isso num tom agressivo, mas sim como uma constatação, como
alguém que lê uma regra administrativa ou os termos de um
contrato. Eu o via, tinha aprendido a identificar o nível de riqueza
de uma pessoa num só olhar, nunca me enganava, sabia que era
rico e que cem euros a mais não mudariam nada para ele, que cem
euros a menos não teriam nenhum impacto em sua vida. Meu
coração batia forte no peito (não era meu coração que batia, mas
todo meu corpo). Comecei a descrever a situação para esse homem
na minha frente, não sabia nem o seu nome, mas disse tudo, a
vergonha, o dentista. Ele disse que não era problema dele, Quando
fazemos as coisas pela metade ganhamos apenas a metade do que
merecemos. Na vida é preciso saber o que se quer. Você é novo,
tem tempo para aprender.
Foi depois dessa frase que decidi deixar para lá. Havia o risco de
que seus amigos na sala ao lado acabassem ficando preocupados e
entrassem no quarto para ver se estava tudo bem, eu não queria
que vissem meu rosto, Eles não podem ver seu rosto, Os outros
não devem ver seu rosto.

Peguei o dinheiro, saí, atravessei Paris imersa na noite e voltei para


casa. Do lado de fora as calçadas brilhavam por causa da chuva,
refletiam a cidade, como uma segunda cidade projetada no chão.
Eu caminhava. Não pensava que o detestava. Não pensava em
nada.
Quando passei pela porta do meu apartamento, sentei na
beirada da cama e chorei. Mesmo chorando eu não pensava em
nada. Eu não sabia mais meu nome. Não chorava pelo que tinha
acabado de acontecer, que não era tão grave, era apenas um
momento desagradável como algum que se pode viver em
qualquer situação; ou melhor, o que acabara de acontecer me
autorizava a chorar por todas as vezes na vida em que não tinha
chorado, todas as vezes em que me segurara. Pode ser que naquela
noite, naquele quarto, eu tenha deixado meus olhos chorarem
vinte anos de lágrimas não choradas.
Fui até o chuveiro. Não tirei a roupa. Deixei a água morna
correr e a senti escorrer sobre mim, da cabeça até os calcanhares.
Joguei a cabeça para trás, estiquei o pescoço e abri a boca, como se
fosse gritar, um belo e comprido grito, mas não gritei. A água
encharcou minha roupa, minha camiseta branca foi ficando da cor
da minha pele, minha calça ensopada de água estava mais escura e
mais pesada.
Fiquei um bom tempo debaixo do chuveiro, vendo a água que
escorria sobre mim. Quando saí já estava amanhecendo. Foi, me
parece, nesse momento que me perguntei se eu poderia um dia
escrever uma cena como essa, uma cena tão distante da criança
que fui e de seu mundo, não uma cena trágica ou patética, mas
acima de tudo radicalmente estranha a essa criança, e foi então que
prometi a mim mesmo que faria isso um dia, contaria tudo o que
me levara até essa cena e tudo o que aconteceu depois, como uma
tentativa de voltar no tempo.
1.
Elena
(explicações fictícias para meu pai)
Será que preciso contar para você o começo da história mais uma
vez? Cresci num mundo que rejeitava tudo o que eu era, e vivi isso
como uma injustiça porque — é o que repetia para mim centenas
de vezes por dia, até cansar —, vivi o mundo como uma injustiça
porque eu não tinha escolhido ser o que era.

Já contei, mas devo retomar tudo na ordem, prometi a mim mesmo


que faria isso, desde os primeiros anos da minha vida o problema
foi diagnosticado: quando comecei a me expressar, a aprender a
falar, a me mover no mundo, ouvi as interrogações se
multiplicarem à minha volta. Por que o Eddy fala assim, igual a
uma menina, mesmo sendo menino? Por que ele anda igual a uma
menina? Por que vira as mãos quando fala? Por que olha desse jeito
para os outros meninos? Será que ele não é meio viado?
Eu não tinha escolhido andar daquele modo, falar daquele
modo, não entendia por que tinha aqueles trejeitos — é o que as
pessoas da cidade diziam, Os trejeitos do Eddy, o Eddy fala cheio
de trejeitos —, não entendia por que esses trejeitos haviam sido
impostos a mim, ao meu corpo. Não sabia por que era pelos corpos
de outros meninos que eu era atraído e não pelos das meninas
como era esperado de mim. Eu era prisioneiro de mim mesmo. À
noite, sonhava em mudar, em me tornar outra pessoa, e talvez
tenha sido nesses primeiros anos de vida que a ideia da mudança
se tornou tão importante para mim.

À
Você foi um dos primeiros a ficar preocupado. À noite, quando
ia se deitar no quarto com a minha mãe, eu ouvia você dizer a ela
— não havia portas entre os quartos, comprar portas teria custado
muito caro para nós e você dividiu os quartos com cortinas achadas
no brechó da nossa cidade. Eu sentia o cheiro dos cigarros que
você fumava um atrás do outro na cama, a fumaça chegava até
mim, e principalmente ouvia sua voz, que viajava pelo interior da
escuridão, Por que o Eddy fala assim? Nós não criamos ele para ser
viado, eu não entendo. Ele não pode agir um pouco de maneira
normal?
Viado. Aos cinco ou seis anos entendi que essa palavra me
definiria e me acompanharia pelo resto da minha existência.
O que você não sabe, porque eu escondia de você, é que essa
palavra me seguia por todos os lugares, não apenas em casa, mas
também nas ruas da cidade, na escola, por toda parte, e que você
não era o único que estava preocupado.

(Ou será que você tinha entendido, mas não dizia para se proteger
da verdade?)

O que você também não sabe, é que o insulto fazia com que todo o
resto fosse insuportável para mim, a pobreza, nosso estilo de vida,
o racismo constante na cidade, como se a exclusão me obrigasse a
inventar um sistema próprio de valores — um sistema no qual eu
teria meu lugar.
Quando à noite minha mãe nos dizia que não tinha mais nada
para comer, porque faltava dinheiro, a fome ficava ainda pior por
causa do Insulto. Quando não havia mais lenha para aquecer a casa,
eu sofria mais violentamente de frio do que os outros por causa do
Insulto. Quando ouvia as mulheres na praça ou na padaria dizerem
Tem muito estrangeiro na França, a gente só vê negros por todo
lado, eu as desprezava e ficava espontaneamente do lado daqueles
que elas queriam oprimir e destruir.
Não sei como é possível ter ideias tão precisas e, de certa forma,
tão adultas e tão anacrônicas na infância, mas, me lembro, eu
queria ir embora da cidade e ficar rico, ser renomado e poderoso
porque achava que esse poder que adquiriria com a riqueza ou com
a fama seria uma vingança contra você e o mundo que me rejeitara.
Eu poderia olhar para todos aqueles que tinha conhecido na
primeira parte da minha vida, você e todos os outros, e dizer,
Vejam onde estou agora. Vocês me insultaram, mas hoje sou mais
poderoso do que vocês, vocês se enganaram me tratando como
fraco e me desprezando e vão sofrer por causa dos seus erros. Vão
sofrer por não terem me amado.
Eu queria vencer para me vingar.*

No fundo, o que você sabia? O que ignorava, o que escolheu


ignorar? Será que adivinhava como seria a minha vida? Será que se
perguntava?

Eu nunca disse a você que na escola, nas aulas de educação física,


quando os alunos tinham que formar times para jogar futebol ou
handebol, eu nunca era chamado, nenhum time me escolhia. (Não
fico triste contando isso agora para você, não quero que tenha pena
de mim, quero apenas que saiba — voltar no tempo.)
É uma das cenas mais banais e mais comuns de sofrimento de
uma criança, qualquer pessoa tem a impressão de ter visto ou
ouvido essa cena milhares de vezes na literatura ou no cinema e no
entanto era uma das cenas que mais me machucava.

A cena era sempre a mesma: duas pessoas eram escolhidas para


montar os times que se enfrentariam. O ginásio recendia a
plástico, o revestimento brilhante do chão soltava um cheiro forte
e repugnante que se misturava com o de suor. Os dois alunos que
eram designados para escolher os dois times, quase sempre dois
meninos, tinham que dizer um nome, um de cada vez, e quando o
nome de uma pessoa era dito essa pessoa ia para a fila atrás daquele
que a tinha chamado.

O grupo dos que não haviam sido chamados encolhia, os corpos à


minha volta desapareciam. No fim, quando só sobrava eu, quando
só meu nome não havia sido chamado, um dos dois capitães dos
times dava de ombros e dizia: “Tá bom, o Eddy então”, e eu sentia
a decepção dos outros de me ter entre eles, no time deles, todos os
olhares em cima de mim.
Eu não sofria por não ser escolhido, mas por ser visto pelos
outros como o que não era escolhido. Muitas vezes quando eu me
juntava ao grupo que fora obrigado a ficar comigo, alguém
cochichava “tem um viadinho no time, a gente tá frito, a gente vai
perder”. O adulto que nos monitorava fingia não ouvir.
A mesma cena se repetiu, exatamente idêntica, sem quase
nenhuma variação, várias dezenas de vezes durante toda a minha
infância.
O mesmo tom, a mesma voz, a mesma decepção quando meu
nome era dito.

Também não contei a você por que não quis ir esquiar com a
escola. Era uma viagem que a escola organizava anualmente para os
alunos do sétimo ano, uma semana esquiando por um valor
baixíssimo, só cinquenta euros, e esses cinquenta euros ainda
podiam ser pagos com auxílio social. Ali, quase nenhuma família
tinha meios para pagar uma viagem para esquiar, para a maioria
delas era a única vez em toda a vida que saíam de férias, a única
oportunidade de deixar por alguns dias o frio úmido do norte da
França.

Eu disse a você que não queria ir. Você insistiu. Disse não de novo
e me agarrei à minha recusa. Ninguém entendia. Eu mentia, dizia
que não tinha vontade e que esquiar não me interessava, e você se
irritava, dizia que eu não sabia, que não podia dizer que não
gostava se nunca tinha esquiado antes.

Não disse a você que era porque eu sabia que na estação de esqui
os dormitórios eram coletivos, que eu dormiria vários dias
seguidos com outros garotos da escola no mesmo quarto, e que
esses garotos eram os que me chamavam de viado no pátio da
escola, os que me davam tapas passando pelo corredor, entre uma
aula e outra, por nada, só por prazer, os que enfiavam bilhetes na
minha mochila, “Morre seu viadinho”, que suspiravam de
decepção quando tinham que me aceitar em seu time na educação
física.
Nunca disse a você que não queria ir esquiar porque tinha
medo. Porque esses garotos me davam medo. Não disse a você
que, claro, como qualquer criança, eu sonhava em ver a neve e a
montanha.
O que eu ainda não sabia é que os insultos e o medo iam me
salvar de você, da cidadezinha, da reprodução idêntica da sua vida.
Eu ainda não sabia que a humilhação ia me obrigar a ser livre.
A casa da infância.
Isso eu também não disse, nem a você nem a ninguém: quando
entendi que a única opção era fugir, procurei todas as saídas
possíveis.* Não passava um dia sequer sem que eu pensasse,
Tenho que ir embora, tenho que ir embora — essa frase se tornou
parte de mim.

Uma das minhas primeiras tentativas reais de fuga aconteceu no


dia em que um ator de televisão foi convidado a apresentar uma
peça na cidade — você se lembra?
Isso nunca acontecia, ninguém ia até lá, àquela região cinzenta
e fria, a dezenas de quilômetros da cidade grande mais próxima.
Quando vi o cartaz anunciando a vinda, peguei uma folha de papel
e escrevi Eu me chamo Eddy Bellegueule, quero ser ator, quero ir
embora desta cidade, faço tudo o que você quiser, fale comigo. Reli
e acrescentei meu número de telefone na carta, na parte de baixo,
à direita. Eu tinha doze anos. O dia todo esperei no
estacionamento do salão, ao lado da antiga metalúrgica, onde eu
sabia que o ator chegaria e onde seu carro ficaria estacionado,
alguém tinha me dito.
Esperei por horas sentado no cascalho, o sol batendo nos meus
antebraços, a poeira seca e branca das pedras entre meus dedos. O
carro apareceu, enfim; me levantei e olhei para as pessoas que
saíam, o ator e duas ou três outras, provavelmente assistentes; eles
tinham corpos de uma outra vida, privilegiada, confortável. Esperei
que se afastassem, depois cheguei perto do carro e pus minha
cartinha no para-brisa, presa entre o vidro e o limpador. Voltei para
casa, passei por você sem dizer nada, me deitei na cama e esperei
durante várias semanas uma resposta que nunca chegou.

Houve outras tentativas, outras investidas para me arrancar


daquela infância detestada, mas foi através da escola que veio a
libertação, aquele prediozinho de tijolos vermelhos e chapas de aço
que você frequentou antes de mim, o colégio dos Cisnes, que
acolhia todas as crianças das famílias da região (não todas, as mais
ricas frequentavam escolas particulares, na cidade).
Na escola eu tentava de tudo, me inscrevia em todos os grupos
e em todas as associações, um grupo de xadrez, uma oficina de
caligrafia, um grupo de quadrinhos, ainda que detestasse histórias
em quadrinhos.
Investia todas as minhas forças e todo meu tempo nessas
associações para não ficar sozinho durante o recreio e no intervalo
para o almoço, mas fazia isso também e principalmente por causa
de um sentimento vago de que nessas oficinas eu poderia
encontrar uma vocação ou descobrir em mim um talento que me
permitiria ir embora, viver outra vida, ficar rico e poderoso e então
alcançar minha vingança.
Foi através do teatro que fugi. Você sabe. Você logo percebeu
que o teatro ia nos separar, quando eu voltava dos ensaios você se
irritava, Não dá pra parar com essa bobagem de teatro. Uma das
professoras de francês tinha criado um grupo, uma vez por semana
no fim da tarde.
Cheguei antes de todo mundo na sala cinza oval ao lado da
biblioteca para o primeiro encontro. Essa mulher, Aude Detrez,
fez com que representássemos pequenas cenas que ela mesma
escrevera, e a surpresa apareceu ali, naquele lugar, na frente dela.
A verdade é que o teatro foi surpreendentemente fácil para
mim. Acho que é porque eu sabia interpretar um papel. Tinha
aprendido mesmo sem querer desde meu nascimento, tinha
interpretado papéis para tentar esconder quem eu era, para me
proteger. Tinha tentado esconder meu desejo por outros meninos
desde que nasci, me dedicado a ser mais masculino, a
corresponder às imagens mais caricaturais da masculinidade,
decorar os nomes dos jogadores de futebol, beber cerveja nos
pontos de ônibus da cidade com outros meninos, até tarde da
noite, fingir que me interessava pelas meninas, tinha feito tudo
isso para que as pancadas e os insultos parassem na escola, para
atenuar o máximo possível a presença de insultos na minha vida.
Desde que nasci tinha tentado fingir que era alguém que eu não
era, e por causa disso, graças a tudo isso, o teatro foi uma
obviedade, não exatamente uma vocação artística, mas
simplesmente a continuidade da minha vida.
Subi no pequeno tablado sob o quadro branco, representei o
esquete impresso no papel que eu segurava, não estava com medo,
e vi os olhos dos outros se arregalarem, sua surpresa, sua
admiração enquanto eu falava e interpretava. Nunca antes tinha me
sentido admirado. Quando terminei, todos aplaudiram, gritaram,
Bravo, bravo, ali, naquela salinha, e foi como se de repente o
barulho dos aplausos encobrisse o barulho de todos os insultos,
todos os que eu ouvira nos anos anteriores, aqueles insultos que eu
tinha aprendido ao mesmo tempo que aprendera a dizer meu
próprio nome. A professora disse Mas que talento — e sei que é
um jeito ingênuo de dizer as coisas, mas devo dizer, porque foi o
que senti naquele momento, quando ela me parabenizou pelo meu
talento, me senti amado. E eu soube, entendi que talvez fosse por
ali que seria possível fugir.

Depois desse dia me agarrei ao teatro com todas as minhas forças.


Queria que o teatro me salvasse da pobreza, da violência, da
cidade. A diretora da escola, a sra. Coquet, me disse que um
colégio de Amiens, a cidade grande a cerca de quarenta
quilômetros, oferecia uma formação em artes, que lá era possível
fazer teatro, que eu devia tentar. Treinei por meses, a filha da sra.
Coquet me ajudava, ela ensaiava as cenas comigo, Escuta, Nawal,
não tenho muito tempo, eu repetia essa frase à noite, centenas de
vezes, e então fiz a audição e fui aceito na escola. Eu era o primeiro
na nossa família a começar uma formação no ensino médio, quase
ninguém na nossa cidade atravessava essa barreira. Entendi que o
colégio simbolizava o início da nossa separação, sem volta possível.
Os primeiros dias no colégio foram os primeiros dias da minha
vida que passei longe de você. Tento me lembrar. Lá entendi que
existiam formas de distância muito mais profundas e muito mais
complexas do que a distância geográfica. Sei agora, se eu tivesse
acrescentado milhares de quilômetros entre nossos corpos, indo
morar numa cidade do outro lado do mundo, em outro continente,
não teria me distanciado tanto de você quanto ao atravessar as
portas daquele colégio a pouco mais de trinta quilômetros do lugar
onde você nasceu.
Primeiro foi a cidade. Você nunca queria ir até lá. Dizia que as
grandes cidades eram perigosas por causa dos estrangeiros, palavra
que usava para se referir aos negros e aos árabes, a todas as pessoas
que não tinham a pele branca, e por isso, mesmo que a cidade não
fosse tão longe, você se recusava a ir, ficávamos na nossa
cidadezinha, exceto pelas poucas idas ao supermercado.
Cresci com você no interior sem quase nunca me distanciar
dali, e ao chegar a Amiens descobri pela primeira vez a cidade, aos
catorze anos. Imagino que se tivesse sido próximo de você, se
nossa relação tivesse se parecido com a de pais e filhos que víamos
nos filmes e nas séries de televisão, eu teria lhe contado quando
voltava nos fins de semana como estava fascinado com aquela
descoberta, o que eu descobria, o trânsito, os sinais que permitiam
que os pedestres atravessassem as ruas, a possibilidade de entrar
nas lojas como se fosse a coisa mais fácil e mais natural do mundo,
sendo que entrar numa loja sempre tinha sido um acontecimento
para mim, como eu estava maravilhado — mas eu não dizia nada.

Mais importante, percebi que eu não me parecia com as outras


pessoas do colégio. Eles não tinham crescido no mesmo mundo
que nós, e por meio deles descobri, não meu pertencimento de
classe, já que no fundo sempre tive consciência disso, mas sim o
que esse pertencimento significava realmente, concretamente.
Nos corredores, eles falavam de teatro, de cinema, contavam das
viagens que tinham feito nas férias. Eu nunca tinha viajado para o
exterior, nunca tinha ido ao teatro ou ao cinema, ninguém à nossa
volta ia ao cinema, exceto a algumas projeções feitas três vezes ao
ano no salão de eventos da cidade.
Vendo-os, entendi de repente que minha mãe não tinha
estudado, que pronunciava mal as palavras, que em catorze anos de
vida em comum eu nunca a vira com um livro nas mãos. Entendi
que tomar banho, toda a família, usando a mesma água para
economizar, como fazíamos quando eu era pequeno, não era algo
normal — o último se lavava numa água marrom e terrosa —, que
no colégio em que eu acabara de entrar ninguém nunca tinha feito
essas coisas. Que não ter o que comer todas as noites e ter que
pedir comida para minha tia ou para a vizinha não era normal
também, que não era a vida como eu acreditara, mas uma vida, e
que as pessoas que me cercavam em Amiens tinham tido outra
vida, mais doce, mais privilegiada. Entendi que o fato de ter
assistido à televisão durante toda a minha infância sete, oito horas
por dia, me inscrevia numa história específica, a de pertencer ao
mundo dos deserdados, dos pobres, daquilo que os ricos viam de
fora como infâncias perdidas. Entendi que para eles estudar era tão
natural quanto não estudar era para nós. Foi só em Amiens que
enxerguei tudo isso. Foi necessário que eu me afastasse do passado
para entendê-lo, e se eu quisesse escrever uma autobiografia
cronológica, precisaria começar por Amiens e só contar a vida na
nossa cidade depois, porque precisei chegar ao colégio para
realmente enxergar minha infância.
Tudo, todos os detalhes, tudo me separava dos outros, até as
roupas; eles usavam jeans, camisetas polo, blusas de lã e casacos
compridos enquanto eu usava calças de moletom e casacos
esportivos, porque na nossa cidadezinha esse tipo de roupa era
valorizado; parecia com as dos rappers da televisão, parecia roupa
masculina, viril. No colégio nada daquilo tinha valor.
O encontro com Elena. É ela que produziria a ruptura definitiva
com você e com o mundo que eu tinha compartilhado com você.
Eu estava com Romain quando a vi. É estranho, tinha chegado
ao colégio com a ideia de começar uma nova vida e a primeira coisa
que fiz lá foi me definir em relação às expectativas do meu passado.
Na nossa cidade e na escola eu sempre tinha sido amigo das
meninas, Amélie, Blanche, Coralie. Nunca tinha conseguido me
aproximar de verdade dos outros garotos, mesmo que acontecesse
de passar um tempo com eles, e eu via que você tinha vergonha
quando eu o surpreendia em uma das conversas com a minha mãe,
nunca esqueci nem suas palavras nem seu tom: Por que é que ele
não joga futebol com os outros meninos? Por que é que ele sempre
brinca com as meninas? Na idade dele a gente tem amigos, isso
não é normal. Eu tinha sofrido com essa incapacidade e achado que
era um defeito que poderia corrigir em Amiens. Minha ideia era
simples, achava que minha chegada a um lugar em que não
conhecia ninguém e onde ninguém me conhecia permitiria que eu
me reinventasse; tinha achado que se eu controlasse
suficientemente meu corpo, meus trejeitos, minha voz (treinava
para minha voz ficar mais grave), ninguém no colégio poderia me
chamar de viado, a chegada ao colégio poderia ser o ponto de
partida de uma vida nova, o fim do Insulto, e eu poderia ficar
amigo dos outros meninos — é isso, na nossa cidade eu imaginava
que os meninos ficavam longe de mim por causa da minha
reputação, e que num lugar onde eu não tivesse uma reputação,
um passado e portanto não tivesse história, poderia recomeçar
tudo do zero.
Acabei me sentando ao lado do Romain quase por acaso durante
uma aula de francês e ele falou comigo. Enxerguei nele uma
chance de recuperar os anos perdidos; pensei, Vou finalmente ficar
amigo de um menino, e juro que essa frase me fazia tremer de
entusiasmo. Lutei e venci, fiquei amigo dele. Ele era alto,
musculoso, gostava de esportes, falava das garotas — era tudo o
que eu não conseguira ser. Quando eu falava com ele, prestava
atenção para manter a voz o mais grave possível, para não mexer
muito as mãos ao falar, para ser mais masculino. Tentava parecer
interessado naquilo que ele contava sobre as meninas ou sobre
esportes, e conseguia, você precisava ver, a ilusão funcionava, e foi
minha luta para que ele gostasse de mim, meus esforços e minha
dedicação que me levaram até esta cena, a que ele me mostrou
Elena; ela lia sentada no chão, encostada na parede de escalada,
entre o refeitório do colégio e a biblioteca, a cabeça curvada para a
frente e os cabelos pretos lhe escondendo a parte superior do
rosto; Romain me disse Tá vendo aquela ali? Todo mundo diz que
ela é louca. Outro dia fui falar com ela e ela me respondeu em
latim! Em latim!
Como eu poderia imaginar que uma das maiores revoluções da
minha vida começaria com palavras tão banais?
Ele me sugeriu uma brincadeira, eu devia ir falar com a Elena e
dizer que queria ir para a cama com ela. Olhei para ela — Elena —,
depois para ele, eu hesitava. Tinha medo do que ele me pedia, mas
não podia perder uma oportunidade de impressioná-lo. Disse a
Romain que tudo bem, eu ia fazer o que ele queria.
Segui na direção de Elena. Sentia os olhares de Romain e de
Steve — outro garoto que estava com a gente — na minha nuca, a
risada deles, e quando eu estava perto o bastante dela pensei num
jeito, numa frase para dizer. Não sabia como me comportar. Me dei
conta de que perseguir os outros exige alguma técnica, e eu não a
tinha. Tentei alguma coisa: E aí o que você está lendo. Ela me
olhou. Ela me olhou e estava desconfiada, mas me mostrou a capa
do livro, Viagem ao fim da noite, e para ganhar tempo — eu sentia
os corpos de Steve e Romain cada vez mais próximos de nós —
respondi Não conheço essa sua Céline. Ela riu, É um homem.
Céline é o sobrenome, Louis-Ferdinand Céline — e para esconder
a vergonha que me invadia procurei uma resposta, Não estou nem
aí pra literatura mesmo.
Cerrei os punhos dentro dos bolsos.
Agora Steve e Romain estavam bem atrás de nós. Eles riam
forçado esperando que alguma coisa acontecesse, mas estavam
cansando, eu precisava ser mais rápido. Respirei fundo, Na
verdade vim aqui pra dizer que quero te comer — uma frase tão
idiota, tão vulgar. Me virei para Romain e Steve. Eles riam. Elena
olhou para eles, depois para mim. Ela disse que eu era imaturo, se
levantou e saiu andando. Fingi que estava rindo, mas naquela hora
senti algo inédito; toda a realidade se transformava à minha volta;
não entendi logo de cara por que nem como, mas senti, eu não
queria mais rir com Romain e Steve, era tarde demais, eu não
queria mais estar com eles; só três minutos antes teria dado tudo
para fazê-los rir, mas agora estava acabado, eu queria gritar o nome
de Elena, correr atrás dela e pedir que voltasse, dizer que sentia
muito, que eu não tinha culpa, explicar a ela que eu só queria ser
amado, mas que tinha cometido um erro, porque era por ela que
eu queria ser amado.
Voltei a vê-la numa tarde em que estava na biblioteca. Eu passava o
tempo naquela biblioteca desde que parara de falar com Romain.

Eu estava fazendo uma pesquisa em um dos computadores do


colégio, nem sei mais o que procurava, quando Elena reapareceu.
Desliguei a tela e fui até ela. Ela suspirou, Se você veio de novo
fazer mais uma das suas brincadeiras idiotas pode sumir — mas eu
nem a deixei terminar. Disse que sentia muito.
Ela suspirou uma segunda vez, mas aceitou que eu ficasse perto.
Eu não disse mais nada. Peguei um livro numa das estantes e fingi
que estava lendo, sem entender como ela podia ficar tão
concentrada no livro que lia.

Depois dessa cena eu a via cada vez com mais frequência. Ela não
era da minha classe — seria no ano seguinte —, mas eu a
encontrava no intervalo para o almoço ou à noite, depois que o
colégio fechava. Era nesses momentos com ela que eu entendia a
que ponto Elena era diferente. Ela tinha lido centenas de livros, eu
não tinha lido nenhum. Ela tinha ido a Berlim, a Londres, eu nunca
tinha viajado. Quando ela voltava para o colégio na segunda-feira
me contava que durante o fim de semana tinha assistido a
concertos de música clássica com a mãe no teatro de Amiens, a
Maison de la Culture, e eu não conhecia nada daquilo, nunca tinha
ouvido falar dos compositores e das obras que ela citava.
O que aconteceu foi que eu quis me parecer com Elena,
imediatamente. Quis ter sua vida e participar daquele universo que
eu descobria por meio dela, não porque eu fosse mais sensível à
arte ou mais inteligente do que os outros, não porque estivesse
mais destinado que qualquer outro àquela vida, mas porque
percebia uma existência na qual eu poderia ter um lugar. Eu havia
fracassado em ser o filho que você gostaria de ter tido, havia
fracassado em corresponder às expectativas da nossa cidade,
fracassado com Romain, fracassava em toda parte e precisava
encontrar um tipo de existência em que meu corpo e minha
história pudessem ser possíveis, só isso.

Há verdades que às vezes nos atingem brutalmente, como o


desejo, e outras que vamos aprendendo com o tempo. Com Elena,
aprendia todos os dias um pouco mais a conhecer e a compreender
a pessoa que eu era, e o que eu tinha constatado ao chegar ao
colégio se confirmou: eu não havia tido uma infância, mas uma
infância de classe. Todos os meus gostos, todas as minhas práticas,
o que eu fazia, o que eu dizia, minhas opiniões, tudo era marcado
pelo passado. Eu tinha em mim a sua presença e a presença da
nossa família. Por onde devo começar? Especialmente durante as
refeições eu sentia a diferença e a vergonha. Quando comia com
ela no almoço, eu comparava o que ela comia e o que eu comia, e
era como se essa distância entre mim e ela simbolizasse todas as
distâncias entre a vida dela e a minha. Eu comia sanduíches
gordurosos, salgadinhos. Elena comia saladas, frutas ou doces
comprados nas padarias chiques da cidade. Às vezes ela olhava para
o que eu estava comendo com nojo e me dizia Você não devia
comer essas porcarias, vai estragar o corpo.

O que você estava fazendo no dia em que Elena me convidou pela


primeira vez para ir à casa dela? Quero dizer, a que ponto será que
nossas vidas diferiram naquele dia? Ela me disse que os pais não
estavam, que os dois estavam trabalhando. Segui Elena e quando
ela abriu a porta da casa entendi quem ela era, ou melhor, por que
ela era a pessoa que era; na casa havia milhares de livros, um piano
antigo, reproduções de quadros nas paredes. O piso era coberto de
tapetes, a casa, cheia de poltronas, como convites para ler e
refletir, como se a arquitetura da casa tivesse criado Elena; desde
que entrara ali seu corpo se transformara, tinha se tornado uma
função do lugar, como se o seu corpo fosse uma extensão daqueles
livros e daquelas obras de arte que o cercavam, como se eles
decidissem seus movimentos e entonações. Ela me convidou para
tomar um chá, e até um convite banal como esse, insignificante,
me transportava para outro mundo — em casa, minha mãe teria
oferecido uma Coca-Cola ou água com xarope açucarado, talvez
uma cerveja ou uma dose de pastis mas não um chá. Ela me serviu
o chá e me mostrou as estantes à nossa volta, as que eram
reservadas para os livros do seu pai, as da sua mãe. Li pela primeira
vez os nomes de Proust, Kundera, Marx, Arendt. Elena me
explicou, porque reparou meus olhares insistentes, que o piano era
da sua irmã, que seus pais queriam que ela tocasse também, mas
que nunca tivera talento para instrumentos musicais. Ela ria.

Mais tarde a mãe dela chegou. Perguntou quem eu era e Elena


respondeu que eu era seu amigo. Sua resposta, a palavra amigo, me
emocionou. A mãe dela me fez perguntas, me disse que se
chamava Nadya, e antes que eu fosse embora, quando me contava
sobre as exposições que tinha visto recentemente em museus de
Paris, quis saber se eu conhecia o pintor Modigliani. Disse que
não, claro, que não conhecia, e ela me deu um livreto sobre os
pintores da primeira metade do século XX, Picasso, Modigliani,
Soutine. Saindo da casa com o livreto na mão, me senti
transformado. Pensava: Quero que essa vida seja a minha a partir
de agora.
Eu gostaria de reformular o que tentava dizer a você um pouco
antes: por meio do encontro com Elena me conectei com um novo
modo de vida, com os códigos de uma nova classe social e com
tudo o que estava associado a essa classe, a arte, a literatura, o
cinema, porque tudo isso permitia que eu me vingasse da minha
infância, me dava um poder sobre você, sobre meu passado, sobre
a pobreza, e sobre o Insulto, e ao imitar essa vida, eu acessava um
mundo que sempre o intimidou e que você sempre,
implicitamente, reconheceu como superior (você não ficava
intimidado ao ouvir o médico da nossa cidade ou o professor com
seu belo linguajar?). Eu nunca tinha conhecido alguém tão
diferente de nós — e tão socialmente distante — e talvez tenha
sido isso que reconheci em Elena, desde a cena na parede de
escalada, a possibilidade de uma fuga total e absoluta.
Sentia que ao me apropriar da vida dela eu estava ganhando de
você. Quando saí da casa dela com o livreto sobre os pintores do
século XX pensei que você nunca soube que esses pintores
existiam, que nunca saberia, que então eu possuía alguma coisa
que você não possuía, e que essa nova posse me dava uma
superioridade sobre você e sobre toda a minha família que vingava
todas as vezes que eu fora humilhado (desculpe ter pensado assim,
mas eu não tinha escolha, eu precisava da arrogância e da violência
para me livrar do passado).
Elena se tornou um dado do tempo; sua presença o acelerava, sua
ausência o tornava mais lento — essa não é a própria definição do
amor e da amizade? À noite eu adiava o meu retorno ao dormitório
para caminhar em volta da catedral com ela ou perto do cais do
Somme. Eu caminhava, ela falava, tudo o que dizia me
transformava. Absorvia todas as suas palavras, queria reter tudo,
recuperar tudo, porque cada palavra que ela dizia era uma palavra a
mais que punha entre mim e você, entre mim e meu passado. Ela
tinha jeitos de ver o mundo, opiniões que eu nem poderia
vislumbrar, questionamentos sobre o casal tradicional,
considerações sobre o conflito na Palestina — eu nem sabia que
um lugar no mundo tinha esse nome —, teorias pessimistas sobre
o ser e sobre a existência inspiradas nos autores de literatura que
lia, Cendrars, Cioran, Keats. Não me lembro mais se eu sofria com
essa distância entre mim e ela, entre tudo o que ela sabia e eu não
sabia, ou se essa distância me dava força, justamente porque essa
distância e sua constatação confirmavam para mim que eu evoluía
num outro mundo.

O que sei é que eu estava cada vez mais consciente de que queria
mudar, que queria me parecer com ela, saber tantas coisas quanto
ela, poder responder e estar no nível dela nas conversas, e
inevitavelmente minhas primeiras tentativas foram ridículas; uma
tarde nos corredores do colégio ouvi uma menina falar do
compositor “Richard Wagner”. Era a primeira vez que ouvia falar
esse nome, mas vi no rosto da garota que falava dele o sentimento
de distinção que sobressaía quando dizia Richard Wagner. À noite
no dormitório me conectei em um dos computadores da sala de
informática e procurei quem era Wagner. Anotei num papel todas
as informações que podia, escrevi freneticamente, com as costas
curvadas, o olhar obcecado, e algumas horas depois, antes de ir
dormir, tentei decorar as anotações ainda frescas no papel. No dia
seguinte, entre duas aulas, disse ao primeiro garoto que passou ao
É
meu lado: “Você conhece Richard Wagner? É um compositor
incrível, adoro Tristão e Isolda”. Eu blefava. Ele me olhou surpreso:
Por que você está me dizendo isso?

Eu tentava ler os mesmos livros que Elena para parecer com ela,
imitava sua postura na sala de aula, sua escrita tortuosa, sentava ao
seu lado no teatro quando o colégio nos levava, uma vez por mês,
eu a seguia nas mostras de cinema de arte da cidade (também
sobre isso aprendi, sobre a existência dos cinemas de arte, e
repetia essas palavras sem parar na minha cabeça, porque pareciam
condensar em suas sílabas a cara da minha nova vida — eu andava
junto de Elena na rua e pensava em silêncio, vou a um cinema de
arte, vou ver cinema autoral).
O teatro, a literatura, o cinema, eu tinha o pressentimento de
que seriam as ferramentas que me levariam a uma nova vida.
Alice Walker escreveu “Quando deixei a cidade onde nasci no
estado da Geórgia com dezessete anos para ir à universidade,
experimentei o fim da minha sempre-precária relação com meu
pai. Aquele homem brilhante, com talento para matemática,
imbatível quando se tratava de contar histórias, mas que tinha
parado de estudar no ensino fundamental, subitamente percebeu
os modos burgueses de sua filha (burguesa apenas pelo fato de
estudar na universidade) como um obstáculo para qualquer forma
de relação simples, para não dizer um obstáculo aterrorizante. Eu
sofria por expressar minhas ideias numa linguagem que para ele
mais escondia do que revelava. Essa separação, que nenhum de nós
dois quis, é o que a pobreza engendra. É a própria definição da
Injustiça”.

Eu me lembro também com que velocidade o encontro com Elena


me separou de todos aqueles que tinham feito parte da minha vida
antes de eu ir para Amiens. Não foi só você. Quando eu voltava
para casa no fim de semana, não me reconhecia mais na realidade
ao meu redor; não foi preciso mais do que algumas horas com
Elena para que desmoronasse tudo o que eu havia aprendido entre
meu nascimento e meus catorze anos. De repente não conseguia
mais suportar as coisas que eu amara antes de entrar no colégio e
que compartilhava com a minha mãe e com você, apesar do que
nos separava, as horas passadas diante da televisão todas as noites,
sete, oito horas antes de ir dormir, ou os dias jogando video game,
as brincadeiras sobre as mulheres que você fazia na hora do
aperitivo quando aqueles que você chamava de “colegas” vinham
beber pastis com você, aquelas piadas que Elena achava vulgares e
violentas, as tardes na praça da cidade nos dias de feira e de
quermesse, que antes eu adorava — as poucas coisas que ainda nos
reuniam se tornaram impossíveis.

Eu detestava você por não poder lhe contar o que tinha sentido
quando entrei na casa de Elena pela primeira vez, o mundo que se
abria para mim, o continente que eu descobria por meio dela. Teria
adorado falar disso para alguém, acredito, poder falar da violência
por que passava meu corpo, não uma violência destruidora, não, ao
contrário, uma bela violência, a do desenraizamento, da
possibilidade de uma forma de liberdade.
Não encontro as palavras, não sei como dizer, eu sabia que
existiam outras vidas diferentes da nossa antes de conhecer Elena,
é claro, ricos e pobres, privilegiados e excluídos, pessoas à nossa
volta que tinham vantagens que você não tinha, como a
farmacêutica da cidade ou o prefeito, que tinham dinheiro e belas
casas, e que nós invejávamos, mas é preciso entrar nesses mundos
para sentir a que ponto a diferença é real, e a que ponto ela está por
toda parte, não apenas no dinheiro, mas nos jeitos de pensar, de
andar, de respirar, por toda parte. Queria ter podido descrever para
alguém essa distância e meu fascínio, o fato de compreender nosso
mundo por meio do mundo de Elena e o de Elena pelo nosso (mas
talvez eu também diga “queria ter contado isso tudo para você”
apenas porque é tarde demais, e protegido pela impossibilidade
radical, cronológica, possa me atribuir todas as mais belas e
poéticas intenções; talvez, no fundo, eu estivesse feliz guardando
essas descobertas para mim, e feliz com esse novo silêncio entre
mim e você).
Em casa me tornei um estranho. Você e minha mãe perceberam
essa mudança no meu jeito de ser. Eu imitava o que tinha visto em
Amiens, não dizia mais que queria comer, mas que queria jantar,
não queria mais ver televisão à noite. Não suportava mais as frases
feitas, “o que eles têm que fazer é voltar com a pena de morte” ou
“direita, esquerda, no fim das contas é tudo a mesma coisa”, ficava
irritado quando vocês diziam isso, suspirava “mas que bobagem”.
Estava magoado por não ter pais como os de Elena, que
questionavam todos os princípios em suas conversas, e tenho
vergonha de ter pensado isso porque sei que é falso, mas no meu
íntimo criticava vocês por não terem inteligência e complexidade,
diferentemente dos pais de Elena. É como se na casa de Elena eu
descobrisse emoções que nunca conhecera na minha infância, não
por causa da idade ou porque antes fosse jovem demais, mas
porque eu não sabia nem mesmo que existiam, a melancolia, o
êxtase artístico, o torpor, e talvez em parte seja verdade, talvez
algumas emoções sejam invenções burguesas (isso foi antes que eu
me desse conta de que a burguesia frequentemente é incapaz
também de sentir algumas emoções, como a raiva ou a compaixão,
mas eu ainda não enxergava isso). Dava conselhos à minha mãe de
como educar meu irmão e minha irmã menores, Ele não devia
assistir tanto à televisão, por que você não põe música clássica para
eles escutarem, ela se irritava. Eu empregava minhas novas
palavras, palavras sem importância, mas que me pareciam
distintas, fastidioso, extraordinário, bucólico, eu não dizia mais
oito horas da noite, mas vinte horas, as palavras de um outro
mundo, e minha mãe zombava de mim, “ele fala que nem um
médico”.
Escrevia mensagens para Elena para dizer que detestava a
minha mãe, que detestava você. Eu me queixava do fato de minha
família não entender o que eu estava me tornando, de que vocês
não podiam entender por que ninguém na família tinha estudado e
vivido o que eu vivia, mas não era verdade, minhas queixas eram
falsas, eu ficava lisonjeado com essa incompreensão e essa
distância.
Uma noite, depois do jantar, eu disse para a minha mãe, Vou
preparar o chá, você aceita? — não disse fazer chá, mas preparar o
chá, como Elena. Fiz isso para mostrar a nova pessoa que eu achava
que era. Minha mãe me olhou e riu, Cuidado, ele está fazendo
papel de Senhor esse aí agora, ele é nobre, ele prepara O chá. Ela
fingiu rir, mas vi a mágoa na sua voz e no seu rosto.
Você não dizia nada. Você assistia à televisão, em silêncio, como
sempre, e eu não sabia o que você pensava sobre a minha
transformação.
Depois da primeira vez na casa de Elena, passei a visitá-la com
cada vez mais regularidade. Sua mãe me convidava para comer
com elas no fim de semana, para dormir na casa no quarto de
hóspedes, no último andar, e eu fazia de tudo para voltar o mínimo
possível para nossa cidade, para me distanciar ainda mais
radicalmente da minha mãe e de você. Queria ouvir Elena falar,
mais e mais, estar em sua casa, escutar com ela os discos de Glenn
Gould ou de Keith Jarrett, que ela adorava, ou os de Brahms, que a
mãe dela admirava. Todo o resto tinha virado perda de tempo para
mim. Mesmo nas noites durante a semana eu evitava o dormitório
onde deveria ficar; Nadya me dizia que sua casa era minha também
e que eu podia passar o tempo que quisesse lá.* Enquanto
comíamos, a irmã mais nova de Elena tocava sonatas ao piano,
Nadya indicava livros para as filhas, García Lorca, Victor Hugo,
Sylvia Plath.

Na casa de Elena, especialmente, era preciso inverter tudo o que


eu tinha aprendido com você; o mundo dela era a inversão do
nosso. Você tinha me ensinado que era preciso ver televisão à
mesa, que a hora da refeição era quando se assistia à TV em família,
o jornal da noite e depois um filme ou uma série. Se minha mãe
tentava falar alguma coisa ou se eu quisesse contar uma história do
meu dia na escola, você se irritava, dizia para ficarmos quietos.
Dizia que ver televisão à noite era uma questão de educação. Em
casa havia quatro ou cinco aparelhos, você os achava no lixo e os
consertava, uma televisão em cada quarto, uma na sala.
Assistíamos de manhã, antes de ir para a escola, à noite, antes de
dormir, à tarde, durante os fins de semana. Na casa de Elena não
havia televisão na sala de jantar ou nos quartos, mais do que isso,
entendi que na família dela a refeição era o momento em que se
devia conversar, contar seu dia, seus projetos, expor ideias.
Na casa dela a refeição era uma cerimônia durante a qual era
preciso conversar, e o contrário é que seria falta de educação.
Como era possível que o modo de vida deles e o nosso fossem tão
simétrica e caricaturalmente opostos?
Eu via essa inversão em todos os níveis: entre nós um homem
devia se servir da comida várias vezes durante a refeição para
mostrar seu apetite e, portanto, sua força e sua masculinidade,
enquanto na casa de Elena fazer a mesma coisa seria visto como
gula, inapropriado e vulgar.
Entre nós era preciso comentar a refeição, você fazia isso, dizia
depois de comer Comi como um rei, na casa de Elena nunca se
falava da refeição, a não ser para cumprimentar Nadya pelos pratos,
uma ou duas frases apressadas. Não se falava do corpo, do
estômago, das funções fisiológicas, o corpo devia desaparecer — e
o mais estranho era que ninguém divulgava essas regras, elas
simplesmente existiam.

Mas não é sobre isso que quero falar com você. Escrevo para
contar sobre a primeira vez que senti minha existência se
contorcer dentro de mim. Foi numa noite na casa de Nadya, a
atmosfera era sempre a mesma, um ritual, como um sonho que se
reproduzia infinitamente: as velas, a música clássica ao longe na
cozinha, as garrafas de vinho à nossa volta, o silêncio entre as
nossas frases — não um silêncio como o que eu conhecia quando
minha mãe acabava de terminar a faxina da casa, quando você saía
para ir ao bar e ela adormecia no sofá, exausta, com a TV ligada sem
som, não era esse silêncio, mas um silêncio confortável,
privilegiado —, mesmo no silêncio não há igualdade.
Nadya me perguntou O que sua família faz da vida? Se não
estiver sendo indiscreta, claro. Não me dei a liberdade de
perguntar o mesmo a Elena.
Fiquei travado, paralisado. Algo em mim não queria dizer a ela
que você tinha sido operário na fábrica durante toda a vida até o
acidente que triturou suas costas e que o impediu de continuar,
antes de você se converter em varredor, ou que minha mãe
limpava o corpo de idosos doentes na nossa cidade, de repente, eu
não conseguia dizer nada disso. A vergonha era enorme. Eu me
sentia culpado pela minha história, como poderia contá-la, ali,
cercado pelas velas e pelo silêncio?
Pensei. Tinha certeza de que, ao contrário do que ela dizia,
Elena já tinha lhe contado, eu não poderia mentir (depois, em
Paris, farei isso, quando os homens que conhecer nos bares me
perguntarem o que meus pais fazem, responderei que você é
advogado ou professor universitário, a vergonha vai me fazer
mentir).
Então, optei pela estratégia inversa. Em vez de mentir ou de me
livrar da pergunta, respondi para Nadya, Venho de uma família de
alcoólatras e presidiários. Nadya ergueu as sobrancelhas. Não sei se
sua surpresa era verdadeira ou fingida. Continuei, Aposto que a
essa hora minha família deve estar assistindo a um reality show
idiota rindo sem parar e comendo o terceiro pacote de salgadinho
da noite. Aposto que meu pai deve estar bebendo seu oitavo copo
de pastis com as mãos em cima daquele barrigão enorme.
Eu tinha vergonha do que dizia, mas dizia. Você detestava
salgadinho, nunca comia, você bebia, é verdade, bastante, bastante
pastis, mas eu nunca usaria a palavra alcoólatra em relação a você,
era uma palavra que condenava, quando minha mãe a usava para
falar de você eu ficava com raiva dela, e agora eu a empregava,
exagerava, não mentia de fato, mas apresentava a realidade de uma
forma que a desagradasse, eu sabia disso, como se, no fundo, o
silêncio ou o exagero fossem a mesma coisa, como se não
responder ou exagerar fossem o mesmo gesto, o mesmo ato,
porque diante de Nadya os dois me permitiam manter meu
passado à distância.
Queria mostrar para Nadya que eu agora estava do lado dela,
contra esse passado, e para ser contra esse passado deveria rebaixá-
lo o máximo possível. Nadya sorriu, um sorriso crispado, como se
se preparasse para me ouvir dizer que tudo que eu tinha contado
era brincadeira. Eu me odiei, mas não podia parar, era tarde
demais, as palavras que eu dizia me desagradavam, mas ao mesmo
tempo, devo confessar, ao mesmo tempo me reconfortavam,
porque me tranquilizavam com relação a meu lugar no mundo. Eu
não era mais como vocês, minha mãe e você, é o que transmitia a
Nadya sob a superfície do que dizia, Não sou mais como eles.
Nadya sustentava meu olhar, muito tempo, tempo demais; ela
sustentava meu olhar para saber se eu falava sério e eu sustentava o
dela para que entendesse que sim.
Ela sorriu mais uma vez e disse: Ah, tenho certeza de que você
está exagerando, estou certa de que seus pais estão conversando ou
então se perguntando o que você está fazendo hoje. É o que ela
dizia, mas através dos seus olhos eu tinha a impressão de que ela
me suplicava: Diga para mim que você não está exagerando, diga
que é pior ainda.
Acrescentei: Eles não estão nem aí para mim. E não conversam.
Nunca conversam. O que diriam um ao outro? Estão vendo
televisão como sempre.
Nadya ergueu as sobrancelhas. Que horror. Eu sempre detestei
TV. Ela encheu meu copo, o vermelho do vinho cintilava à luz das
velas, as velas bruxuleavam na minha retina. Elena e seu pai
estavam em silêncio, eles nos ouviam, e durante esses instantes
em que Nadya concentrava sua atenção em mim, não havia
nenhum barulho, nada além do barulho da cidade, ao longe, na
noite.
Nadya respirou fundo ruidosamente e nós mudamos de
assunto. Foi a primeira vez que fiz isso. Dentro de mim, eu me
detestei. Pensei em você, na sua dor se tivesse ouvido o que falei,
na sua surpresa talvez, sua pergunta: Por que você está falando isso
da gente. Eu queria tanto ser aceito por Nadya. Eu queria tanto
pertencer ao mundo dela. Pertencer ao mundo dela era me salvar
da minha infância — é possível me perdoar? Sofri, mas depois,
quando fui dormir no quarto de hóspedes ao lado do quarto de
Elena, me deitei e fechei os olhos, em paz, com a impressão de
pertencer um pouco menos ao meu passado.
Me desculpe.
Apesar de tudo sei que vocês também estavam orgulhosos, você e
a minha mãe, orgulhosos de terem um filho que estava se dando
bem, que estudava, que era praticamente o único garoto da cidade
nessa situação, orgulhosos de terem um filho que, no fim das
contas, era um candidato à burguesia.
A mágoa e o orgulho coexistiam em vocês como as duas faces
de um mesmo sentimento. Quando iam pescar no fim de semana e
algum dos seus colegas que os acompanhava via que eu não ia
junto, que ficava sozinho em casa, e perguntava por quê, você
respondia que era porque eu preferia ler e estudar, e eu ouvia o
orgulho na sua voz. Ouvia o orgulho e o esforço para dizer isso da
maneira mais natural possível, como algo sem muita importância,
para que seus colegas não pensassem que você se achava superior a
eles.
Minha mãe pedia cópias dos meus boletins e andava pela cidade
com eles, mostrando-os para todo mundo com quem cruzava, dizia
que seu filho fazia “estudos avançados” (os estudos eram tão raros
que um simples exame final parecia ser “estudos avançados” para
ela). As outras mulheres tiravam sarro dela, até para mim elas
diziam, Sua mãe enche a gente contando a sua vida, mas ela não
lhes dava ouvidos, continuava, ela se sentia mais forte do que essas
mulheres, achava que os papéis que tinha em mãos eram a prova
de sua superioridade.
Ela se vingava de todas aquelas que tinham se achado
superiores a ela, a dona da mercearia que a olhava de cima quando
minha mãe pedia para pagar no dia seguinte, as secretárias da
prefeitura que a desprezavam por causa de suas dificuldades para
se expressar, ela me usava como vingança, para mostrar a essas
mulheres que elas estavam erradas em levá-la tão pouco em
consideração.

(Não é simples para mim fazer todas essas imagens ressurgirem, foi
necessário um trabalho enorme de memória para me lembrar, porque
durante anos enterrei essas cenas, que não correspondiam exatamente à
história que eu queria contar à época, aquela do filho que vence apesar
de tudo, e sobretudo apesar de sua família.)

Por que você não me dizia nada? Quando eu quase morri com uma
peritonite, durante as férias escolares, e precisei ficar várias
semanas no hospital, você foi me visitar e me deu revistas sobre
política, chocolate. Ninguém jamais lia nada na imprensa à nossa
volta, você nunca tinha comprado jornais ou revistas. Nem os
conhecia, e por causa desse desconhecimento, comprou revistas
de direita para mim, coisas que eu nunca lia, que a família de Elena
me ensinou a desprezar. Agradeci, peguei as revistas e você me
disse que tinha escolhido aquelas porque sabia que eu me
interessava por política. Você me disse que também traziam
reportagens sobre os reis da França, e que isso talvez pudesse
ajudar nos meus estudos.
Naquele dia ali, no quarto do hospital, entendi que talvez, às
vezes, você pensasse na minha vida, nos meus estudos e no meu
futuro.
Eu quase não via mais você. Passava minhas noites na casa de
Elena. Eu a conhecia havia seis meses e durante os jantares na casa
dela eu ficava cada vez mais à vontade. Não falava tão bem quanto
ela, é claro, não sabia tantas coisas quanto ela, mas me sentia
menos intimidado, e durante as conversas sobre literatura ou
cinema (as mais frequentes) eu falava de livros que não tinha lido,
de filmes ou peças a que não tinha assistido (uma expressão inglesa
diz: fake it until you make it, represente ser o que não é até que se
torne, até que seu papel se torne seu ser, e durante os jantares na
casa de Elena foi essa a experiência que vivi, eu interpretava um
papel, o dela, fingia ser ela, conversando como ela, com suas
entonações, porque esperava me transformar nela, de tanto imitá-
la). Tudo mudava em mim, e paradoxalmente, porque eu me
distanciava de você, você se tornava mais presente na minha vida.

Você se tornava uma presença negativa.

Eu ia ao cinema de arte da cidade com Elena e assistia às mostras


de Todd Haynes, Gus Van Sant, Orson Welles. Saindo das sessões
eu pensava em você: meu pai nunca fez isso, ele nunca viu isso.
Nunca vai saber o nome de Gus Van Sant. À noite na casa de
Nadya, durante o jantar, eu pensava: ele nunca vai viver ou sentir a
textura desses jantares, o piano, as velas, as conversas sobre
pintura, porque mesmo que ele tivesse essas velas ou ouvisse essas
notas, nada em seu ser o preparara para apreciar a beleza. Eu ainda
não enxergava nessa distância entre a minha vida e a sua um sinal
de injustiça, de violência de classe, mas apenas o sinal de que eu
estava destinado a uma vida mais bonita e mais grandiosa.

No entanto, e apesar de tudo, eu me transformava mais devagar do


que imaginava e fantasiava. Entendi isso numa noite em que eu
estava no quarto de Elena, é uma imagem que supera todas as
outras. Seus pais e sua irmã tinham ido dormir e, como em quase
todas as noites, saí do quarto de hóspedes na ponta dos pés para
me juntar a ela e dormir com ela. Durante todos esses anos o
quarto dela fez parte da arquitetura e da geografia do meu ser; um
pequeno cômodo sob os telhados, mal iluminado, com o teto
inclinado, quentíssimo no verão. Elena fumava com a janela aberta.
Naquela noite ela se virou para mim: Sabe, acho que agora você
deveria aprender a comer, acho que vai ser melhor para você.
Quando ela falou essas palavras senti meu corpo enrijecer. Sabia
exatamente do que ela estava falando. Nunca tinha pensado nisso
explicitamente, nunca tinha formulado essa ideia, mas sabia
exatamente do que ela falava. Ela continuou, Quero dizer, é para
você, na frente dos outros você pode ir mais longe na vida se
comer corretamente, e não como um interiorano. Senão as pessoas
vão ter uma péssima imagem de você. Fiquei quieto, escutando.
Espera aqui, não se mexe. Ela saiu do quarto, ouvi-a descendo as
escadas, dois andares até o térreo. Ela voltou com um prato,
talheres e a metade de uma baguete. Eu a via como uma visão da
minha vida futura. Tentei não perder nada dela, de sua respiração,
do movimento de seus gestos.
Ela cortou pedacinhos de pão de cerca de três ou quatro
centímetros e os dispôs dentro do prato, e então olhou para os
pedaços de pão, e depois para mim, sem dizer nada, como que
perguntando se eu tinha entendido. Balancei levemente a cabeça
em sinal de cooperação. Ela dizia: Olha, assim; pegou o garfo e a
faca, me mostrava como segurá-los, em que parte do cabo devia
colocar os dedos, e espetava os pedaços de pão com o garfo que em
seguida levava delicadamente à boca. É assim que a gente deve
segurar, não assim; ela disse essa frase e simultaneamente segurou a
faca e o garfo de um jeito grosseiro para me imitar, empunhou a
faca com a mão inteira, como se ficasse dentro de um punho
fechado, me mostrando que era daquele jeito que eu segurava os
talheres. Eu olhava seus dedos, queria guardar tudo, queria que
nenhum detalhe sumisse da minha memória. Ela recomeçou, eu
observei, e depois me deu os talheres e tentei reproduzir os
mesmos gestos. Ela me assoprava Não, assim não, faz assim com a
mão. Eu escutava, ela continuava, isso, muito bem, assim, muito
bem. Eu tinha a sensação de acelerar o tempo, de aprender em
alguns minutos o que o corpo dela aprendera em quinze anos, em
contato com sua família, pela repetição das refeições através dos
dias e das estações. Quando acabou o pão ela me mostrou como
dispor o garfo e a faca dentro do prato, a lâmina da faca dentro dos
dentes do garfo, em equilíbrio, como sua mãe fazia. Nos dias
seguintes, a cada refeição me esforcei para comer como Elena me
mostrara, os outros comiam e achavam que eu fazia a mesma coisa,
mas na verdade quando eu comia eu trabalhava, aprendia um novo
corpo.
O que a cena no quarto de Elena com os talheres me fez entender
é que o meu passado estava em mim, por toda parte, no meu jeito
de comer, mas também no meu jeito de andar, de me vestir, de
falar. Meu corpo contava uma história diferente daquela que eu
queria modelar por meio da minha vontade; não bastava conhecer
os nomes dos autores de romances ou ir ao cinema com Nadya e
Elena, mudar os assuntos das minhas conversas para me
transformar em alguém diferente. O que eu era estava gravado na
minha carne, na minha voz, nos meus movimentos, e decidi
transformar tudo em mim. Prometi a mim mesmo erradicar todas
as marcas do que eu tinha sido; me lembrei da primeira semana em
Amiens, quando uma garota tinha rido ao me ouvir falar no
corredor do colégio, por causa do meu sotaque do norte. Então
treinei. Todos os dias, treinava dizer as palavras sem sotaque;
repetia as palavras andando na rua, à noite antes de dormir, me
esforçava para controlar os movimentos e as contrações dos meus
lábios, da minha língua, da minha garganta quando me dirigia a
Nadya e a Elena, precisava ficar concentrado em cada palavra para
não vacilar, eu tentava imitar os sotaques da burguesia nos filmes
que via no cinema com elas (no colégio, alguns se davam conta
dessa transformação, como Étienne, um novo amigo. Ele dizia Por
que agora você está falando com esse sotaque de burguês ridículo?
— sendo que ele tinha esse sotaque, como se tê-lo adquirido da
família fosse legítimo e tê-lo adquirido por escolha e aprendizado
fosse ilegítimo e condenado ao ridículo).
Quando, nas conversas com os outros, a intensidade da minha
concentração diminuía e algum sotaque típico do norte
transparecia em minhas palavras, eu me desprezava, me insultava
em silêncio. Me xingava de caipira, de interiorano, me xingava
como me xingava quando criança logo que alguém me chamava de
viado, e eu repetia para mim aquele insulto durante horas, como se
o outro tivesse conseguido implantar em mim o Insulto, como se o
insultador tivesse o poder não apenas de insultar, mas também de
forçar o insultado a repetir o insulto para si mesmo, pela
eternidade, como se a violência do insulto fosse a de uma
cumplicidade forçada; eu me desprezava, mas não desistia nunca,
continuava a treinar, todos os dias, em todas as oportunidades, no
banho, no transporte público, preciso acabar com o sotaque, preciso
acabar com o sotaque — me lembro de uma noite, quase chorando,
em que eu tentava pronunciar jaune dizendo “jône” e não “jane”
como sempre tinha feito, tentava mas não conseguia, meu passado
estava por toda a minha boca, nos meus tecidos, nos meus
músculos, não entendia como a minha boca era tão rígida e tão
incapaz de pronunciar uma palavra, uma minúscula palavra, e
minha impotência fazia com que as lágrimas enchessem meus
olhos.

A risada também; quando dei risada com Romain durante os


primeiros dias no colégio, ele me dissera que eu ria muito alto, de
uma maneira muito bruta. Nas vezes em que ria com ele durante as
aulas ele me criticava: Ri mais baixo! Eu sabia que minha risada
estava ligada ao meu passado.
Ninguém precisava me explicar, eu via que o mundo era
organizado em torno de princípios binários: pesado/leve,
barulhento/silencioso, gordo/magro, evidente/sugerido,
insistente/sutil, grosseiro/distinto, que são também princípios de
classe, e que eu sempre estava, fatalmente, do lado menos legítimo
dessa estrutura.
O efeito Elena: apenas dois anos separam estas fotos.

Então, quanto à risada, fiz a mesma coisa que havia feito com o
sotaque: treinei. Decidi aprender uma nova risada, à força. Ficava
diante do espelho e todos os dias treinava rir de outra maneira,
mais baixo, com a boca menos aberta, menos expressiva. Treinava
rir uma risada mais adequada à minha nova vida, ao meu novo
mundo, à Elena e à urgência de minha metamorfose. No colégio,
quando estava com amigos, Morgan, Julie ou Étienne, aqueles com
quem eu passava mais tempo nas vezes em que não estava com
Elena, e eles diziam alguma coisa engraçada, tentava rir com
minha risada nova, mesmo nos momentos mais engraçados,
aqueles em que, por definição, uma pessoa se deixa levar, perde o
controle, eu devia ficar concentrado para rir a nova risada, aquela
que tinha inventado na frente do espelho.
Pouco a pouco, progressivamente, essa risada artificial,
mimética, tornou-se a minha risada — e hoje, quando ouço essa
risada, gravada num vídeo por exemplo, não posso deixar de
detectar algo artificial nela. Escuto na minha risada os vestígios da
sua fabricação, daquelas horas inteiras comigo como única
testemunha passadas diante do espelho, aprendendo minha vida
como se aprenderia um papel no teatro. Toda a minha vida se
tornava um esforço de concentração. Eu estava concentrado
quando falava, quando ria, quando espirrava, quando comia, tudo
isso se tornava um exercício para mim.

Eu também estava praticando esportes pela primeira vez, para


perder peso. Ia correr nos bosques atrás da cidade, porque cuidar
do corpo foi um valor que aprendi passando tanto tempo com
Elena. Perdi dez quilos em um ano. Queria comer coisas orgânicas,
saudáveis, leves. Ficava inebriado pronunciando essas palavras.
Elena pintou meu cabelo para que eu parecesse um pouco mais
com ela, para me distanciar um pouco mais de minha antiga
aparência; durante uma consulta médica, inventei um problema de
visão para poder usar óculos, como ela — e consegui. Tinha um
corpo esbelto, cabelos longos, óculos, não me parecia mais com
você.

Quando voltava para casa no fim de semana eu trabalhava na


padaria da nossa cidade. Vendia pão, assava folhados, transportava
centenas de baguetes do forno até a loja. Com o dinheiro, eu ia
com Elena ao cinema, comprava vinho para levar de presente para
Nadya quando jantava lá. Era um dos gestos da minha nova vida
longe de você, passar na loja de vinhos — a adega — antes do
jantar e comprar uma garrafa para levar, porque Étienne tinha me
dito que nunca se devia chegar a um jantar de mãos abanando, mas
sim levando flores ou vinho — na nossa cidade esse tipo de regra
não existia, e se levávamos qualquer coisa era para agradar o outro
e não por causa de uma regra. Eu atravessava Amiens carregando
uma garrafa de vinho que ia dar de presente e essa imagem de mim
mesmo me agradava, eu pensava: agora você venceu, agora você
tem uma outra vida. Um dia fui a uma loja de departamentos e
comprei roupas e sapatos. Queria me desfazer das minhas roupas
esportivas, dos meus moletons, e comprar calças jeans, camisetas
polo, camisas, compatíveis com meus novos jeitos de rir e de falar,
um casaco preto comprido que chegava até o joelho, sapatos que
na nossa família chamávamos de sapatos da cidade, pretos, com
saltinho, que pareciam de camurça.

Eu tinha uma voz nova, sem sotaque — pelo menos era o que eu
achava —, uma risada nova, uma aparência nova. Contemplava
meu reflexo no espelho e pensava: você é outra pessoa. Elena
continuava a participar da minha transformação, tinha me
ensinado a dar nós de gravata, os nós Windsor que ela achava os
mais bonitos, e eu usava para ir para o colégio. Na noite em que
Nadya me viu com uma gravata, ela quase pulou: Bem, Eddy, você
está se aburguesando. Ela não sabia que aquela era a frase mais bela
que poderia me dizer, e nos dias seguintes eu a repeti para mim
mesmo à exaustão.
Não acho que você se preocupava com isso, mas no primeiro ano
do colégio minhas notas eram medíocres, muitas vezes ruins,
porque eu não gostava de estudar, não sabia como fazer, como me
aplicar ou aprender. Entendia que não era apenas questão de
conhecimento, de coisas que sabia ou que não sabia, mas também
questão de método. Durante todos os anos em que vivi com você
fiz minhas lições no único cômodo comum da casa, você assistia à
televisão, fumava, dava de ombros dizendo que a escola não servia
para nada, e meus irmãos e irmãs conversavam enquanto minha
mãe cozinhava na mesma mesa, na mesa em que eu tentava
terminar a lição. Não havia escrivaninha nos quartos, que eram
pequenos demais, e de qualquer modo, como não havia porta, os
quartos eram tão barulhentos quanto a sala. Na escola, quando eu
entregava minhas tarefas cobertas de manchas de gordura e de
molho de tomate, porque minha mãe cozinhava na mesma mesa
em que eu estudava, a professora de francês ria, Pelo menos, sr.
Bellegueule, sabemos o que você comeu ontem, e eu ria também.

No colégio, quando eu me comparava com Elena, tinha a


impressão de que a relação com os estudos era uma coisa que
sempre nos separaria, apesar da minha transformação ter
começado com ela. Eu tinha dificuldade de entender essa força que
animava seu corpo quando ela se sentava diante de um livro ou de
uma folha de papel que preenchia com sua escrita, atitudes que, no
fundo, na nossa cidade e na escola sempre consideramos risíveis,
pretensiosas. Eu alternava fases em que me aplicava muito e outras
em que me desencorajava, mas nos dois casos minhas notas eram
ou médias ou medíocres. No entanto, uma nova forma de
evidência se impunha para mim: na família de Elena todo mundo
havia estudado, os estudos eram uma dimensão da vida quase tão
natural quanto comer ou respirar. Foi uma surpresa para mim,
quando cheguei a Amiens, ver que para os filhos da pequena
burguesia da cidade estudar não era uma coisa que se questionasse,
até para aqueles que não tinham notas boas ou que não gostavam
da escola, enquanto na nossa cidade estudar devia ser resultado de
uma vontade, de uma luta, e que, para aqueles que não tinham
boas notas, o óbvio era não estudar.

Então, quando compreendi, provavelmente por meio de uma


infinidade de pequenos momentos acumulados, frases,
constatações, que o sistema escolar era uma condição absoluta da
minha transformação, tanto quanto as roupas que eu vestia, passei
a me dedicar a isso com todas as minhas forças.
Eu imitava Elena, seu jeito de viver e de estudar. Como dormia
na casa dela, tinha um quarto e uma escrivaninha para estudar. Eu
me trancava, escrevia, reescrevia minhas tarefas na casa que Nadya
mantinha totalmente silenciosa durante o período do trabalho
escolar, duas ou três horas por dia.
Na verdade, pela primeira vez eu interiorizava o ritmo desse
silêncio em meu corpo, todos os dias, sua necessidade. Ele se
tornou parte de mim e do meu ritmo biológico, esse ritmo que eu
nunca tinha experimentado porque esse silêncio nunca existira na
nossa casa.
(Mais tarde, quando eu romper com Elena e sua família, a mãe
dela me dirá: Você se aproveitou de tudo o que lhe transmitimos.
O que quer dizer se aproveitar? Será que Elena não se aproveitou
também do que sua mãe lhe transmitiu? De seu meio social?
Será que há indivíduos para quem se aproveitar é legítimo, e
outros para quem é um escândalo, uma espoliação?)

Eu me dedicava, mas fracassava. Estava muito atrasado em ciências


e em matemática e não conseguia recuperar o atraso. Estava
melhor em francês e em história graças a todas as referências que
aprendi com Nadya e Elena, e podia constatar a que ponto o meio
familiar favorece os estudos.
Foi durante o segundo ano em Amiens que algo mudou. Era
preciso escolher disciplinas e eliminar outras. Pude abandonar
ciências e matemática quase totalmente e me concentrar no teatro,
na literatura, na história, nas línguas. Eu continuava não lendo,
resistia aos livros e à leitura, mas continuava a ir ao cinema com
Elena, e a imitava até em suas tentativas de escrever. Ela queria
escrever; redigia pequenas peças de teatro que me dava para ler e,
sem que eu percebesse, nos dias seguintes, eu as copiava quase
exatamente, achando que estava produzindo algo original.
Todos esses elementos, a familiaridade com a cultura adquirida
com Elena, o ritmo de estudo, a ideia de que o colégio me salvaria,
o abandono das matérias para as quais eu estava perdido, tudo isso
fazia com que eu ficasse cada vez mais adaptado ao sistema escolar.
Eu progredia, e no fim do segundo ano em Amiens, minhas notas
se tornaram melhores do que as de quase todos os outros da minha
classe.
Escuta.

Foi numa noite no quarto de Elena. Estou deitado perto dela.


Dormimos os dois ali na sua cama minúscula quase todas as noites,
meu corpo junto do dela. Ela fuma. Ela abre a janela do quarto para
que seus pais não sintam o cheiro do cigarro, e o frio da noite entra
pela janela, e pousa no nosso rosto e nos nossos braços.

São duas ou três horas da madrugada, os pais dela dormem, nós


jantamos juntos e bebemos bastante vinho. Viro minha cabeça na
sua direção, vejo o cigarro entre seus dedos, a fumaça que sai da
sua boca e que voa para fora.
Ela sugere que eu fume. Digo que sim, num tom seguro, como
se eu já tivesse feito isso. Ponho o cigarro entre os lábios, o cigarro
passa dos lábios dela para os meus e eu aspiro a fumaça. Meu corpo
tenta tossir quando a fumaça se espalha em mim, mas eu o impeço,
e não tusso. Devolvo o cigarro a Elena. Ela o pega sem me olhar,
com os olhos voltados para o teto.
Ela me diz: Será que ficaremos sempre juntos? Eu a escuto.
Quero dizer, a gente nunca vai se largar, você e eu, é claro, a gente
nunca vai se largar, estamos ligados por um pacto.
Acho que quando ela diz essa frase, já tenho consciência de que
é uma frase da adolescência, e ela também, já sei e ela sabe que são
as grandes declarações que fazemos à noite depois de ter bebido
demais, até uma certa idade, mas isso não me incomoda, pelo
contrário.
Respondo: É claro. A gente nunca vai se largar.
Tenho um pouco de vergonha porque não sei fazer frases tão
bonitas e poéticas como Elena. Minha vergonha se dissolve na
fumaça ao nosso redor, mistura-se à noite, o vinho em minhas
veias a torna mais suave. Ela retoma: Vamos morar juntos e
ninguém vai entender a nossa relação porque ela não vai ser como
as outras.
Ela desenha nossa vida, Eu vou ser jornalista e você vai ser
professor de história. A gente vai morar numa casa grande meio
em ruínas com milhares de livros dentro, empilhados uns sobre os
outros. À noite, a gente vai ouvir música clássica e abrir uma
garrafa de vinho e deitar juntos para escutar música. Às vezes, a
gente vai dançar. Ninguém vai entender.
Quando ela acaba essa frase, uma música nova começa a tocar
nas caixas de som sobre as prateleiras, entre os livros. Digo a ela
Vamos dançar? Nunca fizemos isso antes, ela não está à vontade
com seu corpo, ela não dança nunca, mas eu peço e ela diz que
sim, eu me levanto e seguro sua mão e danço com ela, no meio do
quarto bagunçado no último andar sob o telhado, e dançamos
muito tempo, muito tempo, apenas nós e a música à nossa volta,
na noite, como se nada mais existisse neste momento além dos
dois corpos um contra o outro, sem história, sem passado, sem
medo, sem lembranças, sem amanhã.

Conto essa cena para você porque, relendo o que escrevi até agora,
vejo que fatalmente seleciono momentos em minha história e
esqueço de outros. Há coisas que não sei ou que não quero contar,
e não quero que você ache que eu via Elena apenas como uma
ferramenta de reaprendizagem de mim mesmo, não quero que
imagine que minha relação com ela fosse instrumental. Se essa é a
impressão que ressalta do que escrevi até agora, então fracassei. Eu
amava Elena, eu a amava mais do que tudo (mesmo escrevendo
estas palavras me sinto um idiota). Não era uma relação amorosa,
não havia desejo entre mim e ela — eu desejava homens, era claro,
mesmo que escondesse isso —, mas o que se passava entre nós
ultrapassava a amizade. Eu a amava.
E então, teve o nome. Minha mãe disse que essa foi a parte mais
difícil para você durante a minha mudança, foi a única vez que ela
mencionou uma de suas reações relacionadas à minha
transformação.
Uma noite cheguei na casa de Elena às vinte horas, como
combinado. Usava uma de minhas camisas novas, que eu lavara
para tirar o cheiro impregnado de loja, mas não tinha passado e, no
caminho para a casa de Elena, fui esticando o tecido com todas as
forças para tentar fazer as dobras sumirem. Toquei a campainha e
foi Nadya quem abriu a porta.
Oi, Édouard.
Fiquei imóvel. Era a primeira vez, eu não entendia por que ela
me chamava por um nome que não era o meu. Ela notou a surpresa
no meu rosto.
Você se incomoda se eu chamá-lo de Édouard? Eddy, no fundo,
é um diminutivo de Édouard, Eddy não é um nome de verdade, e
eu prefiro Édouard, acho bem mais elegante. Você se incomoda?
Eddy. Era o nome que você tinha escolhido por causa dos filmes
americanos ou das séries que você adorava ver na TV, era como se
chamavam os vilões e os bandidos nesses filmes, e foi por isso que
você gostou dele, era um nome masculino, um nome de homem
durão. Nadya achava que o nome que você tinha escolhido para
mim não era um nome. Respondi para Nadya que não me
incomodava. Ela me batizou. Ela não sabia que esse nome um dia
seria o meu, para sempre, que quando eu fosse embora de Amiens
o registraria na minha carteira de identidade.
Ela me convidou para ir com ela até a sala onde Elena e a irmã
estavam
Édouard chegou
Elena olhou para a mãe, depois para mim
Édouard?
Ela deu de ombros. O.k., tá certo, Édouard, então. A partir
dessa noite Elena nunca mais me chamou de Eddy, ela disse nessa
mesma noite depois do jantar, deitada na sua cama ao meu lado,
que concordava com a mãe, que esse nome combinava mais
comigo, que é um nome de príncipe e de rei.
Nadya pediu para a irmã de Elena tocar alguma coisa ao piano,
Por que você não toca um trecho para dar as boas-vindas ao
Édouard em nossa casa. Ela se levantou, sentou-se ao piano e
começou a tocar. A música invadiu a sala, bela, profunda e,
ouvindo-a, meu novo nome reverberava em mim.

Foi para minha mãe que contei primeiro. Ela tinha acabado de se
separar de você, fazia só uma semana, ela tinha embalado todas as
suas coisas em sacos de lixo e jogado tudo na calçada, dizendo a
você que não voltasse nunca mais. Eu disse a ela que a partir
daquele dia queria que me chamasse de Édouard. Ela riu, Senhor
Édouard é nobre agora, sempre me chamando de Senhor para
caçoar de mim — e depois mudou de assunto. Não sei se ela ficou
magoada ou se pensou que era apenas uma loucura passageira, uma
revolta de adolescente.
Quando penso nisso agora, acho que quando ela disse que você
tinha ficado magoado com minha mudança de nome, talvez
também fosse dela que quisesse falar, talvez ela tivesse falado de
sua mágoa para não falar da mágoa dela mesma.
Conversa imaginária diante do espelho

Ainda tem uma coisa bem misteriosa... se você era tão diferente
no início, como essa sua aproximação de Elena e de seu universo
pôde acontecer tão rapidamente? Por que será que, no começo,
suas tentativas frustradas para se parecer com ela não o afastaram
dela?

Eu disse, eu repeti, na escola e na nossa cidade, que na maior parte


do tempo ficava sozinho porque ninguém queria brincar com
aquele que era visto como o viadinho. Na escola, no intervalo, eu
vagava pelo pátio. Às vezes conseguia ficar um pouco com um
grupo de alunos, mas sentia que minha presença pesava.
Eu me lembro, fingia que estava procurando uma coisa na
mochila ou no armário durante todo o recreio, para que os outros
acreditassem que eu estava ocupado e que por isso estava só, para
fazer com que acreditassem que se eu quisesse poderia estar com
as outras pessoas. E depois ficou muito difícil sustentar esse jogo.
Eu não podia procurar alguma coisa na mochila ou no armário
todos os dias do ano todo, ninguém acreditaria nisso. Então
comecei a ir à biblioteca, em todos os intervalos, quando não
conseguia fazer outra coisa. Entendi que podia passar meu tempo
lá, a biblioteca estava quase sempre vazia, eu me sentava com um
livro que não lia e podia fingir que lia e passar todo meu tempo lá
sem que ninguém pudesse suspeitar da minha exclusão.

Mas você passou meses na biblioteca sem ler nada? Os outros não
achavam isso estranho?

Devagarzinho me aproximei da bibliotecária. Acho que ela se


entediava um pouco às vezes e ficava contente por ter alguém com
quem conversar. Ela se chamava Pascale Boulnois. Com o tempo,
tornou-se um hábito, a cada recreio, cada tempo livre, eu ia à
biblioteca conversar com ela. Ela me falava de livros, mas também
de história, de política. Ela e eu nos tornamos amigos, mesmo eu
tendo onze anos e ela trinta e cinco, alguma coisa nasceu entre
nós, acho que dá para dizer que era amizade. Quando ela saía de
férias me mandava cartões-postais, mensagens de texto. Eu os
recebia e era como uma vingança contra minha família, em mim,
era como a forma embrionária do que eu sentiria depois com Elena
e Nadya, quando recebia cartões-postais eu dizia a mim mesmo
que pertencia a outro mundo diferente do da minha família, e que
eu me parecia mais com Pascale Boulnois do que com eles. Foi
assim também que comecei a mudar. Porque eu não tinha escolha.
Comecei a ir à biblioteca só porque não tinha amigos no pátio, para
me esconder, é assim tão idiota e simples. E o que acho é que o
contato prolongado com essa mulher mais velha e culta
desencadeou o início de uma metamorfose no meu jeito de ser e
no meu jeito de pensar, que ela de algum modo me preparou,
intelectualmente, psicologicamente, para o encontro com Elena
alguns anos mais tarde, e é por isso que o encontro com ela pôde
ser tão óbvio. Aliás, também foi Pascale Boulnois que me
incentivou a ir estudar em um colégio em Amiens, quando isso
não era comum para um aluno vindo de uma escola como a minha.
E na cidade? Você estava falando da cidade também agora há
pouco.

O que é incrível é que exatamente a mesma coisa aconteceu na


minha cidade. Nas quartas-feiras à tarde, quando não havia aula, as
outras crianças da minha rua iam jogar futebol e não me
convidavam. Por causa disso eu ia à biblioteca recém-inaugurada,
era um pequeno celeiro de cerca de trinta metros quadrados
reformado pela prefeitura. Eu ia para não ficar sozinho. E lá fiquei
amigo da bibliotecária, Stéphanie Morel. Como Pascale Boulnois,
ela me falava sobre política, sobre o mundo. Eu gravava fitas
cassete para ela, me lembro, com músicas que eu cantava e dava
para ela ouvir, sonhava em ser um cantor famoso, assistia a todos
os reality shows e a todos os programas de calouros, ela me
incentivava, me dizia que eu ia ficar famoso um dia. Ela tinha trinta
anos, eu tinha dez ou onze, e ela tornou-se minha amiga.
Posso me desviar um pouco da história? Um dia o prefeito da
cidade decidiu demiti-la, e esse foi um dos dias mais tristes de toda
a minha infância. Eu era criança, mas fiz um abaixo-assinado
contra o prefeito e rodei toda a cidade, durante vários dias, bati em
todas as portas, todas as casas, o abaixo-assinado exigia que o
prefeito não demitisse Stéphanie. Eu voltava para casa às dez, onze
da noite, com minhas pilhas de assinaturas, os sapatos sujos de
lama porque na época, no começo dos anos 2000, muitas das
calçadas da cidade eram ainda de terra, não eram concretadas,
como se a cidade vivesse num tempo diferente do resto do mundo.
Quando achei que tinha batido em todas as portas, sem exceção —
tinha recolhido centenas de assinaturas, mais da metade da
cidadezinha —, levei o abaixo-assinado para Stéphanie, e deixei
um outro exemplar na caixa de correio do prefeito. Stéphanie
chorou. Ela me disse que era tarde demais, e eu chorei com ela, na
sala de sua casa, ao lado da lareira que exalava um cheiro de cinzas.
Detesto as histórias de infâncias salvas pelos livros e pelas
bibliotecas, acho que são ingênuas. No entanto, devo dizer, essas
duas mulheres, Stéphanie Morel e Pascale Boulnois, são parte
daquelas que me salvaram, sem as quais eu não teria conseguido
fugir, inventar uma nova vida para mim. Sem elas o encontro com
Elena nunca teria acontecido.
As emoções contêm nelas mesmas a possibilidade de sua própria
mutação, o amor em ciúme, o ressentimento em ódio, a
preocupação em angústia, o desejo de vingança em desejo de
revanche. Com o tempo — especialmente durante o último ano no
colégio —, quando eu já estava mais integrado ao mundo de
Amiens, algo mudou, a mutação ocorreu em mim, quase
imperceptível em seu movimento: eu não queria mais apenas me
parecer com os outros, queria ir mais longe do que eles. Queria
mostrar a eles que eu podia fazer coisas que nenhum deles
conseguiria fazer, realizar proezas e alcançar o que nunca
pensaram que poderiam alcançar. Eu dizia isso a Elena e ela me
incentivava: Prove a eles que você é melhor do que eles.
O que aconteceu foi o seguinte: o desejo de vingança contra
minha infância, aquele que me levou a Amiens, transmutou-se em
desejo de revanche — não apenas contra minha infância, mas
contra o mundo todo. Quando eu pensava no futuro, não pensava
apenas em você, na nossa família e na minha obsessão de me
diferenciar do mundo que havíamos compartilhado, mas em todos
os outros.
Bastava eu encontrar uma pessoa nova e ela me falar de suas
ambições, de seus projetos para que eu pensasse: tenho que ir mais
longe. Na vez em que uma garota do colégio me disse que sonhava
em entrar na Universidade de Oxford, dizendo que era uma das
maiores do mundo, passei a noite na internet procurando o que era
a Universidade de Oxford, dizendo a mim mesmo que eu também
poderia entrar lá se quisesse e que fazendo isso eu surpreenderia
Elena, Nadya, todos os meus amigos de Amiens, e que a surpresa
deles se irradiaria por toda a minha vida desde meu nascimento.

Uma questão tornou-se central em minha vida, ela concentrou


todas as minhas reflexões, ocupou todos os momentos em que
estava sozinho comigo mesmo: como eu poderia realizar essa
revanche e por que meios? Tentei de tudo. Como no colégio,
passei a participar de todos os clubes, todas as associações, o
comitê de leitura, o clube de haicais, o ateliê de cinema. Eu queria
existir e existir era me destacar. Quando precisaram que um aluno
entre mais de mil escrevesse e lesse um discurso sobre a
participante da resistência na Segunda Guerra Mundial, Madeleine
Michelis, que dava nome ao colégio, eu me candidatei e li o
discurso que eu mesmo escrevera diante do colégio inteiro. É
idiota, mas me senti importante, eu é que tinha escrito aquele
discurso e nenhum dos outros mil alunos que, no entanto, tinham
nascido com muito mais oportunidades, cultura geral e facilidades
de linguagem. Eu fazia de tudo para ser eleito para todos os
conselhos de administração, todos os conselhos acadêmicos, todas
as instâncias administrativas de que um aluno podia participar e
ficava maravilhado quando entrava nas salas de reunião.

Quando as datas das provas finais foram anunciadas, achei que era
preciso conseguir ultrapassar todos os outros — você não sabe
nada disso, nada do que se passava dentro de mim naquela época.
Durante dois ou três meses antes dos exames estudei com todas as
minhas forças, até tarde da noite, na hora do almoço, de manhã no
ônibus. Passava meus fins de semana com Elena na biblioteca
municipal para revisar a matéria, amigos nos convidavam para ir ao
parque com eles passar o dia, era primavera, o tempo estava bom, e
eu me sentia orgulhoso de dizer não, dizer que preferia estudar. Na
manhã em que o resultado ia sair, fui com Elena esperar no
McDonald’s perto do colégio. Ela tinha medo de decepcionar os
pais, eu tinha medo de fracassar no meu sonho de revanche. Ela
segurava minha mão por baixo da mesa em que tomávamos café
em copos de plástico. Ela passava a mão nos meus cabelos, dizendo
vai dar certo, vai dar certo. Quando chegamos à rua do colégio,
procurei meu nome e o de Elena nas folhas coladas nas paredes e
vi que eu tinha passado e ela também. Recebi uma distinção, nós
gritamos de alegria e ela me abraçou. Sua mãe, Nadya, sugeriu
fazer uma festa à noite na casa delas, e nessa noite decidi que me
inscreveria no Departamento de História da universidade, como
Elena, para imitá-la. Eu ia me tornar universitário, e a palavra
universitário me separava radicalmente de você e de nosso mundo,
na nossa cidade alguém que dizia Sou estudante universitário era
como alguém que dizia Minha casa de campo ou Minha empregada,
como uma expressão que marcava uma fronteira nítida, definitiva,
intransponível — e eu passava para o outro lado dessa fronteira.
E havia, sobretudo, a política. Durante o segundo ano em Amiens
eu tinha me filiado a um partido de extrema esquerda. Fiz isso
contra minha infância e contra nossa cidade, para continuar me
diferenciando, porque na nossa cidade a maioria dos habitantes
apoiava os partidos de extrema direita, e em todos os lugares, na
padaria, na praça da igreja, nas ruas, as mesmas frases eram
repetidas, sempre: A gente não está mais na nossa casa, Aqui não é
mais a França é a África, e na minha metamorfose eu quis rejeitar
todas essas ideias que minhas noites na casa de Nadya me
ensinaram a identificar como primárias. Fiz isso, claro, por não
gostar da injustiça e da pobreza, porque as conhecera e vivenciara
no meu corpo. A terceira razão, a menos nobre, é justamente
porque a política me permitia existir aos olhos dos outros e então
ir mais longe na minha revanche — eu teria preferido dizer a você
que meu engajamento político era ligado unicamente à minha
revolta contra o mundo, mas seria mentira, devo contar para você
o que, por definição, é o mais difícil de contar, o menos
confessável. Alguns meses antes dos exames um movimento de
protesto contra o governo se formou; eu participava, organizava as
reuniões, as manifestações, punha em contato diferentes colégios
da cidade para elaborar as estratégias. Pouco a pouco, me tornei
um dos líderes do movimento. Eu pedia a palavra ao microfone
diante de centenas de pessoas antes da saída das manifestações,
segurava bandeiras na frente das marchas, os jornais locais me
entrevistavam — até o dia em que recebi o convite para um debate
na televisão, pouco antes da minha mãe expulsar você de casa,
quando você ainda vivia com ela. Era um programa da TV local, um
programa a que grande parte dos habitantes da nossa cidade
assistia, a que toda a nossa família assistia.
Eu lhe disse que tinha sido convidado, que tinha aceitado, e
você se viu diante de uma situação paradoxal: detestava meu
engajamento político de esquerda, pois era oposto à sua visão de
mundo — você não era idiota e compreendera que um dos
objetivos era me distanciar de você —, mas a TV sempre tinha sido
o centro da nossa vida, ela nos fascinava. Era ela que nos ajudava a
lutar contra o tédio, que nos ligava ao mundo, e graças a esse poder
que tinha sobre nós você não podia deixar de sentir uma forma de
respeito e de admiração pelas pessoas que via na tela.
Quando contei para você que eu tinha sido convidado, vi a
emoção no seu olhar. Você provavelmente pensou que seu filho
tinha se dado bem, mais do que poderia imaginar. Seu filho estaria
na TV, os vizinhos iam vê-lo. Então você cedeu, apesar de tudo o
que detestava em meu engajamento.

Foi minha mãe que me contou o que aconteceu em seguida. Na


noite do debate você reuniu dois ou três de seus amigos para que
viessem assistir à TV com você. Comprou pastis e uns pacotes de
biscoitos salgados. Minha mãe me disse que você dispôs as
cadeiras em semicírculo na sala, diante da tela, como no cinema, e
que durante todo o dia não parou de sorrir.

À noite seus amigos chegaram. Eles se sentaram, você os serviu e


vocês esperaram.
Eu, por minha vez, entrei nos estúdios de televisão, me levaram
a um camarim onde fui maquiado, eu tremia de emoção, por estar
naquela situação, por ser uma pessoa que era maquiada num
estúdio — nunca tinha imaginado chegar tão longe, eu também
tinha pensamentos como esse, não me dava conta de que era
apenas um programa local, e imagino que por um instante seus
pensamentos e os meus se encontraram.
Mas quando o programa começou e eu abri a boca, falei dos
alunos do ensino médio e dos estudantes da faculdade sem visto
expulsos do território francês, do racismo do Estado francês. Eu
havia preparado essa reversão pensando na entrevista durante a
tarde. Eu tinha sido convidado para falar de outra coisa, mas dizia
ao apresentador que primeiro era preciso falar daqueles que não
estavam legalizados, voltava a eles em quase todas as minhas
respostas. Eu tremia, mas tentava disfarçar.

O que minha mãe me disse foi que quando eu respondi ao


jornalista você não sorriu mais. Ela disse que você fechou a cara e
que seu rosto ficou vermelho. Disse que você ainda deixou um
pouco o programa passando, como se quisesse me dar uma chance,
o tempo de entender o que eu falava, o que eu fazia com você, e
então se levantou. Desligou a televisão, e disse num tom
falsamente descontraído Não vamos ver essas bobagens, a gente
tem muito pra conversar.
Eu magoei você. Seus colegas Gébé e Titi entenderam, mas não
disseram nada. Eles sabiam que você os tinha convidado para ver o
programa. Você conversou com eles como se a situação fosse
normal, mas falava rápido demais, seus gestos eram bruscos, havia
algo incomum na sua atitude.

Voltei tarde para casa, quase no início da noite (não sei por que não
fui à casa de Elena), o cheiro de gordura por causa da comida que
minha mãe estava fritando, o cheiro forte do óleo, o barulho da TV.
Você veio ao meu encontro, me agarrou pelo colarinho e
perguntou Por que você fez isso? Por que é que me envergonhou
desse jeito falando dessas bobagens de quem não tem visto?
(Devo ser justo e não esquecer de dizer uma coisa, você protestava
contra meu envolvimento político não apenas porque era oposto à sua
concepção de mundo, mas também porque eu participava de
manifestações ilegais, muitas vezes apanhava da polícia, que também
atirava bombas de gás, e você tinha medo de que o meu ativismo me
causasse problemas com a justiça, que por causa do meu ativismo toda a
ascensão social que estava em curso se perdesse e que todos os meus
esforços fossem reduzidos a nada, sei disso porque quando voltava para
casa depois de uma manifestação, com marcas roxas na pele ou com
adesivos pela roupa dizendo Abaixo o capitalismo, Nossas vidas valem
mais que os lucros deles, Liberdade para o povo palestino ou França
Estado racista, você me dizia: O que é que você quer fazer agora, quer
virar bandido e ter ficha na polícia? Quer ser expulso do colégio? E em
suas palavras havia mais preocupação do que raiva.)
De qualquer forma meus retornos à nossa cidade foram se
tornando quase impossíveis antes da história do programa de
televisão, já desde os primeiros fins de semana quando eu voltava
da casa de Elena. A situação continuava a se degradar. Eu tinha
mudado demais. Minha vida em Amiens estava por todas as partes
do meu corpo, a presença de Elena colonizava todos os meus
movimentos, todas as minhas conversas.

Um dia, inevitavelmente, por causa da impossibilidade de voltar,


nasceu uma ruptura. Eu jantava com Elena, sua irmã e os pais dela.
Foi pouco depois do fim das aulas e dos resultados dos exames,
antes da minha entrada na universidade. Havia velas, a mesa
decorada com flores e pequenas estátuas de bronze, a música
clássica de fundo — na maior parte do tempo o Réquiem de
Brahms, a música preferida do pai de Elena. Naquela noite eu
vinha da casa da minha mãe, tive que voltar à nossa cidade por
alguns dias para trabalhar na padaria e ganhar um pouco de
dinheiro.
A irmã de Elena falava de seus desenhos quando Nadya, que
passava atrás de mim, me perguntou, Você fuma, Édouard?
Desculpe-me perguntar, mas notei que suas roupas estão
cheirando a cigarro. Não lembro bem se corei. Era o cheiro dos
cigarros da minha mãe, a fumaça dos seus cigarros havia
impregnado o pulôver que eu usava. Disse a Nadya, Não, não, vim
da casa da minha mãe e ela fuma muito (murmúrios do Réquiem de
Brahms, sons dos instrumentos misturados a nossas vozes). Nadya
se espantou: Mas ela não fuma do seu lado no mesmo cômodo, não
é? Respondi que sim, que ela fumava trinta cigarros por dia no
mesmo cômodo que eu, desde que nasci, e que você também fez
isso durante anos antes que minha mãe o expulsasse de casa, que
eu não me lembrava dos meus pais sem fumar, e que além do mais
tinha meu irmão mais velho e minha irmã que fumavam — minha
mãe quis impedi-los, mas você dizia que era escolha deles, que eles
tinham esse direito. A expressão no rosto de Nadya se
transformou. Ela passou da surpresa à indignação, à ojeriza. Você
quer dizer que respirou mais de cem cigarros por dia durante a sua
infância num espaço fechado? Respondi que sim. Nunca tinha
pensado nisso antes, enquanto eu vivia com você e a minha mãe,
foi uma coisa natural, um dos componentes da atmosfera da casa,
tanto quanto a TV ligada, mesmo quando não havia ninguém
assistindo. Nadya perguntou novamente, De verdade? E eu senti
uma nova raiva que irrompia em mim. Fiz que sim com a cabeça,
inalei toda essa fumaça desde o primeiro dia da minha vida, e a
mãe de Elena gritou Que horror, você sabia que as crianças que
crescem na barriga de uma mãe fumante e são expostas ao cigarro
durante a infância têm muito mais chances de desenvolver um
câncer na idade adulta? Eu jamais infligiria isso a meus filhos!

Falamos de outra coisa, mas durante toda a noite a raiva continuou


se espalhando em mim, sob minha pele. Na semana seguinte,
quando voltei à cidade para trabalhar e ela acendeu um cigarro,
pedi para minha mãe ir fumar lá fora, no pátio dos fundos. Ela me
olhou como se eu estivesse louco e me disse, Ele tá pensando que
é quem, esse idiotinha, tô na minha casa, faço o que quiser. Foi aí,
quando ela disse essa frase, que bati o pé no chão e gritei, Não!
Você fuma lá fora! Disse que ela não tinha o direito de fazer isso.
Ela me olhou surpresa; não entendia por que de repente eu
considerava um problema o fato de ela fumar do meu lado —
sendo que nunca tinha falado nisso antes, que durante dezesseis
anos essa situação nunca tinha sido um problema. Eu não
conseguia mais parar. Disse que por causa dela aos dez anos meus
pulmões já estavam envenenados, é verdade, eu tinha lido artigos
na internet depois da conversa com Nadya, disse que ela era
egoísta, gritei que ela era uma péssima mãe, incapaz de educar os
filhos, e não parei por aí, estava com raiva também por ela ter me
chamado de idiotinha, não estava mais acostumado a frases como
essa, Nadya nunca dizia coisas assim para as filhas, frases que na
minha infância me pareciam normais do dia para a noite, desde
que conheci Elena, me pareciam violentas, agressivas, eu revia
minha infância e, desde que conhecera Elena, enxergava apenas
um campo de ruínas e de violência, como se eu tivesse vivido a
violência da minha infância dez anos depois de tê-la vivido — mas
foi quando eu disse para a minha mãe as palavras péssima mãe que
ela se irritou e gritou Eu criei cinco filhos e não vai ser você que
vai me dizer como devo educar filhos, tenho cinco filhos e todos
são saudáveis e bem-educados, fora você agora que se acha, mas
não deixei ela terminar, não queria deixar ela terminar as frases,
gritei Para!!!!! Gritei Eu sei o que você vai dizer, para, você repete
sempre as mesmas frases, não aguento mais, gritei Dá pra dizer
que você conhece apenas dez frases e que as repete infinitamente,
eu a desprezei, não conseguia me controlar, era tarde demais, eu
não conseguia mais parar, sentia as lágrimas que escorriam no meu
rosto falando com ela e no entanto eu não estava triste, não eram
lágrimas de tristeza mas de raiva, eu disse a ela, Por causa de você
eu vou morrer, porra, você me fez respirar seu cigarro durante
toda a minha infância, você se dá conta do que fez comigo, você
me destruiu, você destruiu o meu corpo, além de não ter me
ensinado nada, além de nunca ter me dado um livro pra ler ou ter
me levado a um museu, por sua causa cheguei em Amiens sem
nada, você sabe disso, que por sua causa eu não tenho nada em
comparação com os outros de Amiens, por sua causa eu sou uma
nulidade, e além disso você estragou minha saúde, disse as frases
mais trágicas e mais dolorosas possíveis, mas não pensei, não
escolhi dizê-las, elas saíam da minha boca sem que eu pensasse,
disse De qualquer modo você não é uma mãe, você não é uma
mãe, você não merece ser uma mãe, eu queria que a Nadya fosse
minha mãe e não você, ela é tão inteligente e tão melhor do que
você, por que você é minha mãe e não ela, por que vim parar nesta
família e então ela gritou Para!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! Ela nunca tinha gritado
assim, tão alto e por tanto tempo. Ela se aproximou de mim e
começou a me dar socos, não tapas, mas socos, fechava os punhos
e me dava socos com todas as suas forças, com toda a sua raiva,
sem olhar onde estava mirando, e gritou Não aguento mais vocês
todos, não aguento mais essa vida de merda, vocês nunca vão me
deixar, vocês nunca vão me largar, eu nunca vou ser feliz com
idiotas como vocês, e eu gritei Para, para de me bater, porra, você
é mesmo uma louca, porra, e gritei, Eu detesto você, eu odeio
você, não quero que você seja minha mãe, e as lágrimas, os gritos,
as lágrimas, os gritos. Depois de algum tempo ela parou, sem
fôlego. Chorei, com os braços na frente do rosto para protegê-lo
dos socos. Ela chorou também. E me olhou como se eu fosse um
monstro.
Depois dessa briga entendi que não podia mais voltar à nossa
cidade nos fins de semana.

Eu tinha me tornado outro.

Uma noite, esse outro que eu havia me tornado está deitado na


cama de Elena, perto dela, e encara o teto no escuro. Pensa nas
próximas vezes, quando deverá voltar à casa de sua infância. No
silêncio do quarto, ao lado de Elena adormecida, com a respiração
de Elena em seu rosto, pensa: Acabou. Pensa: Não posso mais
acabou não posso mais voltar lá é preciso que isso acabe.

Ele tenta não fazer nenhum movimento brusco, sente o interior do


seu corpo e a superfície da sua pele que se agitam como sempre
nessas noites em que, na cama, ele se projeta para uma vida futura,
como se seu corpo estivesse ansioso demais por esse futuro e
quisesse se pôr em movimento para fazê-lo acontecer o mais
rápido possível, como se o movimento, a fricção de suas células e
do oxigênio ao seu redor pudesse acelerar o tempo.
Então ele se concentra para não se mexer e para não acordar
Elena e pensa, não consegue não pensar: Não posso mais voltar lá
porque voltar é voltar a ser não posso mais preciso encontrar uma
solução qualquer coisa não posso continuar com isso acabou isso
precisa acabar isso tem que acabar.
Ele gostaria de não ter mais que voltar à casa de seus pais, ou
melhor, à casa de sua mãe depois da saída de seu pai, não a ver
mais. Não é apenas por causa das brigas. Ele acha que continuar a
ver a família pode impedi-lo de ir mais longe em sua
transformação. Quando volta à cidade sente que, em contato com
eles, retoma os modos e as atitudes do passado, volta a ser como
antes, muito mais facilmente do que gostaria de admitir, e tem
medo, medo de pensar que todos os seus esforços para mudar só
produziram um resultado superficial, medo de dizer a si mesmo
que ele apenas aprendeu a interpretar um papel mas que, na
verdade, lá, em algum lugar abaixo da superfície da pele, continua
o mesmo, medo também da ideia de pensar que ele lutou tanto e
que a despeito disso o passado ainda está em sua vida, não se livrou
totalmente dele.

Nos dias seguintes ele continua a pensar. Fala sobre isso com
Elena, e é ela quem lhe sugere tentar encontrar um trabalho no
grande teatro de Amiens, a Maison de la Culture. Ela conta que é
ali que vários estudantes trabalham, não é um trabalho muito
difícil, basta abrir as portas do teatro, controlar as entradas,
destacar os ingressos daqueles que entram, depois é preciso se
sentar dentro da sala e vigiar para que tudo corra bem durante as
apresentações, aqueles que fazem esse trabalho assistem então a
todos os espetáculos, durante todo o ano, gratuitamente, é por isso
que os estudantes querem trabalhar lá, não se cansam, guardam a
energia para os estudos, e assistem aos espetáculos à vontade. Ela
lhe diz que com o salário ele pode alugar um apartamentinho e não
voltar mais para a casa da família nos fins de semana.

No mesmo dia ele arregaça as mangas, escreve um currículo,


imprime, põe sua camisa mais bonita, uma gravata, dá o nó
Windsor que aprendera com Elena, sua blusa de jacquard preta
com quadrados azuis e linhas finas brancas, e vai até a Maison de la
Culture para entregar o currículo que acabara de escrever.
No caminho para o teatro, a animação aumenta, ele já se vê na
nova vida, sem ter contato com a família, rompendo todos os laços
com eles e vivendo num quartinho minúsculo no último andar do
prédio com Elena. Ele imagina uma vida de artista compartilhada
com ela, as peças de teatro e os concertos de música clássica a que
poderá assistir gratuitamente graças a seu trabalho, se imagina
dormindo em seu quartinho, sem família, sem ninguém a não ser
Elena e, sem se dar conta, sorri. Ele pensa: Eu daria tudo para ter
esse trabalho, daria tudo para tê-lo, uma frase tão banal vista de
fora e com anos de distância, mas naquele momento em que ele
pensa essa frase nada pode lhe dar tanta força, nada é mais
poderoso e mais portador de desejos do que aquela sequência de
palavras.

Ele chega ao teatro e vai perguntar na recepção quem deve


procurar para entregar um currículo. A mulher da recepção o
recebe friamente, mal olha para ele, deve pensar que se trata
apenas de mais um entre os cinquenta ou sessenta estudantes que
verá no dia no teatro, continua com o rosto virado para seu
computador e diz: pode deixar aí que eu encaminho. Depois
acrescenta: não estamos procurando ninguém, prefiro ser honesta
com você — ela se chama Christiane, depois, quando Édouard for
trabalhar lá com ela, quando realizar seu sonho, vai se dar conta de
que ela não é essa mulher fria e dura, mas, ao contrário, uma
pessoa doce, engraçada, generosa, mas por enquanto não sabe
disso, por enquanto não sabe nada.
Édouard queria gritar e lhe dizer que não é como os outros,
queria lhe garantir que não se parece com as centenas de
estudantes que ela vai ver durante o dia, queria lhe contar a viagem
— a viagem social que ele já fizera para estar ali, à sua frente, suas
lutas, seus esforços, queria lhe dizer que sua simples presença
diante dela hoje já é o resultado de uma luta ferrenha, e é no
momento em que esses pensamentos o atravessam, com a mulher
da recepção ainda com o rosto voltado para a tela do computador,
que outra mulher aparece por uma porta atrás da recepção, uma
mulher loura, magrinha, com os cabelos curtos e uma desenvoltura
que dá a Édouard a impressão de que o corpo dele está curvado.
A mulher da recepção diz para a outra que acabou de aparecer:
Ah, Babeth, é você.

Elas se beijam, como se ele não estivesse ali, quando Babeth se


movimenta a fragrância de um perfume suave e levemente
adocicado se espalha ao seu redor.
A mulher da recepção pega a folha de papel que Édouard acaba
de lhe entregar e diz a Babeth, Toma, é para você mesmo, esse
jovem que acabou de entregar. Babeth volta-se para Édouard como
se não tivesse notado sua presença antes, desliza seu olhar sobre
ele, que tenta ficar ereto, que ainda se sente curvado diante da
naturalidade da mulher à sua frente e da delicadeza de seus modos,
como se a postura de um corpo não fosse uma coisa isolada mas
uma relação com outras posturas, como se a posição de um corpo
não fosse definida pelo próprio corpo mas pela relação com outros
corpos, ele tenta se endireitar e Babeth sorri, ela lhe pergunta
Então quer dizer que você quer trabalhar na Casa. Ele queria gritar
Sim, por favor, eu lhe peço, me aceite, eu não sou como os outros,
queria lhe dizer que ela é sua única esperança, que se não o aceitar,
essa recusa pode ser o ponto de partida para sua queda e que tudo
o que ele fez até então não terá servido para nada, que deverá
voltar à sua cidade e talvez trabalhar na fábrica como seu pai e seu
avô e seu bisavô antes dele, nunca se sabe, essas coisas acontecem,
ele sabe disso, a queda começa sempre em algum lugar, talvez sem
esse trabalho deva se tornar garçom num bar e a dureza e a
dificuldade do trabalho lhe acarretarão muito cansaço e por causa
do cansaço não conseguirá terminar os estudos e que sem diploma
deverá voltar à cidade e trabalhar na fábrica como a maioria dos
homens, ou tentar sobreviver de bicos, já que a fábrica está quase
fechando, ou trabalhar no caixa do supermercado como sua prima,
essas histórias não são raras, elas acontecem, ele sabe, é uma
possibilidade, os pensamentos se encadeiam dentro dele, tem
medo dessa queda progressiva, é um risco que existe. Ele se
contenta em sorrir para ela e responder: Sim, eu adoro o teatro
mais do que tudo no mundo, adoraria de verdade trabalhar aqui.

Ele não sabe se foi por causa da sua frase ou do seu olhar, talvez
por causa de sua entonação, talvez ela saiba ler pensamentos e
tenha ouvido todas as frases que ele gritou dentro dele, ela lhe
disse, Venha para a minha sala, então, vamos conversar.

Ele tinha vontade de gritar de alegria no imenso hall do teatro,


queria olhar para a mulher da recepção, aquela que tinha sido tão
fria primeiro e que se tornará sua amiga depois, nesse dia ele
queria dizer a ela: Viu só, ele se sente grande quando atravessa o
hall atrás de Babeth, o som do salto de seus sapatos batendo sobre
a pedra polida, mas se contém, pensa: ainda não acabou, o teste
ainda não terminou, ela ainda nem começou, ele queria comentar
com Babeth a elegância dela, dizer a ela que é linda, majestosa,
queria elogiá-la para que gostasse dele e lhe desse o trabalho (Elena
zombava sempre de sua obsessão por ser amado, sua obsessão
pelos outros, ela lhe dizia que ele era um eterno bajulador, não
entendia que ele queria ser amado porque queria sobreviver, que
queria ser amado por medo da queda).
Por que será que Babeth tinha sido tão doce na primeira vez,
por que será que ela o levara até seu escritório sendo que recebia
dezenas de currículos como o seu todos os dias? Talvez já o tivesse
visto em visita ao teatro com o colégio, talvez se lembrasse do seu
rosto, mas não era uma explicação que bastava.
Por que ela decidiu protegê-lo e por que nos anos seguintes
enquanto ele estivesse trabalhando no teatro o trataria quase como
um filho, preocupada com tudo, com sua vida, seus estudos, sua
saúde, sua felicidade, incentivando-o sempre a ir mais longe, a
fazer mais, a se tornar alguém como ela dizia, olhando-o sempre de
forma diferente dos demais, desculpando todos os seus atrasos,
todos os seus erros, enquanto podia ser severa e às vezes
exageradamente exigente com todos os outros? Será que ela leu
toda a história escrita em seu rosto?

Em sua sala, ela lhe oferece um café. Senta-se com as pernas


cruzadas, o tronco levemente erguido, seu corpo que mais uma
vez, pela diferença, curva o corpo de Édouard, ela diz: Então, você
adora teatro?

Ele diz que sim. Diz que estudou teatro no colégio, que faz nove,
dez horas de teatro por semana e que quer ser ator, diz que não
quer sobrecarregá-la contando sua vida mas que para ele o teatro
foi mais do que uma arte, foi um instrumento de reinvenção da
vida, porque graças ao teatro foi o primeiro de sua família a cursar
o ensino médio e graças ao teatro aprendeu que era possível
interpretar papéis, quer dizer produzir um distanciamento em
relação à sua vida, sua vida imposta, seu passado, sua história
familiar, o teatro o fez entender que se quisesse ser outra coisa ou
outra pessoa, não importa, seria preciso representar, até se tornar,
entendeu que não existia outra coisa além dos papéis. Ela olha para
ele, impressionada, em silêncio. Ele ouve sua respiração, muito
leve. Ele se pergunta se sua declaração não foi um pouco ridícula,
um pouco proclamatória demais, talvez tenha falado demais, talvez
tenha ido longe demais. Seu coração bate forte no peito, até isso
ele tem medo de que ela ouça, tenta se controlar, diz: Desculpe,
talvez eu esteja dizendo besteira.
Ela inspira delicadamente pelo nariz, sorri e diz a ele Não, de jeito
nenhum, por que seria besteira, não vejo nada de besteira em ser
apaixonado. O que é besteira é a falta de paixão. Ele não consegue
interpretar os sinais, não sabe se ela diz isso por educação, por
pena daquele pobre menino perdido ou se realmente pensa assim.
Mas o sorriso em seu rosto lhe dá confiança, não é um sorriso
normal, não é um sorriso educado ou irônico, é um sorriso que o
abraça, é isso o que diz a si mesmo, o sorriso de Babeth parece
mais com a ação de um corpo que abraça outro do que com um
sorriso.

Ela fica mais séria de repente, como se agora começasse a


interpretar um papel, pergunta a ele: Mas você é um rapaz sério?
Você sabe que sou intransigente, não hesito em demitir alguém
que não faça bem seu trabalho, tenho responsabilidades nesta casa,
ela diz Não estou aqui para fazer amigos, estou aqui para que essa
grande casa mantenha seu prestígio, mas estranhamente seu rosto
a contradiz, ele a trai, ela diz que não é uma amiga mas seu rosto
quando fala essas palavras é o de uma amiga, revela as marcas
disso, as nuances.

Ele responde que já trabalhou, nas colônias de férias de verão, que


trabalha com frequência na padaria da cidade onde cresceu, que
tem apenas dezessete anos, mas já trabalhou muito, queria
acrescentar: Eu juro. Está dizendo essa frase quando um homem
entra na sala, com o corpo estranhamente animado por
movimentos iguais aos do corpo de Babeth, como se a função que
ocupam no teatro é que lhes tivesse dado um corpo, e enquanto
ele se dirige a ela com uma pasta azul-clara nas mãos, ela diz:
Christophe, este é o Édouard, ele vai trabalhar conosco no teatro.

*
Na segunda seguinte ele é chamado à Maison de la Culture de
Amiens para assinar o contrato de trabalho. No caminho para o
teatro pensa que essa assinatura é mais uma ruptura em sua vida.
Ele vai trabalhar num teatro, ninguém na sua família teria nem a
ideia nem a possibilidade de fazer isso. Em sua sala Babeth lhe
entrega o contrato de trabalho que ele deve rubricar, página por
página. Ela lhe mostra a calça social preta e a camisa violeta que
acabara de comprar numa loja do centro da cidade, Burton, e que
ele deverá usar, ainda dentro de um saco plástico, e então o leva até
uma salinha escondida atrás da recepção. Nesse espaço estreito e
sem janelas as paredes são cobertas com armários para os
arrumadores — é o nome de sua nova profissão. Ela indica com o
dedo o armário destinado a ele dizendo que vai colar uma etiqueta
ali; e então, depois de um ou dois segundos de silêncio, limpa a
garganta, Você prefere que eu escreva Eddy ou Édouard? Quando
nos conhecemos você se apresentou como Édouard mas nos
documentos que me mandou estava escrito Eddy. E sem deixar
que ele respondesse acrescentou, É como você quiser, podemos
escrever o nome que você quiser, aqui todo mundo é livre.
Ele queria abraçá-la (me dou conta agora de que escrever minha
história é escrever a história dessas mulheres que se sucederam
para me salvar, Pascale Boulnois, Stéphanie Morel, Aude Detrez,
Martine Coquet, Elena, Babeth, de que minha história é a da
vontade e da generosidade delas).
Ele praticamente sussurra, Prefiro Édouard, se for possível, mas
logo acrescenta que, claro, se for muito complicado, já que não é o
nome que aparece no seu contrato e em seus documentos, ela
pode escrever Eddy, ele vai entender, não tem nenhum problema,
tem consciência das impossibilidades administrativas, pede
desculpas por sua resposta, como se pedisse perdão por sua
metamorfose, e como sempre Babeth sorri antes de falar Mas você
parece que não escuta, acabei de explicar que é você quem

É
escolhe. Aliás, eu acho que Édouard combina muito mais com
você, combina muito mais com a doçura do seu rosto.

Três ou quatro vezes por semana, agora, ele atravessa a cidade para
trabalhar no teatro. Lá encontra Léa, Satine, Lucas, Alexandre,
Cécile, todos futuros artistas ou estudantes que trabalham ali para
pagar os estudos. Eles são para ele espelhos de seu futuro, fica
inchado de orgulho de estar cercado de artistas e de pessoas que
quando têm um tempo livre vão ao teatro, aos concertos, leem
ensaios e romances; no processo de mudança aqueles que nos
cercam são tão importantes quanto o que nos tornamos, e ele
compara seus colegas do teatro com os colegas de seu pai, com as
pessoas que iam à casa de seus pais quando era criança, no fim da
tarde, e com quem seu pai assistia à TV bebendo copos de pastis.
Quando chega ao teatro, entra na salinha dos armários atrás da
recepção e vê as sete letras de seu novo nome se destacarem na
etiqueta impressa por Élisabeth.
Édouard não é mais apenas um nome que Elena lhe deu e que
ele pronuncia, não é mais apenas um som que existe na voz de
Nadya, na de Elena e na sua, mas está inscrito na objetividade do
mundo em um pedaço de cartolina colado em seu armário,
impresso, é possível pegá-lo, tocá-lo. É o que diz a si próprio, que
um som não é uma prova, mas algo escrito, sim. Sua metamorfose
está visível, ali, para toda a humanidade.
Uma lembrança: o colégio tinha nos levado à praia para um
passeio. Eu estava com Elena. Imagens do norte, tudo era cinza e
frio, chovia na praia, e até a areia era cinza. Eu caminhava distante
do grupo com ela. Ela sugeriu, Vamos mergulhar? E corri junto
com ela até o mar, meu corpo ao lado do seu, minha mão na mão
dela, nossas risadas. Ela mergulhou, e mergulhei também, nós dois
vestidos, a água glacial. Mesmo no mar não larguei a mão dela.
Na volta, quando os adultos que nos acompanhavam viram
nossas roupas ensopadas de água salgada e glacial, ficaram tão
surpresos que nem mesmo pensaram em nos castigar.
Agora era preciso encontrar o apartamento.
Comecei a procurar, mas os apartamentos eram muito caros, o
dinheiro da Maison de la Culture não era suficiente, seria preciso
dividir o aluguel com alguém; cruzei com Cynthia quase por acaso
durante um de meus últimos fins de semana na cidade e ela me
disse que tinha um projeto, que iria se mudar para Amiens. Era da
minha idade, e era a única outra pessoa da cidade que começava a
estudar (ela abandonaria apenas alguns meses depois de ter
começado, como se a maldição da cidade acabasse sempre se
abatendo sobre aquelas e aqueles que queriam fugir).

Ela precisava de um apartamento perto da universidade. Sugeri-


lhe, então, que ficasse comigo dividindo o aluguel, e ela aceitou;
procurei nos sites de anúncios de imóveis e encontrei um
apartamento com um grande quarto no boulevard Carnot entre o
teatro onde eu trabalhava e o departamento de direito da
universidade onde Cynthia ia estudar.
Eu lhe disse que ela poderia ficar com o quarto, eu dormiria na
sala, liguei para os proprietários e eles concordaram em nos alugar
o apartamento, eu não queria esperar nem mais um dia. Os
proprietários disseram que iam pintar as paredes antes de nos
entregar as chaves, e respondi que eu mesmo faria isso, em troca
da possibilidade de me mudar imediatamente, de não esperar nem
mais um dia (eu não sabia pintar e ia ser um desastre).
Eu estava com pressa. Imaginava uma vida com Elena naquele
apartamento, os filmes que veria com ela, nossas conversas.
Principalmente, sonhava em pôr em prática na minha casa a nova
estética da existência que aprendera na casa dela, com sua família:
o vinho no jantar à noite, as entradas antes da refeição, a música
clássica (eu tinha comprado gravações dos Réquiem de Brahms e de
Mozart). Estava com pressa de não viver mais essas experiências
apenas como convidado, queria que fossem também a minha vida,
o meu cotidiano, até quando estivesse sozinho, não sei por quê,
mas era algo importante, que fazia uma diferença quando pensava
nisso.

Cynthia deixou que eu cuidasse de tudo, liguei novamente para os


proprietários e em menos de uma semana me mudei. Comprei um
sofá, uma mesa e duas cadeirinhas.

Guardo desse momento a lembrança de uma liberdade sem


limites. Eu convidava meus novos amigos da universidade para ir a
casa, meus amigos do colégio, Julie, Étienne. Quando ia aos bares
no fim de semana com eles e me perguntavam o que eu fazia,
respondia “Faço faculdade de história” e essa frase me deixava
ingenuamente eufórico, quando a dizia eu me desdobrava, saía do
meu corpo e me ouvia falar, nunca achei que diria essas palavras na
minha vida.

Na verdade Cynthia nunca estaria lá durante esse ano morando


juntos. Eu teria o apartamento inteiro para mim. Ela não ia bem
nos estudos e a vida na cidade parecia difícil demais para ela, a
nossa cidade estava por todo lado sob sua pele e a impedia de
gostar da vida em outros lugares. Ela voltava para a casa do pai à
noite de carro depois das aulas, eu não a via.

Eu tinha o apartamento para Elena e para mim e uma nova vida


pôde realmente começar.
Elena me apresentava filmes de diretores que eu não conhecia,
a que assistíamos no computador, Werner Herzog, Orson Welles,
Jane Campion, Pedro Almodóvar, ela vinha me buscar à noite para
ir ao cinema ou ao teatro. Me dava livros que eu empilhava no chão
do apartamento, não tendo dinheiro para comprar móveis, me
envaidecia da minha pobreza, eu era intelectual, boêmio.

De manhã, eu acordava e olhando à minha volta dizia a mim


mesmo que tinha vencido minha infância, as agressões, os
insultos, a humilhação. Observava o apartamento e dizia a mim
mesmo: Venci.
Só faltava uma coisa, uma coisa em que pensei todos os dias
durante meus quatro anos em Amiens. Eu tinha fugido da minha
cidade primeiramente por uma razão, por causa do meu desejo e
do ódio que havia desse desejo na cidade. A atração pelos outros
garotos e pelos homens sempre tinha sido clara para mim. Pude
tentar mentir para mim mesmo e para você, mas nunca tivera
dúvidas, todas as vezes que menti para mim mesmo a respeito do
que o meu corpo me pedia sabia que estava mentindo. Com três ou
quatro anos, minhas primeiras lembranças, imagens breves, a
memória dos sentidos, eu ficava dominado por violentas cargas de
desejo olhando os garotos no pátio da escola, com uma clara
consciência de que era isso o que já me separava de minha família,
o que tornava minha relação com você impossível e tendenciosa.
Eu queria sentir a pele deles sobre a minha, a dos garotos da
escola, o calor de suas mãos sobre meu rosto. Desejara em silêncio
os homens à minha volta enquanto crescia, aqueles que via
cortando lenha nos jardins para guardar para o inverno, seus
músculos tensionados quando acionavam a motosserra ou quando
carregavam os troncos, de dois em dois, até o local coberto onde a
lenha era guardada, os homens que ia observar durante os jogos de
futebol, todos os domingos. Olhava as coxas e o formato dos
membros sob o tecido dos shorts quando os homens corriam e se
movimentavam em campo, e gostaria que eles pressionassem meu
rosto contra suas coxas.
Será que os pais podem imaginar que imagens como essa
povoem o imaginário dos seus filhos? Será que você poderia
imaginar essa tormenta dentro de mim por trás de minha máscara
de criança?
Quando eu via os homens reunidos no bar, geralmente
caminhoneiros, porque era uma das raras profissões viáveis na
cidade depois do fechamento das fábricas, e um desses homens me
dava carona no seu caminhão, eu sentia a respiração dele chegar
até mim do seu assento ao meu lado e implorava dentro da minha
cabeça para que parasse num caminho isolado entre as florestas e
os lagos e me pedisse para acariciar seu corpo. Um homem fizera
isso com minha irmã. Ele a tinha levado para um passeio de
caminhão e lhe pediu que tocasse seu membro por cima da calça
jeans, e passei a sonhar com essa cena todos os dias, várias vezes
por dia. Não entendia por que minha irmã tivera a sorte de viver
esse momento e não eu. Ela voltou para casa chorando. Contou a
história para o meu irmão, que disse que ia acabar com o homem
pelo que ele havia feito, e eu, quando ouvi o choro dela, não
entendia, desprezava sua ingratidão, não entendia como a cena que
eu esperava mais do que tudo e que definia o contorno das minhas
fantasias e da minha obsessão podia deixá-la triste, eu, que teria
dado tudo para estar no seu lugar.

O segredo tinha contaminado toda a minha infância.

Mesmo explodindo de desejo, a vergonha me fazia odiar tudo o


que poderia me lembrar do que eu era. Eu tinha medo de mim.
Uma noite o colégio nos levou para ver uma peça de teatro na
Maison de la Culture. A peça se chamava Angels in America. Eu
nunca tinha ouvido falar. Gérard, a pessoa que nos dava aula de
teatro, nos dissera que era um texto que falava de
homossexualidade, e como todas as vezes desde o primeiro dia da
minha vida, quando ouvi essa palavra meu coração disparou no
peito. Olhei à minha volta, esperava que aquela tensão no meu
corpo não fosse visível para os outros, era sempre a mesma
sensação, cada vez que a palavra homossexualidade era dita meu
pulso acelerava porque eu tinha certeza de que bastava que a
palavra aparecesse na boca de alguém para que todo mundo
compreendesse que essa palavra estava ligada a mim. Aprendi a
desviar as conversas com uma habilidade extrema, quando alguém
falava de homossexualidade eu sempre encontrava um assunto
urgente para desviar a atenção, Vocês viram o atentado na
América, viram quem morreu, o que a gente vai fazer hoje à noite
(e o calor nas minhas faces, no meu rosto).
Na sala do grande teatro me sentei perto de Elena e o
espetáculo começou. Desde os primeiros minutos os homens se
beijavam, tiravam as roupas, faziam amor uns com os outros; eu
nunca tinha visto uma representação tão direta da
homossexualidade, nunca tão explícita, e, portanto, nunca tinha
visto uma representação tão explícita do meu próprio desejo, do
meu segredo — e acho que posso dizer, do meu ser. Levantei no
meio da peça e disse, Não quero ver esse negócio de viado, isso me dá
nojo. Elena ficou surpresa e outras garotas que estavam com a
gente me disseram na saída do espetáculo que eu era estúpido,
homofóbico. Seus insultos me tranquilizaram. O que aquelas
garotas, Chloé, Sophie, e até Elena, não sabiam, é que depois que
saí, uma vez fora da sala do teatro, eu chorei, chorei pelo que tinha
visto, chorei com ódio de mim mesmo. Chorei porque sabia que
teria amado ver aquela peça de teatro até o fim, mais do que tudo.

Não sei o que foi que desencadeou, se houve uma cena, uma
imagem ou uma aparição, mas numa noite em que Cynthia tinha
ido para a casa do seu pai e eu estava sozinho no apartamento,
decidi me conectar à internet para fazer o que eu sempre quis e
sonhei fazer; queria tentar encontrar alguém, um homem. Tinha
esperado demais, mentido demais, e naquela noite prometi a mim
mesmo que acabaria com isso; levantei do sofá com os ecos da
minha decisão em todo o corpo; pensava: você é gay, a frase pulsava
dentro da minha cabeça — a palavra gay me parecia tão estranha,
tão violenta, quase grotesca por sua sonoridade e sua simplicidade,
ela não podia conter nela mesma toda a complexidade do que tinha
sentido desde que nasci, meu desejo, meu medo, minha
esperança, minha vergonha, meu segredo —, ela me machucava e
ao mesmo tempo me fascinava, eu a repetia milhares de vezes na
minha cabeça havia semanas, gay, gay, gay, gay, como se repetindo
pudesse descobrir alguma coisa sobre mim mesmo, eu a repetia, e
a dor aumentava — não falo de uma dor abstrata como as pessoas
fazem quando dizem “palavras que machucam”, mas da dor real,
dos ossos e de todas as articulações se repuxando, todo meu corpo
tremia, eu sentia frio; dei alguns passos na direção do meu
computador e juro que esses foram os passos mais difíceis de toda
a minha vida; minhas pernas resistiam, se enrijeceram, meu corpo
se revoltava contra minha decisão. Eu queria andar, mas meus
músculos não obedeciam, eles queriam me impedir. Me sentei na
frente do computador, liguei, e procurei recuperar meu fôlego e
escrevi na página de busca “Encontro homem gay”, eu me lembro,
exatamente essas palavras. Eu olhava em volta na sala, como se
alguém pudesse me ver, sentia o suor nos dedos, o suor na testa —
e sempre o frio no meu corpo, os tremores. Era primavera lá fora,
mas o frio vinha de mim, de dentro da minha caixa torácica. Como
é que três palavras tão simples podiam ter sido tão difíceis de
escrever, por que tinha precisado de dezessete anos para ousar
fazer um gesto tão banal, tão trivial quanto digitar essas palavras
num teclado? Eu não conseguia apertar a tecla “enter” para
começar a busca, não conseguia mais respirar, ia morrer, aqui,
nessa sala, ia morrer, queria morrer, tinha medo de morrer, eu
estava sufocando. Respirei bem fundo, bem profundamente, e
continuei. Deixei passar dois, três segundos, pensei, Conte até
três, e dei a busca. Dezenas de sites apareceram, fóruns de
discussão e de encontros, não sabia qual escolher; cliquei num link
ao acaso. Era preciso se cadastrar, dar um endereço de e-mail e um
pseudônimo para poder falar com outros homens no site. Abri
outra janela para criar um novo endereço de e-mail, um diferente
do que usava para me comunicar com Elena ou com a Maison de la
Culture, não podia correr o risco de abrir meus e-mails na frente
de pessoas que eu conhecia em Amiens e receber mensagens desse
site — estava com medo, era o medo que gerava o frio, não sabia
antes dessa noite que os sentimentos tinham uma temperatura que
lhes é própria. Voltei à página do fórum e criei um perfil. Não tinha
posto meu nome verdadeiro. Escrevi algumas linhas para me
descrever, alguma coisa como Romain, jovem, dezessete anos,
procura primeiro encontro com um homem, e não podia acreditar
que estava escrevendo palavras tão corajosas. Queria voltar atrás,
desligar o computador e recomeçar toda a minha vida como antes,
você não precisa disso, você conseguiu viver todos esses anos em
segredo, eu sabia, estava consciente de que se saísse com um
homem toda a minha vida mudaria — mas segui, continuei na
frente do computador. Em alguns segundos recebi dezenas de
mensagens, a maioria me perguntando se eu estava bem, outros
me mandavam fotos de seus paus.
Respondi algumas mensagens mas tive que parar; de repente,
meu estômago se contraiu; alguma coisa se deslocava dentro de
mim; eu me sentia sujo por causa do que estava fazendo, todo o
passado despertava dentro de mim, todos os insultos na escola, as
frases da cidadezinha contra a homossexualidade, tudo estava
gravado em mim e o nojo dos outros tentava me parar agora, o eu
do meu desejo e o eu do meu passado se enfrentavam no meu
corpo, me sentia a coisa mais repugnante do mundo, um viado, um
viadinho, uma bicha, um maricas, um pederasta, a pior coisa do
mundo, a metáfora de todas as sujeiras e de todas as desonras.
Eu me levantei, corri até o banheiro e vomitei. Meu corpo
implodia. Vomitei agachado no chão com o rosto curvado por cima
da privada, todos os meus músculos doíam, não era mais um
sopro, mas um arquejo que escapava da minha boca, eu me
arrastava no chão, era um animal, as mãos agarradas à privada, o
rosto por cima da água pegajosa e do fedor.
Eu sofria, mas já era tarde demais, não podia mais parar.
Enxaguei a boca, voltei para o computador, e, com as mãos
trêmulas, continuei escrevendo para desconhecidos.
Houve um homem com quem falei um pouco mais do que com
os outros. Ele se chamava Pierre. Parecia mais delicado, mais
paciente do que os outros. Eu tinha medo, mas respondia a ele.
Disse que meu verdadeiro nome não era Romain mas Eddy — não
ousei dizer Édouard, não me considerava legítimo a ponto de usar
meu nome escolhido fora do círculo dos meus amigos mais
próximos. Falei com ele até o meio da noite, e ele sugeriu me
encontrar na semana seguinte.
Eu aceitei.
Toda minha vida virava de cabeça para baixo.
Encontrei Pierre. Ele veio me ver no apartamento do boulevard
Carnot e nós fizemos amor. Eu me lembro de cada detalhe, o sol lá
fora, a janela aberta e o sopro morno do ar que entrava no
apartamento, sua aparência quando estacionou o carro, o barulho
seco e violento do portão. Quando ele entrou no apartamento e o
beijei, pensei, Estou beijando um homem, a frase reverberou
enquanto meus lábios tocavam os dele. Cada pedaço dele era um
sinônimo da palavra Liberdade, Liberdade conquistada contra
você, contra toda a minha vida, Liberdade a barba no rosto dele,
Liberdade os músculos sob o tecido de sua camiseta, Liberdade os
pelos dos seus braços, Liberdade seu pau que enrijecia sob a calça
jeans, Liberdade contra o que o mundo quisera de mim.
Não acho que seja uma coisa normal, não sei, mas quando ele se
deitou em cima de mim, nu, foi em você que pensei (dizendo isso a
você lhe digo o indizível). Ter um homem nu sobre meu corpo, o
sexo dele pressionando minha pele, era transgredir o que você
considerava a infâmia total, absoluta. Fazer o que eu fazia era
acessar uma realidade radicalmente oposta à classe social da minha
infância, na nossa cidade, era romper definitivamente com o meio
que compartilhara com você e seu ódio e seu nojo só de imaginar a
hipótese da existência de uma imagem como aquela. Fazer amor
com um homem, deixá-lo me penetrar, ou aprender a falar sem o
sotaque do norte e ir ao cinema eram o resultado de uma mesma
vontade, de um mesmo processo, o da fuga para longe do passado.
Ao fazer amor com um homem, eu rejeitava todos os valores do
meu meio, eu me tornava um burguês.

Numa folha de papel escrevi: O desejo me abre as portas do


mundo. Pierre passou a noite comigo e voltei a vê-lo. Quando não
podia vir, era eu que pegava o trem até a cidade de subúrbio
parisiense onde ele morava. Através dele, descobri uma outra vida,
seus amigos, seus colegas, que ele convidava para jantar conosco,
pessoas que a proximidade de Paris tornava diferentes daquelas
que eu conhecia em Amiens. Tudo transparecia em pequenas
nuances ínfimas, a maneira de vestir, suas referências, as coisas
que comiam, detalhes e fatos mínimos, é incrível como o mundo
pode se refugiar nas menores coisas, o fato de que bebiam água
com gás mais do que água sem gás nos jantares, por exemplo, suas
conversas sobre política num tom mais pessoal, como se vivessem
perto dos políticos, sendo que em Amiens o mundo do poder
político era percebido como distante, inacessível, algo também
como uma leve arrogância, a certeza de seu lugar no mundo. Eu
sentia que as características geográficas de seus amigos, o fato de
morarem tão perto da capital, tinham uma influência direta em seu
ser e em seus comportamentos (é uma sensação que se confirmará
mais tarde, quando eu for a Paris e perceber a que ponto lá os
corpos são diferentes, dessa vez não apenas por causa da
proximidade com a capital, mas pela presença e a imersão nela, em
seu coração, como se bastasse dispor um corpo em um espaço
geograficamente diferente para mudá-lo completamente, como se
os corpos fossem antes de tudo, ou pelo menos em parte, corpos
geográficos).

Eu não dizia nada sobre minha outra vida para Elena, nem para
ninguém. Eu vivia duas vidas: uma que se articulava na linguagem
em minhas conversas de todos os dias e outra silenciosa e secreta,
dentro de mim. Quando eu falava com meus amigos de Amiens, ou
meus colegas, Lucas, Satine, pensava em minha outra vida, em
minhas viagens secretas para o subúrbio de Paris e me sentia mais
vivo do que eles, minha vida secreta somada à minha vida visível
tornava minha existência mais profunda e mais densa.

A história com Pierre não podia durar. Eu tinha perdido muitos


anos do meu desejo e queria sair com outros homens. Continuava
a me conectar à internet como havia feito para encontrá-lo. Um
grande hotel acabara de abrir no centro da cidade na frente da
catedral e muitos homens apareciam nos sites de encontros. Eles
me sugeriam encontrá-los em seus quartos; eu ia, várias vezes por
semana, de madrugada para não ser visto. Não passava pela
recepção do hotel, ia direto para os elevadores, como se fosse um
hóspede, tentava chegar até eles — os elevadores — com passo
seguro e arrogância suficiente no rosto para que a pessoa que
tomava conta da recepção não me perguntasse nada, que pensasse
que seria estranho, falta de educação, questionar uma pessoa tão
distinta quanto eu. Eu controlava minhas pernas e a altura do meu
queixo, e subia até os andares do hotel para encontrar o homem
com quem eu acabara de falar online. (Não consigo pôr lado a lado as
imagens dos meus anos na minha cidade e as dessas noites no hotel, é
como se a biografia de um ser fosse impossível, como se a história da
minha vida não fosse a de uma pessoa através do tempo, mas a sucessão
de personagens que não têm nada a ver uns com os outros, que não têm
em comum nem o Nome.) Havia homens no hotel que vinham da
Alemanha, dos Países Baixos, da Inglaterra, eles voltavam de
viagens pela Ásia ou pelos Estados Unidos. Eles me contavam suas
vidas quando, depois de fazer amor, no quarto escuro, eu apoiava
minha cabeça em seu peito para descansar, o corpo morno e suado.
Eu os ouvia e era como se em contato com eles acessasse um
nível de realidade suplementar, ouvindo-os e fazendo amor com
eles continuava minha fuga, ia sempre mais longe na exploração do
mundo, nunca a criança que eu fora poderia imaginar que
encontraria desconhecidos na madrugada e que eles descreveriam
a cada noite sua vida em um outro país, a cada noite, ou quase, um
outro homem lhe revelava uma outra paisagem — o filósofo Gilles
Deleuze diz em algum lugar que é por uma paisagem que nos
apaixonamos quando conhecemos alguém, não por uma pessoa,
por uma paisagem com seu próprio cenário, sua geografia, suas
especificidades, e a cada noite eu descobria uma nova paisagem.
Contei tudo para Elena. Não podia mais mentir para ela. Eu me
sentei em frente ao computador e escrevi uma longa mensagem
para ela contando tudo, o desejo escondido desde a infância, as
relações falsas com meninas no colégio para me proteger das
suspeitas, a história com Pierre. Sentia medo enquanto escrevia
para ela. Ela me disse que isso não mudava nada, que me amava —
ou melhor, não disse que isso não mudava nada, como fazem
estranhamente as pessoas, muitas vezes, como outros amigos farão
depois que eu disser a eles a mesma coisa, pelo contrário, ela me
fez perguntas, quis entender o que o segredo era para mim, o
silêncio, o sofrimento, a vergonha. Ela me incentivou. Ela me
levava ao cinema para ver filmes que mostravam a
homossexualidade, me falava de autores que escreveram sobre
homens que desejavam outros homens — e eu que não lia nunca, li
em uma noite Morte em Veneza, no quarto de hóspedes ao lado do
quarto de Elena, tremendo, perturbado ao entender que existia
toda uma história da literatura dedicada aos desejos, à Beleza, aos
sofrimentos e às vidas de pessoas que se pareciam comigo.

Ela vinha jantar comigo, ouvíamos discos de Ella Fitzgerald ou de


Debussy. Eu passeava com ela à tarde, me lembro de um dia
inteiro que passamos numa loja de luxo onde ela experimentou
chapéus, e eu gravatas e lavallières.* Tomei chá com ela num salão
elegante quase completamente silencioso onde uma mulher nos
ofereceu dezenas de chás diferentes, me preparei com ela para
minhas provas na universidade. Elena me disse que eu não devia
ter medo de ir ao bar gay da cidade, o Red and White, e eu a ouvi e
fui lá. Encontrei alguém ali, Nicolas, ele tinha dinheiro, me levava
ao Opéra de Paris, tinha quadros na parede da sua sala, fazia com
que me sentisse outro. Quando eu não queria ficar no apartamento
do boulevard Carnot porque Cynthia estava lá, ficava na casa de
Nicolas ou de Alice, uma amiga do colégio que morava numa casa
imensa atrás da catedral. Seu pai era um médico famoso, eles
também transformaram a atmosfera da minha vida, Alice
organizava mostras de filmes de Antonioni no jardim de sua casa,
fazia teatro, fabricava joias. Eu estava tão longe do meu passado. O
trabalho na Maison de la Culture ia bem, me sentia amado pelos
outros. Ia à universidade, minhas notas geralmente eram boas,
quase não via mais minha mãe, meus irmãos e irmãs e você, não
pensava mais nisso, vocês não me faziam falta. Passava meus dias e
minhas noites com Elena, às vezes com outros amigos, Julie ou
Étienne ou Alice, falávamos dos filmes de Alfred Hitchcock, de
Pedro Almodóvar, admirávamos e comentávamos vendo na tela do
meu computador fotos de Nan Goldin ou de Robert Doisneau, eu
representava com eles cenas de Shakespeare ou de Lagarce na sala
do meu apartamento. O que tento dizer a você é que eu estava
totalmente integrado à vida de Amiens, ainda mais claramente
desde que não escondia mais nada de Elena. E foi exatamente
nesse momento, quando me senti completamente integrado, que
conheci Didier, e quis recomeçar tudo, e fugir mais uma vez.
2.
Didier
(ruptura)
Impacto

Como eu poderia ter imaginado que um dia Amiens seria para


mim o que nossa cidade fora alguns anos antes, o lugar de onde
deveria fugir? Que um dia eu entenderia que estar ali, em Amiens,
era, na verdade, ainda ser prisioneiro da minha infância, e que
portanto seria preciso fugir de Amiens exatamente como fugi da
minha cidade se quisesse me vingar do meu passado?

Tudo começou como dezenas de outros dias tinham começado;


Elena me chamou para ir com ela à universidade ouvir um filósofo
que faria uma palestra sobre seu último livro. Eu já tinha assistido a
palestras com ela, e nas raras vezes em que ainda falava por
telefone com minha mãe e ela perguntava o que eu tinha feito
naquela semana, dizia Fui assistir a uma palestra. Eu deixava escapar
na minha resposta um sentimento de orgulho e de superioridade
que hoje me provoca náuseas, porque ela não sabia o que era uma
palestra e porque eu enxergava nessa distância entre mim e ela o
sinal do meu distanciamento e do meu sucesso. O que Elena tinha
me dito era que essa palestra não seria como as outras, porque o
filósofo que viria falar tinha escrito um livro sobre sua própria
história, um livro que se chamava Retorno a Reims. No livro, ele
contava que tinha nascido numa família de classe baixa no norte da
França; depois se tornara um autor e um intelectual reconhecido
no mundo inteiro e usava sua própria vida e sua própria trajetória,
sua passagem de uma extremidade à outra do mundo, como
matéria para refletir sobre a pobreza, sobre a dominação e a
violência de classe, seu livro não se parecia com outros livros de
intelectuais; Elena me explicava tudo isso com um sorriso
benevolente.

Me sentei ao lado dela* na primeira fila para ouvir o filósofo falar.


Eu segurava o livro dele que tinha comprado à tarde na esperança
de conseguir um autógrafo. Olhava Elena, seus cabelos pretos, seu
sorriso. Só ela sabia naquela noite, naquela sala lotada, quente e
úmida por causa da multidão que fora assistir à palestra, que eu não
tinha ido apenas para ouvi-lo falar da pobreza e de sua
transformação, das classes sociais, mas também da
homossexualidade; Elena tinha me falado que fora a
homossexualidade que havia provocado a fuga dele para Paris, para
o mundo intelectual e para a reinvenção de si mesmo, que sua
sexualidade fora a alavanca para sua liberdade, e era isso o que ele
contava em seu livro.

O filósofo começou a falar. À minha volta eu via as pessoas


pegarem as canetas e anotarem o que ele dizia; fiquei fascinado ao
perceber a importância que sua fala tinha para as pessoas na sala.
Ele conta como, desde os primeiros anos de sua infância, sua
homossexualidade o distanciou da família e do mundo que o
cercava (e eu disse a mim mesmo e pensei: igual a você). Conta que
precisou fugir, e como o movimento num mundo imóvel permitiu
que ele enxergasse a realidade de outro modo (e eu pensei: igual a
você). Ele descreve suas primeiras experiências homossexuais, os
homens que encontrava secretamente atrás da catedral de sua
cidade natal, à noite, e sobretudo a relação com o mundo e a visão
de mundo que ele progressivamente inventou a partir de sua
homossexualidade. Cita nomes que eu nunca tinha ouvido, Oscar
Wilde, Violette Leduc, Jean Genet, Monique Wittig. Eu estava na
primeira fila, eu o ouvia.
Sentia algo crescendo dentro de mim, mas ainda não sabia o que
estava acontecendo.

Ele prossegue. Descreve a impossibilidade de falar com a própria


família por causa de sua transformação e de seu distanciamento.
Conta como aos vinte anos foi para Paris, a capital, a cidade grande
onde tudo parecia possível, para estudar filosofia, e para viver mais
livremente do que em Reims, sua cidade natal. Diz que em Paris
começou a escrever livros, a se inventar como intelectual. Meu
coração despertava no peito. Tudo mudava à minha volta. Agora eu
entendia o que sentira desde suas primeiras frases: Por que nunca
tinha feito o mesmo que ele? Por que eu não era como ele? Por que
será que nunca tinha ido para Paris — como ele? Por que limitara a
esse ponto meu descolamento do passado? Suas palavras
impulsionavam meu corpo para longe da sala onde estava sentado,
e de repente estava longe dos outros, longe de Elena também, pela
primeira vez estava longe dela.
Eu o ouvia, ele falava, eu o ouvia e pensava de repente, eu queria
ser como ele, eu queria ser ele — por que será que eu não tinha fugido
para mais longe? Não sabia mais o que sentia, eu o invejava, ele me
fascinava, e um segundo depois meus sentimentos mudavam para
um misto de ciúme e de raiva, por que ele venceu enquanto estou
aqui, paralisado nesta pequena cidade de interior, e não li quase nada, e
não escrevi quase nada a não ser algumas cenas desprezíveis de teatro
sem nenhum valor copiadas do que Elena escrevera, por que ele e não eu
— eu não queria mais ouvi-lo, queria que ele se calasse, por favor,
façam ele se calar — eu o odiava por não ter o que ele tinha, e
depois minhas emoções se invertiam novamente, elas se invertiam
e eu achava que nunca havia admirado alguém com tanta
intensidade; me virei para Elena e vi seu corpo se distanciar de
mim. Não podia mais tocá-la, queria chamá-la, mas ela não me
ouvia. Quando o filósofo terminou a palestra — ele se chamava
Didier Eribon, eu ainda não sabia, mas logo o chamaria apenas de
Didier, logo ele seria meu amigo, substituiria Elena em minha vida
e produziria sem querer a ruptura mais dolorosa de toda minha
história —, quando ele terminou a palestra eu me aproximei dele
para pedir que autografasse meu exemplar de seu livro. Outras
pessoas esperavam pelo mesmo motivo, deixei-as passar, queria
falar com ele, queria que os outros fossem embora para ficar
sozinho com ele e dizer que me parecia com ele, sentia a
necessidade de fazer isso, não sei por que essa frase era tão
importante, tenho que lhe dizer que me pareço com ele, tenho que lhe
dizer que eu também fui embora e que também fui separado do mundo
da minha infância pelo meu desejo, pelo meu segredo, tenho que lhe
dizer que eu também — pensava muito rápido, rápido demais,
minha boca foi ficando seca. Dei alguns passos na direção da mesa
onde ele estava sentado para autografar e estendi o livro para ele;
não conseguia falar, tinha medo de dizer alguma coisa que me
diminuísse a seus olhos. Balbuciei, Sou igual a você, gostei demais
do que você falou esta noite. Baixei os olhos e pensei Agora acabou.
Ele acha que você é um idiota. Ele acha que você é idiota e nunca vai se
interessar por alguém como você. Mordi a língua para me punir por
minha frase; ele sorriu para mim e disse obrigado. Acrescentou
que as pessoas que haviam organizado o encontro na universidade
o convidaram para tomar alguma coisa para comemorar a palestra e
o sucesso da noite, que eu podia me juntar a eles, o bar aonde iam
ficava a poucos metros — era um bar que eu conhecia, já tinha ido
com Elena. Não conseguia acreditar no que ele dizia. Por que me
convidava, eu e não os outros? (Depois ele me diria que
reconhecera um furor de fugir no meu olhar e na minha postura.)
Segui o grupo que ia para o bar onde várias mesas tinham sido
reservadas e me sentei perto dele para poder conversar. Disse a ele
que me chamava Eddy; como com Pierre, eu não ousava dizer
Édouard. Disse a ele mais uma vez, era preciso repetir, talvez fosse
por mim que fizesse isso, talvez fosse um modo de me tranquilizar,
de me dizer que não estava sozinho, que meu sofrimento e meus
desejos se pareciam com outros sofrimentos e outros desejos,
disse a ele que minha história se parecia com a dele — ou melhor,
que eu adoraria que ela se parecesse com a dele, e ele me
respondeu sorrindo: então faça isso, transforme sua vida. Ele falava
comigo, eu falava com ele, eu tentava lhe mostrar que merecia ser
visto e ouvido, que era digno dele.
Precisei de uma coisa tão simples, tão comum quanto uma
palestra para mudar completamente e irremediavelmente meu
destino.

Voltando do bar, caminhava com Elena e alguma coisa acontecia


dentro de mim, alguma coisa violenta e inédita, meus
pensamentos se repetiam Por que será que eu não fui embora? As
palavras de Didier despertavam a dor, o gosto amargo dos insultos
voltava à minha boca, a dor da exclusão na minha cidade, a
vergonha do meu pai por minha voz ser aguda demais, seu olhar
que baixava quando eu falava na frente dos outros, porque ficava
envergonhado, tudo isso voltava porque eu entendia que não tinha
fugido, que estar aqui em Amiens era ainda estar preso ao meu
passado e preso a tudo isso. É verdade, por que não tinha pensado
nisso antes, eu conhecia pessoas que tinham crescido na minha
cidade e que moravam em Amiens, que foram embora como eu
para a cidade grande da região, era um pouco raro mas não era uma
coisa impossível, eu não tinha fugido de nada. Naquela noite, por
causa do encontro com Didier e todas as possibilidades que esse
encontro abria, entendi que minha vingança tinha apenas
começado. Eu tinha que ir para Paris como Didier e fazer a mesma
coisa que ele, escrever livros, ser reconhecido no mundo inteiro se
quisesse realmente vingar a criança que fora, era essa a frase que
eu dizia a mim mesmo, será que a criança que eu fora não tinha o
sonho de falar diante de plateias que a teriam escutado e admirado
— como Didier? Eu não tinha prometido a mim mesmo ser
importante e famoso um dia, não tinha esperado que os garotos da
escola vissem no que eu tinha me transformado, e que sofressem
com o que tinham feito comigo, que se arrependessem, que
sofressem por causa da distância entre a vida deles e o que a minha
se tornara? Eu não tinha passado anos, criança, me entrevistando
de manhã na frente de um espelho para sentir que existia? Não
tinha passado todos os primeiros anos de minha vida vendo as
pessoas na televisão e sonhando em também me tornar visível?

Falo sempre demais, tenho muitas histórias para contar, devo


contar esta: um dia, quando eu estava jogando futebol na minha
cidade com três outros garotos, Kevin, Dimitri e Steven, e tinha
doze anos, Kevin chutou a bola muito forte e ela foi parar no jardim
ao lado do terreno baldio em que jogávamos, no jardim de uma
senhora a quem chamávamos de Bruxa. Ninguém teve coragem de
ir buscar, todo mundo tinha medo da Bruxa, então Kevin me disse,
Eddy, se você for lá buscar eu juro que nunca mais a gente vai
chamar você de bicha ou de viadinho. Logo imaginei uma nova
vida sem o Insulto. Disse que sim e corri até o jardim da Bruxa,
corri mais rápido que nunca, escalei a cerca de arame farpado, eu
que normalmente tinha tanto medo de arame farpado, costumava
passar por baixo do arame farpado enquanto Kevin ou Steven
escalavam, eles saltavam por cima e eu me arrastava por baixo, mas
dessa vez consegui, saltei, não tinha mais medo da Bruxa, voltei e
entreguei a bola para Kevin, fiz o que ninguém ousara fazer, já
enxergava minha nova vida sem o Insulto, acreditei nisso, mas
quando Kevin pegou a bola me disse Obrigado, viadão. Os outros
morreram de rir, até agacharam na grama para recuperar o fôlego,
de tanto que riram. Depois do encontro com o filósofo foi essa a
dor que despertou, porque me dei conta de que estava menos
distante do que pensava. Doía tanto.

Elena me perguntou se eu tinha gostado da noite e pensei Como


pude me enganar por tanto tempo, durante tantos anos. Disse a ela que
Sim, mas era apenas um jeito de interromper a conversa, de evitar
que acontecesse, de não falar, de não estar ali, eu não estava mais
ali, naquela rua de Amiens, meu corpo fazia apenas figuração, e eu
pensava Durante todos esses anos achei que tinha mudado e me tornado
outra pessoa mas me enganei. Me enganei. Pensava que tinha fugido,
mas era prisioneiro desta cidade, esta cidade me enganou, mentiu para
mim, me fez acreditar que ela era o lugar da liberdade, mas era apenas
o lugar da fatalidade, tudo isso não passa de uma mentira, eu vivi uma
mentira. Eu olhava as ruas à minha volta e essas ruas que me
pareceram imensas e sem limites durante todos aqueles anos em
Amiens estavam agora minúsculas, tentavam se fechar sobre mim,
eu olhava à minha volta, Quero ir embora, quero ir embora daqui.
Eu me lembrava, na primeiríssima vez em Amiens, precisei de
mais de duas horas para ir da estação ao colégio, ainda que
houvesse apenas setecentos ou oitocentos metros entre os dois,
porque me perdi, a cidade me parecia tão vasta. Agora eu
repensava tudo isso e dizia a mim mesmo, Eu detesto esta cidade, eu
tenho que ir embora. Elena me olhava de um jeito diferente. Ela via
que alguma coisa não estava certa. Você tem certeza de que está bem,
e eu disse Sim, Sim, mas meu Sim não queria dizer sim, meu Sim
queria dizer Não fale mais nada, as únicas frases que ouvia na
minha cabeça: É preciso ir embora daqui, Agora é preciso ir embora.
Agora me lembro, Elena disse rindo que meus dentes e minha
mandíbula eram tão disformes que no dia em que eu morresse ela
pegaria meu crânio para fazer um cinzeiro. Ela era a única que
podia dizer essas coisas sem me machucar.
Eu me inscrevi no clube de haicais do colégio com ela. Escrevemos
haicais eróticos e por causa do tema eles não puderam ser expostos
nos corredores da biblioteca como os outros. Acho que ela deve ter
rido dessa história pelo menos durante um ano. Eu ria com ela.
Ela sempre terminava de almoçar antes de mim, e quando não
tinha mais nada no seu prato, começava a comer o que tinha no
meu. Eu reclamava e ela respondia “É porque não como há dois
dias!”. Eu dava de ombros.
O dia seguinte

No dia seguinte à palestra eu me levantei e estava exausto, não


tinha dormido. Passara a noite sonhando com minha vida longe de
Amiens, às vezes desestimulado pelo caminho que era preciso
percorrer e às vezes com o corpo cheio de entusiasmo durante os
breves instantes em que eu achava que seria possível, que faria
isso. Imaginava cartazes nas ruas anunciando uma palestra que eu
faria, como Didier, meu nome impresso por toda a cidade e a
vergonha da minha infância apagada para sempre. Eu me
imaginava, escritor, famoso.
Quero ser claro, para mim o desafio era o da mudança e da
libertação, não o dos livros ou da vocação literária. Não acho que
minha primeira obsessão fossem os livros. Se eu sonhava de
repente em me tornar um escritor, não é porque sonhasse
escrever, mas porque sonhava em me livrar definitivamente do
passado e isso era o que se apresentava naquele momento por
causa do encontro com Didier, só isso. Não se deve enxergar no
que escrevo a história do nascimento de um escritor, mas a do
nascimento de uma liberdade, do desenraizamento, custasse o que
custasse, de um passado odiado. Se não fosse tarde demais e eu
tivesse conhecido um bailarino do Opéra de Paris ou de Moscou
que tivesse vindo apresentar seu trabalho em vez de um autor
como Didier, será que nessa configuração eu teria preferido me
tornar bailarino e não autor, para ir embora de Amiens, será que
teria empenhado toda minha energia e todas as minhas forças
nisso, como fiz ao querer me tornar um intelectual e imitar Didier?
Acho que sim. Acho que eu queria mudar para me libertar, e que
teria pegado qualquer saída para fugir. Simplesmente, esta saída
aqui — a escrita, os livros — era a única que se oferecia a mim, por
causa do encontro com Elena e pelo acaso dessa palestra; os livros
e a escrita eram a única saída que tinha me dado uma possibilidade
concreta, real, de mudar mais uma vez.

Depois de me levantar, fui para o chuveiro, e até no banho


pensava, É preciso mudar. Saí do apartamento e assim que me vi na
rua desdobrei o pedaço de papel amassado que estava no meu
bolso, em que tinha anotado na véspera os títulos dos livros que
Didier citara durante a palestra. Fui até a livraria; eu levava o
dinheiro economizado nos últimos dois anos de salário da Maison
de la Culture e comprei uma dezena de livros citados durante a
palestra, Pierre Bourdieu, James Baldwin, Émile Durkheim,
Marguerite Duras, Erving Goffman, Jacques Derrida, Assia Djebar,
Patrick Chamoiseau, Simone de Beauvoir. Eu sabia que se quisesse
escrever tinha que ler, não podia esperar, já estava muito atrasado,
tinha dezessete anos e não lera quase nada. Voltei para casa
prometendo a mim mesmo ler nos dias seguintes todos os livros
que acabara de comprar, eu que, apesar de minha transformação
com Elena, durante aqueles anos, falava de livros sem lê-los,
porque até agora essa ilusão tinha sido suficiente.
Transição

As insônias depois da palestra. Eu imaginava Nadya constatando


minha metamorfose, me reconhecendo transformado, famoso,
como Didier, e dizendo às suas amigas Sabe, quando ele chegou a
Amiens, não era nada, ele lutou para chegar lá.

Eu ficava emocionado com a admiração despertada nas pessoas


com quem ela falaria.

Aconteceu uma primeira vez, quando Elena veio me buscar para ir


ao cinema com ela. Expliquei que não podia sair, que tinha de ficar
sozinho no apartamento lendo. Era a primeira vez que eu
respondia desse jeito. Ela me conhecia havia quatro anos e eu
nunca tinha dito uma frase como aquela.
Elena me olhou como se tentasse decifrar meu rosto, como se
tentasse desmascarar por trás do meu rosto uma pessoa que estaria
usurpando meu corpo e minha identidade. Ela deu de ombros, O
que você está lendo? Mostrei a ela a capa do livro, A distinção:
crítica social do julgamento. Ela nunca tinha ouvido falar. Nosso
encontro acontecia ao contrário, dessa vez era eu que lia e ela que
não conhecia o livro que eu estava lendo (mas não fiquei feliz,
tinha medo de me afastar dela).

*
Eu lia, mas não entendia o que lia, as frases eram muito complexas,
os livros faziam referência a ideias e conceitos que eu não
conhecia, não entendia. Eu me forçava, dizia a mim mesmo que
entenderia depois, após ter lido, que cada livro me daria a
posteriori as chaves para entender o que eu lera na véspera, tentava
me convencer de que, se compreendesse uma página em
cinquenta páginas, então já teria conseguido muito — nem sempre
eu conseguia me convencer, mentir para mim mesmo —, e em
algumas noites, me desencorajava diante das páginas de um livro
aberto, incapaz de decifrar uma simples sucessão de letras e
palavras, eu me odiava, me desprezava, Nunca vou conseguir. Girava
em torno do livro que resistia a mim e me impedia de penetrar
nele, como se as frases me rejeitassem, fisicamente. Eu sofria por
ser quem era. Mas continuava lendo, pensava: Se você não se
tornar um autor, então terá perdido tudo. Tentava escrever textos
curtos depois de algumas horas de leitura; me dedicava. Não
mostrava a ninguém o que eu fazia. Sei que o que digo pode
parecer estranho, que é difícil imaginar que alguém que nunca
tivesse lido ou escrito de verdade antes de repente dedicasse a isso
todo seu tempo, toda sua loucura, toda sua energia, mas foi o que
aconteceu.

Mais imagens.

Na vez em que, quando eu tinha doze anos, durante uma trilha


organizada pela associação esportiva de nossa cidade, eu me
divertia comparando os personagens da minha série preferida com
quem estava comigo. Caminhava com uma dezena de pessoas
numa trilha de terra, cercada por quilômetros de campos e de
florestas. Eu apontava os outros, Você é a Rebecca, você é o
Michel, e você, a Laetitia. Havia um personagem gay na série, visto
como afeminado, sobre o qual todo mundo fazia piada. Ele se
chamava Thomas. Na hora em que eu disse para minha tia E você
eu não sei quem é, ela respondeu Eu não sei quem eu sou, mas
você, Eddy, você é o Thomas. Todos os que caminhavam com a
gente riram, Ha ha, sim, o Thomas, a louca.
Eu quis morrer.

Na vez em que, na escola, meu pai me pediu para dizer à tesouraria


que não poderíamos pagar o refeitório, minha vergonha quando o
tesoureiro respondeu Mas uma quantia como essa seus pais podem
pagar, né? Nem é muito, diga a eles para fazerem um esforço.

Quando no colégio um menino me disse O preço da minha cueca é


o preço do seu guarda-roupa inteiro.

Na vez em que lá pelos catorze anos, logo depois de conhecer


Elena, quando eu ainda voltava para a minha cidade, fui convidado
para um churrasco por Kevin, no terreno atrás de sua casa. Fazia
calor, era verão. Kevin acendeu o fogo quando anoiteceu, bebíamos
uísque com suco de laranja, comendo churrasco, sentados em volta
do fogo, uma dezena de pessoas. Todos riam, e de repente o pai de
Kevin que estava com a gente e que tinha bebido demais disse
Então, Eddy, parece que você gosta de rola, é verdade ou não. É
verdade ou não que o que te excita é encostar numa rola bem
grande ou segurar ela. Os outros riam, e eu também fingi que
estava rindo. Quanto mais eles me insultavam mais eu ria, com um
gosto de aço e de sangue na boca.

Todas as vezes em que eu não levava lanche para a escola, porque


não tinha dinheiro, ao contrário das crianças das famílias mais ricas
que levavam biscoitos embrulhados em papéis vermelhos, verdes,
azuis, brilhantes, nessas vezes, então, com dez ou onze anos, eu já
entendia o significado da palavra classe.

O dia em que meu irmão caçula me disse, durante uma briga, com
minha mãe de testemunha, De qualquer jeito todo mundo na
cidade diz que você é viado, e eu fiquei apavorado achando que
minha mãe tinha ouvido. Saí de casa correndo e passei parte da
noite fora, nos campos, até o meio da noite. Não queria voltar e
olhar para a minha mãe, enfrentar sua pergunta, É verdade o que o
seu irmão tá dizendo?

Ler esses livros, ser como Didier, ir embora de Amiens era me


distanciar de todas essas imagens. Superá-las. O encontro com
Didier reavivou minha infância, ele a devolveu para mim, e por
causa dele eu tinha que fugir dela mais uma vez.

A filósofa Eve Kosofsky Sedgwick fala em algum lugar sobre a


energia transformadora inesgotável que infâncias humilhadas
podem produzir.
*

Eu tinha que continuar.

E depois as lembranças das vitórias, também despertadas desde o


encontro com Didier.

No dia em que aos doze anos eu tinha escrito uma pequena peça
de teatro para a escola, não exatamente uma peça, mas algumas
cenas cômicas que se encadeavam, para as comemorações de fim
do ano, que apresentamos para alunos e professores e todos me
aplaudiram de pé ao final, centenas de pessoas, e eu pensei
Ninguém mais vai ousar me insultar agora, eu ganhei, você
ganhou.

Num outro dia em que a sra. Roger, que dava aula de história no
colégio, me disse, sorrindo: Você é simplesmente excelente sr.
Bellegueule.

No ano em que fui o escolhido entre a classe inteira do teatro para


aparecer num filme com a Isabelle Huppert. Era o sonho de todo
mundo.

*
Se eu escrevesse um livro, sentiria essa mesma sensação, dez vezes
mais forte. Provaria ao mundo que eu era alguém e que o mundo
estava errado em querer me inferiorizar.

Era preciso ler, ler o máximo possível.

Não me lembro da virada, do momento em que, depois de várias


semanas, comecei a entender cada vez melhor o que lia, o
momento em que as crises e as lágrimas ficaram para trás, e em
que cada ideia num livro me lembrava outras ideias em outros
livros. Experimentava os primeiros resultados do meu trabalho e
da minha dedicação. Durante as noites com meus amigos em
Amiens, Elena, Julie, minha conversa era aprimorada com todas as
coisas que eu sabia, que acabara de aprender, e eu sentia uma
espécie de admiração da parte deles.
Entendi que Saber = Poder.

Na Maison de la Culture, à noite, eu guiava os espectadores pelo


teatro e cada vez mais ia me sentar do lado de fora quando o
espetáculo começava, para ler. A regra era que dois arrumadores
deviam vigiar as portas de entrada, enquanto os outros vigiavam o
interior da sala, e eu pedia para Léa e para o resto da equipe se
poderia ficar do lado de fora o maior tempo possível; acho que eles
se surpreendiam com minha enorme transformação, quase total.
Eles me viam chegar todo dia com um livro diferente, Arendt,
Heidegger, Deleuze, eu lia no trabalho, lia à noite, lia na hora do
almoço na universidade, lia no ônibus, sempre com isso na cabeça:
tenho que ir embora, tenho que ir embora. Tenho que mudar.

Eu não gostava mais de Amiens.

Havia Elena, mas eu estava certo de que ela iria embora comigo
para Paris.

Ou melhor: acho que sabia que ela não iria embora comigo, mas
queria acreditar que ela faria isso para não enfrentar o que eu
estava fazendo; eu me preparava para abandoná-la.

Eu ficaria contente, e até feliz por isso...


Ficaria feliz de poder falar com você sobre todas essas questões (e sua
companhia é tão agradável!)
Quando agora há pouco, no ônibus, você mencionou a ideia de jantarmos
juntos, eu senti realmente uma euforia crescendo dentro de mim.
Eu queria chamá-lo, mas não ousei.
Continua de pé? Posso me permitir convidar você para jantar durante seu
seminário em Amiens?
Aguardo sua resposta, com certa ansiedade, e desejo um bom fim de semana.

Tinha pensado durante muitos dias. Ia escrever para Didier e


convidá-lo para beber alguma coisa. Me sentei em frente ao
computador e digitei, Caro Didier Eribon. Eu olhava aquelas três
palavras, sentia meu coração batendo na garganta, nos meus
pulmões, na minha garganta, eu relia, Caro Didier Eribon, mas não
conseguia continuar, tinha muito medo de uma recusa por parte
dele que me colocaria de volta no meu lugar. Não conseguia
escrever outra coisa, não encontrava nenhuma frase, eram
sentimentos que eu queria expressar e nenhuma frase seria capaz
de traduzi-los sem traí-los. Havia no meu corpo uma tensão que
simbolizava tudo, minha história, meu passado, minha infância,
meus sonhos, e essa tensão não queria palavras (e eu pensava:
talvez seja preciso dançar. Talvez os movimentos dos meus músculos
testemunhem melhor meus sentimentos do que as palavras). Esperei
muito tempo, e depois as palavras vieram, meu corpo cedeu.
Retomei Caro Didier Eribon. Disse a ele que partilhava com ele a
mesma história, o mesmo passado, que me reconhecia nele, que
queria ser como ele, não sabia mais nada, será que eu era ele ou
queria ser ele. O e-mail acabava com um convite para talvez jantar
comigo, um pedido tímido, Continua de pé? Posso me permitir
convidar você?
Ele aceitou. Ele me disse que beberia alguma coisa comigo e
que a gente poderia jantar juntos. Recebi seu e-mail e corri para a
casa de Elena, nem olhava para os lados, e quando cheguei à casa
dela gritei: ele aceitou, ele disse sim, ele disse que a gente até pode jantar
juntos, você imagina. Ela sorriu. Eu não enxergava seu
ressentimento. Eu era muito egoísta, queria ir embora. Ainda não
entendia — diferentemente dela que sempre enxergava as coisas
melhor do que eu, e antes de mim — que tinha ido anunciar para
ela o começo da nossa separação.

No seu e-mail de resposta Didier tinha me contado que estava


dando aula na Universidade de Amiens; só então descobri que,
antes mesmo de conhecê-lo, ele já estava perto de mim, na mesma
cidade que eu, e eu não sabia. Pedi a ele autorização para assistir a
todas as suas aulas, inclusive aquelas que dava para os alunos de
quarto ou quinto ano ou para estudantes de doutorado, e ele me
disse que eu era bem-vindo. Eu não queria perder nenhuma,
achava que em suas aulas aprenderia coisas que acelerariam minha
metamorfose. Durante os meses que se seguiram à sua palestra,
entre o instante de minha decisão de ir para Paris e minha partida,
me sentei na primeira fila em todas as suas aulas, sem exceção,
anotava os títulos dos livros que ele citava, os comprava e lia. Eu
imitava Didier, copiava o jeito como ele falava, sua maneira de
olhar e de sorrir. Falava dele e de seus livros para Elena e para
meus outros amigos de Amiens, Alice, Julie, Juliette também, uma
nova amiga que conhecera na universidade, durante minhas
conversas com elas eu exagerava minha proximidade com Didier.

Será que eu estava me tornando uma pessoa má? Será que


reproduzia em Amiens a violência que exercera alguns anos antes
com a minha família, quando voltava para a casa da minha mãe e
fingia ler no sofá para lhe mostrar quem eu me tornava? Será que
mudando eu queria mostrar aos outros que não era mais como
eles, será que eu compreendera que mudar não queria dizer apenas
se tornar um outro, mas também não ser mais como os outros e,
portanto, rejeitar esses outros, abandoná-los, colocá-los
desesperadamente abaixo de si? Será que eu tinha me tornado uma
pessoa detestável?
Eu não ia mais aos bares nas noites em que não trabalhava no
teatro.
Geralmente, desde minha chegada a Amiens, nas noites em que
Elena passava com os pais eu ia aos bares com outros amigos, bebia
com eles durante toda a noite minúsculos copos de vodca pura e
voltava para casa quatro ou cinco horas da manhã, bêbado, mal
conseguindo andar pela calçada. Eu me lembro que cantava com
eles, nossas vozes na noite, foi antes que o encontro com Didier
me lançasse para o futuro, que o futuro e a esperança no futuro
invadissem completamente minha vida, antes da rarefação do
presente em minha vida — e justamente, depois desse encontro
com Didier, quando Julie ou Étienne vinham me chamar, eu dizia a
eles que não podia, que tinha tarefas, que não podia sair porque
precisava ler, precisava ler um dos livros que Didier havia citado
durante uma de suas aulas. Nas primeiras vezes eles me olharam
surpresos como Elena, mas quando a cena se repetiu a surpresa se
transformou numa forma de agressividade, até a noite em que
Étienne me olhou e disse Ele se acha superior agora de qualquer
forma, não sei que papel está interpretando, desde que assistiu à palestra
daquele outro ele acha que é parisiense.
Sua frase me machucou.
Eu não sabia que meu sonho estava tão visível.
Paris, as primeiras vezes

Eu via Didier uma vez por semana desde que começara a assistir a
suas aulas e desde a primeira vez que ele aceitara beber alguma
coisa comigo. Falei para ele do meu projeto de escrever livros e de
ir embora para Paris — de imitar, no fundo, o que ele fizera mais
ou menos com a minha idade e que havia contado na noite de sua
palestra. Uma noite, ele me convidou para jantar num restaurante,
era terça-feira, e esse primeiro convite foi o início de um ritual, de
um hábito, eu o encontrava toda terça à noite no mesmo
restaurante, estava me aproximando dele. Nunca tinha ido a um
restaurante antes, exceto uma ou duas vezes em um contexto
excepcional, e quando me sentava à mesa reservada por ele, ficava
inebriado com a sensação de estar num lugar onde eu era servido
— como se vivesse uma vida que não era a minha, e o prazer que
me atravessava era igual ao que sente um ladrão. Durante essas
noites ele me fazia entrar em um universo diferente de tudo o que
eu conhecera, pelas histórias que me contava sobre seus amigos
escritores, filósofos, artistas, pelo relato de seus dias escrevendo e
revisando seus manuscritos, a vida gay em Paris — isto é,
frequentar bares gays e sua comunidade de amigos com quem
compartilhava uma mesma sexualidade e uma cumplicidade
baseada nessa sexualidade. Autores que Elena admirava eram
amigos dele, de seu círculo íntimo, e ele os chamava pelo primeiro
nome. Eu sentia uma urgência transbordar do meu corpo: eu não
podia esperar, queria ir para Paris o mais rápido possível. Além de
ter pressa de viver minha nova vida e querer vivê-la o mais rápido
possível, eu também sabia que em Paris poderia encontrar
homens, e meu desejo ocupava cada vez mais espaço em mim
depois da etapa ultrapassada com Pierre. Disse isso a Didier e ele
me incentivou. Disse que eu teria belos encontros, que em Paris
experimentaria uma liberdade que nunca conhecera, e depois
dessa conversa decidi ir para lá todos os fins de semana.
As primeiras vezes em Paris foram como explorações de uma
vida totalmente nova, mais forte e mais bonita. Conhecia pessoas
que tinham vidas que eu jamais poderia ter imaginado e que faziam
sonhar, estudantes do conservatório de teatro que à noite faziam
improvisações em bares decadentes, artistas que não tinham a
carreira que queriam e que davam aulas de teatro ou de dança nas
associações de seu bairro — mas mesmo o que para eles parecia
ser fracasso e renúncia para mim era sinal de uma vida boêmia e
livre em comparação com a vida de Amiens, que me parecia
fechada e limitada; eu queria ter a vida deles. Nos bares em que ia,
eu conhecia advogados, jornalistas, arquitetos — nomes de
profissões que em Paris pareciam esconder privilégios infinitos,
vidas de riqueza e de independência, de importância, de viagens
pelo mundo. Com essas pessoas eu punha em prática o que tinha
aprendido com Elena, as referências culturais, o modo de comer,
de falar. (Será que é disso que Nadya vai falar anos mais tarde quando
disser que eu aproveitei tudo o que ela me transmitira?)
Eu andava durante dias inteiros para descobrir a cidade, seis,
sete horas de caminhada sem parar, almoçava um chocolate quente
ou um suco de tomate num café; estava feliz. Descobri as
Memórias de Simone de Beauvoir que Didier havia me
recomendado e queria viver uma vida igual à dela, de Beauvoir,
uma vida de intelectual; lia nos terraços dos cafés, encontrava
Didier nas brasseries de Montparnasse, ele me falava do
manuscrito em que estava trabalhando, das palestras que dava ou
dos colóquios de que participava, dizia frases diretamente ligadas à
sua vida de autor, “tenho que preparar minha palestra para a
próxima semana”, “tenho que responder meu editor”, e eu sonhava
poder dizer essas palavras também. Ele me convidou para ir à
ópera uma tarde e eu fiquei transtornado, não sei se pela beleza da
música ou porque ir à ópera me passava a impressão de ser um
perfeito burguês, e não é mesmo possível distinguir as duas coisas.
Que imagem poderia estar mais distante do meu pai do que aquela
de mim, ali, sentado no Opéra de Paris, ao lado de um escritor?
É preciso ter vivido para entender, mas mesmo assim vou
tentar explicar, tudo o que eu fazia tinha um significado
vertiginoso, porque toda a história do mundo deslizava para as
cenas da minha vida, a história do mundo e suas divisões, suas
injustiças. Eu entrava na ópera e pensava Eu nunca deveria entrar
nesta sala, me sentava no terraço de um café no Marais para ler
uma obra de Derrida ou de Arendt e pensava Eu nunca deveria
estar aqui, eu nunca deveria saber que esses autores existem.
Experimentava uma certa pena ou ao menos uma tristeza por
aqueles que iam aos grandes teatros parisienses ou que se
sentavam no terraço de um café sem entender a sorte que tinham,
sem se maravilhar, que realizavam esses gestos como tinham feito
na infância, como seus pais e avós fizeram antes deles, porque
nasceram num mundo mais privilegiado do que eu. Meu privilégio
era o de ter conhecido a vida sem privilégio.
Entremeio

Eu partia no sábado à tarde, sem saber onde iria dormir, e voltava


para Amiens no domingo à noite ou na segunda de manhã. Nos
bares eu quase sempre conhecia alguém que me convidava para
passar a noite na sua casa; entendi desde o primeiro fim de semana
em Paris que ter esse tipo de encontro para ter um lugar para
dormir era bastante simples. A necessidade de um encontro era
mais forte, mais agressiva, e por isso mais bonita por conta da
pressão e da urgência, do medo de passar a noite na rua. Mas às
vezes eu não conseguia, acontecia de eu não conhecer ninguém;
nessas noites eu caminhava a noite toda por Paris quando o bar
fechava, no frio, o corpo exausto e as olheiras fundas, e
perambulava, perambulava por ruas que não conhecia, nessa
cidade que eu ainda não conhecia, até as seis horas da manhã,
antes de tomar o primeiro trem para Amiens, o corpo tremendo de
frio e de cansaço — mas não ficava triste, havia em mim, antes de
mais nada, o prazer da vida nova que se anunciava com a mudança
e que já começava, a sensação de viver aventuras e experiências
que seis meses antes eu nunca poderia ter imaginado viver.
(Seria preciso falar também da sexualidade, e do que queria
dizer a felicidade da possibilidade repentina, oferecida por Paris,
de conhecer homens em número quase ilimitado, de viver enfim,
ainda mais radicalmente e mais facilmente do que em Amiens, o
que fora meu desejo desde que nasci, o sentimento de libertação
do corpo, o de entrar, graças à sexualidade, em universos novos a
cada vez.)
Eu ia quase sempre ao mesmo bar em Paris, o Duplex, numa rua
estreita, um pouco distante de outros bares, porque Didier, que eu
encontrava à tarde nos cafés de Montparnasse durante esses fins
de semana, tinha me dito que era um bar intelectual. O bar era mal
iluminado, pairava lá dentro um cheiro de suor e de cerveja que
dava ao ambiente uma densidade e uma profundidade
cinematográficas. Eu avistava um homem nas sombras do bar.
Percebo hoje que eu sempre me dirigia aos homens que pareciam
mais distintos, que pareciam mais ricos; meu desejo social se
misturava com meu desejo sexual, e eu era atraído pelos homens
que se pareciam com o mundo a que eu queria pertencer desde
que tinha tomado a decisão de ir embora de Amiens, os mais de
acordo com meu sonho de transformação. Eu não precisava pensar
conscientemente que essas pessoas pertenciam a esse mundo para
ir em sua direção, para desejá-las, pois era fisicamente atraído por
esses homens. Entre meu desejo físico e meu desejo social não
existia diferença.
Quando um homem com quem eu falava me perguntava o que
meus pais faziam — é uma pergunta bem estranha para um
primeiro encontro num bar, mas eles a faziam, com frequência,
como para me avaliar, estar certos de que não desperdiçavam seu
tempo comigo —, respondia que meu pai era advogado ou
professor universitário. Tinha vergonha, achava que se eu dissesse
a verdade esses homens perderiam o interesse por mim. Se eles
quisessem mais detalhes, eu falava dos pais de Elena como se
fossem os meus. Roubava a vida de Elena, roubava seus pais, e
dizia que meu pai dava aula na universidade, que minha mãe tinha
sido atriz — mas geralmente eu respondia que não queria falar da
minha família.
Eu voltava para Amiens depois desses dias em Paris e não
contava para Elena os detalhes do que tinha vivido. Ela me dizia:
Um dia, um desses homens que você conhece desde que começou a ir
para lá vai separar a gente para sempre. Eu fingia que não estava
ouvindo.
École Normale

Eu estava entrando num novo processo de transformação;


recomeçava tudo, sem saber se ia conseguir e precisava de um ato
definitivo, alguma coisa que marcasse uma ruptura clara com
Amiens e que poderia compensar a incerteza do que eu me
tornaria. Essa ruptura era escrever um livro, tenho certeza disso
agora, mas sabia que para escrever um livro precisaria de tempo.
Eu elaborava planos e estratégias para acelerar minha mudança,
e foi no intervalo dessa reflexão que ouvi falar pela primeira vez da
École Normale Supérieur, a ENS. Percebi que grande parte dos
autores que eu lia e que Didier me recomendara, Jacques Derrida,
Pierre Bourdieu, Michel Foucault, Jean-Paul Sartre tinham
estudado no mesmo lugar em Paris, nessa instituição. Soube que
era uma das instituições de maior prestígio na França — e eu nem
sabia seu nome. De repente comecei a pensar que se chegasse a
Paris sem entrar nessa instituição seria apenas um garoto vindo de
Amiens chegando a Paris, um náufrago, um intruso, mas entrar
nessa escola legitimaria minha presença na cidade, como se Paris
fosse o nome de uma realidade maior do que a do perímetro da
cidade.

Depois de alguns dias me informando falei disso com Elena. Ela


me disse que, claro, conhecia a École Normale Supérieure.
Durante toda sua infância sua mãe esperava, sem acreditar
totalmente nisso, que Elena estudaria lá, É preciso um nível escolar
muito alto para entrar nessa escola, ela é para os filhos da burguesia
parisiense que frequentaram os colégios renomados, e não para nós.
Pela primeira vez o “nós” de Elena estava do lado dos dominados,
e não mais dos dominantes.

Ouvi ela me dizer essas palavras e prometi a mim mesmo que um


dia eu faria isso, entraria nessa escola.
Paradoxalmente, sua resignação me dava forças. Eu me recusava
a pensar — ingenuamente, mas depois entenderia que a
ingenuidade é uma condição para a fuga —, eu me recusava a
pensar que uma coisa podia ser impossível. Continuei a pesquisar
e vi que era possível entrar nessa instituição por várias vias; eu
fazia as condições de acesso se desdobrarem diante dos meus
olhos; contemplava o inacessível.

Quando voltei a encontrar Didier revelei a ele meu projeto. Foi


preciso reunir minhas forças para combater o medo do ridículo, e
lhe dizer que eu queria tentar, tentar entrar nessa escola — na
verdade pela via de menor prestígio, a única possível para alguém
como eu, que poucas semanas antes sequer conhecia o lugar e que
não tinha sido aluno de um dos colégios renomados de que Elena
falava —, mas eu não pensava nisso.
Didier sorriu, Você é ambicioso, isso é bom. Sim, vá em frente, faça
isso. Tente.
Preparação

École Normale Supérieure. Por vários meses só pensei nesse


objetivo, com medo e angústia. Pensava, Se você entrar nessa
instituição, nunca mais vai voltar para a sua cidade. Não eram os
estudos ou as coisas que eu poderia aprender na École Normale
Supérieure que me interessavam, mas a certeza de que se
atravessasse as portas dessa instituição nunca mais poderia voltar
atrás.
Por meio de Didier, me dei conta de que meus diplomas da
Universidade de Amiens não eram suficientes para me salvar. Ele
sabia porque tinha sido vítima da mesma ilusão, na minha idade: os
filhos dos meios mais pobres veem a entrada na universidade como
uma consagração, mas os diplomas universitários, principalmente
se obtidos em cidades pequenas, perderam seu valor há muito
tempo.
Ele escreveu em seu livro Retorno a Reims: “A ignorância das
hierarquias escolares e a ausência de domínio dos mecanismos de
seleção levam a fazer as escolhas mais contraproducentes, a eleger
os percursos condenados, maravilhando-se de ter acesso ao que
evitam cuidadosamente aqueles que conhecem. De fato, as classes
desfavorecidas acreditavam acessar aquilo de que antes eram
excluídas, só que, quando lá chegavam, essas posições já tinham
perdido o lugar e o valor que possuíam num estágio anterior do
sistema. A relegação se opera mais lentamente, a exclusão se
produz mais tardiamente, mas o hiato entre os dominantes e os
dominados permanece intacto: ele se reproduz ao se deslocar”.

É
Entrar na École Normale podia me salvar desse erro.

Comecei a estudar. Era preciso apresentar um projeto de pesquisa


acadêmica e depois passar por uma arguição oral para ter uma
chance de acessar o que então tinha se tornado uma fantasia para
mim, a promessa de uma vida melhor. Uma parte importante dos
candidatos e das candidatas eram eliminados na primeira etapa,
depois da avaliação do projeto de pesquisa; então, por vários
meses, trabalhei nesse projeto; não havia contado nada a ninguém
em Amiens, nem mesmo Elena sabia, tinha medo de que ela
achasse minhas ambições grandes demais, desmesuradas e por isso
risíveis; eu não dizia para os outros porque tinha medo de que
rissem, uma risada que teria me pregado ao passado. Era preciso
ter cartas de recomendação e Didier tinha se oferecido para
escrever uma delas, eu continuava a assistir a todos os seus
seminários na Universidade de Amiens.

Eu me preparava sobretudo lendo o maior número de livros


possível. Lia à noite, durante as refeições, lia freneticamente todos
os livros que Didier me recomendara no dia seguinte a nosso
primeiro encontro e os outros que eu descobria na própria leitura,
cada leitura engendrava outra, cada livro me levava a outro livro —
e cada livro me distanciava do meu “eu” passado. Eu encontrava
Didier no intervalo entre sua saída das aulas na universidade e o
horário do trem noturno que o levava de volta a Paris. Quando eu
via o trem se movimentando e se distanciando, tentava imaginar
essa vida cheia de segredos e de mistérios que se escondia atrás da
palavra Paris, e que minhas idas curtas de um ou dois dias não
bastavam para revelar. Eu pensava: logo essa palavra será minha
vida. Logo eu também serei um mistério para os outros, para aqueles
que vão ficar aqui.
Durante os cafés com Didier, ele me recomendava leituras, ou
me enviava indicações por e-mail à noite.
Didier ERIBON 12 ago 2010
para mim
Você pode ler também Frantz Fanon: Pele negra, máscaras brancas...
E se tiver tempo: os livros de Genet: Diário de um ladrão, Nossa Senhora das
Flores.
E claro (mas aí é preciso bastante tempo, o livro de Sartre: Saint Genet).
Você pode ler ainda Marcel Jouhandeau: De l’abjection (é magnífico se você
ignorar o lado cristão, um pouco invasivo, mas que dá a ele uma estrutura para
pensar sobre essa bela ideia de invenção de si mesmo por meio da injúria de que
se é objeto).
Para uma reflexão teórica: Bourdieu: Meditações pascalianas.
Bem... com isso, você deve ter o suficiente até a volta às aulas!!!
...

Eu ouvia tudo o que ele dizia, absorvia até as frases mais simples,
os menores movimentos. (Vou me lembrar um dia, muitos anos
depois, desses momentos com Didier — um dia, quero dizer,
quando tudo o que fora energia, desespero, lutas, se tornar
lembrança —, vou me lembrar que na primeira vez em que
encontrei Didier num café no centro de Amiens, Didier pediu para
o garçom, num tom baixo e suave, um expresso e um copo d’água,
e durante meses depois eu pedia a mesma coisa que ele sempre
que a situação se apresentava, sempre que era possível, a
associação do café e do copo d’água, além do tom aveludado que
Didier tinha usado, me parecia o símbolo de uma distinção
extrema, um sinal de pertencimento a uma classe inacessível para
mim — e à qual eu queria pertencer, exatamente por causa desse
sentimento de inacessibilidade.)
Era preciso, porém, me concentrar no concurso para a École
Normale, eu tinha que redigir o projeto de pesquisa. Não sabia o
que fazer e fazia como sempre fiz quando queria mudar: imitava. Li
em algum lugar que Jean-Paul Sartre lia um livro por dia durante
sua juventude, e eu achava que era preciso fazer a mesma coisa. Lia
durante grande parte da noite para manter esse ritmo
humanamente impossível, Elena achava que eu parecia cansado e
me dizia isso, eu perdia peso. A partir de minhas leituras fiz um
rascunho do projeto, expus minhas ideias para Didier e ele me
dava conselhos, outros títulos de livros para ler, É preciso continuar,
é preciso continuar. E eu continuava, todos os dias e até várias vezes
por dia entrava no site da instituição, contemplava as fotos dos
prédios, do pátio, da fonte que reinava no meio do pátio e
suplicava dentro da minha cabeça, faça com que eu seja aceito,
uma prece tão simples e banal quanto essa, sem saber exatamente
a quem esse faça se dirigia.
Pedia a Babeth na Maison de la Culture horas extras no teatro
para ganhar mais dinheiro e poder comprar mais livros, eu
trabalhava, eu comprava livros, eu os lia, a falta de sono se
acumulava em meus músculos, mas me tranquilizava dizendo a
mim mesmo que descansaria depois, quando estivesse a salvo de
uma vez por todas; o repouso se transformara numa promessa.
Ludovic

Eu continuava com minhas idas a Paris nos fins de semana. Tinha


conseguido achar um jeito de combinar a necessidade vital de
conhecer homens com a física de trabalhar; chegava no sábado de
manhã de trem e andava da Gare do Nord até uma biblioteca
municipal que fechava tarde da noite; na biblioteca, eu trabalhava,
isto é, lia, lia até os olhos doerem, tomava notas, e tentava
memorizá-las para a arguição oral — se fosse selecionado para a
arguição oral. Comprava cadernetas que preenchia com minhas
anotações de leituras. Trabalhava com a energia do desespero,
tinha a impressão de que se não lesse todos os livros do mundo, se
não entendesse tudo, fracassaria, era preciso recuperar o tempo
perdido com relação àqueles que fariam parte de minha nova vida
em Paris e que eu via o tempo todo à minha volta durante essas
jornadas na biblioteca, aqueles que tinham lido desde os primeiros
anos de suas vidas, ao contrário de mim, que tinham
conhecimentos e uma cultura que eu não tinha, referências de que
eu sequer suspeitava, via minha vida apenas como uma corrida de
velocidade em que eu começara a correr tarde demais, no
momento em que todos os outros já estavam quase atravessando a
linha de chegada, era preciso recuperar esse atraso impossível. Eu
preciso me salvar. Comia um sanduíche, que eu preparara em
Amiens antes de pegar o trem, no pátio da biblioteca por volta das
vinte horas, então voltava para uma das mesas disponíveis entre as
estantes para trabalhar, e quando saía depois do fechamento da
biblioteca, à noite — era quase sempre à noite que eu saía —, ia
para a região dos bares onde sabia que poderia encontrar o que
procurava, alguém com quem passar a noite, na casa de quem
pudesse dormir. Andava ainda atordoado depois das horas de
leitura e de concentração, os novos conceitos e as ideias
palpitavam sob minhas têmporas.
Eu dormia com um desconhecido, quase sempre novo, e no
domingo voltava à biblioteca, trabalhava o dia inteiro, como no
sábado. No domingo à noite voltava para Amiens, com a cabeça
cheia não apenas com tudo o que havia aprendido estudando, mas
também com todos os encontros que tivera, apartamentos em que
entrara, dos homens que me convidavam para dormir com eles,
um jogador de futebol que me levou à sua casa num subúrbio
distante me pedindo para dizer que eu era um colega do trabalho
se a gente cruzasse com alguém, um banqueiro que morava num
apartamento enorme, um fotógrafo em decadência. As voltas para
Amiens no domingo, quando anoitecia, eram voltas ao passado, ao
que eu queria que fosse passado, como se vivesse os sentimentos
antes da realidade, vivendo Amiens como o local do meu passado
quando era o do meu presente, e Paris como o do meu presente
sendo que, então, era apenas o do meu futuro — um futuro ainda
potencial, virtual.

Foi num desses bares do Marais onde muitas vezes eu procurava


alguém na casa de quem dormir que conheci Ludovic. Logo me
aproximei dele, porque fiquei tocado por sua gentileza comigo; e
porque ele correspondia ao que eu queria ser; dava aula em uma
grande universidade parisiense, viajava, tinha dinheiro, estava
totalmente integrado à vida em Paris. Ele ia ao teatro, à ópera. Eu
queria que ele me levasse para a vida dele, como Elena ou Didier.
Ele me convidava para dormir em sua casa, para ir a restaurantes
luxuosos com iluminação difusa, onde, com frequência, no fim do
jantar, o chef vinha nos cumprimentar. Ele me dizia que era um
sinal de distinção, com ele eu continuava minha transformação.
Outras vezes, ele me levava a um hotel. Dizia que dormir no hotel
lhe dava um sentimento de liberdade e era estranho pensar em
algumas pessoas em minha infância que não comiam todos os dias,
por falta de dinheiro, enquanto outras dormiam num hotel apenas
por um sentimento de liberdade. Eu não precisava mais procurar um
lugar para passar a noite quando chegava em Paris no sábado à
tarde, graças a Ludovic. Eu trabalhava na biblioteca durante o dia, e
à noite o encontrava. No domingo, ele me levava para almoçar em
salões de chá, onde era possível beber chá e champanhe na
refeição. Essas refeições eram os brunches, eu não conhecia a
palavra. (Hoje sou obrigado a me perguntar: será que eu usava
Ludovic? Será que me aproximei dele porque entendi que ele
poderia me ajudar em meu projeto de chegada a Paris? Acho que
não.)
Eu falava sobre a École Normale Supérieure com Ludovic; ele
tinha estudado lá, me aconselhava sobre a forma de escrever meu
projeto e sobre a arguição oral que seria preciso fazer caso eu
passasse na primeira etapa. Às vezes, nas tardes de sábado em
Paris, eu encontrava Didier, mas ainda me sentia muito intimidado
por ele, e depois de cada encontro ficava arrasado pela melancolia.
Eu me comparava. Tudo o que ele realizara, os livros que
escrevera, o intelectual famoso que era, tudo me arrasava porque
tudo o que ele era me lembrava de tudo o que eu não era. Ele me
apresentou ao garoto que era seu companheiro, Geoffroy, que
também estava começando a escrever livros.
Projeto, continuação e fim (a esperança)

Um dia, o projeto estava terminado. Eu tinha trabalhado durante


mais de um ano, um ano sonhando com a partida para Paris. Reli
várias vezes o que tinha escrito, imprimi o projeto na casa de
Geoffroy, juntei todos os documentos necessários e fui até o
prédio da École Normale. Era uma sexta-feira à tarde, eu tinha
chegado a Paris um dia antes do que de costume. Me vesti da
melhor forma possível, com minha camisa mais bonita e minha
gravata mais bonita, apertado dentro de um colete social e um
paletó, peguei o metrô e quando cheguei ao pátio da École eu
ainda pensava: se você está aqui você está salvo. Eu não reparava que
era o único vestido daquele modo, daquela maneira tão formal, que
eu tinha tentado me vestir como achava que os alunos se vestiam
naquele tipo de lugar. Bati numa porta e uma moça morena me
convidou a entrar; eu sorria; queria que ela gostasse de mim. Ela
pegou meu dossiê e eu lhe perguntei quantos dossiês como aquele
ela recebia. Ela me respondeu “muitas centenas, e na sua área
serão apenas dois ou três selecionados, a concorrência é brutal!”.
Nem sei mais o que disse a ela, imagino que tenha sido qualquer
coisa banal como “cruzando os dedos”, saí e pensei, Vou chegar lá.

Era preciso esperar os resultados, mas eu sabia que me mudaria


para Paris no outono de qualquer jeito, mesmo se não passasse.
Eu fazia cada vez mais idas e vindas entre Amiens e Paris,
minha presença em Amiens estava reduzida aos dois ou três dias
por semana, que eu passava com Elena, mas todos os dias me
parecia um pouco menos com ela, me distanciava. Quando
encontrava com ela durante a semana, tinha a impressão de ver a
pessoa que eu fora antes, como se ela fosse uma fotografia do meu
passado.
Eu lutava para que ela aderisse à minha transformação e para
que também se transformasse, comigo. Eu falava dos livros que
estava lendo, eu a incentivava a lê-los; a incentivava a adotar meu
novo estilo de vida, convidava-a para ir a brunches comigo, para se
vestir de outra maneira, que eu imaginava que fosse mais
parisiense. Era como se as imagens dos meus primeiros tempos em
Amiens se invertessem, agora era eu que tentava transformá-la,
mas não conseguia. Será que ela me odiava inconscientemente por
causa dessa inversão, pelo fato de que agora era eu quem ensinava
coisas para ela? Eu falava dos meus projetos, de Paris e a chamava
para ir morar comigo; mas quanto mais eu mudava, quanto mais
ela me via mudar, mais Elena se fixava e se enrijecia no que ela era
— isto é, no que eu tinha sido. Nós brigávamos, ela gritava
dizendo que desprezava os parisienses e o esnobismo deles, e que
se eu continuasse a tentar me parecer com eles, ela acabaria por
me desprezar também. Ela odiava minha adesão ingênua e cega às
regras da burguesia. Gritava durante nossas brigas que queria ler
por prazer e não para acumular conhecimento, como eu fazia, não
para acumular poder; ela que tinha me dado os primeiros livros da
minha vida, que tinha me levado para assistir a filmes de arte no
cinema pela primeira vez, ela dizia agora que todas essas coisas
embrulhavam seu estômago, que ela não queria, sobretudo, ficar
como eu. Eu insistia ainda assim; queria que conhecesse Didier,
achava que ela talvez mudasse de opinião se o conhecesse, que ela
ia querer ir morar comigo em Paris.
Promovi o encontro dos dois num café; tinha dito para Didier
que Elena era minha melhor amiga, e durante uma hora nós
conversamos. Didier lhe fez várias perguntas. Ele tentava conhecê-
la, mas ela não respondia como de costume; eu via que Elena
estava sofrendo. Depois do café, propus a Didier pegar o ônibus
com ele para acompanhá-lo até a estação; ele voltaria para Paris
naquela noite mesmo. Elena foi com a gente até o ponto de ônibus,
eu me despedi dela, e quando o ônibus em que estava sentado ao
lado de Didier saiu, Elena levantou sua mão e mostrou o dedo do
meio, com o rosto deformado numa expressão de dor e de tristeza.
Resultado

A notícia chegou numa manhã em Amiens, quando acordei. Abri


os olhos, fui até a cozinha e descobri que tinha recebido uma
correspondência avisando que eu fora selecionado para a arguição
oral do processo seletivo. Chorei e liguei para Didier para contar a
ele. Eu falava rápido, de um jeito descontrolado. Fui caminhar na
cidade e olhei à minha volta, olhei fixamente para as casas de
tijolos e para as ruas como se as olhasse pela última vez, eu me
despedi, queria guardar tudo, fotografar tudo.

A arguição estava prevista para a semana seguinte, e por uma


semana eu li o quanto pude, preparei frases e anotei ideias sobre
diferentes temas, treinava falando na frente do espelho. Pedi para
Léa e Lucas me substituírem na Maison de la Culture, eu tinha que
reservar todo meu tempo para preparar a arguição, e claro que eles
aceitaram, mesmo eu não lhes explicando por que não poderia
trabalhar; eu lhes dizia que era importante, mas sem especificar
nada. (Eu ainda não disse, mas é claro que não falava sobre essa
prova para as pessoas à minha volta em Amiens também por medo
de fracassar, por medo de ter que dizer aos outros que fracassara,
se esse fosse o caso, porque — estupidamente — teria sentido a
confissão do fracasso como a confissão de uma fraqueza.)
Na véspera da prova, fui para Paris. Didier me aconselhou a vir
um dia antes para me preparar com ele e Geoffroy, eu tinha
seguido seu conselho, eles faziam o papel da banca e me faziam
perguntas, os dois sentados na cama de Geoffroy e eu, de pé,
diante deles. Eu tentava responder da melhor maneira possível,

À
mas depois de cada resposta pensava: nunca vou conseguir. À noite
dormi no hotel. Didier tinha reservado um quarto para que eu
pudesse passar a noite em boas condições antes da prova oral do
dia seguinte, ele havia pagado — como Babeth, Ludovic, e de certa
forma, Elena, eu me pergunto: por que será que ele decidira se
encarregar do meu destino? Será que era eu que suscitava esse
movimento nas pessoas, será que meu desespero infinito e minha
esperança sem limites, sua coexistência dentro de mim eram
visíveis?

No metrô que me levava para a École Normale, a frase martelava


em todo o meu corpo, sempre a mesma frase: Se você conseguir você
está a salvo. Tentava pensar em outra coisa, mas não conseguia
fugir de mim mesmo, as palavras e a realidade eram mais fortes do
que eu, não conseguia produzir outros pensamentos, Se você
conseguir você está a salvo.
Eu vestia uma camisa e um paletó, mas Didier me aconselhara a
não usar gravata, formal demais. Desci na plataforma do metrô e
subi as escadas até a rua, caminhei algumas centenas de metros e
quando cheguei na entrada da École minhas pernas ficaram
pesadas, andar ficou muito difícil, como se de repente eu me
deslocasse no mar contra as ondas ou num rio de lama. O canto
dos meus lábios tremia, eu tentava sorrir para as pessoas à minha
volta, mas meu sorriso se transformava em tremor. Todos os
alunos com quem eu cruzava nos corredores me pareciam mais
bonitos do que eu, mais inteligentes do que eu, via estampado em
seus corpos seu pertencimento a um mundo privilegiado, eu tinha
aprendido a reconhecer essas coisas num primeiro olhar, eu sabia,
eu via toda a infância deles na postura de seus corpos ou em seu
modo de se pentear, em qualquer coisa assim mínima e a priori
banal, eu via no modo como olhavam à sua volta, simplesmente na
maneira como olhavam os outros, as viagens de sua infância, as
conversas com seus pais, os livros que tinham lido aos seis, sete
anos, os pratos que tinham comido, toda sua história estava
estampada neles, bastava saber lê-la, e eu sabia fazer isso, eu tinha
conquistado esse poder. Um homem me chamou pelo meu nome
no corredor, sr. Bellegueule? Várias pessoas se voltaram para mim,
deviam achar que era uma piada, deviam achar que ninguém podia
ter um nome tão ridículo. Minhas pernas ficaram ainda mais
pesadas, eu tinha medo de não conseguir mais me mexer e cair no
chão, estragar tudo, nessa etapa, depois de meses de trabalho e de
esforço, agora que eu estava mais perto do que nunca do objetivo.
Na frente da banca passei a acreditar que podia conseguir.
Eu me lembrei de tudo o que tinha aprendido, todas as fichas
redigidas nos meses anteriores, os conselhos dados por Didier e
Geoffroy, nosso treinamento na véspera; tudo voltava. Falei com
facilidade, com, acredito, naturalidade e segurança na voz, o medo
tinha desaparecido. O homem que fez a maior parte das perguntas
me agradeceu e eu saí. Estava certo de ter conseguido, liguei para
Didier para contar como tinha sido, mas ele refreou meu
entusiasmo, fazia isso por generosidade, hoje compreendo, ele
queria que a queda não fosse difícil demais caso eu não passasse.

Alguns dias mais tarde, recebi uma correspondência dizendo que


eu tinha sido selecionado. Caí de joelhos, chorei mais uma vez,
tudo mudava à minha volta, o sentido do meu passado e do meu
futuro, meu olhar sobre minha vida e sobre os outros, até a
qualidade do ar e da luz parecia se transformar. Eu repetia para
mim mesmo: estou a salvo, estou a salvo.
Conversa imaginária na frente do espelho

A partir desse momento você ficou ainda mais impaciente para ir


embora de Amiens.

Era mais do que impaciência. Quanto mais minha partida para


Paris se aproximava, mais eu me sentia sufocado em Amiens; me
sentia numa armadilha. A certeza do futuro tornava a realidade do
presente insustentável — isto é, a certeza que eu tinha de que iria
para Paris, e de que iria para estudar naquela instituição que
representava para mim, já disse isso a você, o sinal de uma ruptura
definitiva. Estudando lá eu tinha a impressão de fugir ainda mais,
de ir ainda mais para Paris, do que se estudasse em outro lugar,
como se Paris não fosse o nome de uma cidade, mas de um tipo de
realidade social, e que entrando naquela instituição eu estava ainda
mais presente na cidade — você entende?
Eu ainda não sabia que uma vez ingressado na instituição, ela
não teria mais a menor importância para mim.
Chamei Elena para bebermos alguma coisa no terraço de um
café, estava um dia bonito, um calor de fim de verão. Eu me sentei
à sua frente e contei que ia embora para Paris dali a um mês, ia me
mudar. Ela sabia que meu projeto estava se concretizando, mas não
imaginava que seria tudo tão rápido, acho. E então lhe disse que
tinha sido admitido naquela instituição, que eu tinha me preparado
para o exame durante meses sem falar para ela.

Como ela reagiu?

Não me lembro. Só lembro do meu sofrimento. Eu ainda a amava,


mas sentia que o Eu que pensava “eu ainda a amo” não era o Eu
que a amara. Eu tinha mudado muito, não era mais a mesma
pessoa. E, no entanto, eu a amara. É um sentimento difícil de
explicar... Tentava me agarrar a uma relação, mas me dava conta de
que uma relação nunca existe sozinha, aprendia essa obviedade, ela
é uma ligação entre duas pessoas, e eu não era mais aquela pessoa,
aquela da relação com Elena. Eu tinha saudade de um fantasma.
Queria suplicar a Elena que se mudasse também, como eu, no
mesmo sentido que eu, que adotasse meus novos sonhos, meus
novos interesses. Queria chacoalhá-la pelos ombros, queria mandar
que ela ficasse como eu, gritar na sua cara que quisesse morar em
Paris também, que quisesse viver todas as vidas, como eu, que
quisesse transformar tudo. Tudo, como eu...
Ela contou para Nadya e Nadya preparou uma festinha em
minha homenagem, a irmã da Elena fez um bolo para a ocasião e
escreveu ENS sobre a cobertura de chocolate.
Deveria ter sido uma festa, mas a noite teve gosto de cinzas.
A noite fatalmente se transformou numa cerimônia fúnebre,
uma cerimônia de separação.

E depois?

Os rumores começaram a se espalhar pela cidade. Eu disse para


diversas pessoas que estava indo embora, e por quê. E então vi na
internet que algumas pessoas — pessoas que conhecia havia anos,
e de quem era amigo — diziam que eu tinha ido para a cama com
Didier para “vencer” — é uma palavra ridícula, mas foi a que
usaram. Diziam que eu era um ambicioso, um egoísta, um
arrivista, que tinha me aproveitado de tudo o que aprendera em
Amiens e de meus amigos de lá para me dar bem, para ir embora
para Paris. Quando eu caminhava na rua, sentia os olhares hostis
sobre mim — sei que o que digo pode parecer exagerado, no
entanto é verdade. Os rumores proliferavam, cada rumor fazia
surgirem outros, maiores e piores. Por que será que eles reagiram
assim? Será que querendo mudar eu os lembrava de que eles não o
faziam? Será que sou arrogante por fazer essa pergunta? Não, não
sou, porque não acredito na superioridade daqueles que mudam
sobre os que não mudam, naquele momento sim, mas hoje não
mais... tento compreender. Ou talvez exista um ódio à mudança,
sem causa, sem explicação, que se transmite entre os corpos e
através do tempo, não sei.

Como você reagiu a esses rumores?

Eu não tinha linguagem para isso. Estava paralisado. Só conseguia


gritar quando estava sozinho.
Eu me lembro de uma garota, Clothilde, que estudara com
Elena e comigo no colégio, e que a partir daquele dia escreveu nas
redes sociais que eu tinha me aproveitado da cultura de Elena e da
família dela, de tudo o que eles tinham me transmitido sobre arte
ou cinema. O que poderia responder a isso? A acusação era tão feia
que me reduziu ao silêncio. Eu só pensava uma coisa: preciso ir
embora, preciso ir embora.
Adeus

Eu já havia começado a procurar um lugar para morar em Paris.


Não tinha dinheiro suficiente para alugar um apartamento, e
preenchia formulários para tentar conseguir um quarto numa
residência universitária. Falei para Ludovic sobre os
procedimentos administrativos e ele me convidou para morar em
sua casa; a noite caía, Ludovic caminhava à minha esquerda, ele
empurrava sua bicicleta de que quase nunca se separava. Ele tinha
uma pequena quitinete no centro de Paris, na place de la
République, além do apartamento grande em que morava com seus
filhos. Eu poderia ficar de graça na quitinete, não precisaria pagar
aluguel. Sua proposta mudava tudo, o futuro me parecia quase
fácil, tudo estava no lugar. Abracei Ludovic e dei um beijo em seu
rosto.
A mudança se aproximava. Em Amiens, eu fazia a contagem
regressiva dos dias que ainda faltavam antes da partida, eu pensava:
só faltam vinte e um dias, vamos lá, só vinte dias e você vai embora
daqui. Eu tinha enchido uma dezena de caixas de papelão, tinha
apenas as minhas roupas e os livros que comprara desde que
conhecera Didier. Pedi demissão da Maison de la Culture, Babeth
me abraçou; ela me disse que tinha orgulho de mim, que tinha
certeza de que eu realizaria grandes coisas em Paris, era uma das
poucas pessoas que se alegrava com minha partida, além daquelas e
daqueles com quem eu trabalhava, Christiane, Satine, Lucas, Léa e
os outros, não sei por que as pessoas lá eram tão diferentes do
mundo que as cercava, talvez porque grande parte delas fossem
artistas e enxergassem o trabalho no teatro como uma etapa de sua
vida, talvez elas também pensassem em ir embora um dia e a
esperança de partir estivesse contida em sua presença. Elena
precisava de dinheiro, então pedi a Babeth que a contratasse no
meu lugar, Babeth confiava em mim, ela me prometeu que a
contrataria (e cumpriu sua promessa, uma semana depois que fui
embora).

Era preciso me despedir de Elena. Eu a encontrei no terraço de um


café. Ela me esperava, eu a via de longe, seu telefone e um copo
dispostos sobre a mesa à sua frente. O sol estava muito forte,
agredia minha pele e deixava minha boca seca. Eu me sentei, olhei
para Elena, mas não sabia o que dizer. O sol me queimava. Eu
ainda tentei, pedi a ela mais uma vez que fosse comigo, A gente vai
ter o apartamento do Ludovic, vamos ficar juntos. Você vai poder fazer
tudo o que quiser.

Ela me disse novamente que sua vida não era em Paris, mas ali.
Não insisti mais. Fiquei junto dela sem dizer nada. Lá fora, as
pessoas caminhavam, davam risada, era a ação do sol sobre a pele
que as fazia rir. Eu procurava alguma coisa, uma frase para dizer,
mas quanto mais procurava, mais a possibilidade de encontrar uma
frase parecia ficar longe. Eu tentava não chorar porque sabia que
minhas lágrimas tornariam minha partida mais real, tornariam
mais real meu abandono. No silêncio, as imagens voltavam, a da
primeira vez, quando Romain me mostrou Elena no meio do pátio
do colégio; a primeira vez que li a seu lado, na biblioteca, fascinado
com sua capacidade de concentração; o mergulho com ela no mar
gelado, a primeira vez que dancei com ela e que cheirei seus
cabelos; cenas da sua risada, sua risada sonora que preenchia todo
o cômodo em que estava. Me lembrei da noite em que depois de
beber demais dormi aconchegado a seu corpo, na sua cama
minúscula, aquecido pela temperatura da sua pele, quase
inconsciente, mas tranquilizado por ela; da vez em que quase
morri de uma peritonite e ela passou duas semanas comigo na
cama, me alimentando, enxugando minha testa coberta de suor.
Eu pensava: não chore, você não deve chorar. Eu não sabia o que
Elena pensava ao meu lado, imagino que estivesse me odiando.
Depois de quase uma hora sem dizer nada, me levantei e disse que
precisava ir embora. Tinha acabado.

Numa primeira versão deste livro eu começava o relato com estas


palavras:

A história da minha vida é uma sucessão de amizades rompidas. A


cada etapa dessa vida, dessa corrida contra mim mesmo, tive que me
separar de pessoas que amara para poder avançar ainda mais. Eu não
decidia isso, elas também não: eu lutava para me transformar, elas não
tinham a mesma obsessão, elas continuavam a ser o que eram quando
eu as conhecera, e de repente não éramos mais parecidos; não
achávamos mais o que nos dizer, não nos compreendíamos mais. Só me
restava sair em busca de novas pessoas que me acolheriam, antes que
meu desejo de transformação voltasse a me impulsionar para outra
vida, e me levasse a abandoná-los por sua vez.
Um monólogo de Elena
(homenagem a Jean-Luc Lagarce)

Quando você foi embora,


— eu me lembro de tudo —
foi preciso entender. Eu tive que entender que eu não era a sua
vida mas que eu fui só um momento da sua vida.
E que eu estava errada.

Será que sou culpada?


Talvez eu tenha feito algo errado,
Não sei.
Você poderia ter dito.
Por que você não disse
você poderia ter dito
se eu fiz ou se eu disse algo errado,
Um erro
Eu teria mudado.
Eu poderia mudar.
Não podemos ir embora assim sem dar ao outro uma chance para
melhorar,
Não é justo
Está me ouvindo?
Por que você não me deu uma chance?
Não, eu não errei
Não sei por que estou dizendo essas coisas
Eu me deixei levar,
o que dizemos,
Eu falo mas eu sei
Eu sei qual é a resposta
E a resposta é Você

Não foram os meus erros que fizeram você ir embora, e sim o seu
egoísmo,
A resposta não está em lugar nenhum dentro de mim
Ela está totalmente fora de mim
Não posso me enganar a esse respeito
Não posso me deixar manipular
Você queria viver sua vida,
Era você mesmo quem dizia essa frase quando eu o criticava
Era seu jeito de não responder
Tenho que viver a minha vida
E para você eu era apenas uma etapa.

Eu devia ter me dado conta.

Eu queria ser seu ponto de chegada, mas era apenas seu ponto de
partida.

É idiota,
Eu achava que viveria a vida com você.
A gente falava disso, a gente sonhava,
Você seria professor de história e eu jornalista ou artista,
Não uma grande artista,
não,
isso não me interessava,
Nunca sonhei com a glória,
Só uma artistazinha numa cidadezinha do interior,
Com alguma coisa para fazer
Uma artista sem público,
Mas nós teríamos sido felizes.

Eu teria sido feliz.

Por que você foi embora

Para mim só ficaram imagens


Você caminha ao meu lado na chuva
Você canta no meu ouvido
Você cochicha
Você está aqui

Será que você se lembra de quando chegou todo maquiado?


Foi na frente da catedral
Você se achava feio, eu tinha que tranquilizar você o tempo todo
sobre isso
E naquele dia,
Você decidiu se maquiar por causa da raiva que tinha do seu
próprio rosto

Quando vi você chegando com seu rosto laranja


— você não sabia se maquiar, nunca tinha feito isso —
Eu ri.
Não conseguia parar de rir
Você estava ridiculamente laranja,
Eu olhava para você e ria,
Mas minha risada não magoou você,
Você se lembra
Você não ficou magoado
Você que era sempre tão suscetível
E que se ofendia por nada
Você riu comigo.
Falei: Você está laranja!

Peguei um lenço no bolso, o umedeci com a minha saliva e limpei


seu rosto.
Segurei seu rosto com uma mão e o lenço na outra
Você deixou eu fazer isso
E eu disse para você: não se esconda. Você é bonito, você não
precisa se esconder.
Não se esconda

Agora é tarde demais


Todas as imagens vão desaparecer.
Será que é um tipo de pretensão imaginar a dor de Elena? Na verdade,
é a minha própria dor que ponho nessas palavras imaginadas, meus
arrependimentos, minha saudade. É o Outro Eu, aquele que queria ter
ficado, que fala, e que, ao falar, me critica.
Chegada

Juliette, a nova amiga minha e de Elena que conhecemos na


Universidade de Amiens, tinha colocado minhas caixas de papelão
em seu carro; eu tomei o trem e ela me encontrou em Paris. Eu a
esperava embaixo do apartamento de Ludovic, ela chegou e nós
levamos as caixas para cima — em menos de uma tarde a mudança
estava feita. Ludovic havia deixado uma mesinha, uma cadeira e
um sofá-cama no apartamento, pus meus livros no chão e arrumei
minhas roupas no único armário. Juliette passou a noite na minha
casa com Guillaume, que acabara de se tornar seu noivo, nós três
dividimos o sofá-cama, apertados uns contra os outros, no dia
seguinte ela voltou para Amiens, e quando fiquei sozinho no
apartamento olhei à minha volta. Pensei: Agora aqui é sua casa.
Você mora em Paris. Tudo pode começar.

Fui caminhar pelas ruas e observava as pessoas à minha volta. Eu


dizia para mim mesmo que morava naquela cidade, como elas,
aquelas pessoas que eu via alguns meses antes se deslocando pelas
ruas de Paris com suas sacolas de compras e que eu invejava, cuja
vida eu tentava adivinhar, agora eu fazia parte dela, e de fora era
possível acreditar que eu sempre fizera parte dessa vida, talvez
alguém pudesse também me invejar. Quando voltei ao
apartamento, peguei uma folha de papel e anotei a programação
para minha vida futura:

Mudar meu nome (ir ao cartório?), Mudar meu rosto, Mudar


minha pele (tatuagem?),
Ler (tornar-me outra pessoa, escrever), Mudar meu corpo,
Mudar meus hábitos, Mudar minha vida (me tornar alguém).

Não sei se é assim para todo mundo, mas, para mim, quando o
processo da minha transformação começou, ele se tornou um
trabalho mais do que consciente, uma obsessão permanente.
Algumas pessoas contam sua transformação como um processo
lento, como uma superposição de mudanças sucessivas do corpo,
dos estados do corpo, da maneira de ser, de existir, tão espalhadas
e difundidas ao longo do tempo que nem precisam da consciência
ou da força de vontade para se realizar, algumas pessoas explicam
que é no contato com outros tipos de corpos e de indivíduos
diferentes daqueles que tinham conhecido na primeira parte da
vida que mudaram, interiorizando, muitas vezes de forma difusa,
as atitudes desses corpos e desses indivíduos novos. Não foi o meu
caso. Eu queria mudar tudo, e que tudo no meu processo de
mudança fosse resultado de uma decisão. Não queria que mais
nada escapasse à minha vontade.
Olhei pela janela à minha esquerda no pequeno apartamento de
Ludovic, observei o céu, os telhados dos prédios e os corpos na
rua, ao longe, e pensei “Tudo está começando”.
3.
Breves cartas para um longo adeus
(explicações fictícias para Elena)
Nos primeiros dias quando cheguei a Paris foi a liberdade dos
inícios que vivi e senti, tão particular, que não se compara a
nenhuma outra forma de liberdade, igual àquela que experimentei
com você quando me mudei para o apartamento do boulevard
Carnot. Eu acordava de manhã e olhava à minha volta. Via o sofá-
cama sobre o qual estava deitado, a cozinha, a mesinha e a cadeira
que a acompanhava para estudar e para comer, os livros que tinha
trazido de Amiens e pensava: Estou na minha casa. Estou livre.
Pensava: Nunca poderia ter esperado chegar tão longe.
Tinha medo de falar com você nesse momento para não
acentuar a distância entre nós, mas era como se tudo fosse bonito
em Paris, posso contar tudo para você agora, os anos passaram,
tudo era bonito, mesmo as coisas mais insignificantes, comprar
água no mercadinho embaixo de casa, levar minhas roupas de cama
à lavanderia, comprar produtos de limpeza, mesmo as piores
coisas, as mais banais e entediantes, como preencher formulários
administrativos, porque tudo o que eu fazia era como uma
confirmação da minha liberdade, como a prova de que eu tinha
vencido.

[Você sentia minha falta?]

Eu continuava explorando Paris como tinha feito nas minhas


primeiras idas curtas, quando a capital não passava de uma fantasia,
eu dormia quando queria, lia, encontrava homens, frequentava as

É
aulas da École Normale Supérieure com a sensação inebriante e
ingênua de pertencer a uma elite, experimentava todos esses
gestos cotidianos como atos conquistados contra a fatalidade.
Tentava esquecer você. A frase que voltava à minha cabeça, que
eu repetia, era que eu devia viver todas as vidas, e acho que dizia a
mim mesmo que esse imperativo havia nos separado, não eu ou
minhas decisões, mas uma necessidade mais forte do que eu. Que
eu não era a causa. O que eu me dizia é que, logicamente, deveria
conhecer apenas a vida no norte, já que todos aqueles com quem
tinha crescido não puderam escapar dela, você sabe, cresciam e
morriam na região onde tinham nascido, e todos os dias sentia em
mim o movimento de uma felicidade de sobrevivente. Eu me
lembrava das vezes em que os garotos da minha cidade contavam
que iam morar fora, numa cidade grande, para serem cozinheiros
ou garçons, os únicos trabalhos acessíveis a eles, sem diplomas e
sem conhecimentos, e voltavam algumas semanas depois dizendo,
envergonhados, que tinham fracassado, que era muito difícil,
muito caro, que tinham perdido o emprego, como se a cidade os
tivesse chamado de volta. Já eu queria que nada pudesse me
escapar. Viver tudo era me vingar do lugar que me fora destinado
no mundo desde o meu nascimento. E isso, estou enganado?, você
não entendia.

Você só enxergava o abandono.

Eu tinha conhecido um estilista num bar. Foi logo depois da


mudança. Durante a semana ele me convidava para dormir na casa
dele. Fazia sessões de foto comigo, queria que eu me tornasse
modelo. Ele me apresentava para seus amigos que trabalhavam
todos no mesmo ramo que ele, eles tinham viajado por todos os
continentes, passavam do francês para o inglês quando falavam,
estavam sempre voltando de algum lugar, é engraçado, da Itália, de
Singapura, da Coreia do Sul. A partir das vinte horas, eles se
juntavam para badalar. Punham música para dançar e se revezavam
no banheiro para cheirar cocaína, me ofereciam, eu dançava com
eles, a música pulsava no meu corpo, eu bebia champanhe e vodca
até de manhã. E havia noites — e é aí que quero chegar —, havia
noites em que eu parava, olhava à minha volta como se congelasse
o tempo e pensava que nunca esperara viver tantas, no sentido
mais quantitativo do termo, tantas experiências, sensações, cenas
tão distantes daquelas que tinha dividido com você ou daquelas
que tinha vivido mais jovem com minha família. Houve outros
encontros, outras vidas, um ferroviário que me encontrava à noite
com seu corpo cheirando a graxa e metal, outro que me convidava
para jantar nos maiores palácios, o Ritz, o Plaza Athénée — se você
visse meu corpo, meu jeito de falar nesses lugares! —, outro que
traficava e aparecia todos os dias com grandes maços de dinheiro
nas mãos, outro ainda com quem eu ia aos festivais de ópera mais
importantes da Europa, Salzburgo, Aix-en-Provence.

Eu vivia tudo.

Principalmente, continuei me encontrando com Ludovic. Foi ele


que tornara minha chegada a Paris tão fácil, ele que me oferecia um
lugar para morar. Quando eu falava dele para você, no início, antes
do silêncio definitivo entre nós, você dizia que eu o manipulava
para ter acesso ao mundo parisiense, mas não é verdade, eu não o
manipulava, queria que ele me ajudasse, é diferente. Talvez eu
dissesse a ele frases em que não acreditasse totalmente, talvez o
bajulasse um pouco, mas não era para fazer mal a ele, não era o
cinismo que me impulsionava, mas a necessidade de ser ajudado,
quase o desespero de ser ajudado. Aqueles que querem se dar bem
sempre são vistos como manipuladores, mas nada é mais falso,
Elena. Você dizia que eu gostava dele porque ele me ajudava, mas é
uma oposição que não faz sentido, é claro que eu gostava dele em
parte por isso, não apenas por isso, mas em parte por isso, porque
foi dessa maneira que ele surgiu para mim, é o que ele era, alguém
que podia me ajudar, do mesmo modo como é possível ser bonito,
ou sensível, ou inteligente. Será que não se pode apreciar
sinceramente alguém pela proteção que a pessoa proporciona?
Ele me dizia que adorava estar comigo. Acho que ele entendia o
que se passava, meu desejo repentino de conhecer o mundo, e ele
queria participar desse renascimento. No fim de semana ele me
levava para viajar para Lisboa, Roma, Londres, Porto, Istambul, eu,
que nunca tinha viajado, viajava para todos os lugares com ele,
Ludovic me revelava aspectos inéditos da existência humana. Eu
visitava museus, catedrais, mesquitas, ele me dava romances
escritos pelos autores dos países que visitávamos, Pessoa em
Portugal, D’Annunzio na Itália, Woolf na Inglaterra. Eu tinha me
tornado um burguês, tinha a existência de um burguês, quase a
aparência. Ninguém podia enxergar meu passado sob a superfície
do meu disfarce, pelo menos era o que eu queria acreditar. O
deslumbramento das primeiras vezes em Paris se multiplicou, eu
pegava o avião e pensava Eu nunca poderia ter pegado um avião,
estava destinado a nunca fazer isso, me sentava em um restaurante
em Lisboa na frente de Ludovic e pensava Eu nunca poderia ter
sentado nesse restaurante, olhava a Acrópole de Atenas e pensava
Meus olhos não deveriam nunca ter visto isso, sentia a
transformação do milagre em todos os meus gestos, era um intruso
que tinha roubado uma vida que não era a sua. Todas essas coisas
conto para você enquanto escrevo, escrevi meu próprio Diário de
um ladrão. Numa manhã em Roma, num quarto da Villa Médicis
que Ludovic tinha alugado para nós, eu lia o livro de Louis-
Ferdinand Céline, Viagem ao fim da noite, aquele que você estava
lendo quando nos conhecemos, e de repente ao me ver ali, naquele
quarto, na Itália, lendo o livro que tinha se transformado num
símbolo da minha fuga, chorei. Ludovic tinha saído para buscar um
café. Enxuguei meus olhos com medo de parecer ridículo, e
quando ele voltou, não lhe disse nada.
[Eu sentia a sua falta.]
Logo depois da mudança, me pus a trabalhar. Era preciso escrever,
eu tinha me distanciado de Amiens e de você para fazer isso e, de
certo modo, não tinha mais escolha, tinha que dar um sentido para
minha fuga.
Eu sabia o que fazer porque quando jantava com Didier em
Amiens nas terças à noite, antes de ir embora, ele tinha descrito
seus dias, como os organizava, quanto tempo escrevia por dia. Eu
me dedicava a isso o mesmo número de horas, fazia os mesmos
gestos, escrever, imprimir, revisar no papel, reescrever,
reimprimir, fazer novas correções. Brinquei de escrever como
brinquei de ser você. No fundo, escrevendo, realizava gestos que
me distanciavam do passado, escrevia como tinha aprendido a rir
diante do espelho, escrevia para esconjurar o destino. Eu sentava
na frente do computador e me concentrava. Tinha falado da minha
infância para Didier e Geoffroy e eles me estimularam a escrever
sobre o que eu tinha vivido, a exclusão na escola, minha família, a
minha cidade; então eu tentava. Depois de acordar eu tomava
alguns cafés, geralmente com Ludovic, então ligava o computador
e alinhava as palavras, mas não conseguia, tudo o que eu escrevia
parecia fraco, tudo soava falso, todas as frases eram pesadas e
vazias ao mesmo tempo (Didier dizia, rindo, didático-elíptico).
Tentei durante um mês, dois meses, todos os dias no mesmo
ritmo, mas era incapaz de produzir uma única boa frase, então
desisti.
Não falei para você sobre essa desistência. Não lhe disse que, na
verdade, nesse momento, a euforia das primeiras semanas em Paris
havia se dissipado totalmente, que não era apenas o texto. Não
disse a você porque tinha medo de lhe dar razão, de ouvi-la
responder que eu não deveria ter ido embora. Quando falava com
você, eu dizia que tudo ia bem e que tinha uma vida magnífica,
invejável, que estava escrevendo um livro, mas era para esconder o
que acontecia de fato. Porque eu via que em Paris era preciso
recomeçar a metamorfose. Porque tudo o que tinha aprendido em
Amiens não servia mais, em Paris eu estava num novo mundo, e
me sentia inadequado em todos os lugares. Em Amiens, com você,
tive a sensação de pertencer à pequena elite da cidade, de ter
conseguido uma posição no mundo, em Paris eu não era mais
nada, mais nada do que havia aprendido bastava.

Você não sabe que na École Normale Supérieure eu também não


entendia os outros. Sentia a mesma distância em relação a eles da
que tinha sentido ao chegar a Amiens, vindo da minha cidade. Eu
não conseguia participar de suas conversas, me sentia burro e
desajeitado, grosseiro. A maioria deles tinha nascido em famílias
de advogados, arquitetos, empresários ou professores
universitários, tinha crescido nos bairros mais bonitos de Paris, e
diante deles eu sentia que voltava a ser o menino dos primeiros
anos da minha vida, sem referências, sem conhecimentos, sem um
passado de que pudesse aproveitar alguma coisa, regredia em
relação a Amiens, o corpo dos estudantes de lá me devolvia ao
passado — e eu não podia dizer que você não tinha me avisado.
Eles citavam autores que eu não conhecia, falavam de viagens que
tinham feito com a família, estavam tão confortáveis em seus
corpos, eu me comparava e tinha vergonha do meu percurso
fracassado e aleatório. É idiota, eu me lembro de um dia em que
estávamos num corredor, uma lâmpada tinha queimado, ficamos
no escuro e um aluno exclamou: Mas que burlesco! Eu não
entendia como num momento de surpresa ele podia ter usado uma
palavra tão sofisticada e culta, eu nunca teria sido capaz, apesar de
toda a minha transformação com você. Minha presença naquela
instituição tornou-se uma fonte de angústia e de melancolia e
decidi ficar lá o menor tempo possível. Assistia às aulas, mas me
preparava para ir embora assim que acabavam, sempre que podia.
Você me escreveu nessa época, com raiva, que me imaginava
andando triunfante pelos corredores, entre um seminário de
sociologia e um seminário de filosofia, inchado de orgulho de
minha nova vida.

Quero que saiba que você estava enganada.

Quero que saiba que a minha vida não se parecia nem com aquela
que você imaginava nem com a que eu fantasiei antes de ir embora.
Geralmente, à noite, quando estava sozinho, eu retomava a lista
que havia feito num pedaço de papel ao chegar a Paris. Lia as linhas
uma a uma, em cada uma tinha escrito um objetivo de mudança,
Mudar meu nome, mudar meus dentes, mudar minha aparência,
mudar minha risada. Eu punha umas cruzinhas minúsculas ao lado
do que considerava realizado, e me prometia que logo a
metamorfose estaria terminada.
O mais urgente era transformar meus dentes. Era a parte de
mim que mais provocava perguntas e que mais me ligava à minha
infância. A maior parte dos meus dentes eram tortos na minha
mandíbula, é verdade, até você ria deles, e em Paris me
perguntavam por que estavam tão estragados.
Foi Ludovic que me ajudou, de novo ele. Ele me levara para
almoçar num restaurante do faubourg Saint-Honoré, num dos
bairros mais ricos de Paris. Quando chegávamos a esse restaurante
homens e mulheres tiravam nossos casacos, nos acompanhavam
até nossas mesas, puxavam a cadeira para que nos sentássemos.
Ofereciam aperitivos apresentando as garrafas num carrinho de
madeira e de prata, e quando íamos embora Ludovic lhes dava uma
nota de gorjeta. Uma nota.

Sei que você teria condenado esse tipo de lugar. Já eu estava


fascinado — mas volto ao que estava contando, Ludovic falava
comigo, me disse alguma coisa e eu sorri. Foi quando baixei os
olhos e sorri, e meu sorriso revelou minha dentição escondida sob
meus lábios, que ele disse no tom mais doce possível, para não me
ferir, Sabe, acho de verdade que você deveria fazer alguma coisa
com os seus dentes. Você é um garoto bonito, é pena ter os dentes
tão arruinados. Senti a vergonha queimando dentro de mim, mais
uma vez. A gentileza dele não mudava nada, Elena, como se a
vergonha fosse um sentimento objetivo, inscrito na própria
matéria do mundo, e as vontades individuais não tivessem
nenhuma influência, nenhum efeito sobre ela, como se nada, nem
a gentileza, nem a delicadeza, nem o orgulho, nem o processo
histórico e as revoltas pudessem afetar o que o mundo tinha
escolhido, para sempre, marcar com a vergonha: a pobreza, a
feiura, a abjeção. Ludovic retomou, não esqueci sua voz terna, E
também, sabe, se você quer se dar bem em Paris, ter dentes assim,
é meio norte da França, se entende o que quero dizer.
Foi como no dia em que você me ensinou a segurar os talheres,
eu não dizia nada. Tinha aprendido a me calar. Sorri para esconder
a vergonha tentando não abrir mais a boca. Ludovic acenou para
indicar ao garçom que queria a conta. O garçom se aproximou em
silêncio. Ludovic sacou a carteira do bolso interno de seu paletó,
abriu-a para tirar o cartão de crédito American Express e me disse
Você deixaria que eu marcasse uma consulta no dentista para
você? Eles tratarão muito bem do seu problema, você não vai ter
que pagar nada. Eu fiz que sim com a cabeça, Sim, sim, eu
adoraria.

A vergonha se estampara no meu rosto, mas eu estava feliz, se você


soubesse como eu estava emocionado.

Na semana seguinte eu estava sentado na sala de espera, sob meus


pés um espesso tapete vermelho e obras de arte nas paredes. A
secretária me ofereceu um copo d’água, assenti com a cabeça e
observei a sala onde estava. Tudo remetia ao luxo naquele
consultório, queria que você visse, tudo lembrava aos pacientes
sua riqueza e sua importância. Segui a dentista quando me
chamou, mas andando atrás dela senti o medo invadir meu corpo.
Meus complexos de classe e de origem, que no resto do tempo eu
conseguia superar, desabaram sobre mim; sabia que em outros
contextos eu podia representar um papel, fingir que era outra
pessoa ou até mentir sobre meu passado, mas aquela mulher que
caminhava na minha frente para me atender em outra sala no fim
do corredor ia examinar meu corpo, e meu corpo era o elemento
da minha pessoa mais difícil de controlar, aquele que não podia
mentir, a materialização concreta do meu passado, meu passado
feito sangue, carne, e osso.
Eu me acomodei na cadeira e quando a dentista olhou dentro da
minha boca disse, Ai ai ai, não tá nada bonito isso! Fiquei na
mesma situação de quando sua mãe me perguntou sobre meu pai,
fiquei travado e, como com sua mãe, decidi dizer as coisas o mais
diretamente possível para superar a vergonha, disse Venho de uma
família em que as pessoas não têm dinheiro e em que ninguém
cuida dos dentes. Ela ergueu as sobrancelhas, Não, estamos na
França, todo mundo pode pelo menos tratar os dentes
gratuitamente. Ela não me deixou responder, não me deixava
responder, Elena, ela enfiou de novo os dedos dentro da minha
boca, e me dava orientações, Abra um pouco mais, Isso, assim,
mas a frase que ela acabara de dizer continuava ecoando dentro da
minha cabeça, a vergonha era grande demais, eu precisava
responder para expulsá-la de mim, precisava explicar. Tentei ir
mais longe. Fiz como havia feito com sua mãe naquela noite,
repliquei, Ah, mas sabe, cresci no norte da França, onde as pessoas
comem com as mãos. Então lá ninguém está nem aí para os dentes.
Eu me obriguei a rir depois da minha frase, mas por dentro
chorava. Eu me odiei, me odiei, claro que me arrependo, era a
vergonha que punha palavras na minha boca. Você acha que sou
uma pessoa má? A dentista não ligou para o que eu disse, tratou
várias cáries, disse São muitas aqui, tem trabalho a ser feito. Pediu
para que eu voltasse na semana seguinte e me aconselhou a
procurar um ortodontista para endireitar meus dentes tortos.
Na saída do consultório, a secretária me disse que já estava
pago. Telefonei para Ludovic para agradecer, contei para ele como
tinha sido a consulta e falei do ortodontista, ele respondeu que
bastava eu escolher o que quisesse, ele me enviaria um cheque
para que eu pudesse pagar.

Foram necessários quatro anos para tratar meus dentes, da minha


chegada a Paris aos dezoito anos até meus vinte e dois anos. Com
uma semana de intervalo o ortodontista reagiu do mesmo modo
que a dentista ao me examinar. Quando saí do seu consultório eu
estava sentindo tanta dor que tive que tomar remédios que me
doparam. Acordei no meio da noite com dor de cabeça, queria
bater minha mandíbula contra a parede para estancar a dor e
colocar outra dor no lugar da minha. E ainda assim eu dizia a mim
mesmo, Essa dor é a prova de que você está mudando.

Depois dos dentes mudei legalmente meu nome, em seguida meu


sobrenome. Fui a uma clínica para redesenhar as en­tradas de meu
cabelo, me vesti de uma maneira diferente, que parecia combinar
melhor com a minha vida.

Eu apagava um a um os traços do que tinha sido.


Escuta.

Queria contar a você como aprendi a criar o presente, para que ele
não desaparecesse completamente da minha vida e para não
sufocar com minha obsessão pela metamorfose: eu caminho à
noite. É verão, eu caminho à noite, devagar, porque espero que
alguma coisa aconteça, e sei que aqui, nessas ruas que cercam a
place de la République, perto do apartamento de Ludovic, onde
moro, não é uma coisa impossível. Eu contava com a madrugada
para me fazer esquecer meus esforços, minha transformação.
Soube que tinha vencido quando ouvi um barulho atrás de mim,
“ei!”. Antes mesmo de me virar entendi que o amaria e o desejaria,
como se pudesse ouvir a beleza em seu grito. Não me virei. Queria
que ele falasse de novo. Queria ouvir o barulho de sua beleza mais
uma vez.
Continuei andando, ele falou de novo, “ei!”, e foi só aí que me
virei e vi o rosto sem olhos, escondidos debaixo do boné; eu via
apenas seu maxilar e seu corpo sob a camiseta, seu corpo forte e
compacto, a forma de seu corpo que transparecia no tecido branco
e fino da camiseta, como se sua carne fosse dotada de vontade
própria, independente dele.
Ele disse: Você tem fogo? Preciso de fogo para acender meu
cigarro.
Eu sabia que a pergunta dele era mentira. Ele não queria fogo,
não precisava acender um cigarro, mas entrei no jogo; fingi
acreditar na pergunta, ou melhor, acreditar que a pergunta dele era
uma pergunta e me desculpei, disse que não fumava; ele deixou
passar um tempinho. O que significava nosso silêncio era que ele
sabia e eu sabia também exatamente o que ia acontecer, que o
silêncio era apenas a espera de um futuro já definido. Vi que ele
procurava a melhor maneira de se aproximar. Eu ainda não tinha
visto seus olhos; eu os imaginava, os inventava. Mesmo do resto de
seu rosto eu só conseguia ver os reflexos na noite. Então ele me
disse: Eu sou um tubarão. (Silêncio.) E você, gosta de tubarões?
(Silêncio de novo.) Eu ri e ele ficou preocupado: Não? Então
respondi, de um modo entre o engraçado e o sério: Sim, bem, sim,
quero dizer sim.
Ele sorriu sob o boné e de repente diante da visão de seu sorriso
não achei mais sua frase engraçada ou ridícula, ao contrário, era
como se eu nunca tivesse ouvido algo tão sério e profundo. Ele era
um tubarão, ali, na noite; eu acreditava nisso. Ele falou de novo:
Você mora longe? Eu disse que não e sugeri que caminhasse
comigo. Andamos juntos uma distância de trezentos ou
quatrocentos metros. Quando chegamos na frente da porta do meu
prédio — era azul-escura —, pus a senha para entrar; ele estava
atrás de mim, eu sentia sua respiração morna na minha nuca.
Pensei: é a respiração de um tubarão. Sei que os tubarões não
respiram, mas eu repetia, é a respiração de um tubarão.
(É possível escrever essas frases e esses pensamentos? É
possível escrever essas frases quando sua beleza vinha da
densidade da noite e da carga de desejo e de paixão que as cercava?
Jean Genet diz: “Os jogos eróticos descobrem um mundo
indescritível revelado pela linguagem noturna dos amantes. Uma
linguagem assim não pode ser escrita. É sussurrada no ouvido à
noite, com voz rouca. Ao amanhecer, é esquecida”. Eu não
esqueci.)
Subi os degraus da escada de dois em dois, ele me seguia, e no
meu apartamento ele tirou o boné. Descobri seu olhar pela
primeira vez. Passei a mão em sua cabeça raspada, seus cabelos
pretos só com pouco mais de um milímetro arranhavam minha
pele. Encostei os lábios na sua nuca e foi nesse exato momento,
quando meus lábios roçaram a pele escondida atrás de sua orelha,
que ele pegou meu corpo inteiro e o deitou na minha cama com
uma força tão segura de si e tão tranquila que seria possível
acreditar — quero dizer, olhando de fora — que ele estava na casa
dele e que eu era o desconhecido encontrado na noite.
Ele possuía tudo, o espaço, a situação, meu corpo. Meu rosto
estava pressionado contra o colchão, meu olhar mergulhado no
escuro. Ouvia o barulho de seu cinto se abrindo, do zíper
baixando, do tecido da sua calça jeans que escorregava em suas
coxas, a tepidez de seu corpo contra o meu. Senti minha própria
respiração no meu rosto; ele continuava sem dizer nada — e juro
que nunca tinha ouvido um silêncio tão bonito.
Fizemos amor várias vezes. Entre uma e outra ele me falava, me
dizia: Você vai embora comigo. Vamos para longe daqui e vamos
ficar juntos a vida inteira.
Eu não sabia o nome dele.
Ele sussurrava: Você vai ser minha mulher. Você vai virar minha
mulher e vai ser minha, e eu dizia sim, dizia sim.

Na manhã seguinte ele foi embora. Pôs seu boné e seus olhos
desapareceram como na véspera. Saiu da minha casa sem dizer
uma palavra, eu o olhei se lavando no banheiro sem dizer nada.
Pensei: talvez tenha se arrependido das palavras que a noite fez
com que dissesse; observei suas costas, seus ombros pela última
vez.
Hoje, muitos anos se passaram, e quando conto para você essa
lembrança, eu o imagino novamente à noite, surgindo das sombras
ao acaso e recitando para outros as mesmas palavras que disse para
mim na noite do nosso encontro. Imagino o sorriso de quem ainda
não entende até que ponto essas frases vão ser as mais bonitas, as
mais fortes e as mais sérias que irá ouvir, as palavras mais nobres e
mais sagradas que lhe serão ditas.
Devo dizer uma coisa: durante esses encontros na madrugada
— houve outros — o futuro e o passado desapareciam. Eu não
tinha mais medo. Todos os meus medos, do meu futuro, da minha
metamorfose, todas as sombras do passado, Amiens, você, tudo se
dissolvia na madrugada. Esses encontros eram os únicos em que
eu vivia nessa realidade que chamamos de presente.*
O apartamento.
O que eu queria, no fundo, em Paris? Ainda hoje não está claro
para mim, será que queria me tornar um burguês? ficar rico? virar
um intelectual? ser reconhecido? ficar protegido para sempre e
definitivamente do risco da pobreza? queria especialmente mudar
ou mudar sobretudo na direção daquilo que chamamos de
ascensão social? Me parece que era tudo isso ao mesmo tempo,
acho que meu desejo evoluía de acordo com os contextos e as
situações, de acordo com as pessoas com quem eu estava.
O certo é que, desde que parei de escrever, eu me fazia cada vez
mais perguntas, estava com medo. O que iria me tornar? Poderia
dizer a mim mesmo que estudava numa instituição de prestígio,
que morava em Paris, podia ter a segurança de ter uma profissão
bem paga e um lugar no mundo dos privilegiados, mas não bastava.
Meu corpo me pedia para fazer mais, Elena, a violência dos
primeiros anos da minha vida exigia uma compensação maior, eu
não tinha escolha, meu corpo me pedia para ir mais longe — meu
corpo, isto é, a superposição de todas as experiências passadas e
acumuladas.
Procurei ajuda. Como cheguei a essa ideia não me lembro, mas
pensei que se não conseguisse sobreviver sozinho, escrevendo,
teria que encontrar alguém que me acolhesse em sua vida, e que se
tornasse aquele por meio de quem eu obteria minha vingança
sobre o passado. Era preciso que fosse um milionário, um príncipe,
um político importante, não importa, mas que a vida para a qual
me levasse fosse na medida e à altura de minha necessidade de
vingança.

[Não me julgue, tento apenas ser o mais honesto possível com


você.]

No dia em que conheci o herdeiro de uma grande família de


industriais, tão importante e antiga que eu havia aprendido a
história dessa família com você numa aula sobre o nascimento da
industrialização na Europa no século XIX, fiz de tudo para voltar a
vê-lo, para seduzi-lo e agradá-lo. Eu o convidava para vir passar o
tempo na pequena quitinete de Ludovic, a passear comigo à tarde.
Queria tanto me parecer com ele, tanto fazer parte da realidade
dele. Ele tinha um sotaque forte da alta burguesia francesa quando
falava, com a boca quase fechada quando pronunciava as palavras.
Eu o invejava. Eu o imitava. Teria dado tudo para ser ele e trocar
minha vida pela dele. Eu não o amava, alguma coisa dentro de mim
não podia amá-lo, meu passado, minha experiência do mundo, mas
eu continuava. Eu me obrigava. Dizia a mim mesmo que os
sentimentos eram secundários, que a prioridade era eu me salvar.

Depois do cara da linhagem industrial teve Manuel, que conheci


na Espanha. Eu tinha ido para lá graças a uma promoção de
passagens aéreas, e a um quarto numa espécie de pensão por vinte
euros a noite, por menos de cem euros fui passar um fim de
semana lá. Eu não tinha muito dinheiro para comer, comia
sanduíches de meia baguete que custavam vinte centavos e que
comprava no supermercado, sentado num banco perto das
Ramblas, mas estava feliz por estar ali, em outro país.
Na noite em que vi Manuel pela primeira vez, falei com ele e
depois de algumas frases me disse que era prefeito de Genebra. Eu
me agarrei ao encontro com ele. [Não me julgue.] Escrevia para ele
regularmente, ia vê-lo na Suíça uma vez por mês. Ele morava numa
casa grande no meio das montanhas, nos limites de Genebra,
todos os dias havia uma mulher na casa dele que fazia a faxina e
preparava o café para mim quando eu acordava, que passava
minhas roupas. Eu era servido. Nadava em sua piscina, que ficava
no parque particular atrás da casa, cercada de árvores e de roseiras.
Ele me convidava para ir ao festival de Locarno na Suíça, no fim do
dia eu jantava com pessoas que me pareciam importantes e que
Manuel me apresentava, atrizes, banqueiros, o prefeito de
Zurique. Eu fingia que Manuel era meu pai. Pedi a ele que me
adotasse, ele hesitava, eu insistia. Se ele tivesse aceitado, eu teria
ido mais longe do que qualquer um na metamorfose, até meu pai
eu teria escolhido. Repetia para ele meu pedido, em todas as
oportunidades, na piscina durante o dia ou à noite nos hotéis
importantes de Genebra. Quando voltava a Paris e me
perguntavam o que meu pai fazia — na verdade eu achava um jeito
de falar disso mesmo se não me perguntassem —, eu dizia: Meu
pai é prefeito de Genebra, eu me sentia forte, importante. (Manuel
é a única pessoa dessa fase da minha vida de quem continuei
amigo, com quem uma amizade verdadeira nasceu. Ele não era
como os outros, era engraçado, generoso, inteligente, sensível.)
Não parei depois de Manuel (ele não quis me adotar), depois
dele batalhei por outros encontros. Não posso descrever todos para
você, teve o criador de uma marca de cosméticos que morava em
Los Angeles, que eu conhecera naquele fim de semana em
Barcelona e que depois muitas vezes me convidava a encontrá-lo
na Espanha por alguns dias, sua secretária mandava a passagem de
avião, ele viajava de Los Angeles a Barcelona para me encontrar.
Como o filho do industrial, eu também não o amava, mas tentava
não pensar nisso. Era preciso fugir, fugir, fugir.

Já falei para você do homem do sofá? Foi ele que me mandou


mensagem num chat na internet. Era diretor de um dos bancos
mais importantes dos Estados Unidos; procurei o nome do banco
no Google e vi, era verdade, a foto dele aparecia nos resultados da
busca, seu nome era citado nos jornais mais importantes do
mundo. Eu já imaginava uma vida com ele, a infinita riqueza, a
mudança para a América — e sempre a mesma frase ecoava na
minha cabeça, Graças a ele, vou ser salvo. Ele me convidou para ir
a um restaurante na Champs-Elysées, e depois do jantar fui à sua
casa. Nunca tinha visto um apartamento tão grande quanto o dele,
tão impressionante, como uma mansão de vidro suspensa sobre
uma das ruas mais bonitas de Paris. Ele me serviu uma taça de
vinho tinto, provavelmente uma garrafa que custou várias centenas
de euros, me falou do tipo de uva, da safra. Eu compreendia, de
madrugada lia na internet informações sobre vinho, aprendia como
se aprende uma lição na escola, a diferença entre o bordeaux e o
borgonha, as maiores propriedades, as diferenças entre os
primeiros vinhos e os segundos vinhos, era preciso saber tudo isso
para minha nova vida, e de fato quando encontrava esses homens e
constatavam que eu sabia sobre vinho, via a admiração no rosto
deles. Minhas noites de aprendizagem valiam. Eu falava com uma
falsa descontração, É porque meu pai é prefeito de Genebra e
sempre gostou de um bom vinho [não me julgue].
Naquela noite eu olhava a cidade pelas imensas janelas de vidro,
era como se eu flutuasse sobre Paris. O diretor do banco pôs
delicadamente um vinil no toca-discos, a música começou, e eu,
com meu copo na mão e a música nos ouvidos, pensei na minha
infância, na minha cidade. Pensei em você.
Ele me disse Come with me on the sofa, deu um tapinha no
assento para que eu me aproximasse, e eu me juntei a ele. Na hora
em que ia me sentar no sofá branco, ele me disse Be careful, don’t
pour wine on the sofa, it’s polar bear. Seu sofá era feito com a pele de
um urso-polar. Tremi, mas não disse nada. Reprimi minha aversão,
e ergui meu copo para brindar com ele.
Por ora, eu calava a aversão ou a revolta. Estava fraco demais para
deixá-los me vencer, só agora me autorizo a pensar no que escrevo
para você. O questionamento da violência do mundo era um luxo
que não podia me permitir, a urgência era continuar avançando.
Depois da noite na casa do diretor do banco (nunca mais voltei a
vê-lo, adoraria dizer que tomei a decisão de não ir mais à sua casa,
mas foi ele que não fez mais contato), os problemas financeiros se
acumularam. Aconteceu de repente. Eu trabalhava como
arrumador no teatro do Odéon, tinha a mesma função que tivera
no teatro de Amiens, mas era substituto, e em alguns meses não
ganhava nada. Continuava indo às consultas do dentista e do
ortodontista, três, quatro consultas por trimestre, e todo esse
procedimento distribuído por quatro anos custou vários milhares
de euros. Ludovic não pagava mais, provavelmente não pensava
tanto nisso, tinha outras coisas na cabeça, e eu não ousava dizer
nada para ele. Eu me via sem nada, com dívidas para pagar.
Eu costumava jantar com ele ou com Didier, eles me
convidavam, mas nas demais noites eu nem sempre conseguia
comer, passava noites em restaurantes luxuosos com Ludovic ou
em brasseries frequentadas por artistas e intelectuais com Didier e
outras sem poder comer, em vinte e quatro horas minha realidade
mudava radicalmente. Eu fazia macarrão para o jantar e requentava
no dia seguinte, o macarrão no dia seguinte ficava seco e
farinhento, meu corpo se revoltava quando comia isso. Aprendi a
fazer apenas uma refeição por dia para economizar, e hoje esse
hábito me acompanha.

O mais difícil era dizer ao dentista que eu não podia pagá-lo, a


vergonha na hora de pedir para pagar depois. O dinheiro se tornava
uma obsessão, Elena, eu dormia pensando nele, quando acordava o
dinheiro era a primeira coisa em que pensava. Tinha ouvido falar
de uma maneira de ganhar fácil, bastante e rápido. Concluí que
precisava fazer aquilo; entrei nos sites de encontros online e
comecei a encontrar homens com quem eu transava por dinheiro.
Mesmo que não tenha dado muito certo com o primeiro,
continuei, oferecia encontros a outros homens, era o trabalho que
me parecia menos desgastante e menos humilhante, o menos
alienante, menos em todo caso do que trabalhar como garçom ou
lavador de pratos em um restaurante por um salário miserável. Eu
procurava homens nos sites de encontros, mas não queria me
cadastrar em sites de prostituição profissional; não sei por quê,
mas hesitava em dar esse passo, e com o tempo ficou mais difícil
encontrar quem quisesse pagar de verdade, quem estivesse pronto
para pagar mais, esses frequentavam os sites especializados, não os
sites simples de encontros.

Tive que pensar, encontrar outros caminhos para ganhar dinheiro,


e fui secretário num escritório de advocacia, cobaia para
estudantes de medicina, professor particular de francês, zelador.
Uma tarde, quando era zelador, meu chefe me levou até um pátio
cimentado para que eu o limpasse com uma lavadora de alta
pressão. Nunca tinha utilizado uma lavadora dessas, machuquei a
perna querendo tolamente testar a força da água sobre ela, a
pressão da água era tão forte que arrancou minha pele. Eu estava
usando uma calça velha de moletom estragada, esfregava com a
vassoura depois de ter molhado as paredes e o chão e comecei a
chorar. Naquele pátio achei que tinha fracassado. Disse a mim
mesmo que todos os meus esforços não tinham servido para nada,
pensava em Amiens e na minha luta para chegar a Paris, nos anos
de combate com o meu corpo, meus hábitos, com o sistema
escolar, meus fracassos e minhas retomadas, meu novo jeito de
comer, de falar, de rir, minhas novas roupas, e tudo isso não tinha
servido de nada, eu estava sendo chamado pelo meu destino,
esfregava o chão de um prédio de ricos. Me sentei no chão
encharcado e não me mexi mais, estava paralisado por minha
derrota.
Foi através de Didier que acreditei poder encontrar uma saída. Ele
lançou e autografou seu novo livro numa livraria, a Les Cahiers de
Colette. Eu tinha chegado um pouco antes, não era a primeira vez
que ia a um evento como aquele e, mesmo tendo parado com
minhas tentativas de escrever, olhava Didier com um misto de
inveja e de fascinação. Caminhei por entre as estantes, o cheiro do
papel, e Didier me apresentou Colette, a mulher que abrira a
livraria à qual dera seu nome. Depois da sessão de autógrafos eu a
conheci e ela deu a entender que se eu quisesse poderia trabalhar
na livraria, precisava de alguém a partir da semana seguinte. Didier
devia ter lhe falado de mim, ela se comportava como alguém que
tentava me proteger.
Eu disse sim e ela pediu que voltasse na terça-feira seguinte. Foi
assim que me tornei vendedor em uma livraria (não todos os dias,
claro, apenas nos dias em que eu não tinha aulas). Era um trabalho
mais difícil do que eu imaginava, ao contrário do que eu pensava
não bastava apenas recomendar livros, falar com os clientes, era
preciso muitas vezes classificá-los, tirá-los das caixas para organizá-
los nas prateleiras, levar para o estoque aqueles que estavam lá
havia muito tempo sem ser vendidos, carregar as caixas; mas eu
também tinha a possibilidade de ler os livros que queria, e todo dia
descobria novos autores quando os clientes os pediam, Vladimir
Nabokov, Emily Dick­inson, Peter Handke. Eu lia durante meu
intervalo para o almoço, lia nas horas mais tranquilas, quando não
havia clientes. Didier tinha me dito que a livraria de Colette era
um endereço famoso e prestigiado que artistas e intelectuais
conhecidos frequentavam, personalidades da política também; eu
os via de dentro da sala do estoque onde fazia a triagem dos livros,
não ousava me aproximar deles — até o dia em que Philippe
entrou na livraria. Eu ouvi ele perguntando para Colette, Quem é
aquele anjo lindo ali? Colette respondeu que eu me chamava
Édouard. Ele se aproximou, sorri para ele e conversamos. Antes de
ir embora, me deu seu número de telefone e sugeriu voltar a me
ver.
(Esqueci de lhe dizer, no dia seguinte à noite na casa do homem do
sofá de pele de urso-polar, quase por coincidência, fui ver meu pai
na pequena cidade do norte onde ele mora até hoje. Fazia muito
tempo que não o via, vários anos. Andei pelas ruas sem barulho e
sem vida entre a estação e o conjunto habitacional para onde ele
tinha acabado de se mudar. Os prédios eram cinzentos e frios, com
cheiro de urina nas escadarias, meu pai se queixou disso quando
cheguei.
No momento em que abri a porta do seu apartamento e o vi, e
vi a pobreza que marcava cada centímetro do lugar onde ele
morava, o cheiro de fritura, a televisão enorme na frente da mesa
em que comia, seu corpo destruído por uma vida de miséria e
exclusão, pensei no homem da véspera e em seu sofá de pele de
urso-polar, pensei em seus vinhos de muitas centenas de euros, e
então perdi a linguagem. Não encontrava nada em mim para medir
aquela distância, a feiura e a violência do mundo. Não sei o que
era, aquela tempestade dentro do meu corpo, a raiva, o desespero,
a aversão, até meus sentimentos não tinham mais nome. Entendi
que se tentasse explicar aquela distância voltando a Paris, ninguém
compreenderia, eu não saberia expressá-la, porque está fora da
linguagem. Entendi que se a linguagem não podia nada nesse
sentido, então eu não devia convencer aquelas pessoas, as da
minha nova vida, mas combatê-las. Talvez ali, naquela tarde, diante
de meu pai, eu tenha prometido a mim mesmo que um dia o
vingaria.)
No dia em que Philippe me deu seu número de telefone, não pude
deixar de pensar ainda uma vez: eu venci, ou melhor, saí dessa.
Senti como se estivesse compensando todos os meus fracassos e
abandonos dos meses anteriores me aproximando dele, todos os
encontros que não tinham levado a nada, e quanto mais eu o via o
sentimento se fortalecia. Ele me levava para jantar em restaurantes
e eu pensava que a criança que eu fora nunca poderia ter
imaginado que lugares como esses existiam. Esses restaurantes
não tinham nada a ver com aqueles a que Ludovic e Didier me
levavam, nem mesmo com aqueles a que eu ia com Manuel, eram
lugares que funcionavam mais para tranquilizar os clientes com
relação à sua importância do que para comer, como se a palavra
restaurante na fachada fosse uma mentira. Na chegada, um homem
com uma boina de chofer pegava automaticamente o carro de
Philippe e ia estacioná-lo para ele. Philippe entrava no hall e uma
outra pessoa, geralmente uma mulher, tirava nossos casacos e os
pendurava num armário enquanto outra pessoa nos acompanhava
até uma mesa que nos aguardava. Quando Philippe pedia uma
garrafa de vinho, o garçom respondia que ia chamar o sommelier, o
sommelier falava dos vinhos da carta como se falasse de tesouros.
Eu lia os preços das garrafas impressos na carta que Philippe
segurava, preços inimagináveis, mas ainda não sofria por causa
dessa injustiça, assim como com o homem do sofá, eu ainda não
sofria por conta da escandalosa diferença entre minha nova vida e
minha vida antiga, mesmo tendo visto meu pai pouco tempo antes,
sufocava os questionamentos e a dor, vivia no inebriamento da
metamorfose (ficava claro que era o desejo que levava Philippe a
me ajudar, como Ludovic).
Philippe me introduzia em seu mundo em que se misturavam a
alta burguesia francesa e a aristocracia. Durante os poucos meses
que passei com Philippe, ele me convidou para festas em que
conheci duques, princesas, aristocratas muitas vezes convertidos
ao ramo do comércio de arte ou outras áreas. Quando eu saía de
meu próprio corpo para me observar, como fazia nas festas da
época em que cheguei a Paris, dizia a mim mesmo que tinha
realizado meu sonho. Tinha fugido, estava mais longe do que
poderia ter esperado. Imaginava Philippe fazendo o que eu
aguardava havia muito tempo, me chamando para morar com ele e
me distanciando o máximo possível do meu passado para sempre.

Caviar da Aquitânia sobre torrada e espuma de salsão


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Filé de Saint-Pierre, risoto de salicórnia, manteiga de
coral de ouriço-do-mar
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Tábua de queijos
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Creme de baunilha e frutas vermelhas
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Café
Minidoces

Château Chasse Spleen 2006 “Moulis-en-Médoc”


Domaine de Grandmaison 2009 “Graves de Pessac”
Durante a semana, ele me pedia para acompanhá-lo em
recepções no Automobile Club, não sei explicar para você
exatamente o que é, um tipo de associação de pessoas ricas e
poderosas que se encontram para comer caviar, beber champanhe
e cultivar relações. Eu ficava lado a lado com ministros e
deputados, diretores de multinacionais, milionários; às segundas-
feiras, visitava museus com Philippe, nos dias em que estavam
fechados, os museus que o mundo todo admira, o Louvre, o
Museu d’Orsay, museus pelos quais as pessoas atravessam
milhares de quilômetros e continentes, eu tinha esses museus para
Philippe e para mim e mais algumas dezenas de pessoas.
Conversava com princesas e tinha a sensação de fazer parte desse
mundo — eu nem sabia que o status de princesa ainda existia na
vida real. Lembro-me de uma mulher que se apresentou como a
princesa de Broglie, e eu ri porque — será que você se lembra? —
no colégio ou na universidade com você, quando tive que ler um
texto sobre a família de Broglie, numa aula sobre o Antigo Regime,
pronunciei o nome BROGLIE e a professora me corrigiu, Não se diz
Broglie se diz “Breuil”, o nome se escreve Broglie mas se
pronuncia Breuil. Agora eu conhecia os herdeiros dessa dinastia,
me divertia com eles, estava inebriado. Ia a jantares em que me
sentava junto de Philippe em torno de mesas imensas cobertas
com flores e candelabros, na minha frente, meu prato e dezenas de
talheres diferentes, eu não sabia quais talheres devia usar, esperava
para ver como os outros faziam. Uma noite, numa das primeiras
vezes, Philippe sussurrou no meu ouvido Espero que você goste de
caviar, está no cardápio desta noite.
Respondi que sim, sim, não lhe confessei que nunca tinha
experimentado, e não sei se ele entendeu. Sorriu, com seu sorriso
costumeiro, brincalhão, e acrescentou, De qualquer maneira
guarde o cardápio, cada cardápio é uma peça única, quem sabe
daqui a dez anos você possa vendê-lo e ficar rico.
© Chantapitch Wiwatchaikamol

Achei que tinha chegado ao topo do mundo, Elena. Escrevia


cada vez menos para você, nossos corpos se distanciavam, nem
tanto no tempo — eu estava em Paris havia pouco mais de um ano,
não era muito —, mas, de algum modo, no espaço social. Eu me
lembro de ter respondido a uma mensagem sua numa noite em
que esperava Philippe na rua, dizendo que não tinha tempo
naquele momento para escrever para você, que faria isso mais
tarde. Posso voltar no tempo? Você vai me perdoar? Philippe
combinou de me encontrar em frente a um edifício instalado entre
a Assembleia Nacional e Saint-Germain-des-Prés. Eu usava um
paletó azul-marinho, justo, que combinava com minha calça, sob o
paletó, uma camisa branca e uma gravata. Eu me olhei bastante
tempo no espelho antes de sair de casa, o nó Windsor visível na
abertura do paletó comprado com um dinheiro que Philippe me
mandara. Antes de encontrá-lo analisei a pessoa diante de mim no
espelho e pensei: Você está longe agora. Tinha atravessado Paris,
orgulhoso da minha aparência, levando uma garrafa de vinho que
comprara no caminho. Philippe chegou e se desculpou pelo atraso.
Ele me cumprimentou pela gravata, me perguntou o que eu tinha
na mão, e quando viu o vinho disse que não precisava, que tinha
comprado um para dar de presente por nós dois. Respondi que era
melhor ainda, teríamos dois vinhos em vez de um, mas senti um
incômodo da parte dele, até mesmo certa irritação. Entendi que o
vinho que eu tinha comprado não era suficientemente bom para os
amigos dele. Fingi rir, tinha uma ideia, ia deixar o vinho na rua,
alguém passando o pegaria, mas Philippe respondeu que eu não
podia deixar um vinho assim, na rua. Ele disse, É só guardá-lo na
sua bolsa e bebê-lo com os seus amigos durante a semana.
Não tentei mais contradizê-lo.

Philippe tocou a campainha no portão do prédio, nós subimos e


uma mulher toda vestida de preto abriu a porta. Segui Philippe
pelo apartamento — que mais parecia uma casa disfarçada dentro
de um prédio parisiense. Os cômodos desfilavam diante dos meus
olhos e sob meus pés, eu via escadarias que subiam para os andares
superiores, Philippe me mostrava os quadros nas paredes, dizia:
Kandinsky, Jean Cocteau, dizia: esse é um esboço de Picasso. Não
tenho mais certeza dos nomes, mas estou certo de que ele me
disse nomes que me impressionaram, nomes tão famosos que eu
conhecia desde a infância. Eu lhe perguntava num tom irônico:
Mas quanto custa um quadro como esse? Philippe sorria: Tão caro
que nem dá para perguntar.

Era por cenas como essa que eu abandonava você — mas eu tinha
esse direito, me parece que tinha esse direito.

Eu me lembro muito das festas no mundo de Philippe. As pessoas


que o cercavam falavam sobre ópera, sobre as viagens, nunca mais
esqueci o homem que declarou: Devo dizer que prefiro de longe as
praias do sudeste da Ásia às da Califórnia! A Ásia é tão mais autêntica.
Eu ficava à vontade, principalmente quando se falava de música. Ia
à ópera com Didier e Geoffroy, já contei para você, e depois com
Philippe. Eu falava de Massenet, comparava Wagner a
Shostakovitch, o conhecimento de ópera me dava segurança. Dizia
frases para me exibir, Acho que Massenet é muito subestimado, ou
Na minha opinião Mozart é um péssimo compositor de ópera,
essas frases saíam da minha boca. Escondia minha aversão às
comidas gordurosas que eram servidas nessas festas, lebre à la
royale, por exemplo, uma sobreposição enjoativa de carnes, ou ao
excesso de comida, as tábuas de queijos servidas após os pratos já
pesados, tudo o que depois me permiti ver como marcas da
vulgaridade dos ricos. Philippe tinha orgulho de me ter a seu lado,
eu sempre conseguia dizer que estudava na École Normale
Supérieure, sem especificar que tinha entrado pelo processo de
seleção menos prestigioso da escola, eu estava me iludindo, era um
intruso.

Uma última imagem dessa vida. Uma noite, uma mulher que
trabalhava para os amigos de Philippe estava me servindo salada
para acompanhar os queijos e o bordeaux — Chasse-Spleen, o
vinho preferido de Philippe. Ela estava bem atrás de mim, de pé,
pronta para me servir quando os dois talheres que segurava
escorregaram entre seus dedos. Eles caíram na saladeira de metal
e, caindo, ressoaram como um sino. O homem que morava lá, o
que nos recebia, o amigo de Philippe, interrompeu o que estava
falando e disse: Cuidado, Katia. Depois, para os outros: Como
pode ser tão desajeitada, ela faz coisas assim várias vezes por
semana. Ela estava ali, em pé, do nosso lado, a alguns centímetros,
o ouvia, mas ele falava dela na terceira pessoa, como se ela não
estivesse ali, como se sua reação e seus sentimentos tivessem tão
pouca importância que ela não merecesse que ele a esperasse sair.
Sua frase entrou na minha carne. Tive vontade de me levantar e
dizer àquela mulher que eu não era como eles, que não estava do
lado deles, mas fiquei quieto.
Depois contei para Didier sobre esse jantar e lhe disse que tinha
defendido Katia na frente dos outros, mas não era verdade. Eu
mentira porque tinha vergonha de não ter dito nada, esperava que
minha mentira fosse a prova de que eu sabia ainda ter vergonha, e
que a vergonha me tornava mais aceitável. Queria que Didier
soubesse que eu tinha vergonha de não ter confessado meu
silêncio a ele.

Quero contar para você também.


4.
Desenlace
Revés

Um dia essa vida com Philippe acabou. Ela durou vários meses,
durante os quais pensara ter me livrado da minha infância e dos
meus medos.
Não tenho um acontecimento específico para contar, nenhuma
ruptura brutal ou uma briga que tenha ficado na minha memória,
um dia acabou, e só.
Será que estava cansado, depois de ter experimentado essa
vida? Será que entendi que nunca estaria em meu lugar naquele
mundo? Será que eu mesmo me convenci de que devia me retirar,
para não ser confrontado com o fato de que tinha sido aquela vida
que não me quisera, de que eu era radicalmente incompatível com
ela? Ou será que, simplesmente, aquela vida e aquelas pessoas me
enjoaram e eu disse a mim mesmo que não queria ser como elas?
Acho que é principalmente isso, mas não sei, tenho medo de
escolher essa razão por ser a mais nobre, a mais lisonjeira (e, no
entanto, acredito nisso de verdade, me lembro de ter pensado que
detestava, não Philippe, mas aquelas festas com ele).

Acho que foi no começo de 2012. Depois desse término, me


aproximei de Didier e Geoffroy. Viajei de férias com eles, saía cada
vez mais com eles para ir ao teatro, ao cinema, à ópera, eles me
apresentavam ao mundo intelectual, artístico. Com Didier e
Geoffroy nasceu uma das mais belas amizades da história, tenho
certeza (mas nunca esqueci Elena). Eu escrevia pequenos artigos
sobre romances e ensaios numa revista gay, graças a Didier, que
tinha me indicado ao redator-chefe, treinava como elaborar textos,
queria retomar tudo, retomar do zero o sonho que tinha me levado
a Paris. Organizava encontros sobre sociologia e literatura no
Teatro do Odéon, via meu nome impresso nos programas desses
encontros e me sentia existindo aos olhos dos outros, nascendo
ainda.

Agora era preciso escrever um livro, estava certo disso, era assim
que me salvaria definitivamente. Ludovic, de quem eu tinha
escondido quase totalmente as noites passadas com Philippe, por
vergonha, me incentivava, comprava livros para mim.
Eu tinha que fazer tudo de novo, na ordem.
Recomecei a fazer todos os dias o que fazia antes de conhecer
Philippe. Eu me sentava de manhã na frente do computador para
escrever, me obrigava, me levantava e andava em círculos no
apartamento minúsculo, dava ordens a mim mesmo Você tem que
chegar lá, você tem que chegar lá, mas o incentivo que eu me dava
não mudava nada, nenhuma palavra me vinha.
Eu ia aos cafés, tomava notas numa caderneta, tentava fazer
rascunhos de livros, mas tudo o que escrevia me desanimava ainda
mais, quando relia pela manhã o que rascunhara na véspera me
sentia sujo e ridicularizado por mim mesmo, tudo o que escrevia
parecia um plágio malfeito de escritores de quem gostava, eu
apagava tudo, o desespero me impedia de continuar.
Barcelona

Houve o último abandono. Eu estava exausto de tanto lutar com a


escrita e gastava horas nas redes sociais sem fazer nada, sem dizer
nada, conversando com desconhecidos, com o peso do meu
fracasso dentro de mim. Conversava no Facebook com um homem
que não conhecia, que morava em Barcelona. Ele estava sozinho
havia muitos anos e sofria com a solidão. Eu o tranquilizava;
também fazia confidências, sobre a fuga de Amiens, a vida com
Philippe, minhas dúvidas, em outros dias enviava para ele poemas
que escrevia, tentativas de poemas. Ele me dizia que sentia algo
muito forte por mim e que sua frase podia parecer imatura, já que
tinha quase sessenta anos, quase três vezes a minha idade —, mas
não podia deixar de dizer, estava se apaixonando.
Numa tarde em que ele — Éric era seu nome — me telefonou,
propus ir morar na Espanha e recomeçar tudo lá com ele.
Ele respondeu que sim, imediatamente. Decidi ir embora três
dias depois, abandonei tudo, minha vida, meus amigos em Paris,
meus estudos. Abandonei mais uma vez meus sonhos formulados
em Amiens com Elena e os seguintes, que nasceram do encontro
com Didier. Eu não disse a Éric por que queria ficar com ele, por
causa da exaustão, por causa da fadiga extrema da transformação e
da metamorfose, porque eu tinha fracassado.

Três dias antes de ir embora para Barcelona, fingia que vivia


normalmente. Não tinha avisado ninguém. Encontrara Ludovic,
Didier e Geoffroy, tinha ido às aulas na École Normale, fotografado
tudo. Tudo o que eu via, todas as imagens, os rostos, queria
guardá-los, marcá-los para sempre na minha memória, uma última
vez.
Queria ter podido dizer aos outros que sentia muito, que
precisava ir embora porque não tinha mais forças para lutar, que ia
perdê-los, mas que se não fosse embora eu perderia tudo.

Na véspera do voo para Barcelona eu disse para Didier e Geoffroy


que voltaríamos a nos ver durante a semana, mas sabia que não era
verdade. Mentia dizendo até logo quando deveria dizer adeus.
Disse adeus silenciosamente, apenas dentro de mim, para
Philippe, Didier, Geoffroy, para os anos de obstinação, para o nó
Windsor de Elena, para os momentos de risada na frente do
espelho tentando ganhar outra risada, para a doença da
transformação, para os sonhos.

No aeroporto, na área de desembarque, reconheci Éric, que me


esperava. Ele sorriu. Não se parecia com as fotos que eu tinha visto
dele. Não que tivesse mentido ou me enviado fotos muito
atraentes, mas a realidade de seu corpo e seu corpo em movimento
revelavam algo que as fotos não deixavam transparecer.
Olhei para ele e pensei: É a sua nova vida, é ele. Ele me beijou
no rosto e me ajudou a carregar a mala. Ele me levou para sua casa,
me lembro da sua primeira frase: bem-vindo a nossa casa. Ele se
aproximou de mim para me beijar e acariciar meu corpo sob minha
camiseta, eu o beijei, mas não gostei do seu cheiro, não tinha
pensado nisso quando falava com ele pela internet. Disse-lhe que
faríamos amor depois, que por enquanto estava agitado por ter
mudado de vida de maneira tão total e brutal, e ele respondeu Sim,
sim, claro, eu entendo.
À noite ele me convidou para jantar num restaurante nas
Ramblas. Ele me mostrou seu bairro, seu café predileto, o caminho
em que passeava com seu cachorro de manhã ao acordar. Ele os
mostrava como referências para nossa vida futura.
De manhã, depois de acordar, eu ia caminhar na praia. O mar à
minha frente, o sol que aquecia minha pele, gravava todos os
elementos como dados de meu recomeço. Errava pelas ruas, sem
destino, tentava identificar os lugares que se tornariam os meus
lugares na cidade, cafés aonde poderia ir para ler durante o dia,
uma piscina para nadar à tarde, procurava as áreas mais tranquilas
da praia. Estávamos em março, os turistas ainda eram raros, já fazia
calor. Geoffroy me escrevia para perguntar se eu estava bem, como
todas as manhãs, e respondia que sim, fingia que ainda estava na
minha casa em Paris. Nos dias seguintes eu lhe disse que estava
doente e que não podia sair; adiava o anúncio de minha deserção.
Continuava a vida em Barcelona, durante o dia eu dizia para Éric
que precisava caminhar sozinho e à noite o encontrava para jantar,
mas a conversa ficava cada vez mais difícil, os silêncios cada vez
mais pesados. Eu tentava me convencer de que isso era normal,
que era o começo e que precisava de tempo. Eu repetia para mim
mesmo, aqui pelo menos você está descansando, aqui a guerra
terminou, você não precisa mais se transformar, você só precisa ser. À
noite, quando era preciso ir dormir, eu me deitava na cama de
Éric, tentando ficar o mais longe possível de seu cheiro, seu cheiro
de leite de colônia e de couro gasto, ele vinha para cima de mim e
me tocava, tentava me beijar, eu o empurrava levemente, dizendo
que ainda não estava pronto.
Segui assim por uma semana, por uma semana me forcei, e
então disse a Éric que teria que voltar para Paris. Ele não tentou
me segurar, me respondeu Eu entendo. Eu falhara na minha fuga.
Peguei o avião e quando cheguei a Paris mandei algumas
mensagens para Éric, depois cada vez menos. Falei de novo para
Didier e Geoffroy que tinha ficado doente durante vários dias, com
uma febre forte, e que estava feliz de voltar a encontrá-los.
Retorno e última tentativa

Voltei para Paris e para o apartamento de Ludovic, que achei que


tinha deixado para sempre pouco mais de uma semana antes. Nada
tinha mudado. Eu não tinha mais nada a fazer senão tentar
escrever. Me instalei na mesinha e comecei a escrever:

Minha mãe. Minha mãe passava muito tempo me contando


alguns episódios de sua vida ou da vida do meu pai. Sua vida a
entediava e ela falava para preencher o vazio dessa existência
que era apenas uma sucessão de momentos de tédio e de
trabalhos extenuantes. Ela foi por muito tempo mãe e dona de
casa, como me pedia que escrevesse em documentos oficiais.
Ela se sente ofendida, marcada pelo sem profissão impresso na
minha certidão de nascimento. Quando meu irmão e minha
irmã caçula estavam grandes o bastante para tomar conta de si
mesmos, ela quis trabalhar. Meu pai achava isso degradante,
como se fosse um questionamento a seu status de homem; era
ele quem devia sustentar a casa. Ela desejava isso ardentemente,
a despeito da dureza dos trabalhos para os quais poderia se
candidatar: a fábrica, a faxina ou as caixas de supermercado. Ela
lutou. De certo modo, também lutou contra si mesma, contra
aquela força esquiva, indescritível, que a levara a acreditar que
era degradante para uma mulher trabalhar quando seu marido
estava desempregado (meu pai tinha perdido o emprego na
fábrica, voltarei a falar disso). Depois de longas discussões, meu
pai finalmente aceitou e ela começou a dar banho em idosos,
deslocando-se pela nossa cidade em sua bicicleta enferrujada de
casa em casa, vestida com um casaco impermeável vermelho
que tinha sido do meu pai muitos anos antes, roído pelas traças
e, claro (pelo tamanho do meu pai), grande demais para ela. As
mulheres da cidade riam disso Ela parece a mãe Bellegueule com o
casaco grande demais. Quando, um dia, minha mãe ganhou mais
do que meu pai, um pouco mais de mil euros, enquanto ele
ganhava apenas setecentos, ele não aguentou mais. Disse que
era inútil e que ela devia parar, que nós não precisávamos
daquele dinheiro. Setecentos euros para sete bastariam.

Eu escrevia toda a minha infância, o meu passado contra o qual


havia lutado, as palavras da minha mãe, tudo o que tinha me levado
a Amiens e às origens da minha metamorfose, tudo o que tinha
sido a origem do meu desespero e da minha raiva, as palavras e as
frases e as lembranças me vinham à cabeça, eu as digitava no
teclado e no dia seguinte reescrevia tudo o que escrevera na
véspera, trabalhava sete, oito horas por dia; escrevia e quanto mais
avançava mais achava que esse livro seria a ferramenta que me
salvaria; estranhamente, por uma inversão brutal das coisas, eu
escrevia para descrever o que estava tentando esconder havia anos;
eu me lembrava; eu escrevia:

Meu pai. Em 1967, ano do seu nascimento, as mulheres da


nossa cidade ainda não iam ao hospital. Elas davam à luz em
casa. Quando o pôs no mundo, sua mãe estava sobre o sofá
impregnado de pó, de pelos de cachorros e de gatos, de sujeira
por causa dos sapatos sempre cobertos de lama que não se
tiravam na entrada. Na cidade há estradas, claro, mas também
muitos caminhos de terra que ainda são usados, onde as crianças
vão brincar, estradinhas de terra e de pedra não asfaltadas que
ladeiam as plantações, calçadas de terra batida que nos dias de
chuva ficam parecendo areia movediça.
Antes de ir para a escola, eu ia várias vezes por semana andar
de bicicleta nos caminhos de terra. Prendia um pedaço de
papelão no aro da minha bicicleta para que fizesse um barulho
de moto quando eu pedalasse.
O pai do meu pai bebia demais, pastis e vinho em garrafões
de cinco litros, como a maioria dos homens na nossa cidade.
Bebidas que eles compram na mercearia, que além disso
acumula também as funções de café e de tabacaria, de padaria. É
possível fazer compras ali a qualquer hora, basta bater na porta
dos donos. Eles atendem.
Seu pai bebia demais e, uma vez bêbado, batia em sua mãe:
ele se virava de repente para ela e a insultava, jogava todos os
objetos que tinha ao alcance, às vezes até sua cadeira, e depois a
agredia. Meu pai, muito pequeno, preso em seu corpo de
criança insignificante, olhava-os, impotente. Acumulava raiva
em silêncio.
Ele não me dizia nada disso. Meu pai não falava, pelo menos
não sobre essas coisas. Minha mãe se encarregava disso, era seu
papel de mulher.
Uma manhã — meu pai tinha cinco anos —, o pai dele foi
embora para sempre, sem avisar. Minha avó, que também
transmitia as histórias da família (sempre o papel da mulher),
tinha me contado. Ela ria disso anos depois, feliz, finalmente,
de ter ficado livre do marido Ele saiu um dia de manhã pra
trabalhar na fábrica e nunca mais voltou pra janta, a gente esperou
ele. Era operário da fábrica, era ele quem sustentava a casa, e
com seu sumiço a família ficou sem dinheiro, com comida
insuficiente para seus seis ou sete filhos.
Meu pai nunca esqueceu, ele dizia na minha frente Aquele
filho da puta imundo que abandonou a gente, que largou a minha
mãe sem nada, eu cago pra ele.
Fim

Trabalhei nesse ritmo durante vários meses. Acordava, escrevia.


Não comia durante o dia. Prometia a mim mesmo que descansaria:
quando tivesse publicado um livro e ele me vingasse do meu
passado, eu poderia me aposentar para sempre, não fazer mais
nada. À noite, lia o máximo possível, dezenas de romances, para
estimular minha memória, lembranças reais ou imaginárias de
escritores e escritoras despertavam as minhas, eu lia para aprender
a me lembrar. Lia à noite, mas também no metrô indo para a École,
entre as aulas no almoço, à noite. Enquanto tomava banho, ouvia
audiolivros, não queria perder tempo, queria que até a hora do
banho fosse aproveitada para a leitura. Comprava ou roubava livros,
empilhava-os uns sobre os outros no apartamento, tinha livros no
chão, dentro da pia, em cima do móvel do banheiro. Eu contava:
Há dois anos você nunca tinha lido nada e agora leu entre duzentos
e trezentos livros, eu me incentivava, você tem que continuar, é
preciso continuar, em um ano você vai ter lido mais duzentos,
continue, e em dois anos vai ter lido mais quatrocentos.
Eu me sinto tão distante dos escritores que contam sua
descoberta da literatura pelo amor às palavras e pela fascinação
com a visão poética do mundo. Eu não sou como eles. Escrevia
para existir.
Nas noites em que estava com Ludovic, falava para ele de meus
sonhos, talvez se eu conseguir escrever um romance e publicá-lo vou
ficar conhecido no mundo inteiro, talvez se o livro for lido em todos os
lugares do mundo eu me salve de vez e para sempre da pobreza, vou
comprar um apartamento, vai ser a primeira coisa que vou fazer, vou
comprar um apartamento e vou ter abrigo pelo resto de meus dias,
nunca vou ficar na rua. Eu imprimia os capítulos já escritos, relia,
reescrevia, redigitava no computador, recomeçava. Muitas vezes,
durante alguns dias, já não acreditava, a melancolia invadia todos
os espaços da minha vida, a mesma melancolia que me levara a ir
para Barcelona, a comida que eu comia era pior porque eu não
conseguia escrever, o vinho que Geoffroy me servia na casa dele
era pior porque eu não conseguia escrever, Paris era mais
sufocante porque eu sabia que nunca conseguiria chegar lá, toda a
minha percepção da realidade, todos os meus sentidos, todo o meu
corpo estavam condicionados à possibilidade de escrever; Ludovic
se preocupava, Geoffroy e Didier também, eles me aconselharam a
consultar um médico, ele me prescreveu doses mais fortes de
ansiolíticos, todo meu corpo doía.
Continuei até o dia em que, depois de dezenas de desânimos
sucessivos, terminei o livro. Ainda o reli mais uma vez, eu já tinha
relido e reescrito as frases tantas vezes que as sabia de cor. Dei um
exemplar do texto para Didier, Geoffroy e um para Ludovic, eles
leram, me sugeriram algumas modificações, retrabalhei o texto
uma última vez, seguindo seus conselhos, e enviei a versão final
para várias editoras, procurei os endereços na internet. Eu tinha
dado o título do livro de Vida e morte de Eddy Bellegueule, depois o
título ficou O fim de Eddy. Anexei uma carta ao manuscrito
explicando que o livro era a história da minha infância.
Esperei.
Recebi primeiro respostas negativas de diversos editores, eles
me diziam que ninguém acreditaria no que eu tinha escrito,
quando tinha apenas reconstituído minha infância. É estranho,
esses editores estavam tão distanciados do que eu descrevia que
achavam que aquela realidade não existia, que a criança que eu fora
não tinha existido, eles diziam que tanta pobreza e violência não
podiam existir na França.
Recebi outras recusas, mas certa tarde um homem me ligou. Ele
se chamava René, era editor da Seuil, me disse que tinha lido meu
livro e que meu livro o tinha abalado, foi a palavra que empregou,
abalado, repeti para mim mesmo essa palavra durante as semanas
seguintes. Eu estava sentado no sofá e me segurei para não chorar.
Ele me explicou que precisava do aval da editora, mas que estava
seguro, ia publicar meu livro no ano seguinte. Desliguei o telefone,
não consegui mais me conter, chorei, telefonei para Didier e
Geoffroy para contar a eles.
Saí do apartamento e corri para encontrá-los e comemorar o
acontecido com eles, fazia frio, mas eu não sentia o frio na minha
pele, corria e pensava: Você está salvo agora, você se salvou para
sempre, você conseguiu.
As ruas à minha volta se deformavam por causa das lágrimas em
meus olhos e, silenciosamente, sob minha pele, eu disse Adeus ao
passado.
Epílogo
Minha vida toda mudou depois da publicação desse livro e dos
outros que lancei em seguida. É estranho, as coisas com as quais
eu sonhava e que imaginava quando falava disso com Ludovic à
noite, num momento em que ainda nem tinha certeza se
conseguiria terminar um primeiro livro, se realizaram, como se os
fatos e a realidade estivessem submetidos à minha vontade.
De repente, o que eu tinha escrito foi traduzido na Itália, na
China, na Grécia, eu percorri o planeta, viajei pelo Japão para
apresentar meu trabalho, o que agora eu chamava de meu trabalho,
fui ao Chile, a Kosovo, à Argentina, à Noruega. Era como uma
etapa a mais na minha mudança, como se essa nova vida se
somasse à da minha cidade, à de Amiens e à de Paris, como um
nível de realidade suplementar. Os jornais e os canais de televisão
do mundo inteiro me faziam perguntas, o sonho do menino que eu
fora tinha se realizado, queria poder viajar no tempo para dizer-lhe
que tudo ficaria bem, que ele não precisava ter medo. Queria
poder dizer-lhe que um dia enfim ele existiria, que seria
considerado por alguns e digno da atenção dos outros, convidado a
dar palestras em lugares que ainda não conhecia.
Ganhei dinheiro, pude comprar um apartamento em Paris
como tinha sonhado, um apartamento que me protegeria para
sempre do risco de ficar na rua. Com esse dinheiro também pude
viajar, pela América, pelo sudeste da Ásia, descobri outras
civilizações diferentes da minha.
Com o tempo, passei a amar sinceramente a arte e a literatura, a
não escrever mais apenas para sobreviver, mas pela literatura em
si, a escrever não mais para me salvar, mas para tentar ajudar os
outros, pode ser banal dizer as coisas desse modo, mas é verdade,
eu quis escrever livros que fossem armas para os outros. Me
distanciei totalmente da minha infância, de Eddy Bellegueule.
Um dia, eu fugi (de novo). Depois da publicação dos meus
livros, numa tarde fui para os Estados Unidos, não contei para
ninguém. Fiz a mala e fui para lá porque de repente passei a
detestar a vida que se tornara a minha, aquela com que tinha
sonhado, aquela dos livros, eu esperava tanta felicidade ao me
transformar num escritor, que detestei minha vida porque ela
tinha me traído e mentido, não me dando aquilo que eu esperava.
Vivia em outro continente, durante meses viajei pelos Estados
Unidos, caminhava por cidades desertas e fantasmagóricas, andava
sozinho à noite por cidades que não conhecia e onde ninguém me
conhecia, dormia em hotéis decadentes escolhidos ao acaso, e
pensava: Tudo recomeça. A minha cidade, Amiens, Paris, Nova
York e agora New Bedford, Massachusetts, onde comemorei
sozinho meus vinte e cinco anos sem saber como seria meu futuro.
Onde tudo estava por começar, mais uma vez. Onde eu me dava
um novo nome, novos sonhos de silêncio e de invisibilidade, novas
expectativas, onde a coisa mais bonita para mim era perder tudo o
que custara tanto a conseguir em Paris. Depois de alguns meses
voltei para a França, já entediado.
Será que estou condenado a sempre esperar uma outra vida?

Escrevo porque acho que às vezes me arrependo, que às vezes me


arrependo de ter me afastado do passado, às vezes não tenho
certeza de que meus esforços tenham servido para alguma coisa.
Às vezes penso que toda essa luta foi em vão e que fugindo lutei
por uma felicidade que nunca obtive.
Escrevo porque muitas vezes acho que queria voltar atrás, para
quando eu passava minhas noites no ponto de ônibus com as
outras crianças da minha cidade, até três, quatro horas da manhã, e
bebíamos uísque que comprávamos no supermercado em copos de
plástico, como os jovens de antigamente tinham feito antes de nós,
como meu irmão fez antes de mim, como meu pai havia feito antes
de mim, sem pensar no futuro ou no que viria.

Eu queria voltar no tempo...

Para o tempo em que mudar não era uma urgência para mim, para
o tempo em que eu saía com os filhos da vizinha ou com Amélie,
minha melhor amiga, pelos campos de trigo que cercavam a cidade
e construíamos cabanas de madeira com tábuas que pegávamos no
centro de reciclagem municipal, que carregávamos em nossas
bicicletas — e então havia o cheiro da madeira, da terra, dos
pregos enferrujados que ficava vários dias nos meus dedos, e as
noites úmidas que passávamos nessas cabanas querendo acreditar
que estávamos confortáveis ali, ainda que estivéssemos com frio e
com dores nas costas, mas felizes por dormir naqueles abrigos que
tínhamos construído com nossas próprias mãos, nosso trabalho.

(É o presente que me faz falta.)

Para o tempo em que meu pai assistia aos filmes de terror à noite e
me obrigava a vê-los junto com ele porque dizia que aquilo me
endureceria. Eu lhe dizia que queria ir dormir, mas ele me
mandava ficar na cozinha e ver o filme, me ameaçava, dizia que
tinha que aprender a não ter mais medo, a ser um homem, e eu,
vendo aquelas imagens de assassinatos, de monstros e de corpos
decepados, chorava, urrava.
Para o tempo em que minha mãe gritava na cozinha, no meio das
manchas de gordura e de umidade que cobriam as paredes Quem
quer macarrão com queijo?!!! E meu pai respondia levantando a
mão Eu, eu, eu, de repente ele tinha a minha idade, e eu implorava
junto com ele para minha mãe.

Para o tempo dos cheiros. Para o tempo em que, quando eu voltava


para casa depois da escola, sentia um cheiro bem forte de fuelóleo
na sala, porque como a maioria das pessoas da nossa cidade nos
aquecíamos com esse combustível pobre, cor de sangue. O cheiro
do fuelóleo impregnava as roupas, a pele, os cabelos.

(Não tenho saudade da pobreza, mas dos cheiros e das imagens.)

Para o tempo em que eu implorava para os meus pais me deixarem


ir à padaria comprar balas. Meu pai me dizia que não, que não
podíamos, que a conta seria muito alta no fim do mês quando
fôssemos pagar a padeira, e depois ele cedia, acabava sempre
cedendo, eu vencia, e alguns minutos depois estava na rua com as
balas na mão, o pacote cheio de formas multicoloridas, o pacote de
plástico pesado na palma da mão e em meu campo de visão as
marcas de terra deixadas pelos tratores nas ruas da cidadezinha.

Não tenho saudade da pobreza, mas da possibilidade do presente.

Ou melhor: eu detestei a minha infância e sinto saudade da minha


infância.
Será que isso é uma coisa normal?

Para o tempo em que meu pai me dizia quando ouvia o barulho que
faz a rolha quando se abre uma garrafa de vinho, “opa, estão me
chamando!”.
Para o tempo em que assistíamos à televisão oito, nove horas por
dia porque a TV nos permitia pensar apenas no presente e não ter
que pensar no dia seguinte, isto é, na preocupação e na vida.

Para o tempo em que a cada sorteio da loteria eu olhava — sempre


ele, o pai — e sentia um arrepio ouvindo ele dizer: Imagina se a
gente ganhar e ficar milionário.

(Claro que a infância era também quando ele me dizia que eu não
era o filho que ele queria ter tido, quando a angústia de faltar
dinheiro definia nosso dia a dia — mas todas essas coisas me
marcam cada vez menos quando penso nelas, não sei por quê, não
tenho explicação.)

Eu perguntava para ele: o que é que a gente vai fazer se ficar


milionário? Sabia sua resposta, porque lhe fazia essa pergunta
havia anos. Mas fingia querer saber o que ele ia dizer. Fingia ficar
ao mesmo tempo surpreso e interessado ouvindo-o, embora
pudesse responder em seu lugar. Ele respondia: Primeiro eu ia
comprar uma TV enorme, enorme assim. E ia me mandar pro sol.

Voltar

Para o tempo dos dias na praça da nossa cidade, esperando que o


tempo passasse, ou melhor, que chegasse a hora, falando com as
mulheres reunidas na frente da escola primária, tentando saber
mais sobre como o açougueiro tinha sido pego pela mulher
transando com a vizinha.

(Sei que se voltasse atrás eu detestaria esse mundo, e ainda assim


sinto saudade dele.)
Para o tempo em que meu maior sonho era ter uma mobilete,
como os outros garotos, para poder ir ao McDonald’s na cidade
mais próxima, a uns vinte quilômetros.

Para o tempo em que eu passava as tardes deitado na grama perto


de Elena.

Para o tempo em que ela caía no sono no meu ombro no cinema.

Para o tempo em que o que me deixava mais feliz e me ajudava a


aguentar a semana na escola era saber que no sábado pegaria o
ônibus até a cidade com meu primo Dylan e que passaríamos a
tarde no supermercado, entre catorze e dezoito horas, sem poder
comprar nada além de uma latinha de Coca-Cola ou de chá gelado,
mas felizes por estar ali, cercados por uma abundância infinita,
inacessível, pela proliferação infinita de mercadorias que nunca
poderíamos ter, e recomeçar essa viagem todos os sábados à tarde,
sem exceção e sempre com o mesmo prazer a cada vez.
A burguesia ia ao teatro ou à ópera, para nós era o
supermercado que nos fazia sonhar.

Para o tempo em que minha mãe dava de ombros e dizia Que vida
de merda a gente tem.

Para o tempo em que ainda assim ela sorria.

Para o tempo em que eu ainda conseguia conversar com ela.

Para o tempo em que eu sonhava.

Mas sei que é tarde demais. Essas imagens voltaram à minha


cabeça, na última vez em que pensei nelas — os prédios à minha
volta, o trânsito mais longe, o cheiro de comida nas ruas, as luzes
violeta de Montparnasse —, as imagens se sucediam, mas eu já
sabia que era tarde demais enquanto pensava. Continuei andando,
o barulho dos meus passos na calçada, e disse a mim mesmo que
estava ficando tarde, que era hora de ir para casa dormir.
© Robert Jean-François / modds

Édouard Louis nasceu em Hallencourt (França), em 1992. Em seus


relatos contundentes, inscritos em uma tradição que remonta a
Annie Ernaux e Didier Eribon, a homossexualidade e as injustiças
de classe são retratadas através de uma escrita honesta e afiada,
marcada por altas doses de crítica social e política. Dele, a Todavia
publica também Quem matou meu pai e Lutas e metamorfoses de uma
mulher (2023).
Changer: Méthode © Édouard Louis, 2021.
Todos os direitos reservados.

Todos os direitos desta edição reservados à Todavia.

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua


Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

Crédito da citação de Didier Eribon, Retorno a Reims. Tradução de


Cecilia Schuback. São Paulo: Âyiné, 2020

capa
Luciana Facchini
foto de capa
Trent Parke/ Magnum Photos/ Fotoarena
preparação
Érika Nogueira Vieira
revisão
Jane Pessoa
Karina Okamoto
versão digital
Antonio Hermida
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Louis, Édouard (1992-)


Mudar [recurso eletrônico] / Édouard Louis ; tradução Marília Scalzo. — 1. ed. — São
Paulo : Todavia, 2024.

Título original: Changer: méthode


ISBN 978-65-5692-563-9
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1. Literatura francesa. 2. Romance. 3. Ficção contemporânea. 4. Autoficção. I. Scalzo,


Marília. II. Título.

CDD 843

Índices para catálogo sistemático:


1. Literatura francesa : Romance 843

Bruna Heller — Bibliotecária — CRB 10/2348


todavia
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* Essa palavra, vencer, me parece estúpida, mas não naquele
momento, era ela que me dava forças para fugir.
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* No meu primeiro livro contei como tinha feito de tudo para não
fugir, para não ser diferente. As duas histórias são verdadeiras,
contam simplesmente as duas faces de um mesmo fenômeno, de
uma mesma vida.
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* Não falo mais disso porque não tenho nada a dizer sobre a vida
no dormitório, só me restam algumas lembranças sombrias e
nebulosas, o cheiro forte de legumes cozidos à noite no refeitório,
o tédio, as roupas roubadas nos vestiários, meu desejo reprimido
por Karim, o zelador — não tenho mais nada a dizer, ficaram mais
sensações do que lembranças.
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* Lavallière é uma espécie de gravata, laço, usada por artistas e


intelectuais homens e mulheres, moda nos séculos XIX e XX. O
nome vem da duquesa Louise de La Vallière, amante de Luís XIV.
[N. T.]
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* Na verdade não foi com Elena que eu assisti a essa palestra, mas
com outro amigo — foi ele também que imitei me inscrevendo no
departamento de história da Universidade de Amiens. Prefiro
substituí-lo por Elena aqui pela coerência e principalmente para
não precisar contar toda a história que me levou a ir com ele e não
com ela. De qualquer modo, eu contava tudo a Elena, em detalhes,
e é como se ela estivesse sempre presente, mesmo quando não
estava.
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* Um dia um desses encontros quase me matou, mas essa é uma


outra história.
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