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Agosto, 2023
LÍMBICO
Eu morava na mesma casa desde o dia que saí do hospital. Era no Coração,
bairro próximo a saída norte da Cidade do Tempo. Fiquei com a casa para mim
depois que meu pai foi embora. Minha mãe odiava aquele lugar e se mudou.
Nunca reclamei por ter ficado só naquela casa. Era um bairro longe do centro,
mas tinha quase tudo. Desde lotérica, supermercados, padarias, farmácias,
posto de saúde, Postos de gasolina, bares (muitos bares), e academia.
Tínhamos ônibus para outros bairros, incluindo o centro. O asfalto do bairro
cobria apenas algumas ruas, e as praças estavam com as construções pela
metade. O lugar não era nem tão bom, e nem tão ruim.
Geralmente, eu usava uma moto para poder sair, isso quando, ela não estava
quebrada ou sem gasolina. Raramente ia de ônibus, mas no entanto, sempre
gostei de poder ter essa possibilidade. Numa cidade não tão grande, quase
sempre haviam ônibus vazios, ou no mínimo com espaço para todos se
sentarem. Já passei pelos dias de ônibus lotados. Todos inevitavelmente unidos
em lugares ocupados. Passageiros viajavam sentados ou a pé. Os amigos e
conhecidos dividiam as bagagens, algumas pessoas se sentavam no colo umas
das outras. Na parte da frente, antes da catraca idosos e mais algumas pessoas
que não caberiam na parte comum do ônibus, iam juntas. Nessa situação apenas
o motorista tinha um pouco de "privacidade", afinal, todos estavam submetidos
a uma espécie de "big brother" urbano involuntário. Onde espirros, tossidos,
movimentos em falso, ou qualquer ato incontrolável seriam vistos por todos ao
redor. Uma espécie de tortura coletiva paga. No entanto, em alguns dias os
ônibus eram vistos rodando pela periferia, só com o motorista e o cobrador. Por
vezes sem passageiros e sem cobrador. Alguns ônibus operavam só com o
motorista como funcionário. E quando não tinham um cobrador no ônibus,
sempre que qualquer passageiro subia os degraus, o motorista logo perguntava.
Precisam de troco? Não! Está trocado. Se as pessoas tivessem o dinheiro
trocado o motorista nem tirava a mão esquerda do volante e mantinha o veículo
com os motores quentes, e se caso alguém precisasse de troco ele desligava o
ônibus, trocava o dinheiro e fazia uma pausa de 15 minutos naquele ponto. Não
sei se o motorista agia assim por que sentia fadiga em ter de passar o troco, ou
se apenas por capricho.
Uma vez. Entre tantas outras vezes que, eu não estava querendo andar a pé,
nem de bicicleta. Esperei passar algum ônibus do centro para o meu bairro.
Estava tentando voltar do trabalho para casa. Eu pintava casas. Passava os dias
mexendo com tintas, fazendo recortes de paredes, lavava pincéis, e sujava as
minhas roupas com cores variadas. Naquele dia saí de casa usando um gorro
preto por fora e vermelho por dentro. O gorro era comprido e eu usava dobrado
ao meio e do avesso - para que a estampa ficasse para cima. Eu usava chinelos
kenner pretos, uma camisa de frio azul de mangas longas, uma calça de malha
fina preta, e uma mochila com as coisas do trabalho (roupas sujas de tinta,
sapato, escova e pasta de dente, comida, toalha, tesoura, chave de fenda,
philips, entre outras coisas úteis para o dia-a-dia). Já era noite. Estávamos no
inverno, e fazia muito frio. Quando subi os degraus do ônibus, o cobrador me
olhou com um semblante estranho. Tinham umas cinco pessoas na minha frente.
Era uma sexta-feira. Eu tinha recebido o pagamento da semana, e só tinha
quatro notas de cem reais, e nenhum dinheiro miúdo. Quando chegou minha
vez, estendi uma das quatro notas com um peixe estampado. O cobrador pegou
o dinheiro da minha mão e nem sequer olhou para a cédula, me encarava com
um olhar fixo, como o olhar de quem reduzia outras pessoas à sua mera opinião.
Falou. Não. E todos no ônibus olharam para ele e para mim. Disse ainda. Essa
nota é falsa, e aposto que as outras também são. Respondi. Não sou você.
Devolve minha nota. Ele disse. Não! Eu pulei a catraca. Tentei puxar o meu
dinheiro de volta. Ele segurava a nota sem medo de rasga-la. Então, dei-lhe um
soco no rosto usando a mão esquerda. Peguei os meus cem reais. Saí pela porta
dos fundos, enquanto o ônibus ainda estava parado. Quando eu fugi, o cobrador
gritou. Ali na praça, a viatura, vamos lá. Pisa aí. E eu ouvia tudo enquanto corria.
O som da cidade sendo riscada pelos carros, motos, bicicletas, passos
embriagados, cansados, machucados e sóbrios, latidos, vozes, gritos e o barulho
do vento invadiam meus ouvidos. E quanto mais distante dali eu estava, diminuía
aquele ritmo. E o ônibus, a polícia, o cobrador, o motorista e os passageiros
comentando a situação, viraram zumbidos, ruídos, silêncios, e vazios.
Peguei os cem reais que o cobrador tentou me confiscar, e comprei uma vodka
que custava sessenta reais, um xarope de laranja, alguns limões, e o gelo. E lá
se foram aqueles cem $.
Bêbado, e revoltado. Com um "gênio" forte, obsessivo, e violento. Igual
qualquer adolescente deixado pelo pai. Quando cheguei no bairro vi o mesmo
ônibus, o mesmo cobrador, o mesmo motorista e dessa vez nenhum passageiro.
Parados no ponto, por quinze minutos como sempre faziam. Eu não sabia há
quanto tempo estavam lá. Então pensei. Tem que ser agora, eu posso (não
podia). Tenho que ir lá dar o troco (não devia). Peguei meu gorro, uma tesoura
que tinha na mochila, medi mais ou menos onde ficavam os olhos, cortei dois
furos e usei o gorro como máscara do lado preto para fora. Peguei as roupas do
trabalho, e vesti. Eu tinha uma faca (eu a carregava porque me sentia
desprotegido) que, coloquei na linha da cintura, porém nas costas. Guardei a
mochila num lugar escondido. E fui andando abaixado até me aproximar pelos
fundos do ônibus. Cheguei perto da porta. Empunhei a faca. Contei um, dois e
antes do três eu fui. Gritei. Calem a boca. Não falem nada. Tira a chave do ônibus
e joga pela janela. Motorista tirou e jogou. Falei. cobrador, abre a droga da caixa.
Entreguei uma sacola para ele. E disse. Põe todo o dinheiro aí. Isso há mais ou
menos um metro de distância do cobrador, do motorista e da porta. Quando o
cobrador terminou de fazer o que eu mandei, puxei a sacola e corri. Corri. Corri
mais do que eu acreditava poder correr. Peguei minha mochila que estava
escondida e saí. Não sei por qual motivo não fui para casa. Bêbado, decidi beber
mais. Fui para um bar. Pedi cerveja, e de litro em litro cheguei na terceira garrafa.
Tranquilo como se nada tivesse realmente acontecido. Eu já havia jogado fora
as roupas do trabalho e colocado as roupas anteriores. Me livrei da faca. Então
para mim, aquele parecia um plano sem falhas. Fiquei no bar sem me preocupar
com as horas, e já passavam das dez. Naquela noite fazia frio, e minha cerveja
me lembrava nitrogênio.
De repente eu percebi polícias a pé fazendo uma busca, e pouco tempo depois
vi algumas viaturas seguindo devagar. Vi que ninguém no bar se movimentou e
eu fiz o mesmo. Rapidamente os policiais chegaram até o bar, não revistaram
ninguém, mas ficaram circulando por lá. Olhando as pessoas de perto, sem dizer
qualquer palavra. Continuei bebendo minha cerveja. E lá se foi embora a terceira
garrafa. Nesse momento um policial veio se aproximando pela lateral, me olhou
de perfil e apertou forte minha orelha igual quem esmagava uvas. E colocou
aquela mão suja na minha cara, e eu pude ver a porcaria da tinta nos dedos do
policial. Me deu um soco. Pegou minha mochila e perguntou. Como conseguiu
tanto dinheiro? Para evitar gaguejar, fiquei em silêncio. Levei um tapa forte na
cabeça. Olhei o relógio do bar e já eram onze horas. Me levaram a delegacia por
um caminho que não fazia sentido. Tentaram me interrogar. Cadê o dinheiro? A
gente sabe que tem mais. Qual o seu nome? Onde você mora? Ficaram travados
na primeira pergunta. Não vai fala qual o seu nome? Não respondi. Me bateram.
Eu quase não sentia nada, estava muito bêbado. Quando chegamos na
delegacia já era mais de meia noite e meia de sábado. Eu completava dezesseis
anos naquela data. Me liberariam pela manhã se o delegado não tivesse tirado
folga e eu não tivesse chegado minutos depois dele sair. Só me deixaram ir
embora na segunda-feira, mais ou menos treze e meia da tarde, mais de dois
dias depois de chegar, me sentindo três anos mais velho.
2023
Eu queria ter sido rapper, feito funks, escrito um livro, ter sido ator. Mas isso
sempre foi tão distante. E quando via alguma chance de mudar, só conseguia
olhar para trás. Mas no fim das contas, eu era artista também. Desenhos
copiados e as vezes de mau gosto? Sim, são. No entanto, meu ganha pão. Eu
diria que nem o diabo amassa esse pão de sal tanto quanto eu [como eu estava
sozinho em casa, apenas pensei]. E pensava também, cada vez mais no porque
daquela insatisfação. Com questões cada vez piores, com razões cada vez
menores, pedras no sapato, pedras no caminho, situações de roer as unhas,
situações que vivi (não queria mais lembrar), (com) ideias sobre o que eu faria
com o que estava errado (o que é que tinha de errado comigo?), como me
vêem?, o que será que vêem? Sei que, marginalizado. Mas eu só vivo meu bem
estar, minha preguiça, minha energia, e a minha malandragem. Mudar? Assim
tão de repente? Mudar porque?
Nesta ocasião eu passei a noite na varanda, sentado numa cadeira feita de
jacarandá, trabalhada a mão. Eu olhava o horizonte que não dizia muita coisa
[“não era lá” essas paisagens]. As vezes eu olhava pra baixo pela sacada e via
a rua sozinha. Naquele mesmo dia, pela manhã, trabalhei fazendo um desenho
que nunca vou esquecer. À tarde, recolhi meus pedaços, e tracei mais passos.
Já tinha aberto uma garrafa de vinho tinto seco. Parecia que o álcool contribuía
pra eu me dizer a verdade, mas para os outros me fazia mentir – só por que
podia – como se fosse uma brincadeira. Sobre meus porquês, sempre soube a
resposta de todos, só nunca fui de dar o braço a torcer.
Ou:
Nunca fico com a autoestima mais baixa que a minha pressão
Uma vez eu quis pedir desculpas para a Ana, e pixei na rua da casa dela:
Gatinha, quando você dança a sua bunda é o meu sol.
Eu tinha que admitir que nunca pixei nada nas ruas sem uma máscara ou
estando numa situação tranquila. Sempre por algum motivo. Sempre alguma
angústia. Alguma saudade. Alguma revolta. Eu fui o único pixador a ser
procurado pela polícia, houveram investigações dos agentes da polícia civil, e
até agentes disfarçados. Eu sei de tudo. Eu sempre visitava os lugares. Via a
movimentação. Sempre amei as ruas, avenidas, ver as pessoas passando,
falando, se olhando. Eu sempre estive por perto. Por todo lugar. Sempre que
começavam a me procurar eu já estava longe. Eu sempre tive um álibi. Investia
dinheiro em álibis caso precisasse. Existiam empresas do submundo
trabalhando anonimamente. Os clientes eram selecionados. Eu era um deles.
Desde álibis a atestados médicos, e até prescrição de remédios controlados
(usávamos em alguns assaltos para dopar seguranças, funcionários ou quem
quer que precisasse). Eu era um fantasma nas ruas. Posso contar nos dedos de
uma mão a quantidade de pessoas que me viram pixar alguma coisa. Dos cinco,
dois eram da quadrilha. Os outros, dois estranhos (por acaso) e a Íris. Eu não
sei se eu poderia me considerar um artista fazendo esta expressão aliada ao
meu mal. Não é como se eu pudesse carregar a contradição de vender beleza
no crime. Eu tomo, roubo, e destruo. Não me sinto orgulhoso. Mas trabalho, e
isso me orgulha. Roubar é um vício. E eu só uso ópio, figurativamente falando.
Talvez por isso meu nome no bonde (quadrilha) era Ópio. Nunca usei essa droga,
mas o bonde volta e meia dizia não me entender, que eu viajava muito, e deixava
todo mundo perdido até de fato entenderem meu plano. Eu perguntava. Quando
deu errado? Eu contava os planos do meu jeito. Volta e meia falavam. Tá doidão
de ópio? Maconha não serve mais? De tanto esses diálogos acontecerem ficou
o apelido.
Com quinze anos de idade eu comecei a fumar maconha. Com quatorze fumei
cigarros e achei uma droga. Fumei maconha, extrato, óleo, derivados, comi e
bebi. Daí comecei a plantar. Eu estava naquela fase em que, dois tragos num
baseado ainda alucinavam. Depois eu fumava, fumava e pouco acontecia. Mas
o hábito de fazer fumaça me acrescentou um novo elemento da natureza.
Sempre gostei da ideia do que é a gua e do que é o fogo. Tentei materializar.
Teorizar. Parafrasear alguma lógica, ou abusar da meta linguagem e não cheguei
a lugar nenhum, novamente, metaforicamente falando.
Eu sempre usava as palavras no dia-a-dia como se fossem minha oração, ou
meu poder, magia, embora não acreditasse em nenhum deus ou divindade.
Palavras eram o meu paliativo. Sempre usei “sempre” porque sabia que o fim
estava perto. Sempre foi assim. Não conheço muitos bandidos de cabelos
brancos. Meu pai foi embora, então já era menos um... Acho que nunca conheci
nenhum ladrão velho. Não dos bons. Dos que assaltam mansões, museus,
lotéricas, explodem caixa eletrônico, roubam joalheria e veículos para
desmanche. Nenhum velho que pudesse tentar competir com o meu bonde.
Todos ladrões. Um estrategista, um impostor, um bandido eficiente, e um louco
imprevisível. Os quatro sempre vestindo uniformes da mesma cor, porém por
vezes as cores variavam. Uma vez roubamos o Itaú todos vestidos de laranja.
Incluindo as bala-clavas. O Sério era do contra e sempre usava a bala-clava
preta. Estilo dele. Nesse dia eu disse. Você está parecendo uma airsoft ao
contrário. E se ele já era Sério, depois dessa piada ficou mudo. Pedi desculpas
e tudo. E ele. Não me importei com aquilo. Eu não sei do que você está
desculpando. Você tem certeza que não foi impressão sua? Eu respondi. É. Você
deve ter razão. Não foi nada. Mas nos pensamentos fiquei preocupado. Percebi
que ele poderia dissimular bem. Descobri mais um talento na quadrilha.
Uma vez na praia, decidimos fazer um arrastão. Como se fosse um exercício
aeróbico. Eu tinha comprado um equipamento de som, e estava praticando há
alguns meses. Eu quis fazer uma sessão de reggae na praia sem avisar. Com a
areia lotada de pessoas, comecei o som. Toquei um remix de uma música do
Soja que, acabava com um uma batida de funk. Lembro de ter tocado uma
música do Luiz Gonzaga na versão acelerada. Quando íamos começar coloquei
um rock. Era Nirvana – Smells like spirit com os graves. Aumentei todos os
volumes. Apertei o play. Eu e meus camaradas nos afastamos, colocamos as
camisas cobrindo o rosto, expondo somente os olhos. Demos meia-volta.
Corremos, e roubamos. O som estava muito alto e a praia muito cheia. Pessoas
dançavam, corriam e gritavam. Achamos um lugar para sumir da vista das
pessoas. Cada um do meu bando tinha uma sacola de mercado cheia de coisas,
incluindo celulares, dinheiro, relógios, jóias (brincos, pingentes, cordões, e
pedras), uns três pares de chinelos (não sei pra que), óculos de sol, até um
óculos de grau, e umas camisetas de playboy. A música foi interrompida, o som
parou antes do esperado. Nós nos descaracterizamos, e nós misturamos as
outras pessoas. Andamos até o ponto inicial e percebemos que o meu som havia
sido roubado (que ironia).
Numa outra ocasião. Assaltamos uma lotérica. O Dúbio entrou na frente.
Apontou duas armas para o teto e gritou. Calem a boca. Todo mundo de costas
com a mão na parede. Eu entrei depois e disse para o Dubio. Passa ai. Peguei
o ponto trinta da mão esquerda, e fui até o guarda. Falei. Larga essa droga de
arma. Ele a pôs no chão. Eu disse. Me leva até o cofre e não fala nada. Destravei
a pt na testa dele e ele engoliu a seco. “Gluhb!”. Eu, igual qualquer filha da puta,
gargalhei. Raspamos a agência e saímos. Mais um trabalho de bandido
concluido. Não me julgue! Eu me esforço. Meus problemas sempre foram os
impostos. Meus conhecidos eram todos errados. Más companhias mesmo, mas
mesmo assim eu me sentia útil. Foram dias e noites de solidão na escuridão para
poder respirar de algum lugar mais alto. Quero me encontrar tendo um susto.
Pensando que a vida podia ser diferente. E torcendo pelo contrário.
O Dúbio era o meu malvado favorito, mas sempre senti que ele tinha
ressentimento de mim. Uma vez, quando estávamos os quatro ladrões reunidos,
ele chegou e disse. Quero fumar. Tenho a seda. E estendeu para o alto uma seda
aberta entre os dedos. Apareci de repente com um isqueiro nas mãos, acendi
aquela seda e disse. E eu tenho o fogo. Ele largou a seda quando queimou os
dedos e as fagulhas furaram alguns pontos da sua camisa. Ele morreu de ódio
naquele dia.
Conversávamos frequentemente. Sempre num tom de ironia. Sempre se
implicando mutuamente. Uma vez conversamos sobre sermos criminosos e
namorarmos pessoas que não são. Ele disse. Todo bandido tinha que ser Bonie
e Clayde. Eu. Mas mataram até a mulher. É uma pena que ela tenha morrido.
Assim como é uma pena que qualquer pessoa morra. Se pudéssemos conservar
só os bons. Daí o Dúbio respondeu. Então o inferno estaria lotado só com almas
ruins. A convivência seria horrível. Nessa eu pensei. As vezes eu não entendo
esse cara. Parecia se tratar de uma piada, mas na verdade não estava com cara
de que fosse mesmo isto. Então, concordei com a cabeça e optei pelo silêncio
que não durava muito. Eu sempre esbravejava. Ahh, droga. E lá vinha ele de
novo. Com sabe lá o que, bla bla bla. E eu. Tá bom cara. Cala a boca. Se não te
mato no próximo assalto. E falando nisso, só faltam duas horas para o próximo.
Então não me desconcentra. Ele. Se concentrar pra quê? Você só vai apontar a
arma para um monte de gente com medo e gritar com essa voz feia que, não é
pra fazerem nenhuma gracinha, para porem as mãos na cabeça. E falar para o
caixa destrancar toda a agência. E ele ainda disse mais. Eu quem vou acabar
com a segurança deles de um jeito ou de outro. E estou tranquilo, sem essa sua
palhaçada de concentração. Eu repliquei. É porque você vai fazer de um jeito ou
de outro, e eu só posso fazer de uma forma. Eu sabia que ele odiava não ter a
última palavra, e eu estava pouco me lixando. Decidi ir fumar antes que o
estresse me consumisse. Eu estava indo para o terraço e o Dúbio começou a
caminhar também. Ele estava com um cigarro numa mão e um revólver noutra.
Eu continuei andando, e sem olhar para trás. Pensava. Ele pode me atirar pelas
costas, mas por quê? Só pelas provocações? Não. Acho que não. Mas que
droga, estou desarmado. Ele irá me enfrentar, ou seja, terei uma chance para
joga-lo do terceiro andar. Eu já estava preparado. Quando chegamos, eu me
sentei de um lado da cobertura e ele do outro. Com um olhar inexpressivo. Não
olhava diretamente para mim. Eu olhava para minhas mãos, enquanto
despedaçava algumas ervas. Com o mesmo olhar vazio, eu deixava o fluxo das
coisas seguir. Há dois ou três metros de distância ele segurava o cigarro e a
arma. E eu pensava. O que esse idiota está fazendo? Ele apontou a arma para
mim, e eu permaneci imóvel. Depois com o cigarro na boca, ele engatilhou o
revólver e apontou para o próprio rosto. Eu decidi continuar sem agir e só
observar. Depois ele puxou o gatinho, e ficou claro que aquela droga de arma
era só um isqueiro. Eu nem fumei meu baseado. Saí dali antes que não
conseguisse segurar a vontade de quebrar a cara daquele maldito. Acho que ele
fez aquilo só para me irritar. Conseguiu. Acho que sempre tive uma impaciência
natural, que por esse motivo eu me forçava a ser tão calmo. Já aquele idiota, era
calmo e ficava agindo igual uma criança hiperativa. Por causa dele eu sempre
pensava. Ah, se eu pudesse, formaria outra quadrilha.
Também existiu um dia que, O Dúbio talvez não deva gostar, quando sem
querer eu matei o namorado dele. Ele namorava um cara, e eu sabia disso, só
que nunca tinha visto o rapaz, e não sabia quem ou como ele era. Mas nem o
dúbio, e nem ninguém da quadrilha (incluindo eu) sabiam que o namorado dele
era segurança de carro forte. E ele também nunca disse para o namorado que
era assaltante. Num dos assaltos o destino aproveitou as peças que tinha a
disposição e proporcionou aquele encontro. Um carro forte parado e rendido.
Dois seguranças sentados nos bancos do motorista e do passageiro com as
mãos algemadas umas nas outras, um no outro. Íamos entrando no carro, e o
dúbio ficaria do lado de fora. Eu iria ser o último a entrar, e quando estava
subindo os degraus, percebi a sombra de alguém vindo dando a volta no carro.
Em instantes o cara já tinha aparecido, estava mirando a cabeça do dúbio que,
estava de costas e não tinha percebido ainda. Eu usei o dúbio como ponto cego,
por um segundo fiquei num ângulo em que se o segurança estivesse olhando
para o dúbio não me veria, pois eu estava na mesma linha. Na cabeça do dúbio
eu estava mirando nele. E quando o segurança saiu da direção do dúbio, atirei
uma vez. Acertei na testa e agente caiu. Quando o dúbio olhou para trás e viu o
guarda morto, desabou. Na hora eu não entendi porque ele estava chorando
encima de alguém que teria o matado dez segundos atrás se eu não tivesse feito
nada. Quando fiquei sabendo da historia toda, foi de cortar o coração.
Eu queria dar um tempo de tudo. Roubaria algum banco mais uma outra vez.
Conseguiria um lugar legal para morar de frente ao mar. Ficaria longe de todos.
Sentiria saudades da Ana e mandaria uma carta para ela dizendo onde fui.
Ficaria perfumado e arrumado esperando ela chegar. Me distrairia olhando as
ondas quebrarem na areia. Só em pensar eu conseguiria sentir o gosto da água
do mar. E assim foi feito. O bonde saiu para a pista mais uma vez, levando tudo
que viu pela frente como se fosse o trem bala. Em seguida peguei minha parte
do roubo, e disse adeus para os camaradas. Não gostaram nenhum pouco, mas
eu não queria mais correr o risco. Eu já tinha dinheiro suficiente para aposentar
meus netos, o último assalto foi só uma despedida. Eu fui embora da Cidade do
Tempo só com a roupa do corpo, uma mala de dinheiro e alguns baseados
também. Fui para a cidade com praia mais perto da Cidade do Tempo. Qualquer
lugar do litoral do nordeste brasileiro serviria, para mim era tudo lindo, e quem
dissesse o contrário estaria maluco.
Não pude avisar a Ana que eu estava indo embora, ela iria querer vir junto e
existia um certo perigo nisso. Estar perto de mim, por mais ruim que fosse dizer,
era problemático, e poderia ser até destrutivo. Eu era a encrenca em pessoa.
Mas naquele momento eu só conseguia pensar em vida e vive-la com a Ana
naquele lugar, onde todas as manhãs o sol vinha a janela dizer bom dia e trazia
consigo a companhia do oceano. Queria que a Ana também tivesse aquela vista,
enquanto eu testava meus autofalantes novos, beijando aquela boca vermelha
que acompanhava uma linda mulher cheia de maldade. E jamais me preocuparia
se estava ou não incomodando algum vizinho. Então escrevi num bilhete o
endereço, e mandei para a Ana junto com uma passagem.
Eu não enviava cartas pelo correio. Assim como qualquer bom criminoso usava
de serviços infantis para não levantar suspeitas. Alguns moleques, por volta de
quinze anos de idade, levavam cartas e dinheiro de um lugar para o outro. Eles
iam sempre em bicicletas Bmx que, ficavam para eles como parte do pagamento.
As "Bmxzes" coloridas do bairro Coração da Cidade do Tempo no sul da Bahia
no Brasil estavam sempre com maldade.
O ônibus da Ana chegaria as quinze horas daquele dia. O ônibus fazia parada
num ponto na orla, na frente da praia há cem metros daqui. Ela viria até mim sem
que eu precisasse ir buscá-la. Minha casa era a única num raio de quinhentos
metros. Depois de mim, um vizinho, e depois de mais outros quinhentos metros,
outro vizinho. Não tinha como a Ana errar. As três e meia da tarde, eu estava
sentado na areia, olhando para o mar, pensando em dar um mergulho, mas antes
queria ver e dar um abraço na Ana, para que ela vesse e sentisse como eu estava
bonito e cheiroso. O sol estava muito infame, e eu estava morrendo de calor.
Pensei. Desculpe, Ana. Fiquei nu e entrei na água. Eu estava no raso, há menos
de um metro de profundidade. Sem querer olhei diretamente para o sol. Manchas
escuras temporárias atrapalhavam a minha visão. As ondas vinham, e algumas
me acertavam. Além do sol, o sal me impedia de enxergar. Quando já estava
enxergando razoavelmente pude ver. Estava lá. Com os pés na água e sorrindo.
E antes que eu pudesse pensar em qualquer coisa, o Dúbio pulou na água e
nadou até mim. Me perguntou. Iae, ainda está em forma? Consegue mergulhar?
Vamos ver quem consegue mais tempo. Na minha mente várias coisas se
passavam, como por exemplo. Cadê a Ana? Porque o Dúbio está aqui? Ele vai
tentar me matar? Então o Dúbio disse. Iae, não vai vir comigo? Respondi. Vamos
então. E mergulhei.
Eu estava com canivete no short. Acreditei que eu fosse mais rápido que ele.
Por entre a água meio turva, e meio ofuscada pelo sol vi as mãos do Dúbio vindo
em minha direção. Saquei minha lâmina debaixo d’água. Ele me prendeu ali,
mas eu ainda tinha fôlego. Larguei uma facada no braço dele. E a água clara e
turva, agora estava rubra. Ficou mais difícil para mim. Acertei o mesmo braço
outra vez. Ele deu um soco, e continuou pressionando com um braço só. Acertei
o canivete no outro braço. Ele me jogou dentro d’água com muita força e ajoelhou
sobre o meu peito. Aos poucos, eu perdia a conta de quantos golpes eu acertava
e de quantos minutos prendia a respiração. O tempo estava correndo, e a vida
passando por entre meus dedos, indo embora, com cara de quem não voltaria
mais.
EPÍLOGO
Eu achava que o amor era feito só de sódio e potássio. Sofrer e sorrir apesar do
caos para mim era um mal congênito. Acreditar que amanhã será um dia melhor,
sem deixar de estar satisfeito por hoje era a minha loucura.
Aonde nós estávamos que não podemos ouvir a Terra chorar?
Ignoramos o que se sentíamos, até sentirmos que não dava mais para se sentir
assim.
Eu já pensei em tantas coisas. Tantas coisas que, eu pensei ser o único a ter
pensado.
Eu já imaginei um lugar para correr além dos limites da estrada. Onde o vento e
as plantas se movimentam a todo instante. Onde ainda que parado eu me sinta
rápido. Enquanto os raios de sol passam por entre as sombras, e juntos marcam
um contraste na minha pele de papel.
Eu andei cansado de poesia. Procurei alguma crônica sobre mim mesmo em que
eu pudesse olhar para o alto e não enxergar somente o céu.