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1.

Furto de flor, Carlos Drummond de Andrade


Furtei uma flor daquele jardim. O porteiro do edifício cochilava e eu furtei a flor.
Trouxe-a para casa e coloquei-a no copo com água. Logo senti que ela não estava feliz.
O copo destina-se a beber, e flor não é para ser bebida.Passei-a para o vaso, e notei que
ela me agradecia, revelando melhor sua delicada composição. Quantas novidades há
numa flor, se a contemplarmos bem. Sendo autor do furto, eu assumira a obrigação de
conservá-la. Renovei a água do vaso, mas a flor empalidecia. Temi por sua vida. Não
adiantava restituí-la ao jardim. Nem apelar para o médico das flores. Eu a furtara, eu a
via morrer.
Já murcha, e com a cor particular da morte, peguei-a docemente e fui depositá-la no
jardim onde desabrochara. O porteiro estava atento e repreendeu-me:
– Que ideia a sua, vir jogar lixo de sua casa neste jardim!

2. O pavão, Rubem Braga


Eu considerei a glória de um pavão ostentando o esplendor de suas cores; é um luxo
imperial. Mas andei lendo livros; e descobri que aquelas cores todas não existem na
pena do pavão. Não há pigmentos. O que há são minúsculas bolhas d'água em que a luz
se fragmenta, como em um prisma. O pavão é um arco-íris de plumas. Eu considerei
que este é o luxo do grande artista, atingir o máximo de matizes com o mínimo de
elementos. De água e luz ele faz seu esplendor; seu grande mistério é a simplicidade.
Considerei, por fim, que assim é o amor, oh! minha amada; de tudo que ele suscita e
esplende e estremece e delira em mim existem apenas meus olhos recebendo a luz de
teu olhar. Ele me cobre de glórias e me faz magnífico.

3. Por não estarem distraídos, Clarice Lispector


Havia a levíssima embriaguez de andarem juntos, a alegria como quando se sente a
garganta um pouco seca e se vê que por admiração se estava de boca entreaberta: eles
respiravam de antemão o ar que estava à frente, e ter esta sede era a própria água deles.
Andavam por ruas e ruas falando e rindo, falavam e riam para dar matéria e peso à
levíssima embriaguez que era a alegria da sede deles. Por causa de carros e pessoas, às
vezes eles se tocavam, e ao toque – a sede é a graça, mas as águas são uma beleza de
escuras – e ao toque brilhava o brilho da água deles, a boca ficando um pouco mais seca
de admiração. Como eles admiravam estarem juntos! Até que tudo se transformou em
não. Tudo se transformou em não quando eles quiseram essa mesma alegria deles.
Então a grande dança dos erros. O cerimonial das palavras desacertadas. Ele procurava
e não via, ela não via que ele não vira, ela que estava ali, no entanto. No entanto ele que
estava ali. Tudo errou, e havia a grande poeira das ruas, e quanto mais erravam, mais
com aspereza queriam, sem um sorriso. Tudo só porque tinham prestado atenção, só
porque não estavam bastante distraídos. Só porque, de súbito exigentes e duros,
quiseram ter o que já tinham. Tudo porque quiseram dar um nome; porque quiseram ser,
eles que eram. Foram então aprender que, não se estando distraído, o telefone não toca,
e é preciso sair de casa para que a carta chegue, e quando o telefone finalmente toca, o
deserto da espera já cortou os fios. Tudo, tudo por não estarem mais distraídos.

4. Beijinho, beijinho, Luís Fernando Veríssimo


Na festa dos 34 anos da Clarinha, o seu marido, Amaro, fez um discurso muito
aplaudido. Declarou que não trocava a sua Clarinha por duas de 17, sabiam por quê?
Porque a Clarinha era duas de 17. Tinha a vivacidade, o frescor e, deduzia-se, o fervor
sexual somado de duas adolescentes. No carro, depois da festa, o Marinho comentou:
‒ Bonito, o discurso do Amaro.
‒ Não dou dois meses para eles se separarem ‒ disse a Nair.
‒ O quê?
‒ Marido, quando começa a elogiar muito a mulher…
Nair deixou no ar todas as implicações da duplicidade masculina.
‒ Mas eles parecem cada vez mais apaixonados ‒ protestou Marinho.
‒ Exatamente. Apaixonados demais. Lembra o que eu disse quando a Janice e o Pedrão
começaram a andar de mãos dadas?
‒ É mesmo…
‒ Vinte anos de casados e de repente começam a andar de mãos dadas? Como
namorados? Ali tinha coisa.
‒ É mesmo…
‒ E não deu outra. Divórcio e litigioso.
‒ Você tem razão.
‒ E o Mário com a coitada da Marli? De uma hora para outra? Beijinho, beijinho,
“mulher formidável” e descobriram que ele estava de caso com a gerente da loja dela.
‒ Você acha, então, que o Amaro tem outra?
‒ Ou outras.
Nem duas de 17 estavam fora de cogitação.
‒ Acho que você tem razão, Nair. Nenhum homem faz uma declaração daquelas assim,
sem outros motivos.
‒ Eu sei que tenho razão.
‒ Você tem sempre razão, Nair.
‒ Sempre, não sei.
‒ Sempre. Você é inteligente, sensata, perspicaz e invariavelmente acerta na mosca.
Você é uma mulher formidável, Nair. Durante algum tempo, só se ouviu, dentro do
carro, o chiado dos pneus no asfalto. Aí Nair perguntou:
‒ Quem é ela, Marinho?

5. Conversinha mineira, Fernando Sabino


— É bom mesmo o cafezinho daqui, meu amigo?
— Sei dizer não senhor: não tomo café.
— Você é dono do café, não sabe dizer?
— Ninguém tem reclamado dele não senhor.
— Então me dá café com leite, pão e manteiga.
— Café com leite só se for sem leite.
— Não tem leite?
— Hoje, não senhor.
— Por que hoje não?
— Porque hoje o leiteiro não veio.
— Ontem ele veio?
— Ontem não.
— Quando é que ele vem?
— Tem dia certo não senhor. Às vezes vem, às vezes não vem. Só que no dia que devia
vir em geral não vem.
— Mas ali fora está escrito “Leiteria”!
— Ah, isso está, sim senhor.
— Quando é que tem leite?
— Quando o leiteiro vem.
— Tem ali um sujeito comendo coalhada. É feita de quê?
— O quê: coalhada? Então o senhor não sabe de que é feita a coalhada?
— Está bem, você ganhou. Me traz um café com leite sem leite. Escuta uma coisa:
como é que vai indo a política aqui na sua cidade?
— Sei dizer não senhor: eu não sou daqui.
— E há quanto tempo o senhor mora aqui?
— Vai para uns quinze anos. Isto é, não posso agarantir com certeza: um pouco mais,
um pouco menos.
— Já dava para saber como vai indo a situação, não acha?
— Ah, o senhor fala da situação? Dizem que vai bem.
— Para que Partido? — Para todos os Partidos, parece.
— Eu gostaria de saber quem é que vai ganhar a eleição aqui.
— Eu também gostaria. Uns falam que é um, outros falam que outro. Nessa mexida...
— E o Prefeito?
— Que é que tem o Prefeito?
— Que tal o Prefeito daqui?
— O Prefeito? É tal e qual eles falam dele.
— Que é que falam dele?
— Dele? Uai, esse trem todo que falam de tudo quanto é Prefeito.
— Você, certamente, já tem candidato.
— Quem, eu? Estou esperando as plataformas.
— Mas tem ali o retrato de um candidato dependurado na parede, que história é essa?
— Aonde, ali? Uê, gente: penduraram isso aí...

6. Bonitas mesmo, Martha Medeiros


Quando é que uma mulher é realmente bonita? No momento em que sai do cabeleireiro?
Quando está numa festa? Quando posa para uma foto? Clic, clic, clic. Sorriso amarelo,
postura artificial, desempenho para o público. Bonitas mesmo somos quando ninguém
está nos vendo. Atirada no sofá, com uma calça de ficar em casa, uma blusa faltando um
botão, as pernas enroscadas uma na outra, o cabelo caindo de qualquer jeito pelo ombro,
nenhuma preocupação se o batom resistiu ou não à longa passagem do dia. Um livro nas
mãos, o olhar perdido dentro de tantas palavras, um ar de descoberta no rosto. Linda.
Caminhando pela rua, sol escaldante, a manga da blusa arregaçada, a nuca ardendo, o
cabelo sendo erguido num coque malfeito, um ar de desaprovação pelo atraso do
ônibus, centenas de pessoas cruzando-se e ninguém enxergando ninguém, ela enxuga a
testa com a palma da mão, ajeita a sobrancelha com os dedos. Perfeita.
Saindo do banho, a toalha abandonada no chão, o corpo ainda úmido, as mãos
desembaçando o espelho, creme hidratante nas pernas, desodorante, um último minuto
de relaxamento, há um dia inteiro pra percorrer e assim que a porta do banheiro for
aberta já não será mais dona de si mesma. Escovar os dentes, cuspir, enxugar a boca,
respirar fundo. Espetacular. Dentro do teatro, as luzes apagadas, o riso solto,
escancarado, as mãos aplaudindo em cena aberta, sem comandos, seu tronco
deslocando-se quando uma fala surpreende, gargalhada que não se constrange, não
obedece à adequação, gengiva à mostra, seu ombro encostado no ombro ao lado, ambos
voltados pra frente, a mão tapando a boca num breve acesso de timidez por tanta
alegria. Um sonho.
O carro estacionado às pressas numa rua desconhecida, uma necessidade urgente de
chorar por causa de uma música ou de uma lembrança, a cabeça jogada sobre o volante,
as lágrimas quentes, fartas, um lenço de papel catado na bolsa, o nariz sendo assoado, os
dedos limpando as pálpebras, o retrovisor acusando os olhos vermelhos e mesmo assim
servindo de amparo, estou aqui com você, só eu estou te vendo. Encantadora.

7. Outro de Elevador, Luís Fernando Veríssimo


"Ascende" dizia o ascensorista. Depois: "Eleva-se". "Para cima". "Para o alto".
"Escalando". Quando perguntavam "Sobe ou desce?" respondia "A primeira
alternativa". Depois dizia "Descende", "Ruma para baixo", "Cai controladamente", "A
segunda alternativa"... "Gosto de improvisar", justificava-se. Mas como toda arte tende
para o excesso, chegou ao preciosismo. Quando perguntavam "Sobe?" respondia "É o
que veremos..." ou então "Como a Virgem Maria". Desce? "Dei" Nem todo o mundo
compreendia, mas alguns o instigavam. Quando comentavam que devia ser uma chatice
trabalhar em elevador ele não respondia "tem seus altos e baixos", como esperavam,
respondia, criticamente, que era melhor do que trabalhar em escada, ou que não se
importava embora o seu sonho fosse, um dia, comandar alguma coisa que andasse para
os lados... E quando ele perdeu o emprego porque substituíram o elevador antigo do
prédio por um moderno, automático, daqueles que têm música ambiental, disse: "Era só
me pedirem ― eu também canto!"

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