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Nó Na Estrada

Nó Na Estrada
Viagem ou Loucura?

Julia Boratto
1ª Edição
A gente se leva, se roda, se arrasta
A gente impulsiona, corre e freia
Vamos juntas, mas não sempre
Às vezes você fica e eu vou
Às vezes outro alguém vai com você
Eu não preciso de você, mas eu te amo
Respiro sem você
Ando, como, durmo e sorrio sozinha
E sou feliz, por mesmo ao seu lado,
Estar comigo mesma
Sumário

Introdução | 9

1 Qual o Ponto | 11

2 Dia 26 | 15

3 O Despraiado | 21

4 Novos Caminhos | 27

5 Ano Novo | 33

6 Pereirinha | 41

7 Silêncio | 47

8 Pode Entrar | 53

9 Volta na Ilha | 57

10 Família | 63

11 Compartilhar | 67

12 São Chico | 71
13 Enxergar | 79

14 Ouvir | 85

15 Calma | 91

16 Tirar a Roupa | 95

17 Quando Chove | 101

18 Rio do Rastro | 105

19 Isso é Uma Loucura | 109

Agradecimentos | 119
Introdução

Compartilho aqui partes da minha história em uma


narrativa composta de memórias e reflexões. Ela não possui total
linearidade dos acontecimentos. Sendo alguns capítulos,
denominados como “presente”, destinados ao momento em que
eu estava escrevendo e outros às recordações do meu trajeto
desde a saída da Baixada Santista até o dia em que finalizei o
livro, em janeiro de 2022.
Até então foram cerca de 4000km pedalados, entre os
estados de SP, PA, SC, RS, RJ, ES e BA.

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Qual o Ponto?

Inícios

Qual é o ponto de começar algo hoje? Por que começar a


escrever um livro em um dia como esse? Agora que não se pode
saber como a humanidade estará amanhã, talvez muitas coisas
percam o sentido, mas na minha mente surgem vários estímulos
para fazer isso. Como o de dar algum propósito para os meus dias,
criar ao invés de estagnar, manter os meus sonhos vivos e rever os
meus passos até aqui. Resolvi usar este tempo de incertezas, no
qual nos encontramos, para recapitular a minha história.
Começo essa trajetória de trinta anos em um momento de
ação e despertar, no dia em que entreguei o meu apartamento em

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Itararé. Olhei para ele pela última vez, limpo, sem nenhum móvel,
sem nenhuma planta, aquela sala branca, estampada com o mar
que a vista da janela trazia. Tranquei a porta, desci o elevador,
coloquei a minha bagagem na bicicleta e pedalei até a casa da
Fernanda.
Era uma mistura de alívio com adrenalina e euforia. Foi a
primeira vez que subi em cima da magrela com tanto peso, ela
balançou, quase que tombou, mas achei o ponto de equilíbrio e
fui. Fui com vergonha de pedalar na ciclovia de Santos daquele
jeito, toda estabanada, tentando me equilibrar com um tanto de
bagagem pendurada. Não sabia se estava fazendo aquilo da
maneira certa, se é que existe uma, e sentia que todos me
olhavam pelo caminho estranhando aquela cena, que era estranha
para mim também.
Cheguei na casa da Fe e comecei a tirar a bagagem de cima
da bicicleta. Eu ainda não sabia como manter ela de pé enquanto
mexia nas coisas e isso me fazia pensar que aquilo realmente
poderia ser uma loucura. Senti vergonha mais uma vez, em deixar
transparecer o meu despreparo como cicloviajante para a minha
amiga, mas a Fernanda foi a pessoa certa para me receber
naquele dia. Não tem tanto tempo que nos conhecemos, mas
sempre apoiamos uma à outra em todos os nossos sonhos e
projetos. Ela não me fez sentir insegura, agiu com naturalidade e
me ajudou a descarregar o peso. Guardei tudo o que precisava,
incluindo a bicicleta, e peguei um ônibus até São Paulo para
passar o Natal com a família antes de iniciar a viagem.
O Natal passou como de costume, no automático. Abraços,
desejos de felicidades, muita comida, álcool, alguns presentes,
música, conversas e despedidas. Eu tinha anunciado para a minha
família que iria até o Uruguai, mas, quando decidi sair viajando,
imaginava viajar o mundo, ir até onde conseguisse chegar e não

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tinha nenhuma previsão de retorno. Eu esperava sim revê-los em
algum momento, mas quando a gente se entrega para a vida,
todas as possibilidades ficam em aberto.
Agora eu sei menos ainda sobre o que o futuro me reserva,
estamos em condições sociais que talvez limitem nossas escolhas.
Todas as possibilidades mudaram, talvez tenham sido reduzidas
em alguns aspectos, mas também podem ter ampliado em outros.
Abracei os meus pais e peguei o elevador no vigésimo
andar. Desci até o térreo, atravessei a área comum do prédio e
caminhei para a estação de metrô. Eu sinto até o cheiro da rua,
lembro das cores do céu naquele dia e de ter olhado para cima
quando passei na esquina, buscando ver a copa daquela árvore
centenária que eu costumava admirar sempre que passava por ali
e que tinha sido cortada havia pouco tempo. Aquela sensação de
saudosismo antecipado, uma despedida real, de quem sabe e
sente que quando e se retornar a passar por aquele lugar, ele já
não será mais o mesmo.
Entrei no ônibus no Terminal Jabaquara e desci a serra,
como já tinha feito tantas outras vezes, mas dessa vez com os
olhos pregados na janela. Não tinha como não me lembrar dos
meus 18 anos, no dia em que saí da casa dos meus pais pela
primeira vez. Eu fui sem o consentimento dos dois e acabei saindo
de madrugada sem me despedir. Fui viver em um chalé na Serra
da Mantiqueira com um homem que eu tinha acabado de
conhecer em um feriado de carnaval e com o qual permaneci por
seis anos depois daquele dia. Eu lembro de escrever o que estava
sentindo em um caderno que carregava comigo na época: "Eu
estou fazendo isso por mim e não por ele", me recordo dessa frase
nitidamente, tentava explicar os motivos da minha escolha para
mim mesma. Doze anos depois e eu estava ali, dentro de outro

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ônibus, vendo a estrada passar pela janela, rumo a um novo viver,
mas sem a necessidade de me convencer de nada.
No final da tarde do dia 25 de dezembro de 2019 eu
cheguei na casa da minha amiga, desabafei com ela sobre o dia
que tive e como estava me sentindo. Fui acolhida, dormi cedo e
acordei às 5hrs da manhã no dia seguinte, com tudo pronto para
começar.

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Dia 26

Recordando

Saí pedalando com um sorriso enorme no rosto, pronta


para viver o que viesse pela frente, disposta a me transformar
pelo caminho e decidida a encarar as dificuldades que
aparecessem. Eu tinha comprado um alforje com duas bolsas de
30 litros cada. Em uma delas coloquei as minhas roupas: 3 shorts
de lycra, 2 camisetas, 4 blusinhas, 1 saída de praia, 1 calça legging,
2 calças de tecido leve, 1 corta vento, 1 lycra de manga comprida,
2 blusas de manga comprida, 5 pares de meia, 8 calcinhas, 3
biquínis, 2 tops e nenhum sutiã, foi um alívio me desapegar deles.
Nesse mesmo lado do alforje estavam os itens de higiene e uma

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toalha, dessas de acampamento que secam rápido e são
superleves.
Na outra bolsa coloquei minhas ferramentas e material de
trabalho: 10 rolos de linha encerada, uns 3kg de fios e chapa de
cobre, mais ou menos o mesmo peso em pedras de diferentes
tipos e um ateliê portátil para trabalhar com prata. Eu tinha
desenvolvido, em um curso de marcenaria em Santos, um
expositor de madeira e uma bancada desmontável, para continuar
atendendo às encomendas da minha marca. Foram cinco anos de
muito trabalho para conseguir a minha independência financeira
por meio da joalheria artesanal. Eu não estava pronta para me
desapegar daquela marca e pensei em formas de continuar
produzindo na estrada. Informei aos meus clientes que eu estaria
viajando, mas que continuaria atendendo aos pedidos, com um
prazo maior de confecção.
Eu achava que, por estar no litoral e pedalar na maioria
das vezes no plano, o peso não seria um problema tão grande.
Então, para continuar produzindo joias na estrada, comprei um
maçarico portátil com fluído de isqueiro e uma micro retifica para
dar acabamento nas peças. Também levava comigo um jogo de
alicates, martelo, bigorna, arco de serra, pinças, refratário para
solda e várias outras ferramentas menores. A bancada e o
expositor de madeira eu guardei dentro de uma mochila que ia
em cima do bagageiro entre os alforjes e nessa mesma mochila,
coloquei um pote com o estoque de peças que não couberam no
expositor.
Além disso, em cima da mochila do bagageiro, ainda
tinham uma barraca para acampar e um saco de dormir. Na
cestinha da frente eu coloquei uma mochila menor, dentro dela
tinha 1 panela, 1 pacote de bolacha, 1 maçã, 1 faca, 1 garfo, 1
colher, 2 latas vazias de atum para usar como fogareiro à álcool e

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uma garrafa com 1,5L de etanol. Nos bolsos laterais dos alforjes
eu coloquei as ferramentas e peças para manutenção da bicicleta:
1 bomba de ar, 1 chave inglesa, 1 ferramenta multifuncional para
bicicleta, 2 câmaras de ar, 1 WD-40 e 2 pares de sapatas para os
freios.
Consegui colocar tudo isso em cima da magrela e amarrei
a mochila, a barraca e o saco de dormir com duas fitas que saíam
dos próprios alforjes. Parecia que estava bem preso até que fiz a
primeira curva, dois quarteirões depois de sair da casa da
Fernanda, e senti que alguma coisa tinha mexido. Quando olhei
para o bagageiro, a mochila e o saco de dormir já estavam caindo
para o lado esquerdo. O meu coração acelerou, fiquei com medo
de não conseguir continuar, com vergonha das pessoas que
estavam olhando aquela cena e eu não queria precisar voltar para
rever a bagagem naquele momento. Eu tinha que seguir em
frente, então desci da bicicleta, encostei ela em um poste e
arrumei tudo novamente. Apertei as fitas com mais força, me
lembrei que eu tinha uma corda extra, prendi ela no bagageiro,
passei por cima das coisas e segui caminho. Fui sabendo que eu
teria que rever a minha bagagem em algum momento, dava para
ver que tinha coisa demais em cima da magrela.
Eu tinha escolhido evitar rodovias e sabia que era possível
fazer os primeiros 100km pela praia, usando as ciclovias e
pedalando pela areia. Já tinha realizado aquele trajeto duas vezes
com a bicicleta, de Itararé até a Reserva da Juréia. A minha
primeira aventura com a magrela foi logo após as eleições de
2018. Eu estava muito abalada emocionalmente, sem conseguir
absorver o que estava acontecendo no país. A minha mente
precisava respirar e eu sentia uma necessidade enorme de estar
em movimento, então decidi pedalar até a Jureia. O Google Maps
me mostrou que eram apenas 5 horas até lá de bicicleta. Coloquei

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uma troca de roupa em uma mochila, itens de higiene, algo para
comer e saí de casa às 5hrs da manhã. Foi um dia incrível, senti
que a minha mente entrou em estados meditativos por vários
momentos, principalmente nos longos trechos de areia, sem
ninguém no caminho. Fui pedalando devagar, parei algumas
vezes para mergulhar no mar e até conheci uma aldeia indígena
entre Itanhaém e Peruíbe. Cheguei na Reserva da Juréia às 18hrs,
13 horas de viagem, 8 horas a mais do que o Google tinha
informado. Estava muito cansada, mas a minha mente estava
bem melhor, mais calma e clara. Passei um dia descansando,
curtindo a praia de Guaraú e retornei para Itararé no domingo.
Saí bem cedo e parei para participar de uma vivência que estava
acontecendo na aldeia naquele dia. Foi realmente uma
experiência marcante, daquelas "coincidências" da vida, que nos
transformam totalmente em um dia. Saí da aldeia com vários
ensinamentos, aprendi um pouco sobre a vegetação nativa e levei
comigo uma grande lição sobre o que é resistência. Pensava que
eles estariam preocupados com o resultado das eleições, pois essa
era uma das minhas questões, a causa indígena, mas percebi que
naquela aldeia as pessoas não pareciam estar abaladas com a
situação. Elas já estavam acostumadas a resistir há muito tempo,
independentemente do partido político que estivesse no poder.
Depois de alguns meses eu refiz esse caminho com um ex-
namorado. Aqueles 100 km iniciais eu já conhecia bem, mas
dessa vez era diferente, além do peso da bagagem eu carregava o
peso da dúvida de se aquilo iria realmente dar certo. Na minha
primeira parada para descansar, na Praia Grande, deixei a
bicicleta cair quando fui encostá-la em um poste. Tentei levantá-
la e percebi que eu não conseguia fazer aquilo sozinha, era pesada
demais. Um homem que estava passando por mim viu a minha

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dificuldade e parou para me ajudar. Colocamos ela de pé e ele riu
de mim, dizendo que eu estava carregando muita coisa.
Decidi não fazer os 100km direto, dessa vez faria uma
parada em Itanhaém, na metade do caminho. Um amigo tinha me
indicado um aplicativo onde pessoas oferecem hospedagem para
cicloviajantes, o Warmshowers. Fui ver se ele realmente
funcionava e tinha uma pessoa ativa em Itanhaém, o Pakato.
Perguntei se ele poderia me receber e a resposta foi sim. Ele
mantinha, com um grupo de amigos, uma Casa do Ciclista que
funciona apenas para receber cicloviajantes, ninguém morava ali
e naquele dia só teria eu de hóspede. Chegar na Casa do Ciclista
no meu primeiro dia cicloviajando foi uma injeção de ânimo e
confiança. Me fez sentir menos sozinha e menos louca. Ver tantas
fotos nas paredes, de viagens realizadas por outras pessoas, me
fez ter certeza de que era possível seguir em frente.
A casa tinha um quintal enorme, uma cozinha com tudo o
que era necessário para cozinhar, um banheiro com ducha
quente, três quartos e uma sala cheia de lembranças de
cicloviajantes. Eu escolhi um dos quartos e aproveitei para tirar
tudo de dentro dos meus alforjes para rever a minha bagagem.
Separei algumas ferramentas e roupas que julguei desnecessárias,
coloquei em uma caixa e postei nos Correios no dia seguinte para
a casa da minha mãe. Foram 2kg a menos em cima da magrela.
Decidi passar mais um dia por lá, para aproveitar melhor a cidade
e respirar um pouco mais daquele ambiente.
Na segunda noite o Pakato esteve lá para conversarmos e
me passou algumas dicas sobre o caminho. Além de me ensinar a
manobrar a bicicleta com aquele peso todo e a apoiá-la nos
lugares sem que ela tombasse. Era a conversa que eu precisava ter
naquele momento, o primeiro cicloviajante que conheci, na
minha primeira estadia cicloviajando. No dia 28 de dezembro eu

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acordei bem cedo, arrumei tudo com bastante calma, agradeci por
ter estado naquele lugar, olhei para a fachada com muito carinho
e segui em frente. Segui com a bicicleta mais equilibrada, me
sentindo menos sozinha e mais confiante no que estava fazendo.

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3
O Despraiado

Recordando

Para seguir caminho até a Ilha Comprida não é possível


atravessar a Reserva da Juréia pela praia, é uma área protegida,
onde a travessia é liberada apenas uma vez por ano. A alternativa
que eu tinha visto no mapa era de contornar pela rodovia. Eu fui
conversando com alguns ciclistas da região pela internet e me
informaram sobre um outro caminho, uma estrada de terra que
atravessava a Juréia, chamado Caminho do Despraiado, ou
Estrada das Bananas.
Pedalei 28km até Peruíbe pela areia e então fui para a
rodovia SP-55, que leva ao atalho que me informaram, em Pedro

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de Toledo. Lembro que, quando cheguei no asfalto, senti uma
adrenalina, como se estivesse desobedecendo a minha mãe mais
uma vez. Tinham me alertado sobre o perigo de pedalar em
rodovias e eu sabia que os motivos para se preocupar eram reais.
Coloquei o capacete na cabeça pela primeira vez, era um capacete
de skate que estava sem uso há anos. No fundo eu sabia que
aquilo não iria fazer muita diferença naquele momento, mas me
tranquilizava de alguma forma estar seguindo o conselho de
pessoas que se preocupavam com a minha segurança. Eu ouvi
tanto o tal do "use o capacete" que, se acontecesse qualquer coisa
comigo e eu estivesse sem nada protegendo a minha cabeça,
sentiria uma vergonha enorme. Não ia ser bom dar mais motivos
para me chamarem de inconsequente. O caminho pela rodovia foi
libertador, uma sensação de superação de medos, novas
descobertas e foi bem mais tranquilo do que eu imaginava.
Durante o caminho não me senti em perigo, a estrada não estava
movimentada e foi uma experiência nova estar em uma rodovia
em um ritmo bem mais lento do que o de costume.
Pedalei mais 30km até chegar em Pedro de Toledo e
peguei uma saída para uma estrada de terra por mais 8km até o
Pesqueiro do Português. Tinham me aconselhado a parar ali,
falaram que não existiam muitas opções de hospedagem pelo
caminho e realmente aquela foi a única que eu vi.
Quando cheguei, reparei que não era um espaço de
camping. Perguntei para um funcionário que estava no
estacionamento se eu poderia acampar e ele disse que não
costumavam receber campistas, mas que eu poderia falar com a
dona do lugar. Eu já estava bem cansada fisicamente e fui
conversar com a dona do pesqueiro que me cobrou R$20,00 para
acampar e usar o banheiro com chuveiro, além do café da manhã
incluído no dia seguinte. Armei a minha barraca pela primeira vez

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e fiquei muito feliz quando entrei lá dentro. Eu tinha escolhido a
Guepardo da Everest, por saber que era leve, resistia a chuvas
fortes e o valor não era tão alto. Pensava que ela fosse bem
pequena, mas coube toda a minha bagagem do meu lado e eu
dormi com bastante espaço.
No dia seguinte acordei, tomei o café da manhã e segui
caminho pela estrada de terra. Os primeiros 2km foram
tranquilos, em um terreno quase plano, mas não demorou para
começar a subida. Quando decidi que iria viajar, em outubro,
resolvi colocar a coroa na bicicleta para aumentar as minhas
opções de marchas, fiquei com 3 na coroa central e 6 na catraca
da roda. Como sempre pedalei no plano, porque na Baixada
Santista eu não tinha necessidade de subir morros, passei a me
preocupar com a minha resistência física para as subidas e com o
uso correto das marchas. Eu fiz alguns treinos enquanto estava
morando lá. Subi a Ilha Porchat umas cinco vezes antes de iniciar
a viagem para descobrir como as marchas funcionavam (sim, eu
era uma ciclista muito amadora). Acontece que o caminho para o
mirante da Ilha é todo asfaltado e eu não carregava nenhum peso
extra. Quando comecei a subir o Despraiado, não pedalei 200
metros e já tive que descer da bicicleta para começar a empurrar.
Foi aí que descobri que as pessoas que me indicaram aquele
caminho, com certeza, não tinham feito aquilo com peso.
Empurrar a bicicleta pesada naquela estrada de terra com pedras
demandava muito esforço físico, eu dava no máximo cinco passos
e parava. As pedras seguravam o movimento das rodas, além de
não darem firmeza para os pés. Avistei uma casa no caminho,
encostei a bicicleta e fui, na esperança de uma resposta positiva,
perguntar para o senhor que morava ali se a subida já estava
terminando. Ele respondeu: "ainda nem começou a subir". Ouvir
aquilo foi desesperador, mas eu não iria desistir e não estava

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disposta a voltar até a rodovia. Segui empurrando a bicicleta, dei
mais uns 20 passos e a deixei cair no chão. A minha vontade
naquele momento era de gritar, chorar e xingar, mas respirei
fundo e comecei a tirar a bagagem da bicicleta para conseguir
tirá-la do chão. Pensei na possibilidade de subir com o peso
primeiro e depois voltar para buscar a magrela, não tinha passado
nenhum carro por mim até então e eu não via outra opção. Até
que ouvi o barulho de um veículo subindo, uma caminhonete. Eu
acenei, ele seguiu por mais uns 100 metros, parou e deu ré. O
motorista me perguntou se eu precisava de ajuda, eu só pensava
em jogar todo aquele peso dentro da caçamba e foi o que eu fiz.
Ele me disse que iria parar para capinar um lote e que depois que
começasse a decida da serra eu iria ver o carro dele estacionado
ao lado de uma casa branca. Eu estava tão feliz com a ajuda que
nem me preocupei em perguntar o nome dele, nem em pegar
qualquer tipo de contato. Subi os 3km restantes com a bicicleta
leve e sentindo tanto alívio de não estar fazendo força que,
quando passava pela minha cabeça que aquele homem poderia
sumir com as minhas coisas, me confortava saber, que se isso
acontecesse, pelo menos eu seguiria viajando sem peso.
Comecei a parte da descida e, depois de uns 2km, avistei a
caminhonete branca estacionada ao lado do terreno onde o
Marquinho estava trabalhando, esse era o nome dele.
Conversamos um pouco e ele me perguntou se eu não tive medo
de que ele sumisse com as minhas coisas e que não achava normal
uma pessoa confiar em alguém que ela não conhecia. Realmente
tinha um bom tempo em que eu não precisava confiar em um
desconhecido daquela forma, mas, quando ele parou para me
ajudar, eu só vi ali uma pessoa boa, só isso. A minha intuição e a
situação na qual eu me encontrava me fizeram confiar, não
passou medo por mim, foi espontâneo e foi ótimo.

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Eu ainda precisava pedalar mais uns 30km até o lugar que
pretendia dormir. Tinham me falado que eu poderia acampar no
terreno de uma escola em um bairro de Itimirim, antes de chegar
na rodovia que iria até Iguape. A descida era mais longa do que a
subida e, depois que coloquei o peso novamente no bagageiro,
ficou ainda mais difícil de equilibrar a bicicleta naquele chão
cheio de pedras. Eu estava usando bastante os freios, até que senti
que eles já não estavam mais funcionando tão bem. Achei melhor
descer da bicicleta e ir andando com ela do meu lado. Foi aí que
ela tombou mais uma vez. Não demorou muito e apareceu outra
caminhonete, com um casal dentro, os dois acharam que eu
tivesse caído e pararam o carro para oferecer ajuda. Expliquei
sobre os freios gastos e eles disseram que tinham um terreno logo
à frente onde eu podia parar para trocar as sapatas. Quando
paramos, em uma sombra no terreno deles, o Sérgio quis trocar
os freios para mim, ele disse que tinha experiência nisso e eu
aceitei a ajuda. Enquanto ele fazia o serviço, ia me questionando
sobre o meu despreparo como ciclista, dizia que eu podia morrer
pelo caminho e que eu não sabia o que estava fazendo. Ouvi
aquilo tudo sabendo que ele tinha razão, eu realmente não tinha
muita intimidade com a bike, mas de alguma forma eu sabia que
conseguiria ir com ela até onde eu quisesse ir e disse isso para ele.
No final da nossa conversa, ele assumiu que eu estava realizando
um sonho antigo que ele tinha e que me admirava por estar
vivendo daquela maneira. Os freios estavam prontos, eu agradeci
a ajuda e segui em frente.
Menos de 1km à frente encontrei um quiosque aberto, o
único que vi em todo o caminho, a Parada do Compadre. Eram
mais de 12hrs e parei para almoçar. Desde o momento que saí de
casa, vi que estar sozinha pedalando com aquele tanto de
bagagem era algo que chamava muito a atenção das pessoas.

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Algumas acenavam, buzinavam ou paravam para conversar,
aquilo despertava uma curiosidade enorme nos outros e lá não foi
diferente. Quando encostei a bicicleta no muro, um homem que
estava almoçando com a família levantou para me perguntar de
onde eu vinha e para onde ia. Eu contei resumidamente a história
e, enquanto eu pedia o meu almoço, ele se encarregou de repassar
o que tinha escutado para todo mundo que estava ali. Sentei em
uma mesa para esperar a comida e um menino me chamou para
jogar bilhar com ele. Tinha muito tempo que eu não jogava e me
diverti bastante perdendo feio para uma criança de 10 anos de
idade, que se divertiu mais ainda ganhando de mim. A menina
que me atendeu no balcão me chamou para entrar e comer na
mesa dentro da casa deles. Quando entrei tinha um churrasco
acontecendo lá dentro, sentei com eles, comi, dei muita risada e
antes que eu seguisse o meu caminho, me ofereceram uma
hospedagem. Eu quase aceitei, estava cansada, mas achava que
ainda era cedo para parar, agradeci muito e segui pedalando.
Pedalei mais uns 20km até chegar no bairro que me
falaram, no pé da serra, antes de começar o asfalto. Cheguei lá
umas 17hrs e não tinha nada aberto. Na verdade, o bairro era
apenas uma rua, com uma mercearia, uma igreja e uma escola,
tudo fechado. Comecei a perguntar para as pessoas das casas se
elas poderiam me indicar um lugar onde eu pudesse armar a
minha barraca em segurança, na esperança de que alguma delas
me oferecesse um espaço no quintal. Depois de três respostas
negativas encontrei a Vânia, que não só deixou que eu acampasse
em seu quintal, como me ofereceu um banho e um café da manhã
no dia seguinte, antes que eu seguisse meu caminho.

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4
Novos Caminhos

Presente

Decidi que vou seguir caminho, não o antigo caminho que


eu planejei quando saí de Itararé, mas sim o meu caminho, o que
não pode ser planejado, um caminho que se constrói no agora.
Com toda essa preocupação e medo presentes no mundo hoje,
não vejo mais sentido em seguir um roteiro até o Uruguai e sinto
que devo permanecer no meu país. Fiquei com saudades da Serra
da Mantiqueira, de ouvir um sotaque nordestino e me deu uma
vontade danada de conhecer o Norte do Brasil, mas isso tudo eu
também não posso encarar como metas a cumprir agora. Nas
condições atuais, o que eu posso fazer é buscar um lugar seguro

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para me hospedar em uma cidade vizinha, ir até lá e ficar o tempo
que for necessário.
As recomendações são para que as pessoas não saiam de
suas casas, mas, como eu não tenho uma casa, essa não é uma
recomendação possível de seguir. Eu estou bem instalada na
minha barraca e o sítio que estou hoje é de um casal que me
recebeu super bem. Aqui eu aprendi muito com os dois, mas já
não vejo sentido em continuar em um terreno que não é meu.
Por mais que a convivência esteja tranquila, é o espaço
deles, que eles escolheram como lar e eu escolhi a estrada como o
meu lugar para viver. Já estou aqui há duas semanas e ontem foi a
primeira vez que senti que precisava seguir em frente. Refleti
muito sobre essa decisão, tive muitas dúvidas sobre o que é certo
ou errado de se fazer em um momento como esse e, antes de
dormir, eu pedi uma resposta. Eu não tenho religião e, quando eu
peço essas respostas, quase que em forma de oração, sei que no
fundo estou perguntando para mim mesma. Sei que o “meu eu”
sabe a resposta certa, aquela que vem sem julgamentos ou medos,
aquela que vem sem deixar espaço para dúvidas, e hoje eu acordei
na certeza da ação.
Consegui um lugar para ficar em Cambará do Sul. São
35km até lá, a maior parte é de subida, mas dessa vez eu não
estou me preocupando com o cansaço físico. Tenho uma vontade
acumulada de me movimentar e quero aproveitar cada segundo
dessa estrada. A região que eu estou ainda não tem casos
confirmados de Coronavírus, são cidades bem pequenas e evitar o
contato com outras pessoas é algo fácil se de fazer.
Já tem um tempo que eu escolhi estar sozinha, que eu
aprendi a gostar da minha companhia e a lidar com as minhas
questões existenciais. Uma coisa que aprendi com a minha
solidão é que essas questões sempre irão existir, penso que cada

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ser humano tem dentro de si o poder de respondê-las, mesmo que
a resposta seja "eu não tenho como saber isso agora".
Nesse momento, em que muitas pessoas estão precisando
ficar sozinhas consigo mesmas por mais tempo do que estão
acostumadas, eu tenho exercitado as formas de se conviver com
outras pessoas, pessoas que estavam fora do meu núcleo familiar
e que me receberam em suas casas. Aqui em Praia Grande esse
exercício foi ainda mais intenso, pois eu não tinha ideia do tempo
que precisaria ficar parada. Fui recebida no dia em que o
Governador de Santa Catarina determinou a quarentena no
estado todo e cheguei aqui horas antes de fecharem a entrada da
cidade. Ter sido recebida pela Martina e o Frank em um dia como
aquele foi uma sorte enorme, eu vou ser sempre grata aos dois
por terem me acolhido nesse momento.

Dois dias depois...

Ontem o meu despertador tocou às 5hrs da manhã, o


barulho da ventania assustava, na Praia Grande (Santa Catarina)
é possível ouvir o vento vindo de longe, balançando todas as
árvores pelo caminho. Eu tinha planos de sair antes das 6hrs,
como de costume, mas deu para sentir que o verão tinha acabado.
O Sol não estava tão forte e o clima era frio, o primeiro dia de frio
lá nos cânions, bem no dia que eu iria subir para Cambará do Sul,
um dos lugares mais frios do Brasil. Eu voltei a dormir e saí do
Camping Casa da Grota às 7:30, o Sol tornava o vento menos
gelado, mas não exigia o uso do meu chapéu de palha.
Eu sabia que era hora de seguir, mas estava com medo do
que me esperava pela frente. Antes disso tudo acontecer, a única
preocupação que eu teria em um dia como esse seria a subida. Eu

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sabia que era íngreme e com estrada de terra pela maior parte do
caminho, mas ontem eu estava disposta a empurrar a bike na
subida e preocupada somente com a forma que as pessoas iriam
me receber.
Faz parte da cicloviagem o contato direto com as pessoas.
O fato de estar viajando de bicicleta desperta a curiosidade e
admiração da maioria e as recepções costumam ser muito
calorosas. Só que agora muita gente está com medo do contato
com o outro, principalmente com quem está viajando, vindo de
outro lugar e podendo trazer o vírus para a sua cidade. Saí
preparada para seguir uma viagem mais solitária, em cidades
vazias e com possíveis olhares de julgamento ou medo.
No início da subida, um carro que descia a Serra parou do
meu lado e me perguntou para onde eu estava indo. As cidades da
região estão com barreiras da vigilância sanitária, para controlar a
entrada e saída das pessoas. Eu já imaginei que teria que me
explicar para a motorista e que talvez fosse repreendida por ela.
Na verdade, a pergunta veio em forma de preocupação com o meu
bem-estar. Ela disse que faria muito frio naquela noite e que, se
eu quisesse, poderia dormir na casa dela. Fiquei surpresa com a
proposta, mas como ainda era cedo e eu já tinha um lugar para
dormir, eu agradeci e recusei o convite.
Subi mais uns 2km e uma caminhonete, que também
estava subindo a Serra, encostou do meu lado e me ofereceu uma
carona. Esse convite eu aceitei, eu estava até gostando de me
movimentar, mas ainda tinha muito chão pela frente para
empurrar a bicicleta e, mesmo estando mais leve do que quando
saí de São Vicente, ela ainda estava pesada. Chegando no topo da
Serra, a temperatura estava ainda mais fria e garoava bastante. Se
não tivesse rolado a carona eu iria ficar molhada, exposta àquele
vento frio e talvez acordasse espirrando no dia seguinte, o que

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não seria nada bom para o momento. Os dois homens que
estavam na caminhonete foram muito legais comigo e me levaram
até a porta do sítio, uns 12km depois do destino deles. Eu saí
preparada para os maus olhares e recebi exatamente o contrário
do que eu imaginava, mais uma vez fui surpreendida pelo lado
bom do ser humano.

31
32
5
Ano Novo

Recordando

Os motivos foram muitos. Não sei exatamente o dia e nem


lembro de um fato marcante que me fez escolher mudar de vida.
Essa vontade viveu em mim por tanto tempo que não sei quando
começou e as vezes eu acho que nasci com ela. Meus pais tinham
o costume de fazer viagens de carro comigo e com as minhas
irmãs e eu sempre amei esses momentos. Sempre me encantei
com a estrada, estar indo para um outro lugar, com uma realidade
diferente da que eu vivia e sentir o caminho até lá, era fascinante.
Eu olhava pela janela do carro pensando que, quando eu
crescesse, iria passar pelos mesmos caminhos novamente, só que

33
no meu ritmo, podendo ver melhor cada cidade e conhecer os
seus moradores.
Quando precisei escolher uma profissão para o vestibular,
eu escolhi cinema ou jornalismo. Queria ser documentarista,
pensava na possibilidade de trabalhar conhecendo e explorando
lugares e culturas. Acabei entrando em uma faculdade de
audiovisual, mas sempre que verbalizava o meu sonho com os
meus professores, ele se tornava mais e mais distante e a ideia
que eu tinha sobre a profissão perdeu todo o romantismo.
Quando eu dizia que queria viver viajando e documentando os
lugares que eu passasse, eles me diziam que era necessária uma
equipe para isso, um roteiro bem-feito, muito planejamento e
dinheiro, enfim, nada do que eu imaginava.
Naquela época eu já me aventurava em algumas viagens
sozinha. A primeira que fiz foi para a Maromba, na Serra da
Mantiqueira. Tinha ido até lá com alguns amigos e resolvi voltar
sem eles. Eu me lembro bem desse dia, foi em 2007 e eu tinha 17
anos. Peguei uma carona com um amigo até Resende, de onde
saíam os ônibus para lá, eu tinha R$90,00 no bolso e tanta
certeza de que nada daria errado que não me preocupei com a
falta de dinheiro. Cheguei em Resende depois das 17:00 e já tinha
saído o último ônibus que subia a serra. Eu pensei que teria que
dormir na rodoviária e já estava me conformando com isso,
quando vi uma caminhonete estacionada na rua com umas cinco
pessoas ajeitando suas bagagens no carro. Fui até lá e perguntei
sobre alguma alternativa para subir até a Maromba e, quando vi,
já estava dentro do carro subindo a serra com eles. Foi uma
viagem marcante, tudo fluiu da melhor maneira, fiz muitos
amigos e ainda voltei para São Paulo com um troco na carteira.
Aquela experiência me mostrou a magia do viver. Quando
acreditamos no fluir das coisas, realmente tudo acaba dando

34
certo. Depois disso fui sozinha para São Tomé das Letras e voltei
para a Maromba três vezes, acabei fazendo muitos amigos por lá.
A terceira e última vez que fiz essa viagem foi no carnaval
de 2008, quando conheci o meu ex companheiro. Eu tinha 18
anos e já estava insatisfeita com a faculdade e com a forma de se
viver na cidade. Daquele encontro veio a decisão de me mudar.
Voltei para São Paulo, cancelei a faculdade, coloquei as minhas
coisas em uma mochila e fui morar com ele. Eu já tinha tido
contato com algumas pessoas que viviam na estrada vendendo
artesanato, fora daqueles padrões que eu criticava, e o meu ex foi
uma dessas pessoas. Ele estava morando no Vale da Santa Clara,
um dos pontos mais altos da região, era artesão e já tinha viajado
os estados de Goiás e Minas Gerais. Até que conheceu aquele
paraíso e decidiu parar por ali. Era realmente um lugar incrível
para viver, com uma natureza maravilhosa, muita mata, rios e
cachoeiras por todos os lados e um aluguel tão barato que parecia
piada. O chalé que ele alugava e no qual vivi por cinco meses
custava R$70 por mês. Lá tinha água limpa e gelada saindo da
torneira, chuveiro elétrico, fogão à lenha e uma vista incrível para
o Pico das Agulhas Negras. Ele realmente tinha muitos motivos
para querer ficar por lá, mas eu queria viajar, esse era o meu
sonho e, de tanto que eu quis, nós fomos. Vivemos quatro anos na
estrada com nossas mochilas, vendendo artesanato e viajando de
ônibus. Fomos da Mantiqueira até o Pernambuco, parando em
vários lugares pelo caminho. Depois desses quatro anos fomos
morar em Belo Horizonte, em uma casa que ele tinha herdado da
avó, e lá vivemos por mais dois anos.
Por mais que tivéssemos viajado bastante, aquela magia
que eu sentia quando viajava sozinha nunca mais tinha
acontecido. Era como se uma parte de mim, a que acreditava em
mágicas, tivesse se escondido em algum lugar durante a relação.

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Naquele relacionamento parecia que eu sempre tinha algo para
aprender e me faltava credibilidade para ensinar, me sentia
inferior e insegura. Quando decidi me separar, foi um momento
de libertação e de muito medo. Foram seis anos vivendo às
sombras de outra pessoa e planejando um futuro ao seu lado. A
relação se tornou insustentável, mas já fazia muito tempo que eu
não visualizava um futuro só meu. Após o término, me senti
muito perdida, sem saber que rumo tomar, e acabei voltando para
a casa dos meus pais. Voltar para São Paulo era algo que eu não
desejava, mas não tinha estrutura emocional e nem ideia do que
fazer além daquilo. Minha família ficou feliz com o meu retorno,
mas eu sentia que a minha volta para lá foi recebida como uma
prova de fracasso, como se a escolha que eu tinha feito de viver na
estrada tivesse dado errado e a minha volta era a prova disso.
Ninguém da minha família nunca me perguntou sobre as minhas
vivências na estrada, nem sobre os lugares que passei ou as
pessoas que conheci. Era como um passado obscuro, que não
deveria ser mencionado. Dali para frente eu precisava me
encaixar, ganhar dinheiro e descobrir como viver dentro dos
padrões novamente.
Decidi voltar para o audiovisual, fiz um curso de edição de
vídeo e depois um tecnólogo de produção multimídia. Trabalhei
em duas produtoras como estagiária de edição e me senti
explorada, trabalhando muito, ganhando pouco e sem
reconhecimento. Então resolvi voltar a produzir artesanato e
tentar vender online. Investi em algumas pedras e linhas
enceradas para fazer peças em macramê e comecei a ter retorno
em pouco tempo. No terceiro mês já estava ganhando o mesmo
que a produtora me pagava, então decidi dedicar o meu tempo
apenas na minha nova marca.

36
Passei quatro anos na casa dos meus pais, fiz um curso de
joalheria e investi em um ateliê para trabalhar com prata. A
marca foi crescendo e, quando vi que conseguiria pagar as minhas
contas sozinha, me mudei para a Baixada Santista e aluguei um
apartamento com vista para o mar, ao lado do Parque Voturuá em
São Vicente. Eu não tinha nenhum motivo para me queixar, era
uma vida boa e confortável, mas fui sentindo os meus sonhos
ficando para trás e a vontade de viajar ia tomando conta de mim
cada vez mais. Parecia que tinha alguém dentro de mim querendo
gritar, pedindo para ser ouvida, implorando para viver. A ideia de
viajar com a bicicleta foi fazendo cada vez mais sentido e então,
assim que tomei a decisão de que isso era realmente o que eu
queria, comecei a me desfazer das coisas que eu tinha acumulado
no meu apartamento. Ensinei a Fernanda a trabalhar com
joalheria artesanal e deixei com ela as minhas ferramentas. Doei
algumas roupas, guardei outras, vendi o fogão, o colchão de casal,
os gaveteiros e as mesas. Desapeguei de quase tudo e fui embora,
naquele 26 de dezembro, como já contei anteriormente.
No dia 30 eu estava na Ilha Comprida, fui para a Casa do
Ciclista do Mauro, por indicação do Pakato. Pedalei em média
60km da casa da Vânia até lá e fazia muito calor naquele dia. Eu
cheguei no início da tarde e fui recebida por dois amigos do
Mauro. Eles também estavam hospedados lá, mas não eram
ciclistas, eram maratonistas que iam participar de uma corrida
em Iguape no dia seguinte, o Lucas e o Chico. Os dois se
mostraram bem surpresos quando falei de onde vinha e para
onde estava indo. O Lucas chegou a me comparar com esses
atletas que estão sempre buscando superar os limites do corpo,
mas sinceramente essa nunca foi a intenção da viagem. Enquanto
ele falava eu ia sentindo o meu corpo cada vez mais cansado,
percebi que estava com cansaço acumulado e que tinha abusado

37
da exposição ao Sol. Foi naquele dia que passei a olhar com mais
atenção para os cuidados que não estava tendo comigo mesma.
Percebi que não tinha necessidade nenhuma de chegar logo em
lugar nenhum e que eu poderia percorrer distâncias menores,
sem me cansar tanto.
Aquele lugar era tudo o que eu precisava. Tinham duas
camas de solteiro, onde os dois estavam dormindo, e uma cama
de casal que separaram para mim. Era uma cama enorme, cheia
de travesseiros. Ali eu me deitei e não quis mais levantar, fui
sentindo o meu corpo e percebendo que eu não estava bem. Era
insolação, estava com o corpo quente, dor de cabeça e enjoo.
Naquele dia eu só me levantei para almoçar e conhecer o dono da
casa, o Mauro. Não precisou de muito tempo para ver que aquela
era uma pessoa com um coração enorme. Ele e a sua irmã Ivone
me receberam muitíssimo bem, os dois se parecem bastante em
tudo, são muito gente boa e generosos. Quando me recusei a
comer, por não querer levantar da cama, a comida chegou até
mim, junto com um remédio para febre. Fui acolhida com muito
carinho e acordei bem melhor no dia 31. Era o último dia de 2019
e eu aproveitei para lavar roupa e comprar um chapéu de palha,
escolhi o maior que encontrei para fazer bastante sombra. Desde
aquele dia eu deixei o capacete de lado, até me desfazer dele pelo
caminho.
Naquele dia também chegou o Tiago, o primeiro
cicloviajante em atividade que conheci. Ele tinha saído de Belo
Horizonte e estava indo até Buenos Aires, tirou os dias de férias
para fazer a viagem e tinha um prazo determinado para chegar.
Por isso vinha pedalando por distâncias longas e estava mais bem
preparado para isso do que eu. A bicicleta dele era bem mais
moderna do que a minha, com mais acessórios, ele tinha as
roupas para proteger o corpo do Sol e com certeza conhecia muito

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mais sobre o universo do ciclismo. A minha magrela já estava
fazendo barulhos crocantes por causa dos quilômetros rodados na
areia e o Tiago me ensinou a ter mais cuidado com a corrente, a
limpar e a lubrificar.
Era o último dia do ano, eu estava recuperada da
insolação, mas não queria extravasar naquela noite. Eu não tive
vontade de beber, nem de pular onda, nem de ver os fogos na
areia. O meu ano tinha virado no dia 26 e já estava tudo tão
intenso até ali que a passagem do dia 31 para o dia primeiro não
parecia ter tanta importância. Passamos a noite juntos, eu, Tiago,
Lucas, Chico, Mauro e Ivone, fizemos um churrasco na calçada,
desejamos um bom início de ano uns para os outros e fui dormir
depois do barulho dos fogos. O primeiro dia do ano seria de
movimento, em direção ao Sul, agora com um chapéu na cabeça.

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40
6
Pereirinha

Recordando

Cheguei em Cananéia no dia 02/01 e acampei lá por dois


dias. Foram dias de chuva, mas deu para conhecer a cidade. Ela é
bem bonita, tem um centro histórico rodeado por muita natureza
e aquele clima gostoso de cidade pequena. A chuva me fez ficar
mais tempo no camping do que na rua, assim como os outros
campistas, então acabei passando boa parte do dia conversando,
comendo e conhecendo pessoas. Entre essas pessoas eu conheci o
Rafa e o Luan, que iriam para a Ilha do Cardoso no mesmo dia
que eu.

41
Quando eu tracei o caminho da viagem pelo mapa, tinha
escolhido atravessar todas as ilhas do litoral Sul de São Paulo e
Norte do Paraná, até a Ilha do Mel, e de lá voltar para o
continente. Para fazer esse caminho pela Ilha do Cardoso eu teria
que pegar um barco até o Marujá e seguir pedalando para o
Superagüi. No dia da travessia, o Rafa e o Luan me falaram sobre
os botos cinzas que apareciam na Praia do Pereirinha, no outro
lado do Cardoso, e eu quis muito vê-los de perto. Decidi então
passar um ou dois dias por lá, mesmo tendo que retornar para
Cananéia depois e pegar um outro barco para o Marujá para
seguir a viagem.
Eu não tinha feito um planejamento financeiro antes de
sair de casa, tinha entregado o apartamento e estava com uns
R$1000,00 no bolso. Era dinheiro suficiente para eu aproveitar o
primeiro mês sem me preocupar em trabalhar. Para esse início de
viagem foi ótimo, as ilhas são bem desertas, difíceis para vender
artesanato e as travessias de barco são pagas. Então eu tirei umas
férias merecidas durante a minha passagem por elas, estava
realmente curtindo cada lugar.
Nós três pegamos juntos o mesmo barco para o
Pereirinha. Aquele dia foi a primeira travessia em barco pequeno
com a magrela e eu estava tensa com aquele momento que eu já
sabia que chegaria. Eu não conseguia nem levantar ela do chão
sozinha, quanto mais colocar em um barco balançando na água.
Com certeza precisaria de ajuda e estava com medo de que caísse
alguma coisa, ou ela inteira, dentro do mar. Mas para a minha
felicidade os barqueiros estavam acostumados com aquela
situação e fizeram a minha bicicleta parecer bem mais leve do que
ela estava.
Quando chegamos na praia tinham alguns turistas, mas as
estruturas para recebê-los eram bem simples. Os restaurantes são

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de pessoas nativas da região, não existem pousadas e o lugar é
quase intocado. A maioria dos turistas fazem o passeio até lá para
passar o dia e voltam para dormir em Cananéia. Mesmo assim foi
rápido para encontrarmos um lugar para acampar, no quintal de
um senhor que morava ali pertinho da praia. Depois de arrumar
minhas coisas, fui dar uma volta na praia e consegui ver os botos
bem de perto, eles parecem não ter medo das pessoas e nadam ali
no raso mesmo.
Quando conheci o Rafa e o Luan, vi dois meninos
empolgados com o momento que estavam vivendo, acampar era
um divertimento para eles, uma fuga das suas rotinas e aquilo me
contagiou. Eu tinha saído a pouco tempo de casa, mas não via o
ato de acampar como algo novo ou divertido, essa era a maneira
mais barata e autossuficiente de me hospedar durante a viagem.
Passar aquele tempo com eles tornou a experiência mais leve e
empolgante. Eles estavam viajando no modo econômico e,
naquele dia, conseguiram para o almoço 1kg de peixe com um
pescador, por um valor bem simbólico. A chuva estava vindo e
precisávamos acender o fogo, eu carregava comigo uma lona e
quatro cordas. Amarramos ela em cima da fogueira, que o Luan
conseguiu acender, e cozinhamos o peixe em uma panela com os
temperos que tínhamos. Foi improvisado, mas ficou muito bom.
Não tinha muita opção de vida noturna por ali, então
comprei um copo de cataia (uma bebida local, feita com uma
folha nativa da região) no bar do lado e ficamos conversando em
volta da fogueira. De repente ouvimos um som de instrumentos e
aquela noite que parecia que iria terminar cedo acabou ganhando
vida. Seguimos os sons até encontrarmos um grupo de amigos,
pelo menos umas dez pessoas em uma roda fazendo música. Eles
eram da bateria da Unicamp e tinham um repertório lindo e bem
ensaiado. Aquele encontro do acaso parecia algo combinado, mas

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se tivesse sido não seria tão perfeito. Foi uma noite mágica, a
energia que a música gera é impressionante, ela realmente une as
pessoas. Tocamos e cantamos enquanto o sono ou o álcool iam
diminuindo o número de pessoas na roda, até que restou nós três
novamente. Fomos até a beira do mar, observamos o céu,
agradecemos o momento e retornamos para o acampamento.
Todas as vezes que me fechei em relações, sejam
amorosas, familiares ou entre amigos, senti que o meu mundo
ficava menor, resumindo-se àquilo. Estando sozinha eu me
desprendo dessa visão de núcleos a preservar e me abro para
novas conexões. Eu acredito na importância de respeitar a minha
individualidade, para poder me conhecer melhor e que viajar só é
mais sobre respeitar o meu tempo e os meus desejos do que sobre
a solidão em si. Eu não queria e ainda não quero entrar em um
relacionamento a dois, mas nunca me fechei aos encontros da
vida, estou aberta a conhecer pessoas e a explorar novos
sentimentos, desde que sejam sinceros e aconteçam de forma
natural.
Desde quando nos conhecemos eu reparei no brilho dos
olhos dele e em como aquele sorriso era sincero. O Rafa tinha
aquele jeito leve e alegre de ver a vida, com uma simplicidade que
me encantou. Eu senti um clima entre a gente, mas não queria
tomar nenhuma atitude, a noite estava boa demais e tudo estava
acontecendo com tanta naturalidade que não senti vontade de
forçar uma ação. Eu também estava me sentindo um pouco
insegura com a minha aparência, a minha vaidade quase sumiu
naqueles dias na estrada. Raramente eu me olhava no espelho,
não me preocupava com o meu cabelo, nem com depilação, estava
com poucas opções de roupa, enfim, bem fora dos padrões de
feminilidade. Eu saí de casa já sem me importar em agradar os
homens, principalmente esses que esperam que as mulheres

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sigam algum padrão, mas sei que os que não se importam com
isso são a minoria. Já tinha percebido que ele era uma pessoa
simples, mas estava de férias e, muito provavelmente, não estava
acostumado a se relacionar com mulheres que vivem na estrada.
Nossas realidades eram muito diferentes, mas o desejo estava ali
e estava cada vez mais palpável. Quando fomos nos despedir para
irmos dormir acabamos nos beijando e a noite se estendeu ainda
mais. Estava claro que aquela seria uma história curta, um
capítulo de um livro sobre uma viagem que estava apenas
começando, mas eu amei ter aquela companhia e ainda me
lembro bem daquele sorriso.

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46
7
Silêncio

Recordando

Eu vi um guará pela primeira vez na vida quando estava


no barco a caminho do Marujá, onde eu seguiria o meu percurso
pelas ilhas. Eu não consegui disfarçar a minha alegria ao ver
aquela ave vermelha voando sobre as águas, com o fundo verde da
mata nativa. Naquele momento eu desacreditava que estava ali,
era tudo tão perfeito que parecia um sonho. E foi aí que eu
percebi que estava realmente vivendo o meu sonho. Estava
sentindo o que nunca havia sentido até então, uma felicidade
plena e uma ausência de medo que me fez sentir livre. Realmente
tinha me libertado das dúvidas, inseguranças e das imposições de

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padrões. Estava seguindo o meu desejo mais íntimo, eu seguia o
meu sonho e tinha certeza de que estava no caminho certo.
A viagem de barco durou cerca de duas horas e eu fiz um
amigo nesse caminho, o Roberto. Eu vinha sentindo há uns dias
uma sensação muito estranha de familiaridade com todas as
pessoas que eu encontrava, como se eu já tivesse visto aqueles
rostos antes em algum lugar. Eu sigo com essa sensação até hoje e
já me acostumei com ela. Naquele dia foi a primeira vez que
verbalizei esse sentimento. Quando vi o Roberto, tive a certeza de
que já tinha o visto, então percebi que essa sensação já estava
recorrente e compartilhei isso com ele, sem medo de que ele me
julgasse como louca, o que realmente não aconteceu. Ele também
disse que tinha a impressão de que me conhecia e brincamos que
eu poderia estar vivendo uma espécie de "Show de Truman", onde
os coadjuvantes do programa estivessem mudando os papéis e
atuando como outros personagens.
O Marujá é a parte mais habitada da Ilha do Cardoso, lá
tem poucas pousadas, alguns espaços para camping e
restaurantes, todos administrados por pessoas nativas da região.
Então, é comum que o dono do restaurante seja irmão da dona do
camping, por exemplo. Depois que escolhi um lugar para ficar, fui
dar uma volta e dei de cara com uma amiga de São Paulo, a Lu,
que tinha passado a virada de ano por lá. Conversamos um pouco
e segui para ver a praia. No caminho fui abordada por um grupo
de pessoas que me viram chegando com a bicicleta e acabamos
seguindo juntos. Chegando lá reconheci mais uma pessoa de São
Paulo e logo depois o Roberto também estava ali conosco. Eu tive
a impressão de que todas as pessoas que estavam na vila já
tinham interagido entre elas em algum momento. A maioria
estava lá desde antes da virada do ano e o Marujá não é tão
grande assim. Essa minha impressão foi se confirmando com o

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passar das horas, parecia uma enorme viagem entre amigos, só
que cada um tinha chegado da sua maneira. Passei quatro dias
aproveitando aquela energia. Todas as noites tinham encontros
com música ao vivo, muito forró, samba e cataia.
Eu pensava que iria pedalar até o Pontal do Marujá e de lá
pegar um barco para o Superagüi, mas, quando fui me informar
sobre o caminho, descobri que a natureza tinha modificado o
trajeto e a geografia das ilhas. Agora para chegar no Pontal é
preciso ir de barco. O mar invadiu uma grande parte da Ilha,
criando uma barra e deslocando a vila que tinha ali para outro
lugar. Assim como a areia, que depois desse acontecimento
acabou preenchendo a divisão de água que existia entre o Marujá
e o Parque Nacional do Superagüi, agora o Pontal do Marujá, que
pertencia ao Estado de São Paulo, se juntou ao Paraná. Atravessar
essa nova barra foi uma experiência bem forte, as águas têm
muita força e, quando se olha para a mata, as árvores estão
mortas por causa do sal do mar. Parece um cenário pós
apocalíptico, é intenso e até bonito, mas também muito triste
para os ex-moradores daquilo que um dia foi terra e lar. Naquela
noite eu dormi no Pontal do Marujá, que agora é a ponta Norte do
Superagüi, lá é onde moram as aves guará, e foi possível ver
centenas delas agrupadas em árvores durante o fim do dia.
O Sol nascia e eu pedalava naquela areia recém
remanejada, que agora junta São Paulo ao Paraná. Estava
chegando em outro estado com a minha magrela, por uma ilha
quase deserta. Foram mais de 30 km até a parte Sul do Superagüi,
no caminho até lá só se vê areia, mar e mata nativa. Eu pensava
em atravessar ainda naquele dia para a Ilha das Peças, estava
cedo e eu não estava cansada, mas precisava almoçar primeiro e
queria aproveitar um pouco daquela tranquilidade antes de
continuar o trajeto. Depois de almoçar, caminhei pela praia e fui

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me informar sobre a travessia com um pescador. Quando eu disse
que iria pedalar pela Ilha das Peças, ele me aconselhou a ir na
manhã seguinte, por causa da maré que já estava enchendo. Me
disse que com a maré cheia eu não conseguiria ir até a parte Sul,
onde fica a vila com as opções de hospedagem, então fiquei no
Superagüi naquele dia.
Aquele era um ambiente para ficar a sós e ouvindo apenas
os sons da natureza. Não havia outros ruídos por lá e logo senti a
ausência em mim. Depois dos dias agitados no Marujá, eu estava
sozinha novamente. Aquele sentimento me fez lembrar da minha
vida com o Luis, da minha casa em Itararé e do tempo em que
moramos juntos. A vida que eu tinha era boa, morávamos de
frente para a praia, a minha marca já tinha ganhado clientes
suficientes para eu não precisar me preocupar com as contas, eu
não tinha patrão, nem funcionário e namorava um homem que
era meu amigo. Eu parecia estar conquistando a tal da vida
estável, no caminho certo para atingir o que muitos chamam de
"vida bem-sucedida". Talvez o próximo passo fosse uma gravidez,
ou comprar uma casa própria e seguir o sonho comum da nossa
sociedade. Era fácil estar vivendo daquela forma e, além de fácil,
eu me sentia feliz em vários momentos. Não tinha motivos para
reclamar da minha vida e os atritos que existiam na relação
poderiam ser facilmente contornados. Mas no fundo eu sentia que
vivia em contradição comigo mesma, como se eu soubesse que
estava me enganando. Eu sentia que a estabilidade era uma ilusão
e que eu não estava vivendo o que realmente acreditava que me
preencheria, não estava vivendo o meu sonho. Sentia que estava
estagnada, aprisionada em uma rotina e vendo todas as viagens
que eu sonhava em fazer, ficando cada vez mais distantes. Aquele
era um sonho só meu e, dentro desse sonho, estava a minha
liberdade de estar onde eu quisesse estar e fazer o que eu quisesse

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fazer. Pode soar egoísta, mas eu vejo como uma necessidade de
me autoconhecer e de viver uma história que só caberia a mim
trilhar.
Pequenos atritos foram o suficiente para que a relação
terminasse. Às vezes não parecia ter sentido o término, mas
sempre que tentávamos voltar eu percebia que as nossas vontades
estavam cada vez mais desconectadas. Pouco antes de eu entregar
o meu apartamento, ele disse que queria ir comigo e que seria
uma aventura para ele ir de bicicleta até o Uruguai. Para mim
essa viagem não era bem uma aventura, no fundo eu sabia que
não se tratava exatamente de uma viagem, mas sim de uma
entrega para a vida e essa entrega dependia apenas de mim.
Quando eu tive a certeza do que eu tinha que fazer, comecei a me
organizar para que a viagem acontecesse, não dava para ouvir
opiniões contrárias de outras pessoas e muito menos embarcar
em medos que não eram meus.
Terminar a relação foi muito difícil. No começo senti a
carência e não sabia como preencher aquele espaço. Confesso que
a saudade ainda existe, saudades de uma pessoa querida, que fez
parte da minha vida e que viveu tantos momentos bons do meu
lado. Pensei em como seria bom vê-lo de novo, principalmente
naquele dia, no qual a ausência tomava conta de mim. Me
confortava a certeza de que eu estava vivendo o meu caminho, eu
sabia que lidar com a carência faria parte da jornada e que alguns
dias seriam mais difíceis do que outros.

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8
Pode Entrar

Presente

Talvez eu esteja aqui confessando um crime, mas se for


crime o que estou fazendo, eu cometeria novamente e não acho
que consigo manter isso em segredo. Desde que ouvi falar sobre
os cânions, tive a certeza de que precisava conhecê-los. Quando
cheguei na Praia Grande os Parques Nacionais já estavam
fechados. Me avisaram sobre o perigo de fazer aquelas trilhas
sozinha. Eu tive a oportunidade de conhecer alguns guias, mas
levar alguém para conhecer os Parques agora seria um risco para
a profissão deles. Fiquei duas semanas olhando, debaixo para
cima, aquelas paredes de pedra enormes, com faixas de água

53
correndo entre as fendas das cachoeiras. Agora estou vendo uma
delas na minha frente, muito maior do que eu imaginava ser.
Essa é a minha segunda semana em Cambará do Sul, estou
hospedada em um sítio perto do cânion que estou agora, mas só
dava para ver a sua borda bem longe no horizonte. O proprietário
do sítio que me hospedou disse que a entrada principal estaria
fechada, mas que existia um acesso aberto pela borda Norte.
Disse que era uma trilha mais difícil, mas que seria possível fazer
sem correr muitos riscos.
Tenho pensado muito sobre a restrição do direito de ir e
vir, entendo a necessidade de conter essa doença que está se
espalhando pelo mundo, mas, durante esse período, eu me
pergunto, e eu? Será que corro o risco de ser presa ou multada em
algum momento? Como explicar que eu escolhi não ter uma casa
com paredes? É preciso deixar de me mover até tudo isso passar?
Quando vai passar? Aqui e agora eu também me questiono sobre
as limitações de terras, como pode um lugar como esse estar
fechado? Quem explica um cânion ser propriedade de alguém?
Como pode o homem acreditar ser proprietário da Terra?
Eu tenho seguido o meu caminho, cada vez mais atenta
aos sinais e à minha intuição. Cheguei assustada no camping em
Praia Grande, sem saber por quanto tempo precisaria ficar por lá,
dias, semanas, meses? Fui acompanhando algumas notícias e
parecia que a minha estadia iria se estender cada vez mais. Me
sentia grata por estar em uma região isolada, onde eu poderia
transitar sem colocar em risco nem a mim e nem aos outros. Mas
Cambará do Sul estava muito perto e é uma cidade ainda menor
do que Praia Grande. Decidi seguir a viagem por lugares onde
evitar aglomerações fosse algo natural e quanto mais perto da
natureza, melhor para mim.

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Hoje eu acordei com uma vontade enorme de ir até os
cânions. O dia está lindo, quase sem nuvens no céu, então peguei
a minha magrela e fui atrás desse acesso pela borda Norte. Eu não
achei a saída da estrada que me mostraram no mapa e acabei
dando de cara com o portão da entrada principal. A porteira para
os carros estava fechada, mas vi que tinha uma entrada lateral
aberta, onde dava para passar com a bicicleta. Passei devagar,
esperando encontrar alguém na portaria, mas estava vazia e então
decidi seguir em frente. Enquanto pedalava até a trilha para o
cânion, senti medo de encontrar alguém fiscalizando o lugar pelo
caminho e me barrar, já tão perto de chegar naquela borda que eu
estava namorando de longe nos últimos dias. Seria muito
frustrante precisar voltar e talvez ainda ser multada por estar lá.
Mas consegui chegar no acesso à trilha, escondi a minha bicicleta
e fui.
Nesse domingo de Páscoa, acho que, se tinham
funcionários responsáveis por estar fiscalizando o lugar, eles
estão em suas casas, com suas famílias, fazendo um bom almoço,
ou pelo menos é o que eu gosto de imaginar. Nessa Páscoa eu nem
sei o que vou comer, mas sei que almoço sozinha e devo cozinhar
alguma coisa rápida. Não vai ter bacalhau esse ano, mas,
sinceramente, isso não me importa. Essa está sendo,
estranhamente, a Páscoa mais marcante da minha vida. Estou
diante de uma das paisagens mais lindas que eu já vi. A imensidão
desse lugar impressiona, os manacás da serra em meio ao verde,
dando toques de rosa na paisagem, essa água caindo de tão alto,
com um arco-íris se formando no vapor d'água entre as pedras
enormes. Essa parede rochosa me dá uma amostra do quão
poderoso é o nosso planeta, como ele é grandioso e quantas
histórias já viveu. Por quantas transformações ele já passou?
Muitas pessoas dedicaram a vida, e ainda dedicam, tentando

55
decifrar esse e todos os outros mistérios da nossa Terra, mas
estando aqui agora eu só tenho uma certeza, do quanto é breve a
nossa existência.
Agora eu estou no topo da cachoeira. Segui por uma outra
trilha que me trouxe até aqui, sem que eu soubesse que era esse o
caminho. Eu imaginava sair em um rio, mas não na beira da
queda. Que sensação incrível ver toda essa água de perto e sentir
sua força, me deu vontade de gritar e soltei um grito de alívio.
Tirei o tênis e senti a água nos pés, percebi que estava realmente
segura, é um momento único, um dos maiores privilégios que já
vivi, estar sozinha em meio à toda essa energia. Eu me despi, quis
sentir isso através de todos os meus poros, viver esse momento da
forma mais natural que eu pudesse estar. Nua, sentindo os raios
do Sol esquentando o meu corpo. Um leve vento passa por mim,
não me deixando sentir calor, é o clima ideal. Enquanto escrevo
essas linhas eu sinto que posso ficar aqui pelo tempo que eu
desejar.

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9
Volta na Ilha

Recordando

Eu sou artesã desde os 18 anos e, quando comecei, vendia


na rua pelos lugares por onde passava. Durante quatro anos eu e
um ex-namorado viajamos do Sudeste até o Pernambuco
vendendo nossos trabalhos pelo caminho. Ele produzia as peças
em cobre ou alpaca e eu as de macramê, com linha encerada.
Durante esse período tivemos inúmeras experiências com as
vendas, mas, de modo geral, posso afirmar que a maioria das
pessoas não dá valor para o artesanato que é vendido na
informalidade. Já recebi muitos olhares de desprezo e fui
ignorada inúmeras vezes, principalmente quando passava em

57
cidades maiores. O acúmulo desses olhares e da falta deles, me
fez, por muitos anos, pré-julgar a maioria das pessoas que
passavam pela minha frente como esnobe e mesquinhas. Hoje
penso que a sociedade tenta nos afastar uns dos outros e cria
diferenças entre nós, baseadas, na maioria das vezes, nos bens
materiais. Olhar para o outro com desprezo, independentemente
de qual seja o motivo, atinge não apenas ao outro, como a nós
mesmos.
Depois de ter voltado a viver em São Paulo e de ter sido
"reinserida na sociedade", tive poucas experiências expondo na
rua. Fui algumas vezes no entorno da Praça Benedito Calixto, mas
logo passei a fazer as minhas vendas pela internet. A marca foi
crescendo e consegui me manter apenas com as vendas online por
um bom tempo. Eu não sabia se conseguiria continuar vendendo
daquela forma estando na estrada, então desenvolvi um expositor
lindo em madeira para poder vender presencialmente. Quando
cheguei na Ilha do Mel, o dinheiro que eu tinha guardado já
estava quase no final. Decidi então ir até a Gruta das Encantadas
expor as peças que eu estava carregando. Dessa vez a forma de
apresentação e as peças eram muito diferentes daquele tempo de
"maluca de estrada" (era assim que chamávamos quem vivia
viajando vendendo artesanato), mas ainda assim recebi alguns
olhares semelhantes aos daquela época. A diferença é que eles
não me atingiam da mesma maneira. Outra mudança na minha
relação com o trabalho foi a de não me preocupar em acumular
muito dinheiro. No meu primeiro dia vendendo, eu já tinha feito o
suficiente para passar uns quatro dias na Ilha, então decidi fechar
o expositor e aproveitar o lugar durante esses dias.
No meu terceiro dia eu escolhi fazer a volta completa na
ilha com a magrela. Eu não tinha lido nenhum relato de quem
tivesse feito esse mesmo caminho, saindo das Encantadas.

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Normalmente quem anda de bicicleta na Ilha do Mel costuma se
hospedar em Brasília, que tem praias mais extensas para pedalar,
o que eu só descobri depois desse dia.
Saí do camping às 6:30 e sabia que a maré estaria baixa às
9hrs. A ilha é pequena, tem apenas 35km de praias, então eu
sabia que conseguiria fazer tudo com tempo de sobra. Passei pela
Gruta das Encantadas e pela Praia da Boia sem nenhum esforço,
até que cheguei no Morro do Sabão. Quando dei de cara com
aquela escadaria, entendi o motivo de poucas pessoas fazerem
esse percurso de bicicleta. São pedras bem irregulares e grandes,
não dá para empurrar a bike e é preciso carregá-la morro acima.
Não é uma subida muito longa, sem a bicicleta eu subiria em
menos de dez minutos, mas com a magrela eu devo ter demorado
uns trinta.
Cheguei na Praia do Miguel por volta de 7:30, a praia
estava deserta e a maré ainda descia. Foi bem rápido para chegar
até o final dela, mas levei um susto quando dei de cara com um
costão de pedras. Eu vi que existia uma trilha pela mata, só que
era bem fechada e parecia não ter espaço para a magrela. Fui
caminhando entre as pedras, para ver se teria algum jeito de
seguir, e logo percebi que seria possível atravessar pela areia,
quando a maré baixasse mais um pouco. Aproveitei para dar um
mergulho e, quando deu 8hrs, consegui passar tranquilamente.
Atravessei a Praia Grande e a Praia de Fora com o vento a favor. O
dia estava lindo, as praias eram curtas e eu não estava cansada,
então desacelerei o meu ritmo. Encostei a bicicleta e subi até o
Farol das Conchas. Fiquei por lá um bom tempo tirando fotos e
aproveitando o sinal de celular, que pegava lá de cima. Passei pela
Praia do Farol, a da Fortaleza e cheguei no Forte umas 11hrs. Foi
lindo vê-lo surgindo de longe, é uma construção imponente e bem
conservada. A maré já estava subindo, mas pelo mapa que eu

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levava comigo parecia faltar bem pouco para acabar o percurso,
então deixei a bicicleta no plano e subi até o mirante. Valeu a
pena ter ido até lá, tem uma fortaleza com alguns canhões antigos
e a vista é linda, dá para ver a Ilha das Peças e a do Superagüi no
horizonte. Quando saí do Forte a maré já tinha subido bastante,
mas ainda tinha espaço na areia para pedalar. Assim que fiz a
curva para a parte Oeste da ilha eu senti o vento contra, fui
seguindo mais devagar e foi aí que percebi duas marcas de pneus
na areia. Com certeza tinham mais duas pessoas de bicicleta na
minha frente. De repente vi que a vegetação começou a mudar e a
tomar conta da praia. Eu tinha chegado em um mangue que eu
não sabia que existia e era nesse trecho que eu realmente
precisaria da maré baixa. Já não dava mais para pedalar, mas eu
ainda via as marcas dos pneus, então decidi seguir em frente, já
que eles tinham ido e não voltaram. A maré continuava subindo e
eu não conseguia ver onde acabava aquele mangue. Já estava
empurrando a bicicleta pela água por um bom tempo e não via
mais o rastro dos dois ciclistas. Eu pensei em voltar, mas não
sabia se era mais curto o caminho para frente ou para trás, então
resolvi continuar e tentar andar o mais rápido possível. Foi
quando avistei um barquinho com um pescador, vindo na minha
direção. Ele acenou e eu resolvi pedir uma carona, acenei de volta
com as duas mãos e ele me socorreu. Pedi para que ele me levasse
até o final do mangue, que eu iria continuar a pedalar pela areia
até Brasília. Quando o barco foi encostando na praia, eu avistei os
dois ciclistas, donos das marcas dos pneus. Fiquei muito feliz em
vê-los, eu provavelmente teria voltado atrás se não fosse por eles.
Eram dois irmãos de Belo Horizonte, o Vinicius, que
estava morando em Pontal do Sul e trabalhando na ilha durante
as férias, e a Natalia, que estava visitando o irmão. Quando eu
contei que viajava com a bicicleta, aquele encontro teve ainda

60
mais sentido. O Vinicius estava se preparando para fazer uma
cicloviagem no mês seguinte, praticamente o mesmo roteiro que
eu tinha em mente. Fomos pedalando juntos até Brasília, onde
eles estavam hospedados, trocamos muitas ideias, almoçamos
juntos, pegamos uma praia e salvamos nossos contatos. Com
certeza nos encontraríamos novamente em breve.

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10
Família

Recordando

No dia em que saí da Ilha do Mel, eu pensava em seguir


pedalando até Matinhos. Era um objetivo simples, apenas 33km
no plano, um percurso curto, eu chegaria em menos de três horas
e já tinha uma casa para me hospedar. Mas assim que desci do
barco em Pontal do Sul, recebi uma mensagem que mudou o meu
dia. Essa mensagem veio da Ivete, que morava em Pontal do Pa-
raná e estava acompanhando as minhas postagens pelas redes
sociais. Ela ficou sabendo da minha viagem através de um grupo
de mulheres que viajam sozinhas e sempre comentava, com pala-
vras de apoio, nos relatos que eu compartilhava pelo caminho.

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Nos meus primeiros dias na estrada, publiquei sobre a es-
colha de viver viajando com a magrela em alguns grupos do Face-
book. Achei que seria uma boa maneira de me conectar com as
pessoas e de compartilhar as minhas vivências. A Ivete foi uma
das provas de que a internet realmente estava funcionando de
maneira muito positiva para mim. Quando ela viu que eu estava
perto da sua cidade, me convidou para ficar em sua casa e eu quis
muito conhecer aquela mulher que tinha me mandado tanta força
através dos seus comentários. Foi muito importante esse apoio no
início da viagem.
Pedalei menos de uma hora para chegar até a sua casa. Eu
estava curiosa para conhecê-la, mas não tinha ideia de como seria
esse encontro. Quando cheguei fui recebida pela Mari, sua filha,
que me disse que a sua mãe estava ansiosa para me ver pessoal-
mente. Ela tinha saído para me encontrar no caminho, mas eu
cheguei na casa dela antes desse encontro acontecer. Logo ela
apareceu e eu pude ver o seu entusiasmo em me receber. Isso
nunca tinha acontecido comigo, eu não imaginava que a minha
história, narrada através de algumas publicações nas redes soci-
ais, pudesse despertar aquela curiosidade e admiração toda. Eu
senti naquele dia que estava vivendo algo realmente especial. Foi
gratificante ver e sentir que a minha escolha de vida, de ter desa-
pegado de tantas coisas materiais para viver da forma que eu
acreditava, mexia também com os sonhos de outras pessoas.
Eu também estava muito animada em estar ali. Para mim
é inspirador ver gente recebendo em casa pessoas que não conhe-
ciam pessoalmente e que não fazem parte do núcleo familiar e de
amigos. Isso me faz sentir e acreditar, cada vez mais, que somos
todos parte de uma só família. Eu me senti muito acolhida na casa
da Ivete, queria conversar com ela assim que cheguei, mas quan-
do elas me mostraram o quarto que eu iria dormir, depois de ter

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passado duas semanas dormindo no meu saco de dormir, eu olhei
para aquela cama e só conseguia pensar em me deitar. Tomei um
banho e dormi até a hora do almoço.
Enquanto a gente almoçava e colocávamos os assuntos em
dia, eu sentia o interesse das duas em saber mais sobre as minhas
histórias. Eu também queria conhecê-las melhor, a Mari estudava
medicina na Bolívia e estava passando as férias no Brasil. Eu me
identifiquei muito com ela, a gente tinha assuntos e interesses em
comum, ela é uma questionadora, assim como eu. Questionamos
o patriarcado, os padrões sociais, falamos abertamente sobre reli-
gião e política, sabendo respeitar a forma de pensar de cada uma.
A Ivete trabalha na área da educação, ela é uma mulher generosa
e muito inteligente. Foi realmente prazeroso estar lá, eu precisava
daquele momento, mesmo sem saber. Parecia uma pausa na via-
gem, um tempo para não pensar na parte turística, mas sim no
presente e na conexão entre as pessoas, coisa que se tornou cada
vez mais frequente ao longo do caminho.

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Presente

Escrevo hoje em frente a uma fogueira que acabei de


acender. Estou acampando na margem do Rio das Antas, a
caminho de São José dos Ausentes. Depois de duas semanas em
Cambará do Sul, percebi que era hora de seguir em frente. Me
sinto mais motivada agora em conhecer o meu país e vou viajar
devagar, sentindo um dia após o outro.
Essa é a primeira vez que acampo assim, totalmente
sozinha e isolada, sem sinal de pessoas e nem de celular. O lugar
parece um cenário de filme, agora me vem o "Na Natureza
Selvagem" em mente, especificamente aquela frase clássica: "a

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felicidade só é real quando compartilhada". Me pego pensando
sobre a diferença entre solidão e liberdade. Estando agora nesse
cenário incrível, que só a natureza proporciona, mas sem
ninguém para admirá-lo comigo, tento decifrar meus sentimentos
buscando a felicidade. Com certeza não encontro a tristeza agora
e é evidente a presença da gratidão, por poder estar aqui
descobrindo e sentindo esse lugar. A felicidade passa por mim,
mas não de forma eufórica. Eu sinto também a ausência e tenho
vontade de compartilhar esse momento com todas as pessoas do
mundo. Eu realmente gostaria que todos também pudessem
contemplar esse pedaço da nossa casa, assim como outros tantos
que vi sozinha. Talvez seja por isso que peguei o caderno agora
para escrever, na esperança de transmitir um pouco do que vejo
para outras pessoas. Hoje também me sinto confusa, acho que
por consequência da falta total de estabilidade. Aquilo que eu
sabia ser uma ilusão provou-se como tal. Realmente nada está sob
o meu controle, nada me pertence, muito menos o futuro. Ter
essa clareza me acalma e me perturba ao mesmo tempo. Sinto que
não devo me preocupar com o que não posso controlar, mas a
incerteza gera medo em alguns momentos. Respiro e me
tranquilizo. Hoje eu não posso criar muitos planos futuros sobre o
roteiro da viagem, eu não sei como estão as entradas das cidades
e não sei como estarão as fronteiras. Tenho acompanhado as
redes sociais de alguns amigos viajantes e muitos estão “presos”
em outros países sem conseguirem voltar para o Brasil ou se
locomover pelo território no qual se encontram. Imagino que
realmente o meu roteiro vai se desenhar diariamente. No
momento eu penso em seguir até São José dos Ausentes. Tenho
referências de amigos que passaram por lá e me falaram sobre o
Hostel Toca da Onça, onde poderiam me receber durante alguns
dias.

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Já está escuro e eu estou usando a luz da fogueira para
escrever nesse caderno, quase não consigo identificar a minha
letra. O meu celular já está sem bateria e daqui a pouco eu vou
entrar na barraca para dormir. Eu estou analisando os meus
medos agora, de alguém aparecer durante a noite, ou do tipo de
animal que possa circular por aqui, mas sei que vou estar segura
dentro da minha barraca. Não pretendo alimentar meus medos,
nada de mal vai acontecer, eu vou dormir tranquila e acordar bem
cedinho com um cenário lindo em minha frente.

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12
São Chico

Recordando

Quando comecei a ter contato com o cicloturismo, percebi


que muitas pessoas viviam nesse universo pelo amor à bicicleta. A
própria palavra, cicloturismo, relaciona a viagem à prática do ci-
clismo, soando como uma modalidade esportiva. No geral os es-
portes envolvem superação de limites e esforço físico. Por isso, é
muito comum que me perguntem quantos quilômetros eu pedalo
por dia, na intenção de saber o quanto o meu corpo aguenta peda-
lar. As minhas respostas não costumam satisfazer os ciclistas. O
meu modo de viajar não envolve metas nem planos, eu não pre-
tendo superar limites físicos e nunca nem calculei quantos quilô-

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metros pedalo por hora. O que costumo fazer, quando quero se-
guir caminho, é olhar no mapa a distância de onde eu estou para
onde eu quero ir. Se conseguir fazer em um dia, ótimo, se não
conseguir, eu procuro um lugar para passar a noite assim que sin-
to vontade de parar.
O máximo que eu já pedalei em um dia foi na minha pri-
meira viagem com a magrela, de São Vicente até a Juréia. Foram
quase 100km e eu não tinha a menor ideia de como o meu corpo
reagiria. Eu apenas fui, sabendo que poderia parar a qualquer
momento e sem duvidar de que eu conseguiria chegar aonde qui-
sesse. Muitas vezes a vontade de seguir em frente fez com que o
cansaço físico fosse superado, mas também tiveram situações em
que eu precisei escutar melhor o que o meu corpo dizia. A percep-
ção desse diálogo, entre corpo e mente, se tornou fundamental no
meu dia a dia. Viver na estrada é saber se ouvir, sentir quando é
hora de parar ou de ir para o próximo destino.
Não foi o cansaço físico que me fez parar em Matinhos, eu
decidi dormir lá porque queria conhecer melhor aquela cidade. O
litoral do Paraná não é muito extenso, nem muito divulgado, mas
tive a percepção de que ainda se preocupam com a preservação da
restinga nas praias. Eu vi poucas construções à beira mar, o que
achei muito positivo e raro no litoral brasileiro. Fiquei hospedada
na casa da Dani, que me convidou para dormir lá depois de ter
visto a mesma publicação que a Ivete, no grupo das mulheres que
viajam sozinhas. Ela também pedalava e tinha planos de fazer
uma viagem mais longa com a bicicleta dela, então resolveu abrir
a sua casa para receber cicloviajantes e começar a ter mais conta-
to com esse universo.
Na semana anterior à minha chegada em Matinhos, ela ti-
nha feito uma cicloviagem até São Francisco do Sul, uma ilha que
eu não sabia que existia. Eu ainda não tinha olhado aquela parte

72
do mapa com atenção e nunca tinha ouvido ninguém falar sobre
São Chico. Ela me disse que era um lugar lindo, mas que não teri-
am muitas opções de hospedagem e que a pousada mais barata
que ela encontrou custava R$60 a diária, o que já estava acima do
que eu gostaria de gastar. De qualquer maneira, mantive em men-
te a ideia de ir até aquela cidade e passar uma ou duas noites por
lá, com esperança de encontrar um lugar para acampar.
Passei apenas um dia em Matinhos. Pedalei pela cidade,
fui até o Mirante das Pedras, conheci a Praia Brava, a Praia dos
Amores e a Praia Mansa. Não era um dia de muito Sol, mas dei
um mergulho na Praia Mansa antes de almoçar. No dia seguinte
acordei as 5:30 e saí com o nascer do Sol, já imaginando que o dia
seria longo. Assim que eu cheguei em Guaratuba, percebi que a
coroa da bicicleta estava torta e que eu não conseguiria passar
para a marcha mais leve se precisasse. Eram 7:30, a bicicletaria
da cidade só abriria às 9hrs e eu esperei na praia até que ela
abrisse. Eles não tinham uma coroa do mesmo tipo para substitu-
ir e o homem que me atendeu disse que o problema estava no pe-
so que eu carregava, que estava forçando muito a bicicleta. Eu não
tinha o que fazer sobre essa questão naquele momento, mas sabia
que estava mesmo carregando muita coisa. Ele deu um jeito de
desentortar a coroa com um alicate de pressão e foi o suficiente
para eu conseguir continuar pedalando.
Itapoá é a primeira cidade do litoral catarinense, eu fiquei
feliz quando atravessei a divisa dos estados e pensei na possibili-
dade de dormir por lá antes de seguir até São Francisco do Sul.
Mas o dia estava nublado, eu ainda não estava cansada e enquan-
to passava pela cidade não senti vontade de parar. Não se via mais
a restinga e eu não conseguia ver a praia direito, tinham muitas
casas ocupando quase toda a orla.

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Ainda eram 11hrs e eu vi no Google Maps que faltavam
37km para chegar em São Francisco do Sul. Decidi ir seguindo o
aplicativo até a balsa e ele me direcionou para um atalho por uma
rua de terra. Naquele dia eu duvidei do Google e pensei até em
voltar, porque o final daquela rua não chegava nunca. Alguns tre-
chos eram bem estreitos, com certeza não era por lá que os carros
passavam, mas eu já estava naquele caminho por tempo suficien-
te para ter me preocupado, então achei melhor confiar no Google
e seguir em frente. A rua terminou em uma rodovia asfaltada, o
caminho estava certo, mas precisei entrar em outra estrada de
terra para ir até a Vila da Glória, onde estava a balsa. Eram mais
de 15hrs quando cheguei lá. Eu já estava bem cansada, o dia tinha
sido longo, foram mais de 70km até lá e eu ainda teria que encon-
trar um lugar para dormir.
Tinham mais dois ciclistas naquela embarcação, o Rogério
e o Fabiano, que moravam lá em São Chico. A balsa demorou uns
30 minutos para concluir a travessia, foi tempo suficiente para
conversarmos bastante. Eu contei um pouco sobre a viagem e eles
me deram várias dicas de lugares para conhecer lá na ilha. Eu dis-
se que ainda não sabia onde iria dormir e o Rogério acabou me
dando a opção de colocar a minha barraca no quintal da sua casa.
Acho que ele não esperava que eu fosse aceitar, mas uma hospe-
dagem sem custos era o ideal para mim naquele momento.
Ainda faltavam uns 20km da saída da balsa até a casa de-
le, eu já estava exausta, mas valia a pena o esforço. Nós três se-
guimos pedalando juntos, conversando e nos identificando du-
rante os diálogos. Os dois pareciam ter bastante experiência com
o ciclismo e foram me dando algumas dicas. O Rogério logo iden-
tificou que o meu freio estava pegando no pneu, ele deveria estar
daquele jeito desde que eu saí do Despraiado, foi a única vez que
mexi nos freios até aquele momento e eu não sabia que aquilo era

74
um problema. Os dois também observaram a forma como eu
prendia a minha bagagem e me sugeriram opções melhores de
cordas para deixar as coisas mais firmes em cima do bagageiro.
Eu levei o meu primeiro tombo durante esse caminho. Fui
atravessar uma avenida e a lateral do pneu bateu na elevação do
asfalto, um tombo besta, me mostrando que o diálogo da mente
com o corpo já estava conflituoso. Eu ralei o joelho e um pouco da
palma da mão, mas me levantei rápido, envergonhada com a cena
e louca para chegar logo no destino.
Chegamos um pouco antes do Sol se pôr. Eu estava exaus-
ta, mas psicologicamente preparada para armar a minha barraca.
Só que assim que entramos, o Rogério começou a arrumar um
quartinho para eu poder dormir lá dentro.
Era a casa de um artista, deu para ver assim que entrei.
Cadeiras de madeira feitas à mão, prateleiras cheias de trabalhos
lindos, feitos também em madeira e algumas ferramentas à vista.
Também tinham bicicletas na parede, cada uma de um jeito, re-
parei que duas delas eram bem antigas, coisa de colecionador.
Tinha muita informação ali e eu estava curiosa, mas super cansa-
da, então guardei a minha curiosidade para o dia seguinte. Ele
arrumou o segundo quarto da casa, onde tinham alguns materiais
de trabalho espalhados que ele passou para outro lugar, e tirou
tudo o que estava em cima da cama que eu ocupei naquela noite.
Quando acordei, pude conhecer melhor o lugar que eu es-
tava. As conversas com o Rogério fluíam de uma forma muito na-
tural, a gente tinha muitos assuntos e gostos em comum. Come-
çou pela bicicleta, depois política, músicas, trabalhos artesanais,
literatura, filosofia, viagens, espiritualidade, enfim, eu senti uma
afinidade muito forte com ele, como se nos conhecêssemos há
muito tempo.

75
Eu acabei ficando cinco dias naquela casa. Além de uma
ótima companhia, o Rogério conhecia muito bem a cidade em que
vivia e me levou para um monte de lugares. Nos primeiros dias
fomos até os sambaquis e mirantes que tinham nas praias mais
próximas, fizemos as trilhas entre a Praia Grande, Prainha, Praia
do Molhe e Enseada. No terceiro dia que eu estava lá, um amigo
dele de Itu chegou para visitá-lo, o Marlos. Ele não ficou hospe-
dado na casa conosco, mas fizemos bastante coisa juntos. Ter pas-
sado o tempo com eles foi uma troca muito rica para mim. O Ro-
gério tem uma coleção de vinil com discos que eu nunca tinha es-
cutado e o Marlos é músico. Fizemos um almoço naquele dia
cheio de descobertas musicais. No meu quarto dia em São Chico
fomos até o Museu do Mar, que traz a história de diversas embar-
cações, incluindo um dos barcos do Amyr Klink. É uma instalação
enorme, com muita coisa para ver.
Nessa noite, que seria a minha última por lá, o Rogério me
deu uma aula de mecânica básica de bicicleta. Ele estava indigna-
do com o fato de eu estar viajando de bike sem nunca ter trocado
um pneu na vida, então desmontamos as duas rodas inteiras da
magrela. Ele me mostrou como funcionava o eixo, os rolamentos,
como limpar e lubrificar as peças e a trocar a câmara de ar do
pneu, caso ela furasse no caminho.
Fui embora de São Francisco do Sul já com saudades da-
quela casa, eu realmente estava me sentindo em família. Acordei
bem cedo e o Rogério me acompanhou até a saída da cidade. Fo-
mos pedalando juntos por uma estrada de terra que seguia toda a
extensão da Praia Grande, depois pegamos uma avenida até o
acesso para a BR-280. Nos despedimos e lembro que ele me falou
para que eu continuasse sorrindo. Eu só conseguia agradecer por
tudo o que vivemos naqueles dias. Saí de Itararé pensando em
conhecer muitos lugares e paisagens diferentes e, naquele primei-

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ro mês na estrada, percebi que a melhor parte era conhecer as
pessoas.

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78
13
Enxergar

Recordando

A minha ideia inicial não era a de ir para o Sul. Na


verdade, eu sempre quis conhecer o Norte do país. Eu já tinha
viajado até o Pernambuco, mochilando com o meu ex-namorado.
Moramos em Maracaípe por oito meses e depois disso tivemos
que ir até Belo Horizonte, onde vivi por dois anos. Voltar para o
Sudeste de avião me fez sentir abandonando um objetivo pela
metade, como se estivesse deixando para depois um sonho que
estava tão próximo de se realizar. Então, quando eu decidi que
voltaria a viver na estrada, pensei em retomar aquele caminho.
Sairia de Santos sentido Nordeste e Norte do Brasil. Só que,

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naquele mesmo ano, em 2019, aconteceu um desastre ambiental,
um derramamento de óleo pela costa brasileira, que se iniciou no
Nordeste e seguiu até o Rio de Janeiro. Durante dias vi muitas
notícias, com fotos e vídeos daquelas praias que eu iria percorrer,
cheias de manchas pretas no mar e na areia. Aquilo parecia que
duraria décadas, mas hoje, menos de um ano após o ocorrido, já
não sei mais nada a respeito, não vi mais imagens das praias e
nem notícias sobre os responsáveis pelo crime. Parece que já
passou o tempo necessário para cair em esquecimento.
Aquele acontecimento me deixou insegura de ir até o
Nordeste. Sentia que não era o melhor momento para viajar por
lá. E a ida até a Juréia tinha despertado em mim muita
curiosidade sobre o que estava ao Sul do país. Comecei a pensar
na possibilidade de ir para o Uruguai de bicicleta, aquele roteiro
parecia fazer mais sentido para uma primeira cicloviagem. Seria
um caminho novo para mim, na maior parte plano, com saída
para um outro país, onde eu poderia descobrir uma nova cultura e
praticar o espanhol. Depois que passei a verbalizar aquela ideia,
tudo parecia conspirar para que desse certo. De repente passei a
ouvir e ver mais sobre o Sul nas conversas que tinha com amigos,
quando entrava na internet ou quando via algo na Tv e os nomes
de alguns lugares se tornaram mais presentes no meu dia a dia.
Eu já tinha ido para Santa Catarina quando tinha 16 anos.
Fui de carro com os meus pais e a minha irmã mais nova.
Passamos por Bombinhas, Florianópolis, Guarda do Embaú e
Garopaba. Eu lembrava de algumas paisagens e do sentimento
que tive durante aqueles dias, de que eu precisava passar por
aqueles lugares novamente sem os meus pais como guias. Tirando
aquelas cidades que eu queria revisitar, tinham alguns outros
pontos que eu estava animada em conhecer, como a Ilha do
Cardoso, Ilha do Mel, Farol de Santa Marta, Praia do Rosa e

80
Torres. Esses eram os lugares principais do roteiro dentro do
país, os outros lugares do mapa eu não tinha expectativa
nenhuma. Mas depois que iniciei a viagem essa ideia mudou. Eu
fui surpreendida, de forma muito positiva, por todos os lugares
que passei. Aquelas cidades que eu pensava que poderiam "passar
batido", tinham se mostrado muito especiais e marcantes, tanto
pela sua beleza, quanto pelos encontros que me proporcionaram.
Quando saí de São Francisco do Sul eu estava com a sensação de
que todas as cidades me reservavam alguma surpresa.
A próxima parada era Barra Velha e estava a pouco menos
de 50km de distância. Eu já estava me sentindo mais segura com
a bicicleta e grande parte das preocupações do início da viagem já
tinham desaparecido. Estava muito mais confiante e tranquila.
Isso me possibilitou relaxar enquanto eu pedalava e olhar para a
estrada com outros olhos. Olhos que veem a beleza no caminho e
buscam encontrar novas paisagens. Foi esse olhar atento e
sensível que enxergou a Ponte Pênsil de Itapocu.
Na maior parte do caminho, pedalei com um rio do meu
lado esquerdo, que corre em paralelo ao mar. Em alguns pontos é
possível ver esse rio, em muitos outros a mata cobre a visão e tem
um momento em que ele se perde de vista, quando a estrada
passa por uma pequena área urbana. Foi lá que a minha visão
periférica captou alguma coisa diferente, no final de uma rua que
cruzava a rodovia. Passei por ela e tive a impressão de ter visto
algo que valeria a pena ver de perto. Retornei e segui até lá. Ela
terminava no rio e tinha uma ponte para pedestres, bem alta e
extensa, que passava por cima dele, dando acesso para a praia.
Estacionei a minha magrela e subi suas escadas. Eu tentei
lembrar de ter passado por uma ponte daquelas antes, mas não
consegui recordar de nenhuma com aquelas características.
Assim que fui subindo as escadas, percebi o quanto eu gosto de

81
ver as paisagens de cima, o alcance da visão faz tudo ficar mais
bonito, é como tomar distância para apreciar uma obra de arte e
entender a importância dos detalhes dentro do contexto. Aquelas
duas águas em paralelo, o rio e o mar, com a mata e a areia entre
eles, é uma pintura maravilhosa. Eu realmente estava curiosa em
ver a praia que se escondia atrás do rio pelo caminho e aquele foi
o único acesso que encontrei. A ponte termina na areia, era uma
praia de tombo, o mar estava agitado, mas eu precisava de um
mergulho e aquela ponte tinha me convidado a entrar na água.
Voltando para o outro lado, tirei o sal do corpo nas águas do rio e
me sentei ali na sua margem por alguns minutos, enquanto o
corpo secava no Sol.
Cheguei em Barra Velha no início da tarde. Eu já tinha um
lugar para ficar, uma hospedagem que encontrei no
Warmshowers, a casa da Gabi. Ela já estava acostumada a receber
hóspedes, não apenas os cicloviajantes, mas usava também outros
aplicativos de hospedagem, como o airbnb e o couchsurfing. A
casa tinha dois andares, eu fiquei em um quarto no primeiro
andar e a Gabi ficava no andar de cima. Ela não parecia muito
interessada em saber sobre a minha viagem, acredito que pelo
costume de receber outros viajantes, mas me deixou bem à
vontade em sua casa e disse que eu poderia ficar pelo tempo que
precisasse.
O dia seguinte amanheceu com chuva e eu decidi ficar na
cidade até que ela passasse. Foi quando percebi que aquele era o
primeiro lugar em que eu poderia, finalmente, tirar a oficina de
dentro dos alforges e produzir um pouco. Comecei a organizar a
bancada de trabalho e, à medida que ia tirando todas aquelas
ferramentas da bagagem, percebia o quanto seria difícil continuar
trabalhando com joalheria daquela forma. Aquela ideia parecia
uma loucura e eu sabia que aquilo teria que mudar em breve.

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Eu ainda tinha algumas pendências, três encomendas que
precisava finalizar antes de me desfazer de qualquer ferramenta.
Consegui finalizar as duas primeiras lá em Barra Velha e deixei
para resolver o que faria com aquela oficina depois que
conseguisse fazer as alianças. Uma parte de mim queria muito se
livrar daquele ofício e descobrir novas possibilidades pelo
caminho, mas a outra parte ainda tinha medo de abrir mão da
suposta segurança que aquele trabalho me proporcionava.
Quando a chuva deu uma trégua, fui conhecer Barra Velha
um pouco melhor. Pedalei até a barra e no caminho encontrei
outra Ponte Pênsil. Ela atravessava o rio, de um lado da estrada
para o outro, mas não dava acesso à praia, como a de Itapocu.
Chegando na barra, onde o rio encontra com o mar, tive a
sensação de estar vendo aquele lugar no momento ideal. Era um
dia cinza com muitas nuvens, mas que parecia combinar com a
paisagem, aquele encontro de águas era forte demais, os dois
fluxos se batendo, se misturavam em ondas que emitiam sons
altos, como um choque. Aquele cenário acinzentado me fez sentir
o impacto daquele encontro, com as cores certas, sem a leveza de
um dia azul.
Fui embora de Barra Velha na manhã seguinte, com o
sentimento de que a beleza está ao redor, para quem souber
enxergar.

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14
Ouvir

Recordando

Eu só estou aqui, falando com você e compartilhando a


minha história, porque me entreguei para a vida. Arrisquei viver o
agora, decidi renunciar a busca por segurança e achar o meu
propósito no presente, não no futuro. Eu tento entender como
funciona esse processo diariamente. Como estar atenta, vivendo o
presente e sem planejamentos? Eu fui condicionada, desde nova,
a buscar formas para garantir um futuro seguro, confortável e
sem muitas preocupações. Como se eu tivesse o poder de
controlar o amanhã, buscava segurança e estabilidade, mas nunca
me senti segura e nem estável.

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O que eu queria me tornar? Quem eu vou ser amanhã?
Que caminhos trilhar para conquistar uma velhice tranquila?
Quantos filhos terei? Como seria o parceiro ideal para construir
uma família ao meu lado? Não sei quantas vezes a minha mente
buscou respostas para essas perguntas, mas sei que foram poucas
as que parei para pensar sobre quem eu sou agora, o que eu quero
hoje e o quanto sou grata pelo que tenho em minha vida.
Ninguém pode ter controle sobre o amanhã, nada no mundo é
estável e tudo o que é vivo se movimenta e se transforma a todo o
instante.
Foi em um desses dias raros, onde parei para me ouvir
atentamente, que decidi me entregar para a incerteza do agora e
viver um dia de cada vez, sem me preocupar com o futuro. Cada
dia é uma entrega, cada dia me mostra as diferentes emoções e
sensações que sou capaz de sentir. Hoje eu me movo de acordo
com o que sinto e penso. Se escrevo é porque sinto vontade de
compartilhar pensamentos e vivências, se me mudo de um lugar
para o outro é por sentir a necessidade do movimento, se tenho
dúvidas faço a pergunta para mim e, se a minha resposta não for
clara, deixo de me preocupar e apenas sigo em frente. O tempo
responde o que eu devo saber e o que eu não devo saber
permanece em mistério. Assim que parei de planejar o futuro e
entendi que não tenho o controle de nada, as minhas frustrações
diminuíram muito.
Também aprendi a ouvir melhor aquela voz que sempre
gritou dentro de mim. Todas as vezes que me senti perdida, sem
saber quem era a Julia que eu via no espelho, essa voz estava ali
dentro, gritando socorro e pedindo para que eu lembrasse de mim
mesma. Eu estabeleci um diálogo com ela, hoje ela não está mais
abafada e nem precisa gritar para ser ouvida.

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As vozes dos outros e suas histórias também alimentam os
meus sonhos. Quando escuto sobre lugares que nunca fui, através
de vozes animadas que relatam suas vivências se transportando
em pensamento e vibrando com suas lembranças, sinto vontade
de viver aqueles espaços com os meus próprios sentidos. Surge
assim mais um ponto no mapa para conhecer. Talvez eu altere a
minha rota, ou faça um desvio para ver com os meus próprios
olhos a cidade que marcou a vida de outro alguém.
A internet também tem influenciado as minhas escolhas.
O Warmshowers é um ótimo exemplo. No princípio eu
considerava mais o lado prático do aplicativo, como uma forma
de me hospedar sem custos, depois fui entender que aquela era
uma maneira de conhecer os lugares através das pessoas que
moravam ali. Antes de sair de Barra Velha, procurei no aplicativo
opções de hospedagem nos próximos quilômetros e encontrei a
Ana, que morava em Penha. Ela foi muito simpática em suas
mensagens e eu senti que seria um bom encontro, então o
próximo destino já estava decidido.
Quando cheguei em sua casa, percebi que ela estava bem
interessada em saber sobre a viagem, mas também senti um
nervosismo de sua parte e logo entendi o motivo. Aquela era a
primeira vez que ela recebia alguém através do aplicativo. Me
disse que estava acompanhando algumas histórias de
cicloviajantes e que estava interessada em saber mais sobre esse
estilo de vida, por isso tinha se cadastrado como anfitriã no
Warmshowers. Mas ela não morava sozinha, dividia a casa com os
seus dois irmãos, a Duda e o Eduardo, que não foram avisados
sobre a minha chegada. Ela me pediu para que eu não contasse
como nos conhecemos, porque a Duda poderia não gostar da ideia
de ter a sua casa cadastrada em um aplicativo de hospedagens. Eu
fiquei processando aquele pedido, não queria mentir para

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ninguém e muito menos correr o risco de causar qualquer mal-
estar entre a família. Pensei em ir embora naquele momento, mas
a Ana me tranquilizou e disse que a irmã dela não se importaria
em me receber, que era só para ocultar a parte do aplicativo. Não
demorou muito para que ela chegasse, com o Antônio, seu filho
de 4 anos e uma amiga, a Mari, que morava na casa do lado e era
praticamente da família. Eles chegaram com os ânimos lá em
cima, coisa que, em pouco tempo, pude reparar que era a
frequência normal da casa. A mulherada era bem agitada e
enérgica, principalmente a Duda, que ficou animada quando
soube que eu viajava de bicicleta. Percebi que não ia fazer muita
diferença ocultar sobre como eu tinha parado na sua casa, não
tocamos no assunto naquele primeiro momento e acabei ficando
por lá durante cinco dias. Acho que foi no terceiro dia que ela
resolveu fazer essa pergunta, a sua irmã disse que nos
conhecemos pela internet e eu apenas afirmei a resposta.
A Ana trabalhava com turismo, ela tem uma empresa que
realizava passeios pela região. Eu estava na casa de alguém que
realmente amava Penha, ela tinha prazer em mostrar para as
pessoas a beleza daquele lugar e sua cultura. Também tinha muito
orgulho do seu jeito de falar, que era bem diferente do sotaque
das outras cidades que eu tinha passado, era carregado de "x" e
cheio de gírias que eu nunca tinha escutado. Eu fui contagiada
pela energia daquela casa, todos os dias tinha alguma coisa para
fazer, as praias pela manhã e os “rolês” durante a noite. O
Eduardo era a pessoa mais introspectiva da casa e acabamos não
nos vendo muito. Mas a Ana, a Duda e a Mari estavam sempre
dispostas a fazer alguma coisa e queriam que eu aproveitasse a
cidade ao máximo.
Penha é realmente um lugar com muitas coisas para ver.
Eu fui em algumas praias, como a Vermelha, da Saudade,

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Quilombo, Bacia da Vovó, Praia Grande e Poá, vi o pôr do Sol no
Cascalho, fiz a trilha para a cachoeira da Praia Vermelha e passei
pelo Trapiche. Sei que existem outras praias e trilhas que não fiz e
talvez volte um dia para conhecer. Engraçado como essa
sensação, de ter deixado algo para ver depois, tem sido frequente
durante todo o caminho. Sei que não dá para estar em todos os
lugares e que, mesmo que eu quisesse conhecer cada canto do
mundo, isso seria humanamente impossível. Acredito que os
lugares me mostram o que eu deveria ver naquele momento e,
muitas vezes, os encontros com as pessoas valem mais do que as
paisagens. Então penso que, se eu retornar em alguma das
cidades que já passei, será para rever pessoas, reviver lembranças
e explorar o que ainda não vi.
Era final de janeiro, estávamos no verão e a cidade estava
movimentada. Tinham shows de bandas e artistas da região
acontecendo nos bares e quiosques na praia. A Ana me
apresentou os seus amigos e foram essas noites que me
introduziram ao som do Dazaranha, uma banda bem famosa em
Santa Catarina. Suas músicas estavam em todos os repertórios
que ouvi durante aquelas noites e a Ana foi me explicando o
significado das letras, que são cheias de gírias e referências
catarinenses. Eu me diverti muito naquele lugar, fico com
saudades de lembrar daquela energia, das pessoas que conheci,
da casa ocupada por mulheres fortes e daquelas noites de luau
onde ninguém precisava se preocupar em usar máscaras no rosto
para sair de casa.

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Calma

Presente

Eu estou em São José dos Ausentes, acampando em um


hostel, perto do cânion Boa Vista. Eles não estão podendo receber
hóspedes e só consegui a hospedagem porque um amigo havia
compartilhado a minha história com o dono do lugar. O centro da
cidade está a 35km daqui e não temos muitos vizinhos, mas on-
tem eu conheci a Jandira, que mora no sítio mais próximo. Ela
produz e vende queijos, salgados e muitos tipos de doces. Eu fui
até a casa dela para comprar biscoitos de amendoim, os melhores
que já comi até hoje. Cheguei fazendo o meu pedido, como uma
cliente atrás de um produto, mas ela me pediu para sentar e disse

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que eu não iria embora antes de tomar um café. Eram 15:30, a
Jandira pediu para a filha dela buscar 8 ovos da granja, juntou
com leite, farinha, açúcar e sal e fez uma massa enorme, que ren-
deu uma produção de cueca virada, um doce feito com essa massa
frita, que ocupou a mesa inteira. Íamos conversando enquanto ela
dividia aquela massa em pedaços menores, abria e as deixava no
formato ideal. Depois de fritar toda aquela produção, ela chamou
o marido e a filha para tomarem o café conosco e ainda colocou
na mesa mais duas formas de bolo, um de fubá e outro de banana,
um pote de biscoitos de milho, outro com bolinhos de chuva e um
prato fundo cheio de pinhão cozido. Tudo o que estava na mesa
tinha sido feito naquela casa, com a maior parte dos ingredientes
produzidos naquele sítio. Saí de lá às 18hrs, fui com intenção de
fazer uma compra e voltar para o hostel, mas o tempo foi passan-
do e, enquanto eu estava ali, percebia o quanto ele estava sendo
bem aproveitado. Eu comprei os meus biscoitos de amendoim,
alguns ovos da granja e ainda levei um saco de cueca virada e ou-
tro de pinhão.
Enquanto eu estava viajando na busca de conhecer o má-
ximo de lugares possíveis, me movimentava com mais pressa e o
ritmo do litoral era outro. Durante o verão, as pessoas queriam
aproveitar ao máximo as férias, ou a oportunidade de ganhar di-
nheiro com o turismo, e eu sentia aquela energia pulsando. Agora
eu sinto a calmaria da vida rural, onde as pessoas produzem seu
alimento sem pressa e ainda acendem a lenha do fogão.
Mesmo não tendo determinado um prazo para finalizar a
viagem, eu visitava os pontos turísticos das cidades, conhecia as
pessoas, criava laços naquele curto período, via o que queria ver e
seguia para outro destino. Agora eu olho para o mapa as vezes,
pensando em lugares que eu gostaria de ir, mas sinto que o mais
importante é o olhar para o agora. Agora eu não sei até onde pos-

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so ir, nem como estarão as coisas amanhã. Pode ser que eu não
consiga chegar muito longe, pode ser que demore anos para eu
voltar a viajar com a mesma energia de antes. Apesar de tudo is-
so, hoje eu posso sentir melhor o lugar onde estou e respirar o ar
daqui. Sinto que todos os passos serão dados no agora e não no
futuro. Pensando bem, talvez sempre tenha sido dessa forma.
Quantos planos eu já fiz que não saíram da minha mente? Quanto
tempo já não gastei pensando sobre um futuro que nunca existiu?
Durante toda a viagem eu percebi que nada está sob o meu con-
trole, até os planos do dia podem perder o sentido de uma hora
para a outra.
Eu estou aqui em São José dos Ausentes há nove dias e
acredito que sigo caminho amanhã. Conversei com um amigo que
me indicou um lugar seguro para ficar em Urubici. A vontade de
ir embora se manifesta da mesma forma que a vontade de ficar,
eu só preciso saber me ouvir. Fiquei quinze dias em Praia Grande
até sentir que deveria partir, o mesmo aconteceu em Cambará do
Sul e agora já pulsa em mim a necessidade de mudança.

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16
Tirar a roupa

Recordando

Eu tinha as minhas expectativas sobre Balneário Cambo-


riú, que foram formadas pela fama do lugar. Tinha ouvido falar
sobre os prédios que ocupavam aquela cidade pequena e que, por
causa deles, a luz do Sol não conseguia chegar na areia durante
algum período do dia. Também me falaram sobre a competição,
que parecia existir entre os próprios prédios, de qual deles era o
mais alto. Aquela fama não me seduzia em nada, eu não tenho
interesse em arranha-céus e preferiria ver a restinga tomando
conta daquela orla. Fui chegando na cidade, beirando a Praia
Brava, o dia estava lindo e a paisagem também, poucos prédios e

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pouco movimento. Quando cheguei no limite Sul daquela praia,
encontro um morro para subir, bem íngreme, onde eu preciso
descer da magrela e empurrar até o topo. Lá de cima consegui ter
a primeira visão da cidade de Balneário, uma vista estranhamente
bonita e impactante. O dia estava lindo, assim como o mar, muito
azul, e aquele excesso de prédios causava um contraste interes-
sante na paisagem. Realmente a praia não era grande e é muito
raro ver um espaço daquele tamanho ocupado por prédios tão
altos, mais altos do que eu costumava ver em São Paulo. A desci-
da daquele morro era desafiadora. Eu não confiei nos meus freios,
desci da bicicleta e fui andando com ela ao meu lado. O movimen-
to de carros começou a ficar bem intenso, eu me senti dentro de
uma cidade grande e logo comecei a estranhar aquele lugar. Não
era bem o que eu buscava nessa viagem, queria estar em maior
contato com a natureza e sabia que encontraria lugares mais pre-
servados pela frente.
Mais uma vez, eu usei o Warmshowers para buscar um lu-
gar seguro para dormir e encontrei o Gui, que topou me receber
em sua casa. Enquanto pedalava em direção ao endereço, fui me
convencendo de ficar apenas uma noite na cidade, descansar e
seguir o meu caminho para Bombinhas no dia seguinte. O Gui-
lherme morava em um daqueles apartamentos à beira mar, os
mesmos que eu vinha criticando mentalmente durante o cami-
nho. Eu iria vivenciar Balneário Camboriú daquela forma, expe-
rimentando o que a cidade vendia. Entrei naquele apartamento
espaçoso e vi a vista pela janela. É realmente lindo ver o mar lá de
cima, mas estava de algum modo chateada comigo mesma por
estar ali, desfrutando de um espaço que eu criticava. Aquela vista
não me convencia, não justificava aquelas obras desenfreadas.
Fiquei ainda mais frustrada por perceber que aquilo era realmen-
te fácil de vender, quem é que não quer ter o privilégio de olhar o

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mar de cima quando acorda? Não foi exatamente isso que me fez
alugar o meu apartamento em Itararé, a vista que eu tinha da mi-
nha janela? Só em pensar no dia em que entrei naquela sala e vi o
azul brilhando no horizonte, sinto a energia que passou por mim
e me fez querer assinar o contrato de aluguel. Percebi que eu não
estava lá para julgar aqueles prédios, parei em Balneário para ver
o que ela tinha para me mostrar e decidi me manter aberta, ob-
servando mais e criticando menos. Limitar o olhar sobre um lu-
gar, através das expectativas e conceitos que criamos, dificulta
que esse espaço nos mostre suas outras caras, nada tem apenas
um lado.
Deixei para ouvir sobre a cidade através de quem vive nela
e o Gui me contou um pouco sobre como ele via e vivia aquele es-
paço. Ele era uma pessoa muito ativa, ciclista, escalador, cheio de
ideias e soluções para um melhor viver em sociedade. Tive a opor-
tunidade de conhecer um pouco da cidade com ele e uma amiga
dele. Fomos de carro até o prédio dela, um mais antigo, com pou-
cos andares, que ainda resistia entre obras e arranha-céus. Ela me
disse que antes dos novos prédios chegarem, a varanda da sua
casa também tinha uma vista bonita, que é agora rodeada por pa-
redes e janelas de outros apartamentos. No caminho até lá pas-
samos em uma horta urbana que o Gui mantinha com alguns
amigos, muito bem cuidada e com variedades de alimento. Foi
lindo ver aquela pequena plantação resistindo ali. Os dois ainda
me aconselharam a conhecer algumas praias mais preservadas
que existem ao Sul de Balneário, em uma rodovia chamada Inter-
praias. Para seguir o meu caminho até Bombinhas eu não precisa-
ria passar por essa rodovia, que era cheia de ladeiras e seria muito
desgastante o percurso com a minha pesada magrela. Resolvi en-
tão passar mais um dia na cidade, deixar a bike na garagem e ir
conhecer aquelas praias sem peso para carregar.

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Na manhã seguinte fui de ônibus até a Praia do Pinho, a
penúltima ao Sul do Interpraias e a que mais me chamou a aten-
ção por ser uma praia de nudismo e eu nunca tinha ido em uma
antes. Fiz uma trilha até lá e, quando cheguei na areia, vi um ho-
mem nu. Fiquei um pouco constrangida e desconfortável em tirar
a roupa na frente dele, mas eu escolhi ir até lá e lidar com o novo
costuma gerar desconforto. Evitei olhar para aquele homem, ca-
minhei um pouco e me despi, senti o vento passando por todo o
meu corpo e segui caminhando pela beira do mar, tentando não
me importar com possíveis olhares.
A praia era muito linda e preservada, quase nenhuma es-
trutura, apenas a de um camping que não cheguei a entrar. Cami-
nhando por ela fui avistando outras pessoas, a maioria em casais
e percebi que ninguém estava ali encarando os outros corpos. Era
um espaço para repensar a minha relação com o meu corpo e o
corpo do outro, para me libertar de mais um padrão social, me
libertar de julgamentos e naturalizar a nudez. Fui me sentindo
cada vez mais à vontade comigo mesma, deixei os julgamentos de
lado e assim que senti o Sol esquentar a minha pele, mergulhei no
mar. Foi o meu primeiro mergulho nua, desde a minha infância e
confesso que não tinha nenhuma recordação daquela sensação.
Foi maravilhoso sentir a água daquela forma, senti a liberdade de
quebrar mais um padrão, de sair da normalidade e perceber o
meu corpo. Me senti inteira, energizada, entregue à vida, ao novo
e recebendo a recompensa através do prazer.
Me deitei na minha canga, senti o Sol secando todo o meu
corpo, aproveitei aquela sensação por mais um tempo e decidi
seguir para as outras praias. Comecei a andar pela rodovia em
direção a Taquaras e o meu corpo estava feliz por estar cami-
nhando. Seriam 9km até a casa do Gui e fazia tempo que eu não
andava tanto. Foi muito bom me movimentar daquela forma, sen-

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tir as minhas pernas me levando no ritmo do meu corpo, ainda
mais lento do que com a bicicleta.
A praia de Taquaras é bem bonita, o acesso foi através de
um restaurante, era um espaço bem elitizado, resolvi caminhar
até as pedras, apreciei a vista, dei um mergulho e logo segui para
Taquarinhas. Essa era realmente deserta, sem nenhum quiosque
ou estrutura, o que me fez querer ficar lá por mais tempo. Eu amo
praias assim, que mantém preservada a sua paisagem natural,
consigo perceber a imensidão da nossa casa e isso me faz sentir
em paz.
A próxima era a Laranjeiras, a mais conhecida do circuito
e que é exatamente o oposto da Taquarinhas. O acesso até lá é por
uma rua cheia de lojas e restaurantes. A praia estava muito mo-
vimentada, com vários quiosques, mesas na areia e pouco espaço
para circular. É o tipo de lugar que atrai aqueles turistas que bus-
cam conforto aonde vão. Esse tal conforto, que uma praia cheia de
estruturas, funcionários e produtos disponíveis proporciona. To-
do aquele comércio faz com que o som do mar seja abafado por
outros barulhos, que também afastam boa parte da fauna. Fiquei
poucos minutos por lá, segui a minha caminhada e a chuva che-
gou assim que pisei na orla de Balneário.
Voltei para a casa do Gui feliz com a minha passagem por
aquela cidade. Foi muito melhor do que eu esperava, me propor-
cionou muitas reflexões e novos sentidos para o meu corpo. Eu
realmente não estou na posição de julgar os espaços e o estilo de
vida de cada lugar, mas sei onde me sinto melhor e não é por aca-
so que sempre dou um jeito de sair de São Paulo. Cidades gran-
des, prédios e carros não me preenchem, ao contrário, me fazem
querer buscar lugares onde eu possa me sentir em casa, onde eu
possa sentir e ver a Terra. Balneário Camboriú me recebeu muito

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bem, mas foi prazeroso sair de lá bem cedo, antes da cidade acor-
dar.

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17
Quando Chove

Recordando

O caminho para Bombinhas foi decisivo. Me lembro bem


da subida daquele morro, era íngreme e, enquanto eu empurrava
a magrela, ia tomando a decisão de me livrar logo daquele peso
todo. Eu teria que subir o mesmo morro novamente para sair da
península e ainda teriam outras subidas pela frente. Além de que,
até aquele momento, eu só tinha conseguido usar parte das
minhas ferramentas e apenas em Barra Velha, SC. Carregar tudo
aquilo não estava fazendo mais sentido. Eu já estava recusando
encomendas e não tinha mais prazer em produzir joalheria. A

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minha vontade era de encontrar algo novo para trabalhar, que
combinasse mais com o meu estilo de vida. Depois que me
instalei no camping, tirei toda a oficina da bagagem, finalizei a
última encomenda que ainda estava pendente e decidi que não
iria mais me comprometer com nenhum prazo de entrega. Depois
disso eu coloquei boa parte das ferramentas em uma caixa e
enviei para a casa dos meus pais pelos Correios.
Existem praias lindas em Bombinhas e a cor daquele mar
é fascinante, eu tive a sorte de observar muitas tartarugas
naquelas águas. Eu já tinha estado naquele lugar há uns 15 anos
com os meus pais e percebi que tudo estava muito mudado, o
fluxo de carros era intenso e as construções à beira-mar tinham
aumentado muito. É impressionante como esse processo de
urbanização acontece tão depressa e muitos lugares que antes
eram paraísos naturais se transformam, quase que de uma hora
para outra, em cidades asfaltadas, com casas enormes e todo o
tipo de comércio.
Ainda era janeiro e o clima em Santa Catarina era de Sol e
chuva. Fiquei cinco dias na península e consegui aproveitar os
momentos de céu aberto para fazer algumas trilhas e conhecer as
praias. Quando decidi seguir para Florianópolis o dia amanheceu
nublado e eu sabia que a chance de chuva era grande. Coloquei a
lona em cima da bagagem e deixei a minha capa de chuva
acessível, na mochila que eu levava dentro da cestinha. Lembro
do alívio que eu senti quando empurrei a bicicleta morro acima e
percebi que ela estava bem mais leve. Esse processo de aliviar o
peso e me desfazer de coisas que não faziam mais sentido
carregar aconteceu outras vezes e a sensação é sempre muito boa.
Foi logo após a descida do morro que a chuva veio. Eu não estava
torcendo para pedalar na chuva, mas estava curiosa para saber
como eu iria lidar com aquela situação, já que uma das perguntas

102
que eu mais recebia pelo caminho era essa: “o que você faz
quando chove?”. Existem duas opções para um dia de chuva:
aguardar ela parar em um local coberto, ou proteger a bagagem
da melhor forma e seguir caminho. Naquele dia eu decidi seguir
caminho, coloquei a capa de chuva e pedalei mais de 80km sem
que ela desse uma trégua. Era um daqueles dias de chuva fraca,
sem trovoadas, dessas que ficam o dia todo. Eu fui mais devagar,
mas não senti calor em nenhum momento. Depois de já ter
pedalado por horas com o Sol na cabeça, até que a sensação de
estar na chuva não foi ruim e em alguns momentos eu agradeci
por ela estar caindo. A sensação que eu tinha era de estar me
alinhando com o tempo, tanto o climático quanto o tempo que
acompanha a nossa existência. Não adianta brigar com a
natureza, se a chuva ou o vento me impedissem de seguir
caminho, eu precisaria aceitar e entender que aquele não era o
momento certo de seguir. Naquele dia era o momento certo, eu
me diverti pelo caminho e cheguei bem em Floripa, com parte da
minha bagagem molhada, mas fisicamente bem.
O litoral de Santa Catarina é lindo. Eu fiz muitas trilhas
em Floripa, fiquei quinze dias na cidade, pedalei por boa parte da
Ilha e fiquei acampando por cinco dias na Lagoinha do Leste, a
minha parte preferida da cidade. Lá só é possível chegar de barco
ou de trilha, não existem construções e nem energia elétrica. Eu
fiz a trilha pela Praia do Matadeiro, levei umas duas horas e meia
para chegar, é um caminho lindo com muitas vistas incríveis. A
vegetação é preservada e o lugar é perfeito para acampar. Tem
muitas árvores, sombra e acesso à água doce.
Também foi em Floripa que eu reencontrei o Vinícius, que
eu tinha conhecido na Ilha do Mel. Ele já estava cicloviajando e se
locomovia mais rápido do que eu, o que possibilitou esse
encontro. Encontrar outra pessoa viajando de bicicleta é sempre

103
bom, poucas pessoas entendem o que nos leva a fazer isso e não
precisar explicar meus motivos durante uma conversa é ótimo,
além da troca de experiências e da injeção de ânimo. Sempre que
encontrei outro cicloviajante pelo caminho senti naquela pessoa a
energia de quem está realizando um sonho, sorrindo apesar das
dificuldades. A gente não cogitou a possibilidade de viajarmos
juntos, sabíamos que nossos planos eram parecidos, mas os
ritmos eram muito diferentes. Mesmo assim os dois estavam
pensando em passar o carnaval na Guarda do Embaú, mais
precisamente no Vale da Utopia e nos encontramos por lá mais
uma vez.
Aquele foi o último carnaval antes da pandemia chegar no
Brasil e eu não tinha ideia do que estava acontecendo no mundo.
Acredito que poucas pessoas estavam se preocupando com isso.
As praias estavam cheias e esse assunto não apareceu em
nenhuma conversa que tive durante aqueles dias. O carnaval no
Vale da Utopia foi muito diferente dos outros lugares que já
passei. Não tinha muvuca, o clima era tranquilo, a maioria das
pessoas estavam lá acampando e as bandas que se apresentaram
tocavam Raul Seixas, Mutantes, Pink Floyd, Janis Joplin e por aí
vai. Fiquei seis dias acampando no Vale, vivi dias incríveis, com
música boa e muita natureza.

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Rio do Rastro

Recordando

Foi em Laguna que ouvi falar sobre o vírus pela primeira


vez. Já tinha bastante tempo que eu não via televisão, nem
acompanhava os noticiários pelo celular, mas a Tv estava ligada
na cozinha do camping e eu lembro que naquele dia tinham
confirmado o primeiro caso da doença no Brasil. Como eu não
sabia o que era aquilo, não dei importância para a notícia, mas
estranhei o fato de que apenas uma pessoa contaminada era
assunto de Jornal Nacional. Eu não fiquei muito tempo naquela
cozinha, mas lembro que a outra matéria que assisti foi sobre o
aumento do dólar, pelo jeito da reportagem parecia que a

105
economia no país estava piorando rapidamente. A viagem estava
fluindo tão bem que eu não queria pensar em nada que pudesse
atrapalhar o meu fluxo, como se nada no mundo pudesse me
impedir de seguir em frente.
Muitas pessoas haviam me aconselhado a conhecer a Serra
do Rio do Rastro antes de seguir para o RS. Então eu decidi que
iria sair do litoral para fazer esse caminho. Saí do Farol de Santa
Marta e segui sentido Lauro Müller. Nesse dia eu usei bastante a
marcha mais leve da bicicleta, foi quase todo o caminho subindo.
Quando cheguei no centro da cidade procurei uma pousada para
descansar. Eu imaginava que o dia seguinte seria bem mais
cansativo, já que o Rio do Rastro é famoso pela altitude e estrada
sinuosa.
Foram alguns quilômetros de subida onde era possível
pedalar, até que começou a ficar íngreme demais para subir
pedalando. O dia estava lindo, ainda era cedo e eu fui
empurrando a bicicleta sem pressa nenhuma até chegar no
primeiro mirante da Serra. Parei para ver a vista e descansar um
pouco quando chegou uma van, dando apoio para um grupo de
ciclistas. Eles eram da Eslovênia e viajavam em busca de lugares
como aquele para subirem com as suas bicicletas, que eram
próprias para essa prática, muito mais leves do que a minha, com
mais opções de marcha e sem nenhuma bagagem. A minha
magrela era um modelo antigo da Caloi que já tinha sido do meu
pai, ela tinha mais de 25 anos e era bem pesada.
Dois guias brasileiros estavam acompanhando o grupo,
um deles viu que eu estava viajando de bicicleta e veio falar
comigo. Ele percebeu que o meu objetivo era o de conhecer o
lugar e que eu iria fazer bastante esforço para chegar até o fim da
subida. Eles tinham um suporte para levar as bicicletas atrás do
carro, que estava vago, já que o grupo era de atletas e eles

106
pretendiam subir toda a serra pedalando. Então o guia me
ofereceu uma carona, que eu aceitei. Eu queria estar naquele
lugar, ver a vista lá de cima e não fazia questão de ir andando, de
bike ou de carro. Não estava buscando superar limites e foi
divertido acompanhar aquelas pessoas até o mirante.
Cheguei cedo lá em cima e descansada, o que me permitiu
dar uma volta pela região e mergulhar em uma cachoeira que fica
ali perto. Voltei para o mirante e armei a minha barraca lá
mesmo. Eu tive companhia de outros viajantes durante a noite,
um casal da Áustria que estava viajando de motorhome e outro
casal de Santa Catarina que viajava de carro. Fizemos uma
pequena fogueira, era uma noite de lua cheia e foi muito lindo vê-
la nascendo lá de cima. Não tinha nenhuma nuvem no céu
naquele dia e o ponto de observação é tão lindo que nos permitiu
ver o Sol se pondo bem atrás da gente, pouco antes do nascer da
lua.
Ver o Sol nascendo também foi maravilhoso e eu desci a
Serra logo depois que ele apareceu. Eu tive que descer da magrela
algumas vezes, com medo do freio não segurar, mas a descida foi
tranquila e valeu muito a pena a passagem pelo Rio do Rastro.
Aquela paisagem foi realmente algo muito diferente de tudo que
eu já tinha presenciado até então.
Eu voltei para o litoral já próxima da divisa com o Rio
Grande do Sul. Cheguei em uma cidade chamada Araranguá e me
hospedei em outra casa através do Warmshowers. As pessoas já
estavam falando mais sobre o Coronavírus, mas a opinião dos
moradores da casa era de que eu não tinha com o que me
preocupar. A família que me recebeu tinha um apartamento no
Morro dos Conventos, uma praia a 13km de lá e me
disponibilizaram a chave para eu passar alguns dias. No dia que
cheguei fiz amizade com um cachorro que vivia na rua, ele me viu

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caminhando na praia e decidiu me acompanhar. Andamos juntos
pela cidade e eu voltei para o apartamento. No dia seguinte ele
estava lá novamente e me acompanhou até o alto do morro para
ver o nascer do Sol. No terceiro dia caminhamos 14km juntos, ele
foi comigo até a barra do Rio Araranguá. Eu não sabia que teria
companhia e nem que a caminhada seria tão longa, então não
levei nada para comer ou beber. Eu não tinha nada para dar para
ele além da minha companhia e acho que era apenas isso que ele
queria. No meu último dia na cidade ele estava lá novamente, me
esperando na porta do prédio. Ele seguiu a minha bicicleta por
algum tempo, até que desistiu e parou de me seguir. Na estrada
todo dia é um encontro acompanhado de um adeus. A maioria das
pessoas sabem disso quando me veem chegando com a bicicleta
cheia de bagagem, elas sabem que eu estou indo em breve e isso
torna as despedidas um pouco mais fáceis. Mas os animais não
sabem da minha história, me afastar deles e receber aquele olhar
triste, realmente corta o coração. Eu já me afeiçoei a alguns
animais durante essa viagem e decidi que não adotaria nenhum,
por não me sentir preparada para isso. Eu sei a responsabilidade
que é adotar um animal e viajar de bicicleta não é tão simples
assim. Aquela foi uma linda amizade, quando eu lembro dele eu
sinto saudades e penso que ele estava bem quando me encontrou,
estava saudável e morando em uma praia linda, onde ele já estava
acostumado a viver.

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19
Isso é uma loucura

Já se passaram dois anos

Há quem diga que é loucura, mas não sei exatamente o


que significa essa palavra. Qual seria o oposto à loucura?
Sensatez? Normalidade? O que define um ser louco e um normal?
Quem pode estabelecer essa regra e se considerar uma pessoa
normal?
Comecei a escrever esse livro assim que a pandemia
começou. Eu estava na Praia Grande, em Santa Catarina e
pensava que iria conseguir contar todo o percurso da viagem. Mas
já se passaram quase dois anos de pandemia e eu ainda não
terminei essa jornada, que não sei se vai ter fim. Depois do que

109
aconteceu em Foz do Iguaçu eu parei de escrever. Foram muitas
emoções para absorver, foi um momento de renascimento no qual
não estava fazendo sentido escrever sobre o passado. Viajar
durante a pandemia tem tornado tudo mais intenso. Cada lugar
que eu passo lida de forma diferente com a situação, cada casa
tem um jeito de ver o que está acontecendo. Eu já ouvi tantas
teorias, fiquei em lugares onde existiam muitas restrições e em
lugares onde diziam que nada havia mudado. Mas acho que é
impossível dizer isso hoje em dia. Tudo mudou rápido demais,
quer você use máscara e tome vacina ou não, está tudo diferente
hoje. O preço das coisas, o medo do contato com o outro, a falta
de contato, os lugares que fecharam, tantas vidas se
reinventando, tanta gente lidando com o luto, enfim, mudou e
mudou muito. Hoje eu estou morando na Aldeia Barra Velha, no
Sul da Bahia, comprei outro caderno recentemente e resolvi
finalizar esse livro para poder compartilhar as histórias que
escrevi até agora.
Antes de sair de Araranguá eu recebi uma mensagem de
uma amiga que estava acompanhando a minha viagem. Ela disse
para eu tomar cuidado com a chegada do vírus, que estavam
morrendo muitas pessoas na Europa e que provavelmente iriam
decretar a quarentena no Brasil. Eu ainda não estava entendendo
a gravidade do que iria acontecer e falei para ela que eu não iria
me preocupar com isso naquele momento.
Eu segui para Torres, a primeira praia ao Norte do Rio
Grande do Sul. No meu segundo dia na cidade eu fui até os
Correios, postar uma venda que eu tinha feito e a agência estava
fechada. Fui reparando que os comerciantes estavam fechando as
lojas e ainda era dia. Tinham noticiado o primeiro caso do
Coronavírus na cidade, de um adolescente que chegou de férias
infectado e resolveu ir em uma festa quando chegou em Torres.

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As pessoas estavam eufóricas nas ruas, parecia que o mundo ia
acabar e todos estavam com medo, principalmente das outras
pessoas. Eu estava me hospedando em uma casa enorme que
tinha encontrado no Warmshowers. A casa servia como
hospedaria e tinham vários quartos, todos desocupados quando
cheguei. Porém, naquele mesmo dia eu precisei sair de lá, porque
a dona do lugar estava com medo de que eu transmitisse a doença
para ela.
Eu entrei em contato com o Vinícius, a última notícia que
tinha tido dele foi a de que estava próximo do Uruguai e eu queria
saber como estavam as coisas por lá. Ele me respondeu dizendo
que tinham fechado as fronteiras e que não iria mais atravessar.
Eu não sabia quanto tempo que aquilo iria durar, mas sabia que
precisava encontrar um lugar seguro para ficar. Lembrei que
haviam me indicado um sítio para me hospedar na Praia Grande,
bem na divisa com o RS, a poucos quilômetros de Torres. Eu
entrei em contato com o Frank, que era o dono do lugar e ele
aceitou me receber. Eu sabia que na região tinha muita água dos
rios e um movimento de permacultura, o que significa que
estavam plantando comida, além de ser um vilarejo pequeno, com
poucas pessoas para ter contato. Parecia a melhor opção para
sobreviver ao “fim dos tempos”.
Foi na Praia Grande que eu terminei de me desfazer da
marca de joalheria, lá eu tive a certeza de que não iria mais
trabalhar com prata e ouro, decidi vender as minhas ferramentas
e pedras para a Fernanda, que estava iniciando no ramo e foi esse
dinheiro que me manteve durante um bom tempo. Hoje eu já não
consigo mais me imaginar trabalhando com joalheria, trabalhar
com minério não faz mais sentido para mim. Pela primeira vez
parei para pensar sobre o material que eu usava e em como a
extração de minérios e pedras realmente funcionavam. Aqueles

111
cristais que eu vendia como fontes de boas energias, na verdade
carregavam uma história de muita dor, morte e maus tratos com a
Terra. Assim que tive essa compreensão, decidi que não queria
mais colaborar com isso e o meu ofício deixou de fazer parte da
minha vida, assim como o meu foco em chegar no Uruguai.
Nos primeiros dias as notícias eram de que a tal
quarentena iria durar 15 dias, depois 40 dias e logo no início da
segunda semana já falavam em mais de um ano de restrições.
Estava tudo muito confuso, eu sabia que não iria ficar morando
naquele sítio, onde eu já estava acampando por 14 dias, então eu
senti no meu coração que precisava seguir viajando. Passou por
mim a preocupação de ir durante aquele período, onde o medo e a
incerteza eram presentes em quase todos os lugares. Mas me
carreguei de coragem e fé e segui meu caminho no décimo quinto
dia.
Passei 15 dias em Cambará do Sul, depois segui sentido
Urubici, parei por duas semanas na Toca da Onça, em São José
dos Ausentes, depois passei por Bom Jardim da Serra e fiquei em
Urubici por mais quinze dias. A Serra Gaúcha e Catarinense me
acolheu e tenho certeza de que eu estava no lugar certo para
passar aqueles primeiros meses. Lá a natureza é imponente, os
rios, as cachoeiras e os cânions têm uma energia mágica. Mas o
frio começou a chegar e eu não estava muito preparada para
passar o inverno por lá, que é a região mais gelada do país. Fui
alimentando em mim a vontade de ir para um lugar mais quente,
até que eu tive um sonho que fez com que eu decidisse o meu
destino. Nele eu estava dentro da casa de uma amiga e da janela
eu via aquele imenso volume de água caindo das cataratas de Foz
do Iguaçu. A minha amiga me falava, enquanto eu admirava a
paisagem da janela, "Julia, você tem muito o que ver aqui".

112
No dia seguinte eu já me preparei para seguir caminho.
Atravessei o Oeste Catarinense e as notícias sobre as cataratas
eram desanimadoras. Não chovia há um bom tempo, elas estavam
secas e o Parque estava fechado, devido às restrições da
pandemia. Mas o sonho tinha sido tão claro que eu escolhi seguir
para lá de qualquer forma. Quando eu cheguei em Medianeira, já
a poucos quilômetros de Foz, a chuva veio com muita força. Isso
me obrigou a ficar parada por uns dias, mas fez encher de água as
cataratas. O lugar que eu ia me hospedar era a casa da amiga de
uma conhecida, chamada Aline, que morava na Av. das Cataratas.
Quando cheguei lá eu entendi como aquele contato tinha sido
precioso. Eu estava em uma casa onde as pessoas tinham acesso
ao Parque, mesmo com ele fechado, o que me possibilitou ver e
sentir toda a potência daquelas águas sem nenhum turista por
perto. Nessa casa também eram feitos estudos com a Ayahuasca e
eu fui convidada a participar de um trabalho que foi realizado em
uma noite de lua cheia. Resumir essa experiência me parece
injusto e não tem como eu escrever sobre ela de forma completa
nesse momento. Foram quinze dias de muitos acontecimentos
espirituais e mudanças profundas em minha vida. Com certeza
renderiam um livro inteiro. Esses acontecimentos me levaram a
abandonar as minhas coisas e a sair andando apenas com uma
mochila nas costas. Dentro dela eu levava a minha carteira,
celular, um pote de mel, a Bíblia, o Gita e a Voz do Silêncio, três
livros que ainda me acompanham na bagagem. Acharam que eu
tinha enlouquecido e eu também não sabia exatamente o que
estava acontecendo. A realidade tinha se transformado, sentia
que o plano material estava se misturando com outro plano e eu
não sabia como lidar com aquilo. A minha família conseguiu me
levar para São Paulo de avião. Lá eu passei por psiquiatra,
psicóloga, guru, médium, terapeuta holística, terreiro e Pai de

113
Santo, em busca de respostas. Eu ainda não sei explicar o que
aconteceu comigo, mas as coisas foram “normalizando” aos
poucos e o plano material voltou a ser como era antes.
Em São Paulo eu acabei ficando na casa do Rafa, aquele
mesmo Rafa que eu tinha conhecido na Ilha do Cardoso. Ele me
acolheu por três meses. Eu não consegui ficar em paz na casa dos
meus pais e nós dois tínhamos criado uma linda relação de amor
e amizade, tanto a distância quanto presencialmente. Durante
esses meses eu me organizei novamente. Consegui uma bicicleta
nova, alforges, ferramentas, barraca e saco de dormir. Quando
senti que já estava pronta, resolvi seguir o meu caminho. Escolhi
pedalar sentido Norte, indo pelo litoral e com a intenção de
passar pela Chapada Diamantina e Rio São Francisco.
Eu voltei para a Baixada Santista e comecei a subir o
litoral paulista. Durante a pandemia o Warmshowers parou de
funcionar e hoje ele já não tem mais a opção gratuita. Eu passei a
me hospedar através de indicações, em espaços para acampar, ou
em pousadas, quando tinha dinheiro e achava necessário. Fiz todo
o litoral de SP e parei por 15 dias em Paraty Mirim, RJ, em uma
Agrofloresta que me revirou todinha. Lá mora o Rodrigo, que vive
há quatro anos sem usar o dinheiro. Ele planta, pesca e faz trocas,
o que ele chama de economia da reciprocidade. O Rodrigo me
convidou a desacelerar o meu ritmo e a ficar sem celular por uns
dias. Fiquei vivenciando aquele espaço por tempo suficiente para
me transformar mais um pouco e me firmar no meu propósito.
De lá eu decidi visitar a minha avó em Barbacena, coloquei
a bicicleta em um ônibus em Angra dos Reis e, depois de passar
uns 10 dias com ela, eu fui voltando para o litoral fluminense pelo
Sul de Minas Gerais. Passei por Tiradentes, Andrelândia, São
Vicente de Minas, Bocaina de Minas e cheguei no Vale da Santa
Clara, na Serra da Mantiqueira, onde passei o Natal e o Ano Novo.

114
Foi lá naquele vale que eu morei quando saí de casa aos 18 anos.
Tudo estava diferente, asfaltaram a estrada que dá acesso a
Visconde de Mauá e Maringá, aumentando o fluxo de gente e o
número de construções na região. É assustador perceber essas
mudanças. Também reparei que muitas pessoas decidiram sair
das capitais para morar em cidades menores, o que parece algo
positivo, mas que fez com que esses espaços se transformassem
rapidamente. O número de moradores aumentou, assim como o
número de carros, a produção de lixo e de esgoto.
Saindo de lá eu voltei para a praia e percorri o litoral
fluminense. Foi no Rio de Janeiro que eu comecei a produzir os
ímãs de geladeira com as minhas fotos para vender e é isso que
me mantém financeiramente até hoje. Quando eu vendo
presencialmente, conto um pouco da história da viagem e ofereço
os ímãs por contribuição espontânea, sem um valor definido. Isso
tem funcionado muito bem para mim, além de ocuparem pouco
espaço na bagagem e pesarem quase nada. O litoral do RJ é muito
bonito, eu passei duas semanas na Ilha Grande, um dos lugares
que mais gostei no Rio. Existem muitas trilhas para fazer, as
praias são lindas e muitas ainda são bem preservadas.
Eu também tive encontros, em Saquarema e em Macaé,
com parentes que eu não conhecia, da família Peixoto. Foram
encontros emocionantes que me conectaram mais comigo mesma
e com o meu avô, que faleceu há alguns anos. Eu sentia a
presença dele e via nossos traços em pessoas que eu nunca tinha
visto antes.
O Estado do Espírito Santo foi muito generoso comigo,
passei dias lindos em todo o litoral capixaba e fui conhecer as
cachoeiras de Matilde, em Alfredo Chaves. Em Vitória eu fiz
amigos incríveis que me levaram para conhecer toda a cidade. No
extremo Norte do estado, quase chegando na Bahia, aconteceu

115
um encontro mágico, em Dunas de Itaúnas. No dia que eu estava
indo embora da cidade, dois raios da roda de trás quebraram ao
mesmo tempo, em cima da ponte que atravessa o Rio Itaúnas, me
obrigando a voltar para consertar a magrela. Eu fui até o camping
do Alan, para passar o tempo enquanto arrumavam a bicicleta e
foi lá que eu conheci o Bruno. Ele é uma das lideranças do projeto
Agroflorestando no Sapê do Norte, que está reflorestando um
território onde antes existia uma plantação de eucaliptos. Ele me
convidou para conhecer o espaço e eu passei alguns dias com ele e
sua família. Antes de ir embora, eu acabei fazendo um vídeo
documentando o movimento e foi esse encontro que me
direcionou até aqui, onde estou hoje.
Eu ia começar a subir o litoral da Bahia e eles me
indicaram uma família para me receber entre Corumbau e
Caraíva, era a casa da Dona Ângela aqui na Aldeia Barra Velha. A
Leo, mulher do Bruno, estava grávida e pretendia ter o seu neném
na Aldeia, ela queria um parto normal com uma parteira
indígena. Quando eles chegaram, eu ainda estava por lá e acabei
ficando com eles até o nascimento da Luana, dois meses depois.
Durante esse tempo eu acabei me envolvendo com um índio e
moramos juntos por sete meses, até a relação acabar. Foram dez
meses morando em Barra Velha, foi o lugar que eu passei mais
tempo desde que saí da Baixada Santista.
Aqui eu encontrei pessoas que me trataram como parte da
família. É um lugar que me ensinou a viver de forma ainda mais
simples, que me trouxe muitas sensações novas e aprendizados.
Eu me sinto em casa, já estou acostumada com a comunidade e
confesso que não pensava em ir embora agora. A vida muda de
uma hora para outra, eu sei que não controlo o tempo em que as
mudanças chegam e esse tempo de mudança chegou.

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Faz parte da minha essência estar em movimento e
mesmo gostando de viver na aldeia, eu sabia que em algum
momento eu seguiria viajando. Todos os dias eu pensava em
viajar, sempre lembrando dos lugares que passei, das paisagens e
em cada sensação diferente que vivi na estrada.
É hora de retomar o sonho, de continuar a rota de onde eu
parei. Espero poder conhecer a Chapada Diamantina, percorrer o
Rio São Francisco, as praias do Nordeste, chegar no Norte e quem
sabe vivenciar os nossos países vizinhos.
Viajar de bicicleta me possibilita fazer parte do caminho,
estar presente na paisagem. Não é como ver a estrada pela janela
de um automóvel, eu respiro a estrada. Essa foi a maneira que
mais gostei de viajar até hoje e é assim que pretendo continuar
daqui para frente. Fluindo a vida, um dia de cada vez.

117
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Agradecimentos

A todas as pessoas que viveram e vivem na estrada, aos


que recebem os viajantes em suas casas, aos que nos incentivam,
apoiam e nos sorriem, gratidão. Fazemos parte da mesma família.
Aos meus pais, avós, irmãs, parentes e amigos que fazem
parte do meu ser, sem vocês não existiria história para contar,
muito obrigada.
Agradeço também ao apoio de todos que ajudaram no
processo de publicação deste livro. Em especial:

Adriene Moreira Dos Santos


Alessio dos Santos
Alexandre Boratto
Carlos Augusto
Claudemir Monteiro Junior
Cláudia Peixoto
Daniel Bressan
Diama Vale
Eduardo Curvo
Eduardo Rangel Cardoso
Eduardo Rodrigues Meyer
Evandro Penopedal
Fernanda Correia Soares
Gisele Motta Ferreira
Gustavo de Souza Thomaz
Hugo Caserta
Iza Paz
Jorge Azevedo
Juliana Olm

119
Livia Boratto
Luis Fernando Gama De Azevedo
Magali Borato Viana
Magali dos Santos Nascimento
Maicon Soares
Marcelo de Oliveira Pereira Pawlowski
Maria Stella Boratto
Mariana Garbim de Oliveira
Mariah Peixoto
Marta Alcione
Marta da Conceição Rocha
Nelise Viana de Castro
Nilde Maria Rotolo Negrini
Ricardo Bara
Rodrigo Aparecido dos Santos
Samuel Germanus
Tamara Barbato

Gratidão,

Julia Boratto

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