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DADOS DE ODINRIGHT

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KRAMPUS
Copyright © 2012 by Brom
Ilustrações © 2012 by Brom
Publicado mediante acordo com
HarperCollins Publishers.
Todos os direitos reservados.
Tradução para a língua portuguesa
© Ana Death Duarte, 2022
Diretor Editorial: Christiano Menezes
Diretor Comercial: Chico de Assis
Diretor de MKT e Operações: Mike Ribera
Diretora de Estratégia Editorial: Raquel Moritz
Gerente Comercial: Giselle Leitão
Gerente de Marca: Arthur Moraes
Gerente Editorial: Marcia Heloisa
Editor: Bruno Dorigatti
Capa e Projeto Gráfico: Retina 78
Coordenador de Arte: Eldon Oliveira
Coordenador de Diagramação: Sergio Chaves
Designer Assistente: Jefferson Cortinove
Finalização: Sandro Tagliamento
Preparação: Felipe Pontes
Revisão: Andrio Santos, Milton Mastabi Filho e Retina Conteúdo
Impressão e Acabamento: Leograf

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)


Jéssica de Oliveira Molinari — CRB-8/9852
Brom
Krampus : o senhor do Yule / Brom ; tradução de Ana Death Duarte. – Rio de Janeiro : DarkSide
Books, 2022.
448 p. : il.
ISBN 978-65-5598-228-2
Título original: Krampus: The Yule Lord
I. 1. Ficção norte-americana 2. Horror
I. Título II. Duarte, Ana Death
22-5494 | CDD 813
Índices para catálogo sistemático:
1. Literatura norte-americana

[2022]
Todos os direitos desta edição reservados à
DarkSide® Entretenimento LTDA.
Rua General Roca, 935/504 – Tijuca
20521-071 – Rio de Janeiro – RJ – Brasil
www.darksidebooks.com
Sumário

Página de título
Créditos
Dedicatória

Prólogo

Parte I. Jesse
Capítulo 1. O homem por trás do Papai Noel
Capítulo 2. O saco do Papai Noel
Capítulo 3. O General
Capítulo 4. Homens-diabo
Capítulo 5. Monstros

Parte II. Krampus


Capítulo 6. Hel
Capítulo 7. Lista de quem se comportou mal
Capítulo 8. Emboscada
Capítulo 9. Banho de sangue
Capítulo 10. Dentro dos ossos
Capítulo 11. Artes das trevas

Parte III. Yuletide


Capítulo 12. O júbilo do Yule
Capítulo 13. Viciados em metanfetamina
Capítulo 14. Espíritos das trevas
Capítulo 15. Demônio do Natal
Capítulo 16. O bar do Horton
Capítulo 17. Ira de Deus
Capítulo 18. Vontade de Deus
Capítulo 19. Yuletide

Posfácio: Em busca de Krampus


Agradecimentos
Ilustrações
Sobre o autor
Cólofon
Este livro é dedicado à minha esposa
e pixie predileta do Yuletide,
Laurielee
Papai Noel…
Como seu nome é vil na minha língua. Parece ácido, difícil de falar sem
cuspir. Ainda assim, encontro-me capaz de dizer pouco mais além disso.
Seu nome tornou-se minha maldição, meu mantra profano.
Papai Noel… Papai Noel… Papai Noel…
Esse nome, assim como você, assim como seu Natal e todas as
perversões natalinas, é uma mentira. Mas, por outro lado, você sempre
morou em uma casa de mentiras, e agora essa casa tornou-se um castelo,
uma fortaleza. São tantas as mentiras que você esqueceu a verdade…
esqueceu quem você é… esqueceu seu verdadeiro nome.
Eu não esqueci.
Sempre estarei aqui para lembrar você de que seu nome não é Santa
Claus, nem Kris Kringle, nem Papai Noel, nem Sinterklaas, e certamente
não é São Nicolau. O Papai Noel não passa de uma de suas máscaras, mais
um tijolo em sua fortaleza.
Não mencionarei seu verdadeiro nome. Não, não aqui. Não enquanto eu
estiver aqui neste poço escuro, apodrecendo. Ouvir seu nome ecoando pelas
paredes mortas desta prisão, ora!, isso… este seria um som que levaria
alguém à verdadeira loucura. Tal nome deve esperar até que eu novamente
veja os lobos caçando Sol e Mani pelos céus. Dia este que se aproxima,
possivelmente dentro de duas semanas, e sua feitiçaria será enfim partida,
suas correntes haverão de cair e as asas da liberdade haverão de me levar
até você.
Eu não comi minha própria carne como você tinha sugerido com
tamanha alegria. A loucura não tomou conta de mim, nem mesmo depois de
ter ficado aqui nesta tumba por meio milênio. Eu não pereci, não me tornei
comida para os vermes, como você previu. Você deveria ter me conhecido
melhor. Você deveria saber que eu nunca deixaria que uma coisas dessas
acontecesse, não enquanto eu conseguisse me lembrar do seu nome, não
enquanto eu tivesse a vingança como companheira.
Papai Noel, meu querido e velho amigo, você é um ladrão, um traidor,
um difamador, um assassino, um mentiroso, mas, o pior de tudo: você é um
insulto a tudo aquilo que defendo.
Você entoou seu último Ho, Ho, Ho!, porque estou indo pegar sua
cabeça! Por Odin, por Loki e por todos os deuses caídos, por sua traição,
por me deixar acorrentado neste poço durante quinhentos anos. Porém,
acima de tudo, estou indo pegar de volta o que é meu, para retomar o
Yuletide. E, com meu pé na sua garganta, falarei o seu nome, o seu
verdadeiro nome, e, com a morte olhando para você, você não mais será
capaz de se esconder de seus feitos sombrios, das faces de todos aqueles
que você traiu.
Eu, Krampus, Senhor do Yule, filho de Hel, da linhagem do grande
Loki, juro cortar sua língua mentirosa de sua boca, suas mãos ladras de seus
pulsos e sua cabeça alegre de seu pescoço.
Jesse Burwell Walker rezava para que sua bendita caminhonete fosse capaz
de aguentar pelo menos mais um inverno antes que a ferrugem a partisse ao
meio por completo. A picape, um belíssimo Ford F150 cinza, de 1978, fora
deixada a ele por seu pai, depois que o velho perdeu sua longa batalha com
a antracose pulmonar, causada por inalação de poeira de carvão. Agora
havia um violão pendurado no porta-armas, e o novo adesivo de para-
choque colado na diagonal na janela de trás do veículo dizia O QUE HANK
FARIA?
Os pneus da caminhonete de Jesse esmagavam cascalhos cobertos de
neve enquanto ele deixava a Rota 3 e entrava na área dos trailers em King’s
Kastle. Jesse tinha completado 26 anos cerca de um mês antes, era um
pouco alto e esguio, com cabelos escuros e costeletas que precisavam muito
ser aparadas. Ele tamborilava com seus longos dedos, bons dedos de
violonista, na garrafa de bourbon Wild Turkey apertada entre suas pernas
enquanto passava pelas moradias móveis. Ele passou por alguns bonecos de
plástico do Papai Noel, depois por bonecos de neve e então pela rena de
isopor de Ned Burnett, aquela que Ned usava para praticar tiro ao alvo e
que ficava pendurada de cabeça para baixo em seu balanço de criança,
como se estivesse prestes a ser estripada e preparada para comer. Ned havia
prendido uma lâmpada vermelha reluzente no nariz da rena. Jesse achou
aquilo engraçado no começo, mas, considerando que Rudolf estivera
pendurado lá desde o Dia de Ação de Graças, a piada estava ficando velha.
Jesse avistou umas poucas e tristes árvores com enfeites escandalosos
iluminando umas poucas e tristes salas de estar, no entanto, a maior parte
dos trailers em torno de King’s Kastle estava às escuras: as pessoas ou
tinham caído fora, indo para localidades mais animadas, ou simplesmente
não estavam nem aí para nada disso. Jesse sabia tão bem quanto qualquer
um que as coisas estavam difíceis em todo o Condado de Boone, ele sabia
que nem todo mundo tinha alguma coisa a celebrar.
Ele já podia ver o trailer da velha Millie Boggs, com sua cerca branca e
suas plantas em vasos de plástico, quando chegou ao topo da colina. Millie
era a dona do King’s Kastle e, mais uma vez, ela havia montado sua cena de
presépio entre sua entrada de carros e a lata de lixo. José tinha caído e a
lâmpada de Maria estava apagada, mas o pequeno bebê Jesus brilhava por
dentro com o que Jesse achava ser uma lâmpada de 200 watts, fazendo com
que o menino parecesse radioativo. Jesse passou dirigindo pela manjedoura,
desceu a colina e estacionou ao lado de um pequeno trailer situado dentro
de um conglomerado de pinheiros.
Quando alugou o trailer para Jesse, Millie havia descrito o lugar como
sendo uma “moradia de aluguel temporário”, porque, ela havia enfatizado,
ninguém deveria morar muito tempo em uma coisa confinada como aquela.
Ele havia garantido a ela que ficaria ali apenas por algumas semanas,
enquanto resolvia as coisas com sua esposa, Linda.
Isso fazia quase dois anos.
Jesse desligou o motor e ficou com o olhar fixo no trailer. “Feliz Natal.”
Ele soltou a tampa do uísque e tomou um longo gole da bebida, limpando a
boca na parte de trás da manga de sua jaqueta, e ergueu a garrafa na direção
do trailer. “A caminho de cagar e andar.”
Um único filamento de luzes de Natal seguia pela linha do telhado.
Visto que ele, em nenhum momento, tinha se dado ao trabalho de tirá-las de
lá no ano anterior, teria apenas que as acender para juntar-se às festividades
da temporada. Mas todas as lâmpadas estavam queimadas, exceto por uma
solitária lâmpada vermelha, logo acima da porta, que piscava… acendia,
então apagava, acendia, então apagava, quase fazendo um sinal para que ele
entrasse. Jesse não queria entrar ali. Não queria sentar em seu encaroçado
colchão de listras azuis e brancas e olhar para o revestimento barato de
madeira do trailer. Ele tinha um jeito de achar faces nos nós e nos grãos do
verniz… faces tristes, rostos torturados. Lá dentro ele não era capaz de
fingir, lá ele não conseguia esconder-se do fato de que estava passando o
Natal sozinho e de que um homem que passa o Natal sozinho é, na verdade,
um homem sozinho no mundo.
Mas a sua esposa, certamente e nem ferrando que ela está sozinha.
Está?
“Para com isso.”
Onde está ela, Jess? Onde está a Linda?
“Para com isso.”
Ela está na casa dele. Uma bela casa. Com uma bela e alta árvore de
Natal. Aposto que há muitos presentes debaixo daquela árvore com o nome
dela escrito neles. Presentes com o nome da pequena Abigail neles também.
“Para com isso”, sussurrou ele. “Por favor, apenas deixe isso para lá.”
A luz seguia piscando, zombando dele, assim como seus pensamentos.
Eu não tenho que entrar aí, pensou ele. Posso apenas dormir no chão
da caminhonete. Não seria a primeira vez. Ele guardava um saco de dormir
na caçamba só para esse propósito, sobretudo para suas apresentações fora
da cidade, porque os honky-tonks[1] não pagavam o suficiente para cobrir as
despesas com um motel e a gasolina de volta para casa. Ele olhou para a
neve caída no chão. “Está frio pra caralho!” Ele olhou de relance para seu
relógio… estava cedo, pelo menos para ele. Quando tocava no Rooster,
geralmente não voltava para casa até depois das quatro horas da manhã. Ele
simplesmente não estava cansado nem chapado o suficiente para cair no
sono ainda e sabia que, se entrasse agora, haveria de ficar encarando todas
aquelas faces na madeira.
Sid havia fechado o Rooster mais cedo, não porque era Natal… a
véspera de Natal quase sempre rendia uma quantia decente de dinheiro para
Sid. Havia por aí várias almas perdidas que, assim como Jesse, não queriam
encarar salas de estar nem quartos de dormir vazios… não no Natal.
Gostaria de dar um tiro no filho da puta que inventou a porra deste
feriado!, pensou Jesse. Essa pode bem ser uma ocasião alegre para as
pessoas afortunadas o bastante por terem famílias com quem partilhar o
feriado, mas, para o restante de nós, almas infelizes, este é só mais um
lembrete de quanta merda a vida pode fazer a gente engolir!
Só cinco ou seis tipos tristes haviam ido até o Rooster nesta noite, a
maior parte deles apenas para a rodada de bebidas gratuita do Natal que Sid
sempre distribuía. Jesse colocou seu amplificador de lado e tocou em
acústico todos os clássicos costumeiros de Natal, mas ninguém estava nem
aí para isso, nem mesmo pareciam estar ouvindo, não nessa noite. Parecia
que o Fantasma dos Natais Passados estava na sala e todas as pessoas que lá
estavam olhavam para seus drinques com expressões distantes, como se
desejassem estar em algum outro lugar e em alguma outra época. E, visto
que ninguém estava comprando nada, Sid deu a noite por encerrada um
pouquinho depois da uma da manhã.
Sid disse a Jesse que tivera prejuízo nesta noite e perguntou se ele
aceitaria uma garrafa aberta de uísque sour mash no lugar de seu
costumeiro pagamento de vinte pratas. Jesse estava contando com o
dinheiro para comprar um presente para sua filha de 5 anos, Abigail, mas
aceitou a bebida. Jesse disse a si mesmo que fizera isso por Sid, mas sabia
muitíssimo bem que esse não era o caso.
Jesse deu um olhar sinistro para a garrafa.
“Ela pediu uma única coisa a você. Uma boneca. Uma daquelas novas
bonecas Teen Tiger. Nem era um pedido realmente complicado. Não,
senhor… não era.”
Ele ouvia a voz de sua esposa em sua cabeça. “Por que você sempre tem
que ser um tremendo de um incompetente?” Ele não tinha resposta para
isso. Por que eu tenho que ser um tremendo de um incompetente?
Não é tarde demais. Posso passar no Dicker and Pawn na segunda-
feira. Só que Jesse sabia que não tinha porcaria nenhuma para penhorar. Ele
já tinha vendido a televisão e o aparelho de som, seu bom conjunto de
pneus, e até mesmo o anel que seu pai havia deixado para ele. Jesse
esfregou as pontinhas de barba por fazer. O que havia lhe restado? Ele
pegou seu violão do suporte para armas e colocou-o em seu colo. Não, eu
não posso. Ele dedilhou-o uma vez. Por que não? A droga da coisa não
tinha lhe trazido nada além de pesar. Além disso, era tudo que lhe havia
restado e que tinha algum valor. Ele olhou de relance para a aliança de
casamento no dedo. Bem, quase tudo. Ele colocou o violão no chão do
carro e ergueu o dedo de modo que a faixa de ouro ficasse iluminada pela
luz da rua. Por que estava guardando isso? Deus sabia que Linda não estava
mais usando a dela. Ainda assim, Jesse não conseguia vendê-la. Como se,
ficando preso àquela aliança, ele pudesse, de alguma forma, fazer com que
eles dois voltassem a ficar juntos. Seu cenho franziu-se. “Eu vou pensar em
alguma coisa. Em alguma coisa especial.” Só que ele sabia que isso não
aconteceria. “Abigail, minha bonequinha”, disse ele. “Eu sinto muito.” As
palavras soavam ocas na boleia da caminhonete. Ele ia mesmo dizer isso de
novo? Quantas vezes se pode dizer isso a uma garotinha antes que nem
mais seja digno de consideração?
Ele tomou outro gole da bebida, mas de repente o álcool tinha um sabor
amargo. Ele rosqueou a tampa de novo e deixou a garrafa cair no piso do
veículo. Ele ficou observando enquanto a lâmpada acendia e apagava,
acendia e apagava. Não posso entrar lá. Não posso passar mais uma noite
naquele buraco, pensando na Linda com ele. Pensando na Abigail, na
minha própria filha, vivendo na casa de outro homem. Pensando no
presente que eu não arranjei para ela… que não consigo arranjar para ela.
“Estou farto de ficar me sentindo mal o tempo todo.” As palavras
saíram com desânimo e soaram mortais, finais.
Jesse socou e abriu o porta-luvas, procurando debaixo de fitas K-7,
cupons de pizza, do registro do veículo e de um saco velho de aperitivo de
carne seca até que sua mão encontrou o frio e duro aço de um revólver
calibre .38 de cano curto, arma que ele segurou e ficou observando a luz
vermelha refletir sobre o metal escuro. Ele achou o peso da arma
confortável, sólido, algo em que podia confiar. Verificou o cilindro,
certificando-se de que houvesse uma bala assentada na câmara, e depois,
devagar, colocou o cano entre os dentes, tomando o cuidado de apontá-lo
para cima, para o céu da boca. Sua tia Patsy havia tentado estourar os
miolos lá em 1992, só que ela colocou o cano reto dentro da boca e, quando
puxou o gatilho, fez somente com que a bala saísse pela nuca, partindo sua
coluna, e ela passou os últimos três meses de sua vida como uma idiota
babona. Jesse não tinha nenhuma intenção de dar à sua esposa mais uma
coisa para ela o acusar de fazer errado.
Jesse destravou a pistola. A maldita lâmpada piscava… acendia,
apagava, acendia, apagava, como se o estivesse culpando por alguma coisa,
por tudo. Ele colocou o dedo no gatilho. Acende, apaga, acende, apaga,
acende, apaga, empurrando-o, encorajando-o a seguir em frente. Sua mão
começou a tremer.
“Atira!”, ele rosnou em volta do tambor da pistola. “Atira!”
Ele cerrou os olhos com força; lágrimas começaram a rolar por suas
bochechas. O rosto de sua filha veio até ele, e ele ouviu a voz dela com
tanta clareza que achou que Abigail realmente estivesse ali na cabine da
caminhonete com ele. “Papai? Quando você vem para casa, papai?”
Um som horrendo escapou de sua garganta, não bem um grito, mas sim
algo gutural e cheio de dor. Ele deslizou a pistola para fora da boca,
travando a arma com cuidado, e deixou-a cair no assento a seu lado.
Avistou a garrafa, ficou olhando feio para ela por um longo minuto e então
abriu a janela até o fim, jogando a garrafa de bebida no pinheiro mais
próximo. Ele errou o alvo e a garrafa tombou sobre a neve rasa. Ele deixou
a janela aberta até embaixo, a sensação boa do ar frio em seu rosto. Ele
inclinou a testa junto ao volante, cerrou os olhos e começou a chorar.
“Não dá pra continuar fazendo isso.”

JESSE OUVIU um tinido e depois uma bufada. Ele piscou e sentou-se direito.
Será que tinha caído no sono? Esfregou a testa e olhou de relance ao redor.
Ali, no fim do beco sem saída, estavam paradas oito renas, bem na frente da
entrada de carros dos Tuckers. Elas estavam presas com seus arneses a um
trenó, e, até mesmo sob o brilho fraco das reluzentes luzes de Natal, Jesse
podia ver que se tratava de um trenó de verdade e não de algum enfeite
natalino. Trenó esse que era quase da altura de um homem, suas tábuas de
madeira laqueadas em um tom intenso de carmesim e com ornamentos
delicados, espiralados e dourados. O veículo inteiro ficava em cima de um
par de esquis de trenó robustos que terminavam em ganchos elegantes.
Jesse piscou repetidamente. Eu não estou vendo coisas e não estou bêbado.
Que merda, nem mesmo estou tonto com a bebida! Uma das renas batia
com as patas na neve e bufava, lançando uma nuvem de condensação no ar
frio. Ele voltou a olhar estrada acima. Os únicos rastros que ele viu na neve
recente eram as de sua caminhonete. De onde diabos elas vieram? Todas as
renas ergueram suas cabeças ao mesmo tempo e olharam para a colina
acima. Jesse acompanhou a direção dos olhos delas, mas não viu nada.
Então ouviu o som de pancadas: alguém que usava botas pesadas
aproximava-se rapidamente.
E agora?
Um homem com uma barba branca, usando botas até o joelho, um traje
de Papai Noel carmesim adornado com pelos e segurando um grande saco
vermelho descia correndo a viela de cascalho, correndo com tudo, como se
alguma coisa o estivesse perseguindo.
Havia alguma coisa perseguindo-o.
Quatro homens irromperam na estrada no topo da colina, bem ao lado
da manjedoura reluzente de Millie. Homens negros, vestidos de preto, com
capuzes esfarrapados, carregando paus e clavas. Suas cabeças mexiam-se
para cima e para baixo, olhando para todos os lados, até que um deles
avistou o homem trajado com a roupa de Papai Noel. Ele soltou um uivo,
impelindo sua clava na direção do homem de barba branca que fugia, e todo
o bando saiu em perseguição a ele.
“Que diabos!”
O homem vestido de Papai Noel passou correndo por Jesse, arrojando-
se em direção ao trenó, bufando e bafejando, com selvageria no olhar, suas
alegres bochechas ruborizadas e uma careta feroz contraindo seu rosto. Ele
era robusto, não como o Papai Noel gordo que Jesse estava habituado a ver,
mas sólido no peito e nos braços.
O bando seguiu correndo pela viela abaixo, brandindo suas armas. Jesse
deu-se conta de que os capuzes deles eram, na verdade, mantos de pelos,
pele e penas, ondulando ao vento e farfalhando atrás deles enquanto seus
longos passos de galope rapidamente estreitavam a distância entre eles e o
objeto de sua perseguição. Jesse avistou o brilho de aço, notou que havia
pregos projetando-se das clavas e lâminas mortais em cima dos paus. Ele
sentiu a pele formigar… os olhos cor de laranja deles reluziam, suas peles
brilhavam de um preto azulado e manchado e chifres apareciam nas laterais
das cabeças deles, como cornos de diabos.
“Que p…?”
Mais dois deles apareceram, saindo correndo por detrás do trailer dos
Tuckers, determinados a interceptar o Papai Noel. Esses dois trajavam calça
jeans, botas e jaquetas pretas com capuzes. O Papai Noel nem mesmo
diminui a marcha; ele abaixou a cabeça e golpeou o primeiro homem com
tudo, usando o ombro, jogando-o também com tudo para cima do segundo
ofensor, nocauteando ambos.
Um tiro de arma de fogo reverberou como uma trovoada no ar. Um dos
membros do bando tinha uma pistola e estava tentando atirar no homem
vestido de Papai Noel. Ele… aquilo… atirou de novo. Um taco de madeira
do trenó foi lascado e soltou-se.
“Vá para longe!”, gritou o Papai Noel. “Vá para longe!”
Uma cabeça ergueu-se no assento da frente do trenó… parecia um
menino, um garoto com grandes orelhas pontudas. O menino olhou além do
Papai Noel e arregalou os olhos. Ele apanhou as rédeas e estalou-as. As
renas empinaram-se para a frente e o trenó… o trenó, na verdade, ergueu-se
do chão!
“Que… diabos?”
O homem vestido de Papai Noel pendurou o saco vermelho na traseira
do trenó e subiu a bordo dele. Jesse ficou pasmo com o quão ágil e enérgico
era o velho robusto. O trenó continuou a erguer-se… estava agora a uns
bons cinco metros acima do chão. Jesse achava que eles poderiam escapar
quando o homem-diabo-líder-do-bando pulou… lançando-se a uma
distância que Jesse teria achado impossível, e segurou um dos esquis do
trenó. Seu peso puxou o trenó com pungência para baixo, quase fazendo-o
cair.
Os cinco homens-diabo remanescentes pularam depois do primeiro,
quatro deles escalando a traseira do trenó enquanto o último aterrissava nas
costas da rena líder que, revirando os olhos e bufando, irritada e agitada,
dava patadas no ar, e aquele circo todo começou a girar para cima.
A pistola foi disparada mais três vezes. Jesse estava certo de que o
homem vestido de Papai Noel tinha sido atingido, mas, se foi, não parecia
saber disso. Ele deu um tremendo de um chute, acertando um dos homens
bem no peito, nocauteando-o para cima de um outro e quase fazendo com
que ambos caíssem para fora da traseira do trenó. A pistola voou da mão da
criatura e foi parar na neve. Um outro homem-diabo agarrou o saco e tentou
saltar para longe. O homem de barba branca soltou um uivo ensandecido e
lançou-se para cima dele e agarrou-o, atracando-se com ele. Ele acertou um
potente punho cerrado na face do homem-diabo; Jesse ouviu o golpe de
arregaçar ossos de onde estava em sua caminhonete. O homem caiu e o
Papai Noel puxou de volta o saco bem na hora em que as criaturas restantes
caíram em cima dele.
O trenó foi para cima com tudo, girando ainda mais rápido, e Jesse não
conseguia mais ver o que estava acontecendo, podia só ouvir os gritos e os
uivos enquanto o trenó girava para cima, e mais para cima, e subia ainda
mais. Ele saiu da caminhonete, erguendo o pescoço, rastreando a silhueta
que diminuía. As nuvens haviam se aproximado e estava nevando de novo.
O trenó logo desapareceu no céu noturno.
Silêncio.
Jesse exalou longamente o ar.
“Cacete!”
Ele caçou um maço de cigarros do bolso de cima da sua jaqueta jeans.
Mais ou menos na mesma hora em que achou o seu isqueiro, ele ouviu um
som e voltou o olhar de relance para cima: alguém estava gritando. O
volume dos gritos aumentou e ele avistou um pontinho preto caindo na
direção da terra.

O HOMEM-DIABO aterrissou no para-brisa do Camaro do menino de Tucker,


batendo com tudo no capô e ativando a buzina, que ficou ressoando por
toda viela coberta de neve.
Jesse dava um passo em direção ao carro quando alguma coisa caiu em
meio às árvores e bateu com tudo no telhado de seu trailer. Ele virou-se a
tempo de ver a janela dos fundos ser esmigalhada e suas luzes de Natal
caírem, e aquela maldita lâmpada vermelha apagando-se por fim. Jesse
olhou para a frente e para trás, não sabendo ao certo para onde ir, então
prosseguiu em direção ao homem caído em cima do capô do carro.
Luzes foram acesas e algumas pessoas puseram as cabeças para fora de
portas e janelas.
Quando Jesse se aproximou do carro, a buzina soltou um balido
veemente e final, como o de um bode morrendo, e parou de tocar. Ele ficou
olhando para o homem-diabo preto, só que o homem não era realmente
preto, nem era realmente um diabo. Ele vestia um manto tosco costurado à
mão, feito do que parecia ser pele de urso, e tanto seus cabelos como suas
roupas esfarrapadas estavam manchados com o que parecia ser fuligem e
piche. Sua pele fazia com que Jesse se lembrasse dos mineiros indo para
casa ao final de seus turnos, com faces e mãos encobertas por faixas e
crostas de partículas de carvão. Os chifres eram apenas cornos de vaca
costurados nas laterais do capuz, mas os olhos dele, os olhos dele ardiam
em chamas, em um laranja ardente, com pupilas pretas minúsculas e
pulsantes. Olhos que acompanharam Jesse enquanto ele dava a volta no
veículo. Jesse ficou hesitante, não sabendo ao certo se deveria se aproximar.
O estranho homem ergueu uma das mãos, esticando-a para Jesse, com
unhas longas e irregulares. Ele abriu a boca, tentou falar e um bocado de
sangue borbulhou de seus lábios. A mão do homem caiu e seus olhos
ficaram congelados, encarando Jesse, sem piscar. Pouco a pouco, aqueles
olhos atordoantes perderam o brilho, seu tom mudando de cor de laranja
para castanho, olhos castanhos normais e comuns.
“Isso foi bem esquisito”, disse uma mulher.
Jesse ficou alarmado, dando-se conta de que Phyllis Tucker estava em
pé, parada bem ao lado dele, de camisola, chinelos de ficar em casa e a
jaqueta de caçador do marido. Phyllis tinha 70 e poucos anos, era uma
senhora pequena, e a jaqueta de caça quase a engolia.
“Huh?”
“Falei que aquilo foi muito estranho.”
Jesse assentiu, distraído.
“Viu o jeito como os olhos dele mudaram de cor?”
“Uh-huh.”
“Aquilo foi muito estranho.”
“Sim, senhora, foi mesmo, com certeza foi.”
Várias outras pessoas estavam aventurando-se a sair, indo ver o que
estava acontecendo.
“Acha que ele está morto?”, ela perguntou.
“Acredito que sim.”
“Parece que ele está morto.”
“Parece mesmo.”
“Ei, Wade”, gritou Phyllis. “Chama uma ambulância! Wade, está me
ouvindo?”
“Estou ouvindo você sim!”, gritou Wade em resposta a ela. “Seria difícil
não ouvir. Eles já estão a caminho. Puta merda, está frio aqui fora! Você viu
meu casaco?”
De três trailers mais adiante vinham andando as duas filhas adolescentes
dos Powells, Tina e Tracy, seguidas por Tom e a esposa, Pam. Pam estava
tentando acender um cigarro e segurar uma cerveja, tudo isso enquanto
falava ao celular.
“Por que é que ele está todo preto desse jeito?”, quis saber Tina e, sem
dar a ninguém nenhuma oportunidade de responder, acrescentou: “De onde
ele veio?”
“Ele não é das redondezas”, disse Phyllis. “Isso eu posso afirmar com
certeza.”
“Me parece que ele deve ter caído de alguma coisa”, disse Tom. “De
alguma coisa realmente alta.”
Todo mundo ergueu os olhares, menos Jesse.
“Talvez tenha caído de um avião?”, disse Tina.
“Ou do trenó do Papai Noel”, interpôs-se Jesse.
Phyllis voltou um olhar azedo a ele.
“Não acredito que o Bom Senhor aprove isso de as pessoas ficarem
desrespeitando os mortos.”
Jesse puxou o cigarro não aceso da boca e abriu um largo sorriso para
Phyllis.
“O Bom Senhor não parece aprovar a maioria das coisas que eu faço,
Sra. Tucker. Ou a senhora não tinha notado?”
Billy Tucker chegou, erguendo as pernas de sua calça jeans.
“Merda! Meu carro! Olha só o que ele fez com o meu carro!”
Jesse ouviu uma sirene ao longe. Cedo demais para a chegada da
ambulância. Deve ser uma viatura policial. Ele apertou o maxilar. Com
certeza, Jesse não precisava de mais nenhum problema, não nessa noite. E
se o delegado Dillard estivesse de plantão aquela poderia ser uma cena
realmente feia. Jesse abaixou a cabeça e dirigiu-se de volta a seu trailer.
Quando estava a meio caminho de volta, ele lembrou-se de que alguma
outra coisa havia caído do céu, para falar a verdade, a coisa tinha colidido
com seu telhado e o atravessara, e as chances eram bem grandes de que
alguma coisa ainda pudesse muito bem estar lá… esperando. Outro deles?
Jesse não conseguia parar de pensar nos olhos da criatura, naqueles sinistros
olhos cor de laranja. De uma coisa ele sabia com certeza: não queria ficar
no mesmo lugar que uma daquelas coisas, seja lá que porra fosse, se a
criatura ainda estivesse se debatendo. Ele esticou a mão para dentro da
janela de sua caminhonete e pegou o revólver no assento. De repente, a
pistola não parecia tão sólida nem tão confiável assim. Parecia pequena. Ele
soltou uma risada ignóbil. Estava com medo? Sério? Com medo de que algo
fosse matá-lo? Não era você quem ia estourar seus malditos miolos? Sim,
ia mesmo, mas, de alguma forma, aquilo era diferente. Ele sabia o que
aquela bala faria com ele, mas essa criatura em seu trailer? Ele não tinha
como saber o que aconteceria.
Ele inseriu, com gentileza, a chave, e girou-a, tentando abrir a tranca o
mais silenciosamente possível. A tranca abriu com um som agudo,
pungente e alto. Foi o mesmo que ter tocado a maldita campainha.
Segurando a arma à frente, ele puxou a porta. As dobradiças protestaram,
alto. Ele foi cumprimentado pela escuridão. Ele começou a esticar a mão
para acender as luzes… Então parou. Cacete, você não quer realmente fazer
isso. Ele mordeu o lábio e deu um passo para cima do degrau de concreto.
Segurando a pistola na mão direita, esticou a esquerda escuridão adentro.
Jesse percorreu a parede com a mão, tateando em busca do interruptor, certo
de que, a qualquer momento, alguma coisa iria morder e arrancar seus
dedos fora. Ele acertou o interruptor e a luz fluorescente de cima acendeu
piscando.
Seu trailer consistia basicamente em três pequenos aposentos: uma
cozinha/pequena sala de jantar, um banheiro e um quarto de dormir. Ele
espiou do degrau trailer adentro. Não havia nada na cozinha além de
utensílios sujos de uma semana de uso, pratos de papel também sujos e
alguns copos de isopor. O banheiro estava aberto e não havia ninguém lá
dentro, mas a porta de seu quarto estava fechada e ele não conseguia
lembrar se a havia deixado assim ou não. Você vai ter que dar uma olhada.
No entanto, seus pés decidiram que estavam muito bem onde estavam,
então ele continuou ali, com o olhar fixo naquela porta fechada, que nem
um imbecil.
Ele avistou luzes piscantes vermelhas e azuis; uma viatura policial
estava a caminho, descendo a colina. Achou que a imagem do que ele
estava fazendo seria uma belezinha: ali, parado, apontando uma arma para o
interior de um trailer. Ok, disse Jesse a si mesmo, essa é a parte em que
você não ferra com tudo. Ele subiu e entrou no trailer, puxando a porta, mas
não a fechou.
Ele levou mais um minuto inteiro encarando a porta de seu quarto antes
de dizer: “Foda-se”. Então seguiu andando e virou a maçaneta. A porta
abriu-se pela metade e parou. Algo a bloqueava. Jesse percebeu que tinha
mordido seu cigarro e o dividira ao meio, então o cuspiu. Não gosto disso…
nem um pouco. Segurando a arma na altura dos olhos, ele cutucou a porta
com a biqueira da bota. Conseguia discernir apenas uma forma escura,
curvada na extremidade mais afastada de sua cama.
“Não se atreva a se mexer”, disse ele, tentando soar austero, mas não
conseguia esconder a tremedeira em sua voz. Mantendo a arma mirada na
forma à sua frente, ele ligou, com força, o interruptor na parede. O abajur
estava no chão, a cúpula, esmagada, mas a lâmpada ainda acendeu,
lançando sombras lúgubres parede acima.
Jesse soltou longamente o ar.
“Bem, mas que diabos.”
Não havia nenhum demônio de olhos cor de laranja esperando para
devorá-lo, apenas um saco… um grande saco vermelho, fechado, preso com
um cordão dourado, que tinha colidido e atravessado o telhado, indo parar
em sua cama.
Jesse manteve o saco na mira de sua arma enquanto pegava um cigarro
novo, acendendo-o com a mão livre. Ele inspirou fundo e ficou observando
a neve acumular-se em seu quarto. Umas poucas tragadas profundas e seus
nervos começaram a acalmar-se. Ele colocou um pé na cama, inclinou-se
para a frente e cutucou o saco com o cano da arma como se estivesse cheio
de cobras.
Nada aconteceu.
Jesse agitou e soltou o cordão dourado, puxou-o e abriu o saco, e deu
uma espiada lá dentro.
“Mas que diabos.”
“Cadê meus Belsnickels?”
Krampus forçava suas correntes, a antiga coleira machucando sua
garganta. Ele esticou o pescoço para cima, e lá, bem longe, bem lá em cima
no poço, ele avistou um leve brilho refletindo no teto da caverna. Seria o
luar… ou os primeiros traços da alvorada?
Ele coçou os piolhos que empesteavam sua pele imunda, ficou olhando
para os pedaços de carne encrustadas e os pelos sarnentos presos nas pontas
de suas unhas quebradas. Estou apodrecendo e me acabando. Enquanto ele
se entrega aos prazeres da vida, eu morro um pouco mais a cada dia. Ele
notou o tremor em seus dedos. Estou tremendo? Eu fico aqui, parado, em
pé, tremendo como uma criança? Agarrou com força uma das mãos na
outra.
E se eles nunca voltarem? E então? Que chance tenho eu sem minhas
crianças? Não haveria nenhuma esperança, nenhuma chance de, uma vez
mais, espalhar meu nome pelas terras e, sem esperança, até mesmo eu, o
grande Senhor do Yule, acabaria, em algum momento, sucumbindo à
loucura. Feneceria e esvaneceria e ele venceria no fim das contas.
“Não!”, disse ele, rosnando. “Nunca! Nunca deixarei que ele vença! Se
eu jazer aqui, nada além de uma carcaça encarquilhada, que seja assim
então, pois meu espírito nunca haverá de descansar. Haverei de tornar-me
uma praga na casa dele. Haverei de vexá-lo. Eu vou… irei…” A voz de
Krampus foi levada pela correnteza de pensamentos. Ele cerrou os olhos e
apoiou a testa na fria parede da caverna. Ele pressionou as palmas das mãos
na pedra úmida e ficou ouvindo, na esperança de sentir as vibrações dos pés
deles correndo sobre as camadas de terra.
“Os Belsnickels haverão de retornar”, disse Krampus. “Eles devem
retomar. Devem trazer o saco de Loki para casa, para mim.”
A luz acima piscou e o coração dele ficou acelerado. Ele ficou
esperando, mas sabia que se tratava apenas de seus pensamentos
fantasiosos, e nada além disso. Um vento muito forte e frio desceu pelo
poço. Krampus inspirou profundamente, captando o aroma de agulhas de
pinheiro e folhas úmidas apodrecendo. Ele cerrou os olhos, tentou lembrar-
se de como era a alvorada no inverno na floresta, de como era a sensação de
correr e dançar entre as árvores com o ar frio machucando sua garganta.
“Logo”, sussurrou ele. “Eu haverei de caminhar na Mãe Terra mais uma
vez e eles haverão de celebrar o meu retorno. Haverá festivais e
celebrações, como antes, e muito mais.”
As lembranças foram desvelando-se, um caleidoscópio de imagens
empilhando-se, milhares de Yuletides passados: os tambores chamando-o da
floresta; as trombetas anunciando oficialmente sua chegada; os meninos e
as meninas, com os olhos cheios de medo e de fascínio enquanto o
adornavam com coroas de penas e visco e coroavam-no com folhas de
azevinho; donzelas rodopiantes que aspergiam o caminho dele com agulhas
frescas de pinheiros, perfumadas com abeto esmagado, e conduziam-no por
entre o labirinto de cabanas, o desfile de homens ruidosos retinindo espadas
e escudos e de mulheres entoando canções à tirolesa, seguindo seu rastro.
As portas da casa do senhor abrindo-se para ele, o aroma de javali sendo
assado convidando-o a entrar. Eles colocavam-no sentado em um
gigantesco trono de vime na cabeceira da longa mesa e lá o esbanjavam
com um banquete e bebidas, todo o hidromel que se poderia aguentar.
Depois disso, seguia-se um desfile de suas jovens mais robustas perante ele
e, para o regozijo e as risadas de todos, ele montava nelas, em uma atrás da
outra, acasalando com elas como as feras na floresta, abençoando-as com
úteros férteis e saudáveis.
E, com a devoção e o fervor do povo pulsando em seu coração, ele era
anunciado no Yuletide, anunciado o renascimento da terra, e afastava os
espíritos da fome e da pestilência. E o ciclo da vida sempre seguia em
frente.
E em breve, pensou ele, abençoarei outra vez a humanidade. No
entanto, desta vez, serão estas pessoas perdidas das Virgínias. Pois esta
nova terra da América precisa de mim, precisa que eu seja grande e
terrível, para afastar os espíritos sombrios deles, para derrotar os
perversos dentre eles. E farei isso, pois o Senhor do Yule sabe como ser
terrível, e serei terrível, e eles virão adorar-me, para encherem-me com
celebrações e… e, mais uma vez, farão filas com suas jovens mulheres para
glorificar-me. Ele assentiu e sorriu, com os olhos focados em alguma coisa
distante. Eles irão me amar. Todos eles virão a me amar.

“MAS QUE DIABOS”, Jesse falou de novo, e mais uma vez, mesmo sendo
desnecessário.
Ele podia ver o canto de uma caixa bem ali, dentro do saco do Papai
Noel. Enfiou sua arma no bolso de sua jaqueta e puxou a caixa dali. Ele
abriu um largo sorriso. Era uma boneca Teen Tiger novinha em folha.
“Sim, querida Abigail, o Papai Noel existe mesmo.”
Ele examinou a boneca. Um sedutor par de olhos de gato azuis cercados
com um delineador pesado olhavam para ele de sob uma profusão de
cabelos brilhantes. Ele estava contemplando a adequação do biquinho da
boneca, de seus lábios vermelhos cor de cereja, da minissaia com listras
parecidas com as de um tigre, da barriga à mostra… quando lhe passou pela
cabeça como era estranho que a boneca estivesse ali. Sendo aquele o saco
do Papai Noel, ele esperava que houvesse brinquedos ali dentro, claro, além
de uma boneca Teen Tiger também, não? E em qual das bonecas ele
estivera pensando? Jesse olhou para a boneca de novo. “Tina Tiger”, aquela
que sua filha queria. E ali estava ela, disposta bem em cima, como se o saco
a estivesse entregando a ele. É como se a coisa lesse a sua mente. Os pelos
dos braços dele ficaram arrepiados e ele olhou com ares de suspeita para o
saco. Ok, acalme-se. Você já viu e ouviu coisas esquisitas o bastante. Jesse
inspirou fundo.
Ele ergueu o saco, surpreso com o quanto era leve; ele poderia segurá-lo
esticando o braço com apenas uma das mãos. Era mais ou menos do
tamanho de um daqueles sacos pretos e grandes de lixo. Ele chacoalhou a
neve para fora do saco e levou-o, junto da boneca, até sua sala de jantar,
puxando e fechando a porta do quarto depois de sair, para manter o frio e a
neve fora dele.
Do lado de fora, a ambulância havia chegado, banhando o aposento com
suas luzes piscantes. Jesse jogou o saco no chão e ficou olhando fixo para
ele até terminar de fumar seu cigarro, depois puxou uma cadeira da cozinha
e sentou-se nela. Enganchou um dos polegares na boca do saco e o manteve
aberto, espiando com cautela, como se esperasse que algo saísse de dentro
pulando para cima dele. O interior do saco era escuro, o revestimento de
veludo preto rapidamente desaparecendo nas sombras, não deixando que ele
visse mais do que oito a dez centímetros saco adentro. Havia algo anormal
em relação àquelas sombras e, quanto mais ele analisava a escuridão
parcial, mais ficava convencido de que não estava vendo sombras coisa
nenhuma, e sim uma espécie de fumaça, um vapor denso e rodopiante. A
fumaça fluía e refluía, e, ainda assim, não saía de dentro do saco.
Ele cutucou o lado de fora do saco, que parecia preenchido, similar ao
pufe cheio de feijões que ele tinha quando era criança, que ele podia
empurrar de um lado para o outro mas sempre recuperava a forma. Ele
queria mesmo saber o que mais havia ali dentro, mas não sentia nenhuma
pressa de enfiar o braço naquela gosma fumacenta para descobrir.
Jesse voltou a espiar dentro do saco, pensou em como Abigail ficaria
satisfeita se ele levasse para ela não apenas uma, mas talvez algumas
daquelas bonecas safadinhas. Ele engoliu em seco e colocou a mão na boca
do saco. Seus dedos desapareceram na fumaça, depois sua mão, depois seu
antebraço. Ele notou uma mudança na temperatura, sendo o interior do saco
muito mais quente, e, totalmente de súbito, teve uma noção sobrepujante de
que o saco em si estava vivo, de que ele estava com a mão dentro da boca
da coisa, que podia morder e arrancar seu braço, como uma armadilha para
ursos. Algo bateu em seu pulso e ele soltou um grito, puxando a mão de
dentro do saco. Jesse examinou a mão e o braço como se pudessem estar
cobertos de sanguessugas, mas estavam bem.
“Droga! Pare de ser um tremendo de um maricas, cara!”
Ele pensou em outra boneca, naquela asiática, com a tatuagem de
dragão, mordeu o lábio e deslizou a mão de novo para dentro do saco, foi
empurrando-a até a altura do cotovelo, rezando para que seus dedos ainda
estivessem grudados em sua mão quando puxasse o braço para fora. Ele
ficou tateando até que encontrou o objeto de novo. Parecia uma caixa. Ele
puxou-a de dentro do saco e não ficou nem um pouco surpreso ao se ver
olhando nos exóticos olhos púrpuras de Ting Tiger.
Jesse soltou uma bufada. Ok, entendi. Ele pensou na boneca gótica,
depois, na ruiva, e pegou ambas de dentro do saco. Ele não parou por aí.
Apenas uma semana antes, Abigail sentou-se no colo dele com o panfleto
da loja de brinquedos Toys “R” Us e, nomeando todas as seis bonecas Teen
Tigers, explicou-lhe todos os superpoderes delas, disse a ele de quais ela
havia gostado mais e quais acessórios eram obrigatórios. Ela continuou
esclarecendo o quanto era difícil para uma garota da idade dela comer,
dormir ou até mesmo respirar sem ter pelo menos uma dessas incríveis
bonecas em sua posse.
Um minuto depois, Jesse estava com a gangue completa das garotas
Tiger enfileiradas sobre a mesa, assim como o Corvette vermelho com
listras de tigre e dois pacotes de acessórios. E não precisava muito para ver
que todos aqueles brinquedos não teriam como caber dentro daquele saco
juntos. O saco está criando os brinquedos de alguma forma. O saco está
criando o que eu desejo! Ele arregalou os olhos e parou de respirar por um
instante. É mesmo? Será que os céus tinham simplesmente jogado um saco
mágico no colo dele? Jesse ficou de pé em um pulo, deu um salto para a
frente, aferrolhou a porta e depois espiou para fora, pela janela da frente. A
ambulância e a viatura da polícia ainda estavam ali, mas todos os vizinhos
tinham ido para casa, bem, todos menos Phyllis, que tagarelava, disparando
mil palavras por minuto para cima do motorista da ambulância.
Jesse fechou as persianas e ficou na frente do saco, sua mão pairando
sobre a abertura dele. Jesse fechou os olhos, visualizou um anel de
diamante e deslizou a mão para dentro do saco. Ali estava! Ele apanhou
uma caixinha de veludo de dentro do saco. Seus dedos tremiam tanto que
ele precisou de três tentativas para conseguir abrir a caixinha.
“Oh, puta merda, sim!”, disse ele, erguendo o anel até a luz.
Seu sorriso esmoreceu.
Era um brinquedo, nada além de plástico e alumínio pintados.
“Droga!” Ele balançou a cabeça. “Devo ter feito algo errado, não?” Ele
jogou o anel por cima do ombro, cerrou os olhos de novo, concentrando-se
dessa vez em um relógio. Ele pensou especificamente no Rolex de ouro que
havia admirado na loja de penhores. O relógio que ele puxou dali tinha o
nome Rolex escrito no mostrador, mas ainda era um brinquedo. “Ah, qual é!
Qual é!” Três anéis de latão depois, quatro relógios de plástico e uma pilha
alta de dinheiro de brinquedo e ele entendeu a mensagem: o saco só
produzia brinquedos.
Ele deslizou as costas na parede.
“Bem, que porcaria.” Ele apoiou a cabeça no painel e ergueu o olhar
para as manchas de água no teto. “Parece que as coisas nunca saem do jeito
que eu quero.” De repente, tudo que havia acontecido nessa longa e
estranha noite veio à mente dele, e ele só queria rastejar até sua cama e ficar
por lá. Olhou de relance para o quarto. “Provavelmente dá para fazer um
boneco de neve lá agora.” Ele soltou um suspiro, puxou a almofada do
assento da cadeira, apoiou-a atrás da cabeça e deitou-se bem ali no chão.
Ele ficou observando as luzes de emergência piscarem através das
persianas. Seus olhos vagaram até as bonecas. Ele conseguiu sorrir.
“Consegui todas aquelas pequenas supervadias… todas elas.” Jesse pensou
na cara de Abigail e seu sorriso ficou ainda mais largo. “Uma vez na vida,
bonequinha, seu papai não vai ser um perdedor. Uma vez na vida, seu papai
vai ser um herói.” Ele cerrou os olhos. “Abigail, querida… se segura porque
o Papai Noel está vindo para a cidade!”.

“PRONTO. Até que enfim! Meus Belsnickels… eles estão de volta!”


Krampus ergueu sua orelha da pedra e ficou fitando poço acima,
puxando sua corrente como um cão de caça esperando pelo alimento. A luz
acima agora brilhava o bastante para ele saber que era a alvorada. Ele podia
ver as sombras deles aproximando-se.
Eram quase quinze metros até o topo do poço estreito; ele apertou uma
das mãos na outra enquanto eles desciam o poço pelas paredes. Cadê ele?
Krampus procurou nas silhuetas por algum sinal do saco.
Makwa, o grande shawnee, foi o primeiro a cair, aterrissando de quatro,
com seus pelos de urso e sua roupa de camurça rasgados e sujos. Sua carne
estava arranhada e ensanguentada. Ele ficou de pé e Krampus agarrou-o
com força pelos ombros.
“Você está com ele?”
Makwa empurrou seu capuz para trás e balançou a cabeça em negativa.
“Não.”
Mais três Belsnickels desceram deslizando: os irmãos, Wipi e Nipi,
também do povo Shawnee, e o homenzinho, Vernon, com sua longa e
eriçada barba cheia de agulhas de pinheiro. Eles também pareciam ter
sofrido imensamente. Estava óbvio que eles tinham participado de uma
batalha desesperada com alguém ou com alguma coisa. Krampus olhou de
um para o próximo; nenhum dos Belsnickels olhava em seus olhos.
“Vocês não estão com ele? Nenhum de vocês está com ele?”
“Não.”
“Não?”
Eles balançaram as cabeças e continuaram com os olhares fixos no
chão. Não. A palavra atravessava-o como se fosse um estilhaço de gelo.
Não. Os joelhos de Krampus ameaçavam ceder. Ele agarrou-se à parede
para equilibrar-se.
“Foi ele? Foi o Papai Noel?”
“Sim”, respondeu-lhe Vernon, e os três shawnees assentiram.
“Onde está ele? Onde está o saco?”
“Nós fizemos nosso melhor”, disse Vernon. “Ele era terrivelmente forte
e estava ensandecido… foi inesperado.”
Krampus deslizou até o chão, aninhando sua cabeça em suas grandes
mãos.
“Nunca haverá uma outra chance.”
A garota, Isabel, mudou sua postura. Ela jogou para trás o capuz de sua
jaqueta, olhou de Krampus para os quatro homens.
“Vocês não contaram a ele?”
Ninguém lhe respondeu.
“Krampus, o saco ainda pode estar por aí.”
Krampus, confuso, olhou para ela.
“O saco?”
“Sim, o saco. Está lá fora, em algum lugar.”
Krampus ficou confiante e segurou com força no braço dela.
“O que você quer dizer com isso, criança?”
“Nós estávamos com ele. Quero dizer, quase. Estávamos no trenó,
lutando com o velho pelo saco e… ah! Que droga, Krampus. Você está
machucando o meu braço.”
Krampus percebeu que a estava apertando em sua agonia e soltou-a.
“Foi uma loucura. O Papai Noel ficou louco de raiva, surtado.
Mordendo e unhando e… e…” Ela parou de falar por um instante, e seu
rosto assumiu uma expressão de intensa tristeza. “Ele chutou Peskwa para
fora do trenó. Nós estávamos tão no alto… eu não sei se ele sobreviveu
ou…” Ela ficou hesitante, olhando de relance para os outros.
“Oh, ele muito certamente é um indiozinho morto”, interpôs-se Vernon.
“Nós não sabemos disso”, desferiu Isabel em resposta.
“A menos que ele tenha criado asas, ele está morto. Eu não vejo
motivos para…”
“Já chega!”, gritou Krampus. “Isabel. O que aconteceu com o saco?”
“Bem, quando Peskwa caiu, ele levou o saco com ele e…”
“Então, o saco… ainda está por aí?”
“Sim. Bem, talvez? Quero dizer, quando…”
“Talvez?”
“Veja bem, depois que o saco caiu, o trenó começou a girar
descontroladamente. Tudo que podíamos fazer era apenas nos segurar. Uns
poucos segundos depois nós batemos com tudo em algumas árvores. Todos
nós estávamos…”
“E o Papai Noel? O que aconteceu com ele?”
“Bem, eu estou tentando chegar nesse ponto.”
“Bem, chegue a esse ponto então.”
“Estou tentando. Você fica me interrompendo.”
Krampus jogou as mãos para cima em frustração.
“Ok, vejamos… que diabos, onde eu estava? Ah, é, quando atingimos
aquele primeiro aglomerado de árvores, fomos jogados para fora do trenó,
mas não o Papai Noel, ele se segurou nele. Você deveria tê-lo visto,
completamente fora de si… falando descontrolada e loucamente, delirando,
frenético conosco e com as renas. As renas eram uma massa confusa,
estavam assustadas e dispararam com tudo. Para o alto e avante! Foram
girando pela parte côncava, entrando naquela parte da colina onde não há
nada além de penhascos e descidas. Elas bateram nas pedras com tanta
força que o som ecoou por todo o vale. Nenhum de nós viu exatamente
onde o velho Papai Noel acabou parando, mas posso dizer com uma
tremenda de uma certeza que ele não se safou daquela. De jeito nenhum!
Ele está morto.”
“Morto?” Krampus deu uma bufada e depois deu risada. “Papai Noel
morto. Não. Por mais doces que pudessem ser tais marés de sorte, é preciso
muito mais do que um tapão para matar tamanha vilania.” Krampus puxou
os pelos fibrosos que cresciam em seu queixo. “No entanto, é encorajador
que o trenó e as renas dele estejam perdidos.” Ele começou a andar de um
lado para o outro. “Quer dizer que ainda pode haver alguma chance de
conseguirmos pegar o saco… de encontrá-lo primeiro.” O coração de
Krampus começou a acelerar. “Sim, certamente que há! Você disse que o
saco caiu junto de Peskwa, não disse?”, Isabel assentiu. “Você se lembra
onde foi que ele caiu?”
“Sim. Não.”
“Sim ou não, criança?”
“É difícil dizer. Quero dizer, não tem como saber. O trenó estava
girando e…” Isabel olhou de relance para os outros, que deram de ombros.
“O saco deve estar em algum lugar perto do corpo.” Krampus ergueu a
voz, animado. “Vocês precisam encontrar o corpo, ou descobrir onde foi
que ele aterrissou. Isso não deve ser difícil. Comecem sua busca por lá.
Dividam-se e espalhem-se, e…” Ele parou de andar de um lado para o outro
e ficou encarando cada um dos Belsnickels. “Nós temos que ganhar do
Papai Noel nessa. Ele sabe onde eu moro… sabe tudo sobre vocês. Ele vai
mandar os monstros dele virem até aqui. O saco é o prêmio. Ele é tudo… se
ele encontrá-lo primeiro, então… bem, então estaremos mortos.”
Ele apanhou uma das lanças dos shawnees e entregou-a a Makwa.
“Vocês ainda estão com suas facas? Que bom. Levem o rifle e a pistola
também. Vocês precisarão deles caso sejam encontrados pelos monstros
dele.”
“Nós perdemos a pistola”, disse Isabel.
“Wipi atirou nele”, acrescentou Vernon. “Pelo menos três vezes, foi à
queima-roupa. Eu estava bem ao lado dele. Ele o acertou todas as vezes,
bem no peito… nem fez com que ele ficasse mais devagar.”
“Não”, disse Krampus. “Não, não achei que isso aconteceria. Agora
andem logo, apressem-se. Cada segundo faz diferença.”
Os Belsnickels apanharam algumas lanças e uma velha espingarda de
caça com a coronha quebrada de uma pilha de ferramentas. Eles subiram
arrastando-se pelo poço, um atrás do outro. Krampus gritou para eles.
“Fiquem atentos aos monstros dele. Vocês saberão quando os virem.
Vocês haverão de senti-los.” Então ele acrescentou, baixinho: “Assim como
eles sentirão vocês”.
JESSE ESTACIONOU na entrada de carros de uma casa pequena e velha cuja
pintura branca estava descascando. Linda e Abigail ficavam na casa da mãe
de Linda desde a separação. Ele olhou de relance para seu relógio de pulso.
Perdera a hora e estava chegando perto do meio-dia.
Ele espiou dentro da caçamba, onde havia dois sacos de lixo, cheios de
brinquedos, esperando por Abigail. Ele abriu um largo sorriso, não pôde
evitar. O saco carmesim do Papai Noel estava no piso do veículo ao lado
dele. Ele passou a mão em seu grosso e delicioso veludo. Ele tinha uma boa
sensação em relação àquele saco e não pretendia deixá-lo longe de sua
vista. O saco era mágico, e Jesse sentia, com certeza, que de uma forma ou
de outra aquilo haveria de lhe trazer boa fortuna. Jesse só ainda não tinha
exatamente imaginado como, mas, pelo menos ele pensara que sempre
poderia vendê-lo, tinha de haver alguém por aí que precisasse de um saco
que criasse brinquedos. Ele estava saindo da caminhonete quando algo em
sua jaqueta bateu contra a porta, fazendo um som oco e metálico. Ele tirou a
pistola do bolso.
“Eu não devo precisar disso”, disse ele, depois deu uma bufada. “Claro,
não tem como saber com a Linda.”
Ele colocou a arma de volta no porta-luvas.
Jesse bateu na porta da frente e ficou esperando. Quando ninguém veio
atender, ele bateu de novo, mais alto.
“Aguenta aí”, gritou alguém. “Já vai.”
Ele ouviu o som de pés se arrastando e então Polly abriu a porta e ficou
encarando-o através da tela. Ela voltou um olhar de pena a ele.
“Elas estão aí?”, quis saber Jesse.
Ele achou que ela não fosse lhe responder, quando, por fim, Polly soltou
um suspiro e disse:
“Por que você quer fazer isso com você mesmo?”
Ele tentou espiar além dela, na sala de estar.
Ela olhou para trás por cima do ombro.
“Eu não as estou escondendo debaixo do meu sofá. Elas não estão aqui,
Jesse. Nem uma nem outra.”
“Elas estão na casa do Dillard”, disse Jesse. Não era uma pergunta.
Polly não disse nada.
“Maldição!” Jesse bateu com a bota no capacho da porta. “Diga-me
uma coisa, sra. Collins. Apenas… o que diabos ela vê naquele filho da
puta?”
“Uma vez eu fiz essa mesma pergunta a ela em relação a você.”
“O homem tem quase 60 anos. A senhora acha isso certo? Que a Linda
esteja saindo com um homem que tem quase a idade da senhora?”
“Linda nunca foi boa para escolher homens. Pelo menos Dillard está
cuidando dela. Isso é mais do que alguns podem dizer que fizeram.”
Jesse olhou feio para ela.
“Ele vem para casa depois do trabalho, como deveria. Tem um bela
caminhonete. Uma bela casa.”
Jesse virou a cabeça e cuspiu alto.
“Aquela casa foi comprada com dinheiro sujo!”
Polly deu de ombros.
“É melhor do que nenhum dinheiro.”
“Tenho que ir.”
Jesse virou-se e começou a descer os degraus.
“Se você tiver bom senso, ficará longe daquele homem.”
Jesse parou, virou-se e olhou bem nos olhos de Polly.
“Linda ainda é minha esposa, sabia? Um pequeno fato que todo mundo
menos eu parece ter esquecido.”
“Eu só estou dizendo para você não ir provocá-lo. Você não precisa
desse tipo de encrenca. Ninguém precisa desse tipo de encrenca.”
“Bem, se ele acha que pode simplesmente tomar a esposa de outro
homem, então cabe a mim certificar-me de que ele saiba da real.”
Ela deu uma risada, um som de zombaria que deixou Jesse nervoso,
cerrando os dentes.
“Jesse, você quer pensar que você é mau, mas simplesmente não é.
Desse tanto eu sei em relação a você. Agora, o Dillard, por outro lado, ora,
aquele é um homem feito de coisa ruim. O pai dele levou tiros seis vezes na
vida e ainda está por aí para contar a história, enquanto os homens que
atiraram nele, todos eles, estão debaixo do chão, frios como pedra. E o avô
dele, bem, aquele homem era tão mau que tiveram que o enforcar antes dos
22 anos de idade. Dillard tem raízes profundas neste condado, tem a lei ao
lado dele. Pode fazer com que você suma, de uma forma ou de outra. Então
você precisa abaixar um pouco a bola enquanto ainda pode.”
O rosto de Jesse ficou ruborizado. Ele não precisava de um sermão da
sra. Collins sobre Dillard Deaton, ou delegado de polícia Dillard Deaton,
título esse que soava mais importante do que realmente era, visto que só
haviam dois policiais em tempo integral em Goodhope. Não era o distintivo
que perturbava Jesse, mas sim o fato de que o homem estava envolvido até
a alma com Sampson Boggs, mais conhecido pelos arredores da cidade
como O General. Boggs e seu clã controlavam todos os tipos de atividades
clandestinas: jogos de azar, briga de cães, prostituição, fraudes da
previdência social, e podia lhe vender qualquer droga que você fosse capaz
de nomear. O dever civil jurado pelo delegado Deaton parecia incluir
manter a lei longe do General, em troca de uma fatia do bolo… tendo sido
assim desde que Jesse conseguia se lembrar.
As afiliações de Dillard eram ainda mais profundas: o clã dos Boggs e a
família de Dillard dividiam uma longa e tortuosa história. O velho pai de
Dillard tinha sido baleado, como dissera a sra. Collins, por vender bebida
contrabandeada para os Boggs no passado. Laços de sangue tinham algum
significado no Condado de Boone, e rixas e contendas eram mais do que
frequentemente resolvidas pelos fora da lei. E um homem precisava tomar
cuidado com quem mexia, porque o sangue sempre vinha em primeiro
lugar. Jesse, por outro lado, não tinha muitos familiares, e os poucos que
tinha não eram dignos de nota. Sem família para apoiá-la, uma pessoa não
tinha tanta importância: era assim que as coisas funcionavam por ali.
“O que está acontecendo entre mim e Dillard…”, disse Jesse. “Bem,
isso é algo diferente. Quando um homem mexe com a esposa de outro
homem, o negócio vira pessoal. Entende-se que ele está passando dos
limites e o que acontecer depois disso fica entre os dois homens e mais
ninguém. A senhora não vai encontrar ninguém que discuta comigo em
relação a isso.”
O rosto de Polly perdera aquela expressão teimosa, deixando-a
parecendo velha e triste.
“Jess, Linda enfim tem alguma coisa. Não vá estragar as coisas para ela.
Está me ouvindo?”
“Sra. Collins, que a senhora tenha um Feliz Natal.”
Sem nem mais um olhar para trás, Jesse entrou em sua caminhonete e
foi embora.
JESSE NÃO VIU nenhum sinal da viatura de Dillard e soltou o ar que estava
contido. Ele estacionou na entrada de carros do delegado de polícia,
estacionando atrás do detonado Ford Escort de Linda, e desligou o motor. A
casa ficava em cima de uns bons e belos hectares isolados, junto ao rio,
logo na periferia da cidade. Tudo tinha sido reformado fazia pouco tempo:
novos ladrilhos e uma varanda que dava a volta na casa. Havia um último
modelo de Chevy Suburban branco na frente da garagem de três carros.
“Bela casa. Belo carro. É incrível o que um homem pode comprar hoje
em dia com um salário da polícia de uma cidadezinha.”
Jesse abriu a porta, pôs-se a sair do veículo, então hesitou. Que diabos
eu estou fazendo? Ele percebeu que era fácil bater papo na frente da sra.
Collins, mas agora que estava ali, não se sentia assim tão atrevido. Ergueu o
olhar de relance para a estrada, ficando de olho para ver se avistava a
viatura. Os presentes de Abi podiam esperar. Sempre haveria um outro dia.
Ele balançou a cabeça em negativa.
“Creio que não. Ela é minha filha e estamos no Natal. Maldito seja eu,
se for escorraçado por um grosseirão velho e coxo.”
Jesse saiu da caminhonete e sentiu-se nu, exposto. Ele olhou de relance
para o porta-luvas, mas alguma coisa em seu âmago lhe disse que seria uma
má ideia levar a arma. Em vez disso, ele deu a volta, abriu a porta da
caminhonete, empurrou o violão para o lado e puxou para fora os dois sacos
de brinquedos. Ele foi caminhando, subindo pela trilha, escondendo os dois
sacos atrás da cerca-viva, e depois subiu na varanda. Ele tirou os cabelos da
frente do rosto, endireitou a camisa e tocou a campainha, cujos sons graves
ecoaram lá de dentro.
Um minuto depois, Linda abriu a porta com um grande sorriso no rosto;
no segundo em que viu Jesse, seu sorriso morreu. Ela trajava um robe cor
de lavanda aveludado. Jesse notou de imediato a lingerie com babados sob
o robe.
“O Papai Noel trouxe isso aí para você?”
Linda desferiu um olhar frio para ele e puxou o robe, fechando-o mais.
“O que você está fazendo aqui?”
“Feliz Natal pra você também, doçura.”
“Você não deveria estar aqui.” Ela olhou de relance para trás de Jesse,
com olhos ansiosos. “Ele vai voltar a qualquer momento.”
“Estou aqui para ver minha filha.”
“Jesse, você não pode ficar arrumando encrenca.” Linda abaixou a voz.
“Ele só está procurando uma desculpa. Dessa vez ele vai pegar você. Você
sabe o que isso significa.”
Ele sabia. Havia vezes, quando suas apresentações musicais estavam
fracas, em que Jesse pegava uns bicos estranhos para fazer. Em mais de
uma ocasião ele lidou com contrabando para o General. O xerife do
Condado de Boone era um homem honesto, não fazia parte da folha de
pagamento do General, nem se importava muito com o delegado Dillard
Deaton. Certa noite, o xerife parou Jesse numa dessas e o contrabando era
de três quilos de maconha. Jesse acabou indo parar na cadeia. Visto que se
tratava do primeiro delito dele, o juiz deixou-o sair em condicional e com
um aviso severo de que mais alguma encrenca e ele teria que cumprir um
bom tempo na prisão. O delegado Deaton gostava de lembrar Jesse de sua
condicional e de falar sobre o que aconteceria se Jesse saísse da linha.
“Até onde eu saiba”, disse Jesse, “não é contra a lei que um homem vá
visitar sua filhinha no Natal.”
“Jess, por favor, vá embora. Estou lhe implorando que vá embora. Se
ele encontrar você aqui, as coisas vão ficar feias.” Jesse captou uma nota de
pânico na voz dela e entendeu que Linda não queria dizer que as coisas
ficariam feias só para ele.
“Linda, você tem 26 anos. O que você está fazendo com aquele velho
sinistro?”
“Não faça isso. Não aqui. Não agora.”
“Bem, certo, tudo bem. Eu ainda sou o pai da Abigail e, como tal, tenho
direito de palpitar sobre o bem-estar dela e não vejo nem um pouco com
bons olhos isso de ela estar vivendo sob o teto de um homem
mancomunado com o General.”
Linda olhou para ele como se Jesse tivesse enlouquecido de vez.
“Você está de brincadeira, não? Não consigo nem acreditar que você
tenha mesmo dito isso.” Ela deu risada. “Não foi você quem passou um
tempo na cadeia uns meses atrás? E pelo quê? Você estava metido com
drogas. Junto de quem, Jesse?”
Jesse ficou ruborizado.
“Não é a mesma coisa e você sabe disso.” Ela ficou apenas encarando.
“Além disso, eu não sabia que se tratavam de drogas.”
Linda revirou os olhos e soltou uma bufada.
“Jesse, acontece que eu sei que você não é tão idiota assim. Bem, certo,
eu vou te dizer uma coisa. Eu posso me mudar com ela para aquele seu
trailer pequeno. Seria um lugar maravilhoso para criar nossa filha, você não
acha?”
“O fato de Dillard ter assassinado a esposa dele não te incomoda nem
um pouco?”
“Ele não matou a mulher”, respondeu Linda rapidamente, com notável
nervosismo na voz. “Isso não passa de falatório. Dillard me contou o que
aconteceu de verdade. Ela esvaziou a conta dele no banco, pegou o carro
dele e fugiu. Isso foi tudo. Ele ficou abaladíssimo com o que aquela mulher
louca fez com ele.”
“Esse é um lado da história. Que pena que a sra. Deaton não está por aí
para nos contar o lado dela. Que pena que ninguém nunca encontrou nem
um fio de cabelo dela que fosse depois de todos esses anos.”
“Jesse, o que você está tentando fazer?”
“Linda, não fique morando com esse cara. Por favor, não. Volte para a
casa da sua mãe. Vamos dar mais uma chance a nós dois. Por favor.”
“Jesse, estou cansada de esperar que você cresça. Tem que haver muito
mais coisas na minha vida do que ficar vendo você pegar aquela droga de
violão. Eu não quero ficar criando uma criança sozinha enquanto você fica
tocando em algum bar repulsivo. Isso não é vida, não, não é.”
“O que aconteceu com você, Linda? Você costumava acreditar em
mim… Você costumava acreditar nas minha canções.”
“Como vai aquela demo, Jess?”
“Está indo.”
“Você enviou algumas das suas canções? Em algum momento você
recebeu algum retorno daquele DJ de Memphis, aquele tal de sr. Rand, ou
Reed, ou fosse lá qual fosse o nome dele? Pelo que me lembro, ele estava
muito interessado no seu som.”
“Ainda estou trabalhando nisso.”
“Ainda está trabalhando nisso? Jesse, isso foi há mais de dois anos.
Qual é a desculpa agora?”
“Não é desculpa nenhuma. As canções ainda não estão exatamente
prontas. Só isso.”
“Há quantos anos eu venho ouvindo isso? O que você quer dizer é que
você ainda não está exatamente pronto. Porque as canções… são boas. Mas
ninguém nunca vai saber disso se você não deixar que eles as ouçam.”
Jesse ficou com o olhar fixo em suas botas.
“Jesse, nós já falamos disso e estou cansada de me ouvir dizendo as
mesmas coisas. Você não vai a lugar nenhum enquanto tudo o que fizer for
continuar tocando para um punhado de bêbados em bares fuleiros. Se você
quer isso, querido, tem que fazer acontecer. Tem que se arriscar. Olha, Jess,
algumas pessoas vão gostar do que você faz e outras pessoas não vão, as
coisas são assim. Você não pode passar a vida toda se preocupando com
aqueles que não vão gostar da sua música.”
Jesse sentiu que era fácil para Linda dizer isso, pois ela nunca ligara
para o que as outras pessoas pensavam. Era por isso que ela era uma
tremenda de uma dançarina, porque ela conseguia apenas se perder na
batida da música, apenas curtir, sem se importar com quem a estava vendo
nem com o que estariam pensando. Ela nunca fora capaz de entender que
poderia ser diferente para ele, pelo menos enquanto ele estava se
apresentando. Ele não conseguia superar todos aqueles olhares, observando
todos os seus movimentos, não conseguia entrar na zona, naquele lugar
mágico onde a música e ele eram uma coisa só. Então, sim, talvez ela
estivesse certa, talvez ele tivesse mesmo medo de arriscar-se, mas era
possível que ele tivesse aprendido que era melhor tocar bem para um bando
de bêbados em vez de ferrar tudo na frente de pessoas que se importavam
com o que ele estava fazendo.
Linda soltou um longo suspiro.
“Você não vai mandar suas canções a ninguém porque você nunca sente
que elas são boas o bastante, e você não vai tocar na frente de ninguém que
faça alguma diferença porque eles poderiam olhar para você de um jeito
engraçado. Jesse, como você pode esperar que eu acredite em você se nem
você mesmo acredita?”
Jesse apenas ficou fitando-a. Tentou surgir com alguma resposta, algo
que ele não tivesse dito centenas de vezes antes.
“Tudo que sei é que eu amo você, Linda. Eu amo você com tanta força
quanto me é possível amá-la. Agora, vá em frente e olhe nos meus olhos e
me diga que você não me ama. Faça isso agora. Se você conseguir fazer
isso, então vou deixá-la em paz.”
Ela olhou nos olhos dele, abriu a boca e então a fechou, cerrando os
lábios. Seus olhos começaram a encher-se de lágrimas.
“Há uma garotinha ali dentro que precisa de algum tipo de estabilidade
na vida dela. Ela não precisa de uma mãe fazendo turnos duplos na
lavanderia, não precisa de um pai que chega em casa às quatro da manhã
todos os dias. Você consegue entender isso? Você não consegue ver que há
mais a ser levado em conta além de você e eu?” Uma lágrima escorreu do
seu rosto e ela limpou com raiva. “Eu lhe dei todas as chances. Todas… as
malditas… chances! Então você que não venha até aqui dizer que me ama e
agir como se estivesse todo preocupado com o bem-estar da Abigail!”
“Eu vou arrumar um emprego. Um emprego de verdade. Só me diga
que você está disposta a tentar e eu prometo… eu juro que vou largar a
música… eu largo a música imediatamente!”
Ela olhou para ele como se ele a tivesse esfaqueado.
“Largar sua música? Ninguém está querendo que você largue a música!
Você só precisa estabelecer um plano e ter um pouquinho de fé em si
mesmo. Crie colhões, Jesse, e vá atrás disso!”
“Ok, estabelecerei um plano e… hum… criarei colhões. Que diabos,
vou fazer o que quer que for preciso para…”
“Para com isso, Jesse. Só para. É tarde demais. Eu ouvi tudo isso antes.
Tanto eu quanto você sabemos que nada vai mudar. Simplesmente não
tenho como contar com você, Jesse. Ninguém tem como contar com você.
Nem você mesmo. Agora você precisa ir embora. Agorinha mesmo, antes
que o Dillard esteja de volta. Antes que você ferre com isso também. Não
faça…”
“Papai?”, disse uma voz tímida atrás de Linda. “Mamãe, é o papai que
está aí?”
Linda voltou a Jesse um olhar cheio de dor e então abriu mais a porta.
Uma garotinha com longos cabelos encaracolados, trajando um pijama
desbotado de flanela, estava no vestíbulo, espiando porta afora. A menina
viu Jesse e soltou um gritinho estridente.
“Papai!”, gritou ela, e veio correndo até ele. Jesse pegou-a, ergueu-a e
girou-a, então a abraçou, curtindo o esmagar dos bracinhos dela em volta de
seu pescoço. Ela o abraçava como se nunca o quisesse soltar. Ele
pressionou o nariz nos cabelos dela e inspirou fundo. Ela cheirava a Froot
Loops empapado e xampu de bebê, e essa era a coisa mais doce que ele já
havia cheirado na vida.
“Papai”, sussurrou ela ao ouvido dele. “Você trouxe alguma coisa para
mim?”
Ele abriu os olhos e deparou-se com Linda fitando-o. Ela não precisava
dizer uma palavra que fosse; ele conhecia muito bem o olhar dela, que
dizia: “você vai decepcioná-la de novo”.
Jesse colocou Abigail no chão.
“Tinha alguma coisa que você queria? Não consigo lembrar… A última
coisa de que me lembro é de você dizendo que ia doar todos os seus
presentes para a caridade.”
Abigail plantou as mãos nos quadris e torceu a cara como se quisesse
socá-lo. Então seus olhos ficaram brilhantes, como se ela tivesse se
lembrado de algo incrível.
“Oh, papai, eu tenho que lhe mostrar uma coisa.” Ela começou a
afastar-se e então parou. Ela ergueu um minúsculo dedo. “Eu já volto. Então
não vá a lugar nenhum. Ok? Ok?”
“Prometo”, disse ele, e sorriu, mas a sinceridade dela o afligia. Ele
podia ver que ela estava mesmo com medo de que ele pudesse não estar lá
quando ela voltasse. E por que não? Não é como se isso não tivesse
acontecido antes, não?
Linda olhou para as mãos vazias dele.
“Você não tem nada com você? Gastou tudo com bebida, não foi?”
Jesse tentou não parecer ofendido.
“Você só vai ter que esperar para ver. Não vai?”
Abigail voltou correndo, segurando apertado uma boneca.
“Olha, papai! Eu tenho uma! Eu tenho uma boneca Teen Tiger!”
“Oras, de onde veio isso? O Papai Noel trouxe essa boneca para você?”
“Não, foi o Dillard.”
Jesse sentiu como se tivesse levado um soco. Ele fez o melhor para
sorrir enquanto olhava para a boneca de cima abaixo.
“Qual é essa?”
“É a Teresa Tiger. Ela não é legal?”
“Hummm, eu achei que você quisesse a Tina Tiger, não era?”
“Eu queria, mas elas estavam esgotadas lá na farmácia.”
“Bem, eu acho que ela é bem razoável. Quero dizer, se for o melhor que
o velho conseguiu. Posso ver como um velhote fracote como o Dillard não
ia querer pegar o carro e dirigir a vida toda para conseguir aquela boneca
que você realmente queria. Homens idosos como ele… é difícil para eles
ficarem sentados por muito tempo porque eles têm hemorroidas.” Ele
colocou a mão em concha na boca e sussurrou alto. “Ânus comichosos.”
Abigail deu risadinhas. Linda desferiu um olhar amargo para ele e disse:
“Por que você não pergunta a seu papai o que ele trouxe para você?”
Abigail pregou os grandes olhos nele.
“Bem, Abi, docinho. Você sabia que seu papai aqui e o Papai Noel são
realmente bons camaradas?”
“Não sabia.”
“Essa é a mais pura verdade. Bem, de vez em quando nós vamos pescar
juntos. Para falar a verdade, somos tão bons camaradas que ele me
emprestou seu saco mágico. Ele me perguntou se eu conhecia alguma boa
garotinha pra quem eu poderia dar os presentes que ela quisesse. Eu
conheço alguma boa garotinha?”
Abigail ficou radiante e apontou para si mesma.
“Oras, eu quero que você feche os olhos e deseje qualquer brinquedo
que quiser.” Abigail fechou bem os olhos. “Nada de espiar”, disse Jesse,
enquanto voltava para o arbusto e pegava os dois sacos de lixo. Linda olhou
para os sacos com ares de suspeita quando ele os colocou na frente de
Abigail.
“Ok.”
Abigail abriu os olhos, viu os dois sacos e voltou um olhar questionador
a seus pais.
“Vá em frente”, disse Jesse. “Abra-os.”
Abigail colocou sua boneca de lado e puxou e abriu a boca de um dos
sacos. Ela arregalou os olhos.
“Papai?”, sussurrou ela, abrindo ainda mais o saco. Ela só ficou
olhando, como se estivesse com medo de se mover e até mesmo de respirar.
Devagarinho, ela puxou dali uma boneca Teen Tiger, depois mais outra,
então outra, e depois ela soltou um gritinho agudo de perfurar tímpanos. Ela
bateu palmas, deu risada, pulou para cima e para baixo e soltou mais
gritinhos agudos enquanto esvaziava o saco com todos os brinquedos na
varanda.
“Papai!” Abigail jogou-se no pescoço dele. Jesse abraçou a filha e
mostrou a língua para Linda.
Linda não estava sorrindo; ela não parecia nem um pouco feliz. Parecia
que ela queria enfiar o dedo no olho dele.
“Abigail, querida”, disse Linda com tensão na voz. “Você poderia me
fazer um favor e levar tudo isso para dentro? Não queremos que tudo isso
estrague, não é?”
Linda ajoelhou-se e começou a colocar as bonecas de volta dentro do
saco.
“Aqui está, leve-as para dentro. Você pode abrir isso lá dentro, assim
não vai perder nada.”
Abigail, quase dançando de tão animada que estava, arrastou um dos
sacos para dentro e corredor abaixo.
“Num segundinho estarei aí”, disse Linda. “Só preciso trocar umas
palavrinhas com seu pai aqui.”
Jesse não gostou do jeito como Linda disse “palavrinhas”.
Linda colocou o outro saco do lado de dentro da porta e fechou-a. Ela
olhou com ódio para Jesse.
“O que foi que eu fiz agora?”
“Você sabe exatamente o que foi que você fez!”, disse ela, irritada. “De
onde vêm todos esses brinquedos? Eles são roubados?” Ela apontou um
dedo para ele. “Diga-me, Jess, que tipo de pai dá a sua filha brinquedos
roubados de presente de Natal?”
Jesse olhou nos olhos dela.
“Eles não são roubados.” Linda não parecia convencida. “Eles não são
roubados”, repetiu Jesse. “E isso é tudo que você precisa saber. Como você
consegue sempre pensar o pior de mim?!”
“Você está me dizendo que comprou esses brinquedos?” Isso parecia
deixá-la com ainda mais raiva. “Você tinha dinheiro vivo e foi assim que o
gastou? Com todas as coisas de que sua filha precisa e você compra
brinquedos para ela? Jesse…” Ela não terminou a frase, olhou além dele,
com uma expressão aflita no rosto.
Jesse virou-se e viu a viatura do delegado Deaton descendo a estrada.

O PAPAI NOEL estava sentado em cima do penedo, fitando a imensidão


coberta de neve, procurando pelos altos penhascos, em busca do meio mais
fácil de sair dali. Seu traje carmesim estava rasgado, coberto do sangue que
estava secando, mas o sangue não era dele. Um som parecido com o
choramingo de um bebê soou, vindo de trás dele, de entre a pilha de
animais destroçados. Uma das renas ainda estava viva, com a perna
quebrada, a barriga arregaçada, um cordão de entranhas e sangue espalhado
em cima das pedras. O animal começou a balir e a chorar, soando quase
humano em seu sofrimento. O Papai Noel cerrou os dentes.
“A casa de Loki nada traz além de ruína”, disse o Papai Noel, sibilando.
“Krampus, eu lhe dei todas as chances. Tentei mostrar-lhe caridade, tentei
mostrar a você o caminho da redenção, mas eu fui um tolo por permitir que
você vivesse, pois uma vez mais você provou que não há nenhuma graça
entre as serpentes.”
Ele desceu do penedo em um pulo e foi andando até os restos
despedaçados do trenó. Ele jogou algumas ripas para o lado até que
encontrou uma trouxa de lona atada. Ele soltou a corda, desembrulhou a
trouxa de lona, revelando uma espada e uma trombeta feita com um chifre
de carneiro.
“Pela morte do meu irmão, da minha esposa, pela destruição da casa de
Odin, pelo meu aprisionamento em Hel, por todo o roubo e por todos os
engodos, por todo o infortúnio que sua linhagem acarretou, que o último da
linhagem do sangue de Loki seja extinto dessa terra!”
Ele levou a trombeta aos lábios e soprou-a; uma única e poderosa nota.
O som grave e profundo viajou pela terra e pelo ar, foi carregado vale acima
e além, cruzando o mundo. Papai Noel sabia que seus filhos haveriam de
ouvi-lo, onde quer que estivessem, mesmo do outro lado do mundo, eles
haveriam de ouvi-lo.
“Venham, Huginn e Muninn, venham, Geri e Freki, venham grandes
bestas de antiga glória. Venham ajudar-me a encontrar esse diabo. Está na
hora de terminar o que deveria ter sido finalizado quinhentos anos atrás.
Está na hora de enterrar Krampus para todo o sempre!”
A rena moribunda chutava e batia nas rochas com os cascos, tentando
ficar numa posição certa. Papai Noel fez uma careta e pegou a espada,
puxando-a de sua bainha. Não se tratava de nenhuma belezura, mas era uma
espada larga, com uma lâmina feita para matar. Ele foi andando até onde
estava a rena, que parou de lutar, ergueu o olhar para ele com olhos escuros
e molhados e soltou um longo balido. Papai Noel ergueu a espada e desferiu
um golpe com força, separando a cabeça da rena de seu pescoço com um
único e limpo corte.
Papai Noel limpou totalmente o sangue da lâmina e recolocou-a em sua
bainha. Ele atou a trombeta de chifre a seu cinto, amarrou a espada cruzada
em suas costas e partiu, em direção ao sul, em direção àquela cidadezinha
onde havia sido emboscado. Ele sabia que o saco tinha caído em algum
lugar naquele estacionamento de trailers e pretendia encontrá-lo.
“Krampus, meu caro e velho amigo, você vai pagar por isso. Sua morte
é minha e pretendo fazer dela uma morte terrível.”

A VIATURA PAROU ao lado da caminhonete de Jesse. Dillard abriu a porta do


carro e saiu. O delegado era um homem grande, com mais de l,80m de
altura, e, embora estivesse com quase 60 anos, ele ainda parecia capaz de
derrubar uma árvore. Estava usando roupas civis, uma calça jeans e um
casaco de caça bege, e, embora ninguém nunca pudesse fazer com que Jesse
admitisse isso, ele conseguia ver como uma mulher poderia achar o forte
maxilar e a rudeza de Dillard atraentes. Como uma rocha, pensou Jesse. Ele
parece o tipo de homem com quem se pode contar.
“Jesse”, sussurrou Linda, com urgência na voz. “Por favor, não arrume
nenhuma encrenca. Só vá embora. Por favor.”
Jesse não gostou disso. Linda não parecia meramente incomodada, ela
parecia nervosa, ansiosa. Ele nunca tinha visto Linda agindo assim antes.
Dillard travou seus olhos cor de cinza como aço em Jesse e abriu seu
casaco apenas o suficiente para mostrar sua pistola de serviço.
“Exatamente o homem que eu vinha procurando.”
“Ele já estava indo embora”, disse Linda, então falou, baixinho, com
Jesse: “Agora vá. Por favor. Por mim.” Ela empurrou-o para que ele fosse
embora. Jesse desceu os degraus, cruzou a entrada de carros e seguiu
andando até sua caminhonete. Os olhos frios de Dillard acompanharam-no
pelo caminho todo.
“Você se importaria de esperar um segundinho aí, Jesse? Preciso trocar
uma palavrinha com você. Linda, você me faria um favor…? Vai entrando
na frente e dê a nós, homens, um pouquinho de espaço.”
Linda ficou hesitante.
“Vá entrando agora, seja uma boa garota.”
“Dillard, eu só estava esperando que talvez…”
“Linda”, disse Dillard, uma ponta de tensão surgindo em sua voz. “Você
precisa entrar agora mesmo.”
Linda mordeu o lábio, olhou mais uma vez, suplicante, para Jesse e
depois entrou correndo. Jesse perguntava-se o que estaria acontecendo. A
Linda que ele conhecia nunca permitiria que um homem a intimidasse
daquele jeito. Seria essa a mesma Linda com quem ele arregaçara os honky-
tonks? A mesma mulher que ele vira bater com violência em um homem
por colocar as mãos na bunda dela?
Dillard deu a volta na viatura, indo direto até onde Jesse estava, e olhou
para ele de cima abaixo.
“Ouvi dizer que viram uma confusão ontem à noite lá onde você mora.”
Jesse não disse nada.
“Você sabe de algo quanto a isso? Talvez tenha ouvido algo? Visto
algo?”
“Vi sim. Eu vi tudo. O Papai Noel e as renas dele aterrissaram e foram
atacados por seis homens-diabo. Eles voaram para o céu e o Papai Noel
jogou-os para fora do trenó dele.” Jesse disse tudo isso sem sorrir. “Eu acho
que o homem que você procura tem uma longa barba branca.”
Dillard franziu o cenho e esfregou um ponto em sua testa, como se
estivesse ficando com dor de cabeça, então ficou apenas encarando Jesse
por um bom tempo, como se estivesse tentando descobrir quem era ele.
“Jesse, eu conheci sua mãe e seu pai muito bem, nenhum dos dois era
idiota. Como foi que você saiu assim?”
Jesse cruzou os braços e cuspiu na entrada de carros da casa de Dillard.
“Você está me pedindo para fazer isso do jeito difícil?” O tom de voz de
Dillard deixou claro que ele tinha ficado cansado de perder tempo com
Jesse.
“A única coisa que estou pedindo que você faça é que fique longe,
diabos, longe da minha mulher e da minha filha!”
Dillard soltou um longo suspiro, como se fosse um homem lidando com
uma criança.
“Eu acho que você e eu precisamos ter uma conversinha. Sabe, aquele
tipo de conversa de homem para homem, porque não existem motivos para
que isso siga o caminho que está seguindo…”
Ele sacou um maço de cigarros, colocou um na boca e ofereceu um a
Jesse.
Jesse olhou para o cigarro como se fosse veneno.
Dillard acendeu o cigarro, tragou-o a fundo e soltou lentamente a
fumaça.
“Eu entendo que isso não é fácil para você, filho. Eu não ia gostar dessa
situação se estivesse no seu lugar. Nem um pouco. Então eu só vou dizer
isso porque alguém precisa fazer isso. As coisas acabaram entre você e a
Linda. Linda sabe disso e eu creio que você também saiba. Tudo que você
está fazendo é dificultar as coisas para todo mundo, especialmente para a
sua filhinha.”
Jesse ficou enfurecido.
“Vocês dois precisam se divorciar. Precisam oficializar isso. Eu até
mesmo ajudo com a papelada se for preciso. Estou cansado de você fazendo
com que a Linda se sinta mal. Você tem que se comportar como um homem
de verdade e cortar os laços direito, para que todo mundo possa seguir em
frente com suas vidas.”
“Isso não vai acontecer.”
“Sim, isso vai sim acontecer. E vai acontecer logo, porque eu e a Linda
pretendemos nos casar.”
Jesse recuou um passo.
“O quê?”
“Sinto muito, filho. Eu não queria que as coisas acontecessem assim.”
“Não!” Jesse balançou a cabeça. “Não acho que isso vá ser assim. Não
tem como eu deixar que isso aconteça. Nunca!”
“Permita-me deixar as coisas mais simples. Não estou pedindo.
Entendeu? Nós vamos nos casar. Quer dizer, assim que tivermos cuidado de
você. Oras, há várias formas de cuidar de você, e cabe muito bem a você
escolher uma.”
Jesse ergueu um dedo, que tremia.
“Não me encurrale, Dillard. Você não vai querer fazer uma coisa
dessas!”
Dillard deu uma risada e balançou a cabeça.
“Jesse, se você tivesse até mesmo um décimo dos colhões que você
acha que tem, poderia até mesmo valer alguma porcaria que fosse. Filho, o
único motivo pelo qual ainda não tirei você de cena é porque você faz uns
negocinhos para o General. Você sabe muito bem que não seria preciso
muito para colocar você na cadeia. Oras, eu poderia algemar você agorinha
mesmo por qualquer motivo que eu quisesse e você estaria a caminho da
prisão. É isso que você quer?”
“Faça isso e não serei o único a caminho da prisão.”
Os olhos de Dillard apertaram-se, virando meras fendas.
“O que foi que você acabou de dizer?”
“Acho que você sabe muito bem o que eu disse. Tire a única coisa que
importa para um homem e você fica com um homem que não tem nada a
perder. Um homem que pode começar a falar.”
A lateral do rosto de Dillard contorceu-se. Ele deu um passo em direção
a Jesse.
“Você precisa tirar a sujeira dos ouvidos, menino, e prestar atenção. Há
mais de uma maneira de fazer com que você desapareça. E ninguém vai
nem mesmo notar, de uma forma ou de outra, porque não existe uma alma
por aí que vá sentir falta de um lixo como você!”
Jesse cerrou os dentes, forçou-se a se manter firme, forçou-se a
continuar olhando nos olhos de Dillard, mas estava lutando para conter as
lágrimas. Será que Linda realmente tinha concordado em casar-se com o
canalha daquele velho? Ele olhou com ódio para Dillard.
“Eu não acredito nisso. Não acredito que algum dia ela vá concordar em
casar-se com um velho de merda como você.”
Dillard soltou mais um de seus longos suspiros, depois balançou a
cabeça e deu risada.
“Jesse, Jesse, Jesse. Não consigo acreditar que estou me deixando ficar
incomodado com um tolo como você. Eu vivo esquecendo como você é
cabeça dura.” Ele deu uma outra longa tragada em seu cigarro. “Permita-me
lhe dizer algo sobre você mesmo, e vou falar isso da forma mais clara e
simples possível… Você é um perdedor, Jesse. Um perdedor inútil. É por
isso que você mora naquele barraco minúsculo, é por isso que você ainda
dirige essa carroça velha e enferrujada do seu pai… é por isso que Linda
está cheia de você.
“Agora, eu poderia te dizer isso a porra do dia todo, até não aguentar
mais, mas isso não vai significar patavinas, porque nada entra nessa cabeça-
dura sua, a menos que seja à martelada. Então eu vou mostrar isso a você.
Vou provar isso a você de um jeito que até mesmo você consiga entender.”
Dillard foi andando de volta até a frente de sua viatura e sacou sua
pistola do coldre. Jesse ficou tenso, certo de que o homem estava prestes a
atirar nele e matá-lo ali mesmo na garagem, mas ele só soltou a trava de
segurança e colocou a arma em cima do capô do carro. Dillard então se pôs
a descer pela entrada de carros, deixando a arma lá onde a tinha colocado.
Ele apoiou-se na porta da garagem, deu uma tragada em seu cigarro e olhou
para cima, para as árvores, como se estivesse curtindo o dia e nada mais.
Jesse olhou de relance para a arma e depois para Dillard… ele não
estava entendendo aquilo.
“Jesse, sabe o que eu estou prestes a fazer? Hein?” Dillard deu risada.
“Eu vou dizer a você. Logo depois de terminar de fumar isso daqui, vou
entrar ali naquela bela e grande casa minha, vou levar aquela sua bela
mulher lá para cima e depois, e depois… bem, eu vou meter a minha pica
grande e dura na boquinha doce dela.”
“O quê?” Jesse ficou ofegante.
“Isso mesmo. Vou fazer ela salivar em cima de meu pau inteiro. Vou dar
um tapa na bunda dela e fazer ela latir e chorar. Agora, se você estiver
inclinado a me impedir, tudo o que tem que fazer é pegar aquela arma bem
ali e atirar em mim. É simples assim.”
Jesse olhou para ele, apertando os olhos, com as mãos cerradas.
“O quê? Que porra há de errado com você? Vá se foder!”
“Isso é tudo que você tem? Filho, estou prestes a entrar ali e fazer a sua
mulher se engasgar na minha vara. Gozar na cara dela e encher ela de porra.
E tudo que você consegue fazer é me xingar? Se um homem fizesse isso
com minha esposa… se dissesse isso na minha cara assim… eu atiraria nele
e o mataria sem pensar. Porque isso é o que um homem de verdade faz.”
Jesse olhou para a arma.
Dillard abriu um sorriso largo.
“Você não vai fazer isso, Jesse. Eu sei que não vai. Se existe uma coisa
em que sou bom é em medir um homem. Trinta anos na polícia faz isso com
a gente. E eu desde a primeiríssima vez que pus os olhos em você eu já
sabia que você era um daqueles zé ninguéns que não fazem diferença
nenhuma no mundo. Um perdedor. E agora, Jesse… você também sabe
disso.”
Jesse olhou com ódio para Dillard, depois para a arma, com o coração
martelando no peito. Ele deu um passo à frente, depois outro, até que estava
bem ao lado da arma. Tudo que ele tinha que fazer era pegá-la e atirar. Não
havia nada que Dillard pudesse fazer para impedi-lo.
“Vamos lá, Jesse. Eu não tenho o dia todo.”
E o pior era que Dillard parecia tão confiante, tão completamente à
vontade… aquele não era um homem que estava apostando sua vida, e sim
um homem plenamente seguro de si.
A respiração de Jesse ficou acelerada, sua mão começou a tremer. Faça
isso. Atire nele. Mas Jesse não fez isso e, bem ali, ele viu exatamente o que
Dillard estava lhe mostrando. Eu sou mesmo um perdedor. Não tenho
coragem de atirar em mim mesmo. Não tenho coragem de atirar no homem
que está trepando com a minha esposa. Não tenho coragem de enviar
minha música para um bendito DJ.
Jesse soltou o ar longamente, recuou um passo e só ficou lá, com o
olhar fixo naquela arma.
Dillard jogou a bituca de seu cigarro na neve, foi andando até o capô da
viatura e pegou sua arma de volta, enfiando-a novamente no coldre.
“Acredite ou não, filho, eu não estou tentando ser um cuzão. Estou
tentando te fazer um favor, salvar anos de sua vida. Um homem precisa
conhecer a si mesmo. E agora que você consegue ver exatamente que tipo
de homem você realmente é, talvez pare de se esforçar tanto tentando ser
uma coisa que você não é. Vá para casa, Jesse. Vá para casa, para aquela
merdinha de trailer onde você mora e encha a cara… depois faça um favor a
todos nós e suma.”
Jesse mal o ouviu; ele só continuou com o olhar fixo no capô do carro
de Dillard.
“Ok, Jesse. Eu cansei de você. Cansei de conversar, cansei de perder
meu tempo. Vou entrar e quando eu olhar daquela janela daqui a pouco é
melhor que você e aquela sua carroça velha estejam longe daqui. E só para
que fiquemos claros, para que não exista nem uma pontinha de confusão
que seja entre nós: se algum dia você colocar os pés na minha propriedade
de novo, se algum dia você fizer isso… vou quebrar todos os seus dedos.
Estou falando sério. Você nunca mais vai tocar aquele seu violão de novo.”
Dillard virou-se e saiu andando, deixando Jesse ainda com o olhar fixo
no capô do carro dele.
Jesse estacionou na frente de seu trailer, desligou o motor e, mais uma vez,
encontrou-se confrontado pela porta da frente de sua moradia.
“A merdinha do meu trailer”, disse ele, com a voz carregada de
escárnio.
Jesse mal se lembrava da viagem de volta; ele reprisara em sua
imaginação o incidente com Dillard, vez após outra, durante todo o
caminho de volta para casa. Só que, a cada vez em que chegava na parte em
que Dillard o desafiava a pegar aquela arma, ele realmente a pegava, ele
realmente atirava em Dillard, esvaziando o pente bem na cara daquele filho
da puta!
Jesse deu uma espiada na garrafa de uísque que ainda estava jogada na
neve e ouviu a voz de Dillard em sua cabeça: “Vá para casa… encha a cara
e, depois, faça um favor a todos nós e suma.”
“Não. Isso não vai acontecer.” Ele olhou de relance para o saco do Papai
Noel. Porque esse perdedor aqui tem um plano. Um plano danado de bom!
Um plano que vai consertar tudo. Ele puxou o saco do Papai Noel para o
assento a seu lado e deu um tapinha nele.
“Está na hora de começar a trabalhar.”
Jesse saiu da caminhonete, desceu a estrada em direção à fileira de
caixas de correio, deu uma olhada nas caixas de jornais até que achou uma
que ainda tinha um jornal dentro e o pegou. Ele tirou o saco da picape no
caminho de volta e entrou no trailer.
Então, ele soltou o saco e o jornal no chão, entrou na cozinha e abriu a
geladeira em busca de alguma coisa para comer. Encontrou apenas duas
fatias secas de pizza envolvidas em plástico filme e enrolou-as, fazendo
uma espécie de burrito de pizza. Ele sentou-se no chão, comendo enquanto
procurava alguma coisa no jornal. Puxou dali a parte de propaganda do
Walmart, jogou o jornal de lado e folheou-a até achar a seção de
brinquedos. Começou a virar as páginas, circulando fotos aqui e ali.
“Sim. Hummm… não. Hummm… talvez.” Ele bateu nos dentes com a
caneta. “Com certeza. Isso com certeza daria certo.” Ele assentiu. “Tem que
dar certo.”
Ele puxou o saco carmesim para perto de si.
“Ok, baby. Faça isso para mim.” Ele fechou bem os olhos, concentrou-
se, desejou e rezou com o máximo fervor quanto lhe era possível, depois
enfiou a mão no saco. Sua mão deparou-se com uma caixa. Parecia do
tamanho certo, do peso certo. “Vamos lá.” Ele puxou a caixa para fora do
saco. Ali estava, ainda na caixa, um Playstation novinho em folha.
“Sim!”, gritou ele. “Sim! Vamos ver quem é o verdadeiro perdedor
agora!”

UMA HORA DEPOIS, Jesse dirigia-se de volta à Rota 3 com quatro sacos pretos
de lixo contendo consoles de videogame e videogames portáteis empilhados
na traseira de sua caminhonete. Ele tinha colocado o saco do Papai Noel de
volta no chão do lado do passageiro. O saco era seu bilhete de ouro e ele
pretendia mantê-lo por perto.
Ele entrou em um ferro-velho na periferia da cidade e tentou evitar os
buracos no chão enquanto dirigia por alguns anexos de edifícios imundos e
um punhado de semitrailers detonados. Ele chegou a um muro de concreto
com arame farpado e caveiras de cervos, bem nos fundos da propriedade, e,
depois disso, parou ao chegar a um portão de metal com vidro quebrado em
cima. Jesse buzinou duas vezes e acenou para a câmera de segurança que
ficava em cima do portão.
Um instante depois, ele ouviu um clique, e o portão foi aberto
ruidosamente ao longo de seu trilho enferrujado, revelando uma curta viela
de baias de garagem. A porta alta da baia do meio estava aberta pela metade
e Jesse podia ver cinco silhuetas inclinando-se sobre um motor a diesel. Ele
estacionou, desligou a ignição e ouviu seu motor parar ruidosamente. Ele
saiu do veículo e pegou um dos sacos de lixo, depois passou por debaixo da
calha e ficou esperando.
A baia era parte oficina e parte todo o resto. Ferramentas mecânicas
cheias de graxa, ferramentas pneumáticas e diversas ferramentas manuais
estavam espalhadas por todas as superfícies disponíveis. Um cortador de
grama dirigível, desmontado, estava enfiado em um canto, ao lado de uma
geladeira verde-abacate, cuja porta estava quase preta, tantas eram as
marcas de mão cheias de sujeira. Latas de aerossol e suprimentos de
taxidermia estavam alinhados em diversas das prateleiras de trás, enquanto,
acima disso tudo, pendia bem mais de uma dúzia de cabeças de animais
secas e empalhadas, inclusive um cervo com chifre de doze pontas e um
urso preto de um olho só que diziam ter matado três dos cães de caça do
General.
Nenhum dos homens se deu ao trabalho de olhar para cima, então Jesse
acabou ficando lá, parado, em pé, segurando o saco, alternando,
desajeitado, o peso do corpo entre um pé e outro. Jesse podia ver o General
mexendo no eixo de comando de válvulas de um veículo. Por fim, um
homem alto, loiro e de constituição robusta, vestindo um macacão
desbotado e manchado de graxa, ergueu o olhar, fez cara de poucos amigos
e depois largou sua chave inglesa. Ele limpou as mãos em um trapo
ensebado e foi andando até Jesse.
Chet era o sobrinho do General, tinha frequentado a mesma escola que
Jesse e os dois tinham saído juntos uma vez. Hoje em dia, Chet era o
contato de Jesse — ele nunca teve que, na verdade, falar diretamente com o
General antes. Era assim que o General lidava com as coisas, pelo menos as
coisas pequenas, e estava claro que Jesse era uma dessas coisas.
Chet coçou seu bigode espesso com pontas recurvadas.
“Ora, ora, nós estávamos agorinha mesmo falando em você, Jesse.”
Jesse apertou os olhos, perguntando-se o que ele queria dizer com
aquilo.
“Que legal que você veio até aqui.” Chet estava com um grande sorriso
no rosto, que a avó de Jesse costumava chamar de sorriso de crocodilo.
“Assim você me poupa o trabalho de ir atrás de você.”
“É, bem, aqui estou eu.”
“Espero que você não tenha planos para esta noite. Porque se tiver, eles
acabaram de mudar.”
Jesse enrijeceu o maxilar.
“Tenho uma parada pra você. A viagem é curta… só até Charleston.”
“Não posso.”
Chet ergueu uma sobrancelha.
“Não pode?”
“Nem. Parei com isso.”
Chet empurrou seu boné para trás.
“Não estou gostando disso, Jesse. Oras, você tem um pessoal que está
contando com você.”
“Estou em uma nova linha de negócios agora.”
“Ah, é? E exatamente que tipo de negócios seriam esses?”
Jesse colocou o saco de lixo no chão.
“O que é isso?”
“Uma coisa que o Papai Noel deixou para mim.”
Chet encarou Jesse. “Não tenho tempo para suas baboseiras sem
sentido.”
“Tenho uma proposta de negócios para o General.”
“Fala aí, cara.”
“Você não é o General.”
Chet apertou os olhos em direção a ele.
“Se você tem algo a dizer, então é melhor que diga para mim.”
“Eu estou aqui pra ver o General.”
Chet agarrou o colarinho do casaco de Jesse e o suspendeu, deixando-o
nas pontas dos pés.
“Chet”, disse uma voz grave. “Aguenta aí.”
“Tome cuidado, rapaz”, grunhiu Chet, dando um empurrãozinho em
Jesse.
O General veio na direção deles, seguido dos outros três homens, todos
eles Boggs, sobrinhos e primos de um jeito ou de outro. Eles olharam para
Jesse de cima abaixo.
O General estava com a mesma roupa que vestia em todas as vezes que
Jesse o tinha visto: um chapéu de caubói de camurça sobre a careca, um
casaco também de camurça, com franjas, do tipo que Daniel Boone usaria, e
botas de pele de jacaré. Ele tinha uma barba por fazer, grisalha e meio
crespa, em seu rosto bruto com inflamações cutâneas. Jesse achava que o
homem devia estar chegando aos 60 anos. Mesmo assim, ele ainda parecia
suficientemente capaz de se defender contra qualquer um que chegasse ali.
Seu nome verdadeiro era Sampson Ulysses Boggs. Seus pais lhe deram um
nome comprido com esperança de que ele se tornasse grande como seu
nome, mas, visto que o General tinha uma cabeça de altura a menos do que
a maioria dos homens, Jesse sentia que ele estava tentando compensar por
isso de outras maneiras. Ele tinha assumido a reputação formada pelos
Boggs lá na época da Lei Seca, contrabandeando bebida alcoólica, e usava
isso para abrir caminho, por meio de violência e intimidação, em todas as
atividades ilegais lucrativas no Condado de Boone e em seus arredores.
“Vá em frente, então, filho”, disse o General. “Diga o que você tem a
dizer.”
“Bem”, falou Jesse. “Eu tenho uma proposta em que talvez você possa
estar interessado.”
“Tem, é?”
“Tenho sim.”
Jesse puxou e abriu o saco, de modo que todos pudessem ver as caixas
de consoles de videogames.
“Eu não jogo videogames”, disse o General.
“Eu tenho uma caminhonete cheia deles e posso conseguir mais.”
“Pode conseguir mais agora?”
“Sim, senhor. E eu estava pensando que o senhor e eu deveríamos fazer
uma parceria. Eu tenho um fornecimento regular deles e seria bom ter uma
ajuda na distribuição.” Jesse percebeu que estava falando rápido demais e
forçou-se a falar mais devagar. “Estou disposto a fazer a divisão meio a
meio.”
O General abriu um largo sorriso para isso, mas Jesse não gostou dos
ares daquele sorriso.
“E como é que você conseguiu essas coisas?”, perguntou-lhe o General.
“Bem…” Jesse ficou hesitante. “Bem, senhor… na verdade, eu não
tenho autorização para dizer…”
“Não tem, é?”
“Não, senhor. Bem, poderíamos apenas dizer que o Papai Noel os
trouxe para mim.”
Jesse deu uma fraca risadinha, mas ninguém mais abriu nem um sorriso,
por menor que fosse. O velho homem ficou olhando para ele. Ninguém se
mexeu nem falou nada. Jesse não estava gostando do clima, não estava
curtindo o jeito como as coisas estavam saindo. Alguma coisa não estava
certa e, de repente, ele queria ir embora dali.
O General assentiu. Jesse sabia que aquilo era sinal de encrenca, mas,
antes que pudesse fazer alguma coisa, Chet segurou seu braço. Jesse tentou
torcer o braço e soltar-se, mas todos eles estavam em cima dele.
Os homens arrastaram-no até a fileira de ferramentas da oficina,
forçaram a mão direita dele em uma furadeira, seguraram a mão dele em
cima da placa, bem onde a ponta da furadeira ia passar assim que
começasse a girar. Chet apanhou um rolo de fita adesiva e começou a
enrolar o braço e a mão de Jesse com a fita, dando várias voltas, prendendo
a mão dele na prensa. Jesse lutou para arrancar e soltar sua mão dali, mas
ela estava bem atada. Os homens o empurraram para que ele ficasse de
joelhos e rapidamente o seguraram, mantendo-o assim.
O General foi andando até ele.
“Eu recebi um telefonema do Dillard. Você tem alguma ideia do que
poderia se tratar essa ligação?”
O sangue de Jesse corria frio em suas veias.
“Ele me disse que você estava com um papo de doido, como se fosse
virar um alcaguete. Começar a delatar a gente se não gostasse do jeito como
a gente estava tratando você.”
Jesse balançou a cabeça em negativa.
“Não. Não é isso que…”
O General deu-lhe um chute na barriga.
“Cala a boca!”
Jesse tossiu, lutando para respirar. Chet rasgou mais uma tira de fita e
passou-a pelos lábios de Jesse.
O gosto de cola encheu a boca de Jesse e suas narinas ficaram dilatadas
enquanto ele lutava para fazer entrar ar suficiente em seus pulmões.
“Esse tipo de conversinha me deixa nervoso”, continuou o General.
“Acredito que eu e você, nós temos umas coisinhas a acertar. Vamos
começar com aquilo que você tem a perder. Ouvi dizer que você é muito
apegado àquele seu violão. Não foi isso que você falou, Chet?”
“Foi”, disse Chet.
“Ora, posso apostar que ele prefere dedilhar aquele violão do que uma
xoxota gostosinha. Ouvi dizer que o grande sonho dele era ser famoso lá em
Memphis.”
“Bem, isso vai ficar difícil com uns buracos grandes na mão.”
O General assentiu e Chet apertou o botão da furadeira; um chiado
estridente encheu o ar da baia. Um meio sorriso presunçoso repuxou-se até
a bochecha enquanto Chet abaixava devagar a furadeira, até que a ponta que
girava desse uma mordidinha na pele de Jesse.
Jesse cerrou os dentes, lutando para não gritar. Chet deixou que a
furadeira afundasse um pouco mais de meio centímetro na carne de Jesse.
“Puta que pariu!”, gritou Jesse, mesmo com a fita na boca.
Chet gargalhou e puxou a furadeira de volta para cima, deixando uma
ponta de sangue em cima da mão de Jesse.
“Não falei para você parar”, disse o General.
Não havia então mais humor no rosto de Chet, que olhou para o
General, confuso.
“Mas…”
“Faça.”
“O quê? Você quer dizer… atravessar a mão dele com isso?”
“Que diabos, sim, eu quis dizer ‘atravesse a mão dele com isso’!”
Chet continuou encarando o General.
“Você ficou surdo? Atravessa a mão dele com a porra da furadeira!”
“Eu achei que só estávamos querendo dar um susto no cara.”
“Ele não parece assustado o bastante para mim. Agora vá em frente. Eu
quero dar a ele alguma coisa para que possa se lembrar com quem está
fodendo.”
Chet ainda não se mexeu. O General contorceu o rosto, que ficou
parecendo uma esponja de lavar louça; ele foi andando até Chet e Jesse e
enfiou um dedo gordo no peito de Chet.
“Você precisa aprender a fazer o que lhe mandam fazer, menino.”
Ele enxotou Chet para o lado, quase o derrubando no chão. O General
segurou a furadeira e inclinou-se para cima de Jesse.
“Da próxima vez que você sentir vontade de bater com a língua nos
dentes, vai querer se lembrar disso.”
Lentamente, o General afundou a furadeira na mão de Jesse, enfiando-a
fundo na carne dele.
Jesse sentiu uma dor excruciante subindo por seu braço. Parecia que a
palma de sua mão estava pegando fogo. Ele gritou e engasgou-se com a fita
que cobria sua boca, lágrimas saindo dos cantos dos olhos, que ele apertava
por causa da dor. Chet e os outros homens encolheram-se quando a broca
atravessou por completo a mão de Jesse.
O General nem mesmo pestanejou, só ficou mexendo a cabeça daquele
jeito que se faz quando se está curtindo uma canção favorita, deixando que
a furadeira girasse na mão de Jesse. Pedacinhos de fita, carne e sangue
estavam espalhados pelo rosto de Jesse, cujo nariz estava tomado pelo
cheiro de carne tostada.
O General ergueu a furadeira e desligou-a. Os homens soltaram Jesse, e
ele caiu junto à bancada da furadeira, tremendo.
O General pegou seu lenço de mão, limpou uma mancha de sangue de
sua bochecha e depois se ajoelhou ao lado de Jesse.
“Escuta bem, filho, pois você só vai ouvir isso uma vez. Se eu algum
dia ficar sabendo que você estava dando com a língua nos dentes… não vai
ter mais brincadeira. E se algum dia você me trair… de qualquer forma que
seja, eu vou colocar você e aquela sua filhinha bonita dentro de um caixão,
juntos, e enterrar vocês dois vivos. Eu juro que vou fazer isso, Jesse. Você
só pensa em como seria isso da próxima vez que sentir vontade de se
rebelar. Está entendendo o que estou dizendo?”
Jesse assentiu.
“Então estamos bem”, disse o General, e levantou-se. Ele olhou para
Chet, de cima abaixo, não parecendo nem um pouco contente com ele. “Nós
todos já acertamos as contas com Jesse, agora é só deixar o cara quieto.”
Os homens assentiram e o General cruzou o recinto em direção à
escadaria envolta em luzes piscantes de Natal. Ele entrou em um escritório
no segundo andar e fechou a porta. No instante em que o General não podia
mais vê-lo, Chet ergueu para ele o dedo do meio.
“Melhor você tomar cuidado com isso, cara”, disse o homem esguio e
musculoso parado ao lado esquerdo de Chet. Lynyrd Boggs usava um
chapéu de caubói manchado de suor com uma pena de águia enfiada na
faixa. O pai dele era um grande fã da banda Lynyrd Skynyrd, de modo que
Lynyrd teve a boa sorte de ter seu nome escrito errado em tributo à banda.
“Porra”, disse Chet. “Aquele filho da puta precisa relaxar, cacete! Só
porque as coisas estão uma merda, isso não quer dizer que ele tem que tratar
a gente daquele jeito!”
“Ele está sendo afetado pela pressão, só isso. Eu me lembro de não fazer
muito tempo que o General era praticamente o único com quem dava pra
arrumar uns baratos por aqui. Agora todos os cabeções viciados em speed
estão preparando suas próprias porras nas merdinhas dos porões deles. O
General está perdendo terreno e, caso você não tenha notado, ele não está
recebendo isso lá muito bem.”
“E eu também não gosto nadinha disso de ele falar em machucar
crianças. Não é assim que nós fazemos as coisas por aqui. Nem um pouco.”
“As regras estão mudando. Esses viciados em metanfetamina, eles não
têm nenhum respeito pelos modos antigos.”
“Malditos viciados em metanfetamina!”, disse Chet, cuspindo.
“Metanfetamina de merda. Fodendo e arruinando com tudo.”
“Bem, isso não é tudo. Ouvi dizer que nós temos uns concorrentes.”
“Do que você está falando?”
“Uns meninos de Charleston andaram traficando por aqui.”
“Em Goodhope? Você tem que estar de brincadeira!”
“Bem que eu gostaria. Ouvi, sem querer, o General conversando com o
Dillard. Ao que parece, Dillard pegou alguns deles.”
“Dillard? Sério? Aposto que eles não se saíram bem dessa.”
“Pode apostar mesmo.”
“Acha que eles acabaram indo parar no fundo da criação de bagres do
Ned?”
Lynyrd deu de ombros. “Digamos que você não vai me ver comendo
nada que tenha saído daquele lago.”
“Puta merda, aquele Dillard é um filho da mãe assustador.”
Jesse arrancou a fita adesiva de sua boca e soltou um suspiro. Ele puxou
e rasgou a fita embolada em volta do braço, para soltar sua mão. Chet foi
andando até ele.
“Vou dar um conselho a você, Jesse. Só deixa o Dillard quieto. Você
pode achar que entende aquele filho da mãe, mas não faz a mínima ideia do
que ele é capaz.”
“Isso não é da sua conta.”
“Não, acho que não é mesmo. Mas eu vi em primeira mão o que ele fez
com camaradas que entraram no caminho dele. As coisas com ele não são
brincadeira. Ele vai dar um sumiço em você.”
Jesse ignorou-o e continuou rasgando a fita.
“Você não está acreditando em mim? Pergunte-se uma coisa: algum dia
alguém achou um fio de cabelo que fosse da mulher dele? Alguns
camaradas acreditam que ela fugiu. Bem, eu sei que não foi assim que as
coisas aconteceram.”
“Como é que você sabe disso?”, perguntou Lynyrd.
“Não vou dizer.”
“Você não sabe de porra nenhuma.”
Chet ficou hesitante, parecia estar pesando alguma coisa.
“Eu vi uma foto do corpo morto dela.”
O sangue de Jesse ficou frio em suas veias; ele parou de puxar a fita e
ergueu o olhar para Chet, que estava olhando nos olhos de Lynyrd; ele
parecia sério, tão sério quanto um homem é capaz de ficar.
“Uma foto?”, perguntou-lhe Lynyrd. “Você está me dizendo que viu
uma foto da mulher do Dillard e que ela estava morta?”
“Eu preferia não ter visto.”
“Onde foi que você viu uma foto dela?”
“Foi o Dillard que me mostrou.”
“Papo furado.”
“É, ele me mostrou sim.”
“Ora, por que ele faria uma coisa dessas?”
“Eu vou lá saber, porra. Eu ainda não saquei qual é a daquele homem.
Foi há uns meses, quando eu estava ajudando o Dillard a levar aquele
freezer velho para dentro da garagem dele. Quando tínhamos terminado, ele
me perguntou se eu gostaria de tomar uma cerveja com ele. É claro que eu
queria. Bem, uma cerveja virou duas, depois quatro, e eu não me lembro
direito do que aconteceu depois disso. Eu sei que catamos duas cadeiras de
jardim e enchemos a cara bem ali na garagem dele. Sei que depois de um
tempinho, ele começou a falar sobre a esposa dele, sobre o quanto ele sentia
falta dela. Ele foi ficando todo emocionado, mas a essa altura eu estava
bebaço, então só fui na dele. Ele sacou então uma caixa de costura da
prateleira, uma caixa toda chique, pintada com belas rosas vermelhas. E
disse que era da Ellen, abriu a caixa e lá estava uma foto dela no casamento
deles. Ellen era uma mulher bem bonita quando era nova, devo acrescentar.
Ele ficou com os olhos grudados na foto, como se quisesse entrar nela. Eu
sempre tinha ouvido falar que a mulher tinha limpado a conta bancária dele,
então murmurei alguma coisa sobre o quanto eu lamentava que a mulher
dele tivesse feito algo errado com ele. Então ele disse: ‘Ela também
lamenta’. E alguma coisa no tom dele me fez prestar atenção. Ele tirou a
parte de trás do porta-retratos e sacou dali uma foto instantânea. Ele ficou
olhando para a imagem por um bom tempo, com o rosto frio como pedra, e
depois a mostrou a mim. Era ela, a esposa dele. Ela estava morta. Sem
dúvida quanto a isso, e parecia que a morte dela havia sido feia. Ele me
disse: ‘Nunca uma mulher se lamentou mais sobre alguma coisa do que
ela.’ E o jeito como ele disse isso… oras, me deixou até com os ossos
congelados.”
“Caramba”, disse Lynyrd. “Que merda sinistra essa daí.”
“É, você está certo quanto a isso.” Chet olhou para Jesse. “E é por isso
que, se eu fosse você, Jesse, cacete, eu ficaria longe daquele cara. Nada de
bom resulta de mexer com ele… para ninguém não.”
O sangue latejava nos ouvidos de Jesse. Ele tinha ouvido os rumores,
mas ouvir Chet contar sobre o que ele vira em primeira mão fez cair a ficha.
Um calafrio foi subindo pela espinha de Jesse: sua filhinha estava morando
com um homem que era capaz de matar a sangue-frio. Do que mais ele seria
capaz? Jesse puxou o último pedaço da fita e puxou a mão dali,
conseguindo soltá-la por fim. Havia um buraco vermelho-escuro do
diâmetro aproximado de um lápis entre os ossos de seus dedos indicador e
médio, enchendo-se de sangue. Ele abriu e fechou a mão. Doía, mas os
dedos mexiam-se como deveriam.
“Parece que você deu sorte”, disse Chet. “Não pegou nos ossos. Mas eu
acho que você vai ter que se masturbar com a mão esquerda por um
tempinho.” Ele soltou uma bufada. “Vai saber… talvez você ainda consiga
tocar aquele seu violão.”
Pela primeira vez na vida, Jesse não se importava se poderia ou não
tocar violão, a única coisa que ele conseguia pensar era em Abigail sozinha
naquela casa com Dillard. Jesse forçou-se a ficar de pé, saiu aos tropeços do
recinto e foi até sua caminhonete. Ele puxou a porta com força, abriu-a e
entrou no veículo.
“Ei, Jesse.” Chet foi andando até a caminhonete, carregando o saco
cheio dos consoles de videogame. “Você esqueceu uma coisa.” Chet puxou
uma caixa de dentro do saco. “Você se importa se eu ficar com um deles?
Meu sobrinho vem me implorando por um desses o ano inteiro.”
Jesse ignorou-o, tentando caçar as chaves de dentro de seu bolso com a
mão esquerda.
“Jesse, só para que uma coisa fique clara. Ninguém lhe safou de fazer
aquela coleta essa noite.”
Jesse olhou com ódio para ele.
“Na escola… dando a volta pelos fundos, como de costume. Digamos,
às sete horas. Não nos deixe esperando. Ah, e faça um favor a si mesmo…
Dê ouvidos ao que o General estava dizendo e não faça nada idiota.”
Jesse olhou com desprezo para ele.
“Olha, seu merdinha, eu não estou falando isso por você. Estou falando
isso porque acontece que eu gosto da Linda e da Abigail e, com certeza, eu
odiaria se algo de ruim acontecesse a uma das duas. Falando sério. Que
diabos, sabe? Houve um tempo em que eu não teria ligado muito para o
falatório selvagem do General também, mas Jesse, depois do que vi
ultimamente, eu não forçaria a barra para cima do cara. Se ele ameaça
colocar sua filhinha dentro de um caixão, é melhor levar o homem a sério.
Encara a real, ele tem total controle sobre você. Então apenas nos poupa um
pouco de encrenca e fica de boa. Certo?”
Jesse não respondeu a ele, nem mesmo assentiu. Ele virou a ignição,
ignorando a dor pungente na mão enquanto colocava a caminhonete para
andar e saía de ré da viela, deixando Chet lá, parado, em pé, segurando o
saco de brinquedos.
Papai Noel olhou para trás, de relance, por cima do ombro. Os dois
meninos em suas bicicletas BMX ainda o estavam seguindo. Papai Noel
tinha encontrado um fio de transmissão de energia elétrica no fim da manhã
e seguira a trilha em direção ao oeste, o que o levara até um trailer; os dois
meninos estavam do lado de fora do trailer, pulando em um trampolim,
quando ele passou marchando por ali. Eles ficaram encarando o Papai Noel
até que não mais pudessem vê-lo. Agora, alguns quilômetros depois, ali
estavam, espiando em tomo de um arbusto denso, observando todos os
movimentos dele.
Eles vão precisar de um pouquinho de desencorajamento. Afinal de
contas, não seria bom ter crianças olhando enquanto o bom e velho Papai
Noel estraçalha Krampus e suas abominações.
Um guincho veio de longe aos ouvidos do Papai Noel, um som muito
bem-vindo. Ele procurou por alguma coisa no céu e deparou-se apenas com
nuvens pesadas. Ele sacou a trombeta de seu cinto e deu um curto sopro.
Um segundo depois, foi recompensado com um outro grito e a visão de
duas formas escuras voando nas nuvens, vindo em sua direção.
Eles aterrissaram em cima do galho retorcido de um carvalho caído, os
dois corvos, Huginn e Muninn. Os magníficos pássaros eram tão grandes
quanto qualquer águia, com suas penas pretas, lustrosas e brilhantes. Eles
deram uma espiada no Papai Noel com olhos curiosos e joviais.
“Vocês se lembram do Krampus? Sim, eu sei que se lembram dele.
Parece que ele não morreu nas trevas como deveria. De alguma forma, ele
saiu rastejando debaixo de sua rocha para causar danos, e danos de fato ele
causou. Agora, meu saco de Natal está perdido… está em algum lugar por
aí na cidade vizinha.”
Os dois grandes pássaros inclinaram as cabeças, questionando-se.
“Procurem pelas bestas, pelas abominações dele, os Belsnickels, pois
eles também haverão de estar à caça. Quando vocês os encontrarem, fiquem
junto deles como um presságio sombrio, guiem-me até eles com seus
gritos… pois minha espada está sedenta pelo sangue deles.”
Os corvos guincharam e assentiram, gesticulando que sim com as
cabeças, como qualquer pessoa.
“Vão, meus bichinhos. Encontrem-nos e mostrem-me o caminho até
eles.”
Os corvos gigantescos deram um pulo no ar, e ao se erguerem, suas
grandiosas asas levantaram folhas congeladas enquanto eles desciam a
colina, voando para longe. O Papai Noel ouviu um tinido, virou-se e
descobriu que os meninos haviam se aventurado a se aproximarem mais
dele, muito mais do que seria sábio fazer, sentados em suas bicicletas e
encarando-o. Papai Noel foi andando até eles. O menino mais novo parecia
estar prestes a fugir; ele olhou de relance, ansioso, para o menino mais
velho. O menino mais novo, um adolescente, com seus 13 ou 14 anos,
também parecia indeciso, mas se manteve firme no lugar.
“Pra que é que você está usando essa roupa?”, quis saber o adolescente.
“É”, comentou o menino mais novo. “Por que você está vestido com a
roupa do Papai Noel?”
“Porque eu sou o Papai Noel.”
O menino mais velho soltou uma bufada.
“Uma ova que você é o Papai Noel.”
Depois foi a vez de o menino mais novo também dar uma bufada. O
Papai Noel lembrou-se do motivo pelo qual ele odiava adolescentes: eles
faziam muito esforço para não acreditarem em nada. Faziam o possível para
estragar a magia de todos.
“Vão para casa.”
O adolescente piscou.
“Ei, isso daqui é um país livre. Você não pode nos dar ordens.”
“Essa bicicleta ai é nova?”
“Certamente que é”, disse o menino com um orgulho óbvio. “Ganhei de
presente de Natal. Iradíssima!”
“Você poderia fazer o favor de sair de cima dela?”
“O quê? Hein? Pra quê?”
“Para que você não esteja em cima dela quando eu a jogar da colina
abaixo.”
O Papai Noel assentiu em direção ao declive íngreme em um dos lados
da trilha que terminava lá embaixo em uma ravina de rochas quebradas.
“Está me ameaçando, senhor?”
O Papai Noel pegou a bicicleta do adolescente pelos guidões, enfiou a
bota nos raios da roda frontal e pisou, fazendo força para baixo, partindo
assim um dos raios da roda. O aro da roda da frente da bicicleta caiu.
“Ei!”, gritou o menino. “Ei, você não pode fazer isso!”
Ele levantou-se e, quando fez isso, o Papai Noel apanhou a bicicleta.
Ele ergueu-a sobre a cabeça e jogou-a colina abaixo. A bicicleta tombou,
pulou no ar e caiu com tudo sobre as rochas.
Os dois meninos ficaram ali, parados, boquiabertos, com os olhares
fixos na bicicleta lá embaixo.
“Creio que seria uma péssimo ideia para vocês dois se continuarem me
seguindo. O que acham?”
O Papai Noel não esperou por uma resposta, ele tinha que tratar de
assuntos urgentes. Virou-se e seguiu rapidamente pela trilha.

JESSE DESCEU a todo vapor com sua caminhonete pela rodovia em direção à
casa de Dillard, com o cenho franzido, o maxilar cerrado. Sem tirar os olhos
da estrada, ele inclinou-se para a frente, abriu o porta-luvas e tirou sua
pistola dali, colocando-a no assento a seu lado.
“Vou pegar a minha filha”, disse ele, em voz alta, como se estivesse
mesmo falando sério. “Vou atirar em todo mundo que ficar no meu
caminho.”
Mais ou menos um quilômetro e meio depois, ele estacionou no posto
de combustível Gas’n’Go.
“Que merda!”
Jesse pegou o revólver, ficou olhando feio para ele. Ouviu novamente a
voz de Dillard dizendo: Você não vai fazer isso, Jesse. Eu sei que não vai.
Se existe uma coisa em que sou bom é em medir um homem.
Jesse olhou para o buraco em sua mão.
“Vou atirar no General também”, rosnou ele. “Vou atirar em todos
aqueles escrotos!”
Só que essas palavras soavam ocas na cabine da caminhonete, fazendo
com que ele se sentisse pior.
Jesse desligou o carro, dirigiu-se para dentro do Gas’n’Go e foi até o
banheiro. Ele deixou água quente escorrer por sua mão machucada, lavou a
ferida da melhor forma possível. Abriu e fechou a mão, que estava
começando a ficar enrijecida, a carne escura em volta da ferida começava a
inchar. Ele envolveu a mão com papéis-toalha e ficou se perguntando se
algum dia seria capaz de tocar violão outra vez. Talvez o General tenha me
feito um favor. Talvez seja melhor que eu não consiga tocar. Que eu desista
por completo da música.
Ele voltou a entrar em sua caminhonete e decidiu que a melhor coisa a
ser feita agora era voltar para casa e tentar entender as coisas. Entender o
quê?, ele se perguntava e, mais uma vez, não conseguia tirar Dillard de sua
cabeça: Eu atiraria nele e o mataria sem pensar. Porque isso é o que um
homem de verdade faz.
Jesse voltou para a rodovia e, uns poucos minutos depois, estacionou no
King’s Kastle, passando por buracos lamacentos e espalhando lama para os
lados enquanto dirigia colina acima, tentando desanuviar a mente o melhor
que podia. Estava ficando tarde, Chet estaria esperando por ele na escola de
ensino fundamental dentro de poucas horas, e se ele não aparecesse as
coisas ficariam feias na hora. Não posso continuar fazendo esses corres.
Vou acabar na cadeia. O que eu deveria fazer? Que caralhos eu deveria
fazer?
Ele sacou o maço de cigarros do bolso de sua camisa e pescou um
cigarro dele, mas o maço estava vazio. Ele o esmagou no painel de sua
caminhonete, deixando cair umas migalhas de tabaco.
“Perfeito. Simplesmente perfeito.” Ele fez uma bolinha com o maço e
jogou-o no chão do veículo. “Bem, que merda, olha para aquilo.” Dois
pássaros enormes estavam circulando e voando baixo em cima de seu
trailer. A princípio ele achou que pudessem ser abutres, mas, conforme foi
se aproximando, ele pôde ver que eles pareciam mais corvos ou gralhas.
Jesse olhou de relance para seu trailer. “Que porra está acontecendo agora?”
A porta de seu trailer estava aberta. Ele captou sinais de movimentos no
interior do trailer e só conseguiu discernir uma silhueta encurvada lá dentro,
que estava procurando por alguma coisa nas caixas perto da porta, de costas
para ele. Ele trajava um casaco com o capuz puxado para cima e, embora
Jesse não conseguisse ver seu rosto, sabia quem era o visitante.
Jesse passou dirigindo por ali sem nem mesmo diminuir a velocidade,
como se morasse mais adiante na estrada, esperando que quem estivesse no
trailer não o tivesse visto. Era um beco sem saída, de modo que Jesse não
tinha escolha senão dar a volta. Ele estacionou sua caminhonete na entrada
de carros dos Tuckers, depois saiu de lá de marcha à ré, do jeito mais casual
possível, fazendo o melhor que podia para não chamar atenção para si. Foi
então que notou uma outra silhueta encapuzada, que se mexia em meio ao
matagal, dentre os pinheiros que ficavam atrás de seu trailer, com o rosto
abaixado, perto do chão, como se estivesse cheirando em busca de alguma
coisa. Jesse olhou de relance para o saco do Papai Noel no piso do veículo e
se perguntou se essas criaturas seriam capazes de sentir o cheiro dele de
alguma forma. Ele apanhou o saco, com a intenção de jogá-lo pela janela e
conduzir a caminhonete para longe dali, quando a silhueta se ergueu, com
uma das mãos com garras pendendo de um pulso estirado. A criatura
cheirou o ar e depois mexeu a cabeça na direção dele. A criatura usava
óculos de sol, mesmo com o dia cinza e nublado. O ser ergueu os óculos, e
não havia como não notar aqueles olhos: de uma coloração laranja ardente,
encarando Jesse, seguindo sua caminhonete enquanto ele se arrastava com
ela estrada acima.
Jesse empurrou o saco de volta para o chão, perto de seus pés, e lutou
contra a premência de meter o pé com tudo no acelerador.
“Fique calmo”, sussurrou ele. “Apenas mantenha a calma.”
O homem-diabo seguiu em direção à estrada. Jesse evitou olhar na
direção em que ele ia, mas podia sentir aqueles olhos, aqueles penetrantes
olhos cor de laranja que o encaravam enquanto ele passava. Um pouco mais
adiante agora. Só um pouco mais adiante agora. Ele continuava
acompanhando a criatura por seu espelho retrovisor enquanto saía na pista.
A criatura o seguia em um ritmo rápido. Jesse voltou os olhos para a estrada
e soltou um grito. Ali, no meio da estrada, havia mais um deles, uma das
criaturas com chifres, todo coberto de pelos e carregando uma lança.
“Merda!”, gritou Jesse, virando à esquerda.
A criatura bateu com a palma de uma das mãos na janela do lado do
passageiro, correndo ao lado da caminhonete e espiando dentro dela,
sorrindo, deixando os dentes sujos à mostra.
Jesse acelerou rapidamente. As rodas giraram na neve e nos cascalhos,
dando a ele um segundo para arrepender-se de penhorar seus pneus bons,
então os pneus da caminhonete ganharam tração e ela decolou, ganhando
velocidade rapidamente enquanto pulava para cima e para baixo pela
estrada esburacada. Jesse olhou de relance no espelho retrovisor: eles não
estavam mais lá. Algo caiu num som oco e pesado, atingindo a caçamba de
sua caminhonete, seguido de uma batida no teto da cabine do motorista.
A criatura desceu deslizando pelo para-brisa, indo parar no capô.
Novamente, a criatura voltou a Jesse aquele sorriso torto dela. Seus olhos
depararam-se com o saco do Papai Noel, ficaram arregalados, e arderam,
ganhando vida, como um fogo atiçado. A criatura colocou a cabeça para
trás e soltou um longo uivo que mais parecia um lamento, fazendo com que
todos os pelos do braço de Jesse ficassem arrepiados. Uivos em resposta
surgiram de todos os lados. A criatura recuou e golpeou o centro do para-
brisas com o punho cerrado, abrindo com o soco um buraco através do
vidro. Rachaduras espalharam-se pelo para-brisas como se fossem teias de
aranha. A criatura puxou a mão e a soltou, depois recuou para dar um outro
golpe quando Jesse virou com tudo para a esquerda, depois para a direita,
fazendo com que a caminhonete andasse em zigue-zague pela estrada,
arrancando a criatura do lugar onde estava, fazendo com que deslizasse
capô abaixo, segurando-se no limpador de para-brisas.
Adiante, mais dois homens-diabo vinham em direção à estrada
movimentando-se a passos longos.
“Pelo amor de Deus, eles estão por toda parte!”
A criatura que estava em cima do capô começou a se puxar para cima.
Jesse mudou abruptamente de direção, passando de propósito sobre um
buraco no chão. O solavanco jogou pelos ares o homem-diabo, que levou
consigo o limpador de para-brisas. O homem-diabo bateu num monte de
neve e sumiu cambaleando do campo de visão de Jesse.
As duas criaturas que estavam à frente dele iam muito depressa em sua
direção, tentando pará-lo. Jesse continuou pisando firme no acelerador. O
velho motor V8 agitava-se e rugia enquanto a caminhonete subia a colina a
todo vapor.
“Vamos!”, gritou ele. “Vamos!”
Jesse achava que estava no controle quando a besta que estava na frente
deu um pulo, voando pela neve, e bateu com tudo no lado do passageiro da
caminhonete. A caminhonete inteira estremeceu. A criatura segurou no
espelho retrovisor, agarrou a maçaneta da porta e puxou-a, escancarando-a.
As latas de lixo e o presépio de Millie estavam logo à frente deles. Jesse
virou o volante bruscamente e com força para a direita, em direção às latas
de lixo. O homem-diabo e a porta do lado do passageiro da caminhonete
bateram com tudo nas latas. Seguiram-se alguns segundos surreais quando
tudo parecia estar em câmera lenta. Jesse viu o homem-diabo, José, Maria e
o bebê Jesus voarem pelos ares, seguidos do lixo de Millie.
O homem-diabo bateu com força na cerca de piquete de Millie e seguiu
tombando pelo quintal dela.
Jesse foi embora em alta velocidade, descendo a colina em direção à
rodovia, com os buracos e os solavancos jogando a caminhonete de um dos
lados para o outro na pista estreita. Ele passou raspando por uma fileira de
caixas de correio perto do pé da colina, virou abruptamente sobre uma
sarjeta e disparou subindo pelo outro lado até a rodovia. Ele pisou nos
freios com tudo e os pneus traseiros da caminhonete acabaram entrando na
sarjeta da extremidade mais afastada da estrada. Jesse estava olhando para
trás, pelo caminho que seguira, e viu todos os cinco homens-diabo correndo
e pulando em sua direção, tão rápidos e ágeis quanto cervos, e seus olhos…
aqueles olhos lúgubres e assustadores, ardendo e fixos nele.
“Que droga!”
Ele pisou no acelerador, as rodas girando na lama; houve um segundo
em que ele soube que estava preso e tudo estava acabado, mas o velho Ford
continuou firme e forte, as rodas mordendo o asfalto, e ele saiu dali
guinchando os pneus.
Jesse avistou mais uma vez as criaturas bem longe, bem lá atrás na
rodovia. Eles não apresentavam nenhum sinal de que reduziam a
velocidade, nem desistiam, e naquele instante Jesse entendeu que não
importava o quanto corresse, ele nunca haveria de escapar daqueles olhos
ardentes; entendeu que eles haveriam de persegui-lo em meio a seus
pesadelos pelo resto de sua vida.
JESSE ESTAVA quase a 100 km/h, ignorando o vento frio e a neve úmida que
caía dentro da cabine do motorista através do buraco no para-brisa. O velho
motor V8 rugia e gemia, com um dos eixos ameaçando explodir. O coração
de Jesse ainda estava acelerado. A uns quinze quilômetros fora da cidade,
dirigindo-se ao sul, logo chegaria na divisa do estado, e isso estava bom
para ele, que não pretendia reduzir a velocidade até chegar no Kentucky, ou
talvez no México.
Jesse voltou os olhos para o saco do Papai Noel e olhou com uma
expressão endurecida para ele, como se o objeto o tivesse traído de alguma
forma. Sem diminuir a marcha, inclinou-se para a frente e rolou para baixo
o vidro da janela do lado do passageiro. Ele puxou bruscamente o saco do
piso do veículo e o jogou para fora da janela. O saco quicou pelo asfalto e
foi parar na sarjeta.
Ele estava farto de Goodhope, farto da Virgínia Ocidental, farto de
ensandecidos homens-diabos e seus ardentes olhos cor de laranja, farto do
General, farto de todas as merdas. E se Linda quer tanto assim se casar com
o calhorda daquele Dillard, se ela quer tanto assim a casa grande dele, o
carro grande dele… então ela pode ficar com ele. Ela pode ficar com tudo
aquilo!
Ele tentou se prender a isso, tentou não pensar além disso, mas havia
mais em relação a isso, algo de que ele não podia evitar, e lá no fundo ele
sabia disso. Ele concentrou-se na estrada, nas faixas amarelas pelas quais
passava voando, fez o melhor que pôde para tentar não ouvir o nome dela, a
voz dela… Papai. Jesse cerrou o maxilar e agarrou com tanta força o
volante que o buraco em sua mão começou a latejar.
Você ouviu o General. Você ouviu bem o que ele disse. Ele vai colocar
Abigail em um caixão.
“Ele não vai fazer isso. De jeito nenhum.”
E se ele fizer? Você consegue viver com isso?
Jesse soltou o pé do acelerador.
A velocidade da caminhonete caiu para 60 km/h… 45 km/h… 30
km/h… 15 km/h.
Não existe saída fácil. Não para você, Jesse. Nunca é fácil para você.
Ele saiu em uma revendedora de carros usados, que estava vazia, e
estacionou debaixo das fitas esfarrapadas. Letras desbotadas que
proclamavam uma liquidação de encerramento de atividades estavam
descascando na parede do showroom. Ele saiu da caminhonete e bateu a
porta com força. Havia uma fenda imensa na porta do lado do passageiro, o
espelho retrovisor já era, agora ele tinha apenas um limpador de para-brisas
e, claro, aquele buraco do tamanho de um punho no para-brisas da frente da
caminhonete. Ele notou que o pequeno Jesus de plástico de Millie Boggs
estava preso entre a traseira da boleia e a parte a frente da caçamba. O bebê
Salvador parecia olhar diretamente para ele e sorrir.
“Você está se divertindo?”, gritou Jesse para o boneco.
O bebê Jesus não respondeu.
“Não tenho certeza exatamente do que eu algum dia fiz para você. A
julgar pela forma como as coisas estão acontecendo, deve ter sido algo
horrível.” Jesse chutou a porta. “Sabe, não é como se eu já não tivesse que
lidar com merda o bastante.”
Jesse voltou os olhos para o buraco em seu para-brisas e soltou um
longo suspiro.
“Isso precisa ser arrumado.” Ele deu a volta na caçamba da
caminhonete, soltou a guarda traseira e ergueu o trinco da caçamba. Ele
empurrou seu violão para o lado, os sacos com os consoles de videogames,
e entrou rastejando ali. Seu saco de dormir, uma bolsa de lona cheia de
roupas de trabalho e as poucas bugigangas deixadas na caminhonete depois
que seu pai morrera estavam entulhados junto à cabine do motorista. Tudo
lixo velho demais e detonado demais para que ele pudesse vender ou
penhorar. Ele empurrou para o lado uma caixa de ferramentas e uma vara de
pescar, depois testou o peso do rifle de caça do velho. Ele tinha envolvido o
rifle em trapos cheios de óleo, para evitar que enferrujasse, e imaginou que
poderia usar aqueles trapos para fechar o buraco no vidro por ora. Ele
desenrolou a arma, empilhando os trapos no colo, e depois apenas ficou
segurando a espingarda, um rifle de repetição por alavanca, calibre .22,
passando a mão ao longo de sua empunhadura e de seu cano. A arma
parecia uma velha amiga e levou-o de volta ao vagar pelas florestas, quando
era jovem, caçando esquilos e coelhos… de volta a uma época em que suas
únicas preocupações pareciam ser evitar a comissão de jogos.
Um semitrailer passou por ele rugindo e Jesse olhou para fora de
relance. Ele notou que o crepúsculo já se aproximava e sentiu seu peito
ficar apertado. Eles estariam esperando por ele na escola em breve e se ele
não aparecesse teria mais do que os homens-diabo atrás dele.
“O que você vai fazer, Jesse?” Ele deu uns tapinhas no rifle. É só voltar
lá e atirar em todos eles e acabar com isso. Ele abriu um sorriso largo, mas
esse sorriso era totalmente desprovido de humor, pois Jesse sabia o que
realmente tinha que fazer, e sabia que não seria fácil. Você vai ter que pegar
a Abigail e depois cair fora daquele lugar e isso é tudo. Ir para o México,
ou talvez para o Peru, para algum lugar onde o General e a trupe dele
nunca o encontrariam. Ele não fazia ideia de como exatamente faria isso,
especialmente tendo apenas quatro dólares no bolso. Jesse balançou a
cabeça, colocou o rifle no lugar e então se tocou de que talvez o General
fosse a solução. Quando Jesse fazia um corre, ele também pegava o
pagamento da outra parte, geralmente na faixa de dois ou três mil dólares. É
só pegar a grana e cair fora. Ele assentiu. Deve dar tempo o bastante para
cuidar das coisas antes que o General entenda o que está acontecendo. Só
preciso ter certeza de que Dillard não esteja em casa. Ele mordeu o
polegar. Isso não deveria ser muito difícil. Atear fogo a uma caçamba de
lixo ou, melhor ainda, quebrar uma vitrine. Jesse sentiu uma pontinha de
esperança. Uma chance, não importando o quão pequena, era melhor do que
nenhuma chance. Apanhar Abigail enquanto Dillard estiver caçando
fantasmas.
“E Linda?” Ele franziu o cenho. Linda vai ser um problema. Um grande
problema. Ele balançou a cabeça. Vou contar tudo a ela e ela vai ver as
coisas como eu vejo. Ela vai ter que fazer isso. Um outro pensamento lhe
veio à mente. Talvez se eu conseguisse achar aquela foto de Ellen… Ele
assentiu, e seu coração foi ficando acelerado. Se ela visse aquela foto, talvez
até mesmo viesse conosco.
Só que…?
“Só que o quê?”
O que é que você vai fazer quando chegar ao México? Jesse olhou para
os dois sacos cheios de consoles de videogames. Não seria muito difícil
vender essas coisas lá no México. Ele pensou no saco que estava no
acostamento da estrada, simplesmente jogado lá, onde qualquer um poderia
vir e pegá-lo.
“Que merda, eu preciso pegar aquele saco.”
Jesse saiu rapidamente da caçamba da caminhonete, fechou-a com
força, deu a volta e entrou em um pulo na cabine do motorista. Ele enfiou
os trapos no buraco da janela, deu a partida no motor e dirigiu-se de volta à
rodovia.
Um minuto depois, ele puxava o saco do Papai Noel da lama, surpreso
com o fato de que a lama não ficara nem um pouco grudada nele, que nem
sequer estava úmido. Um guincho chamou a sua atenção; dois grandes
pássaros circulavam acima dele. Jesse levou um segundo para perceber que
eram do mesmo tipo de pássaros que ele tinha visto circulando seu trailer
antes, talvez até fossem os mesmos pássaros. Ele jogou o saco no assento do
passageiro e os pássaros começaram a grasnar. A aproximação do
crepúsculo lançava sombras escuras no bosque. Jesse pensou nos homens-
diabo, nos olhos deles. Ele subiu de volta na caminhonete o mais rápido
possível e dirigiu-se para a cidade.

JESSE PASSOU pela placa da zona sem drogas, diminuiu a velocidade e entrou
com a caminhonete no estacionamento da Escola de Ensino Fundamental
Sunny Hills, deu a volta até os fundos da lanchonete e estacionou perto das
caçambas de lixo. Ele notou que a luz do combustível estava acesa, deu dois
tapinhas nela, viu a luz tremeluzir e fez uma nota mental de informar a Chet
que se quisesse que ele fosse até Charleston e voltasse, era melhor dar a ele
um pouco de dinheiro para a gasolina.
Jesse desligou o motor e ficou com o olhar fixo no trepa-trepa. Ele
passara muitos recreios brincando no playground, na época em que
frequentava a escola Sunny Hills, quando ainda tinha sonhos de tornar-se
um grande e tolo tocador de violão.
Ele olhou de relance estrada acima. Onde diabos Chet está? Jesse não
gostava muito de ficar sentado em lugar nenhum por muito tempo, não com
aquelas coisas andando por aí. Ele queria um cigarro, alguma coisa para
acalmar os nervos. Procurou no bosque por algum sinal dos olhos cor de
laranja das criaturas. Estava escuro e quase todas as sombras e todos os
arbustos pareciam avançar para cima dele. Ele pegou sua pistola do assento
da caminhonete, abriu o tambor, conferindo se o revólver estava totalmente
carregado. Ele se perguntava se balas causariam algum dano contra alguma
coisa como aquelas criaturas, se perguntava se precisaria de balas de prata,
ou de água benta, ou de algo do gênero. Fechou o tambor da arma com um
tapa e colocou-a no bolso da frente de seu casaco. Ele notou que o saco do
Papai Noel estava à vista e tentou empurrá-lo mais para o fundo no chão da
cabine do motorista.
Se eu conseguir fazer isso, pensou ele. Tirar Linda e Abigail daqui,
então as coisas podem mesmo ficar boas. Poderíamos morar em algum
lugar quente, perto da praia, em algum lugar legal para uma menininha
crescer. Talvez até mesmo arranjar um espacinho para tocar minhas
canções. Não seria Memphis, mas também não seria o Condado de Boone.
Eu teria a minha família e não ferraria com as coisas dessa vez. Não,
senhor, não dessa vez.
Ele inclinou a cabeça para trás, cerrou os olhos e fez algo que não fazia
desde quando era um menininho.
“Senhor, se tiver um instante, apreciaria que me desse ouvidos. Eu sei
que não mereço sua consideração, mas, se o senhor pudesse pegar leve
comigo só um pouco que seja, só desta vez, pelo bem de Abigail, eu ficaria
tão grato. E, se o senhor fizer isso… eu juro que vou recompensá-lo de
alguma forma. Eu juro.”
Ele ouviu uma grasnada, abriu os olhos num estalo e sentou-se ereto,
com o coração batendo como um tambor em seu peito. Ele baixou o vidro
da janela e ergueu o olhar para espiar lá fora. Os corvos, os dois, estavam
circulando acima dele.
“Ah, isso não está certo. Nem um pouco.”
Ele esticou a mão para dar a partida e notou dois pares de faróis vindo
em sua direção.
A viatura de Dillard entrou e estacionou na entrada superior do
estacionamento da escola para ficar de olho nas coisas, para certificar-se de
que ninguém haveria de interferir em nada. O último modelo de Chevy
Avalanche de Chet, preto com janelas fumê, veio pela entrada inferior e
seguiu até onde Jesse estava estacionado.
Jesse sugou o ar, inspirando fundo.
“Vai de boa, Jesse. Não ferra com tudo.”

A LONGA PASSADA do Papai Noel cobria o chão enquanto ele cruzava o


estacionamento da Igreja Metodista de Goodhope. Ele estava grato pela
aproximação do crepúsculo, muitíssimo ciente dos olhares estranhos que
vinha recebendo. Quando estava chegando perto da igreja, uma mulher
jovem, carregando uma caixa de papelão, veio rapidamente da esquina. A
grande caixa bloqueava sua vista, e ela colidiu com ele, o que fez com que o
volume caísse de suas mãos. Vários sacos de chapéus e cornetas de Ano-
Novo se espalharam pela calçada.
“Ah, Senhor”, disse ela. “Eu sinto muito, eu…”
Ela teve uma reação atrasada e de repente pareceu ficar sem palavras.
Olhou de relance para trás, por cima do ombro, em direção ao homem que
vinha atrás dela, um homem mais velho, esguio e musculoso, com olhos
austeros e penetrantes. O homem também carregava uma caixa de
suprimentos para festa.
Papai Noel curvou-se para a frente, colocou o conteúdo de volta na
caixa e entregou-a à senhora, seguindo seu caminho em seguida.
“Ei, senhor”, chamou a senhora. “Com licença. O senhor derrubou algo.
Aqui está.”
Papai Noel virou-se. A mulher estava segurando sua trombeta. Ele
virou-se e ela a entregou a ele.
“Obrigado”, disse ele, então começou a se afastar.
“Feliz Natal”, disse ela.
Isso trouxe um leve sorriso ao rosto dele.
“Feliz Natal.”
O homem que estava ao lado dela o examinou de cima a baixo,
franzindo o cenho para seus paramentos. Ele balançou a cabeça.
“Hoje é o aniversário de Jesus. Só estou falando isso, irmão, porque
alguns camaradas ficam um pouco confusos nessa época do ano.” Ele
colocou de leve a mão no braço do Papai Noel e abriu um largo sorriso.
“Eles acham que é dia do Papai Noel.”
Papai Noel manteve o olhar fixo nos olhos dele.
“Reverendo”, disse a moça. “Nem começa.” Ela olhou para o Papai
Noel com ares desculposos. “Apenas ignore. Ele fica um pouco carente de
espírito prático quando se trata de Natal.”
“Fico mesmo. O Papai Noel e todos os presentinhos dele tendem a ficar
no caminho da mensagem de Deus.”
“Assim como a religião”, retorquiu o Papai Noel.
O reverendo apertou os olhos.
“Bem, não acho que o senhor possa discordar de que o mundo precisa
muito mais de Jesus e muito menos do Papai Noel.”
“Deus tem muitos servos.”
O pastor abordou a mulher.
“Está vendo? É exatamente o que venho falando. As pessoas ficam
confusas, especialmente as crianças. Papai Noel é um conto de fadas. Os
camaradas que dizem outra coisa às crianças, ora, eles estão mentindo para
elas na cara dura.”
“O que faz com que você tenha tanta certeza de que o Papai Noel não
existe?”, perguntou-lhe Papai Noel.
“O senhor nunca o viu, já viu?”
“Você algum dia já viu Jesus?”
O reverendo ficou hesitante.
“Jesus está no meu coração.”
“Não há lugar para os dois em seu coração? Ambos disseminam paz,
caridade e boa vontade.”
“Somente Jesus pode salvar sua alma da danação eterna.” Um sorriso
presunçoso espalhou-se pela face do reverendo. “Papai Noel pode fazer
isso? Creio que não.”
Papai Noel soltou um suspiro.
“Todos nós servimos a Deus à nossa maneira.” Depois ele disse, quase
para si mesmo: “Às vezes, mesmo contra a nossa vontade.”
O pastor voltou a ele um olhar confuso, continuou falando alguma coisa
sobre salvação, mas Papai Noel não ouviu nenhuma palavra do que ele
dizia, escutando, em vez disso, o grasnar a alguma distância. Ele procurou
no céu e avistou os corvos circulando o ar ao longe. Eles o acharam! Eles
encontraram o saco!
Papai Noel caiu fora dali rapidinho, deixando o pastor e a mulher
trocando olhares preocupados.

ISABEL PUXOU seu capuz para trás, tirou os óculos de sol e procurou algo no
céu. Ela não encontrou nenhum sinal dos corvos. Todos os cinco
Belsnickels estavam no penhasco, procurando no vale, com a pequena
cidade de Goodhope abaixo deles. A escuridão estava se aproximando
rapidamente debaixo das nuvens densas e baixas. Todos eles tinham
esperanças de que o homem na caminhonete não tivesse ido muito longe.
Todos também estavam cientes de que, se o homem tivesse deixado a área,
então haveria pouca chance de encontrá-lo antes que o Papai Noel ou seus
monstros o encontrassem.
Makwa fez um gesto em direção ao norte, e todos eles olharam para
aquela direção.
“Você está vendo eles?”, quis saber Vernon.
Makwa ficou mexendo o dedo, impaciente. Ele sabia falar inglês, todos
os três shawnees sabiam falar inglês, mas isso parecia deixá-los
incomodados. Makwa referia-se ao inglês como sendo a língua feia. Isabel
tinha desistido de aprender o idioma shawnee, achando que, se não
conseguira aprendê-lo depois de todos esses anos, então isso nunca haveria
de acontecer. Então, entre a teimosia dos índios e sua falta de habilidades
com idiomas, todos eles ficavam, muito frequentemente, reduzidos a
grunhidos e mímicas.
“Bem, não estou vendo coisa nenhuma”, disse Vernon, irritado.
Isabel também não conseguia ver nada, mas isso não queria dizer que os
pássaros gigantescos não estivessem por ali. Makwa tinha passado um bom
tempo com Krampus; Isabel achava que tinham sido pelo menos uns
quatrocentos anos, e, quanto mais tempo se passava em torno de Krampus,
mais a magia dele ia sumindo. Makwa olhou para eles como se eles fossem
simplórios, depois desceu a trilha, seguido dos dois irmãos, Wipi e Nipi.
Isabel e Vernon deram de ombros e foram atrás deles.
Todos os cinco atravessaram o bosque correndo. Não havia nenhuma
necessidade de esconder suas faces na crescente escuridão, e Isabel
regozijava-se com o vento invernal soprando em seus cabelos. O sangue de
Krampus corria pelas veias deles, aumentando notavelmente a força e a
estamina dos Belsnickels. Isabel conseguia correr mais rápido, pular mais
longe e correr infinitamente sem se cansar. Mas o sangue de Krampus fazia
mais do que isso: ele também abria os sentidos deles para a vastidão do
mundo de uma forma tal que nenhum mortal comum jamais poderia
conhecer. Ela podia sentir o cheiro das folhas que apodreciam debaixo da
camada de gelo, podia sentir o cheiro dos peixes no riacho, conseguia ouvir
uma família de esquilos aninhando-se bem lá em cima nos topos das
árvores, podia, na verdade, sentir a pulsação de vida correndo por baixo de
todas essas coisas. Forças ancestrais, pensou ela, mais velhas do que a
própria terra. E, quando ela corria assim, pulando e lançando-se pelo
bosque como um cervo, com seu coração e sua alma abertos para o espírito
da terra, Isabel descobria que quase conseguia esquecer-se de tudo que
havia sido roubado dela.
Eles seguiram por um riacho abaixo da rodovia, deram a volta em um
aglomerado de casas, depois subiram em uma barragem, saindo de entre as
árvores e dando em um campo atrás da escola secundária. Para Isabel, a
escola parecia a mesma coisa de quando ela a frequentara há mais de
quarenta anos. Ela ficou fitando as janelas escuras e perguntava-se se seu
filho também teria frequentado aquela mesma escola.
Makwa ergueu a mão e eles pararam. Ele apontou para as nuvens
escuras. Dessa vez, Isabel avistou dois pontinhos circulando o ar a cerca de
um quilômetro e meio de distância dali, perto da escola de ensino
fundamental, e captou os chamados deles ao longe. Seu coração ficou
acelerado.
“Ele ainda está aqui!”
Isabel sentiu suas esperanças aumentarem. Dessa vez, eles sabiam como
era a caminhonete do homem, como ele era. Agora ele não haveria de fugir.
Makwa balançou a cabeça, parecendo perturbado.
“Que foi?”, perguntou Isabel. “Qual é o problema agora?”
“Eles o estão chamando. Estão chamando o Papai Noel. Ele deve estar
aqui por perto.”
Os dois irmãos assentiram, concordando com ele.
“Ah, que maravilha! Isso é maravilhoso!”, disse Vernon, cuja voz soava
quase histérica. “O que faremos agora?”
“Nós o derrotaremos lá”, declarou Isabel.
“Isso é tudo muito bom, mas e se ele já estiver com o saco?”
“Então nós o tomaremos dele”, disse ela, nem um pouquinho feliz com
isso.
E as perguntas acabaram aí. Todos eles sabiam o que ela queria dizer
com aquilo. Krampus tinha dado a eles uma ordem direta. Krampus era
dono deles: o mesmo sangue que dava a eles a habilidade de correrem como
cervos também dominava suas vontades. Se Krampus exigisse que eles
mastigassem e arregaçassem com os dentes seus próprios pulsos enquanto
cantarolavam uma melodia, eles ficariam impotentes para fazer qualquer
outra coisa que não fosse isso. Krampus ordenara que eles trouxessem o
saco de volta a qualquer custo, então eles haveriam de tentar até seus
últimos suspiros, mesmo que isso significasse enfrentar as mandíbulas dos
monstros do Papai Noel.
“Estamos perdendo tempo”, disse Isabel e saiu correndo. Os Belsnickels
foram atrás dela.
Ela disparou com tudo e, enquanto corria, notava a beleza a seu redor,
os milhares de tons de azul e púrpura, saboreava o crepúsculo invernal em
todo o seu esplendor enquanto ele caía pelas montanhas, sabendo muito
bem que poderia ser seu último.

CHET SAIU de sua caminhonete.


“Oras, eu sabia que nós podíamos contar com você, Jesse.” Ele foi
andando até Jesse e deu-lhe um tapa nas costas. “Você é o cara.” Chet deu
uma verificada na caminhonete de Jesse e então inclinou a cabeça de lado.
“Que diabos aconteceu com a sua picape?”
Lynyrd saiu do lado do passageiro do Chevy de Chet e veio por trás de
Jesse, segurando-o pelo colarinho.
“Ei”, gritou Jesse. “Tira as mãos de cima de mim, cacete!”
“Fica frio”, disse Lynyrd e passou a fazer uma revista em Jesse. Ele
encontrou a pistola no bolso de seu casaco e pescou-a dali.
“O quê? Você vai pegar a minha arma? Que porra é essa?”
“Acalme-se, homem. Você poderá ter a merdinha da sua arma de volta
assim que acabarmos aqui.”
Lynyrd colocou a pistola em cima do capô da caminhonete de Jesse.
“Só quero ter certeza de que você não vai fazer nada que se arrependa.”
“Como vai a mão?”, perguntou Chet, sorrindo.
Jesse olhou para ele com ódio e pressionou as costas junto à caçamba da
caminhonete de modo a ficar de olho nos dois e nas árvores atrás deles.
“Você está nervoso em relação a alguma coisa, Jesse?”, perguntou Chet.
“Vamos só acabar logo com isso.”
“Bem, caramba, você não parece lá muito entusiasmado.”
“Eu tenho coisas melhores a fazer do que ficar por aí com vocês dois,
seus idiotas!”
Chet olhou de relance para Lynyrd e ergueu as sobrancelhas.
“Jesse, eu vou ignorar isso daí porque você é idiota demais para saber
ficar quieto.”
Jesse achou ter visto movimento nos arbustos atrás de Lynyrd. Chet
acompanhou o olhar de Jesse na direção das árvores.
“Relaxa”, disse Chet. “Não tem ninguém ali não. Além disso, seu bom
camarada, o Dillard, está cobrindo a gente.”
Jesse sugou o ar para dentro dos pulmões e lutou para manter seu
nervosismo sob controle, fez o melhor que pôde para não pensar naqueles
ardentes olhos cor de laranja.
“Ah, sim…”, disse Chet. “Achei que você fosse gostar de saber… Meu
sobrinho se amarrou naquele videogame que você me deu. Sério, você
devia ter visto a cara dele! Achei que fosse ficar azul e se mijar ali no
tapete.”
Jesse achou que ele é quem ia se mijar se as coisas não andassem.
Queria gritar para que Chet calasse a porra da boca e andasse logo antes que
todos eles fossem comidos vivos.
“Dei outro para o primo dele. Você sabia que dá para conectá-los…?”
“Estou tão feliz, cara”, interrompeu Jesse, com um sorriso largo e
forçado no rosto.
“O que foi?” Chet voltou os olhos para Lynyrd. “É só eu que acho isso
ou o Jesse está esquisitão esta noite?”
“O Jesse é esquisito sempre”, disse Lynyrd.
Chet apertou os olhos e olhou para Jesse de novo, analisando-o como se
fosse algum bicho que tivesse fugido do zoológico.
“É, você tem razão quanto a isso.”
Chet sacou uma latinha de tabaco de mascar, abriu-a, tirou um bocado
dali e enfiou-o dentro da boca. Jesse sentiu como se o homem tivesse se
movido em câmera lenta.
“Ok, camarada”, continuou Chet. “Eis o negócio. Como eu estava te
dizendo antes, é um corre rápido até Charleston. No mesmo lugar, como de
costume. Dessa vez é o Josh que vai se encontrar com você. O irmão dele
foi pego dirigindo bêbado de novo e ainda está na cadeia. Nem a mulher
dele vai pagar a fiança.” Chet deu uma bufada. “Acho que ela preferiria que
ele ficasse por lá, para falar a verdade. Seja como for, Josh estará esperando
por você às nove. Faça um favor a todos nós e certifique-se de chegar na
hora. Eu não quero que ele fique enchendo meu saco. Eu juro que aquele
homem pode ficar falando que nem uma velha, sem parar, às vezes. Então
não…”
“Estarei lá na hora”, disse Jesse, voltando os olhos de um lado para o
outro nas sombras.
“É… tudo certo então.” Chet fez uma pausa. “Você está bêbado ou algo
do gênero?”
“Não.”
Chet não parecia convencido. Ele assentiu para Lynyrd, que abriu o
zíper de seu casaco e sacou dali um grande pacote marrom enrolado com
fita adesiva.
“Josh estará esperando por você com 6 mil.”
“Seis mil?”, disse Jesse, sem conseguir esconder sua surpresa.
Chet olhou para Jesse e cuspiu uma bolinha de suco de tabaco na neve.
“É, 6 mil. Não venha com nenhuma ideia engraçadinha. É só se lembrar
do que o General disse sobre sua filha. Estou falando sério, Jesse. Pelo bem
dela, é melhor que você faça essa parada direito.”
Jesse cerrou o maxilar.
Chet apontou com o polegar para a viatura de Dillard.
“Você tem que acompanhar Dillard até Leewood. Martin disse que ele
está de plantão esta noite. Então a interestadual não deverá ser nenhum
problema. Ele sabe qual é a sua caminhonete. Então, se você ver que uma
viatura estadual está seguindo você, relaxe.” Chet deu um tapa no ombro de
Jesse. “Veja bem, tocador, estamos cobrindo você. E o General está
aumentando sua parte para trezentos. Sabe, para mostrar que não existe
nenhum ressentimento quanto àquele lance desse buraco aí na sua mão. São
trezentas pratas para não fazer quase nada. Você pode mandar um cartão de
agradecimento a ele se quiser.”
Lynyrd aproximou-se do lado do passageiro da caminhonete de Jesse e
abriu a porta. O saco do Papai Noel tombou para fora e caiu no chão. Uma
onda de grasnidos altos explodiu de algum lugar acima deles.
Lynyrd esticou a mão para pegar o saco.
“Ei, deixa isso quieto!”, gritou Jesse e deu um pulo em direção ao saco.
Em um piscar de olhos, Lynyrd estava com uma grande navalha na mão,
apontada para o peito de Jesse. Lynyrd não era o maior dos Boggs, mas era
rápido, assustadoramente rápido. Jesse parou e levou as mãos para cima.
“Só estou tirando o saco da lama.”
“Por que você não deixa isso quieto até que eu tenha terminado?”, disse
Lynyrd.
Jesse recuou.
“Que diabos, Jesse”, disse Chet. “Você precisa se acalmar, cacete!”
Lynyrd enfiou o pacote debaixo do banco de Jesse.
“Qual é a merda do problema com esses pássaros essa noite?”, disse
Chet, a ninguém em particular.
Lynyrd pegou o saco de Papai Noel e jogou-o de volta dentro da cabine
sem nem olhar duas vezes para ele.
“Ei”, disse Chet. “Isso daí é um saco de Papai Noel? É sim. Que diabos,
Jesse? Você anda bancando o Papai Noel, é?”
Ele foi andando na intenção de olhar melhor para o saco.
“Deixa isso quieto”, disse Jesse.
“Ok, certo. Relaxa, homem”, disse Chet. “Ninguém quer roubar a
porcaria do seu saco de Papai Noel.” Chet olhou com mais atenção para o
rosto de Jesse e pareceu reconsiderar a questão. Ele apertou os olhos para
olhar para o saco. “De qualquer forma, o que é que você tem aí dentro?”
Chet deu uns tapinhas no saco. “Que estranho.” Ele cutucou o saco e ficou
olhando enquanto ele ficava inflado de novo. “Lynyrd, você viu isso?”
Lynyrd resmungou.
Chet puxou o saco de volta para fora. Os grasnidos ficaram mais altos.
“Essas porcarias de pássaros ficaram doidos, foi?”
“Deixa isso quieto”, disse Jesse, dando um passo para a frente.
Lynyrd segurou-o, empurrando-o para junto da caçamba de sua picape,
e colocou sua faca em frente ao rosto de Jesse.
“Você aprende as coisas devagar, rapaz.”
Chet assoviou.
“Olha pra ele, cara. Está todo nervosinho. Deve ter algo realmente bom
aí dentro.”
Ele soltou o cordão dourado do saco e espiou lá dentro.
“E aí?”, quis saber Lynyrd. Chet parecia confuso. “Que foi?”, perguntou
Lynyrd.
“Isso é muito estranho. É como se houvesse ali algum tipo de…”
Uma sombra saiu de entre as árvores e foi para cima de Chet. Era um
deles: um dos homens-diabo! Ele apanhou o saco das mãos de Chet e
nocauteou-o, jogando-o estirado na neve.
Lynyrd reagiu sem nenhum segundo de hesitação, lançando-se para
cima da criatura, atacando-a selvagemente com sua grande navalha,
acertando a parte de trás do ombro da criatura. O homem-diabo se virou
assustadoramente rápido, parecendo algum tipo de lutador de travesseiros
ensandecido enquanto girava o saco no ar formando um arco apertado,
acertando em cheio o peito de Lynyrd e derrubando-o sobre o capô da
caminhonete de Jesse. Lynyrd apanhou a pistola de Jesse do capô e girou,
disparando. A primeira bala saiu a esmo e a segunda acertou a lateral da
face da criatura, que foi cambaleando para trás e caiu, mas não soltou o
saco.
Antes que Lynyrd pudesse disparar um terceiro tiro, uma lança veio
voando do escuro e o acertou no peito, seguida meio segundo depois de
mais dois dos homens-diabo, que pularam dos arbustos e o acertaram em
cheio, fazendo com que batesse na lateral da caminhonete com força o
bastante para chacoalhar ruidosamente toda a estrutura do veículo. Um
deles abriu a garganta de Lynyrd com um rápido talho de sua faca enquanto
o outro tirou a arma da mão dele. Lynyrd caiu no chão, segurando a lança
enquanto o sangue jorrava do largo corte em seu pescoço.
Mais duas das bestas demoníacas vieram correndo na direção deles,
olhando do sangue para o saco com arregalados olhos cor de laranja. Um
deles segurou o diabo machucado e o ajudou a ficar de pé, enquanto o outro
pegava o saco.
“Caralho… quem são vocês?”, gritou Chet de onde estava estirado no
chão. Ele olhou com ódio para Jesse. “Você armou para nós! Você armou
para nós, cacete! Você está morto! Toda a sua família está morta!”
Os corvos estavam bem em cima das cabeças deles agora, pulando nos
galhos nos arredores, grasnando sem parar.
“Papai Noel. Ele está aqui”, disse um dos homens-diabo, o alto que
trajava a pele imunda de animal. Ele apontou e todos olharam para o outro
lado da rua, para um campo com um declive. Jesse também olhou para lá,
mas não viu nada.
“Ah, santo Deus!”, gritou outro homem-diabo. Ele carregava uma
espingarda destruída, mas ainda parecia mortalmente assustado.
Chet aproveitou esse momento para arrastar-se e pôr-se de pé, saindo
correndo em direção à viatura de Dillard, acenando com os braços, gritando
a plenos pulmões: “É UMA EMBOSCADA! É UMA EMBOSCADA!”.
Nenhum dos homens-diabo sequer olhou de novo para ele, pois estavam
com seus olhos cor de laranja fixos em alguma coisa do outro lado da pista.
Todos pareciam paralisados.
“Entrem na caminhonete, agora!”, gritou o que estava com a pistola, e a
julgar pela voz e por sua pequena constituição física, Jesse achou que devia
ser uma mulher ou uma menina.
Eles se mexeram.
Ela apontou a arma para Jesse.
“Você. Dirija!” Quando Jesse não se mexeu com rapidez o bastante, ela
o empurrou pela porta do lado do passageiro, deslizando para dentro, ao
lado dele. “Tire a gente daqui agora ou todos nós seremos mortos.”
Jesse olhou de relance para o corpo de Lynyrd que jazia na neve
encharcada com sangue e soube que essas criaturas, fossem o que fossem,
não estavam de brincadeira. Ele deu partida no motor enquanto os homens-
diabo empilhavam-se dentro da caçamba da caminhonete, com o saco do
Papai Noel. Ele acendeu os faróis e viu uma forma robusta que parecia
familiar correndo na direção deles pelo playground.
“Vai!”, gritou a mulher-diabo. “Vai!”
Jesse pisou no acelerador, dirigindo-se até a saída inferior do
estacionamento. Um par de faróis acendeu-se, cegando-o. Era Dillard. O
grande motor da viatura ganhava vida enquanto Dillard acelerava para
cortar o caminho deles.
“Merda!”, gritou Jesse. As coisas não estavam saindo nem um pouco
como ele tinha planejado. Ele ouviu um tiro de espingarda, depois outro, e o
espelho retrovisor que sobrara em sua caminhonete foi estilhaçado. Jesse
aumentou rapidamente a velocidade da caminhonete, tentou pisar com tudo
no acelerador, mas não tinha como… Dillard venceria a corrida.
Jesse avistou o sorriso louco de Dillard, viu um lampejo na boca da
arma e um buraco do tamanho de um dedo se abriu na moldura da porta. A
bala atravessou o para-brisas dianteiro, seguida, um milissegundo depois,
pelo som da arma disparando. Jesse sabia que isso era exatamente o que
Dillard queria, que provavelmente ele estivera lá, sentado, rezando por uma
oportunidade de matá-lo a tiros.
Um homem veio correndo em direção aos fachos de luz dos faróis da
caminhonete de Jesse. O homem vestido de Papai Noel, com os olhos
selvagens, os dentes cerrados em uma careta assustadora, carregando uma
espada e correndo na direção deles.
“Ei!”, gritou Jesse e virou o volante abruptamente, tentando, em
desespero, não atropelar o homem. O homem vestido de Papai Noel girou a
espada, acertando a frente da caminhonete, arrancando o farol lateral do
motorista. A lâmina passou raspando pela lateral da caminhonete enquanto
eles seguiam em alta velocidade, lançando para cima uma chuva de
centelhas. O homem vestido de Papai Noel girou e acabou parando
diretamente no caminho da viatura de Dillard, que estava em alta
velocidade. Seguiu-se uma tremenda de uma pancada quando a viatura
colidiu com o homem, fazendo com que o veículo mudasse de direção e
fosse parar na sarjeta, lançando o homem vestido de Papai Noel até o outro
lado do estacionamento.
Jesse girou e entrou na rodovia, pisou nos freios, olhou para trás por
cima do ombro, com esperança, rezando para ver os miolos de Dillard
espalhados no para-brisas da viatura. Simplesmente parecia justo que, se
todo o resto tinha dado tão completamente errado, talvez pelo menos isso
pudesse ter saído do jeito como ele queria. Jesse tinha visto o que um cervo
poderia fazer com a dianteira de um carro, mas a dianteira da viatura de
Dillard estava um pouco além disso: mais para o resultado de uma batida
numa vaca. Ele notou que o airbag tinha sido ativado e seu coração afundou
em seu peito.
“Droga!”
“Ele está morto?”, quis saber a mulher-diabo. “Está?”
Jesse percebeu que ela estava se referindo ao homem vestido de Papai
Noel, e não a Dillard.
“Não”, respondeu um dos homens-diabo. “Acho que não.”
Jesse deu uma olhada pelo estacionamento, procurando por um corpo
mutilado, e ficou surpreso ao ver o homem vestido de Papai Noel se pôr de
volta em pé, não parecendo nem um pouco abalado. O homem vestido de
Papai Noel virou-se, olhando estrada acima.
“Eles estão vindo”, disse o alto homem-diabo. “Veja… veja-os!”
Jesse viu duas formas escuras galopando na direção deles. Ele não fazia
ideia do que poderia ser aquilo. Pareciam cachorros peludos, talvez fossem
lobos, só que gigantescos, quase do tamanho de touros, a menos de cem
metros deles e aproximando-se rapidamente.
“Vai!”, gritou a mulher, e todos eles gritaram: “Vai! Vai! Vai!”
Jesse entendeu a mensagem: fossem o que fossem aquelas coisas, ele
não tinha nenhum desejo de encontrá-las de perto. Ele pressionou com
firmeza o acelerador e a caminhonete disparou. O motor V8 rugia e sibilava
enquanto o velocímetro subia: 30… 45… 60.
“Vamos!”, gritou ele para a velha F150. “Vamos, querida! Você
consegue!”
Eles tinham perdido os lobos de vista havia pelo menos uns quinze
quilômetros, mas, ainda assim, os homens-diabo estavam com os olhos
grudados na estrada atrás deles, e ninguém falava nada enquanto eles se
dirigiam ao sul pela Rota 3, seguindo o rio Coal através da remota região.
Ninguém o tinha matado ainda, então Jesse sentia que talvez pudesse ter
uma chance de sair daquela desgraça com vida.
“Então”, disse Jesse. “Onde que posso deixar você e seus amigos?”
A mulher-diabo analisou-o. O fogo nos olhos dela já tinha diminuído,
embora eles ainda tivessem aquele enervante tom cor de laranja, mas não
brilhavam como antes. Ela jogou o capuz de seu casaco para trás, abriu um
sorriso largo e torto para ele e balançou a cabeça. Os cabelos dela eram
escuros e sem brilho, sujos e ensebados, em um corte curto, como se
tivessem sido cortados por uma faca. Era difícil adivinhar a idade dela com
aquela pele cinzenta e cheia de manchas pretas, mas se Jesse tivesse que
chutar, diria que uns 18 ou 19 anos.
A janela entre a boleia e a caçamba da caminhonete deslizou e abriu-se,
e um dos homens-diabo enfiou a cabeça no interior da cabine. Ele era velho,
com o rosto marcado por rugas, talvez com quase 60 anos, cabelos longos e
ensebados e uma barba preta por fazer.
“Nós os despistamos!”
“Não”, corrigiu o homem-diabo sentado ao lado dele. Era o alto, um
daqueles com chifres e envoltos em pele de urso. A pele dele, como a dos
dois monstros chifrudos que estavam ao lado dele, parecia estar coberta
com tinta preta ou talvez piche, como se tivesse tentado escurecê-la de
propósito. O homem-diabo alto curvou-se, tentando não bater com os
chifres no teto da caçamba.
“A gente nunca vai despistá-los. Não enquanto os corvos nos
seguirem.”
A fala dele era pausada, um pouco cantada; parecia para Jesse que ele
era um americano nativo.
A mulher abaixou o vidro da janela; o vento frio entrou com tudo na
cabine enquanto ela colocava a cabeça para fora e olhava para o céu
noturno. Ela voltou para dentro.
“Nem sinal deles. Nada que eu pudesse ver em lugar nenhum.”
“Eles estão lá”, falou o cara alto. “Posso senti-los.”
“Eu não sinto nada”, disse o homem barbudo. “Como você pode ter
tanta certeza?”
O homem alto voltou um olhar cheio de piedade para ele.
“Não olha assim para mim! Detesto que me olhem desse jeito.”
O homem barbudo ficou em silêncio por um minuto.
“Bem… o que vamos fazer em relação a eles?”
“Fazer?”, disse a mulher. “Nós estamos com o saco. Só há uma coisa
que podemos fazer.”
“O quê?”, gritou o homem barbudo. “Nós vamos para a caverna? Mas,
se fizermos isso, vamos levar os monstros diretamente até ele. Isso sem
falar… até nós! Ora, vamos ficar presos!”
“Não temos escolha”, insistiu ela. “Essa foi a ordem dele.”
“Bem, então é melhor esperarmos que o Velho Alto e Feio possa se
soltar antes que eles nos alcancem, ou todos vamos morrer de um jeito
horrível.”
Todas as criaturas ficaram quietas, e só o único limpador de para-brisa
que sobrou emitia algum ruído, em um ritmo estridente, enquanto eles
olhavam para a estrada cheia de neve derretida que ficava para trás, sob o
brilho dos faróis traseiros. Jesse notou que aquele que levara um tiro
segurava a cabeça, o sangue escorrendo por entre seus dedos. Jesse achava
que ele não teria muito tempo de vida. Depois de ver aqueles lobos, ele não
achava que nenhum deles viveria por muito tempo.
“Então”, disse Jesse. “Já pensaram em onde vão querer que eu deixe
vocês?”
Eles o ignoraram.
“Ao menos estamos no caminho certo?”, perguntou a mulher.
“Como diabos eu vou saber?”, retorquiu o diabo barbudo.
“Bem, que tal perguntar a Makwa?”
O homem enrugou o rosto com desgosto, mas foi só ele fazer isso e uma
discussão acalorada surgiu, seguida de um arsenal de gestos animados com
as mãos. Ele reclinou-se pela janela.
“Sim, parece que estamos indo pelo caminho certo.”
“Tem certeza?”, perguntou a mulher.
“Eu não tenho certeza, mas o Grande Chefe Sabe Tudo parece ter. E
quando foi a última vez em que ele estava errado?”
A mulher deu de ombros.
Makwa enfiou o dedo na cabine do motorista, apontou para uma cadeia
de montanhas quase invisível no céu noturno.
“É, entendemos”, disse o homem barbudo.
“Ei, eu sei onde nós estamos”, disse a mulher. “Então devemos nos
deparar com a estrada em mais ou menos um quilômetro e meio.” Ela olhou
para Jesse. “Entendeu? Vira lá em cima na próxima estrada de terra.”
“Ok, tudo bem. Eu deixo vocês lá então.”
“Não, você não vai fazer uma coisa dessas.” Ela olhou para ele com um
ar triste, amenizando o tom de voz. “Eu sinto muitíssimo, mas você está
envolvido nisso agora. Nós vamos precisar que você nos leve o mais alto
possível na montanha.”
“Bem, docinho”, disse Jesse. “Eu não estou com ânimo de me enfiar lá
no bosque… não esta noite. Eu vou deixar vocês logo ali.”
Ela cutucou as costelas dele com a pistola.
“Eu também não estou com ânimo de atirar em você, mas farei isso.”
Jesse voltou a ela um olhar rápido e rancoroso.
“E meu nome não é Docinho. É Isabel.” Depois de um tempinho, ela
perguntou: “E você, tem nome?”.
“É, na verdade, eu tenho sim. Meu nome é Jesse.”
“Bem, Jesse, esse aqui é o Vernon.” O diabo barbudo sorriu e esticou a
mão para cumprimentar Jesse.
“Prazer em conhecê-lo.”
Pela forma como ele falava, Jesse soube que não era dali; talvez fosse
de algum lugar no norte. Jesse olhou para a mão estendida de Vernon como
se ela estivesse coberta de saliva.
O sorriso de Vernon murchou e ele recolheu a mão.
“Sim, bem… e esse espécime notavelmente não refinado aqui”, ele fez
um gesto apontando para o diabo alto na pele de urso, “é o Makwa. Ao lado
dele está o Wipi, e o cavalheiro infeliz ali com o buraco de bala na cara é o
irmão dele, o Nipi.”
Apesar da aparência deles, Jesse tinha a sensação de que essas criaturas,
ou pessoas, ou seja lá o que fossem, estavam mais assustadas e
desesperadas do que eram ameaçadoras. De qualquer forma, não pareciam
desejar nenhum mal a ele. Ainda assim, Jesse sabia do que eram capazes,
não conseguia tirar da cabeça a imagem da garganta cortada de Lynyrd, mas
concluiu que talvez eles não fossem os monstros assassinos que a princípio
ele achava que fossem. De uma ou de outra forma, pessoas desesperadas
fazem coisas perigosas, e Jesse achava que quanto mais cedo ele
conseguisse cair fora, melhores seriam suas chances de ver a luz de um
novo dia.
“Exatamente o que seriam vocês?”
“O que você quer dizer com isso?”, indagou a garota.
“O que você quer dizer com o que eu quero dizer com isso? Vocês são
lobisomens, bichos-papões ou só saíram para pedir doces, como no
Halloween?”
“Bem”, respondeu ela, irritada. “Eu não sou nada disso daí, obrigada.
Sou uma pessoa, exatamente como você.”
Jesse deu risada, e não de um jeito lá muito amável.
“Não. Não, com toda certeza não é não.”
“Krampus nos chama de Belsnickels”, disse Vernon. “Você terá que
perguntar a ele o que isso significa.” O tom dele ficou amargo. “Mas, de
qualquer forma que queira colocar as coisas, nós somos servos dele…
escravos dele.”
“Eu tenho uma outra ideia”, disse Jesse. “Que tal se vocês me deixarem
sair então? Eu só pego uma carona com alguém por aqui. Eu me arrisco.”
Isabel balançou a cabeça em negativa.
“Sinto muito, Jesse. Mas nós não podemos fazer isso.”
“Por que diabos não podem? Estou dando a vocês minha bendita
caminhonete! Para que mais vocês precisam de mim?”
Ninguém respondeu.
“Então?”
“Nenhum de nós sabe dirigir muito bem.”
“O quê?” Jesse ficou encarando-a e depois irrompeu em gargalhada.
“Você tem que estar zoando com a minha cara.”
Isabel franziu o cenho.
“Eu só tinha 16 anos quando saí de casa. E a minha mãe não tinha
carro.”
“E quanto ao bom e velho Vernon aqui ou eles, os índios?”
Isabel sorriu ao ouvir isso.
“Gostaria de ver um dos shawnees tentando dirigir. Quer dizer, contanto
que eu não estivesse no veículo com eles. E acho que a última coisa que
Vernon ‘dirigiu’ estava conectada a um cavalo.”
Vernon soltou um suspiro.
“Não havia muitos automóveis por aí quando eu ainda era humano.”
“Do que você está falando?”
“Bem”, disse Vernon. “Nós somos um pouco mais velhos do que
podemos parecer. Eu tinha 49 anos quando comecei a inspecionar esse lado
do país. Estava trabalhando para a Fairmont Coal Company na época. Isso
foi por volta de 1910. E a Isabel… nós a encontramos por volta de…”
“Era inverno de 1971. Isso quer dizer que tenho uns 50 e poucos anos,
eu acho.”
Jesse captou uma nota de tristeza na voz dela. Olhou de relance para ela,
que estava fitando a escuridão fora da janela. Certamente Isabel não parecia
ter 50 e tantos anos.
“Isso não faz sentido”, disse Jesse.
“Eu sei que não faz sentido”, disse Isabel. “Nem um pouco. Mas é a
verdade. É que Krampus… a magia dele faz isso. E eles, os indígenas, que
diabos, eles estão com o Krampus quase há tanto tempo quanto ele está
preso naquela caverna. Eu diria que isso já vai fazer uns quinhentos anos.”
Jesse notou que a luz que indicava o nível de combustível ainda estava
acesa e se perguntou se poderia usar aquilo a seu favor. Ele deu um tapinha
na luz indicadora de combustível.
“Estamos quase sem combustível. Deveríamos arrumar um pouco de
gasolina antes de tentarmos subir as montanhas.”
“Nós vamos conseguir”, disse Isabel.
“Você fala como se tivesse certeza disso.”
“Acho que só faz parte da minha natureza ser otimista.”
“Sim”, disse Vernon. “Isso é muito irritante. Para mim? Eu digo que
otimismo demais faz com que a pessoa seja morta.”
Makwa enfiou seu longo braço na cabine do motorista.
“Ali.”
Jesse diminuiu a velocidade, avistou um refletor e então se deparou com
a boca de uma pequena estrada de terra. O desvio estava com arbustos
crescidos demais e parecia não ser usado há eras. Jesse ficou ali no meio da
rodovia com o motor ocioso.
“Você deve estar de brincadeira!”
“É só virar.”
Jesse contemplou a possibilidade de abrir a porta e sair correndo, mas
depois se lembrou de como aquelas criaturas eram rápidas.
“Droga!”, disse Jesse, saindo da rodovia.
A caminhonete atingiu o ponto mais baixo do acostamento, com sua
traseira fazendo um barulho terrível e alto enquanto raspava no declive
rochoso. Galhos arranhavam a lateral da caminhonete, e o som fazia com
que os dentes de Jesse doessem. A estrada seguia um veio íngreme para
cima: uma subida difícil e tensa com apenas um farol. A caminhonete
pulava sobre os sulcos gastos e cobertos de gelo, e Jesse sentiu um certo
prazer ao ouvir as cabeças dos homens-diabo batendo no teto da caçamba.
A trilha, visto que Jesse não chamaria aquilo de estrada naquele ponto,
subia pela inclinação em zigue-zague, cruzando o mesmo riacho pelo
menos uma dúzia de vezes. Depois de cerca de meia hora, o caminho
terminou abruptamente em uma parede de rochas caídas.
“Estacione ali”, disse Isabel. “Debaixo das árvores.”
“Para quê?”
“Só estaciona ali.”
Jesse fez o que ela mandou e todos os Belsnickels saíram se arrastando
da caçamba, com Makwa carregando o saco do Papai Noel em cima do
ombro. Nipi, aquele que tinha levado um tiro no rosto, tinha prendido uma
faixa de tecido em volta da face, e o sangramento parecia ter parado.
“Desligue o motor”, disse Isabel para Jesse.
“O quê?”
“Você vem com a gente.”
“Nem ferrando que eu vou com vocês!”
Ela esticou a mão, desligou o motor da caminhonete e pegou as chaves.
“Ei!”
Ela colocou as chaves no bolso de seu casaco, junto da pistola de Jesse,
saiu do veículo e deu a volta, indo até a porta do lado dele.
“Você não vai querer ficar aí fora sozinho. Vai por mim.”
“Não, isso não é justo. Tínhamos um acordo.”
“Você está certo. Não é justo. Nada disso é justo. Ninguém sabe disso
melhor do que nós. Mas precisamos desta caminhonete. E se deixarmos
você aqui você vai ser comido. E então quem vai descer a montanha de
carro com a gente?”
Jesse não curtiu nem um pouco a parte de ser comido. Isabel abriu a
porta.
“Não me faça arrastar você.”
Eles ouviram o som de um grasnido bem afastado dali e todos voltaram
os olhares para cima.
“Precisamos nos apressar”, disse Vernon em tom de urgência.
“Merda!”, disse Jesse, mas desligou a luz do veículo e saiu da
caminhonete.
Os Belsnickels subiram pelo declive coberto de árvores meio que
correndo. Isabel foi empurrando Jesse junto, depois deles.
“Você sabe o que está atrás de nós, Jesse. Se esforça ao máximo para
acompanhar nosso ritmo, está me ouvindo?”
Jesse ouviu os grasnidos vindo de algum lugar acima deles, ouviu seu
coração batendo como um tambor em seu peito e se perguntou se algum dia
veria Abigail outra vez.

JESSE SEGUIU aos tropeços, agarrando-se às laterais. O ar frio queimava sua


garganta, suas coxas ardiam, ainda que seus dedos estivessem entorpecidos
por causa do frio. O buraco em sua mão latejava. Eles estiveram
marchando, subindo e correndo pela encosta da montanha pelo que Jesse
achou ter sido mais de meia hora. Isabel esperava por ele lá no topo da
trilha. O restante dos Belsnickels não estavam mais à vista, tinham saído
correndo como se não se incomodassem com o frio e com o chão coberto de
gelo, e três deles nem mesmo estavam usando sapatos.
Jesse alcançou Isabel e parou. Ele apoiou-se em uma árvore, arfando
para conseguir respirar.
“Jesse”, disse Isabel. “Temos que continuar andando.”
Jesse balançou a cabeça, cuspiu repetidas vezes, tentando limpar a
queimação em sua garganta.
“Não consigo.”
“Só um pouquinho mais.”
“Vou lhe dizer uma coisa”, ele falou, arfando. “Só me deixa aqui para os
lobos. A essa altura, na verdade, eu preferia ser devorado.”
Isabel balançou a cabeça e conseguiu abrir um meio sorriso.
“Não me faça carregar você.”
Ela segurou o braço dele e puxou-o consigo. Ela podia ser pequena, mas
ele podia sentir sua força, podia sentir que ela realmente seria capaz de
carregá-lo se fosse necessário.
Um grasnido solitário ecoou em meio às árvores. Soava distante, bem
mais abaixo na colina, talvez. Jesse ergueu o olhar de relance, mas não
conseguia ver nada em meio aos galhos de abetos.
“Eu acho que talvez os tenhamos despistado”, disse Isabel.
“Você já me disse que era otimista. Eu não confio em otimistas.”
Eles desceram por uma leve inclinação e saíram em uma ravina. Ela
apontou para a frente.
“Ali.”
Jesse só conseguiu discernir um aglomerado de penedos na base de um
penhasco.
“Exatamente aonde você está me levando?”
“Você deve ficar bem.”
“Devo ficar bem? O que você quer dizer com isso?”
“Basta tomar cuidado com o que fala. Não o perturbe.”
“Você está se referindo a esse tal de Grumpus?”
“O nome dele é Krampus.”
“Quem é esse…?”
Isabel ergueu um dedo.
“Já chega.”
Ela deu um puxão nele, conduzindo-o até uma reentrância entre as
rochas. Eles se curvaram e entraram em uma caverna estreita. Ela o guiou
em direção a uma luz fraca que tremeluzia perto dos fundos da caverna.
Eles pararam diante de um poço. Jesse espiou poço abaixo, torceu o nariz…
o lugar cheirava a alguma coisa morta, cheirava a putrefação, a uma fera
enjaulada vivendo em sua própria imundície. Um uivo ecoou pelo poço
acima. Aquilo não soava nem como homem, nem como fera.
“De jeito nenhum.”
Isabel segurou o braço dele.
“Jesse, não existe escolha aqui.” Toda a leveza se fora da voz dela; o
que sobrara soava frio e austero. Os olhos dela reluziam, ela parecia
perversa, como um diabo, e Jesse soube naquele instante que ela o estava
levando até um covil de diabos.
Jesse balançou o braço para soltar-se, voltou um olhar condenador a ela
e começou a descer. A luz trêmula lá embaixo iluminava o poço apenas o
suficiente para que conseguissem descer pelas pedras sem que caíssem e
morressem. Um instante depois, seus pés pisaram em terra preta de fuligem.
Ele virou-se e ficou paralisado no lugar.
Tratava-se de uma caverna, não muito maior do que uma sala de estar
padrão, com o chão repleto de garrafas de bebida, ossos, peles de animais e
madeira carbonizada. Havia bolas de cobertores e feno aninhados em
buracos nos fundos da caverna. Pilhas de jornais e livros chegavam quase
ao teto. Havia velas e lamparinas a óleo em todas as saliências e em todos
os cantos menores. Havia, pendurado, um grande mapa amarelado da Terra
com o que para Jesse pareciam símbolos astrológicos, com linhas e
quadrados delineados em carvão vegetal cruzando os continentes. Fotos do
Papai Noel cobriam as paredes sujas de fuligem: recortes de jornal,
anúncios de revistas, livros infantis… e em cada uma delas os olhos do
Papai Noel tinham sido arrancados.
Jesse procurou pelo grande Krampus, pelo monstro que mantinha os
Belsnickels em tamanho estado de terror, e quase não notou a coisa que
estava sentada de pernas cruzadas no chão. A criatura estava sentada e
tremendo em meio às cinzas e à terra, embalando o corpo para a frente e
para trás, agarrando o saco do Papai Noel. Os tocos de dois cornos
quebrados saíam de sua testa e fios de cabelos emaranhados e enrolados
desciam por seu rosto esquelético e emaciado. A criatura abriu um largo
sorriso, depois riu baixinho, deixando à mostra dentes manchados e caninos
irregulares. A criatura parecia faminta, tão encarquilhada e frágil… quanto
um cadáver, quanto a própria morte. Jesse podia ver todas as veias e todos
os tendões sob sua pele fina e coberta de manchas. Alguma coisa se
contorceu atrás dele; por um segundo, Jesse achou que se tratava de uma
cobra, uma cobra peluda, mas então se deu conta de que a criatura, na
verdade, tinha um rabo.
A criatura aninhava o saco de Papai Noel junto a seu peito como se
fosse um filho há muito tempo perdido, acariciava-o com dedos artríticos,
que tremiam. A criatura soltou uma risada seguida de um soluço, depois riu
mais um pouco, com as lágrimas rolando de seus olhos oblíquos e
membranosos. Levou a cabeça para trás e deu uma gargalhada selvagem, e
Jesse notou a espessa manilha em volta do pescoço dele, de onde seguia
uma corrente, prendendo-a à parede. O liso metal brilhava como nenhuma
combinação natural de metais que Jesse já tivesse visto na vida. Ele não
sabia se ficava aterrorizado ou apenas sentia pena da criatura desgraçada
perante a qual se encontrava.
Isabel desceu atrás de Jesse e foi andando a passos rápidos até a
criatura.
“Krampus?”
O ser não ergueu o olhar.
Os Belsnickels estavam afastados, como se estivessem com medo de se
aproximarem demais, olhando de relance e nervosos uns para os outros e
para cima no poço, como se os lobos pudessem descer por ali a qualquer
segundo.
“Krampus”, disse Isabel. “O Papai Noel e as bestas dele… nos
encontraram. Não devem estar muito atrás.”
A criatura ainda a ignorava.
Ela colocou uma das mãos no ombro dele, chacoalhando-o com
gentileza.
“Krampus”, disse ela baixinho. “Os monstros… estarão em cima de nós
em breve.”
A criatura não respondeu, apenas estremeceu, embalando seu saco para
a frente e para trás.

KRAMPUS CERROU os olhos e pressionou a face junto ao saco, inalando seu


cheiro a fundo. Sim, eu ainda consigo sentir seu cheiro, os fogos de Hel,
depois de todos esses séculos. O cheiro fez com que ele se lembrasse de sua
mãe, dos dias abençoados em que os mortos dançavam em volta do trono
dela e quando todas as coisas estavam certas no mundo. Eu sofri por muito
tempo, Mãe. Ele podia ver o rosto dela, uma miragem trêmula flutuando nas
chamas azuis de Hel. A visão lentamente se dissipou. Mãe, não me deixe.
Não agora. Ele enfiou o nariz mais fundo no veludo e cheirou-o de novo.
Ele desviou a face dali como se tivesse sido mordido. O que é isso? Olhou
com ódio para o saco, seu rosto num nó de ódio e confusão. A podridão
dele. Focou os olhos no saco e realmente o viu, percebendo que não estava
preto, como deveria, mas sim que tinha um tom carmesim profundo. Da cor
de sangue.
Krampus retraiu os lábios.
“Você perverte tudo aquilo que toca”, rosnou ele em uma voz grave e
retumbante e depois o horror disso o atingiu. Como? Como foi que Papai
Noel dominou o saco de Loki? Tal feito nunca devia ter sido possível, visto
que o saco só respondia àqueles que eram da linhagem de Loki. “Tamanha
feitiçaria não vem sem um preço.” Sua voz ficou mais alta. “Quantos se
fizeram necessários? Quanto sangue você derramou para obter tamanho
prêmio?” Krampus empurrou o saco para longe de si e ficou encarando-o
como se fosse o próprio mal. O quão poderoso ele deve ser para fazer isso.
Como a feitiçaria dele aumentou! E, pela primeira vez, Krampus sentiu
dúvidas. Enquanto eu apodrecia e fenecia, ele ficava cada vez mais
poderoso! Krampus puxou os joelhos para junto do peito, envolveu as
pernas com os braços, apertando-os, e pressionou a testa junto aos joelhos.
Há muita coisa aqui a ser sobrepujada.
“Krampus?” A voz soava bem distante. “Krampus, eles estão vindo. Os
monstros estão vindo. Krampus, por favor?”
Ele sentiu a mão de alguém em seu ombro.
Krampus ergueu o olhar. É ela. Minha Isabel, claro. A menina que tem o
coração de um leão.
“Os monstros?”, disse ele, mais para si mesmo.
Ela assentiu.
“Que forma eles têm?”
“Nós vimos pelo menos duas criaturas, que achamos que sejam lobos.
Criaturas gigantescas, tão grandes quanto cavalos. Os corvos estão guiando-
os até nós. Nós deveríamos…”
“Então os grandes animais de Odin estão vivos! Então nem todos os
deuses antigos estão perdidos.” Isso trouxe um sorriso aos lábios dele. “Os
corvos são Huginn e Muninn, e os lobos, Geri e Freki, parceiros para a vida
toda… Animais magníficos!” Ele fez uma careta. “Como foi que eles
vieram servir ao Papai Noel?”
“Krampus, nós deveríamos…”
“Deveríamos nos apressar. Sim, eu estou bem ciente disso. Se ele me
encontrar, dessa vez não vai me deixar para ser apagado pelas intempéries.
Ele vai fazer com que seus monstros arranquem todos os meus membros e
me devorem.”
Isabel olhou ansiosa para o saco.
“Bem?”
“Você quer dizer… O que eu estou esperando?”
Ela ergueu o saco e colocou-o no chão diante dele.
“A chave. Há quanto tempo você vem falando sobre aquela chave?
Vamos lá… é só apanhá-la e cair fora daqui.”
Deveria ser bem fácil assim. Ele deveria somente ter que visualizar a
chave enquanto estivesse segurando o saco, ordenar que o saco encontrasse
a chave, e ele abriria uma saída, um limiar entre este e o outro lado, e a
chave estaria esperando que ele esticasse a mão e a pegasse. Pois, afinal de
contas, esse era o saco de Loki, o saco de um trickster, um saco criado para
o único propósito de roubar. O próprio saco que Loki usava para pegar o
que lhe agradava dos outros deuses. Sem dúvidas nunca foi seu propósito
ser algo tão trivial quanto um saco de presentes, para entregar brinquedos a
bons meninos e meninas. Só mesmo o Papai Noel poderia ter deturpado
tanto assim seu propósito.
“Qual é o problema?”, disse Isabel. “Onde está seu fogo?”
Ele olhou para ela, para os Belsnickels encostados na parede, e podia
sentir a aflição deles, que só aumentava. E por que eu estou perdendo
tempo quando tudo é tão urgente? Será que estou com medo? E se, depois
de tudo isso, o saco não me der ouvidos? E se eu não conseguir quebrar o
encanto do Papai Noel? Então não haverá de me restar nada além de ficar
aqui esperando a minha morte, com o saco de Loki para zombar de mim. A
prova final de que o Papai Noel me derrotou… seria este saco, este guia da
minha verdadeira salvação que me levaria à loucura.
Krampus puxou o saco para si, abriu-o e espiou dentro de suas
profundezas fumacentas. Ele não se atreveu a enfiar a mão dentro do saco,
ciente de que ainda estaria aberto para o último lugar em que Papai Noel o
havia usado. Provavelmente seu castelo, um armazém, algum lugar onde
armazenava os brinquedos que presenteava no Natal. Algum lugar onde
sua magia seria forte, onde minha mão poderia ficar presa e eu,
aprisionado. Essa porta tem que ser fechada.
Ele colocou ambas as mãos no saco e inspirou fundo.
“Loki, ajude-me.” Ele cerrou os olhos e esticou a mão, tentou encontrar
o espírito do saco, tocá-lo com o seu próprio. “Veja-me. Escute a voz de seu
mestre.”
Ele não sentiu nada; nada mesmo.
Mais uma vez, ele procurou o espírito do saco, focou toda a sua vontade
nisso. A caverna e todos os seus arredores esvaneceram na consciência dele,
até que só havia ele e o saco.
“Aqui quem fala é Krampus, Senhor do Yule, da linhagem do grande
Loki. Reconheça seu senhor.”
Nada.
Krampus ficou ofegante e apoiou-se em suas mãos, inspirando fundo e
devagar, tentando não sucumbir ao esforço. Ele ficou olhando para o saco,
contemplando seu brilho carmesim.
“Sangue”, disse ele, e depois deu risada. “O feitiço dele está atado em
sangue e, dessa forma, apenas sangue pode quebrá-lo. Isso deveria ser
óbvio, mas temo que a minha mente esteja brumosa.”
Krampus enfiou o dedo entre os dentes, mordiscou-lhe a ponta e viu
formar-se ali uma gota de sangue. Ele puxou o saco para seu colo e ergueu
o dedo acima dele. Uma única gota caiu em cima do saco, caindo sobre o
veludo macio como uma pérola vermelha.
“Honre o meu sangue”, sussurrou ele, e lentamente esfregou a gota no
tecido.
Nada aconteceu.
“Loki, ouça-me.”
Ele ficou esperando e, ainda assim, nada… nada além do som de sua
própria respiração dificultosa. E, quando ele não conseguia mais aguentar,
quando teve certeza de que ia enlouquecer, o saco encheu-se apenas de leve,
como se uma leve brisa fosse soprada de dentro dele. Um ventinho fraco
escapou da abertura, cheirando às florestas de Asgard. E ele ouviu seu
nome… Fraco e bem ao longe.
“Loki?” Krampus perguntou em uma voz sussurrada. “Loki… você está
aí?” O saco ficou em silêncio e imóvel. Os olhos de Krampus aos poucos se
encheram de lágrimas. “Loki?” Krampus ficou olhando enquanto a mancha
escura de seu sangue florescia pelo tecido, com rebentos espiralados de
escuridão nadando e entrelaçando-se como uma ninhada de enguias até que,
por fim, o saco mudou de cor, passando de carmesim a preto.
Ele limpou os olhos e sorriu.
“Uma gota. Foi preciso apenas uma gota do meu sangue! Quantos barris
de sangue custou a você, Papai Noel?” Ele riu. O saco lembrou, porque o
saco queria lembrar. E o primeiro de muitos erros foi corrigido. E a
primeira gota de sangue fora derramada, a primeira de muitas… o prelúdio
para um dilúvio.
Ele foi para a frente e para trás, notou que suas mãos estavam tremendo,
e seu sorriso deu lugar a uma careta. Ele juntou as mãos, tentando
estabilizar-se. Sentiu mãos fortes nele, apoiando-o, mantendo-o de pé.
“Vai funcionar?”, ela perguntou. “O saco vai encontrar a chave?”
“Eu sou o mestre do saco. Vamos apenas ter esperanças de que eu tenha
força suficiente para comandá-lo.”
Ele precisava que o saco se mexesse, buscasse, encontrasse a chave e
então abrisse uma nova porta. Tudo isso tinha sido tão fácil antes, quando
ele era um espírito robusto e viril, mas agora, agora o saco exigiria uma
taxa pesada, visto que tamanha magia não vinha sem preço. Ele olhou para
suas mãos que tremiam, para seus braços e pernas frágeis e fracos. Eu não
tenho mais nada a dar. Ele percebeu que o esforço poderia muito bem ser o
seu fim. Um sorriso torto formou-se em sua face. E se você não recuperar a
chave? E então?
Ele apanhou o saco.
“Estou acabado, meu velho amigo. Preciso de sua ajuda.” Ele cerrou os
olhos e visualizou a chave, segurando-a com clareza em sua mente. Se
soubesse onde ela estava, então ele poderia ter guiado o saco, poderia ter
feito com que fosse mais fácil encontrá-la, tornando o custo menos severo.
Mas ele só sabia qual era a chave e, dessa forma, o saco teria que fazer a
busca e usaria o espírito dele, a energia dele, para isso.
Krampus sentiu uma onda de energia e o saco pulsou, fraco, em sua
mão. Ele viu o cosmo, depois, nuvens, então floresta, voando por cima
deles com a velocidade de um meteoro, depois, árvores, um vasto lago,
então suas profundezas e, por fim, o fundo lamacento do lago.
“A chave… estou vendo a chave!”, gritou Krampus, e abriu os olhos.
Ele quase desfaleceu e caiu nos braços de Isabel. A caverna entrava e saía
de foco enquanto ele lutava para manter-se consciente. Ele sabia que se
desmaiasse agora não voltaria, não a tempo.
Ele esticou a mão para pegar no saco, colocou os dedos na boca e enfiou
a mão nele. Sua mão entrou na água, água fria. Ele enfiou mais, até que seu
braço inteiro estivesse dentro do saco. Seus dedos depararam-se com o
fundo do lago, arranharam com as garras a lama e a terra, tatearam,
escavaram, tentando localizar a chave. Sua mão bateu então em algo rígido.
Ele agarrou com força o objeto e deslizou o braço para fora do saco.
Tanto seu braço quanto sua mão estavam ensopados. Ele abriu a palma
da mão e lá estava, em meio ao lodo e aos cascalhos… uma chave.
Krampus limpou a terra da chave, revelando os mesmos símbolos antigos
dos anões, como aqueles da manilha. A chave nem mesmo estava suja; a
chave, como a odiada corrente em volta de seu pescoço, era forjada de
minérios curadores, das artes perdidas de ferreiros do reino dos Anões,
metais que se autoconsertavam. Não importava o quanto se tentasse cortá-
los ou esmigalhá-los, eles sempre permaneciam inteiros. E ninguém mais
do que Krampus poderia atestar os poderes desses metais.
Ele deu um beijo na chave.
“Minha liberdade.”
Ele segurou a argola em uma das mãos, achou a tranca e tentou inserir a
chave ali. Sua mão tremia tanto que ele, enquanto tateava para achar o
buraco, deixou a chave cair de seus dedos.
“Aqui”, disse Isabel pegando a chave. “Deixe que eu faço isso.”
“Não!”, ele gritou e depois falou mais baixo. “Eu esperei quinhentos
anos por isso. Sonhei com este momento dez mil vezes. Tem que ser eu.”
Ele pegou a chave dela, hesitou, tentando manter-se firme enquanto sua
visão ficava anuviada. Ele achou a tranca, inseriu ali a chave e girou-a.
Seguiu-se um simples e pouco notável clique, e a argola abriu-se.
Quinhentos anos de aprisionamento terminavam com um simples clique.
Ele puxou a manilha de em tomo de seu pescoço, deu uma última e
rancorosa olhada nela e jogou-a na terra.
Krampus olhou em volta da caverna, sua prisão, para as paredes sujas
que o prendiam, para os mapas que ele usara para rastrear o Papai Noel,
para as milhares de fotos do Papai Noel, para a imundície, os ossos, até que
seus olhos recaíram nos Belsnickels. Ele sorriu para eles.
“Estou livre”, disse ele com a voz rouca. “Estou livre!” Então revirou os
olhos e perdeu a consciência.
“ELE ESTÁ MORTO?”, quis saber Vernon, soando esperançoso.
“Acho que não”, disse Isabel.
“Não”, acrescentou Makwa com plena convicção.
“Não?” Os ombros de Vernon caíram.
“Não, é claro que não. Não poderia ser assim tão fácil.”
Krampus encolheu-se, formando uma bolinha sem vida. Isabel
chacoalhou-o com gentileza. Ele não respondeu. A criatura parecia morta
para Jesse; mais do que morta, parecia algo que estivera no chão havia
alguns meses.
Isabel ficou de pé em um pulo, saltou para cima de uma pilha de
cobertas esfarrapadas, puxou uma delas e levou-a até onde Krampus estava
deitado.
“O que vocês estão esperando? Vamos tirá-lo daqui.”
Em um instante, os três shawnees entraram em ação, enrolando
Krampus na coberta. Makwa levantou a criatura, colocando-a em seu
ombro, e dirigiu-se até a saída do poço.
Vernon remexeu em uma pilha de ferramentas e tirou dali dois cartuchos
de espingarda.
“Isso é tudo que nos resta?” Ninguém parecia ter uma resposta. “Droga,
eu disse a todos vocês que nós precisávamos de alguma coisa por aqui além
de arcos e flechas. Alguém me dá ouvidos? Bem, deixem que eu respondo:
não, ninguém me ouve.”
Isabel apanhou o saco de veludo e empurrou Jesse em direção ao poço.
“Está na hora de dar no pé.”
“Alguma ideia do que vamos fazer?”, quis saber Vernon. “Quero
dizer… temos algum tipo de plano aqui?”
Ninguém respondeu à pergunta dele.
“Não achei que tivessem mesmo”, disse Vernon, soltando um suspiro,
então colocou os cartuchos no bolso e foi subindo depois deles.

AS ESTRELAS SAUDARAM Jesse enquanto ele saía rastejando das rochas. A


noite havia ficado clara e a lua lançava sombras pela neve.
“Receio que aqueles pássaros não terão problema em nos avistar agora”,
disse Vernon.
Eles deram a volta na beirada de uma grande clareira e uma ampla faixa
de céu abriu-se acima deles.
“Parem”, disse uma voz fraca e rascada. Krampus abriu os olhos; eles
estavam vítreos como os de um homem que tivesse passado dois dias
enchendo a cara. “Mani.” Ele sugou o ar fundo e ergueu a mão trêmula em
direção à lua como se pudesse alcançá-la, como se pudesse acariciá-la. “Tão
doce. Tão… doce.”
“Vamos”, sibilou Isabel.
“Não… Um instante. Eu preciso da magia da lua.” Ele ergueu o queixo,
banhando-se no feixe de luar.
Os Belsnickels mexeram-se, inquietos, e ficaram procurando alguma
coisa por toda parte na floresta.
Um grasnido veio de cima das cabeças deles e Vernon ficou alarmado.
“Fomos encontrados”, disse Makwa.
“Sim.” Krampus assentiu. Vernon apontou a espingarda em direção ao
céu.
“Economize os cartuchos”, disse Isabel. “Essa arma não tem esse
alcance todo.”
Outro grasnido e um uivo vieram em resposta, ecoando vale acima, um
longo e grave uivo, seguido de outro. Jesse não conseguia medir a distância.
“Freki e sua companheira, Geri”, disse Krampus, com óbvia afeição.
Ele sorriu. “Parece que eles estão caçando.”
Vernon voltou um olhar severo para ele.
“Eles estão sim caçando… eles estão nos caçando, seu imbecil.”
“Krampus”, disse Isabel. “Nós temos que…”
“Ir embora”, Krampus terminou a frase dela.
“Sim.”
Ele não tirou os olhos da lua em momento algum. Ele sorriu enquanto
lágrimas escorriam por suas bochechas. Esticou a mão para a lua mais uma
vez e depois deixou pender o braço, e seus olhos fecharam-se novamente.
“Vai!”, disse Isabel, empurrando o grande shawnee para frente, e eles
saíram correndo dali.

JESSE CAPTOU um reflexo brilhante do luar em algo cromado adiante;


encontrou os Belsnickels esperando por ele e por Isabel perto da traseira de
sua caminhonete, alertas e analisando as rochas e as árvores. Todos os
shawnees estavam com suas lanças e facas em prontidão.
Jesse havia conseguido acompanhar melhor o ritmo deles dessa vez,
com o fardo de Krampus deixando todos mais lentos. Ele caiu de encontro à
lateral de sua caminhonete, arfando, tentando inspirar oxigênio suficiente
para se impedir de desmaiar. Estava enfraquecido, exausto, coberto de lama
por causa de uma queda horrível e estava desesperado para fumar um
cigarro. Jesse viu Krampus na traseira da caçamba. Ele estava lá, deitado e
envolto na coberta, aninhado em volta do saco de veludo, em posição fetal,
mais uma vez parecendo morto para o mundo.
Vernon deu a volta na caminhonete, carregando a velha espingarda.
“Anda logo”, disse ele, apontando para cima. “Eles estão guiando-os
direto até nós.”
Jesse vasculhou o céu noturno, não vendo nenhum sinal dos corvos, mas
ouviu o grasnar deles a partir de algum lugar lá em cima.
Isabel jogou as chaves para Jesse, eles entraram na cabine do motorista
enquanto o restante deles empilhava-se na caçamba. A caminhonete
arrancou na segunda tentativa e eles seguiram caminho, descendo aos
trancos pela montanha.
Jesse puxou a embreagem para evitar queimar os freios. A luz do
medidor de combustível piscava, acendia e apagava, e ele mordeu o lábio,
tentando não pensar no que aconteceria se ficassem sem gasolina agora. Ele
manteve os olhos nos sulcos, esforçando-se para enxergar o que havia à
frente deles com o farol dianteiro remanescente, esperando deparar-se com
imensas feras à espreita a cada virada. Ninguém disse nada, todos
procuravam nas árvores ao redor, cientes demais de que haviam demorado
muito, de que não teriam como chegar à rodovia antes que os lobos os
alcançassem.
Quando se aproximaram do pé da montanha, a estrada começou a ficar
nivelada, começou a alargar-se um pouco, e a ida foi ficando mais tranquila,
mais rápida. Foi aqui que Jesse se permitiu nutrir esperanças de que talvez,
só desta vez, Deus haveria de lhe dar um tempo, deixando que eles
chegassem à rodovia antes que fossem encontrados pelos lobos. E, é claro,
parecendo piada de mau gosto, foi exatamente nesse momento que os lobos
apareceram.
“Eles estão aqui. Estou sentindo-os”, disse Isabel, com os olhos
arregalados. Um segundo depois eles viravam em uma curva e lá estavam
os lobos, bloqueando a estrada a menos de cem metros abaixo na trilha,
lobos tão grandes quanto cavalos, com as cabeças baixas, os olhos reluzindo
ao brilho do farol dianteiro da caminhonete. Jesse pisou nos freios e o carro
parou, deslizando.
“Dê a volta!”, gritou Vernon. “Volte atrás!”
Não tem como voltar para trás, pensou Jesse. Não havia nenhuma outra
saída. E mesmo que houvesse, ele não teria como dar a volta, não nessa
pista estreita.
Os dois lobos começaram a seguir em frente em um trote de pernas
fortes.
“Ah, santo Deus”, disse Vernon. “Nós vamos ser comidos vivos.”
“Não”, disse Jesse baixinho. “Não eu. Tenho muitos negócios para
cuidar.” Ele pegou o cinto de segurança, puxou-o contra o peito e prendeu-o
em um clique.
Isabel olhou de relance para ele.
“O que você está fazendo?”
“Indo ver Abigail.”
Ele pisou no acelerador e a caminhonete foi para a frente em um pulo.
Isabel apoiou-se junto ao painel enquanto o veículo ganhava velocidade.
“Você vai matar a gente desse jeito!”
“Muito provavelmente.”
O velocímetro foi de quinze para trinta, depois, 45, mas esse era o
máximo de velocidade que Jesse podia alcançar naquela estreita estrada
rochosa sem derrapar para uma árvore ou cair na íngreme ravina à direita.
Os lobos começaram a correr, indo direto para cima deles. Jesse sabia que
as chances de escapar de uma colisão imediata com tamanhas feras eram
mínimas ou nulas, e tinha esperanças de que os animais também soubessem
disso. Na caçamba da caminhonete, Vernon e os shawnees fizeram o melhor
que podiam para impedir que Krampus se machucasse enquanto a
caminhonete os jogava de um lado para o outro. Vernon gritou para que
Jesse parasse, mas ele não fez isso; ele seguiu dirigindo em frente, em
direção aos lobos, lutando para manter a caminhonete no caminho.
No último momento possível, os lobos pularam da estrada para a
escarpa elevada. Jesse os perdeu de vista enquanto lutava para fazer a
curva, os pneus do lado direito da caminhonete trepidando junto à beirada
esfarelada da ravina. A caminhonete inclinou-se em direção ao precipício.
Jesse achou que fossem morrer, quando então o velho Ford conseguiu
recuperar a tração e manter-se na estrada.
Tão logo ficou com as quatro rodas niveladas ao chão, a caminhonete
foi abalada por uma colisão e um solavanco tremendos. O teto da caçamba
cedeu para dentro enquanto um dos lobos rasgava o fino alumínio com suas
patas dianteiras. O peso da fera afundou a traseira da caminhonete e a
rabeira batia nos sulcos profundos, diminuindo consideravelmente a
velocidade da picape. O lobo continuou onde estava, rangendo os dentes e
batendo seu enorme maxilar, tentando chegar até Krampus e o saco. Makwa
chutou um dos sacos de lixo cheios de videogames para cima da cara do
animal, que mordeu o volume e agitou-o de um lado para outro,
dilacerando-o e fazendo voar consoles de videogames pela trilha. Vernon
girou a espingarda em direção ao animal, a caminhonete bateu em um sulco
e a arma foi para cima, disparando ruidosamente, errando por completo o
lobo e abrindo um buraco no topo da caçamba. A guarda traseira da
caminhonete estalou sob o peso do lobo e o animal caiu dali, tropeçando
pela estrada.
O segundo lobo, o maior, deu um pulo por cima de seu companheiro e
correu atrás deles, alcançando-os rapidamente.
“Oh, meu Deus!”, gritou Jesse. Não havia nenhum lugar para onde ir.
Eles estavam encurralados, mas os shawnees estavam preparados dessa vez.
Todos os três estavam com suas lanças em prontidão e, quando o lobo
saltou para cima da caminhonete, eles jogaram seus pesos atrás de suas
armas, impulsionando as pontas das lanças para dentro do peito do lobo.
Seguiu-se então um uivo horrível, seguido por um solavanco quando o lobo
atingiu a caminhonete. O animal fez um esforço, em vão, para subir na
caminhonete e então caiu de volta na estrada, tombando em direção à ravina
e desaparecendo pelo despenhadeiro. Jesse ouviu galhos se partindo, mais
um uivo, e isso foi tudo.
A picape atingiu um desnível íngreme. Jesse pisou nos freios, tentando
manter o controle enquanto a traseira da caminhonete saía do controle, indo
de um lado para o outro. Os pneus do lado esquerdo ficaram presos na beira
da estrada, fazendo com que a lateral da caminhonete raspasse na barragem.
A caminhonete acabou sendo forçada a parar e enguiçou.
O lobo menor apareceu trotando no campo de visão deles, a cerca de
cinquenta metros voltando na curva, mas não estava olhando para eles,
olhava por cima do penhasco, onde seu companheiro tinha caído. O animal
deu uma olhada de relance para eles e depois saiu da estrada, dirigindo-se
para a ravina.
“O que é que ele está fazendo?”, quis saber Isabel.
Jesse não fazia a mínima ideia, mas, contanto que não estivesse vindo
atrás deles, não se importava.
“O que você está esperando?”, gritou Vernon. “Vai!”
Jesse girou a chave, o motor girou, dando partida na caminhonete. Jesse
pegou leve no acelerador e a picape saiu do canal devagar, voltando para a
estrada.
Eles chegaram à rodovia cerca de uns dez minutos depois e ouviram um
longo uivo vindo das colinas atrás deles. Jesse saiu no asfalto e acelerou a
caminhonete, dirigindo-se ao sul, seguindo para longe do Papai Noel e de
seus monstros.
O uivo do lobo ecoava dentro da cabeça de Krampus. Quanto desespero,
quanta dor! Seus olhos tremularam e se abriram. Seguiu-se mais um uivo,
então outro. Ele sentiu o choro infeliz em seu coração, em sua alma. Eu não
estou sonhando. Um deles está morrendo. Como foi que isso aconteceu?
Ele captou os primeiros sinais da luz da manhã e esforçou-se para
manter os olhos abertos. Passei tempo demais sem o doce beijo da aurora.
As árvores passavam em um borrão; o vento frio soprava na liteira
dilacerada. Estou voando. Ele inalou o ar profundamente, sentiu um pouco
de vestígios de força voltando a ele, os raios do luar, as estrelas, o ar da
floresta, tudo isso era como alimento para sua alma faminta.
“Por que você está virando?”, perguntou Isabel ao homem que estava
guiando o veículo deles. “Aonde você está indo?”
Krampus não conhecia o homem, ele presumia, no entanto, que fosse
um prisioneiro, que os Belsnickels precisassem dele.
“Não posso ficar na rodovia”, disse o homem. “Não depois daquela
merda da noite passada. Muita gente estará por aí procurando por mim, por
essa caminhonete. Tenho que ficar longe das estradas principais.”
“Mas precisamos ir para longe daqui… Para longe daqueles lobos e do
que quer que possa estar atrás de nós.”
“Olha, vocês precisam saber que aqueles lobos não são os únicos
monstros que estão atrás de mim. Tenho o General e o bando dele me
procurando para me encher de tiros na primeira oportunidade que tiverem.
Eles vão me matar… Vão matar vocês… E com certeza aquele monstro feio
de vocês. Eles têm olhos por toda parte. Se continuarmos seguindo por esta
rodovia em plena luz do dia, não vamos conseguir sair do condado. Você
está me entendendo?”
Isabel ficou em silêncio.
“Merda, e nós precisamos conseguir um pouco de gasolina. Que deve
estar nas últimas a essa altura. Algum de vocês tem dinheiro?”
“Sim”, respondeu ela. “Mas está lá na caverna.”
“O quê? Você está se referindo à caverna da qual acabamos de sair?”
“Ahm-ham.”
“Bem, e que bem você acha que isso faria por nós?”
Mais silêncio.
Krampus achava que o homem demonstrava ter muita coragem,
especialmente em face a tudo o que estava acontecendo, ele achou que o
homem daria um bom Belsnickel. E ele precisaria de tantos quantos
pudesse sustentar, porque não teria como saber quais criaturas Papai Noel
mandaria atrás deles em seguida. Eu terei que o reivindicar. Ele fechou os
olhos. Inspirou fundo. Mas não agora. Isso seria demais agora. Mais
tarde… talvez quando eu estiver mais forte. Ele cerrou os olhos e sua mente
distraiu-se com sonhos de voar alto em meio às nuvens.

JESSE SEGUIU subindo por uma estrada de cascalhos; tratava-se de uma antiga
estrada de mineração e ele tinha bastante certeza de que ninguém estaria
naquele caminho. Se conseguisse encontrar algum abrigo, seria um bom
lugar para ficarem entocados até escurecer, até que pudessem arrumar
gasolina e talvez então ele conseguisse pensar em uma maneira de escapar
desse grupo de malucos.
Isabel abaixou o vidro de sua janela e colocou a cabeça para fora,
olhando para o céu.
“Os pássaros ainda estão nos seguindo.”
Jesse pisou com tudo nos freios, deslizou e parou nos cascalhos cor de
cinza.
“O que você está fazendo?”, perguntou-lhe Isabel.
“Cuidando de algo.”
Jesse soltou seu cinto de segurança, saiu da caminhonete em um pulo e
cruzou a estrada em direção a uma clareira.
“Ei”, disse Isabel. “Não podemos parar aqui.” Ela abriu a porta do lado
dela e foi atrás dele. “Temos que continuar seguindo em frente.”
Jesse protegeu os olhos com a mão, procurou pelos pássaros e avistou
ambos circulando acima deles na luz fria do início da manhã. Os
Belsnickels saíram da caçamba da caminhonete e olharam de Jesse para
Isabel.
“Precisamos fazer com que ele volte para a caminhonete”, disse Isabel.
Makwa foi andando, agarrou Jesse pelo braço e deu um puxão nele em
direção à picape. Jesse travou olhares com o grande shawnee.
“Eu não vou fugir.”
Jesse liberou seu braço e foi andando até a traseira da picape. Ele ficou
com o olhar fixo na caminhonete de seu pai, nas faixas de sangue e nos
pedaços de pele com pelos presos no alumínio contorcido da carroceria
destruída da caçamba. A guarda traseira já era e o para-choque traseiro
arrastava-se na estrada.
Jesse colocou um dos joelhos no piso da caminhonete e inclinou-se para
dentro dela. A criatura chamada Krampus estava lá, envolta na coberta,
perto da cabine, aninhando seu saco de veludo. Ele estava olhando para fora
pela janela lateral da caminhonete, para o céu, com os olhos distantes e um
meio-sorriso no rosto, como um bêbado em um bordel. Jesse notou seu
violão, a grande rachadura ao longo de seu corpo e os trastes que estavam
faltando.
“Droga”, sussurrou ele.
Seu pai e sua mãe tinham lhe dado o violão em seu décimo segundo
aniversário e, apesar de todo o resto que tinha acontecido, ver o violão
rachado foi um baque forte para ele. Só mais uma coisa para eu me sentir
pior… só isso. Jesse empurrou-o para o lado e rolou o saco de dormir para
alcançar o rifle de caça de seu pai. Ele apanhou-o junto da caixa de pesca e
deslizou-os para fora.
Vernon segurou o cano do rifle, mantendo-o apontado para o chão.
“Que diabos você está fazendo?”
“Solta.”
“Não vou fazer isso não.”
“Então nós só vamos ficar aqui sentados até os lobos voltarem. Até que
aquele camarada, o Papai Noel, consiga nos rastrear.”
“Deixe que ele fique com a arma.”
Ambos se viraram e depararam-se com Krampus, que se apoiava na
lateral da caçamba, com o olhar fixo voltado para cima, para os pássaros
que circulavam no ar acima deles. Jesse notou que a criatura chamada
Krampus parecia estar um pouquinho melhor, mais próximo agora de um
cadáver fresco, um cadáver que tivesse ficado no solo, digamos, por apenas
uma semana, e não alguns meses.
“Krampus, não”, disse Vernon. “Aquilo é um rifle… uma arma. Você
sabe o que…?”
“Eu sei o que é um rifle”, disse Krampus, com uma voz grave e bem
áspera.
“Bem, então por que diabos você deixaria que ele ficasse com um rifle?
Ele vai sair atirando em todos nós!”
Krampus continuou a fitar os corvos lá em cima, com uma expressão
triste nos olhos.
“Isso tem que ser feito.”
“O quê? Não, essa é uma ideia muito ruim. Não se pode confiar em um
homem como…”
“Deem a arma para ele. Isso é uma ordem.”
Vernon fez uma careta, como se tivesse sentado em um prego, mas
soltou o rifle. Jesse apoiou o rifle no joelho, abriu a caixa de pescaria e
escavou-a até que encontrou uma caixa de papelão com cartuchos. Ele
colocou quinze cartuchos no pente da arma, levantou o cano, assentando
uma bala pronta para disparar, depois cruzou a estrada em direção à
clareira.
Ele avistou os corvos, imaginando que estavam a uns sessenta metros
acima deles, sabia que seria um tiro fácil de acertar, sendo os animais tão
grandes, pelo menos com esse rifle. Se uma pessoa lida com uma arma por
muito tempo, a arma acaba se tornando uma extensão de si mesma, e Jesse
tinha passado metade de sua vida com essa arma calibre .22 do velho
Henry. Uma vez ele tinha atirado em um besouro-mangangá no ar com ela.
Ele ajeitou o rifle em seu ombro, avistou um dos corvos, preparou a mira
para compensar a distância e atirou. A arma disparou como se tivesse
levado um tapinha de um velho amigo, e uma rajada de penas foi pelos ares.
Foi uma matança certeira e o corvo caiu do céu. A ave remanescente soltou
um grito penetrante e começou a bater as asas com fúria, voando para
longe, mas Jesse já o tinha na mira. Ele puxou o gatilho duas vezes,
rapidamente, errando o primeiro tiro, mas acertando o segundo na asa do
pássaro, fazendo com que ele caísse em espiral com uma chuva de penas.
Jesse preparou a arma para dispará-la mais uma vez, virou-se e mirou
em Krampus.
“Saiam da minha caminhonete. Todos vocês.”
Os Belsnickels ficaram paralisados, todos eles com os olhos grudados
em Jesse. Porém, Krampus não olhou para ele nem mesmo de relance, só
ficou observando enquanto os grandes pássaros caíam com tudo no chão.
Um dos corvos caiu na clareira e o outro, cerca de uns cinquenta metros
estrada acima.
“Makwa, traga-me os pássaros.”
Makwa continuou encarando Jesse, cerrando e abrindo suas mãos fortes.
Jesse podia ver que o grande shawnee pretendia fazer picadinho dele.
“Makwa?”
O shawnee ficou duro.
“Isso é uma ordem.”
Makwa voltou um último olhar para Jesse, um olhar que lhe prometia
uma morte terrível, e subiu a estrada correndo.
Jesse apontou a arma para Krampus.
“Pega a porcaria do seu saco e cai fora da minha caminhonete. Não vou
falar duas vezes.”
Os quatro Belsnickels que ali ficaram espalharam-se para cercar Jesse,
que ergueu a arma na altura do ombro.
“Mais um passo e vou arrancar a cabeça dele com um tiro. Vão em
frente, caramba. Duvido!”
“Deixem-no para lá”, disse Krampus, com calma, cujo tom de voz
soava quase entediado, distraído até, enquanto ele ainda olhava para os
pássaros. “Recuem, isso é uma ordem.”
Os Belsnickels pararam, recuaram um passo e só ficaram ali, em pé,
trocando olhares confusos.
“Agora saia da minha caminhonete”, repetiu Jesse.
“Eu achei que você não fosse falar duas vezes…”
“Bem, certamente não vou falar uma terceira, caramba”, grunhiu Jesse.
“Com certeza.” Krampus virou o rosto para Jesse e sorriu. “Nós
precisamos da sua ajuda.”
“Não estou nem aí pra isso.”
“Pelo que ouvi, você parece ter muitos inimigos.”
“Isso não lhe diz respeito.”
“Talvez você precise da nossa ajuda, não?”, disse Krampus. “Talvez
existam maneiras de nos ajudarmos.”
“Acho que não.”
“Você viu os meus Belsnickels em ação. Você sabe do que eles são
capazes. E se eles estiverem sob o seu comando? Se houver sangue que
precise ser derramado, eles são muito capazes.”
Jesse começou a balançar a cabeça em negativa, e depois parou, olhou
para as criaturas-diabo, os Belsnickels, olhou para suas garras mortais, seus
aterrorizantes olhos cor de laranja, pensou em como eles tinham atacado
sua caminhonete, pensou em como eles eram rápidos e fortes, na facilidade
com que eles tiraram Chet da parada e mataram Lynyrd. Criaturas furtivas
da noite… eles poderiam matar os rapazes do General antes mesmo de eles
saberem que estavam lá. Jesse sabia que, depois da forma como as coisas
haviam acontecido na noite passada, o General já teria emitido sua sentença
de morte. Ele tinha ouvido Chet gritando que se tratava de uma armação,
sem dúvida que todos eles veriam as coisas dessa forma, e não havia
explicação de sua parte que pudesse mudar isso. Ele também sabia que o
General colocaria um preço em sua cabeça, ofereceria uma recompensa a
qualquer um que lhe dissesse onde Jesse estava, contaria com todos os
recursos para ir atrás dele. Porém, acima de tudo, o General tinha deixado
claro que, se algum dia Jesse o traísse, ele machucaria Abigail, que a
colocaria em um caixão. Jesse tinha certeza de que eles já a tinham pegado
e, muito provavelmente, a haviam levado para o local onde se escondiam.
Ele não conseguia deixar de pensar em como ela devia estar assustada.
“Tem uns caras malvados atrás da minha filha”, disse Jesse. “Eu preciso
me certificar de que ela esteja a salvo.”
Krampus assentiu.
“Entendo.”
“Tem mais coisas em relação a isso. É complicado. Eu preciso me
certificar de que eles nunca mais vão machucá-la.”
“Homens mortos não podem machucar ninguém.” E Krampus sorriu.
Jesse pensou em como suas chances seriam boas se ele aparecesse no
complexo do General sozinho com seu velho rifle contra uma dúzia ou mais
de homens armados até os dentes, homens com armas automáticas.
“Sou muito bom em punir os maus. Nós podemos matá-los… Podemos
fazer com que sumam.”
Krampus apontou para dentro da caçamba, para o saco de veludo.
“O que você quer dizer com isso?”
“Eu quero dizer que eu sou o mestre do saco. Eu posso ordenar que ele
se abra para qualquer lugar que eu desejar… qualquer lugar deste mundo ou
de outros mundos. Nós podemos mandar os seus amigos para o fundo do
oceano, para o reino dos mortos se você preferir.” O sorriso de Krampus
ficou sinistro.
Jesse tentou entender isso. Ele não tinha considerado o que aconteceria
se colocasse alguma coisa dentro do saco, não tinha pensado em onde
haveria de ir parar. Ele achou esse pensamento perturbador, mas, se fosse
verdade, se qualquer coisa que essa criatura prometesse fosse verdade, com
certeza isso haveria de simplificar as coisas, poderia até mesmo fazer com
que ele nem fosse preso. Só que… Como é que alguém confia em um
diabo? Ele ficou olhando intensamente para Krampus.
“Como você pode confiar em mim?” Jesse ficou alarmado com a
facilidade com que Krampus lia sua mente. “Você já salvou a minha vida
uma vez. Por que eu não o ajudaria?”
Jesse deu-se conta de que tudo se resumia a arriscar-se. As chances de
conseguir salvar sua filha sozinho em comparação com as chances de que
essa criatura, esse diabo, realmente viesse à sua ajuda. Talvez essa seja uma
oportunidade. Talvez valha a pena pelo menos tentar uma vez que seja.
Makwa retornou, segurando os dois pássaros pelos pescoços. Ele voltou
um olhar sombrio para Jesse. Um dos pássaros ainda estava vivo e Krampus
esticou a mão para ele. Jesse sabia que os pássaros eram grandes, muito
maiores do que qualquer corvo que já tivesse visto na vida, mas, ao ver os
pássaros assim de perto, ele ficou assombrado. Eles eram tão grandes
quanto um abutre ou uma águia, pelo menos. O pássaro se debatia na
pegada de Krampus, grasnava e tentava mordê-lo e bicá-lo.
“Huginn”, arrulhou Krampus baixinho para o pássaro. “Huginn, tenha
coragem.” Krampus inclinou a cabeça e sussurrou baixinho, de uma forma
tranquilizante, junto ao ouvido do pássaro, que começou a acalmar-se.
Krampus aninhou-o, acariciando com gentileza suas penas pretas. A
respiração do pássaro ficou mais lenta e seus olhos se fecharam. Krampus
deu um beijo no topo da cabeça dele. “Eu sofro vendo você assim. Tanto
você quanto seu irmão serviram bem a Odin.”
Ele fez carinho no bico do corvo, em sua cabeça. O pássaro inflou as
penas e encostou-se no peito de Krampus, que deslizou os dedos em volta
do pescoço dele e o torceu rapidamente e com força. Jesse ouviu um estalo
e o pássaro ficou imóvel. Krampus abraçou o pássaro e Jesse pôde ver a
aflição no rosto dele.
“Tão poucos dos antigos ainda estão vivos”, disse Krampus quase para
si mesmo. “E agora nós temos dois a menos.” Seus lábios começaram a
tremer. “Este feito recai sobre você, Papai Noel. Mais um assassinato para
acrescentar a sua lista, mais uma morte a ser vingada.” Krampus deu um
beijo no topo da cabeça do corvo mais uma vez e depois deu uma mordida
no crânio do pássaro.
“Minha nossa”, disse Jesse, e recuou um passo.
Krampus mastigava ruidosamente, triturando os ossos entre seus dentes.
Ele engoliu e olhou na direção do céu.
“Obrigado, Odin. Obrigado por este grande presente… por esta
generosidade do seu sangue em meus momentos de necessidade.”
Ele limpou os lábios e deu mais uma mordida, depois outra, então mais
uma, enquanto o sangue do corvo escorria por seu queixo e por seu peito.
Jesse olhou de relance para ver se os Belsnickels estavam tão chocados
quanto ele, mas eles agiam como se nada de incomum estivesse
acontecendo. Krampus comeu não só a carne e as entranhas do pássaro, mas
também o bico, os ossos e as garras. Ele desceu deslizando da traseira da
caminhonete e, no chão, pegou o outro pássaro, agachou-se e ficou
mastigando até que tivesse consumido todas as suas penas.
Os primeiros raios do sol raiaram por cima da montanha, reluzindo na
neve. Krampus levantou a cabeça e banhou-se na luz. Ele soltou um
profundo gemido, e Jesse notou a mudança: a pele da criatura estava
adquirindo pigmentação bem diante dos seus olhos, escurecendo de um
cinza quase translúcido para o preto. Sua carne e seus ossos pareciam
ganhar substância.
Krampus segurou-se no para-choque e puxou-se para cima em pés que
ainda estavam instáveis, apoiando-se na caminhonete. Era evidente que
ainda estava longe de ficar saudável, mas agora era uma besta muito mais
formidável do que a criatura que estava aninhada na coberta. Ele olhou para
Jesse e para a arma como se estivesse fazendo isso pela primeira vez.
“O que era que estávamos discutindo?”
“Sobre como você poderia me ajudar a me livrar de uns lixos aí.”
Krampus sorriu, limpou a mão no rosto, nos pelos de seu queixo, olhou
para o sangue que manchava seus dedos e ofereceu a mão a Jesse.
“Não existe nenhum pacto mais forte do que aquele selado com
sangue.”
Jesse ficou olhando para o sangue.
“O que você precisa que eu faça?”
“Eu preciso de um lugar para me esconder. Um lugar onde eu possa me
curar, onde eu possa me preparar. Preciso de um rosto menos escuro e de
olhos que não sejam reluzentes para conseguir pegar uns poucos itens de
necessidade. Só isso.”
“E por isso você vai me ajudar a pegar minha filha? Vai matar aqueles
homens que a pegaram?”
Os olhos de Krampus reluziam.
“Faz muito tempo desde a época em que eu era terrível. Sinto
muitíssima falta disso. Será um ótimo presente ver o medo nos olhos deles,
ouvi-los implorando por suas vidas, banquetear-me no sangue e nos gritos
de morte deles.”
“Banquetear-se nos gritos de morte deles”, disse Jesse, como se
estivesse saboreando as palavras. “Gosto de como isso soa.” Ele apoiou o
rifle na caminhonete, foi andando até Krampus e pegou na mão estendida
dele.
Jesse estava fazendo um pacto com o diabo e não se importava nem um
pouquinho com isso.

O CELULAR DE DILLARD tocou no painel de seu Suburban. Ele colocou o café


no porta-copos, pegou o telefone, olhou para o nome da pessoa que estava
fazendo a ligação e pensou em não atender. Era o General, de novo, pela
terceira vez na última hora. O celular tocou, tocou, repetidas vezes. Dillard
fez uma careta e o abriu para atender a ligação.
“Quais as novidades?”, quis saber o General, cuja voz estava grossa e
soava rascada, como se tivesse gritado muito.
Dillard mudou o telefone para a mão esquerda e virou na Coal River
Road.
“Novidades?”
“É, quais as merdas das novidades?”
Não havia nenhuma novidade. Jesse e aquela merdinha de caminhonete
dele tinham sumido. Havia várias estradas de carvão que cruzavam as
montanhas em torno de Goodhope e quase o mesmo tanto de velhas
estradas de mineração, a maioria das quais não constava em nenhum mapa.
Nem mesmo com toda a equipe do General por lá, dirigindo à procura dele,
eles não tinham homens o bastante para fazer uma busca por sequer metade
dessas estradas. Merda, pensou Dillard, mesmo que eu tivesse toda a força
policial do Estado, ainda levaria mais de uma semana. O problema era que
o General não queria ouvir isso. “Noel está no norte, fazendo uma varredura
nas colinas em torno do Elk Run agorinha mesmo. Vou falar com os
camaradas pelo condado todo, camaradas com quem sei que posso contar.
Vou dizer que é uma questão pessoal entre Jesse e eu. Eles prometeram ficar
de olho.”
“E quanto à cavalaria?”
“Temos que tomar cuidado quanto a eles. É difícil ter muitos policiais
além dos de sempre envolvidos sem que façam um bocado de perguntas. As
coisas podem ficar complicadas se Jesse for pego pelo xerife. Não temos
como saber o que ele poderia dizer, e a última coisa de que precisamos é do
xerife Wright metendo o nariz em nossos negócios.”
“Enquanto estivermos com a filhinha dele, Jesse vai manter aquela boca
dele bem fechada.”
“Bem, é, talvez. Sendo esse o caso e tal, eu tenho dificuldades de
entender por que ele se meteu naquela merda na noite passada, isso me leva
a acreditar que alguém o persuadiu a fazer aquilo. Eu tenho uma irritante
suspeita de que isso tem a ver com aqueles meninos de Charleston de que
cuidamos. Suspeito de que eles estejam fazendo com que o Jesse se vingue
de nós.”
“Existe muita coisa nisso daí que eu não gosto”, expeliu o General.
“Não gosto nem um pouquinho. Mas com uma coisa você pode contar. Que
inferno! Com certeza eu vou até o fundo disso daí.”
Então somos dois, pensou Dillard. Ele ainda estava tentando discernir o
que havia acontecido na noite passada. Em um segundo, ele estava
mexendo no rádio, no seguinte, havia tiros e Chet corria em direção a ele
gritando ensandecido. Aqueles homens, quem quer que fossem, tinham
matado Lynyrd… E, com apenas uma lança, tinham roubado a mercadoria e
saído ilesos. Eles tinham matado um Boggs. E o pior era que isso tinha
acontecido bem debaixo do nariz dele. Agora, para completar, ele tinha que
encobrir um assassinato. Mas a coisa que mais tinha deixado Dillard
incomodado era aquele homem estranho, aquele homem vestido de Papai
Noel. Ele o tinha acertado, batido com tudo com a viatura nele. A frente
amassada do carro era prova disso. Dillard não conseguia lembrar-se
exatamente do que aconteceu depois. Ele esfregou o galo que doía em sua
testa; aquele maldito airbag quase o tinha nocauteado. Ainda assim, em
momento algum ele não achou sequer um rastro do homem. Era como se
ele fosse um produto da sua imaginação. Mas ele era real. Eu sei o que eu
vi.
“E quanto ao Lynyrd?”, quis saber o General.
“Cabe a você decidir.” O General não respondeu. “É melhor evitar se
arriscar”, sugeriu Dillard. “Você deveria se livrar de todas as evidências.”
“Não consigo suportar a ideia de me desfazer do corpo dele desse jeito.
Eu conhecia aquele rapaz desde que era um bebê.”
“É melhor levá-lo até onde levei os outros.”
“É, eu sei disso. É só que isso me incomoda de verdade, só isso.”
“Quer tentar achar um lugar isolado lá em cima em suas terras?”
“Não, não me incomoda tanto assim. Arriscado demais.”
“E quanto à irmã dele? Acha que ela vai fazer um alarde?”
“Nem”, disse o General. “Lynyrd passava mais tempo fora do que
dentro de casa. Vai demorar um bom tempo para alguém notar que ele se
foi.”
Ambos ficaram em silêncio. A neve começou a acumular-se e Dillard
colocou os limpadores de para-brisas para funcionar.
“Onde está a filhinha do Jesse?”, quis saber o General. “Ela ainda está
lá na sua casa?”
“Ela está na casa da avó.”
“Você acha que essa é uma ideia inteligente?”
“Pretendo buscá-la ainda esta manhã. Mantê-la por perto.”
“Eu gostaria que você a trouxesse para cá quando tiver oportunidade.”
Dillard aumentou sua pegada no volante.
“Não acho que isso seja uma boa ideia.”
“Relaxa, não vou fazer nada com ela. Que tipo de homem você acha que
eu sou? Só quero garantir que o Jesse não possa pegá-la.”
“Então o seu plano é manter Abigail no complexo? Fala sério! Você está
de brincadeira, certo? Ora, a mãe dela faria o inferno cair em cima de nós
dois.”
“Com quem eu estou falando? Desde quando Dillard Deaton deixa que
uma mulher, qualquer mulher, diga a ele como fazer seus negócios? Eu
acho que os belos olhos da Linda estão derrotando você.”
“As coisas vão ser diferentes com a Linda.”
O General soltou uma bufada e Dillard sentiu-se cutucado.
“Você está enganando a si mesmo”, disse o General. “Pode guardar o
que estou falando: na primeira vez em que ela falar atravessado com você,
você vai endireitá-la, exatamente como fez com a Ellen. Ah, se não vai!”
Não, pensou Dillard. Ele levou o carro para o acostamento da estrada e
ficou lá, sentado, com o motor ocioso. Não desta vez. Não vou machucar as
pessoas que eu amo. O diabo não vai me ganhar dessa vez, nem nunca
mais. As coisas vão dar certo com a Linda. Você vai ver.
“Dillard, alô? Cacete, você está aí ainda?”
“Você quer pegar o Jesse ou bancar a babá?”
“O quê?”
“Jesse pode estar lá em cima nas colinas, pode ser que esteja em
Charleston… Que diabos… É muito provável que ele esteja no México,
caramba! Mas uma coisa que eu sei com certeza é que, em algum momento,
ele estará de volta procurando pegar a filha dele. Pode ser hoje, amanhã,
pode ser daqui duas semanas, dois meses. Você está pensando em manter
Abigail trancafiada em seu escritório por dois meses?”
O General não respondeu.
“Abigail é nossa melhor chance de conseguir pegar o Jesse. Se ela
estiver no complexo, ele não virá atrás dela. Aquele rapaz pode ser idiota,
mas não tanto assim. Porém, se ela estiver aqui, na minha casa, ele pode
tentar fazer alguma coisa. E quando ele tentar, eu vou pegá-lo. Ele não sairá
vivo de Goodhope. Isso eu posso lhe garantir.”
“É, bem, e quanto àqueles rapazes com quem ele está trabalhando? E se
eles aparecerem junto?”
“Nós estamos falando do Jesse. Ele não está no comando. Por que os
rapazes de Charleston arriscariam os pescoços deles pela filha de Jesse?
Eles conseguiram o que queriam. Eu não ficaria nem um pouco surpreso se
eles já tivessem enchido Jesse de balas a essa altura e tivessem jogado o
cadáver esburacado em algum canal por aí.”
“Que diabos, eu espero que não!”, gritou o General. “Quero aquele
rapaz vivo. Vou fazer com que ele coma o próprio pinto. Vou encher a
cabeça dele de óleo de motor e tacar fogo! Que merda, com certeza que eu
vou fazer isso! Ele vai abrir a boca, cacete! Vai me contar quem são esses
patifes com quem está andando!” A voz do General continuou a ficar cada
vez mais alta. “Vou cozinhar esses porras vivos, cacete! Todos eles! Deixe-
me dizer…”
Dillard afastou o celular da orelha, colocou-o no painel do carro e
tomou mais um gole de seu café. O General soava como um marimbondo
preso em um jarro.
Lá vamos nós outra vez, pensou Dillard, se perguntando o quanto o cara
estaria doidão. Ele sabia que o General tinha uma quedinha por
anfetaminas, mas estava começando a suspeitar que a quedinha tinha virado
um tombo. Parecia que ultimamente o comportamento dele estava ficando
cada vez mais errático, paranoico, perdendo o controle num piscar de olhos,
mas, o pior de tudo, ele estava ficando desleixado.
Dillard esfregou o lugar onde o airbag o tinha atingido e sentiu uma dor
de cabeça a caminho. Errático e desleixado eram duas coisas que ele não
curtia. Ele preferia que as coisas fossem bonitas e limpinhas, como seus
Tupperwares, todas as vasilhas em uma prateleira, todas as tampas na
gaveta de baixo, cada cor de tampa correspondendo à cor da tigela que
tampava. Mas agora, graças a Jesse, nada estava bonito nem limpinho, não
mais. O General estava falando coisas de gente doida e Dillard sentia que
estava vendo o homem caindo e não gostava muito da ideia de cair junto
dele. Cada vez mais ele se encontrava desejando lavar as mãos para esse
caso como um todo; simplesmente cair fora. O único problema é que
ninguém sai andando e deixa o General, não, a menos que pretenda ir para
bem longe, até o México. Mesmo então não haveria nenhuma garantia, não
com Sampson Boggs, porque ninguém guardava rancores como ele. É claro
que havia outra maneira. Seria uma pena se o General sumisse do mapa.
Quando o volume da voz do General abaixou um pouco, Dillard levou o
telefone de volta a seu ouvido.
“…Você sabe o que estou falando, porra?”, dizia o General. “Sabe?”
“Nós vamos pegá-lo. Só me deixe fazer meu trabalho.”
“Eu não estou de brincadeira, cacete, Dillard. Ninguém rouba de mim.
Ninguém mata um Boggs e vive para contar a história. Vou garantir que
aquele garoto morra. Não me importa se eu vá levar o resto da minha vida
para fazer isso.”
A ligação terminou e Dillard fechou o celular. Ele saiu com o carro, deu
a volta e voltou a subir pela Rota 3, em direção à casa da mãe de Linda. Ele
não gostava muito da forma como o General estava agindo e achou que
poderia ser prudente se fosse em frente, pegasse Abigail agora e a trouxesse
de volta para sua casa.
Dillard deixou sair um longo suspiro. Bem, de uma forma ou de outra,
Jesse será apagado dessa parada. Isso com certeza aliviaria o meu lado
com a Linda.

LINDA OUVIU a porta da frente se abrir, colocou seu café de lado e espiou
para fora da cozinha. Dillard entrou carregando Abigail em um de seus
braços. Ela estava envolvida em seu cobertor, ainda de pijama, adormecida
junto ao peito dele.
Linda começou a perguntar que diabos ele estava fazendo com Abigail a
essa hora da manhã quando outra pergunta veio com tudo em sua mente:
será que teria acontecido alguma coisa com sua mãe?
Dillard levou um dedo aos lábios e entregou Abigail a Linda. A menina
murmurou alguma coisa, irritada, apertou a pegada em sua boneca e voltou
a dormir.
“Dillard”, sussurrou Linda. “O que foi que aconteceu?”
“Coloque ela na cama. Eu explico.”
Linda não gostou nem um pouco da expressão no rosto de Dillard. Ela
levou Abigail para o quarto dela, arrumou-a na cama e logo voltou para a
sala, onde encontrou Dillard sentado à mesa, aquecendo as mãos em volta
de uma fumegante xícara de café.
“O que foi que aconteceu?”
Dillard deu uns tapinhas na cadeira ao lado dele.
“Sente-se aqui, Linda. Nós precisamos conversar.”
A austeridade na voz dele pegou-a desprevenida.
“Ok… certo.”
Ela sentou-se, abraçou-se e então notou que ele estava com as chaves
dela.
“Dillard, docinho, você está me assustando. O que está acontecendo?”
“É o Jesse.”
“Jesse?” Isso deixou-a abalada por um instante. “Ah… ah, não. Aonde
ele foi e o que foi que ele fez agora?”
“Ele ameaçou matar você e a Abigail.”
“O quê?” Ela levantou-se de novo. “Do que você está falando?”
Dillard tomou um gole de seu café.
“Jesse teve um surto de comportamento violento ontem à noite.”
“Jesse? Não. Está tudo bem com ele? O que foi que aconteceu? Dillard,
ele está bem?”
“Não é com ele que você deveria estar preocupada”, disse Dillard, em
um tom mordido. “Já vi isso vezes demais antes. Separações amargas que
acabam levando as pessoas a fazer os piores tipos de coisas umas com as
outras.”
“Dillard, só me conta o que aconteceu.”
“Jesse não aceitou bem as notícias.”
“Que notícias? Dillard, do que você…?”
“Sobre o nosso casamento e tal.”
Linda voltou a sentar-se.
“Espera. Como foi que ele ficou sabendo disso… Você contou isso a
ele?”
Dillard a olhou como se ela fosse uma criança. Linda odiava esse olhar.
“Dillard… não! Não era para você ter feito isso.” Ela lutava para não
perder totalmente o controle. “Você não tinha nenhum direito de fazer isso.
Isso era só entre nós dois.” Ela olhou com ódio para ele. “Caramba, nós
nem mesmo firmamos nada ainda. Não cabia a você fazer…”
Ele cerrou uma das mãos no pulso dela. Ele arregalou os olhos, sua boca
estava apertada.
“Isso precisava ser feito. Então eu fiz.”
Ela começou a responder e então captou a expressão no olho dele: uma
profunda frieza que a deixou assustada. Ele apertou a pegada no braço dela.
“Dillard, me solta. Você está me machucando.” Com força, ela
conseguiu soltar os dedos dele de seu pulso e afastá-lo. “Agora, por favor,
me conte o que aconteceu.”
Ele fechou bem os olhos, inspirou fundo e, quando abriu os olhos
novamente, parecia recomposto.
“Jesse encontrou-se com Chet e Lynyrd na noite passada, procurando
fazer algum serviço para o General. Eles disseram que ele parecia
desesperado e agitado, acharam que ele poderia estar drogado. Disseram a
ele que o General não queria mais que ele fizesse nada para ele, que fosse
procurar trabalho em algum outro lugar. Bem, Jesse não aceitou isso lá
muito bem. Começou a reclamar e a xingar o General, xingando a mim, a
você, Jesus e todo o resto da Criação. Quando Chet e Lynyrd tentaram
acalmá-lo, ele sacou a arma, ameaçou atirar neles. Disse que preferia ver
você e a Abigail mortas em vez de outro homem ficar com você. Deu uns
tiros para o ar, entrou em sua caminhonete e saiu dirigindo.”
Linda cobriu a boca.
“Chet me ligou na noite passada e me transmitiu o aviso. Fiquei
tentando a noite toda rastrear o Jesse.”
“Oh, meu Deus!”
Linda plantou as duas mãos na mesa para estabilizar-se.
“Linda, esse não é o Jesse que você conhecia. Ele está perturbado,
instável. Não temos como dizer o que ele seria capaz de fazer.”
Linda balançou a cabeça em negativa, sem conseguir acreditar em nada
daquilo. Jesse tinha feito um monte de coisas doidas, mas ele nunca erguera
um dedo que fosse para ela ou Abigail… nem para ninguém, não que ela
conseguisse lembrar, a propósito.
“Linda, eu preciso que você me ajude aqui. Preciso saber que posso
contar com você.”
Ela assentiu rapidamente.
“É claro, eu vou fazer o que puder. O que é que…?”
“Eu preciso que você fique em casa até que eu lhe diga que pode sair.
Você pode fazer isso?”
Não, ela pensou. Preciso encontrar Jesse. Preciso falar com ele.
“Eu preciso encontrar Jesse antes que alguém se machuque”, continuou
Dillard. “Antes que o próprio Jesse se machuque, machuque você ou a
filhinha de vocês. Agora mesmo, aposto que Jesse está na caminhonete dele
em algum lugar, dormindo para recuperar-se de uma bebedeira das brabas.
Eu gostaria de pegá-lo antes que ele fique com o sangue quente de novo.
Levá-lo para esfriar os ânimos em uma cela por alguns dias. Talvez assim
ninguém saia ferido. Seria bem mais fácil se eu soubesse que você e Abigail
estão bem aqui.”
“Dillard, não há necessidade de se preocupar conosco. Jesse só estava
perturbado. Eu juro a você que ele é todo cheio de conversa, só isso. Jesse
nunca machucaria a Abi. Nunca.”
“Talvez sim, talvez não, mas você consegue me dizer com certeza que
ele não pegaria Abigail e fugiria com ela se tivesse essa oportunidade? Você
tem total certeza disso?”
Linda começou a responder, e então não disse nada, porque não podia
afirmar nada com certeza.
“Só não vejo por que…”
Dillard estava olhando para ela daquele jeito de novo, como se ela não
soubesse amarrar os cadarços de seus próprios sapatos.
“Bem, deixe-me esclarecer ainda mais as coisas para você. Eu não
consigo fazer o meu trabalho se eu ficar me preocupando com onde você e
Abigail podem estar.” Linda podia ouvir a crescente irritação na voz dele.
“Vocês não podem ficar na casa da sua mãe, porque a casa dela é muito
afastada da cidade. Eu preciso que vocês fiquem aqui, onde eu posso ficar
de olho em vocês. Ok? Você acha que consegue me fazer esse favorzinho?”
Linda inspirou fundo e tentou deixar isso para lá. Ele está perturbado,
ficou acordado a noite toda. Só está preocupado comigo e com Abi. Só isso,
vou deixar isso pra lá por ora.
“Ok”, disse Linda. “Ok.”
“Que bom.” Dillard levantou-se, puxou seu casaco no lugar e foi em
direção à porta. “Só fica aqui quietinha. Noel está cobrindo a vizinhança,
então ele vai ficar de olho nas coisas até eu voltar. Sendo assim, contanto
que vocês fiquem aqui, tudo ficará bem.”
Só foi depois que Dillard tinha saído com o carro, Linda se deu conta de
que ele havia levado suas chaves e trancado a porta pelo lado de fora. Ela
esfregou o lugar onde ele a tinha segurado, sem parar de pensar no modo
como os olhos dele tinham ficado tão frios. Ela estava se questionando se
talvez houvesse apressado as coisas, se essa bela casa e o carro novo tinham
tomado mais fácil para ela ignorar os rumores sobre a primeira esposa de
Dillard.

JESSE AVISTOU um baixo campanário aparecendo acima de um aglomerado de


árvores e arbustos e diminuiu a velocidade. Ele deparou-se com um acesso
de veículos, quase totalmente engolido pelos arbustos, e virou na estrada de
cascalho. Sarças e árvores jovens raspavam na lateral da caminhonete
enquanto ele passava por ali, na longa descida até uma pequena igreja. A
estrutura tinha uma leve inclinação, como se um vento mais forte fosse virá-
la. As tábuas e o trilho lateral estavam sem tinta e acinzentados, de um
cinza claro, por causa das intempéries. Havia uma grande cruz de madeira
estilhaçada nos degraus da frente da igreja, aparentemente caída de cima do
campanário. A porta e as janelas estavam cobertas de tábuas e Jesse não viu
nenhum sinal de que o lugar tivesse recebido visitas em eras.
Eles estavam bem longe da estrada, mas Jesse não queria se arriscar
nem um pouco que fosse, então seguiu pelo caminho todo até atrás da
igreja, estacionando debaixo de um carvalho escarrapachado. Ele desligou o
motor da caminhonete e desceu. Isabel também saiu do veículo e eles deram
a volta enquanto os Belsnickels ajudavam Krampus a sair da caçamba.
Krampus jogou o saco por cima do ombro e deslizou para fora. Tanto sua
pele quanto seus cabelos estavam ainda mais escuros agora, de um preto
muito intenso, quase da cor do piche, e parecia que seus chifres estavam
voltando a crescer. Ele ainda mancava um pouco, mas Jesse achava difícil
acreditar que essa era a mesma criatura destruída que ele vira antes na
caverna.
Uma cerca de arame farpado corria só até o outro lado do carvalho;
havia três vacas paradas em frente ao arame farpado, olhando para eles com
expressões entediadas e nada impressionadas.
Krampus inspirou fundo; ele parecia inalar tudo a seu redor.
“É bom estar vivo neste dia.”
Vernon revirou os olhos.
Krampus deu risada e deu um tapa nas costas de Vernon.
“Abra sua alma, meu querido Vernon, e deixe que a Mãe Terra entoe sua
canção para você.”
A voz de Krampus soava mais forte, mais encorpada, mais grave e
lírica, como o som de um violoncelo.
Jesse puxou da neve um galho cheio de folhas cinzentas e murchas e
seguiu de volta em direção à estrada.
“Aonde você está indo?”, quis saber Isabel.
“Caçar monstros.”
“Caçar monstros? Que monstros?”
Jesse olhou para ela como se ela devesse estar de brincadeira.
“Sério?”
Ela franziu o cenho.
“Que foi? Que monstros?”
Jesse soltou uma bufada. A expressão no rosto de Isabel ficou anuviada
e Jesse não conseguiu evitar dar uma risada. Isabel colocou as mãos nos
quadris.
“Bem, você vai me dizer que monstros vai caçar ou não?”
Jesse apenas balançou a cabeça e continuou seguindo pela passagem de
carros. Isabel ficou em pé, parada no lugar onde estava por um instante,
antes de soltar uma bufada e ir atrás dele. Jesse parou onde as marcas de
seus pneus deixavam a estrada de cascalhos. Ele roçou com o galho para a
frente e para trás na neve recém caída, fazendo um trabalho ao menos
passável de obscurecer os rastros. Ele jogou o galho longe.
“Isso vai ter que servir.”
Ele notou que Isabel ainda parecia perturbada. Ele abriu um sorriso.
“Se conseguirmos sair dessa encrenca, eu prometo levar você para caçar
monstros.”
Jesse analisou o horizonte. As nuvens estavam aproximando-se outra
vez e o céu ameaçava nevar. Jesse esperava que isso acontecesse logo, pois
a neve cobriria os rastros deles. Ele voltou para a caminhonete e tirou de lá
seu violão. Os Belsnickels tinham entrado na igreja pela porta dos fundos, e
Jesse entrou lá depois de Isabel.
Não havia eletricidade e estava difícil enxergar com todas as janelas
cobertas por tábuas, mas a escuridão empoeirada não intimidou os
Belsnickels, que estavam ocupados tirando pilhas de lixo e caixas velhas
das fileiras de bancos, arrumando espaço para sentar-se e deitar-se. Vernon
agachou-se na frente de um fogão arredondado de ferro fundido, enchendo-
o de pedaços quebrados dos painéis de cedro, preparando-se para acender o
fogo.
Jesse encontrou várias lamparinas a óleo em uma prateleira. Ele juntou
os restinhos de óleo até que tivesse uma lamparina cheia. Mergulhou o
pavio no líquido e pegou o isqueiro e acendeu-o, baixando a chama. Ele foi
até onde Vernon estava e emprestou o isqueiro a ele, e logo o fogão estava
produzindo calor.
O espaço não era muito maior do que uma sala de aula de escolinha e
parecia ter sido usado para armazenar coisas durante décadas. Havia um
púlpito acima de uma pequena plataforma construída junto à parede mais
afastada. Havia uma grande cruz entalhada a mão com o sofredor Filho de
Deus pendurada atrás dele. Krampus ficou parado na frente da cruz, com o
olhar fixo nos olhos torturados de Jesus, com seu rabo agitado.
Isabel chegou carregando um punhado de cortinas poeirentas.
“Toma.” Ela jogou uma delas para Jesse. “Não é lá grande coisa, mas
vai ajudar você a não ficar com frio. Tem mais um punhado delas ali em
cima, perto do fogão, se precisar.”
Ela seguiu em frente, entregando o restante das cortinas aos outros
Belsnickels.
Jesse carregou a cortina até um piano detonado que estava coberto de
ninhos de marimbondo. Ele jogou a cortina no chão ao lado da parede e
esticou-a, apoiando uma bota em cima da outra. Ele reclinou a cabeça,
soltando o ar, cansado e expirando longamente. A sensação de parar de se
mexer por um tempinho é danada de boa. Caiu a ficha para ele de que ele
vinha correndo sem parar e sem dormir, e não só por um tempinho, mas por
quase 24 horas. Ele colocou o violão no colo, vendo se conseguia arrumar
aqueles trastes soltos. Quebrado ou não, ele ainda achava reconfortante só
segurar o violão. Ele dedilhou devagar as cordas enquanto tentava afinar o
instrumento de novo. “Droga”, ele sussurrou, flexionando a mão. Estava
ficando difícil mexer os dedos. A ferida tinha ficado vermelha e inflamada,
e Jesse estava com medo de que pudesse estar infeccionada. Do jeito que as
coisas estão indo para mim, provavelmente a mão estará gangrenada pela
manhã.
Ele notou que Krampus o observava. A criatura veio mancando até ele e
sentou-se a seu lado. Krampus parecia exausto, mas ainda assim havia um
brilho em seus olhos que não estava lá antes.
“Este é um longo dia para todos nós, na verdade”, disse Krampus. “Para
mim, é o fim de quinhentos anos de longos dias.” Ele puxou o saco para seu
colo e fez carinho nele como se fosse um bichinho de estimação, enquanto,
juntos, eles observavam os Belsnickels se preparando para dormir, todos
com exceção de Vernon, que andava inquieto de um lado para o outro pela
igreja, espiando para fora por entre as tábuas, como se o Papai Noel
estivesse lá fora com sua espada e um bando faminto de lobos.
Krampus deu uns tapinhas de leve no violão de Jesse.
“Você tem música no coração.” Jesse assentiu. “Eu gostaria que você
tocasse uma canção para mim.”
Jesse abriu a palma de sua mão e mostrou a ferida a Krampus.
“Não consigo… não até que isso daqui esteja curado, de qualquer
forma.” Depois ele falou quase para si mesmo: “Talvez nunca mais…”
“Pode ser que eu tenha algo para isso aqui.” Krampus abriu o saco,
fechou os olhos e enfiou a mão nele. A concentração extasiada repuxava
suas feições, então um sorriso abriu-se em seu rosto. “Ah… nem tudo está
perdido… algumas coisas sobreviveram à grande chama.” Krampus puxou
para fora um frasco cônico, coberto de cinzas pretas, com seu longo gargalo
selado com cera tostada. Ele tirou a cera e puxou uma rolha que estava
apodrecendo, então levou a garrafa aos lábios e tomou um longo gole de
seu conteúdo. “Ahh!” Ele limpou a boca com o dorso do braço. “Mais doce
ainda depois dessa longa espera.”
“Agora, estica a mão.” Jesse parecia incerto. “Não tenha medo, não se
trata de um mel qualquer, mas sim do hidromel das provisões do próprio
Odin. Isso daqui”, Krampus estirou o frasco e falou, maravilhado, “vem das
adegas do próprio Valhalla. Vem dos ubres de Heidrun, que se alimenta da
folhagem da árvore Laeraor. Vai fazer bem para sua ferida. Ora, estique a
mão em concha.”
Jesse estendeu a mão. Krampus inclinou o frasco e Jesse preparou-se
para o ardor do álcool. Um líquido âmbar fluiu para a palma da mão de
Jesse. O líquido era cintilante, Jesse sentiu a calidez e depois uma agradável
sensação de formigamento enquanto o líquido era pouco a pouco absorvido
por sua pele. Ele flexionou a mão, que já parecia um pouco melhor.
Krampus entregou o frasco a ele.
“Tome, um gole pelo seu coração e por sua alma.”
Jesse pegou a garrafa, levou-a ao nariz e cheirou-a. O aroma era o do
dia mais doce da primavera.
“Eu entrego a você o mel dos deuses e você o cheira?” Krampus soltou
uma bufada. “Beba, seu tolo.”
Jesse tomou um gole, hesitante. Era como se alguém tivesse despejado
pura alegria por sua garganta. A calidez espalhou-se por sua goela, não
como a queimação do uísque, mas do jeito como as pessoas se sentem
quando estão apaixonadas. Ele tomou um outro gole, um longo gole dessa
vez, e tentou tomar mais um quando Krampus puxou a garrafa dele.
“Cuidado”, disse Krampus. “Isso não foi feito para mortais. Se tomar
demais, pode ser que nasçam chifres em você.” Ele deu umas batidinhas em
seus próprios chifres quebrados, piscou, e tomou um longo gole do líquido.
Jesse deitou a cabeça para trás. O mundo em volta dele começou a ficar
com as margens borradas e ele estava flutuando, afastando-se de todas as
suas preocupações e de todos os seus medos.
“Com o que você sonha?”, perguntou-lhe Krampus.
“Sonho?”
“Suas paixões. Que sonhos levam você a dormir a cada noite?”
Jesse ficou pensando por um minuto.
“Tocar as minhas canções. Esses são os melhores sonhos. A música e eu
nos tornamos um só, a melodia é tão clara… a multidão curte o que estou
tocando.” Jesse sorriu. “Eles levantam seus isqueiros e celulares e mexem-
se ao ritmo das melodias. O bis dura a noite toda.”
“Então isso é o que você mais quer da vida? Tocar sua música?”
Jesse pensou por um minuto e assentiu.
“Isso seria o bastante. Eu realmente me sinto conectado… comigo
mesmo, com as pessoas. Quando a música é boa… é… é como se eu tirasse
um sentimento bem de dentro do meu coração, como se tirasse de lá meus
mais profundos altos e baixos, e compartilhasse tudo isso com os
camaradas. Mais como se estivesse fazendo um feitiço do que tocando. Não
me importo se for apenas para um bando de bêbados. Não importa. O que
importa é ser capaz de tocar alguém dessa forma.”
Krampus assentiu.
“Esses sonhos são sua alma. Você deve vivenciá-los plenamente.”
“É, mas não passam de sonhos, sabe? E o problema com os sonhos é
que a gente tem que acordar.”
“O que você quer dizer com isso?”
“Quero dizer que está na hora de eu crescer… acho. De desistir. Está na
hora de deixar os sonhos para trás… porque não existe lugar para sonhos no
mundo real.”
“Não.” A voz de Krampus ficou austera. “Isso não é verdade. Seus
sonhos são seu espírito, sua alma, e, sem eles, você está morto.” Ele cerrou
a mão. “Você deve proteger seus sonhos. Sempre. Para que ninguém os
roube de você. Eu sei o que é ter seus sonhos roubados. Sei o que é estar
morto.” A voz dele era quase um rosnado. “Proteja seus sonhos. Sempre
proteja seus sonhos!”
Eles dois ficaram em silêncio por um bom tempo.
“Como está sua mão?”, quis saber Krampus.
Jesse olhou para a ferida, a maior parte da vermelhidão tinha sumido.
Ele mexeu os dedos e quase não sentiu mais dor.
“Está melhor?”
“Sim”, disse Jesse, maravilhado. “Está.”
“Que bom.”
Vernon passou por eles, curvou-se para espiar lá fora por entre as tábuas
na janela ao lado deles.
“Vernon”, Krampus o chamou. “Pare com isso de ficar se preocupando.
Não está ajudando ninguém.”
Vernon jogou as mãos para cima.
“Como é que você consegue agir desse jeito tão casual sabendo que
aquelas coisas estão nos caçando?”
“Vernon, venha até aqui.”
Vernon continuou na janela, torcendo, nervoso, as pontas de sua barba.
“Sabe… não é como se todos eles estivessem tão longe assim lá na
estrada…”
“Venha, Vernon. Isso é uma ordem.”
Vernon foi até ele. Krampus ergueu o frasco.
“Beba.” Vernon tirou uma longa mecha de cabelos ensebados do rosto e
olhou para o frasco com ares de suspeita. “Hidromel.”
O rosto de Vernon ficou radiante.
“Oh.”
Ele pegou o frasco, tomou um longo gole, depois mais um.
“Passe para o pessoal”, disse Krampus. “Dê um pouco para Nipi… ele
está precisando.”
Jesse notou que Nipi havia tirado de sua ferida o trapo ensopado de
sangue. O lugar em que levara um tiro estava vermelho e inchado, mas não
em carne viva, e realmente parecia já formar uma cicatriz. Jesse poderia ter
ficado bem mais assombrado com isso, mas já nesse dia tinha visto coisas
maravilhosas o bastante para entender que algum tipo de magia estava em
ação.
Vernon foi andando com o frasco até o lugar onde Nipi estava. Nipi
tomou um gole profundo e passou o frasco adiante. A garrafa deu a volta
entre eles, até que todos os Belsnickels estavam sentados ou deitados em
suas camas improvisadas, com expressões abrandadas em suas faces.
Jesse notou que Krampus fitava o espaço lá fora, acariciando com
gentileza o saco de veludo, com uma expressão sonhadora no rosto.
“Então… com o que é que Krampus sonha?”, quis saber Jesse.
Krampus parou de fazer carinho no saco e não disse nada por um bom
tempo.
“Eu sonho em espalhar o esplendor do Yuletide mais uma vez pelas
terras, sonho com o retorno da doce Mãe Terra à sua glória. Sonho em ver
meus templos e santuários por todo o mundo. Sonho em ter todas as pessoas
me homenageando. Esse, Jesse, o fazedor de música, é o meu sonho.”
“Pelo mundo todo, é? Não há nada errado com sonhar alto… eu acho.”
Krampus assentiu, com os olhos ainda distantes.
“Yuletide? Eu achava que isso era a mesma coisa que o Natal.”
“Natal”, disse Krampus, cuspindo. “Não, o Natal é uma abominação.
Uma perversão! Yule é o verdadeiro espírito da Mãe Terra. Yule é o
renascimento das estações. Sem o Yuletide, a Mãe Terra não consegue se
curar… ela fenece e morre. É por isso que é tão importante que eu faça
acordar esse espírito na humanidade. Que eu os ajude a acreditar
novamente. Porque é o poder da crença deles, seu amor e sua devoção que
curam a terra.”
“E deixe-me entender isso direito… Aquele camarada, aquele Papai
Noel, eu entendo que ele esteja no seu caminho, de alguma forma, não?”
“Esse nome é uma mentira. Uma impostura.” Krampus curvou o lábio
em um riso de escárnio. “O nome dele não é Papai Noel. O nome dele é…
seu verdadeiro nome é…”
Krampus ficou hesitante, incapaz de dizer mais.

BALDR, pensou Krampus, e depois disse o nome em voz alta.


“Baldr. Esse é o verdadeiro nome dele.”
“Do Papai Noel?”, perguntou Jesse.
“Sim. O verdadeiro nome dele é Baldr.” Pronto, está dito. Depois de
quinhentos anos, o nome dele toca mais uma vez a minha língua. Krampus
fez uma cara feia, odiando o gosto amargo da palavra.
“Vernon, traga-me o hidromel.”
Vernon levantou em um pulo e trouxe o frasco até ele. Krampus bebeu
um gole profundo, tentando lavar o amargor da língua.
“Meu avô, Loki, matou-o uma vez, faz muito tempo. Agora eu devo
fazer isso de novo.” Ele agarrou com força o saco de veludo. “Tão trágica, a
morte de Baldr. Honrado e belo Baldr, amado por todos.” Krampus riu com
escárnio. “Ou assim me foi dito, pois eu não o conheci antes de sua morte.
Fiquei sabendo desses eventos pela minha mãe, Hel, rainha do mundo
subterrâneo. Ela contava essa história, assim como muitas outras, enquanto
eu ficava, quando era criança, sentado nos degraus do trono dela. As
palavras doces dela, acompanhadas do doloroso canto dos mortos.”
“Claro, como não amar tudo isso?”
Krampus apertou os olhos ao olhar para Jesse.
“Você está sendo sarcástico.”
“Nem…”
Krampus voltou um olhar de desdém para Jesse, mas continuou falando.
“Ela dizia que todos em Asgard amavam Baldr, o segundo filho de
Odin. Ele tinha feições tão belas e tão radiantes que a luz vinda dele
brilhava, ele falava de forma gentil e graciosa. Ela disse que eles falavam de
sua natureza caridosa, de sua benevolência, viviam falando sobre esse
defensor dos infelizes e desalentados até não se aguentarem mais.
“Mas havia um que não era tomado pelo charme e pela beleza de Baldr.
Sendo Loki o rei dos tricksters, logo ele reconheceu o engodo, não
importando o quanto seu pacote era belo. Ele viu como Baldr era uma
fraude e assumiu o desafio de expô-lo perante a todos, especialmente Odin,
visto que não havia nenhum amor entre os dois. E a oportunidade de trazer
desgraça e vergonha à casa de Odin era uma tentação grande demais para se
resistir.
“A chance dele surgiu quando Baldr armou para que se tomasse mais do
que uma deidade, para que tivesse vida e beleza eternas. E, para conseguir
esse objetivo, ele inventou uma história para tirar vantagem do grande amor
de seus pais. Ele contou a seu pai e a sua mãe, Frigg, sobre seus pesadelos
recorrentes, sonhos que falavam de sua morte iminente. Seus pais,
incapazes de suportar a mera ideia de perigos recaindo sobre seu mais
amado filho, caíram no propósito de Baldr. Eles viajaram pelos nove
mundos, buscaram e receberam um juramento de todas as coisas na Criação
de que haveriam de não causar nenhum mal a Baldr. De tudo, quer dizer,
menos de uma jovem e distante planta chamada Visco, pois Odin achava
que esse mato era muito inferior e frágil para fazer alguma diferença. E,
assim, Baldr obteve sua imortalidade.”
Krampus soltou uma bufada.
“Assim é como os mitos tecem a história, mas mitos são cheios de
floreios bonitos e, por mais que eu adore tais contos, Hel contou-me a
verdade. Sendo Odin o grande feiticeiro que ele era, ele fez um feitiço e
colocou-o sobre Baldr. Feitiço esse que impedia qualquer elemento dos
nove reinos de algum dia causar mal a ele. Só que o feitiço foi feito com o
veneno do Visco e, sendo assim, o Visco continuava imune a isso.
“Assim que Baldr obteve esta maravilhosa dádiva, ele não esperou para
exibi-la, encorajando a todos a divertirem-se tentando machucá-lo com a
arma que escolhessem. Minha mãe me disse que ele se divertiu muito com
isso, deleitando-se com a atenção, com o fato de que os outros deuses
amavam o jogo, e, conforme a popularidade de Baldr crescia, assim
também crescia a determinação de Loki em expô-lo.
“Loki, passando-se por uma velha mulher, enganou Frigg para que ela
lhe revelasse o segredo do Visco. Armado com este conhecimento, Loki foi
atrás da planta e fez uma flecha com ela. Loki pegou essa flecha e, na vez
seguinte em que viu Baldr jogando, entrou em meio à multidão ali reunida.
Lá ele encontrou o irmão cego de Baldr, Hoor, e perguntou a Hoor por que
ele não participava dos jogos. Hoor respondeu que aqueles não eram jogos
para um homem cego. Loki apresentou a Hoor um arco e uma flecha
encantada e ofereceu-se para guiar a mão dele. Hoor ficou animadíssimo e
puxou o arco com grande vigor. A flecha acertou Baldr no peito, afundou-se
em seu coração, e Baldr caiu morto, bem ali na frente de Frigg, diante de
Odin. Diz-se que o silêncio foi ensurdecedor. O pobre Hoor não tinha como
ver os olhares cheios de temor deles e Loki não conseguia suportar isso.
Loki fugiu.
“O pesar de Odin era infinito e ele mandou matar Hoor por isso.”
Krampus balançou a cabeça. “Sempre senti pena de Hoor. Um peão em um
jogo de ciúmes e despeito. Ele carregou o tormento de matar seu próprio e
amado irmão, depois foi assassinado por seu próprio pai. Realmente trágico.
Odin colocou o corpo de Baldr para descansar no grande barco Hringhorni
e ateou fogo nele. Dizem que a esposa de Baldr, Nanna, em seu pesar pelo
luto, jogou-se nas chamas e acompanhou-o na morte.”
Krampus tomou mais um gole do hidromel.
“Mas isso foi apenas o começo, pois o espírito de Baldr caiu em Hel, foi
parar no reino dos mortos, onde nem mesmo o grande Odin tinha qualquer
direito de comando. Embora Odin e Frigg tivessem enviado mais um de
seus filhos, Hermod, para oferecer resgate e implorar pela libertação de
Baldr, minha mãe, Hel, não abria mão do espírito de Baldr. E poucos sabem
que Hel jogou com Odin de modo a distraí-lo enquanto Loki buscava uma
confissão de Baldr. Ele disse a Baldr que seria escravo de Hel, que ficaria
aprisionado ali até o Ragnarök, a menos que admitisse seus esquemas. Foi
então que Baldr os surpreendeu, visto que recusou tal barganha, optando
por permanecer como prisioneiro de Hel, preferindo passar uma era entre os
mortos antes de expor seu próprio engodo.
“E eis como eu o vi pela primeira vez, como um prisioneiro em Hel. Ele
era mais curioso para mim quando eu era criança, aquela bela deidade, lá,
em sua câmara, com a esposa morta. Ele parecia uma alma desolada, quase
parecia ser de pedra. Ele ficava dias sem se mexer, fitando abaixo os
abismos sem fundo das regiões inferiores, ouvindo as canções dos mortos e
esperando, esperando, sempre esperando pelo fim dos deuses, pelo
Ragnarök e por sua promessa de liberdade.
“Questionei a minha mãe: ‘Como é possível que tenha um caráter baixo
alguém disposto a fazer tamanho sacrifício para guardar seus segredos?’ Ela
riu e me disse para não confundir orgulho com nobreza, e me avisou para
que não sentisse pena dele. Mas eu sentia que ele tinha sofrido o suficiente.
Até mesmo na época, tão jovem, eu podia ver que o ódio de Loki e o ciúme
de Odin estavam no cerne do fardo de Baldr. E assim eu vim a sentir pena
dele, e foi o início da minha ruína. Pois uma lição amarga se aproximava, a
de que uma serpente sempre será uma serpente, não importando seu
disfarce. Eu não tinha como saber que chegaria o dia em que eu seria
incapaz de dizer o nome dele, em que eu sonharia mil vezes com seu sangue
em minhas mãos.”
Krampus começou a contar mais, começou a contar o restante da
história. Ele olhou de relance para Jesse e percebeu que o músico tinha
dormido.
Krampus soltou um grande suspiro, puxou e abriu o saco, espiando em
suas profundezas sombrias.
“Juntos nós haveremos de encontrar a flecha de Loki. Juntos nós
haveremos de matar Baldr, não importando que disfarce ele possa usar.”
Passos pesados, sons de pés batendo no chão enquanto subiam a escada.
Jesse encontrava-se no seu quarto de infância. Ele tinha 6 anos de idade,
talvez 7, e era Natal. Havia no corrimão da escada, pendurados, enfeites
escandalosos e luzes de Natal que piscavam e cintilavam. Uma grande
sombra bloqueava as luzes enquanto a criatura subia marchando as
escadas. “Ho, ho, ho”, retumbava uma voz, voz essa carregada de
julgamento e condenação. “Você se comportou mal, Jesse? Hein? Foi?”
Jesse começou a tremer; ele puxou as cobertas para cima, para seu
pescoço. O Papai Noel empurrou a porta e passou por ela, sua silhueta
corpulenta tão gigantesca que ele mal passava pelo batente. Ele foi até a
lateral da cama de Jesse carregando um grande saco, um saco cor de
sangue, jogado por cima de seu ombro. Ele ficou lá parado, agigantando-
se, avolumando-se, com seus minúsculos olhos pretos travados em Jesse,
como se estivesse pesando sua alma.
O Papai Noel tirou o saco de cima de seu ombro e colocou-o sobre a
cama. O saco estava se mexendo, como se estivesse cheio de gatos e
cachorros. Jesse ouviu o que soava como miados e gritos abafados, mas
sabia que não podia ser isso, não vindo do saco do Papai Noel. Papai Noel
balançou a cabeça, com tristeza.
“Você se comportou mal, Jesse. Muito, mas muito mal mesmo.”
Jesse tentou falar, tentou dizer que era um bom menino, mas sua boca
não conseguia formar as palavras.
Seis figuras corcundas surgiram por trás do Papai Noel, com peles
reluzentes e pretas como piche, cornos protuberantes e contorcidos saindo
de seus escalpos e longas línguas vermelhas estendidas entre dentes pretos.
Eles olharam para Jesse como se ele fosse uma iguaria.
Papai Noel soltou a corda e abriu o saco e agora Jesse podia ouvir com
clareza os gritos, e eles não vinham nem de gatos, nem de cachorros, mas
sim de crianças, crianças que gritavam e gemiam como se estivessem
sentindo bastante dor.
Papai Noel apontou e mexeu um dedo gorducho para Jesse.
“Ele está na lista dos que se comportaram mal. Coloquem-no dentro do
saco.”
Todos os diabos abriram largos sorrisos, esfregaram os longos dedos
uns nos outros e esticaram-nos para pegar Jesse.
Jesse abriu os olhos e encontrou-se em uma sala com seis diabos; suas
silhuetas encurvadas podiam ser vistas graças ao brilho trêmulo do fogão
redondo. A igreja estava escura e ele percebeu que estava de noite e se
perguntava quanto tempo teria dormido. Alguma coisa estava com um
cheiro fétido; ele sentiu o cheiro no ar. Seria sangue?
Jesse perscrutou as sombras e deparou-se com imensos olhos que não
piscavam, encarando-o, e sentou-se direito.
Uma vaca, ou pelo menos sua cabeça, estava assentada em cima de um
baú, com sangue escorrendo de sua língua até o chão. Eita, pensou ele. De
onde é que vem isso? Ele avistou uma grande banheira de aço encostada na
parede. Então viu um traseiro de vaca, o flanco e duas pernas voltadas para
cima. Alguém vai sentir falta dessa vaca… Havia mais uma novidade:
visco. Várias pilhas de visco. Parecia que alguém vinha cortando espinhos
dos galhos.
Ele ficou em pé, cambaleou um pouco, esticou a mão para equilibrar-se,
ainda um pouquinho zonzo por causa do hidromel. Nada de dor de cabeça,
nem um pouco de ressaca que fosse, apenas uma leve zonzeira. Sua barriga
roncava. Ele esperava encontrar algo para comer que não fosse bife cru. Ele
deu a volta no visco e deparou-se com os Belsnickels, que estavam
aninhados em volta do saco de Krampus.
“Não, Krampus”, grunhiu Vernon. “Isso não está certo.”
Krampus segurava o que parecia ser uma pistola a pólvora. Jesse
aproximou-se para olhar com atenção e notou que havia duas espadas, um
escudo e um revólver velho e enferrujado no chão.
Jesse ajoelhou-se ao lado de Isabel.
“O que está acontecendo?”
Vernon respondeu:
“Estamos tentando fazer com que ele encontre umas armas decentes
para nós. Sabe, se por acaso, digamos, um lobo gigantesco ou alguma outra
monstruosidade aparecer.”
“Ele consegue puxar qualquer coisa dali?”, quis saber Jesse. “Não
apenas brinquedos?”
Krampus assentiu, distraído.
Jesse concordou com Vernon: seria muito bom se eles tivessem algumas
armas modernas, e com certeza seria adequado caso fossem invadir o
complexo do General.
“Vocês precisam de umas armas automáticas. Alguns rifles de assalto
servem.”
“Era exatamente isso que eu estava dizendo a ele”, comentou Vernon,
sem esconder o quanto estava irritado. “Armas modernas, Krampus. Você
viu fotos delas no jornal.”
Krampus ergueu as mãos, obviamente frustrado.
“Não é tão fácil assim. A gente tem que saber o que é aquilo que a gente
está querendo…”
“Eu posso ajudar”, disse Jesse.
Krampus olhou para ele e considerou a situação.
“Sim, pode ser. Venha até aqui.” Ele deu uns tapinhas no chão a seu
lado. “Sente-se.”
Jesse aproximou-se de Krampus, que colocou o saco entre eles.
“O saco encontra aquilo que eu desejo, mas eu devo saber o que é
aquilo que estou procurando. E, além disso, fica mais fácil se o saco souber
onde procurar. Assim é mais fácil e me drena menos energia. Até que eu
tenha minha força de volta, devo fazer menos esforços.”
“Ok, certo. O que é que eu tenho que fazer?”
“Você me ajuda a procurar. Você não faz parte da linhagem de Loki,
então o saco não obedecerá a você. Então nós temos que trabalhar juntos.
Nós dois devemos segurar o saco. Você pensa na localização e no item e eu
direciono o saco para que ele obedeça.”
“Sei como fazer isso”, disse Jesse. “Usei o saco antes. Tirei alguns
brinquedos de dentro dele.”
“Não é a mesma coisa. Você apenas esticou a mão em uma porta que já
estava aberta.”
“Não, eu pensava em um determinado brinquedo e o saco o encontrava
para mim.”
Krampus ergueu uma sobrancelha.
“Isso é realmente um feito e tanto. Talvez haja um traço do espírito de
Loki em você em algum lugar. Ainda assim, isso não é abrir portas. Isso é
algo que você não poderia fazer, não sozinho. Mas é interessante que o saco
lhe dê ouvidos.” Krampus sorriu. “Isso é bom, deve facilitar nossa tarefa.”
“O que você está procurando?”
“Armas!”, disse Vernon. “Armas das boas! Alguma coisa que consiga
fazer grandes buracos em lobos gigantes!”
“Dinheiro”, acrescentou Isabel. “Precisamos comprar umas coisas…
coisas que não temos como conseguir com o saco. Pelo menos não até que
Krampus esteja mais forte.”
“Você sabe onde podemos encontrar essas coisas?”, perguntou-lhe
Krampus. “Lembrando-se de que quanto menos portas eu precisar abrir,
melhor.”
Jesse abriu um largo sorriso. Ele sabia, ele sabia sim! Ele nunca estivera
dentro do escritório do General, mas uma vez, quando Chet deixou a porta
aberta, Jesse deu uma boa espiada lá dentro, e uma coisa que ficou em sua
cabeça foi o cofre no canto do escritório. Era um cofre dos antigos, quase
tão grande quanto uma máquina de lavar roupas, com um grande disco de
metal na frente. Jesse sabia, com certeza, que o General guardava armas lá
dentro, e tinha que ter dinheiro vivo lá também, e vai saber o que mais.
Com certeza que ele odiaria roubar do General, pensou Jesse. Seria
realmente uma vergonha.
“Ah, eu sei de um bom lugar.”
“Que bom”, disse Krampus. “Coloque as palmas de suas mãos em cima
do saco.” Jesse fez o que ele mandou. “Feche os olhos e procure.”
“Procurar…?”
“É só fechar os olhos e as coisas virão até você.”
Jesse deu de ombros, fechou os olhos e imaginou o complexo, depois
pensou na oficina, depois, no escritório do General lá em cima. Nada de
especial parecia estar acontecendo. Foi então que Krampus colocou suas
mãos em cima das mãos de Jesse e, devagar, a visão ficou mais nítida,
detalhes que ele nunca tinha visto materializaram-se. O cofre no canto.
Jesse guiou sua mente em direção a ele e a visão seguiu esse caminho, era
fácil assim, então ele entrou lá e estava tudo escuro.
“Esse é o lugar?”, perguntou-lhe Krampus. “Dentro do cofre?”
“É.”
Krampus apertou sua pegada no saco e Jesse sentiu um leve puxão.
Krampus puxou as mãos para longe do saco.
“Está feito.”
“É isso?”
“O saco responde bem a você, Jesse.” Krampus olhou para ele com
bondade quase paternal. “Talvez um toque do sangue de Loki corra mesmo
em suas veias.”
“Então eu posso simplesmente enfiar a mão aí e pegar aquilo que eu
quiser?”
“Poder, você pode, mas tem que estar ciente de que você está colocando
sua mão naquele outro lugar. Seu braço e sua mão ficarão visíveis para
qualquer um que esteja por perto. O que pode levar a problemas, à perda do
braço, até mesmo a ser puxado para dentro do saco, para o próprio lugar de
onde você estiver roubando.”
Jesse ficou hesitante.
“Mas é um cofre. Não vai ter ninguém dentro do cofre.”
“Não, enquanto o cofre estiver fechado, ninguém pode ver você.”
Jesse afrouxou a boca do saco, espiando em suas sombras fumacentas.
“Tudo bem, aqui vou eu.” Ele enfiou a mão no saco até que bateu em
uma parede. Parecia a parede certa, como de aço inoxidável. Ele empurrou
a mão para baixo, até que seus dedos encostaram em algo duro, cilíndrico.
Ele pegou aquilo e, pelo peso, podia ver que se tratava de uma arma. Jesse
puxou a mão para fora, muito satisfeito com o que tinha encontrado.
Em apenas um minuto, ele já tinha três metralhadoras, várias pistolas
portáteis, uma escopeta recortada, algumas dúzias de caixas de munição e
pilhas e mais pilhas de notas de cem dólares. Mas havia mais algumas
surpresas no cofre do General: uma garrafa fechada de bourbon
envelhecido; uma variedade de pílulas, anfetaminas; o que pareciam ser
vários gramas de cocaína pura, não crack, cocaína de verdade; chaves sabe-
se-lá-para-quê; contratos e notas promissórias; um envelope com polaroides
de uma mulher que se parecia demais com a professora da terceira série de
Jesse, a senhora Sawyer. Jesse franziu a cara, mas não parou até que o cofre
estivesse vazio. Ele sentia-se bem tirando algo daquele homem que havia
roubado tanto dele, e saber que estaria usando as armas do próprio General
contra ele deixava tudo ainda mais doce. Ele abriu um largo sorriso para
Krampus.
Krampus abriu um largo sorriso em reposta.
“Você está se divertindo.”
“Está vazio.”
“Então estamos feitos.”
Jesse olhou para os espólios, para todo aquele dinheiro vivo, todas
aquelas armas e toda aquela munição. Ele assentiu e soltou profundamente
o ar, sentindo-se subitamente drenado.
“Você está cansado?”
“Preciso comer alguma coisa, só isso.”
“É o saco. Ele cobra um preço.”
Jesse ficou imaginando de que parte dele o saco teria tirado alguma
coisa…
“Você deveria comer”, disse Krampus, assentindo em direção à banheira
com o “bife”.
Jesse olhou para a perna da vaca. Ele estava com fome o suficiente para
comer aquilo cru mesmo, mas pensou que assar umas fatias no fogão seria
melhor. Ele ficou em pé em um pulo e começou a ir até lá, mas avistou a
cabeça da vaca e parou.
“Ei”, disse Jesse. “É possível colocar alguma coisa de volta? De volta
dentro do cofre?”
Krampus ergueu uma sobrancelha.
“Sim, é possível. Uma vez que a porta é aberta, ela permanece aberta
até que uma nova porta se abra.”
Jesse ergueu a cabeça da vaca pela orelha e trouxe-a consigo.
“Aquele cofre pertence ao homem que fez esse buraco na minha mão!”
Krampus assentiu, abriu um largo sorriso e segurou o saco, mantendo-o
aberto.
“Jesse, certamente você é um homem que pensa muito parecido
comigo.”

ISABEL FOI ANDANDO com Jesse ao longo da estada de cascalho, feliz por
estar do lado de fora daquela igreja que fedia a mofo. Era noite e eles
estavam se dirigindo a um mercadinho chamado Pepper’s, que Jesse disse
que ficava a uns três quilômetros descendo a Rota 3. Eles tinham decidido
ir até lá andando em vez de arriscar-se a deixar que alguém visse a
caminhonete ou que o veículo ficasse sem combustível. Jesse carregou a
lata vazia de gasolina que ele tinha na picape, visto que gasolina era uma
das coisas que Krampus não conseguia tirar do saco.
“Cara, o que eu não daria para ver a cara do General quando ele ficar
cara a cara com aquela cabeça de vaca”, disse Jesse, rindo. “Mais de quatro
mil dólares… sumidos! Puff! Aquele cara vai se mijar!”
Isabel balançou a cabeça, distraída, analisando as sombras, mantendo o
ouvido antenado em relação a qualquer som suspeito, a qualquer sinal ou
indício de que o Papai Noel ou os lobos pudessem estar por perto.
Jesse deu um leve empurrãozinho nela.
“Ei, vamos lá, é divertido. Estou lhe dizendo! Você tem que entender
que aquele homem é o maior filho de uma puta em todo o Condado de
Boone. Que diabos, talvez seja o maior filho de uma puta em toda a
Virgínia Ocidental!”
Isabel abriu um sorriso. Ela gostava quando Jesse olhava para ela,
gostava dos olhos verdes dele, da linha de seu maxilar, porém, ela gostava
mais ainda da risada dele, benevolente e cálida e cheia de vida. É legal,
pensou ela, dar uma volta com alguém que não seja tão antigo quanto as
colinas. Não tem mal nenhum que ele seja agradável à vista, admitiu ela.
Nem um pouco. Considerou como seria segurar na mão dele. Fazia um bom
tempo que ela havia ficado de mãos dadas com alguém. Não desde seu
Daniel, e agora fazia mais de quarenta anos. Mas ela sabia que este homem
não ia querer ficar de mãos dadas com ela; ela sabia o que parecia ser agora.
“Ok, então você tem que me ajudar aqui”, disse Jesse. “Meu Deus, por
onde será que eu começo? Nada disso faz um pingo de sentido. Papai Noel,
lobos gigantes e… merda, que diabos é aquele cara, aquele Krampus?
Como diabos você acabou indo parar com aquele demônio?”
“Ele não é um diabo.”
Jesse parou de andar.
“Espera, eu entendi alguma coisa errada aqui? Você não é escrava dele?
Ele não fez isso com você?” Jesse fez um gesto, apontando para o rosto
dela. “Transformou você em um monstro?”
As bochechas de Isabel estavam fervendo. Ela desviou o olhar, surpresa
com o quanto as palavras dele doeram.
“Ele salvou minha vida”, disse ela, puxando para cima o zíper de sua
jaqueta e colocando o capuz sobre sua cabeça, escondendo sua face na
sombra do capuz. Ela continuou andando, deixando-o ali, parado.
Jesse acompanhou os passos dela.
“Bem, isso ainda não dá a ele o direito de fazer de você escrava dele.”
“As coisas não são bem assim. Você não entenderia…”
“É porque não faz nenhum sentido.”
“E eu não sou nenhum monstro. Eu sou uma mulher. Se você não fosse
tão cabeçudo seria capaz de ver isso.”
Jesse levou as mãos para cima.
“Eu não quis dizer isso…”
Isabel foi andando mais rápido, deixando-o para trás.
“Ah, vamos, Isabel. Anda mais devagar. Eu sinto muito.”
“Eu tentei me matar, ok? Eu seria ossos no chão também se não fosse
pelo Krampus.”
“Se matar? Bem, por que você ia fazer uma coisa dessas?”
“Isso realmente não é da sua conta. É?”
Jesse franziu o cenho e assentiu.
“Você está certa. Sinto muito. Isso não é nada da minha conta.”
Ela continuou andando.
“Eu não pretendia me meter na sua vida, nem nada”, disse ele. “Só
estava tentando entender essa coisa toda. Estou falando sério, me desculpa.”
Isabel diminuiu o passo e sugou fundo o ar frio da noite.
“Eu me meti em uma situação ruim. Parecia que as coisas só pioravam.
Acho que tentei a saída mais fácil, ok?”
“Isabel, você não precisa se explicar para mim…”
Eles continuaram andando em silêncio. Isabel queria dizer mais coisas,
ansiava por falar com alguém que não fosse Vernon e os shawnees, alguém
jovem, alguém com olhos límpidos e empáticos. Mas se abrir nunca foi algo
fácil para ela, e ela não conhecia este homem. Só porque ele tinha uma
risada cálida e olhos bondosos, isso não queria dizer que poderia confiar
nele. E não se começa a falar para algum estranho sobre como você ficou
grávida aos 16 anos, não se não estiver preparada para que ele olhe para
você como se fosse um lixo das colinas. Mas não tinha sido uma coisa
desimportante, com qualquer um. Talvez se fosse assim, a coisa toda teria
sido mais fácil. Isabel sentiu lágrimas ardendo em seus olhos e piscou
rapidamente para livrar-se delas. Não comece. Apenas conte uma mentira a
ele, menina. Sempre a pegava desprevenida o quanto isso ainda doía,
mesmo depois de todos esses anos. Ela tentou não pensar no bebê dela
crescendo sem mãe. Em como, talvez, se ela tivesse sido mais forte, estaria
com ele agorinha mesmo.
“Eu tinha 16 anos quando fugi de casa, quando fugi de tudo. Eu não
estava pensando direito e me encontrei aqui, nessas colinas. Era inverno,
estava frio, e eu não sabia o que fazer. Eu não conseguia ver como consertar
as coisas que eu tinha feito. Caminhei até um despenhadeiro, olhei para as
pedras lá embaixo e lá estava minha resposta… a resposta para todo o
sofrimento e toda a dor de cabeça.” Isabel viu-se chorando. “Eu gostaria de
ter mais presença de espírito. Eu me sentia mal em relação a tudo… tão
mal… Só queria que toda aquela dor acabasse.” Ela secou as lágrimas.
“Droga, eu não queria ficar assim, toda chorona.”
Jesse colocou um braço em volta dela. Fazia anos que Isabel não era
tocada por ninguém, não assim. Ela cobriu o rosto e começou a chorar e a
soluçar.
“Olhei para as estrelas”, disse ela. “Implorei ao Bom Senhor que me
perdoasse e fui andando por aquele penhasco para me jogar.”
“Meu Deus, Isabel.”
“Bem, eu deveria ter escolhido um penhasco mais alto, porque aquela
queda… não me matou.” Ela soltou uma risada feia. “Só quebrou um monte
de ossos. Eu não conseguia me mexer. Só fiquei lá jogada, chorando e
gritando. A dor era horrível.” Ela afastou-se de Jesse e limpou o rosto na
manga de sua blusa. “Bem, foram os shawnees que me encontraram. Eles
me levaram até o Krampus. Acho que quebrei alguma coisa na coluna,
porque eu só conseguia mexer um braço, não conseguia sentir nada da
cintura abaixo. As coisas estavam ficando nebulosas na minha cabeça.
Creio que eu estava morrendo. E foi então que Krampus me mordeu.”
“Ele mordeu você?”
“Hum-hum. É assim que ele faz isso. Que transforma as pessoas. Tem
alguma coisa a ver com isso de misturar o sangue dele ao das pessoas, pelo
menos é o que ele diz. Seja como for, isso salvou a minha vida. Me curou
na hora. Uns dois dias depois, eu estava andando de novo. Só que isso não
foi tudo…” Ela estirou as mãos, olhou para as unhas pretas irregulares que
saíam de seus dedos escamosos. “Nem sempre eu tive a aparência de um
monstro, sabe? Minha pele costumava ser bonita e eu tinha longos cabelos
vermelhos. Tinha alguns belos vestidos também.”
Eles caminharam um bom tempo sem que nenhum dos dois falasse
nada.
“Então é por isso que você continua com ele, porque ele salvou sua
vida?”
Ela olhou para cima, para a noite, deixando a neve leve cair em seu
rosto.
“Não”, disse ela, sabendo que iria procurar seu filho se pudesse. Ela
sabia que seu menino deveria ter uns 40 e poucos anos agora, que ele não a
reconheceria e que provavelmente também não ia querer isso, não depois de
ter sido abandonado por ela. Mas Isabel certamente gostaria de ver como
ele se saíra. Ver se ele tinha os olhos do pai. “Eu iria embora nesse minuto,
se pudesse.”
“Bem, e o que está impedindo você de fazer isso?”
“Krampus proibiu a gente de ir à cidade. De chegar perto das pessoas,
se pudermos evitar. Não quer que ninguém nos veja. Ou, pelo menos, não
queria. Sabe, quando ele estava acorrentado. Ele mandava um de nós à
cidade de vez em quando para roubar um jornal, para fazer uma incursão na
biblioteca em busca de alguns livros sobre o Papai Noel, ou talvez se
houvesse alguma outra coisa estranha que precisássemos e não
conseguíssemos fazer por nós mesmos.”
“E, deixe-me adivinhar… Existe algum motivo para que vocês tenham
que obedecer, certo? Ele colocou algum feitiço em vocês? Hipnotizou
vocês?”
Ela assentiu.
“Basicamente é isso aí. Uma vez que nos transformamos, quando ele
nos dá um comando direto, não conseguimos fazer nada além de obedecê-
lo. É como tornar-se uma marionete. A gente não pensa mais, só faz.”
“E ele ordenou que vocês ficassem por perto dele, entendi.”
“Ele fez com que a gente jurasse, sabe, que não vamos fugir, que vamos
protegê-lo, cuidar dele, e coisas do gênero.”
“Não sobra muita vida para uma jovem.”
“Eu tento não pensar demais nisso.”
Ela podia ver a placa do minimercado agora, brilhando pouco mais de
duzentos metros à frente.
“O que ele é?”, perguntou Jesse.
“Krampus?”
Ele riu.
“De quem mais eu estaria falando?”
Isabel abriu um sorriso.
“Eu não saberia dizer ao certo. Os shawnees acham que ele é um deus
da floresta. Caramba, eles são tão malditamente apaixonados por ele que
Krampus nem precisaria tê-los transformado. Eu acho que ele fez isso para
que eles não envelhecessem. Makwa me falou que todo o povo dele
costumava levar oferendas para Krampus desde bem antes de os
colonizadores aparecerem por aqui.”
“E Vernon, acho que ele não se voluntariou, certo?”
Ela deu uma risada.
“Ele estava supervisionando as coisas para a empresa de carvão no
início do último século. Encontrou-se com Krampus por acaso. É claro que
Krampus não permitiu que ele fosse embora depois disso. Então o sortudo
do Vernon está preso com aqueles índios teimosos como companhia faz
quase um século. E se você lhe der meio que uma chance, ele vai ficar feliz
de tagarelar ao seu ouvido sobre isso, estou dizendo.”
Eles aproximaram-se da loja, dando a volta por um montinho de neve
suja empilhada ao longo de uma das extremidades do estacionamento, e
pararam à sombra de uma caçamba de lixo. Isabel ficou fitando através da
grande janela da frente para as mercadorias lá dentro do mercadinho. Eles
vendiam uma pequena seleção de comida e outros artigos de mercearia e
coisas básicas para a casa, assim como artesanatos locais e lembrancinhas:
rolinhos de pecã, geleias, linguiças e carne-seca, colchas, chapéus de pele
de guaxinim, chaveiros, ímãs e joias indígenas feitas na China. Ela não
entrava em uma loja desde antes de ficar grávida e ficou pasma com as
cores dos mostruários e as embalagens chamativas. Eu não me importaria,
pensou ela, em passar um tempinho aí dentro. Não me importaria nem um
pouco.
Jesse sacou um rolo de notas do bolso do peito de sua camisa e folheou-
as.
“Caramba, são notas de cem.” Ele deu uma bufada. “Nunca achei que ia
chegar um dia em que eu me pegaria reclamando por ter muitas notas de
cem. Ah, aqui.”
Ele pegou uma nota de cem e duas de vinte, guardou o restante e
dirigiu-se para dentro da loja. Isabel continuou nas sombras. Jesse parou e
olhou para trás.
“Ah, sim… acho que você tem que ficar por aqui, não é?”
Ela assentiu, distraída, com os olhos fixos nas prateleiras de tranqueiras
baratas.
Ele estudou-a por um instante.
“Aposto que faz um tempinho que você não entra em uma loja.”
Ela assentiu de novo.
“Ok, eu tenho que pagar antes de encher o galão. Vai levar um
segundinho. Agora, não vai sair correndo e me deixar aqui, hein!” Ele deu
uma piscadela e começou a afastar-se. “Oh”, disse ele por cima do ombro.
“E fique de olho em armadilhas de urso. Uma menina perdeu alguns dedos
do pé numa dessas faz umas semanas.”
Isabel colocou as mãos nos quadris e ficou olhando enquanto ele se
afastava.
Cerca de um minuto depois de Jesse entrar na loja, um carro apareceu
na estrada e parou no estacionamento. Isabel retirou-se para as sombras.
Duas garotas, adolescentes, e um rapaz mais velho saíram do veículo, rindo
de alguma piada entre si. Uma das jovens pulou nas costas do rapaz e ficou
andando de cavalinho até dentro da loja, enquanto os três assoviavam,
andando como se a vida fosse uma bela tarde em um parque de diversões.
Tão animados, pensou Isabel, e tentou ignorar o ciúme que a deixava
mordida. “Nem sempre a vida segue o rumo que a gente quer”, murmurou
ela baixinho. “Só isso.”
Isabel ficou olhando enquanto eles andavam pela loja, animadíssimos.
As duas jovens tinham cabelos compridos e ondulados, que subiam e
desciam e brilhavam, sedosos à luz das placas de cerveja. Cabelos em que
um homem gostaria de passar os dedos, pensou Isabel, e levou a mão a seus
próprios cabelos curtos, que pareciam cobertos com cera, incrustados de
sujeira. Ela não tivera uma oportunidade de lavar os cabelos desde o outono
e os riachos ficavam frios demais nessa época do ano. As jovens estavam
maquiadas, com batom, delineador, e usavam brincos. Todas as coisas que
as moças usavam para ficar mais bonitas. Ela se perguntava se haveria
alguma maquiagem que conseguisse encobrir as manchas em seu rosto.
Talvez um pouco de batom? Talvez eu fosse parecer mais uma moça do que
um monstro das cavernas.
Jesse saiu da loja com a lata de gasolina em uma das mãos e um saco de
compras de mercearia na outra. Ele acenou com a cabeça em direção a ela,
dirigiu-se até a bomba de gasolina e começou a encher a lata. As jovens e o
rapaz saíram da loja um instante depois dele. O rapaz sacudiu sua lata de
refrigerante, abriu-a e borrifou o líquido nas meninas. As duas soltaram
gritos selvagens, pegaram punhados de neve com as mãos e jogaram nele.
Ele abaixou-se, desviando-se das bolas de neve, escorregou no gelo, caiu,
derrubando seu refrigerante no chão. Os três riram tanto que Isabel achava
que eles precisariam de ajuda médica. E, de repente, Isabel quis que
parassem. Ela não queria ouvi-los, nem vê-los. Ela cerrou as mãos.
Descobriu que queria que eles ficassem de boca fechada, queria arrancar
seus belos cabelos de suas cabeças, arranhar os belos rostos deles, fazer
com que soubessem como era perder tudo.
Uma das jovens puxou o rapaz para que ele se levantasse. Ele deslizou
as mãos em volta da cintura dela, puxou-a para junto de si, e eles se
abraçaram, se beijaram… um beijo longo que apenas pertencia a um novo
amor. Isabel colocou os dedos em seus próprios lábios, ficou olhando,
respirando com dificuldade. Eles entraram de volta no carro e Isabel deixou
de lhes desejar mal, não, apenas queria juntar-se a eles, entrar no carro deles
e ir até onde quer que os rapazes e moças jovens fossem para se divertir
naqueles dias. Ela tentou imaginar como seria isso, apenas se divertir. Ela
ficou olhando para os faróis traseiros do carro deles até que desapareceram
de vista na estrada escura.
Jesse foi andando até ela.
“Toma. Pode segurar isso para mim?”
Ele entregou a ela o saco de compras e colocou a lata de gasolina aos
pés dela.
“Eu já volto. Preciso dar um telefonema rapidinho.”
“Telefonema? Espere! Não sei se você deveria fazer isso.”
“Isabel, eu tenho que saber se minha filhinha está bem. Eu só vou ligar
para a avó dela. Não tem como um telefonema colocar Krampus em perigo,
relaxa.”
Ela mordeu o lábio. Se algo não colocasse Krampus em óbvio perigo
nem quebrasse diretamente um dos princípios dele, então ela podia fazer o
que quisesse.
“Isabel, eu não estou pedindo. Eu vou dar um telefonema. Já volto.”
“É… Certo.”
Ele começou a ir em direção ao telefone público, então se virou.
“Ah, aqui está. Comprei umas coisinhas para você.”
Ele puxou um saco plástico de dentro do saco de compras de mercearia
e o entregou a ela.
“O que é isso?”
“Por que você não dá uma olhada para ver o que é?”
Ela ficou olhando enquanto ele ia até a cabine telefônica e então espiou
dentro do saco e deparou-se com um pacote de chiclete de melancia, uma
gigantesca barra de chocolate com amêndoas e uma coisa felpuda. Era um
gorro de neve, preto e branco e bem fofinho. Ela ergueu-o e percebeu que
tinha a forma de uma cabeça de panda, completa com nariz e grandes olhos
caídos. Havia duas orelhas grandes e felpudas, uma de cada lado do gorro.
Era totalmente ridículo, mas ninguém nunca confundiria aquilo com um
gorro de menino. Havia mais alguma coisa dentro do saco. Ela puxou dali
uma caixa, abriu-a e, dentro dela, ela encontrou uma pulseira com um
gigantesco medalhão cor de rosa em formato de coração. Ela soltou um
gritinho e cobriu a boca. Ao que parecia, Jesse tinha tanto mau gosto para
joias quanto para chapéus femininos, mas ela não conseguia parar de sorrir.
Ela rasgou a caixa, tirou a pulseira dali e colocou-a no pulso. Sabia que não
passava de uma pulseira de brinquedo, ainda assim, era brilhante e ah, tão
feminina! Não era o tipo de coisa que um cara compraria para um monstro
e, por aquele segundo, ela sentiu-se como se fosse uma menina de novo. Ela
cerrou os olhos, saboreando a sensação. Uma lágrima escorreu por seu
queixo, depois outra. Ela tentou lembrar-se da última vez em que alguém
havia lhe dado um presente. Tinha sido seu Daniel, e tinha sido o anel, uns
quarenta anos atrás. Ela limpou os olhos. “Para com isso”, sussurrou ela.
“Agora não é hora de ficar toda chorona.”
Jesse desligou o telefone e seguiu a passos rápidos em direção a ela.
Isabel empurrou o capuz para trás e colocou o gorro na cabeça,
prendendo rapidamente as orelhas compridas e felpudas debaixo do queixo.
Ela esperava parecer tão boba quanto estava se sentindo e mal podia esperar
para ver a cara dele.
Jesse apanhou e ergueu a lata de gasolina.
“Nós temos que voltar.”
Ele dirigiu-se estrada de cascalho acima sem nem mesmo olhar para ela,
com a expressão determinada e sombria.
Isabel ficou hesitante, confusa, e sentiu uma pontada de mágoa. O que
foi que acabou de acontecer? Ela apanhou as compras de mercearia e
correu um pouco para acompanhar os passos dele.
“Eles estão atrás de Abigail”, disse ele, com a voz tensa.
Isabel não sabia o que dizer.
“A mãe da Linda me perguntou por que Ash Boggs apareceu na casa
dela procurando pela Abi. Isso foi tudo que a velha bruxa disse, ela não quis
me dizer mais nada além disso. Só ficou me perguntando o que eu tinha
feito. Você sabe o que isso quer dizer?”
Isabel balançou a cabeça em negativa.
“Isso quer dizer que o General pretende cumprir a ameaça que fez, é
isso que quer dizer. Que merda!”, disse ele, com a voz soando dolorosa,
cortante. “Que merda!”
As longas pernas de Jesse cobriam a estrada a passos largos e Isabel
teve que dar uma corridinha para alcançá-lo.
“Não temos como dizer o que o General poderia fazer”, disse Jesse, mas
era mais como se estivesse falando com ele mesmo. “Eu tenho que fazer
alguma coisa antes que seja tarde demais, caramba!”

ISABEL FICOU OLHANDO enquanto Jesse esvaziava a lata de gasolina no tanque


da caminhonete e jogava a lata vazia na caçamba. Eles encontraram Vernon
nos degraus da igreja. Ele olhou de relance para Isabel, voltando os olhos
direto para o gorro dela, e soltou uma risada.
“Ora, isso daí é simplesmente adorável! Eu espero que você tenha
trazido um desses para o Makwa.” Jesse começou a passar por ele, mas
Vernon estirou o braço. “Esperem. Eu não entraria ali se fosse você.”
“Por quê?”, quis saber Isabel. “O que foi que aconteceu?”
“Nada. O Velho Alto e Feio só não está em um de seus melhores dias.
Só isso.”
Jesse empurrou o braço de Vernon para o lado e entrou. Isabel entrou
depois dele e eles depararam-se com Krampus sentado com as pernas
cruzadas em frente ao fogão, com os olhos fechados, o rosto profundamente
concentrado, o saco à sua frente, com uma diversidade de flechas, de ouro e
de bronze, todas parecendo antigas, estiradas a seus pés. Os shawnees
estavam sentados longe dele, observando-o, parecendo nervosos. Wipi
olhou de relance para eles e balançou a cabeça de leve, em forma de aviso.
“Agora não é uma boa hora”, sussurrou Isabel.
Jesse ignorou-a e começou a seguir em frente.
Isabel segurou no braço dele.
“Espera.”
Jesse livrou-se da pegada dela e continuou andando.
“Krampus.” Krampus franziu ainda mais o cenho, mas não ergueu o
olhar. Jesse foi andando até chegar bem perto do Senhor do Yule.
“Krampus. Nós precisamos conversar.”
Krampus ainda não abriu os olhos, mas ergueu uma das mãos,
balançando-a no ar, com urgência. Isabel podia ver a frustração crescente na
face do Senhor do Yule e sabia o que aquilo poderia significar. Ela foi
correndo até Jesse, colocando a mão no peito dele para impedi-lo de seguir
em frente.
“Jesse”, disse ela com a voz dura. “Você vai ter que esperar.”
Krampus enfiou a mão fundo no saco. Parecia que estava procurando
alguma coisa. Ficou assim por vários minutos. Isabel podia sentir a tensão
aumentando em Jesse a cada segundo que passava.
“Krampus”, disse Jesse, erguendo a voz. “É urgente.”
Krampus colocou o braço, desajeitado, para fora do saco, ficou olhando
para sua mão vazia e então soltou um uivo.
“Maldito seja Odin”, disse ele, sibilando. “Malditas sejam as Valquírias.
Onde foi que eles esconderam aquilo?” Ele travou o olhar com o de Jesse e
rosnou. “Você se atreve a me interromper?”
Jesse não recuou nadinha.
“Nós precisamos ir agora. Pegar a minha filhinha antes que seja tarde
de…”
“Isso vai ter que esperar”, disse Krampus, e dispensou-o com um aceno
de mão. Isabel ficou surpresa pelo controle dele e depois viu sua exaustão.
“Não”, disse Jesse, pressionando-o. “Você não está entendendo, o
General vai…”
“É você quem não está entendendo. Eu tenho que encontrar a flecha de
Loki. Sem ela, não temos como fazer com que ele pare. Baldr vai matar
todos nós.”
“Krampus, você tem que…”
“Não”, gritou Krampus, colocando-se de pé, estalando o rabo para a
frente e para trás. “Você não é ninguém para me dizer o que eu devo fazer!”
Isabel puxou Jesse para trás.
“Para com isso, Jesse.”
Jesse ficou balançando um dedo para Krampus.
“Minha filha está encrencada e eu pretendo fazer alguma coisa a
respeito. Vou te dizer uma coisa: você fica aqui, sentado, então. Eu? Eu vou
resolver essa encrenca.”
Ele puxou o braço e soltou-se de Isabel e foi marchando até onde estava
uma caixa de papelão com o dinheiro e as armas.
Krampus franziu muitíssimo o cenho, suas narinas estavam dilatadas,
suas respirações vinham em rompantes curtos e quentes. Isabel sabia o que
viria em seguida e ficou observando, impotente, enquanto ele retraía os
lábios, expondo seus longos caninos. Ele abriu imediatamente os olhos,
vermelhos e brilhantes. Ela começou a dizer alguma coisa, para avisar Jesse
do que ia acontecer, mas Krampus estava em cima dele com três rápidos
passos. Jesse deve ter ouvido alguma coisa, pois começou a correr;
enquanto ele corria, Krampus agarrou-o com uma das mãos em volta de seu
pescoço e a outra segurando a parte da frente de sua jaqueta. Krampus
ergueu Jesse do chão e jogou-o contra a parede. A estrutura inteira da
edificação foi abalada.
“Você não vai a lugar nenhum a menos que eu permita.”
Jesse estava ofegante e forçou as palavras a saírem:
“Vá se foder. Não sou um dos seus escravos.” Jesse agarrou o pulso de
Krampus e tentou soltar-se, torcendo-o. Krampus jogou-o no chão.
“Segurem-no”, ordenou Krampus e os shawnees estavam em cima dele,
segurando Jesse antes que ele conseguisse se pôr de pé. Jesse debateu-se e
acertou um golpe na lateral do rosto de Makwa, depois eles o imobilizaram.
Krampus foi até ele pisando duro, agigantando-se perante Jesse, um
baixo rosnado saindo do fundo de sua garganta. Isabel sabia que Jesse tinha
ido longe demais, sabia que Krampus ia morder Jesse, que o transformaria
em um Belsnickel.
“Minha paciência acabou”, disse Krampus, irritado. Ele agachou-se e
segurou o braço de Jesse, deixando-o esticado. “Você me deixa sem
escolha.” Ele abriu um largo sorriso, mais uma vez revelando seus caninos.
“Não!”, gritou Isabel. “Krampus, pare com isso!”
Krampus ignorou-a e abriu a boca para morder Jesse. Isabel correu e se
empurrou para o meio deles, ficando entre os dois. Parecia que Krampus
poderia espancá-la até a morte com seu punho cerrado.
“Você fez um juramento!”, gritou Isabel. “Um juramento de sangue!”
Krampus empurrou-a para longe, fazendo com que saísse aos tropeços
pelo chão e fosse de encontro a um dos bancos da igreja. Isabel rolou de
volta, ficou outra vez em pé e gritou: “A palavra do Senhor do Yule não tem
nenhum significado? Se for assim, então como você é diferente do Papai
Noel?”
Krampus ficou em pé em um pulo, olhando com ódio para Isabel, e ela
podia ver que ele cogitava matá-la, podia ver isso ardendo nos olhos dele,
que ergueu o rosto para cima, em direção às vigas do teto, soltou um uivo,
cerrou os dentes e só ficou ali com os olhos fechados, o peito subindo e
descendo com sua respiração que, pouco a pouco, ficou estabilizada. Ele
deixou os ombros caírem.
“Isabel… minha leoazinha. Seu coração é audaz e suas palavras são
verdadeiras.” Ele colocou os olhos em Jesse. “Você… se algum dia se
atrever a me desafiar de novo… Vou matar você.” As palavras dele estavam
carregadas de uma finalidade absoluta; ele soltou longamente o ar. “Haverei
de honrar meu juramento. Aqueles homens vão morrer, e terão mortes ruins.
Mas, tudo em seu devido tempo, pois antes há questões mais urgentes.”
Ele virou-se, seguiu cambaleando até o fogão e ficou com os olhos
grudados no saco de veludo.
“Atem-no”, disse Krampus, sem se virar de volta. “Façam com que ele
não saia correndo. Não posso me arriscar que escape. Jesse é imprevisível
demais.”
Makwa puxou Jesse, empurrou-o com força para junto do chão e
colocou um joelho nas costas dele. Ele fez um gesto em direção a diversos
varões de cortinas que estavam apoiados num canto. Wipi ficou em pé em
um pulo, sacou sua faca e cortou as cordas dos varões. Isabel interceptou-o
quando ele voltava.
“Dê-me essas coisas.” Isabel apanhou as cordas de Wipi, que olhou para
Makwa e deu de ombros. Isabel foi até Makwa. “Pare de ser tão bruto.
Agora, solte-o.”
Makwa fez uma cara feia, disse alguma coisa na língua dos shawnees,
que Isabel sabia que não era nenhum elogio, mas saiu de cima de Jesse.
“Estique os pulsos.”
Relutante, Jesse fez o que ela mandou. Isabel atou os pulsos dele com
gentileza, mas também com firmeza. Jesse não olhou para ela, ele só ficou
olhando feio para Krampus o tempo todo. Krampus sentou-se ao lado do
saco, pegou uma das flechas e ficou analisando-a.
“Onde você está se escondendo?”

PAPAI NOEL estava na cordilheira de pedras e olhava lá para baixo com a


visão fixa nos lobos. O vento do início da manhã chicoteava sua longa
barba. Sua respiração saía em forma de vapor devido ao frio. A loba olhou
para cima, para ele, e depois olhou para seu companheiro, que ainda estava
deitado de lado. Ela soltou um ganido e bateu com a pata em seu
companheiro, que não se mexeu. Ela ladrou para o homem de barba branca
lá em cima. Papai Noel contorceu o rosto, mas não fez nada além de ficar
com o olhar fixo neles.
O homem perscrutou o céu e não encontrou nenhum sinal dos corvos, e
não os tinha ouvido desde a manhã anterior. Ele sabia o que aquilo deveria
significar. A trilha estava fria; sem os corvos, Krampus poderia estar em
qualquer lugar, poderia estar a mil quilômetros dali. Ele estava perdendo
tempo.
Ele ouviu o som de uma trombeta de chifre, bem ao longe, vindo do
leste. Virou-se em direção ao som, puxou sua própria trombeta e soprou-a.
O som ecoou pelo vale, som esse que a maioria dos ouvidos mortais
deixariam de notar, som esse que poderia ser levado por meio mundo.
Poucos minutos depois, ele avistou um trenó voando em sua direção
sobre os cumes da cadeia de montanhas ao longe. O trenó era menor do que
seu trenó de Natal, conduzido por dois bodes, Tanngrisni e Tanngnost. Os
bodes eram verdadeiros bodes de Yule, os últimos de sua espécie, os
últimos laços com uma outra era.
“O passado deveria ficar no passado”, disse ele, rosnando. Tanta coisa
que eu tinha conseguido esquecer… Agora Krampus está de volta para
reviver velhos fantasmas. O Papai Noel olhou em direção ao céu. Baldr está
morto, por todos os deuses, e ele precisa permanecer morto. Baldr pagou
por seus desmandos, por sua arrogância, por seu engodo, pagou com sua
vida, com sua alma… pagou uma centena de vezes, várias vezes. O quanto
seria o bastante? Quando terei permissão para esquecer?
O trenó flutuou para baixo e fez uma parada, derrapando na estrada
esburacada. Dois duendes saltaram para fora, ambos armados com espada e
pistola, trajando roupas de habitantes das florestas: casacos grossos, calças
compridas, mantos e botas. Eles perscrutaram as colinas com olhos afiados
enquanto seguiam a passos de passeio em direção a Papai Noel, os topos de
suas cabeças chegando apenas à altura do cinto dele. Eles espiaram na
ravina abaixo, olhando para os dois lobos.
“Freki está morto?”, quis saber Tahl, o mais jovem dos dois duendes.
“Não”, respondeu o Papai Noel. “Mas receio que em breve estará.”
“Existe alguma coisa que podemos fazer?”
“Não por Freki. Ele é grande demais para ser carregado no trenó.”
“Isso é uma pena!”
“É, sim”, concordou o Papai Noel, “e Geri não vai sair do lado dele.
Nem mesmo na morte. Os fardos deles são um só.”
Eles ficaram observando Geri, que andava de um lado para o outro em
volta de seu companheiro. Ela lambeu os pelos dele e olhou outra vez para
o homem de barba branca. Ela ladrou, então o som transformou-se em uma
lamúria.
“Não podemos deixar as coisas como estão”, disse Tahl. “Tem que
haver alguma coisa que possamos fazer.”
“É triste, mas eles fazem parte do passado e, assim como todos os
antigos, o tempo deles já era.” Papai Noel virou-se e subiu no trenó. O
duende mais velho seguiu-o, mas o mais jovem ficou onde estava,
observando as criaturas condenadas.
“Venha, Tahl”, disse Papai Noel. “Não torne as coisas mais difíceis do
que o necessário.”
O duende mordeu o lábio, deixou o penhasco e os lobos para trás, saiu
correndo e entrou no trenó em um pulo. O duende mais velho estalou as
rédeas; os dois bodes baliram e saltaram em direção ao céu, puxando o
trenó para cima, acima da árvores. Tahl ficou observando os lobos, que
foram ficando cada vez menores, até que fossem apenas dois pontinhos
minúsculos, sozinhos na floresta.
Enquanto o trenó desaparecia acima da cadeia de montanhas, a loba
voltou a cabeça para trás e uivou; o som pesaroso e desesperador de seu
uivo ecoou através das colinas cobertas pela neve.
O uivo fazia pressão na cabeça de Krampus, entrando em seu coração, tão
fraco, nem mesmo um sussurro, nem mesmo um eco do eco e, ainda assim,
tão doloroso de se aguentar. O primeiro brilho da alvorada espiava para
dentro da igreja onde eles estavam através das ripas da janela. Os outros
dormiam despreocupados, mas, para Krampus, parecia não haver nenhum
descanso do chamado pesaroso. Tamanha tristeza, pensou ele, que agarrou
o saco, puxou-o para seu colo e fez o melhor que pôde para afastar os uivos
de sua mente. A flecha de Loki, pensou ele, ela deve ser encontrada ou
ficarei indefeso. Ele concentrou sua mente na tarefa, tentando visualizar a
flecha em todas as possíveis manifestações. Só que ele não fazia a mínima
ideia de como era a aparência da lendária flecha, nem de onde ela poderia
estar, e tinha que confiar que o saco não só a procuraria, como também a
encontraria, e o saco estava cobrando seu preço. Onde está você? Onde está
você?
As lendas diziam que Odin havia levado a flecha até Muspell, o reino de
lava e fogo, para ser derretida e destruída para sempre, mas Hel fora
contrária a isso. Krampus pressionou os olhos, fechando-os, pensou em
Asgard, mesclou-se com o saco. As ruínas queimadas de Valhalla
apareceram na mente dele, os terrenos circundando toda a terra tostada,
tudo um cemitério de cinzas se desfazendo. Krampus se perguntava quanto
tempo mais levaria antes que esse reino fantasmagórico fosse perdido para
sempre. A ossada de um navio apareceu em meio a um leito seco de
oceano. “Hringhorni, embarcação do funeral de Baldr”, sussurrou
Krampus. “Deve ser aqui. Procure pela…”
O uivo… pesaroso e penetrante.
A visão esvaneceu-se. Krampus abriu os olhos e encontrou-se fitando
outra vez os arredores da igreja e a face torturada de Cristo pendurada na
parede. Ele soltou um longo suspiro, deixou o saco cair de suas mãos, a
fadiga corroendo até seus próprios ossos. Ele empurrou-se para ficar de pé e
foi andando até a janela, espiou para fora na manhã congelante e ficou
observando a luz da alvorada dançar em meio aos sincelos, ouvindo o
chamado de pássaros matinais. Ele ansiava por apenas ficar lá sentado o dia
todo vendo Sol formando seu caminho em meio à paisagem invernal. Mas
não havia tempo para tal frivolidade, não para ele, não enquanto Baldr
ainda respirasse.
Novamente, o uivo.
Geri. Krampus tinha certeza de que era Geri. A linguagem dos animais
era a dele também, e com os antigos ele tinha um elo. O uivo falava de mais
do que dor, falava de abandono. Krampus balançou a cabeça. Ele os tinha
deixado para trás. Os belos animais de estimação de Odin, deixados para
morrer sozinhos. Krampus afundava as unhas na palma de sua mão. Odin o
amaldiçoaria por esse feito.
Mais um grito.
E a vergonha é compartilhada, pois tenho a mão nisso daí também. Isso
não pode ser negado. Será que sou como ele então? Ficaria sentado por
perto, sem fazer nada? Deixando que morressem? Permitiria que essas
bestas magníficas desaparecessem do mundo? Ele balançou a cabeça em
negativa. Alguma coisa deve ser feita.
Ele virou-se, certo do que tinha que fazer, então ficou hesitante. Esse
poderia ser um dos truques dele. Uma armadilha. Um estratagema para me
fazer sair da minha toca. Krampus inspirou fundo. Talvez… talvez não.
Alguns riscos devem ser tomados.
“Acordem”, disse Krampus.
Os Belsnickels ergueram as cabeças, sentaram-se direito, parecendo não
saber ao certo onde estavam nem como tinham chegado até ali. Não havia
nenhuma confusão como a deles na face de Jesse. Ele se aprumou
rapidamente, com as mãos ainda atadas e a perna amarrada ao banco.
Krampus podia ver o quanto ele estava focado, podia ver o ódio dele; o
homem não fazia esforço algum para escondê-lo. Krampus pensou em
como Jesse ficaria surpreso se soubesse o quanto ele mesmo, Krampus,
entendia esse ódio. Ele gostava do espírito desse homem, queria dizê-lo que
se segurasse, que ele, o Senhor do Yule, cumpriria sua promessa, mas sabia
que tais palavras ficariam perdidas para o homem enquanto ele estivesse em
um lugar tão sombrio.
“Vamos. Subam na carroça. Tenho coisas a fazer.” Eles olharam
confusos para ele. “Temos que encontrar o lobo.”

“ISSO É uma tremenda de uma idiotice!”, disse Jesse, olhando bem para a
estrada sulcada e congelada enquanto dava tapinhas em seus bolsos, na
esperança de encontrar um cigarro perdido por ali.
“Idiotice ou não”, respondeu Isabel, “a decisão dele está tomada.”
Ela ainda estava usando aquele bendito daquele gorro que ele tinha
comprado para ela, não o tinha tirado da cabeça desde que o colocara, e isso
tornava difícil para ele ficar enfurecido com ela.
Jesse foi diminuindo a velocidade da caminhonete quando cruzaram um
pequeno riacho. Eles tinham tido sorte na rodovia, o único trânsito pelo
qual passaram foram dois semitrailers de outro Estado. Porém, era cedo, o
trânsito logo ficaria pesado e não havia nenhuma garantia de que
continuariam tendo sorte quando tentassem voltar.
“Ele vai fazer com que todos nós sejamos mortos. Isso é uma idiotice,
idiotice, idiotice!”
“Ele pode ser um cara difícil de se sacar às vezes”, disse Isabel.
“Falando em matança em um minuto e depois chorando por uns pássaros
mortos no minuto seguinte.”
“Bem, encontrar aqueles lobos uma vez já foi o bastante para mim.”
Jesse olhou de relance no espelho retrovisor, para Krampus e os
Belsnickels, que estavam sentados debaixo do teto detonado da caçamba da
picape, todos observando a floresta, procurando em meio às árvores por
algum sinal dos lobos, de Papai Noel, e sabe-se lá de quê mais. Os
Belsnickels seguravam de tudo, de lanças e facas até uma submetralhadora,
enquanto Krampus segurava o saco como se fosse uma criança agarrada a
seu cobertorzinho, absorvendo o cenário com os olhos.
Eles depararam-se com caixas de videogame espalhadas por toda a
estrada de terra e Vernon deu uns tapinhas no vidro.
“Krampus quer que você dê a volta. Ele acredita que passamos por
eles.”
Jesse chegou a um espaço largo, deu a volta e, lentamente, tornou a
descer a montanha. Pouco menos de um quilômetro depois, Krampus
ergueu a mão. Jesse pisou devagar nos freios, tomando cuidado com o gelo,
e parou a picape.
“Ele quer que você desligue o motor”, disse Vernon em uma voz
sussurrada, como se os lobos pudessem estar escondidos debaixo da
caminhonete.
Jesse achava que essa não era uma boa ideia. Ele queria poder botar o
pé no acelerador, caso um dos lobos aparecesse, e não podia contar sempre
que o velho V8 fosse ligar logo de cara, nem mesmo quando estava quente.
“Eu não sei se eu…”
“Shhhhh”, disse Vernon, levando um dedo aos lábios. “Ele está tentando
ouvi-los.”
Jesse revirou os olhos e desligou o motor.
Krampus saiu da caminhonete, seguido pelos Belsnickels. Os shawnees
estavam com suas pistolas e suas facas nos cintos e seguravam suas lanças
em prontidão, analisando a floresta em todas as direções. Vernon foi
andando até a janela de Jesse, passando os dedos pela Mac-10 convertida
que ele trouxera consigo, ignorando o fato de que a estava apontando para
Jesse enquanto fazia isso.
“Ei”, disse ele em um sussurro. “Como é que a gente destrava esta coisa
aqui mesmo?”
Jesse empurrou o cano em direção ao chão. Ele tinha pouca fé nas
habilidades de Vernon em usar a arma sem que atirasse nele mesmo ou em
seus camaradas, e só esperava que não estivesse nem um pouco por perto
do homem se ele decidisse usá-la.
“Quando estiver pronto para usá-la, deslize essa trava para trás.” Jesse
nunca tinha atirado com uma submetralhadora antes, mas era uma arma
simples o bastante. Pelo jeito como Vernon lidava com ela, Jesse se
perguntava se ele teria usado alguma arma de fogo antes. “Não puxe a trava
para trás até que esteja preparado para atirar ou a arma pode sair da sua
mão.”
Vernon puxou a trava para trás.
“Não, Vernon, não até que você esteja preparado para atirar.”
“Eu estou preparado para atirar”, disse Vernon, sem querer apontando a
arma bem para Jesse.
“Merda, Vernon”, disse Jesse, irritado, empurrando o cano da arma para
longe de seu rosto. “Olha, cara, você tem que olhar para onde está
apontando essa coisa. Ok?”
“Ah, sim. Desculpa.”
Krampus e os shawnees ficaram parados no penhasco, analisando o
desfiladeiro lá embaixo, quando um uivo subiu ecoando pelo vale. Jesse
ficou todo arrepiado. Parecia que o som vinha dali de perto deles.
Makwa subiu correndo um pouco na estrada e apontou para baixo.
“Eles encontraram alguma coisa”, disse Vernon.
“Vamos ver”, disse Isabel, e começou a sair da picape, parou e olhou
para Jesse.
“Estarei bem, ficando aqui mesmo”, disse Jesse.
Isabel balançou a cabeça em negativa.
“Acho que não.”
Jesse soltou uma bufada, ativou o freio de mão e saiu do veículo.
“Olha, ninguém vai me dar pelo menos uma arma?”
Ninguém deu atenção a ele.
“Tudo bem”, disse ele, e acompanhou Isabel e Vernon até o penhasco.
Ele podia ver os lobos, os dois, cerca de uns cinquenta metros lá
embaixo. Um deles estava deitado de lado. Para Jesse, ele parecia morto. O
outro estava montando guarda ao lado dele. E olhava para cima, para eles,
rosnando, com os pelos arrepiados. Nós só precisamos deixar aquela
criatura na dela.
Krampus e a loba ficaram olhando um para o outro por vários minutos,
os dois torcendo os rabos. Por fim, Krampus pronunciou-se:
“Nenhum de vocês deve usar suas armas sem minha ordem. Isso é um
comando. Agora, esperem aqui.”
Ele voltou até a caminhonete, enfiou a mão na caçamba e puxou para
fora o saco.
“O que é que ele está fazendo?”, perguntou Vernon a ninguém em
particular.
Krampus fechou os olhos, segurou com força o saco e depois abriu os
olhos de novo. Ele enfiou o braço dentro do saco e tirou dali um pedaço de
alguma coisa. Krampus jogou o saco de volta no chão da caminhonete e
eles seguiram seu caminho.
“É a perna da vaca”, disse Vernon. “Ele está planejando alimentar
aquelas malditas criaturas. Ele ficou doido, completamente maluco!”
Jesse deu-se conta de que Krampus devia ter aberto uma porta lá para a
igreja e apenas puxou a carne da banheira.
“Talvez ele vá fazer com que você dê comida a eles, Vernon.”
Mas Krampus passou por eles sem dizer nenhuma palavra e começou a
descer o barranco rochoso. Ele deslizou e foi se arrastando até o fundo da
ravina, depois foi dando pulos, com destreza, de um penedo a outro, até que
estava a uns vinte metros de distância dos lobos. A imensa loba mostrou os
dentes para ele e manteve-se firme em seu lugar. Eles podiam ouvir o baixo
ribombar de seu rosnado desde o topo da ravina.
“Meus amigos”, disse Vernon, sem fazer nenhum esforço para esconder
o prazer de sua voz. “O Senhor Krampus está prestes a ser devorado diante
de nossos próprios olhos.”
Os shawnees desferiram um olhar sombrio a ele.
“Nem venham fazer cara feia para mim, seu bando de pagãos. Nem todo
mundo está se divertindo pra caramba aqui. Deus ou não, ele finalmente
ficou doidinho da silva!” Vernon abriu um sorriso. “Quanto mais cedo ele
estiver morto, mais cedo eu acordo deste pesadelo.”
Krampus deu um passo, depois outro, aproximando-se devagar da loba,
que não mostrava nenhum sinal de que ia recuar, seu rosnado ficando mais
alto. Jesse viu-se partilhando do sentimento de Vernon; de fato, Krampus
havia ensandecido. Nem mesmo os shawnees pareciam ter certeza de
qualquer coisa, agarrando com força suas armas e trocando olhares
nervosos de relance.
Krampus pisou no desfiladeiro onde estavam os lobos gigantescos. Ele
segurou o pedaço de carne diante de si e falou com a loba. Era impossível
discernir as palavras daquela distância, e ainda assim, de alguma forma,
Jesse captou seu tom baixo e pacificador, como se o Senhor do Yule
estivesse se comunicando com ela de outras formas.
A loba deu um passo para trás, depois, mais um. Krampus colocou a
carne na frente dela, que a cheirou, parecendo confusa, rosnando e depois
ganindo, rosnando e ganindo de novo.
Krampus andou até onde estava o lobo ferido e agachou-se sobre os
próprio quadris. Ele tirou uma fatia da carne e segurou-a diante do lobo ali
prostrado. O animal ergueu a cabeça, cheirou a carne, lambeu-a e depois
pegou-a para comer. Krampus ofereceu mais uma fatia da carne, depois
outra, acariciando o pelo do animal enquanto sua companheira, o tempo
todo, ficava olhando. Por fim, ela deu um passo tímido, com o rabo
abaixado, cheirando a carne. Krampus levou a carne em direção a ela, que a
lambeu, depois deu uma mordida na carne, mastigando-a com voracidade.
Jesse se perguntava quanto tempo faria desde que ela teria comido pela
última vez.
Krampus continuou falando com eles naquele tom baixo e pacificador;
o que quer que fosse que ele estivesse dizendo, parecia estar funcionando.
Logo, Krampus estava fazendo carinho nos dois animais, e Jesse ficou
observando, descrente, enquanto a loba que estava em pé lambia a mão de
Krampus e depois enfiava até mesmo o focinho para fazer carinho no
Senhor do Yule.
“Parece que hoje não é seu dia de sorte no fim das contas, Vernon”,
disse Jesse.
“Sim, parece que a loucura está vencendo”, disse Vernon, soltando um
suspiro. Krampus ficou em pé e acenou para eles. “O que é que foi agora?”,
gemeu Vernon.
“Ele quer que a gente desça”, disse Isabel. “Eu tenho quase certeza de
que ele vai querer que a gente pegue aquele lobo manco e o coloque na
caminhonete.”
Vernon soltou um longo gemido.
Os shawnees começaram a descer, mas Isabel deu uma parada.
“Vernon, preciso que você permaneça onde está e fique de olho na
caminhonete. O saco do Krampus está na traseira dela, lembra? Grite se
ouvir alguém vindo.”
Vernon abriu um sorriso.
“Para mim, está ótimo.”
Isabel olhou de relance para Jesse.
“E não perca Jesse de vista.”
Os quatro Belsnickels deslizaram para baixo no barranco, cruzaram os
penedos e, com cautela, aproximaram-se dos lobos.
Jesse soprava suas mãos em concha, tentando aquecer os dedos, depois
as enfiou nos bolsos. Ele sentiu as chaves ali e seu coração ficou acelerado.
Ele tinha se esquecido de que estava com elas; sua mente estava
concentrada nos lobos, se e quando eles iriam sair pulando das árvores e
dilacerá-los a todos. Em seu medo e excitação, ele nem mesmo tinha
considerado a possibilidade de escapar, e agora se dava conta de que não
era o único preocupado, percebera que ninguém mais tinha pensado nas
chaves também.
Ele voltou um olhar disfarçado, de relance, na direção da picape, que
estava ali, simplesmente esperando que ele saísse correndo e pulasse para
dentro dela. Considerou que Vernon estava ali, parado no penhasco… Um
empurrão rápido e já era. Jesse apertou as chaves. Pode ser minha única
chance.
“Oh, isso é mesmo lindo”, disse Vernon, hipnotizado pelo drama que se
desenrolava lá embaixo.
Jesse deu mais um passo para perto de Vernon, que olhou para ele, e
Jesse ficou paralisado.
“O que é que você está fazendo?”
Jesse abriu a boca, não conseguiu encontrar as palavras e deu de
ombros.
“Bem ali, olha. Você vai perder isso.”
A loba que estava em pé ficou com os pelos arrepiados quando os
Belsnickels se aproximaram dela e começou a rosnar de novo. Os
Belsnickels pararam no meio do caminho.
“Apenas odiaria ver um daqueles cabeças de minhoca selvagens terem
um braço arrancado com uma mordida.” Vernon deu uma risada. “Ora, isso
seria horrível!”
Jesse olhou para todas as rochas e raízes lá embaixo. Com certeza não
queria matar o homem, apenas queria cair fora dali. Sinto muito, pensou
Jesse, e deu um empurrão em Vernon, pegando o Belsnickel completamente
de surpresa. Vernon saiu voando penhasco abaixo, e Jesse não esperou por
ali para ver o que aconteceria em seguida. Ele correu até a caminhonete,
pulou para dentro e meteu a chave na ignição com tudo. Girou a chave, o
motor fez um chiado, e nada. Jesse visualizou todos os Belsnickels subindo
pelo penhasco e sabia que só tinha alguns segundos. Ele tentou de novo,
bombeando de leve a gasolina, tentando não afogar o motor em sua
excitação. Dessa vez o motor ligou, o abafador de som engasgou e uma
fumaça preta saiu da traseira da picape. Jesse fez o carro andar e pisou no
acelerador com tudo. A picape foi descendo aos pulos a estrada cheia de
buracos. Ele ouvia uivos vindo de algum lugar atrás dele e não se atrevia
nem mesmo a olhar de relance para trás, com toda sua atenção focada em
impedir que a caminhonete saísse derrapando pela pista cheia de gelo. Um
minuto depois, atravessou com tudo em meio aos galhos, e os pneus da
frente do velho Ford chegaram a sair do chão enquanto ele entrava voando
na rodovia. Alguém soou uma buzina, som seguido do guinchado de freios.
Jesse girou no meio do caminho e quase bateu em um semitrailer que vinha
vindo. Ele endireitou o veículo, pisou no acelerador e seguiu pela Rota 3 em
direção a Goodhope.

POUCO ANTES de chegar à cidade, Jesse entrou na longa estrada de cascalho


que dava na casa da mãe de Linda e, em seguida, virou no desvio ao lado do
riacho. Ele deixou o motor ligado, pulou para fora do carro e soltou os
quatro parafusos que prendiam o que havia sobrado da caçamba da picape,
jogando os destroços nos arbustos. Ele não conseguia lembrar-se de como
era a picape sem a carcaça da caçamba, quase não a reconheceu e esperava
que ninguém mais a reconhecesse também.
Ele colocou o joelho no que sobrara da guarda traseira da caminhonete,
empurrou o saco para o lado e puxou de lá o revólver calibre .22. Não é
muita coisa, mas pode ser tudo que eu preciso se Abigail ainda estiver na
casa de Dillard.
“Espera um minuto.” Ele olhou para o saco e lembrou-se de Krampus
puxando a carne da vaca de dentro dele, e sua pulsação ficou acelerada. “A
igreja? Sim, vai ter que ser. A porta ainda deve estar aberta para a igreja. E
o que é que tem lá na igreja?”
Ele deu risada.
Ele apanhou o saco, trouxe-o para junto de si e ficou olhando para ele
por um longo minuto.
“Ok, vamos ver o que você tem.” Ele abriu o cordão do saco, fechou os
olhos, pensou nas submetralhadoras e enfiou o braço no saco. Sua mão
remexeu um espaço vazio, sucedeu-se um segundo prolongado em que ele
achou que a porta tinha se fechado, depois sua mão acertou algo que parecia
papelão, então o frio e duro aço. Ele tirou o braço e sorriu; estava com uma
das Mac-10s, e, naquele instante, parecia o objeto mais bonito da face da
terra. Pensou nos pentes de munição, visualizou-os em sua mente, enfiou a
mão de novo no saco e eles estavam bem ali. Puxou dois deles para fora.
“Isso deve equilibrar um pouco as coisas.”
Jesse jogou o saco de Krampus no banco do passageiro e voltou a entrar
no veículo. Ele segurou a arma apontada para cima e olhou para o céu.
“Obrigado, Senhor.” Ele beijou a arma. “Vou ver isso como um sinal de
que o senhor está torcendo por mim.”

JESSE VIROU na entrada de carros da casa da mãe de Linda e seguiu com o


veículo até os fundos. Ele jogou a arma no ombro, desceu da picape em um
pulo e não se deu ao trabalho de bater à porta, foi simplesmente entrando.
Andou correndo pela casa, procurando por algum sinal de Linda ou de
Abigail.
“Linda!”, gritou ele. “Abi!”
“Jesse?”
Polly espiou escadaria abaixo, segurando junto ao corpo o robe que
vestia para ficar em casa. Jesse subiu voando as escadas; ela viu a arma em
cima do ombro dele e recuou.
“Onde estão elas?”, perguntou ele, com a voz frenética. “Onde está
Abigail?”
“Elas não estão aqui.”
Ele empurrou-a, passou por ela e deu uma rápida olhada dentro de
ambos os quartos.
“Jesse, o que foi que deu em você? Não pode entrar assim na casa de
alguém e…”
“A senhora falou com a Linda de novo? Teve alguma notícia dela?”
“Ela me disse que você estava encrencado, Jesse. Em que tipo de
encrenca você se meteu?”
Ele fixou os olhos desesperados nela.
“A vida de Abigail está em jogo, se a senhora souber de alguma coisa,
por favor, me diga.”
“A única coisa de que eu sei é que Dillard quer que elas fiquem
quietinhas lá na casa dele. Ela me disse para eu nem passar por lá.” Polly
começou a ficar com os olhos marejados. “Estou tão assustada, Jesse, por
favor, conte-me o que está acontecendo.”
“Talvez elas ainda estejam em segurança então.”
Ele desceu de volta as escadas correndo.
Polly alcançou-o no corredor.
“Por que é que ninguém me conta o que está acontecendo?”
Jesse ergueu o telefone do gancho, um velho telefone de disco.
“Qual é o número do telefone de Dillard?”
“Ah, não. Não, senhor. Não vou dizer. Você só vai atiçar as coisas.”
“Eu só vou ver se ela está lá. Não vou dizer nada.”
“Você só vai piorar as coisas.”
“Não tem como ficar pior. Eles pretendem fazer mal a elas… ”
“Jesse, foi você que as colocou nessa situação, não foi? Se…”
“Eu ferrei as coisas, sra. Collins. Eu sei disso. Mas estou disposto a
morrer se for preciso para consertar tudo. Isso quer dizer algo para a
senhora?”
E, por um segundo, o rosto austero da mulher ficou enfraquecido e ele
podia ver a dor, o medo, e depois a teimosia dela voltou.
“Não vou dizer, não.”
“É melhor me dizer, caramba!”, ele gritou.
Ela cruzou os braços e ele sabia que, a menos que estivesse disposto a
tirar as unhas dela uma por uma, não conseguiria aquele número. Ele puxou
o gancho do telefone e arrancou o fio da tomada.
“Qual diabos é o problema com você?”, gritou ela.
“Desculpe-me pelo seu telefone, sra. Collins. É só que não quero que a
senhora conte a ninguém que eu estive aqui, pelo menos não por um
tempinho.”
Ele saiu de novo, levando o gancho do telefone consigo. Polly foi atrás
dele, até os degraus da escada, e ficou olhando enquanto ele entrava em sua
caminhonete.
“Se acontecer alguma coisa com os meus bebês”, ela gritou, “eu juro
que vou…”
“A senhora não vai ter que fazer nada comigo, sra. Collins”, gritou
Jesse em resposta. “Se acontecer alguma coisa com elas… eu já estarei
morto.”
A boca da sra. Collins formava uma linha tensa.
O TELEFONE TOCOU e Dillard esticou a mão até a mesinha de cabeceira,
deixando cair um frasco de remédios para dor de cabeça, espalhando os
comprimidos pelo chão.
“Merda!” O telefone tocou mais uma vez. “Alô.” Ele ouviu a respiração
de uma mulher. “Polly, é você de novo? Droga, Polly, nós falamos para
você parar de ficar ligando o tempo to…”
“Ele está indo para aí”, disse Polly, com raiva.
Dillard sentou-se direito.
“Você quer dizer… o Jesse?”
“É, o Jesse. Ele está com uma arma e está doidão. Arrancou meu
telefone da parede e eu tive que caminhar até a casa da Berta só para
conseguir te ligar. Ele realmente me deixou assustada, Dillard.” Ela estava
chorando. “O que está acontecendo? Você pode fazer o favor de me
contar?”
Dillard acendeu o abajur da mesa.
“Acalme-se, Polly. Tudo vai se resolver.” Linda sentou-se direito,
apertando os olhos para enxergar naquela luz, parecendo confusa. “Olha, eu
quero que você conte a Linda isso que você acabou de me falar.”
Dillard passou o telefone para Linda e levantou-se, vestindo a calça, a
camisa e as botas. Ele apanhou sua pistola, as algemas e o celular da
mesinha de cabeceira e desceu o corredor. Podia ouvir Linda tentando
acalmar sua mãe e tinha esperanças de que Polly fosse convencer Linda de
que Jesse estava mentalmente instável. Já estou ficando cansado de ouvir a
Linda defendendo aquele bosta.
Dillard abriu o seu celular e fez uma ligação.
“O que foi?”, atendeu uma voz grogue.
“Chet?”
“Dillard?”
“É. Venha até a minha casa. Tenho um presente para você.”
“Jesse?”
“Ele estará aqui a qualquer minuto, então é bom andar logo.”
Dillard fechou o celular com tudo, guardou-o no bolso e depois foi
andando pela casa, apagando as luzes e fechando todas as cortinas. Ele
posicionou-se em seu escritório e ficou espiando para fora pelas persianas.
Ele se perguntava se Jesse seria idiota o bastante para estacionar em sua
entrada de carros ou se pararia a picape lá embaixo na estrada e tentaria
subir sorrateiramente. Se ele fizer isso, as coisas podem ficar complicadas.
Diabos, seria muito mais fácil se eu pudesse simplesmente matá-lo a tiros.
Mas Dillard não queria fazer isso, o General queria Jesse vivo, havia muitas
perguntas que precisavam ser respondidas.
Dillard soltou a trava de segurança de sua arma. Sabia que Jesse era um
perdedor, mas não se deixava crer nem por um segundo que um perdedor
não poderia ser sortudo, pois estava nesse trabalho havia muito tempo e
tinha visto muita coisa dar errado. Não existe maneira fácil de tirar a arma
de um homem sem o matar primeiro.
Linda entrou correndo na sala com sua calça jeans e meias nos pés,
abotoando a frente de sua blusa. Ela viu a arma e apertou os lábios.
“Deixe-me falar com ele.”
Dillard voltou um olhar endurecido para ela. Quando é que ela vai
aprender?
“Não. Isso não vai acontecer. Eu quero que você desça o corredor e
espere lá com a Abigail até que eu dê outra ordem. Entendeu?”
“Por favor.”
“Você precisa ficar fora do meu caminho e deixar que eu faça o meu
trabalho.”
“Dillard, eu sei como falar com ele. Não há nenhuma necessidade
disso.”
Ele sentiu seus ânimos ficando quentes.
“Você não ouviu o que sua mãe falou? Aquele parece o Jesse que você
conhecia?”
“Eu não vou ficar assim parada e deixar que você atire nele e o mate.”
“Caramba, Linda.”
Ele deu um passo na direção dela, pretendendo endireitá-la de um jeito
ou de outro, quando lhe passou pela cabeça que ela bem poderia ajudar sem
saber… Ele soltou um longo suspiro.
“Ok, Linda, você quer salvar o Jesse? Então faça com que ele largue
aquela arma. Acha que consegue fazer isso?”
Linda assentiu sem hesitar.
“Quero que você me entenda, enquanto ele estiver com aquela arma,
existe uma chance muito grande de que vá acabar sendo morto.”
“Eu sei.”
Dillard limpou a boca com a mão.
“Deixe-o entrar, distraia-o e…”
Dillard ouviu um veículo se aproximando e reconheceu o som do
amortecedor detonado da picape de Jesse. Jesse desligou o motor um
segundo depois, e Dillard presumiu que ele devia ter estacionado a
caminhonete logo depois do elevado.
Ele olhou nos olhos de Linda, que estavam arregalados e cheios de
ansiedade.
“Está pronta?”
Ela assentiu, mas ele podia ver que as mãos dela estavam tremendo.

JESSE TESTOU o peso da Mac-10 e carregou-a com um pente de munição.


Enfiou os dois pentes extras no bolso, abriu a porta e saiu. Ele empurrou a
porta sem a bater e olhou de relance para os dois lados da estrada coberta
por árvores. As casas ao longo dessa extensão de terra ficavam bem
afastadas umas das outras, sendo que a caixa de correios mais próxima
ficava pelo menos um quilômetro para trás. Ele colocou a faixa da arma em
volta do pescoço, assentando a submetralhadora debaixo do braço. A leve
neve havia cedido lugar a uma garoa miserável. Ele virou para cima o
colarinho de seu casaco e, aproximando-se das árvores, seguiu pelo terreno
elevado em direção à casa de Dillard.
Jesse ficou de cócoras nos arbustos na beirada do quintal da casa de
Dillard, desejando que tivesse um cigarro para acalmar seus nervos. A
viatura não estava lá, o que significava que havia uma boa chance de que
Dillard também tivesse saído. E, se Dillard estivesse em casa, Jesse
esperava que ele estivesse dormindo ainda, o que lhe daria alguma chance
de pegá-lo de surpresa. Você está preparado para atirar nele? Jesse
lembrou-se da última vez em que tivera que fazer essa escolha. Desta vez é
diferente. Isso não tem a ver comigo. Isso tem a ver com Abigail. Eu vou
atirar nele se tiver que fazer isso. Ele inspirou fundo, puxou a trava da Mac
para trás, na esperança, que diabos, de que não tivesse que atirar em
ninguém. Ele saiu de seu esconderijo e desceu pela encosta.
Jesse aproximou-se sorrateiramente da frente da casa, tentando espiar
para dentro das janelas, para ver se havia luzes acesas, procurando por
alguma pista de quem poderia estar lá dentro. Ele começou a subir na
varanda da frente da casa quando a porta se abriu. Jesse deu um pulo e
levou a arma, desajeitado, para cima, com o dedo no gatilho.
Linda estava parada na fresta aberta da porta, e, por um instante, ele
esqueceu-se de Dillard, do General, até mesmo de Krampus, sentia apenas a
dor em seu coração.
“Jesse”, disse Linda, parecendo chocada. “O que você está fazendo
aqui?”
Ele subiu os degraus correndo, tentando ver dentro da casa, mantendo a
arma em prontidão.
“Ele está aí?”, perguntou Jesse, sibilando. “Dillard está aí?”
Ela balançou a cabeça em negativa e Jesse sentiu-se lavado por uma
onda de alívio.
Linda olhou de relance para os dois lados da estrada.
“Rápido, entre aqui antes que alguém o veja.”
Jesse abaixou a cabeça e entrou no vestíbulo.
“Onde está Abigail?”
Ela olhou bem para ele, que pôde ver nos olhos dela como ele devia
estar em mal estado.
“Jesse, eu estou tão preocupada com você… O que é que…?”
“Ela está aqui? Abigail está aqui?”
“Jesse, você pode soltar essa arma, por favor?”
Ele sentiu o tremor na voz dela, notou que estava falando com ele em
um tom de cautela, do jeito como se fala com uma pessoa louca.
“Por favor”, disse ela. “Só larga essa arma e fala comigo, Jesse. Por
favor.”
Foi então que ele viu o medo nos olhos dela.
“Ah, Linda. Ah, não… você entendeu tudo errado.” Ele puxou a tira da
arma de seu pescoço e colocou-a na mesa do corredor, debaixo de um
espelho oval, e deu um passo na direção de Linda. “Querida, a última coisa
que eu pretendia era assustar você.”
Ela recuou.
Ele não conseguia aguentar a dor nos olhos dela. Ele esticou a mão na
direção dela, dando mais um passo.
“Linda, por favor, só escuta. Eu posso explicar tudo…”
Com sua visão periférica, Jesse avistou uma sombra saindo do gabinete
escuro, que o atingiu antes que ele conseguisse se virar, jogando-o contra a
parede com um som potente e oco. Ele foi chutado nos pés e caiu no chão,
batendo a cabeça no ladrilho. Por um instante, tudo ficou branco, brilhante e
viscoso. Um peso esmagador caiu em cima de suas costas, mãos duras
torciam seus braços para trás, e o aço frio era fechado em seus pulsos. Ele
levou uns tapas e depois uma grande bota deu um chute nele. Quando as
coisas voltaram a ficar em foco, Jesse viu-se encarando os olhos frios de
Dillard.
“Isso deve deixar você um pouquinho sem fôlego”, disse Dillard.
Jesse procurou por Linda e viu que ela segurava o próprio rosto com as
mãos.
“Linda… por quê?”
“Jesse, eu sinto muito, sinto tanto… eu só… eu achei… eu só queria
fazer o que era melhor. Fiquei com medo que você fosse acabar se
machucando. Fiquei com medo que você pudesse machucar alguém. Fiquei
com medo pela Abi.”
Ela voltou a Jesse um olhar suplicante; abriu a boca para dizer mais
coisas e então irrompeu em lágrimas. Ela escondeu o rosto nas mãos e
começou a chorar e a soluçar.
Pela Abi? Então a ficha caiu para ele: Linda não fazia nenhuma ideia de
nada.
“Linda, não. Você entendeu tudo errado. É o General que pretende
machucar a Abi. Você não está vendo, baby? Dillard também… eles todos
estão metidos nisso. Eles estão jogando você contra…”
Dillard meteu a bota na barriga de Jesse, que se dobrou ao meio,
gemendo.
“Para com isso!”, gritou Linda.
Dillard ignorou-a, pegou a Mac-10 da mesa e ergueu-a.
“Como foi que você conseguiu isso?”
Jesse olhou com ódio para Dillard, mas não respondeu.
“Perguntei de onde veio a porra dessa arma.”
“Eu tirei a arma do meu rabo!”, gritou Jesse.
Dillard inclinou-se, apanhou um punhado dos cabelos de Jesse e bateu
com a cara dele no chão. Jesse sentiu algo estalar em seu nariz e sua cabeça
explodiu em um surto de dor intensa.
“Para!”, gritou Linda e pegou Dillard pelo braço. “Para com isso!”
Dillard levantou-se, travou seus olhos cinzentos como pedras nela, que
recuou um passo.
“Linda, vou lhe dizer só essa vez.” A voz dele estava fria, desprovida de
emoção. “Vá até o fim do corredor, até o quarto de Abigail, e fique lá.”
Linda apertou os lábios um no outro; estava tremendo.
“Não, eu não vou fazer isso.”
Dillard inclinou a cabeça, como se não estivesse ouvindo direito, então
colocou a Mac-10 de volta na mesa e deu um passo na direção dela.
Um veículo, uma caminhonete, pelo som que fazia, estacionou lá fora.
Jesse ouviu portas sendo batidas, vozes excitadas e depois o tamborilar de
pés na varanda. A porta da frente foi aberta com tudo e Chet e Ash Boggs
entraram rapidamente, com armas apontadas para eles. Chet carregava uma
pistola, e Ash, uma escopeta. Eles viram Jesse no chão, abriram largos
sorrisos e abaixaram suas armas.
Ash soltou um “iuuuupiii” e todos os seus mais de 130 quilos quase
foram dançando até onde Jesse estava deitado no chão. Ele apontou um
dedo para Jesse e disse: “Escolheu roubar do filho da mãe errado, não foi,
seu filho da puta? Bem, o General vai cozinhar você vivo, rapaz”.
Linda voltou os olhos na hora para Dillard.
“Do que ele está falando?”
“Ash”, falou Dillard. “Por que você não cala a boca?”
“Dillard?”, pressionou-o Linda.
“Eles ameaçaram matar Abi”, disse Jesse, cuspindo. “Dillard está
metido nisso! Abra os olhos, Linda, antes que seja tarde…”
Dillard deu um chute nele de novo.
“Dillard!”, gritou Linda. “Do que ele está falando?”
Dillard não respondeu.
“Ele não vai com eles”, disse Linda, e Jesse viu nela a garota teimosa
por quem ele se apaixonara, a que não levava desaforo para casa. “Não vou
deixar que eles o levem. Vou chamar o xerife se for preciso. Mas ele não vai
a lugar nenhum com eles…”
Chet e Ash trocaram um olhar de relance.
Dillard ficou encarando Jesse, queimando-o com os olhos, assentindo
para ele mesmo. Devagar, ele ergueu a cabeça e fixou aqueles olhos em
chamas sobre Linda.
“Linda”, disse ele, com a voz tensa. “Saia.”
“Não vou sair daqui não.”
Dillard fechou os olhos e Jesse começou a gritar, tentou avisar Linda,
mas Dillard já estava prestes a agir. Ele virou-se, acertou o rosto de Linda
com a palma da mão aberta, girando-a. Uma de suas pernas enganchou na
outra e ela tropeçou e caiu na sala de estar.
“Seu escroto do caralho!”, gritou Jesse, tentando ficar ele mesmo de pé.
Ash, um homem que tinha facilmente o dobro do peso de Jesse, jogou-
se para cima dele, imobilizando-o com os joelhos.
Linda sentou-se direito no chão, levou a mão a seu lábio machucado e
olhou para o sangue em seus dedos.
“Mamãe?” Abigail estava de pijama parada no corredor. Ela segurava
sua boneca, com confusão nos olhos. Então ela viu Jesse. “Papai? Papai!”,
ela gritou e foi correndo em direção a ele. Dillard tentou segurá-la pelo
braço, não conseguiu e pegou-a pelos cabelos, puxando-a para trás. Abigail
soltou um grito, um som cheio de terror e dor.
“Puta merda!”, gritou Jesse, chutando e lutando para soltar-se, nem
mesmo sentindo as algemas entrando na carne de seus pulsos enquanto
lutava para livrar-se de Ash.
“Oh, não, você não vai fazer isso”, disse Ash, e socou a nuca de Jesse,
cuja visão ficou turva de novo, mas ele ainda podia ouvir o choro de
Abigail.
Dillard, ainda segurando Abigail com força pelos cabelos, arrastou-a até
uma porta na extremidade oposta da sala de estar, que abriu. A porta parecia
dar para o porão lá embaixo.
“Linda”, disse ele, com raiva. “Se você não quer que ela se machuque,
você vai levá-la lá para baixo… agora!”
Linda pôs-se de pé, foi correndo até Abigail e ergueu sua filha. Abigail
pendurou-se no pescoço da mãe, chorando. Jesse captou um último olhar
aterrorizado de Linda, enquanto ela e Abigail desapareciam escadaria
abaixo.
“Droga”, disse Chet baixinho. “Eu não avisei a você, Jesse? Não avisei
que era para você não ferrar com ele?”
Dillard fechou a porta com uma batida e virou o ferrolho, trancando as
duas lá. Ele ficou ali, parado, em pé, mais um minuto, inspirando longa e
profundamente. Devagar, ele virou-se para Jesse, voltou pelo corredor e
pegou de volta a Mac-10. Agachou-se apoiado em um joelho e pegou Jesse
pelos cabelos, apontando a submetralhadora para a cara dele.
“Onde foi que você arrumou essa arma?”
Sangue escorria do nariz de Jesse para dentro de sua boca e por seu
queixo.
“Atira em mim, seu calhorda!”, disse Jesse, cuspindo.
E ele estava falando sério. Ele sabia que já era, de um jeito ou de outro,
e só queria tirar da cabeça o grito de destroçar corações de Abigail. Ele não
conseguia aguentar pensar no que poderia acontecer com Linda e Abigail
agora. Dillard estava certo, ele era um perdedor. Não apenas tinha
fracassado, tinha piorado tudo para todo mundo.
Dillard pressionou a arma junto à têmpora de Jesse, com o dedo no
gatilho. Tanto Chet quanto Ash foram para trás. O vestíbulo ficou
mortalmente silencioso, e Jesse fechou bem os olhos e ficou esperando…
“Ah… ei, Dillard”, disse Chet baixinho. “O General disse que
deveríamos levá-lo com vida. Sabe? Só estou dizendo…”
Dillard não se mexeu, parecia feito de pedra.
“Dillard… homem. Vamos lá. Nenhum de nós precisa do General na
nossa cola.”
Dillard soltou um longo suspiro, entregou a Mac-10 para Chet, inclinou-
se para a frente e falou ao pé do ouvido de Jesse:
“Você fodeu com tudo. Para mim, para você, para Linda e para
Abigail.” Um tremor insinuou-se na voz dele, que soava como se estivesse
à beira das lágrimas. “Eu fiz uma promessa a você da última vez em que
nos falamos. Você se lembra disso? Eu disse o que aconteceria se você
pusesse os pés na minha propriedade outra vez.”
Ele segurou o dedo mindinho de Jesse, deu uma rápida torcida nele e
curvou-o totalmente para trás. Jesse sentiu um estalo e uma rajada de dor
subindo por seu braço, então soltou um grito.
Dillard passou para o próximo dedo, depois, outro, e o próximo.
Torcendo e estalando cada um dos dedos da mão esquerda de Jesse, e não
apenas os deslocando, mas quebrando seus dedos. Jesse gritou e tentou se
livrar dele, tentou entender como alguma coisa podia doer tanto. O mundo
começou a girar, todas as luzes brilhantes e o gosto do piso de pedra junto a
seus dentes. Com uma torcida final, Dillard quebrou o polegar de Jesse.
Misericordiosamente, Jesse desmaiou e o mundo ficou nadando em trevas.
Do assento traseiro do Chevy Avalanche de Chet, Jesse ficou olhando
enquanto o portão se abria raspando ao longo de seu trilho enferrujado. A
chuva tinha aumentado, e o céu que escurecia pintava tudo de cinza. Chet
estacionou no complexo do General e subiu na direção da oficina, seguido
de Ash, que estava na caminhonete de Jesse. O portão fechou-se com um
clangor que ecoou na cabeça de Jesse como se fosse uma sentença de
morte. Paredes de blocos de concreto, arame farpado, anexos de aço, peças
de motor enferrujadas e neve suja: Jesse não conseguiria visualizar um
cenário mais desolado para seu fim. Ele ficou observando enquanto as gotas
de água se juntavam e deslizavam pelo para-brisa, lembrou-se de que,
quando era criança, fingia que as gotas estavam comendo umas às outras e
tentou fingir que estava sentado na traseira do carro de seu pai agora,
seguindo em direção à casa de sua avó para jantar. Ele esforçava-se para
controlar sua tremedeira, o medo entranhado em sua barriga. O medo não
vinha de saber que estava prestes a morrer… estava mais do que preparado
para isso. Ele havia perdido tudo, Abigail, Linda e agora a única coisa que
ele tinha… sua música. Sua mão esquerda estava totalmente arruinada, ele
nunca ia tocar de novo. O medo dele, em vez disso, vinha de saber que sua
morte seria longa e feia… muito, mas muito feia mesmo. Ele fechou bem os
olhos. Por favor, meu Deus, faça com que seja rápido. Eu não tenho forças
para isso. O Senhor sabe que não tenho.
Chet saiu, deu a volta e abriu a porta do lado de Jesse. Ele tirou as
chaves de Dillard do casaco e soltou as algemas de Jesse. Chet jogou as
algemas para o lado e arrastou Jesse para fora, fazendo com que ele batesse
a mão machucada. Uma nova onda de dor subiu pelo braço de Jesse, que
lutou para não gritar.
“Acostume-se a sentir dor”, disse Chet. “Porque você tem um mundo de
dor pela frente. Para falar a verdade, eu posso, sem sombra de dúvida,
declarar que você é a última pessoa que eu gostaria de ser agorinha
mesmo.”
Jesse viu que Chet estava falando sério, ele captou pena de verdade
expressa no rosto dele.
Com um clique e um zumbido elétrico, a porta da oficina foi
ruidosamente levantada, revelando primeiramente botas, depois, pernas e,
por fim, uma fileira de homens. O General estava em pé, com os braços
cruzados sobre o peito, com os olhos fixos em Jesse e uma expressão pétrea
no rosto, fitando-o tão intensamente que parecia que nunca piscava. Atrás
dele havia uma dúzia de homens, todos eles Boggs e Smoots, todos tinham
algum parentesco com o General de uma forma ou de outra. Apareceu o clã
inteiro, pensou Jesse. Uma reunião de família só para mim. E ele sabia qual
era o motivo disso. Sabia que o General queria fazer dele um exemplo,
sabia que ele queria mostrar a esses homens o que acontece quando alguém
trai Sampson Ulysses Boggs.
“Tragam-no para dentro”, disse o General, a voz saindo tão seca e morta
quanto sua face.
Chet e Ash pegaram, cada um, em um dos braços de Jesse.
“Você está em um mundo de merda, Jesse”, disse Ash. “Um mundo de
merda.” Eles arrastaram-no para a oficina. Os homens se mexeram lá
dentro, revelando uma única cadeira de escritório de aço no meio da sala.
Todos eles colocaram Jesse sentado ali.
O General puxou um rolo de fita adesiva do quadro de ferramentas e
jogou-o para Chet.
“Certifique-se de que ele não fique meio solto e se debatendo.”
Jesse fez que ia se levantar e quatro mãos colocaram-no de volta para
baixo, com força, segurando-o com firmeza enquanto Chet atava os
tornozelos dele às pernas da frente da cadeira e os braços ao espaldar.
Ash entrou, carregando a Mac-10 que Dillard havia tomado de Jesse.
Ele entregou-a ao General, junto aos pentes extras de munição e o dinheiro
que haviam encontrado no casaco de Jesse.
O General analisou a arma e assentiu.
“Você tem razão, Chet. É uma das minhas.”
Ele colocou a arma em um carrinho de ferramentas e começou a contar
o dinheiro.
“Temos oitocentos dólares aqui”, disse Chet.
“Oitocentos… hum…”, disse o General, coçando sua espessa barba.
“Acredito que estejamos com pelo menos uns 40 mil a menos aqui.” Ele
olhou para Jesse, balançando as notas de dinheiro para ele. “Alguém roubou
isso do meu cofre… sem nem mesmo o abrir. Mal posso esperar para ouvir
qual é o segredo desse truque. Ash. Você pode fechar a porta?”
Ash apertou o botão do interruptor, a porta da oficina rolou para baixo, e
Jesse ficou olhando enquanto o dia cinzento lentamente desaparecia de
vista. Para ele, parecia que alguém estava fechando a tampa em cima de seu
caixão.
Todo mundo ficou lá, parado, em silêncio, esperando pelo próximo
passo do General. Jesse nunca se sentiu mais sozinho em toda a sua vida.
Ele ouviu um assovio abafado de trem vindo de bem longe e ficou se
perguntando se Abigail podia ouvir o mesmo som, dando-se conta de que
nem mesmo chegara a despedir-se dela, não dissera pela última vez o
quanto a amava. Ele ainda conseguia ouvir aquele grito, sua doce
menininha gritando com medo e dor, tudo por causa dele, e isso o queimava
como ferro em brasa. Ele cerrou os dentes, piscou para refrear lágrimas
quentes. Estava pronto, preparado para que tudo acabasse.
Chet foi rolando um carrinho de ferramentas até eles. Uma diversidade
de instrumentos estava disposta ao longo de suas duas prateleiras: serras,
martelos, alicates, uma furadeira portátil, uma arma de grampos e até
mesmo um maçarico. Jesse fez o melhor que pôde para não olhar para nada
daquilo.
“Não gosto muito do jeito como Dillard está tratando Linda e Abigail”,
disse Chet, falando com o General.
“Por que, o que foi que ele fez?”
“Ele fez a Linda sangrar um pouco.”
“Foi mesmo?”, disse o General.
“E ficou puxando aquela menininha pelos cabelos.”
“Acho que as meninas são da conta dele agora.”
“Isso não está certo”, grunhiu Chet.
“Temos um monte de coisa que não está certa por aqui”, disse o
General, colocando os olhos sobre Jesse. “É preciso engolir um monte de
merda.” Ele puxou uma banqueta para perto e sentou-se na frente de Jesse.
“Jesse, você já está morto. Você sabe disso e eu sei disso. Então deve estar
se perguntando por que deveria se dar ao trabalho de responder a alguma
das minhas perguntas. Eu acho que a sua resposta depende de quanto você
quer que sua morte seja ruim.” Ele puxou uma pistola prateada do cinto e
apontou-a para Jesse. “Se você responder logo às minhas perguntas, eu
pego essa arma aqui e atiro na sua cabeça, e tudo acaba. Você tem a minha
palavra quanto a isso. E você sabe como a minha palavra é valiosa.” Ele
colocou a arma em cima do carrinho de ferramentas e puxou alguma coisa
de sua prateleira inferior, ergueu aquilo e Jesse se viu olhando para os
leitosos olhos mortos da cabeça decapitada da vaca. O General deixou-a
cair no colo de Jesse; a umidade fria ensopando sua calça, o fedor saturando
suas narinas.
O General tirou seu chapéu pela aba, e a luz fluorescente de cima
iluminava sua careca. Ele colocou o chapéu no carrinho de ferramentas e
pegou o revólver de pregos, segurando-o em frente ao rosto de Jesse.
“Agora, por outro lado, se você me enrolar, se mentir para mim uma vez
que seja, então as coisas vão ficar realmente feias, e bem rápido.” O
General apontou o revólver de pregos para o chão e apertou o gatilho. Um
prego saiu como em uma rajada e ricocheteou no chão de concreto, com
uma centelha e um som longo, metálico e alto.
O General pressionou o revólver de pregos na rótula de Jesse.
“Agora me diga, Jesse Walker. Simplesmente me diga como foi que
aquela cabeça de vaca foi parar dentro do meu cofre?”
Jesse cerrou os olhos, tentou preparar-se para a dor, pois sabia que
qualquer coisa que dissesse seria a coisa errada, que ele nunca seria capaz
de convencê-los da verdade, e que não era possível inventar nenhuma
mentira que fizesse algum sentido. Ele não tinha saída, nem ninguém para
ouvir seus gritos, não ali, e, mesmo que ouvissem, as pessoas saberiam que
não deveriam ligar para a polícia para falar sobre o assunto. Estou fodido. É
isso e nada mais.
“Eu tenho câmeras de segurança ligadas vinte e quatro horas por dia”,
disse o General. “Assisti às fitas, e do momento em que saí daqui até a hora
em que entrei na manhã seguinte, não havia ninguém nem um pouco perto
deste lugar, quanto mais dentro do meu escritório. O cofre não foi
arrombado e ninguém sabe aquela combinação além de mim. Então me
diga, Jesse… conte-me como foi que você fez isso?”
Jesse abriu a boca e tentou surgir com alguma coisa a dizer, qualquer
coisa que fosse.
O General deu uns tapinhas com o revólver de pregos junto ao joelho de
Jesse.
“Agora pense realmente bem antes de me responder, porque você vai
querer fazer isso certo da primeira vez. Acredite em mim.”
“Eu usei o saco do Papai Noel.”
A oficina ficou mortalmente silenciosa. Chet soltou uma bufada.
“Você pode repetir o que você disse?”, falou o General.
“O saco. A porra do saco do papai Noel. Aquele saco que está na minha
caminhonete.” Jesse continuava erguendo a voz. “Eu o usei para esvaziar
seu cofre. Ele é mágico, ok? OK?”, gritou ele. “Você pode acreditar em mim
ou não, porra!”
O revólver de pregos sibilou. Jesse sentiu o rebote quando o pistão
afundou o prego em sua rótula. Meio segundo depois, ele foi atingido pela
dor.
“Porra!”, gritou Jesse. “Porra!”
O General levou o revólver de pregos mais para cima na coxa de Jesse,
apertou o gatilho de novo, e de novo, e mais uma vez, enfiando mais três
pregos na perna de Jesse, que gritou, tentou soltar-se, e teria virado a
cadeira para trás se Chet não o tivesse segurado e ajeitado.
O General segurou a cabeça da vaca pela orelha, jogou-a de lado e
enfiou a arma de pregos no meio da perna de Jesse.
“Jesse, você quer mesmo passar a noite inteira fazendo isso? Eu sei que
eu não quero fazer isso. Quero só algumas respostas. Quero saber sobre
essa gangue com quem você vinha fazendo uns corres. Quem são eles?
Onde moram? Então, eis o ponto em que lhe dou mais uma chance. Você
coopera comigo aqui, e tudo isso pode acabar. Eu posso ir para casa ver TV
e você pode estar morto. Agora me diga, Jesse. Como foi que você entrou
no meu cofre?”
“Olha…”, disse Jesse, mal conseguindo fazer com que as palavras
saíssem. “Apenas… me traga o saco. Eu… posso mostrar a vocês…”
O General balançou a cabeça e puxou o gatilho. Jesse sentiu o prego
rasgando e entrando em sua virilha.
“Não!”, gritou Jesse enquanto o General meteu mais dois pregos na
barriga dele, que penetraram fundo na parte inferior de seu abdômen.
“Ah, meu Deus!”, gritou Jesse. “Ah, puta merda! Pare! Pare com isso!”
Ele quase desmaiou. “Escuta”, disse ele ofegante, tentando fazer as palavras
saírem entre soluços e choros. “Escuta… me ouve. Você quer a porra do seu
dinheiro de volta, certo?” Ele cerrou os dentes, tentando focar-se em meio à
dor. “Eu posso… pegar de volta. Suas drogas… tudo aquilo. Agorinha
mesmo. Mas você tem que me dar ouvidos. Meu Deus, que porra você tem
a perder? Só me escuta!”
Ninguém falou nada; o único som na oficina vinha dos gemidos de
Jesse, que ficou olhando enquanto o sangue escurecia sua calça, ao longo de
sua perna. Ele tentou não pensar nos pregos dentro de sua barriga, os furos
que eles fizeram em seu intestino delgado. Ele sempre ouviu falar que uma
ferida na barriga era o pior tipo de morte possível, lenta e dolorosa, e, com
certeza, podia certificar que a parte da dor era verdade.
“Ok, filho. Fala aí.”
Jesse levantou a cabeça, tentou piscar para livrar-se das lágrimas, tentou
manter seus olhos focados no olhar compenetrado do General.
“Suas drogas… ainda estão debaixo… porra… debaixo do banco da
frente da minha picape. Exatamente onde o boboca do seu sobrinho… as
deixou. Eu posso conseguir seu dinheiro de volta… mas vou precisar do
saco. Eu sei que você acha que estou de conversa mole. Olha… olha para
mim. Parece que estou de brincadeira, cacete?” A dor pungente fez com que
Jesse apertasse com força os olhos, ele soltou um grunhido profundo e abriu
os olhos de novo. “Que diabos você tem a perder? É só me trazer o bendito
do saco e eu mostro a você.”
O General parou um instante, pareceu ponderar sobre a situação e Jesse
atreveu-se a nutrir esperanças de que pudesse simplesmente ter uma chance.
O saco estava aberto para a igreja, o dinheiro estava lá, porém, o mais
importante de tudo era que o restante das armas do General também estava
lá.
“Chet, vá pegar aquela porcaria daquele saco.”
“O quê? Sério? Quero dizer, cacete, como é que um saco pode…?”
“Cala a boca e só vai pegar a porcaria do saco.”
“Ash”, disse Chet. “Vai pegar o maldito saco.”
“Não, Chet”, disse o General. “Eu falei para você ir pegar o saco. Quem
dá as ordens por aqui sou eu!”
Chet voltou um olhar sombrio para Jesse e depois se dirigiu até a porta
na lateral da oficina.
“E as drogas”, gritou o General. “Veja se as drogas estão lá.”
Os homens ficaram esperando, mexendo os pés, com desconforto,
alternando os pesos de seus corpos, olhando para as ferramentas, para as
luzes fluorescentes no alto, para as luzes de Natal piscantes acima, lá na
escadaria, para qualquer lugar que não fosse Jesse nem os pregos
sobressaindo-se de sua perna e de sua barriga.
Jesse fixou-se mentalmente no saco, tentando empurrar a dor para longe
de sua mente, pensando no que haveria de fazer se conseguisse pegar uma
daquelas armas. Meu Deus, se o Senhor me conceder um último desejo…
Por favor, dê-me a chance de mandar tantos desses filhos da puta para o
Inferno quanto me for possível!
“Rezar não vai lhe salvar, filho”, disse o General. Jesse ficou alarmado e
se perguntou por um segundo se estaria pensando em voz alta. O General
colocou o revólver de pregos de lado. “A verdade. Essa é sua única
salvação.”
Chet entrou, carregando o saco em cima de seu ombro e o pacote
enrolado em fita adesiva.
“Bem, que cacete, ele não estava mentindo sobre as drogas. Aqui estão
elas.”
O General franziu o cenho.
“Isso não faz nenhum sentido! Por quê…?” Ele parou de falar por um
instante. “Que merda, nada disso faz sentido! Aqui, me dê esse maldito
desse saco! Nós vamos chegar ao fundo dessa baboseira e agorinha
mesmo.”
O General segurou o saco, parecendo pesá-lo.
“É meio leve.” Ele colocou o saco no chão, pisou nele e ficou olhando
enquanto ele lentamente ficava inflado. “Diga-me se isso não é estranho.”
Ele puxou e abriu o saco. Todos os homens deram um passo para a frente e
inclinaram-se, tentando dar uma olhada no saco. “Não consigo ver é nada.”
O General puxou e abriu a boca do saco, deixando-a o mais aberta quanto
possível, tentou colocá-lo em um ângulo para que a fluorescência das luzes
acima iluminassem seu interior. “Meio fumacenta, hein?” O General ergueu
o olhar e todos os outros homens assentiram.
“Chet, aqui. Enfie a mão aqui dentro e certifique-se de que ele não
esteja escondendo nada aí dentro.”
“Você está doido? Eu não vou enfiar minha mão aí dentro! Vai saber o
que tem aí. Aquela coisa fumacenta pode ser algum tipo de veneno.”
O General coçou a barba e olhou ao seu redor: não havia nenhum
voluntário.
“Bem, eu acho que isso é um pouco sinistro.” Ele ergueu o saco de
ponta cabeça e chacoalhou-o. Nada caiu de dentro dele. Ele pegou o saco e
tirou o ar dele, dobrou-o uma vez, começou a enrolá-lo, cada vez mais
apertado, até que estava apertado como um saco de dormir. “Não acho que
daria para esconder nenhum tipo de arma dentro disso. Não daria para
esconder muita coisa.” Ele fixou os olhos endurecidos em Jesse. “É melhor
que não se trate de nenhum jogo. Se for… Posso garantir a você que vai se
arrepender horrivelmente disso.”
Ele deixou cair o saco no chão, na frente de Jesse. Todo mundo ficou
olhando enquanto o saco recuperava sua forma.
“Agora me diga como fazer isso funcionar.”
“Não posso.”
“Não pode?”
“Não, ele não vai funcionar com você. É como um chapéu mágico, a
gente tem que conhecer o truque. Eu tenho que mostrar isso a você.”
O General apertou os olhos ao dirigir-se a ele.
“Você está tentando me dizer que usou um truque de mágica para roubar
do meu cofre?”
“Sim.”
“Isso é um monte de merda”, disse Chet. “Ele só está tentando fazer a
gente de besta.”
“Você está me dizendo que se eu te deixar enfiar a mão aí dentro”,
continuou a dizer o General, “você pode sacar o meu dinheiro daí?”
Jesse assentiu.
“Bem”, disse o General. “Eis um truque de mágica que eu não perderia
por nada nesse mundo. Cortem as amarras dos braços dele.”
Chet soltou um grunhido desagradável, mas deslizou a faca do coldre
em seu cinto e cortou a fita. Jesse soltou os braços, aninhou-os junto a seu
peito, tomando cuidado para evitar seu colo ou sua perna.
“Não tente nada”, disse Chet, e pressionou a faca junto ao pescoço dele.
“Que inferno, Chet”, disse Ash. “O que ele vai fazer, sujar sua camisa
de sangue?” Ash deu risadinhas abafadas. “Meu Deus, às vezes você parece
uma menininha.”
Os homens deram risada e Chet ficou vermelho.
“Vá se foder, Ash. Que inferno, como se você não gemesse que nem
uma vadia quando está engasgando com a porra do meu pau.”
“Vocês dois, calem a boca!”, disse o General. “E, Chet, guarda essa faca
antes que se machuque.” O General pegou o saco e colocou-o ao lado de
Jesse. “Ok, filho. Todos nós aqui estamos esperando.”
Jesse puxou o saco para cima e equilibrou-o em sua perna boa,
mantendo-o no lugar com seu braço esquerdo, tomando cuidado para não
deixar que batesse em seus dedos quebrados. Os homens ficaram
observando todos os movimentos dele, que engoliu em seco. Ok, meu Deus,
hora de escolher o seu time. Ele cerrou os olhos, pensou nas armas e enfiou
sua mão boa no saco. Sem demora, dessa vez, pois o saco ainda estava
aberto exatamente para onde estivera por último; sua mão deparou-se com a
pilha de dinheiro, ele tateou em volta dela e bateu em metal, em uma das
armas calibre .45. Ele abriu os olhos, viu que todo mundo estava inclinado
para a frente, todos eles tentando ver o que ele estava fazendo. Ele
destravou a trava de segurança da arma e deslizou os dedos em volta de sua
empunhadura, lambeu os lábios, a boca seca, de repente. Ele começou a
deslizar o braço para fora e sentiu a mão de Chet em seu ombro, com a faca
encostada nas costas de Jesse.
“Estou de olho em você.”
E, dessa vez, ninguém deu bronca nenhuma em Chet, os ânimos tinham
mudado e Jesse podia sentir o nervosismo deles.
Merda, pensou Jesse, isso não vai dar certo. Ele quase puxou para fora
a pistola mesmo assim, para simplesmente tentar, mas acabou parando.
Não, se você fizer isso direito, pode simplesmente conseguir sair daqui. Ele
colocou a pistola calibre .45 de lado e pegou tantas notas de dinheiro quanto
conseguiu segurar, tirando, devagar, o braço de dentro do saco.
“Isso aí”, disse Chet. “De boa e devagar.”
Jesse tirou a mão do saco, revelando os rolos de notas. Os homens
soltaram vários ofegos audíveis, e Jesse sentiu-se totalmente como um
ilusionista. Ele entregou as notas ao General.
O General examinou o dinheiro, balançou a cabeça e abriu um sorriso.
“Bem, alguém me traga de volta ao mundo real!”
Seguiram-se grunhidos e largos sorrisos de aprovação, e alguém até
mesmo bateu palmas; Jesse se perguntava se eles se curvariam em
reverência, mas acabou colocando a mão de volta dentro do saco e puxou
dali mais um punhado de notas, depois mais outro, deixando o dinheiro cair
no chão, observando, esperando até que eles estivessem todos absortos com
o truque, discutindo, brincando e com os olhos grudados no dinheiro. Ele
sentiu a faca saindo de suas costas, viu Chet com o olhar fixo,
embasbacado. Agora, pensou Jesse, e achou a arma novamente, envolveu
sua mão na empunhadura e colocou o dedo no gatilho. Ele virou a mão,
trazendo a pistola rapidamente para cima, pretendendo derrubar Chet antes
que pudesse esfaqueá-lo, mas então a arma ficou presa na boca do saco,
fazendo com que Jesse atirasse antes que o revólver saísse de dentro.
Seguiram-se dois tiros abafados, mas as balas não perfuraram o veludo do
saco e Jesse entendeu, com uma clareza aterrorizante, que ele não estava
nem um pouco atirando em Chet, e sim dentro da igreja.
“Oh, cacete!”, gritou Chet, enquanto Jesse soltava a arma. Chet enfiou
sua faca nas costas de Jesse e empurrou-o, com cadeira e tudo, em direção à
pilha de dinheiro. Jesse caiu de cara em cima das notas, com Chet já sobre
ele, pisando em sua mão antes que Jesse pudesse levantar a arma,
esmagando-a junto dos dedos de Jesse debaixo de sua bota. A arma foi
disparada, duas balas atingiram o chão de concreto. Os homens espalharam-
se enquanto centelhas e balas ricocheteavam ao redor deles na oficina. Chet
pisou de novo em Jesse, que ouviu os estalos de seus dedos e, além de toda
a outra dor que já sentia, seu cérebro encontrou lugar para aguentar, em sua
glória total, mais esse recente ataque. Jesse soltou um grito e acabou
soltando a arma, que Chet chutou para o outro lado da sala.
Jesse ficou deitado em cima da pilha de dinheiro, com suas pernas ainda
presas à cadeira derrubada, aninhando ambas as mãos em seu peito. Alguém
estava gritando, mas era difícil discernir alguma coisa acima do zunido em
seus ouvidos. Chet puxou a faca para fora das costas de Jesse, que ficou
ofegante, engasgando-se enquanto lutava para respirar.
Eu estou morrendo, pensou Jesse, e encontrou grande conforto nesse
pensamento.

“PUTA MERDA!”, gritou Chet. “Puta merda, cacete, puta merda!”


O General estava sentado na banqueta, com o olhar fixo em Jesse, no
saco, na arma, tentando imensamente entender alguma parte que fosse de
tudo aquilo, de quaisquer dos estranhos eventos dos últimos dias. Ele
gostaria que Chet calasse a boca e parasse de ficar pisando duro e andando
de um lado para o outro. O General inclinou-se para frente, puxou o saco
debaixo de Jesse. Havia sangue por todo o saco. O General teve certeza de
que o rapaz estava nas últimas.
“O que você quer que eu faça com esse merdinha aqui?”, gritou Chet.
“Para de gritar, Chet”, disse o General. “Eu estou bem aqui.”
“O filho da puta quase me matou! Quase matou todo mundo!”
“É”, assentiu o General enquanto puxava o saco e o abria e espiava
dentro de suas profundezas fumacentas.
“Ei, você não está pensando em enfiar o braço aí dentro, está?”
O General assentiu, distraído.
“Acho que estou sim.”
Os homens começaram a se levantar do chão, verificando se seus corpos
estavam cheios de buracos de balas. Pelo visto, ninguém tinha sido atingido
por nenhum dos ricochetes, e eles voltaram a se reunir, todos com os olhos
grudados no saco.
O General colocou a mão dentro do saco, até a altura de seu pulso, e
ficou esperando. O ar dentro do saco parecia mais fresco, porém, era só
isso, nada mais aconteceu. Ele empurrou o braço inteiro lá dentro. Sua mão
deparou-se com alguma coisa. Ele deu um leve tapinha naquilo, sabendo
exatamente do que se tratava, e puxou dali um punhado de notas de cem
dólares.
“Se isso não for o melhor de tudo…”
Ele abriu um largo sorriso, enfiou a mão de volta no saco, só que dessa
vez sua mão não encontrou dinheiro… em vez disso, alguma coisa
encontrou sua mão. O sorriso do General desfez-se na hora. Seus olhos
ficaram arregalados. Alguma coisa o agarrara.
“Que foi?”, quis saber Chet. “Que porra foi agora?”
O General soltou um grito agudo, tentou puxar seu braço e soltá-lo,
quando a coisa que o pegou lhe deu um puxão no braço, no ombro, e depois
sua cabeça inteira foi puxada para dentro do saco. Seguiu-se uma escuridão
passageira e então ele ficou cara a cara com… o diabo! O General soltou
um grito. O demônio pressionou seu nariz junto ao dele, com um largo
sorriso, sua respiração vindo em meio a dentes irregulares, seus olhos, seus
brilhantes olhos vermelhos o encarando. O General gritou de novo, sentiu
mãos segurando em suas pernas e em sua cintura, arrastando-o de volta para
dentro da oficina. Só que o diabo não o soltou; não, ele segurou com
firmeza no braço do General e veio junto dele.
“Que porra é essa?”, gritou Chet.
O diabo estava na metade do caminho, saindo de dentro do saco, com a
metade do corpo na sala, parecendo uma criança em uma corrida de sacos.
Ele soltou o General e saiu.
O General tentou gritar de novo, mas não tinha mais nenhum ar nos
pulmões e emitiu um guinchado patético.
A criatura ficou totalmente em pé, agigantando-se acima deles, com
pelo menos dois metros de altura, todo esguio e musculoso, cheio de veias,
preto, com a pele e os pelos brilhando. Uma juba selvagem de cabelos
pretos como azeviche emolduravam cornos tão largos quanto seus ombros.
A criatura olhou ao seu redor, para os homens, sorrindo de uma orelha à
outra. Seus olhos oblíquos brilhavam. Ele começou a dar risada.
Todo mundo ficou paralisado.
“Está na hora de ser terrível”, disse o diabo, e estalou o rabo como um
chicote. Os homens caíram aos tropeços e a besta soltou um rugido. O som
retumbante fez balançar as paredes de aço.
Chet apanhou a pistola do General da bandeja de ferramentas, mas a
besta moveu-se quase mais rápido do que o General era capaz de ver, cortou
talhos no peito de Chet com suas garras, abrindo-o até os ossos, e fez com
que ele caísse, tropeçando, para cima dos outros homens.
Os homens saíram aos tropeços, correndo para todas as direções,
batendo uns nos outros, nos carrinhos de ferramentas, um verdadeiro caos.
Um tiro de revólver foi disparado, e mais um, mas a besta se fora, cruzando
a sala aos pulos. Ele atingiu as luzes do teto e as lâmpadas explodiram em
uma chuva de centelhas, deixando a sala mergulhada no brilho vermelho
das luzes de Natal. Mais tiros, e, sob a iluminação dos lampejos saídos dos
canos das armas, o General viu a besta dilacerando homens, talhando-os e
fazendo picadinho deles. Homens gritavam e choravam como criancinhas.
O General foi rastejando, de quatro, em direção à porta, as mãos
deslizando e derrapando no sangue, em todo aquele sangue. Ele passou por
cima de dois corpos, sua mão se emaranhando em alguma coisa quente que
fazia sons de borbulhar… o estômago de um homem, suas entranhas, na
verdade. Uma bala acertou a perna do General, que soltou um grito e caiu.
Alguém caiu em cima dele, Ash, segurando seu pescoço apertado enquanto
o sangue jorrava entre seus dedos. Uivos ecoavam, vindos de toda parte,
rastejando por sob a pele do General, que puxou seus joelhos para cima,
junto a seu peito, abraçando-os apertado, e fechou bem os olhos. “Por favor,
meu Deus, por favor, Jesus”, ele se lamuriava. “Por favor, não deixem que
Satã me pegue.”

JESSE TENTOU alcançar seus tornozelos, tentou rasgar a fita e soltada, mas
seus dedos quebrados não conseguiam fazer nada disso. Ele soltou um
grunhido, depois, um gemido, e caiu para trás. A dor em sua barriga, em
suas pernas, mãos e costas, tudo isso tornava insuportável o mais leve
movimento. Seus olhos começaram a acostumar-se com o brilho fraco das
luzes de Natal, cujo brilho lançava longas sombras sobre os mortos e
agonizantes. Ele focou na carnificina, em Krampus, tentando afastar a dor
de sua mente.
Krampus pisteou o corpo de Ash, que tremia. O Senhor do Yule estava
mais alto, maior e muito mais imponente do que quando Jesse o tinha visto
da última vez. Seus chifres agora eram armas potentes, e não estavam
quebrados e curvados por cima de sua cabeça; seus olhos brilhavam,
audazes, seus movimentos eram rápidos e poderosos. Krampus socou e
atravessou o peito de Ash com a mão, rachando ossos e rasgando carne, e
tirou-a dali com algo que Jesse achava que deveria ser o coração do
homem. Krampus segurou o órgão em direção ao céu e soltou um uivo
triunfante. Ele apertou o coração e deixou o sangue escorrer ao longo de seu
braço e gotejar dentro de sua boca. O peito dele subia e descia e um
profundo rosnado cheio de força, vitalidade e vigor, escapou de sua
garganta.
O Senhor do Yule jogou o coração longe, analisou o aposento, inclinou
a cabeça para um lado e depois para o outro para melhor absorver os
gemidos dos mutilados e moribundos. E ele estava com um largo sorriso no
rosto; até mesmo na escuridão, Jesse conseguia ver claramente aquele
sorriso. Os olhos oblíquos dele recaíram em Jesse.
“É bom… é bom ser terrível”, disse Krampus, lambendo o sangue de
sua mão.
Jesse balançou a cabeça, concentrando-se em respirar. O Senhor do Yule
franziu o cenho.
“Você não me parece bem.”
“Já estive… melhor.” Jesse tossiu. “Acho que estou morrendo.”
Krampus foi andando até ele, ajoelhou-se ao seu lado e olhou para a
crescente poça de sangue debaixo dele.
“Sim, acredito que esteja morrendo sim.” Ele cortou a fita e soltou-a
com um rápido talho de sua unha, gentilmente apoiando Jesse no carrinho
de ferramentas. “Você foi um menino muito sapeca.”
Jesse assentiu.
“É, você tem razão nisso daí.”
Krampus sorriu.
“Você pode estar morrendo, mas ainda tem seu espírito.”
Alguém moveu-se atrás de Krampus… era Chet, que se esforçava para
aprumar-se perto da porta. Ele ainda estava com a pistola, segurando-a com
as mãos que tremiam, tentando mirá-la em Krampus. Jesse abriu a boca
para proferir um aviso a Krampus quando a pistola foi disparada com um
estouro ensurdecedor. A bala acertou o chifre do diabo, que ficou de pé em
um pulo. A arma foi disparada de novo e a bala soltou faíscas no chão de
concreto, alguns metros à esquerda deles. Chet deixou os braços caírem; ele
mesmo tombou junto ao batente da porta, deixando cair também a arma em
seu colo. Krampus foi andando devagar em sua direção e agachou-se diante
dele.
“Merda, porra de diabo, cacete de merda!”, disse Chet, cuspindo, com o
sangue escorrendo de sua boca. Ele tentou repetidas vezes levantar a arma,
mas não conseguiu.
Krampus olhou de relance por cima do ombro para Jesse.
“Esse daí também tem espírito. Ele bem que poderia tomar-se um bom
soldado.” Krampus pegou a arma da mão de Chet e jogou-a longe. Ele
segurou no braço do homem e mordeu o pulso dele.
Chet soltou um uivo e puxou o braço para longe.
“Você me mordeu! Que merda é essa?”
Chet ficou com o olhar fixo na mordida. Até mesmo com pouca
iluminação Jesse podia ver a pele em volta da mordida escurecendo-se, a
mácula espalhando-se para cima no braço de Chet, e entendeu que Krampus
o havia transformado.
“Agora você é meu. Você ficará aí sentado até que eu lhe dê uma ordem
em contrário.”
“Vá se foder!”
Krampus deixou Chet apoiado na parede, esfregando o braço e,
lentamente, ficando todo preto. Ele foi andando até o saco e o pegou.
“Você me abandonou”, disse ele a Jesse. “Você quebrou seu juramento.
Eu não lhe devo nada agora.”
“Eu sei.”
Krampus ergueu o saco.
“Você pegou algo que não lhe pertence.”
“Desculpe-me por isso.”
“Eu deveria matar você.”
“Tarde… demais.”
Jesse tentou dar risada, mas engasgou em seu próprio sangue.
“Ainda assim, não guardo rancor de você.”
Jesse balançou a cabeça e revirou os olhos.
“Estou sendo sincero. Suas distrações fizeram toda a diferença, por tudo
que eu sei, elas fizeram toda a diferença! Veja, eu estava preso em uma
charada.”
Ele fechou os olhos, seu rosto assumindo ares de profunda
concentração. Ele enfiou a mão no saco.
“Ali… o navio. Está tudo queimado… os ossos, as tábuas, os mastros e
o tesouro. E, e, sim.” Ele sorriu. “A resposta, tão evidente que eu não
conseguia ver!” Ele tirou o braço dali e puxou uma lança, quebrada na
metade de seu cabo e danificada pelo tempo e pelo fogo. “Eu estava
procurando por uma flecha esse tempo todo. Estava tão fixado na ideia que
não conseguia ver nada além disso. Forçando o saco a procurar por uma
coisa que não existia! Mas agora, veja você… não era uma flecha.” Ele
limpou a fuligem e a sujeira da ponta da lança e ela reluzia, dourada, como
o estranho minério das correntes de Krampus lá na caverna. Ele foi andando
até Jesse, para que este pudesse ver as folhas e as bagas de visco entalhadas
com delicadeza ao longo da lâmina. “Está vendo…? Está vendo a resposta?
É uma lança, e não uma flecha!” Ele soltou um bom suspiro. “As respostas
para todas as charadas parecem óbvias assim que a gente as descobre.”
Ele virou e revirou a lâmina, como se estivesse hipnotizado por ela.
“Baldr”, ele sussurrou. “É sua morte que seguro em minha mão. Sua
morte.”
Jesse tentou pigarrear, esforçando-se para respirar. Ele tossiu e cuspiu
mais sangue. A dor quase o cegou, forçando-o a quase se dobrar ao meio.
Krampus sentou-se ao lado dele, colocou a lança em seu colo e puxou o
saco para perto de si. Ele enfiou a mão no saco e, um instante depois, estava
segurando um dos antigos frascos, do qual ele arrancou a cera que o vedava.
“O hidromel de Odin…? Assim espero…” Jesse forçou-se a sorrir.
“Sim, hidromel.” Ele ergueu-o junto aos lábios de Jesse. “Isso não vai
salvar você, mas tornará sua morte mais fácil.”
Jesse bebeu vários goles profundos do hidromel cálido e pacificador.
Sua visão ficou indistinta, como que onírica, sua respiração tornou-se mais
fácil, e a dor diminuiu. Suas pálpebras ficaram pesadas, ele apoiou a cabeça
no carrinho de ferramentas e olhou para todos os homens mortos. Que pena,
pensou ele. Que pena que Dillard não estava aqui. Jesse forçou sua cabeça
a ficar levantada e segurou no braço de Krampus com força.
“Dillard… ele ainda está com elas!”
“Dillard?”
“Ele está com a minha esposa… com a minha filhinha. Ele é um
assassino!” Jesse tentou fazer uma pausa na conversa, ele precisava fazer
com que Krampus entendesse a situação, mas as coisas estavam ficando
obscuras em sua mente, seus pensamentos, confusos. “Ele vai machucá-
las… Eu sei disso. Nós temos que fazer alguma coisa, temos que impedi-
lo… Krampus… Mate aquele calhorda.”
Krampus ficou admirando a lança.
“Talvez um dia”, disse ele, distraído. “Mas hoje é com um outro vilão
que eu tenho que lidar.”

KRAMPUS PASSOU o dedo ao longo da lâmina e ficou olhando enquanto as


luzes vermelhas de Natal se apagavam por trás da ponta. Pensou na alta
feitiçaria necessária para moldar tal arma.
“Ainda está afiada como no dia em que foi forjada.”
Ele estirou-a para que Jesse a visse. Os olhos de Jesse estavam
fechados, seu queixo, caído. Krampus deu uma cutucada de leve no ombro
dele com a lança.
Os olhos de Jesse tremeluziram e abriram-se.
“O que foi?”
“A lâmina. Ainda está afiada.”
Jesse apertou os olhos e olhou para a lâmina.
“Isso é… tremendamente maravilhoso.” Suas palavras saíam lentas,
arrastadas.
“Logo eu vou colocar um fim naquela farsa de Papai Noel para
sempre!”
“Por que… por que diabos você quer matar o Papai Noel… a todo
custo?”, murmurou Jesse, cujas palavras mal eram compreensíveis. “Ele é o
Papai Noel, cacete. Ele entrega presentes para as crianças… faz um bocado
de coisas legais assim.” Ele tossiu. “Cacete. Me dá outro gole daquilo.”
“Ele não é o Papai Noel”, disse Krampus, erguendo o frasco junto aos
lábios de Jesse. “O Papai Noel é uma mentira. Ele é Baldr. Eu disse isso a
você, você não lembra?”
“É, Baldr. Ok.”
“Você não está entendendo. Você não sabe nada dele, não sabe nada das
traições dele.” Krampus sentiu seu sangue ficando quente. “A traição dele
para comigo, para com toda Asgard. Como ele trouxe ruína a tudo e a
todos.” Krampus ficou em silêncio, ouvindo a respiração dificultosa de
Jesse. “Você não está curioso?”
“Em relação a quê?”
“À traição do Baldr?”
“Não… não muito.”
“Bem, deveria saber. Todo mundo deveria saber.” Krampus tomou um
bom gole do frasco, limpou a boca no dorso de seu braço. “A vilania dele,
sua real vilania… começou quando ele voltou, depois de seu renascimento,
logo depois que Ragnarök varreu o reino de Odin, em algum momento por
volta de 1100 anos depois do nascimento de Cristo. Você está me ouvindo?”
Jesse balançou a cabeça.
“Foi então que Asgard caiu sob chamas e guerra, quando todos os
deuses antigos pereceram. Mas nenhum apocalipse atroador consumiu a
terra como previsto. Não, a humanidade tinha seus novos deuses na época e
mal notou a morte dos antigos. E nós, espíritos presos à terra, nos
encontramos abandonados e sozinhos em um mundo que tinha ficado hostil
para nossa espécie. Nos vários séculos seguintes, os homens foram
ensinados a nos temer, a afastar-se de nós e daqueles que ainda nos
adoravam. Nossos santuários foram queimados e profanados. Sem tributos
nem oferendas, a maior parte de nós desistiu, esvaneceu-se, foi esquecida, e
ser esquecido… é morte… a única morte verdadeira para a minha espécie.
“Meus santuários foram abandonados também. Por volta do início dos
anos 1300, uma nova tradição com o nome de Natal tinha lentamente aberto
seu caminho pela Terra, e cada vez mais as pessoas passavam a celebrar
esse infeliz feriado, e cada vez mais o Yule e o Solstício de Inverno estavam
se perdendo. Eu podia ver que logo eu também ficaria perdido.” Krampus
inspirou fundo. “E quase desisti. Mas eu caminhei em meio às noites
invernais, vendo o esplendor do Yuletide sendo pervertido pela nova
religião, e meu sangue começou a ferver. Eu era Krampus, o grande e
terrível Senhor do Yule, e jurei que não mais sofreria tamanho insulto, jurei
que faria com que eles se lembrassem de que eu ainda estava aqui, que faria
com que eles acreditassem. E assim meu renascimento começaria. Eu me
humilhei indo de casa em casa. Loki havia me deixado este saco e eu o
levava comigo, oferecendo recompensas àqueles que se lembravam de mim
e que me honravam devidamente. Porém, para aqueles que não faziam
isso… bem, para eles eu era terrível.” Krampus abriu um sorriso largo. “Eu
batia neles com palmatórias, e para aqueles que faziam o mal em meu
nome, esses eu enfiava no saco de Loki e batia neles até que não
conseguissem mais andar.
“E o nome Krampus começou a ter algum significado de novo. E, se
Baldr não tivesse aparecido, quem sabe… talvez seria o meu rosto que
estaria estampado em todos aqueles comerciais de Coca-Cola, seria meu
balão flutuando no desfile do Dia do Yule, meus Belsnickels tocando sinos
na rua, exigindo tributos ou ficando sentados em lojas de departamentos,
fazendo promessas a meninos e meninas, promessas que nunca seriam
mantidas. Talvez, talvez, mas só se eu não tivesse ficado com pena daquela
criatura desalmada.”
Ele olhou de relance para Jesse, que estava com o queixo no peito de
novo.
“Jesse?”
Jesse não respondeu. Krampus esticou a mão e ficou mexendo em um
dos pregos que saíam da perna de Jesse.
“Ai, puta merda!”, gritou Jesse. “Cuidado. Caramba, qual é seu
problema?”
“Você ainda está vivo.”
“É… ainda estou vivo. Como eu sou sortudo!”
Krampus assentiu.
“Que bom… agora, onde é que eu estava? Ah, sim, o renascimento de
Baldr. Tinha sido profetizado que Baldr renasceria no reino terrestre depois
do Ragnarök, em uma terra limpa de trevas por um fogo que a tudo
consome, sendo Baldr renascido como um deus de luz e de paz, um deus
justo, para cuidar do mundo dos homens, mas é claro que não veio nenhuma
chama purificadora e o Baldr que encontrei aos tropeços nas minhas
florestas não sabia sequer o próprio nome. Envolto em trapos imundos, ele
parecia perdido, faminto. E, visto que tão poucos de nós haviam restado da
antiga linhagem, eu senti uma proximidade pelo sangue, uma
responsabilidade, então o trouxe até o meu domínio, o vesti, o alimentei, fiz
com que bebesse água. Ainda assim, em momento algum o vi sorrir, não
naqueles tempos. Mas havia momentos em que eu o pegava me encarando,
com uma expressão sombria no rosto, como se estivesse me culpando por
todas as suas aflições. Eu deveria ter prestado atenção nisso, mas a verdade
era que eu escondia a sensação de culpa, culpa pelo que minha mãe e meu
avô haviam feito com ele. Eu sofri com a ilusão de que minha caridade
poderia, de alguma forma, absolver minha linhagem daqueles crimes.
“Ofereci irmandade a ele, dei a ele um lugar a meu lado. Juntos nós
assumimos a tarefa de espalhar o Yuletide, mas ele parecia estar sempre em
um estado de melancolia e, na melhor das hipóteses, fazia apenas um
esforço apático. Certa noite, enquanto eu violava uma casa que honrava São
Nicolau, vi Baldr enfiar no bolso um pequeno livro com a marca do santo
na capa. Eu deveria ter tirado o livro dele, jogado no fogo, mas minha
piedade me fez agir como um fraco. Não foi muito tempo depois, ele
começou a usar branco e vermelho, começou a imitar São Nicolau em seus
modos de vestir. Ainda assim, contive minha língua, na esperança de que se
tratasse de uma extravagância passageira. Foi então que encontrei a cruz.
Disposta insolentemente em cima do consolo da lareira no quarto dele, e ver
aquilo foi como ser estapeado na cara… o próprio símbolo do meu
tormento, e na minha própria casa! Isso era mais do que eu podia tolerar.
Entrei no quarto dele e joguei o maldito item na lareira. Arregacei o cofre
dele, determinado a encontrar e destruir aquele livro. Não encontrei o livro,
no entanto, na verdade, encontrei um tesouro em forma de uma coleção de
artefatos e pergaminhos cheios de ensinamentos do santo morto. Eu os
destruí, joguei os destroços aos pés dele e exigi uma explicação. Perguntei a
ele como era capaz de abraçar tamanho mal. Ele não demonstrou emoção
nenhuma, seu rosto estava pétreo, como sempre. Ele me disse então que os
modos antigos estavam mortos. Que eu estava cego demais para ver que o
tempo dos antigos na terra tinha passado. Ele apanhou a cruz coberta pelo
fogo da lareira, ergueu-a perante mim como se fosse um importante talismã.
‘Aqui’, disse ele. ‘Eis o mundo em que vivemos agora. E, a menos que você
aprenda a servir a isso, logo você será uma relíquia.’
“Eu derrubei aquela cruz da mão dele e dei um tapa na cara dele, que
mal se encolheu, só ficou lá, me olhando fixo com aqueles olhos frios.
Enraivecido, bati nele de novo, um golpe que teria derrubado um boi. Nada,
era como se ele nem mesmo sentisse os tapas, e foi então que o vi sorrir
pela primeira vez. Um sorriso de pena. Pena, de mim! Do jeito como
alguém olharia para uma criança desorientada! Aquele olhar depreciativo,
aquilo me fez arder de raiva, então apanhei o atiçador de fogo da lareira e
golpeei a cara dele com aquilo! Ele deu uma risada, um som que ainda
posso ouvir até o dia de hoje. Som esse que entrou em meu cérebro e tirou
de lá todos os pensamentos sãos. Eu golpeei-o repetidas vezes, pretendendo
matá-lo… ainda assim, ele não ficou com nenhuma marca. Era como se eu
estivesse batendo em pedra, e ele ainda ria, o som parecendo multiplicar-se
na minha cabeça. Foi naquele momento que realmente o vi como o monstro
que era, foi então que entendi que ele vinha jogando comigo, fingindo, o
tempo todo, que mesmo tendo renascido em carne e osso, o feitiço de Odin
ainda mantinha seu poder de proteção sobre ele. Ainda assim, não parei;
fiquei batendo nele até que não conseguia mais nem erguer o atiçador de
fogo, que ele tirou de mim tão facilmente quanto tiraria de uma criança…
Ele me derrubou no chão, me chutou e bateu na minha cabeça até que tudo
começou a esvanecer. Eu apaguei, com a risada dele ressoando em meus
ouvidos.”
Jesse tossiu e inclinou-se para a frente, segurando a barriga.
“Sim, essa é uma história difícil de se ouvir. Eu sei.”
“O quê?”, murmurou Jesse.
“Toma, outro gole.” Krampus ergueu o frasco para ele. “Encha a cara
mesmo. Existem formas piores de se passar para a vida após a morte.”
Jesse tomou um gole da bebida.
“Meu Deus… com certeza você gosta de… falar.”
“O quê?”
Jesse fez uma careta e fechou os olhos.
“Falar? Sim, às vezes.” Krampus também tomou mais um gole e
continuou falando: “Acordei no meu próprio porão com correntes em volta
do meu pulso e do meu tornozelo, acorrentado a uma grande viga de
carvalho. Ele estava sentado em uma cadeira, na minha cadeira, me
encarando com aquela expressão pétrea no rosto. O saco de Loki estava no
colo dele, como se fosse um troféu. Ele me ofereceu minha liberdade se eu
ensinasse a ele o segredo do saco. Como você sabe, não existe nenhum
segredo para usá-lo, a pessoa tem que ser da linhagem direita do sangue de
Loki. Eu não conhecia nenhum outro jeito, o saco não era magia minha,
mas sim grande feitiçaria de Loki, o que não revelei a ele, pois temia que
isso fosse causar a minha perdição e, em vez de falar disso, agi como se não
estivesse disposto a contar o segredo.
“Ele pegou a minha grande casa na floresta para ele, me deixou no
porão para apodrecer, sem sol nem lua, com esperança de que o tempo fosse
fazer com que eu mudasse de ideia. Décadas foram se arrastando sem nada
para me alimentar além de lesmas e água parada. Fui fenecendo, tornei-me
uma frágil sombra de mim mesmo, mas meu espírito se mantinha. Eu sabia
até mesmo naquela época que se eu apenas conseguisse me segurar, o
tempo para a minha vingança haveria de chegar.
“Ele não esperou pelo saco para correr atrás de suas ambições. A
obsessão dele com o santo aumentou e, embora São Nicolau tivesse
morrido mais de mil anos antes, Baldr assumiu seu manto, roubou seu
nome, deixando crescer longos cabelos e barba brancos, vestindo e
adornando seus robes todos em uma ridícula imitação do santo morto.
“A traição dele para com os antigos, para com sua própria herança,
parecia não conhecer limites. Até mesmo com meu cativeiro, o Yuletide
ainda tinha seu lugar na terra, mas tudo isso começou a mudar assim que
Baldr deu início a seu reinado, assim que ele começou a visitar lares por
toda parte no Dia do Natal disfarçado de São Nicolau, entregando presentes
e fazendo caridade, pregando seu evangelho de mentiras. Não era o bastante
para ele simplesmente usurpar o Solstício de Inverno, ele não ficou feliz até
que todas as coisas relacionadas ao Yule estivessem enterradas, perdidas.
Ele estava tentando fazer com que as pessoas esquecessem… que se
esquecessem de onde vinham as tradições, que se esquecessem do Yule e do
Senhor do Yule.
“E com que facilidade foi que ele os enganou, como que facilidade ele
os tinha comendo veneno de sua mão. Pois quando Baldr estava entre as
pessoas, ele desempenhava de verdade o papel de santo bondoso, como se
tivesse nascido para isso. Eles iam até ele em rebanhos, não conseguiam
resistir ao charme dele, a sua maneira graciosa, abraçavam as palavras dele
de bondade e caridade enquanto ele jogava com a popularidade do Filho de
Cristo. Ele tornou-se um mestre da manipulação pública. Ele imprimiu e
distribuiu fábulas glorificadas de seus feitos de caridade e logo sua fama
espalhou-se por toda parte, assim como aconteceu com a popularidade do
Natal.
“Mas tudo isso era mentira, uma grande falcatrua, pois, embora ele
pregasse as virtudes cristãs, estava mergulhado na feitiçaria dos antigos. Da
minha cela fiquei vendo Baldr desenterrar as artes das trevas, buscando, em
segredo, as mesmas coisas que ele publicamente condenava como sendo
heresia e demonografia. Tentando, sempre tentando… quebrar o feitiço do
saco de Loki. Até mesmo na linhagem, enquanto ele me fazia sangrar até
quase ficar seco, na esperança de manipular o feitiço com o meu sangue.
Ele rastreou os últimos dos antigos, na maioria duendes e uns poucos anões,
e colocou-os para trabalhar, fazendo com que servissem a seu propósito.
Eles reforçaram minha casa na floresta com esteios e paredes de pedra de
cantaria, com espetos em cima, fazendo com que o porão se transformasse
em uma grande casa forte, na qual ele buscava sua feitiçaria e suas
ambições malévolas. E, enquanto me deixava apodrecer no porão, ele
foi…”
A voz de Krampus falhou, e ele olhou de relance para Jesse, que estava
com a cabeça encostada no ombro, com os olhos fechados e não dava
nenhum sinal de que respirava.
“Parece que estou falando sozinho.” Krampus cruzou os braços sobre o
peito e bufou. Ele olhou a seu redor, para os mortos, inspirou fundo,
absorvendo o cheiro de sangue. Tinha sido bom matar os perversos. Ele não
se sentia assim tão vivo em mais de mil anos. Ele pensou nos homens maus
de quem Jesse havia lhe falado. Quem é esse homem perverso, Jesse? Esse
tal de Dillard? As ações dele realmente fazem com que ele mereça a morte?
Eu, especificamente, gostaria de saber.
Ele cutucou Jesse, que não respondeu. Krampus inclinou-se para a
frente, cheirou-o e sorriu.
“Jesse, seu espírito é forte. Você aguenta firme quando deveria estar
morto.” Ele olhou para as mãos mutiladas do homem. Seria uma pena
perder alguém que tem o dom da música.
“Você gostaria de vir comigo? Gostaria de você mesmo matar o tal do
Dillard?”
Nenhuma resposta veio de Jesse.
Krampus tamborilou com os longos dedos na ponta da lança.
“Eu acho que você deveria. Sim, com toda certeza.”
Ele ergueu o braço de Jesse e deu uma mordida em seu pulso.
Uma canção… bem ao longe… “Achy Breaky Heart.” Jesse chegou à
conclusão de que devia ter ido parar no Inferno, porque não tinha como
alguém tocar aquela canção hedionda no Céu. Ele abriu os olhos. O Inferno
era bem parecido com a cabine dupla de uma caminhonete. Jesse aprumou-
se rápido demais e o mundo começou a girar. Ele apoiou-se no assento e
soltou um gemido.
“Logo você vai se sentir melhor.”
Jesse deparou-se com Krampus sentando a seu lado, com um sorriso
largo e travesso no rosto.
“Cacete”, disse Jesse, tentando focar os olhos. “Você ainda está aí.” Ele
tentou não desmaiar, achou que talvez estivesse ainda um pouco bêbado,
notou o saco e a lança no colo do Senhor do Yule. “Você não está usando
seu cinto de segurança.”
“Cinto de segurança?”
“Aonde estamos indo?”
“Matar Baldr. Seus amigos decidiram juntar-se a nós.”
Jesse piscou, esfregou os olhos e viu que Chet estava dirigindo. Mas
Chet não era Chet. Chet era um Belsnickel, ou, bem, estava a caminho de
tomar-se um deles, visto que sua pele tinha manchas de um cinza bem
escuro. Alguém, mas Jesse não sabia quem, estava no lado do passageiro.
Ele olhou para Jesse, que reconheceu o General, cuja pele também estava se
transformando, os olhos ficando cor de laranja. Ele parecia aterrorizado.
“Se ferrou, filho da puta”, disse Jesse, e deu risada.
Krampus também deu risada.
“Eu encontrei o pequeno escondido sob um homem morto. Ele parecia
perdido e assustado, então o trouxe conosco. O que você me diz disso,
pimentinha? Que tal se você e o Chet cantassem uma música para mim?”
O General não respondeu, só ficou encarando Krampus com olhos
assombrados, como um homem que queria acordar de um pesadelo, mas
não conseguia.
“General, eu ordeno que você e Chet cantem ‘Jingle Bells’ para mim…
baixinho e suavemente, por favor. Vou contar até três: um, dois, três.”
Os dois começaram a cantar, um triste coro de palavras ininteligíveis,
dessincronizadas e desafinadas. Jesse deu risada de novo e sentiu um
profundo desconforto nas costas e no peito.
Ele ficou calado. Eu fui esfaqueado. E, em meio à névoa do hidromel,
as coisas vieram a sua mente. Ele tocou em seu estômago e em sua perna.
Os pregos não estavam mais lá, e ele não sentia dor, bem, pelo menos não
sentia quase mais nenhuma dor. Eu ainda estou vivo! Devagar, ele puxou
para cima a manga de sua camisa, com medo de olhar, sabendo muito bem
o que haveria de encontrar. Sua pele estava manchada de cinza e preto.
“Não”, disse ele. “Não, você não fez isso!”
Jesse ficou olhando com ódio para Krampus, que assentiu, sorrindo.
Jesse puxou para cima a parte da frente de sua camisa, deixando sua barriga
exposta. Ele podia ver onde os pregos tinham estado, as feridas ainda
estavam lá, não vazando sangue, como deveriam, mas bem a meio caminho
de se curarem.
“Eu lhe concedi uma vida”, disse Krampus.
“Você me transformou em um monstro.”
“Meio que sim…”
Jesse ergueu as mãos, mexeu os dedos e encolheu-se de dor. Eles ainda
estavam rígidos e machucados, mas ele mal podia dizer que tinham sido
quebrados.
“Como… é possível?”
“Meu sangue faz isso”, disse Krampus, com óbvio orgulho.
“Isso é maravilhoso, eu acho. Agora me transforme de volta.”
Krampus franziu o cenho.
“Por que eu ia querer fazer uma coisa dessas?”
“Porque eu estou dizendo para você fazer isso.”
“Chega de cantoria”, disse Krampus, e os dois homens pararam de
cantar. “Jesse, você está confuso. Só existe um de nós dois que dá ordens
aqui, e receio que não seja você.”
Jesse agarrou Krampus pelo braço.
“Não, foda-se. Você vai me transformar de volta. Agora!”
“Eu ordeno que você solte o meu braço!”
E, para a surpresa de Jesse, seu corpo fez exatamente o que lhe foi
ordenado, como se um outro alguém o estivesse dirigindo enquanto ele
observava. Jesse arregalou os olhos.
“Oh, que merda!”
Alguém deu risadinhas de escárnio e ele viu Chet com um sorriso
afetado no rosto, olhando para ele pelo espelho retrovisor.
“Para que porra você está olhando?”
“Bem-vindo ao clube, imbecil”, disse Chet.
“Você não pode fazer isso”, disse Jesse a Krampus.
“Você prefere a morte?”
Jesse começou a abrir a boca para dizer que sim, mas descobriu que não
estava certo disso.
“Só me transforma de volta.”
“Não posso.”
“Não pode ou não quer?”
Krampus deu de ombros.
“Seu filho da puta!”
“Nós temos que acertar grandes erros. Eu e você. Vamos matar Papai
Noel. Quando isso tiver sido feito, então, talvez, se você me servir bem,
podemos cuidar daquele outro mal, aquele tal de Dillard, se você quiser.”
Jesse ficou calado. Ele queria sim fazer isso, certo, mas o que
significava ser um Belsnickel? Teria ele sido condenado a uma vida de
escravidão? Ele acreditava mesmo que Krampus cumpriria com sua oferta?
Não havia como saber. O que ele realmente sabia era que, por ora, tinha
recebido uma outra vida, talvez uma outra chance cuidar de Dillard, de
matá-lo, se fosse o caso, para salvar sua Abigail, e isso era o que importava.
CHET DIRIGIA, guiando-os pela estreita entrada de carros, e estacionou atrás
da igreja. Um lobo gigantesco estava em pé ao lado do grande carvalho,
com os pelos eriçados.
“Oh, que merda é essa agora?”, quis saber Chet.
Um instante depois, todos os três shawnees saíram correndo da igreja,
com lanças e pistolas nas mãos. Krampus abriu a porta de seu lado e saiu do
veículo. Os shawnees soltaram um gritinho. “Iuuupiii!” O lobo abaixou os
pelos antes eriçados e veio trotando em direção a Krampus, cuja mão ele
lambeu, e o Senhor do Yule esfregou atrás das orelhas dele. O animal
começou a abanar o rabo.
“Para fora, todos vocês”, ordenou Krampus, e Chet, Jesse e o General
abriram suas portas e saíram do veículo.
Jesse pisou na neve e deu-se conta de que tinha perdido uma das botas
em algum lugar no meio do caminho. Ele podia sentir o gelo em seu pé
descalço, mas, estranhamente, não sentia nenhuma pungência e, embora
com certeza a temperatura estivesse para lá de congelante, ele mal notava o
frio. Jesse percebeu que conseguia na verdade sentir o cheiro da neve, o
cheiro das folhas mortas debaixo da neve. Ele inalou o ar; tudo parecia mais
vívido: os cheiros, os sons, as cores, e ele presumia que todas essas
sensações deveriam ser algum efeito do sangue de Krampus.
Chet e o General estavam grudados no Chevy, voltando os olhos entre
os shawnees e o lobo, como se estivessem prestes a serem comidos.
Isabel saiu nos degraus de trás da igreja, viu Jesse e soltou um grito.
“Krampus! Não! Você prometeu! Seu juramento!”
“Guarde sua raiva, leoazinha. Foi ele quem quebrou o juramento. Não
eu.”
Isabel desceu os degraus, foi até Jesse e tocou no rosto dele com os
dorsos de seus dedos.
“Oh, Jesse. Eu sinto muitíssimo.”
“Podia ser pior”, disse Jesse, surpreso ao descobrir que estava mesmo
falando sério quanto a isso.
“Venham”, disse Krampus, e dirigiu-se para dentro da igreja, abanando
o rabo, animado.
Chet e o General permaneceram ao lado da caminhonete como se
estivessem congelados no lugar. Makwa fez um gesto em direção aos
degraus com sua lança. Chet e o General trocaram um olhar cheio de
preocupação e depois foram andando atrás de Krampus, como se estivessem
seguindo uma marcha e cruzando os portões do Inferno.
Jesse entrou na igreja e deparou-se com o segundo lobo, o maior,
deitado de lado. O animal ergueu a cabeça, olhando e atento aos recém-
chegados. O lobo menor aproximou-se e começou a lamber a cara dele.
Isabel pegou um dos frascos de hidromel e despejou um pouco em uma
forma de torta em frente ao lobo, que lambeu o líquido.
“Este é Freki”, disse Isabel, fazendo carinho nos pelos do animal. “Ele
está bem melhor.”
“E não graças a você”, disse alguém com franca hostilidade. Jesse
deparou-se com Vernon, que olhava com ódio para ele. “Nós tivemos que
carregá-lo para fora daquela ravina. O bendito animal pesava uma
tonelada.” Vernon foi andando até Jesse, ergueu o olhar para ele, seus olhos
eram duas fendas cheias de raiva. “Você me empurrou.”
“É, eu fiz isso mesmo.”
“Você é um filho de uma puta, sabia?”
“Sim, tenho toda certeza disso.”
“Precisei andar uns quinze quilômetros em meio à floresta para voltar
até aqui. Tive que carregar o animal por todo aquele caminho. Por todo o
caminho. É um caminho bem longo para se carregar um cachorro gigante.”
“Vernon”, disse Isabel. “Pare de reclamar. Você fala nisso sem parar.
Está começando a dar nos nervos de todo mundo.”
“Sim, bem, não foi você que foi empurrada pela encosta de uma
montanha. Pois foi?”
“Você não caiu de montanha nenhuma! Você ficou preso em uma
árvore!” Ela riu. “Parecia um guaxinim engalhado!”
Vernon voltou a ela uma cara muitíssimo feia, balançou a cabeça e saiu
andando.
“Um dia vou acordar desse maldito pesadelo. Um dia… e nunca será
cedo o bastante.”
Krampus deixou o saco cair no meio da sala.
“Todos vocês… aqui, comigo.” Ele estirou a lança. “Estou com ela!” Os
shawnees reuniram-se em volta dele. “O dia pelo qual esperamos por
séculos chegou! Hoje é o dia em que eu confrontarei Baldr. Hoje é o dia em
que farei com que ele pague por todos os seus crimes!”
Ele olhou de um rosto para o outro, com um brilho nos olhos.
“Permitam-me dizer a vocês por que nunca devem cometer o mesmo
erro que eu cometi e ficar com pena daquele monstro; por que ele deve ser
abatido como se fosse um cão raivoso!”
Krampus colocou uma das mãos no ombro de Jesse.
“Jesse, eu contei a você sobre o disfarce dele, sobre sua adoração a São
Nicolau, mas não havia fim no engodo dele. Deixe-me terminar de contar a
história… permitam-me que eu compartilhe com vocês o restante da
história.”
Jesse balançou a cabeça.
“Eu não posso impedir você de fazer isso, posso?”
O cenho do Senhor do Yule ficou franzido, e Jesse achou que podia ter
ido longe demais, então, pouco a pouco, um sorriso foi surgindo no rosto de
Krampus.
“Não… não, você não pode. Ninguém pode. Não mais. Essa história
será contada… repetidamente, até que o mundo inteiro conheça a verdade
por trás da mentira.”
Krampus agarrou a lança com ambas as mãos.
“A história dele é de traição, de uma criatura imunda que não tem
nenhuma consciência, nenhuma consideração por nada além de suas
próprias ambições cegas. Pois, até mesmo depois que eu o trouxe para
dentro da minha própria casa, até mesmo depois de ter mostrado irmandade
a ele, depois de toda a minha caridade, ainda assim ele me traiu, ele traiu a
toda Asgard.” Os olhos de Krampus brilhavam. “Ele roubou tudo de mim,
trancou-me em sua masmorra. Isso foi o bastante para ele? Não. Ele queria
mais, queria meu nome apagado da terra. Ele achava que conseguiria fazer
com que eles esquecessem… que se esquecessem do Yule e do Senhor do
Yule.” Krampus deu risada. “Mas ele subestimou o meu grande espírito e,
até mesmo nos anos 1400, havia aqueles que ainda se mantinham fieis às
antigas tradições, que ainda me pagavam tributos.
“Isso não foi bem aceito pelo nosso amado Baldr. Ele decidiu que
alguma coisa deveria ser feita. Aconteceu que, naquele Natal, ele me fez ser
acorrentado e carregado de sua fortaleza, colocado em cima de um trono de
legumes podres em um carrinho puxado por cabras. Ele atou um forcado ao
meu braço e colocou um colar de línguas de cabras em volta do meu
pescoço. Ele vestiu os escravizados com casacos de pelos imundos, usando
máscaras com chifres e correntes. Eles me levaram em um desfile ao longo
do interior e passando pelas cidadezinhas e pelos vilarejos, dançando e se
empinando, guinchando e rosnando como bestas idiotas, ridicularizando a
mim e a tudo que eu representava. E Baldr, em seu disfarce de São Nicolau,
gritava ‘Vejam, este é o diabo, Krampus. Não passa de um velhote tonto.’
Os habitantes dos vilarejos jogavam montinhos de terra e esterco em mim,
enquanto as crianças me cutucavam com varetas. Eu estava fraco e frágil
demais para fazer qualquer outra coisa que não fosse baixar a cabeça. Ele
foi mais longe, conhecendo bem o poder das mentiras. Ele imprimiu
cartazes que me mostravam, a mim, o grande Senhor do Yule, como não
passando de um malévolo diabrete, e colou esses cartazes por toda a terra.
Isso prosseguiu ano após ano e ele prometia que isso não teria fim a menos
que… a menos que eu lhe revelasse o segredo do saco.
“Mas isso acabou sim tendo um fim, em algum momento no início dos
anos de 1500, creio eu, é difícil dizer com certeza, pois na época eu estava
perdendo qualquer senso dos anos que se passavam. Logo quando eu
achava que ele havia se esquecido de mim, ele apareceu na frente da minha
cela, só que não o reconheci, não a princípio. Já não era o disfarce do santo
magro e piedoso. O que estava perante mim agora era uma figura robusta,
vestida com uma roupa ridícula. Ele trajava uma capa que ia até o chão, por
cima de um robe, toda de veludo carmesim ornamentada com pelos
brancos, um largo cinto preto preso no meio da barriga e um alto e pontudo
chapéu pontilhado de estrelas douradas em cima da cabeça. Seus cabelos e
sua barba tinham crescido tanto a ponto de esconder até mesmo seus
ombros. Ele parecia um mago demente.
“Apresentou-se como o Papai Noel, contou que havia dominado o saco
de Loki e que não precisava mais do diabo… disse que estava na hora de
Krampus ser totalmente esquecido. Ele fez com que seus servos me atassem
e me colocassem em seu trenó. Voou comigo nele, cruzando o grande
oceano em direção ao recém-descoberto continente da América, para as
mais profundas e mais sombrias montanhas, e acorrentou-me em uma
caverna bem abaixo das rochas, onde ninguém nunca haveria de me
encontrar, e me deixou lá para apodrecer.”
Krampus balançou a cabeça devagar.
“Mas eu não apodreci. Não, pois entoei minha canção para a floresta, e
a floresta me ouviu.” Ele fez um gesto, indicando os shawnees. “O grande
povo Shawnee me encontrou e cuidou das minhas necessidades. E eu fiquei
esperando. Fiquei lá, sentado, durante quinhentos anos, esperando por uma
coisa. O dia em que eu estaria livre, o dia em que mataria Baldr.”
Krampus falou diretamente a Jesse:
“E, em cada um daqueles dias, sem falta, eu ponderei sobre como faria
isso. Pensei em como escaparia, em como mataria um ser que não pode ser
morto. Conforme o tempo foi passando e os europeus marcharam pelas
Américas, meus Belsnickels traziam para mim jornais e livros, por meio dos
quais me mantive atualizado sobre os feitos dele, observando enquanto sua
fraude se espalhava pelo globo. Fiz quadros, mapeei e esbocei o rumo dele,
até que vim a entender seu método, seu caminho. E, por fim, tudo se
alinhou e, quando ele enfim veio a Goodhope, eu estava preparado. Sim…
eu estava mesmo preparado.
“E agora eu estou preparado para colocar um fim nisso, para pôr um fim
em seu reinado de mentiras. Preparado para tomar de volta o que é meu!”
Krampus apontou a lança em direção aos céus e soltou um uivo. Os
shawnees jogaram as cabeças para trás e acrescentaram suas vozes ao uivo
de Krampus, então os lobos juntaram-se a eles. O som aterrorizante e
sobrenatural ecoou até as vigas da velha igreja, deixando os pelos na nuca
de Jesse arrepiados. Chet, o General e Vernon observavam a cena, sentindo-
se mal.
Jesse não conseguiu controlar-se e estremeceu. Nós realmente vamos
matar o Papai Noel?

KRAMPUS ESTAVA parado, em pé, diante do saco de Loki, e os Belsnickels


formavam um círculo ao redor dele. Nove corações batendo com meu
sangue; nove é o número mágico. Eu nunca me senti tão vivo!
Ele inspecionou seus guerreiros. Os shawnees, armados com facas,
pistolas e lanças, sempre orgulhosos e confiáveis, suas peles com manchas
cor de piche, usando chifres e máscaras e peles peludas, tudo em honra a
ele, Krampus. Isabel, sua corajosa leoazinha, carregava uma escopeta e
conseguia parecer bastante feroz, mesmo usando aquele gorro ridículo.
Vernon segurava uma das novas armas automáticas e parecia melancólico
como sempre, mas não tão miserável quanto os dois criminosos. Jesse
estava em pé, descalço, com a calça e a camisa rasgadas e cobertas com seu
próprio sangue. Ainda assim, o compositor, Jesse, parecia quase mais ávido,
embora Krampus tivesse certeza de que não era por causa da aventura que
tinha à frente, mas sim pelo homem que ele chamava de Dillard. Havia algo
em relação ao espírito de Jesse de que Krampus gostava, sua ousadia, talvez
aquele brilho de malícia nos olhos dele quando sorria. Krampus nutria
esperanças de que o jovem fosse retornar vivo, mas não havia garantias
disso. Krampus nunca tinha ido até o castelo de Baldr, não fazia nenhuma
ideia do que estaria lá esperando por ele. Será que Baldr estaria esperando
por eles? Muito provavelmente. Não teria como prever que truques e
armadilhas ele poderia lhes ter reservado. Mas será que Baldr saberia sobre
a lança? Krampus apertou sua mão na arma. Não. Essa seria uma surpresa
e tanto!
Krampus colocou os olhos em Jesse, em Chet e no General.
“Ordeno que levantem as mãos.” Todos os três o obedeceram. “Meu
sangue corre nas veias de vocês. Eu sou seu mestre. Ordeno que façam seu
melhor para seguir a minha vontade, para ficar ao meu lado, me proteger a
todo custo, mesmo às custas de suas próprias vidas. Agora, jurem.”
Eles fizeram isso, pois não tinham escolha.
“Que bom”, disse Krampus, e entregou uma pistola a Chet e outra ao
General. A Jesse, ele entregou uma pistola e o rifle.
“Hora de irmos.”
“Irmos aonde?”, perguntou Vernon.
“À Espanha.”
“Espanha?”, disse Jesse, e olhou de relance ao redor, voltou o olhar para
os outros, mas eles pareciam igualmente perplexos.
“Espanha?”
“Sim, até o castelo de Baldr. Onde vocês achavam que ele morava? No
Polo Norte?”, zombou Krampus. “As pessoas caem fácil nas mentiras dele!
Nosso muito velho duende não tem nenhuma disposição para morar no
Ártico. Ele vive na costa, onde sopra o vento momo… Faz séculos que ele
mora lá. Mas não depois de hoje, não depois que levarmos o lugar abaixo,
em chamas.”
“Essa será uma caminhada e tanto”, disse Jesse.
Krampus abriu um sorriso.
“Jesse, você sempre com suas piadas. Nós não vamos andando.” Ele
assentiu em direção ao saco. “Abrirei uma porta e viajaremos através do
saco.”
Demorou um pouco, para alguns ainda um pouco mais, mas o Senhor
do Yule viu que a maioria entendeu.
“Será noite lá, e a escuridão é nossa amiga. Enviarei vocês até lá, um
por um, através o saco, e depois irei em seguida, e juntos haveremos de
destruir tudo o que ele é. Ele pode ter guardas: duendes, bestas, coisas que
eu posso desconhecer. Se vocês forem avistados por eles, matem-nos. Não
demonstrem nenhuma misericórdia. O fracasso significará a morte para
todos nós, já que não teremos como voltar, pois o saco terá que ficar para
trás.”
Todos ficaram com os olhares fixos no saco. Sim, não deverá haver
nenhuma clemência por Baldr, não dessa vez. Krampus inspirou fundo. De
uma forma ou de outra, estou pronto para que isso seja feito. Krampus
pegou do saco uma garrafa de hidromel, quebrou a cera e sorveu um gole
profundo. Limpou os lábios no braço e ofereceu a garrafa aos outros. Os
Belsnickels passaram-na ao redor.
Krampus manteve o saco aberto, encarando suas profundezas. Hora de
abrir a porta. Só que ele não sabia para onde. Nunca tinha ido ao castelo.
Ele precisava de um objeto, algo em que se fixar, para dirigir o saco até lá,
alguma coisa que não fosse colocá-los na linha do perigo, que não fosse
entregar a presença deles lá.
“Você planejou a nossa volta?”, quis saber Jesse.
“Voltaremos voando no trenó dele”, respondeu-lhe Krampus, e percebeu
quase de imediato que o trenó era sua resposta. Sim. Farei com que o saco
encontre o trenó. Aquele trenó velho, aquele em que ele me trouxe para as
Américas. Muito provavelmente ele deve estar nos estábulos, que seria um
bom lugar para começar a procurá-lo. Ele se perguntava até mesmo se esse
trenó ainda existia. Só existe um jeito de descobrir.
Ele cerrou os olhos, conectou-se com o saco, podia sentir sua pulsação.
Era tão fácil agora que tinha sua força; quase não requeria esforço algum.
Pensou no antigo trenó, visualizou-o em sua mente, e o saco respondeu. Ele
viu de passagem o céu e o oceano, uma fortificação, apenas um vislumbre,
mas o suficiente para ver que aquele não se tratava de nenhum lugar de
doces e bonecos de neve, mas sim de muralhas imponentes de
magnificentes pedras brancas. Ali está… o trenó! Krampus abriu os olhos.
“A porta está aberta.”
Krampus deixou o círculo e foi andando até onde, lado a lado, estavam
deitados os dois lobos. Ele agachou-se e acariciou as espessas peles dos
animais.
“Geri, Freki, nós devemos ir agora. Guardem e protejam o saco. Não
deixem que ninguém o tome. Se vocês farejarem a vinda de Baldr, então
isso significará que nós fracassamos.” Geri soltou um ganido baixo. “É meu
desejo que então vocês façam picadinho do saco. Entenderam?” Freki
ladrou.
Krampus pôs-se em pé e ficou com o olhar fixo no saco. Tudo estava
em ação. Ele ergueu a lança, passou o dedo ao longo do fio da lâmina,
testando sua afiação pela milésima vez, e inspirou fundo. Está na hora de
tomar de volta o que é meu.

O PAPAI NOEL tirou um pequeno livro com encadernação de couro da estante


em seu escritório, colocou-o com cuidado em cima de sua escrivaninha e
tocou na marca gravada em sua capa. Ele acariciou as beiradas gastas e a
encadernação rachada, abriu o livro, virando com cuidado o frágil
pergaminho até que chegou a um desenho bruto, feito à tinta, de um homem
magro, barbudo, com a face austera, segurando um cajado de pastor. Papai
Noel passou o dedo pelo áspero pergaminho, traçando levemente a
inscrição abaixo da imagem. “Caridade para com os outros traz sua
própria recompensa”, sussurrou ele.
Ele olhou para fora pela janela, para o Mar Mediterrâneo. Os últimos
vestígios de luz do sol reluzindo nas ondas. Cerrou os olhos, inalou o cálido
ar salgado e fez-se lembrar, lembrar-se da chama enquanto sua prisão
queimava, lembrar-se dos gritos enquanto o Ragnarök consumia tudo em
Hel, tudo em Asgard, lembrar-se da alma de sua própria esposa ardendo em
chamas perante seus olhos.
“A chama lambeu a minha carne”, sussurrou ele, falando com o livro.
“Mas o fim não chegou, nenhum alívio acudiu meu tormento. Assisti tudo
ser consumido, até que fiquei lá, sozinho, parado, a única alma em meio a
um mundo que se tomara cinzas e ossos queimados.
“Deus, o Único Deus acima de todos, mandou seus anjos, as Valquírias,
e elas me carregaram para Midgard, deixando-me nu para vagar na terra.
Passei anos vagando sem rumo. Abstive-me de alimento e de bebida,
suportei todas as intempéries, tudo na esperança de perecer. Cheguei a me
jogar de grandes penhascos, tudo em vão, pois minha carne não haveria de
morrer.
“Krampus encontrou-me, forçou-me à servidão… eu, filho de Odin,
escravo de um demônio de baixa casta. Eu não me importava, não sentia.
Vazio de coração e alma, vim a acreditar que esse era meu fado, minha
pena, que eu fora poupado para suportar o tormento não apenas pela
minha própria vaidade e arrogância, mas também pela de todos os meus
antepassados.
“Eu estava perdido, morto, exceto pela carne.” Com gentileza, ele
fechou o livro e segurou-o apertado junto ao peito. “Suas palavras, São
Nicolau, suas palavras encontraram a minha alma, lembrando-me dos dias
antes do Ragnarök, antes de Hel, antes de todos os esquemas, de todas as
traições e dos mesquinhos jogos dos deuses. De um tempo em que eu
vagava pela terra, benevolente e graciosa, buscando a simples alegria de
erguer os espíritos dos oprimidos. Da única vez em que realmente conheci
a felicidade. ”
“Achei que o encontraria aqui.”
O Papai Noel virou-se.
Uma mulher magra com abundantes cabelos brancos e olhos imortais
entrou no aposento. Ela trajava um vestido de um carmesim escuro com
adornos dourados. Ela pegou o livro dele e colocou-o de volta na estante.
“Você não precisa dos ensinamentos de um santo morto para mostrar o que
está em seu coração.”
“Às vezes, eu me esqueço disso”, respondeu o Papai Noel. “O jogo dos
deuses faz com que a gente anseie por uma época mais simples.”
Ela tocou na mão dele.
“Sua caridade não é para agradar aos deuses. É sua natureza.”
“É verdade. Eu não conheço nenhuma alegria maior do que a de
espalhar a esperança e a alegria. Mas se eu também realmente gosto de
ouvir o meu nome em canções, se gosto de ver a minha imagem celebrada
em todos os cantos dessa Terra? Sim. Eu tenho de admitir que anseio por
isso, que meu coração não ficará contente até que todo o mundo entoe
minhas canções.”
“A caridade é sua vaidade. E daí? Ninguém impôs a você que fosse um
santo. A caridade é sua própria nobreza, independente do propósito.”
“A única verdade que eu conheço com certeza é que, quando eu voo
pelo mundo distribuindo presentes, ajudando àqueles que precisam, é só
então que esqueço a dor do meu passado. Além daquilo, além dos deuses e
de onde eu poderia me encaixar nos grandes propósitos deles, não importa.”
“Ele está vindo.”
“Krampus?”
Ela assentiu.
“Os sinais estão nos ossos.”
“Eu sabia que ele viria.”
“Acredito que isso deva acontecer em breve.”
“Estou pronto.”
O Papai Noel ergueu sua espada de lâmina larga do canto, testando seu
peso, e colocou-a sobre a escrivaninha.
“Os ossos revelaram algum outro segredo?”
“Não. Você tem medo dele?”
“Ele não pode me causar nenhum dano. Os deuses cuidaram disso.”
“Então por que estou vendo preocupação em seu cenho franzido?”
“É com o saco que me preocupo. Krampus poderia trazer mal ao saco.
Eu não sei onde algum dia poderia encontrar outro saco como aquele.”
“Então você tem que cuidar para que Krampus não escape.”
“Ele não vai escapar. Não desta vez. As últimas perfídias de Loki
haverão de morrer com ele.”
Krampus segurava o saco bem aberto; Jesse ficou observando enquanto a
escuridão se mexia e espiralava. O Senhor do Yule assentiu e Makwa
colocou um pé dentro do saco, depois, o outro. Deslizou para baixo até a
cintura. Krampus puxou o saco para cima da cabeça dele e, assim, o grande
homem se foi. Os irmãos, Wipi e Nipi, foram em seguida, sem hesitação,
sem precisar de nenhuma ordem. Isabel foi depois deles e depois dela foi a
vez de Vernon, que desferiu a Krampus um olhar de total desprezo, mas
seguiu sem dizer nenhuma palavra.
Krampus olhou para Chet e para o General. O General recuou um passo,
o medo puro estampado em sua face. Ele balançou a cabeça em negativa.
“Não, senhor, eu é que não vou entrar nisso daí.”
“Você é todo cheio de baboseira, não é?”, disse Jesse, com uma risada
de escárnio. “Sempre imaginei que você não era de nada sem seus parentes
apoiando.”
O General parecia nem mesmo estar ouvindo o que Jesse dizia, ele só
mantinha o olhar fixo no saco.
Jesse empurrou o General para o lado e deu um passo à frente, pronto
para acabar logo com aquilo. O hidromel aquecera seu sangue, fazendo com
que se sentisse um pouco maluco, um pouco ensandecido mesmo, e ele
gostava dessa sensação. Enfiou um pé no saco, sugou o ar profundamente…
Ainda sentia um pouco de dificuldade para respirar, mas a dor estava
sumindo. Deslizou o outro pé para dentro do saco.
Krampus colocou uma das mãos no ombro de Jesse.
“Está na hora de consertar as coisas.”
“Só não vai fazer com que sejamos mortos”, disse Jesse, e deslizou para
dentro do saco.
Chegou um momento em que ele não sentia nada abaixo dos pés, uma
sensação que não era a de cair, que mais parecia descer uma rampa de
veludo deslizando. Um segundo depois, Jesse encontrou-se com a bunda na
terra e em feno espalhado. Ele piscou e o mundo entrou em foco. Era noite,
e o ar, cálido. Jesse nunca estivera no oceano, mas sabia que aquele devia
ser seu cheiro. Ele ouviu o som ao longe de ondas batendo em rochas e
levantou-se.
“Abaixe-se”, sussurrou Isabel, puxando-o pelo braço e para dentro de
uma das baias. Os Belsnickels estavam agachados, junto à parede interna da
baia, dividindo-a com um velho trenó verde. Eles espiaram para fora, para
um quintal cercado por muralhas de pedras brancas, com pelo menos uns
seis metros de altura. Eles não viram vivalma, mas havia lamparinas a gás
tremeluzindo a cada quinze metros ao longo da parede. A baia era anexa a
uma estrutura maior. Jesse sentiu o cheiro de feno e de esterco e imaginou
que se tratasse de um estábulo. Do outro lado do quintal havia uma
imponente casa de arcos e torres pequenas, construída com o mesmo tipo de
pedras brancas das muralhas, mas com teto de telhas vermelhas.
Uma bota de caubói na perna de alguém de repente apareceu na frente
de Jesse. Um instante depois, o General estava de bunda na terra. O General
olhou de relance ao redor, com os olhos selvagens, apontando sua pistola
para um lado e para o outro. Jesse, temendo que o homem começasse a
atirar aleatoriamente a qualquer segundo, deu um pulo para a frente e
puxou-o para dentro da baia. Pouco tempo depois, chegaram Krampus e
Chet. Krampus estava em pé, em plena vista, com as mãos nos quadris,
inspecionando o quintal. Ele avistou o velho trenó, foi andando até dentro
da baia e passou a mão ao longo de sua lateral desgastada pelo tempo.
“Isto me pertence”, disse ele em um tom baixo de voz. “Ele o roubou.
Uma das muitas coisas que ele roubou. Uma das muitas coisas que vim
tomar de volta. Venham.” Ele saiu da baia e seguiu andando por uma trilha
de pedras de cantaria; os Belsnickels foram atrás dele. Ele parou na frente
do estábulo e olhou para a estrutura, de cima a baixo. “Isso vai servir.” Ele
deslizou um dos lados das altas portas duplas do estábulo, só uma frestinha,
e espiou lá dentro. “Sim, perfeito. Chet, quero que você e seu pequeno
amigo troll fiquem montando guarda aqui fora. Deem um aviso a nós se
alguém aparecer. Essa é minha ordem.”
Chet assentiu, mas o General parecia perdido, olhando de um lado para
o outro. Jesse teve certeza de que o homem ia detonar a operação toda e não
conseguia entender por que Krampus deixaria aqueles dois sozinhos ali
fora.
Krampus entrou no estábulo; Jesse, os shawnees, Isabel e Vernon, todos
eles foram em seguida. Duas lamparinas a gás tremeluziam, lançando
longas sombras pelas baias. Um celeiro de dois andares, cheio de pilhas de
feno, percorria a extensão da estrutura, cujo meio era aberto até o teto. As
baias começavam no centro do celeiro, deixando um grande espaço aberto
para o carregamento, o descarregamento, os arreios dos animais, assim
como outras tarefas. Krampus foi caminhando até o meio do espaço e, lá,
em pé, com a lança na mão, ele foi visto por Jesse como alguma diabólica
espécie de gladiador esperando pelo desafio.
“Vão atrás de cobertura”, disse Krampus, apontando com sua lança para
um agrupamento de baias. “Todos fiquem de um lado só, para evitarem
atirar uns nos outros.” Jesse teve a sensação de que Krampus tinha
planejado as coisas melhor do que deixava transparecer. Ao menos ele
esperava que fosse esse o caso. Jesse começou a ir atrás dos outros
Belsnickels quando captou movimentos no celeiro acima. Ele apertou os
olhos para enxergar nas sombras, achou incrível sua recém-adquirida
habilidade de perscrutar a escuridão, mas ainda assim não viu nada nem
ninguém. Olhou de relance para Krampus, que assentiu para ele. “Eles estão
de olho em nós. Desde que chegamos, eles estão de olho em nós.”
Jesse engoliu em seco. As coisas estavam ficando muito sérias, e rápido
demais.
Jesse passou de fininho por trás de uma grande coluna da parede e ficou
esperando, não fazendo a mínima ideia de quem estava esperando nem de
por quanto tempo. Isabel e Vernon acharam cobertura atrás de uma pilha de
engradados, e os shawnees ficaram agachados em uma baia desocupada ao
lado de Jesse. Em algum lugar, um bode baliu. Jesse olhou de relance para
trás de si. Várias renas voltaram seus olhares para ele de suas baias,
bufando e batendo as patas, agitadas. Jesse apoiou seu rifle na coluna da
parede, sacou o revólver de seu cinto, começou a verificar se a arma estava
carregada, e foi então que surgiu, vinda de fora, uma rajada de arma de
fogo, seguida de um grito. Jesse deu um pulo, quase deixando cair sua
pistola. Ele conseguiu segurá-la e apontá-la em direção à porta bem no
momento em que soou outra sequência de tiros. Um segundo depois,
alguma coisa bateu nas portas, emitindo um som oco e alto. Chet entrou
correndo, caiu e rolou aos tropeços pelo chão, deixando a arma escapar da
mão.
“Merda”, gritou ele, apanhando de volta a arma enquanto se punha
novamente de pé, com certa dificuldade. Krampus agarrou-o e segurou-o.
“Ele está lá fora!”, gritou Chet, olhando para trás por cima do ombro,
contorcendo-se, em uma tentativa de soltar-se de Krampus. “Atirei nele.
Nós dois atiramos nele. Atirei bem no peito dele… na cabeça. Os tiros não
fizeram nada com ele! Porra nenhuma! Nem mesmo o deixaram mais
lento!”
“Vá, vá ficar junto dos outros”, disse Krampus, e o soltou. Jesse ficou
pasmado com a calma de Krampus. Chet foi correndo em direção aos
estábulos e deslizou por trás da coluna gigantesca ao lado de Jesse.
“Estamos fodidos, cara”, disse Chet, o peito subindo e descendo, com a
respiração dificultosa e rápida. “Aquela coisa… não tem como parar aquilo.
Aquilo é um monstro! Um monstro de verdade, um monstro de carne e
osso!”
Jesse percebeu que sua própria respiração estava ficando acelerada, viu-
se precisando desesperadamente de uma outra dose de hidromel. Ele ouviu
o som de passos de pés pequenos acima deles, e avistou algumas silhuetas
que pareciam ser de meninos correndo pelos arredores nas vigas acima.
“Merda”, disse ele, trocando a pistola pelo rifle. “Eles vão cair matando
em cima da gente!”
Mas nenhum fogo veio de cima, apenas os olhos ocasionalmente
espiando-os lá embaixo.
“Não estou gostando disso”, falou Jesse, ficando de olho neles. “Nem
um pouco.”
Alguma coisa voou pela porta, bateu no chão e saiu rolando pela terra
coberta de palha, vindo parar aos pés de Krampus. Era a cabeça do General,
com um corte limpo no pescoço, sem os olhos. Jesse ficou com a boca seca,
seu coração batia como um tambor em seu peito, ele esqueceu-se das
silhuetas acima, só conseguia ficar com o olhar fixo nas órbitas
ensanguentadas que costumavam ser os olhos do General.
“Puta merda!”, choramingou Chet.
“Krampus”, disse uma voz retumbante vinda de fora. “Chegou a sua
hora.”
Krampus sorriu, olhou de relance por cima do ombro.
“Fiquem onde estão. Fiquem de olho nas vigas. E não desperdicem
nenhuma bala com nosso querido e velho amigo, o Papai Noel.”
Jesse avistou uma forma escura aproximando-se das portas da
carruagem. Larga demais para passar pela lacuna, a criatura segurou nas
imensas portas e, sem esforço, empurrou-as e separou-as, até a extensão de
um braço. Era ele, não poderia restar nenhuma dúvida, o Papai Noel, Baldr.
Ele estava ali, em pé, iluminado pela luz trêmula das lamparinas, com uma
expressão de suprema confiança estampada em seu rosto. Não como a de
um homem vindo batalhar por sua vida, mas sim a de um homem vindo
para pisotear vermes. Ele estava tão longe da imagem do Papai Noel
rechonchudo e alegre dos anúncios vintage de Coca-Cola quanto Jesse
poderia imaginar. Jesse teve até mesmo dificuldades em fazer uma ligação
mental desse homem com aquele que ele vira correndo pela neve não fazia
muito tempo no estacionamento de trailers. Aquele homem parecia mais um
senhor viking. Com argolas douradas nas orelhas, seus cabelos brancos
presos em um coque, sua longa e trançada barba descendo pelo peito
desnudo e redondo. Ele trajava uma calça de couro vermelha, com meias
compridas e sapatos com pontas curvadas, adornados com grandes fivelas
de latão; usava espessas manoplas de couro e um largo cinto com argolas de
latão encravadas por cima do pelo branco. Era muito mais baixo do que
Krampus, só que musculoso, corpulento, forte como um touro, com
músculos densos no pescoço, nos pulsos e nos tornozelos, com mãos e
antebraços que pareciam capazes de rasgar ao meio com facilidade livros
bem grossos. Ele segurava uma espada de lâmina larga, e sangue escorria de
sua lâmina longa e larga. Jesse podia ver as queimaduras cheias de fumaça
causadas pelos tiros das armas de fogo no homem, mas não viu nenhum
sinal de ferimento. O Papai Noel fechou as portas atrás de si, puxou a barra
deslizante para seu lugar, barrando a todos eles ali dentro. Ele balançou a
cabeça, com a expressão de um homem que tinha uma tarefa desgostosa
pela frente.
“Krampus, você tornou-se muito cansativo.”
DILLARD GIROU a tranca e abriu a porta do porão. Linda estava sentada no
meio da escadaria, de costas para ele, com Abigail dormindo em seus
braços. Seu lábio estava inchado e um machucado feio formava-se ao longo
da bochecha dela. Ele tentou não olhar para aquilo, tentou fingir que o
ferimento não estava lá. Ele soltou um suspiro profundo.
“Que tal darmos uma outra chance para nós? O que você me diz?”
Ela não respondeu, apenas, devagar, pôs-se de pé, embalando Abigail,
que acordou, viu Dillard e pressionou o rosto no peito da mãe. Linda subiu
os degraus marchando e tentou passar por ele, empurrando-o.
Dillard nem se mexeu.
“Sai da minha frente!”, disse ela, sibilando.
“Eu acho que seria bom se conversássemos.”
Ela pressionou as costas na parede, recusando-se a olhar para ele.
Dillard podia ver que ela tremia, lutando para se controlar.
“Preciso que você entenda que fiz o que fiz porque tinha que… proteger
você, proteger sua filhinha. Jesse, bem, ele é quem está todo fodido. O que
aconteceu com ele, ele fez por merecer. Ele passou dos limites com o
General. Isso já está feito e já acabou… não tem nada que você, nem eu,
nem ninguém que não seja Jesus possa fazer por Jesse agora. Está na hora
de pensar no que é melhor para você e Abigail.”
Ele esticou a mão e fez carinho nos cabelos de Abigail.
“Linda, você precisa entender que o único motivo pelo qual sua filhinha
está aqui em segurança, é por minha causa. O General, bem, ele tinha outros
planos, ele queria usá-la para fazer com que Jesse pagasse pelo que ele fez,
e não foi fácil convencê-lo do contrário.”
Linda olhou com ódio para ele. Dillard viu o fogo nos olhos dela e
piscou.
“Isso que você fez”, disse ela, “equivale a assassinato. Não seria
diferente se você mesmo tivesse feito isso.”
Dillard cerrou os dentes, lutando para conter o calor que aumentava em
seu peito.
“Eu preciso deixar uma coisa clara para você… algo claríssimo. O
General… ele fica perigoso quando acha que alguém poderia tagarelar por
aí sobre os negócios dele. E se você enfiasse na cabeça a ideia de falar
sobre o que aconteceu com o Jesse, uma única palavra que fosse, não
haveria nadinha que eu pudesse fazer para manter você e Abigail em
segurança. E, depois do que você disse na frente do Chet e do Ash sobre o
xerife, eles vão ficar de olho em você, você pode contar com isso, Linda.”
Linda ficou com o olhar fixo na parede, balançando a cabeça.
“Pelo amor de Deus, Linda! Você não consegue ver que eu estou
fazendo o meu melhor para manter vocês duas a salvo, caramba? Será que
não consegue tentar entender isso?”
Dillard ficou esperando por uma resposta, algum sinal de que nem tudo
estava perdido, mas Linda continuou fitando a parede, como se ele não
estivesse ali.
“Por que você está tornando isso tão difícil?”, perguntou ele.
“Sério? Você está tirando uma com a minha cara, não?” O veneno na
voz dela o surpreendeu.
Dillard forçou-se a olhar para o lábio inchado dela. Por que é que
comigo as coisas sempre têm que seguir esse caminho?
“Eu… sinto muito”, disse ele. “Sinto muito por ter perdido a calma.
Sinto muito mesmo. Eu faria qualquer coisa que pudesse para me desculpar
por isso. Estou falando sério, Linda. As coisas saíram do controle… Isso
nunca mais vai acontecer de novo. Eu juro. Juro por Deus.”
O lábio de Linda começou a tremer e ela limpou os olhos.
Dillard achou que talvez uma parte dela entendesse. Ele nutria
esperanças de que uma parte dela entendesse…
“Você tem todo o direito de me odiar agora mesmo, mas espero que não
seja assim. Tenho esperanças de que talvez, depois de um tempinho, você
venha a me perdoar. Tudo que eu peço é que você tente se lembrar de que
tomei as minhas decisões, certas ou erradas, por você, baby.”
Ele deu a ela mais um outro minuto, na esperança de que Linda fosse
dizer alguma coisa. O que ela não fez.
“Escuta”, disse ele. “Como quer que você possa estar se sentindo em
relação a mim, eu ainda preciso que você fique por aqui alguns dias… até
que a poeira com o General abaixe um pouco. Isso vai me dar um tempinho
para convencê-lo de que você entende como as coisas funcionam. Se você
quiser me largar depois disso… bem… eu não vou ficar no seu caminho.
Mas, Linda… espero que você não me largue. Ainda tenho esperanças de
que possamos construir uma vida juntos.”
O rosto de Linda estava pétreo; Dillard não viu nada através dele, nos
olhos dela… nada.
Ellen estivera com aquele mesmo olhar, como se uma parte dela tivesse
sido desligada, morta. Ele não conseguia aguentar isso mais nem um
minuto, temendo que fosse começar a surtar.
“Tenho que sair. Não vou longe. Se você vir algum dos Boggs passando
de carro por aqui, ligue para mim imediatamente.”
Dillard deixou as duas, Linda e Abigail, na escada, vestindo seu casaco.
Ele deu um tapinha no bolso, certificando-se de que as chaves de Linda
ainda estavam ali, e dirigiu-se porta afora.

“POR QUE você veio até aqui?”, perguntou o Papai Noel, com a voz grave e
baixa.
“Você sabe muito bem qual é a resposta à sua pergunta, meu bom e
velho amigo”, disse Krampus, balançando o rabo para a frente e para trás,
como se fosse um gato caçando.
“Você poderia ter se perdido na floresta. Poderia ter levado sua
existência por lá.” Papai Noel falava baixinho, mas suas palavras
reverberavam no ar. “Em vez disso, você tem que ser um incômodo… tem
que me forçar a agir. Fazer com que eu o mate quando não tenho nenhum
desejo de fazer isso.”
“Me matar? Isso soa um pouco presunçoso. Você não concorda?”
O Papai Noel balançou a cabeça em negativa.
“Por que é que o sangue de Loki só conhece a vilania? Eu mostrei a
caridade a você, tentei lhe mostrar a verdade, tentei salvá-lo de si mesmo.
Eu lhe dei todas as chances.”
“Ficar acorrentado debaixo da terra não parecia algo muito caridoso
para mim.”
“A piedade me deixou fraco. Vejo agora que eu deveria ter matado você
e posto um fim a seu sofrimento. Mas, veja bem, passei uma era na prisão
da sua mãe. Aquele tempo em Hel me proveu a oportunidade de entender
melhor a mim mesmo, de meditar sobre as consequências das minhas
escolhas. Minhas esperanças eram que a solidão desse a você aquela mesma
oportunidade. Uma chance de ver além de si, pelo menos uma vez que
fosse.”
“De sua boca sai tanta merda quanto do cu de um porco. Você não se
encontrou em Hel, você estava perdido. Fui eu que tentei salvar você, fui eu
que trouxe você para meu próprio lar, que tentei dar propósito a você, curar
as grandes feridas em seu coração. A verdade é que você me acorrentou
naquele poço por um único motivo, na esperança de que eu fosse ser
esquecido e esvanecer, esperando também que o espírito do Yule fosse
esvanecer comigo.”
O Papai Noel deu de ombros.
“O Yule está morto. Ficou no passado. Os homens precisam de um
caminho para a iluminação, para libertar-se de preocupações terrenas
triviais, para ver além das limitações da carne e do sangue. A vida é
transitória, mas a vida após morte é eterna. Eu não vejo nenhum chamado
mais importante do que ajudar a iluminar este caminho. Eu ofereci a você
uma chance de presenciar isso.”
“Você venera a morte. Você e todos os Deuses Únicos. Eles seduzem a
humanidade com suas promessas de glória obtida na vida após a morte,
assim deixando os homens cegos para o esplendor diante deles aqui na
Terra. Não se pode esperar a obtenção de iluminação, a menos que viva
plenamente a vida.”
“Suas palavras servem apenas como prova de que não há mais lugar
para você na terra de Deus.”
“A Terra não pertence a nenhum deus! A Mãe Terra é deus! Você
esqueceu tudo? Você finge não ver que ela está morrendo debaixo dos seus
pés? Ou não se importa com isso? Ela precisa renascer, precisa que o
espírito do Yule a cure! Você fala de iluminar os homens, mas não haveria
nenhum homem sem ela, a Mãe Terra!”
“Sua besta tola, a Terra não passa de uma rocha no espaço.” O Papai
Noel balançou a cabeça. “O mundo seguiu em frente e deixou você para
trás. Você tornou-se nada além de uma relíquia patética de dias que
morreram há eras! O que eu tenho que fazer agora é um ato de misericórdia,
então não vamos prolongar isso. Estou com você aqui, não há fuga.
Ajoelhe-se perante mim e lhe concederei uma morte rápida.”
“Uma oferta muito graciosa e tentadora, para falar a verdade, essa sua”,
disse Krampus, e riu. “Mas acredito que você é quem deve se ajoelhar.”
“Isso é loucura, você sabe que não tem como causar mal a mim.”
Krampus deu risada. O Papai Noel franziu o cenho. Krampus podia ver
que seu júbilo irritava seu rival e riu ainda com mais gosto.
“Parece que os quinhentos anos passados naquele poço apodreceram sua
mente.”
Krampus deu uma risada de escárnio.
“Os quinhentos anos passados naquele poço deixaram todas as coisas
claras. Claras como a água da fonte em Asgard. Ou você esqueceu-se de
Asgard? Você esqueceu a face de sua mãe, de seu pai? Esqueceu seu
próprio nome? Bem, eu vim para ajudá-lo a lembrar.”
O Papai Noel apertou os lábios.
“Você tem sangue em suas mãos”, disse Krampus. “Quanto? Quantos
foram aqueles que você assassinou para curvar a vontade do saco de Loki a
sua própria vontade?”
“Eu me cansei de sua tagarelice”, disse o Papai Noel, e jogou-se para a
frente, levando a espada também para a frente consigo, girando-a no alto e
abaixo, com força, em um golpe que tinha o propósito de separar a cabeça
de Krampus de seus ombros. Krampus pulou para o lado, e o golpe que
mirava seu pescoço acertou a fundo a terra macia.
O Papai Noel pareceu surpreso com a agilidade de Krampus. Ele soltou
a lâmina, ergueu-a, pronto para atacar novamente.
Krampus não fez nenhum movimento para recuar; ele apontou a lança
para o Papai Noel.
“Está mais do que na hora de eu fazer com que você se lembre de quem
você é.”
Papai Noel balançou a cabeça, parecendo quase entediado.
“Por que você tem que fazer com que passemos por isso? Certamente
você sabe que seus esforços são fúteis, não? Salve um pouco de sua
dignidade.”
“Você tem muito a aprender”, disse Krampus, chiando. “Muito pelo que
responder. Estou aqui para garantir que você faça isso. Por Huginn e por
Muninn, por Geri e por Freki, por todos aqueles que você usou e jogou de
lado, por todos aqueles que você traiu, pelos que fez sangrar por suas
ambições. Mas, acima de tudo… por mim.”
Papai Noel fez um ataque, em um movimento arrebatador da lâmina.
Krampus desviou-se, abaixando-se sob a espada, ergueu-se quando o Papai
Noel passou com tudo por ele, em um rápido golpe, e escapou.
Papai Noel virou-se, preparado para se lançar outra vez na direção de
Krampus, mas ficou hesitante, parecia incerto, seu rosto contorcendo-se em
uma expressão que se aproximava da confusão. Ele abaixou a espada e
olhou para seu braço. Uma pequena linha vermelha corria logo abaixo de
seu ombro, ficando mais e mais espessa enquanto ele a encarava. Uma gota
carmesim formou-se e desceu deslizando por seu braço. O Papai Noel pôs a
mão no corte e olhou para o sangue em seus dedos.
“Que trapaça é essa?”
“Essa expressão na sua cara…”, disse Krampus. “Faz valer todos os
dias que passei debaixo da terra.”
O Papai Noel sentiu o gosto do sangue.
“Impossível.”
“Uma casa construída em cima de mentiras tem uma fundação fraca,
meu bom e velho amigo.”
Papai Noel olhou para ele, ainda não compreendendo a situação.
“Você não está vendo? Você mentiu para si mesmo por tanto tempo
assim que se esqueceu da verdade? Pense. Lembre.”
Krampus viu… a confusão dando lugar ao alarme.
“Sim, sim”, disse Krampus em tom de zombaria. “O Papai Noel pode
ser intocável, mas… Baldr… ele não é intocável.”
Krampus ergueu a ponta da lança para que a luz da lamparina captasse o
antigo metal e tremeluzisse no rosto do Papai Noel.
“Você pode enganar o mundo, você pode enganar a si mesmo, mas não
pode enganar isso daqui.”
Papai Noel apertou os olhos para olhar para a arma, com o cenho tenso.
“Como? Ela foi destruída. Odin ordenou que ela fosse destruída.”
“Ao que parece, ele não fez isso. Eu a encontrei no fundo do oceano, lá,
em meio a seus ossos. Em meio aos ossos de Baldr.”
Os olhos do Papai Noel ficaram arregalados, a confusão dando lugar à
traição e então, pela primeira vez na vida, Krampus viu o medo estampado
na face do Papai Noel, que recuou um passo e olhou de relance em direção
às grandes portas.
Krampus deu uma risada, riu alto e com gosto. “Quem? Quem está
aprisionado agora?” O Senhor do Yule ergueu-se completamente, inspirou
profundamente, sentiu seu coração bater como um tambor, com a doçura de
sua própria ira. Ele retraiu seus lábios pretos, expondo dentes longos e
afiados. Sua língua apareceu em sua boca, ele estalou o rabo para a frente e
para trás. Sua risada transformou-se em um rosnado enquanto ele pulava
para cima do homem de barba branca.
O Papai Noel parecia estar em estado de choque, um homem em águas
profundas que acabara de esquecer como nadar. Ele ergueu sua espada, mas
foi tarde demais; Krampus passou por sua guarda e acertou-o no braço, e o
corte não foi pequeno dessa vez, mas sim um talho profundo, cortando até o
osso.
O Papai Noel soltou um uivo, um som de afronta, de completa
incredulidade, e tropeçou de encontro ao corrimão da escada, esforçando-se
para manter sua espada na mão. Krampus afastou-se em um giro, quase
dançando.
“Como é doce o sabor da vingança! Muito, muito doce!”
O Papai Noel agarrou sua ferida com uma expressão horrorizada no
rosto por causa de todo o sangue que jorrava em meio a seus dedos.
Krampus pulava de um pé para o outro, saltitando na ponta dos pés,
sorrindo e dando risadinhas.
O Papai Noel manteve sua espada apontada para Krampus enquanto
recuava, seguindo em direção à porta dupla. Krampus foi atrás dele,
andando atrás dele em volta do aro, deixando que ele chegasse na porta.
Papai Noel lutou para manter sua guarda enquanto tentava soltar a tranca
com o braço machucado.
“Aonde você vai?”, perguntou Krampus.
Papai Noel molhou os lábios, o suor escorrendo em sua testa enquanto
arrastava a tranca alguns centímetros.
“Você é uma besta!”, gritou o Papai Noel. “Não passa de um demônio
inferior! E isso é tudo que você sempre vai ser!”
O Senhor do Yule soltou uma bufada e fingiu que ia atacar. O Papai
Noel deu um golpe selvagem com sua espada, mas sem mira, sem acertar
nada além de ar. Krampus foi rapidamente para a frente, atingindo o Papai
Noel no pulso e fazendo com que sua espada caísse de sua mão, na terra
que havia entre eles. Papai Noel fez que ia pegá-la quando Krampus acertou
sua coxa com a lança, com a lâmina mítica cortando com facilidade sua
calça e seus músculos, acertando seus ossos. Krampus puxou a lâmina,
soltando-a, e o Papai Noel caiu com um joelho no chão, aninhando sua
perna enquanto gritava entredentes.
Sangue escorria de seu antebraço, de seu pulso e do talho profundo em
sua perna, o sangue escorria no chão, tornando rubra a palha.
Krampus chutou a espada para longe e deu um passo para perto do
Papai Noel.
“Está na hora de você encarar a si mesmo.”
Todo o tom brincalhão deixou a voz de Krampus, que foi ficando sério.
Ele pressionou a ponta da lança no pescoço do Papai Noel.
“Qual é o seu nome?”
O Papai Noel fechou os olhos e começou a tremer.
“Qual é o seu nome?”
“Papai Noel”, ele resmungou.
Krampus chutou-o, acertando a lateral de seu corpo, plantou o pé no
pescoço dele e enfiou a lança em sua barriga.
“Não, seu nome não é Papai Noel, não é Kris Kringle, nem Pai Natal,
nem São Nicolau.” Ele pressionou a lâmina na carne do Papai Noel, uns
dois centímetros… uns cinco. O sangue formou uma pocinha debaixo da
ponta da lança. “Qual é seu verdadeiro nome?”
“Papai Noel!”, gritou ele. “Meu verdadeiro nome é Papai Noel!”
Krampus chutou-o com força no estômago.
“Não!”, gritou ele, não conseguindo esconder seu furor. “A farsa
acabou! Seu nome é Baldr, o filho que traiu o próprio pai e a própria mãe.
Aquele que traiu a todos os antigos. Reivindique seu verdadeiro título…
Baldr, o ladrão, Baldr, o mentiroso, Baldr, o traidor, Baldr, o assassino. Esse
é quem você é! Agora você vai reivindicar seu nome!”
Papai Noel abriu os olhos, encarou Krampus com ódio e uma firme
resolução no rosto.
“Não, eu não sou Baldr. Baldr e tudo o que era Baldr está morto. Eu sou
o Papai Noel. Eu sirvo a um deus de paz e amor.”
Krampus apertou os olhos ao olhar para ele.
“Você serve apenas a si mesmo. Um mundo de mentiras obviamente
planejado para esconder seus feitos perversos.”
“Quem quer que eu possa ter sido uma vez, aquela pessoa está morta,
foi deixada para trás. Fui renascido e encontrei minha redenção por meio da
compaixão e da caridade para com os outros.”
“Não!”, disse Krampus, cuspindo. “Não! Não! Não! Mas que raiva
suprema! Uma pessoa não perdoa a si mesma. Você não pode simplesmente
sair livre, livrar a si mesmo de sua culpa. O perdão pode vir apenas
daqueles a quem você causou mal. Somente eles podem absolvê-lo de seus
crimes. Talvez na vida após a morte, depois de eles terem arrancado a pele
de seus ossos mil vezes, então, e somente então, você pode implorar o
perdão deles. Agora, a menos que você reivindique seu nome, que implore
pelo meu perdão, eu enviarei você para eles aqui neste instante!”
“Eu sou o Papai Noel. Respondo somente a Deus.”
Krampus enfiou a lâmina no peito do Papai Noel, pressionando-a
devagar para baixo, em direção a seu coração.
“Clame seu nome!”
O Papai Noel segurou na lâmina, que cortou seus dedos.
“Seus esforços são em vão”, disse ele, ofegante. “O Papai Noel não
pode morrer… Ele vive para sempre.”
Krampus viu que Papai Noel acreditava nisso… acreditava nisso até sua
própria alma! Krampus odiava o consolo que isso parecia lhe dar.
“Isso é o que nós vamos ver”, disse Krampus com escárnio, empurrou
com força o peso da lâmina, sentiu as costelas dele estalarem e a carne ser
dilacerada e viu a espada afundando no peito do Papai Noel.
Os olhos do Papai Noel ficaram arregalados, e o sangue borbulhou de
seus lábios.
“Deus ficará furioso, não haverá… nenhum lugar… onde você possa se
esconder.”
O Papai Noel ficou imóvel, seus olhos, o tempo todo, voltados em
direção aos céus.
Krampus puxou e soltou a lâmina.
“Pronto. Pronto. Você está morto!”, disse ele, cuspindo. “E, dessa vez,
você vai permanecer morto!”
Ele ergueu a lâmina e abaixou-a com toda a sua força no pescoço do
Papai Noel, atacando-o repetidas vezes, muito sangue borrifando em seu
rosto a cada golpe. Ele o atacou até que a cabeça do Papai Noel saiu
rolando para longe de seu corpo. O Senhor do Yule cutucou e enfiou a lança
no crânio do Papai Noel, ergueu-a em direção ao céu e sacudiu-a.
“Onde está o seu grande deus agora? Onde está a ira dele? Nada! Pois
você não passa de uma monstruosa mentira!”

KRAMPUS JOGOU a cabeça do Papai Noel no quintal e ficou olhando enquanto


ela saía pulando pelo gramado, então ficou lá, parado, em pé na entrada, por
um bom tempo, analisando as estrelas.
Jesse manteve o olhar fixo no corpo e tentou aceitar o que tinha visto,
aquilo pelo que ele tinha passado, tudo isso, qualquer coisa disso, que
realmente poderia existir um Papai Noel e, que se esse fosse o caso, aquele
corpo sem cabeça que jazia na terra poderia ser ele. E se não for o Papai
Noel, e então? Ele sabia que deveria ficar chocado, horrorizado, mas só
sentia um entorpecimento desgostoso. Ele viu coisa demais, passou por
coisa demais, sabia em algum nível que, se analisasse as coisas bem a
fundo, teria que questionar sua própria sanidade e, por ora, tudo que ele
queria era se aguentar por tempo suficiente para passar por essa loucura e,
de alguma forma, voltar para Abigail.
Ele captou movimento nas vigas. Os membros do povo pequeno, que
Jesse presumia que fossem os duendes, haviam deixado seus esconderijos e
estavam espiando lá embaixo, horrorizados e sem acreditar no que estavam
vendo. Jesse olhou de relance a seu redor e deparou-se com Vernon, Isabel e
Chet, todos com a mesma expressão de extremo choque em seus rostos.
Makwa saiu da baia, foi andando até onde Krampus estava e apontou
para os duendes.
“E quanto a eles?”
Krampus voltou para o estábulo e chamou os duendes.
“Vocês estão livres. Voltem para casa, para as florestas, onde é o lugar
de vocês. Clamem por seu espírito de volta. Mas façam isso agora, pois
pretendo queimar este estábulo… e não deixar absolutamente nada em pé.”
O povo pequeno olhou de relance pelos arredores, inquietos, mas, um
por um, eles começaram a sair de fininho.
“Jesse”, chamou-o Krampus. “Abra as baias, liberte os animais. O
restante de vocês, movam aquelas alças ali, os barris, aquele carrinho,
qualquer coisa que pode pegar fogo, e as apoie na coluna central.”
Enquanto Jesse soltava a rena, Krampus foi descendo pela extensão do
estábulo, espiando dentro de cada baia, parando perto dos fundos. Ele abriu
um portão e deixou saírem duas cabras.
“Jesse, traga aqueles dois arneses aqui e me acompanhe.” Krampus
conduziu Jesse e as cabras para fora, até o trenó verde. Ele prendeu os
arneses nelas, falando com gentileza com elas enquanto as amarrava. Ele
guiou-as para bem longe das estruturas e prendeu-as a um banco perto de
um jardim.
Krampus voltou ao estábulo, olhou para a pilha de madeira e de feno,
pareceu estar satisfeito e então pegou o corpo do Papai Noel pela perna e o
arrastou até lá. Junto de Makwa, ele jogou o corpo para cima da pilha, como
se fosse mais um pedaço de madeira.
Krampus ergueu uma das lamparinas a óleo de seu poste e jogou-a em
cima da pilha. A lamparina estilhaçou-se, fazendo com que tanto a madeira
como o feno ficassem em chamas. O fogo crepitou e espalhou-se.
“Venham”, Krampus chamou-os e conduziu-os para fora. Eles cruzaram
o quintal, passaram por uma topiaria cheia de arbustos cortados de modo a
lembrar criaturas mitológicas e então cruzaram o jardim que cercava a casa
principal. Jesse ficou observando a rena mascando ruidosamente as fileiras
de flores. Krampus estava em pé, parado na frente de uma edificação com
apenas um andar, que percorria toda a extensão da casa principal. Haviam
duas estátuas de cavalos brancos empinando, uma de cada lado da entrada
da porta dupla. Krampus andou até a porta e a empurrou, destrancando-a,
então eles entraram.
O lugar parecia um tipo de armazém, com fileiras de prateleiras, todas
até o teto e cheias de pilhas de todos os mais diversos itens, na maioria
brinquedos, mas Jesse também notou que havia fileiras de sapatos de
crianças, casacos e outros artigos de roupas infantis, e até mesmo uma
fileira de muletas e suprimentos médicos básicos. Ele demorou um instante
para entender que, da primeira vez em que colocou a mão dentro do saco,
devia ser para aquele lugar que o saco se abrira. Ele estremeceu de pensar
no que poderia ter acontecido se tivesse sido pego e puxado para ali.
Krampus ignorou os brinquedos, caminhando ao longo da parede,
abrindo todas as portas com as quais se deparava. Jesse não fazia a mínima
ideia do que poderia estar procurando. Krampus abriu uma porta, fechou-a,
depois fez uma pausa e pareceu reconsiderar. Ele voltou atrás, abriu a porta
novamente e entrou, saindo um instante depois com um punhado de roupas
coloridas. Ele jogou-as no chão e então trouxe mais para fora. Camisas,
calças, casacos, botas, todos eles feitos dos mais finos couros e tecidos, com
tons intensos de esmeralda, ocres dourados e vermelhos de um tom de
carmesim escuro.
“Tirem seus trapos sujos e vistam essas roupas vistosas. Aqueles que
servem ao Senhor do Yule não mais devem esconder-se nas sombras.”
Os shawnees não estavam nem um pouco interessados nas roupas, mas
Isabel parecia estar em deleite. Ela começou a olhar para a pilha de roupas
com um óbvio ânimo, admirando uma peça depois da outra, segurando os
luxuosos tecidos junto à sua estrutura física pequena, para ver se lhe
serviriam. Jesse achava que deveria ter sido difícil para ela passar os
últimos quarenta anos usando nada que não fosse calças e casacos que
ficavam largos e não caíam bem nela.
Alguns dos itens pareciam ser roupas de trabalho surradas, mas a
maioria era extravagante e ornamentada, luxuosos veludos e cotelês, que
lembravam a Jesse roupas de filmes, aquele tipo de coisa que se usava lá
pelos idos dos anos de 1600 ou 1700, ou em qualquer que fosse o século em
que os homens costumavam ficar pulando por aí em frufrus e usando
perucas empoadas.
Vernon parecia feliz em rasgar aos pedaços seu casaco esfarrapado e sua
calça imunda, e não teve nenhum problema para encontrar substitutos
adequados para sua compleição física pequena.
Jesse tinha perdido suas botas e seu casaco na oficina do General, e sua
camisa e sua calça estavam esfarrapadas e cobertas de sangue seco. Ele não
estava muito certo quanto à seleção das peças, mas, a essa altura, quase
qualquer coisa serviria. Logo ele percebeu que a maioria dos itens era
pequena demais, talvez do tamanho de crianças ou de duendes, mas acabou
conseguindo encontrar uma camisa e uma calça de couro presa com laços
nas panturrilhas, e vestiu-os rapidamente. Procurou em meio aos sapatos até
que encontrou um par de botas que lhe serviam, que vinham quase até seu
joelho, mas ele não estava nem aí para isso, só era bom ter alguma coisa nos
pés de novo. O único casaco que conseguiu encontrar que lhe servia tinha
uma longa cauda e um colarinho alto de veludo, da cor de ouro queimado e
com botões de cobre subindo pela lapela e seguindo ao longo dos punhos
grandes demais.
“Oh”, disse Isabel. “Isso é muito romântico.”
Jesse soltou um grunhido.
“Não, na verdade, não é não. Você está elegante.”
Chet soltou risadinhas de escárnio.
“Você parece uma bicha.”
“Chet”, disse Jesse. “Você tem um jeito com as pessoas… como se fosse
uma porra de um tumor na pele delas!”
Isabel acabou vestindo um chique casaco longo de veludo na cor
turquesa, o tipo de coisa que um pirata talvez usasse. Jesse sentia que o
gorro de panda dela dava ao conjunto o último e necessário toque de
loucura.
Krampus pegou um casaco amassado de veludo na cor lavanda, com um
adorno espiralado na cor dourada, algo que ficaria perfeitamente adequado
em qualquer membro de uma banda de glam rock.
“Este aqui é simplesmente esplêndido”, disse ele, e o ergueu,
mostrando-o a Makwa. “Você não concorda?”
Makwa cruzou os braços sobre o peito e olhou para o outro lado.
Krampus o empurrou na direção dos irmãos e eles dois recuaram como se
estivessem fugindo de uma cobra. Chet deu risadinhas de escárnio e
Krampus fixou o olhar nele, estirando o casaco cor de lavanda para ele.
Chet balançou a cabeça em negativa.
“Ah, que diabos, não! Eu não vou vestir isso daí!”
“Vista. Isso é uma ordem.”
“Cacete”, disse Chet, e fez o que lhe foi mandado, com uma expressão
no rosto como se alguém o tivesse mandado comer bolas de naftalina.
Jesse soltou uma bufada e Chet o encarou.
“Diga alguma coisa, seu merdinha”, disse Chet, rosnando. “Vá, diga. Eu
quebro a porra da sua cara. Você vai ver se não quebro.”
Jesse soprou um beijo para ele. Chet curvou o lábio e começou a ir na
direção de Jesse, com o olhar assassino.
“Pare”, ordenou-lhe Krampus. “Aqui não é lugar para isso.”
Chet parou, olhando com ódio para Jesse.
Jesse mostrou o dedo do meio para ele e abriu um sorriso largo. O rosto
de Chet ficou vermelho, parecendo que ia explodir.
Krampus encontrou uma fita vermelha, prendeu seus longos cabelos
para longe de seus olhos e analisou seus Belsnickels. Ele assentiu e sorriu.
“Sim, elegantes, bonitos… como servos do Senhor do Yule deveriam
ser.”
Para Jesse, era difícil pensar em como eles poderiam estar mais
ridículos.
Krampus continuou descendo pelo prédio até que eles chegaram a uma
passagem em arco com uma porta de ferro sólido. Krampus torceu a
maçaneta da porta e deu um empurrãozinho nela. A pesada porta deslizou
para dentro, revelando um curto corredor que dava para a escuridão.
“Pegue-me um lamparina”, disse Krampus.
Isabel passou por ele, empurrando-o, apertou um interruptor na parede e
o corredor além deles encheu-se de luz. Ela sorriu para Krampus.
“Algumas coisas realmente mudaram para melhor.”
Krampus examinou o interruptor, ligou-o e desligou-o algumas vezes.
“Talvez.”
O curto corredor abria-se para uma grande sala oval com um teto com
vigas de catedral. Eles entraram. Jesse olhou de relance ao redor e no
mesmo instante pensou no laboratório de um cientista, no tipo de lugar onde
o Doutor Frankenstein poderia estar prestes a trazer os mortos de volta à
vida.
Krampus continuou andando, passando pelas fileiras de mesas de
madeira, passando por béqueres e frascos cheios de líquidos iridescentes,
passando por altas prateleiras de jarros contendo todos os tipos de criaturas
secas: sapos, lagartos, cobras, lulas, besouros de cores metálicas; jarro atrás
de jarro de pós, folhas, ervas, raízes e cogumelos. O Senhor do Yule puxava
os pelos de seu queixo enquanto espiava dentro das pias e bandejas,
enquanto folheava livros, cutucava, punçava, cheirava e sentia o gosto das
coisas, indo de uma estação à próxima. Ele mexeu com o dedo por uma
travessa de cristais em floração, tirou alguns dos espécimes maiores e
ergueu-os na direção da luz.
“Alquimia.” Krampus parecia impressionado. “Diamantes, rubis,
safiras. Todos da mais alta qualidade. Alguém descobriu muitos dos antigos
segredos.”
Krampus deixou as gemas caírem de volta na bandeja e seguiu em
frente, perdendo-se em um livro esfarrapado de símbolos e runas
garatujados à mão, deixando os Belsnickels por ali, parados, em pé,
boquiabertos como crianças em uma loja de curiosidades. Jesse espiou
dentro das órbitas ocas do que parecia ser o crânio de um babuíno pintado
de vermelho e cheio de pregos. Jesse concluiu que o alegre São Nicolau não
era exatamente a pessoa que ele sempre acreditou que fosse.
Chet andou até a bandeja que continha gemas, pegou um punhado delas
e enfiou-as sorrateiramente dentro do bolso de seu casaco. Jesse estava
prestes a fazer o mesmo quando Isabel o cutucou e disse:
“Se eu fosse você, não faria isso.”
“O quê? Por que não?”
“Podem ser venenosas.”
Jesse olhou com atenção para as gemas empoeiradas, mordeu o lábio e
começou a pegar algumas mesmo assim, quando Krampus fechou o livro
com um baque alto. Jesse deu um pulo e tirou a mão da bandeja.
“Aqui, olhem aqui”, disse Krampus, conduzindo-os até uma prateleira
alta. O Senhor do Yule ergueu um saco de algodão quase do tamanho de um
fardo de açúcar, soltou seu cordão e tirou dali um punhado de areia marrom,
deixando que os finos grãos escorressem por seus dedos e de volta para
dentro do saco.
“Areia de fazer dormir. Baldr usava isso para impedir que pais
enxeridos e crianças endiabradas interferissem nos afazeres dele.” Ele
fechou novamente o saco com o cordão, puxou um segundo saco da
prateleira e entregou ambos a Vernon. “Carregue estes sacos aqui.
Certifique-se de não colocá-los nem um pouco perto de seu rosto, ou você
pode acabar caindo em uma longa soneca.”
Vernon parecia até mesmo menos satisfeito do que de costume.
“E aqui, olhem aqui. Estão vendo isso?” Krampus puxou um chaveiro
de um gancho. Seis chaves de tamanhos e formatos diferentes pendiam do
aro. “Chaves-mestras”, disse Krampus, com deleite. “Elas são capazes de
abrir quase todas as trancas e fechaduras. Eram minhas, um presente de
Loki. Elas são minhas novamente.” Ele olhou com mais atenção.
“Interessante.” Ele examinou os designs menores e com aparência mais
moderna. “Há três chaves novas aqui. Jesse, venha cá.”
Jesse fez o que ele mandou.
“Você será meu portador de chaves.” O Senhor do Yule deslizou as
chaves para dentro do bolso do casaco de Jesse e depois deu um tapinha
nelas. “Parece que o velho São Nicolau não estava descendo por chaminé
nenhuma no fim das contas…”
Krampus parou. A expressão em seu rosto ficou austera. Ele foi
andando até uma mesa sobre a qual havia um crânio de bode, com os
chifres cortados em sua base. Os chifres e o que deveriam ser os ossos, a
pele e os cascos do bode estavam empilhados ao lado do crânio, todos
limpos e secos. Ao lado deles estava um dispositivo com uma grande
manivela, que lembrava a Jesse um moedor de carne. Krampus girou a
manivela e pedaços de matéria cinza finamente moídas caíram da parte
inferior do moedor na tigela que recebia o que fosse moído. Ele apertou o
pó moído entre os dedos e levou-os ao nariz.
“Isso é magia maléfica”, disse Krampus, rosnando, com uma expressão
séria no rosto. “Estes ossos são de um bode do Yule. Tão poucos deles
restam e agora nós temos um a menos, não passando, para o querido Papai
Noel, de ingredientes para as poções dele. Os bodes do Yule eram animais
dos deuses e voavam por sua própria magia. Ele os assassinou atrás dessa
magia. Tenho minhas suspeitas de que aquela exibição extravagante de
renas voadoras dele venha disso daqui.”
Krampus apanhou e ergueu um grande frasco e o arrastou pelo
aposento, batendo na parede de jarros, alarmando a todos.
“Não é o bastante que ele tenha roubado minhas tradições!”, ele gritou.
“Que as tenha distorcido para seus próprios propósitos egoístas. Agora
você deturpa a própria vida em si, assassina a alma do próprio Yule para a
sua glória particular!” Ele baixou o tom de voz, que ficou pouco mais alta
do que um sussurro. “Há tão pouca e preciosa magia restante no mundo…
tão pouca. Por que devem custar tanto as suas ambições?”
Ele pegou um outro frasco e jogou-o em cima do primeiro, depois outro,
então mais um.
“Sangue, ossos e morte… esta é a verdade por trás da magia do Natal do
Papai Noel!” Os jarros bateram no chão, estilhaçaram-se, seus ingredientes
espalhados e misturados, chiando e borbulhando. Chamas surgiram,
aumentando e espalhando-se, fumaças e odores venenosos de gás colorido
começaram a espiralar para cima, em direção às vigas.
“Eu me cansei da depravação dele… o mundo já era!”, gritou Krampus
e conduziu-os para fora do aposento, descendo pelas longas fileiras de
brinquedos e voltando para fora, para a noite. “Nem tudo está perdido.
Ainda dá tempo de desfazer esse imenso dano. Está na hora de eu trazer de
volta o Yuletide, de espalhar sua magia e curar a Mãe Terra!” Ele abriu um
largo sorriso, os dentes dispostos em uma careta, os olhos em chamas. “Está
na hora de ajudar a humanidade a encontrar seu espírito e lembrar-se de
onde veio. O Yuletide haverá de reinar uma vez mais e eu… eu, o Senhor
do Yule, conduzirei o caminho.”
Eles cruzaram o jardim e entraram no quintal, voltando até onde os dois
bodes do Yule estavam presos. Os estábulos agora estavam completamente
engolfados pelo fogo. Chamas gigantescas saltavam em direção ao céu,
banhando todo o complexo em um brilho cor de laranja. Eles ficaram lá,
parados, observando as cinzas girarem e dançarem ao redor deles.
“Besta! Você haverá de arder no inferno!”, disse alguém, em um grito
pungente vindo de trás deles.
Jesse ficou alarmado e virou-se em um giro. Todos fizeram o mesmo, e
depararam-se com seis mulheres paradas em cima do amplo arco que dava
para o jardim das topiarias. Cinco delas estavam vestidas com ondulantes
vestidos brancos, mulheres jovens, robustas, com cabelos longos e silhuetas
cheias de curvas. Elas olhavam para as chamas com lágrimas escorrendo
por suas faces. A sexta não estava chorando. Ela estava em pé, parada, na
frente das outras, magérrima, com o rosto endurecido e a boca retraída. Era
impossível saber qual seria a idade dela, mas havia algo em seus olhos que
deixavam claro que era mais velha, muito mais velha. Ela trajava um
vestido bem longo de um carmesim escuro, adornado com cobras
espiraladas douradas, e seus cabelos ondulados e brancos fluíam, passando
de seus quadris, erguendo-se em ondas a seu redor.
“E quem poderia ser aquela?”, quis saber Vernon.
Isabel deu de ombros.
“Talvez seja a esposa dele, não?”, disse Jesse. “Sabe, a Senhora
Noel…”
E se fosse mesmo ela, Jesse achava que estava bem longe da doce
imagem de vovó que ele sempre imaginara. Esta mulher parecia que ia
cortar o fígado de alguém e comê-lo cru.
“E quanto a elas?” Vernon fez um gesto, apontando as garotas. “Acha
que aquelas são as filhas dele?”
“Filhas!?” Krampus deu uma risada de escárnio. “Todas elas são
esposas dele. Baldr era um homem de grandes apetites.”
“Esposas?”, disse Vernon, maravilhado.
As mulheres robustas apontaram para Krampus e começaram a
lamuriar-se, o volume de seus lamentos aumentando a ponto de virar
gemidos estridentes, gritando em línguas, do jeito como Jesse tinha ouvido
as mulheres pentecostais fazerem. Só que ele sabia que naquele caso não se
tratavam de preces, mas sim de pragas.
Krampus puxou o chicote do trenó e sorriu, deixando os dentes à
mostra.
“Faz muito, muito tempo mesmo, desde que eu tive o prazer de
espancar uns poucos traseiros travessos.” Ele estalou o chicote e deu um
passo na direção delas. Os gritos estridentes deram lugar a soluços e choros
histéricos, e as meninas recuaram, mas a mulher nem se mexeu. Krampus
deu mais um passo e estalou o chicote de novo. Ainda assim, a mulher de
cabelos brancos continuou onde estava. Ela ergueu um dedo acusador.
“Besta, você se atreve a macular esse solo com sua imundície? Trazer
assassinato a essa casa? O Papai Noel é o amado filho dos deuses. Estimado
por sua graça e por seu altruísmo, um nobre cavaleiro de caridade, um
celebrado adepto de…”
“Bobagens.”
“É verdade!”, ela gritou. “Você viu o armazém dele, não apenas
brinquedos, mas também sapatos, roupas, coisas de necessidade básica para
aqueles que não as têm. Ele trabalhava todos os dias até tarde para fazer do
Natal mais do que apenas um festival, e sim um tempo mágico de
esperança. Ele viajava pelo globo espalhando caridade, no desejo de que
seu exemplo fosse inspirar as pessoas a serem bondosas umas com as
outras, de que sua bondade fosse espalhar-se, de que fosse elevar suas
almas.”
Ela pareceu ficar mais alta. Jesse percebeu que ela estava flutuando,
olhando para baixo, para eles, com olhos ardentes. Os desenhos de cobras
no vestido dela ganharam vida, começaram a sibilar, girando em volta dela,
estalando para cima deles com suas presas gotejantes. Jesse recuou um
passo.
“O Papai Noel espalha a esperança”, ela sibilou, sua voz era a mesma
das cobras, ecoando nos arredores; o próprio ar parecia vivo, resfriando a
pele de Jesse. “O que você traz, demônio? Você chafurda em carne e
devassidão, demanda tributos e sacrifícios em seu nome. Morte e sangue
são tudo o que você conhece!”
Krampus estalou o chicote, acertando a bochecha dela.
“Chega do seu engodo!”
Jesse piscou e as cobras não passavam de desenhos no vestido dela mais
uma vez; a mulher estava firme no chão, segurando sua bochecha com a
mão.
“Vi o bastante da caridade dele nesta noite”, resmungou Krampus. “Há
bastante sangue e assassinato no laboratório dele. Ou você finge que não vê
isso?”
Os olhos dela ardiam.
“Tudo vem com um custo, como você em breve haverá de descobrir.
Deus não haverá de ficar sentado e permitir que tamanho feito maléfico
fique impune.”
Krampus deu uma risada.
“Baldr está morto. Este é o fim disso tudo.”
“Ele já morreu antes.” O júbilo deixou a face de Krampus. “Ele é o
servo escolhido de Deus.” Ela deu um passo à frente, seu dedo e seu braço
inteiro tremendo em sua ira. “O Senhor enviará as Valquírias e o Papai Noel
haverá de erguer-se novamente antes da manhã. E”, gritou ela, “juntos eles
haverão de caçar e matar você, sua besta!”
Agora foi Krampus que recuou e, pela primeira vez desde que Jesse
podia se lembrar, o Senhor do Yule parecia sentir incerteza quanto a alguma
coisa.
A mulher deu um giro e saiu tempestuosamente, e as meninas seguiram
seu rastro.
Krampus fixou os olhos nela até que ela desapareceu de vista.
“Este lugar está repleto de perversidade.”
O armazém queimava, com as chamas espalhando-se em direção à casa
principal. Jesse e os outros Belsnickels deram tapinhas nas roupas e nos
cabelos para se livrarem das brasas que choviam em cima deles. Krampus
parecia estar em transe.
“Nós devíamos ir embora”, disse Isabel, em um tom de urgência. “Você
não acha?” Ela pôs a mão no braço de Krampus.
“Sim”, disse Krampus. “Só uma última coisa.” Ele saiu andando
rapidamente, entrou no quintal e pegou algo do chão. Krampus voltou,
carregando a cabeça do Papai Noel em uma das mãos e a lança na outra.
“Ele nunca haverá de retornar enquanto eu tiver a posse disso daqui.” Ele
deslizou a lança para dentro de sua bainha e colocou a cabeça em cima da
lâmina.
“Subam”, disse Krampus, e eles seguiram sua ordem, todos eles
espremendo-se para dentro do pequeno trenó. Krampus subiu no banco da
frente, ficou em pé um instante mais longo, analisando as chamas e a
destruição. “É bom ser terrível”, disse ele, e deu um tapinha na cabeça do
Papai Noel.
“Avante Tanngnost! Avante, Tanngrisni!”, gritou Krampus, e os bodes
puxaram o trenó para a frente, passo a passo, e, de repente, Jesse deu-se
conta de que eles estavam subindo em direção ao céu. Ele agarrou-se à
grade do trenó com força enquanto este se erguia acima das chamas. Eles
circularam o inferno uma vez e, em seguida, foram em direção ao oceano,
com o vento fazendo trepidar o pequeno transporte enquanto os bodes do
Yule ganhavam velocidade. Eles deslizavam ao longo das ondas, em
direção ao oeste, com o brilhante luar reluzindo nas ondas espumantes
abaixo.
“É Yuletide!”, berrou Krampus. “Está na hora de o mundo celebrar o
retorno do Senhor do Yule!”
Ele levou a cabeça para trás e riu enquanto eles seguiam pela noite,
cruzando o Atlântico.
Eles foram saudados com as boas-vindas de Geri na porta. Se um lobo
fosse capaz de sorrir, Jesse tinha certeza de que aquele estaria sorrindo
naquele momento. Krampus deu um pulo para fora do trenó, deu outro pulo
para perto do animal e pegou o lobo em um abraço de urso.
“Feliz Yuletide!”, gritou Krampus, e entrou dançando na igreja. Ele
pegou e ergueu o saco e girou em um círculo. “Lá vamos nós! Lá vamos
nós!”
“O quê? Aonde?”, perguntou Vernon, colocando no chão os dois sacos
de areia do sono. “Hoje à noite? Não é possível que você esteja falando
desta noite. Além do mais, o Natal acabou.”
“Nós não estamos celebrando o Natal, seu tolo!”, gritou Krampus. “O
Natal está morto! Estamos celebrando o Yule. O Yuletide dura várias
semanas e, neste ano, vai durar o quanto eu julgar necessário para espalhar
minha palavra.”
Os shawnees olharam animados de relance um para o outro, mas Vernon
soltou um gemido e caiu em um dos bancos.
“Estou cansado e com fome.”
Krampus cuspiu, dispensando o que ele dissera.
“Esta é uma estação festiva, haverá muita comida. Agora, vamos lá.
Pegue a areia de fazer dormir, coloque um punhado dela em bolsinhas e as
traga conosco.”
“Bolsinhas?”, lamuriou-se Vernon. “Onde é que vou arrumar
bolsinhas?”
Wipi sacou sua faca e começou a cortar uma das cortinas. Ele cortou
três pedaços, dobrou-os e usou parte dos cordões das cortinas para prendê-
los. Dentro de poucos minutos, ele tinha feito três bolsinhas, e entregou-as a
Vernon.
“Oh, não fique assim tão metido, caramba”, disse Vernon, pegando os
saquinhos das mãos dele.
Isabel dirigiu-se até o lobo ferido, Freki. Havia uns poucos e bem
mascados ossos de vaca perto de sua cama improvisada com cobertas. Freki
conseguiu ficar de pé e deu a ela as boas-vindas, levantando-se meio
tremendo, enquanto Isabel despenteava sua grande crina. Ela parecia tão
minúscula perante a grande fera que podia facilmente arrancar fora a cabeça
dela com uma mordida só. O animal fazia carinho nos cabelos dela com o
focinho enquanto ela despejava mais hidromel em sua tigela.
“Certo, certo, já chega de demora, vamos.” Krampus parecia uma
criança desejando abrir seus presentes de aniversário. “Vamos agora.
Saindo… todos vocês!” Eles dirigiram-se até a porta. “Esperem!” Ele olhou
para eles, franzindo o cenho, apanhou uma lança com Makwa, o revólver
com Chet e jogou-os dentro da caixa de papelão junto do dinheiro. “Além
das suas facas, não deverá haver nenhuma arma, não em uma jornada do
Yule.” Os shawnees não pareciam nem um pouco satisfeitos com isso, mas
todos os Belsnickels deixaram suas armas caírem dentro da caixa.
Eles acompanharam Krampus para fora, onde o Senhor do Yule
encontrou uma árvore de bétula e começou a tirar dela vários ramos longos
e finos, até que tinha um bocado deles. Ele puxou a fita de cetim de seus
cabelos e atou os galhinhos juntos. Ele agitou-os no ar, emitindo um som
sibilante, e parecia satisfeito com o assovio, dando um tapa de leve com
eles no traseiro de Isabel.
“Ei”, ela gritou. “Pode ir parando com isso!”
Krampus deu uma risada.
“Isso haverá de servir. Vai servir muito bem.”
O Senhor do Yule assumiu seu lugar na frente do trenó, com Isabel no
banco ao lado dele, segurando o saco e as palmatórias, e Jesse ao lado dela.
Vernon, Chet e os três shawnees espremeram-se dentro do compartimento
na traseira do trenó.
Krampus ergueu as rédeas, ficou hesitante, com os olhos fixos na
cabeça ensanguentada do Papai Noel em cima da lança.
“Você foi um menino muito sapeca. Você não vem conosco.” Ele pegou
a cabeça pelos cabelos e atirou-a longe. A cabeça foi rolando pela neve e
bateu na calha caída, ficando lá, com a bochecha voltada para o chão, seus
olhos mortos encarando-os de volta.
“Avante”, disse Krampus, e estalou as rédeas. Os bodes saltaram para a
frente, subindo acima dos topos das árvores e entrando no claro céu
noturno. Eles seguiram pelo vale ao norte, em direção a um conjunto de
luzes, dirigindo-se a Goodhope.
Com a luz dos faróis, Jesse podia ver alguns trailers e as casas não tão
ao longe. Jesse pensou em Abigail e em Linda, que estariam em algum
lugar lá embaixo. Ele tinha perdido toda a noção de tempo e se perguntava
se elas ainda estariam acordadas, se tudo estaria bem. Ele queria ir até elas
agora, ansiava por vê-las de novo, mas sabia que não havia chance de isso
acontecer, não nesta noite, não enquanto Krampus estivesse nesse estado.

KRAMPUS DESCEU com o trenó até que eles estivessem raspando na linha das
árvores. Ele deparou-se com uma rua sem saída nos limites da cidade, onde
havia apenas um punhado de casas. Circulou ali uma vez e aterrissou com o
trenó, deslizando até parar debaixo de um poste de rua inclinado.
Krampus saiu do trenó, olhou a seu redor, para as casas, para as luzes de
Natal piscando. Ele inspirou fundo, bebendo o ar frio da noite. “Enfim estou
aqui.” Ele cerrou os olhos. “Até que enfim… isso acabou. Baldr não existe
mais e eu estou livre para voltar a disseminar as bênçãos do Yuletide, para
expulsar espíritos sombrios da terra.” Ele abriu os olhos e os limpou. “Peço
desculpas, este momento está me sobrepujando.” Krampus olhou para eles.
“Cada um de vocês desempenhou sua parte nisso e, por isso, eu os
agradeço. Em sua honra, farei desta uma noite a ser lembrada, isso eu
prometo.”
Krampus estirou a mão.
“Vernon, a areia de fazer dormir.” Vernon deu as bolsinhas a ele.
Krampus entregou uma delas a Isabel, uma a Jesse, começou a dar uma a
Makwa, reconsiderou a ideia e deu a última de volta a Vernon. “Para o caso
de nos depararmos com aqueles que não estejam em um ânimo festivo. Uns
poucos grãos jogados nos rostos deles e eles dormirão como bebezinhos.
Agora sigam-me e tentem não causar mal a ninguém, a menos que
ameacem usar a violência.”
Jesse deslizou a bolsinha para dentro do bolso do peito de sua roupa,
para ter um fácil acesso a ela.
“Lembrem-se”, disse Krampus, “de que nós estamos aqui pelas
crianças, para ensiná-las a honrar o Senhor do Yule, para fazer com que elas
creiam.” Ele começou a cruzar a rua em direção à casa mais próxima.
“Espere”, disse Isabel, e segurou no braço dele.
“O que foi agora?”
“Não aquela, não.”
“Por que não?”
“Eles não têm filhos.”
“Como você pode saber disso?”
“Veja… nada de brinquedos nem bicicletas no quintal. Também não têm
balanços. É aquela que você quer”, disse ela, apontando para a casa vizinha,
onde havia um triciclo jogado de lado perto de uma área de fazer exercícios
colorida e brilhante, de plástico, como um playground.
Krampus assentiu para ela e deu uns tapinhas amigáveis em sua cabeça.
“Isabel, minha leoazinha. Você é cheia de surpresas.”
Ele seguiu em direção à casa, com os Belsnickels em fila atrás dele.
“Leoazinha”, disse Jesse, abafando o riso, e deu um tapinha de leve na
cabeça de Isabel, que deu um soco nele.
Krampus avistou um grande Papai Noel de plástico na varanda
enquanto eles se dirigiam pela passagem acima. Ele riu com escárnio.
“Essa casa parece que precisa ser lembrada do que realmente se trata o
Yuletide.”
Krampus subiu na varanda, pegou o Papai Noel de plástico e jogou-o no
quintal.
“Nós vamos tomar um tiro”, resmungou Chet. E, por uma vez na vida,
Jesse viu-se concordando com o homem. Jesse tinha certeza de que, antes
que a noite tivesse terminado, um deles, ou talvez todos eles, estariam
jazendo na sala de estar de alguém cheios de balas de espingardas de caça.
Jesse mal conhecia uma alma que fosse por esses arredores do condado que
não tivesse pelo menos uma arma de fogo… talvez até três ou quatro.
Krampus bateu à porta. Eles ficaram ali, parados, esperando. Krampus
com o saco preto jogado por cima do ombro e segurando um punhado de
palmatórias, com os Belsnickels parados ao redor dele como se fossem um
bando confuso de pessoas fazendo “brincadeiras ou travessuras” de
Halloween. Jesse podia ouvir uma televisão bem alta em algum lugar dentro
da casa e trocou um olhar preocupado com Isabel. Krampus bateu à porta
mais uma vez e mais alto.
Uma mulher gritou de algum lugar dentro da casa:
“A porta, Joe. Acho que tem alguém na porta!”
O volume da TV baixou outra vez.
“O que foi isso?”
“Eu achei que tivéssemos ouvido a porta.”
“Bem, caramba, que cacete, você esqueceu como se abre uma porta?”
Seguiu-se um minuto e silêncio. “Ah, puta merda, que cacete”, gritou o
homem. “Tudo bem, acho que vou ter que ir abrir a porcaria da porta. Não
vamos jamais querer que você levante o seu rabo gordo daí.”
Eles ouviram chinelos pisando em direção à porta. Um instante depois,
a luz da varanda foi acesa e a porta se abriu com um estalo. Um homem de
meia-idade trajando uma camisa de caça apareceu, usando uma calça de
moletom, e inclinou-se junto à porta, segurando uma cerveja e um cigarro
em uma das mãos. O homem estava bêbado, mas não tão embriagado a
ponto de não ver que Krampus não era quem ele estava esperando.
“Há boas crianças nesta moradia?”, perguntou Krampus.
O homem ficou de olhos arregalados, foi aos tropeços vários passos
para trás, deixando cair tanto a cerveja quanto o cigarro. De repente, ele
pareceu ficar sóbrio, o que o levou a fechar a porta com uma batida.
Krampus estendeu a mão, bateu à porta de novo e o homem foi até o
linóleo.
“O Yule anima a todos!”, disse Krampus, e empurrou a porta para
entrar, passando pelo homem e dirigindo-se corredor abaixo.
Os shawnees pularam para cima do homem e o imobilizaram. O homem
começou a berrar e Makwa ergueu um punho Isabel segurou no braço de
Makwa antes que desferisse um golpe contra o homem.
“Não! Malvado”, gritou Isabel. “Para com isso!”
Jesse tateou em busca de sua areia de fazer dormir, mas Vernon
conseguiu achar antes a que estava com ele, jogando um punhado no rosto
do homem. O homem apertou os olhos, parecia que ia espirrar, então sua
cabeça pendeu e ele apagou. Os shawnees pareceram desapontados.
Jesse conseguiu soltar meia respiração antes de ouvir o grito de uma
mulher vindo do corredor. Isabel e Jesse abriram caminho aos empurrões,
passando pelos shawnees, pretendendo ganhar deles em qualquer que fosse
a encrenca em que Krampus tivesse se metido agora.
Tratava-se de uma mulher, quase da mesma idade do homem, trajando
uma roupa quase idêntica à dele: uma camisa de flanela vermelha de caça e
calça de moletom. Krampus havia prendido essa mulher em um canto de
uma das salas, atrás da árvore de Natal. O Senhor do Yule estava
arrancando ornamentos da árvore e esmagando-os na lareira. Ele ergueu um
reluzente Papai Noel de vidro.
“Não, não, não”, disse ele em tom de bronca e jogou o objeto, que bateu
na parede, e ela soltou um outro grito. “Nada mais de Papai Noel, chega!
Nunca mais! Quer saber por quê?” Ele não esperou pela resposta dela.
“Porque ele está morto!” Krampus rosnou. “Eu cortei a cabeça dele e, se
você duvidar de mim, bem, eu posso mostrar isso a você. Gostaria de ver?”
A mulher balançou a cabeça. Krampus espiou a bela cruz marrom de vidro
no topo da árvore e sua face formou um nó. “Isso não vai servir. Você não
deve colocar totens cristãos em uma árvore de Yule.” Ele arrancou a cruz e
chacoalhou-a na frente da mulher como se ela fosse uma vampira. “Nada de
cruzes! Nada de Papai Noel! Está entendido?” Ele ergueu o braço como se
fosse jogar aquilo fora.
“Não!”, ela gritou, vindo para a frente e esticando a mão para pegá-lo.
“Por favor, não. Isso era da minha mãe!”
Krampus ergueu o ornamento acima do alcance dela.
“Por favor, por favor.”
“Apenas se você prometer nunca colocar isto na minha árvore de novo.”
A mulher assentiu.
“Jure.”
“Juro!”
Ele estirou o ornamento, e ela apanhou-o e levou-o junto ao peito, e
começou a soluçar e a chorar.
“Onde estão os restantes de seu festim?”, quis saber Krampus.
Ela olhou para ele e piscou várias vezes.
“Festim?”
“Sim.”
“Você quer dizer… os restos da comida? Estão na geladeira. Onde mais
estariam?”
“E vocês oferecem isso a eles em tributo?”
“Se eu faço o quê?”
“Se oferece sua parte ao Senhor do Yule?”
“Você quer os restos da comida?”
Ela não parecia saber ao certo se ria ou se chorava, mas, sem dúvida,
queria dizer o que quer que fosse para mandar esse demônio demente para
longe.
“Certo… vá em frente… a cozinha fica por ali.” Ela apontou para lá.
“Sirva-se à vontade.”
“Que bom. Suas ofertas de Yuletide trarão a você muitas bênçãos para o
ano vindouro.” Krampus dirigiu-se até a cozinha, deixando a mulher
tremendo no canto, ainda segurando o ornamento de Natal que fora de sua
mãe.
Isabel e Jesse foram até a mulher.
“Sente-se”, disse Isabel.
“O quê? Por quê? Vocês vão me machucar?”
“Não”, disse Isabel. “Ninguém vai machucar você. Agora, apenas fique
sentada.” A mulher fez o que Isabel disse, e ela jogou um pouco de areia de
sono em sua face.
Um poucos segundos depois e a mulher estava apagada. Isabel,
animada, pegou o ornamento de seus braços e colocou-o no consolo da
lareira.
Alguma coisa colidiu na cozinha.
“O que foi agora?”, quis saber Isabel.
“Sim, senhor, eu receio que ele fez isso.”
Eles dois deram uma espiada cozinha adentro. O refrigerador estava
bem aberto e Wipi estava puxando pratos da geladeira e entregando-os a
Nipi. Havia uma grande bandeja de cerâmica em cima do balcão, deixando
à mostra um peru meio retalhado, disposto sobre um acompanhamento de
pão de milho. Makwa, Chet e Vernon estavam enfiando bocados dentro de
suas bocas, sem ao menos se darem ao trabalho de usar talheres. Vernon
olhou para cima, com uma expressão de culpa no rosto.
“O que foi? Eu estava morrendo de fome. Pelo amor de Deus, nós não
comemos desde… ontem… ou seria desde anteontem?”
Jesse deparou-se com um relógio e ainda faltavam dez minutos para a
meia-noite. Tentou descobrir quanto tempo fazia que estavam acordados,
mas como haviam passado por dois continentes diferentes, ele não fazia a
mínima ideia.
“Onde está Krampus?”, quis saber Isabel.
“Ele desceu o corredor”, disse Chet, com um bocado de molho na boca.
“Desceu o corredor?”, perguntou Isabel. “Você perdeu Krampus de
vista?”
“Ei”, disse Chet. “Não sou nenhuma babá.”
Eles ouviram um grito, o grito de uma criança.
“Ah, pelo amor de Deus!”, disse Isabel, e desceu voando pelo corredor.
Jesse foi correndo atrás dela. Krampus estava no meio do quarto, entre duas
camas, uma das quais estava vazia, e duas garotas estavam aninhadas
juntas. Jesse calculou que uma das crianças devia ter uns 9 ou 10 anos e que
a outra, mais nova, devia ter a mesma idade de sua Abigail. As meninas
estavam acuadas em um canto, em cima de travesseiros e bichinhos de
pelúcia, tão longe de Krampus quanto possível. Ambas choravam,
agarradas uma na outra, tremendo, com os olhos cheios de terror.
Krampus deu um passo para a frente, e as meninas soltaram um grito
estridente, chutando o ar como se alguma coisa as estivesse mordendo.
Jesse não conseguia suportar isso, só conseguia pensar em sua própria
filha.
“Krampus”, gritou Jesse. “Para com isso, você não pode…”
“Silêncio”, disse Krampus, irritado, erguendo um dedo. “Não
interfiram. Isso é um comando.”
Jesse ficou quieto; ele descobriu que mal podia fazer qualquer coisa
além de ficar olhando, não importando o quanto ansiava por arrancar
Krampus do aposento.
Krampus voltou até as meninas, ajoelhou-se apoiado em um dos joelhos
e levou um dos dedos a seus lábios.
“Silêncio”, ele sussurrou. “Silêncio, eu sou Krampus, o espírito do Yule.
Trago presentes.” Suas palavras eram bondosas, hipnóticas. As meninas
pararam de gritar, acalmaram-se um pouco. “Vocês gostariam de ver seus
presentes?”
Nenhuma das meninas respondeu, apenas ficaram encarando Krampus,
com olhos arregalados, cheios de terror.
Krampus baixou as palmatórias, deslizou o saco de seus ombros, cerrou
os olhos e enfiou a mão no saco, tirando de dentro duas moedas douradas
triangulares, estirando-as para as meninas verem, e a curiosidade
lentamente substituiu seus medos.
“Moedas douradas do reino de Hel. Elas podem comprar para vocês
muitas coisas bonitas.”
As moedas deixaram as meninas hipnotizadas.
“Vocês gostariam de ficar com elas?”
As duas meninas assentiram.
Krampus estirou-as, mas, quando as meninas esticaram as mãos para
pegá-las, Krampus puxou as moedas de volta.
“Há uma condição. Em primeiro lugar, vocês devem falar o meu nome.
Vocês podem me chamar de Krampus, o Senhor do Yule. Agora, digam o
meu nome.”
“Krampus, o Senhor do Yule”, disseram as meninas em coro.
Krampus sorriu.
“Que bom.” Ele entregou a elas as moedas.
As meninas admiraram as moedas, seus recém-descobertos tesouros.
“Que bom.” E Jesse se perguntava que feitiço Krampus teria lançado
nelas. “Há mais coisas, pois o mundo é um lugar difícil e nada vem sem um
preço. Vocês devem saber que a cada ano, no Yuletide, eu voarei por aqui.
Pode ser que eu volte, ou não. Mas caso eu as honre com uma visita,
realmente tenho a expectativa de que haja um tributo à minha espera,
provas de sua devoção. Tradicionalmente isso é feito colocando-se sapatos
no degrau da escada e deixando-me um presente ou um ornamento dentro
dele. Acham que conseguem fazer isso?”
As garotas assentiram.
“Que bom, pois se eu encontrar um presente vocês podem receber uma
outra moeda de ouro, ou podem receber algo ainda melhor. Mas, se eu não
encontrar nada…” Krampus pegou o saco e as palmatórias, ficou em plena
altura, com a voz bem baixa e ameaçadora. “Se eu não encontrar nenhum
tributo, então vou colocar vocês dentro do meu saco e espancarei vocês até
sangrarem.” Ele bateu uma vez no saco com as palmatórias.
As meninas pularam para trás e Jesse achou que fossem começar a
gritar de novo.
“Haverei de encontrar sapatos cheios de presentes no próximo
inverno?” Ambas as meninas assentiram com firmeza. “Que bom. E qual é
o meu nome?”
“Krampus”, disseram elas juntas.
“Que bom”. Ele deu um tapinha amigável em cima das cabecinhas
delas. “Boa noite, meus docinhos. Durmam bem.”
Então Krampus saiu do quarto das meninas.
Isabel borrifou areia de fazer dormir nelas e cobriu-as para que
dormissem. Elas pareciam anjos dorminhocos. Jesse se perguntava o quanto
elas haveriam de lembrar-se disso quando a manhã chegasse. Ele esperava
que não fosse muito. Esperava que não acordassem gritando todas as noites.

ELES ACOMPANHARAM o passo de Krampus até o trenó; Chet, Vernon e os


shawnees já estavam a bordo. Wipi mantinha a carcaça do peru em seu colo,
ele e seu irmão, Nipi, ainda estavam comendo, com os dedos e os rostos
sujos com os acompanhamentos e a gordura.
“Sigam em frente até a próxima casa”, disse Krampus, e subiu no trenó;
Isabel e Jesse subiram em seguida.
“Tem mais?”, perguntou Vernon, com a voz seca. “Oh, mas a diversão
nunca vai acabar?”
“Sim, tem mais. Muito, muito mais. Tanngnost e Tanngrisni nos levarão
de uma vizinhança à outra, mas não é minha meta ir a todas as habitações.
Precisamos visitar alguns lares, as crianças farão o resto. Elas espalharão a
história a partir daí, deixarão as outras crianças fascinadas com seus
prêmios e suas histórias… farão com que creiam… E, contanto que
acreditem, contanto que eu tenha seguidores, o Yule haverá de florescer,
será disseminado. Meu lugar será afirmado e nenhum deus haverá de
usurpar meu reinado… nunca mais.”
Ele estalou as rédeas e eles levantaram voo, deslizando pelo meio da
rua, logo acima dos topos dos carros, dirigindo-se à cidade. Eles passaram
por um homem que estava sentado em seu caminhão parado em um
semáforo. O homem ficou observando enquanto eles passavam voando,
então seguiu em frente dirigindo, como se nada tivesse acontecido, com um
sorriso largo no rosto o tempo inteiro. Uma quadra depois, havia um
homem e uma mulher apoiados em um carro. O homem estava tentando
destrancar a porta, mas parecia embriagado demais para conseguir colocar a
chave na tranca. Eles ergueram o olhar enquanto o trenó foi sobrevoando-
os, gritaram algo ininteligível, e os dois prontamente caíram. Jesse
perguntou-se quantos desses bêbados de fim de noite, na manhã seguinte,
culpariam a bebedeira pelo que tinham visto. Não muito adiante, uma
mulher em um carro pisou nos freios enquanto eles passavam com tudo por
ela, que colocou a cabeça para fora da janela, com os olhos arregalados,
maravilhada. Era aparente, por sua expressão chocada, que ela não estava
bêbada, mas talvez desejasse estar. Cerca de um quilômetro e meio depois,
eles cruzaram com mais ou menos uma dúzia de adolescentes, seguindo
bem de perto o automóvel no estacionamento da velha torre de água.
“Alegria do Yule a todos vocês!”, gritou Krampus, e acenou. Cerca de
metade dos meninos conseguiu acenar parcialmente, boquiabertos, e o
restante apenas ficou encarando-o, pasmados demais para fazerem qualquer
outra coisa. Um flash surgiu e Jesse abriu um largo sorriso, perguntando-se
se a foto estaria em toda a internet na manhã seguinte.
Eles se dirigiram até Sipsey Ridge, ao longo da beirada da cidade, onde
as casas se espalhavam por uma área um pouco mais rural, com pequenos
jardins com legumes e cercados de galinhas aparecendo aqui e ali. Krampus
diminuiu a velocidade, espiando ao longo das compridas entradas de carros.
“Ei”, disse Chet. “Aqui é a minha casa.” Ele apontou para uma casinha
com asbesto cor-de-rosa. Uma silhueta de mulher de calcinha recortada em
madeira curvava-se sobre o canteiro, e havia uma cadeira branca de balanço
na varanda.
“Você mora nessa casa rosa?” Jesse deu uma risada. “Isso explica muita
coisa. Acho que é por isso que você gosta tanto desse casaco aí que você
está vestindo.”
“Ei, vai se foder. Essa casa é da minha tia.”
“Você mora com a sua tia?” Jesse riu ainda mais.
“Vá se foder”, disse Chet, e apontou o dedo para Jesse, que ergueu as
mãos, rendendo-se, e fez o melhor que pode para parar de rir. “É
temporário. Ela só está me ajudando até que eu consiga resolver as coisas
com a Trish. Então vai se ferrar.” Jesse parou de rir.
“Você e a Trish se separaram?”
Chet assentiu, sem conseguir esconder a mágoa em seu rosto. Jesse
conhecia bem essa expressão.
“É”, disse Jesse, “eu faço um pouco de ideia de como seja isso.”
Krampus passou por mais umas poucas casas, deslizou e parou na frente de
uma delas, com um telhado liso, um lar com estilo rancho, com um trilho
lateral de cedro. Havia um velho modelo de Chevy Malibu, com sua traseira
erguida, faltando umas calotas e precisando muito de uma nova pintura,
parado no estacionamento. O pátio tinha alguns brinquedos jogados, um
balanço quebrado, peças enferrujadas de automóveis e um bom número de
latas de Pabst Blue Ribbon vazias.
“Ei, cara”, disse Chet. “Essa é a casa do Wallace Dotson. Vocês não vão
querer fazer a merda de mexer por aqui. Com certeza ele não bate bem da
cabeça, não, desde que voltou do Iraque, não.”
“Quantos filhos o seu amigo Wallace Dotson tem?”, quis saber
Krampus.
“Ele não é meu amigo. E aquele cara não conhece o significado das
palavras ‘controle de natalidade’. Tem pelo menos uns cinco ou seis
pestinhas por aí, talvez mais, e cada um deles é tão arrombado da cabeça
quanto o velho deles. Os merdinhas atiram nas cabeças dos passarinhos só
por olharem para eles.”
Krampus deu um pulo para fora e os shawnees o seguiram. Jesse, Isabel,
Vernon e Chet ficaram sentados no mesmo local. Um cachorro ladrou em
algum lugar na entrada de carros.
“Cara”, disse Chet. “Estou lhe dizendo, você está escolhendo a casa
errada. O velho Wallace, aquele homem gosta das armas dele, e gosta de
atirar com elas também. Só escolhe outra casa, por que você não faz isso?”
“Venham”, disse Krampus. “Todos vocês, agora.” Eles saíram e
seguiram Krampus pela entrada de carros.
Jesse cutucou Isabel.
“Veja.”
Ele apontou para uma placa pintada a mão presa no gramado da frente
que dizia: “Nada de pedir coisas. Isso quer dizer que você é um otário!”
Isabel balançou a cabeça em negativa.
Todas as janelas estavam escurecidas. Jesse esperava que a família
estivesse fora por causa dos feriados. Krampus pisou na varanda e um
cachorro latiu duas vezes do outro lado da porta. Soava como se fosse um
cachorro grande. Eles podiam ouvir suas patas fazendo ruídos enquanto o
animal andava para a frente e para trás.
Krampus ergueu seu punho para bater à porta, mas parou.
“Talvez seja adequado usar de um pouco de prudência”, sussurrou. “Um
procedimento um pouco diferente. Jesse, a chave.” Jesse entregou a ele o
molho de chaves. Três das chaves-mestras eram dos tipos antigos, mas o
restante era das menores, dos tipos mais modernos. Krampus pegou uma
dessas, tentou inseri-la na fechadura, e não servia. Jesse não entendia como
essas seis chaves deveriam abrir qualquer tranca no mundo, mas, depois de
tudo que ele tinha visto recentemente, sentia-se relativamente otimista.
Krampus não o desapontou; a segunda chave entrou, ele torceu-a na
fechadura e a tranca abriu.
Jesse não fazia a mínima ideia se a areia de fazer dormir funcionava em
cachorros, mas pegou um punhado de seu bolso do casaco e manteve-a em
prontidão. Krampus girou a maçaneta e empurrou a porta para dentro. O
cão pulou para cima deles, e Jesse jogou a areia na cara do animal. Era um
basset hound, um basset hound realmente velhinho. Ele olhou para Jesse
com grandes olhos tristes, abanou o rabo e então caiu.
Todo mundo olhou feio para Jesse.
“Que foi?”
Eles passaram por cima do cachorro que dormia e entraram no
vestíbulo. Vozes e a sombra de uma televisão tremeluzindo vinham da
extremidade do corredor. Jesse sentiu cheiro de maconha.
Krampus foi arrastando-se em direção à luz, evitando os punhados de
roupas sujas. Eles pararam na entrada da sala de estar. Um homem
gorducho com uma barba de cerca de uma semana por fazer estava largado
e estirado em um sofá, bem adormecido, com um cinzeiro cheio de bitucas
de cigarro equilibrado em seu peito, uma garrafa de uísque no chão e um
gato malhado descansando em seu colo. O gato abriu os olhos e ficou
encarando.
As crianças, todas as seis, estavam sentadas no chão, na frente da
televisão, de costas para eles. As idades delas variavam desde uma criança
de uns 10 anos de idade até uma ainda usando fraldas, duas meninas, e os
restantes, todos meninos. Havia um saco tamanho gigante de Cheetos entre
eles, e migalhas cor de laranja sujavam o tapete imundo. Estava passando A
Felicidade Não se Compra na TV, e Jimmy Stewart tentava convencer os
finos residentes de Bedford Falls a não retirarem todo o seu dinheiro do
investimento imobiliário, com seus modos cativantes e sua fala lenta e
preguiçosa, cálida e sincera, que mantinha as crianças hipnotizadas.
Não havia nenhuma árvore de Natal nessa casa. Nem luzes de Natal.
Nem decoração alguma que passasse de uns cones de pinheiros pendendo
acima da lareira. Jesse não encontrou nenhum brinquedo novo, nenhum
sinal de brinquedo. Parecia que o Natal tinha passado batido para aquelas
crianças.
Isabel tocou no braço de Krampus e apontou para o homem. Krampus
assentiu, e ela foi andando na ponta dos pés. O gato estirou-se, bocejou e
começou a ronronar. Isabel lançou no rosto do homem uns poucos borrifos
de areia do sono. Ele torceu o nariz, mas não passou disso. Isabel deu de
ombros. Quando se virou, todas as crianças estavam olhando para ela, seis
faces manchadas de restos cor de laranja de Cheetos. Isabel ergueu a mão e
disse: “Oi”.
Eles ficaram observando enquanto ela deu uns passos até o corredor.
“Nós deveríamos tentar encontrar a mamãe deles”, sussurrou Isabel.
“Ela não está aqui”, disse Chet. “Ela fugiu cerca de um ano atrás.”
“Oh”, foi a réplica de Isabel.
Krampus entregou suas palmatórias a Isabel.
“Não vou precisar disso.”
Ele entrou no aposento e todos os olhos voltaram-se para o gigantesco
Senhor do Yule, e o terror espalhou-se pelos rostos das crianças.
“Não precisam ter medo”, disse Krampus, na mesma voz suave e
pacificadora que usara com as menininhas na casa anterior. “Eu sou um
amigo.”
O terror deles pareceu diminuir um pouco, mas um dos meninos mais
novos começou a chorar.
“Casey, fica quieto agora”, disse uma das meninas, e levantou-se.
O menininho fez o melhor que pode para abafar suas lágrimas.
A menina parecia ser a mais velha do bando, talvez tivesse seus 9 ou 10
anos. Ela deu um passo à frente, colocando-se entre Krampus e o restante.
“O que você quer?”, disse ela, tentando soar durona, mas Jesse podia
ouvir o medo na voz dela. “Se você está procurando roubar coisas, a gente
não tem nada.”
“Não somos ladrões”, disse Krampus, com a voz calma e hipnótica. “Eu
sou o Senhor do Yule e trago presentes para todos vocês.”
Nos rostos de algumas das crianças surgiu a curiosidade. Eles ergueram
os olhares para a irmã mais velha, que voltou a Krampus um olhar
endurecido, cínico.
“Ninguém dá nada sem pedir algo em troca. O que você quer?”
“Você é inteligente, apesar de sua idade. Qual é o seu nome?”
A menina ficou hesitante.
“Quem quer saber?”
O Senhor do Yule abriu um largo sorriso.
“Meu nome é Krampus.”
“Bem, Krampus, meu nome é Carolyn, este daqui é o Chris, este é o
Curtis, este é o Casey, este é o Clayton e aquela ali é a Charlene.”
Krampus assentiu para cada um deles. O bebê olhou para Krampus e
começou a choramingar.
Um menino que não poderia ter mais de 4 anos puxou o bebê para seu
colo, procurou sua chupeta e deu um tapinha em suas costas, de leve,
fazendo o melhor que podia para tranquilizar a criança.
Krampus andou em passos leves até as crianças e deixou cair seu saco.
A menina manteve sua posição. Ela parecia aterrorizada, mas Jesse
podia ver que ela levaria uma surra mas não deixaria que ninguém, nem
mesmo um demônio chifrudo, pusesse as mãos em qualquer uma daquelas
crianças.
Casey rastejou para trás de sua irmã mais velha e começou a chorar de
novo.
“Casey, já cansei de falar para você calar a boca. Você sabe que o papai
não tolera choro.”
“Por favor… não sinta medo.”
Krampus ajoelhou-se, apoiando-se em um só joelho. Ele colocou o saco
entre eles, deslizou sua mão dentro dele, cerrou os olhos e sacou dali uma
de suas moedas de ouro triangulares.
Eles ergueram os olhares, todos eles pasmados com as moedas antigas.
Ele entregou uma a cada uma das crianças e foi falando a elas sobre o Yule,
a respeito das antigas tradições, sobre sapatos nos degraus de escadas e
recompensas para aqueles que creem. As crianças ficaram dando ouvidos ao
que ele dizia, atentas a cada palavra. Logo, todos os traços do medo deles se
foram.
Quando Krampus terminou, levantou-se, desejou-lhes um Feliz Yule e
dirigiu-se para fora. As crianças acompanharam-no até a porta.
“Ei”, disse Jesse a Carolyn. “Certifique-se de que o seu pai não veja
essas moedas.”
A garota assentiu como se já estivesse pensando bem mais adiante do
que ele.
“Levem-nas até a loja de penhores Dicker and Pawn. Peçam para falar
com o Finn; de lá, é ele quem vai tratar vocês melhor do que a maioria.”
“É”, interpelou Chet. “Vocês digam a ele que Chet Boggs falou que é
melhor que ele trate vocês decentemente. Entenderam?”
A garota fez que sim com a cabeça de novo.
Jesse e Chet juntaram-se ao restante dos Belsnickels no trenó. Krampus
estalou as rédeas e os bodes do Yule saltaram na direção do céu. Jesse ficou
observando as crianças, com suas seis pequenas faces erguendo os olhares
para cima, fitando-os, deslumbrados. Carolyn ergueu o braço e acenou em
despedida, e todas as crianças fizeram o mesmo. Jesse acenou em resposta.

NUVENS DE FUMAÇA cinzenta espalhavam-se pelos jardins e pela topiaria,


movendo-se com o vento do início da aurora. Algumas poucas chamas
ainda estalavam. As vigas e as pedras tostadas do estábulo formavam um
austero esqueleto em contraste com o céu matinal.
Seis mulheres escavavam em meio às brasas ardentes com forquilhas e
ancinhos. Seus vestidos estavam sujos, cobertos de fuligem, grudados ao
suor de seus corpos, havia cinzas manchando suas mãos e seus rostos
estavam marcados com faixas de lágrimas.
“Aqui”, disse a mulher com os longos cabelos brancos. “Ele está aqui.”
Todas vieram, deixando cair ancinhos e forquilhas para usarem suas
próprias mãos, puxando das cinzas, com gentileza, o corpo mutilado.
Algumas das mulheres desviaram os olhares, sem conseguir olhar para o
corpo queimado e decapitado.
“Ajudem-me”, disse a mulher, e juntas elas ergueram o corpo e
carregaram-no, cruzando o pátio, descendo por uma trilha estreita do lado
de fora da parede, até uma capela com um único aposento, cuja vista dava
para o mar. Lá elas colocaram o corpo deitado em cima de uma laje de
pedra, debaixo de uma janela de vitral dourado, na forma de uma cruz. Uma
das moças pegou toalhas e um balde de água do mar. Juntas lavaram o
corpo, limpando dele a terra e a fuligem. O fogo havia consumido toda a
vestimenta dele, mas deixara seu corpo intocado. Corpo esse que reluzia,
branco como porcelana, perfeito, exceto pelos grandes danos causados pela
lança. Elas lavaram as mãos dele, limparam sob suas unhas, das mãos e dos
pés, limparam seus genitais, suas feridas e a horrenda parte de carne
dilacerada em seu pescoço. Elas o banharam até que não restasse nenhum
traço de carne maculada, então o envolveram em linho branco.
“Agora”, disse a mulher. “Parem com essa choradeira. Pesar é para os
mortos. O Papai Noel nunca pode morrer. Pois pessoas demais acreditam
nele. Essa é uma época de preces… uma época de se chamar os anjos.”
Ela esticou as mãos e as meninas deram as mãos, formando um círculo
em volta da laje. Ela sentou-se com as pernas cruzadas sobre o chão de
mármore e as garotas a seguiram.
“Nós haveremos de servir a ele em vigília. Ninguém deverá comer, nem
dormir, nem beber nada que seja até que venham os anjos. Se eles não
vierem, então a vontade de Deus é que nós pereçamos ao lado dele. Agora
fechem os olhos e invoquem os anjos para que desçam até cá.”
Enquanto elas rezavam, o sol da manhã clareou o horizonte, ardendo
brilhante através do vitral, banhando o aposento em uma luz dourada.
“Deus está na casa”, disse a mulher de cabelos brancos.

A TERCEIRA CASA daquela noite ficava perto do rio, uma construção


imponentemente nova, dentro de um portão de tijolos vermelhos e ferro
elegante. Krampus desceu com o trenó na entrada de carros ampla e
circular.
O Senhor do Yule deparou-se com a porta da frente destrancada e foi
entrando. O vestíbulo dava para uma surpreendente área de estar aberta para
o segundo andar. Uma parede de janelas arqueadas estendia-se até o pico do
teto em estilo de catedral e ficava de face para o rio; no centro delas havia
uma imensa árvore de Natal cheia de fitas e ornamentos.
“Uau, isso é bonito”, disse Isabel.
Krampus não parecia compartilhar do sentimento dela. Ele fez uma cara
de como se estivesse sendo forçado a tomar uma colherada de xarope contra
a gripe, mas refreou-se e não esmagou nenhum dos ornamentos, em vez
disso, foi subindo a grande escadaria.
Krampus entrou no primeiro aposento a que eles chegaram; foi andando
a passos de passeio, entrando direto, como se tivesse sido convidado. O
aposento era espaçoso, com uma grande televisão de tela plana pendendo da
parede, com um filme em andamento, o som bem baixo. Um homem e uma
mulher, na casa dos 40 anos, estavam sentados em sua cama de dossel de
tamanho king-size, o homem mexendo em seu laptop, e a mulher vendo TV
ao mesmo tempo em que digitava em seu celular. O homem ergueu o olhar
quando sua esposa ofegou alto.
Krampus não prestou nenhuma atenção neles, encarando a grande tela
na parede, com a cabeça inclinada para um dos lados.
Parecia que a mulher estava se engasgando ou algo do gênero, e, por
fim, um grito escapou de sua garganta. Tanto Jesse quanto Isabel
começaram a usar a areia de fazer dormir, mas Krampus ergueu a mão.
“Esperem.”
A mulher gritou de novo e começou a levantar-se. O homem puxou os
fones de seus ouvidos e jogou um dos braços em volta da mulher.
“Permaneça calma, Nancy. Apenas fique calma.” Nancy parecia estar
prestes a hiperventilar, no entanto, de alguma forma, ela conseguiu sentar
no lugar, fitando com horror absoluto o diabo gigante que estava em seu
quarto.
Krampus voltou sua atenção de novo para a tela, para os cavalos
correndo sobre uma exuberante paisagem inglesa. Ele colocou o nariz bem
na tela, bateu nela seus chifres, soltou um grunhido e deu um passo para
trás.
“Essa é uma televisão LCD de alta definição”, disse o homem, com a
voz trêmula. “De sessenta polegadas. É de vocês se quiserem. Por favor…
só a peguem e vão embora.”
Krampus esticou a mão, deu um tapinha na tela com suas unhas
irregulares, pressionou a palma de sua mão nela como se estivesse tentando
empurrar e passar por ela. Então algo pipocou, a tela ficou tremeluzindo, e
uma teia de aranha de rachaduras espiralou-se sob a mão dele. Krampus
ficou olhando atento, como que analisando a tela quebrada.
“Hmmmm, parece que danifiquei a TV. Desculpe-me.” Ele soava
sincero.
“Tudo bem”, disse o homem rapidamente. “Tudo bem, sem problemas.
Temos outra lá embaixo. Você pode pegá-la. E as joias… estão ali.” Ele
apontou para a caixa de mogno em cima da penteadeira. “Não tenho muito
dinheiro vivo”, o tom dele era nervoso, em desculpas. “Mas seja bem-vindo
a pegar o que tenho.”
“Não viemos aqui para roubar”, disse Krampus, e essa notícia serviu
apenas para deixar o homem e a mulher mais nervosos. A mulher puxou o
lençol até o pescoço, cobrindo-se, deixando cair o laptop. Krampus
aproximou-se dela, espiando a tela do laptop reluzente com curiosidade. A
mulher soltou um gritinho estridente como se fosse uma doninha presa em
uma armadilha.
“Você quer o laptop?”, perguntou-lhe o homem. “É seu.” Ele entregou o
computador a Krampus, que olhou para o aparelho, mas não o pegou. “Há
um Mustang novo e totalmente abastecido lá embaixo na garagem. As
chaves estão bem ali.” Ele apontou outra vez para a penteadeira. Ninguém
olhou. “Eu deveria deixar claro”, disse o homem, cujo tom estava se
tomando um pouco mais desesperado, “que estou envolvido com o governo
estadual nos mais altos níveis. E, como alguém com uma boa experiência
dentro do sistema legal, devo alertá-lo contra qualquer ato de violência. Se
alguém nesta casa for machucado, ou até mesmo ameaçado… o estado da
Virgínia Ocidental não será leniente.”
“Você é advogado?”, quis saber Chet. “Você fala como um advogado.
Eu odeio advogados.”
O homem balançou a cabeça em negativa.
“Não exatamente… Eu me considero mais um mediador.”
“Chet”, disse Jesse. “Você odeia todo mundo. Então por que apenas não
cala a boca e deixa o homem em paz?”
Chet fixou os olhos em Jesse.
“Não me lembro de ninguém me dizendo que tenho que receber ordens
de você. Então por que você não cala sua boca reclamona?”
“Por que você não deixa de ser retardado?”, disparou Jesse em resposta.
“Oh, eu sei, porque não consegue!”
Chet fechou a cara.
“Você é um porra de um merdinha!”
Ele deu um empurrão em Jesse, que revidou com um cruzado, acertando
a lateral da cabeça de Chet e o jogando contra a parede. Chet se reergueu
em um salto, atacando a cintura de Jesse com o ombro. Os dois homens
voaram para cima da cama, rolaram por todo o caminho e tombaram no
chão na extremidade oposta do quarto, levando o abajur do criado mudo
junto deles. A mulher começou a gritar, histérica.
Krampus ficou observando, obviamente divertindo-se, e os shawnees
começaram a rir e a torcer.
“Krampus!”, Isabel gritou e empurrou-o. “Krampus, faça com que eles
parem antes que se matem.”
Krampus deu de ombros e gritou: “Chega! Parem de brigar. Isso é um
comando”. E, assim do nada, Jesse e Chet pararam e ficaram lá sentados no
carpete, olhando feio um para o outro. “Não haverá mais brigas entre
vocês.”
Isabel evidentemente já tivera o bastante. Ela deu um pulo e jogou um
punhado de areia de fazer dormir na mulher que gritava como se estivesse
salgando uma batata. A mulher temporariamente perdeu a consciência e
desmaiou.
“O que você fez com ela?”, exigiu saber o homem, e prontamente
recebeu uma dose ele mesmo, caindo sobre a mulher.
“Bem, agora sim”, disse Vernon. “Esse foi um showzinho e tanto. Mal
posso esperar para ver o que vocês, belos cavalheiros, farão em seguida.”
Krampus deu uma risada e dirigiu-se para fora da sala.
Jesse passou por dois quartos vazios e encontrou-se com o Senhor do
Yule espiando em um quarto mal iluminado na extremidade mais afastada
da casa. Uma adolescente estava reclinada em um pufe, com o rosto voltado
para longe deles. Como o homem, ela estava com um laptop, mas ela
também estava com um celular chamativo e alternava entre um e outro,
digitando que nem louca entre os dois, no teclado e no telefone. Ela estava
com fones de ouvido, mas Jesse podia ouvir a música por toda sala e podia
apenas imaginar os danos que aquilo devia estar causando aos ouvidos dela.
Krampus ficou observando-a durante pelo menos cinco minutos, fitando
as telas reluzentes, com o cenho franzido, mas em momento algum ela
ergueu o olhar, perdida em seu próprio mundo, sem perceber os convidados
demoníacos parados à sua porta. Krampus balançou a cabeça e seguiu em
frente, seguindo pelo corredor, dando a volta em loop, até que chegaram a
uma porta fechada coberta de pôsteres de videogames. Jesse ouviu
explosões abafadas e tiros de armas vindos de lá de dentro. Krampus abriu a
porta e eles depararam-se com um menino, com cerca de uns 8 ou 9 anos de
idade, sentado com as pernas cruzadas na ponta de sua cama. O menino
estava com a face voltada para a grande tela na parede afastada, detonando
uma diversidade de mortos-vivos que caíam; explosões e partes de corpos
embalando a tela.
Assim como com a garota, Krampus meramente ficou parado na entrada
e o observou por vários minutos. Além de seus polegares, o menino mal se
mexia, encarando a tela com olhos vidrados, com a boca semiaberta,
parecendo um paciente de lobotomia.
“Ele está enfeitiçado.” Decidido, Krampus cruzou o quarto até perto da
tela, a passos lentos, e a esmagou com seu punho.
O garoto agarrou o controle do videogame junto ao peito e ficou
paralisado, seus olhos ameaçando explodir. Krampus inclinou-se até o
menino.
“Você está livre. O mundo agora é seu. Vá tomá-lo.”
Krampus saiu do quarto, deixando o menino encarando-o, perplexo e
horrorizado. Os Belsnickels olharam para o menino e depois uns para os
outros.
“Nós acabamos por aqui?”, quis saber Vernon. Isabel assentiu e eles
acompanharam Krampus para fora da casa. Parando na entrada de carros,
Krampus olhou para a casa com um olhar profundamente perturbado.
“Parece que temos que lutar com outros demônios além do fantasma do
Papai Noel.”
Dillard estava sentado em sua cadeira reclinável, com um copo de uísque
em uma das mãos e o olhar fixo em sua TV de tela plana. Ela estava
desligada, mas ele a olhava mesmo assim, encarando a grande tela escura.
Ele esfregava a ponte do nariz, sua cabeça começando a doer. Havia tentado
dormir, mas ficou cansado de deitar-se naquela cama grande… sozinho.
Linda dormia no quarto com Abigail. Ela havia trancado a porta.
Ele tentou conversar com ela de novo, mas poderia muito bem ter falado
com a parede. Por fim, saiu do quarto, porque se não tivesse feito isso, se
tivesse que aguentar o rosto marcado pelo pesar dela, se tivesse que ouvir
aquela merda de soluços mesclados com choro por mais um segundo, ele
teria perdido o controle de novo, teria feito o que fosse preciso para que ela
enxergasse que fora Jesse, e não ele, que causara sua própria morte.
Ele tomou mais um gole da bebida e limpou a boca. As coisas
acabaram entre nós dois… é o fim. Você sabe disso. Você consegue ver isso
na cara dela. Ela vai deixar você. Na primeira chance que tiver.
As coisas estavam indo tão bem. Ele tinha aparecido no momento certo,
ajudara Linda a sair de uma situação difícil, e ela parecia realmente apreciá-
lo. Ele gostava disso. Gostava de como isso o fazia se sentir que nem um
cavaleiro com uma armadura brilhante. Tinha sido fácil com ela, fácil
controlar seu temperamento, fácil ser o cara legal. Mas Jesse não conseguia
deixar as coisas quietas.
Eu devia ter feito aquele rapaz desaparecer quando tive a
oportunidade, antes dessa merda toda, antes de tudo ficar tão arrombado
nessa desgraça. Antes de foder tudo infernalmente. Se eu tivesse feito isso,
se tivesse dado ouvidos aos meus instintos, então Linda e eu estaríamos lá
em cima, naquela cama grande e quente, juntos nesse exato minuto.
Ele pensou na esposa dele, Ellen, a doce Ellen, em sua face bondosa.
Ellen tinha sido uma boa mulher, tinha feito o seu melhor para agradá-lo.
Por que fui tão duro com ela? O que há de errado comigo? “Ellen, baby”,
ele sussurrou. “Meu Deus, como eu sinto a sua falta!”
Seu rádio da polícia emitiu um guinchado agudo e Dillard ficou
alarmado, quase derrubando seu uísque.
“Delegado, atendendo.”
Dillard deu uma olhada em seu relógio; eram três da manhã.
“Porra, e agora?”
Uma voz jovem cortou em meio à estática.
“Delegado, câmbio.”
Era Noel Roberts, o novo oficial; era só um rapazinho. Até onde Dillard
sabia, ele tinha começado a trabalhar em outubro. Dillard ainda não sabia
ao certo como se sentia em relação a ele. Noel fazia perguntas demais,
queria seguir todas as regras, não entendia que em cidades pequenas às
vezes as regras tinham que ser quebradas. Dillard tinha esperanças de que
isso mudasse logo, ou as coisas não dariam certo para Noel, não em
Goodhope.
Dillard pegou o rádio e apertou o microfone.
“Vá em frente, Noel. O que foi agora?”
“Código dezesseis, possível código treze. Duas localidades, câmbio.”
“Noel, quantas vezes vou ter que lembrar a você que agora está
trabalhando para a porra do Departamento de Polícia de Goodhope, e não
para o Departamento de Polícia de Nova York? Deixe dessa baboseira da
academia e fale comigo como um ser humano, certo? Agora, você está me
dizendo que teve duas invasões nessa noite?”
“Isso mesmo, delegado.”
Dillard revirou os olhos.
“Você se importa em me dizer onde foi?”
“Uma na Second e outra na Beech. Uma das invasões ocorreu
aproximadamente às duas da manhã. A outra, pouco depois, na residência
no fim da Madison.”
“No fim da Madison? Não é lá onde mora o doutor Ferrel?”
“Afirmativo. O doutor Ferrel reportou vários atos de vandalismo. O
suspeito esmagou a televisão dele.”
Dillard sorriu para isso. Para ele, o doutor Ferrel era um bundão
arrogante, um homem que falava com ele como se estivesse falando com
uma criança de 10 anos de idade, falando e falando com aquele sotaque
esnobe do norte do estado, dizendo a ele o que deveria ou não comer, beber
e pensar, por sinal. E, na opinião de Dillard, qualquer um que sentisse que
deveria falar bobagens assim sobre o lado bom de pontos de pesca com
mosca enquanto fazia exames de próstata deveria mesmo ter sua televisão
esmagada de qualquer forma. “Bem, essa é uma tremenda de uma pena”,
disse Dillard. “Provavelmente outro doidão viciado em metanfetamina.
Você conseguiu uma descrição do suspeito?”
“Sim. Um grupo de afro-americanos, trajando fantasias coloridas e
disfarces.”
Dillard pôs-se rapidamente de pé. Pareciam os rapazes de Jesse.
“Quantos? Que tipo de armas? Alguém ferido?”
“Nenhum relato de armas. Não sei ao certo quantos. Ninguém foi
ferido. E, delegado… a coisa estranha é que nada foi dado como roubado.
Apenas importunação e vandalismo.”
Isso não faz nenhum sentido, pensou Dillard. Por que invadiriam a casa
e não roubariam nada? De que diabos eles estavam atrás?
“E, além disso, o xerife foi chamado.”
Dillard ficou rígido. O xerife Milton Wright era um cara atirado e
conhecido por meter o bedelho em Goodhope sempre que encontrava uma
desculpa. Dillard sempre tinha como objetivo manter o homem e seu
bedelho longe de seus negócios.
“Bem, o que o nosso bom amigo xerife Wright queria?”
“Informar a nós que ficássemos de olho nisso. Ao que tudo indica, eles
tiveram pelo menos meia dúzia de chamadas similares. Invasões e entradas
nas casas, perturbações. As descrições batem com as dos nossos suspeitos.”
“Oh, merda”, disse Dillard, sem apertar o botão do microfone. “Que
porra está acontecendo?” Ele apertou o botão do microfone dessa vez.
“Noel, eu vou lidar com a casa na Second.” E, pensando no quão pouco
queria conversar com um homem que tinha um dedo enfiado no seu rabo,
ele disse: “Vou deixar que você cuide do bom doutor. Câmbio.”
“Sim, senhor, delegado. A caminho.”
Dillard foi até lá em cima para vestir-se, encontrou seu celular, fez um
telefonema para o General… sem resposta. Isso não deveria ser lá grande
coisa, mas Dillard não conseguia evitar… ele sentia uma crescente sensação
de inquietação. Ele terminou de se vestir, colocou o cinto, pôs sua arma no
coldre e dirigiu-se até a porta.
“Alguma coisa não está certa”, disse ele, balançando a cabeça em
negativo, “de jeito nenhum.”

JESSE FICOU observando as luzes de Goodhope desaparecerem atrás dele,


eclipsadas pelas escuras encostas da montanha. Eles se dirigiam para o
leste, mais adentro nas colinas do interior, deixando o presente de Yule de
Krampus em mais de três dúzias de lares espalhados por várias vizinhanças
ao longo de todo o leste do condado de Boone. Tudo seguiu bem na maior
parte das vizinhanças, melhor do que se poderia esperar em qualquer
invasão perpetrada por uma horda de diabos vestindo fantasias. Conforme
as horas adentravam a madrugada, a maior parte dos ocupantes das casas
estava dormindo profundamente, tornando tudo mais fácil. Jesse, Vernon e
Isabel incitaram Krampus a fazer uso das chaves, para entrar de fininho em
vez de bater à porta, e acharam isso melhor para todos os envolvidos.
Enquanto Krampus estava ocupado traumatizando crianças, eles dominaram
rapidamente como fazer os pais dormirem, certificando-se de que
permanecessem dormindo com um rápido lançar da areia do sono. E, em
um dos casos, eles descobriam que essa areia era igualmente eficaz nos
shawnees, quando um punhado exagerado acabou indo parar no rosto de
Nipi. Vernon disse ter sido um acidente, mas Jesse teve lá com suas
dúvidas. Nipi acabou dormindo no trenó pelas diversas paradas seguintes.
“O que foi aquilo?”, quis saber Krampus, apontando para baixo.
Jesse espiou abaixo deles, mas só se deparou com a floresta e grandes
extensões de mineração a céu aberto.
Krampus foi levado pela corrente, para baixo, até que eles estavam
voando ao longo da beirada das terras vastas de um projeto de extração. Ele
ficou encarando a paisagem devastada, com o rosto abalado, e Jesse
percebeu que Krampus estava se referindo a quilômetros de terra aberta e
aos topos de montanha dinamitados.
Krampus desceu o trenó em um planalto que dava para uma cratera feita
pelo homem. Os mais fracos traços da aurora espalhavam-se pelo horizonte,
expondo uma cicatriz nua e raivosa sobre o solo.
“Ora, isso vai tão longe quanto se pode ver.” O cenho do Senhor do
Yule ficou apertado como se estivesse tentando entender o que ele via.
“Homens fizeram isso?”
Jesse assentiu.
“Sim, eles fizeram.”
“Eles fizeram isso de propósito?”
Jesse assentiu.
Krampus caiu em silêncio.
“Por que eles destruiriam a floresta, as montanhas… a própria terra?”
“Por causa do carvão. Eles explodiram os topos das montanhas para
obter o carvão.”
Krampus balançou a cabeça, o rosto estupefato.
“Isso é como cortar o próprio braço para alimentar-se dele.”
Jesse nunca tinha realmente pensado nas coisas desse jeito, mas sim, ele
achava que essa era uma boa maneira de ver as coisas, tão boa quanto
qualquer outra.
O Senhor do Yule deixou pender os ombros.
“Logo não haverá nenhum lugar para os espíritos morarem… a terra
ficará uma terra sem alma… um lugar de fantasmas… assim como Asgard.”
Ele levou a mão às bochechas, seus dedos deslizando para baixo,
contorcendo o rosto em uma máscara de desespero. “A humanidade
realmente odeia a si mesma?” Sua voz baixou, mal passando de um
sussurro. “Como é possível superar tamanha irreverência?”
Krampus desviou o olhar e ficou fitando o brilho cor de salmão
crescendo no horizonte.
“Acredito que isso seja o bastante para uma noite. Vamos retomar.”
Ele estalou as rédeas e então eles subiram, dirigindo-se pelo vale
abaixo, seguindo de volta para Goodhope.
“OLHA!”, Isabel apontou para uma casa surgindo bem abaixo deles. “Aquela
é uma garotinha?”
“Onde?”, quis saber Jesse.
“Ali. O que ela está fazendo ali sozinha a essa hora da manhã?”
Jesse viu-a ali, parada, na neve, no meio de um grande campo. Uma
casa e um trailer simples estavam mais afastados na encosta da colina
acima; os únicos lares que Jesse conseguia ver por quilômetros.
Krampus baixou até o nível da árvore e a menina ergueu o olhar para
eles enquanto voavam até ela. Jesse achava que ela não poderia ter mais do
que 6 ou 7 anos de idade.
“Krampus”, disse Isabel, e segurou com força no braço dele. “Por favor,
aterrisse.”
Vernon inclinou-se para a frente.
“Se vamos colocar isso em votação, eu voto contra.”
Krampus também não queria fazer isso; ele ficara em silêncio desde que
descobrira a mina a céu aberto, mas resmungou e levou o trenó abaixo,
entre a menina e a casa.
A menina ficou observando enquanto eles desciam com o trenó pelo
declive em direção a ela. Ela não saiu correndo, não parecia nem um pouco
assustada, nem mesmo particularmente surpresa ao vê-los. Trajava uma
jaqueta de flanela detonada, grande demais para ela, com a bainha de sua
camisola aparecendo por baixo. Suas pernas estavam desnudas, expostas ao
frio dos joelhos para baixo, e Jesse percebeu que ela só estava com meias
nos pés. Ela parecia magra demais e estava tremendo, com olheiras escuras
sob os olhos, os cabelos ensebados e embaçados em seu crânio. Ela
segurava uma pá, e a ferramenta era imensa em suas pequenas mãos. Jesse
podia ver um trilho de neve onde ela estava tentando cavar na terra
congelada.
Isabel curvou-se e segurou na mão da menina.
“Bem, você está congelando. Quando foi a última vez em que você
comeu alguma coisa?”
A menininha limpou o nariz com o dorso da mão e ergueu o olhar para
Krampus.
“Você é o Satã?”
“Não, não sou Satã. Sou Krampus, o Senhor do Yule. E quem poderia
ser você?”
“Você veio levar o meu papai para o inferno?”
Krampus balançou a cabeça em negativa.
“Não, criança, por que você está me perguntado isso?”
Ela não respondeu, apenas virou a cabeça e dirigiu-se até a colina,
arrastando aquela grande pá atrás de si. Ela deixou a pá encostada na lateral
da casa, subiu os degraus na varanda e desapareceu casa adentro.
“Eles estão cozinhando”, disse Chet, apontando para um gerador e
diversos tanques de propano apoiados bem do lado de fora da janela do
porão.
“Cozinhando?”, disse Isabel.
“Metanfetamina”, disse Jesse.
Ela ainda não parecia entender isso.
“Drogas”, acrescentou Jesse. “Drogas das ruins.” Jesse olhou bem para
o lugar e não gostou do que viu. O campo não parecia ter sido cuidado
havia anos, os milhos do outono estavam todos secos e ainda em suas
cascas. Grandes seções do acabamento de vinil lateral tinham caído da casa,
jazendo em pilhas contorcidas no chão, expondo o papel de alcatrão e a
madeira compensada embaixo dele. Folhas de plástico e lonas estavam
presas com fita adesiva nas janelas, e diversas delas tinham se soltado e
ficavam ondeando com o leve vento. Ervas daninhas mortas
superdesenvolvidas e vinhas de amoras silvestres de estações anteriores
subiam pela casa e emaranhavam-se ao longo da varanda. O trailer ficava
separado da casa por uns vinte metros. Os tijolos de um dos lados tinham
cedido e o trailer apoiava-se na porta como se fosse um navio aportado, a
escuridão espiando de volta para eles em meio aos painéis quebrados dos
vidros das janelas.
O lugar emitia vibrações negativas, mais do que apenas negligência,
alguma coisa ruim mesmo, e vil. Jesse não conseguia lembrar-se de jamais
ter sentido algo assim. Ele se perguntava se isso tinha alguma coisa a ver
com seus sentidos aguçados, com o sangue de Krampus correndo em suas
veias. Apesar disso, ele não gostaria de subir lá. Olhou de relance para
Krampus e podia ver que o Senhor do Yule também se sentia assim.
“Parece que faz uma era que ninguém ajeita porra nenhuma aqui,
cacete”, disse Jesse.
“Viciados em metanfetamina”, disse Chet, e cuspiu. “Metanfetamina,
pessoas excêntricas, provavelmente gente raivosa também. Sabe, o que quer
que eles possam conseguir. Posso apostar minha bunda nisso.”
“Eis um prêmio que ninguém quer ganhar”, disse Jesse.
O rosto de Chet ficou azedo.
“Ser um idiota, estúpido e desprezível é algo natural em você, não?”
“Alguém precisa ir ver alguma coisa com aquela garotinha”, disse
Isabel.
A fraca iluminação reluzia, filtrada por entre persianas encardidas com
o tempo, provendo apenas luz suficiente para ver que a lâmpada da frente
tinha pegado fogo em algum momento, deixando o revestimento e a maior
parte do teto queimados e pretos. Os cheiros de umidade e madeira tostada
pairavam no ar. Havia um homem dormindo no sofá na parede mais
afastada, meio envolto por um cobertor, com os olhos pesados e turvos.
Com mãos que tremiam, ele arranhou distraído as feridas no rosto do
cachorrinho, e nem mesmo notou o bando de demônios do Yule que o
encarava.
Krampus deu um passo à frente, cutucou o homem uma vez nas
costelas. O homem ergueu o olhar para o Senhor do Yule e pareceu se focar
nele por um instante. O rosto do homem contorceu-se em uma máscara de
terror; ele gemeu, revirou-se e pressionou a face no sofá.
“Este é um… viciado em metanfetamina?”, quis saber Krampus. “Ele
tem essa doença?”
Chet assentiu.
“É, ele tem sim essa doença. Viciado em cristal de metanfetamina. Tem
ânsia por isso. Sabe, ele tem que usar isso ou fica na fissura!”
“Eu entendo de vícios. É como aqueles que são viciados em ópio.”
“É, que nem isso, só que bem pior. Esse pessoal, eles fazem essa merda
de qualquer químico em que conseguem botar a mão. Não comem, não
dormem, e lentamente isso corrói o cérebro deles.”
“Essa praga. Essa peste prevalece por toda essa terra?”
“É”, interpôs-se Jesse. “Graças a cuzões como o Chet aqui, pode ter
certeza.”
“Porra, Jesse!”, ladrou Chet. “As suas mãos não estão exatamente
limpas.”
Krampus balançou a cabeça, deixou o homem no sofá e continuou na
cozinha. Jesse apertou o interruptor, mas a luz não acendeu. Sob o brilho
turvo da manhã, eles conseguiam ver que alguém havia retirado todas as
portas dos gabinetes, que não havia restado nada nas prateleiras, exceto
alguns pacotes de papa de aveia instantânea e uma caixa de Froot Loops. O
lugar cheirava a mofo, e também cheirava a carne rançosa. Dezenas de
sacos de lixo estavam alinhados na parede mais afastada. Alguns, caídos,
com seus conteúdos espalhados pelo chão, outros com buracos feitos por
ratos, que os mascaram. Pilhas de louça suja enchiam a pia, balcões e a
parte de cima do fogão.
“Cacete”, disse Chet, prendendo o nariz com os dedos para não sentir o
mau cheiro. “Como é que as pessoas vivem em uma imundície dessas?”
Jesse espiou corredor abaixo, procurando por Isabel. A casa estava
quieta, estranhamente silenciosa. Ele sentia como se estivesse em uma casa
assombrada e, a qualquer momento, com certeza, algum horror pudesse
pular para cima dele de todas as sombras. Um clangor estridente veio de
algum lugar, possivelmente do porão, mas era difícil dizer com certeza.
“Ah, meu Bom Deus”, disse alguém, e parecia ser a voz de Isabel.
Jesse seguiu pelo corredor escuro, tentando não tropeçar em todo aquele
lixo.
Ele deparou-se com Isabel e a menina em um quarto nos fundos. Um
homem estava deitado, enrolado em um lençol em cima de um colchão sem
cobertas, com o olhar fixo para o teto. Sua pele cerácea e seus olhos fundos
não deixavam nenhuma dúvida de que ele estava morto… morto havia
muito tempo.
“Bem, que pena”, disse Chet por cima do ombro de Jesse. “Parece que o
condado de Boone tem um merdinha imbecil viciado em metanfetamina a
menos para viver às custas do dinheiro do governo.”
Isabel virou e fixou olhos raivosos em Chet.
“Cala a porra de sua boca”, sibilou ela. “É do pai dela que você está
falando!”
Chet encolheu-se e olhou para a menininha.
“Não percebi… que diabos, me desculpa.”
“O nome dela é Lacy.”
A menininha não se virou, ela nem mesmo parecia ter ouvido nada,
apenas ficou lá, com os olhos fixos no homem morto. Isabel curvou-se para
baixo e puxou o lençol para cima, cobrindo a cabeça dele. Krampus e os
outros ficaram parados, em pé, na porta. Ninguém se pronunciou.
“Ela disse que faz um tempinho que ele morreu”, disse Isabel. “Talvez
uns quatro ou cinco dias. Era isso que ela estava fazendo lá fora, no frio,
tentando cavar uma cova para o papai dela, porque ninguém mais faria
isso.”
“Isso daí”, perguntou Krampus, apontando para o cadáver. “A doença?
A metanfetamina?”
Chet assentiu.
“É, existe um limite que o corpo consegue aguentar, sabe?
Provavelmente ele tem tantos químicos nas veias que os caras nem mesmo
vão se dar ao trabalho de embalsamar o corpo.”
Isabel pegou a garotinha pela mão.
“Precisamos levá-la a algum lugar quente. Arrumar alguma coisa para
ela comer.”
“Você está planejando simplesmente pegar a filha de alguém?”,
perguntou Chet. “Tem certeza de que quer fazer isso?”
Ela olhou para Krampus.
“Eu não vou deixar a menina aqui.”
Krampus assentiu distraído, a expressão em sua face impossível de ser
lida, com o olhar fixo no corpo. Isabel ajoelhou-se ao lado da menina.
“Você quer vir conosco? Quer comer alguma coisa?”
A menina limpou o nariz e assentiu.
“Bem, isso é tudo de que precisa”, Isabel falou e conduziu Lacy em
meio aos Belsnickels, saindo no corredor. Os Belsnickels ficaram lá
parados, incertos, observando Krampus, esperando pelo próximo
movimento dele.
O silêncio foi cortado por um grito estridente:
“Quem diabos são vocês?”
Jesse saiu aos empurrões da sala e viu uma silhueta de costas indo em
direção à cozinha, bloqueando o caminho de Isabel. Uma mulher
esquelética, com longos cabelos fibrosos, parecendo tão perto da morte
quanto uma pessoa viva, estava parada diante da porta do porão. Ela fedia a
elementos químicos.
“O que vocês tão fazendo aqui?” Ela avistou Lacy. “O que estão
fazendo com a minha filha? Que caralhos estão fazendo? Afastem-se dela,
estão me ouvindo?”
Isabel soltou Lacy, agarrou a mulher e a empurrou contra a parede.
Segurou-a com força pelo maxilar, torceu o rosto dela e forçou-a a olhar
para a garotinha dela. “Olhe para ela! Veja! Sua filhinha está passando
fome… à beira da morte por inanição! Ela não está calçando sapatos. Está
tão frio que não consegue parar de tremer. Que tipo de mãe você é? Diga-
me, hein?”
A mulher piscou. Seus olhos encheram-se de dor e de horror. Era como
se estivesse vendo sua filha pela primeira vez em um bom tempo, e Jesse
achava que isso era provavelmente verdade.
Isabel soltou-a e ela deslizou para o chão, ficando de joelhos.
“Ah, docinho”, disse a mulher, com a voz partida, e começou a chorar e
a soluçar. “Eu sinto tanto. Vamos arrumar alguma coisa para você comer.”
Ela esticou sua mão ossuda para a menina, que mais parecia uma garra.
“Venha… a mamãe vai fazer queijo grelhado para você. Venha, doçura.”
A menininha recuou, tentando esconder-se atrás de Isabel.
A mulher franziu o cenho e sua voz tomou-se carregada de tensão.
“Docinho, venha aqui. Agora!”
A garotinha balançou a cabeça em negativa e ficou parada onde estava.
A mulher começou a tremer, seu rosto contorcendo-se em algo
miserável e grotesco. Ela viu Krampus e olhou com mais atenção para os
Belsnickels. Seus olhos começaram a ter ataques espasmódicos, seus lábios
começaram a tremer.
“Demônios”, sussurrou a mulher. “Alguém deixou demônios entrarem
na minha casa.” Ela ficou em pé, apontou um dedo para eles e gritou
estridentemente: “Diabos! Oh, meu Deus, salve-nos! Venha aqui, meu bebê,
não deixe que eles ponham as mãos em você!”
A mulher deu um passo para a frente, pegando Isabel de surpresa,
empurrando-a para trás. Isabel tropeçou e caiu por cima de um monte de
lixo. A garotinha tentou sair correndo, mas a mulher pegou-a por um
punhado de seus cabelos, puxou-a e fez com que girasse, começando a
arrastá-la. Jesse foi voando para a frente e pegou a mulher pelo braço.
Vernon estava em prontidão; ele apressou-se e jogou um punhado de areia
do sono diretamente na face da mulher, que deixou sair um grito, limpou os
olhos, soltando a criança. Isabel ficou em pé, apanhou Lacy e a empurrou
pelo corredor, desaparecendo cozinha adentro.
A mulher parou de lutar por um instante, parecia confusa, espirrou e
depois os avistou novamente.
“Diabos!”, exclamou ela, e começou a estapear Jesse e a enfiar nele as
unhas que pareciam garras. Vernon jogou mais areia na boca e no nariz da
mulher. Ela tropeçou para trás, cuspindo e limpando o rosto, espirrou de
novo e caiu com a bunda no chão. Mesmo assim, ela continuava consciente,
olhando para eles com ódio enquanto passavam por ela.
“Droga”, disse Vernon. “Você viu aquilo? Um punhado cheio e ela
ainda está ativa!”
“É a droga”, disse Chet. “Ela está tão dopada que nada vai derrubar essa
mulher.”
Eles deixaram a mulher no corredor, passaram pela cozinha e entraram
na sala da frente. Deixaram o homem, quem quer que ele fosse, deitado no
sofá. Ele estava com o cobertor puxado até o nariz, seus olhos assombrados
os acompanhavam enquanto deixavam a casa. Eles foram descendo os
degraus da varanda a passos pesados, alcançando Isabel no quintal. Isabel
tirou seu gorro de panda da cabeça e enfiou-o na cabeça de Lacy. A
garotinha ainda chorava e soluçava, pressionando o rosto no ombro de
Isabel.
Isabel virou enquanto eles se aproximavam e, de repente, seus olhos
ficaram arregalados, ela soltou um grito, e Jesse avistou a mãe de Lacy.
Vinha correndo atrás deles, parecendo ter surgido do nada. Ela segurava
com firmeza uma espingarda, e a expressão nos olhos dela era séria. Antes
que qualquer um pudesse se mexer, que pudesse fazer algo mais do que
gritar, ela mirou a arma em Krampus e puxou o gatilho… a rajada,
ensurdecedora de tão próxima, ecoou acima e abaixo no vale. A bala
acertou a parte de trás do ombro esquerdo, fazendo com que o Senhor do
Yule girasse e caísse no chão.
O rebote da arma fez com que a mulher recuasse um passo. Ela
endireitou-se e agiu rapidamente, tirando a bala usada e carregando uma
nova. Mirou o cano na cabeça de Krampus. “Diabo!”, disse ela com seu
grito estridente. Makwa jogou-se entre o cano da arma e Krampus. Outro
bum! explosivo seguiu-se e o peito de Makwa abriu-se em um borrifo de
sangue e carne. O grande shawnee caiu duro no chão, tropeçando nos pés de
Krampus.
Krampus então se mexeu mais rápido do que Jesse achava que fosse
possível. Antes que a mulher pudesse colocar mais munição na câmara da
arma, ele já tinha chegado nela. Ele soltou um rugido trovejante e girou; um
golpe de suas garras para cima acertou o intestino delgado da mulher,
arregaçando-a e virando-a praticamente do avesso. Ela bateu na lateral da
casa, borrifando sangue e pedaços de carne pelo acabamento de vinil. Ela
caiu em um montículo, com uma das pernas torcidas atrás de suas costas.
Ela olhava para uma grande ferida que subia pela barriga, para o vapor
saindo de suas entranhas expostas. Ergueu uma das mãos e apontou para
Krampus, tentou dizer alguma coisa, mas não conseguiu. Seu braço caiu,
seus olhos ficaram congelados no Senhor do Yule.
Isabel cobriu os olhos da garotinha, pegou-a no colo e desceu
rapidamente a colina em direção ao trenó.
Krampus ficou parado, observando com ódio a mulher morta, com os
olhos em chamas, o peito subindo e descendo com sua respiração, grandes
rajadas de vento saindo em ondas de seu nariz e de sua boca no ar invernal,
seu rabo estalando para a frente e para trás. Ele deu um passo em direção a
ela, cerrando e descerrando seus dedos em garras como se estivesse prestes
a dilacerar o corpo em pedacinhos, ignorando o sangue que escorria de suas
costas, vindo das feridas que salpicavam seu ombro. Makwa soltou um
gemido fraco e tossiu, cuspiu um bom punhado de sangue. Krampus parou,
seus olhos depararam-se com o grande shawnee, e o fogo deixou os olhos
do Senhor do Yule, sendo substituído por uma profunda tristeza.
“Não”, sussurrou ele.
Krampus foi até Makwa e prostrou-se com os dois joelhos no chão. Ele
ficou encarando a terrível ferida que cruzava o peito do homem e a poça
vermelha de sangue que se espalhava, derretendo-se e mesclando-se à neve.
Makwa esforçava-se para respirar, inalando grandes goles de ar, e um ruído
fino e sibilante, ofegante, de respiração dificultosa, vinha de seu peito.
Krampus segurou a mão do homem entre as suas e o encarou
diretamente nos olhos.
“Makwa, meu mais valente guerreiro!” Suas palavras eram sinceras e
medidas. “Os grandes espíritos o chamam. Chegou a hora de você ir até
eles, para ser honrado por sua lealdade e valentia. Mishe Moneto coletou
todas as suas grandes penas e todos esperam por você com um festim
magnífico. Vá até eles com a cabeça erguida. Assuma o lugar que é seu por
direito!”
Os olhos de Makwa focaram-se em alguma coisa que estava além de
Krampus. Ele assentiu e sorriu.
“Eu… eu os vejo, Senhor Krampus.” Lágrimas escorriam pelas
bochechas dele. Ele não disse mais nada, seus olhos congelados nos céus.
Lentamente, os olhos do grande shawnee mudaram de cor, passando do
laranja para castanho escuro. O vento erguia em uma lufada neve seca e
cascas de milho girando nos ares ao redor, pelo campo, desparecendo pelas
florestas adentro.
Krampus abriu um sorriso.
“Makwa voa com suas grandes penas.” Ele deslizou o braço sob o
grande homem, ergueu-o como se fosse leve como uma pena, pôs-se de pé e
dirigiu-se até o trenó.
Isabel ficou esperando, com a menina no colo, cujo rosto estava
pressionado no ombro de Isabel, e a menininha chorava baixinho. Os
Belsnickels assumiram seus lugares e Krampus entregou o corpo a Wipi e
Nipi.
Krampus subiu a bordo do trenó, estalou com gentileza as rédeas, e os
bodes puxaram o trenó para o ar. Começou a nevar de novo, e ninguém
proferiu nenhuma palavra que fosse enquanto flutuavam por cima das
colinas e pelos pequenos vales, seguindo seu rumo de volta em direção a
Goodhope.
Dillard dirigiu sua viatura até o complexo do General e parou lá, com o
motor ocioso, encarando o portão aberto enquanto seus limpadores de para-
brisa empurravam a neve semiderretida de um lado para o outro no vidro.
Ele não conseguia se lembrar de nenhuma vez que fosse em que aquele
portão tivesse sido deixado aberto. Não havia ali nenhuma trilha recente de
ninguém indo ou voltando na neve.
“Isso não está certo”, disse ele, baixinho.
Dillard tinha tentado ligar para o General na noite anterior e na maior
parte daquele dia pelo menos uma dúzia de vezes. Estava quase ficando
escuro e ele ainda não tinha nenhuma resposta. Dillard tinha até mesmo
tentado falar com Chet… e nada. Ele gostava de ter o controle rígido sobre
uma operação, tinha necessidade de saber o que estava acontecendo o
tempo todo, precisava estar no comando, e ele tinha certeza, que merda!, de
que não se sentia no controle naquele exato momento! Não com toda a
insanidade que andara acontecendo nos arredores de Goodhope nos últimos
dias.
Ele estacionou no complexo e subiu atrás da caminhonete de Jesse.
Ainda havia muitos veículos por lá, e, mais uma vez, por causa da neve,
dava para ver que nenhum deles tinha saído do lugar desde a noite anterior.
Ele não gostava, não gostava nem um pouquinho disso, porque, a menos
que estivessem fazendo alguma espécie de festa do pijama, não deveria
haver mais ninguém ali. As portas de todas as baias estavam baixadas, mas
a porta lateral estava aberta, e ele podia ver uma boa quantia de pó e neve
empilhada na entrada.
Dillard desligou o motor da viatura. Não teria como chamar ajuda, não
nesse caso; a última coisa de que precisava era que Noel metesse o bedelho
ali… que ficasse fazendo perguntas demais. Não, ele estava sozinho.
Dillard esfregou os olhos, sua cabeça ainda doía. Ele não tinha ido dormir
até as seis horas naquela manhã, correndo de uma chamada para a próxima.
Quando, por fim, foi para a cama, mal conseguiu dormir, preocupando-se
por quais motivos o General não retornou nenhuma de suas ligações.
“Estou ficando velho demais para essa merda.”
Ele puxou o copo de café do suporte. O café estava frio e insípido, mas
ele o bebeu mesmo assim, depois saiu da viatura e andou em meio à neve
semiderretida até a porta.
Ele empurrou-a, passou pela entrada e acendeu a luz do corredor.
Rastros… havia pelo menos três conjuntos de pegadas amarronzadas, que
davam para fora da baia. Ele sabia que se tratava de sangue, estava dando
duro para se convencer de que era o sangue de Jesse… que tinha que ser o
sangue dele, porque Dillard não queria considerar outra alternativa. Ele
sacou a pistola, destravou a trava de segurança e seguiu as trilhas até uma
porta de aço que dava para dentro da baia. Ele colocou a mão na fechadura
e girou-a uma vez, empurrando a porta para dentro. Estava meio escuro ali,
a única luz vinha das lâmpadas vermelhas de Natal, mas era o suficiente
para ver os homens que jaziam pelo chão, em pilhas… e não estavam
dormindo. Ele apanhou a lanterna do cinto, acendeu-a e apoiou-a com
firmeza debaixo do revólver, mantendo a arma mirada no feixe enquanto
fazia uma busca pelo aposento.
Seu coração batia como um tambor.
“Caralho, caralho, caralho!”, sussurrou ele, engolindo em seco e se
forçando a manter-se firme. Ele havia visto muitas mortes em seus trinta
anos na força policial; não era o sangue que o incomodava, era a selvageria
da carnificina que via a sua frente. Estes não se tratavam de assassinatos
típicos das gangues da região, aqueles homens haviam sido dilacerados,
tinham feito picadinho deles, estavam com os braços, as pernas e as
entranhas espalhados por toda parte. O cheiro de sangue e de carne
putrefata o sobrepujava. Dillard tossiu, começou a vomitar, pressionou o
nariz na dobra do braço, tudo isso enquanto tentava olhar para tudo ao
mesmo tempo.
Ele não encontrou nenhum sinal de vivalma, não ouviu nada, e, quando
seus olhos ajustaram-se à escuridão, começou a relaxar um pouquinho. Ele
imaginava que, pelo sangue seco, essa carnificina havia acontecido muitas
horas antes, e convenceu-se de que quem quer que tivesse feito isso devia
ter ido embora fazia muito tempo. Ele analisou cada corpo, em busca do
General, espiando as faces, algumas tão mutiladas que ele não conseguia
reconhecê-las. Não encontrou o General nem Jesse, a propósito, mas o que
ele encontrou foi a cadeira em que Jesse devia ter ficado preso, e viu a fita
cortada. Alguém havia partido as fitas e soltado Jesse, alguém o havia
tirado dali.
“Como é que você fez isso, Jesse? Como diabos você saiu dessa?”
As mãos de Dillard tremiam. As coisas estavam saindo de seu controle.
Que inferno, as coisas estavam fora de seu controle. Dillard forçou-se a
inspirar profundamente várias vezes.
Uma luz ainda brilhava no andar superior do escritório do General.
Dillard cruzou a baia e subiu as escadas. A porta estava aberta. Isso está
errado, tudo em relação a isso está errado. Nada parecia ter sido tocado,
nenhuma gaveta esvaziada, e ele também não encontrou nenhum sinal do
General. Dillard concluiu que eles poderiam ter levado o homem com
eles… talvez para extorsão ou apenas pelo prazer de torturá-lo até a morte.
Problema dele, pensou Dillard. Tenho meus próprios problemas. Ele
olhou de relance para trás, para baixo, para os corpos. Como diabos vou
conseguir encobrir essa porra toda? Mais uma vez, ele sentiu seu coração
ficar acelerado, sentiu aquela dor no peito. Estou pensando demais nisso.
Talvez eu não tenha que encobrir nada, não? Essa poderia ser a bênção
pela qual eu vinha rezando. Ele assentiu. Resolve um monte de problemas.
Especialmente um grande problema que atende pelo nome de Sampson
Ulysses Boggs. Não tenho mais que me preocupar com o comportamento
errático dele, nem com ele detonando tudo e me derrubando com ele. E… e
visto que todos os merdinhas com quem trabalhava estão aqui mortos com
as tripas arregaçadas, não sobrou ninguém vivo para ser silenciado. Tudo
que tenho que fazer agora é… merda… não. Ele balançou a cabeça. “Jesse.
Tem o maldito do Jesse.” E Jesse vai falar. Ah, rapaz, se Jesse não vai
falar! Vai contar a eles tudo que sabe sobre mim e então um pouco mais. É
claro que isso presumindo que o tragam vivo. Quais são as chances de isso
acontecer? Dillard não sabia, mas não gostava de pontas soltas. Ele gostava
de todas as pontas amarradinhas, tais como suas vasilhas de Tupperware
coordenadas por cores na prateleira, e com as tampas dentro da gaveta de
tampas.
“Eu tenho que encontrar aquele rapaz. Tenho que chegar até ele antes
que outro chegue. Calar a boca dele para todo o sempre.” Dillard dirigiu-se
para fora, chegou até a parte de baixo das escadas e parou, com o rosto
anuviado. Existem outras complicações, não? E se eles trouxerem Jesse
vivo e Linda e Abigail corroborarem a história dele? Que inferno, até
mesmo se não o trouxerem. Linda poderia pender para o lado de Jesse. Com
o General fora da parada, ela poderia apenas se apresentar por conta
própria. Se eles chamarem os caras da Corregedoria, com certeza ele teria
muito o que explicar. Simplesmente não poderia se dar ao luxo de levantar
nenhuma suspeita, ponto final. Não posso simplesmente fazer com que
Linda e Abigail desapareçam, não é assim tão fácil. Não, Dillard tinha
conseguido livrar-se de uma esposa sem levantar nenhuma pista fétida, mas
ter duas mulheres desaparecendo de sua vida não cairia bem perante as
pessoas. Acrescente-se uma garotinha a isso e alguém acabaria entendendo
tudo que aconteceu.
Os olhos de Dillard percorriam, indo e voltando, toda aquela carnificina.
“Que porra!”
Seu peito começou a ficar apertado de novo. Ele deparou-se com Ash
com o olhar fixo nele, fitando-o sem piscar, com a boca rasgada em algo
que se assemelhava a um sorriso, não um de zombaria, mas o sorriso de
alguém que sabe da resposta a um enigma antes da gente.
“O quê? O que é…?”
Dillard fechou a boca. Assentiu devagar. Ele entendia isso, era algo
único, extraordinário. Logo se viu sorrindo em resposta.
“Então, Ash, corrija-me se eu estiver errado, mas da última vez ouvi
dizer que Jesse estava andando com um bando de maníacos assassinos. Se,
digamos, Linda e Abigail acabarem aparecendo mortas, vítimas de uma
selvagem invasão em casa… as pessoas não teriam nenhum problema em
acreditar nisso, não é? O que você me diz, Ash? Faz um perfeito sentido,
você não acha? Um marido rejeitado cheio de fúria movido pelos ciúmes.”
Dillard assentiu. “Então, tudo que tenho que fazer é conduzi-los até você e
seus camaradas mortos aqui. As pessoas farão a conexão realmente rápido.
Ora, tudo vai se encaixar como um belo quebra-cabeça. Ninguém
suspeitaria da minha mão em nada disso. Não, eles estariam ocupados
demais lamentando por mim.”
Ele colocou suas luvas e voltou a descer para a oficina. Encontrou um
saco plástico e pegou um rolo de fita adesiva, uma faca, umas poucas
ferramentas e saiu limpando as maçanetas, tomando o cuidado de borrar os
rastros de suas botas enquanto saía e de limpar o sangue de suas solas na
neve derretida. Ele planejava voltar, para ser aquele a chamar o pessoal.
Porque seria melhor que fosse ele a descobrir a cena do crime, o jeito mais
fácil de explicar qualquer evidência que ele pudesse ter deixado para trás.
Mas nunca é ruim ser cauteloso demais, para manter as coisas
arrumadinhas, exatamente como seus potes de Tupperware.
Ele abriu a porta da caminhonete de Jesse, abriu o porta-luvas e colocou
algumas coisas de Jesse no saco, evidências a serem deixadas para a equipe
forense. Voltou a entrar em sua viatura, acionou o motor, ficou lá sentado
até que o gelo saísse da janela e então dirigiu para casa.

ERA CREPÚSCULO quando Jesse acordou. Ele sentou-se em um movimento


rápido, surpreso por ter dormido por tanto tempo e tão profundamente.
Deparou-se com Isabel e Lacy sentadas a uma mesa improvisada com um
saco de laranjas, um pedaço de queijo, uma jarra de leite e alguns biscoitos
gigantescos na frente delas. Lacy espiava por sob o gorro de panda, com um
bigode de leite e mastigando ruidosamente um biscoito. Jesse achava que
Krampus deveria ter pego a comida da cozinha de alguém usando o saco,
talvez alguém que tinham visitado. Ele se perguntava se por acaso seria
alguém sortudo o bastante para testemunhar o braço sem corpo de Krampus
pegando comida de seu balcão. Jesse procurou por Krampus, mas viu
apenas Chet e Vernon enroscados nos assentos, e o lobo manco perto do
fogão a lenha.
“Foram enterrá-lo”, disse Isabel.
Jesse assentiu e teve esperanças de que ter seu peito arregaçado não
fosse a única saída dessa loucura. Ele enfiou as botas nos pés de novo,
sentindo a profunda dor em suas mãos. Balançou os dedos. Eles estavam
quase de volta ao normal. Ele sugou o ar profundamente, sentiu uma súbita
dor aguda no peito e nas costas devido ao ferimento de faca, mas a
respiração estava boa agora. Notou que sua pele tinha ficado mais escura e
que, enquanto os efeitos de cura do sangue de Krampus entravam em ação,
o mesmo acontecia com as mudanças externas. Ele rastejou até ficar de pé e
foi andando a passos lentos, notando uma forma de torta cheia de balas de
chumbo ensanguentadas ao lado do fogão.
“Eles tiraram todas?”
“O quê?”
“A munição da espingarda de caça… do ombro de Krampus?”
Isabel acompanhou o olhar dele para a forma.
“Creio que sim.”
Um brilhante laço vermelho estava em cima da cabeça de Isabel. Jesse
notou outros dois presos nas costas da jaqueta dela, um na jarra de leite, e
pelo menos meia dúzia deles em Lacy. Ele avistou alguns sacos de laços de
colar, junto a vários rolos de papel de embrulho velho, saindo de caixas de
papelão. Jesse abriu um sorriso forçado.
A menininha olhou com timidez para ele. Ela parecia melhor, com os
olhos alertas, com um pouco de cor no rosto, mas Jesse sabia que essas
cicatrizes emocionais iam fundo e se perguntava se essa menina as
carregaria pelo resto da vida, e esperava que ela tivesse sorte e que sua
mente fosse suprimir o pior. Ele soltou um suspiro, sabendo que raramente
esse seria o caso, que, com mais frequência do que o contrário, o ciclo de
abuso e dependência só continuava acontecendo. Jesse deslizou uma das
caixas para um canto e sentou-se ao lado dela.
“Ei, mocinha, como você está?”
A menina deu de ombros e aproximou-se mais de Isabel, que colocou
um braço em volta e deu um apertãozinho nela. Jesse notou a forma como
Isabel olhava para a menina e se perguntava como ela lidaria com isso
quando chegasse o momento de abrir mão da menina. Jesse deu um
puxãozinho em uma das orelhas peludas do panda, puxando o gorro para
baixo e por sobre os olhos de Lacy.
“Gosta desse gorro, não?”
A menina empurrou o gorro para cima e assentiu, tímida.
Jesse tirou o laço vermelho da jarra de leite e prendeu-o na ponta de seu
nariz.
“Você tem algum parente por perto?”, perguntou ele. “Conhece alguém
que poderia ficar com você?”
A menina olhou de relance para Isabel, com uma expressão perturbada
no rosto.
Isabel desferiu a Jesse um olhar de aviso e esfregou as costas da
menina.
“Não se preocupe, boneca. Ninguém vai levar você a nenhum lugar
aonde você não queira ir.”
Jesse deu de ombros.
“Tudo bem, então… isso está decidido.” Ele tirou o laço do nariz e
colocou-o em cima de sua cabeça. “Lacy, por um acaso você estaria
disposta a me dar um dos seus biscoitos enormes?”
Lacy assentiu e entregou um biscoito a ele.
“Ei, Lace, veja o que sei fazer.” Jesse abriu a boca ao máximo e enfiou
o biscoito dentro dela. Ele ficou fitando a menina, com as bochechas
inchadas e os lábios estirados em volta da circunferência do biscoito. Ela
olhou rápida e inseguramente de relance para Isabel, então Jesse começou a
mastigar, bufando, roncando como um porco e fazendo outros ruídos de
porcos.
“Qual o seu problema, diabos?”, perguntou Isabel, torcendo o nariz em
repulsa. Em resposta, Jesse caiu na gargalhada, fazendo voar migalhas de
biscoito pela mesa e no colo de Isabel.
“Ah, eca!”, gritou Isabel, mas o rosto todo de Lacy ficou radiante e ela
ria e dava risadinhas como uma garotinha deveria fazer. Uma risada boa,
pensou Jesse, e sentiu que poderia haver esperança para ela no fim das
contas. A cara fechada de Isabel aliviou-se e virou um largo sorriso. “Ele é
muito engraçado, né? Um verdadeiro palhaço.”
Lacy abriu um largo sorriso em resposta, mexendo a cabeça para a
frente e para trás e para um lado e para o outro, e o jeito bobo como ela
fazia isso lembrou a Jesse de sua Abigail, a ponto de ele sentir como se
alguém o tivesse socado no peito. Sentiu o ardor das lágrimas, de repente
com tanta saudade de sua própria filha que a dor chegava a ser física. Jesse
puxou o biscoito de sua boca, levantou-se e foi andando até a janela, sem
querer que ninguém visse que estava piscando para livrar-se das lágrimas.
Onde estaria Abi agora? Estaria ela a salvo? Ele apoiou os cotovelos em
cima do velho piano e ficou fitando o outro lado da paisagem invernal,
olhando para o crepúsculo que se aproximava. Será que Dillard tinha ficado
sabendo do massacre no covil do General? Se isso tinha acontecido, o que
será que faria em relação a isso? A que ponto ele chegaria para encobrir seu
próprio envolvimento naquilo? Será que Linda e Abigail estavam em
perigo? Ele não vai matá-las, não irá assim tão longe. Jesse passou a mão
com força pelos cabelos. Você está se iludindo. Você sabe exatamente do
que aquele homem é capaz. Ele vai querer as duas fora de cena, e logo.
“Merda”, sussurrou Jesse.
Ele sentiu a mão de alguém em seu ombro e virou-se.
“Você está se preocupando com sua filha”, disse Isabel. “Não está?”
Jesse assentiu. “É difícil, eu sei. Aquela sensação de alguém precisando da
gente e a gente não pode estar lá para ajudá-los… não pode fazer nada em
relação a isso. Dilacera a gente por dentro.”
Jesse olhou para ela e pode ver que ela precisava dizer alguma coisa.
Ele esperou, dando espaço a Isabel.
“No outro dia… quando lhe falei sobre tentar me matar… havia mais
em relação a isso.”
“Achei que pudesse haver mesmo.”
“Meu filho… o nome dele é Daniel.”
Jesse não conseguia esconder sua surpresa e tentava entender como
Isabel podia ter um filho.
“Sinto falta dele… todos os dias.” Ela esperou que Jesse falasse alguma
coisa, mas ele não fazia ideia do que dizer, não para algo assim. “Não foi
um casinho à toa”, continuou ela. “Não sou assim. Eu o amava. Eu o amava
muito. Dei ao nosso filho o mesmo nome dele.”
Jesse assentiu.
Ela analisou-o por um minuto.
“Às vezes, pode ser difícil para as pessoas entenderem. Elas costumam
pensar o pior da gente.”
“Não estou em posição nenhuma de julgar ninguém. E não pensaria o
pior de você nem se estivesse.”
“Eu sei que você não faria isso. Não me importo muito com o que as
pessoas pensam de mim, não mais, não em relação a isso, de qualquer
forma. Mas eu quero mesmo que você saiba por que as coisas aconteceram
daquela maneira. Por que eu deixaria meu próprio bebê.”
Eles ficaram olhando enquanto Lacy pegava e levava um dos biscoitos
até Freki. A garotinha não era muito maior do que a cabeça do lobo. Freki
cheirou o biscoito, então lambeu-o diretamente na mão da menina. Lacy
deu risadinhas.
“Eu não tinha muitos amigos”, disse Isabel. “Visto que eu fazia parte da
família Mullins e tal. O pessoal tendia a ficar bem longe de nós, os Mullins,
por causa dos problemas mentais que tínhamos na nossa linhagem. Eu sei
que foi por isso que meu pai foi embora, por causa dos surtos da mamãe. Eu
conhecia o Daniel desde os meus 6 anos de idade, ele era o único amigo de
verdade que eu já tive na vida, mas isso não fazia nenhuma diferença para a
minha mãe. Ela não permitia que namorássemos. Dizia que eu era nova
demais, e talvez eu fosse mesmo, mas isso não nos impediu de ficarmos
juntos. Começamos a nos encontrar escondidos; namoramos em segredo
durante mais ou menos um ano. E, durante aquele tempo todo, não fizemos
muita coisa além de darmos uns beijos e ficarmos de mãos dadas. Quer
dizer, o Daniel fez uns poucos avanços, de leve, mas ele era tímido demais
em relação a essas coisas. Ele sempre tinha sido meio desajeitado, e as
outras crianças gostavam de provocá-lo quanto a isso, sabe? Mas era disso
que eu gostava nele… ele era um patetinha e tanto… havia uma tremenda
de uma doçura nesse jeitinho dele.
“Então ele foi chamado para o exército. Vietnã. Aqueles desgraçados
enviaram a notificação a ele uma semana depois de seu décimo oitavo
aniversário… uma droga de semana depois! Lá se foi ele para o Forte
Bragg. E, naqueles dois meses em que ele ficou em Basic… aqueles foram
os mais longos dois meses da minha vida. O exército só lhe deu quatro dias
de folga antes de mandá-lo em um navio até o Vietnã, e ele passou a maior
parte desse tempo em um ônibus, vindo para casa para me ver. Quer saber o
que ele tinha feito enquanto estava em Bragg?” Isabel olhou para Jesse.
“Quero sim.”
“Ele tinha guardado todo o soldo dele para me comprar algo especial.”
Ela puxou um cordão de dentro de seu casaco, do qual pendia um anel de
ouro. “Tive que pendurar no meu pescoço, porque não serve mais no meu
dedo. Ele não tinha como pagar por um anel de diamante, mas o ouro é de
verdade! E foi então que, naquela noite, depois que ele me deu esse anel,
depois que prometeu casar-se comigo, foi então que fomos para a cama.
Planejamos o casório para assim que ele voltasse. Era o nosso segredo.
Uma coisa única entre nós dois e que tornava tudo mais especial. No
entanto, as coisas nem sempre saem do jeito como a gente quer… ou
espera. A vida não é assim.”
“Ele não voltou, não foi?”
“Ele pisou em uma mina. No primeiro mês em que esteve lá. Um passo
tirou-o de mim para sempre.”
“Eu sinto muito, Isabel.”
“Eu também”, disse ela, secando as lágrimas com leves tapinhas com as
pontas dos dedos. Ela sentou-se no banco do piano. “Então, lá estava eu,
grávida e sem um homem. Eu não era a primeira menina a me encontrar em
uma situação dessas, mas não dava para notar que eu estava grávida, não
naquele tempo.
“Por volta da época em que mandaram o corpo dele de volta por navio,
estava começando a ficar visível que eu estava grávida. Eu era tão
pequena… e o bebê era grandinho… então minha mãe descobriu logo e,
quando isso aconteceu, ela me trancou no guarda-roupa e leu as Escrituras
para mim do outro lado da porta durante dois dias. Quando me deixou sair
do armário, ela me disse que eu teria que me livrar do bebê. Eu disse a ela
que isso ia contra o que pregava a Bíblia. Mas minha mãe tinha a tendência
a prestar atenção somente ao que ela queria da Bíblia Cristã. Ela me disse
que ia me levar para visitar uma mulher que ela conhecia lá em Madison…
uma mulher que consertava as coisas…
“Aquele bebê era tudo que me restava do Daniel. De jeito nenhum que
eu ia deixar que eles matassem a carne e o sangue dele! E eu disse isso a
ela. Deixei claro que ela teria que me matar primeiro. E… bem”, Isabel
pigarreou. “Ela tentou fazer isso… aquela mulher me deixou passando
fome, tentou até mesmo me envenenar uma vez. Ela não me deixava sair da
casa, mantinha as persianas fechadas, tamanho era o medo dela de que
alguém viesse a descobrir que sua filha estava grávida.
“No entanto, de alguma forma, eu tive aquele bebê, eu o tive no chão do
banheiro. E, quando o tive, quando vi o bebê, o menininho, então eu soube
que o espírito do Daniel estava cuidando de nós, porque nosso bebê estava
vivo… vivo e ele era saudável. Ele tinha pulmões fortes e deixou sua marca
no mundo. Eu podia ver o rosto do pai no dele, até mesmo pequenino
daquele jeito, juro que podia. Dei a ele o mesmo nome de seu pai.
“Consegui chegar no meu quarto e desmaiei com meu bebê sugando o
leite do meu seio. Quando voltei a mim, ele não estava mais lá. Eu me
deparei com eles na sala de estar, com a minha mãe sussurrando aquele
papo de Deus dela. A princípio, achei que ela o estivesse vestindo, achei
que talvez, ao ver o rostinho dele, isso tivesse amaciado o coração dela.
Então eu vi… e o que vi gelou meu sangue. Ela estava com um travesseiro
sobre a face dele, sobre o rostinho do meu bebê. Eu podia ver as mãozinhas
dele agarrando-se àquele travesseiro. Apanhei o crucifixo de cima da TV e
bati com tudo na lateral da cabeça dela. Não uma vez, mas várias, até que
ficar imóvel no chão. Eu achava que a havia matado, mas não sei, nem
mesmo agora. Porque, depois que fiz aquilo, peguei meu bebê, enrolei-o em
uma toalha e saí correndo de lá. E, mesmo que as minhas entranhas
parecessem ter sido arregaçadas, caminhei os três quilômetros até a casa
dos pais do Daniel.
“Os pais do Daniel não tinham conhecimento sobre o bebê, eles nem
mesmo sabiam do nosso compromisso, meu e do Daniel. Mostrei a eles o
anel e contei a eles a nossa história. Eu não fazia a mínima ideia de como
eles iriam engolir tudo aquilo, mas eu não tinha nenhum outro lugar aonde
ir. Bem, eu nunca tinha visto pessoas tão felizes como eles estavam ao
verem um bebê. Estava escrito nos rostos deles, era como se eu os tivesse
levado seu filho de volta para eles. Eu sabia que aquele pequeno Daniel
ficaria em segurança com eles. Eu disse a eles que tinha que pegar algo no
carro. É claro que eu não tinha carro nenhum. Eu só fui andando pela
entrada de carros e continuei seguindo em frente, nem sabendo realmente
aonde eu estava me dirigindo, apenas andando e andando, aquele dia todo e,
ao adentrar a noite, eu me encontrava lá em cima nas colinas.
“Bem, você sabe o que aconteceu depois daquilo.” Ela balançou a
cabeça. “Jesse, não passa um dia que seja que eu não me arrependa de ter
largado o meu filho. Nem um dia que seja.”
Jesse soltou um longo e profundo suspiro. Então ele não era o único que
estava sofrendo, sentindo dores e mágoas, nenhuma grande surpresa ali. Ele
gostaria de ter algo profundo e animador para dizer a ela, algo para fazer
com que Isabel se sentisse melhor, para fazer com que ele mesmo se
sentisse melhor. No entanto, às vezes, parecia haver coisas ruins demais no
mundo e ficava difícil ver muito de qualquer outra coisa. Ele colocou a mão
no ombro dela, deu um pequeno aperto, e isso era praticamente o melhor
que ele conseguia fazer. Lacy agora estava enfiando laços por todo o pelo
de Freki. O gigantesco lobo apenas ficava lá, deitado, olhando para eles
como se estivesse implorando por ajuda.
“Talvez Krampus nos deixe ir embora em breve”, disse Jesse com pouca
convicção.
“Talvez.”
Isabel foi andando até onde Lacy estava, ergueu-a, girou-a e abraçou-a.
Lacy deu risadinhas e retribuiu o abraço de Isabel, que ficou radiante.
Jesse achava que Isabel daria uma mãe maravilhosa e, quando começou a
dizer isso, captou movimentos do lado de fora. Três silhuetas caminhavam
com dificuldade através da neve, seguidas por um lobo que se movimentava
com dificuldade. Krampus e os dois shawnees remanescentes caminhavam
com as cabeças abaixadas como se fosse por causa do mau tempo, mas
Jesse sabia que não era bem por isso.

KRAMPUS E OS SHAWNEES subiram marchando os degraus e entraram na igreja,


deixando rastros de neve semiderretida e lama pelo chão. Krampus dirigiu-
se até o fogão a lenha e sentou-se pesadamente em uma caixa de papelão.
Freki foi mancando até ele e deixou-se ficar ao seu lado. Krampus
começou, distraído, a fazer carinho na crina do grande lobo.
Jesse ficou hesitante. Krampus parecia cansado, derrotado… triste.
Jesse sabia que não se tratava de uma boa hora para trazer à tona o assunto
de Dillard. Mas quando será que chegaria essa hora propícia? Talvez ele
devesse alguma coisa a Krampus, e talvez não; mesmo assim, ele ainda
tinha que encontrar uma maneira de dar um jeito no Dillard. E, quanto mais
esperasse, maiores seriam as chances de que Dillard pudesse machucar
Linda ou Abigail.
Jesse engoliu em seco e sentou-se ao lado do Senhor do Yule.
“Sinto muito quanto ao Makwa. Lamento por sua perda.”
Krampus não lhe respondeu, nem mesmo ergueu o olhar, apenas ficou
fitando o fogo.
Jesse sentiu a boca seca, molhou os lábios, pigarreou.
“Eu preciso ir dar um jeito no Dillard.”
“Eu sei.”
Jesse ficou esperando que ele falasse mais, mas Krampus só continuou
olhando para as chamas.
“Posso cuidar das coisas sozinho, sabe? Eu só preciso que você me
deixe ir. Isso não vai interferir em nada com as suas coisas de agora. Juro
que volto assim que terminar o que tenho que fazer.”
Krampus entrelaçou as mãos e soltou um longo suspiro.
“No que você acredita, Jesse?”
“Hein?”
Krampus ergueu o olhar para ele e espiou fundo nos olhos de Jesse.
“No que você acredita?”
Jesse deu de ombros.
“Nem sei.”
“Não há nada em que você acredite?”
“Como assim?”
“Você tem que acreditar em alguma coisa. Sua musa… sua música,
talvez?”
“Não”, disse Jesse com amargura na voz. “Eu desisti disso.”
“Em Deus?”
“Deus? Bem, que diabos, talvez. Às vezes eu acredito, seja como for.
Sabe, quando estou assustado ou quero muito alguma coisa.”
“Você é um homem religioso? Cristão?”
“Eu não diria que sim. Mas certamente sou um homem temente a
Deus.”
“Existem outras coisas além de deuses em que as pessoas colocam sua
fé. Coisas terrenas.”
“Imagino que sim.”
“Você acredita que as sombras estão cheias de espíritos das trevas
esperando para atacar pessoas descuidadas?”
“O quê? Não!” Jesse riu e então captou a expressão melancólica no
rosto de Krampus. “Bem, ok… às vezes, quando estou sozinho à noite, eu
posso ficar bem assustado, se é a isso que você está se referindo.”
Krampus não deu risada nem sorriu; seu olhar contemplativo voltou-se
novamente para as chamas.
“Eu temo que a maioria dos homens dessa idade seja como você. Eles
se esqueceram do que é aninhar-se em uma cabana com as bestas e os
demônios uivando do lado de fora de suas portas. Eles não desejam mais
que haja um espírito poderoso e terrível para protegê-los. Eles perderam o
temor do selvagem e, com isso, a necessidade de crer. E não posso culpá-los
por isso, pois agora eles têm o poder de afastar as sombras apenas
acendendo um interruptor. Então eu devo perguntar a mim mesmo: que
papel posso desempenhar em um mundo onde os homens idolatram a caixa
em que imagens se movem, onde eles produzem e consomem poções que
corroem seus próprios cérebros, onde eles devastam e saqueiam montanhas
inteiras, assassinam a própria terra?
“A humanidade perdeu sua conexão com a terra, com a Terra, com as
bestas, com as feras e com os espíritos. Eles não colhem seus alimentos da
floresta e dos campos, mas sim de recipientes plásticos e caixas de gelo.
Suas vidas não mais estão atadas aos ciclos das estações e da colheita, eles
não mais precisam do Senhor do Yule para afastar a escuridão do inverno e
prenunciar a luz da primavera. O homem tem que temer a si mesmo
agora… Ele se tornou seu próprio e pior diabo.”
Krampus pegou um dos ramos que os shawnees haviam coletado,
partiu-o em tamanhos manejáveis e os enfiou no fogão a lenha de ferro
fundido.
“Enquanto eu estava lá, sentado naquela caverna, eu lia os jornais, lia
sobre tais mudanças, mas não conseguia captar seu verdadeiro
significado… seu verdadeiro efeito. Não até testemunhar isso com meus
próprios olhos.
“Temo que Baldr possa ter falado a verdade: que o mundo realmente
seguiu em frente, que não haja mais nenhum lugar para mim aqui. Agora eu
vejo o quanto ele se rebaixou, o quanto afundou. Baldr previu tudo isso, ele
tentou me avisar. Ofereceu a eles o que desejavam, uma mentira bonita, e
eles acreditaram nela, porque é mais fácil acreditar em uma bela mentira do
que em uma verdade feia.”
Krampus arranhou seu ombro, escavando as feridas que criavam
casquinhas com suas longas unhas. Ele fez uma careta, puxou para fora um
pedaço de munição de espingarda de caça e rolou a bala ensanguentada
entre os dedos.
“Como vou fazer com que uma pessoa que não entende o poder da
crença venha a crer? E sem a crença deles, a Mãe Terra vai secar e o
Yuletide fenecerá… então o mesmo acontecerá comigo… como aconteceu
com todos os espíritos e deuses antes de mim.”

A NOITE CAIU sobre a igrejinha, a melancolia que se espalhava espelhando o


ânimo no aposento, e Krampus ainda estava sentado fitando as chamas, com
uma garrafa de hidromel na mão e o saco a seus pés. Os Belsnickels
mantinham sua distância dele, e até mesmo os lobos o evitavam.
Jesse sentou-se com as pernas cruzadas no chão em frente a um jogo de
damas chinesas. Lacy havia encontrado uma caixa de jogos antigos e havia
conseguido recrutar Jesse e Vernon para jogarem com ela e Isabel.
“Vai”, disse Lacy, cutucando Jesse.
“Que foi?”
“É sua vez… ainda”, interpelou Vernon. “Talvez se você voltasse sua
mente para o jogo, nós não teríamos que ficar lembrando você disso.”
“Ah, sinto muito”, disse Jesse, distraído, e moveu a primeira peça com
que sua mão se deparou.
“Ha-ha!”, disse Isabel, com um sorriso triunfante e largo espalhando-se
em seu rosto enquanto ela usava o movimento de Jesse para avançar sua
peça por todo o tabuleiro.
“Isso foi brilhante, Jesse”, disse Vernon. “Mal consigo encontrar as
palavras para dizer como isso foi brilhante.”
Jesse assentiu, mal o ouvindo, mantendo sua vigília no Senhor do Yule,
na esperança de que Krampus fosse se recuperar, para que eles pudessem,
por fim, botar o pé na estrada. No entanto, durante as últimas horas,
Krampus não tinha feito muito mais do que murmurar para si mesmo. E
ficar lá sentado como se não fosse fazer com que Jesse conseguisse chegar
nem mais um pouco perto de Abigail. Jesse queria gritar com a besta, fazer
alguma coisa para que Krampus se mexesse, para que ele mesmo fizesse
qualquer coisa além de ficar sentado no chão jogando damas.
“Ficar olhando não vai fazer as coisas andarem mais rápido”, disse
Isabel.
“Isso não vai funcionar para mim”, grunhiu Jesse, balançando a cabeça
em negativa. “Merda, com certeza que não vai, não.”
“Vai se acostumando”, disse Vernon. “Ele está em um dos seus maus
humores. Quando estávamos lá na caverna, ele ficava assim e permanecia
desse jeito, tipo, durante semanas, meses, às vezes. Apenas curvado como
se fosse uma bola, quase sem respirar, como se estivesse morto. Só que nós
nunca tivemos a sorte de ele estar mesmo morto.”
“Semanas?”
“Sim, com certeza. Ou ele acabava ficando com um temperamento e
humor horríveis e não tinha como falar com ele.”
“Abigail não tem semanas”, disse Jesse, e começou a pôr-se de pé.
Isabel segurou no ombro dele.
“Não podemos continuar forçando a barra para cima dele, Jesse. Você
vai acabar indo longe demais e muito provavelmente vai piorar as coisas.”
Jesse recuou e pôs-se em pé.
“Piorar para quem? Não para a Abigail.”
Ele foi marchando até Krampus e ficou fitando o Senhor do Yule.
Krampus não fez nada para reconhecer a presença de Jesse ali.
Jesse curvou-se, pegou o saco e ergueu-o do chão. Ele pigarreou e
estirou-o na direção de Krampus.
“É noite. Não pode existir nenhum Yuletide sem o Senhor do Yule.”
Jesse ficou esperando. Krampus continuou a encarar o fogo.
“Você está desistindo então? O Senhor do Yule está dando as costas para
o Yuletide?”
Ele viu que Krampus ficara rígido, e soube o que a besta o havia
ouvido.
“Acho que ele ganhou no fim das contas. O Papai Noel… ele te
derrotou.” O cenho franzido de Krampus aprofundou-se e a ponta de seu
rabo ficou torcido. Jesse assentou o saco na caixa ao lado de Krampus.
“Você pode ter seu saco, sua liberdade… pode ter a cabeça dele, mas parece
que ainda assim ele venceu.”
Krampus tomou um gole do frasco.
“Você estava me perguntando mais cedo sobre como fazer com que as
pessoas acreditem. Bem, eu digo que, se você quer que elas acreditem…
você tem que dar a elas algo em que acreditar. Você tem que ir lá fora e ser
grande e terrível. Você deve fazer com que elas acreditem!”
Krampus alternou seu peso em sua posição, como se, de repente,
estivesse muito desconfortável.
“Bem, com certeza merda nenhuma está acontecendo enquanto você
está por aí vacilando, então, enquanto você está chupando dessa garrafa
como se fosse da teta da sua mãe.”
Krampus tomou um outro gole, um longo gole de hidromel, inclinou a
cabeça para trás e cerrou os olhos, como se o mundo não existisse.
Jesse apanhou o frasco da mão de Krampus, cujos olhos subitamente se
abriram; ele ficou fitando Jesse, completamente pasmo.
“Ho, ho, ho!”, gritou Jesse e esmigalhou a garrafa de argila jogando-a
no chão. “Feliz merda de Natal!”
Krampus levantou-se em um pulo, deu um tremendo de um empurrão
em Jesse, derrubando-o e fazendo com que deslizasse de costas pelo chão
até Freki, que soltou um gritinho, ficou em pé com dificuldade e saiu
mancando de cima do feno.
“Vou arrancar seu coração do peito por causa disso!”, rosnou Krampus,
e bateu os pés na direção de Jesse, que se aprumou sentado, com seu olhar
de encontro aos olhos ardentes, em chamas, de Krampus, e abriu um largo
sorriso. “Aí! É isso aí!”, gritou Jesse. “Seja terrível! Vamos lá! É isso que
você faz, é isso o que o faz ser o Senhor do Yule, e não algum molequinho
chato e deprimido!”
Krampus parou e olhou com ódio para Jesse.
“Quem é você para me dar um sermão sobre desistir?” Ele olhou para
Jesse com desdém. “Você? Um musicista que tem medo de encarar a
própria musa?! Que vira as costas para os grandes dons que lhe são
concedidos e que nega o verdadeiro âmago de sua alma?!”
“É… certo. Você é um perdedor como eu. Muito bem!”
“Bah”, grunhiu Krampus, jogando as mãos para cima em repulsa. Ele
desviou o olhar, voltou a cabeça para trás, para o fogão, e apanhou o saco,
erguendo-o, tirando-o da cadeira. Ele ficou segurando o saco por um
minuto, amassando o luxuoso veludo nas mãos, parecendo travar uma
conversa silenciosa com ele, assentindo de leve com a cabeça. Ele soltou
um grunhido e pegou as palmatórias de bétula. “Vamos.”
Ele saiu andando pesado pela porta e noite adentro.
Os dois shawnees trocaram olhares perturbados de relance, mas subiram
em um pulo e apressaram-se a sair atrás do Senhor do Yule.
Vernon bateu com suas peças no tabuleiro e olhou com ódio para Jesse.
“Obrigado! Sabe, essa foi provavelmente a primeira noite agradável que
tive em… ah, eu não sei… uns cem anos. Agora, em vez de ficar jogando
em volta de uma lareira quentinha, eu vou entrar nas casas das pessoas
nesse frio de lascar. Ah, minha nossa, alguém me belisca!”
Jesse deu um chute em Chet.
“Acorda, cabeça de merda. Está na hora de irmos embora.”
Chet soltou um gemido, sentou-se direito, olhou ao redor como se
tentasse descobrir onde estava. Uma vez que viu onde se encontrava, soltou
um gemido de dar dó.
“O Alto, Sombrio e Feio está esperando por você lá fora”, disse Jesse.
Parecia que Chet desejava se enrolar como se fosse uma bolinha e
chorar, mas ele acabou conseguindo arrastar os pés como um zumbi até o
lado de fora da porta.
Isabel apanhou o casaco de Lacy, a vestiu sem fazer barulho, colocou
um cachecol grosso envolvendo seu pescoço e seu rosto e prendeu as abas
das orelhas do gorro de panda com segurança sob o queixo dela. Lacy teve
que puxar o cachecol para baixo e empurrar o chapéu para cima de modo
que pudesse enxergar.
“Nós vamos fazer uma outra viagem no trenó?”, murmurou ela em meio
ao cachecol.
“Com certeza que vamos sim, docinho.”
“Você não pode trazê-la conosco”, disse Vernon.
“Bem, eu não vou deixá-la aqui.”
“Isabel”, disse Jesse em um tom de cautela. “Você sabe que vamos ter
que encontrar algum lugar para ela ficar.”
Isabel voltou um olhar cortante a ele.
“Isso é o que nós vamos ver.”
Lacy agarrou-se a Isabel, segurando-se com força na cintura dela.
“Não se preocupe, docinho”, disse Isabel. “Você pode ficar comigo se
quiser.”
Lacy fez que sim com a cabeça: era isso que ela queria.
Jesse soltou um suspiro.
“Isabel, você sabe que isso não vai dar certo.” E ele viu estampado no
rosto dela que ela sabia, mas ele também viu o quanto Isabel precisava
dessa garotinha naquele exato momento.
“É melhor irmos embora”, disse Vernon, e dirigiu-se porta afora.
Os lobos saíram nos degraus e ficaram observando enquanto eles
subiam no trenó. Isabel e Lacy subiram na frente em um pulo, Vernon foi
para trás e Jesse começou a se preparar para entrar e parou.
“Sumiu.”
“Sumiu o quê?”, perguntou Isabel, seguindo o endurecido olhar dele até
a calha caída.
“A cabeça do Papai Noel.”
Todos eles ergueram os olhares, mas não havia nenhum traço do troféu.
“O coiote deve ter cuidado disso”, falou Chet.
“Não”, disse Jesse. “Não com os lobos em volta.”
“Ela deve ter criado pernas e saído andando sozinha então”, disse Chet,
soltando uma bufada.
Jesse notou algo ainda mais perturbador: pegadas na neve, humanas em
termos de tamanho e forma, que seguiam alguns passos adiante e depois
paravam, não havia mais pegadas. Como se o dono ou a dona delas tivesse
simplesmente saído voando!
Krampus encarou o ponto em que a cabeça do Papai Noel estava antes;
fitou o local por um bom tempo, com perturbação estampada em sua face.
“Parece que meu tempo… está ficando curto”, disse ele bem baixinho.
Em seguida, ele estalou as rédeas e, mais uma vez, os bodes do Yule deram
pulos para a frente e foram subindo em direção ao céu.
Dillard estacionou na entrada de carros e desligou o motor do seu veículo.
Ele puxou e abriu o saco de plástico, deu uma espiada nas luvas, na fita
adesiva, na faca, no martelo de bola que ele tinha pego da oficina do
General, olhou para o chapéu e para a chave de fenda da caminhonete de
Jesse e o bolo de cabelos que ele tinha tirado da escova que havia
encontrado no porta-luvas: evidências suficientes para colocar Jesse em
ambas as cenas do crime. Dillard sabia que os investigadores não
escavariam muito a fundo, uma vez que tivessem todas as peças do quebra-
cabeça, e ele planejava realmente facilitar que eles encontrassem todas as
peças.
Dillard demorou um tempinho contemplando as luzes brancas de Natal
que iluminavam o pórtico da frente de sua casa, cintilando em meio à neve
e ao gelo; contemplando a bela coroa e sempre-verde na porta vermelha de
sua casa… Uma cena de Natal perfeita. Elas estão ali dentro, esperando,
sem fazer nenhuma ideia do que está indo atrás delas.
Com o decorrer dos anos, Dillard havia matado bastante gente; alguns
tiveram uma morte tranquila e outros uma morte horrível, mas, apesar disso
tudo, uma vez terminado ele nunca sentiu muita coisa. Com Ellen, as coisas
foram diferentes: não se passava um único dia sem que não pensasse nela.
Será que aconteceria a mesma coisa com Linda? Achava que não. Ele
amava Linda, mas nunca mais poderia amar alguém como amara Ellen.
Dillard sentia que, com o tempo, o fantasma de Linda desvaneceria e ele
seguiria em frente com sua vida. Ele nutria esperanças de que assim fosse,
porque essa não seria uma morte limpa, no estilo de execução: as mortes
dela e de Abigail teriam que ser equivalentes àquelas no complexo do
General, teriam que parecer obra de um cônjuge enfurecido e ciumento.
Esse tipo de coisa podia simplesmente assombrar um homem.
Dillard cerrou os olhos, inspirou fundo e tentou desligar seus
sentimentos. Linda não seria mais a mulher com quem ele tinha feito amor,
nem Abigail seria a garotinha que o fizera sorrir e dar risadinhas. Uma vez
que ele entrasse por aquela porta, elas seriam carne, para sangrar e ser
fatiada.
Ele exalou o ar, abriu os olhos, pegou o saco de plástico de seu assento e
saiu do carro.
“Tente não sentir”, disse ele a si mesmo enquanto subia a passos de
passeio pela trilha de pedra. “Tente não sentir.”
Ele abriu a porta da frente com facilidade e entrou silenciosamente na
casa. Deparou-se com três sacos de mercearia empilhados ao longo da
parede, as roupas de Linda e de Abigail bem dobradinhas dentro deles, e
dois sacos plásticos de lixo com as bonecas que Jesse havia presenteado
Abigail, junto do restante das coisas que elas tinham levado para lá. O fato
de que Linda reunia as coisas delas para ir embora incomodou-o menos do
que o fato de que ela não estava dando atenção aos avisos dele. A
negligência dela só confirmava para Dillard que não podia confiar nela, que
ele estava fazendo a coisa certa. Fazendo o que devia ser feito.
O som da televisão vinha da sala de estar, e ele captou a voz de Linda
conversando com Abigail. Que bom, pensou ele, elas estão juntas. Ele
fechou a tranca atrás de si e deslizou os sacos, colocando-os na frente da
porta. Sabia que isso não haveria de impedir que qualquer pessoa entrasse
ali. Ele só queria algo que atrasasse uma pessoa, caso elas estivessem com
muita pressa de ir embora, por algum motivo.
Ele desceu pelo corredor curto, passou pelo banheiro a sua esquerda,
então entrou na sala de estar, que continha uma pequena área de jantar
separada da cozinha por um balcão ao estilo de um bar: uma cozinha
americana. Abigail estava sentada em uma das banquetas, de costas para
ele, brincando com duas de suas bonecas. Linda estava em pé na cozinha,
preparando alguma coisa no fogão. Ela avistou Dillard e ficou alarmada;
seus olhos assumiram uma expressão fria, e ela desviou o olhar.
“Estou vendo que você fez as malas para ir embora”, disse Dillard.
Abigail parou de brincar, voltou o olhar para ele, sem nenhum traço de
seu sorriso jubiloso. Ela olhou, de relance, com ansiedade, para a mãe.
“Eu gostaria que você me devolvesse as minhas chaves, por favor”,
disse Linda. Ela soava cansada e exaurida.
“Certo”, disse ele, e cruzou a sala de estar até a sala de jantar. Abriu o
clipe de seu rádio da polícia, ligou-o e colocou-o em cima da mesa,
esperando que não perdesse nenhuma chamada sobre Jesse. Ele colocou o
saco de plástico ao lado do rádio e tirou as chaves dela de dentro do bolso,
deixando-as cair sobre a mesa.
Linda continuou preparando queijo grelhado para Abigail, mantendo as
costas voltadas para ele, fazendo de tudo para não olhar para ele. Dillard
inclinou-se para frente e deslizou o pino da trava para dentro na porta de
vidro deslizante, uma outra precaução, caso as coisas fugissem a seu
controle. Ele olhou de relance para fora, para o quintal dos fundos de sua
casa; uma ponta do pôr do sol ainda delineava os topos das colinas. Nos
fundos ele tinha uns três hectares até o rio; seu vizinho mais próximo era
Tomsey, em meio à floresta, ao sul. Entre a floresta e o velho Tomsey, que
era quase surdo, ele não estava tão preocupado assim se alguém fosse ouvir
alguma gritaria.
Dillard sabia que deveria botar o pé na estrada, que cada minuto que ele
passava ali era mais um minuto em que alguém poderia aparecer e descobrir
o matadouro em que se transformara a oficina do General, ou que Jesse
poderia aparecer em algum lugar na cidade. No entanto, ele achava o passo
seguinte mais difícil do que o esperado. Ele observava enquanto ela virava
o sanduíche de queijo na frigideira, encarava a nuca dela, seus belos
cabelos, e imaginou o olhar na face dela quando recebesse o primeiro
golpe… a dor, a confusão, o horror. Ele teria de viver com isso pelo resto da
vida.
Dillard cerrou o maxilar. Agora não é hora de amolecer.
Ele pegou o saco de plástico e dirigiu-se de volta até o corredor e entrou
no banheiro. Ele esvaziou a bexiga e tirou toda a roupa, ficando apenas com
as meias. Pegadas no sangue poderiam ser usadas assim como digitais; seria
mais fácil simplesmente queimar as meias depois. Ele não se preocupava
com nenhuma evidência de seu DNA, afinal, a casa era dele, isso seria de se
esperar, mas sangue, sangue era uma coisa completamente diferente. Se ele
planejava equiparar-se à brutalidade dos assassinatos na oficina do General,
então haveria muito sangue e ele teria que se certificar de não ficar com
nenhum sangue em suas roupas. Ele empilhou as roupas, seu relógio e seus
sapatos no chão, ao lado da pia. Depois que tivesse matado as duas e
plantando as evidências contra Jesse, ele poderia tomar banho e então
descer e se vestir.
Ele abriu o saco, puxou dali as luvas, vestiu-as e então olhou para o
martelo de bola. Pensou que aquela seria a ferramenta certa para começar.
Ele atingiria Linda com força, mas não com tanta força assim, apenas o
suficiente para derrubá-la, talvez um golpe na rótula em seguida, algo para
impedir que ela saísse correndo enquanto ele cuidava de Abigail. Em
seguida, pegaria a faca e faria o trabalho direito.
Ele abriu a porta e deu um passo para fora do banheiro, com o ar fresco
formigando em sua pele por conta de sua nudez. “Carne”, sussurrou ele.
“Elas são apenas carne.”

NADA.
Escuridão.
Luz.
Sem direção, com a corrente o puxando-o para baixo, mais para baixo, e
cada vez mais para baixo. Afundando. Engasgando-se. A dor da carne. O
Papai Noel sentiu pedra fria embaixo das costas, abriu os olhos. Tudo
estava banhado em uma luz dourada. Formas borradas mexiam-se ao redor
dele.
O rosto de sua esposa pouco a pouco entrou em foco, pairando sobre
ele, não Nanna, mas sim Perchta, sua esposa nascida na Terra. Ela agarrou a
mão dele, a preocupação entalhada em seus olhos imortais.
“Ele está vivo”, ela sussurrou e então, em voz alta, disse: “O Papai Noel
retornou a nós!” Um grande clamor ecoou pela câmara. Papai Noel piscou;
ele jazia deitado na capela, cercado por suas esposas inferiores. Todas
choravam e lamuriavam com alegria. Os sons entrando como estocadas de
facas em sua cabeça.
Então aquilo era a morte. Sem pensamentos. Sem memórias. Sem
arrependimentos. Nada. Tão doce.
Dois seres, nem do sexo masculino, nem do feminino, trajando robes
dourados estavam parados, em pé, aos pés dele, com suas asas brancas
quase brilhantes demais para que ele olhasse para elas. Um deles
pronunciou-se:
“Parece que Deus não deseja você morto.”
“Por quê?”, disse ele, tossindo, pigarreando. “Como é que eu importo
para Deus?”
Os dois anjos trocaram um sorriso surpreso.
“Por quê? Por que você a diverte.”
“Eu a divirto?” O Papai Noel sentou-se direito. O mundo girava a seu
redor. Ele segurou-se na laje para equilibrar-se. “Divirto? Eu não sirvo a
nenhum propósito maior do que o entretenimento?”
“Você traz um sorriso aos lábios de Deus. Isso não é o bastante?”
Papai Noel girou e tirou os pés da laje, tentando ficar em pé. Seus pés
cederam e Perchta segurou-o, impedindo que ele caísse.
“Eu não passo de um brinquedo.”
“Você está chateado?”
“Estou farto de divertir os deuses. Farto de canções e danças.”
“Você quer que isso acabe?” O anjo franziu o cenho. “Mas não existe
chamado maior do que servir ao Senhor. Isso não é uma honra?”
Sinos, bem ao longe, ficando mais altos, vozes, era aquela canção,
aquela canção tola, boba: “Lá vem o Papai Noel”. Papai Noel olhou de
relance a seu redor, para as mulheres, e nenhuma delas parecia ouvir a
música. “Cansei, eu disse. Estou farto disso tudo. Digam a Deus para que
me deixe em paz!”
“Você desistiria disso tudo?” O anjo deu de ombros. “Se for seu desejo
deixar isso para trás, tornar-se mortal, isso pode ser feito.” A canção, os
sons, eles começaram a minguar. “Seu nome, como sua canção,
desvanecerão, e, por fim, o nome Papai Noel será esquecido.”
A canção cessou; a respiração dele sendo o único som. O silêncio
congelou seu coração.
“De que nome você será chamado a partir de agora?”, quis saber o anjo.
“Imagino que não seja Baldr. Bob? Mike? Tom? Quem você será agora?”
“Pare com isso! Por que você me atormenta assim?”
O anjo deu uma risada.
“Somente você atormenta a si mesmo. Você acredita mesmo que seja
igual a gente como Jesus ou algum dos grandes profetas? Você é uma
curiosidade, um homem que traja uma roupa vermelha e sai distribuindo
presentes.”
Papai Noel cerrou os dentes.
“Nós haveremos de honrar seu desejo, no entanto, lembre-se de que
você virou suas costas a Deus.”
Os anjos retiraram-se dali, deixaram a capela e foram subindo pelo
caminho.
“Não”, disse o Papai Noel. Os anjos continuaram andando. “Não”, disse
ele, chamando-os. “Não… não vão embora!” Ele deu um passo na direção
deles, agarrando-se à laje para manter-se ereto. “Eu retiro o que eu disse!”,
gritou ele. A voz dele partiu-se e virou soluços chorosos. “Retiro o que
disse.”
Os anjos pararam, com os olhos cheios de pena. Eles voltaram.
“Quem é você?”
Ele olhou com ódio para eles.
“Eu sou o Papai Noel.”
Eles sorriram.
“Tenha esperança e crie coragem, Papai Noel. Você dissemina
esperança e alegria em um mundo de trevas. Você agrada a Deus em um
universo em que muitos não o fazem. Fique feliz com isso.”
Os sinos voltaram, aqueceram-no, atingiram seu âmago, tocaram sua
própria alma. Um grande peso foi erguido de seu peito. Ele inalou o ar a
fundo e, mais uma vez, sentiu-se inteiro.
“Agora chega de besteira”, disse o anjo. “O mundo precisa do Papai
Noel e Deus deseja saber se existe alguma coisa que ela possa fazer por
você.”
O Papai Noel começou a balançar a cabeça em negativa, parou, e seus
olhos encontraram-se com os do anjo.
“Sim, com toda certeza. Há um diabo que precisa ser morto.”

“ALI, ALI É um bom lugar para começar, como qualquer outro.” Jesse
apontou para o campanário lá embaixo. “As luzes estão acesas. Parece ter
um bocado de gente ali.”
Isabel mordeu o lábio. Ela já havia vetado as duas igrejas anteriores,
sobre as quais eles tinham passado voando. Ela balançou a cabeça e abraçou
Lacy.
“O que foi? Por que não?”
“Não conheço aquela igreja.”
“Eles são metodistas, Isabel.” Ela torceu o nariz. “O que foi, você não
gosta de metodistas agora? Primeiro, pentecostais, agora, metodistas. Quem
já ouviu falar de alguém que tenha algum problema com os metodistas?
Isabel, eu acho que você só está procurando uma desculpa. Agora você tem
que pensar em Lacy.”
Isabel franziu o cenho.
“Ok”, disse ela, em algo um pouco mais alto do que um sussurro.
“O quê?”, perguntou Jesse. “Você disse ok? Ok para a igreja?” Ela
assentiu, com os lábios apertados e retraídos. “Ok”, disse Jesse a Krampus.
“Podemos levá-la até lá.”
Krampus aterrissou com o trenó em um pequeno campo atrás da igreja.
Uma fileira de cercas vivas provia uma cobertura razoável dos lares logo do
outro lado da rua.
Krampus não parecia se importar muito de uma forma ou de outra, não
tendo falado nenhuma única palavra desde que partiram. Ele ficou fitando a
igreja como se fosse uma praga na terra.
Jesse ajudou Lacy a descer, de olho em Isabel, que continuava a
escrutinizar a igreja. Ele sabia que ela estava procurando pelo menor
motivo que fosse para cancelar a coisa toda.
Isabel pegou na mão de Lacy. Depois de um bom minuto tendo se
passado sem que ninguém dissesse nenhuma palavra, sem que Isabel desse
um único passo à frente, Jesse colocou a mão no ombro dela e sussurrou:
“Você está fazendo a coisa certa”.
Isabel assentiu.
“Eu sei. Eu sei disso.” Ainda assim, ela estava lá, parada. “Eu ficaria
feliz de ir com você.”
“Não. Você não vai querer que ninguém nos veja… nenhum de nós. Isso
apenas dificultaria as coisas para Lacy.”
Isabel olhou para a garotinha.
“Ok, Lace, vamos encontrar uma pessoa legal para ficar com você por
um tempinho.” Isabel fez um esforço óbvio para soar animada, mas Jesse
conseguia ouvir a tensão em sua voz. “Ok?”
Lacy parecia assustada e insegura, mas quando Isabel puxou-a consigo,
ela veio prontamente, e elas dirigiram-se passadiço acima, mantendo-se nas
sombras enquanto seguiam em direção à frente da igreja.
Jesse podia ver as pessoas pelas janelas; eles pareciam estar decorando a
capela nos preparativos para a véspera do Ano Novo. Uma alta árvore de
Natal estava em frente a uma das janelas, com suas luzes piscando.
Krampus ficou encarando de cara feia.
Vernon passou deslizando por entre as cercas vivas, seguindo até uma
fileira de caixas de correio. Recipientes de plástico para jornais com o
logotipo Boone Standard pendiam das caixas. Um deles ainda tinha um dos
jornais e Vernon o pegou e abriu, passando o olho pelas páginas enquanto
voltava.
“Ah, meu…”, disse Vernon. “Krampus, você provavelmente vai querer
ler isso.” Krampus ignorou-o, apenas encarando a árvore de Natal.
Vernon pigarreou e começou a ler.
“Escudeiros do Papai Noel Fazem a Dança pelo Condado de Boone.
Estranhos relatórios têm vindo de todo o Condado de Boone sobre uma
série de incidentes bizarros de lares invadidos e trenós voadores. Os
incidentes estão conectados por descrições de indivíduos vestidos de forma
estranha, parecendo ter chifres e olhos brilhantes. Alguns afirmam se tratar
de demônios do Natal, outros colocam a culpa da encrenca em uma onda de
crimes perpetrada por uma gangue disfarçada em fantasias bizarras. O
xerife Wright diz apenas que eles estão investigando os casos. Fontes
próximas ao xerife confirmam que as atividades da gangue estão em
primeiro plano na investigação em andamento. Diversas vítimas
pronunciaram-se e proveram relatos muito perturbadores de ataques,
vandalismo e intimidação.” Vernon pulou algumas linhas. “No entanto,
ninguém ainda conseguiu explicar as dezenas de relatórios falando de um
trenó voador puxado por bodes, repleto, afirmam, dos mais estranhos
criminosos.”
Chet deu uma risada e balançou a cabeça em negativa.
“Espere”, continuou a dizer Vernon, “também tem isso daqui. O próprio
Bill Harris da Standard recebeu um relato muito diferente de Carolyn, de 10
anos de idade, da cidade de Goodhope, e de seus cinco irmãos e irmãs.
Carolyn relata uma história de uma besta alta e chifruda que se intitula
Krampus, Senhor do Yule, e deixa moedas àqueles que o honram com um
tributo (na forma de um doce ou de uma bugiganga deixados em seus
sapatos no degrau da frente da casa). Além do mais, ela acrescentou que
aqueles que não oferecem o tributo correm o risco de que o demônio
Krampus os coloque dentro de seu saco e os chicoteie. Depois de falar com
filhos de outras vítimas da área, todos corroboraram a mesma e muito
estranha história. Mais credibilidade é dada devido ao fato de que cada uma
dessas crianças tinha em sua posse essas mesmas moedas triangulares de
ouro. Quando lhes perguntaram se pretendiam colocar doces e bugigangas
em seus sapatos e deixá-los nos degraus de suas escadas nessa época do
próximo ano, todas elas declararam veementemente que fariam isso.”
Vernon mostrou a eles as fotos: uma, uma nítida fotografia instantânea
de Carolyn e seus irmãos, cada um deles segurando uma moeda triangular;
outra, meio borrada, de Krampus e os Belsnickels descendo voando por
uma rua no trenó; e uma final, uma charge de um diabo animado com rosto
preto e chifres, cascos e um rabo torcido, segurando uma palmatória de
bétulas. Vernon leu a legenda. “Farsa? Ou o Demônio do Natal veio à
cidade?”
Vernon abriu seu próprio sorriso diabólico e mostrou a foto a Krampus.
“Bem, meu velho, eles sem dúvida recriaram sua imagem com muita
fidelidade. O que você me diz?”
Krampus arrancou o jornal da mão de Vernon, amassou-o, bateu com
tudo com o jornal no chão e pisou nele, quase dançando sobre o papel.
“Demônio do Natal!”, grunhiu Krampus. “Do Papai Noel! Não! Não!”
Ele olhou com ódio para a igreja. “Eles veem diabos em toda parte quando
os únicos diabos que sobraram foram eles mesmos. Por que eles têm que
distorcer a tradição do Yule e transformá-la em algo tão perverso? Por que
eles têm que perverter tudo o que é meu? Aquela é uma árvore de Yule, e
não uma árvore de Natal. Trazer sempre-verdes para dentro de casa para
celebrar a Deusa que nunca morre, o retorno do calor do sol, essa é uma
tradição que remonta a antes dos antigos druidas, ao retorno do calor do sol,
e muito, mas muito, muito antes da criança chamada Jesus ser vomitada
naquela imunda manjedoura. Quem são eles para pilharem minhas
tradições, violarem-nas e profanarem-nas? Já passou da hora de o Senhor
do Yule não tolerar tamanha zombaria!” Krampus cuspiu, alto, no jornal, e
saiu batendo os pés em direção à igreja.
Jesse e Vernon trocaram um olhar cheio de pânico.
“Bem”, disse Jesse, alcançando Krampus e segurando seu braço. “Isabel
nos pediu que ficássemos aqui atrás.”
Krampus deu de ombros e continuou subindo pelo caminho, dirigindo-
se até os degraus da frente. Os shawnees acompanhavam seus passos.
“Muito bem”, disse Jesse a Vernon, e deu um empurrãozinho nele.
Vernon ergueu as mãos.
“O que foi?”
Chet deu risada e disse:
“Nunca gostei muito dos metodistas mesmo.”

MARGRET DOTSON estava na cozinha e observou o homem de roupas


engraçadas roubar seu jornal. Ela havia decidido não ler o Standard desde
que ele se posicionou a favor de Clinton, lá pelos idos de 1992, mas ainda
assim ela não gostava do fato de um estranho se apropriar do seu jornal.
Estava prestes a ir lá fora para dar um sermão nele, quando avistou seus
consortes vagando ao brilho das janelas da igreja. O que a fez parar foi o
modo como os olhos deles captavam a luz do poste, um brilho cor de
laranja, como refletores de bicicletas. Aquilo não estava certo, era estranho.
Ela não fazia a mínima ideia de quem eram, nem do que eram, exceto pelo
alto, aquele com os chifres… aquele ela reconheceu de imediato: aquele era
Satã.
Margret pegou o telefone e discou para a delegacia de polícia de
Goodhope. Ela ficou encantada ao ouvir a voz do novo e jovem
funcionário, Noel, em vez daquele mandão do Dillard, que uma vez deu
uma reprimenda nela por pegar flores que estavam crescendo na frente dos
correios.
“Departamento Policial de Goodhope. Oficial Roberts falando.”
“Aqui quem fala é Margret Dotson, do número 21 da Hill Street, perto
da igreja metodista.”
“Sim, madame, qual seria o problema?”
“Bem, alguma coisa acabou de roubar o meu jornal.”
“Eu… entendo.”
“Sim, eu espero que você possa vir até aqui e recuperar o que é de
minha propriedade.”
“Hummm, sim, bem… nós estamos um pouco ocupados no momento.
Talvez…”
“Talvez nada. A coisa está parada lá do outro lado da rua. Por que você
não vem até aqui e a prende antes que fuja?”
“Sra. Dotson, vou me certificar de dar uma passada aí o mais rápido
quanto for possível. Veja, por que a senhora não me faz uma descrição do
suspeito?”
“Bem, há seis deles. Eles estão usando roupas estranhas, têm faces
escuras, chifres e olhos que reluzem. Um deles…”
“O quê? Oh, minha nossa! Ah, caramba!”, disse o jovem oficial,
erguendo o tom de voz. “A senhora disse que eles estão do outro lado da
igreja metodista? Perto da Rua Um?”
“Ora, sim, foi isso que eu disse. Não tem outra igreja metodista aqui
sem ser aquela.”
“Madame, fique dentro de casa, nós estamos a caminho.” Margret
desligou o telefone, com um sorriso presunçoso no rosto. Ela não tinha
intenção alguma de ficar dentro de casa. Preparou para si um gin tônica,
saiu em sua varanda e ficou observando um grupo de demônios subindo em
direção à frente da igreja. Ela sentou-se no balanço em sua varanda, ansiosa
pelo espetáculo.

LINDA TIROU o queijo grelhado da frigideira e o colocou no prato de Abigail.


Dillard entrou na cozinha, passando pela entrada da sala de estar, vindo por
trás dela, sem correr, apenas caminhando, segurando o martelo com ponta
de bola, usando apenas meias e luvas pretas.
Abigail soltou um grito lancinante, e Linda girou. Dillard deu um golpe
almejando acertar a cabeça dela. Linda foi com tudo para trás, batendo no
fogão. Dillard não tinha contado com isso, de que ela se movesse tão
rápido, e o martelo esmagou o balcão, e o ímpeto fez com que ele
cambaleasse. Um segundo depois, ele deparou-se com uma frigideira de
ferro vindo para cima dele e tentou abaixar-se e esquivar-se, mas Linda
acertou com a parte de trás da frigideira em sua cabeça; uma chama saiu,
toda brilhante. A gordura zunindo com o calor da frigideira espalhou-se
pela lateral do rosto dele, o calor incandescente fazendo com que ele
gritasse e recuasse aos tropeços. Ele segurou na bochecha dela, deixando
cair o martelo. Em meio à dor cegante, ele viu Linda indo para trás para dar
um outro golpe. Ela agarrou o cabo da panela com ambas as mãos, seu rosto
contorcido com a repulsa e o fel, um rosnado selvagem escapou da garganta
dela enquanto girava a frigideira no ar. Dillard jogou o braço para cima,
interrompendo o golpe com o cotovelo. A frigideira voou da mão dela,
ricocheteou no ombro dele e caiu com um clangor no chão.
Linda disparou para fora da cozinha e foi até onde Abigail estava
sentada, chocada e horrorizada, agarrou-a, puxando-a até a porta de vidro
deslizante. Linda deu um puxão na porta, que soltou um som agudo, mas
não deslizou nem abriu. Em seu pânico, Linda puxou-a mais duas vezes
antes de dar-se conta de que estava aferrolhada.
Dillard apanhou o martelo e foi atrás delas, entrando com tudo na sala
de jantar antes que Linda pudesse puxar e soltar o pino da tranca. Linda
agarrou Abigail e saiu voando na única direção que lhe restava: a sala de
estar. Não havia como sair da sala de estar sem passar por Dillard; a única
outra opção era descer até o porão. Mas isso não preocupava Dillard,
porque não havia como sair do porão. Ele as tinha aprisionado, e só havia a
mesinha de centro e o sofá entre eles.
Dillard demorou um instante para recuperar o fôlego, para recompor-se.
Ele tirou um pedaço de queijo de seus cabelos, limpou o máximo de
gordura de sua face quanto conseguiu. Parecia que sua pele estava
queimando ainda, sua dor de cabeça havia voltado, e ele voltava com uma
vingança.
Ele jogou uma das pernas por cima da parte de trás do sofá e começou a
subir nele. Linda apanhou a tigela de maçãs de madeira decorativas de cima
da mesinha de centro e jogou uma delas em cima de Dillard, que ergueu o
braço, e a maçã acertou seu cotovelo, o mesmo cotovelo que ela havia
acertado a panela, e uma nova onda de dor subiu pelo braço dele. “Vadia
idiota de merda!”, gritou ele.
Ela jogou mais uma, depois outra, depois a tigela, forçando-o a se
abaixar para esquivar e, quando ele fez isso, ela deu um pulo e abriu com
tudo a porta do porão. Ela entrou a todo vapor ali dentro, puxando Abigail
consigo e batendo com força a porta atrás delas. Ele ouviu os pés delas
como tambores descendo os degraus do porão.
Ela ficou hesitante, sem saber ao certo o que pensar. Tratava-se de um
porão subterrâneo, de uma adega. Ela sabia que não havia nenhuma outra
saída que não fosse pelas janelas, e aquelas janelas eram pequenas, altas nas
paredes, e vedadas e fechadas com tinta velha. Não haveria como abri-las à
força sem ferramentas.
Dillard foi até a porta do porão, puxou-a e abriu-a, e espiou escadaria
abaixo. Ele ouviu o som de algo caindo, depois um rangido e então um
clangor, e instantaneamente soube onde elas estavam.
“Merda!”
Ele desceu correndo as escadas, deu a volta na escadaria e seguiu em
direção à porta de metal embutida na parede.
Dillard gostava de se gabar do fato de que sua adega era, na verdade,
um abrigo antibombas ali deixado pelo proprietário anterior, uma relíquia
da Guerra Fria, com uma resistente porta de metal que, como na maioria
desses abrigos, era trancada por dentro. Dillard havia removido os tambores
de ração K[2] que estavam ali havia décadas quando se mudou, e reformou-
o junto do restante do porão, reunindo nas prateleiras uma formidável
coleção de vinhos. Ele agarrou a tranca e puxou-a com força. A porta não
cedeu.
“Merda!”
Ele ficou ali parado, encarando estupidamente a porta. Essa porra não
está acontecendo! Ele ergueu o martelo, levando-o com muita força para
cima da tranca. Um bong oco encheu o ar do porão, o som entrando com
tudo em sua cabeça, como se fosse um espeto.
“Porra!”
Ele fechou os olhos, pressionou as têmporas até sua cabeça latejar
menos. Examinou a tranca. O martelo mal havia feito um arranhão. Ele
apoiou-se na parede, equilibrando-se, e tentou pensar em meio a sua dor de
cabeça. De jeito nenhum ele conseguiria destruir a fechadura com um
martelinho daqueles. Precisava de algo mais pesado. Precisava da marreta
que se encontrava no abrigo.
“E protetores de ouvido”, disse ele bem baixinho. “Não ouse se
esquecer dos diabos dos protetores de ouvido.”
Ele conseguiu chegar na metade da escadaria quando ouviu um ruído
vindo de seu rádio da polícia, com a voz alta e animada de Noel:
“Dillard”, gritou ele, “Dillard. Que diabos, Dillard, atende!”
E agora?, perguntava-se Dillard, mas teve uma ideia muito boa,
esforçou-se para subir os últimos degraus da escada. Seguiu até a mesa da
sala de jantar e pegou o rádio.
“Sim, Dillard falando.”
“Dillard, são eles! Aquela gangue! Eles estão bem aqui em Goodhope!
O que nós vamos fazer?”
O rapaz falava a mil por minuto, tropeçando nas palavras, jogando fora
pela janela quaisquer traços de procedimentos. Em outras circunstâncias,
Dillard teria sorrido para a confusão do rapaz.
“Eita. Devagar. Onde, em Goodhope?”
O rapaz conseguiu acalmar-se o suficiente para que Dillard o
entendesse.
“Temos um relato de uns cinco ou seis deles. Eles estão na igreja
metodista.”
Bem lá em cima, no lado norte da cidade, pensou Dillard.
“Encontre-me no estacionamento. Nada de sirenes nem luzes. E não
faça mais nada, só não os perca de vista, até que eu chegue lá. Entendido?
Estou a caminho.”
Só que ele não estava a caminho. Ele tinha mesmo que cuidar das duas
meninas. Estava no que seu avô chamava de uma bela de uma enrascada.
Dillard fechou os olhos, esfregando a testa, tentando pensar. Decidiu que
tinha que fazer alguma coisa em relação a sua dor de cabeça. Entrou aos
tropeços no banheiro, puxou e abriu o armário de remédios, derrubou vários
frascos de medicamentos até que encontrou um frasco de Imitrex e tomou o
dobro da dose normal. Ele viu-se no espelho e deu-se conta de que ainda
estava pelado.
“Puta merda!” Apanhou a calça e vestiu-a, depois os sapatos. “Ok,
prioridades. Vejamos… é Jesse… aquele merdinha do Jesse. Porque eu
posso não ter uma outra oportunidade de matar aquele filho da puta. E as
meninas? Bem… elas não vão a lugar nenhum, vão? Não. Posso cuidar para
que não saiam para lugar nenhum.”
Ele terminou de vestir-se o mais rápido quanto lhe era possível e voltou
correndo para o porão, empurrou o freezer para a frente, bloqueando a porta
antitempestade do abrigo, voltou subindo as escadas e fechou o ferrolho da
porta do porão como precaução extra. Ele apanhou seu rádio e deu uma
olhadela rápida a seu redor. Tentou convencer-se de que as coisas estavam
sob controle ali, pelo menos por ora, pelo menos até que ele conseguisse
estar de volta. Poucos minutos depois, ele estava em sua viatura dirigindo-
se ao norte, até a igreja metodista, com apenas uma coisa em mente: matar
Jesse Walker.

ISABEL PUXOU Lacy para as sombras ao lado dos degraus da frente da igreja
metodista. Ela ajoelhou-se e olhou direto nos olhos de Lacy.
“Ok, Lacy. Está na hora. Como conversamos. Você está preparada?”
A expressão no rosto da garotinha ficou anuviada.
“Eu não quero que você se vá, Isabel.”
“Eu sei. Eu também não quero ir, mas tenho que ir. Então eu preciso ser
forte… forte por nós duas. Porque se você começar a chorar, vai me fazer
chorar. Então eles podem me pegar. Eu poderia entrar em uma encrenca das
feias.”
Lacy fechou a cara e assentiu.
“Eu não vou chorar não, Isabel. Juro!”
Então Isabel percebeu quanta força tinha essa garotinha, entendeu que
Lacy tinha que ser forte para ter sobrevivido ao que havia passado.
Duas mulheres, ambas parecendo ter 30 e tantos anos, ambas acima do
peso, com rostos que pareciam ter visto muitas dificuldades, vieram pelo
passadiço, subiram os degraus e entraram na igreja. Elas pareciam mulheres
boas, temerosas a Deus, o pessoal da colina, do tipo de mulheres em que
Isabel sentia que podia confiar.
“Lacy, eu quero que você vá até lá dentro e se apresente àquelas duas
senhoras. Você se lembra do que falei para você dizer?”
“Que minha mamãe e meu papai estão mortos. Que uma moça que não
conheço me deixou aqui. Que ela me disse para encontrar alguém para me
ajudar.”
“Isso mesmo. Agora me dá um abraço e corre atrás delas.”
A menina abraçou Isabel, abraçou-a tão forte quanto uma menina de 6
anos conseguia abraçar. Isabel teve que piscar para conter as lágrimas,
sabendo que a última coisa de que Lacy precisava naquele momento era vê-
la chorando. Isabel afastou-se dela, apontou para Lacy na direção dos
degraus e deu um leve empurrão nela. Lacy dirigiu-se degraus acima,
chegou nas grandes portas, ficou hesitante, olhando com incerteza para
Isabel.
Isabel assentiu e soprou um beijo para ela.
Lacy puxou uma das duas pesadas portas, que cedeu um pouco, mas ela
não a conseguiu abrir. Tentou mais duas vezes, depois olhou para Isabel e
deu de ombros.
“Que diabos”, disse Isabel, saindo das sombras e subindo as escadas.
Ela empurrou a grande porta e abriu-a, conduziu Lacy para dentro e deu
uma breve espiada. Um vestíbulo com portas duplas dava para o interior da
capela; através das janelas de vitral, ela podia ouvir música e ver as pessoas
se mexendo. Um lance de escada dava para baixo na direita e na esquerda
do vestíbulo. Ela avistou uma placa escrita à mão, que dizia: recuperação de
divórcio. Uma seta dava para baixo, nos degraus à esquerda, e Isabel
entendeu aonde as mulheres deviam estar se dirigindo.
“Para lá”, disse ela a Lacy em um tom sussurrante, apontando para
baixo, em direção à escada.
“Hein?”, disse Lacy, parecendo confusa.
“As mulheres desceram…” Isabel ouviu vozes vindas de trás, e um
olhar de relance por cima do ombro revelou quatro mulheres dirigindo-se
passadiço acima. Sem nenhuma outra rota por onde sair, Isabel abaixou-se
dentro do vestíbulo, apanhou Lacy pela mão e desceu com ela o curto lance
de escadas. Elas empurraram uma dupla de portas oscilantes embaixo da
escada e saíram em um longo corredor pouco iluminado. Havia duas portas
à frente: a mais próxima estava fechada, aquela no fim do corredor estava
aberta, e uma luz brilhante vinha iluminando o corredor, revelando uma
outra placa escrita à mão.
Risadas, o tamborilar de pés… quatro pessoas desciam as escadas atrás
delas. Isabel subiu correndo até a primeira porta, girando um pouco sua
maçaneta. Estava trancada. Não havia nenhum outro lugar para onde ir. Ela
encostou o ombro na porta, deu um forte empurrão e a porta continuou
firme. Tentou de novo, com mais força, e ouviu o rachar da ombreira da
porta.
“Olá, podemos ajudá-las?”
Isabel girou e deparou-se com quatro mulheres encarando-a lá embaixo
na escada. Ela tentou manter a cabeça baixa e os olhos desviados delas.
“Nós a conhecemos?”, perguntou em voz alta uma mulher corpulenta,
trajando um casaco de caça verde-floresta. Ela era a menor das quatro, mas
seus modos deixavam que se soubesse logo de cara que não toleraria
nenhuma besteira. “Moça, olhe aqui para mim.” Ela se aproximou um passo
de Isabel, olhou melhor para ela e parou de andar. “Que diabos…?”
“O que está acontecendo”, disse outra voz, vinda da outra extremidade
do corredor. Uma mulher de constituição esguia e trajando um vestido
simples até a altura dos joelhos estava em pé, ao brilho da luz do aposento.
“Gail, é você? O que houve?”
Mais outras três mulheres saíram do aposento atrás dela.
Isabel deu-se conta de que estava presa. Ela mediu as mulheres na frente
da escada e percebeu que teria que passar voando por elas, ir abrindo
caminho e esperar pelo melhor. Só que ela não sabia ao certo se
conseguiria, não se elas quisessem briga. Essas eram mulheres grandes,
com expressões endurecidas, trajando camisas de flanela e botas, esposas e
filhas de mineiros, mulheres robustas que tinham criado muitas crianças e
vivenciado e visto mais do que sua boa cota de coisas ruins. E, justo quando
Isabel achava que as coisas não poderiam ficar piores, mais cinco mulheres
vieram descendo as escadas, tentando ver melhor tanto Isabel como Lacy.
“Ela é um deles!”, gritou uma das recém-chegadas, que apontou para
Isabel. “Veja. Uma daqueles do jornal. Uma do bando de doidos que vêm
causando toda aquela encrenca.”
“Moça, o que é que você está fazendo com essa menininha aí?”, disse a
mulher que trajava a jaqueta de caça, e Isabel ouviu tudo que precisava
ouvir naquele tom de voz, soube do que estava sendo acusada, soube que
seus problemas tinham acabado de aumentar ainda mais.
“Cindy”, disse a mulher. “Chame a polícia. Fale para que Mark e os
rapazes venham até aqui. Agora, rápido, correndo!”
Uma das moças, que estava atrás no grupo, subiu correndo as escadas.
Isabel entendeu que tinha que fazer alguma coisa, e rápido. Ela deu um
passo afastando-se de Lacy.
“Nem pense nisso”, disse a mulher. As mulheres empurraram as portas
duplas e as fecharam atrás delas, fecharam o ferrolho e também o cerco.
“Você não vai a lugar nenhum.”

O REVERENDO OWEN estava no meio da escada de mão, segurando um globo


de discoteca espelhado do tamanho de uma bola de basquete junto ao peito.
“Segure firme, Scott”, disse ele, com mais do que apenas uma pontinha
de frustração.
“Já segurei, vovô. Aqui está, quer que eu o pendure?”
“Não”, disse o reverendo Owen, irritado. “Eu não quero que você o
pendure. Eu quero que você segure a escada com firmeza.” O reverendo não
estava nem um pouquinho feliz com isso de transformar sua igreja em um
salão de discoteca, mas ele também não era cego, bem, pelo menos ainda
não estava cego. Ele podia ver que sua congregação estava envelhecendo e,
se ele não ampliasse seus esforços junto às gerações mais jovens, logo não
teria igreja nenhuma. Ainda assim, às vezes, ele sentia que estava mais
cuidando de atividades sociais do clube do que pregando a boa palavra.
O reverendo sentia falta dos velhos dias, da época em que ele e a esposa
iam de porta em porta com uma Bíblia debaixo do braço, disseminando o
evangelho, dando algo em que acreditar às pessoas que nada tinham. Ele
lembrava-se de ser perseguido por cachorros, de atirarem nele, de ser
xingado e ridicularizado. Mas isso somente tinha aumentado sua vontade de
fazer o que fazia, porque ele era um soldado do Senhor, afastando Satã onde
quer que ele o encontrasse, e enchendo os camaradas de vida difícil do
Condado de Boone com o Espírito Santo. Fazia um bom tempo agora desde
que o reverendo tinha sentido o Espírito Santo bombeando em suas próprias
veias, havia muito tempo que ele sentia mais fadiga de lidar com deveres
administrativos que só aumentavam, além da frustração de ter que dirimir
as esparrelas mesquinhas de sua congregação.
O reverendo Owen estava prestes a dar mais um passo escada acima
quando ouviu gritos vindos do porão. Ele olhou para baixo, para seu neto, e
revirou os olhos.
“Eu tive uma sensação ruim quanto àquela comoção de aconselhamento
de divórcio desde o início. Reúna um bando de mulheres amarguradas e
sempre terá encrenca.”
Cindy irrompeu pelas portas da capela e colidiu com a senhora Powell,
derrubando no chão a bandeja de velas que ela estava carregando nos
braços.
“Scott, venha até aqui! Rápido! Apague as velas!”
Todos os anos o reverendo tentava dissuadi-las de usarem todas aquelas
velas, e a cada ano a senhora Powell e seu Comitê Sênior de Decoração
insistiam em alinhar os peitoris com elas, clamando que se tratava de uma
tradição, assim como os banners de pipocas. E as pessoas dos velhos
tempos se agarravam a suas convenções como carrapatos na orelha de um
cachorro.
Cindy apagou as velas caídas no chão e ficou de pé em um pulo, como
se pudesse começar a hiperventilar a qualquer instante. O reverendo ficou
tenso; Cindy tinha propensão à histeria, e ele se preparou para o mais
recente drama dela. “Há uma das pessoas do diabo no porão!”, gritou
Cindy. “E ela está com uma menininha! Eu não estou falando merda pra
você! Chama a polícia! Alguém chame o diabo da polícia!”
O reverendo Owen pensou em chamar a polícia por causa da boca suja
de Cindy. Ele deu um passo para baixo, fazendo o melhor que podia para
não derrubar o globo de discoteca e para não cair da escada de mão, pôs um
dos pés no chão e foi então que o diabo entrou na igreja dele.
Ele empurrou e passou pelas portas duplas, passando com passos firmes
por Cindy e pela senhora Powell, e dirigiu-se ao centro da ala. Satã era bem
maior do que o reverendo tinha imaginado, com mais de dois metros de
altura, cabelos selvagens pretos e crespos, a pele escura, um rabo,
reluzentes olhos vermelhos e imensos chifres saindo e contorcendo-se de
sua testa.
Toda a comoção parou, a capela ficou em silêncio, até mesmo Cindy
estava sem palavras. Eles o encaravam: as crianças, os adultos, todos eles.
Suas faces demonstravam choque e medo, recuavam, dando a este diabo
todo o espaço que ele desejava, mas não o reverendo, não Owen Augustus
Elkins. Não, senhor! Satã tinha acabado de escolher a igreja errada, o
pregador errado sobre quem pisar. Se o diabo desejava briga, para jogar seu
dogma sinistro contra a fé do reverendo, então ele ia resistir, pois o revendo
era um soldado do Senhor. E, pela primeira vez em quase vinte anos, o
reverendo Owen sentiu o Espírito Santo bombeando em suas veias. O
reverendo deu um passo para a frente, bloqueando o caminho do diabo.
O diabo olhou feio para a árvore de Natal, tentou desviar-se do
reverendo, mas este se manteve firme onde estava, lutando para não se
acovardar pelo tamanho e pela vilania da besta que estava perante ele,
chamando o Senhor para que lhe desse forças. O diabo travou o olhar com
ele.
“Vim pegar a minha árvore”, pronunciou-se ele em uma voz rouca e
grave. “Agora saia do meu caminho, seu homenzinho de nada.”
O reverendo não sabia com certeza se ouvira direito. Arvore? Satã
queria… a árvore? O reverendo não fazia ideia de por que Satã queria a
árvore de Natal, mas com certeza, diabos, ele não deixaria que a pegasse. O
reverendo balançou a cabeça em negativa e manteve-se firme onde estava.
“Essa é uma árvore do Yule”, disse o diabo. “Ela não pertence a esta
casa. Por que você, um clérigo, acha aceitável zombar do Yule? Pisotear as
crenças dos outros?”
O reverendo hesitou. Uma árvore do Yule? Do que ele está falando?
Tenha cuidado, ele advertiu a si mesmo, o engodo é seu idioma. Ele está
tentando desnortear você, só isso. E ouviu as próprias palavras virem até
ele: Não se deve permitir que o diabo fique por cima.
“Você se atreve a desafiar a autoridade do Senhor na própria casa d’Ele?
Deus não vai tolerar isso. Em nome do Senhor Todo-poderoso, eu vos
expulso daqui! Agora caia fora, Satã! Suma!”
“Satã? Eu não sou Satã!”, grunhiu a besta. “Eu sou Krampus, o Senhor
do Yule. Agora se você não sair do meu caminho, vou arrancar o seu
coração e comê-lo!”
O reverendo ergueu o globo, pretendendo jogá-lo na besta profana se
fosse preciso.
“Para trás, Diabo! Volte para o Inferno!”
A besta revirou os olhos.
“Eu não sou um diabo, seu tolo. Você já se perguntou por que procura o
diabo com tamanho vigor? Vou dizer a você. É porque você não consegue
encarar a própria perversidade. A verdade é que não existe nenhum Diabo
fazendo com que vocês torturem, estuprem, sodomizem e assassinem uns
aos outros, nem fazendo com que vocês destruam a própria terra que os
alimenta. Há somente vocês. Então olhe para si mesmo, pois você é o único
diabo neste aposento.”
“Você não engana ninguém com sua fraude”, disparou o reverendo em
resposta. “Eu vejo você, pois Jesus me empresta os olhos dele. O Bom
Senhor vê você e haverá de afligi-lo com Sua espada da virtuosidade. Ele
haverá de lançá-lo na chama eterna para que arda e queime!”
“Queimar? Afligir? Punir? Por que o seu deus é tão intolerante? Tão
ciumento? Por que deve existir apenas um deus? Por que não há lugar para
muitos?”
“O quê?”
“Um deus… por que vocês só podem honrar a um único deus?”
“Ora… todas as crianças que estudam a Bíblia sabem a resposta para
isso. É o primeiro mandamento: ‘Vocês não deverão ter outros deuses além
de mim’.”
“Você não respondeu a minha pergunta. Onde fica o problema? Desde o
começo dos tempos os homens procuraram o abrigo de muitos deuses,
harmonia com todos os espíritos selvagens. Parece que quanto mais deuses
estivessem observando e cuidando das pessoas, melhor. Por que não?”
“Eu não vou censurar o Senhor, se é isso que você está querendo. Jesus
é meu salvador e não haverei de me afastar de Seu rebanho.”
O diabo abaixou um pouco os ombros e o reverendo Owen soube que
estava ganhando, que o Espírito Santo estava cansando Satã.
“Homem tolo, ninguém está lhe pedindo que censure ninguém. Apenas
que abra seu coração. Que convide todos eles para entrar em sua casa.”
“Eu acredito apenas em Jesus e no Bom Senhor lá em cima.”
O diabo empolgou-se ao ouvir isso.
“E o Papai Noel? Você acredita no Papai Noel?”
Papai Noel? E o que é que o Papai Noel tinha a ver com isso?
“É claro que não. O Papai Noel é uma fantasia.”
O diabo abriu um sorrisinho.
“Bem, isso é algo com que pelo menos podemos concordar.” Ele deu
um leve tapinha na cabeça do reverendo Owen e depois empurrou-o para o
lado, continuando a subir a ala em direção à árvore.
O reverendo ficou ali parado por mais um minuto, sem saber ao certo o
que acabara de acontecer. Certamente não parecia que tinha passado por um
grande teste de sua fé, tampouco sentia que tinha colocado Satã em seu
devido lugar. Para falar a verdade, a única coisa que ele sentia no momento
era que estava altamente irritado, e agora a besta alta e esguia balançava sua
árvore de Natal com tanta força que os ornamentos voavam por todas as
direções, se quebrando e batendo nas paredes e nos pisos. Qual é a dessa
árvore?
“Ei!”, gritou o reverendo. “Pare com isso! Eu estou dizendo para parar
com isso!”
O diabo o ignorou, empurrando a árvore com tudo e fazendo com que
caísse sobre o púlpito, com os ornamentos indo para cima e para baixo e
estilhaçando-se por toda parte.
“NÃO! NÃO! NÃO!”, gritou o reverendo Owen, e jogou o globo nele. O
globo espelhado atingiu a nuca da criatura, estilhaçando-se em seus chifres.
O diabo cambaleou para a frente, mas não caiu. Ele balançou a cabeça em
negativa, tirando os pedacinhos de vidro quebrado de seus cabelos
selvagens, e travou o olhar no do reverendo, olhos que haviam se tomado
duas ardentes fendas de veneno. Um rosnado baixo e perigoso escapou de
sua garganta. Ele rosnou, mostrando a eles seus dentes afiados. O reverendo
não viu nenhum ser que raciocinasse ali, nenhuma alma com quem
conversar de maneira amigável e discutir também amigavelmente. Ele viu
uma besta primitiva, algo selvagem, sedento de sangue e selvageria. O
reverendo recuou um passo, virou-se para fugir e colidiu com a escada de
mão, derrubando o patamar de seu apoio no teto da capela. A comprida
escada cambaleou um instante e depois começou a cair, ganhando impulso,
colidindo com todos os banners, aqueles mesmos que ele tinha passado as
duas últimas horas colocando lá em cima, e a escada foi caindo e
estilhaçando-se em cima dos bancos.
O reverendo Owen ficou observando horrorizado enquanto os banners
de papel caíam sobre as velas ao longo dos peitoris, pasmado com a rapidez
com que pegavam fogo. Todos os materiais que os professores usavam na
escola de domingo acenderam-se como um estopim. Os banners em chamas
atingiram as cortinas, as cortinas originais colocadas ali logo que eles se
mudaram para o local, em 1968, o que, visto a forma como começavam a se
incendiar, eram anteriores a quaisquer códigos contra incêndio. Não tardou
para que o fogo ardesse nos dois lados da igreja.
“FOGO!”, gritou Cindy com toda a força de seus ótimos pulmões.
“FOGO! FOGO! FOGO!” As pessoas encontraram seus bons-sensos e
começaram a correr em pânico em direção às saídas.
O reverendo Owen não se mexeu. Ele ficou lá, parado, observando as
chamas que cresciam rapidamente, e fez algo que nunca fizera antes. O
reverendo Owen usou o nome do Senhor em vão, não uma vez, mas
repetidas vezes.

O POLICIAL ROBERTS ouviu os gritos de quase uma quadra de distância. Ele


pisou no acelerador, virando com dificuldade a última esquina, entrando
com tudo no estacionamento da igreja. Ele estivera dirigindo sem usar as
sirenes nem as luzes, como o delegado havia instruído, para manter o
elemento surpresa, mas ao ver as pessoas saindo em fluxo das portas da
frente da igreja, ele não acreditava que isso viesse ao caso.
Ele apanhou seu rifle, saiu da viatura em um pulo, usando o carro como
cobertura e apoiando o rifle no capô, como eles o haviam ensinado na
academia. Estava a apenas uns trinta metros dos degraus da frente da igreja,
mas ainda era difícil ver quem era quem, enquanto ele observava as
silhuetas correndo para todos os lados… meras silhuetas na frente de
chamas que cresciam.
Noel ergueu o olhar de relance para a rua, na esperança de ver a viatura
do delegado vindo por ali. Dillard havia ordenado que ele ficasse para trás,
mas as pessoas precisavam de ajuda, as coisas estavam rapidamente fugindo
ao controle. Ele pegou o microfone.
“Delegado, eu estou na cena. Temos uma emergência. Por favor, me
aconselhe quanto ao que fazer.” Ele esperou alguns segundos que pareciam
eternos e falou ao microfone de novo. “Delegado. Câmbio.” Nada.
Onde estaria ele? O que o fazia demorar tanto? Noel mudou as
frequências e fez um chamado para o despacho.
“Central, temos um 10… um 10…” Sua mente ficou em branco, e todos
os códigos foram para o espaço. “Temos um incêndio na Igreja Metodista
em Goodhope… suspeitos possivelmente perigosos.” Ele ouviu sua voz
elevando-se e forçou-se a ir mais devagar. “Que diabos, temos todos os
tipos de problemas aqui! Mandem os bombeiros e a equipe de resgate…
contem isso ao xerife imediatamente!” Ele teve uma confirmação de que a
ajuda estava a caminho, então o rádio fez um clique de novo e a voz calma
de Dillard cortou a estática. “Apenas aguente aí. Estou cortando a First
agora. Quase aí.”
Noel começou a responder, mas esqueceu-se do que estava tentando
dizer, porque uma imensa figura chifruda saiu da igreja em chamas,
rebocando atrás de si uma árvore de Natal e carregando um homem sobre o
ombro. O suspeito batia com a descrição, sem dúvida nenhuma quanto a
isso. Ele jogou o homem que estava em seu ombro na neve. O policial
Roberts reconheceu o homem: era o reverendo Owen, que parecia confuso,
mas bem.
O auxiliar travou a mira de seu rifle no suspeito… no homem, ou besta,
ou seja lá o que fosse aquilo… ele tentou manter a mira firme.
“Ah, meu Deus! Dillard é melhor você arrastar logo sua bunda para cá!”

UM SOM ALTO e oco reverberou pelo teto. Isabel e todas as mulheres olharam
para cima.
“Que diabos está acontecendo lá em cima?”, perguntou a mulher que
trajava a jaqueta de caça.
Um instante depois, elas ouviram gritos, urros e o som de pés batendo
no chão como tambores. Isabel fazia uma boa ideia do que se tratava. Ai,
merda, Krampus. O que foi que você fez agora?
Alguém lá em cima gritou “FOGO!”… e naquele instante, a fumaça
começou a sair pelas aberturas no teto.
“PARA FORA!”, gritou a mulher com a jaqueta de caça. “O lugar está
pegando fogo! Todo mundo, para fora!”
Todo o grupo de mulheres paradas na frente das portas duplas se virou e
saiu correndo em direção à saída, empurrando as mais próximas em direção
às portas. E, visto que as portas abriam-se por dentro, em direção ao
corredor, isso as deixou trancadas.
“Parem! Esperem!”, gritou alguém. “Vocês todas vão ter que recuar.”
Era a mulher que estava atrás de Isabel que falava, aquela com o vestido
simples. Ela começou a descer o corredor em direção à aglomeração de
mulheres. “Fiquem calmas. Vocês têm que ficar calmas.”
Algumas mulheres estavam tentando sair do emaranhado, mas as outras,
em pânico, apenas empurravam com mais força. Isabel começou a seguir
em frente, com a intenção de empurrar as mulheres para longe umas das
outras, quando ouviu gritos vindos de trás dela.
Pelo menos uma dúzia de mulheres tinha saído do aposento no fim do
corredor e vinham em sua direção apressadíssimas. Lacy estava parada bem
no meio do caminho delas. Isabel foi se arrastando para pegá-la, mas não
teve chance. A mulher com o vestido simples agarrou Lacy e empurrou-a
para dentro do poço com a porta oca, aquela na frente da porta trancada. As
mulheres passaram por Isabel, que não viu o que aconteceu; a próxima
coisa que viu foi ela mesma ser jogada para baixo no corredor, batendo com
tudo no chão e ficando presa na correria de corpos que lutavam uns com os
outros.
O ar ficou denso, a fumaça fazia com que todo mundo tossisse,
aumentando o pânico. Isabel encontrava-se presa, lutando para que o ar
entrasse em seus pulmões. Ela ouviu seu nome, um profundo e retumbante
chamado que ressoava acima dos gritos e berros das mulheres. Então algo
foi terrivelmente estalado e, de uma vez só, a luz apareceu acima das portas
duplas. Outro estalido, mais algo se partindo, e um bom pedaço da porta foi
arrancado para fora. Ela o viu então, com seus olhos brilhantes e sua
silhueta inconfundível. Krampus envolveu a porta com suas grandes mãos,
soltou um rugido e deu um belo de um puxão na porta, cujo batente pipocou
e estalou, com uma das portas duplas abrindo e colidindo contra os degraus.
E ali estava o Senhor do Yule, alto e terrível, e os Belsnickels logo atrás
dele. Krampus puxou as mulheres para fora do amontoado, empurrou-as
escadaria acima; os Belsnickels, por sua vez, conduziram-nas para fora da
armadilha mortal.
“Isabel!”, gritou Krampus, com a voz frenética. “Cadê você?”
“Krampus!” Ela conseguiu soltar uma das mãos e acenar. Krampus
empurrou as mulheres para a direita e para a esquerda, abrindo caminho até
Isabel, agarrou-a e colocou-a em pé.
“Vamos logo!”, gritou ele, empurrando-a em direção às escadas.
“Espere”, gritou Isabel. Ela olhou para baixo, pelo corredor parcamente
iluminado e cheio de fumaça, em busca de Lacy. E lá estava ela… nos
braços daquela mulher, a de vestido. A mulher tossia, seus olhos
derramando lágrimas, mas ela segurava Lacy com força. Isabel foi em um
pulo até elas, colocou um dos braços em volta das duas e conduziu-as até as
escadas. As últimas mulheres estavam subindo aos tropeços os degraus com
a ajuda de Jesse e Chet. Isabel conduzia Lacy e a mulher para fora,
seguidas, por fim, por Krampus.
Eles saíram no ar da noite. Isabel inspirou fundo; nunca o ar fora tão
doce. Cinzas e brasas caíam na neve, a fumaça subia ao redor deles. Isabel
viu a figura do alto e chifrudo Krampus em frente à paisagem infernal,
cercado por seus Belsnickels, e não conseguiu evitar pensar em Satã e sua
horda de demônios.
“Venham”, disse Krampus. “Vamos encontrar os bodes do Yule antes
que eles se percam por aí.”
Ele dirigiu-se de volta em torno da lateral da igreja, seguido pelos
Belsnickels, todos desaparecendo em meio à fumaça.
As pessoas estavam se reunindo no estacionamento. Isabel começou a
levar a mulher e Lacy por aquele caminho, avistou uma viatura policial
vindo com tudo, quase acertando dois transeuntes. A viatura parou,
derrapando ao lado de uma outra. Isabel parou, ficou com um joelho só no
chão, deu um beijo rápido na bochecha de Lacy e abraçou-a com força.
“Tenho que ir, Lacy. Fique bem, ok?”
“Você também fique bem”, disse Lacy, abraçando-a em resposta.
Isabel levantou-se e segurou no braço da mulher.
“O nome dela é Lacy. Por favor, cuide dela.”
A mulher olhou confusa para Isabel, mas assentiu com uma convicção
sincera e intensa, pegando Lacy no colo e dirigindo-se para longe das
chamas. Isabel queria ficar vendo-as ir embora, mas as lágrimas borravam
sua visão e ela virou-se para trás, correndo para dentro da fumaça atrás de
Krampus.

O DELEGADO Dillard Deaton saiu de seu carro em um pulo, quase


esquecendo sua espingarda e voltando a pegá-la lá dentro, no assento.
“Ah, Jesus”, gritou Noel, correndo na direção dele. “Delegado, homem,
estou feliz em ver…” Ele ficou encarando o rosto de Dillard. “Que diabos,
delegado, o que aconteceu com o senhor?”
“Onde estão eles?”, perguntou Dillard, andando rapidamente em direção
ao fogo.
O policial Roberts foi correndo atrás dele.
“Hum… bem… fica difícil dizer com toda essa fumaça, sabe? Eles
estavam indo pela lateral do edifício da última vez que os vi.”
“Achei que eu tivesse falado para você não os perder de vista!”
“Eu sei, mas o xerife me disse para ficar onde estava até que chegasse o
apoio.”
“O quê?”, Dillard girou nos calcanhares. “O xerife? Você ligou para o
xerife?”
“Bem, sim. Eu tive que fazer isso. Estamos fora dos limites da cidade.
Fora de nossa jurisdição.”
“Você acha que eu preciso de um sermão sobre em que jurisdição
estamos?”
“Mas o incêndio. Achei que o procedimento seria…”
“Cala a boca. Só cala a boca!”
Dillard quase socou o rapaz, quase o jogou no chão, e isso não teria
adicionado uma camada interessante a sua crescente lista de problemas. Ele
deu um passo à frente e ficou cara a cara com Noel.
“Não quero ouvir mais nenhuma palavra sobre procedimentos. Volte
para os veículos e espere a porra do xerife lá. Entendeu? Não se mexa até
que eu mande. Entendeu? Está entendido?”
Noel assentiu e seguiu de volta, parecendo um cachorrinho açoitado. A
verdade era que Dillard planejava entrar lá e matar Jesse a tiros e queria o
Policial Escoteiro bem longe dele quando fizesse isso. Ele não queria
nenhuma testemunha.
Dillard ouviu uma sirene ao longe vindo a caminho deles. Droga!
Justamente do que não preciso! Porra! Tenho que encontrar esse rapaz
rapidinho. Ele deu uma volta, avançando em meio à fumaça. Avistou
pegadas na neve, pelo menos cinco ou seis pares delas, seguiu-as, dando a
volta atrás do prédio, onde elas terminavam em um punhado em volta de
um jornal embolado. Deparou-se com marcas profundas e cocô recém-feito,
de cervo ou de bode, talvez, não sabia ao certo qual, a única certeza que
tinha era de que nada disso fazia muito sentido. Se tivesse olhado para cima
naquele instante, teria visto um trenó puxado por dois grandes bodes
dirigindo-se ao leste, em direção às colinas, mas naquele momento as luzes
piscantes chamaram sua atenção. Era o xerife parando a viatura no
estacionamento.
Dillard esfregou a ponta de seu nariz, tentou aliviar a dor crescente atrás
dos olhos. De repente ele se sentiu muito cansado, muito velho.
“Essa vai ser uma longa noite. Vai ser uma porra de uma longa noite.”
Jesse ficou observando enquanto Krampus encarava o playground de
plástico e o punhado de brinquedos espalhados pelo quintal de um pequeno
rancho em algum lugar logo ao sul de Whitesville. Já fazia uns vinte
minutos que Krampus encarava aquilo, sem dizer nenhuma palavra, sem
nem mesmo um grunhido. Tanto tempo que Jesse começou a se perguntar
se ele planejava até mesmo sair do trenó.
A trupe toda estava quieta, com todos perdidos nos próprios
pensamentos, talvez contemplando a loucura na igreja… ou, como ele,
tinham parado junto a essa criatura dada a imprevisíveis mudanças de
humor, para início de conversa. Jesse já estava perdendo as esperanças de
que houvesse uma resolução para tudo aquilo… algum caminho por onde
sair dessa.
Eles já tinham visitado dois lares, ambos sem muitos incidentes, mas
também sem muito entusiasmo. Krampus havia na verdade passado por um
Papai Noel de plástico sem o esmagar. Jesse teve a impressão de que o
Senhor do Yule estava apenas passando pelos movimentos, até mesmo seu
discurso para essas crianças carecia de qualquer paixão verdadeira. Jesse
sentia que estava em um barco afundando sem nenhuma forma de saltar
dele. Ele trocou um olhar de relance com Isabel, ergueu as sobrancelhas e
deu de ombros. Isabel deu de ombros em resposta. Depois de um outro
longo instante, ela pigarreou.
“Krampus”, disse ela em um tom suave. “Talvez devêssemos voltar.
Tirar a noite de folga.”
“Mas que ideia esplêndida”, disse Vernon. “Certamente tem o meu
voto.” Isabel desferiu a ele um olhar cortante e pungente. “O que foi?”,
disse Vernon em um tom defensivo. “Se Krampus está em um de seus
humores intoleráveis, não vejo motivos para que todos tenhamos que sofrer
junto dele.”
“Ele está certo”, murmurou Krampus. “Não há mais necessidade. Tudo
foi em vão, temo que sim. O mundo não quer lembrar e agora parece que…
não tenho tempo.”
“Não tem tempo?”, perguntou Isabel. “O que quer dizer com isso?”
Krampus apenas balançou a cabeça em negativa.
“Krampus? O que está acontecendo?”
Krampus olhou para cima da entrada de carros, soltou um suspiro,
apanhou o saco e as palmatórias e saiu do trenó.
“Vocês podem juntar-se a mim se quiserem. Não faz diferença.”
Ele começou a subir pela entrada de carros. Os dois shawnees saíram do
trenó em um pulo e o acompanharam. Isabel deu uma cotovelada em
Vernon.
“Você poderia não ser um tremendo de um idiota?”
“Você sabe”, disse Vernon. “Às vezes você esquece que não estou nessa
pela diversão. Sou prisioneiro dele… escravo dele. Francamente, eu não
ligo para o que acontecer com o velho bode.”
Chet assentiu.
“Amém, irmão.”
“Bem, alguns de nós se importam”, disse Isabel, saindo do trenó e indo
atrás de Krampus e dos shawnees entrada de carros acima. Jesse olhou para
Vernon e Chet, deu de ombros e foi atrás de Isabel, alcançando-os quando
chegaram na varanda.
Krampus esticou a mão para pegar na maçaneta e ficou paralisado. Ele
soltou um ofego. Jesse acompanhou o olhar dele para os degraus, não viu
nada além de dois pares de sapatos, começou a querer perguntar qual era o
problema e depois olhou de novo.
Os sapatos estavam apoiados como se estivessem em exibição em uma
loja de sapatos; arrumados dentro de cada sapato havia doces. E um cartão
entre os sapatos.
Krampus deixou cair o saco e as palmatórias, esticou a mão para pegar
o cartão e abriu-o de modo que todos pudessem vê-lo. No cartão estava
escrito: Feliz Yuletide, Krampus. Nós somos crianças muito boas. Com
amor, Mary e Todd.
“Bem, eu ficarei”, disse Isabel.
“Aposto que leram sobre Krampus no jornal”, disse Jesse.
“Talvez”, disse Isabel, “ou talvez tenhamos visitado um de seus
camaradas ou parentes na noite passada.”
Krampus ficou com um joelho no chão. Ele pegou os doces, segurou-os
em suas palmas. “Obrigado”, sussurrou ele. “Obrigado por seu tributo.” O
Senhor do Yule limpou os olhos e Jesse percebeu que a grande besta estava
realmente chorando.
“A recompensa deles”, disse Krampus. “Eles precisam da recompensa.
Jesse, pegue algumas moedas.”
Jesse pegou o saco e estirou-o
“Pegue-as você, minhas mãos estão cheias”, disse Krampus sem tirar os
olhos das gostosuras; ele as segurava como se fossem as pedras mais
preciosas.
Jesse puxou e abriu o saco, e ficou hesitante. Krampus não tinha falado
que essas moedas estavam em algum tipo de inferno? Jesse não tinha
certeza de que queria colocar a mão no inferno… em nenhum inferno que
fosse. Todo mundo ficou esperando que ele fizesse algo. Ele soltou um
suspiro, pensou nas moedas triangulares e inseriu a mão no saco. Ele sentiu
a frieza, mais próxima da sensação de medo do que de uma temperatura de
verdade. O calafrio penetrou por seus ossos, em sua própria medula.
Formigava, quase dolorosamente, fazendo seus dentes doerem. Jesse tentou
se concentrar nas moedas, querendo acabar com isso o mais rápido possível.
Sua mão deparou-se com algo incrustado e frágil… coisas apodrecendo
vieram a sua mente. Então alguma coisa o tocou, mais como uma carícia,
como alguém passando gaze por sua pele.
Ele soltou um gritinho agudo e puxou a mão para fora.
“Porra, Krampus. Tem alguma coisa aí dentro!”
Krampus soltou uma bufada.
“É claro. Os mortos. Não os tema, eles não podem machucar você. São
apenas fantasmas… almas perdidas que não conseguiram encontrar o
caminho de casa.”
Jesse espiou na escuridão fumacenta e achou ter ouvido alguma coisa
lamuriando-se. Soava fraco e distante, mas não havia dúvida, ele os ouvira.
Estremeceu enquanto sentia um calafrio na espinha.
Krampus abriu um sorriso malicioso.
“Você só vai querer tomar cuidado para não cair aí dentro. Ficaria
vagando em volta daquelas catacumbas até seu corpo se desfazer, com os
mortos seguindo cada passo seu… esperando para clamá-lo como um
deles.”
Jesse engoliu em seco, um som alto, fez o melhor que pode para
concentrar-se nas moedas e enfiou a mão no saco de novo. Dessa vez seus
dedos encontraram o que estava procurando. Ele puxou um punhado das
moedas triangulares e estirou-as para Krampus.
“Que bom, coloque-as nos sapatos.”
Jesse fez isso. Seis moedas no total.
“Essas serão crianças felizes”, disse Jesse. “Provavelmente vão comprar
um carro decente com elas.”
Krampus entregou a cada um dos Belsnickels um doce e segurou um
para si, um pirulito vermelho. Ele ficou olhando para o doce por um
instante, da forma como alguém olharia para uma foto antiga, perdida, de
sua juventude, depois abriu a embalagem e colocou o pirulito na boca.
“Nosso trabalho aqui está feito”, disse ele, e dirigiu-se pela entrada de
carros, até o trenó.
Jesse notou uma leve corrida nos passos de Krampus. O Senhor do Yule
deu um pulo para dentro do trenó, olhou de relance para trás, para a casa, e
assentiu, com o luar reluzindo em seu amplo sorriso.
“O Senhor do Yule retornou por fim.”

KRAMPUS foi quase pulando pelas entradas de carros das próximas casas,
com o rabo se mexendo brincalhão para a frente e para trás, quase
abanando. Ele não entrou sorrateiramente, não mais; ele entrava nas casas
audacioso e com altos gritos de congratulações de Yuletide. Os Belsnickels
juntavam-se para subjugar pais alarmados, enquanto Krampus encantava e
aterrorizava as crianças com histórias e presentes. Em uma das casas, um
homem descarregou ambos os canos de sua espingarda e muito
provavelmente teria matado Vernon, se Chet não tivesse conseguido tirar a
arma dele. Eles foram voando de casa em casa, com Krampus gritando
congratulações de Yule a todos que via lá embaixo, e logo Jesse perdeu a
conta dos lares que atacaram.
Em algum momento depois da meia-noite, eles ouviram música
enquanto passavam voando rápido por uma faixa solitária da estrada bem
fora da cidade, nas colinas. Eles deram uma volta voando e viram um
edifício afastado da estrada. Um punhado de carros, motocicletas e
caminhões estavam estacionados sob o brilho de placas de neon de cerveja.
Krampus circulou o lugar, viu um punhado de pessoas seguindo em frente e
rindo enquanto tropeçavam umas nas outras para entrarem no lugar.
Jesse avistou o nome do bar, Horton’s, e percebeu que conhecia o lugar,
que na verdade havia tocado lá uma vez um tempo atrás. Ele lembrava que
havia uma multidão tensa, um daqueles bares onde colocam rede de
galinheiro na frente do palco para evitar que os músicos sejam atingidos por
garrafas de cerveja.
“Isso é um salão de festim?”, quis saber Krampus. “Ou taverna, talvez?”
“É um bar”, disse Chet. “Outra porcaria de honky-tonk.”
“O que estão celebrando?”
Chet deu de ombros.
“Chuto que mais um dia nesta merda de planeta.”
Krampus assentiu.
“É na verdade um bom dia para celebrar.”
Ele desceu o trenó, aterrissando-o atrás do bar. Apanhou o saco e saiu
do trenó em um pulo.
Jesse reconheceu a melodia, uma versão malfeita daquela música antiga
dos Oak Ridge Boys, “Elvira”. Jesse sempre odiara essa canção. Mas é alto,
pensou Jesse. E às vezes isso é tudo que importa.
“Venham”, disse Krampus, e começou a afastar-se.
“Não acham que eu devo ficar fora dessa?”, perguntou Vernon.
“Não. Está na hora de celebrarmos o retorno de Yuletide. A hora de
todos nós celebrarmos.”
“Sim, bem, eu receava que sim.”
Eles desceram do trenó e seguiram o Senhor do Yule até a frente do bar.
Chet começou a rir sozinho.
“Se ocorrer a metade do que houve naquela igreja, então vamos ter
muita diversão.”
“Pode ser mais seu tipo de público”, acrescentou Jesse.
“Não”, gemeu Vernon. “Ele não tem público. Esse será outro desastre.”
“Mal posso esperar”, disse Chet.

HORTON WHITE estava em pé atrás do balcão do bar. Havia na parede uma


foto de Neil Diamond autografada para ele acima das fileiras de bebidas,
bem ao lado de uma foto de Hasil Atkins. Todo mundo no condado de
Boone tinha um fraco pelo velho Hasil, mas Horton não poderia dizer o
mesmo sobre Neil. Os camaradas não ligavam muito para o velho Neil, e
não ligavam a mínima que ele soubesse disso. Horton mantinha a foto no
lugar mesmo assim, porque gostava muito de Neil Diamond e porque o bar
era dele e ele colocava na parede a fotografia de quem quisesse. É claro que
se os camaradas não começassem a comprar bebidas logo, esse não seria o
bar dele por muito tempo, seria apenas mais um barraco acabado ao longo
da estrada.
O primeiro mês foi quase todo a sua custa e Horton não fazia a mínima
ideia de como faria para juntar o dinheiro do aluguel. Ele sabia que não
podia se dar ao luxo de atrasar outra vez, não com o General ameaçando
arrumar briga no lugar se ele atrasasse o pagamento. Ele quase sempre
conseguia reunir uma boa multidão entre o Natal e o Ano Novo, com a qual
contava para ficar financeiramente acertado, mas não nesse ano,
especialmente não nessa noite. Talvez uns trinta camaradas tivessem
aparecido, no máximo, metade de sua clientela de costume, e o pior de tudo
era que ninguém estava comprando nada. Ele tinha dispensado o cozinheiro
no mês anterior, o que o deixava sozinho gerenciando o bar enquanto
tentava anotar os pedidos. Não que alguém estivesse fazendo fila para
comer suas batatas fritas queimadas e cachorros-quentes esquentados no
micro-ondas.
Ele analisou as faces melancólicas. Os camaradas eram levemente
irritáveis, pareciam detonados, cansados, e nem mesmo a banda conseguia
manter o ritmo… continuava ferrando seus sets. Nada não usual em relação
a isso, o que era não usual era o fato de que ninguém parecia querer dar
sequer um pio. Nada de vaias, assovios ou gritos estridentes, e certamente
ninguém jogando garrafas. Somente duas pessoas estavam na pista de
dança, Martha e Lynn, dançando uma com a outra como de costume, porque
nenhum dos homens queria dançar com elas.
Além de um punhado de motoqueiros, a maioria era de frequentadores
regulares do bar: Rusty, Jim, Thornton e o restante daquele bando do
moinho. Tom Mullins e seus quatro irmãos tinham aparecido, deixando
Horton um pouco nervoso a princípio, porque a encrenca seguia aquela
família como se fosse um filhote de cachorro com fome. Mas até mesmo
Tom estava tranquilo nessa noite, sorvendo e não bebendo sua cerveja,
jogando bilhar com aquela garota masculinizada, Kate, da estrada de
Goodhope. Os motoqueiros estavam mais contidos em um dos cantos do
bar. Horton sentiu cheiro de maconha, queria pedir que fumassem lá fora,
não porque isso o incomodasse, mas porque talvez fossem beber um pouco
mais. Contudo ele não conhecia esses rapazes e não queria agitar as coisas,
embora certamente desejasse que algo ou alguém agitasse as coisas…
alguma coisa para agitar a noite.
“Que merda”, disse Horton, falando com o punhado de rostos
melancólicos diante dele no bar. “Alguém morreu que não fiquei sabendo?
Ou talvez os correios esqueceram de enviar os cheques da previdência de
todo mundo?” Ninguém deu nem uma mínima risadinha de escárnio.
A porta foi aberta. Horton não se deu ao trabalho de olhar até perceber a
expressão no rosto de Lucy Duff. Um homem alto, um homem muito alto,
entrou no bar junto de uma rajada de ar frio da noite. As luzes estavam
fracas, mas não tanto que impedissem Horton de ver que o homem tinha
chifres contorcidos saindo de sua testa.
“Bem, me dobra e me fode até eu não aguentar mais”, disse Lucy, com a
fala arrastada. Ela cutucou sua amiga, Nelly. “Ei, Nell, dá uma olhada
naquele.”
Mais seis silhuetas surgiram atrás do alto homem-diabo, trajando roupas
de tempos antigos, com faixas pretas nos rostos. Alguns deles usavam pele
e máscaras com chifres. Mas eram os olhos deles que deixavam Horton
inquieto, o jeito como a luz fazia com que reluzissem cor de laranja nas
sombras.
Isso é uma piada?, perguntou-se Horton. Alguém tem que estar fazendo
uma pegadinha comigo, pois que eu saiba não estamos fazendo nenhum
concurso de fantasias. Ele espiou e viu um homem alto entregando um
grande saco para outro homem da gangue, que falou algo em seu ouvido e
apontou para o bar. Mas que porra! Horton deu-se conta de que estavam
prestes a roubar seu bar. Horton foi até a caixa de gelo e colocou a mão na
parte cerrada sob o balcão. Eles eram doidos? Faziam alguma ideia de com
que tipo de pessoas estavam lidando? Horton achava que metade de seus
fregueses estava armada naquele exato minuto, e o restante carregava uma
faca ou algum outro meio de defesa. Homens e mulheres endurecidos, o
tipo de camaradas que não recuava de uma briga. Horton não tinha dúvidas
de que se aqueles tolos puxassem armas, alguém ia acabar cheio de buracos.
“São eles”, disse Lucy. “Sabe, aqueles do jornal.”
“Quem do jornal?”, perguntou Nelly.
“Dan”, disse Horton com pungência. “Ei, Dan. Me dá uma ajuda aqui.”
Dan estava sentado ao lado de Lucy. Horton tinha passado um tempo no
Vietnã com Dan, e sabia que Dan não ia a lugar nenhum sem sua arma,
sabia que era um bom homem para lhe resguardar as costas. Dan viu que
Horton estava com a mão debaixo do balcão, olhou para a porta e ficou
rapidamente sóbrio. Ele virou-se, levando a mão para dentro do bolso de
sua jaqueta.
O homem esguio com o saco aproximou-se do fim do bar. De perto ele
era ainda mais sinistro. A maquiagem e o estranho brilho nos olhos
pareciam tão reais… Horton não fazia a mínima ideia de como ele fazia
seus olhos brilharem assim. Algum tipo novo de lentes de contato?
“Senhor”, disse o homem esguio. “Perdoe-me, mas tenho uma pergunta
a fazer.”
Horton ficou fitando o homem de onde ele estava, sem tirar a mão de
sua espingarda.
“Sim, o que posso fazer por vocês?”
“Eu gostaria que você fizesse open bar essa noite.”
De todas as coisas que Horton esperava ouvir, essa não estava na lista.
Ele olhou de relance para Dan, mas os olhos de Dan continuavam travados
no homem.
“Aposto que você gostaria disso mesmo, filho”, disse Horton. “Aposto
que todo mundo aqui gostaria disso.”
“Não se preocupe… vamos pagar adiantado”, disse o homem e enfiou a
mão dentro do saco.
Ah, mas que merda! Horton sentiu seu coração pulando em sua
garganta. Ele vai pegar a arma dele. Horton puxou a espingarda e mirou
com ela no homem. Dan sacou seu .38.
“Eita!”, disse o homem esguio. “Aguentem um segundo. Isso não é o
que vocês estão pensando.”
“Que tal se você tirasse a mão daí de boa e devagar”, disse Dan. “Então
daí a gente vê o que acha disso.”
O homem assentiu e então fez algo engraçado. Fechou os olhos como se
estivesse realmente se concentrando. Horton perguntava-se se talvez o cara
estivesse drogado. Horton olhou de relance para o restante da gangue,
sabendo que eles fariam o que tinham a fazer agora. Só que não se
mexeram, nem sequer olharam para ele. Apenas lá em pé, parados,
observando a banda como se não estivesse acontecendo mais nada.
“Ok”, disse o homem. “Eu vou puxar minha mão de boa e devagar. Eu
apreciaria se vocês dois não atirassem em mim quando eu fizer isso.”
“Bem, agora tudo depende do que você tem na mão”, disse Dan. “Não
é?”
O homem esguio tirou lentamente a mão de dentro do saco e, em vez de
uma arma, ele segurava um bom punhado de moedas triangulares sujas, que
ele dispôs no balcão.
“Elas são de ouro. Devem ser o bastante para cobrir pelo open bar.”
“Isso é algum tipo de piada?”, quis saber Horton.
O homem balançou a cabeça em negativa. Não parecia que ele estava
brincando.
“Ele quer pagar com dinheiro de brinquedo”, disse Dan, dando uma
risada.
Horton estava começando a juntar-se a ele quando um brilho de ouro
chamou sua atenção. Ele deu um passo à frente, para enxergar melhor as
moedas. Horton tinha escavado em busca de ouro antigamente com seu avô
nas colinas. Ele sabia como era, qual a sensação e o gosto de ouro de
verdade. Ele pegou uma das moedas, pesou-a em sua mão, mordeu-a.
“Minha nossa, Dan, isso é ouro de verdade.” Ele contou sete moedas à sua
frente, que dariam para comprar toda a cerveja e as outras bebidas de seu
bar.
“Se você me deixar colocar a mão dentro do saco, posso pegar mais
umas.”
“O quê?”, disse Horton, ainda pasmo com a quantidade de ouro em
cima do balcão. “Ah, sim, filho. Vá em frente. Fique à vontade.”
O homem puxou mais cinco moedas.
“Isso deve dar. O que acha?”
Horton não respondeu, não conseguia encontrar palavras.
“O que você me diz? Temos um trato?”
Horton assentiu.
“Com certeza. Que diabos, é claro que temos um trato.”
Ele colocou de volta a espingarda em seu lugar e logo deslizou as
moedas para dentro de seu pano de limpar o balcão, tirando-as de vista.
Estava maravilhado com o quanto pesavam. Que diabos, pensou ele. Tenho
o aluguel de mais ou menos um ano. Quem sabe até uma ou duas férias. Ele
as escondeu debaixo da caixa de gelo, fora do alcance de beberrões com
dedinhos ligeiros.
Nelly, que vinha namorando a mesma cerveja a noite toda, abriu um
sorriso tímido para Horton.
“Bem, eu vou tomar uma dose de bourbon, Bob, pura. E quero do bom,
hein?”
“Sim, eu também”, disse Lucy. “Quero uma dose dupla.” Ela olhou na
direção do homem esguio, de cima até embaixo. “Ei, quem diabos são
vocês?”
O homem sorriu.
“Você verá. É só ficar de olho no cara alto e feio logo ali.”

JESSE ASSENTIU para Krampus e fez o sinal de positivo com o polegar.


Krampus assentiu em resposta e dirigiu-se até o palco. As duas mulheres
pararam de dançar e ficaram olhando-o. Jesse puxou uma banqueta, sem a
mínima ideia do que Krampus estava prestes a fazer, incerto de que gostaria
de descobrir.
Chet, Vernon e Isabel foram andando e puxaram banquetas para o lado
de Jesse. Os dois shawnees ficaram nas sombras, de olho no Senhor do
Yule, parecendo desconfortáveis e deslocados no bar.
Krampus parou na frente da cerca de galinheiro, virou-se e analisou a
multidão ali reunida. Agora, com a luz do palco sobre ele, as pessoas
estavam começando a notar que havia um diabo de mais de dois metros de
altura em meio a eles. Mas não reagiram da forma como Jesse havia
esperado, especialmente não depois do que tinha acontecido na igreja. Nada
de gritos e berros histéricos, em vez disso, muitos olhares confusos, pessoas
apontando e risadas de bêbados, mas, acima de tudo, a curiosidade e gente
tentando entender o que via. Krampus disse alguma coisa para a banda, três
palavras, e eles pararam de tocar. Em vez de protestos raivosos, uns poucos
convivas na verdade bateram palmas. O palco, ou, na verdade, a plataforma,
visto que tinha uns trinta e pouco centímetros de altura, estava envolto em
luzes de Natal, com pontinhos de luz girando lentamente, em amarelo,
vermelho e verde, de cada lado do palco, adicionando um toque dramático e
festivo à presença de Krampus.
“Ei, babaca”, gritou alguém. “Não estamos no Halloween.”
Jesse deu-se conta de que ninguém entendia que um verdadeiro monstro
estava entre eles. Obviamente achavam que Krampus estava fantasiado.
Jesse esperava que as coisas permanecessem assim, para que eles pudessem
seguir seu caminho sem que ninguém levasse uma facada ou um tiro.
Krampus ergueu a mão.
“Por favor, me ouçam… pois eu vou me pronunciar.” Foi seu tom que
capturou a atenção deles, poderoso e ressonante… a voz de um deus.
Krampus esperou as risadinhas acabarem e o salão ficar quieto.
“Bem, vai logo com isso então”, gritou uma mulher corpulenta do bar.
“Não temos a noite toda.”
Krampus abriu um largo sorriso, e havia algo de encantador naquele
sorriso, como um convite para brincar, e, para a surpresa de Jesse, ele
deparou-se com pessoas no bar sorrindo em resposta a ele.
Um jovem impetuoso perto da mesa de sinuca deu uns passos à frente e
gritou:
“Ei, quem diabos você é?”
Krampus fixou o olhar nele, intenso, com olhos penetrantes, que
deixavam claro que deveriam ouvir o que tinha a dizer.
“Eu sou Krampus, o Senhor do Yule”, disse ele com uma voz
retumbante. “Venho celebrar os esplendores da vida e buscar almas
valorosas para juntar-se a mim. Pessoas que desejam alegria… para gritar,
dançar, amar, brigar e cantar. Almas dispostas a darem as costas aos anjos e
partilhar um pouco de devassidão. Para estarem vivas agora… nesta mesma
noite. Para esfregarem os punhos na cara da morte, sabendo que quaisquer
males de amanhã não poderiam roubar este momento se vocês o vivessem
com todo o seu vigor. O que me dizem? Vão beber comigo esta noite e ir
atrás de Draugr das sombras? Vocês vão cantar comigo para a Mãe Terra,
para todos os fantasmas de Asgard? Anunciarão solenemente o Yuletide
comigo?
As pessoas estavam assentindo, estavam engolindo tudo isso. Jesse viu
o mesmo fervor em suas faces como nas dos shawnees. Não havia como
negar que havia algo infeccioso sobre o espírito do Senhor do Yule: Jesse
podia sentir isso no ar.
Um velho, curvado e magrinho, usando um chapéu manchado de suor e
com cabelos prateados, apertou os olhos para Krampus e disse:
“Quem está pagando?”
A multidão riu e o Senhor do Yule riu junto.
“Eu estou!”, disse Krampus, com os olhos reluzindo. “Esta é uma noite
de excessos. Todo o hidromel que aguentarem é por minha conta.”
Quase todas as cabeças giraram na direção do barman, faces cheias de
esperança, buscando confirmação.
O barman assentiu.
“Open bar a noite toda!”, disse ele. Com isso, a alegria irrompeu e
quase todo mundo na taverna dirigiu-se até o bar.
A banda recomeçou a tocar, um espirituoso cover de “Whiskey River”,
de Willie Nelson.
Krampus passou com dificuldade em meio à multidão. Um dos
motoqueiros entregou a ele uma cerveja e gritou:
“A Krampus!” Canecas foram erguidas de todas as partes,
acompanhadas de gritos de “Krampus! Krampus!” O Senhor do Yule bebeu
da cerveja, depois pegou outra e mais outra.
“Bem”, disse Chet. “Eu não vou ficar aqui sentado enquanto eles secam
este lugar sozinhos.” Ele pegou uma jarrinha de cerveja, arrumou uns copos
e os encheu, entregando um deles a Isabel, Jesse e Vernon. Isabel arrastou
Wipi e Nipi, e enfiou uma cerveja nas mãos de cada um. “Vamos lá, está na
hora de curtirem um pouco.”
O Senhor do Yule agarrou duas mulheres do bar, ficou de braços dados
com elas e começou a dançar. As duas mulheres soltaram gritinhos e um
grito alto surgiu em meio à multidão. Logo, mais mulheres se juntaram a
eles na pista de dança. Krampus ia de um braço a outro, tipo uma dança de
quadrilha. A taverna irrompeu em uivos. A banda começou a tocar
“Muleskinner Blues”, acelerando o ritmo e realmente vomitando a música.
Cada vez mais camaradas foram se juntando a eles, até que toda a pista de
dança estava repleta de homens e mulheres gritando, berrando,
embaraçando-se e agindo como tolos.
Bebidas foram derramadas, mesas e cadeiras viradas, mas a risada
espirituosa de Krampus podia ser ouvida acima de toda a balbúrdia, um som
retumbante que esquentava o coração de Jesse, que nunca tinha visto esse
lado do Senhor do Yule, e passou pela cabeça dele que estava vendo o
verdadeiro Krampus, o Krampus de tempos antigos, o grande e selvagem
espírito do Yule que incitava a humanidade em volta a encarar noites
primevas, a aquecer suas vontades para que sobrevivessem às atribulações
dos mais árduos invernos. Ele quase podia ver a besta cornuda dançando a
esse mesmo som nas casas comunais do homem primitivo. Jesse viu a
forma como as pessoas se alimentavam do espírito de Krampus, e como, em
troca, Krampus se alimentava dos espíritos delas. E entendeu então como
aqueles sapatos, com seus pequenos tributos de doces, significavam tanto
para o Senhor do Yule. Que aquilo de que Krampus mais precisava era um
rebanho para guiar, proteger e inspirar. Jesse viu-se batendo os dedos dos
pés no ritmo, e sorria, pois não conseguia evitar, não tinha como não ser
pego no fervor.
“Nossa senhora”, grunhiu Chet. “Todo mundo está radiante. E eu aqui
na esperança de que o velho bode fosse levar alguma na barriga, e não ficar
dançando como um troll da montanha.”
“Eu me comisero com você de todo o coração, meu chapa”, disse
Vernon. “Quem ia imaginar que um pouquinho de doce era tudo que se
fazia necessário para fazer o Velho Alto e Feioso dançar por aí.”
“Aquilo foi muito mais do que uns docinhos para Krampus”, disse
Isabel. “Eu acho que foi sua validação, prova de que o espírito dele
realmente voltou para este mundo.”
“Ei, veja.” Vernon apontou e deu uma risada. Wipi e Nipi estavam lá na
pista de dança, batendo os pés junto dos outros.
“Certamente parecem estar se divertindo demais”, disse Isabel.
Vernon pôs-se de pé e estendeu o braço para Isabel.
“Vamos dançar?”
O rosto de Isabel ficou radiante, com um grande sorriso.
“Que diabos, sim!”
Ela ficou de braço dado com ele, e os dois foram dançando para a pista.
Jesse olhou de relance para Chet.
“Você está vendo aquilo?”
“Aquilo o quê?”
“Logo ali. Aquele cara, aquele cara com a bandana vermelha.”
Jesse acenou na direção de um motoqueiro barbudo com uma pança
impressionante, botando pra valer na dança.
“Ele está de olho em você desde que você entrou aqui.”
“E daí, o que é que tem?”
“O que é que tem? Hein? Você é cego? Creio que ele queira dançar com
você.”
“Vá se foder, Jesse. Por que você é sempre tão babaca?”
Jesse riu e era bom dar risada. Ele reclinou-se no bar e ficou observando
Isabel dançar. Ela dançava tão bem, um jeito parecido com o de Linda
quando dançava. Jesse pensou nas noites com Linda e ele dançando juntos
e, pouco a pouco, o sorriso abandonou sua face. Ele ansiava por ouvir a
risada dela como nos velhos tempos, sentida perto dele enquanto dançavam
uma música lenta; e ali, cercado por um oceano de sorrisos, Jesse sentiu-se
completamente sozinho.
“Sinto falta da Trish”, disse Chet, parecendo bem miserável. “Com
certeza que eu gostaria que ela estivesse aqui para dançar comigo.” Ouvir a
voz de Chet dividindo o mesmo sentimento deixou Jesse alarmado, então
ele notou o jeito como Chet observava os casais… a ansiedade nos olhos
dele não era muito difícil de entender.
“Que porra”, disse Chet. “Juro por Deus que se algum dia eu sair dessa
confusão, vou fazer as coisas certas com ela. Que diabos, com certeza que
vou!”
Jesse assentiu, tomou um longo gole de sua cerveja e perdeu-se em
pensamentos do que ele faria se algum dia se libertasse.
Krampus apareceu na frente dele, segurando um violão. Jesse piscou
como se tivesse acordado de uma soneca. Krampus estirou o violão para
ele.
“Venha, homem da música. Toque uma canção para mim.”
Jesse olhou para o violão como se ele pudesse mordê-lo.
“Não, isso não está acontecendo.”
Krampus tomou um assento ao lado dele.
“Eu gostaria de ouvir você cantar.”
“Não, eu já disse que parei com isso.”
“Jesse, no que você acredita?”
“Krampus, nós já fizemos isso. Eu disse a você que não acredito em
nada.”
“Não, não foi isso que você disse. Você disse que não sabia.”
Jesse deu de ombros.
“Bem, eu sei”, disse Krampus. “Você acredita em música. Está no seu
coração.”
“Não, eu parei com isso de música.”
“Você nunca pode parar com a música. Não mais do que pode parar de
respirar. No dia em que você largar a música, é o dia em que você vai
morrer.”
“Krampus, eu aprecio o que você está tentando fazer… tenho outras
coisas na minha cabeça e…”
“Eu sei, o tal do Dillard. Nós cuidaremos dele.”
“Você já disse isso antes.”
“Jesse, se você levantar daí e tocar para mim algumas canções, eu lhe
dou minha solene palavra de que deixaremos este lugar e iremos matar
aquele homem mau.”
Jesse ficou encarando Krampus.
“Isso é a bebida ou você está falando sério?”
Ele encarou os olhos de Jesse e fixou o olhar neles.
“Você tem o meu juramento como Senhor do Yule.”
Jesse examinou sua face por mais um instante e viu que a criatura estava
falando sério, pelo menos naquele momento ele estava falando sério, e Jesse
concluiu que assim seria. Jesse levantou-se com o violão. Ele foi andando
pela lateral da pista de dança e esperou ao lado do palco até a banda
terminar a música. Quando isso aconteceu, ele perguntou se eles não
gostariam de fazer um intervalo e tomar uma cerveja e subiu no palco.
Todos os olhares recaíram sobre ele, e Jesse teve certeza de que todos
eram capazes de ver através dele, podiam ver que ele não se encaixava ali.
Jesse deslizou a tira do violão no ombro, dedilhou as cordas, girando as
tarraxas, fingindo afinar o violão enquanto tentava controlar seus nervos.
Ele ajustou o microfone e olhou para a multidão ali reunida, incapaz de
desfazer-se da sensação de que não deveria estar no palco. Ele engoliu em
seco, começou a dizer alguma coisa, então se esqueceu do que era.
“Você vai cantar ou só vai ficar olhando para a gente como um frangote
assustado?”, gritou uma mulher, e todo todos riram.
“Eu gostaria de… partilhar uma canção… com vocês”, disse ele
gaguejando. “Algo que escrevi faz um tempinho. Chama-se ‘Night Train’.”
Ele tocou as cordas, captando algumas notas amargas. Parou.
“Próximo!”, alguém gritou, seguido de algumas vaias.
“Sinto muito por isso… já faz um tempinho.”
As pessoas começaram a virar-se, rindo e cortando a música, voltando
para o bar para pegar mais bebidas. O peito de Jesse ficou apertado. A quem
é que estou querendo enganar? Ele forçou-se a recomeçar, tocou mais
algumas notas amargas, mas dessa vez continuou tocando. Seus dedos
estavam meio duros, mas ele sabia que não era esse o problema. Ele
começou a cantar, a voz choca, ele podia ouvi-la, podia ver isso nos rostos
deles.
As pessoas balançavam as cabeças, algumas cobriam os ouvidos com as
mãos, rindo, rindo dele cantando. Jesse captou Krampus observando-o do
bar, os olhos do Senhor do Yule constantes e intensos, e Krampus
pronunciou-se, mesmo sem que Jesse pudesse ouvi-lo, na verdade mais
sentindo do que ouvindo aquilo, profundamente dentro de si.
“Liberte seu espírito.”
Era bobagem, mas Jesse fechou os olhos, tentando esquecer-se da
multidão, concentrando-se em sua música. Aos poucos, os sons da multidão
esvaneceram-se e era só ele e seu violão, sozinhos, que nem em seu quarto.
A tensão desfez-se, a dureza de suas mãos, seus dedos, não mais rígidos,
acertaram as cordas e ele começou a cantar, a realmente cantar.
Era um ritmo animado, uma canção sobre um homem que fugia de sua
mulher muito má. Cerca de um minuto depois, a canção ganhou vida, a
melodia e as notas tornaram-se tão claras que ele quase podia vê-las. A
música fluía através dele, que se sentia mais como se estivesse fazendo um
feitiço e não cantando uma música, e ele dedilhou o violão rápida e
arduamente, como se fosse arrebentar as cordas. Terminou a primeira
canção e foi direto para a próxima, e depois outra. E era como se alguém
tivesse puxado algodão de seus ouvidos, e ele estava ouvindo sua própria
música, sua própria voz, pela primeira vez. Ele não sabia ao certo se tinha
algo a ver com o encanto que Krampus tinha envolvido a taverna ou com
seus sentidos aguçados como um Belsnickel, ou talvez um pouco de ambos,
mas o que importava era que ele estava gostando do que ouvia. Concluiu
que suas canções não eram tão ruins assim, na verdade, eram até bem boas.
Jesse abriu os olhos e deparou-se com aquela multidão pensando o
mesmo, não mais o cortando, mas sim observando-o, marcando a batida e
movendo-se ao ritmo. Ele nunca sentira antes uma conexão assim com um
público, que era como se estivesse tocando suas almas. Viu Krampus
abrindo seu largo sorriso para ele e soube então que o Senhor do Yule
estava certo: ele não poderia largar a música mais do que poderia parar de
respirar, e, embora precisasse de ar para viver, ele precisava da música para
estar vivo de verdade. Ele batia com a bota no ritmo, gritava e uivava como
qualquer um; continuou cantando e cantando, com a voz límpida e forte, a
música levando-o cada vez mais para cima.
Krampus se movia entre eles, dando pulinhos e batendo palmas no
ritmo. Um profundo murmúrio surgiu de entre a multidão, um som cálido,
quase um ronronar. A música adquiriu vida própria, a melodia de sua
canção esvanecendo-se enquanto ele dedilhava o violão em alguma batida
distante, primitiva. Krampus começou com um cântico e a multidão juntou-
se a ele. Jesse pegou-se cantando junto sua canção esquecida, palavras sem
sentido, apenas sentimentos. Em algum momento a banda juntou-se a eles,
e a potência da bateria e a profunda arrancada do baixo aumentou,
estabelecendo a pulsação. Todas as pessoas no salão moviam-se pelo chão
ruidosa e descomedidamente, dançando e batendo os pés ao ritmo da
música. Eles assentiam e ondeavam, com os olhos semicerrados como se
estivessem em um transe.
O ritmo primitivo cresceu, enchendo Jesse da cabeça aos pés, até seu
próprio âmago. A multidão reuniu-se, formando um amplo círculo, com as
mãos nos quadris da pessoa que estava à frente deles. Krampus encabeçava
o desfile, dando voltas e voltas pelo salão, as duas mulheres do bar
segurando em sua cauda, rindo e seguindo aos tropeços atrás dele. A batida
continuou a erguer-se como se mil tambores tivessem se juntado a eles.
Jesse sentia-se em um casulo na cálida cacofonia de som. O salão ficou
anuviado e as luzes tremeluziam como chamas, mandando uma hoste de
sombras dançando pela parede e pelo teto, as formas de homens e mulheres
pulando, dançando. Jesse piscou, viu alguns chifres e algumas caudas, então
feras, veados, ursos e lobos, todos girando juntos nas paredes como antigas
pinturas em cavernas ganhando vida.
Em algum momento, Jesse deve ter se juntado, porque ele deparou-se
consigo à deriva naquele oceano de corpos, sentindo como se estivesse
flutuando em um sonho. Os tambores eram acompanhados de gritos e uivos,
não somente daqueles homens e daquelas mulheres, mas balidos, zurros,
rosnados e uivos. Ele ouviu a batida de seu coração, depois as batidas dos
corações de todos a seu redor; eles entravam em sincronia com o ritmo da
música, e ele entendeu que não era nenhum tambor que ele ouvia, mas a
pulsação da vida em si, da Mãe Terra, que bombeava através dele, uma
sensação da mais pura alegria, e ele viu como ele fazia parte dessa pulsação.
Como realmente fazia parte daquilo. Um sobrepujante afeto por aqueles que
estavam perto dele, por toda a vida, aumentou em seu peito.
A batida de coração continuou, os dançarinos quebraram o círculo e
começaram a se contorcer e se esfregar uns nos outros; parecia que havia
cada vez mais gente no salão, muitos vestindo ossos, nus, ou seminus,
alguns usando máscaras e cobertos de cinza e pintura. Em determinado
momento, Jesse encontrava-se nas garras de uma mulher, com as mãos nos
quadris suados e desnudos dela, e a língua dentro de sua boca. Ela cheirava
a madressilva, tinha orelhas pontudas, e ele piscou, havia pequenos
esgalhos crescendo do topo de sua cabeça, e um instante depois, ela girou e
afastou-se dele, que segurava as quatro patas de um bode, a besta girando-o
pelos lados, rindo, seus olhos amarelos cheios de alegria. Jesse dava risada
junto.
Fora do grupo dos farristas, nas mais profundas sombras, Jesse percebia
outras formas, formas de coisas que nunca tinha visto antes, e ainda assim
alguma parte profunda dele as reconhecia. Ele estremeceu. Elas também
pareciam atraídas para o som da batida de coração, mas Jesse sentiu que era
para um propósito diferente. As formas observavam-no com ares de
reprovação, mas nenhuma entrou no círculo de luz, desviando-se como se
estivessem sentindo dor a cada vez que Krampus ria ou berrava.
Krampus começou a entoar o cântico de novo, e todos eles juntaram-se
a ele, rindo, bebendo, assoviando e girando uns para cima dos outros, todos
eles bêbados do espírito dele. Jesse não fazia a mínima ideia de quanto
tempo isso durou, só que em algum momento ele adormeceu ou desmaiou.

ALGUÉM CHACOALHOU os ombros de Jesse para que acordasse. Ele abriu os


olhos e deparou-se com Krampus sorrindo para ele. Jesse olhou para os
corpos que dormiam, roncando. Estavam por toda parte, alguns aninhados
juntos bem ali na pista de dança, outros espalhados pelo bar, pelas mesas e
pelos bancos. Ele procurou pela mulher com os esgalhos, não encontrou
nenhum sinal dela nem das pessoas pintadas ou de nenhuma das outras
bestas estranhas.
“Está na hora de acertar as contas com o tal do Dillard. Preparado?”
Jesse sentou-se rapidamente e assentiu.
“Ah, é… estou pronto.”
O sorriso de Krampus ficou ainda maior, perigoso e cheio de dentes.
“Então vamos ser terríveis.”
Eles foram para fora, o frio ajudando a acordar Jesse. Ele saiu aos
tropeços depois de Krampus, sentindo-se zonzo. O restante dos Belsnickels
estava sentado no trenó, parecendo exaustos, mas felizes e contentes, até
mesmo Vernon.
Um fantasma de alvorecer foi surgindo ao longo da linha de colinas.
Jesse parou de andar.
Havia um grande urso sentado na neve ao lado do trenó. Um urso muito
grande.
Jesse começou a chamar a atenção para isso quando notou os três cervos
parados ao lado do urso. Ele olhou a seu redor, viu mais cervos, um outro
urso, guaxinins, uma raposa, animais de todos os tipos. Eles estavam
reunidos em volta da taverna. Ele também notou que muito da neve e do
gelo em volta da taverna havia derretido, deixando uma boa extensão de
terra exposta. Aqui e ali nova grama crescia, folhas e botões frescos
surgiam das árvores ali perto, até mesmo umas poucas flores pontilhavam a
paisagem.
Jesse olhou de relance para Krampus.
Krampus deu de ombros.
“Cantamos para a Mãe Terra na noite passada. Ela nos ouviu.” Ele
pegou uma flor da neve e a cheirou. “E isso com o espírito de um punhado
de bêbados. Imaginem… imaginem o que poderíamos fazer com mil vozes,
cem mil vozes, um milhão de vozes!”
Krampus levou o trenó para trás da velha igreja. Geri e Freki estavam
sentados, esperando por eles no pórtico dos fundos. Os Belsnickels saíram
do trenó aos tropeços, apoiando-se pesadamente uns nos outros. Krampus
foi até o pórtico, deixou o saco cair nos degraus e deu um tempinho
acariciando as espessas pelagens dos lobos.
Isabel colocou lenha no fogão enquanto Vernon, Chet e os dois irmãos
chegavam até suas camas e caíam. Menos Jesse: ele foi até a caixa de
papelão que continha o dinheiro e as armas, passando pela pistola
automática e pegando o revólver Colt, querendo uma arma em que se
pudesse confiar. Ele enfiou no bolso uma das facas de caça robustas e uma
caixa de munição. Apanhou as chaves da caminhonete de Chet, achando
melhor pegar a picape. Logo seria alvorada e um trenó voador não seria o
meio mais discreto de andar por aí.
“Aonde você vai?”, quis saber Isabel.
“Levar Krampus em uma caçada a monstros.”
Ela o examinou por um instante, depois balançou a cabeça em negativa.
“Na-não?!”
“Vamos cuidar das coisas.”
A expressão no rosto dela ficou tensa. “Cuide de si.”
“Vou tentar”, disse ele, e saiu.
Jesse deparou-se com Krampus sentado no pórtico entre os dois lobos,
esfregando seus pelos e com o olhar erguido para as estrelas que
esvaneciam.
“Preparado?”, quis saber Jesse.
“Por favor, sente-se aqui.” Krampus colocou o saco de lado e abriu um
espaço para Jesse se sentar. “Há umas palavrinhas que eu gostaria de lhe
dizer.”
Jesse tentou não mostrar sua frustração; ele queria sair dali logo, queria
fazer isso logo. Ele sentia um crescente senso de temor que não conseguia
explicar, e a última coisa que queria naquele exato momento era ser levado
por mais uma das longas conversas de Krampus.
“Serei breve.”
Jesse sentou-se no degrau no chão ao lado de Krampus, que inspirou
fundo. “Foi uma noite gloriosa, não foi?”
“Foi.”
“Jesse, suas canções, elas tocaram o meu coração… e não apenas a
mim. Você os viu? Você viu os rostos deles? Você emocionou a todos. A
sua musa é cheia de magia.”
Jesse sorriu e assentiu. Magia. Ele gostava disso. Era a única forma de
descrever como suas canções fizeram com que ele se sentisse na noite
passada.
“Aquilo foi obra sua?”
“Oh, sim, mas, na verdade, a música… aquilo foi sua musa. Eu apenas
ajudei você a vê-la de verdade, a libertar-se de seus próprios medos, a
soltar-se. Mas eu juro a você que foi sua centelha que os cativou.”
Jesse assentiu. Ele nunca tinha exposto a sua alma tão verdadeiramente.
Ainda sentia a onda; ainda se sentia uno com a melodia. E mais, ele não
sentia nenhum indício de suas apreensões anteriores, na verdade mal podia
esperar para tocar em frente a um público de novo.
“E meus olhos também foram abertos”, disse Krampus. “Pois eu vejo
claramente que a humanidade ainda não se esqueceu de quem é. Lá no
fundo, o espírito deles ainda queima. Vejo que eles só precisam de um
cutucãozinho para se libertarem.” Krampus abriu um sorriso largo e
radiante. “E sempre haverá de ser eu a dar esse cutucão… em alguma
forma, ou de alguma forma, não importa qual jogos os deuses possam estar
jogando.”
Jesse assentiu. Ele esperava mesmo que fosse assim. Jamais se sentira
tão vivo e conectado com o mundo ao seu redor, e entendia plenamente que
a magia do Yule de Krampus foi o que despertara tais sensações. Ele
inspirou fundo, saboreou o sentimento, descobriu que ainda sentia o ritmo,
aquela estranha e primitiva batida da noite passada, que pulsava, ainda que
fracamente, por todo o seu ser.
“Jesse, quando o sol se erguer será um novo dia… o começo de uma
nova era do Yule, que haverá de se espalhar, meu rebanho haverá de crescer,
e eu desejo apenas ter por perto aqueles que desejam servir. Sendo assim,
pretendo libertar os Belsnickels da obrigação… fazer com que aqueles que
assim o desejarem voltem a ser de carne e osso.”
Jesse se endireitou, encarando Krampus com olhos arregalados, pasmo.
“Então você pode fazer isso? Mudá-los de volta? Nos mudar de volta?”
Krampus sorriu.
“Claro que sim. É meu sangue, posso retirá-lo a qualquer momento.”
Jesse mal conseguia acreditar no que estava ouvindo. Ele havia se
resignado a morrer um Belsnickel.
“Sério mesmo?”
“Pretendo oferecer a cada um dos Belsnickels uma escolha. Estou
começando com você. Você pagou sua dívida comigo. Se pretende matar
esse homem ruim, creio que prefira fazer isso como um homem livre… para
que ele veja os verdadeiros olhos de seu assassino.”
Para Jesse, não havia nada a se considerar. Voltar a sua própria carne, ter
uma outra chance com Linda… ora, faria o que lhe fosse pedido. Ele
assentiu de todo o coração.
Krampus esticou a mão.
“Sua faca.”
Jesse levou a mão ao bolso e pegou a faca de caça, entregando-a a
Krampus, que puxou a lâmina de sua bainha e testou a ponta.
“Dê-me sua mão.”
Jesse esticou a mão, com a palma voltada para cima, e encolheu-se.
Krampus deu uma risada.
“Não se preocupe. Só preciso chamar uma gota de sangue para casa.”
Krampus perfurou a ponta do dedo de Jesse. Tocou na marca com seu
próprio dedo e cerrou os olhos. O corpo de Jesse formigava da cabeça aos
pés. Krampus abriu os olhos, retirou o dedo e, ali, na ponta, havia uma gota
de sangue reluzente, que Krampus lambeu até não sobrar nada.
Jesse inspecionou o próprio dedo.
“É isso?”
“Isso é tudo.”
Jesse não se sentia diferente. Ele examinou suas mãos. Sua carne ainda
era de um cinza manchado.
“Vai demorar um pouquinho”, disse Krampus. “Por ora nós
deveríamos…”
A sua voz desfez-se. Inclinou-se para a frente, espiando atenciosamente
para cima. Ele franziu o cenho e aos poucos uma expressão de confusão e
alarme espalhou-se por seu rosto.
Jesse acompanhou os olhos dele e viu uma estrela cadente vindo em
direção à terra.
“O que é aquilo?”
“Não”, disse Krampus, ficando logo em pé. Tanto Geri quanto Freki
ergueram as cabeças, um uivo lento e ameaçador vindo do fundo de suas
gargantas. A estrela cadente vinha na direção deles, aumentando de
tamanho conforme se aproximava. “Não pode ser. Não agora. Não tão
cedo!”
Uma voz recaiu sobre eles, um pouco mais do que um sussurro.
“Krampus”, chamou a voz. Jesse sentiu-a mais do que a ouviu.
A expressão na face de Krampus ficou endurecida.
“Não, isso não é justo. Por que eles não podiam esperar? Por que eu não
poderia ter um pouco mais do que isso?”
Os dois bodes do Yule bufaram e começaram a bater os pés de um lado
para o outro na neve. Krampus foi andando até eles e apanhou a lança de
visco de sua bainha no trenó. Ele ficou parado ali um instante,
distraidamente acariciando o pescoço, o rosto tenso, os olhos distantes. Por
fim, ele soltou um suspiro, assentindo como se tivesse chegado a alguma
decisão profunda, e foi andando rapidamente até Jesse.
“Aqui.” Ele pegou o saco de veludo, empurrando-o para os braços de
Jesse.
“As chaves? Você ainda tem minhas chaves-mestras?”
Jesse deu um tapinha em seu bolso.
“Sim… por quê? O que está…?”
“Jesse, parece que julguei errado, que o meu tempo por aqui é bem mais
curto do que eu esperava. Você tem que pegar o saco, subir em sua
carruagem e ir para bem longe.” Ele segurou no ombro de Jesse. “Você está
livre agora, então eu tenho que implorar isso a você. Por favor, faça o que
tiver que ser feito para manter o saco longe das mãos dele. Vá bem para
dentro nas montanhas e enterre-o em algum lugar. Queime-o se for
necessário, só não deixe que ele o pegue, por favor.”
“O quê? Não! Por quê?”
“Baldr está vindo agora, e com aliados potentes.”
“Baldr? Mas…”
“O jogo foi burlado. Uma piada cruel. Eu não vou correr… não dessa
vez. Não há fuga para mim de qualquer forma. Deve ser interessante ver
onde tudo isso haverá de acabar.” Krampus sorriu. “Você não concorda?”
Jesse tentou dizer mais alguma coisa, mas Krampus balançou a cabeça
em negativa.
“Jesse, anda logo. Vá agora ou a oportunidade será perdida.” Krampus
conduziu-o escada abaixo, empurrou-o em direção à lateral do edifício.
“Vá!”, gritou Krampus. “Anda logo!”
Jesse tropeçou pelo canto, parou e olhou para trás, e viu-se enfeitiçado
pelo brilho dourado do orbe.
Krampus olhou para a luz, com a sombra de seu rabo estirando-se atrás
dele. Ele ergueu a lança, apontando-a para o orbe.
“Eu sou Krampus”, disse ele solenemente. “O Senhor do Yule. Não
mais haverei de me esconder em cavernas.”
Cada um dos dois lobos estava em posição de ataque, com as pernas
rígidas e o pelo eriçado, um de cada lado de Krampus.
Surgiu um som, suave e baixo, e ainda assim bloqueou todos os outros
sons, um coro de mil vozes reunidas em um hino. Krampus manteve-se em
sua posição, empertigou-se em sua altura plena, com os ombros para trás, os
olhos claros e resolutos.
O orbe iluminou-se acima da neve, entre duas macieiras, seu brilho
desvanecendo, revelando três silhuetas. O Papai Noel estava no meio,
trajando robes brancos e pesados cheios de pelos. Sua longa barba e seus
cabelos soltos farfalhavam sob a brisa leve da manhã. Ele estava ladeado
por dois homens alados, ou talvez mulheres, impossível de Jesse discernir
isso, porque eles partilhavam feições de ambos, com rostos austeros, belos e
terríveis ao mesmo tempo. Uma leve aura dourada cercava cada um deles,
robes finos e delgados flutuavam soltos em torno de seus corpos esguios e
elegantes, e asas brancas surgiram de suas costas. Longas espadas pendiam
em bainhas incrustadas em ouro, presas com uma faixa cruzando seus
peitos. Jesse se perguntava se eles seriam anjos, imaginava o que mais
poderiam ser além disso.
Um deles pôs os olhos frios e penetrantes em Jesse, olhos que pesavam
sua própria alma, que prometiam o que era devido. Jesse enfiou os dedos no
saco de veludo enquanto sentia um calafrio em seu âmago, a garganta
constrita como se mãos de gelo estivessem segurando seu pescoço. Ele
tropeçou para longe, lutando para respirar, e deu a volta na igreja, saindo do
campo de visão dos terríveis anjos. O calafrio esvaiu-se. Ele ficou ofegante,
tentando recuperar a respiração. Que porra foi aquilo?
Vá! Vá! Ele ouviu a voz de Krampus em sua cabeça. Jesse não
precisava ouvir isso de novo, certo de que as coisas iam acabar mal e que
não haveria nada que pudesse fazer para que não morresse.
Jesse foi correndo em direção à caminhonete de Chet, escancarando a
porta e jogando o saco no banco do passageiro. Ele entrou ali, tateou em
busca das chaves da caminhonete, enfiou-as na ignição e deu partida. Jesse
pisou no acelerador. As grandes rodas giraram na lama de gelo, e a picape
foi lançada para frente, cambaleando e borrifando lama enquanto abria
caminho na pequena entrada de carros.
Ele podia ainda sentir o calafrio em seu pescoço, ainda podia ouvir o
hino, mil vozes perseguindo-o. Jesse concentrou-se em manter o veículo
fora do canal enquanto abria caminho pelo cascalho. Assim que alcançou a
estrada, ele disparou a toda velocidade, descendo pelo asfalto o mais rápido
a que se atrevia, tentando empurrar as vozes para fora de sua cabeça,
querendo apenas escapar daqueles terríveis anjos.

O DELEGADO DILLARD notou o sol espiando no horizonte e olhou em seu


relógio. Mal passava das sete da manhã. Que merda, nunca vou sair daqui.
Os bombeiros ainda estavam jogando água em partes da igreja, o que era
apenas perda de tempo, para Dillard, pelo menos a essa altura do
campeonato, quando a estrutura já parecia ter sofrido perda total. Ele teria
ido embora dali havia várias horas se não fosse pelo engarrafamento. Parece
que Billy Tucker tinha batido no jipe de uma adolescente e então Johnny
Etkins apareceu e tirou ambos dali. Nada disso teria acontecido se os três
estivessem olhando a estrada em vez do fogo. Noel tinha sido levado às
pressas ao pronto-socorro, depois de sofrer queimaduras enquanto tentava
impedir a sra. Powell de voltar atrás de um precioso livro de hinos, o que
deixou Dillard a cargo de lidar com a bagunça, ao mesmo tempo em que
tentava manter a cena segura.
O xerife não tinha sido de ajuda nenhuma, saindo umas horas antes, ele
e seus assistentes exploravam a área em busca de Jesse e daquela gangue.
Que porra, aquele filho da puta provavelmente está fuçando no complexo
do General neste mesmo instante! E, ainda por cima, Dillard tinha que
cuidar de Linda e de Abigail. Pelo menos elas não vão a lugar nenhum…
pelo menos, espero que não. Ele sentiu um aperto no peito. Que merda,
quantas pontas soltas!… pontas soltas demais. Dillard sabia que não agia
bem quando as coisas estavam fora de seu controle e não conseguia se
lembrar de quando as coisas estiveram mais fora de seu controle quanto
naquele momento. Ele tirou o chapéu, esfregou a lateral da cabeça. Gostaria
de ter levado alguns daqueles remédios.
O chefe dos bombeiros, John Adkins, foi até ele.
“Você parece não estar muito bem, Dillard. Alguma coisa o está
incomodando?”
“É… estou com uma dor de cabeça que não quer passar.”
John olhou para a marca de queimadura na face de Dillard.
“Você tem que ver isso daí.”
“Verei.”
“Parece que as pessoas que estavam olhando o incêndio foram para
casa”, disse John. “Não vejo muitos motivos para você ficar aqui parado no
frio. Por que não vai para casa dormir um pouco? Uma soneca é a melhor
coisa que já vi para dores de cabeça.”
Soneca, pensou Dillard. Não vou tirar uma soneca tão cedo. Não até eu
ter cuidado de Linda e de Abigail, de qualquer forma. “Bem, certo, se você
acha que as coisas aqui estão todas sob controle.”
“Parece que sim, para mim.”
Dillard despediu-se e desejou boa noite ao chefe dos bombeiros, entrou
em sua viatura, ligou o motor e aqueceu as mãos no aquecedor. Ele fez o
carro andar, voltando para casa. Tenho que fazer isso rápido, é só entrar lá
e acabar com isso de uma vez por todas.

O PAPAI NOEL deu um passo à frente.


“Krampus, eu lhe avisei a tempo. Falei que não haveria onde se
esconder. Você não me deu ouvidos.”
Sua voz soava calma, quase melancólica, até mesmo constrita, sem
nenhuma raiva ou malícia.
“Os mortos não deveriam falar, pois suas palavras cheiram a podridão”,
respondeu-lhe Krampus.
O Papai Noel deu de ombros.
“Parece que os deuses não me desejam morto. Parece que meu destino
está ligado a eles e estou eternamente condenado a desempenhar o meu
papel.”
“Não se atreva a culpar os deuses por seus próprios erros. Você vendeu
sua alma. Vendeu-a barato.”
“Barato?”, respondeu o Papai Noel, com a voz sombria. “O custo foi
maior do que se pode tolerar.”
Krampus mirou com a ponta da lança no Papai Noel.
“Quantas vezes seu deus está disposto a ressuscitar seu cãozinho que
dança? Chegue mais perto, minha lança gostaria de descobrir.”
“Não, meu amigo, não serei eu quem vai morrer, não hoje. Deus não
permitirá isso. Talvez um dia minha servidão tenha fim, mas até esse dia,
meus sacrifícios são pela glória dela.”
“Pare de bancar o mártir, esse papel não se encaixa com você. Você,
Baldr, é o vilão nesta fábula. Você cometeu atos vis, roubou aquilo que não
lhe pertence… traiu quem o ajudou. O destino punirá você.”
“Destino? Deus? Que diferença faz? De uma forma ou de outra, receio
que isso já tenha trazido muita desgraça. Uma vez eu fui como você. Achei
que pudesse erguer meu próprio reino. Construído bem na fuça dos deuses.
Em vez disso, tudo o que edifiquei foi uma prisão, da qual não há fuga, nem
mesmo por meio da morte.”
Krampus soltou uma bufada.
“Eu deveria derramar uma lágrima?”
“A morte me ensinou muitas coisas. Mas eis a verdade, a única coisa
que importa. Deus assume muitas faces… muitos disfarces. Mas não
importa quantos sejam os disfarces, ela sempre está… sempre antes, sempre
depois.” O Papai Noel riu com aspereza. “E eis a piada… para cima de
mim, de você, de toda a humanidade. Deus é única, sempre só existiu essa
Deus Única. Todos os deuses que já existiram e que hoje existem são o
mesmo, todos fazem parte dessa Deus Única. Não passamos de peões no
grande jogo dela. Todos nós servimos a ela… até mesmo você. Além disso,
não há respostas… pois essa é a única que importa.”
Krampus meditou a respeito e depois balançou a cabeça e cuspiu
sonoramente.
“Que baboseira, que baboseira suprema. Perder a cabeça não lhe fez
bem. Vá em frente, invente histórias para tentar aplacar sua própria culpa,
mas não tente me vender suas fantasias. A verdade, a única verdade que
importa é que você é um bufão, um nada, um joguete, um carrapato no saco
enrugado de Deus.” Krampus deu uma risada. “Como você consegue até
mesmo erguer a cabeça? Onde está sua vergonha?”
Papai Noel soltou um longo suspiro.
“Krampus, meu velho amigo, não tem como usar a razão com você.
Nunca teve. Sua arrogância, sua teimosia obstinada o deixa cego. Todos os
meus esforços para salvá-lo foram desperdiçados porque você não é capaz
de deixar o passado para trás, e assim condenou a si mesmo à extinção. E,
até mesmo agora, em face de seus fracassos, você ainda é muito cabeça
dura para saber quando dizer chega.”
“Eu não sou seu amigo. E não procuro uma desculpa para me prostrar,
tal como você. Sou um Lorde, não me ajoelho a ninguém. Você, você não
passa de um asno patético, e sempre será um asno patético, um que chupa a
ponta do pau de seu deus como uma putinha de sarjeta. Eu vou matar você
tantas vezes quanto for necessário para me livrar de seu fedor. Agora,
venha! Estou sedento para saborear o seu sangue.”
Papai Noel balançou a cabeça em negativa, com a expressão desdenhosa
no rosto.
“Infelizmente, você ainda não está vendo o que está bem na sua cara.”
Ele acenou para os dois anjos, que desembainharam suas espadas,
lâminas brilhantes de luz prateada, e foram para cima de Krampus. Os lobos
jogaram-se para a frente, saltaram para cima dos anjos. Os movimentos dos
anjos foram rápidos, precisos, suas espadas não passavam de borrões
prateados. As lâminas atravessaram os lobos; foi sem sangue, sem feridas,
apenas um gritinho alto e, um segundo depois, ambos os lobos estavam
mortos no chão.
“Mais morte, mais assassinatos!”, gritou Krampus. “Quanto sangue é
necessário para aplacar seu deus?”
“Krampus?”, chamou-o Isabel. Ela estava no pórtico, agarrando-se ao
batente, com os olhos arregalados e cheios de terror. Vernon e Chet
apoiavam-se na porta atrás dela. Ouviu-se um grito selvagem e Wipi e Nipi
passaram por eles, correndo atrás dos anjos, com as lanças erguidas.
Os anjos estavam cara a cara com os Belsnickels.
“Esperem!”, gritou Krampus, erguendo a mão para Wipi e Nipi. “Para
trás.” Os shawnees pararam, posaram, olhando com ódio para os anjos.
“Não há nada para vocês aí além da morte.” O Senhor do Yule apontou com
sua lança para o Papai Noel. “Então o filho do grande Odin por fim mostra
sua verdadeira face, escondido atrás das saias de anjos. Venha, covarde.
Enfrente-me!” Krampus partiu para cima do Papai Noel, tentando passar
correndo pelos anjos. Os anjos interceptaram-no, levaram sua espada para
cima e para baixo em um grande arco. Krampus pretendia bloquear as
lâminas prateadas, mas as espadas passaram por sua lança, por seu braço e
por seu torso. Um frio que queima, cortante, seguiu a trilha delas, ainda que
não transpassassem nada, nem lança, nem braço, nem dorso. Ainda assim, a
dor era fenomenal. Ele cerrou os dentes, olhou com ódio para os anjos,
determinado a ficar onde estava.
Os anjos trocaram olhares perturbados.
“Ainda estou em pé!”, disse Krampus, provocando-os, soltando uma
risada ensandecida. “Parece que o seu grande deus não é assim tão grande!”
Eles atingiram-no de novo.
Krampus rugiu, sua voz retumbando pela paisagem gélida, fazendo
pernas tremerem e jogando neve no chão dos beirais da igreja. O som
bloqueou a canção dos anjos, que se encolheram como se tivessem sido
acertados. Krampus passou voando por eles, jogando o da frente sobre o
outro, derrubando-os.
Ele dirigiu-se até o Papai Noel, sua respiração saindo em rajadas de
vapor e cuspe.
“Você nunca vai se ver livre de mim”, rosnou Krampus. “Não enquanto
um único homem ainda viver… pois eu sou o espírito selvagem que vive no
peito deles. E não há nada, nada que você ou seu deus possa fazer para
algum dia mudar isso!” Ele foi aos tropeços para a frente, com a lança
mirando o peito do Papai Noel.
O Papai Noel recuou, sua expressão desdenhosa substituída pelo temor.
Ele tropeçou, caiu, mas antes que Krampus pudesse fechar a distância entre
eles, os anjos foram para cima. Eles acertaram o Senhor do Yule novamente
e, mais uma vez, suas espadas entalharam trilhas de um frio entorpecente
por seu corpo. O mundo começou a esvanecer-se, a perder sua cor e sua
densidade, os sons abafados como se estivessem vindo de trás de uma
parede. Ele ainda fazia força para a frente, um passo, depois outro, cada
passo mais difícil do que o último, enquanto eles continuavam o atacando.
O Senhor do Yule prostrou-se em um joelho, depois as mãos, arfando, o
mundo agora em fantasmagóricos tons de cinza. Ainda assim ele persistiu,
arrastando-se com uma das mãos, depois a outra, determinado a atravessar o
coração do Papai Noel com a lança.
Krampus caiu. Os anjos não se apiedaram.
“Esperem”, disse o Papai Noel, pondo-se de pé e dando um passo à
frente. Os anjos pararam e o Papai Noel ajoelhou-se, olhando para a lança
nos dedos de Krampus. Ele levantou-se, deslizou uma das botas por sob o
Senhor do Yule, virando-o. Krampus ergueu o olhar com ódio para ele.
“Você é uma besta muito teimosa”, disse, aos cuspes, o Papai Noel.
“Mas seu tempo já foi.”
Com um esforço supremo, Krampus conseguiu dar uma risada… uma
risada selvagem e zombeteira.
O Papai Noel ergueu a lança e a enfiou no coração de Krampus.
Toda a dor desapareceu. Krampus ficou leve como o ar. Ele começou a
ficar à deriva. O mundo agora estava tão fraco que ele mal conseguia ver as
silhuetas em sua volta, cujas vozes soavam como se subissem de um túnel
distante.
Wipi soltou um uivo selvagem e pesaroso e atacou.
“Pare!”, gritou Krampus, mas sua voz estava fraca, apenas um eco.
Ninguém o ouviu.
Os anjos cortaram Wipi e foram atrás de Nipi.
Krampus não viu o que aconteceu depois, as formas na cor cinza, as
vozes, todas se esvaindo, deixando nada.

JESSE PÔS O pé na estrada e corria para o norte, em direção a Goodhope. Até


aquele exato instante, seu foco era apenas na fuga, mas agora ele percebia
que não estava fugindo, estava indo a algum lugar e esse lugar era a casa de
Dillard.
Ele não fazia muita ideia de quanto tempo tinha. Estaria ele na lista de
morte do Papai Noel? Será que, por seu papel, Deus o condenara? Como se
escapa da Ira de Deus? Ele não tinha nenhuma resposta, só sabia que ainda
estava vivo e, enquanto respirasse, poderia ter uma boa chance de fazer algo
em relação a Dillard.
Com o General fora da jogada, era só entre eles agora. Eu vou atirar
nele?
Jesse pensou na vez em que Dillard o havia desafiado ele a fazer
exatamente isso. Quantas vezes ele tinha desejado ter aquela chance de
novo? Se realmente tivesse essa oportunidade, ele atiraria? Uma coisa é
certa, vou dar um jeito para que ele nunca mais machuque Linda ou Abi de
novo. O grito de Abigail ecoava em sua mente, o terror nos olhos dela. Vou
atirar pelo menos nos joelhos dele… Fica difícil bater numa mulher de uma
cadeira de rodas. Que diabos, sim, fica sim.
Jesse dirigia com rapidez, mas não sem cuidado. Era manhã cedo de
domingo, então, além dos ocasionais veículos grandes, a estrada pertencia a
ele. Ele foi bem rápido, chegando à margem da cidade tão logo o brilho da
alvorada começou a espalhar-se pelo céu do leste. Dessa vez ele subiu pela
estrada do rio que corria atrás da casa de Dillard, escondendo o veículo nas
árvores.
Ele desligou o motor, começou a sair do veículo e parou. Devagar. Não
foda com isso de novo. Jesse sacou a Colt, verificou de novo se estava
totalmente carregada e enfiou-a no bolso. Seus olhos caíram no saco de
veludo… ele ficou olhando para ele por um tempinho. O que eu deveria
fazer com isso? Porra, pelo que eu sei isso pode trazer o Papai Noel e seus
monstros direto até mim. Ele balançou a cabeça em negativa. Vou ter que
pensar nisso mais tarde.
Ele empurrou a porta para fechá-la, foi andando rapidamente de uma
árvore à outra, em direção aos fundos da casa de Dillard, parando mais ou
menos a cada dez metros para ouvir e ver se havia alguma coisa. Ele
empunhou a arma, com o dedo no gatilho, constante e preparado. Jesse não
ia contar nem com Deus, nem com a sorte. Desta vez, ele contava apenas
consigo mesmo.
A luz da cozinha e da sala de jantar estavam acesas. Seu coração
acelerou, havia alguém na casa. Ele seguiu pelas cercas-vivas, dando a volta
no abrigo e então subiu até a garagem. Ele deu uma espiada na frente da
casa. Nenhum sinal da viatura nem do Suburban. O triste e pequeno Ford
Escort de Linda ainda estava na entrada de carros e, a julgar pela neve em
sua volta, não se movia fazia um bom tempo.
Jesse deu a volta na casa e decidiu que a porta dos fundos da garagem
daria a melhor entrada. A porta estava trancada. Ele sacou as chaves-
mestras. A primeira chave permitiu que ele entrasse. Ele acendeu uma luz e
deparou-se com o Suburban de Dillard lá dentro. O capô estava frio. Jesse
inspirou fundo, ciente de que Dillard podia estar em casa afinal de contas.
Tudo na garagem estava arrumado, todas as ferramentas em seus
lugares marcados no quadro de ferramentas, as caixas etiquetadas e
empilhadas de modo uniforme ao longo das prateleiras. Seus olhos
depararam-se com uma caixa de costura com rosas vermelhas, e ele ficou
paralisado. Chet estava pelo menos falando a verdade sobre a caixa de
costura. Jesse se perguntava se tudo era verdade. Continue andando. Ele
começou a afastar-se e parou. Eu tenho que saber a verdade disso.
Jesse foi num pulo até a caixa e abriu a tampa. Ali dentro havia uma
caixa de joias, um buquê de flores secas, renda dobrada e umas poucas
peças de roupas femininas. O retrato do casamento de Ellen Deaton, em um
simples porta-retratos de madeira preta, estava em cima da renda. Ellen fora
mesmo uma beldade em seu tempo, com um sorriso radiante, o sorriso de
júbilo de uma mulher que tinha a vida toda pela frente.
Jesse virou o porta-retratos, torceu os pinos e tirou a parte de trás. Uma
foto de Polaroid caiu em cima da renda. Jesse sugou o ar rapidamente.
“Merda.” Era Ellen, mas a mulher na Polaroid estava em um piso dourado
em uma poça de sangue. Ela estava com olhos arregalados, mas sem
expressão, o pescoço aberto. A blusa dela havia sido jogada longe e os
talhos raivosos e as facadas haviam transformado seus seios em algo
irreconhecível.
Jesse girou, deixando o mórbido santuário para trás. “Linda”, sussurrou
ele, com o coração acelerado. Ele sabia que Linda estava encrencada, mas
até aquele exato momento não tinha acreditado nisso, não tinha se
permitido acreditar que Dillard fosse capaz de tamanha selvageria. Jesse
tentou tirar a imagem de sua mente.
Ele foi com tudo até a porta que dava para dentro da casa, que estava
destrancada e então entrou. A luz da cozinha estava acesa. Mais uma vez
ele ficou paralisado, com o coração martelando no peito. Havia uma
frigideira no chão, um vidro de leite derramado pelo balcão. Ele avistou as
cadeiras derrubadas na sala de jantar, passou voando pela sala de estar e
desceu o corredor, com a arma em prontidão. As portas dos quartos estavam
abertas. Ele espiou dentro de um e depois do outro, procurou em todos os
aposentos e armários e não encontrou ninguém.
Ele voltou ao corredor, avistou as roupas de Linda e os brinquedos de
Abigail empurrados para a frente da porta. O piso chamou sua atenção e
logo de cara ele entendeu o porquê: o piso era dourado, exatamente como
na Polaroid. Ellen tinha morrido ali, bem ali onde ele estava. Aquela foto
vai enforcar o Dillard. Vai mandá-lo para a cadeia por um bom tempo. Não
se atreva a sair daqui sem ela.
Jesse deu uma olhada de relance para o banheiro, piscou e olhou de
novo. Acendeu a luz. Fita adesiva e uma faca estavam em cima do toucador.
Ele ficou ofegante, captando o significado delas imediatamente, mas
também viu ali seu chapéu, sua escova de cabelos e a chave de fenda de sua
caminhonete. Ele demorou um instante para entender que Dillard não
apenas pretendia matar Linda e Abigail, como pretendia culpá-lo por isso.
Era como se algo o tivesse chutado em seu âmago. Cheguei tarde demais?
Ele tentou tirar o pensamento de sua cabeça, mas seus olhos continuavam
voltando para a fita e a faca. “Não! Ah, que merda, não!” Ele saiu aos
tropeços do banheiro e entrou na sala de estar. Onde elas estão? Ele espiou
pela porta do porão e seu coração ficou frio. “Ah, meu Deus!” Foi num pulo
até a porta, abriu com tudo a tranca, desceu correndo os degraus, pensando
na foto de Ellen o tempo todo enquanto descia, nas faixas sangrentas de
carne em seu peito. Não. Não. Não!
Ele viu o freezer empurrado para cima da porta antitempestade e teve a
primeira onda de esperança. Ele bateu na porta. “Linda! Linda! Abigail!”
“Jesse?” Ele ouviu-a então, era Linda. “Jesse?”
Ele tirou o freezer do meio do caminho e puxou a maçaneta da porta,
que estava trancada. Ele bateu na porta de metal.
“Linda, sou eu! É o Jesse!”
O ferrolho foi girado, uma fenda da porta abriu-se e Linda espiou para
fora, aterrorizada. Ele puxou a porta com tudo e jogou os braços em volta
dela, que o abraçou em resposta, um abraço forte e apertado. Ela começou a
soluçar.
Jesse viu Abigail, pressionada com as costas no canto, com incerteza e
medo em seus olhos grandes. Jesse soltou Linda.
“Abi. Abi, docinho. Está tudo bem. Está tudo bem agora.”
Abigail irrompeu em lágrimas. Jesse pegou-a no colo, abraçou-a com
força, inalando seu cheiro. E, naquele instante, por aquele segundo, era tudo
de que ele precisava no mundo.

DILLARD ESTACIONOU em sua entrada de carros, desligou as luzes da viatura e


o motor. Ele ficou ali sentado mais um instante, esfregando a ponta de seu
nariz.
Tudo que ele queria fazer era tomar outra dose de Imitrex e enrolar-se
na cama por doze horas, a única forma que descobrira de livrar-se de uma
enxaqueca. Mas isso não ia acontecer. Não com o xerife metendo o focinho
nas coisas em Goodhope. Ele precisava cuidar de Linda e voltar para o
complexo do General o mais rápido possível.
Dillard dirigiu-se para dentro de casa, pisando com suavidade para
evitar quaisquer movimentos bruscos enquanto subia pelo pórtico da frente
e entrava. Ele fechou a porta com gentileza atrás de si, tomando cuidado
para não fazer nenhum ruído alto que fosse ativar as chamas entre seus
olhos. Ele foi até o banheiro, puxou o frasco de Imitrex do armário e tomou
dois comprimidos. Viu as olheiras pretas debaixo de seus olhos e a
queimadura vermelha e raivosa de gordura ao longo de sua têmpora e
dobrou a dosagem recomendada.
Ele ficou encarando fita e a faca.
“Que merda, tenho um monte de coisa para fazer.”
Agora que ele tinha tido um pouco de tempo para pensar, Dillard deu-se
conta de que não precisava de uma marreta para fazer as meninas saírem,
apenas de umas poucas ferramentas para desparafusar as dobradiças e a
porta de aço sairia. Ele saiu do banheiro, dirigiu-se até a garagem, deu dois
passos e parou com tudo. Ouviu vozes. Dillard espiou dentro da sala de
estar e ficou totalmente sem ar: a porta do porão estava escancarada.
Pegadas, alguém estava subindo as escadas. Ele levou a mão à pistola,
desligou seu rádio e voltou para a sombra do corredor.
Linda veio primeiro, seguida por Jesse, que carregava Abigail em um
dos braços e um revólver com a pegada meio frouxa em uma das mãos.
Abigail estava se segurando com força no pescoço de Jesse, o topo de sua
cabeça pressionado junto à bochecha dele.
Dillard deixou que passassem por ele, indo de fininho por trás e
enfiando sua pistola nas costas de Jesse.
“Solta, Jesse! Solta agora mesmo!”
Linda soltou um grito.
Jesse ficou tenso e então, em um segundo, Dillard achou que o tolo
fosse tentar fazer alguma coisa. Ele não fez nada, apenas ficou paralisado e
soltou sua arma, que acertou no carpete com um baque sólido.
“Todos vocês, até a mesa. Mantenham as mãos onde eu possa ver.”
Eles fizeram o que ele mandou. Dillard puxou as luvas de seu casaco,
vestiu-as e pegou a arma de Jesse, enfiando-a no bolso.
Abigail começou a chorar.
“Dillard”, disse Linda. “Ah, meu Deus, Dillard. Por favor, pense na…”
“Cala essa merda dessa boca, Linda!”
Dillard não conseguia acreditar em sua sorte. Ele estava com os três ali
e, mesmo em meio a sua enxaqueca, ele sacava a perfeição disso. Acertaria
Jesse primeiro e depois usaria a arma dele para matar as duas. Tudo que
tinha que dizer aos investigadores era que chegara em casa e deparara-se
com Jesse em pé ao lado dos corpos mortos das duas, então, quando Jesse
tentou atirar nele, ele atirou primeiro. Se tivesse planejado, não conseguiria
ter feito melhor. Todas as pessoas que estavam conectadas ao General
estariam mortas, não haveria nenhuma testemunha, nada que o ligasse ao
General de forma alguma. Dillard não conseguiu reprimir um sorriso. Só
precisava acertar Jesse, não ia querer ferrar com tudo acertando Abigail
acidentalmente com uma bala de sua própria arma, nem fazendo com que o
sangue de Jesse borrifasse todo nela. Isso não passaria batido com o pessoal
dos laboratórios criminais.
“Coloque-a no chão”, disse Dillard, com calma.
“Dillard… droga!”, disse Jesse, com a voz tensa e presa. “Você não tem
que fazer isso.”
“Coloque-a… no… chão.”
Mantendo a mão direita para cima, Jesse deixou que Abigail fosse
deslizando até o chão.
“Vá até a mamãe”, sussurrou Jesse.
Abigail foi correndo até Linda, que a puxou ao redor de si, protegendo-a
com o corpo.
“Mantenha essas mãos para cima!”, disse Dillard, irritado.
Linda levou as mãos que tremiam de volta para cima.
“Jesse, vire-se… de boa e devagar.” Ele pretendia atirar em Jesse pela
frente, para garantir que parecesse em legítima defesa. “Mantenha as mãos
ao alto.”
Jesse virou-se e olhou bem no olho de Dillard.
“No instante em que você puxar esse gatilho, você é um homem morto.”
“E como é isso?”
“Eles estão lá atrás, Dillard. O grupo inteiro, e todos armados
pesadamente.”
Dillard sentiu seu sangue esfriar; os corpos mutilados no complexo do
General passando com um lampejo por sua cabeça. Ele tinha certeza de que
Jesse estava mentindo, e ainda assim não conseguiu evitar e deu uma
espiadela rápida no pátio pela janela.
“Há três homens lá atrás”, disse Jesse. “O restante está lá embaixo, na
Estrada River. É só puxar esse gatilho e todos vêm para cima de você. Eles
estão te procurando, Dillard. Sabem que foi você que matou os amigos
deles.”
Dillard começou a apertar o gatilho. Ficou hesitante. Lutava para
desanuviar sua mente. Ele está ferrando com minha cabeça.
“Estamos nessa merda todos juntos, Dillard. Ninguém vai falar nada. Se
fosse para te entregar, eu poderia muito bem me entregar também. Apenas
nos deixe ir.”
Dillard sentia-se excitado e ansioso, os olhos marejados. Ele piscou
rapidamente para desanuviar a visão, notou um tremor em sua mão e não
sabia dizer se era por causa da enxaqueca, da falta de sono ou do puro e
simples nervosismo. Ele achava que era uma união das três coisas.
“Se você sair pela porta da frente agora”, continuou a falar Jesse, “antes
que eles o apanhem, pode simplesmente conseguir sair vivo daqui, mas é
melhor ser rápido, eles podem entrar a qualquer segundo.”
“Bobagem.”
“O General também não acreditou em mim… ele está morto agora.
Dillard, você não vai querer ferrar com esses caras.”
Ele está mentindo, você sabe disso, pensou Dillard. Ainda assim, Jesse
soava tão malditamente seguro de si. Havia aço em seus olhos, ele parecia
calmo, a voz constante, como se fosse ele quem segurasse a arma. Dillard
ficou muito ciente de que esse não era o mesmo Jesse com quem lidara
todos durante esses anos.
“Eu devolvo a você a foto de Ellen”, disse Jesse.
“O quê? O que foi que você disse?”
“Eu ia usá-la para chantageá-lo.”
“Que foto?”
“Você sabe de que foto estou falando. A foto da sua esposa. Aquela em
que você cortou a garganta dela, a que você guardava escondida atrás da
foto de casamento.” Dillard sentiu a sala oscilar, querendo sentar-se. Ele
não tem como estar inventando isso. Tem que saber de alguma coisa de
alguma maneira. Um traidor? Quem? Estavam todos mortos… Chet? Não
lembro de ter visto o corpo de Chet. Será que o Chet os tinha entregado? As
armas, a foto… que merda, quem mais? Chet odiava o General. Teria se
agrupado com aqueles caras de Charleston? Será que Chet estava ali
mesmo agora? “Está no bolso do peito aqui.” Jesse assentiu com o queixo.
“Você quer pegá-la ou quer que eu a pegue?”
Dillard piscou rapidamente, tentando manter os olhos focados, e olhou
com ódio para Jesse.
“Me dê a foto”, suspirou Dillard. “Me dê a foto agora!” Jesse abaixou a
mão para dentro do bolso devagar, deslizou alguns dedos, dedos
perfeitamente sãos. O quê? Dillard olhou, de relance, para as duas mãos de
Jesse. Todos os dedos dele estavam bem. Como…? Isso não é possível
Oras, eu quebrei eles, senti eles estalarem. Nada fazia sentido. O sangue
trovejava nos ouvidos de Dillard, que tinha certeza de que sua cabeça iria se
abrir ao meio.
Jesse tirou a mão de dentro do bolso, com os dedos cobertos de areia
brilhante.
“Desculpe-me, está no meu outro bolso.”
Isso tudo está errado. Atire nele, apenas atire nele!
Jesse estalou os dedos, dedos esses que deveriam estar contorcidos e
quebrados. Dillard sentiu uns grãos de areia acertarem sua face, sua visão
ficou anuviada e a sala começou a girar. Jesse moveu-se e Dillard atirou,
puxando o gatilho duas vezes, então ele começou a cair, cair na escuridão.

DOR… UMA DOR profunda e aguda… puxou Dillard da escuridão. Ele soltou
um grito, abriu os olhos e estava em sua sala de estar, de barriga para cima.
Tentou sentar-se direito e percebeu que suas pernas estavam amarradas e
suas mãos, atrás das costas. Seu dedo latejava, parecia em chamas, parecia
que alguém o havia quebrado.
“Essa foi pela Abigail.”
Dillard piscou e Jesse entrou em foco. Jesse estava sentado em uma das
cadeiras da sala de jantar, encarando-o com olhos duros como o aço. Um
grande saco preto estava encostado em sua perna e a sacola plástica do
banheiro estava a seus pés… a fita, a faca e o martelo esparramados pelo
carpete. Jesse estava com uma arma apontada para a cara de Dillard.
Dillard uma vez dera uma arma a Jesse e o desafiara a atirar nele. Ele
nunca teria dado uma arma ao homem que estava diante dele naquele
momento. Jamais.
A coronha da arma foi com tudo para cima do crânio de Dillard. Uma
dor cegante e brilhante avassalou sua cabeça. Ele pressionou os olhos,
fechando-os, lágrimas escorrendo por sua bochecha, a dor tamborilando em
seus ouvidos.
“Essa foi por Linda.”
“Ah… que merda!”, gritou Dillard, sentindo o gosto de seu próprio
sangue. “Que porra!”
Jesse levantou-se, pegou o saco preto e jogou-o aos pés de Dillard.
Dillard ficou olhando inexpressivo para o saco, tentando entender qual
era seu propósito.
“Coloque suas pernas dentro do saco”, ordenou-lhe Jesse, cuja voz
estava totalmente desprovida de emoção, como a voz de um carrasco que
tem um trabalho a fazer.
Dillard apertou os olhos para Jesse.
“O quê? No saco? Não estou entendendo.”
“Você vai para o inferno, Dillard. Dar um passeio com os mortos.”
“Jesse, devagar. Vamos apenas…”
“Eu vou repetir só desta vez… só desta vez. Coloque as pernas dentro
do saco!”
“Jesse, eu não sei o que você tem em mente, mas…”
Jesse acertou com a bota as costelas de Dillard, que soltou um grito.
“Que porra! Ok, ok. O que diabos você quiser!”
Dillard tentou o melhor que pôde colocar os pés na abertura do saco.
Jesse pegou a boca do saco, mantendo a arma apontada para Dillard
enquanto envolvia os pés dele com o saco, puxando-o para cima, até a
cintura.
Dillard parou, ficou paralisado. Algo estava errado, algo estava muito
errado. Ele sentia um calafrio, não como ar, mas como líquido entrando em
sua carne. Isso fazia seus dentes doerem.
“Ei, o que é isso? O que está acontecendo?” E naquele instante ele
decidiu que não ia entrar no saco, que preferia uma bala a entrar no saco.
Ele contorceu-se, chutando com selvageria, mas não achou nada para
chutar; era como se estivesse flutuando. Jesse soltou a arma, apanhou
Dillard pelo colarinho e puxou o saco para cima dos braços de Dillard, que
tentava, contorcendo-se, libertar-se, jogando seu peso para cima. Viu que
não tinha onde se segurar. Jesse enfiou-o ainda mais no saco, até o pescoço,
então… então só o manteve lá. A única coisa no mundo o impedindo de
descer por completo era a pegada de Jesse em seu colarinho.
Dillard ouviu vozes, sussurros como o som de insetos andando pelo
chão, e lamúrias, que vinham bem lá do fundo do saco.
“O que é isso? O que é esse som? Que porra é essa?”
“São os mortos… eles estão esperando por você.”
Os olhos de Dillard ameaçaram sair de suas cavidades.
“Jesse, não me solte”, disse ele. “Por favor, pelo amor de Deus. Estou
implorando a você, Jesse. Por favor!”
“As pessoas aguentam viver 28 dias sem comida antes que morram de
fome. Mas você é um camarada durão. Aposto que você consegue aguentar
pelo menos trinta dias. São trinta dias no inferno, trinta dias com os mortos
cantando a canção deles. Depois… bem, então eu acho que você vai se
juntar ao coro deles.”
Jesse soltou o colarinho de Dillard, deu-lhe um bom empurrão,
enfiando-o mais no saco.
Veio um momento de escuridão, de queda, então os pés de Dillard
toparam com algo que tinha substância, em seguida veio o tilintar do metal
e ele estava tropeçando e deslizando. Ele colidiu com algo duro, jogando
poeira e lascas frágeis em seu peito e em seu rosto.
Ele cuspiu, tentando tirar os destroços de seu rosto, piscou e abriu os
olhos, e deparou-se com uma caveira, cujo crânio estava arregaçado em
cima de seu peito e olhando-o tristemente. Ele inalou a fundo, enchendo
suas narinas com o pungente odor de enxofre e podridão seca. Ele deu um
selvagem olhar de relance a seu redor e foi cumprimentado por mais
centenas de sorrisos largos sem dentes, caveiras e ossos de todos os tipos, a
maioria pretos, como se tivessem sido queimados, todos cobertos de uma
poeira cinzenta. As próprias paredes e o teto pareciam não ser compostos de
nada além de ossos e iam até o limite de sua visão, subindo e descendo por
melancólicos corredores e cavernas.
As algemas mordiam seu pulso enquanto ele lutava para se sentar, seus
dedos tocando o frio metal, e ele olhou de relance para baixo e descobriu
que estava sentado em cima de um monte de moedas, e não moedas
quaisquer, essas eram de ouro e triangulares. A pilha continuava mais alta,
formando uma alta pirâmide, desaparecendo na melancolia fumacenta logo
acima dele. Era o caminho da saída, ele estava certo disso. Lutou para tirar
os pés de baixo de si, tentou chutar e abrir caminho pirâmide acima, mas as
moedas mexiam-se debaixo de seus pés, fazendo com que ele deslizasse
mais e mais para o fundo da caverna. Por fim ele desistiu e só ficou lá,
arfando, tentando abafar seus soluços, tentando ter algum controle de si.
Ele os sentiu. Não conseguia vê-los, mas sabia que estavam ali,
movendo-se ao redor dele. Não muito mais do que uma brisa, a princípio, a
poeira agitando os ossos. Ele os ouviu, os sussurros, chamando seu nome.
Conforme o som aumentava, o vento também aumentava. Começou a tomar
substância e, quando isso aconteceu, ele os viu… os mortos. Ele viu seus
sorrisos torturados, seus olhos pesarosos. E todos aqueles olhos mortos
estavam grudados nele, todos tão felizes em vê-lo.
Dillard soltou um grito, e outro, e os mortos… os mortos gritavam junto
dele.

JESSE FICOU encarando o interior do saco, conseguindo ver apenas a


escuridão ardente, mas pensou ter ouvido gritos, bem ao longe, e soava
bastante parecido com gritos de Dillard. Ele queria sorrir, mas se viu
enojado com tudo isso.
Jesse deixou a sala de estar e espiou para a frente, certificando-se de que
Linda não havia retornado. Ele mandara Linda e Abigail para a casa da mãe
de Linda em seu pequeno Ford enquanto ele cuidava das coisas. Ela
começara a protestar, mas quando Abigail começou a chorar, ela se foi.
Jesse entrou na garagem, pegou a foto Polaroid de Ellen e a levou para
dentro, deixando-a ao lado da fita e da faca. Ele queria certificar-se de que a
polícia a encontraria, de que eles soubessem exatamente que tipo de pessoa
Dillard era. Ele pegou um pano de prato da cozinha e limpou suas digitais
da Polaroid, da fita e da faca, e depois deu a volta na casa, limpando
qualquer superfície em que se lembrara de ter posto a mão. Ele sentia que
estava sendo cauteloso de um jeito exagerado, porque sem corpo não há
crime. A menos que houvesse algum detetive muito esperto que descobrisse
uma forma de procurar nas entranhas no inferno.
Jesse havia pego o rádio da polícia de Dillard junto às coisas que Dillard
tinha trazido de sua caminhonete, agarrou o saco de Krampus e levou tudo
consigo enquanto saía da garagem.
Jesse saiu na manhã, o sol espiando por cima das colunas, iluminando a
névoa do rio. Ele começou a seguir em direção ao bosque, em direção à
caminhonete, quando ouviu uma bufada e ficou paralisado. Lá, logo do
outro lado do gramado, estava o Papai Noel na frente dos bodes do Yule e
do trenó. Os dois anjos, aqueles anjos terríveis, estavam um de cada lado.
Jesse olhou de relance para o bosque e se perguntou o quão longe
conseguiria ir, antes que o alcançassem.
“Não há para onde fugir”, disse o Papai Noel. “Não há como se
esconder de Deus.”
Jesse soltou um grande suspiro; pelo menos ele tinha cuidado de
Dillard, pelo menos podia morrer agora sabendo que tinha feito esse tanto
por Linda e Abigail.
“Eu esperei”, disse o Papai Noel, “até que você tivesse terminado. Eu
não tinha que fazer isso.” Jesse olhou para ele, confuso. “Poderia ter
intervido, mas você precisava fazer isso. Agora há um mal a menos neste
mundo. Apesar do que Krampus possa ter lhe dito, eu só tenho amor pela
humanidade… minha caridade vem do fundo do meu coração.”
O Papai Noel estirou a mão.
“O saco.”
Jesse olhou para os dois anjos, com seus olhos penetrantes e suas
espadas de luz, e sabia que não tinha escolha. Ele levou o saco de volta ao
Papai Noel.
“E minhas chaves?”
Jesse pegou as chaves mestras de seu casaco e entregou-as a ele. O
Papai Noel assentiu para ele e subiu a bordo do trenó.
“Krampus está morto?”
O Papai Noel olhou no olho de Jesse.
“Sim, ele se foi deste mundo.”
“Você não precisava matá-lo.”
“Você não precisava mandar aquele homem para o Hel.”
Jesse ficou quieto por um instante.
“Sim, eu precisava. Aquilo tinha que ser feito.”
“Você devia entender então… que há coisas que precisam ser feitas, não
importa o quanto sejam horríveis.”
Papai Noel deu a ele um sorriso judicioso e sentou-se, estalou as rédeas,
e os dois bodes foram para a frente e subiram no céu da manhã, deixando
Jesse sozinho com os dois anjos terríveis.
Os anjos o observavam com seus olhos ominosos e condenadores. Jesse
sabia que estavam prestes a tomar sua vida, talvez mais do que isso. No
entanto, eles só ergueram suas cabeças para o céu e foram para cima,
desaparecendo nos ofuscantes raios de sol da manhã.
Jesse correu pela floresta. Ele tinha pedido que Linda lhe desse cerca de
uma hora e depois chamasse o xerife e mandasse que ele fosse até a casa de
Dillard. Disse que era para ela contar à polícia a verdade, tudo exatamente
como tinha acontecido, exceto pela última parte com Dillard, em que ela
diria apenas que saiu do porão sozinha e foi dirigindo até sua casa,
deixando que ele se preocupasse em preencher as lacunas do relato.
Jesse foi até a caminhonete de Chet e entrou nela. Acelerou a marcha e
dirigiu-se até o complexo do General. O plano era trocar a caminhonete de
Chet pela sua. Ele sabia que essa poderia ser a parte traiçoeira, pois não
tinha como saber se sua caminhonete ainda estaria lá ou se poderia ter mais
alguém no local.
Sua caminhonete ainda estava lá e ele não viu nenhuma alma viva.
Jesse limpou as digitais das chaves de Chet e do volante, pegou o rádio da
polícia de Dillard e saiu. Ele foi rapidamente até a porta lateral da oficina.
Jesse usou a manga de sua camisa para abrir a porta e seguiu até o curto
corredor. Ele ficou hesitante, sabendo o que o esperava ali dentro. Engoliu
em seco e empurrou a porta para dentro.
Jesse tentou não olhar para eles, os corpos mutilados, mas acabou
olhando. E ficou surpreso por realmente se sentir mal pela maioria deles,
homens que conhecera quase a vida toda. Nem todos eram podres, pelo
menos não tão podres para merecerem aquilo.
Ele limpou as digitais do rádio de Dillard e deixou-o cair do lado de
dentro, bem perto da porta. Jesse achava que a polícia encontraria
evidências suficientes conectando Dillard ao General, assim que
começassem a procurar, mas um pouco de garantia não faria mal nenhum.
Jesse saiu do edifício e entrou em um pulo em sua caminhonete. As
chaves ainda estavam na ignição. Ele girou-as e ouviu o som mascado.
“Isso não é nada bom”, disse ele, sabendo que a velha F150 tinha ficado
parada por muito tempo. Ele prendeu a respiração e tentou de novo,
esquentando a gasolina. Girou uma vez e parou. “Vamos lá, você
consegue.” Na terceira tentativa o motor pegou e Jesse deu marcha à ré e
caiu fora dali.

VINTE MINUTOS DEPOIS, Jesse virava na estreita entrada de carros que dava
para a velha igreja. Ele deu a volta no prédio e apertou os freios. Krampus
estava deitado de costas na neve, a geada reluzindo em sua grande crina.
Wipi estava de bruços ao lado do Senhor do Yule, rígido e sem se mexer.
Nipi estava ajoelhado ao lado dele.
Jesse desligou o motor, saiu, subindo devagar em busca de Isabel. Ver
que Nipi ainda estava vivo deu-lhe esperanças, mas ele não encontrou
nenhum sinal dela nem dos outros. Ele deu a volta nos lobos e foi até Nipi.
Os irmãos eram humanos agora, sua carne novamente cor de manteiga. Não
havia nenhuma ferida em Wipi nem nos lobos, mas um grande talho reluzia
no peito de Krampus e havia um círculo de neve carmesim espalhado em
volta de seu corpo.
Jesse ajoelhou-se ao lado de Nipi.
“Lamento pelo seu irmão.”
Nipi pareceu não ouvir. Jesse analisou a face do Senhor do Yule, notou
que até mesmo na morte Krampus mantinha aquele meio-sorriso dele, como
se ainda tivesse um truque na manga. Mas seus olhos estavam pálidos, todo
o fogo se fora.
“É uma pena”, disse Jesse, cuspindo. “Uma droga de uma pena, de
verdade. Que diabos!”
Jesse colocou uma das mãos no ombro de Nipi.
“Cadê Isabel?”
Nipi olhou a seu redor, como se não tivesse certeza de onde estava, e
deu de ombros. Pesadas nuvens aproximavam-se e o sol lentamente deixou
a face de Krampus. Jesse sabia que começaria a nevar de novo em breve.
Ele levantou-se, dirigiu-se até os degraus e entrou na igreja. Piscou quando
seus olhos se ajustaram à escuridão e encontrou Isabel sentada na frente do
fogão a lenha, com as mãos apertadas e juntas entre seus joelhos, encarando
o fogão. Nenhum fogo ardia ali, e ela estava tremendo. Quase todos os
traços de Belsnickel se foram, e a primeira coisa que ele percebeu era como
Isabel tinha uma aparência jovem, um pouco com ares de menino, com
algumas sardas pelo nariz, mas bela de seu próprio jeito.
Jesse sentou-se ao lado dela. Isabel não olhou para cima, mas quando
ele colocou o braço a sua volta, ela segurou na mão dele e apoiou-se em seu
ombro. Eles ficaram sentados em silêncio por um bom tempo e, por fim,
Isabel pronunciou-se:
“Eles o mataram. Mataram a todos eles. Como é que assassinato pode
ser a vontade de Deus?”
Jesse não tinha uma resposta, tudo que sabia era apertá-la com mais
força. Isabel pressionou a face no ombro dele e começou a soluçar. Depois
de um tempinho, Jesse notou que a caixa de papelão onde ele tinha
colocado as armas e o dinheiro ainda estava ao lado do piano.
“Já volto”, disse ele, e foi andando até a caixa. Todo o dinheiro parecia
ainda estar lá. “Isabel… onde estão o Chet e o Vernon?”
“Não sei ao certo.” Isabel falava sem erguer o olhar. “Assim que
Krampus caiu… bem, eles dois caíram fora daqui… só saíram correndo.
Acho que eu deveria ter feito o mesmo, mas não fiz. Só fiquei esperando
aqueles anjos horríveis virem me matar. Mas eles não pareciam muito
preocupados comigo. O Papai Noel pegou o trenó e foi embora… e os
anjos… eles foram junto dele.”
Jesse pegou as armas, limpou as digitais e deixou-as no piano. Ele
dobrou a tampa da caixa sobre o dinheiro e enfiou-a debaixo de seu braço.
Ele foi andando até Isabel.
“Temos que ir embora.”
Ela olhou para ele, que ficou pasmo com como os olhos dela eram
verdes.
“Vai dar encrenca se formos encontrados aqui”, disse ele. Ela assentiu e
se levantou. Eles saíram pela porta, descendo os degraus. Isabel andou até o
corpo de Krampus, ajoelhou-se ao lado de Nipi, colocou o braço em volta
dele. Jesse foi até a caminhonete, jogou a caixa na cabine do motorista,
depois voltou e ficou lá com eles. “Isabel… Nipi… vamos, temos que ir
embora.”
“Não podemos deixá-los assim aqui”, disse Isabel. “Não seria certo.”
Jesse soltou um suspiro. “Não, acho que não. Acho que deveríamos
encontrar um lugar melhor do que esse para Wipi e o Velho Alto e Feioso.
Nipi, que tal? Boa ideia?”
Nipi assentiu.

ELES COLOCARAM Wipi e Krampus na traseira da caminhonete. Jesse ficou


surpreso que o Senhor do Yule não pesava mais. Ele não era exatamente
leve, mas parecia diminuído, como se o corpo fosse uma mera casca, sem o
peso do grande espírito do Senhor do Yule.
Eles seguiram de carro com os corpos até as colinas, as mesmas colinas
em que Krampus ficara acorrentado por todos aqueles anos. Tomou a maior
parte da manhã e duas viagens para que eles carregassem os dois corpos até
a caverna. Nipi levou-os até uma pilha de pedras no fundo da caverna. A
lança de Makwa e sua pele de urso estavam em cima das rochas. Eles
colocaram os corpos ao lado de Makwa, com Krampus ao meio, e também
o cobriram com pedras. Colocaram o manto de Wipi em cima de suas
pedras, mas os ossos do Senhor do Yule permaneceram descobertos.
Eles ficaram olhando em silêncio para os três montinhos. Jesse partiu o
silêncio:
“Não acha que eles gostariam se fizéssemos uma prece?”
Isabel balançou a cabeça e um pequeno sorriso tocou seus lábios.
“Não, mas eu acho que eu sei do que ele ia gostar.”
Juntos, eles pegaram uma braçada de visco, e depois Nipi cortou um
punhado de ramos de bétula. Isabel prendeu-os em um montinho. Ela
arranjou o visco em volta de onde estava Krampus e colocou as palmatórias
de bétula em cima. Na hora em que havia terminado, estava começando a
nevar.
“Precisamos voltar antes que fiquemos presos aqui”, disse Jesse.
Isabel assentiu e eles dirigiram-se para fora da caverna. Nipi ficou para
trás.
“Nipi”, chamou Isabel. “Vamos, a gente precisa ir embora.”
Nipi balançou a cabeça em negativa.
“Você não pode ficar aqui”, disse Isabel.
“Sim, aqui é meu lugar.”
“Seu lugar não é em uma caverna velha e fedida. Você é humano de
novo, caso não tenha notado, e vai morrer de frio.”
“Eu vivi muitas vidas. Fui honrado em servir ao poderoso Espírito do
Yule. Se os Grandes Pais me chamarem para casa… estou pronto.”
“O quê? Você vai só ficar sentado, tremendo até morrer? Bem, eu não
aguento uma baboseira dessas.” Isabel foi até ele e se sentou em uma das
grandes pedras redondas. “Se você não vier com a gente, então acho que
nós dois vamos ficar aqui sentados, congelando até morrer. Que tal?”
Nipi abriu um largo sorriso.
“Você realmente é a leoazinha dele, Isabel, eu não tenho nenhuma
intenção de morrer de frio. Servirei minha vida guardando esta caverna
sagrada.”
“Mas por quê?”
“Diga-me uma coisa. O que há para mim neste novo mundo?” Ela ficou
ali sentada mais um longo minuto, mas não tinha uma resposta.
Aos poucos, a expressão de teimosia deixou a face de Isabel, que exalou
um suspiro alto. Ela levantou-se e deu um soquinho de leve no braço dele.
“Isso que você diz não faz sentido, sabia?”
Nipi assentiu.
Isabel começou a afastar-se, parou, voltou e o abraçou.
Nipi abraçou-a com força.
“Também vou sentir sua falta, leoazinha.”
“Não vai não”, disse ela, dando seu melhor para parecer enraivecida.
Ela limpou os olhos e o deixou parado ao lado dos montículos. Quando
chegou na boca da caverna, ela o chamou: “Se algum dia você mudar de
ideia, venha me procurar, está me ouvindo?”
Nipi não respondeu.
Isabel e Jesse desceram de volta a trilha em direção à caminhonete. Em
algum ponto eles acharam que estavam ouvindo o som de um cântico
shawnee.
“ALI”, disse Isabel, apontando para uma pequena igreja.
Jesse parou no estacionamento. Era logo depois do meio-dia em um
domingo, e o estacionamento estava quase cheio. “Não mudou quase nada”,
disse ela.
“Você tem certeza de que não quer que eu espere? E se o seu filho não
estiver aí?”
Ela sugou fundo o ar.
“Alguém estará lá.”
Ela puxou o colar de seu pescoço, tirou o anel de casamento do cordão e
segurou-o na palma de sua mão. Ficou fitando-o por um longo instante e
depois colocou-o em seu dedo anelar. “Ainda serve.”
Seu olhar voltou-se para o dele.
“Receio que quando o encontrar, ele não vá querer me conhecer. É disso
que eu tenho mais medo.”
“Sabe, aparecer assim… vai deixar um monte de camaradas de orelha
em pé. Pode lhe causar algum problema.”
“Ninguém vai me impedir de achar o meu filho”, disparou Isabel em
resposta, e Jesse viu a vivacidade dela, viu a garota que Krampus
costumava chamar de sua leoazinha. Isso levou um largo sorriso ao rosto
dele. “Acho melhor eles tomarem cuidado.”
“Acho que sim.” Ela abriu um largo sorriso em resposta e colocou a
mão na dele. “E quanto a você? Você vai ficar bem?”
“Não sei ao certo ainda. Eu e a Linda, a gente tem um monte de coisa a
acertar… muita mágoa a ser trabalhada. Acho que agora é só o começo…”
“Alguém precisa dizer àquela mulher como ela é sortuda por ter alguém
que a ame tanto.”
Ele deu uma risada.
“Alguém precisa dizer isso mesmo.”
“Bem, ou vai ou racha.”
Isabel abriu a porta e começou a sair.
“Espere. Nós temos um pontinho de negócios inacabados.” Ela olhou
para ele com curiosidade. “Entre aqui e puxe essa porta, não quero que
ninguém veja.”
Ela fechou a porta.
Ele deslizou a janela da traseira da caminhonete, enfiou a mão ali e
pegou sua velha bolsa de lona de ginástica de sob a caixa de pescaria. Ele
limpou a neve dela e então puxou a caixa de papelão para cima do piso da
caminhonete e a abriu.
Isabel espiou o dinheiro.
“O que você vai fazer com tudo isso?”
“Vou cuidar para que você não fique sem nada.”
Ele esvaziou as roupas de trabalho da sacola e colocou metade do
dinheiro dentro dela, fechou o zíper e a empurrou para Isabel.
“Você não tem que fazer isso”, disse ela.
“Sim, eu tenho que fazer isso.”
Ela pegou a bolsa e abriu um sorriso cheio de gratidão para ele.
“Escuta só, não deixa ninguém saber que tem dinheiro aí, está me
ouvindo?”
Ela revirou os olhos.
“Pelo amor de Deus, Jesse. Posso parecer uma criança, mas tenho mais
de 50 anos. Acredite ou não, eu tenho alguma noção.”
Ele deu um tapinha na bolsa.
“Tem por volta de 20 mil dólares em dinheiro aí dentro. Não dá para
muita coisa hoje em dia, mas deve ajudar você a estabelecer-se. Ah… e
aqui está.” Ele entregou a ela um pedaço de papel embolado. “Aqui está o
número do telefone da mãe de Linda. O telefone dela pode não estar
funcionando ainda, mas se você se meter em confusão, ficar sem dinheiro,
qualquer coisa, digo, qualquer coisa mesmo, não hesite em…”
Ela colocou os dedos na boca dele.
“Jesse. Está tudo bem. Eu vou ficar bem.”
Jesse soltou um longo suspiro.
“Jesse…”
“Sim?”
“Obrigada. Obrigada por cuidar de mim.”
Ele abriu um largo sorriso.
“Claro.”
Isabel inclinou-se para a frente e surpreendeu Jesse com um beijo na
bochecha. Antes que ele pudesse responder, ela abriu a porta e desceu num
pulo.
“Espere”, ele a chamou. “Caramba, você esqueceu sua bolsa.” Ele a
ergueu.
Ela voltou, tentando não olhar nos olhos dele, mas ele podia ver suas
lágrimas.
“Ei, não vá se esquecer daquela caça a monstros que prometi a você.”
Ela balançou a cabeça em negativa e abriu um sorriso arreganhado,
pegou a bolsa e dirigiu-se até a igreja. Jesse ficou observando enquanto ela
subia o curto lance de escadas, fazendo uma pausa em cada degrau. Ela
colocou a mão na porta, ficou daquele jeito por um bom tempo, antes de
finalmente empurrá-la e entrar.
Jesse captou um vislumbre de luz suave e cálida, de pessoas segurando
livros de hinos, do órgão e do som de sua canção vazando para o
estacionamento. A porta da igreja fechou-se lentamente e ele foi deixado ali
sozinho com a neve que caía.
Jesse esperou quase uma hora. Quando ela não voltou a sair, ele
imaginou que ela estivesse bem.

VERNON SEGUIU as trilhas da estrada de ferro ao longo do Rio Coal, dando o


melhor de si para evitar os trechos cheios de gelo enquanto andava com
dificuldade na neve densa. Ele tinha se esquecido do verdadeiro frio do
inverno, mas agora, de volta à carne humana, segurava-se, tentando
amenizar sua tremedeira. O crepúsculo aproximava-se e, com ele, as
temperaturas baixavam. Vernon se perguntava amargamente se, depois de
todas as tribulações, seu destino final seria congelar ali sozinho, ao longo
daquele rio desolado.
Ele tinha ficado preso naquelas colinas por quase cem anos e deu-se
conta de que todo mundo que conhecia já estaria morto, o mundo que ele
conhecia ficara para trás. Não tinha dinheiro, não fazia a mínima ideia de
aonde estava indo, exceto que era o mais longe de Krampus e daqueles
terríveis anjos possível. Ainda assim, não conseguia evitar o sorriso. Estou
livre! Ele inalou a fundo, enchendo-se com a sensação. Posso ir a qualquer
lugar, fazer o que eu quiser. Ele riu. Pelo menos até morrer de fome ou
congelado.
Um trem cargueiro dirigia-se pelos trilhos em direção a ele. Vernon
subiu numa colina e o ficou vendo ele passar com um clangor. Ele sentiu o
cheiro de graxa no ar, seu estômago roncou. Ergueu o olhar para a estrada,
avistou uma estrutura familiar e começou a ir na direção dela.
O bar do Horton não parecia estar aberto ainda, mas uma luz brilhava lá
dentro e havia um veículo do lado de fora, na frente. Vernon tinha esperança
de que o bar ainda pertencesse a Horton, porque eles dois tinham dado
muito bem na noite anterior, bem o bastante para ele pensar que o homem o
deixaria entrar e se aquecer, talvez até mesmo lhe oferecer algo para comer.
Vernon notou que os botões frescos, a nova grama e as flores do lugar
haviam fenecido, como se estivessem em luto pelo Senhor do Yule. Vernon
odiava admitir isso, mas uma parte dele sentia-se mal de que o velho bode
tivesse um fim tão ruim. Ele soltou um suspiro, pisou no pórtico e viu uma
placa onde se lia “Procura-se cozinheiro” apoiada na janela. Ele pegou a
placa do peitoril e levou-a para dentro consigo.

“ELES REALMENTE não estão felizes com você, Jesse”, disse Elly. Jesse
reclinou-se na cadeira de aço e espiou pela partição de vidro no lobby do
escritório do xerife. Ele podia ver o xerife Wright conversando com os
investigadores do estado; a conversa não parecia estar saindo muito bem.
“Acho que não dá para agradar todo mundo.”
Ela sorriu para ele. Elly tinha frequentado a escola com Jesse, ele
gostava de como ela tocava violão e, em dado momento, eles tinham até
mesmo colaborado em uma ou duas canções. Hoje em dia ela trabalhava
para o xerife.
“Todas as agências de notícias estão cobrindo isso”, disse ela. “Eles
estão com o governador bem na cola deles para que surjam com algumas
respostas. Bem, você devia tê-los ouvido na CNN hoje de manhã, falando e
falando sobre todos os corpos mutilados e especulando quanto ao negócio
da gangue desenfreada na Virgínia do Oeste.” Ela deu uma bufada.
“Falando do Condado de Boone como se fosse algum país do Terceiro
Mundo.”
Jesse apenas balançou a cabeça em negativa.
“Ah, uma última coisa.” Ela sacou um formulário azul da pilha que
estava à sua frente e o entregou a ele com uma caneta. “Preciso de sua
assinatura aqui se quiser pegar suas coisas de volta.”
Jesse assinou o formulário e ela o entregou um envelope manilha.
“Então é isso?”, ele quis saber. “Estou livre? Posso ir?”
“Parece que sim.” Ela sorriu. “Mas o xerife não está nem um pouco
feliz com isso. Ele só tem certeza de que você sabe mais do que está
contando.”
“Ei”, perguntou Jesse em um tom casual. “Achei que tivesse ouvido
alguém dizer que Chet Boggs pudesse ter algo a ver com toda essa bagunça,
não?”
“Tudo que sei foi que me fizeram emitir um mandado de busca pelo
estado para ele, mas ninguém parece tê-lo encontrado ainda.”
Jesse achava que eles estavam perdendo tempo procurando por Chet na
Virgínia do Oeste; achava que seria melhor se eles o procurassem no
México, ou até mesmo no Peru.
Jesse abriu o envelope e sacou dali sua carteira e suas chaves.
“Não é em Chet que ando pensando”, disse Elly. “Eu quero saber o que
aconteceu com o delegado Dillard Deaton. A última que ouvi foi que ainda
não tinham nenhuma pista de seu paradeiro.”
Jesse deu de ombros.
“Aposto que ele ainda está no inferno agorinha mesmo, desejando ter
sido uma pessoa melhor.”
Ela balançou a cabeça.
“Ainda não me surpreende nem um pouco que ele estivesse envolvido
em toda essa confusão. Havia algo de desconcertante em relação àquele
homem.” Elly inclinou-se para a frente e sussurrou: “Não diga a ninguém
que contei isso a você, mas eles têm fortes evidências que o conectam à
morte da esposa.”
“Não me diga!”
“Eles encontraram uma foto dela… morta… Eu vi a foto.” Ela torceu o
nariz. “Nojento. Espero que você esteja certo, espero mesmo que ele esteja
apodrecendo no inferno agorinha mesmo.”
“Acabamos então?”, perguntou Jesse.
“Sim, acabamos.”
Jesse levantou-se e ela acompanhou-o até a porta e deixou-o sair no
lobby. O xerife e os investigadores pararam de falar quando ele saiu. O
xerife olhou duramente para ele.
“Lembre-se do que eu disse, Jesse. As coisas vão ficar bem mais fáceis
se você apenas nos contar tudo o que sabe.”
“Com certeza manterei isso em mente, xerife”, disse Jesse enquanto
empurrava a porta para sair. “Agora tenha um bom dia mesmo, está me
ouvindo?”
JESSE ESTACIONOU na entrada de carros da casa da mãe de Linda. Ele dirigia
uma Ford Ranger com a cabine estendida, não nova, porém seminova e
totalmente paga. Ele estacionou, foi andando até o pórtico e bateu à porta;
um minuto depois, passadas de pés arrastados vieram em sua direção.
“Só um segundo”, gritou alguém. Polly Collins abriu a porta. “Você
cortou os cabelos.”
Jesse assentiu.
“Cortei.”
“Parece um pouco engraçado.”
Jesse franziu o cenho.
“Mas você não está aqui para falar comigo”, disse ela.
“Pode apostar que não.”
“Bem, mas eu tenho uma coisa a lhe dizer de qualquer forma. Eu não
sei qual foi o seu papel naquela confusão toda, mas…” Ela mordeu o lábio,
parecendo estar procurando pelas palavras certas. “Bem… é só que… bem,
do jeito que a Linda contou, parece que ela estava em uma situação ruim…
uma situação muito ruim. Não sei exatamente o que foi que você fez com
relação ao Dillard… nunca vou precisar saber, mas Jesse…” Jesse deu-se
conta de que a velha mulher estava engasgando. Ela pôs a mão na mão dele.
“Eu quero que você saiba… que aprecio o que você fez.” Ela sorriu para ele
então, a primeira vez em que ela sorria para ele. “Deixe-me buscar a
Linda.”
“Sra. Collins, a senhora poderia me fazer um favor? Poderia levar a
Abigail para fora um pouquinho, eu só preciso de um tempo sozinho com a
Linda.”
Ela assentiu.
“Posso fazer isso.”
Jesse esperou talvez um minuto, que pareciam dez. Ele notou que estava
torcendo as mãos, parou com isso enfiando-as fundo nos bolsos de sua
calça. Era a primeira vez em que ele via Linda desde aquela manhã na casa
do Dillard e não fazia a mínima ideia de como estavam as coisas entre eles.
Linda empurrou a porta telada e abriu-a, então pisou do lado de fora, no
pórtico. Os dois ficaram ali separados, mudos, ambos sem saber o que dizer.
Linda olhou para os pés dele.
“Vejo que você arrumou botas novas.”
“Hmm-hmm.”
“Elas são legais.”
“Sim… Linda?”
“Sim.”
“Estou indo para Memphis.”
Ela apertou os lábios.
“Sua música? Você vai tocar suas canções?”
Ele assentiu.
“Vou dar tudo de mim e um pouco mais. Chega de bares sujos. Vou falar
com aquele DJ lá, ver se ele consegue me arrumar alguma coisa. Se eu não
conseguir nada em Memphis, vou para Nashville.”
“Jesse, isso é maravilhoso. E já estava mais do que na hora, caramba.
Você vai simplesmente fazer…?”
“Linda, uma vez você me perguntou como deveria acreditar em mim se
nem eu mesmo acreditava. Bem, há pouco tempo, eu conheci esse… esse…
cara alto e ele abriu meus olhos para um monte de coisas. Bem, o que estou
tentando dizer é que eu acredito mesmo em mim, na minha música… mas
eu também acredito em nós… mais do que nunca. E eu esperava que talvez
você e a Abigail pudessem vir comigo.”
Os olhos dela ficaram radiantes.
“Não estou dizendo que será fácil, mas posso lhe garantir que sou uma
pessoa diferente agora. Tenho um pouco de dinheiro guardado, mas o mais
importante de tudo… eu tenho um plano. O que você me diz? Acha que
vale a pena tentarmos de novo?”
Ela olhou por um tempo e bem fundo nos olhos dele, parecendo que
estava procurando alguma coisa ali. Jesse achava que deveria ter encontrado
o que buscava, pois ela assentiu.
“Eu gostaria de fazer isso, Jesse… de tentarmos de novo.”
Ele sorriu e ela o abraçou, abraçou-o forte, e depois de um minuto ele
sentiu-a chorar.
“Eu sinto muito, Jess. Eu sinto tanto em relação a… em relação a tudo
isso. Eu não sabia…”
Ele levou um dedo aos lábios dela.
“Shhhhh. Nada disso. Se formos até Memphis, vamos começar de novo.
Deixar tudo isso para trás. Combinado?”
“Combinado”, disse ela.
Excerto do Boone Standard, 24 de dezembro,
pelo Editor Contribuinte Bill Harris

O brilhante e bem-sucedido Jesse Walker, de Nashville, tocou para


uma casa lotada no sábado passado, encabeçando o primeiro
Festival Krampus anual no bar do Horton, na Rota 3, perto de
Orgas. Horton White, o proprietário do bar e organizador do evento,
diz que o festival é uma celebração do Solstício de Inverno e das
antigas tradições de Yuletide. Os participantes engajaram-se em
danças folclóricas, pintura corporal, cânticos e círculos de tambores,
com o destaque da noite sendo a imensa fogueira de Yule. Foram
concedidos prêmios para as melhores fantasias. As atividades
prosseguiram até altas horas da manhã.
O festival não transcorreu sem controvérsias, visto que o xerife
recebeu diversas reclamações dizendo que um grupo de
participantes bêbados, vestindo peles, sinos e máscaras com chifres,
chegou na cidade e perseguiu com palmatórias quem estava de
passagem. O xerife Wright confirmou relatos de bebedeira em
público e nudez, mas declarou que os rumores de assistentes
juntando-se às festividades estavam grandemente exagerados. O
reverendo Owen condenou o evento, chamando o festival de uma
exibição de paganismo pecaminosa e sem vergonha e um caminho
para a danação eterna. Ele avisou que todos os cristãos tementes a
Deus deveriam ficar afastados do festival.
O Festival Krampus é apenas a mais recente na crescente
fascinação local pelo antes pouco conhecido espírito mítico de
Krampus. Desde os notórios e ainda não explicados incidentes do
último Natal, o interesse espalhou-se pelo estado. No entanto, o
Condado de Boone reivindicou Krampus como seu, com
lembrancinhas do personagem demoníaco sendo encontradas na
maior parte das lojas de presentes locais, incluindo palmatórias,
imitações baratas daquelas infames moedas triangulares, além de
camisetas e canecas com charges do diabólico Krampus, com
notáveis chamadas como “Eu Acredito em Krampus” e “Krampus
Está Vindo para a Cidade”.
PESADAS NUVENS rolavam pelas colinas enquanto o crepúsculo dava lugar à
noite. Uma faixa de luzes de Natal ganhou vida, piscando ao longo das
calhas de uma pequena casa num rancho nos limites da cidade. Um menino
de cerca de 10 anos e sua irmãzinha, com não mais de 8 anos, vieram até
seu pórtico. A mãe veio com eles. Cada uma das crianças tinha um par de
sapatos velhos e carregava um saco de doces nas mãos. Eles colocaram os
sapatos no degrau e arrumaram os doces com cuidado.
Quando terminaram, o menino olhou para sua mãe e perguntou:
“Você acha que o Krampus virá mesmo?”
“Pode ser que sim”, respondeu ela. “Pode ser que não. É o que eles
dizem, certo?”
As crianças assentiram.
“Josh”, disse o menino. “Ele falou que Krampus foi até a casa dele no
ano passado, disse que realmente o viu.”
“É”, acrescentou a garotinha. “O Charles também disse. Susie disse que
o viu também, mas eu não acredito nela. Ela é uma grande mentirosa. Mas
eu acredito no Charles, porque ele tinha uma daquelas moedas engraçadas
de ouro.”
“É”, disse o menino, animado. “O Josh também tinha uma daquelas! Ele
levou-a até a escola e eu realmente a segurei.” Ele ergueu o olhar para sua
mãe de novo. “Mãe, você acredita que Krampus seja real?”
“Bem, não custa acreditar, custa?”
“Não, mas poderia custar não acreditar. Josh disse que se não
colocarmos os doces aqui fora, Krampus virá e colocará a gente no saco
dele e dará uma surra na gente.”
“É”, disse a garota. “Todas as crianças na minha escola disseram que
iam colocar os doces, sabe… só por precaução.”
A mãe deles abriu um largo sorriso.
“Bem, é uma coisa boa que vocês estejam colocando os doces aqui
então. Eu não ia querer que nenhum dos meus filhos fosse colocado dentro
de um saco e espancado.”
“Eu acho que ele existe sim”, disse o menino.
“Eu também acho”, concordou a garota.
“Bem”, disse a mãe. “Se várias pessoas acreditarem em uma coisa, acho
que ela se torna bem real, não é?”

A NEVE CAIU durante toda a noite naquela véspera de Natal, caiu em todo o
Condado de Boone, por Goodhope e nas colinas nos arredores. A neve
soprava na entrada de uma pequena caverna na encosta rugosa da
montanha, rodopiava para dentro e uns poucos flocos até mesmo iam parar
em um monte de pedras cercadas pelo visco seco.
Da superfície abaixo das rochas veio o som de uma gargalhada, a
princípio baixo como um sussurro, mas o volume aumentou, até que uma
pequena faixa de neve na entrada da caverna começou a derreter. Uma
única flor apareceu em meio à neve. A flor desabrochou, farfalhando a
alguma pulsação não ouvida, e a risada aumentou, ecoando da caverna. O
vento e a neve levaram o som vale abaixo e houve quem, na manhã
seguinte, jurasse ter escutado essa risada, jurando que era Krampus, o
Senhor do Yule. E eles disseram a seus filhos que era melhor que fossem
bons, porque Krampus… Krampus estava vindo para a cidade.
MUITOS ANOS ATRÁS, minha esposa, Laurie (que é infinitamente mais
antenada que eu), fez com que eu ficasse ligado em um diabo que no Natal
se empolga por açoitar as crianças sapecas com um galho de bétula. Fiquei
imediatamente apaixonado pelo personagem. “Você está me dizendo que ele
enfia as crianças dentro de um saco e depois as espanca até sangrarem?
Joga as crianças realmente más em um rio? Leva algumas até a sua casa
para que possa devorá-las? Por favor, conte-me mais a respeito dele!”
Meu fascínio pela criatura macabra apenas se aprofundou quando me
deparei com a abundância de cartões natalinos vintage retratando a
felicidade que ardia em seus olhos. Um deleite monstruoso emanava de sua
face enquanto carregava as crianças até a boca do inferno. Como não amar
isso?
Logo descobri que essa pérola dos feriados tinha uma longa e pitoresca
história, que havia festivais de inverno chamados de Krampusnacht em
muitos vilarejos alpinos, em que os participantes vestiam fantasias de
Krampus maravilhosa e perversamente feitas à mão, e depois vagavam
pelas ruas, batendo correntes e sinos e perseguindo vítimas aleatórias com
varas e palmatórias. Esses desfiles, chamados de Krampuslaufen, são
alimentados (não é de se surpreender) pelo álcool, sendo a schnapps a
oferenda costumeira a Krampus. Notei que Krampus era muitas vezes
retratado na companhia de São Nicolau, o alto e magro santo adornado em
suas vestimentas de bispo, carregando seu cajado cerimonioso ornamentado
e com aparência austera.
Havia muita coisa que não parecia certa aqui, ao menos pelas minhas
percepções norte-americanas do Natal e das tradições do Papai Noel. Eu
tinha uma litania de perguntas, mas a que estava à frente em minha mente
era a seguinte: ei, o que o Papai Noel acha desse cara? Qual é exatamente o
relacionamento dos dois? Podem me chamar de louco, mas para mim
parece um pouco falso que o Papai Noel tenha um diabrete malvado
brutalizando e sequestrando crianças enquanto ele está entregando presentes
e gritando “Ho, ho, ho!” Quem veio primeiro? De quem foi a ideia de os
dois trabalharem juntos? Eles estavam fazendo aquele lance do tira bom/tira
ruim, como Deus e o Diabo? Seria Krampus o escravo do Papai Noel? Eles
eram camaradas ou inimigos mortais? O que leva à pergunta que a maioria
dos meninos de hoje faria: Quem ganharia em uma briga? E foram essas
perguntas, sobretudo a última, que inevitavelmente me levaram a escrever
este livro.
Assim começou minha busca pelas origens dessas figuras de feriado que
parecem ser diametralmente opostas. Trabalhando de frente para trás e de
trás para a frente, das modernas percepções em meio às diversas variações
de Papai Noel e de Krampus, liguei as tradições do Yule às suas mais
antigas raízes pagãs no solstício de inverno. E, para aqueles que amam
essas coisas, eu gostaria de partilhar meus achados, mas com o aviso de
que, assim como com o mais antigo folclore, há muitas versões, que variam
de país para país e de região para região. Aqui eu reuni o que há de mais
comum nos fios com que teci a mitologia dessa fábula.
Quem veio primeiro? Papai Noel ou Krampus? Pode-se argumentar que
ambos nasceram nas mesmas origens, mas variações de Krampus precedem
de longe quaisquer das variações mais humanizadas e mais caridosas do
Papai Noel.
O solstício de inverno e suas celebrações a ele associadas datam de bem
antes do nascimento de Cristo. O Yule vem de festivais de inverno pagãos
em regiões germânicas, celebrando o renascimento da terra com festim e
sacrifícios, e ligado à Caçada Selvagem de Odin e a outros mitos e lendas
nórdicos. Um dos mais proeminentes símbolos do Yuletide é o bode do
Yule, que é uma das primeiras manifestações de Krampus que nós tão
encarecidamente conhecemos e amamos hoje.
Desde o início, Krampus representava a mudança de estações, um deus
da natureza e fertilidade que perseguia e afastava espíritos malévolos e
garantia uma crescente e abundante estação em resposta ao tributo.
Posteriormente, ele foi assimilado aos folclores e às lendas que evoluíam na
Alemanha e na Áustria. Esse folclore espalhou-se pela Croácia, República
Tcheca (Eslováquia), Eslovênia, Suíça e norte da Itália. Dizia-se que o bode
do Yule original era uma criatura horrenda que aterrorizava as crianças
enquanto se certificava de que as tradições do Yuletide eram executadas do
jeito devido. Posteriormente, o Bode do Yule, ou Krampus, também recebeu
a atribuição de distribuir presentes do Yule.
Em algumas lendas, Krampus foi associado a ou dizia-se ser uma versão
do deus nórdico Loki, que às vezes era retratado como uma figura chifruda
e diabólica que fazia travessuras. Essas lendas também sugerem que
Krampus levava crianças para o Inferno, ou Hel, a filha de Loki. Essas
primeiras manifestações não tinham nenhuma associação com São Nicolau.
Assim que a Cristandade surgiu, Krampus foi lançado, junto de muitos
outros espíritos cornudos da natureza, no papel de demônio ou diabo.
Apesar de diversas tentativas no decorrer dos séculos por parte da igreja e
de alguns governos europeus de tirarem do mapa as celebrações de
Krampus, Krampus e o Yuletide sobreviveram e, como a maior parte das
tradições pagãs, foram adotados (ou como Krampus diria, roubados) pelos
equivalentes cristãos, tal como levar árvores de sempre-verde e coroas de
flores para dentro da casa e deixar presentes em meias ou botas.
As origens do Papai Noel podem ser traçadas até o início da mitologia
nórdica, e eu me apropriei das associações feitas por historiadores do Papai
Noel com Odin de barba branca. Porém, depois de escavar mais a fundo,
senti que o filho de Odin, Baldr, faria uma comparação melhor. É escrito
que Baldr era amável, de natureza gentil, gracioso e belo à vista, e que ele
espalhava caridade e boa vontade entre os oprimidos… uma figura similar a
Cristo em várias formas, inclusive em sua morte e renascimento. A lenda
dele encaixou-se perfeitamente em minha história, desde sua trágica morte
por uma lança de visco nas mãos de seu irmão cego Hoor (guiado por Loki)
até seu subsequente aprisionamento em Hel e final renascimento depois do
Ragnarök e da queda de Valhalla.
Embora a maior parte da Europa tenha se convertido do paganismo para
o cristianismo, alguns de seus deuses e espíritos fizeram a conversão com
eles, de uma forma ou de outra, no entanto, a maioria foi deixada para trás e
esquecida. Esta adaptação a uma paisagem religiosa em mutação também se
encaixou perfeitamente no que eu estava tentando mostrar.
São Nicolau como uma figura cristã talvez seja a primeira encarnação
reconhecível do nosso Papai Noel moderno. Embora o verdadeiro São
Nicolau tenha morrido no ano de 342, ele não foi reconhecido como santo
até os anos 800, mais ou menos na mesma época em que o Natal foi
estabelecido como feriado. Ele ganhou popularidade expandida nos anos
1200, quando as práticas pagãs começaram a decair, e o Natal atingiu seu
ponto alto nos últimos anos 1300 e nos anos 1400. Foi durante esse período
que Krampus primeiramente ficou conhecido como um diabo cristão e
escravo de São Nicolau.
Nos anos 1500, a figura do Papai do Natal cresceu em popularidade,
seguida, nos anos 1700, pela primeira menção ao Papai Noel “St. A. Claus”.
Em 1809, o romancista Washington Irving escreveu Uma história de Nova
York, inventando a versão moderna do Papai Noel, seguido pouco tempo
depois pelo famoso poema do dr. Clement Moore, “Uma Visita de São
Nicolau”. Os anúncios de Coca-Cola dos anos 1930, feitos por Haddon
Sundblom, estabeleceram a atual e bem conhecida versão animada e
rechonchuda do Papai Noel em sua roupa brilhante (e convenientemente
vermelho-Coca-Cola).
Então foi essa rica tapeçaria de lendas e mitologias que inspiraram a
minha história. Descobri muitos outros elementos maravilhosos ao longo do
caminho e aqui estão alguns deles:
Anjos: Na Bélgica, Alemanha, Polônia, Ucrânia e Áustria, anjos
frequentemente acompanhavam São Nicolau em suas passagens
pelo Natal. Na tradição tcheca e eslovaca, o anjo é um protetor de
crianças contra o diabo.
Belsnickels: Mais uma das muitas variações sobre Krampus, a
tradição do Belsnickel foi trazida para a América pelos primeiros
imigrantes alemães. Diz-se que alguns dos Belsnickels usavam
máscaras e vestiam-se com largos casacos com pele de urso ou
chapéus de pele de gambá. Com frequência eles carregavam
chicotes, varas ou, às vezes, até espingardas, entregando guloseimas
e punindo as crianças conforme achavam adequado.
Condado de Boone, Virgínia do Oeste: Embora a cidade de
Goodhope seja fictícia, muitas das outras localidades deste livro são
baseadas em lugares reais, no Condado de Boone e arredores. O
Condado de Boone chamou minha atenção devido a sua longa
história de personagens curiosos, bandidos e músicos, tais como o
fora-da-lei dançante Jesco White e sua notória família; o compositor
Billy Edd Wheeler; e a local e lendária banda de um homem só
Hasil Adkins (vide mais abaixo).
Geri e Freki: Lobos de Odin.
Hel: Tanto o nome do submundo nórdico como de sua rainha, Hel
(filha de Loki).
Huginn e Muninn: Corvos de Odin.
Perchta: Bruxa/espírito do sexo feminino que vagava pelo interior
da Bavária e da Áustria. Punia ou recompensava crianças
dependendo de seu comportamento durante o ano.
Espanha: Os contos holandeses dizem que São Nicolau mora em
algum lugar na Espanha e chega a Amsterdã, a cada dezembro, de
navio, para entregar presentes aos bons meninos e às boas meninas.
Eu certamente consigo entender por que o Papai Noel moraria na
Espanha em vez de no Polo Norte.
Tanngrisnir e Tanngnost: Os bodes que puxavam a carruagem de
Thor pelo céu.
Hasil Adkins (1936–2005): É famoso por canções como “No More
Hotdogs”, que inclui a linha poética: “Eu vou cortar sua cabeça fora,
e você não poderá mais comer cachorros-quentes”, e a letra
imemorial da canção “She Said”:
I wen’ out last nigh’ and I got messed up
When I woke up this momin’, shoulda seen what I had inna bed wi’
me
She comes up at me outta the bed, pull her hair down the eye
Looks to me like a dyin’ can of that commodity meat…[3]
Em 2005, Hasil foi deliberadamente atropelado no quintal da frente de sua
casa por um adolescente em um quadriciclo e, pouco tempo depois, morreu
de seus ferimentos.
Áreas do Condado de Boone, como em muitas outras comunidades
rurais, estão sofrendo os trágicos efeitos da crescente epidemia de
metanfetamina. A mineração também está tendo um peso devastador tanto
sobre a comunidade como sobre a terra.
Foi um deleite passar um tempo com Krampus. Agora sinto uma
afinidade bem maior com ele do que com sua contraparte alegre. Espero
que Krampus continue a firmar-se no mundo todo e a reclamar seu lugar de
direito como Senhor do Yule. Se você partilha desse sentimento, então se
certifique de que deixará algumas guloseimas em seus sapatos no próximo
Yuletide e, quem sabe, você pode encontrar uma ou duas moedas de ouro
em retribuição. Se não fizer isso… bem, você foi avisado… Krampus está
vindo para a cidade.
Brom
Yuletide, 2011
AGRADECIMENTOS

A Diana Gill, por seus instintos sobrenaturais imediatos para histórias e


personagens, assim como por todo o seu trabalho duro lidando com minhas
ponderações o tempo todo. Eu estaria perdido sem seu auxílio. Obrigado,
Diana, por seu vodu da edição.
À fenomenal Julie Kane-Ritsch, por sua contínua amizade, seu
entusiasmo, sua diligência e uma diversidade de outros superpoderes.
Obrigado, Julie.
Muitas pessoas maravilhosas trabalharam duro para ajudar a dar vida a
esta história. Eu gostaria de expressar a minha profunda apreciação às
seguintes pessoas por seus esforços e contribuições: Jie Yang, Dale
Rohrbaugh, Paula Szafranski, Rich Aquan, Pam Spengler-Jaffee, Shawn
Nicholls, Jessie Edwards e Will Hinton.
ILUSTRAÇÕES
BROM é um multiartista que emprestou sua visão distinta a todas as
facetas das indústrias criativas, entre romances, games, quadrinhos e
filmes. Ele é o autor de The Child Thief e dos premiados romances
ilustrados, The Plucker, The Devil’s Rose e Slewfoot. Brom
atualmente é mantido em um porão úmido em algum lugar nos
arredores de Seattle. Saiba mais em bromart.com.
Krampus, pin ’em, to kill ’em, or bring ’em with us,
Krampus, doing his dirty work, saint Nicolas.
— KRAMPUS SINGS A SONG, AARON FRASER-NASH —
DARKSIDEBOOKS.COM

•••
eBook: A. Garamont | v1.0.0
1. Bares onde geralmente música country é tocada ao vivo, típicos do Sul e do Sudoeste dos Estados
Unidos, onde o country é mais popular. Em geral, são frequentados pela classe trabalhadora, sendo
que alguns ainda contam com prostitutas e shows picantes para o entretenimento de seus clientes.
[Nota da Tradutora, daqui em diante NT.]

2. Rações alimentares diárias dadas aos soldados do Exército dos Estados Unidos na Segunda Guerra
Mundial, contendo três refeições cada. [NT]

3. Ontem à noite saí e enchi a cara / Hoje quando acordei, devia ter visto o que tinha na cama comigo
/ Ela sai da cama até mim, puxa o cabelo do olho / Pra mim parece uma lata de carne barata
expirando. [NT]

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