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Sobre a obra:
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KRAMPUS
Copyright © 2012 by Brom
Ilustrações © 2012 by Brom
Publicado mediante acordo com
HarperCollins Publishers.
Todos os direitos reservados.
Tradução para a língua portuguesa
© Ana Death Duarte, 2022
Diretor Editorial: Christiano Menezes
Diretor Comercial: Chico de Assis
Diretor de MKT e Operações: Mike Ribera
Diretora de Estratégia Editorial: Raquel Moritz
Gerente Comercial: Giselle Leitão
Gerente de Marca: Arthur Moraes
Gerente Editorial: Marcia Heloisa
Editor: Bruno Dorigatti
Capa e Projeto Gráfico: Retina 78
Coordenador de Arte: Eldon Oliveira
Coordenador de Diagramação: Sergio Chaves
Designer Assistente: Jefferson Cortinove
Finalização: Sandro Tagliamento
Preparação: Felipe Pontes
Revisão: Andrio Santos, Milton Mastabi Filho e Retina Conteúdo
Impressão e Acabamento: Leograf
[2022]
Todos os direitos desta edição reservados à
DarkSide® Entretenimento LTDA.
Rua General Roca, 935/504 – Tijuca
20521-071 – Rio de Janeiro – RJ – Brasil
www.darksidebooks.com
Sumário
Página de título
Créditos
Dedicatória
Prólogo
Parte I. Jesse
Capítulo 1. O homem por trás do Papai Noel
Capítulo 2. O saco do Papai Noel
Capítulo 3. O General
Capítulo 4. Homens-diabo
Capítulo 5. Monstros
JESSE OUVIU um tinido e depois uma bufada. Ele piscou e sentou-se direito.
Será que tinha caído no sono? Esfregou a testa e olhou de relance ao redor.
Ali, no fim do beco sem saída, estavam paradas oito renas, bem na frente da
entrada de carros dos Tuckers. Elas estavam presas com seus arneses a um
trenó, e, até mesmo sob o brilho fraco das reluzentes luzes de Natal, Jesse
podia ver que se tratava de um trenó de verdade e não de algum enfeite
natalino. Trenó esse que era quase da altura de um homem, suas tábuas de
madeira laqueadas em um tom intenso de carmesim e com ornamentos
delicados, espiralados e dourados. O veículo inteiro ficava em cima de um
par de esquis de trenó robustos que terminavam em ganchos elegantes.
Jesse piscou repetidamente. Eu não estou vendo coisas e não estou bêbado.
Que merda, nem mesmo estou tonto com a bebida! Uma das renas batia
com as patas na neve e bufava, lançando uma nuvem de condensação no ar
frio. Ele voltou a olhar estrada acima. Os únicos rastros que ele viu na neve
recente eram as de sua caminhonete. De onde diabos elas vieram? Todas as
renas ergueram suas cabeças ao mesmo tempo e olharam para a colina
acima. Jesse acompanhou a direção dos olhos delas, mas não viu nada.
Então ouviu o som de pancadas: alguém que usava botas pesadas
aproximava-se rapidamente.
E agora?
Um homem com uma barba branca, usando botas até o joelho, um traje
de Papai Noel carmesim adornado com pelos e segurando um grande saco
vermelho descia correndo a viela de cascalho, correndo com tudo, como se
alguma coisa o estivesse perseguindo.
Havia alguma coisa perseguindo-o.
Quatro homens irromperam na estrada no topo da colina, bem ao lado
da manjedoura reluzente de Millie. Homens negros, vestidos de preto, com
capuzes esfarrapados, carregando paus e clavas. Suas cabeças mexiam-se
para cima e para baixo, olhando para todos os lados, até que um deles
avistou o homem trajado com a roupa de Papai Noel. Ele soltou um uivo,
impelindo sua clava na direção do homem de barba branca que fugia, e todo
o bando saiu em perseguição a ele.
“Que diabos!”
O homem vestido de Papai Noel passou correndo por Jesse, arrojando-
se em direção ao trenó, bufando e bafejando, com selvageria no olhar, suas
alegres bochechas ruborizadas e uma careta feroz contraindo seu rosto. Ele
era robusto, não como o Papai Noel gordo que Jesse estava habituado a ver,
mas sólido no peito e nos braços.
O bando seguiu correndo pela viela abaixo, brandindo suas armas. Jesse
deu-se conta de que os capuzes deles eram, na verdade, mantos de pelos,
pele e penas, ondulando ao vento e farfalhando atrás deles enquanto seus
longos passos de galope rapidamente estreitavam a distância entre eles e o
objeto de sua perseguição. Jesse avistou o brilho de aço, notou que havia
pregos projetando-se das clavas e lâminas mortais em cima dos paus. Ele
sentiu a pele formigar… os olhos cor de laranja deles reluziam, suas peles
brilhavam de um preto azulado e manchado e chifres apareciam nas laterais
das cabeças deles, como cornos de diabos.
“Que p…?”
Mais dois deles apareceram, saindo correndo por detrás do trailer dos
Tuckers, determinados a interceptar o Papai Noel. Esses dois trajavam calça
jeans, botas e jaquetas pretas com capuzes. O Papai Noel nem mesmo
diminui a marcha; ele abaixou a cabeça e golpeou o primeiro homem com
tudo, usando o ombro, jogando-o também com tudo para cima do segundo
ofensor, nocauteando ambos.
Um tiro de arma de fogo reverberou como uma trovoada no ar. Um dos
membros do bando tinha uma pistola e estava tentando atirar no homem
vestido de Papai Noel. Ele… aquilo… atirou de novo. Um taco de madeira
do trenó foi lascado e soltou-se.
“Vá para longe!”, gritou o Papai Noel. “Vá para longe!”
Uma cabeça ergueu-se no assento da frente do trenó… parecia um
menino, um garoto com grandes orelhas pontudas. O menino olhou além do
Papai Noel e arregalou os olhos. Ele apanhou as rédeas e estalou-as. As
renas empinaram-se para a frente e o trenó… o trenó, na verdade, ergueu-se
do chão!
“Que… diabos?”
O homem vestido de Papai Noel pendurou o saco vermelho na traseira
do trenó e subiu a bordo dele. Jesse ficou pasmo com o quão ágil e enérgico
era o velho robusto. O trenó continuou a erguer-se… estava agora a uns
bons cinco metros acima do chão. Jesse achava que eles poderiam escapar
quando o homem-diabo-líder-do-bando pulou… lançando-se a uma
distância que Jesse teria achado impossível, e segurou um dos esquis do
trenó. Seu peso puxou o trenó com pungência para baixo, quase fazendo-o
cair.
Os cinco homens-diabo remanescentes pularam depois do primeiro,
quatro deles escalando a traseira do trenó enquanto o último aterrissava nas
costas da rena líder que, revirando os olhos e bufando, irritada e agitada,
dava patadas no ar, e aquele circo todo começou a girar para cima.
A pistola foi disparada mais três vezes. Jesse estava certo de que o
homem vestido de Papai Noel tinha sido atingido, mas, se foi, não parecia
saber disso. Ele deu um tremendo de um chute, acertando um dos homens
bem no peito, nocauteando-o para cima de um outro e quase fazendo com
que ambos caíssem para fora da traseira do trenó. A pistola voou da mão da
criatura e foi parar na neve. Um outro homem-diabo agarrou o saco e tentou
saltar para longe. O homem de barba branca soltou um uivo ensandecido e
lançou-se para cima dele e agarrou-o, atracando-se com ele. Ele acertou um
potente punho cerrado na face do homem-diabo; Jesse ouviu o golpe de
arregaçar ossos de onde estava em sua caminhonete. O homem caiu e o
Papai Noel puxou de volta o saco bem na hora em que as criaturas restantes
caíram em cima dele.
O trenó foi para cima com tudo, girando ainda mais rápido, e Jesse não
conseguia mais ver o que estava acontecendo, podia só ouvir os gritos e os
uivos enquanto o trenó girava para cima, e mais para cima, e subia ainda
mais. Ele saiu da caminhonete, erguendo o pescoço, rastreando a silhueta
que diminuía. As nuvens haviam se aproximado e estava nevando de novo.
O trenó logo desapareceu no céu noturno.
Silêncio.
Jesse exalou longamente o ar.
“Cacete!”
Ele caçou um maço de cigarros do bolso de cima da sua jaqueta jeans.
Mais ou menos na mesma hora em que achou o seu isqueiro, ele ouviu um
som e voltou o olhar de relance para cima: alguém estava gritando. O
volume dos gritos aumentou e ele avistou um pontinho preto caindo na
direção da terra.
“MAS QUE DIABOS”, Jesse falou de novo, e mais uma vez, mesmo sendo
desnecessário.
Ele podia ver o canto de uma caixa bem ali, dentro do saco do Papai
Noel. Enfiou sua arma no bolso de sua jaqueta e puxou a caixa dali. Ele
abriu um largo sorriso. Era uma boneca Teen Tiger novinha em folha.
“Sim, querida Abigail, o Papai Noel existe mesmo.”
Ele examinou a boneca. Um sedutor par de olhos de gato azuis cercados
com um delineador pesado olhavam para ele de sob uma profusão de
cabelos brilhantes. Ele estava contemplando a adequação do biquinho da
boneca, de seus lábios vermelhos cor de cereja, da minissaia com listras
parecidas com as de um tigre, da barriga à mostra… quando lhe passou pela
cabeça como era estranho que a boneca estivesse ali. Sendo aquele o saco
do Papai Noel, ele esperava que houvesse brinquedos ali dentro, claro, além
de uma boneca Teen Tiger também, não? E em qual das bonecas ele
estivera pensando? Jesse olhou para a boneca de novo. “Tina Tiger”, aquela
que sua filha queria. E ali estava ela, disposta bem em cima, como se o saco
a estivesse entregando a ele. É como se a coisa lesse a sua mente. Os pelos
dos braços dele ficaram arrepiados e ele olhou com ares de suspeita para o
saco. Ok, acalme-se. Você já viu e ouviu coisas esquisitas o bastante. Jesse
inspirou fundo.
Ele ergueu o saco, surpreso com o quanto era leve; ele poderia segurá-lo
esticando o braço com apenas uma das mãos. Era mais ou menos do
tamanho de um daqueles sacos pretos e grandes de lixo. Ele chacoalhou a
neve para fora do saco e levou-o, junto da boneca, até sua sala de jantar,
puxando e fechando a porta do quarto depois de sair, para manter o frio e a
neve fora dele.
Do lado de fora, a ambulância havia chegado, banhando o aposento com
suas luzes piscantes. Jesse jogou o saco no chão e ficou olhando fixo para
ele até terminar de fumar seu cigarro, depois puxou uma cadeira da cozinha
e sentou-se nela. Enganchou um dos polegares na boca do saco e o manteve
aberto, espiando com cautela, como se esperasse que algo saísse de dentro
pulando para cima dele. O interior do saco era escuro, o revestimento de
veludo preto rapidamente desaparecendo nas sombras, não deixando que ele
visse mais do que oito a dez centímetros saco adentro. Havia algo anormal
em relação àquelas sombras e, quanto mais ele analisava a escuridão
parcial, mais ficava convencido de que não estava vendo sombras coisa
nenhuma, e sim uma espécie de fumaça, um vapor denso e rodopiante. A
fumaça fluía e refluía, e, ainda assim, não saía de dentro do saco.
Ele cutucou o lado de fora do saco, que parecia preenchido, similar ao
pufe cheio de feijões que ele tinha quando era criança, que ele podia
empurrar de um lado para o outro mas sempre recuperava a forma. Ele
queria mesmo saber o que mais havia ali dentro, mas não sentia nenhuma
pressa de enfiar o braço naquela gosma fumacenta para descobrir.
Jesse voltou a espiar dentro do saco, pensou em como Abigail ficaria
satisfeita se ele levasse para ela não apenas uma, mas talvez algumas
daquelas bonecas safadinhas. Ele engoliu em seco e colocou a mão na boca
do saco. Seus dedos desapareceram na fumaça, depois sua mão, depois seu
antebraço. Ele notou uma mudança na temperatura, sendo o interior do saco
muito mais quente, e, totalmente de súbito, teve uma noção sobrepujante de
que o saco em si estava vivo, de que ele estava com a mão dentro da boca
da coisa, que podia morder e arrancar seu braço, como uma armadilha para
ursos. Algo bateu em seu pulso e ele soltou um grito, puxando a mão de
dentro do saco. Jesse examinou a mão e o braço como se pudessem estar
cobertos de sanguessugas, mas estavam bem.
“Droga! Pare de ser um tremendo de um maricas, cara!”
Ele pensou em outra boneca, naquela asiática, com a tatuagem de
dragão, mordeu o lábio e deslizou a mão de novo para dentro do saco, foi
empurrando-a até a altura do cotovelo, rezando para que seus dedos ainda
estivessem grudados em sua mão quando puxasse o braço para fora. Ele
ficou tateando até que encontrou o objeto de novo. Parecia uma caixa. Ele
puxou-a de dentro do saco e não ficou nem um pouco surpreso ao se ver
olhando nos exóticos olhos púrpuras de Ting Tiger.
Jesse soltou uma bufada. Ok, entendi. Ele pensou na boneca gótica,
depois, na ruiva, e pegou ambas de dentro do saco. Ele não parou por aí.
Apenas uma semana antes, Abigail sentou-se no colo dele com o panfleto
da loja de brinquedos Toys “R” Us e, nomeando todas as seis bonecas Teen
Tigers, explicou-lhe todos os superpoderes delas, disse a ele de quais ela
havia gostado mais e quais acessórios eram obrigatórios. Ela continuou
esclarecendo o quanto era difícil para uma garota da idade dela comer,
dormir ou até mesmo respirar sem ter pelo menos uma dessas incríveis
bonecas em sua posse.
Um minuto depois, Jesse estava com a gangue completa das garotas
Tiger enfileiradas sobre a mesa, assim como o Corvette vermelho com
listras de tigre e dois pacotes de acessórios. E não precisava muito para ver
que todos aqueles brinquedos não teriam como caber dentro daquele saco
juntos. O saco está criando os brinquedos de alguma forma. O saco está
criando o que eu desejo! Ele arregalou os olhos e parou de respirar por um
instante. É mesmo? Será que os céus tinham simplesmente jogado um saco
mágico no colo dele? Jesse ficou de pé em um pulo, deu um salto para a
frente, aferrolhou a porta e depois espiou para fora, pela janela da frente. A
ambulância e a viatura da polícia ainda estavam ali, mas todos os vizinhos
tinham ido para casa, bem, todos menos Phyllis, que tagarelava, disparando
mil palavras por minuto para cima do motorista da ambulância.
Jesse fechou as persianas e ficou na frente do saco, sua mão pairando
sobre a abertura dele. Jesse fechou os olhos, visualizou um anel de
diamante e deslizou a mão para dentro do saco. Ali estava! Ele apanhou
uma caixinha de veludo de dentro do saco. Seus dedos tremiam tanto que
ele precisou de três tentativas para conseguir abrir a caixinha.
“Oh, puta merda, sim!”, disse ele, erguendo o anel até a luz.
Seu sorriso esmoreceu.
Era um brinquedo, nada além de plástico e alumínio pintados.
“Droga!” Ele balançou a cabeça. “Devo ter feito algo errado, não?” Ele
jogou o anel por cima do ombro, cerrou os olhos de novo, concentrando-se
dessa vez em um relógio. Ele pensou especificamente no Rolex de ouro que
havia admirado na loja de penhores. O relógio que ele puxou dali tinha o
nome Rolex escrito no mostrador, mas ainda era um brinquedo. “Ah, qual é!
Qual é!” Três anéis de latão depois, quatro relógios de plástico e uma pilha
alta de dinheiro de brinquedo e ele entendeu a mensagem: o saco só
produzia brinquedos.
Ele deslizou as costas na parede.
“Bem, que porcaria.” Ele apoiou a cabeça no painel e ergueu o olhar
para as manchas de água no teto. “Parece que as coisas nunca saem do jeito
que eu quero.” De repente, tudo que havia acontecido nessa longa e
estranha noite veio à mente dele, e ele só queria rastejar até sua cama e ficar
por lá. Olhou de relance para o quarto. “Provavelmente dá para fazer um
boneco de neve lá agora.” Ele soltou um suspiro, puxou a almofada do
assento da cadeira, apoiou-a atrás da cabeça e deitou-se bem ali no chão.
Ele ficou observando as luzes de emergência piscarem através das
persianas. Seus olhos vagaram até as bonecas. Ele conseguiu sorrir.
“Consegui todas aquelas pequenas supervadias… todas elas.” Jesse pensou
na cara de Abigail e seu sorriso ficou ainda mais largo. “Uma vez na vida,
bonequinha, seu papai não vai ser um perdedor. Uma vez na vida, seu papai
vai ser um herói.” Ele cerrou os olhos. “Abigail, querida… se segura porque
o Papai Noel está vindo para a cidade!”.
UMA HORA DEPOIS, Jesse dirigia-se de volta à Rota 3 com quatro sacos pretos
de lixo contendo consoles de videogame e videogames portáteis empilhados
na traseira de sua caminhonete. Ele tinha colocado o saco do Papai Noel de
volta no chão do lado do passageiro. O saco era seu bilhete de ouro e ele
pretendia mantê-lo por perto.
Ele entrou em um ferro-velho na periferia da cidade e tentou evitar os
buracos no chão enquanto dirigia por alguns anexos de edifícios imundos e
um punhado de semitrailers detonados. Ele chegou a um muro de concreto
com arame farpado e caveiras de cervos, bem nos fundos da propriedade, e,
depois disso, parou ao chegar a um portão de metal com vidro quebrado em
cima. Jesse buzinou duas vezes e acenou para a câmera de segurança que
ficava em cima do portão.
Um instante depois, ele ouviu um clique, e o portão foi aberto
ruidosamente ao longo de seu trilho enferrujado, revelando uma curta viela
de baias de garagem. A porta alta da baia do meio estava aberta pela metade
e Jesse podia ver cinco silhuetas inclinando-se sobre um motor a diesel. Ele
estacionou, desligou a ignição e ouviu seu motor parar ruidosamente. Ele
saiu do veículo e pegou um dos sacos de lixo, depois passou por debaixo da
calha e ficou esperando.
A baia era parte oficina e parte todo o resto. Ferramentas mecânicas
cheias de graxa, ferramentas pneumáticas e diversas ferramentas manuais
estavam espalhadas por todas as superfícies disponíveis. Um cortador de
grama dirigível, desmontado, estava enfiado em um canto, ao lado de uma
geladeira verde-abacate, cuja porta estava quase preta, tantas eram as
marcas de mão cheias de sujeira. Latas de aerossol e suprimentos de
taxidermia estavam alinhados em diversas das prateleiras de trás, enquanto,
acima disso tudo, pendia bem mais de uma dúzia de cabeças de animais
secas e empalhadas, inclusive um cervo com chifre de doze pontas e um
urso preto de um olho só que diziam ter matado três dos cães de caça do
General.
Nenhum dos homens se deu ao trabalho de olhar para cima, então Jesse
acabou ficando lá, parado, em pé, segurando o saco, alternando,
desajeitado, o peso do corpo entre um pé e outro. Jesse podia ver o General
mexendo no eixo de comando de válvulas de um veículo. Por fim, um
homem alto, loiro e de constituição robusta, vestindo um macacão
desbotado e manchado de graxa, ergueu o olhar, fez cara de poucos amigos
e depois largou sua chave inglesa. Ele limpou as mãos em um trapo
ensebado e foi andando até Jesse.
Chet era o sobrinho do General, tinha frequentado a mesma escola que
Jesse e os dois tinham saído juntos uma vez. Hoje em dia, Chet era o
contato de Jesse — ele nunca teve que, na verdade, falar diretamente com o
General antes. Era assim que o General lidava com as coisas, pelo menos as
coisas pequenas, e estava claro que Jesse era uma dessas coisas.
Chet coçou seu bigode espesso com pontas recurvadas.
“Ora, ora, nós estávamos agorinha mesmo falando em você, Jesse.”
Jesse apertou os olhos, perguntando-se o que ele queria dizer com
aquilo.
“Que legal que você veio até aqui.” Chet estava com um grande sorriso
no rosto, que a avó de Jesse costumava chamar de sorriso de crocodilo.
“Assim você me poupa o trabalho de ir atrás de você.”
“É, bem, aqui estou eu.”
“Espero que você não tenha planos para esta noite. Porque se tiver, eles
acabaram de mudar.”
Jesse enrijeceu o maxilar.
“Tenho uma parada pra você. A viagem é curta… só até Charleston.”
“Não posso.”
Chet ergueu uma sobrancelha.
“Não pode?”
“Nem. Parei com isso.”
Chet empurrou seu boné para trás.
“Não estou gostando disso, Jesse. Oras, você tem um pessoal que está
contando com você.”
“Estou em uma nova linha de negócios agora.”
“Ah, é? E exatamente que tipo de negócios seriam esses?”
Jesse colocou o saco de lixo no chão.
“O que é isso?”
“Uma coisa que o Papai Noel deixou para mim.”
Chet encarou Jesse. “Não tenho tempo para suas baboseiras sem
sentido.”
“Tenho uma proposta de negócios para o General.”
“Fala aí, cara.”
“Você não é o General.”
Chet apertou os olhos em direção a ele.
“Se você tem algo a dizer, então é melhor que diga para mim.”
“Eu estou aqui pra ver o General.”
Chet agarrou o colarinho do casaco de Jesse e o suspendeu, deixando-o
nas pontas dos pés.
“Chet”, disse uma voz grave. “Aguenta aí.”
“Tome cuidado, rapaz”, grunhiu Chet, dando um empurrãozinho em
Jesse.
O General veio na direção deles, seguido dos outros três homens, todos
eles Boggs, sobrinhos e primos de um jeito ou de outro. Eles olharam para
Jesse de cima abaixo.
O General estava com a mesma roupa que vestia em todas as vezes que
Jesse o tinha visto: um chapéu de caubói de camurça sobre a careca, um
casaco também de camurça, com franjas, do tipo que Daniel Boone usaria, e
botas de pele de jacaré. Ele tinha uma barba por fazer, grisalha e meio
crespa, em seu rosto bruto com inflamações cutâneas. Jesse achava que o
homem devia estar chegando aos 60 anos. Mesmo assim, ele ainda parecia
suficientemente capaz de se defender contra qualquer um que chegasse ali.
Seu nome verdadeiro era Sampson Ulysses Boggs. Seus pais lhe deram um
nome comprido com esperança de que ele se tornasse grande como seu
nome, mas, visto que o General tinha uma cabeça de altura a menos do que
a maioria dos homens, Jesse sentia que ele estava tentando compensar por
isso de outras maneiras. Ele tinha assumido a reputação formada pelos
Boggs lá na época da Lei Seca, contrabandeando bebida alcoólica, e usava
isso para abrir caminho, por meio de violência e intimidação, em todas as
atividades ilegais lucrativas no Condado de Boone e em seus arredores.
“Vá em frente, então, filho”, disse o General. “Diga o que você tem a
dizer.”
“Bem”, falou Jesse. “Eu tenho uma proposta em que talvez você possa
estar interessado.”
“Tem, é?”
“Tenho sim.”
Jesse puxou e abriu o saco, de modo que todos pudessem ver as caixas
de consoles de videogames.
“Eu não jogo videogames”, disse o General.
“Eu tenho uma caminhonete cheia deles e posso conseguir mais.”
“Pode conseguir mais agora?”
“Sim, senhor. E eu estava pensando que o senhor e eu deveríamos fazer
uma parceria. Eu tenho um fornecimento regular deles e seria bom ter uma
ajuda na distribuição.” Jesse percebeu que estava falando rápido demais e
forçou-se a falar mais devagar. “Estou disposto a fazer a divisão meio a
meio.”
O General abriu um largo sorriso para isso, mas Jesse não gostou dos
ares daquele sorriso.
“E como é que você conseguiu essas coisas?”, perguntou-lhe o General.
“Bem…” Jesse ficou hesitante. “Bem, senhor… na verdade, eu não
tenho autorização para dizer…”
“Não tem, é?”
“Não, senhor. Bem, poderíamos apenas dizer que o Papai Noel os
trouxe para mim.”
Jesse deu uma fraca risadinha, mas ninguém mais abriu nem um sorriso,
por menor que fosse. O velho homem ficou olhando para ele. Ninguém se
mexeu nem falou nada. Jesse não estava gostando do clima, não estava
curtindo o jeito como as coisas estavam saindo. Alguma coisa não estava
certa e, de repente, ele queria ir embora dali.
O General assentiu. Jesse sabia que aquilo era sinal de encrenca, mas,
antes que pudesse fazer alguma coisa, Chet segurou seu braço. Jesse tentou
torcer o braço e soltar-se, mas todos eles estavam em cima dele.
Os homens arrastaram-no até a fileira de ferramentas da oficina,
forçaram a mão direita dele em uma furadeira, seguraram a mão dele em
cima da placa, bem onde a ponta da furadeira ia passar assim que
começasse a girar. Chet apanhou um rolo de fita adesiva e começou a
enrolar o braço e a mão de Jesse com a fita, dando várias voltas, prendendo
a mão dele na prensa. Jesse lutou para arrancar e soltar sua mão dali, mas
ela estava bem atada. Os homens o empurraram para que ele ficasse de
joelhos e rapidamente o seguraram, mantendo-o assim.
O General foi andando até ele.
“Eu recebi um telefonema do Dillard. Você tem alguma ideia do que
poderia se tratar essa ligação?”
O sangue de Jesse corria frio em suas veias.
“Ele me disse que você estava com um papo de doido, como se fosse
virar um alcaguete. Começar a delatar a gente se não gostasse do jeito como
a gente estava tratando você.”
Jesse balançou a cabeça em negativa.
“Não. Não é isso que…”
O General deu-lhe um chute na barriga.
“Cala a boca!”
Jesse tossiu, lutando para respirar. Chet rasgou mais uma tira de fita e
passou-a pelos lábios de Jesse.
O gosto de cola encheu a boca de Jesse e suas narinas ficaram dilatadas
enquanto ele lutava para fazer entrar ar suficiente em seus pulmões.
“Esse tipo de conversinha me deixa nervoso”, continuou o General.
“Acredito que eu e você, nós temos umas coisinhas a acertar. Vamos
começar com aquilo que você tem a perder. Ouvi dizer que você é muito
apegado àquele seu violão. Não foi isso que você falou, Chet?”
“Foi”, disse Chet.
“Ora, posso apostar que ele prefere dedilhar aquele violão do que uma
xoxota gostosinha. Ouvi dizer que o grande sonho dele era ser famoso lá em
Memphis.”
“Bem, isso vai ficar difícil com uns buracos grandes na mão.”
O General assentiu e Chet apertou o botão da furadeira; um chiado
estridente encheu o ar da baia. Um meio sorriso presunçoso repuxou-se até
a bochecha enquanto Chet abaixava devagar a furadeira, até que a ponta que
girava desse uma mordidinha na pele de Jesse.
Jesse cerrou os dentes, lutando para não gritar. Chet deixou que a
furadeira afundasse um pouco mais de meio centímetro na carne de Jesse.
“Puta que pariu!”, gritou Jesse, mesmo com a fita na boca.
Chet gargalhou e puxou a furadeira de volta para cima, deixando uma
ponta de sangue em cima da mão de Jesse.
“Não falei para você parar”, disse o General.
Não havia então mais humor no rosto de Chet, que olhou para o
General, confuso.
“Mas…”
“Faça.”
“O quê? Você quer dizer… atravessar a mão dele com isso?”
“Que diabos, sim, eu quis dizer ‘atravesse a mão dele com isso’!”
Chet continuou encarando o General.
“Você ficou surdo? Atravessa a mão dele com a porra da furadeira!”
“Eu achei que só estávamos querendo dar um susto no cara.”
“Ele não parece assustado o bastante para mim. Agora vá em frente. Eu
quero dar a ele alguma coisa para que possa se lembrar com quem está
fodendo.”
Chet ainda não se mexeu. O General contorceu o rosto, que ficou
parecendo uma esponja de lavar louça; ele foi andando até Chet e Jesse e
enfiou um dedo gordo no peito de Chet.
“Você precisa aprender a fazer o que lhe mandam fazer, menino.”
Ele enxotou Chet para o lado, quase o derrubando no chão. O General
segurou a furadeira e inclinou-se para cima de Jesse.
“Da próxima vez que você sentir vontade de bater com a língua nos
dentes, vai querer se lembrar disso.”
Lentamente, o General afundou a furadeira na mão de Jesse, enfiando-a
fundo na carne dele.
Jesse sentiu uma dor excruciante subindo por seu braço. Parecia que a
palma de sua mão estava pegando fogo. Ele gritou e engasgou-se com a fita
que cobria sua boca, lágrimas saindo dos cantos dos olhos, que ele apertava
por causa da dor. Chet e os outros homens encolheram-se quando a broca
atravessou por completo a mão de Jesse.
O General nem mesmo pestanejou, só ficou mexendo a cabeça daquele
jeito que se faz quando se está curtindo uma canção favorita, deixando que
a furadeira girasse na mão de Jesse. Pedacinhos de fita, carne e sangue
estavam espalhados pelo rosto de Jesse, cujo nariz estava tomado pelo
cheiro de carne tostada.
O General ergueu a furadeira e desligou-a. Os homens soltaram Jesse, e
ele caiu junto à bancada da furadeira, tremendo.
O General pegou seu lenço de mão, limpou uma mancha de sangue de
sua bochecha e depois se ajoelhou ao lado de Jesse.
“Escuta bem, filho, pois você só vai ouvir isso uma vez. Se eu algum
dia ficar sabendo que você estava dando com a língua nos dentes… não vai
ter mais brincadeira. E se algum dia você me trair… de qualquer forma que
seja, eu vou colocar você e aquela sua filhinha bonita dentro de um caixão,
juntos, e enterrar vocês dois vivos. Eu juro que vou fazer isso, Jesse. Você
só pensa em como seria isso da próxima vez que sentir vontade de se
rebelar. Está entendendo o que estou dizendo?”
Jesse assentiu.
“Então estamos bem”, disse o General, e levantou-se. Ele olhou para
Chet, de cima abaixo, não parecendo nem um pouco contente com ele. “Nós
todos já acertamos as contas com Jesse, agora é só deixar o cara quieto.”
Os homens assentiram e o General cruzou o recinto em direção à
escadaria envolta em luzes piscantes de Natal. Ele entrou em um escritório
no segundo andar e fechou a porta. No instante em que o General não podia
mais vê-lo, Chet ergueu para ele o dedo do meio.
“Melhor você tomar cuidado com isso, cara”, disse o homem esguio e
musculoso parado ao lado esquerdo de Chet. Lynyrd Boggs usava um
chapéu de caubói manchado de suor com uma pena de águia enfiada na
faixa. O pai dele era um grande fã da banda Lynyrd Skynyrd, de modo que
Lynyrd teve a boa sorte de ter seu nome escrito errado em tributo à banda.
“Porra”, disse Chet. “Aquele filho da puta precisa relaxar, cacete! Só
porque as coisas estão uma merda, isso não quer dizer que ele tem que tratar
a gente daquele jeito!”
“Ele está sendo afetado pela pressão, só isso. Eu me lembro de não fazer
muito tempo que o General era praticamente o único com quem dava pra
arrumar uns baratos por aqui. Agora todos os cabeções viciados em speed
estão preparando suas próprias porras nas merdinhas dos porões deles. O
General está perdendo terreno e, caso você não tenha notado, ele não está
recebendo isso lá muito bem.”
“E eu também não gosto nadinha disso de ele falar em machucar
crianças. Não é assim que nós fazemos as coisas por aqui. Nem um pouco.”
“As regras estão mudando. Esses viciados em metanfetamina, eles não
têm nenhum respeito pelos modos antigos.”
“Malditos viciados em metanfetamina!”, disse Chet, cuspindo.
“Metanfetamina de merda. Fodendo e arruinando com tudo.”
“Bem, isso não é tudo. Ouvi dizer que nós temos uns concorrentes.”
“Do que você está falando?”
“Uns meninos de Charleston andaram traficando por aqui.”
“Em Goodhope? Você tem que estar de brincadeira!”
“Bem que eu gostaria. Ouvi, sem querer, o General conversando com o
Dillard. Ao que parece, Dillard pegou alguns deles.”
“Dillard? Sério? Aposto que eles não se saíram bem dessa.”
“Pode apostar mesmo.”
“Acha que eles acabaram indo parar no fundo da criação de bagres do
Ned?”
Lynyrd deu de ombros. “Digamos que você não vai me ver comendo
nada que tenha saído daquele lago.”
“Puta merda, aquele Dillard é um filho da mãe assustador.”
Jesse arrancou a fita adesiva de sua boca e soltou um suspiro. Ele puxou
e rasgou a fita embolada em volta do braço, para soltar sua mão. Chet foi
andando até ele.
“Vou dar um conselho a você, Jesse. Só deixa o Dillard quieto. Você
pode achar que entende aquele filho da mãe, mas não faz a mínima ideia do
que ele é capaz.”
“Isso não é da sua conta.”
“Não, acho que não é mesmo. Mas eu vi em primeira mão o que ele fez
com camaradas que entraram no caminho dele. As coisas com ele não são
brincadeira. Ele vai dar um sumiço em você.”
Jesse ignorou-o e continuou rasgando a fita.
“Você não está acreditando em mim? Pergunte-se uma coisa: algum dia
alguém achou um fio de cabelo que fosse da mulher dele? Alguns
camaradas acreditam que ela fugiu. Bem, eu sei que não foi assim que as
coisas aconteceram.”
“Como é que você sabe disso?”, perguntou Lynyrd.
“Não vou dizer.”
“Você não sabe de porra nenhuma.”
Chet ficou hesitante, parecia estar pesando alguma coisa.
“Eu vi uma foto do corpo morto dela.”
O sangue de Jesse ficou frio em suas veias; ele parou de puxar a fita e
ergueu o olhar para Chet, que estava olhando nos olhos de Lynyrd; ele
parecia sério, tão sério quanto um homem é capaz de ficar.
“Uma foto?”, perguntou-lhe Lynyrd. “Você está me dizendo que viu
uma foto da mulher do Dillard e que ela estava morta?”
“Eu preferia não ter visto.”
“Onde foi que você viu uma foto dela?”
“Foi o Dillard que me mostrou.”
“Papo furado.”
“É, ele me mostrou sim.”
“Ora, por que ele faria uma coisa dessas?”
“Eu vou lá saber, porra. Eu ainda não saquei qual é a daquele homem.
Foi há uns meses, quando eu estava ajudando o Dillard a levar aquele
freezer velho para dentro da garagem dele. Quando tínhamos terminado, ele
me perguntou se eu gostaria de tomar uma cerveja com ele. É claro que eu
queria. Bem, uma cerveja virou duas, depois quatro, e eu não me lembro
direito do que aconteceu depois disso. Eu sei que catamos duas cadeiras de
jardim e enchemos a cara bem ali na garagem dele. Sei que depois de um
tempinho, ele começou a falar sobre a esposa dele, sobre o quanto ele sentia
falta dela. Ele foi ficando todo emocionado, mas a essa altura eu estava
bebaço, então só fui na dele. Ele sacou então uma caixa de costura da
prateleira, uma caixa toda chique, pintada com belas rosas vermelhas. E
disse que era da Ellen, abriu a caixa e lá estava uma foto dela no casamento
deles. Ellen era uma mulher bem bonita quando era nova, devo acrescentar.
Ele ficou com os olhos grudados na foto, como se quisesse entrar nela. Eu
sempre tinha ouvido falar que a mulher tinha limpado a conta bancária dele,
então murmurei alguma coisa sobre o quanto eu lamentava que a mulher
dele tivesse feito algo errado com ele. Então ele disse: ‘Ela também
lamenta’. E alguma coisa no tom dele me fez prestar atenção. Ele tirou a
parte de trás do porta-retratos e sacou dali uma foto instantânea. Ele ficou
olhando para a imagem por um bom tempo, com o rosto frio como pedra, e
depois a mostrou a mim. Era ela, a esposa dele. Ela estava morta. Sem
dúvida quanto a isso, e parecia que a morte dela havia sido feia. Ele me
disse: ‘Nunca uma mulher se lamentou mais sobre alguma coisa do que
ela.’ E o jeito como ele disse isso… oras, me deixou até com os ossos
congelados.”
“Caramba”, disse Lynyrd. “Que merda sinistra essa daí.”
“É, você está certo quanto a isso.” Chet olhou para Jesse. “E é por isso
que, se eu fosse você, Jesse, cacete, eu ficaria longe daquele cara. Nada de
bom resulta de mexer com ele… para ninguém não.”
O sangue latejava nos ouvidos de Jesse. Ele tinha ouvido os rumores,
mas ouvir Chet contar sobre o que ele vira em primeira mão fez cair a ficha.
Um calafrio foi subindo pela espinha de Jesse: sua filhinha estava morando
com um homem que era capaz de matar a sangue-frio. Do que mais ele seria
capaz? Jesse puxou o último pedaço da fita e puxou a mão dali,
conseguindo soltá-la por fim. Havia um buraco vermelho-escuro do
diâmetro aproximado de um lápis entre os ossos de seus dedos indicador e
médio, enchendo-se de sangue. Ele abriu e fechou a mão. Doía, mas os
dedos mexiam-se como deveriam.
“Parece que você deu sorte”, disse Chet. “Não pegou nos ossos. Mas eu
acho que você vai ter que se masturbar com a mão esquerda por um
tempinho.” Ele soltou uma bufada. “Vai saber… talvez você ainda consiga
tocar aquele seu violão.”
Pela primeira vez na vida, Jesse não se importava se poderia ou não
tocar violão, a única coisa que ele conseguia pensar era em Abigail sozinha
naquela casa com Dillard. Jesse forçou-se a ficar de pé, saiu aos tropeços do
recinto e foi até sua caminhonete. Ele puxou a porta com força, abriu-a e
entrou no veículo.
“Ei, Jesse.” Chet foi andando até a caminhonete, carregando o saco
cheio dos consoles de videogame. “Você esqueceu uma coisa.” Chet puxou
uma caixa de dentro do saco. “Você se importa se eu ficar com um deles?
Meu sobrinho vem me implorando por um desses o ano inteiro.”
Jesse ignorou-o, tentando caçar as chaves de dentro de seu bolso com a
mão esquerda.
“Jesse, só para que uma coisa fique clara. Ninguém lhe safou de fazer
aquela coleta essa noite.”
Jesse olhou com ódio para ele.
“Na escola… dando a volta pelos fundos, como de costume. Digamos,
às sete horas. Não nos deixe esperando. Ah, e faça um favor a si mesmo…
Dê ouvidos ao que o General estava dizendo e não faça nada idiota.”
Jesse olhou com desprezo para ele.
“Olha, seu merdinha, eu não estou falando isso por você. Estou falando
isso porque acontece que eu gosto da Linda e da Abigail e, com certeza, eu
odiaria se algo de ruim acontecesse a uma das duas. Falando sério. Que
diabos, sabe? Houve um tempo em que eu não teria ligado muito para o
falatório selvagem do General também, mas Jesse, depois do que vi
ultimamente, eu não forçaria a barra para cima do cara. Se ele ameaça
colocar sua filhinha dentro de um caixão, é melhor levar o homem a sério.
Encara a real, ele tem total controle sobre você. Então apenas nos poupa um
pouco de encrenca e fica de boa. Certo?”
Jesse não respondeu a ele, nem mesmo assentiu. Ele virou a ignição,
ignorando a dor pungente na mão enquanto colocava a caminhonete para
andar e saía de ré da viela, deixando Chet lá, parado, em pé, segurando o
saco de brinquedos.
Papai Noel olhou para trás, de relance, por cima do ombro. Os dois
meninos em suas bicicletas BMX ainda o estavam seguindo. Papai Noel
tinha encontrado um fio de transmissão de energia elétrica no fim da manhã
e seguira a trilha em direção ao oeste, o que o levara até um trailer; os dois
meninos estavam do lado de fora do trailer, pulando em um trampolim,
quando ele passou marchando por ali. Eles ficaram encarando o Papai Noel
até que não mais pudessem vê-lo. Agora, alguns quilômetros depois, ali
estavam, espiando em tomo de um arbusto denso, observando todos os
movimentos dele.
Eles vão precisar de um pouquinho de desencorajamento. Afinal de
contas, não seria bom ter crianças olhando enquanto o bom e velho Papai
Noel estraçalha Krampus e suas abominações.
Um guincho veio de longe aos ouvidos do Papai Noel, um som muito
bem-vindo. Ele procurou por alguma coisa no céu e deparou-se apenas com
nuvens pesadas. Ele sacou a trombeta de seu cinto e deu um curto sopro.
Um segundo depois, foi recompensado com um outro grito e a visão de
duas formas escuras voando nas nuvens, vindo em sua direção.
Eles aterrissaram em cima do galho retorcido de um carvalho caído, os
dois corvos, Huginn e Muninn. Os magníficos pássaros eram tão grandes
quanto qualquer águia, com suas penas pretas, lustrosas e brilhantes. Eles
deram uma espiada no Papai Noel com olhos curiosos e joviais.
“Vocês se lembram do Krampus? Sim, eu sei que se lembram dele.
Parece que ele não morreu nas trevas como deveria. De alguma forma, ele
saiu rastejando debaixo de sua rocha para causar danos, e danos de fato ele
causou. Agora, meu saco de Natal está perdido… está em algum lugar por
aí na cidade vizinha.”
Os dois grandes pássaros inclinaram as cabeças, questionando-se.
“Procurem pelas bestas, pelas abominações dele, os Belsnickels, pois
eles também haverão de estar à caça. Quando vocês os encontrarem, fiquem
junto deles como um presságio sombrio, guiem-me até eles com seus
gritos… pois minha espada está sedenta pelo sangue deles.”
Os corvos guincharam e assentiram, gesticulando que sim com as
cabeças, como qualquer pessoa.
“Vão, meus bichinhos. Encontrem-nos e mostrem-me o caminho até
eles.”
Os corvos gigantescos deram um pulo no ar, e ao se erguerem, suas
grandiosas asas levantaram folhas congeladas enquanto eles desciam a
colina, voando para longe. O Papai Noel ouviu um tinido, virou-se e
descobriu que os meninos haviam se aventurado a se aproximarem mais
dele, muito mais do que seria sábio fazer, sentados em suas bicicletas e
encarando-o. Papai Noel foi andando até eles. O menino mais novo parecia
estar prestes a fugir; ele olhou de relance, ansioso, para o menino mais
velho. O menino mais novo, um adolescente, com seus 13 ou 14 anos,
também parecia indeciso, mas se manteve firme no lugar.
“Pra que é que você está usando essa roupa?”, quis saber o adolescente.
“É”, comentou o menino mais novo. “Por que você está vestido com a
roupa do Papai Noel?”
“Porque eu sou o Papai Noel.”
O menino mais velho soltou uma bufada.
“Uma ova que você é o Papai Noel.”
Depois foi a vez de o menino mais novo também dar uma bufada. O
Papai Noel lembrou-se do motivo pelo qual ele odiava adolescentes: eles
faziam muito esforço para não acreditarem em nada. Faziam o possível para
estragar a magia de todos.
“Vão para casa.”
O adolescente piscou.
“Ei, isso daqui é um país livre. Você não pode nos dar ordens.”
“Essa bicicleta ai é nova?”
“Certamente que é”, disse o menino com um orgulho óbvio. “Ganhei de
presente de Natal. Iradíssima!”
“Você poderia fazer o favor de sair de cima dela?”
“O quê? Hein? Pra quê?”
“Para que você não esteja em cima dela quando eu a jogar da colina
abaixo.”
O Papai Noel assentiu em direção ao declive íngreme em um dos lados
da trilha que terminava lá embaixo em uma ravina de rochas quebradas.
“Está me ameaçando, senhor?”
O Papai Noel pegou a bicicleta do adolescente pelos guidões, enfiou a
bota nos raios da roda frontal e pisou, fazendo força para baixo, partindo
assim um dos raios da roda. O aro da roda da frente da bicicleta caiu.
“Ei!”, gritou o menino. “Ei, você não pode fazer isso!”
Ele levantou-se e, quando fez isso, o Papai Noel apanhou a bicicleta.
Ele ergueu-a sobre a cabeça e jogou-a colina abaixo. A bicicleta tombou,
pulou no ar e caiu com tudo sobre as rochas.
Os dois meninos ficaram ali, parados, boquiabertos, com os olhares
fixos na bicicleta lá embaixo.
“Creio que seria uma péssimo ideia para vocês dois se continuarem me
seguindo. O que acham?”
O Papai Noel não esperou por uma resposta, ele tinha que tratar de
assuntos urgentes. Virou-se e seguiu rapidamente pela trilha.
JESSE DESCEU a todo vapor com sua caminhonete pela rodovia em direção à
casa de Dillard, com o cenho franzido, o maxilar cerrado. Sem tirar os olhos
da estrada, ele inclinou-se para a frente, abriu o porta-luvas e tirou sua
pistola dali, colocando-a no assento a seu lado.
“Vou pegar a minha filha”, disse ele, em voz alta, como se estivesse
mesmo falando sério. “Vou atirar em todo mundo que ficar no meu
caminho.”
Mais ou menos um quilômetro e meio depois, ele estacionou no posto
de combustível Gas’n’Go.
“Que merda!”
Jesse pegou o revólver, ficou olhando feio para ele. Ouviu novamente a
voz de Dillard dizendo: Você não vai fazer isso, Jesse. Eu sei que não vai.
Se existe uma coisa em que sou bom é em medir um homem.
Jesse olhou para o buraco em sua mão.
“Vou atirar no General também”, rosnou ele. “Vou atirar em todos
aqueles escrotos!”
Só que essas palavras soavam ocas na cabine da caminhonete, fazendo
com que ele se sentisse pior.
Jesse desligou o carro, dirigiu-se para dentro do Gas’n’Go e foi até o
banheiro. Ele deixou água quente escorrer por sua mão machucada, lavou a
ferida da melhor forma possível. Abriu e fechou a mão, que estava
começando a ficar enrijecida, a carne escura em volta da ferida começava a
inchar. Ele envolveu a mão com papéis-toalha e ficou se perguntando se
algum dia seria capaz de tocar violão outra vez. Talvez o General tenha me
feito um favor. Talvez seja melhor que eu não consiga tocar. Que eu desista
por completo da música.
Ele voltou a entrar em sua caminhonete e decidiu que a melhor coisa a
ser feita agora era voltar para casa e tentar entender as coisas. Entender o
quê?, ele se perguntava e, mais uma vez, não conseguia tirar Dillard de sua
cabeça: Eu atiraria nele e o mataria sem pensar. Porque isso é o que um
homem de verdade faz.
Jesse voltou para a rodovia e, uns poucos minutos depois, estacionou no
King’s Kastle, passando por buracos lamacentos e espalhando lama para os
lados enquanto dirigia colina acima, tentando desanuviar a mente o melhor
que podia. Estava ficando tarde, Chet estaria esperando por ele na escola de
ensino fundamental dentro de poucas horas, e se ele não aparecesse as
coisas ficariam feias na hora. Não posso continuar fazendo esses corres.
Vou acabar na cadeia. O que eu deveria fazer? Que caralhos eu deveria
fazer?
Ele sacou o maço de cigarros do bolso de sua camisa e pescou um
cigarro dele, mas o maço estava vazio. Ele o esmagou no painel de sua
caminhonete, deixando cair umas migalhas de tabaco.
“Perfeito. Simplesmente perfeito.” Ele fez uma bolinha com o maço e
jogou-o no chão do veículo. “Bem, que merda, olha para aquilo.” Dois
pássaros enormes estavam circulando e voando baixo em cima de seu
trailer. A princípio ele achou que pudessem ser abutres, mas, conforme foi
se aproximando, ele pôde ver que eles pareciam mais corvos ou gralhas.
Jesse olhou de relance para seu trailer. “Que porra está acontecendo agora?”
A porta de seu trailer estava aberta. Ele captou sinais de movimentos no
interior do trailer e só conseguiu discernir uma silhueta encurvada lá dentro,
que estava procurando por alguma coisa nas caixas perto da porta, de costas
para ele. Ele trajava um casaco com o capuz puxado para cima e, embora
Jesse não conseguisse ver seu rosto, sabia quem era o visitante.
Jesse passou dirigindo por ali sem nem mesmo diminuir a velocidade,
como se morasse mais adiante na estrada, esperando que quem estivesse no
trailer não o tivesse visto. Era um beco sem saída, de modo que Jesse não
tinha escolha senão dar a volta. Ele estacionou sua caminhonete na entrada
de carros dos Tuckers, depois saiu de lá de marcha à ré, do jeito mais casual
possível, fazendo o melhor que podia para não chamar atenção para si. Foi
então que notou uma outra silhueta encapuzada, que se mexia em meio ao
matagal, dentre os pinheiros que ficavam atrás de seu trailer, com o rosto
abaixado, perto do chão, como se estivesse cheirando em busca de alguma
coisa. Jesse olhou de relance para o saco do Papai Noel no piso do veículo e
se perguntou se essas criaturas seriam capazes de sentir o cheiro dele de
alguma forma. Ele apanhou o saco, com a intenção de jogá-lo pela janela e
conduzir a caminhonete para longe dali, quando a silhueta se ergueu, com
uma das mãos com garras pendendo de um pulso estirado. A criatura
cheirou o ar e depois mexeu a cabeça na direção dele. A criatura usava
óculos de sol, mesmo com o dia cinza e nublado. O ser ergueu os óculos, e
não havia como não notar aqueles olhos: de uma coloração laranja ardente,
encarando Jesse, seguindo sua caminhonete enquanto ele se arrastava com
ela estrada acima.
Jesse empurrou o saco de volta para o chão, perto de seus pés, e lutou
contra a premência de meter o pé com tudo no acelerador.
“Fique calmo”, sussurrou ele. “Apenas mantenha a calma.”
O homem-diabo seguiu em direção à estrada. Jesse evitou olhar na
direção em que ele ia, mas podia sentir aqueles olhos, aqueles penetrantes
olhos cor de laranja que o encaravam enquanto ele passava. Um pouco mais
adiante agora. Só um pouco mais adiante agora. Ele continuava
acompanhando a criatura por seu espelho retrovisor enquanto saía na pista.
A criatura o seguia em um ritmo rápido. Jesse voltou os olhos para a estrada
e soltou um grito. Ali, no meio da estrada, havia mais um deles, uma das
criaturas com chifres, todo coberto de pelos e carregando uma lança.
“Merda!”, gritou Jesse, virando à esquerda.
A criatura bateu com a palma de uma das mãos na janela do lado do
passageiro, correndo ao lado da caminhonete e espiando dentro dela,
sorrindo, deixando os dentes sujos à mostra.
Jesse acelerou rapidamente. As rodas giraram na neve e nos cascalhos,
dando a ele um segundo para arrepender-se de penhorar seus pneus bons,
então os pneus da caminhonete ganharam tração e ela decolou, ganhando
velocidade rapidamente enquanto pulava para cima e para baixo pela
estrada esburacada. Jesse olhou de relance no espelho retrovisor: eles não
estavam mais lá. Algo caiu num som oco e pesado, atingindo a caçamba de
sua caminhonete, seguido de uma batida no teto da cabine do motorista.
A criatura desceu deslizando pelo para-brisa, indo parar no capô.
Novamente, a criatura voltou a Jesse aquele sorriso torto dela. Seus olhos
depararam-se com o saco do Papai Noel, ficaram arregalados, e arderam,
ganhando vida, como um fogo atiçado. A criatura colocou a cabeça para
trás e soltou um longo uivo que mais parecia um lamento, fazendo com que
todos os pelos do braço de Jesse ficassem arrepiados. Uivos em resposta
surgiram de todos os lados. A criatura recuou e golpeou o centro do para-
brisas com o punho cerrado, abrindo com o soco um buraco através do
vidro. Rachaduras espalharam-se pelo para-brisas como se fossem teias de
aranha. A criatura puxou a mão e a soltou, depois recuou para dar um outro
golpe quando Jesse virou com tudo para a esquerda, depois para a direita,
fazendo com que a caminhonete andasse em zigue-zague pela estrada,
arrancando a criatura do lugar onde estava, fazendo com que deslizasse
capô abaixo, segurando-se no limpador de para-brisas.
Adiante, mais dois homens-diabo vinham em direção à estrada
movimentando-se a passos longos.
“Pelo amor de Deus, eles estão por toda parte!”
A criatura que estava em cima do capô começou a se puxar para cima.
Jesse mudou abruptamente de direção, passando de propósito sobre um
buraco no chão. O solavanco jogou pelos ares o homem-diabo, que levou
consigo o limpador de para-brisas. O homem-diabo bateu num monte de
neve e sumiu cambaleando do campo de visão de Jesse.
As duas criaturas que estavam à frente dele iam muito depressa em sua
direção, tentando pará-lo. Jesse continuou pisando firme no acelerador. O
velho motor V8 agitava-se e rugia enquanto a caminhonete subia a colina a
todo vapor.
“Vamos!”, gritou ele. “Vamos!”
Jesse achava que estava no controle quando a besta que estava na frente
deu um pulo, voando pela neve, e bateu com tudo no lado do passageiro da
caminhonete. A caminhonete inteira estremeceu. A criatura segurou no
espelho retrovisor, agarrou a maçaneta da porta e puxou-a, escancarando-a.
As latas de lixo e o presépio de Millie estavam logo à frente deles. Jesse
virou o volante bruscamente e com força para a direita, em direção às latas
de lixo. O homem-diabo e a porta do lado do passageiro da caminhonete
bateram com tudo nas latas. Seguiram-se alguns segundos surreais quando
tudo parecia estar em câmera lenta. Jesse viu o homem-diabo, José, Maria e
o bebê Jesus voarem pelos ares, seguidos do lixo de Millie.
O homem-diabo bateu com força na cerca de piquete de Millie e seguiu
tombando pelo quintal dela.
Jesse foi embora em alta velocidade, descendo a colina em direção à
rodovia, com os buracos e os solavancos jogando a caminhonete de um dos
lados para o outro na pista estreita. Ele passou raspando por uma fileira de
caixas de correio perto do pé da colina, virou abruptamente sobre uma
sarjeta e disparou subindo pelo outro lado até a rodovia. Ele pisou nos
freios com tudo e os pneus traseiros da caminhonete acabaram entrando na
sarjeta da extremidade mais afastada da estrada. Jesse estava olhando para
trás, pelo caminho que seguira, e viu todos os cinco homens-diabo correndo
e pulando em sua direção, tão rápidos e ágeis quanto cervos, e seus olhos…
aqueles olhos lúgubres e assustadores, ardendo e fixos nele.
“Que droga!”
Ele pisou no acelerador, as rodas girando na lama; houve um segundo
em que ele soube que estava preso e tudo estava acabado, mas o velho Ford
continuou firme e forte, as rodas mordendo o asfalto, e ele saiu dali
guinchando os pneus.
Jesse avistou mais uma vez as criaturas bem longe, bem lá atrás na
rodovia. Eles não apresentavam nenhum sinal de que reduziam a
velocidade, nem desistiam, e naquele instante Jesse entendeu que não
importava o quanto corresse, ele nunca haveria de escapar daqueles olhos
ardentes; entendeu que eles haveriam de persegui-lo em meio a seus
pesadelos pelo resto de sua vida.
JESSE ESTAVA quase a 100 km/h, ignorando o vento frio e a neve úmida que
caía dentro da cabine do motorista através do buraco no para-brisa. O velho
motor V8 rugia e gemia, com um dos eixos ameaçando explodir. O coração
de Jesse ainda estava acelerado. A uns quinze quilômetros fora da cidade,
dirigindo-se ao sul, logo chegaria na divisa do estado, e isso estava bom
para ele, que não pretendia reduzir a velocidade até chegar no Kentucky, ou
talvez no México.
Jesse voltou os olhos para o saco do Papai Noel e olhou com uma
expressão endurecida para ele, como se o objeto o tivesse traído de alguma
forma. Sem diminuir a marcha, inclinou-se para a frente e rolou para baixo
o vidro da janela do lado do passageiro. Ele puxou bruscamente o saco do
piso do veículo e o jogou para fora da janela. O saco quicou pelo asfalto e
foi parar na sarjeta.
Ele estava farto de Goodhope, farto da Virgínia Ocidental, farto de
ensandecidos homens-diabos e seus ardentes olhos cor de laranja, farto do
General, farto de todas as merdas. E se Linda quer tanto assim se casar com
o calhorda daquele Dillard, se ela quer tanto assim a casa grande dele, o
carro grande dele… então ela pode ficar com ele. Ela pode ficar com tudo
aquilo!
Ele tentou se prender a isso, tentou não pensar além disso, mas havia
mais em relação a isso, algo de que ele não podia evitar, e lá no fundo ele
sabia disso. Ele concentrou-se na estrada, nas faixas amarelas pelas quais
passava voando, fez o melhor que pôde para tentar não ouvir o nome dela, a
voz dela… Papai. Jesse cerrou o maxilar e agarrou com tanta força o
volante que o buraco em sua mão começou a latejar.
Você ouviu o General. Você ouviu bem o que ele disse. Ele vai colocar
Abigail em um caixão.
“Ele não vai fazer isso. De jeito nenhum.”
E se ele fizer? Você consegue viver com isso?
Jesse soltou o pé do acelerador.
A velocidade da caminhonete caiu para 60 km/h… 45 km/h… 30
km/h… 15 km/h.
Não existe saída fácil. Não para você, Jesse. Nunca é fácil para você.
Ele saiu em uma revendedora de carros usados, que estava vazia, e
estacionou debaixo das fitas esfarrapadas. Letras desbotadas que
proclamavam uma liquidação de encerramento de atividades estavam
descascando na parede do showroom. Ele saiu da caminhonete e bateu a
porta com força. Havia uma fenda imensa na porta do lado do passageiro, o
espelho retrovisor já era, agora ele tinha apenas um limpador de para-brisas
e, claro, aquele buraco do tamanho de um punho no para-brisas da frente da
caminhonete. Ele notou que o pequeno Jesus de plástico de Millie Boggs
estava preso entre a traseira da boleia e a parte a frente da caçamba. O bebê
Salvador parecia olhar diretamente para ele e sorrir.
“Você está se divertindo?”, gritou Jesse para o boneco.
O bebê Jesus não respondeu.
“Não tenho certeza exatamente do que eu algum dia fiz para você. A
julgar pela forma como as coisas estão acontecendo, deve ter sido algo
horrível.” Jesse chutou a porta. “Sabe, não é como se eu já não tivesse que
lidar com merda o bastante.”
Jesse voltou os olhos para o buraco em seu para-brisas e soltou um
longo suspiro.
“Isso precisa ser arrumado.” Ele deu a volta na caçamba da
caminhonete, soltou a guarda traseira e ergueu o trinco da caçamba. Ele
empurrou seu violão para o lado, os sacos com os consoles de videogames,
e entrou rastejando ali. Seu saco de dormir, uma bolsa de lona cheia de
roupas de trabalho e as poucas bugigangas deixadas na caminhonete depois
que seu pai morrera estavam entulhados junto à cabine do motorista. Tudo
lixo velho demais e detonado demais para que ele pudesse vender ou
penhorar. Ele empurrou para o lado uma caixa de ferramentas e uma vara de
pescar, depois testou o peso do rifle de caça do velho. Ele tinha envolvido o
rifle em trapos cheios de óleo, para evitar que enferrujasse, e imaginou que
poderia usar aqueles trapos para fechar o buraco no vidro por ora. Ele
desenrolou a arma, empilhando os trapos no colo, e depois apenas ficou
segurando a espingarda, um rifle de repetição por alavanca, calibre .22,
passando a mão ao longo de sua empunhadura e de seu cano. A arma
parecia uma velha amiga e levou-o de volta ao vagar pelas florestas, quando
era jovem, caçando esquilos e coelhos… de volta a uma época em que suas
únicas preocupações pareciam ser evitar a comissão de jogos.
Um semitrailer passou por ele rugindo e Jesse olhou para fora de
relance. Ele notou que o crepúsculo já se aproximava e sentiu seu peito
ficar apertado. Eles estariam esperando por ele na escola em breve e se ele
não aparecesse teria mais do que os homens-diabo atrás dele.
“O que você vai fazer, Jesse?” Ele deu uns tapinhas no rifle. É só voltar
lá e atirar em todos eles e acabar com isso. Ele abriu um sorriso largo, mas
esse sorriso era totalmente desprovido de humor, pois Jesse sabia o que
realmente tinha que fazer, e sabia que não seria fácil. Você vai ter que pegar
a Abigail e depois cair fora daquele lugar e isso é tudo. Ir para o México,
ou talvez para o Peru, para algum lugar onde o General e a trupe dele
nunca o encontrariam. Ele não fazia ideia de como exatamente faria isso,
especialmente tendo apenas quatro dólares no bolso. Jesse balançou a
cabeça, colocou o rifle no lugar e então se tocou de que talvez o General
fosse a solução. Quando Jesse fazia um corre, ele também pegava o
pagamento da outra parte, geralmente na faixa de dois ou três mil dólares. É
só pegar a grana e cair fora. Ele assentiu. Deve dar tempo o bastante para
cuidar das coisas antes que o General entenda o que está acontecendo. Só
preciso ter certeza de que Dillard não esteja em casa. Ele mordeu o
polegar. Isso não deveria ser muito difícil. Atear fogo a uma caçamba de
lixo ou, melhor ainda, quebrar uma vitrine. Jesse sentiu uma pontinha de
esperança. Uma chance, não importando o quão pequena, era melhor do que
nenhuma chance. Apanhar Abigail enquanto Dillard estiver caçando
fantasmas.
“E Linda?” Ele franziu o cenho. Linda vai ser um problema. Um grande
problema. Ele balançou a cabeça. Vou contar tudo a ela e ela vai ver as
coisas como eu vejo. Ela vai ter que fazer isso. Um outro pensamento lhe
veio à mente. Talvez se eu conseguisse achar aquela foto de Ellen… Ele
assentiu, e seu coração foi ficando acelerado. Se ela visse aquela foto, talvez
até mesmo viesse conosco.
Só que…?
“Só que o quê?”
O que é que você vai fazer quando chegar ao México? Jesse olhou para
os dois sacos cheios de consoles de videogames. Não seria muito difícil
vender essas coisas lá no México. Ele pensou no saco que estava no
acostamento da estrada, simplesmente jogado lá, onde qualquer um poderia
vir e pegá-lo.
“Que merda, eu preciso pegar aquele saco.”
Jesse saiu rapidamente da caçamba da caminhonete, fechou-a com
força, deu a volta e entrou em um pulo na cabine do motorista. Ele enfiou
os trapos no buraco da janela, deu a partida no motor e dirigiu-se de volta à
rodovia.
Um minuto depois, ele puxava o saco do Papai Noel da lama, surpreso
com o fato de que a lama não ficara nem um pouco grudada nele, que nem
sequer estava úmido. Um guincho chamou a sua atenção; dois grandes
pássaros circulavam acima dele. Jesse levou um segundo para perceber que
eram do mesmo tipo de pássaros que ele tinha visto circulando seu trailer
antes, talvez até fossem os mesmos pássaros. Ele jogou o saco no assento do
passageiro e os pássaros começaram a grasnar. A aproximação do
crepúsculo lançava sombras escuras no bosque. Jesse pensou nos homens-
diabo, nos olhos deles. Ele subiu de volta na caminhonete o mais rápido
possível e dirigiu-se para a cidade.
JESSE PASSOU pela placa da zona sem drogas, diminuiu a velocidade e entrou
com a caminhonete no estacionamento da Escola de Ensino Fundamental
Sunny Hills, deu a volta até os fundos da lanchonete e estacionou perto das
caçambas de lixo. Ele notou que a luz do combustível estava acesa, deu dois
tapinhas nela, viu a luz tremeluzir e fez uma nota mental de informar a Chet
que se quisesse que ele fosse até Charleston e voltasse, era melhor dar a ele
um pouco de dinheiro para a gasolina.
Jesse desligou o motor e ficou com o olhar fixo no trepa-trepa. Ele
passara muitos recreios brincando no playground, na época em que
frequentava a escola Sunny Hills, quando ainda tinha sonhos de tornar-se
um grande e tolo tocador de violão.
Ele olhou de relance estrada acima. Onde diabos Chet está? Jesse não
gostava muito de ficar sentado em lugar nenhum por muito tempo, não com
aquelas coisas andando por aí. Ele queria um cigarro, alguma coisa para
acalmar os nervos. Procurou no bosque por algum sinal dos olhos cor de
laranja das criaturas. Estava escuro e quase todas as sombras e todos os
arbustos pareciam avançar para cima dele. Ele pegou sua pistola do assento
da caminhonete, abriu o tambor, conferindo se o revólver estava totalmente
carregado. Ele se perguntava se balas causariam algum dano contra alguma
coisa como aquelas criaturas, se perguntava se precisaria de balas de prata,
ou de água benta, ou de algo do gênero. Fechou o tambor da arma com um
tapa e colocou-a no bolso da frente de seu casaco. Ele notou que o saco do
Papai Noel estava à vista e tentou empurrá-lo mais para o fundo no chão da
cabine do motorista.
Se eu conseguir fazer isso, pensou ele. Tirar Linda e Abigail daqui,
então as coisas podem mesmo ficar boas. Poderíamos morar em algum
lugar quente, perto da praia, em algum lugar legal para uma menininha
crescer. Talvez até mesmo arranjar um espacinho para tocar minhas
canções. Não seria Memphis, mas também não seria o Condado de Boone.
Eu teria a minha família e não ferraria com as coisas dessa vez. Não,
senhor, não dessa vez.
Ele inclinou a cabeça para trás, cerrou os olhos e fez algo que não fazia
desde quando era um menininho.
“Senhor, se tiver um instante, apreciaria que me desse ouvidos. Eu sei
que não mereço sua consideração, mas, se o senhor pudesse pegar leve
comigo só um pouco que seja, só desta vez, pelo bem de Abigail, eu ficaria
tão grato. E, se o senhor fizer isso… eu juro que vou recompensá-lo de
alguma forma. Eu juro.”
Ele ouviu uma grasnada, abriu os olhos num estalo e sentou-se ereto,
com o coração batendo como um tambor em seu peito. Ele baixou o vidro
da janela e ergueu o olhar para espiar lá fora. Os corvos, os dois, estavam
circulando acima dele.
“Ah, isso não está certo. Nem um pouco.”
Ele esticou a mão para dar a partida e notou dois pares de faróis vindo
em sua direção.
A viatura de Dillard entrou e estacionou na entrada superior do
estacionamento da escola para ficar de olho nas coisas, para certificar-se de
que ninguém haveria de interferir em nada. O último modelo de Chevy
Avalanche de Chet, preto com janelas fumê, veio pela entrada inferior e
seguiu até onde Jesse estava estacionado.
Jesse sugou o ar, inspirando fundo.
“Vai de boa, Jesse. Não ferra com tudo.”
ISABEL PUXOU seu capuz para trás, tirou os óculos de sol e procurou algo no
céu. Ela não encontrou nenhum sinal dos corvos. Todos os cinco
Belsnickels estavam no penhasco, procurando no vale, com a pequena
cidade de Goodhope abaixo deles. A escuridão estava se aproximando
rapidamente debaixo das nuvens densas e baixas. Todos eles tinham
esperanças de que o homem na caminhonete não tivesse ido muito longe.
Todos também estavam cientes de que, se o homem tivesse deixado a área,
então haveria pouca chance de encontrá-lo antes que o Papai Noel ou seus
monstros o encontrassem.
Makwa fez um gesto em direção ao norte, e todos eles olharam para
aquela direção.
“Você está vendo eles?”, quis saber Vernon.
Makwa ficou mexendo o dedo, impaciente. Ele sabia falar inglês, todos
os três shawnees sabiam falar inglês, mas isso parecia deixá-los
incomodados. Makwa referia-se ao inglês como sendo a língua feia. Isabel
tinha desistido de aprender o idioma shawnee, achando que, se não
conseguira aprendê-lo depois de todos esses anos, então isso nunca haveria
de acontecer. Então, entre a teimosia dos índios e sua falta de habilidades
com idiomas, todos eles ficavam, muito frequentemente, reduzidos a
grunhidos e mímicas.
“Bem, não estou vendo coisa nenhuma”, disse Vernon, irritado.
Isabel também não conseguia ver nada, mas isso não queria dizer que os
pássaros gigantescos não estivessem por ali. Makwa tinha passado um bom
tempo com Krampus; Isabel achava que tinham sido pelo menos uns
quatrocentos anos, e, quanto mais tempo se passava em torno de Krampus,
mais a magia dele ia sumindo. Makwa olhou para eles como se eles fossem
simplórios, depois desceu a trilha, seguido dos dois irmãos, Wipi e Nipi.
Isabel e Vernon deram de ombros e foram atrás deles.
Todos os cinco atravessaram o bosque correndo. Não havia nenhuma
necessidade de esconder suas faces na crescente escuridão, e Isabel
regozijava-se com o vento invernal soprando em seus cabelos. O sangue de
Krampus corria pelas veias deles, aumentando notavelmente a força e a
estamina dos Belsnickels. Isabel conseguia correr mais rápido, pular mais
longe e correr infinitamente sem se cansar. Mas o sangue de Krampus fazia
mais do que isso: ele também abria os sentidos deles para a vastidão do
mundo de uma forma tal que nenhum mortal comum jamais poderia
conhecer. Ela podia sentir o cheiro das folhas que apodreciam debaixo da
camada de gelo, podia sentir o cheiro dos peixes no riacho, conseguia ouvir
uma família de esquilos aninhando-se bem lá em cima nos topos das
árvores, podia, na verdade, sentir a pulsação de vida correndo por baixo de
todas essas coisas. Forças ancestrais, pensou ela, mais velhas do que a
própria terra. E, quando ela corria assim, pulando e lançando-se pelo
bosque como um cervo, com seu coração e sua alma abertos para o espírito
da terra, Isabel descobria que quase conseguia esquecer-se de tudo que
havia sido roubado dela.
Eles seguiram por um riacho abaixo da rodovia, deram a volta em um
aglomerado de casas, depois subiram em uma barragem, saindo de entre as
árvores e dando em um campo atrás da escola secundária. Para Isabel, a
escola parecia a mesma coisa de quando ela a frequentara há mais de
quarenta anos. Ela ficou fitando as janelas escuras e perguntava-se se seu
filho também teria frequentado aquela mesma escola.
Makwa ergueu a mão e eles pararam. Ele apontou para as nuvens
escuras. Dessa vez, Isabel avistou dois pontinhos circulando o ar a cerca de
um quilômetro e meio de distância dali, perto da escola de ensino
fundamental, e captou os chamados deles ao longe. Seu coração ficou
acelerado.
“Ele ainda está aqui!”
Isabel sentiu suas esperanças aumentarem. Dessa vez, eles sabiam como
era a caminhonete do homem, como ele era. Agora ele não haveria de fugir.
Makwa balançou a cabeça, parecendo perturbado.
“Que foi?”, perguntou Isabel. “Qual é o problema agora?”
“Eles o estão chamando. Estão chamando o Papai Noel. Ele deve estar
aqui por perto.”
Os dois irmãos assentiram, concordando com ele.
“Ah, que maravilha! Isso é maravilhoso!”, disse Vernon, cuja voz soava
quase histérica. “O que faremos agora?”
“Nós o derrotaremos lá”, declarou Isabel.
“Isso é tudo muito bom, mas e se ele já estiver com o saco?”
“Então nós o tomaremos dele”, disse ela, nem um pouquinho feliz com
isso.
E as perguntas acabaram aí. Todos eles sabiam o que ela queria dizer
com aquilo. Krampus tinha dado a eles uma ordem direta. Krampus era
dono deles: o mesmo sangue que dava a eles a habilidade de correrem como
cervos também dominava suas vontades. Se Krampus exigisse que eles
mastigassem e arregaçassem com os dentes seus próprios pulsos enquanto
cantarolavam uma melodia, eles ficariam impotentes para fazer qualquer
outra coisa que não fosse isso. Krampus ordenara que eles trouxessem o
saco de volta a qualquer custo, então eles haveriam de tentar até seus
últimos suspiros, mesmo que isso significasse enfrentar as mandíbulas dos
monstros do Papai Noel.
“Estamos perdendo tempo”, disse Isabel e saiu correndo. Os Belsnickels
foram atrás dela.
Ela disparou com tudo e, enquanto corria, notava a beleza a seu redor,
os milhares de tons de azul e púrpura, saboreava o crepúsculo invernal em
todo o seu esplendor enquanto ele caía pelas montanhas, sabendo muito
bem que poderia ser seu último.
JESSE SEGUIU subindo por uma estrada de cascalhos; tratava-se de uma antiga
estrada de mineração e ele tinha bastante certeza de que ninguém estaria
naquele caminho. Se conseguisse encontrar algum abrigo, seria um bom
lugar para ficarem entocados até escurecer, até que pudessem arrumar
gasolina e talvez então ele conseguisse pensar em uma maneira de escapar
desse grupo de malucos.
Isabel abaixou o vidro de sua janela e colocou a cabeça para fora,
olhando para o céu.
“Os pássaros ainda estão nos seguindo.”
Jesse pisou com tudo nos freios, deslizou e parou nos cascalhos cor de
cinza.
“O que você está fazendo?”, perguntou-lhe Isabel.
“Cuidando de algo.”
Jesse soltou seu cinto de segurança, saiu da caminhonete em um pulo e
cruzou a estrada em direção a uma clareira.
“Ei”, disse Isabel. “Não podemos parar aqui.” Ela abriu a porta do lado
dela e foi atrás dele. “Temos que continuar seguindo em frente.”
Jesse protegeu os olhos com a mão, procurou pelos pássaros e avistou
ambos circulando acima deles na luz fria do início da manhã. Os
Belsnickels saíram da caçamba da caminhonete e olharam de Jesse para
Isabel.
“Precisamos fazer com que ele volte para a caminhonete”, disse Isabel.
Makwa foi andando, agarrou Jesse pelo braço e deu um puxão nele em
direção à picape. Jesse travou olhares com o grande shawnee.
“Eu não vou fugir.”
Jesse liberou seu braço e foi andando até a traseira da picape. Ele ficou
com o olhar fixo na caminhonete de seu pai, nas faixas de sangue e nos
pedaços de pele com pelos presos no alumínio contorcido da carroceria
destruída da caçamba. A guarda traseira já era e o para-choque traseiro
arrastava-se na estrada.
Jesse colocou um dos joelhos no piso da caminhonete e inclinou-se para
dentro dela. A criatura chamada Krampus estava lá, envolta na coberta,
perto da cabine, aninhando seu saco de veludo. Ele estava olhando para fora
pela janela lateral da caminhonete, para o céu, com os olhos distantes e um
meio-sorriso no rosto, como um bêbado em um bordel. Jesse notou seu
violão, a grande rachadura ao longo de seu corpo e os trastes que estavam
faltando.
“Droga”, sussurrou ele.
Seu pai e sua mãe tinham lhe dado o violão em seu décimo segundo
aniversário e, apesar de todo o resto que tinha acontecido, ver o violão
rachado foi um baque forte para ele. Só mais uma coisa para eu me sentir
pior… só isso. Jesse empurrou-o para o lado e rolou o saco de dormir para
alcançar o rifle de caça de seu pai. Ele apanhou-o junto da caixa de pesca e
deslizou-os para fora.
Vernon segurou o cano do rifle, mantendo-o apontado para o chão.
“Que diabos você está fazendo?”
“Solta.”
“Não vou fazer isso não.”
“Então nós só vamos ficar aqui sentados até os lobos voltarem. Até que
aquele camarada, o Papai Noel, consiga nos rastrear.”
“Deixe que ele fique com a arma.”
Ambos se viraram e depararam-se com Krampus, que se apoiava na
lateral da caçamba, com o olhar fixo voltado para cima, para os pássaros
que circulavam no ar acima deles. Jesse notou que a criatura chamada
Krampus parecia estar um pouquinho melhor, mais próximo agora de um
cadáver fresco, um cadáver que tivesse ficado no solo, digamos, por apenas
uma semana, e não alguns meses.
“Krampus, não”, disse Vernon. “Aquilo é um rifle… uma arma. Você
sabe o que…?”
“Eu sei o que é um rifle”, disse Krampus, com uma voz grave e bem
áspera.
“Bem, então por que diabos você deixaria que ele ficasse com um rifle?
Ele vai sair atirando em todos nós!”
Krampus continuou a fitar os corvos lá em cima, com uma expressão
triste nos olhos.
“Isso tem que ser feito.”
“O quê? Não, essa é uma ideia muito ruim. Não se pode confiar em um
homem como…”
“Deem a arma para ele. Isso é uma ordem.”
Vernon fez uma careta, como se tivesse sentado em um prego, mas
soltou o rifle. Jesse apoiou o rifle no joelho, abriu a caixa de pescaria e
escavou-a até que encontrou uma caixa de papelão com cartuchos. Ele
colocou quinze cartuchos no pente da arma, levantou o cano, assentando
uma bala pronta para disparar, depois cruzou a estrada em direção à
clareira.
Ele avistou os corvos, imaginando que estavam a uns sessenta metros
acima deles, sabia que seria um tiro fácil de acertar, sendo os animais tão
grandes, pelo menos com esse rifle. Se uma pessoa lida com uma arma por
muito tempo, a arma acaba se tornando uma extensão de si mesma, e Jesse
tinha passado metade de sua vida com essa arma calibre .22 do velho
Henry. Uma vez ele tinha atirado em um besouro-mangangá no ar com ela.
Ele ajeitou o rifle em seu ombro, avistou um dos corvos, preparou a mira
para compensar a distância e atirou. A arma disparou como se tivesse
levado um tapinha de um velho amigo, e uma rajada de penas foi pelos ares.
Foi uma matança certeira e o corvo caiu do céu. A ave remanescente soltou
um grito penetrante e começou a bater as asas com fúria, voando para
longe, mas Jesse já o tinha na mira. Ele puxou o gatilho duas vezes,
rapidamente, errando o primeiro tiro, mas acertando o segundo na asa do
pássaro, fazendo com que ele caísse em espiral com uma chuva de penas.
Jesse preparou a arma para dispará-la mais uma vez, virou-se e mirou
em Krampus.
“Saiam da minha caminhonete. Todos vocês.”
Os Belsnickels ficaram paralisados, todos eles com os olhos grudados
em Jesse. Porém, Krampus não olhou para ele nem mesmo de relance, só
ficou observando enquanto os grandes pássaros caíam com tudo no chão.
Um dos corvos caiu na clareira e o outro, cerca de uns cinquenta metros
estrada acima.
“Makwa, traga-me os pássaros.”
Makwa continuou encarando Jesse, cerrando e abrindo suas mãos fortes.
Jesse podia ver que o grande shawnee pretendia fazer picadinho dele.
“Makwa?”
O shawnee ficou duro.
“Isso é uma ordem.”
Makwa voltou um último olhar para Jesse, um olhar que lhe prometia
uma morte terrível, e subiu a estrada correndo.
Jesse apontou a arma para Krampus.
“Pega a porcaria do seu saco e cai fora da minha caminhonete. Não vou
falar duas vezes.”
Os quatro Belsnickels que ali ficaram espalharam-se para cercar Jesse,
que ergueu a arma na altura do ombro.
“Mais um passo e vou arrancar a cabeça dele com um tiro. Vão em
frente, caramba. Duvido!”
“Deixem-no para lá”, disse Krampus, com calma, cujo tom de voz
soava quase entediado, distraído até, enquanto ele ainda olhava para os
pássaros. “Recuem, isso é uma ordem.”
Os Belsnickels pararam, recuaram um passo e só ficaram ali, em pé,
trocando olhares confusos.
“Agora saia da minha caminhonete”, repetiu Jesse.
“Eu achei que você não fosse falar duas vezes…”
“Bem, certamente não vou falar uma terceira, caramba”, grunhiu Jesse.
“Com certeza.” Krampus virou o rosto para Jesse e sorriu. “Nós
precisamos da sua ajuda.”
“Não estou nem aí pra isso.”
“Pelo que ouvi, você parece ter muitos inimigos.”
“Isso não lhe diz respeito.”
“Talvez você precise da nossa ajuda, não?”, disse Krampus. “Talvez
existam maneiras de nos ajudarmos.”
“Acho que não.”
“Você viu os meus Belsnickels em ação. Você sabe do que eles são
capazes. E se eles estiverem sob o seu comando? Se houver sangue que
precise ser derramado, eles são muito capazes.”
Jesse começou a balançar a cabeça em negativa, e depois parou, olhou
para as criaturas-diabo, os Belsnickels, olhou para suas garras mortais, seus
aterrorizantes olhos cor de laranja, pensou em como eles tinham atacado
sua caminhonete, pensou em como eles eram rápidos e fortes, na facilidade
com que eles tiraram Chet da parada e mataram Lynyrd. Criaturas furtivas
da noite… eles poderiam matar os rapazes do General antes mesmo de eles
saberem que estavam lá. Jesse sabia que, depois da forma como as coisas
haviam acontecido na noite passada, o General já teria emitido sua sentença
de morte. Ele tinha ouvido Chet gritando que se tratava de uma armação,
sem dúvida que todos eles veriam as coisas dessa forma, e não havia
explicação de sua parte que pudesse mudar isso. Ele também sabia que o
General colocaria um preço em sua cabeça, ofereceria uma recompensa a
qualquer um que lhe dissesse onde Jesse estava, contaria com todos os
recursos para ir atrás dele. Porém, acima de tudo, o General tinha deixado
claro que, se algum dia Jesse o traísse, ele machucaria Abigail, que a
colocaria em um caixão. Jesse tinha certeza de que eles já a tinham pegado
e, muito provavelmente, a haviam levado para o local onde se escondiam.
Ele não conseguia deixar de pensar em como ela devia estar assustada.
“Tem uns caras malvados atrás da minha filha”, disse Jesse. “Eu preciso
me certificar de que ela esteja a salvo.”
Krampus assentiu.
“Entendo.”
“Tem mais coisas em relação a isso. É complicado. Eu preciso me
certificar de que eles nunca mais vão machucá-la.”
“Homens mortos não podem machucar ninguém.” E Krampus sorriu.
Jesse pensou em como suas chances seriam boas se ele aparecesse no
complexo do General sozinho com seu velho rifle contra uma dúzia ou mais
de homens armados até os dentes, homens com armas automáticas.
“Sou muito bom em punir os maus. Nós podemos matá-los… Podemos
fazer com que sumam.”
Krampus apontou para dentro da caçamba, para o saco de veludo.
“O que você quer dizer com isso?”
“Eu quero dizer que eu sou o mestre do saco. Eu posso ordenar que ele
se abra para qualquer lugar que eu desejar… qualquer lugar deste mundo ou
de outros mundos. Nós podemos mandar os seus amigos para o fundo do
oceano, para o reino dos mortos se você preferir.” O sorriso de Krampus
ficou sinistro.
Jesse tentou entender isso. Ele não tinha considerado o que aconteceria
se colocasse alguma coisa dentro do saco, não tinha pensado em onde
haveria de ir parar. Ele achou esse pensamento perturbador, mas, se fosse
verdade, se qualquer coisa que essa criatura prometesse fosse verdade, com
certeza isso haveria de simplificar as coisas, poderia até mesmo fazer com
que ele nem fosse preso. Só que… Como é que alguém confia em um
diabo? Ele ficou olhando intensamente para Krampus.
“Como você pode confiar em mim?” Jesse ficou alarmado com a
facilidade com que Krampus lia sua mente. “Você já salvou a minha vida
uma vez. Por que eu não o ajudaria?”
Jesse deu-se conta de que tudo se resumia a arriscar-se. As chances de
conseguir salvar sua filha sozinho em comparação com as chances de que
essa criatura, esse diabo, realmente viesse à sua ajuda. Talvez essa seja uma
oportunidade. Talvez valha a pena pelo menos tentar uma vez que seja.
Makwa retornou, segurando os dois pássaros pelos pescoços. Ele voltou
um olhar sombrio para Jesse. Um dos pássaros ainda estava vivo e Krampus
esticou a mão para ele. Jesse sabia que os pássaros eram grandes, muito
maiores do que qualquer corvo que já tivesse visto na vida, mas, ao ver os
pássaros assim de perto, ele ficou assombrado. Eles eram tão grandes
quanto um abutre ou uma águia, pelo menos. O pássaro se debatia na
pegada de Krampus, grasnava e tentava mordê-lo e bicá-lo.
“Huginn”, arrulhou Krampus baixinho para o pássaro. “Huginn, tenha
coragem.” Krampus inclinou a cabeça e sussurrou baixinho, de uma forma
tranquilizante, junto ao ouvido do pássaro, que começou a acalmar-se.
Krampus aninhou-o, acariciando com gentileza suas penas pretas. A
respiração do pássaro ficou mais lenta e seus olhos se fecharam. Krampus
deu um beijo no topo da cabeça dele. “Eu sofro vendo você assim. Tanto
você quanto seu irmão serviram bem a Odin.”
Ele fez carinho no bico do corvo, em sua cabeça. O pássaro inflou as
penas e encostou-se no peito de Krampus, que deslizou os dedos em volta
do pescoço dele e o torceu rapidamente e com força. Jesse ouviu um estalo
e o pássaro ficou imóvel. Krampus abraçou o pássaro e Jesse pôde ver a
aflição no rosto dele.
“Tão poucos dos antigos ainda estão vivos”, disse Krampus quase para
si mesmo. “E agora nós temos dois a menos.” Seus lábios começaram a
tremer. “Este feito recai sobre você, Papai Noel. Mais um assassinato para
acrescentar a sua lista, mais uma morte a ser vingada.” Krampus deu um
beijo no topo da cabeça do corvo mais uma vez e depois deu uma mordida
no crânio do pássaro.
“Minha nossa”, disse Jesse, e recuou um passo.
Krampus mastigava ruidosamente, triturando os ossos entre seus dentes.
Ele engoliu e olhou na direção do céu.
“Obrigado, Odin. Obrigado por este grande presente… por esta
generosidade do seu sangue em meus momentos de necessidade.”
Ele limpou os lábios e deu mais uma mordida, depois outra, então mais
uma, enquanto o sangue do corvo escorria por seu queixo e por seu peito.
Jesse olhou de relance para ver se os Belsnickels estavam tão chocados
quanto ele, mas eles agiam como se nada de incomum estivesse
acontecendo. Krampus comeu não só a carne e as entranhas do pássaro, mas
também o bico, os ossos e as garras. Ele desceu deslizando da traseira da
caminhonete e, no chão, pegou o outro pássaro, agachou-se e ficou
mastigando até que tivesse consumido todas as suas penas.
Os primeiros raios do sol raiaram por cima da montanha, reluzindo na
neve. Krampus levantou a cabeça e banhou-se na luz. Ele soltou um
profundo gemido, e Jesse notou a mudança: a pele da criatura estava
adquirindo pigmentação bem diante dos seus olhos, escurecendo de um
cinza quase translúcido para o preto. Sua carne e seus ossos pareciam
ganhar substância.
Krampus segurou-se no para-choque e puxou-se para cima em pés que
ainda estavam instáveis, apoiando-se na caminhonete. Era evidente que
ainda estava longe de ficar saudável, mas agora era uma besta muito mais
formidável do que a criatura que estava aninhada na coberta. Ele olhou para
Jesse e para a arma como se estivesse fazendo isso pela primeira vez.
“O que era que estávamos discutindo?”
“Sobre como você poderia me ajudar a me livrar de uns lixos aí.”
Krampus sorriu, limpou a mão no rosto, nos pelos de seu queixo, olhou
para o sangue que manchava seus dedos e ofereceu a mão a Jesse.
“Não existe nenhum pacto mais forte do que aquele selado com
sangue.”
Jesse ficou olhando para o sangue.
“O que você precisa que eu faça?”
“Eu preciso de um lugar para me esconder. Um lugar onde eu possa me
curar, onde eu possa me preparar. Preciso de um rosto menos escuro e de
olhos que não sejam reluzentes para conseguir pegar uns poucos itens de
necessidade. Só isso.”
“E por isso você vai me ajudar a pegar minha filha? Vai matar aqueles
homens que a pegaram?”
Os olhos de Krampus reluziam.
“Faz muito tempo desde a época em que eu era terrível. Sinto
muitíssima falta disso. Será um ótimo presente ver o medo nos olhos deles,
ouvi-los implorando por suas vidas, banquetear-me no sangue e nos gritos
de morte deles.”
“Banquetear-se nos gritos de morte deles”, disse Jesse, como se
estivesse saboreando as palavras. “Gosto de como isso soa.” Ele apoiou o
rifle na caminhonete, foi andando até Krampus e pegou na mão estendida
dele.
Jesse estava fazendo um pacto com o diabo e não se importava nem um
pouquinho com isso.
LINDA OUVIU a porta da frente se abrir, colocou seu café de lado e espiou
para fora da cozinha. Dillard entrou carregando Abigail em um de seus
braços. Ela estava envolvida em seu cobertor, ainda de pijama, adormecida
junto ao peito dele.
Linda começou a perguntar que diabos ele estava fazendo com Abigail a
essa hora da manhã quando outra pergunta veio com tudo em sua mente:
será que teria acontecido alguma coisa com sua mãe?
Dillard levou um dedo aos lábios e entregou Abigail a Linda. A menina
murmurou alguma coisa, irritada, apertou a pegada em sua boneca e voltou
a dormir.
“Dillard”, sussurrou Linda. “O que foi que aconteceu?”
“Coloque ela na cama. Eu explico.”
Linda não gostou nem um pouco da expressão no rosto de Dillard. Ela
levou Abigail para o quarto dela, arrumou-a na cama e logo voltou para a
sala, onde encontrou Dillard sentado à mesa, aquecendo as mãos em volta
de uma fumegante xícara de café.
“O que foi que aconteceu?”
Dillard deu uns tapinhas na cadeira ao lado dele.
“Sente-se aqui, Linda. Nós precisamos conversar.”
A austeridade na voz dele pegou-a desprevenida.
“Ok… certo.”
Ela sentou-se, abraçou-se e então notou que ele estava com as chaves
dela.
“Dillard, docinho, você está me assustando. O que está acontecendo?”
“É o Jesse.”
“Jesse?” Isso deixou-a abalada por um instante. “Ah… ah, não. Aonde
ele foi e o que foi que ele fez agora?”
“Ele ameaçou matar você e a Abigail.”
“O quê?” Ela levantou-se de novo. “Do que você está falando?”
Dillard tomou um gole de seu café.
“Jesse teve um surto de comportamento violento ontem à noite.”
“Jesse? Não. Está tudo bem com ele? O que foi que aconteceu? Dillard,
ele está bem?”
“Não é com ele que você deveria estar preocupada”, disse Dillard, em
um tom mordido. “Já vi isso vezes demais antes. Separações amargas que
acabam levando as pessoas a fazer os piores tipos de coisas umas com as
outras.”
“Dillard, só me conta o que aconteceu.”
“Jesse não aceitou bem as notícias.”
“Que notícias? Dillard, do que você…?”
“Sobre o nosso casamento e tal.”
Linda voltou a sentar-se.
“Espera. Como foi que ele ficou sabendo disso… Você contou isso a
ele?”
Dillard a olhou como se ela fosse uma criança. Linda odiava esse olhar.
“Dillard… não! Não era para você ter feito isso.” Ela lutava para não
perder totalmente o controle. “Você não tinha nenhum direito de fazer isso.
Isso era só entre nós dois.” Ela olhou com ódio para ele. “Caramba, nós
nem mesmo firmamos nada ainda. Não cabia a você fazer…”
Ele cerrou uma das mãos no pulso dela. Ele arregalou os olhos, sua boca
estava apertada.
“Isso precisava ser feito. Então eu fiz.”
Ela começou a responder e então captou a expressão no olho dele: uma
profunda frieza que a deixou assustada. Ele apertou a pegada no braço dela.
“Dillard, me solta. Você está me machucando.” Com força, ela
conseguiu soltar os dedos dele de seu pulso e afastá-lo. “Agora, por favor,
me conte o que aconteceu.”
Ele fechou bem os olhos, inspirou fundo e, quando abriu os olhos
novamente, parecia recomposto.
“Jesse encontrou-se com Chet e Lynyrd na noite passada, procurando
fazer algum serviço para o General. Eles disseram que ele parecia
desesperado e agitado, acharam que ele poderia estar drogado. Disseram a
ele que o General não queria mais que ele fizesse nada para ele, que fosse
procurar trabalho em algum outro lugar. Bem, Jesse não aceitou isso lá
muito bem. Começou a reclamar e a xingar o General, xingando a mim, a
você, Jesus e todo o resto da Criação. Quando Chet e Lynyrd tentaram
acalmá-lo, ele sacou a arma, ameaçou atirar neles. Disse que preferia ver
você e a Abigail mortas em vez de outro homem ficar com você. Deu uns
tiros para o ar, entrou em sua caminhonete e saiu dirigindo.”
Linda cobriu a boca.
“Chet me ligou na noite passada e me transmitiu o aviso. Fiquei
tentando a noite toda rastrear o Jesse.”
“Oh, meu Deus!”
Linda plantou as duas mãos na mesa para estabilizar-se.
“Linda, esse não é o Jesse que você conhecia. Ele está perturbado,
instável. Não temos como dizer o que ele seria capaz de fazer.”
Linda balançou a cabeça em negativa, sem conseguir acreditar em nada
daquilo. Jesse tinha feito um monte de coisas doidas, mas ele nunca erguera
um dedo que fosse para ela ou Abigail… nem para ninguém, não que ela
conseguisse lembrar, a propósito.
“Linda, eu preciso que você me ajude aqui. Preciso saber que posso
contar com você.”
Ela assentiu rapidamente.
“É claro, eu vou fazer o que puder. O que é que…?”
“Eu preciso que você fique em casa até que eu lhe diga que pode sair.
Você pode fazer isso?”
Não, ela pensou. Preciso encontrar Jesse. Preciso falar com ele.
“Eu preciso encontrar Jesse antes que alguém se machuque”, continuou
Dillard. “Antes que o próprio Jesse se machuque, machuque você ou a
filhinha de vocês. Agora mesmo, aposto que Jesse está na caminhonete dele
em algum lugar, dormindo para recuperar-se de uma bebedeira das brabas.
Eu gostaria de pegá-lo antes que ele fique com o sangue quente de novo.
Levá-lo para esfriar os ânimos em uma cela por alguns dias. Talvez assim
ninguém saia ferido. Seria bem mais fácil se eu soubesse que você e Abigail
estão bem aqui.”
“Dillard, não há necessidade de se preocupar conosco. Jesse só estava
perturbado. Eu juro a você que ele é todo cheio de conversa, só isso. Jesse
nunca machucaria a Abi. Nunca.”
“Talvez sim, talvez não, mas você consegue me dizer com certeza que
ele não pegaria Abigail e fugiria com ela se tivesse essa oportunidade? Você
tem total certeza disso?”
Linda começou a responder, e então não disse nada, porque não podia
afirmar nada com certeza.
“Só não vejo por que…”
Dillard estava olhando para ela daquele jeito de novo, como se ela não
soubesse amarrar os cadarços de seus próprios sapatos.
“Bem, deixe-me esclarecer ainda mais as coisas para você. Eu não
consigo fazer o meu trabalho se eu ficar me preocupando com onde você e
Abigail podem estar.” Linda podia ouvir a crescente irritação na voz dele.
“Vocês não podem ficar na casa da sua mãe, porque a casa dela é muito
afastada da cidade. Eu preciso que vocês fiquem aqui, onde eu posso ficar
de olho em vocês. Ok? Você acha que consegue me fazer esse favorzinho?”
Linda inspirou fundo e tentou deixar isso para lá. Ele está perturbado,
ficou acordado a noite toda. Só está preocupado comigo e com Abi. Só isso,
vou deixar isso pra lá por ora.
“Ok”, disse Linda. “Ok.”
“Que bom.” Dillard levantou-se, puxou seu casaco no lugar e foi em
direção à porta. “Só fica aqui quietinha. Noel está cobrindo a vizinhança,
então ele vai ficar de olho nas coisas até eu voltar. Sendo assim, contanto
que vocês fiquem aqui, tudo ficará bem.”
Só foi depois que Dillard tinha saído com o carro, Linda se deu conta de
que ele havia levado suas chaves e trancado a porta pelo lado de fora. Ela
esfregou o lugar onde ele a tinha segurado, sem parar de pensar no modo
como os olhos dele tinham ficado tão frios. Ela estava se questionando se
talvez houvesse apressado as coisas, se essa bela casa e o carro novo tinham
tomado mais fácil para ela ignorar os rumores sobre a primeira esposa de
Dillard.
ISABEL FOI ANDANDO com Jesse ao longo da estada de cascalho, feliz por
estar do lado de fora daquela igreja que fedia a mofo. Era noite e eles
estavam se dirigindo a um mercadinho chamado Pepper’s, que Jesse disse
que ficava a uns três quilômetros descendo a Rota 3. Eles tinham decidido
ir até lá andando em vez de arriscar-se a deixar que alguém visse a
caminhonete ou que o veículo ficasse sem combustível. Jesse carregou a
lata vazia de gasolina que ele tinha na picape, visto que gasolina era uma
das coisas que Krampus não conseguia tirar do saco.
“Cara, o que eu não daria para ver a cara do General quando ele ficar
cara a cara com aquela cabeça de vaca”, disse Jesse, rindo. “Mais de quatro
mil dólares… sumidos! Puff! Aquele cara vai se mijar!”
Isabel balançou a cabeça, distraída, analisando as sombras, mantendo o
ouvido antenado em relação a qualquer som suspeito, a qualquer sinal ou
indício de que o Papai Noel ou os lobos pudessem estar por perto.
Jesse deu um leve empurrãozinho nela.
“Ei, vamos lá, é divertido. Estou lhe dizendo! Você tem que entender
que aquele homem é o maior filho de uma puta em todo o Condado de
Boone. Que diabos, talvez seja o maior filho de uma puta em toda a
Virgínia Ocidental!”
Isabel abriu um sorriso. Ela gostava quando Jesse olhava para ela,
gostava dos olhos verdes dele, da linha de seu maxilar, porém, ela gostava
mais ainda da risada dele, benevolente e cálida e cheia de vida. É legal,
pensou ela, dar uma volta com alguém que não seja tão antigo quanto as
colinas. Não tem mal nenhum que ele seja agradável à vista, admitiu ela.
Nem um pouco. Considerou como seria segurar na mão dele. Fazia um bom
tempo que ela havia ficado de mãos dadas com alguém. Não desde seu
Daniel, e agora fazia mais de quarenta anos. Mas ela sabia que este homem
não ia querer ficar de mãos dadas com ela; ela sabia o que parecia ser agora.
“Ok, então você tem que me ajudar aqui”, disse Jesse. “Meu Deus, por
onde será que eu começo? Nada disso faz um pingo de sentido. Papai Noel,
lobos gigantes e… merda, que diabos é aquele cara, aquele Krampus?
Como diabos você acabou indo parar com aquele demônio?”
“Ele não é um diabo.”
Jesse parou de andar.
“Espera, eu entendi alguma coisa errada aqui? Você não é escrava dele?
Ele não fez isso com você?” Jesse fez um gesto, apontando para o rosto
dela. “Transformou você em um monstro?”
As bochechas de Isabel estavam fervendo. Ela desviou o olhar, surpresa
com o quanto as palavras dele doeram.
“Ele salvou minha vida”, disse ela, puxando para cima o zíper de sua
jaqueta e colocando o capuz sobre sua cabeça, escondendo sua face na
sombra do capuz. Ela continuou andando, deixando-o ali, parado.
Jesse acompanhou os passos dela.
“Bem, isso ainda não dá a ele o direito de fazer de você escrava dele.”
“As coisas não são bem assim. Você não entenderia…”
“É porque não faz nenhum sentido.”
“E eu não sou nenhum monstro. Eu sou uma mulher. Se você não fosse
tão cabeçudo seria capaz de ver isso.”
Jesse levou as mãos para cima.
“Eu não quis dizer isso…”
Isabel foi andando mais rápido, deixando-o para trás.
“Ah, vamos, Isabel. Anda mais devagar. Eu sinto muito.”
“Eu tentei me matar, ok? Eu seria ossos no chão também se não fosse
pelo Krampus.”
“Se matar? Bem, por que você ia fazer uma coisa dessas?”
“Isso realmente não é da sua conta. É?”
Jesse franziu o cenho e assentiu.
“Você está certa. Sinto muito. Isso não é nada da minha conta.”
Ela continuou andando.
“Eu não pretendia me meter na sua vida, nem nada”, disse ele. “Só
estava tentando entender essa coisa toda. Estou falando sério, me desculpa.”
Isabel diminuiu o passo e sugou fundo o ar frio da noite.
“Eu me meti em uma situação ruim. Parecia que as coisas só pioravam.
Acho que tentei a saída mais fácil, ok?”
“Isabel, você não precisa se explicar para mim…”
Eles continuaram andando em silêncio. Isabel queria dizer mais coisas,
ansiava por falar com alguém que não fosse Vernon e os shawnees, alguém
jovem, alguém com olhos límpidos e empáticos. Mas se abrir nunca foi algo
fácil para ela, e ela não conhecia este homem. Só porque ele tinha uma
risada cálida e olhos bondosos, isso não queria dizer que poderia confiar
nele. E não se começa a falar para algum estranho sobre como você ficou
grávida aos 16 anos, não se não estiver preparada para que ele olhe para
você como se fosse um lixo das colinas. Mas não tinha sido uma coisa
desimportante, com qualquer um. Talvez se fosse assim, a coisa toda teria
sido mais fácil. Isabel sentiu lágrimas ardendo em seus olhos e piscou
rapidamente para livrar-se delas. Não comece. Apenas conte uma mentira a
ele, menina. Sempre a pegava desprevenida o quanto isso ainda doía,
mesmo depois de todos esses anos. Ela tentou não pensar no bebê dela
crescendo sem mãe. Em como, talvez, se ela tivesse sido mais forte, estaria
com ele agorinha mesmo.
“Eu tinha 16 anos quando fugi de casa, quando fugi de tudo. Eu não
estava pensando direito e me encontrei aqui, nessas colinas. Era inverno,
estava frio, e eu não sabia o que fazer. Eu não conseguia ver como consertar
as coisas que eu tinha feito. Caminhei até um despenhadeiro, olhei para as
pedras lá embaixo e lá estava minha resposta… a resposta para todo o
sofrimento e toda a dor de cabeça.” Isabel viu-se chorando. “Eu gostaria de
ter mais presença de espírito. Eu me sentia mal em relação a tudo… tão
mal… Só queria que toda aquela dor acabasse.” Ela secou as lágrimas.
“Droga, eu não queria ficar assim, toda chorona.”
Jesse colocou um braço em volta dela. Fazia anos que Isabel não era
tocada por ninguém, não assim. Ela cobriu o rosto e começou a chorar e a
soluçar.
“Olhei para as estrelas”, disse ela. “Implorei ao Bom Senhor que me
perdoasse e fui andando por aquele penhasco para me jogar.”
“Meu Deus, Isabel.”
“Bem, eu deveria ter escolhido um penhasco mais alto, porque aquela
queda… não me matou.” Ela soltou uma risada feia. “Só quebrou um monte
de ossos. Eu não conseguia me mexer. Só fiquei lá jogada, chorando e
gritando. A dor era horrível.” Ela afastou-se de Jesse e limpou o rosto na
manga de sua blusa. “Bem, foram os shawnees que me encontraram. Eles
me levaram até o Krampus. Acho que quebrei alguma coisa na coluna,
porque eu só conseguia mexer um braço, não conseguia sentir nada da
cintura abaixo. As coisas estavam ficando nebulosas na minha cabeça.
Creio que eu estava morrendo. E foi então que Krampus me mordeu.”
“Ele mordeu você?”
“Hum-hum. É assim que ele faz isso. Que transforma as pessoas. Tem
alguma coisa a ver com isso de misturar o sangue dele ao das pessoas, pelo
menos é o que ele diz. Seja como for, isso salvou a minha vida. Me curou
na hora. Uns dois dias depois, eu estava andando de novo. Só que isso não
foi tudo…” Ela estirou as mãos, olhou para as unhas pretas irregulares que
saíam de seus dedos escamosos. “Nem sempre eu tive a aparência de um
monstro, sabe? Minha pele costumava ser bonita e eu tinha longos cabelos
vermelhos. Tinha alguns belos vestidos também.”
Eles caminharam um bom tempo sem que nenhum dos dois falasse
nada.
“Então é por isso que você continua com ele, porque ele salvou sua
vida?”
Ela olhou para cima, para a noite, deixando a neve leve cair em seu
rosto.
“Não”, disse ela, sabendo que iria procurar seu filho se pudesse. Ela
sabia que seu menino deveria ter uns 40 e poucos anos agora, que ele não a
reconheceria e que provavelmente também não ia querer isso, não depois de
ter sido abandonado por ela. Mas Isabel certamente gostaria de ver como
ele se saíra. Ver se ele tinha os olhos do pai. “Eu iria embora nesse minuto,
se pudesse.”
“Bem, e o que está impedindo você de fazer isso?”
“Krampus proibiu a gente de ir à cidade. De chegar perto das pessoas,
se pudermos evitar. Não quer que ninguém nos veja. Ou, pelo menos, não
queria. Sabe, quando ele estava acorrentado. Ele mandava um de nós à
cidade de vez em quando para roubar um jornal, para fazer uma incursão na
biblioteca em busca de alguns livros sobre o Papai Noel, ou talvez se
houvesse alguma outra coisa estranha que precisássemos e não
conseguíssemos fazer por nós mesmos.”
“E, deixe-me adivinhar… Existe algum motivo para que vocês tenham
que obedecer, certo? Ele colocou algum feitiço em vocês? Hipnotizou
vocês?”
Ela assentiu.
“Basicamente é isso aí. Uma vez que nos transformamos, quando ele
nos dá um comando direto, não conseguimos fazer nada além de obedecê-
lo. É como tornar-se uma marionete. A gente não pensa mais, só faz.”
“E ele ordenou que vocês ficassem por perto dele, entendi.”
“Ele fez com que a gente jurasse, sabe, que não vamos fugir, que vamos
protegê-lo, cuidar dele, e coisas do gênero.”
“Não sobra muita vida para uma jovem.”
“Eu tento não pensar demais nisso.”
Ela podia ver a placa do minimercado agora, brilhando pouco mais de
duzentos metros à frente.
“O que ele é?”, perguntou Jesse.
“Krampus?”
Ele riu.
“De quem mais eu estaria falando?”
Isabel abriu um sorriso.
“Eu não saberia dizer ao certo. Os shawnees acham que ele é um deus
da floresta. Caramba, eles são tão malditamente apaixonados por ele que
Krampus nem precisaria tê-los transformado. Eu acho que ele fez isso para
que eles não envelhecessem. Makwa me falou que todo o povo dele
costumava levar oferendas para Krampus desde bem antes de os
colonizadores aparecerem por aqui.”
“E Vernon, acho que ele não se voluntariou, certo?”
Ela deu uma risada.
“Ele estava supervisionando as coisas para a empresa de carvão no
início do último século. Encontrou-se com Krampus por acaso. É claro que
Krampus não permitiu que ele fosse embora depois disso. Então o sortudo
do Vernon está preso com aqueles índios teimosos como companhia faz
quase um século. E se você lhe der meio que uma chance, ele vai ficar feliz
de tagarelar ao seu ouvido sobre isso, estou dizendo.”
Eles aproximaram-se da loja, dando a volta por um montinho de neve
suja empilhada ao longo de uma das extremidades do estacionamento, e
pararam à sombra de uma caçamba de lixo. Isabel ficou fitando através da
grande janela da frente para as mercadorias lá dentro do mercadinho. Eles
vendiam uma pequena seleção de comida e outros artigos de mercearia e
coisas básicas para a casa, assim como artesanatos locais e lembrancinhas:
rolinhos de pecã, geleias, linguiças e carne-seca, colchas, chapéus de pele
de guaxinim, chaveiros, ímãs e joias indígenas feitas na China. Ela não
entrava em uma loja desde antes de ficar grávida e ficou pasma com as
cores dos mostruários e as embalagens chamativas. Eu não me importaria,
pensou ela, em passar um tempinho aí dentro. Não me importaria nem um
pouco.
Jesse sacou um rolo de notas do bolso do peito de sua camisa e folheou-
as.
“Caramba, são notas de cem.” Ele deu uma bufada. “Nunca achei que ia
chegar um dia em que eu me pegaria reclamando por ter muitas notas de
cem. Ah, aqui.”
Ele pegou uma nota de cem e duas de vinte, guardou o restante e
dirigiu-se para dentro da loja. Isabel continuou nas sombras. Jesse parou e
olhou para trás.
“Ah, sim… acho que você tem que ficar por aqui, não é?”
Ela assentiu, distraída, com os olhos fixos nas prateleiras de tranqueiras
baratas.
Ele estudou-a por um instante.
“Aposto que faz um tempinho que você não entra em uma loja.”
Ela assentiu de novo.
“Ok, eu tenho que pagar antes de encher o galão. Vai levar um
segundinho. Agora, não vai sair correndo e me deixar aqui, hein!” Ele deu
uma piscadela e começou a afastar-se. “Oh”, disse ele por cima do ombro.
“E fique de olho em armadilhas de urso. Uma menina perdeu alguns dedos
do pé numa dessas faz umas semanas.”
Isabel colocou as mãos nos quadris e ficou olhando enquanto ele se
afastava.
Cerca de um minuto depois de Jesse entrar na loja, um carro apareceu
na estrada e parou no estacionamento. Isabel retirou-se para as sombras.
Duas garotas, adolescentes, e um rapaz mais velho saíram do veículo, rindo
de alguma piada entre si. Uma das jovens pulou nas costas do rapaz e ficou
andando de cavalinho até dentro da loja, enquanto os três assoviavam,
andando como se a vida fosse uma bela tarde em um parque de diversões.
Tão animados, pensou Isabel, e tentou ignorar o ciúme que a deixava
mordida. “Nem sempre a vida segue o rumo que a gente quer”, murmurou
ela baixinho. “Só isso.”
Isabel ficou olhando enquanto eles andavam pela loja, animadíssimos.
As duas jovens tinham cabelos compridos e ondulados, que subiam e
desciam e brilhavam, sedosos à luz das placas de cerveja. Cabelos em que
um homem gostaria de passar os dedos, pensou Isabel, e levou a mão a seus
próprios cabelos curtos, que pareciam cobertos com cera, incrustados de
sujeira. Ela não tivera uma oportunidade de lavar os cabelos desde o outono
e os riachos ficavam frios demais nessa época do ano. As jovens estavam
maquiadas, com batom, delineador, e usavam brincos. Todas as coisas que
as moças usavam para ficar mais bonitas. Ela se perguntava se haveria
alguma maquiagem que conseguisse encobrir as manchas em seu rosto.
Talvez um pouco de batom? Talvez eu fosse parecer mais uma moça do que
um monstro das cavernas.
Jesse saiu da loja com a lata de gasolina em uma das mãos e um saco de
compras de mercearia na outra. Ele acenou com a cabeça em direção a ela,
dirigiu-se até a bomba de gasolina e começou a encher a lata. As jovens e o
rapaz saíram da loja um instante depois dele. O rapaz sacudiu sua lata de
refrigerante, abriu-a e borrifou o líquido nas meninas. As duas soltaram
gritos selvagens, pegaram punhados de neve com as mãos e jogaram nele.
Ele abaixou-se, desviando-se das bolas de neve, escorregou no gelo, caiu,
derrubando seu refrigerante no chão. Os três riram tanto que Isabel achava
que eles precisariam de ajuda médica. E, de repente, Isabel quis que
parassem. Ela não queria ouvi-los, nem vê-los. Ela cerrou as mãos.
Descobriu que queria que eles ficassem de boca fechada, queria arrancar
seus belos cabelos de suas cabeças, arranhar os belos rostos deles, fazer
com que soubessem como era perder tudo.
Uma das jovens puxou o rapaz para que ele se levantasse. Ele deslizou
as mãos em volta da cintura dela, puxou-a para junto de si, e eles se
abraçaram, se beijaram… um beijo longo que apenas pertencia a um novo
amor. Isabel colocou os dedos em seus próprios lábios, ficou olhando,
respirando com dificuldade. Eles entraram de volta no carro e Isabel deixou
de lhes desejar mal, não, apenas queria juntar-se a eles, entrar no carro deles
e ir até onde quer que os rapazes e moças jovens fossem para se divertir
naqueles dias. Ela tentou imaginar como seria isso, apenas se divertir. Ela
ficou olhando para os faróis traseiros do carro deles até que desapareceram
de vista na estrada escura.
Jesse foi andando até ela.
“Toma. Pode segurar isso para mim?”
Ele entregou a ela o saco de compras e colocou a lata de gasolina aos
pés dela.
“Eu já volto. Preciso dar um telefonema rapidinho.”
“Telefonema? Espere! Não sei se você deveria fazer isso.”
“Isabel, eu tenho que saber se minha filhinha está bem. Eu só vou ligar
para a avó dela. Não tem como um telefonema colocar Krampus em perigo,
relaxa.”
Ela mordeu o lábio. Se algo não colocasse Krampus em óbvio perigo
nem quebrasse diretamente um dos princípios dele, então ela podia fazer o
que quisesse.
“Isabel, eu não estou pedindo. Eu vou dar um telefonema. Já volto.”
“É… Certo.”
Ele começou a ir em direção ao telefone público, então se virou.
“Ah, aqui está. Comprei umas coisinhas para você.”
Ele puxou um saco plástico de dentro do saco de compras de mercearia
e o entregou a ela.
“O que é isso?”
“Por que você não dá uma olhada para ver o que é?”
Ela ficou olhando enquanto ele ia até a cabine telefônica e então espiou
dentro do saco e deparou-se com um pacote de chiclete de melancia, uma
gigantesca barra de chocolate com amêndoas e uma coisa felpuda. Era um
gorro de neve, preto e branco e bem fofinho. Ela ergueu-o e percebeu que
tinha a forma de uma cabeça de panda, completa com nariz e grandes olhos
caídos. Havia duas orelhas grandes e felpudas, uma de cada lado do gorro.
Era totalmente ridículo, mas ninguém nunca confundiria aquilo com um
gorro de menino. Havia mais alguma coisa dentro do saco. Ela puxou dali
uma caixa, abriu-a e, dentro dela, ela encontrou uma pulseira com um
gigantesco medalhão cor de rosa em formato de coração. Ela soltou um
gritinho e cobriu a boca. Ao que parecia, Jesse tinha tanto mau gosto para
joias quanto para chapéus femininos, mas ela não conseguia parar de sorrir.
Ela rasgou a caixa, tirou a pulseira dali e colocou-a no pulso. Sabia que não
passava de uma pulseira de brinquedo, ainda assim, era brilhante e ah, tão
feminina! Não era o tipo de coisa que um cara compraria para um monstro
e, por aquele segundo, ela sentiu-se como se fosse uma menina de novo. Ela
cerrou os olhos, saboreando a sensação. Uma lágrima escorreu por seu
queixo, depois outra. Ela tentou lembrar-se da última vez em que alguém
havia lhe dado um presente. Tinha sido seu Daniel, e tinha sido o anel, uns
quarenta anos atrás. Ela limpou os olhos. “Para com isso”, sussurrou ela.
“Agora não é hora de ficar toda chorona.”
Jesse desligou o telefone e seguiu a passos rápidos em direção a ela.
Isabel empurrou o capuz para trás e colocou o gorro na cabeça,
prendendo rapidamente as orelhas compridas e felpudas debaixo do queixo.
Ela esperava parecer tão boba quanto estava se sentindo e mal podia esperar
para ver a cara dele.
Jesse apanhou e ergueu a lata de gasolina.
“Nós temos que voltar.”
Ele dirigiu-se estrada de cascalho acima sem nem mesmo olhar para ela,
com a expressão determinada e sombria.
Isabel ficou hesitante, confusa, e sentiu uma pontada de mágoa. O que
foi que acabou de acontecer? Ela apanhou as compras de mercearia e
correu um pouco para acompanhar os passos dele.
“Eles estão atrás de Abigail”, disse ele, com a voz tensa.
Isabel não sabia o que dizer.
“A mãe da Linda me perguntou por que Ash Boggs apareceu na casa
dela procurando pela Abi. Isso foi tudo que a velha bruxa disse, ela não quis
me dizer mais nada além disso. Só ficou me perguntando o que eu tinha
feito. Você sabe o que isso quer dizer?”
Isabel balançou a cabeça em negativa.
“Isso quer dizer que o General pretende cumprir a ameaça que fez, é
isso que quer dizer. Que merda!”, disse ele, com a voz soando dolorosa,
cortante. “Que merda!”
As longas pernas de Jesse cobriam a estrada a passos largos e Isabel
teve que dar uma corridinha para alcançá-lo.
“Não temos como dizer o que o General poderia fazer”, disse Jesse, mas
era mais como se estivesse falando com ele mesmo. “Eu tenho que fazer
alguma coisa antes que seja tarde demais, caramba!”
“ISSO É uma tremenda de uma idiotice!”, disse Jesse, olhando bem para a
estrada sulcada e congelada enquanto dava tapinhas em seus bolsos, na
esperança de encontrar um cigarro perdido por ali.
“Idiotice ou não”, respondeu Isabel, “a decisão dele está tomada.”
Ela ainda estava usando aquele bendito daquele gorro que ele tinha
comprado para ela, não o tinha tirado da cabeça desde que o colocara, e isso
tornava difícil para ele ficar enfurecido com ela.
Jesse foi diminuindo a velocidade da caminhonete quando cruzaram um
pequeno riacho. Eles tinham tido sorte na rodovia, o único trânsito pelo
qual passaram foram dois semitrailers de outro Estado. Porém, era cedo, o
trânsito logo ficaria pesado e não havia nenhuma garantia de que
continuariam tendo sorte quando tentassem voltar.
“Ele vai fazer com que todos nós sejamos mortos. Isso é uma idiotice,
idiotice, idiotice!”
“Ele pode ser um cara difícil de se sacar às vezes”, disse Isabel.
“Falando em matança em um minuto e depois chorando por uns pássaros
mortos no minuto seguinte.”
“Bem, encontrar aqueles lobos uma vez já foi o bastante para mim.”
Jesse olhou de relance no espelho retrovisor, para Krampus e os
Belsnickels, que estavam sentados debaixo do teto detonado da caçamba da
picape, todos observando a floresta, procurando em meio às árvores por
algum sinal dos lobos, de Papai Noel, e sabe-se lá de quê mais. Os
Belsnickels seguravam de tudo, de lanças e facas até uma submetralhadora,
enquanto Krampus segurava o saco como se fosse uma criança agarrada a
seu cobertorzinho, absorvendo o cenário com os olhos.
Eles depararam-se com caixas de videogame espalhadas por toda a
estrada de terra e Vernon deu uns tapinhas no vidro.
“Krampus quer que você dê a volta. Ele acredita que passamos por
eles.”
Jesse chegou a um espaço largo, deu a volta e, lentamente, tornou a
descer a montanha. Pouco menos de um quilômetro depois, Krampus
ergueu a mão. Jesse pisou devagar nos freios, tomando cuidado com o gelo,
e parou a picape.
“Ele quer que você desligue o motor”, disse Vernon em uma voz
sussurrada, como se os lobos pudessem estar escondidos debaixo da
caminhonete.
Jesse achava que essa não era uma boa ideia. Ele queria poder botar o
pé no acelerador, caso um dos lobos aparecesse, e não podia contar sempre
que o velho V8 fosse ligar logo de cara, nem mesmo quando estava quente.
“Eu não sei se eu…”
“Shhhhh”, disse Vernon, levando um dedo aos lábios. “Ele está tentando
ouvi-los.”
Jesse revirou os olhos e desligou o motor.
Krampus saiu da caminhonete, seguido pelos Belsnickels. Os shawnees
estavam com suas pistolas e suas facas nos cintos e seguravam suas lanças
em prontidão, analisando a floresta em todas as direções. Vernon foi
andando até a janela de Jesse, passando os dedos pela Mac-10 convertida
que ele trouxera consigo, ignorando o fato de que a estava apontando para
Jesse enquanto fazia isso.
“Ei”, disse ele em um sussurro. “Como é que a gente destrava esta coisa
aqui mesmo?”
Jesse empurrou o cano em direção ao chão. Ele tinha pouca fé nas
habilidades de Vernon em usar a arma sem que atirasse nele mesmo ou em
seus camaradas, e só esperava que não estivesse nem um pouco por perto
do homem se ele decidisse usá-la.
“Quando estiver pronto para usá-la, deslize essa trava para trás.” Jesse
nunca tinha atirado com uma submetralhadora antes, mas era uma arma
simples o bastante. Pelo jeito como Vernon lidava com ela, Jesse se
perguntava se ele teria usado alguma arma de fogo antes. “Não puxe a trava
para trás até que esteja preparado para atirar ou a arma pode sair da sua
mão.”
Vernon puxou a trava para trás.
“Não, Vernon, não até que você esteja preparado para atirar.”
“Eu estou preparado para atirar”, disse Vernon, sem querer apontando a
arma bem para Jesse.
“Merda, Vernon”, disse Jesse, irritado, empurrando o cano da arma para
longe de seu rosto. “Olha, cara, você tem que olhar para onde está
apontando essa coisa. Ok?”
“Ah, sim. Desculpa.”
Krampus e os shawnees ficaram parados no penhasco, analisando o
desfiladeiro lá embaixo, quando um uivo subiu ecoando pelo vale. Jesse
ficou todo arrepiado. Parecia que o som vinha dali de perto deles.
Makwa subiu correndo um pouco na estrada e apontou para baixo.
“Eles encontraram alguma coisa”, disse Vernon.
“Vamos ver”, disse Isabel, e começou a sair da picape, parou e olhou
para Jesse.
“Estarei bem, ficando aqui mesmo”, disse Jesse.
Isabel balançou a cabeça em negativa.
“Acho que não.”
Jesse soltou uma bufada, ativou o freio de mão e saiu do veículo.
“Olha, ninguém vai me dar pelo menos uma arma?”
Ninguém deu atenção a ele.
“Tudo bem”, disse ele, e acompanhou Isabel e Vernon até o penhasco.
Ele podia ver os lobos, os dois, cerca de uns cinquenta metros lá
embaixo. Um deles estava deitado de lado. Para Jesse, ele parecia morto. O
outro estava montando guarda ao lado dele. E olhava para cima, para eles,
rosnando, com os pelos arrepiados. Nós só precisamos deixar aquela
criatura na dela.
Krampus e a loba ficaram olhando um para o outro por vários minutos,
os dois torcendo os rabos. Por fim, Krampus pronunciou-se:
“Nenhum de vocês deve usar suas armas sem minha ordem. Isso é um
comando. Agora, esperem aqui.”
Ele voltou até a caminhonete, enfiou a mão na caçamba e puxou para
fora o saco.
“O que é que ele está fazendo?”, perguntou Vernon a ninguém em
particular.
Krampus fechou os olhos, segurou com força o saco e depois abriu os
olhos de novo. Ele enfiou o braço dentro do saco e tirou dali um pedaço de
alguma coisa. Krampus jogou o saco de volta no chão da caminhonete e
eles seguiram seu caminho.
“É a perna da vaca”, disse Vernon. “Ele está planejando alimentar
aquelas malditas criaturas. Ele ficou doido, completamente maluco!”
Jesse deu-se conta de que Krampus devia ter aberto uma porta lá para a
igreja e apenas puxou a carne da banheira.
“Talvez ele vá fazer com que você dê comida a eles, Vernon.”
Mas Krampus passou por eles sem dizer nenhuma palavra e começou a
descer o barranco rochoso. Ele deslizou e foi se arrastando até o fundo da
ravina, depois foi dando pulos, com destreza, de um penedo a outro, até que
estava a uns vinte metros de distância dos lobos. A imensa loba mostrou os
dentes para ele e manteve-se firme em seu lugar. Eles podiam ouvir o baixo
ribombar de seu rosnado desde o topo da ravina.
“Meus amigos”, disse Vernon, sem fazer nenhum esforço para esconder
o prazer de sua voz. “O Senhor Krampus está prestes a ser devorado diante
de nossos próprios olhos.”
Os shawnees desferiram um olhar sombrio a ele.
“Nem venham fazer cara feia para mim, seu bando de pagãos. Nem todo
mundo está se divertindo pra caramba aqui. Deus ou não, ele finalmente
ficou doidinho da silva!” Vernon abriu um sorriso. “Quanto mais cedo ele
estiver morto, mais cedo eu acordo deste pesadelo.”
Krampus deu um passo, depois outro, aproximando-se devagar da loba,
que não mostrava nenhum sinal de que ia recuar, seu rosnado ficando mais
alto. Jesse viu-se partilhando do sentimento de Vernon; de fato, Krampus
havia ensandecido. Nem mesmo os shawnees pareciam ter certeza de
qualquer coisa, agarrando com força suas armas e trocando olhares
nervosos de relance.
Krampus pisou no desfiladeiro onde estavam os lobos gigantescos. Ele
segurou o pedaço de carne diante de si e falou com a loba. Era impossível
discernir as palavras daquela distância, e ainda assim, de alguma forma,
Jesse captou seu tom baixo e pacificador, como se o Senhor do Yule
estivesse se comunicando com ela de outras formas.
A loba deu um passo para trás, depois, mais um. Krampus colocou a
carne na frente dela, que a cheirou, parecendo confusa, rosnando e depois
ganindo, rosnando e ganindo de novo.
Krampus andou até onde estava o lobo ferido e agachou-se sobre os
próprio quadris. Ele tirou uma fatia da carne e segurou-a diante do lobo ali
prostrado. O animal ergueu a cabeça, cheirou a carne, lambeu-a e depois
pegou-a para comer. Krampus ofereceu mais uma fatia da carne, depois
outra, acariciando o pelo do animal enquanto sua companheira, o tempo
todo, ficava olhando. Por fim, ela deu um passo tímido, com o rabo
abaixado, cheirando a carne. Krampus levou a carne em direção a ela, que a
lambeu, depois deu uma mordida na carne, mastigando-a com voracidade.
Jesse se perguntava quanto tempo faria desde que ela teria comido pela
última vez.
Krampus continuou falando com eles naquele tom baixo e pacificador;
o que quer que fosse que ele estivesse dizendo, parecia estar funcionando.
Logo, Krampus estava fazendo carinho nos dois animais, e Jesse ficou
observando, descrente, enquanto a loba que estava em pé lambia a mão de
Krampus e depois enfiava até mesmo o focinho para fazer carinho no
Senhor do Yule.
“Parece que hoje não é seu dia de sorte no fim das contas, Vernon”,
disse Jesse.
“Sim, parece que a loucura está vencendo”, disse Vernon, soltando um
suspiro. Krampus ficou em pé e acenou para eles. “O que é que foi agora?”,
gemeu Vernon.
“Ele quer que a gente desça”, disse Isabel. “Eu tenho quase certeza de
que ele vai querer que a gente pegue aquele lobo manco e o coloque na
caminhonete.”
Vernon soltou um longo gemido.
Os shawnees começaram a descer, mas Isabel deu uma parada.
“Vernon, preciso que você permaneça onde está e fique de olho na
caminhonete. O saco do Krampus está na traseira dela, lembra? Grite se
ouvir alguém vindo.”
Vernon abriu um sorriso.
“Para mim, está ótimo.”
Isabel olhou de relance para Jesse.
“E não perca Jesse de vista.”
Os quatro Belsnickels deslizaram para baixo no barranco, cruzaram os
penedos e, com cautela, aproximaram-se dos lobos.
Jesse soprava suas mãos em concha, tentando aquecer os dedos, depois
as enfiou nos bolsos. Ele sentiu as chaves ali e seu coração ficou acelerado.
Ele tinha se esquecido de que estava com elas; sua mente estava
concentrada nos lobos, se e quando eles iriam sair pulando das árvores e
dilacerá-los a todos. Em seu medo e excitação, ele nem mesmo tinha
considerado a possibilidade de escapar, e agora se dava conta de que não
era o único preocupado, percebera que ninguém mais tinha pensado nas
chaves também.
Ele voltou um olhar disfarçado, de relance, na direção da picape, que
estava ali, simplesmente esperando que ele saísse correndo e pulasse para
dentro dela. Considerou que Vernon estava ali, parado no penhasco… Um
empurrão rápido e já era. Jesse apertou as chaves. Pode ser minha única
chance.
“Oh, isso é mesmo lindo”, disse Vernon, hipnotizado pelo drama que se
desenrolava lá embaixo.
Jesse deu mais um passo para perto de Vernon, que olhou para ele, e
Jesse ficou paralisado.
“O que é que você está fazendo?”
Jesse abriu a boca, não conseguiu encontrar as palavras e deu de
ombros.
“Bem ali, olha. Você vai perder isso.”
A loba que estava em pé ficou com os pelos arrepiados quando os
Belsnickels se aproximaram dela e começou a rosnar de novo. Os
Belsnickels pararam no meio do caminho.
“Apenas odiaria ver um daqueles cabeças de minhoca selvagens terem
um braço arrancado com uma mordida.” Vernon deu uma risada. “Ora, isso
seria horrível!”
Jesse olhou para todas as rochas e raízes lá embaixo. Com certeza não
queria matar o homem, apenas queria cair fora dali. Sinto muito, pensou
Jesse, e deu um empurrão em Vernon, pegando o Belsnickel completamente
de surpresa. Vernon saiu voando penhasco abaixo, e Jesse não esperou por
ali para ver o que aconteceria em seguida. Ele correu até a caminhonete,
pulou para dentro e meteu a chave na ignição com tudo. Girou a chave, o
motor fez um chiado, e nada. Jesse visualizou todos os Belsnickels subindo
pelo penhasco e sabia que só tinha alguns segundos. Ele tentou de novo,
bombeando de leve a gasolina, tentando não afogar o motor em sua
excitação. Dessa vez o motor ligou, o abafador de som engasgou e uma
fumaça preta saiu da traseira da picape. Jesse fez o carro andar e pisou no
acelerador com tudo. A picape foi descendo aos pulos a estrada cheia de
buracos. Ele ouvia uivos vindo de algum lugar atrás dele e não se atrevia
nem mesmo a olhar de relance para trás, com toda sua atenção focada em
impedir que a caminhonete saísse derrapando pela pista cheia de gelo. Um
minuto depois, atravessou com tudo em meio aos galhos, e os pneus da
frente do velho Ford chegaram a sair do chão enquanto ele entrava voando
na rodovia. Alguém soou uma buzina, som seguido do guinchado de freios.
Jesse girou no meio do caminho e quase bateu em um semitrailer que vinha
vindo. Ele endireitou o veículo, pisou no acelerador e seguiu pela Rota 3 em
direção a Goodhope.
JESSE TENTOU alcançar seus tornozelos, tentou rasgar a fita e soltada, mas
seus dedos quebrados não conseguiam fazer nada disso. Ele soltou um
grunhido, depois, um gemido, e caiu para trás. A dor em sua barriga, em
suas pernas, mãos e costas, tudo isso tornava insuportável o mais leve
movimento. Seus olhos começaram a acostumar-se com o brilho fraco das
luzes de Natal, cujo brilho lançava longas sombras sobre os mortos e
agonizantes. Ele focou na carnificina, em Krampus, tentando afastar a dor
de sua mente.
Krampus pisteou o corpo de Ash, que tremia. O Senhor do Yule estava
mais alto, maior e muito mais imponente do que quando Jesse o tinha visto
da última vez. Seus chifres agora eram armas potentes, e não estavam
quebrados e curvados por cima de sua cabeça; seus olhos brilhavam,
audazes, seus movimentos eram rápidos e poderosos. Krampus socou e
atravessou o peito de Ash com a mão, rachando ossos e rasgando carne, e
tirou-a dali com algo que Jesse achava que deveria ser o coração do
homem. Krampus segurou o órgão em direção ao céu e soltou um uivo
triunfante. Ele apertou o coração e deixou o sangue escorrer ao longo de seu
braço e gotejar dentro de sua boca. O peito dele subia e descia e um
profundo rosnado cheio de força, vitalidade e vigor, escapou de sua
garganta.
O Senhor do Yule jogou o coração longe, analisou o aposento, inclinou
a cabeça para um lado e depois para o outro para melhor absorver os
gemidos dos mutilados e moribundos. E ele estava com um largo sorriso no
rosto; até mesmo na escuridão, Jesse conseguia ver claramente aquele
sorriso. Os olhos oblíquos dele recaíram em Jesse.
“É bom… é bom ser terrível”, disse Krampus, lambendo o sangue de
sua mão.
Jesse balançou a cabeça, concentrando-se em respirar. O Senhor do Yule
franziu o cenho.
“Você não me parece bem.”
“Já estive… melhor.” Jesse tossiu. “Acho que estou morrendo.”
Krampus foi andando até ele, ajoelhou-se ao seu lado e olhou para a
crescente poça de sangue debaixo dele.
“Sim, acredito que esteja morrendo sim.” Ele cortou a fita e soltou-a
com um rápido talho de sua unha, gentilmente apoiando Jesse no carrinho
de ferramentas. “Você foi um menino muito sapeca.”
Jesse assentiu.
“É, você tem razão nisso daí.”
Krampus sorriu.
“Você pode estar morrendo, mas ainda tem seu espírito.”
Alguém moveu-se atrás de Krampus… era Chet, que se esforçava para
aprumar-se perto da porta. Ele ainda estava com a pistola, segurando-a com
as mãos que tremiam, tentando mirá-la em Krampus. Jesse abriu a boca
para proferir um aviso a Krampus quando a pistola foi disparada com um
estouro ensurdecedor. A bala acertou o chifre do diabo, que ficou de pé em
um pulo. A arma foi disparada de novo e a bala soltou faíscas no chão de
concreto, alguns metros à esquerda deles. Chet deixou os braços caírem; ele
mesmo tombou junto ao batente da porta, deixando cair também a arma em
seu colo. Krampus foi andando devagar em sua direção e agachou-se diante
dele.
“Merda, porra de diabo, cacete de merda!”, disse Chet, cuspindo, com o
sangue escorrendo de sua boca. Ele tentou repetidas vezes levantar a arma,
mas não conseguiu.
Krampus olhou de relance por cima do ombro para Jesse.
“Esse daí também tem espírito. Ele bem que poderia tomar-se um bom
soldado.” Krampus pegou a arma da mão de Chet e jogou-a longe. Ele
segurou no braço do homem e mordeu o pulso dele.
Chet soltou um uivo e puxou o braço para longe.
“Você me mordeu! Que merda é essa?”
Chet ficou com o olhar fixo na mordida. Até mesmo com pouca
iluminação Jesse podia ver a pele em volta da mordida escurecendo-se, a
mácula espalhando-se para cima no braço de Chet, e entendeu que Krampus
o havia transformado.
“Agora você é meu. Você ficará aí sentado até que eu lhe dê uma ordem
em contrário.”
“Vá se foder!”
Krampus deixou Chet apoiado na parede, esfregando o braço e,
lentamente, ficando todo preto. Ele foi andando até o saco e o pegou.
“Você me abandonou”, disse ele a Jesse. “Você quebrou seu juramento.
Eu não lhe devo nada agora.”
“Eu sei.”
Krampus ergueu o saco.
“Você pegou algo que não lhe pertence.”
“Desculpe-me por isso.”
“Eu deveria matar você.”
“Tarde… demais.”
Jesse tentou dar risada, mas engasgou em seu próprio sangue.
“Ainda assim, não guardo rancor de você.”
Jesse balançou a cabeça e revirou os olhos.
“Estou sendo sincero. Suas distrações fizeram toda a diferença, por tudo
que eu sei, elas fizeram toda a diferença! Veja, eu estava preso em uma
charada.”
Ele fechou os olhos, seu rosto assumindo ares de profunda
concentração. Ele enfiou a mão no saco.
“Ali… o navio. Está tudo queimado… os ossos, as tábuas, os mastros e
o tesouro. E, e, sim.” Ele sorriu. “A resposta, tão evidente que eu não
conseguia ver!” Ele tirou o braço dali e puxou uma lança, quebrada na
metade de seu cabo e danificada pelo tempo e pelo fogo. “Eu estava
procurando por uma flecha esse tempo todo. Estava tão fixado na ideia que
não conseguia ver nada além disso. Forçando o saco a procurar por uma
coisa que não existia! Mas agora, veja você… não era uma flecha.” Ele
limpou a fuligem e a sujeira da ponta da lança e ela reluzia, dourada, como
o estranho minério das correntes de Krampus lá na caverna. Ele foi andando
até Jesse, para que este pudesse ver as folhas e as bagas de visco entalhadas
com delicadeza ao longo da lâmina. “Está vendo…? Está vendo a resposta?
É uma lança, e não uma flecha!” Ele soltou um bom suspiro. “As respostas
para todas as charadas parecem óbvias assim que a gente as descobre.”
Ele virou e revirou a lâmina, como se estivesse hipnotizado por ela.
“Baldr”, ele sussurrou. “É sua morte que seguro em minha mão. Sua
morte.”
Jesse tentou pigarrear, esforçando-se para respirar. Ele tossiu e cuspiu
mais sangue. A dor quase o cegou, forçando-o a quase se dobrar ao meio.
Krampus sentou-se ao lado dele, colocou a lança em seu colo e puxou o
saco para perto de si. Ele enfiou a mão no saco e, um instante depois, estava
segurando um dos antigos frascos, do qual ele arrancou a cera que o vedava.
“O hidromel de Odin…? Assim espero…” Jesse forçou-se a sorrir.
“Sim, hidromel.” Ele ergueu-o junto aos lábios de Jesse. “Isso não vai
salvar você, mas tornará sua morte mais fácil.”
Jesse bebeu vários goles profundos do hidromel cálido e pacificador.
Sua visão ficou indistinta, como que onírica, sua respiração tornou-se mais
fácil, e a dor diminuiu. Suas pálpebras ficaram pesadas, ele apoiou a cabeça
no carrinho de ferramentas e olhou para todos os homens mortos. Que pena,
pensou ele. Que pena que Dillard não estava aqui. Jesse forçou sua cabeça
a ficar levantada e segurou no braço de Krampus com força.
“Dillard… ele ainda está com elas!”
“Dillard?”
“Ele está com a minha esposa… com a minha filhinha. Ele é um
assassino!” Jesse tentou fazer uma pausa na conversa, ele precisava fazer
com que Krampus entendesse a situação, mas as coisas estavam ficando
obscuras em sua mente, seus pensamentos, confusos. “Ele vai machucá-
las… Eu sei disso. Nós temos que fazer alguma coisa, temos que impedi-
lo… Krampus… Mate aquele calhorda.”
Krampus ficou admirando a lança.
“Talvez um dia”, disse ele, distraído. “Mas hoje é com um outro vilão
que eu tenho que lidar.”
“POR QUE você veio até aqui?”, perguntou o Papai Noel, com a voz grave e
baixa.
“Você sabe muito bem qual é a resposta à sua pergunta, meu bom e
velho amigo”, disse Krampus, balançando o rabo para a frente e para trás,
como se fosse um gato caçando.
“Você poderia ter se perdido na floresta. Poderia ter levado sua
existência por lá.” Papai Noel falava baixinho, mas suas palavras
reverberavam no ar. “Em vez disso, você tem que ser um incômodo… tem
que me forçar a agir. Fazer com que eu o mate quando não tenho nenhum
desejo de fazer isso.”
“Me matar? Isso soa um pouco presunçoso. Você não concorda?”
O Papai Noel balançou a cabeça em negativa.
“Por que é que o sangue de Loki só conhece a vilania? Eu mostrei a
caridade a você, tentei lhe mostrar a verdade, tentei salvá-lo de si mesmo.
Eu lhe dei todas as chances.”
“Ficar acorrentado debaixo da terra não parecia algo muito caridoso
para mim.”
“A piedade me deixou fraco. Vejo agora que eu deveria ter matado você
e posto um fim a seu sofrimento. Mas, veja bem, passei uma era na prisão
da sua mãe. Aquele tempo em Hel me proveu a oportunidade de entender
melhor a mim mesmo, de meditar sobre as consequências das minhas
escolhas. Minhas esperanças eram que a solidão desse a você aquela mesma
oportunidade. Uma chance de ver além de si, pelo menos uma vez que
fosse.”
“De sua boca sai tanta merda quanto do cu de um porco. Você não se
encontrou em Hel, você estava perdido. Fui eu que tentei salvar você, fui eu
que trouxe você para meu próprio lar, que tentei dar propósito a você, curar
as grandes feridas em seu coração. A verdade é que você me acorrentou
naquele poço por um único motivo, na esperança de que eu fosse ser
esquecido e esvanecer, esperando também que o espírito do Yule fosse
esvanecer comigo.”
O Papai Noel deu de ombros.
“O Yule está morto. Ficou no passado. Os homens precisam de um
caminho para a iluminação, para libertar-se de preocupações terrenas
triviais, para ver além das limitações da carne e do sangue. A vida é
transitória, mas a vida após morte é eterna. Eu não vejo nenhum chamado
mais importante do que ajudar a iluminar este caminho. Eu ofereci a você
uma chance de presenciar isso.”
“Você venera a morte. Você e todos os Deuses Únicos. Eles seduzem a
humanidade com suas promessas de glória obtida na vida após a morte,
assim deixando os homens cegos para o esplendor diante deles aqui na
Terra. Não se pode esperar a obtenção de iluminação, a menos que viva
plenamente a vida.”
“Suas palavras servem apenas como prova de que não há mais lugar
para você na terra de Deus.”
“A Terra não pertence a nenhum deus! A Mãe Terra é deus! Você
esqueceu tudo? Você finge não ver que ela está morrendo debaixo dos seus
pés? Ou não se importa com isso? Ela precisa renascer, precisa que o
espírito do Yule a cure! Você fala de iluminar os homens, mas não haveria
nenhum homem sem ela, a Mãe Terra!”
“Sua besta tola, a Terra não passa de uma rocha no espaço.” O Papai
Noel balançou a cabeça. “O mundo seguiu em frente e deixou você para
trás. Você tornou-se nada além de uma relíquia patética de dias que
morreram há eras! O que eu tenho que fazer agora é um ato de misericórdia,
então não vamos prolongar isso. Estou com você aqui, não há fuga.
Ajoelhe-se perante mim e lhe concederei uma morte rápida.”
“Uma oferta muito graciosa e tentadora, para falar a verdade, essa sua”,
disse Krampus, e riu. “Mas acredito que você é quem deve se ajoelhar.”
“Isso é loucura, você sabe que não tem como causar mal a mim.”
Krampus deu risada. O Papai Noel franziu o cenho. Krampus podia ver
que seu júbilo irritava seu rival e riu ainda com mais gosto.
“Parece que os quinhentos anos passados naquele poço apodreceram sua
mente.”
Krampus deu uma risada de escárnio.
“Os quinhentos anos passados naquele poço deixaram todas as coisas
claras. Claras como a água da fonte em Asgard. Ou você esqueceu-se de
Asgard? Você esqueceu a face de sua mãe, de seu pai? Esqueceu seu
próprio nome? Bem, eu vim para ajudá-lo a lembrar.”
O Papai Noel apertou os lábios.
“Você tem sangue em suas mãos”, disse Krampus. “Quanto? Quantos
foram aqueles que você assassinou para curvar a vontade do saco de Loki a
sua própria vontade?”
“Eu me cansei de sua tagarelice”, disse o Papai Noel, e jogou-se para a
frente, levando a espada também para a frente consigo, girando-a no alto e
abaixo, com força, em um golpe que tinha o propósito de separar a cabeça
de Krampus de seus ombros. Krampus pulou para o lado, e o golpe que
mirava seu pescoço acertou a fundo a terra macia.
O Papai Noel pareceu surpreso com a agilidade de Krampus. Ele soltou
a lâmina, ergueu-a, pronto para atacar novamente.
Krampus não fez nenhum movimento para recuar; ele apontou a lança
para o Papai Noel.
“Está mais do que na hora de eu fazer com que você se lembre de quem
você é.”
Papai Noel balançou a cabeça, parecendo quase entediado.
“Por que você tem que fazer com que passemos por isso? Certamente
você sabe que seus esforços são fúteis, não? Salve um pouco de sua
dignidade.”
“Você tem muito a aprender”, disse Krampus, chiando. “Muito pelo que
responder. Estou aqui para garantir que você faça isso. Por Huginn e por
Muninn, por Geri e por Freki, por todos aqueles que você usou e jogou de
lado, por todos aqueles que você traiu, pelos que fez sangrar por suas
ambições. Mas, acima de tudo… por mim.”
Papai Noel fez um ataque, em um movimento arrebatador da lâmina.
Krampus desviou-se, abaixando-se sob a espada, ergueu-se quando o Papai
Noel passou com tudo por ele, em um rápido golpe, e escapou.
Papai Noel virou-se, preparado para se lançar outra vez na direção de
Krampus, mas ficou hesitante, parecia incerto, seu rosto contorcendo-se em
uma expressão que se aproximava da confusão. Ele abaixou a espada e
olhou para seu braço. Uma pequena linha vermelha corria logo abaixo de
seu ombro, ficando mais e mais espessa enquanto ele a encarava. Uma gota
carmesim formou-se e desceu deslizando por seu braço. O Papai Noel pôs a
mão no corte e olhou para o sangue em seus dedos.
“Que trapaça é essa?”
“Essa expressão na sua cara…”, disse Krampus. “Faz valer todos os
dias que passei debaixo da terra.”
O Papai Noel sentiu o gosto do sangue.
“Impossível.”
“Uma casa construída em cima de mentiras tem uma fundação fraca,
meu bom e velho amigo.”
Papai Noel olhou para ele, ainda não compreendendo a situação.
“Você não está vendo? Você mentiu para si mesmo por tanto tempo
assim que se esqueceu da verdade? Pense. Lembre.”
Krampus viu… a confusão dando lugar ao alarme.
“Sim, sim”, disse Krampus em tom de zombaria. “O Papai Noel pode
ser intocável, mas… Baldr… ele não é intocável.”
Krampus ergueu a ponta da lança para que a luz da lamparina captasse o
antigo metal e tremeluzisse no rosto do Papai Noel.
“Você pode enganar o mundo, você pode enganar a si mesmo, mas não
pode enganar isso daqui.”
Papai Noel apertou os olhos para olhar para a arma, com o cenho tenso.
“Como? Ela foi destruída. Odin ordenou que ela fosse destruída.”
“Ao que parece, ele não fez isso. Eu a encontrei no fundo do oceano, lá,
em meio a seus ossos. Em meio aos ossos de Baldr.”
Os olhos do Papai Noel ficaram arregalados, a confusão dando lugar à
traição e então, pela primeira vez na vida, Krampus viu o medo estampado
na face do Papai Noel, que recuou um passo e olhou de relance em direção
às grandes portas.
Krampus deu uma risada, riu alto e com gosto. “Quem? Quem está
aprisionado agora?” O Senhor do Yule ergueu-se completamente, inspirou
profundamente, sentiu seu coração bater como um tambor, com a doçura de
sua própria ira. Ele retraiu seus lábios pretos, expondo dentes longos e
afiados. Sua língua apareceu em sua boca, ele estalou o rabo para a frente e
para trás. Sua risada transformou-se em um rosnado enquanto ele pulava
para cima do homem de barba branca.
O Papai Noel parecia estar em estado de choque, um homem em águas
profundas que acabara de esquecer como nadar. Ele ergueu sua espada, mas
foi tarde demais; Krampus passou por sua guarda e acertou-o no braço, e o
corte não foi pequeno dessa vez, mas sim um talho profundo, cortando até o
osso.
O Papai Noel soltou um uivo, um som de afronta, de completa
incredulidade, e tropeçou de encontro ao corrimão da escada, esforçando-se
para manter sua espada na mão. Krampus afastou-se em um giro, quase
dançando.
“Como é doce o sabor da vingança! Muito, muito doce!”
O Papai Noel agarrou sua ferida com uma expressão horrorizada no
rosto por causa de todo o sangue que jorrava em meio a seus dedos.
Krampus pulava de um pé para o outro, saltitando na ponta dos pés,
sorrindo e dando risadinhas.
O Papai Noel manteve sua espada apontada para Krampus enquanto
recuava, seguindo em direção à porta dupla. Krampus foi atrás dele,
andando atrás dele em volta do aro, deixando que ele chegasse na porta.
Papai Noel lutou para manter sua guarda enquanto tentava soltar a tranca
com o braço machucado.
“Aonde você vai?”, perguntou Krampus.
Papai Noel molhou os lábios, o suor escorrendo em sua testa enquanto
arrastava a tranca alguns centímetros.
“Você é uma besta!”, gritou o Papai Noel. “Não passa de um demônio
inferior! E isso é tudo que você sempre vai ser!”
O Senhor do Yule soltou uma bufada e fingiu que ia atacar. O Papai
Noel deu um golpe selvagem com sua espada, mas sem mira, sem acertar
nada além de ar. Krampus foi rapidamente para a frente, atingindo o Papai
Noel no pulso e fazendo com que sua espada caísse de sua mão, na terra
que havia entre eles. Papai Noel fez que ia pegá-la quando Krampus acertou
sua coxa com a lança, com a lâmina mítica cortando com facilidade sua
calça e seus músculos, acertando seus ossos. Krampus puxou a lâmina,
soltando-a, e o Papai Noel caiu com um joelho no chão, aninhando sua
perna enquanto gritava entredentes.
Sangue escorria de seu antebraço, de seu pulso e do talho profundo em
sua perna, o sangue escorria no chão, tornando rubra a palha.
Krampus chutou a espada para longe e deu um passo para perto do
Papai Noel.
“Está na hora de você encarar a si mesmo.”
Todo o tom brincalhão deixou a voz de Krampus, que foi ficando sério.
Ele pressionou a ponta da lança no pescoço do Papai Noel.
“Qual é o seu nome?”
O Papai Noel fechou os olhos e começou a tremer.
“Qual é o seu nome?”
“Papai Noel”, ele resmungou.
Krampus chutou-o, acertando a lateral de seu corpo, plantou o pé no
pescoço dele e enfiou a lança em sua barriga.
“Não, seu nome não é Papai Noel, não é Kris Kringle, nem Pai Natal,
nem São Nicolau.” Ele pressionou a lâmina na carne do Papai Noel, uns
dois centímetros… uns cinco. O sangue formou uma pocinha debaixo da
ponta da lança. “Qual é seu verdadeiro nome?”
“Papai Noel!”, gritou ele. “Meu verdadeiro nome é Papai Noel!”
Krampus chutou-o com força no estômago.
“Não!”, gritou ele, não conseguindo esconder seu furor. “A farsa
acabou! Seu nome é Baldr, o filho que traiu o próprio pai e a própria mãe.
Aquele que traiu a todos os antigos. Reivindique seu verdadeiro título…
Baldr, o ladrão, Baldr, o mentiroso, Baldr, o traidor, Baldr, o assassino. Esse
é quem você é! Agora você vai reivindicar seu nome!”
Papai Noel abriu os olhos, encarou Krampus com ódio e uma firme
resolução no rosto.
“Não, eu não sou Baldr. Baldr e tudo o que era Baldr está morto. Eu sou
o Papai Noel. Eu sirvo a um deus de paz e amor.”
Krampus apertou os olhos ao olhar para ele.
“Você serve apenas a si mesmo. Um mundo de mentiras obviamente
planejado para esconder seus feitos perversos.”
“Quem quer que eu possa ter sido uma vez, aquela pessoa está morta,
foi deixada para trás. Fui renascido e encontrei minha redenção por meio da
compaixão e da caridade para com os outros.”
“Não!”, disse Krampus, cuspindo. “Não! Não! Não! Mas que raiva
suprema! Uma pessoa não perdoa a si mesma. Você não pode simplesmente
sair livre, livrar a si mesmo de sua culpa. O perdão pode vir apenas
daqueles a quem você causou mal. Somente eles podem absolvê-lo de seus
crimes. Talvez na vida após a morte, depois de eles terem arrancado a pele
de seus ossos mil vezes, então, e somente então, você pode implorar o
perdão deles. Agora, a menos que você reivindique seu nome, que implore
pelo meu perdão, eu enviarei você para eles aqui neste instante!”
“Eu sou o Papai Noel. Respondo somente a Deus.”
Krampus enfiou a lâmina no peito do Papai Noel, pressionando-a
devagar para baixo, em direção a seu coração.
“Clame seu nome!”
O Papai Noel segurou na lâmina, que cortou seus dedos.
“Seus esforços são em vão”, disse ele, ofegante. “O Papai Noel não
pode morrer… Ele vive para sempre.”
Krampus viu que Papai Noel acreditava nisso… acreditava nisso até sua
própria alma! Krampus odiava o consolo que isso parecia lhe dar.
“Isso é o que nós vamos ver”, disse Krampus com escárnio, empurrou
com força o peso da lâmina, sentiu as costelas dele estalarem e a carne ser
dilacerada e viu a espada afundando no peito do Papai Noel.
Os olhos do Papai Noel ficaram arregalados, e o sangue borbulhou de
seus lábios.
“Deus ficará furioso, não haverá… nenhum lugar… onde você possa se
esconder.”
O Papai Noel ficou imóvel, seus olhos, o tempo todo, voltados em
direção aos céus.
Krampus puxou e soltou a lâmina.
“Pronto. Pronto. Você está morto!”, disse ele, cuspindo. “E, dessa vez,
você vai permanecer morto!”
Ele ergueu a lâmina e abaixou-a com toda a sua força no pescoço do
Papai Noel, atacando-o repetidas vezes, muito sangue borrifando em seu
rosto a cada golpe. Ele o atacou até que a cabeça do Papai Noel saiu
rolando para longe de seu corpo. O Senhor do Yule cutucou e enfiou a lança
no crânio do Papai Noel, ergueu-a em direção ao céu e sacudiu-a.
“Onde está o seu grande deus agora? Onde está a ira dele? Nada! Pois
você não passa de uma monstruosa mentira!”
KRAMPUS DESCEU com o trenó até que eles estivessem raspando na linha das
árvores. Ele deparou-se com uma rua sem saída nos limites da cidade, onde
havia apenas um punhado de casas. Circulou ali uma vez e aterrissou com o
trenó, deslizando até parar debaixo de um poste de rua inclinado.
Krampus saiu do trenó, olhou a seu redor, para as casas, para as luzes de
Natal piscando. Ele inspirou fundo, bebendo o ar frio da noite. “Enfim estou
aqui.” Ele cerrou os olhos. “Até que enfim… isso acabou. Baldr não existe
mais e eu estou livre para voltar a disseminar as bênçãos do Yuletide, para
expulsar espíritos sombrios da terra.” Ele abriu os olhos e os limpou. “Peço
desculpas, este momento está me sobrepujando.” Krampus olhou para eles.
“Cada um de vocês desempenhou sua parte nisso e, por isso, eu os
agradeço. Em sua honra, farei desta uma noite a ser lembrada, isso eu
prometo.”
Krampus estirou a mão.
“Vernon, a areia de fazer dormir.” Vernon deu as bolsinhas a ele.
Krampus entregou uma delas a Isabel, uma a Jesse, começou a dar uma a
Makwa, reconsiderou a ideia e deu a última de volta a Vernon. “Para o caso
de nos depararmos com aqueles que não estejam em um ânimo festivo. Uns
poucos grãos jogados nos rostos deles e eles dormirão como bebezinhos.
Agora sigam-me e tentem não causar mal a ninguém, a menos que
ameacem usar a violência.”
Jesse deslizou a bolsinha para dentro do bolso do peito de sua roupa,
para ter um fácil acesso a ela.
“Lembrem-se”, disse Krampus, “de que nós estamos aqui pelas
crianças, para ensiná-las a honrar o Senhor do Yule, para fazer com que elas
creiam.” Ele começou a cruzar a rua em direção à casa mais próxima.
“Espere”, disse Isabel, e segurou no braço dele.
“O que foi agora?”
“Não aquela, não.”
“Por que não?”
“Eles não têm filhos.”
“Como você pode saber disso?”
“Veja… nada de brinquedos nem bicicletas no quintal. Também não têm
balanços. É aquela que você quer”, disse ela, apontando para a casa vizinha,
onde havia um triciclo jogado de lado perto de uma área de fazer exercícios
colorida e brilhante, de plástico, como um playground.
Krampus assentiu para ela e deu uns tapinhas amigáveis em sua cabeça.
“Isabel, minha leoazinha. Você é cheia de surpresas.”
Ele seguiu em direção à casa, com os Belsnickels em fila atrás dele.
“Leoazinha”, disse Jesse, abafando o riso, e deu um tapinha de leve na
cabeça de Isabel, que deu um soco nele.
Krampus avistou um grande Papai Noel de plástico na varanda
enquanto eles se dirigiam pela passagem acima. Ele riu com escárnio.
“Essa casa parece que precisa ser lembrada do que realmente se trata o
Yuletide.”
Krampus subiu na varanda, pegou o Papai Noel de plástico e jogou-o no
quintal.
“Nós vamos tomar um tiro”, resmungou Chet. E, por uma vez na vida,
Jesse viu-se concordando com o homem. Jesse tinha certeza de que, antes
que a noite tivesse terminado, um deles, ou talvez todos eles, estariam
jazendo na sala de estar de alguém cheios de balas de espingardas de caça.
Jesse mal conhecia uma alma que fosse por esses arredores do condado que
não tivesse pelo menos uma arma de fogo… talvez até três ou quatro.
Krampus bateu à porta. Eles ficaram ali, parados, esperando. Krampus
com o saco preto jogado por cima do ombro e segurando um punhado de
palmatórias, com os Belsnickels parados ao redor dele como se fossem um
bando confuso de pessoas fazendo “brincadeiras ou travessuras” de
Halloween. Jesse podia ouvir uma televisão bem alta em algum lugar dentro
da casa e trocou um olhar preocupado com Isabel. Krampus bateu à porta
mais uma vez e mais alto.
Uma mulher gritou de algum lugar dentro da casa:
“A porta, Joe. Acho que tem alguém na porta!”
O volume da TV baixou outra vez.
“O que foi isso?”
“Eu achei que tivéssemos ouvido a porta.”
“Bem, caramba, que cacete, você esqueceu como se abre uma porta?”
Seguiu-se um minuto e silêncio. “Ah, puta merda, que cacete”, gritou o
homem. “Tudo bem, acho que vou ter que ir abrir a porcaria da porta. Não
vamos jamais querer que você levante o seu rabo gordo daí.”
Eles ouviram chinelos pisando em direção à porta. Um instante depois,
a luz da varanda foi acesa e a porta se abriu com um estalo. Um homem de
meia-idade trajando uma camisa de caça apareceu, usando uma calça de
moletom, e inclinou-se junto à porta, segurando uma cerveja e um cigarro
em uma das mãos. O homem estava bêbado, mas não tão embriagado a
ponto de não ver que Krampus não era quem ele estava esperando.
“Há boas crianças nesta moradia?”, perguntou Krampus.
O homem ficou de olhos arregalados, foi aos tropeços vários passos
para trás, deixando cair tanto a cerveja quanto o cigarro. De repente, ele
pareceu ficar sóbrio, o que o levou a fechar a porta com uma batida.
Krampus estendeu a mão, bateu à porta de novo e o homem foi até o
linóleo.
“O Yule anima a todos!”, disse Krampus, e empurrou a porta para
entrar, passando pelo homem e dirigindo-se corredor abaixo.
Os shawnees pularam para cima do homem e o imobilizaram. O homem
começou a berrar e Makwa ergueu um punho Isabel segurou no braço de
Makwa antes que desferisse um golpe contra o homem.
“Não! Malvado”, gritou Isabel. “Para com isso!”
Jesse tateou em busca de sua areia de fazer dormir, mas Vernon
conseguiu achar antes a que estava com ele, jogando um punhado no rosto
do homem. O homem apertou os olhos, parecia que ia espirrar, então sua
cabeça pendeu e ele apagou. Os shawnees pareceram desapontados.
Jesse conseguiu soltar meia respiração antes de ouvir o grito de uma
mulher vindo do corredor. Isabel e Jesse abriram caminho aos empurrões,
passando pelos shawnees, pretendendo ganhar deles em qualquer que fosse
a encrenca em que Krampus tivesse se metido agora.
Tratava-se de uma mulher, quase da mesma idade do homem, trajando
uma roupa quase idêntica à dele: uma camisa de flanela vermelha de caça e
calça de moletom. Krampus havia prendido essa mulher em um canto de
uma das salas, atrás da árvore de Natal. O Senhor do Yule estava
arrancando ornamentos da árvore e esmagando-os na lareira. Ele ergueu um
reluzente Papai Noel de vidro.
“Não, não, não”, disse ele em tom de bronca e jogou o objeto, que bateu
na parede, e ela soltou um outro grito. “Nada mais de Papai Noel, chega!
Nunca mais! Quer saber por quê?” Ele não esperou pela resposta dela.
“Porque ele está morto!” Krampus rosnou. “Eu cortei a cabeça dele e, se
você duvidar de mim, bem, eu posso mostrar isso a você. Gostaria de ver?”
A mulher balançou a cabeça. Krampus espiou a bela cruz marrom de vidro
no topo da árvore e sua face formou um nó. “Isso não vai servir. Você não
deve colocar totens cristãos em uma árvore de Yule.” Ele arrancou a cruz e
chacoalhou-a na frente da mulher como se ela fosse uma vampira. “Nada de
cruzes! Nada de Papai Noel! Está entendido?” Ele ergueu o braço como se
fosse jogar aquilo fora.
“Não!”, ela gritou, vindo para a frente e esticando a mão para pegá-lo.
“Por favor, não. Isso era da minha mãe!”
Krampus ergueu o ornamento acima do alcance dela.
“Por favor, por favor.”
“Apenas se você prometer nunca colocar isto na minha árvore de novo.”
A mulher assentiu.
“Jure.”
“Juro!”
Ele estirou o ornamento, e ela apanhou-o e levou-o junto ao peito, e
começou a soluçar e a chorar.
“Onde estão os restantes de seu festim?”, quis saber Krampus.
Ela olhou para ele e piscou várias vezes.
“Festim?”
“Sim.”
“Você quer dizer… os restos da comida? Estão na geladeira. Onde mais
estariam?”
“E vocês oferecem isso a eles em tributo?”
“Se eu faço o quê?”
“Se oferece sua parte ao Senhor do Yule?”
“Você quer os restos da comida?”
Ela não parecia saber ao certo se ria ou se chorava, mas, sem dúvida,
queria dizer o que quer que fosse para mandar esse demônio demente para
longe.
“Certo… vá em frente… a cozinha fica por ali.” Ela apontou para lá.
“Sirva-se à vontade.”
“Que bom. Suas ofertas de Yuletide trarão a você muitas bênçãos para o
ano vindouro.” Krampus dirigiu-se até a cozinha, deixando a mulher
tremendo no canto, ainda segurando o ornamento de Natal que fora de sua
mãe.
Isabel e Jesse foram até a mulher.
“Sente-se”, disse Isabel.
“O quê? Por quê? Vocês vão me machucar?”
“Não”, disse Isabel. “Ninguém vai machucar você. Agora, apenas fique
sentada.” A mulher fez o que Isabel disse, e ela jogou um pouco de areia de
sono em sua face.
Um poucos segundos depois e a mulher estava apagada. Isabel,
animada, pegou o ornamento de seus braços e colocou-o no consolo da
lareira.
Alguma coisa colidiu na cozinha.
“O que foi agora?”, quis saber Isabel.
“Sim, senhor, eu receio que ele fez isso.”
Eles dois deram uma espiada cozinha adentro. O refrigerador estava
bem aberto e Wipi estava puxando pratos da geladeira e entregando-os a
Nipi. Havia uma grande bandeja de cerâmica em cima do balcão, deixando
à mostra um peru meio retalhado, disposto sobre um acompanhamento de
pão de milho. Makwa, Chet e Vernon estavam enfiando bocados dentro de
suas bocas, sem ao menos se darem ao trabalho de usar talheres. Vernon
olhou para cima, com uma expressão de culpa no rosto.
“O que foi? Eu estava morrendo de fome. Pelo amor de Deus, nós não
comemos desde… ontem… ou seria desde anteontem?”
Jesse deparou-se com um relógio e ainda faltavam dez minutos para a
meia-noite. Tentou descobrir quanto tempo fazia que estavam acordados,
mas como haviam passado por dois continentes diferentes, ele não fazia a
mínima ideia.
“Onde está Krampus?”, quis saber Isabel.
“Ele desceu o corredor”, disse Chet, com um bocado de molho na boca.
“Desceu o corredor?”, perguntou Isabel. “Você perdeu Krampus de
vista?”
“Ei”, disse Chet. “Não sou nenhuma babá.”
Eles ouviram um grito, o grito de uma criança.
“Ah, pelo amor de Deus!”, disse Isabel, e desceu voando pelo corredor.
Jesse foi correndo atrás dela. Krampus estava no meio do quarto, entre duas
camas, uma das quais estava vazia, e duas garotas estavam aninhadas
juntas. Jesse calculou que uma das crianças devia ter uns 9 ou 10 anos e que
a outra, mais nova, devia ter a mesma idade de sua Abigail. As meninas
estavam acuadas em um canto, em cima de travesseiros e bichinhos de
pelúcia, tão longe de Krampus quanto possível. Ambas choravam,
agarradas uma na outra, tremendo, com os olhos cheios de terror.
Krampus deu um passo para a frente, e as meninas soltaram um grito
estridente, chutando o ar como se alguma coisa as estivesse mordendo.
Jesse não conseguia suportar isso, só conseguia pensar em sua própria
filha.
“Krampus”, gritou Jesse. “Para com isso, você não pode…”
“Silêncio”, disse Krampus, irritado, erguendo um dedo. “Não
interfiram. Isso é um comando.”
Jesse ficou quieto; ele descobriu que mal podia fazer qualquer coisa
além de ficar olhando, não importando o quanto ansiava por arrancar
Krampus do aposento.
Krampus voltou até as meninas, ajoelhou-se apoiado em um dos joelhos
e levou um dos dedos a seus lábios.
“Silêncio”, ele sussurrou. “Silêncio, eu sou Krampus, o espírito do Yule.
Trago presentes.” Suas palavras eram bondosas, hipnóticas. As meninas
pararam de gritar, acalmaram-se um pouco. “Vocês gostariam de ver seus
presentes?”
Nenhuma das meninas respondeu, apenas ficaram encarando Krampus,
com olhos arregalados, cheios de terror.
Krampus baixou as palmatórias, deslizou o saco de seus ombros, cerrou
os olhos e enfiou a mão no saco, tirando de dentro duas moedas douradas
triangulares, estirando-as para as meninas verem, e a curiosidade
lentamente substituiu seus medos.
“Moedas douradas do reino de Hel. Elas podem comprar para vocês
muitas coisas bonitas.”
As moedas deixaram as meninas hipnotizadas.
“Vocês gostariam de ficar com elas?”
As duas meninas assentiram.
Krampus estirou-as, mas, quando as meninas esticaram as mãos para
pegá-las, Krampus puxou as moedas de volta.
“Há uma condição. Em primeiro lugar, vocês devem falar o meu nome.
Vocês podem me chamar de Krampus, o Senhor do Yule. Agora, digam o
meu nome.”
“Krampus, o Senhor do Yule”, disseram as meninas em coro.
Krampus sorriu.
“Que bom.” Ele entregou a elas as moedas.
As meninas admiraram as moedas, seus recém-descobertos tesouros.
“Que bom.” E Jesse se perguntava que feitiço Krampus teria lançado
nelas. “Há mais coisas, pois o mundo é um lugar difícil e nada vem sem um
preço. Vocês devem saber que a cada ano, no Yuletide, eu voarei por aqui.
Pode ser que eu volte, ou não. Mas caso eu as honre com uma visita,
realmente tenho a expectativa de que haja um tributo à minha espera,
provas de sua devoção. Tradicionalmente isso é feito colocando-se sapatos
no degrau da escada e deixando-me um presente ou um ornamento dentro
dele. Acham que conseguem fazer isso?”
As garotas assentiram.
“Que bom, pois se eu encontrar um presente vocês podem receber uma
outra moeda de ouro, ou podem receber algo ainda melhor. Mas, se eu não
encontrar nada…” Krampus pegou o saco e as palmatórias, ficou em plena
altura, com a voz bem baixa e ameaçadora. “Se eu não encontrar nenhum
tributo, então vou colocar vocês dentro do meu saco e espancarei vocês até
sangrarem.” Ele bateu uma vez no saco com as palmatórias.
As meninas pularam para trás e Jesse achou que fossem começar a
gritar de novo.
“Haverei de encontrar sapatos cheios de presentes no próximo
inverno?” Ambas as meninas assentiram com firmeza. “Que bom. E qual é
o meu nome?”
“Krampus”, disseram elas juntas.
“Que bom”. Ele deu um tapinha amigável em cima das cabecinhas
delas. “Boa noite, meus docinhos. Durmam bem.”
Então Krampus saiu do quarto das meninas.
Isabel borrifou areia de fazer dormir nelas e cobriu-as para que
dormissem. Elas pareciam anjos dorminhocos. Jesse se perguntava o quanto
elas haveriam de lembrar-se disso quando a manhã chegasse. Ele esperava
que não fosse muito. Esperava que não acordassem gritando todas as noites.
NADA.
Escuridão.
Luz.
Sem direção, com a corrente o puxando-o para baixo, mais para baixo, e
cada vez mais para baixo. Afundando. Engasgando-se. A dor da carne. O
Papai Noel sentiu pedra fria embaixo das costas, abriu os olhos. Tudo
estava banhado em uma luz dourada. Formas borradas mexiam-se ao redor
dele.
O rosto de sua esposa pouco a pouco entrou em foco, pairando sobre
ele, não Nanna, mas sim Perchta, sua esposa nascida na Terra. Ela agarrou a
mão dele, a preocupação entalhada em seus olhos imortais.
“Ele está vivo”, ela sussurrou e então, em voz alta, disse: “O Papai Noel
retornou a nós!” Um grande clamor ecoou pela câmara. Papai Noel piscou;
ele jazia deitado na capela, cercado por suas esposas inferiores. Todas
choravam e lamuriavam com alegria. Os sons entrando como estocadas de
facas em sua cabeça.
Então aquilo era a morte. Sem pensamentos. Sem memórias. Sem
arrependimentos. Nada. Tão doce.
Dois seres, nem do sexo masculino, nem do feminino, trajando robes
dourados estavam parados, em pé, aos pés dele, com suas asas brancas
quase brilhantes demais para que ele olhasse para elas. Um deles
pronunciou-se:
“Parece que Deus não deseja você morto.”
“Por quê?”, disse ele, tossindo, pigarreando. “Como é que eu importo
para Deus?”
Os dois anjos trocaram um sorriso surpreso.
“Por quê? Por que você a diverte.”
“Eu a divirto?” O Papai Noel sentou-se direito. O mundo girava a seu
redor. Ele segurou-se na laje para equilibrar-se. “Divirto? Eu não sirvo a
nenhum propósito maior do que o entretenimento?”
“Você traz um sorriso aos lábios de Deus. Isso não é o bastante?”
Papai Noel girou e tirou os pés da laje, tentando ficar em pé. Seus pés
cederam e Perchta segurou-o, impedindo que ele caísse.
“Eu não passo de um brinquedo.”
“Você está chateado?”
“Estou farto de divertir os deuses. Farto de canções e danças.”
“Você quer que isso acabe?” O anjo franziu o cenho. “Mas não existe
chamado maior do que servir ao Senhor. Isso não é uma honra?”
Sinos, bem ao longe, ficando mais altos, vozes, era aquela canção,
aquela canção tola, boba: “Lá vem o Papai Noel”. Papai Noel olhou de
relance a seu redor, para as mulheres, e nenhuma delas parecia ouvir a
música. “Cansei, eu disse. Estou farto disso tudo. Digam a Deus para que
me deixe em paz!”
“Você desistiria disso tudo?” O anjo deu de ombros. “Se for seu desejo
deixar isso para trás, tornar-se mortal, isso pode ser feito.” A canção, os
sons, eles começaram a minguar. “Seu nome, como sua canção,
desvanecerão, e, por fim, o nome Papai Noel será esquecido.”
A canção cessou; a respiração dele sendo o único som. O silêncio
congelou seu coração.
“De que nome você será chamado a partir de agora?”, quis saber o anjo.
“Imagino que não seja Baldr. Bob? Mike? Tom? Quem você será agora?”
“Pare com isso! Por que você me atormenta assim?”
O anjo deu uma risada.
“Somente você atormenta a si mesmo. Você acredita mesmo que seja
igual a gente como Jesus ou algum dos grandes profetas? Você é uma
curiosidade, um homem que traja uma roupa vermelha e sai distribuindo
presentes.”
Papai Noel cerrou os dentes.
“Nós haveremos de honrar seu desejo, no entanto, lembre-se de que
você virou suas costas a Deus.”
Os anjos retiraram-se dali, deixaram a capela e foram subindo pelo
caminho.
“Não”, disse o Papai Noel. Os anjos continuaram andando. “Não”, disse
ele, chamando-os. “Não… não vão embora!” Ele deu um passo na direção
deles, agarrando-se à laje para manter-se ereto. “Eu retiro o que eu disse!”,
gritou ele. A voz dele partiu-se e virou soluços chorosos. “Retiro o que
disse.”
Os anjos pararam, com os olhos cheios de pena. Eles voltaram.
“Quem é você?”
Ele olhou com ódio para eles.
“Eu sou o Papai Noel.”
Eles sorriram.
“Tenha esperança e crie coragem, Papai Noel. Você dissemina
esperança e alegria em um mundo de trevas. Você agrada a Deus em um
universo em que muitos não o fazem. Fique feliz com isso.”
Os sinos voltaram, aqueceram-no, atingiram seu âmago, tocaram sua
própria alma. Um grande peso foi erguido de seu peito. Ele inalou o ar a
fundo e, mais uma vez, sentiu-se inteiro.
“Agora chega de besteira”, disse o anjo. “O mundo precisa do Papai
Noel e Deus deseja saber se existe alguma coisa que ela possa fazer por
você.”
O Papai Noel começou a balançar a cabeça em negativa, parou, e seus
olhos encontraram-se com os do anjo.
“Sim, com toda certeza. Há um diabo que precisa ser morto.”
“ALI, ALI É um bom lugar para começar, como qualquer outro.” Jesse
apontou para o campanário lá embaixo. “As luzes estão acesas. Parece ter
um bocado de gente ali.”
Isabel mordeu o lábio. Ela já havia vetado as duas igrejas anteriores,
sobre as quais eles tinham passado voando. Ela balançou a cabeça e abraçou
Lacy.
“O que foi? Por que não?”
“Não conheço aquela igreja.”
“Eles são metodistas, Isabel.” Ela torceu o nariz. “O que foi, você não
gosta de metodistas agora? Primeiro, pentecostais, agora, metodistas. Quem
já ouviu falar de alguém que tenha algum problema com os metodistas?
Isabel, eu acho que você só está procurando uma desculpa. Agora você tem
que pensar em Lacy.”
Isabel franziu o cenho.
“Ok”, disse ela, em algo um pouco mais alto do que um sussurro.
“O quê?”, perguntou Jesse. “Você disse ok? Ok para a igreja?” Ela
assentiu, com os lábios apertados e retraídos. “Ok”, disse Jesse a Krampus.
“Podemos levá-la até lá.”
Krampus aterrissou com o trenó em um pequeno campo atrás da igreja.
Uma fileira de cercas vivas provia uma cobertura razoável dos lares logo do
outro lado da rua.
Krampus não parecia se importar muito de uma forma ou de outra, não
tendo falado nenhuma única palavra desde que partiram. Ele ficou fitando a
igreja como se fosse uma praga na terra.
Jesse ajudou Lacy a descer, de olho em Isabel, que continuava a
escrutinizar a igreja. Ele sabia que ela estava procurando pelo menor
motivo que fosse para cancelar a coisa toda.
Isabel pegou na mão de Lacy. Depois de um bom minuto tendo se
passado sem que ninguém dissesse nenhuma palavra, sem que Isabel desse
um único passo à frente, Jesse colocou a mão no ombro dela e sussurrou:
“Você está fazendo a coisa certa”.
Isabel assentiu.
“Eu sei. Eu sei disso.” Ainda assim, ela estava lá, parada. “Eu ficaria
feliz de ir com você.”
“Não. Você não vai querer que ninguém nos veja… nenhum de nós. Isso
apenas dificultaria as coisas para Lacy.”
Isabel olhou para a garotinha.
“Ok, Lace, vamos encontrar uma pessoa legal para ficar com você por
um tempinho.” Isabel fez um esforço óbvio para soar animada, mas Jesse
conseguia ouvir a tensão em sua voz. “Ok?”
Lacy parecia assustada e insegura, mas quando Isabel puxou-a consigo,
ela veio prontamente, e elas dirigiram-se passadiço acima, mantendo-se nas
sombras enquanto seguiam em direção à frente da igreja.
Jesse podia ver as pessoas pelas janelas; eles pareciam estar decorando a
capela nos preparativos para a véspera do Ano Novo. Uma alta árvore de
Natal estava em frente a uma das janelas, com suas luzes piscando.
Krampus ficou encarando de cara feia.
Vernon passou deslizando por entre as cercas vivas, seguindo até uma
fileira de caixas de correio. Recipientes de plástico para jornais com o
logotipo Boone Standard pendiam das caixas. Um deles ainda tinha um dos
jornais e Vernon o pegou e abriu, passando o olho pelas páginas enquanto
voltava.
“Ah, meu…”, disse Vernon. “Krampus, você provavelmente vai querer
ler isso.” Krampus ignorou-o, apenas encarando a árvore de Natal.
Vernon pigarreou e começou a ler.
“Escudeiros do Papai Noel Fazem a Dança pelo Condado de Boone.
Estranhos relatórios têm vindo de todo o Condado de Boone sobre uma
série de incidentes bizarros de lares invadidos e trenós voadores. Os
incidentes estão conectados por descrições de indivíduos vestidos de forma
estranha, parecendo ter chifres e olhos brilhantes. Alguns afirmam se tratar
de demônios do Natal, outros colocam a culpa da encrenca em uma onda de
crimes perpetrada por uma gangue disfarçada em fantasias bizarras. O
xerife Wright diz apenas que eles estão investigando os casos. Fontes
próximas ao xerife confirmam que as atividades da gangue estão em
primeiro plano na investigação em andamento. Diversas vítimas
pronunciaram-se e proveram relatos muito perturbadores de ataques,
vandalismo e intimidação.” Vernon pulou algumas linhas. “No entanto,
ninguém ainda conseguiu explicar as dezenas de relatórios falando de um
trenó voador puxado por bodes, repleto, afirmam, dos mais estranhos
criminosos.”
Chet deu uma risada e balançou a cabeça em negativa.
“Espere”, continuou a dizer Vernon, “também tem isso daqui. O próprio
Bill Harris da Standard recebeu um relato muito diferente de Carolyn, de 10
anos de idade, da cidade de Goodhope, e de seus cinco irmãos e irmãs.
Carolyn relata uma história de uma besta alta e chifruda que se intitula
Krampus, Senhor do Yule, e deixa moedas àqueles que o honram com um
tributo (na forma de um doce ou de uma bugiganga deixados em seus
sapatos no degrau da frente da casa). Além do mais, ela acrescentou que
aqueles que não oferecem o tributo correm o risco de que o demônio
Krampus os coloque dentro de seu saco e os chicoteie. Depois de falar com
filhos de outras vítimas da área, todos corroboraram a mesma e muito
estranha história. Mais credibilidade é dada devido ao fato de que cada uma
dessas crianças tinha em sua posse essas mesmas moedas triangulares de
ouro. Quando lhes perguntaram se pretendiam colocar doces e bugigangas
em seus sapatos e deixá-los nos degraus de suas escadas nessa época do
próximo ano, todas elas declararam veementemente que fariam isso.”
Vernon mostrou a eles as fotos: uma, uma nítida fotografia instantânea
de Carolyn e seus irmãos, cada um deles segurando uma moeda triangular;
outra, meio borrada, de Krampus e os Belsnickels descendo voando por
uma rua no trenó; e uma final, uma charge de um diabo animado com rosto
preto e chifres, cascos e um rabo torcido, segurando uma palmatória de
bétulas. Vernon leu a legenda. “Farsa? Ou o Demônio do Natal veio à
cidade?”
Vernon abriu seu próprio sorriso diabólico e mostrou a foto a Krampus.
“Bem, meu velho, eles sem dúvida recriaram sua imagem com muita
fidelidade. O que você me diz?”
Krampus arrancou o jornal da mão de Vernon, amassou-o, bateu com
tudo com o jornal no chão e pisou nele, quase dançando sobre o papel.
“Demônio do Natal!”, grunhiu Krampus. “Do Papai Noel! Não! Não!”
Ele olhou com ódio para a igreja. “Eles veem diabos em toda parte quando
os únicos diabos que sobraram foram eles mesmos. Por que eles têm que
distorcer a tradição do Yule e transformá-la em algo tão perverso? Por que
eles têm que perverter tudo o que é meu? Aquela é uma árvore de Yule, e
não uma árvore de Natal. Trazer sempre-verdes para dentro de casa para
celebrar a Deusa que nunca morre, o retorno do calor do sol, essa é uma
tradição que remonta a antes dos antigos druidas, ao retorno do calor do sol,
e muito, mas muito, muito antes da criança chamada Jesus ser vomitada
naquela imunda manjedoura. Quem são eles para pilharem minhas
tradições, violarem-nas e profanarem-nas? Já passou da hora de o Senhor
do Yule não tolerar tamanha zombaria!” Krampus cuspiu, alto, no jornal, e
saiu batendo os pés em direção à igreja.
Jesse e Vernon trocaram um olhar cheio de pânico.
“Bem”, disse Jesse, alcançando Krampus e segurando seu braço. “Isabel
nos pediu que ficássemos aqui atrás.”
Krampus deu de ombros e continuou subindo pelo caminho, dirigindo-
se até os degraus da frente. Os shawnees acompanhavam seus passos.
“Muito bem”, disse Jesse a Vernon, e deu um empurrãozinho nele.
Vernon ergueu as mãos.
“O que foi?”
Chet deu risada e disse:
“Nunca gostei muito dos metodistas mesmo.”
ISABEL PUXOU Lacy para as sombras ao lado dos degraus da frente da igreja
metodista. Ela ajoelhou-se e olhou direto nos olhos de Lacy.
“Ok, Lacy. Está na hora. Como conversamos. Você está preparada?”
A expressão no rosto da garotinha ficou anuviada.
“Eu não quero que você se vá, Isabel.”
“Eu sei. Eu também não quero ir, mas tenho que ir. Então eu preciso ser
forte… forte por nós duas. Porque se você começar a chorar, vai me fazer
chorar. Então eles podem me pegar. Eu poderia entrar em uma encrenca das
feias.”
Lacy fechou a cara e assentiu.
“Eu não vou chorar não, Isabel. Juro!”
Então Isabel percebeu quanta força tinha essa garotinha, entendeu que
Lacy tinha que ser forte para ter sobrevivido ao que havia passado.
Duas mulheres, ambas parecendo ter 30 e tantos anos, ambas acima do
peso, com rostos que pareciam ter visto muitas dificuldades, vieram pelo
passadiço, subiram os degraus e entraram na igreja. Elas pareciam mulheres
boas, temerosas a Deus, o pessoal da colina, do tipo de mulheres em que
Isabel sentia que podia confiar.
“Lacy, eu quero que você vá até lá dentro e se apresente àquelas duas
senhoras. Você se lembra do que falei para você dizer?”
“Que minha mamãe e meu papai estão mortos. Que uma moça que não
conheço me deixou aqui. Que ela me disse para encontrar alguém para me
ajudar.”
“Isso mesmo. Agora me dá um abraço e corre atrás delas.”
A menina abraçou Isabel, abraçou-a tão forte quanto uma menina de 6
anos conseguia abraçar. Isabel teve que piscar para conter as lágrimas,
sabendo que a última coisa de que Lacy precisava naquele momento era vê-
la chorando. Isabel afastou-se dela, apontou para Lacy na direção dos
degraus e deu um leve empurrão nela. Lacy dirigiu-se degraus acima,
chegou nas grandes portas, ficou hesitante, olhando com incerteza para
Isabel.
Isabel assentiu e soprou um beijo para ela.
Lacy puxou uma das duas pesadas portas, que cedeu um pouco, mas ela
não a conseguiu abrir. Tentou mais duas vezes, depois olhou para Isabel e
deu de ombros.
“Que diabos”, disse Isabel, saindo das sombras e subindo as escadas.
Ela empurrou a grande porta e abriu-a, conduziu Lacy para dentro e deu
uma breve espiada. Um vestíbulo com portas duplas dava para o interior da
capela; através das janelas de vitral, ela podia ouvir música e ver as pessoas
se mexendo. Um lance de escada dava para baixo na direita e na esquerda
do vestíbulo. Ela avistou uma placa escrita à mão, que dizia: recuperação de
divórcio. Uma seta dava para baixo, nos degraus à esquerda, e Isabel
entendeu aonde as mulheres deviam estar se dirigindo.
“Para lá”, disse ela a Lacy em um tom sussurrante, apontando para
baixo, em direção à escada.
“Hein?”, disse Lacy, parecendo confusa.
“As mulheres desceram…” Isabel ouviu vozes vindas de trás, e um
olhar de relance por cima do ombro revelou quatro mulheres dirigindo-se
passadiço acima. Sem nenhuma outra rota por onde sair, Isabel abaixou-se
dentro do vestíbulo, apanhou Lacy pela mão e desceu com ela o curto lance
de escadas. Elas empurraram uma dupla de portas oscilantes embaixo da
escada e saíram em um longo corredor pouco iluminado. Havia duas portas
à frente: a mais próxima estava fechada, aquela no fim do corredor estava
aberta, e uma luz brilhante vinha iluminando o corredor, revelando uma
outra placa escrita à mão.
Risadas, o tamborilar de pés… quatro pessoas desciam as escadas atrás
delas. Isabel subiu correndo até a primeira porta, girando um pouco sua
maçaneta. Estava trancada. Não havia nenhum outro lugar para onde ir. Ela
encostou o ombro na porta, deu um forte empurrão e a porta continuou
firme. Tentou de novo, com mais força, e ouviu o rachar da ombreira da
porta.
“Olá, podemos ajudá-las?”
Isabel girou e deparou-se com quatro mulheres encarando-a lá embaixo
na escada. Ela tentou manter a cabeça baixa e os olhos desviados delas.
“Nós a conhecemos?”, perguntou em voz alta uma mulher corpulenta,
trajando um casaco de caça verde-floresta. Ela era a menor das quatro, mas
seus modos deixavam que se soubesse logo de cara que não toleraria
nenhuma besteira. “Moça, olhe aqui para mim.” Ela se aproximou um passo
de Isabel, olhou melhor para ela e parou de andar. “Que diabos…?”
“O que está acontecendo”, disse outra voz, vinda da outra extremidade
do corredor. Uma mulher de constituição esguia e trajando um vestido
simples até a altura dos joelhos estava em pé, ao brilho da luz do aposento.
“Gail, é você? O que houve?”
Mais outras três mulheres saíram do aposento atrás dela.
Isabel deu-se conta de que estava presa. Ela mediu as mulheres na frente
da escada e percebeu que teria que passar voando por elas, ir abrindo
caminho e esperar pelo melhor. Só que ela não sabia ao certo se
conseguiria, não se elas quisessem briga. Essas eram mulheres grandes,
com expressões endurecidas, trajando camisas de flanela e botas, esposas e
filhas de mineiros, mulheres robustas que tinham criado muitas crianças e
vivenciado e visto mais do que sua boa cota de coisas ruins. E, justo quando
Isabel achava que as coisas não poderiam ficar piores, mais cinco mulheres
vieram descendo as escadas, tentando ver melhor tanto Isabel como Lacy.
“Ela é um deles!”, gritou uma das recém-chegadas, que apontou para
Isabel. “Veja. Uma daqueles do jornal. Uma do bando de doidos que vêm
causando toda aquela encrenca.”
“Moça, o que é que você está fazendo com essa menininha aí?”, disse a
mulher que trajava a jaqueta de caça, e Isabel ouviu tudo que precisava
ouvir naquele tom de voz, soube do que estava sendo acusada, soube que
seus problemas tinham acabado de aumentar ainda mais.
“Cindy”, disse a mulher. “Chame a polícia. Fale para que Mark e os
rapazes venham até aqui. Agora, rápido, correndo!”
Uma das moças, que estava atrás no grupo, subiu correndo as escadas.
Isabel entendeu que tinha que fazer alguma coisa, e rápido. Ela deu um
passo afastando-se de Lacy.
“Nem pense nisso”, disse a mulher. As mulheres empurraram as portas
duplas e as fecharam atrás delas, fecharam o ferrolho e também o cerco.
“Você não vai a lugar nenhum.”
UM SOM ALTO e oco reverberou pelo teto. Isabel e todas as mulheres olharam
para cima.
“Que diabos está acontecendo lá em cima?”, perguntou a mulher que
trajava a jaqueta de caça.
Um instante depois, elas ouviram gritos, urros e o som de pés batendo
no chão como tambores. Isabel fazia uma boa ideia do que se tratava. Ai,
merda, Krampus. O que foi que você fez agora?
Alguém lá em cima gritou “FOGO!”… e naquele instante, a fumaça
começou a sair pelas aberturas no teto.
“PARA FORA!”, gritou a mulher com a jaqueta de caça. “O lugar está
pegando fogo! Todo mundo, para fora!”
Todo o grupo de mulheres paradas na frente das portas duplas se virou e
saiu correndo em direção à saída, empurrando as mais próximas em direção
às portas. E, visto que as portas abriam-se por dentro, em direção ao
corredor, isso as deixou trancadas.
“Parem! Esperem!”, gritou alguém. “Vocês todas vão ter que recuar.”
Era a mulher que estava atrás de Isabel que falava, aquela com o vestido
simples. Ela começou a descer o corredor em direção à aglomeração de
mulheres. “Fiquem calmas. Vocês têm que ficar calmas.”
Algumas mulheres estavam tentando sair do emaranhado, mas as outras,
em pânico, apenas empurravam com mais força. Isabel começou a seguir
em frente, com a intenção de empurrar as mulheres para longe umas das
outras, quando ouviu gritos vindos de trás dela.
Pelo menos uma dúzia de mulheres tinha saído do aposento no fim do
corredor e vinham em sua direção apressadíssimas. Lacy estava parada bem
no meio do caminho delas. Isabel foi se arrastando para pegá-la, mas não
teve chance. A mulher com o vestido simples agarrou Lacy e empurrou-a
para dentro do poço com a porta oca, aquela na frente da porta trancada. As
mulheres passaram por Isabel, que não viu o que aconteceu; a próxima
coisa que viu foi ela mesma ser jogada para baixo no corredor, batendo com
tudo no chão e ficando presa na correria de corpos que lutavam uns com os
outros.
O ar ficou denso, a fumaça fazia com que todo mundo tossisse,
aumentando o pânico. Isabel encontrava-se presa, lutando para que o ar
entrasse em seus pulmões. Ela ouviu seu nome, um profundo e retumbante
chamado que ressoava acima dos gritos e berros das mulheres. Então algo
foi terrivelmente estalado e, de uma vez só, a luz apareceu acima das portas
duplas. Outro estalido, mais algo se partindo, e um bom pedaço da porta foi
arrancado para fora. Ela o viu então, com seus olhos brilhantes e sua
silhueta inconfundível. Krampus envolveu a porta com suas grandes mãos,
soltou um rugido e deu um belo de um puxão na porta, cujo batente pipocou
e estalou, com uma das portas duplas abrindo e colidindo contra os degraus.
E ali estava o Senhor do Yule, alto e terrível, e os Belsnickels logo atrás
dele. Krampus puxou as mulheres para fora do amontoado, empurrou-as
escadaria acima; os Belsnickels, por sua vez, conduziram-nas para fora da
armadilha mortal.
“Isabel!”, gritou Krampus, com a voz frenética. “Cadê você?”
“Krampus!” Ela conseguiu soltar uma das mãos e acenar. Krampus
empurrou as mulheres para a direita e para a esquerda, abrindo caminho até
Isabel, agarrou-a e colocou-a em pé.
“Vamos logo!”, gritou ele, empurrando-a em direção às escadas.
“Espere”, gritou Isabel. Ela olhou para baixo, pelo corredor parcamente
iluminado e cheio de fumaça, em busca de Lacy. E lá estava ela… nos
braços daquela mulher, a de vestido. A mulher tossia, seus olhos
derramando lágrimas, mas ela segurava Lacy com força. Isabel foi em um
pulo até elas, colocou um dos braços em volta das duas e conduziu-as até as
escadas. As últimas mulheres estavam subindo aos tropeços os degraus com
a ajuda de Jesse e Chet. Isabel conduzia Lacy e a mulher para fora,
seguidas, por fim, por Krampus.
Eles saíram no ar da noite. Isabel inspirou fundo; nunca o ar fora tão
doce. Cinzas e brasas caíam na neve, a fumaça subia ao redor deles. Isabel
viu a figura do alto e chifrudo Krampus em frente à paisagem infernal,
cercado por seus Belsnickels, e não conseguiu evitar pensar em Satã e sua
horda de demônios.
“Venham”, disse Krampus. “Vamos encontrar os bodes do Yule antes
que eles se percam por aí.”
Ele dirigiu-se de volta em torno da lateral da igreja, seguido pelos
Belsnickels, todos desaparecendo em meio à fumaça.
As pessoas estavam se reunindo no estacionamento. Isabel começou a
levar a mulher e Lacy por aquele caminho, avistou uma viatura policial
vindo com tudo, quase acertando dois transeuntes. A viatura parou,
derrapando ao lado de uma outra. Isabel parou, ficou com um joelho só no
chão, deu um beijo rápido na bochecha de Lacy e abraçou-a com força.
“Tenho que ir, Lacy. Fique bem, ok?”
“Você também fique bem”, disse Lacy, abraçando-a em resposta.
Isabel levantou-se e segurou no braço da mulher.
“O nome dela é Lacy. Por favor, cuide dela.”
A mulher olhou confusa para Isabel, mas assentiu com uma convicção
sincera e intensa, pegando Lacy no colo e dirigindo-se para longe das
chamas. Isabel queria ficar vendo-as ir embora, mas as lágrimas borravam
sua visão e ela virou-se para trás, correndo para dentro da fumaça atrás de
Krampus.
KRAMPUS foi quase pulando pelas entradas de carros das próximas casas,
com o rabo se mexendo brincalhão para a frente e para trás, quase
abanando. Ele não entrou sorrateiramente, não mais; ele entrava nas casas
audacioso e com altos gritos de congratulações de Yuletide. Os Belsnickels
juntavam-se para subjugar pais alarmados, enquanto Krampus encantava e
aterrorizava as crianças com histórias e presentes. Em uma das casas, um
homem descarregou ambos os canos de sua espingarda e muito
provavelmente teria matado Vernon, se Chet não tivesse conseguido tirar a
arma dele. Eles foram voando de casa em casa, com Krampus gritando
congratulações de Yule a todos que via lá embaixo, e logo Jesse perdeu a
conta dos lares que atacaram.
Em algum momento depois da meia-noite, eles ouviram música
enquanto passavam voando rápido por uma faixa solitária da estrada bem
fora da cidade, nas colinas. Eles deram uma volta voando e viram um
edifício afastado da estrada. Um punhado de carros, motocicletas e
caminhões estavam estacionados sob o brilho de placas de neon de cerveja.
Krampus circulou o lugar, viu um punhado de pessoas seguindo em frente e
rindo enquanto tropeçavam umas nas outras para entrarem no lugar.
Jesse avistou o nome do bar, Horton’s, e percebeu que conhecia o lugar,
que na verdade havia tocado lá uma vez um tempo atrás. Ele lembrava que
havia uma multidão tensa, um daqueles bares onde colocam rede de
galinheiro na frente do palco para evitar que os músicos sejam atingidos por
garrafas de cerveja.
“Isso é um salão de festim?”, quis saber Krampus. “Ou taverna, talvez?”
“É um bar”, disse Chet. “Outra porcaria de honky-tonk.”
“O que estão celebrando?”
Chet deu de ombros.
“Chuto que mais um dia nesta merda de planeta.”
Krampus assentiu.
“É na verdade um bom dia para celebrar.”
Ele desceu o trenó, aterrissando-o atrás do bar. Apanhou o saco e saiu
do trenó em um pulo.
Jesse reconheceu a melodia, uma versão malfeita daquela música antiga
dos Oak Ridge Boys, “Elvira”. Jesse sempre odiara essa canção. Mas é alto,
pensou Jesse. E às vezes isso é tudo que importa.
“Venham”, disse Krampus, e começou a afastar-se.
“Não acham que eu devo ficar fora dessa?”, perguntou Vernon.
“Não. Está na hora de celebrarmos o retorno de Yuletide. A hora de
todos nós celebrarmos.”
“Sim, bem, eu receava que sim.”
Eles desceram do trenó e seguiram o Senhor do Yule até a frente do bar.
Chet começou a rir sozinho.
“Se ocorrer a metade do que houve naquela igreja, então vamos ter
muita diversão.”
“Pode ser mais seu tipo de público”, acrescentou Jesse.
“Não”, gemeu Vernon. “Ele não tem público. Esse será outro desastre.”
“Mal posso esperar”, disse Chet.
DOR… UMA DOR profunda e aguda… puxou Dillard da escuridão. Ele soltou
um grito, abriu os olhos e estava em sua sala de estar, de barriga para cima.
Tentou sentar-se direito e percebeu que suas pernas estavam amarradas e
suas mãos, atrás das costas. Seu dedo latejava, parecia em chamas, parecia
que alguém o havia quebrado.
“Essa foi pela Abigail.”
Dillard piscou e Jesse entrou em foco. Jesse estava sentado em uma das
cadeiras da sala de jantar, encarando-o com olhos duros como o aço. Um
grande saco preto estava encostado em sua perna e a sacola plástica do
banheiro estava a seus pés… a fita, a faca e o martelo esparramados pelo
carpete. Jesse estava com uma arma apontada para a cara de Dillard.
Dillard uma vez dera uma arma a Jesse e o desafiara a atirar nele. Ele
nunca teria dado uma arma ao homem que estava diante dele naquele
momento. Jamais.
A coronha da arma foi com tudo para cima do crânio de Dillard. Uma
dor cegante e brilhante avassalou sua cabeça. Ele pressionou os olhos,
fechando-os, lágrimas escorrendo por sua bochecha, a dor tamborilando em
seus ouvidos.
“Essa foi por Linda.”
“Ah… que merda!”, gritou Dillard, sentindo o gosto de seu próprio
sangue. “Que porra!”
Jesse levantou-se, pegou o saco preto e jogou-o aos pés de Dillard.
Dillard ficou olhando inexpressivo para o saco, tentando entender qual
era seu propósito.
“Coloque suas pernas dentro do saco”, ordenou-lhe Jesse, cuja voz
estava totalmente desprovida de emoção, como a voz de um carrasco que
tem um trabalho a fazer.
Dillard apertou os olhos para Jesse.
“O quê? No saco? Não estou entendendo.”
“Você vai para o inferno, Dillard. Dar um passeio com os mortos.”
“Jesse, devagar. Vamos apenas…”
“Eu vou repetir só desta vez… só desta vez. Coloque as pernas dentro
do saco!”
“Jesse, eu não sei o que você tem em mente, mas…”
Jesse acertou com a bota as costelas de Dillard, que soltou um grito.
“Que porra! Ok, ok. O que diabos você quiser!”
Dillard tentou o melhor que pôde colocar os pés na abertura do saco.
Jesse pegou a boca do saco, mantendo a arma apontada para Dillard
enquanto envolvia os pés dele com o saco, puxando-o para cima, até a
cintura.
Dillard parou, ficou paralisado. Algo estava errado, algo estava muito
errado. Ele sentia um calafrio, não como ar, mas como líquido entrando em
sua carne. Isso fazia seus dentes doerem.
“Ei, o que é isso? O que está acontecendo?” E naquele instante ele
decidiu que não ia entrar no saco, que preferia uma bala a entrar no saco.
Ele contorceu-se, chutando com selvageria, mas não achou nada para
chutar; era como se estivesse flutuando. Jesse soltou a arma, apanhou
Dillard pelo colarinho e puxou o saco para cima dos braços de Dillard, que
tentava, contorcendo-se, libertar-se, jogando seu peso para cima. Viu que
não tinha onde se segurar. Jesse enfiou-o ainda mais no saco, até o pescoço,
então… então só o manteve lá. A única coisa no mundo o impedindo de
descer por completo era a pegada de Jesse em seu colarinho.
Dillard ouviu vozes, sussurros como o som de insetos andando pelo
chão, e lamúrias, que vinham bem lá do fundo do saco.
“O que é isso? O que é esse som? Que porra é essa?”
“São os mortos… eles estão esperando por você.”
Os olhos de Dillard ameaçaram sair de suas cavidades.
“Jesse, não me solte”, disse ele. “Por favor, pelo amor de Deus. Estou
implorando a você, Jesse. Por favor!”
“As pessoas aguentam viver 28 dias sem comida antes que morram de
fome. Mas você é um camarada durão. Aposto que você consegue aguentar
pelo menos trinta dias. São trinta dias no inferno, trinta dias com os mortos
cantando a canção deles. Depois… bem, então eu acho que você vai se
juntar ao coro deles.”
Jesse soltou o colarinho de Dillard, deu-lhe um bom empurrão,
enfiando-o mais no saco.
Veio um momento de escuridão, de queda, então os pés de Dillard
toparam com algo que tinha substância, em seguida veio o tilintar do metal
e ele estava tropeçando e deslizando. Ele colidiu com algo duro, jogando
poeira e lascas frágeis em seu peito e em seu rosto.
Ele cuspiu, tentando tirar os destroços de seu rosto, piscou e abriu os
olhos, e deparou-se com uma caveira, cujo crânio estava arregaçado em
cima de seu peito e olhando-o tristemente. Ele inalou a fundo, enchendo
suas narinas com o pungente odor de enxofre e podridão seca. Ele deu um
selvagem olhar de relance a seu redor e foi cumprimentado por mais
centenas de sorrisos largos sem dentes, caveiras e ossos de todos os tipos, a
maioria pretos, como se tivessem sido queimados, todos cobertos de uma
poeira cinzenta. As próprias paredes e o teto pareciam não ser compostos de
nada além de ossos e iam até o limite de sua visão, subindo e descendo por
melancólicos corredores e cavernas.
As algemas mordiam seu pulso enquanto ele lutava para se sentar, seus
dedos tocando o frio metal, e ele olhou de relance para baixo e descobriu
que estava sentado em cima de um monte de moedas, e não moedas
quaisquer, essas eram de ouro e triangulares. A pilha continuava mais alta,
formando uma alta pirâmide, desaparecendo na melancolia fumacenta logo
acima dele. Era o caminho da saída, ele estava certo disso. Lutou para tirar
os pés de baixo de si, tentou chutar e abrir caminho pirâmide acima, mas as
moedas mexiam-se debaixo de seus pés, fazendo com que ele deslizasse
mais e mais para o fundo da caverna. Por fim ele desistiu e só ficou lá,
arfando, tentando abafar seus soluços, tentando ter algum controle de si.
Ele os sentiu. Não conseguia vê-los, mas sabia que estavam ali,
movendo-se ao redor dele. Não muito mais do que uma brisa, a princípio, a
poeira agitando os ossos. Ele os ouviu, os sussurros, chamando seu nome.
Conforme o som aumentava, o vento também aumentava. Começou a tomar
substância e, quando isso aconteceu, ele os viu… os mortos. Ele viu seus
sorrisos torturados, seus olhos pesarosos. E todos aqueles olhos mortos
estavam grudados nele, todos tão felizes em vê-lo.
Dillard soltou um grito, e outro, e os mortos… os mortos gritavam junto
dele.
VINTE MINUTOS DEPOIS, Jesse virava na estreita entrada de carros que dava
para a velha igreja. Ele deu a volta no prédio e apertou os freios. Krampus
estava deitado de costas na neve, a geada reluzindo em sua grande crina.
Wipi estava de bruços ao lado do Senhor do Yule, rígido e sem se mexer.
Nipi estava ajoelhado ao lado dele.
Jesse desligou o motor, saiu, subindo devagar em busca de Isabel. Ver
que Nipi ainda estava vivo deu-lhe esperanças, mas ele não encontrou
nenhum sinal dela nem dos outros. Ele deu a volta nos lobos e foi até Nipi.
Os irmãos eram humanos agora, sua carne novamente cor de manteiga. Não
havia nenhuma ferida em Wipi nem nos lobos, mas um grande talho reluzia
no peito de Krampus e havia um círculo de neve carmesim espalhado em
volta de seu corpo.
Jesse ajoelhou-se ao lado de Nipi.
“Lamento pelo seu irmão.”
Nipi pareceu não ouvir. Jesse analisou a face do Senhor do Yule, notou
que até mesmo na morte Krampus mantinha aquele meio-sorriso dele, como
se ainda tivesse um truque na manga. Mas seus olhos estavam pálidos, todo
o fogo se fora.
“É uma pena”, disse Jesse, cuspindo. “Uma droga de uma pena, de
verdade. Que diabos!”
Jesse colocou uma das mãos no ombro de Nipi.
“Cadê Isabel?”
Nipi olhou a seu redor, como se não tivesse certeza de onde estava, e
deu de ombros. Pesadas nuvens aproximavam-se e o sol lentamente deixou
a face de Krampus. Jesse sabia que começaria a nevar de novo em breve.
Ele levantou-se, dirigiu-se até os degraus e entrou na igreja. Piscou quando
seus olhos se ajustaram à escuridão e encontrou Isabel sentada na frente do
fogão a lenha, com as mãos apertadas e juntas entre seus joelhos, encarando
o fogão. Nenhum fogo ardia ali, e ela estava tremendo. Quase todos os
traços de Belsnickel se foram, e a primeira coisa que ele percebeu era como
Isabel tinha uma aparência jovem, um pouco com ares de menino, com
algumas sardas pelo nariz, mas bela de seu próprio jeito.
Jesse sentou-se ao lado dela. Isabel não olhou para cima, mas quando
ele colocou o braço a sua volta, ela segurou na mão dele e apoiou-se em seu
ombro. Eles ficaram sentados em silêncio por um bom tempo e, por fim,
Isabel pronunciou-se:
“Eles o mataram. Mataram a todos eles. Como é que assassinato pode
ser a vontade de Deus?”
Jesse não tinha uma resposta, tudo que sabia era apertá-la com mais
força. Isabel pressionou a face no ombro dele e começou a soluçar. Depois
de um tempinho, Jesse notou que a caixa de papelão onde ele tinha
colocado as armas e o dinheiro ainda estava ao lado do piano.
“Já volto”, disse ele, e foi andando até a caixa. Todo o dinheiro parecia
ainda estar lá. “Isabel… onde estão o Chet e o Vernon?”
“Não sei ao certo.” Isabel falava sem erguer o olhar. “Assim que
Krampus caiu… bem, eles dois caíram fora daqui… só saíram correndo.
Acho que eu deveria ter feito o mesmo, mas não fiz. Só fiquei esperando
aqueles anjos horríveis virem me matar. Mas eles não pareciam muito
preocupados comigo. O Papai Noel pegou o trenó e foi embora… e os
anjos… eles foram junto dele.”
Jesse pegou as armas, limpou as digitais e deixou-as no piano. Ele
dobrou a tampa da caixa sobre o dinheiro e enfiou-a debaixo de seu braço.
Ele foi andando até Isabel.
“Temos que ir embora.”
Ela olhou para ele, que ficou pasmo com como os olhos dela eram
verdes.
“Vai dar encrenca se formos encontrados aqui”, disse ele. Ela assentiu e
se levantou. Eles saíram pela porta, descendo os degraus. Isabel andou até o
corpo de Krampus, ajoelhou-se ao lado de Nipi, colocou o braço em volta
dele. Jesse foi até a caminhonete, jogou a caixa na cabine do motorista,
depois voltou e ficou lá com eles. “Isabel… Nipi… vamos, temos que ir
embora.”
“Não podemos deixá-los assim aqui”, disse Isabel. “Não seria certo.”
Jesse soltou um suspiro. “Não, acho que não. Acho que deveríamos
encontrar um lugar melhor do que esse para Wipi e o Velho Alto e Feioso.
Nipi, que tal? Boa ideia?”
Nipi assentiu.
“ELES REALMENTE não estão felizes com você, Jesse”, disse Elly. Jesse
reclinou-se na cadeira de aço e espiou pela partição de vidro no lobby do
escritório do xerife. Ele podia ver o xerife Wright conversando com os
investigadores do estado; a conversa não parecia estar saindo muito bem.
“Acho que não dá para agradar todo mundo.”
Ela sorriu para ele. Elly tinha frequentado a escola com Jesse, ele
gostava de como ela tocava violão e, em dado momento, eles tinham até
mesmo colaborado em uma ou duas canções. Hoje em dia ela trabalhava
para o xerife.
“Todas as agências de notícias estão cobrindo isso”, disse ela. “Eles
estão com o governador bem na cola deles para que surjam com algumas
respostas. Bem, você devia tê-los ouvido na CNN hoje de manhã, falando e
falando sobre todos os corpos mutilados e especulando quanto ao negócio
da gangue desenfreada na Virgínia do Oeste.” Ela deu uma bufada.
“Falando do Condado de Boone como se fosse algum país do Terceiro
Mundo.”
Jesse apenas balançou a cabeça em negativa.
“Ah, uma última coisa.” Ela sacou um formulário azul da pilha que
estava à sua frente e o entregou a ele com uma caneta. “Preciso de sua
assinatura aqui se quiser pegar suas coisas de volta.”
Jesse assinou o formulário e ela o entregou um envelope manilha.
“Então é isso?”, ele quis saber. “Estou livre? Posso ir?”
“Parece que sim.” Ela sorriu. “Mas o xerife não está nem um pouco
feliz com isso. Ele só tem certeza de que você sabe mais do que está
contando.”
“Ei”, perguntou Jesse em um tom casual. “Achei que tivesse ouvido
alguém dizer que Chet Boggs pudesse ter algo a ver com toda essa bagunça,
não?”
“Tudo que sei foi que me fizeram emitir um mandado de busca pelo
estado para ele, mas ninguém parece tê-lo encontrado ainda.”
Jesse achava que eles estavam perdendo tempo procurando por Chet na
Virgínia do Oeste; achava que seria melhor se eles o procurassem no
México, ou até mesmo no Peru.
Jesse abriu o envelope e sacou dali sua carteira e suas chaves.
“Não é em Chet que ando pensando”, disse Elly. “Eu quero saber o que
aconteceu com o delegado Dillard Deaton. A última que ouvi foi que ainda
não tinham nenhuma pista de seu paradeiro.”
Jesse deu de ombros.
“Aposto que ele ainda está no inferno agorinha mesmo, desejando ter
sido uma pessoa melhor.”
Ela balançou a cabeça.
“Ainda não me surpreende nem um pouco que ele estivesse envolvido
em toda essa confusão. Havia algo de desconcertante em relação àquele
homem.” Elly inclinou-se para a frente e sussurrou: “Não diga a ninguém
que contei isso a você, mas eles têm fortes evidências que o conectam à
morte da esposa.”
“Não me diga!”
“Eles encontraram uma foto dela… morta… Eu vi a foto.” Ela torceu o
nariz. “Nojento. Espero que você esteja certo, espero mesmo que ele esteja
apodrecendo no inferno agorinha mesmo.”
“Acabamos então?”, perguntou Jesse.
“Sim, acabamos.”
Jesse levantou-se e ela acompanhou-o até a porta e deixou-o sair no
lobby. O xerife e os investigadores pararam de falar quando ele saiu. O
xerife olhou duramente para ele.
“Lembre-se do que eu disse, Jesse. As coisas vão ficar bem mais fáceis
se você apenas nos contar tudo o que sabe.”
“Com certeza manterei isso em mente, xerife”, disse Jesse enquanto
empurrava a porta para sair. “Agora tenha um bom dia mesmo, está me
ouvindo?”
JESSE ESTACIONOU na entrada de carros da casa da mãe de Linda. Ele dirigia
uma Ford Ranger com a cabine estendida, não nova, porém seminova e
totalmente paga. Ele estacionou, foi andando até o pórtico e bateu à porta;
um minuto depois, passadas de pés arrastados vieram em sua direção.
“Só um segundo”, gritou alguém. Polly Collins abriu a porta. “Você
cortou os cabelos.”
Jesse assentiu.
“Cortei.”
“Parece um pouco engraçado.”
Jesse franziu o cenho.
“Mas você não está aqui para falar comigo”, disse ela.
“Pode apostar que não.”
“Bem, mas eu tenho uma coisa a lhe dizer de qualquer forma. Eu não
sei qual foi o seu papel naquela confusão toda, mas…” Ela mordeu o lábio,
parecendo estar procurando pelas palavras certas. “Bem… é só que… bem,
do jeito que a Linda contou, parece que ela estava em uma situação ruim…
uma situação muito ruim. Não sei exatamente o que foi que você fez com
relação ao Dillard… nunca vou precisar saber, mas Jesse…” Jesse deu-se
conta de que a velha mulher estava engasgando. Ela pôs a mão na mão dele.
“Eu quero que você saiba… que aprecio o que você fez.” Ela sorriu para ele
então, a primeira vez em que ela sorria para ele. “Deixe-me buscar a
Linda.”
“Sra. Collins, a senhora poderia me fazer um favor? Poderia levar a
Abigail para fora um pouquinho, eu só preciso de um tempo sozinho com a
Linda.”
Ela assentiu.
“Posso fazer isso.”
Jesse esperou talvez um minuto, que pareciam dez. Ele notou que estava
torcendo as mãos, parou com isso enfiando-as fundo nos bolsos de sua
calça. Era a primeira vez em que ele via Linda desde aquela manhã na casa
do Dillard e não fazia a mínima ideia de como estavam as coisas entre eles.
Linda empurrou a porta telada e abriu-a, então pisou do lado de fora, no
pórtico. Os dois ficaram ali separados, mudos, ambos sem saber o que dizer.
Linda olhou para os pés dele.
“Vejo que você arrumou botas novas.”
“Hmm-hmm.”
“Elas são legais.”
“Sim… Linda?”
“Sim.”
“Estou indo para Memphis.”
Ela apertou os lábios.
“Sua música? Você vai tocar suas canções?”
Ele assentiu.
“Vou dar tudo de mim e um pouco mais. Chega de bares sujos. Vou falar
com aquele DJ lá, ver se ele consegue me arrumar alguma coisa. Se eu não
conseguir nada em Memphis, vou para Nashville.”
“Jesse, isso é maravilhoso. E já estava mais do que na hora, caramba.
Você vai simplesmente fazer…?”
“Linda, uma vez você me perguntou como deveria acreditar em mim se
nem eu mesmo acreditava. Bem, há pouco tempo, eu conheci esse… esse…
cara alto e ele abriu meus olhos para um monte de coisas. Bem, o que estou
tentando dizer é que eu acredito mesmo em mim, na minha música… mas
eu também acredito em nós… mais do que nunca. E eu esperava que talvez
você e a Abigail pudessem vir comigo.”
Os olhos dela ficaram radiantes.
“Não estou dizendo que será fácil, mas posso lhe garantir que sou uma
pessoa diferente agora. Tenho um pouco de dinheiro guardado, mas o mais
importante de tudo… eu tenho um plano. O que você me diz? Acha que
vale a pena tentarmos de novo?”
Ela olhou por um tempo e bem fundo nos olhos dele, parecendo que
estava procurando alguma coisa ali. Jesse achava que deveria ter encontrado
o que buscava, pois ela assentiu.
“Eu gostaria de fazer isso, Jesse… de tentarmos de novo.”
Ele sorriu e ela o abraçou, abraçou-o forte, e depois de um minuto ele
sentiu-a chorar.
“Eu sinto muito, Jess. Eu sinto tanto em relação a… em relação a tudo
isso. Eu não sabia…”
Ele levou um dedo aos lábios dela.
“Shhhhh. Nada disso. Se formos até Memphis, vamos começar de novo.
Deixar tudo isso para trás. Combinado?”
“Combinado”, disse ela.
Excerto do Boone Standard, 24 de dezembro,
pelo Editor Contribuinte Bill Harris
A NEVE CAIU durante toda a noite naquela véspera de Natal, caiu em todo o
Condado de Boone, por Goodhope e nas colinas nos arredores. A neve
soprava na entrada de uma pequena caverna na encosta rugosa da
montanha, rodopiava para dentro e uns poucos flocos até mesmo iam parar
em um monte de pedras cercadas pelo visco seco.
Da superfície abaixo das rochas veio o som de uma gargalhada, a
princípio baixo como um sussurro, mas o volume aumentou, até que uma
pequena faixa de neve na entrada da caverna começou a derreter. Uma
única flor apareceu em meio à neve. A flor desabrochou, farfalhando a
alguma pulsação não ouvida, e a risada aumentou, ecoando da caverna. O
vento e a neve levaram o som vale abaixo e houve quem, na manhã
seguinte, jurasse ter escutado essa risada, jurando que era Krampus, o
Senhor do Yule. E eles disseram a seus filhos que era melhor que fossem
bons, porque Krampus… Krampus estava vindo para a cidade.
MUITOS ANOS ATRÁS, minha esposa, Laurie (que é infinitamente mais
antenada que eu), fez com que eu ficasse ligado em um diabo que no Natal
se empolga por açoitar as crianças sapecas com um galho de bétula. Fiquei
imediatamente apaixonado pelo personagem. “Você está me dizendo que ele
enfia as crianças dentro de um saco e depois as espanca até sangrarem?
Joga as crianças realmente más em um rio? Leva algumas até a sua casa
para que possa devorá-las? Por favor, conte-me mais a respeito dele!”
Meu fascínio pela criatura macabra apenas se aprofundou quando me
deparei com a abundância de cartões natalinos vintage retratando a
felicidade que ardia em seus olhos. Um deleite monstruoso emanava de sua
face enquanto carregava as crianças até a boca do inferno. Como não amar
isso?
Logo descobri que essa pérola dos feriados tinha uma longa e pitoresca
história, que havia festivais de inverno chamados de Krampusnacht em
muitos vilarejos alpinos, em que os participantes vestiam fantasias de
Krampus maravilhosa e perversamente feitas à mão, e depois vagavam
pelas ruas, batendo correntes e sinos e perseguindo vítimas aleatórias com
varas e palmatórias. Esses desfiles, chamados de Krampuslaufen, são
alimentados (não é de se surpreender) pelo álcool, sendo a schnapps a
oferenda costumeira a Krampus. Notei que Krampus era muitas vezes
retratado na companhia de São Nicolau, o alto e magro santo adornado em
suas vestimentas de bispo, carregando seu cajado cerimonioso ornamentado
e com aparência austera.
Havia muita coisa que não parecia certa aqui, ao menos pelas minhas
percepções norte-americanas do Natal e das tradições do Papai Noel. Eu
tinha uma litania de perguntas, mas a que estava à frente em minha mente
era a seguinte: ei, o que o Papai Noel acha desse cara? Qual é exatamente o
relacionamento dos dois? Podem me chamar de louco, mas para mim
parece um pouco falso que o Papai Noel tenha um diabrete malvado
brutalizando e sequestrando crianças enquanto ele está entregando presentes
e gritando “Ho, ho, ho!” Quem veio primeiro? De quem foi a ideia de os
dois trabalharem juntos? Eles estavam fazendo aquele lance do tira bom/tira
ruim, como Deus e o Diabo? Seria Krampus o escravo do Papai Noel? Eles
eram camaradas ou inimigos mortais? O que leva à pergunta que a maioria
dos meninos de hoje faria: Quem ganharia em uma briga? E foram essas
perguntas, sobretudo a última, que inevitavelmente me levaram a escrever
este livro.
Assim começou minha busca pelas origens dessas figuras de feriado que
parecem ser diametralmente opostas. Trabalhando de frente para trás e de
trás para a frente, das modernas percepções em meio às diversas variações
de Papai Noel e de Krampus, liguei as tradições do Yule às suas mais
antigas raízes pagãs no solstício de inverno. E, para aqueles que amam
essas coisas, eu gostaria de partilhar meus achados, mas com o aviso de
que, assim como com o mais antigo folclore, há muitas versões, que variam
de país para país e de região para região. Aqui eu reuni o que há de mais
comum nos fios com que teci a mitologia dessa fábula.
Quem veio primeiro? Papai Noel ou Krampus? Pode-se argumentar que
ambos nasceram nas mesmas origens, mas variações de Krampus precedem
de longe quaisquer das variações mais humanizadas e mais caridosas do
Papai Noel.
O solstício de inverno e suas celebrações a ele associadas datam de bem
antes do nascimento de Cristo. O Yule vem de festivais de inverno pagãos
em regiões germânicas, celebrando o renascimento da terra com festim e
sacrifícios, e ligado à Caçada Selvagem de Odin e a outros mitos e lendas
nórdicos. Um dos mais proeminentes símbolos do Yuletide é o bode do
Yule, que é uma das primeiras manifestações de Krampus que nós tão
encarecidamente conhecemos e amamos hoje.
Desde o início, Krampus representava a mudança de estações, um deus
da natureza e fertilidade que perseguia e afastava espíritos malévolos e
garantia uma crescente e abundante estação em resposta ao tributo.
Posteriormente, ele foi assimilado aos folclores e às lendas que evoluíam na
Alemanha e na Áustria. Esse folclore espalhou-se pela Croácia, República
Tcheca (Eslováquia), Eslovênia, Suíça e norte da Itália. Dizia-se que o bode
do Yule original era uma criatura horrenda que aterrorizava as crianças
enquanto se certificava de que as tradições do Yuletide eram executadas do
jeito devido. Posteriormente, o Bode do Yule, ou Krampus, também recebeu
a atribuição de distribuir presentes do Yule.
Em algumas lendas, Krampus foi associado a ou dizia-se ser uma versão
do deus nórdico Loki, que às vezes era retratado como uma figura chifruda
e diabólica que fazia travessuras. Essas lendas também sugerem que
Krampus levava crianças para o Inferno, ou Hel, a filha de Loki. Essas
primeiras manifestações não tinham nenhuma associação com São Nicolau.
Assim que a Cristandade surgiu, Krampus foi lançado, junto de muitos
outros espíritos cornudos da natureza, no papel de demônio ou diabo.
Apesar de diversas tentativas no decorrer dos séculos por parte da igreja e
de alguns governos europeus de tirarem do mapa as celebrações de
Krampus, Krampus e o Yuletide sobreviveram e, como a maior parte das
tradições pagãs, foram adotados (ou como Krampus diria, roubados) pelos
equivalentes cristãos, tal como levar árvores de sempre-verde e coroas de
flores para dentro da casa e deixar presentes em meias ou botas.
As origens do Papai Noel podem ser traçadas até o início da mitologia
nórdica, e eu me apropriei das associações feitas por historiadores do Papai
Noel com Odin de barba branca. Porém, depois de escavar mais a fundo,
senti que o filho de Odin, Baldr, faria uma comparação melhor. É escrito
que Baldr era amável, de natureza gentil, gracioso e belo à vista, e que ele
espalhava caridade e boa vontade entre os oprimidos… uma figura similar a
Cristo em várias formas, inclusive em sua morte e renascimento. A lenda
dele encaixou-se perfeitamente em minha história, desde sua trágica morte
por uma lança de visco nas mãos de seu irmão cego Hoor (guiado por Loki)
até seu subsequente aprisionamento em Hel e final renascimento depois do
Ragnarök e da queda de Valhalla.
Embora a maior parte da Europa tenha se convertido do paganismo para
o cristianismo, alguns de seus deuses e espíritos fizeram a conversão com
eles, de uma forma ou de outra, no entanto, a maioria foi deixada para trás e
esquecida. Esta adaptação a uma paisagem religiosa em mutação também se
encaixou perfeitamente no que eu estava tentando mostrar.
São Nicolau como uma figura cristã talvez seja a primeira encarnação
reconhecível do nosso Papai Noel moderno. Embora o verdadeiro São
Nicolau tenha morrido no ano de 342, ele não foi reconhecido como santo
até os anos 800, mais ou menos na mesma época em que o Natal foi
estabelecido como feriado. Ele ganhou popularidade expandida nos anos
1200, quando as práticas pagãs começaram a decair, e o Natal atingiu seu
ponto alto nos últimos anos 1300 e nos anos 1400. Foi durante esse período
que Krampus primeiramente ficou conhecido como um diabo cristão e
escravo de São Nicolau.
Nos anos 1500, a figura do Papai do Natal cresceu em popularidade,
seguida, nos anos 1700, pela primeira menção ao Papai Noel “St. A. Claus”.
Em 1809, o romancista Washington Irving escreveu Uma história de Nova
York, inventando a versão moderna do Papai Noel, seguido pouco tempo
depois pelo famoso poema do dr. Clement Moore, “Uma Visita de São
Nicolau”. Os anúncios de Coca-Cola dos anos 1930, feitos por Haddon
Sundblom, estabeleceram a atual e bem conhecida versão animada e
rechonchuda do Papai Noel em sua roupa brilhante (e convenientemente
vermelho-Coca-Cola).
Então foi essa rica tapeçaria de lendas e mitologias que inspiraram a
minha história. Descobri muitos outros elementos maravilhosos ao longo do
caminho e aqui estão alguns deles:
Anjos: Na Bélgica, Alemanha, Polônia, Ucrânia e Áustria, anjos
frequentemente acompanhavam São Nicolau em suas passagens
pelo Natal. Na tradição tcheca e eslovaca, o anjo é um protetor de
crianças contra o diabo.
Belsnickels: Mais uma das muitas variações sobre Krampus, a
tradição do Belsnickel foi trazida para a América pelos primeiros
imigrantes alemães. Diz-se que alguns dos Belsnickels usavam
máscaras e vestiam-se com largos casacos com pele de urso ou
chapéus de pele de gambá. Com frequência eles carregavam
chicotes, varas ou, às vezes, até espingardas, entregando guloseimas
e punindo as crianças conforme achavam adequado.
Condado de Boone, Virgínia do Oeste: Embora a cidade de
Goodhope seja fictícia, muitas das outras localidades deste livro são
baseadas em lugares reais, no Condado de Boone e arredores. O
Condado de Boone chamou minha atenção devido a sua longa
história de personagens curiosos, bandidos e músicos, tais como o
fora-da-lei dançante Jesco White e sua notória família; o compositor
Billy Edd Wheeler; e a local e lendária banda de um homem só
Hasil Adkins (vide mais abaixo).
Geri e Freki: Lobos de Odin.
Hel: Tanto o nome do submundo nórdico como de sua rainha, Hel
(filha de Loki).
Huginn e Muninn: Corvos de Odin.
Perchta: Bruxa/espírito do sexo feminino que vagava pelo interior
da Bavária e da Áustria. Punia ou recompensava crianças
dependendo de seu comportamento durante o ano.
Espanha: Os contos holandeses dizem que São Nicolau mora em
algum lugar na Espanha e chega a Amsterdã, a cada dezembro, de
navio, para entregar presentes aos bons meninos e às boas meninas.
Eu certamente consigo entender por que o Papai Noel moraria na
Espanha em vez de no Polo Norte.
Tanngrisnir e Tanngnost: Os bodes que puxavam a carruagem de
Thor pelo céu.
Hasil Adkins (1936–2005): É famoso por canções como “No More
Hotdogs”, que inclui a linha poética: “Eu vou cortar sua cabeça fora,
e você não poderá mais comer cachorros-quentes”, e a letra
imemorial da canção “She Said”:
I wen’ out last nigh’ and I got messed up
When I woke up this momin’, shoulda seen what I had inna bed wi’
me
She comes up at me outta the bed, pull her hair down the eye
Looks to me like a dyin’ can of that commodity meat…[3]
Em 2005, Hasil foi deliberadamente atropelado no quintal da frente de sua
casa por um adolescente em um quadriciclo e, pouco tempo depois, morreu
de seus ferimentos.
Áreas do Condado de Boone, como em muitas outras comunidades
rurais, estão sofrendo os trágicos efeitos da crescente epidemia de
metanfetamina. A mineração também está tendo um peso devastador tanto
sobre a comunidade como sobre a terra.
Foi um deleite passar um tempo com Krampus. Agora sinto uma
afinidade bem maior com ele do que com sua contraparte alegre. Espero
que Krampus continue a firmar-se no mundo todo e a reclamar seu lugar de
direito como Senhor do Yule. Se você partilha desse sentimento, então se
certifique de que deixará algumas guloseimas em seus sapatos no próximo
Yuletide e, quem sabe, você pode encontrar uma ou duas moedas de ouro
em retribuição. Se não fizer isso… bem, você foi avisado… Krampus está
vindo para a cidade.
Brom
Yuletide, 2011
AGRADECIMENTOS
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eBook: A. Garamont | v1.0.0
1. Bares onde geralmente música country é tocada ao vivo, típicos do Sul e do Sudoeste dos Estados
Unidos, onde o country é mais popular. Em geral, são frequentados pela classe trabalhadora, sendo
que alguns ainda contam com prostitutas e shows picantes para o entretenimento de seus clientes.
[Nota da Tradutora, daqui em diante NT.]
2. Rações alimentares diárias dadas aos soldados do Exército dos Estados Unidos na Segunda Guerra
Mundial, contendo três refeições cada. [NT]
3. Ontem à noite saí e enchi a cara / Hoje quando acordei, devia ter visto o que tinha na cama comigo
/ Ela sai da cama até mim, puxa o cabelo do olho / Pra mim parece uma lata de carne barata
expirando. [NT]