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Culto literário do Inominável

número 0

de edith Nesbit

Uma das maiores autoras de histórias


de fantasma em um conto arrepiante

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Todos os direitos reservados.
Copyright © 2020 Pyro Books
Copyright da tradução© 2020 Thassio Rodriguez Capranera
Essa é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares, organizações e
situações são produtos da imaginação do autor ou usados como ficção.
Qualquer semelhança com fatos reais é mera coincidência.

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, no todo ou em


partes, através de quaisquer meios.
Os direitos morais do autor foram contemplados.

Edição: Filipe Nassar Larêdo


Tradução e notas: Thassio Rodriguez Capranera
Projeto gráfico e capa: Ricardo Ribeiro
Todos os direitos desta edição reservados à:
PYRO BOOKS
Rua da Chibata, 61. Cj 24B – 05734-100 – São Paulo, SP – Brasil
www.pyroeditora.com.br
Weird Souls numero 0 Jan: 2021

Ilustração de capa: William Heath Robinson - Arte: Act I. Scene I. Valentine. But, like a cloistress,
she will veiled walk - Ilustração interna: Herbert Railton - Old Doorway, Lamb Court
Culto Literário
do Inominável
É com grande prazer que apresentamos a vocês o
Culto Literário do Inominável, o clube de assi-
natura da Pyro Books. Criado especialmente para
as pessoas que amam literatura fantástica, horror e
ficção científica, trará os principais autores e histó-
rias lançados nas revistas pulp norte-americanas no
começo do século XX, especialmente as famosas
Weird Tales e The Argosy.
Nossa ideia com a revista Weird Souls é trazer todo
o ar de mistério e terror que recheavam essas edições.
Para isso faremos uma curadoria bastante meticulosa,
não apenas dos textos, mas de todo o material gráfico
que produziremos para acompanhar a leitura.
Esperamos que vocês se divirtam e se apaixonem pela
ficção weird, da mesma forma que nós.

equipe Pyro Books.


O mistério da
casa Geminada

e
le estava esperando por ela. Esteve espe-
rando por uma hora e meia em uma
estrada suburbana empoeirada, com uma
sequência de grandes olmos de um lado e alguns
lotes para elegíveis construções no outro — e bem
longe, a sudoeste, as luzes amarelas e intermiten-
tes do Crystal Palace. Não era bem como uma
estrada de campo, pois ela era pavimentada e
tinha postes com lâmpadas, mas não era um
lugar ruim para um encontro, de forma alguma.
E mais à frente, em direção ao cemitério, era
um tanto rural, e quase agradável, especial-
mente ao crepúsculo. Mas o crepúsculo havia
se tornado noite há muito, e ele ainda esperava.
Ele a amava, e estava prestes a casar-se com ela,
com a completa desaprovação de cada uma das
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pessoas sensatas que haviam sido consultadas. E
esse encontro meio clandestino haveria de ocor-
rer naquela noite, para substituir a entrevista
semanal aceita de má vontade – porque um
certo tio rico estava visitando a casa dela, e sua
mãe não era a mulher para manifestar apreço
a um tio endinheirado, que poderia “ir embora”
qualquer dia, uma relação tão profundamente
inaceitável como a dela com ele.
Então ele esperou por ela, e o frio de uma noite
de maio incomumente severa invadiu seus ossos.
O policial passou por ele com uma resposta
ríspida ao seu “Boa noite”. Os ciclistas passa-
vam por ele como fantasmas cinzentos com
buzinas de neblina; eram quase dez da noite, e
ela ainda não havia chegado.
Ele deu de ombros e voltou-se em direção a
seus alojamentos. Sua estrada levava-o para a
casa dela — desejável, cômoda, geminada — e
ele caminhou lentamente enquanto se aproxi-
mava dela. Ela deveria, naquele exato momento,
estar saindo de lá. Mas não estava. Não havia
sinal de movimento ao redor da casa, nenhum
sinal de vida, não havia luzes nem mesmo nas
janelas. E sua família não era uma família que
dormia cedo.
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Ele estancou diante do portão, perguntando-se.
Então notou que a porta da frente estava
escancarada, e o poste da rua iluminava um
pouco o corredor escuro. Havia algo em tudo ali
que não o agradava de forma alguma — aquilo
o assustava um pouco, de fato. A casa tinha um
ar deserto e sombrio. Era obviamente impos-
sível que aquele lugar abrigasse um tio rico. O
velho deveria ter ido embora cedo. Nesse caso…
Ele caminhou pela passarela de ladrilhos
esmaltados, e pôs-se a escutar. Nenhum sinal de
vida. Ele atravessou o corredor. Não havia luz
em qualquer lugar. Onde estaria todo mundo,
e por que a porta da frente estava aberta? Não
havia ninguém na sala de estar; a sala de jantar
e o escritório (nove por sete pés1) estavam
igualmente vazios. Todo mundo estava fora,
evidentemente. Mas a sensação desagradável
de que ele não era, talvez, o primeiro visitante
casual a caminhar porta adentro impeliu-o a
olhar por toda a casa antes de ir embora e fechá-
-la atrás de si. Então ele subiu as escadas, e, na
porta do primeiro quarto com a qual se depa-
rou, riscou um fósforo de cera, assim como fez

1 Equivalente a cerca de 2,74 por 2,13 metros. (N.E.)


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nas salas. Assim que o fez sentiu que não estava
sozinho. E ele estava preparado para ver algo,
mas não para aquilo que viu. Pois ele encontrou,
jazendo sobre a cama, em um vestido largo e
branco, sua querida, e sua garganta havia sido
cortada de orelha a orelha. Ele não compreendeu
o que havia acontecido ali, nem como conseguiu
descer as escadas e alcançar a rua; mas de alguma
forma conseguiu, e o policial encontrou-o em um
surto, sob um poste de luz na esquina da rua. Ele
não conseguia falar quando o pegaram, e passou
a noite na cela do posto de polícia, porque o
policial já havia visto muitos homens bêbados
antes, mas nenhum em surto.
Na manhã seguinte ele estava melhor, apesar
de ainda muito pálido e trêmulo. Mas a história
que ele contou ao magistrado era convincente,
e eles enviaram uma dupla de policiais junto
dele até a casa.
Não havia nenhuma aglomeração ali da
forma como ele pensou que haveria, e as vene-
zianas não estavam abaixadas.
Enquanto ele estava parado, atordoado, em
frente à porta, esta se abriu e ela saiu.
Ele se apoiou no batente da porta para se
equilibrar.
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“Ela está bem, veja você mesmo,” disse o poli-
cial que o havia encontrado debaixo do poste.
“Eu disse que você estava bêbado, mas você é o
sabichão…”
Quando estavam a sós, ele contou a ela —
não tudo —, pois isso não valeria a pena dizer
— em como ele havia adentrado a casa gemi-
nada, e como ele havia encontrado a porta
aberta e as luzes apagadas, e que ele havia estado
naquele longo cômodo dos fundos diante das
escadas, e havia visto alguma coisa — e nessa
tentativa de descrever ele ficou zonzo e des-
maiou, e tiveram que lhe servir conhaque para
que se restabelecesse.
“Mas, meu querido,” ela disse, “atrevo-me
a dizer que a casa estava escura, pois nós está-
vamos todos no Crystal Palace com meu tio,
e sem dúvidas a porta estava aberta, pois as
criadas saem todas quando são deixadas sozi-
nhas. Mas você não poderia ter estado naquele
cômodo, porque eu o tranquei quando estava
saindo, e a chave estava em meu bolso. Vesti-me
com pressa e deixei todas as minhas bugigan-
gas espalhadas.”
“Eu sei,” ele disse; “eu vi uma echarpe verde
sobre uma cadeira, e algumas luvas marrons
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longas, e um monte de grampos de cabelo e
lenços, e um livro de orações, e um lenço com
laço sobre a penteadeira. Ora, eu até notei o
almanaque sobre a cornija da lareira — 21 de
outubro. Pelo menos não poderia ser isso, porque
é maio. E mesmo assim digo que foi. Seu alma-
naque é de 21 de outubro, não é?”
“Não, é claro que não,” ela disse, sorrindo
um tanto ansiosamente, “mas todas as outras
coisas estavam do mesmo jeito que você disse
que estavam. Você deve ter tido um sonho, ou
uma visão, ou algo.”
Ele era um jovem citadino, simples e comum,
e não acreditava em visões, mas nunca descan-
sou dia ou noite até que ele afastou sua querida
e sua mãe para longe daquela casa geminada, e
as colocou em um subúrbio distante e tranquilo.
No curso dessa mudança ele acabou casando-se
com ela, e a mãe foi viver com eles.
Seus nervos devem ter ficado um pouco
abalados, porque ele ficou muito esquisito por
um bom tempo, e estava sempre perguntando
se alguém havia adquirido o geminado desejá-
vel; e quando um velho corretor da bolsa com
uma família comprou-o, ele chegou ao ponto
de visitar o velho cavalheiro e implorar a ele
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por tudo o que ele amava, que não vivesse
naquela casa funesta.
“Por quê?”, disse o corretor da bolsa, com
naturalidade.
E então ele ficou tão emudecido e confuso,
entre tentar explicar, ou não, o motivo, que o
corretor da bolsa mostrou a ele a saída e agra-
deceu a Deus por ele não ser tolo a ponto de
permitir que um lunático ficasse em seu cami-
nho, impedindo-o de adquirir aquela residência
geminada real e extraordinariamente barata e
desejável.
Ora, a parte curiosa e quase inexplicável desta
história é que, quando ela desceu para o café da
manhã na manhã do dia 22 de outubro, encon-
trou-o como se estivesse morto, com o jornal da
manhã nas mãos. Ele apanhou a mão dela —
ele não conseguia falar, e apontou para o papel.
E lá ela leu que na noite do dia 21, uma jovem
senhorita, filha do corretor, fora encontrada
com a garganta cortada de orelha a orelha, na
cama do comprido quarto dos fundos em frente
às escadas daquele geminado desejável.

Fim
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edith Nesbit (1858-1924)
foi uma escritora e poeta inglesa que publicou durante
sua vida mais de 60 títulos, entre poesia, narrativas
curtas de horror e ficção infantojuvenil e romances.
Apesar de ser conhecida principalmente como autora
de livros infantis – tendo sido adaptada para tv e cinema
inúmeras vezes –, Nesbit é também um ícone do conto de
fantasma, tendo publicado diversas coletâneas com o tema.

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Sobre o conto

O mistério da casa geminada faz parte


da segunda coleção de histórias de terror de
Nesbit intitulada Grim Tales.

The Mystery of the Semi-Detached


by Edith Nesbit, 1893

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"Então ele subiu as escadas, e, na porta do
primeiro quarto com a qual se deparou, riscou um
fósforo de cera, assim como fez nas salas. Assim
que o fez sentiu que não estava sozinho."

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