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Sinopse:
Miss Minerva Lane é calada e discreta, talvez até banal. Mas nem
sempre foi assim. Da última vez que esteve no centro das
atenções, a sua reputação ficou irremediavelmente
manchada. Daí o novo nome e a nova identidade, duas máscaras
que terá de ostentar para sempre. E, quando, numa festa, se
esconde atrás do sofá da biblioteca, quer tudo menos
dar de caras com... um magnífico duque!
Mas lá está ele, escondido atrás das cortinas...
Robert Blaisdell, duque de Clermont, também sente necessidade
de se esconder. Embora batalhe diariamente para corrigir os erros
do seu abominável pai, as comparações com ele
são inevitáveis... Pode não o mostrar, mas vive consumido pela
frustração e a culpa. Não tem paciência para jogos de sedução.
Mas partilhar um esconderijo com Minnie é inesperadamente
excitante. Por baixo da aparência apagada, o olhar da jovem é
indomável... e se há algo a que Robert não resiste é um bom
enigma.
Juntos, vão enfrentar os seus medos, aprender a perdoar e
ultrapassar as suas limitações. E perceber que, acima de tudo,
precisam de amor nas suas vidas...
Ficha técnica:
Título: A guerra da duquesa - livro 1 da série Entre Irmãos.
Título original: The DUCHESS WAR.
Autora: Courtney Milan.
Tradução por Informação não encontrada.
Editora: Asa.
Ano de publicação: 2017.
Gênero: Romance de época.
Número total de páginas do livro impresso: 336.

(c) 2012, Courtney Milan


1
Capa: Maria Manuel Lacerda
Imagem da capa: Shutterstock
Fotografia da autora: Jovanka Novakovic at Bauwerks
Photography Studio
(at http://www.bauwerks.com/chicago-photography-studio/)
1.ª edição: fevereiro de 2017
ISBN 9780952337369
Reservados todos os direitos
Edições ASA II, S.A.
Uma editora do Grupo Leya
Rua Cidade de Córdova, n.º 2
2610-038 Alfragide - Portugal
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Para Carey, que prefere beagles a bagels
CAPÍTULO 1
Leicester, novembro 1863
Robert Blaisdell, nono duque de Clermont, não estava escondido.
Era verdade que subira até à biblioteca da antiga Câmara, longe o
suficiente da multidão lá em baixo para que o ruído se
desvanecesse num ronco distante. Era verdade que não
estava mais ninguém ali. Mais ainda: estava atrás de cortinados
grossos de veludo cinzento-azulado que o ocultavam. E tivera de
afastar o pesado sofá de pele para lá chegar.
Todavia, não se dera a todo esse trabalho para se esconder, mas
sim ? ponto fundamental no seu raciocínio falacioso ? porque
naquela estrutura secular de estuque e madeira,
só uma das vidraças das janelas se abria, e por acaso era a que se
encontrava oculta atrás do sofá.
Por isso, ali estava ele, de cigarrilha na mão, com o fumo a subir
para o ar frio de outono. Não estava escondido; era apenas uma
maneira de proteger do fumo os livros envelhecidos.
Até seria capaz de acreditar nisso, caso fumasse.

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Pelas lâminas de vidro antigo descortinava a pedra escurecida da
igreja do outro lado. Os candeeiros lançavam sombras imóveis no
passeio lá em baixo. Contra as portas havia
sido empilhado um monte de programas, mas a brisa outonal
espalhara-os pela rua, atirando-os para dentro de poças.
Bela confusão estava ele a arranjar. Sorriu e bateu a cigarrilha
intocada na abertura da janela, lançando cinza a rodopiar até às
lajes mais abaixo.
O gemido discreto de uma porta a abrir-se sobressaltou-o,
levando-o a virar-se da janela para o soalho que era pisado.
Alguém subira as escadas e entrara na divisão. Os passos
eram leves, talvez de uma mulher, ou de uma criança. Eram
também curiosamente hesitantes. A maioria das pessoas que se
dirigisse à biblioteca a meio de um musical teria motivos
para o fazer. Um encontro clandestino, talvez, ou em busca de um
familiar.
Detrás dos cortinados, Robert só conseguia ver uma pequena
extensão da biblioteca. A pessoa aproximou-se no seu passo
hesitante. Estava fora de vista ? decidira, sem saber
porquê, que se tratava de uma mulher ?, mas ele ouvia o arrastar
suave dos pés que se detinham a espaços, como se analisasse o
espaço que a rodeava.
Não chamou ninguém, nem procedeu a uma busca decidida. Não
aparentava procurar um amante escondido. Em vez disso, os
passos contornaram o perímetro da sala.
Robert precisou de alguns momentos para se aperceber de que
esperara demasiado para se fazer anunciar. "Aha!" imaginava-se
a proclamar, saltando detrás dos cortinados. "Estava
a apreciar o estuque. Está muito bem aplicado, não lhe parece?"
Ela imaginá-lo-ia louco. Até agora, ainda ninguém chegara a essa
conclusão. Assim, em vez de falar, Roberto atirou a cigarrilha
pela janela, caindo a rodopiar, a ponta com
um brilho alaranjado, até se extinguir numa poça.
De onde se encontrava só conseguia ver meia estante de livros, as
costas do sofá e uma mesa a seu lado, com um tabuleiro de
xadrez montado. O jogo ia a meio, e, pelo que se

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lembrava das regras, as pretas estavam a ganhar. A mulher
acercou-se e Robert encolheu-se contra a janela.
Surgiu no seu campo de visão.
Não era uma das donzelas com quem se cruzara no átrio. Não,
essas eram belas jovens que esperavam poder cativá-lo. Aquela
senhora ? quem quer que fosse ? não era uma beleza.
O cabelo escuro fora apanhado de forma prática num puxo junto
à nuca. Tinha os lábios finos e o nariz afilado, talvez um tanto ou
quanto comprido. Envergava um vestido azul-escuro
debruado a marfim ? sem rendas, sem laços, apenas tecido
simples. Até o corte do vestido raiava o severo: a cintura tão
apertada que ele punha em causa a capacidade de ela
respirar, mangas que desciam dos ombros até aos pulsos sem um
dedo de tecido a mais que suavizasse a figura.
Não viu Robert atrás dos cortinados. Fitava o tabuleiro de xadrez
com a mesma expressão de um elemento da Liga Contra o
Alcoolismo perante um barril de brandy: como se fosse
um demónio a ser eliminado através de hinos e orações ? e se tal
falhasse, com lei marcial.
Deu um passo hesitante em frente, depois outro. Procurou então
na bolsa de seda pendurada à cintura e tirou um par de óculos.
Os óculos devê-la-iam ter deixado ainda mais severa, mas, assim
que os pôs, o olhar suavizou-se.
Interpretara-a erradamente. Não tinha os olhos semicerrados em
desprezo; estava a tentar ver. Não fora severidade no olhar, mas
sim algo completamente diferente ? algo que
não conseguia identificar. A mulher pegou num cavalo preto e
revirou-o na mão. Robert não via nada nas peças que merecesse
tal escrutínio. Eram de madeira, talhadas com uma
competência indiferente. Não obstante, ela continuou a estudá-la,
os olhos concentrados e brilhantes.
Depois, inexplicavelmente, levou a peça aos lábios e beijou-a.
Robert observou num silêncio imóvel. Era quase como se
estivesse a interromper o encontro entre uma mulher e o seu
amante. Aquela senhora tinha os seus segredos e não queria
partilhá-los.
A porta do outro lado gemeu ao abrir-se mais uma vez.
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Os olhos da mulher arregalaram-se e ela olhou em volta,
mergulhando apressadamente para trás do sofá na pressa de se
esconder, aterrando a meros dois palmos dele. Nem então
viu Robert; enrolou-se num monte, puxando as saias para trás da
proteção de cabedal do móvel, respirando em breves golfadas
silenciosas.
Ainda bem que Robert afastara ligeiramente o sofá, caso
contrário ela não conseguiria esconder a massa de tecido.
Apertava ainda a peça de xadrez, que enfiou violentamente por
baixo do sofá.
Desta vez, os passos que entraram na biblioteca soaram com mais
força.
? Minnie? ? chamou uma voz masculina. ? Miss Pursling? Está
aqui?
A mulher franziu o nariz e encostou-se à parede, sem responder.
? Jasus, homem. ? Outra voz que Robert não reconhecia, jovem e
ligeiramente arrastada pelo álcool. ? Não te invejo a sorte.
? Não fales mal da minha quase prometida ? admoestou a
primeira voz. ? Sabes que é perfeita para mim.
? Aquela ratita tímida?
? Ela vai manter um bom lar. Vai tratar do meu conforto, cuidar
dos filhos e não se vai queixar das minhas amantes. ? Ouviu-se o
gemido de dobradiças, o som inconfundível
de alguém a abrir uma das portas de vidro que protegiam as
estantes.
? O que estás a fazer, Gardley? ? indagou o embriagado. ? Estás à
procura dela no meio dos volumes alemães? Acho que ela não
cabe aí. ? O comentário fez-se acompanhar por
uma gargalhada feia.
Gardley. Não podia ser o velho Mr. Gardley, dono de uma
destilaria, não com uma voz tão jovem. Deveria ser Mr. Gardley,
o novo. Robert já o vira à distância ? um indivíduo
apagado, de altura mediana, cabelo castanho e feições que lhe
recordavam vagamente cinco outras pessoas.
? Pelo contrário ? contrapôs o jovem Gardley. ? Acho que vai
caber muito bem. Enquanto esposa, Miss Pursling será o
equivalente a um destes livros. Vai lá estar quando a quiser
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tirar para ler. Na minha ausência vai esperar pacientemente onde
a deixei. Vai ser uma esposa confortável, Ames. Além do mais, a
minha mãe gosta dela.
Robert não se lembrava de ter conhecido nenhum Ames.
Encolheu os ombros e olhou para ? segundo imaginava ? Miss
Pursling, para ver como ela reagiria a tal revelação.
Não pareceu surpreendida nem chocada com tão pouco romântica
declaração por parte do quase noivo. Parecia resignada.
? Sabes que a tens de levar para a cama ? lembrou Ames.
? É verdade, mas não vai ser com frequência, graças a Deus.
? É uma ratita. Imagino que vá guinchar quando for espetada,
como qualquer rato.
Ouviu-se uma leve pancada seca.
? Então? ? queixou-se Ames.
? Estás a falar da minha futura esposa ? ralhou Gardley.
Talvez, afinal de contas, o indivíduo não fosse assim tão mau.
Depois, Gardley prosseguiu.
? Sou o único que pode pensar em espetar aquela ratita.
Miss Pursling cerrou os lábios e ergueu o olhar, como se rogasse
aos céus. Mas ali dentro da biblioteca não havia céu ao qual
rogar. E quando olhou para cima, pelo espaço
entre os cortinados...
Cruzou o olhar com o de Robert. Arregalou mais os olhos. Não
gritou; não arquejou. Não se mexeu um milímetro que fosse.
Limitou-se a fitá-lo com um olhar que faiscava com
uma acusação silenciosa e furibunda. As narinas estremeciam-
lhe.
Robert nada podia fazer, pelo que ergueu a mão e acenou-lhe ao
de leve.
Ela tirou os óculos e desviou-se com um movimento tão decidido
que Robert teve de olhar duas vezes para confirmar que ela
estava, realmente, acocorada a seus pés, no meio
de um mar de tecido. Que daquele ângulo desconfortável acima
dela ele via pelo decote do vestido abaixo ? até à única parte da
figura dela que não lhe parecia severa, mas
sim suave...

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Guarda isso para depois, admoestou-se, e ergueu o olhar alguns
centímetros. Como ela se virara, pôde ver uma leve cicatriz na
face esquerda, uma teia confusa de linhas brancas
que se cruzavam.
? Seja para onde for que a tua ratita foi, não está aqui ? dizia
Ames. ? O mais certo é estar na sala onde as mulheres se
refrescam. Vamos voltar para a diversão. Sempre podes
dizer à tua mãe que falaste com ela aqui na biblioteca.
? É verdade ? respondeu Gardley. ? E não tenho de referir que ela
não estava presente. Seja como for, mesmo que estivesse aqui,
não teria respondido.
Os passos afastaram-se; a porta voltou a ranger e os homens
saíram.
Miss Pursling não olhou para Robert quando eles saíram, nem
sequer para reconhecer a existência dele com um olhar
fulminante. Em vez disso, soergueu-se de joelhos, cerrou
o punho e esmurrou as costas duras do sofá ? uma, duas vezes,
com tanta força que os cinquenta quilos de móvel avançaram.
Robert agarrou-lhe o pulso antes do terceiro murro.
? Pronto ? disse. ? Não se magoe por causa dele. Ele não merece.
Ela fitou-o, os olhos arregalados.
Robert não imaginava como poderia alguém chamar tímida
àquela mulher, que quase crepitava de rebeldia. Soltou-lhe o
braço antes que a fúria nela lhe subisse pela mão e o consumisse.
Já estava zangado o suficiente.
? Não se incomode comigo ? respondeu ela. ? Pelos vistos, não
sou capaz de me conter.
Robert quase saltou. Não tinha a certeza de como a voz dela
soaria ? severa, tal como sugerido pela aparência? Talvez ele a
imaginasse a falar com um tom agudo, qual roedor
com que fora comparada. Mas a voz era grave, quente e
profundamente sensual. Era o tipo de voz que de repente o fez ter
noção de que ela estava ajoelhada à sua frente, a cabeça
quase ao nível do baixo-ventre.
Guarda isso também para depois.

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? Sou uma ratita. Todos os ratos guincham quando são espetados.
? Voltou a esmurrar o sofá. Se continuasse assim ia ferir os nós
dos dedos. ? Também me quer espetar?
? Não. ? Graças a Deus, os pensamentos não contavam; se
contassem, não havia homem que não passasse o resto da
eternidade a arder no inferno.
? Passa a vida escondido atrás de cortinados, à espera de ouvir
conversas íntimas?
Robert sentiu a ponta das orelhas a arder.
? Esconde-se sempre atrás de sofás quando ouve o seu noivo a
entrar?
? Sim ? atirou ela, num tom de desafio. ? Não ouviu? Sou como
um livro deixado no sítio errado. Um dia, a meio das limpezas de
primavera, um dos criados dele vai encontrar-me
cheia de pó. "Ah", dirá o mordomo. "Então era aqui que estava
Miss Wilhelmina. Esquecera-me completamente dela".
Wilhelmina Pursling? Mas que nome medonho.
Miss Pursling respirou fundo.
? Por favor, não conte nada disto a ninguém. ? Fechou os olhos,
que pressionou com os dedos. ? Por favor, vá-se embora, seja
quem for o senhor.
Robert desviou os cortinados e contornou o sofá. Afastara-se
poucos metros e já não a conseguia ver. Só a imaginava enrolada
no chão, furiosa ao ponto de verter lágrimas.
? Minnie ? chamou. Não era educado tratá-la por um nome tão
íntimo. Não obstante, Robert queria ouvi-lo a deixar-lhe a língua.
A jovem não respondeu.
? Dou-lhe vinte minutos ? disse ele. ? Se, nessa altura, não a vir
lá em baixo, virei buscá-la.
Passaram-se alguns momentos sem resposta. E então:
? O mais bonito que um casamento tem é o direito que me dá à
monogamia. Não acha que um homem a querer estabelecer-me o
paradeiro chega?
Robert fitou o sofá, confuso, até que percebeu que ela julgara que
a estava a ameaçar vir arrastá-la.
Robert era bom em muitas coisas, mas comunicar com mulheres
não se encontrava na lista.
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? Não foi isso que eu quis dizer ? resmungou. ? Eu... ? Regressou
ao sofá e espreitou sobre as costas de pele. ? Se soubesse que
uma mulher com quem me preocupava estava escondida
atrás de um sofá, esperava que alguém se desse ao trabalho de
confirmar se se encontrava bem.
Seguiu-se uma longa pausa. Depois ouviu-se o restolhar de tecido
e ela mirou-o. O cabelo começara a soltar-se do puxo severo;
estava agora caído à volta do rosto, acentuando
a palidez da cicatriz. Não era bonito, mas... interessante. E seria
capaz de passar a noite a ouvi-la falar.
Minnie fitou-o, curiosa.
? Oh! ? exclamou, num tom átono. ? Está a tentar ser gentil. ? Era
como se essa possibilidade ainda não lhe tivesse ocorrido.
Suspirou e abanou a cabeça. ? Mas a sua gentileza
é escusada. Bem vê, aquilo ? apontou para a porta por onde saíra
o quase noivo ? é o melhor por que posso esperar. Há anos que
procurava algo do género. Assim que conseguir
habituar-me à ideia, caso-me com ele.
Não havia vestígios de sarcasmo na voz. Levantou-se. Com
gestos experientes, voltou a prender o cabelo no puxo e
endireitou as saias até voltarem a um aspeto decente.
Só então se baixou, procurando debaixo do sofá, para onde atirara
o cavalo. Observou o tabuleiro, meneou a cabeça e depois, com
todo o cuidado, devolveu a peça ao seu lugar.
Saiu enquanto ele a observava, tentando dar algum sentido às
palavras.
Minnie desceu as escadas desde a biblioteca até ao pátio
escurecido no exterior do Salão Nobre. O coração ainda lhe batia
com força. Por um instante receara que ele a fosse
interrogar, mas não: escapara sem que lhe fizessem perguntas.
Estava tudo como sempre: sossegado e monótono. Tal como ela
precisava. Não havia nada a recear.
No pátio mal se ouviam os acordes ténues do concerto,
mediocremente executado pelo quarteto de cordas local. A
escuridão pintava o pátio aberto numa paleta de cinzentos. Não

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que durante o dia houvesse muito mais cores que ver: apenas a
laje cinzento-azulada que compunha o pátio e o reboco
envelhecido das paredes com estrutura de madeira. Algumas
ervas daninhas persistentes haviam surgido por entre as rachas
nas lajes, mas tinham definhado para meros fios sépia. Mal
tinham cor no escuro da noite. Uma mancheia de figuras
sombreadas encontrava-se junto à porta, de copos de ponche na
mão. Ali, tudo estava abafado ? sons, imagens, as emoções
agitadas de Minnie.
O concerto atraíra um número impressionante de pessoas, o
suficiente para encher a sala central, com todos os lugares
ocupados e ainda mais gente junto às paredes. Era estranho
que os acordes fracos de Beethoven mal tocado atraíssem tanta
gente, mas a multidão comparecera em força. Bastara-lhe um
olhar para a turba e Minnie recuara, o estômago apertado.
Não podia entrar naquele espaço.
Talvez pudesse fingir uma indisposição.
A bem da verdade, nem teria de fingir.
Mas...
Uma porta abriu-se atrás dela.
? Miss Pursling. Finalmente encontro-a.
Minnie deu um salto ao ouvir a voz e virou-se de imediato.
A Câmara de Leicester era um edifício antigo ? uma das poucas
estruturas reticuladas dos tempos medievais que não sucumbira
num incêndio. Com o passar dos séculos tivera uma
série de usos díspares. Era um salão para acontecimentos como
aquele, sala de audiências para o presidente da câmara e seus
magistrados, armazém dos poucos objetos cerimoniais
da terra. Tinham até convertido uma das divisões em celas para
prisioneiros ? um dos lados do pátio era de tijolo e não de
reboco ? e feito uma casa para o chefe de polícia.
Naquela noite, o Salão Nobre estava a ser usado, razão pela qual
não esperara ver ninguém a sair da sala do presidente.
Uma figura entroncada acercou-se com passos ligeiros.
? Há meia hora que a Lydia está à sua procura. E eu também.

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Minnie suspirou de alívio. George Stevens era um indivíduo
decente, melhor do que os dois cretinos dos quais escapara. Era
capitão da milícia e o melhor amigo do noivo.
? Capitão Stevens. Está tão cheio lá dentro que tive de vir
apanhar ar.
? Não me diga. ? Dirigiu-se a ela. Ao início nada mais era do que
uma sombra. Depois aproximou-se o suficiente para que ela
discernisse pormenores sem óculos e as feições
ficaram definidas: bigode jovial, suíças tufadas. ? Não gosta de
ajuntamentos? ? O tom era atento.
? Não.
? Porquê?
? Nunca gostei. ? Mas em tempos gostara. Tinha recordações
vagas de um bando de homens a cercá-la, a chamar-lhe o nome, a
quererem falar com ela. Na altura não haveria possibilidade
de coqueteria ? tinha oito anos de idade e, para mais, estava
vestida como um rapaz ?, mas houvera um tempo em que a
energia da multidão a animava, em vez de lhe deixar o
estômago aos nós.
O capitão Stevens juntou-se a ela.
? Também não gosto de framboesas ? confessou Minnie. ?
Arranham-me a garganta.
Mas ele fitava-a, as pontas do bigode a penderem com o peso da
apreensão. Esfregou os olhos, como se inseguro quanto ao que
estava a ver.
? Vamos ? disse Minnie, com um sorriso. ? Já me conhece há
anos, e nunca gostei de grandes aglomerados de pessoas.
? Pois não ? replicou ele, pensativo. ? Mas, bem vê, Miss
Pursling, na semana passada, por acaso, estive em Manchester,
em serviço.
Não reajas. O instinto estava profundamente arraigado; Minnie
certificou-se de que o sorriso continuava descontraído, de que
prosseguia com o alisar das saias sem se imobilizar
com o medo. Mas os ouvidos troavam-lhe e o coração começou a
bater-lhe com força de mais.

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? Oh ? ouviu-se a dizer. A voz pareceu-lhe excessivamente alegre
e muito instável. ? A minha antiga terra. Há tanto tempo. O que
lhe pareceu?
? Pareceu-me estranho. ? Avançou mais um passo. ? Visitei o
antigo bairro da sua tia-avó Caroline. Tencionava dar dois dedos
de conversa, dar notícias suas a quem pudesse
lembrar-se de si em pequena. Mas ninguém se lembrava de que a
irmã de Caroline pudesse ter-se casado. E quando procurei, não
havia registo do seu nascimento na paróquia.
? Mas que estranho. ? Minnie fitou as lajes. ? Não sei onde fui
registada. Terá de perguntar à tia-avó Caroline.
? Ninguém ouvira falar de si. Morou no mesmo bairro onde
cresceu, não foi?
O vento fustigou o pátio com um assobio monocórdico e
lamentoso. O coração de Minnie criava um ritmo para o
acompanhar. Agora não. Agora não. Por favor, não te vás abaixo
agora.
? Nunca gostei de multidões ? ouviu-se a dizer. ? Nem na altura.
Não era conhecida, em criança.
? Mmm.
? Receio não o poder ajudar. Era tão pequena quando saí de lá.
Mal me lembro de Manchester. Já a tia-avó Caro...
? Mas não é a sua tia-avó que me preocupa ? atalhou ele,
lentamente. ? Sabe que a manutenção da paz faz parte dos meus
deveres.
Stevens sempre fora um indivíduo sério. Embora a milícia só
houvesse sido chamada uma vez no ano anterior ? e, mesmo
então, para ajudar a combater um incêndio ?, ele levava
as suas funções muito a sério.
Minnie já não precisava de fingir confusão.
? Não percebo. O que tem isto que ver com a paz?
? Vivemos numa época perigosa ? debitou. ? Bem vê, fiz parte da
milícia que reprimiu as manifestações cartistas de 42 e não me
esqueci de como tudo começou.
? Mas isso continua a não ter que ver...

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? Lembro-me dos dias antes do início da violência ? continuou,
friamente. ? Eu sei como começa. Começa quando alguém diz
aos operários que devem ter voz própria, em vez de
fazerem o que lhes é dito. Reuniões. Conversas. Panfletos. Ouvi o
que disse enquanto parte da Comissão de Higiene dos
Trabalhadores, Miss Pursling. E não gostei. Não gostei
nada.
A voz dele ficara gelada, e Minnie sentiu um leve arrepio nos
braços.
? Mas eu só disse...
? Sei bem o que disse. Na altura ignorei-o, atribuí-o à
ingenuidade. Mas agora sei a verdade. Não é quem diz ser. Está a
mentir.
O coração de Minnie batia com mais força. Olhou para os pés,
para o pequeno grupo a três metros deles. Uma das raparigas
bebia ponche e ria-se. Certamente, se ela gritasse...
Mas gritar não serviria de nada. Por impossível que parecesse,
alguém descobrira a verdade.
? Não tenho a certeza ? continuou ele ?, mas sinto nos ossos que
há qualquer coisa errada. Faz parte disto. ? E mostrou-lhe um
papel, quase lho espetando no peito.
Minnie aceitou-o por reflexo e ergueu-o para apanhar a luz
emanada pelas janelas. Por um instante ficou a pensar no que
estaria a ver ? um artigo de jornal? Houvera bastantes,
mas o papel não parecia ser de jornal. Ou talvez fosse o seu
assento de nascimento. Isso seria mau. Tirou os óculos do bolso.
Quando finalmente o conseguiu ler, quase soltou uma gargalhada
de alívio. De todas as acusações que ele lhe podia fazer ? de todas
as mentiras que contara, a começar pelo
seu nome ?, ele pensava que estava envolvida com aquilo?
Stevens entregara-lhe um panfleto, do género que aparecia preso
às paredes das fábricas e era deixado em pilhas descuidadas
à porta das igrejas.
OPERÁRIOS, dizia a primeira linha com enormes maiúsculas.
Depois, por baixo: ORGANIZEM-SE, ORGANIZEM-SE,
ORGANIZEM-SE!!!!!

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? Oh, não ? protestou ela. ? Nunca vi tal coisa. E isto não faz de
todo o meu género. ? Para começar, ela tinha quase a certeza de
que qualquer frase que usasse mais pontos
de exclamação do que palavras era uma abominação.
? Estão espalhados pela cidade ? resmungou ele. ? Alguém é
responsável por isto. ? Ergueu um dedo acusatório. ? Ofereceu-se
para compor os panfletos da Comissão de Higiene
dos Trabalhadores. Isso dá-lhe uma desculpa para visitar as
gráficas da cidade.
? Mas...
O capitão ergueu um segundo dedo.
? Logo para começar, sugeriu que os trabalhadores deviam
participar na Comissão.
? Só disse que fazia sentido perguntar aos operários quanto ao
acesso à água da bomba! Se não o perguntássemos, teríamos de
ter esse trabalho todo sem obter resultados em
termos de saúde. Daí a sugerir que se organizem vai um grande
salto.
Um terceiro dedo.
? As suas tias-avós estão envolvidas naquela odiosa cooperativa
alimentar, e por acaso sei que fez parte ativa da organização.
? Uma transação comercial! O que importa onde vendemos as
nossas couves?
Stevens apontou-lhe os três dedos.
? Tudo isso forma um padrão. É compassiva para com os
trabalhadores e não é quem diz ser. Alguém está a ajudar a
imprimir os panfletos. Deve julgar que sou estúpido para os
assinar assim. ? Indicou o fundo do panfleto. Havia um nome no
fim. Minnie olhou-o pelos óculos.
Não era um nome. Era um pseudónimo.
De minimis, leu. Nunca aprendera latim, mas sabia um pouco de
italiano e bastante francês, e pensou que significava algo na linha
de "bagatelas". Coisa pouca.
? Não percebo. ? Abanou a cabeça, confusa. ? O que tem isto que
ver comigo?

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? De. Minnie. Mis. ? Stevens pronunciou as sílabas à vez, dando-
lhes um sentido deturpado. ? Deve tomar-me por tolo, Miss
Minnie.
Era uma lógica horrível, tão retorcida que ela poderia ter-se rido.
O problema era que a consequência daquela piada não era
divertida.
? Não tenho provas ? repetiu ele ?, e uma vez que a sua amizade
com a minha futura esposa é conhecida, não desejo vê-la
publicamente humilhada e acusada de sedição criminosa.
? Sedição criminosa! ? ecoou Minnie, incrédula.
? Portanto, encare isto como um aviso. Se continuar com isto ?
abanou o papel que ela tinha nas mãos ?, vou descobrir a verdade
quanto à sua origem. Vou provar que está por
trás disto. E vou arruiná-la.
? Não tenho nada que ver com isto! ? protestou, mas em vão. Ele
já virara costas.
Minnie cerrou o panfleto na mão. Mas que terrível reviravolta.
Stevens partia de uma premissa falsa, mas não importava como
encontrava o rasto. Se o seguisse, descobriria
tudo. O passado de Minnie. O seu nome verdadeiro. E, sobretudo,
os seus pecados ? há muito enterrados, mas não mortos.
De minimis.
A diferença entre ruína e segurança era muito pequena. Mesmo
muito pequena, mas não a ia perder.
CAPÍTULO 2
? Minnie!
Desta vez, quando a voz se fez ouvir do outro lado do pátio,
Minnie não se assustou. O coração não acelerou. Em vez disso,
deu consigo cada vez mais calma e o rosto iluminou-se
com um sorriso genuíno. Dirigiu-se à interlocutora, oferecendo as
mãos.
? Lydia! ? exclamou, afavelmente. ? Que bom ver-te.
? Onde estiveste? ? indagou Lydia. ? Procurei-te por todo o lado.
Talvez mentisse a qualquer pessoa, mas a Lydia...
? Escondida ? retorquiu Minnie. ? Atrás do sofá da biblioteca.

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Outra pessoa veria o comentário como bizarro. Lydia, no entanto,
conhecia Minnie tão bem quanto possível, pelo que fungou e
abanou a cabeça.
? Isso é tão... tão...
? Ridículo?
? Tão típico ? respondeu a amiga. ? Mas ainda bem que te
encontrei. Está na hora.
? Na hora? Na hora de quê? ? Naquele dia só iam tocar
Beethoven.
Mas a amiga não adiantou mais nada. Limitou-se a pegar no
cotovelo de Minnie e a acompanhá-la à porta da sala do
presidente da câmara.
Minnie estacou.
? Lydia, a sério. Está na hora do quê?
? Sabia que não ias querer ser apresentada no Salão Nobre, com
tanta gente à volta ? sorriu Lydia. ? Por isso pedi ao papá que
ficasse atento à sala. Está na altura de seres
apresentada.
? Apresentada? ? O pátio atrás delas estava quase vazio. ? A
quem é que vou ser apresentada?
A amiga acenou-lhe com o dedo.
? Tens de te manter a par dos mexericos. Como é possível que
não saibas? Ele só tem vinte e oito anos, e reputação de
estadista... atribuem-lhe bastante responsabilidade pelo
Compromisso de Importação de 1860.
Lydia disse-o como se soubesse o que aquilo era ? como se todos
soubessem do Compromisso de Importação de 1860. Minnie
nunca ouvira falar de tal coisa e tinha quase a certeza
de que Lydia também não.
Lydia soltou um suspiro ditoso.
? E ele está cá.
? Sim, mas quem é ele? ? Voltou a mirar a amiga. ? E o que
significa esse suspiro? Estás noiva.
? É verdade ? afirmou Lydia ?, e estou muito, muito feliz.
Um muito a mais para ser credível, mas como Minnie nunca
conseguira fazer passar tal ideia, não valeria a pena começar
naquele momento.
16
? Mas tu não estás noiva. ? Lydia puxou-lhe a mão. ? Ainda não.
Além disso, o que tem a realidade que ver com a imaginação?
Será que não nos podemos imaginar com um vestido
de seda vermelha lindo, a descer a caminho de uma multidão
ansiosa, cheia de pessoas que te adoram, com um homem
elegante ao teu lado?
Minnie imaginava-o, mas as massas nunca a adoravam.
Gritavam. Atiravam coisas. Insultavam-na, e bastava-lhe esperar
por um pesadelo que lhe chegasse durante a noite para o
reviver.
? Não estou a dizer que temos de nos casar por causa disso. É só
sonhar um bocadinho. ? E com isso, Lydia abriu a porta.
Na sala encontrava-se apenas uma mancheia de pessoas. Mr.
Charingford aguardava-as junto à porta e cumprimentou a filha
com um aceno de cabeça. Era um espaço pequeno, mas
as paredes haviam sido apaineladas com madeira, as janelas
tinham vitrais e a lareira fora adornada com entalhes. O brasão de
Leicester assumia lugar de destaque na parede
oposta e o pesado cadeirão do presidente da câmara encontrava-
se na frente da divisão.
Fora aí que o pequeno grupo se reunira ? o presidente da câmara,
a esposa, Stevens, um homem que ela não conhecia e... Minnie
susteve o fôlego.
Era ele. O louro de olhos azuis que lhe falara na biblioteca.
Parecia demasiado jovem para ser alguém importante. Mais
concretamente, parecia demasiado simpático para isso.
Ver o presidente a adulá-lo...
? Estás a ver? ? comentou Lydia em voz baixa. ? Acho que até tu
serias capaz de sonhar com ele.
Bem-apessoado, gentil e importante. Minnie sentiu a imaginação
a puxá-la como algo quase visceral, levando-a por caminhos
pavimentados com fantasias ao luar.
? Às vezes ? disse Minnie ?, quando acreditamos no impossível...
Era muito pequena na altura em que o pai era apreciado o
suficiente para ser convidado um pouco para todo o lado. Viena.
Paris. Roma. Pouco tinha a seu favor, salvo um apelido

17
antigo, facilidade de conversação e um talento para o xadrez
quase inultrapassável. Ele sonhara com o impossível e infetara-a
com a loucura.
Só tens de acreditar, dissera-lhe a partir dos cinco anos. Não
precisamos de fortuna. Não precisamos de riqueza. Nós, Lanes,
acreditamos com mais intensidade do que os outros,
e as coisas boas chegam-nos.
E assim acreditara. Acreditara com tamanha fé que nada lhe
restara quando os esquemas colapsaram. Nada além dessa fé vã.
? Se acreditares no impossível ? disse Lydia, arrastando-a de
volta ao presente ?, o impossível pode concretizar-se.
? Se acreditares no impossível ? contrapôs Minnie ?, perdes
aquilo que tens.
Não havia caminhos ao luar que levassem àquele homem. Era
apenas um cavalheiro que lhe falara com gentileza. Mais nada.
Não havia sonhos, nem fantasias.
? E tu tens tanto a perder. ? O tom da voz de Lydia era trocista.
? Tenho muito a perder. Ninguém me aponta na rua nem bichana
quando passo. Não tenho multidões em fúria a perseguir-me, em
busca de vingança. Ninguém me atira pedras.
E ainda havia estranhos que a tratavam com gentileza. Ele era
injustamente atraente ? algo que, sem dúvida, explicaria o brilho
nos olhos de Lydia. Segundo o que Lydia dissera
acerca de importação, ele lidava com política. Membro do
Parlamento, talvez? Parecia demasiado jovem.
? Mas que sério ? ofereceu Lydia, fazendo uma careta. ? Sim,
tens razão. Podiam cuspir-te em cima e chamar-te monstro. E
talvez pudesses ser devorada por dragões. Sê razoável.
Tens noção de que nada desse género é sequer remotamente
possível. Já que não és capaz de o imaginar, eu faço-o por ti.
Durante o próximo minuto vou imaginar que ele vai virar-se,
olhar para ti...
Não foi preciso imaginar. Quem quer que ele fosse, virou-se
nesse momento. Olhou para Lydia, que transbordava de
entusiasmo e o cumprimentou com uma vénia. Depois, os olhos
dele assentaram em Minnie.

18
Aí está, parecia aquele olhar querer dizer. Ou algo do género.
Pois Minnie foi percorrida por uma faúlha de reconhecimento.
Não era algo tão simples como o facto de lhe ver
o rosto e achá-lo familiar. Era a sensação de se conhecerem, um
conhecimento mais profundo do que alguns momentos passados
juntos atrás de um sofá.
O olhar do indivíduo deslocou-se para a direita, parando no pai
de Lydia, que se encontrava entre elas. Deu alguns passos em
frente, abandonando as pessoas que o rodeavam.
? Mr. Charingford, não é verdade? ? indagou.
Ao acercar-se susteve mais uma vez o olhar de Minnie e
ofereceu-lhe um sorriso levemente pesaroso ? algo que agitou
uma recordação há muito oculta.
Se a agitação de Mr. Charingford não chegasse, aquele sorriso
serviria para a convencer. Tratava-se de alguém importante.
Minnie precisou de um instante para situar aquela
expressão curiosa no rosto dele ? aquele esboço de sorriso, a par
dos olhos com algo que lembrava contrariedade.
Vira-o havia oito anos, no rosto de Willy Jenkins. Willy Jenkins
era maior do que todos os outros rapazes da idade dele ? era
alarmante o quanto. Aos quinze anos de idade,
ele tinha um metro e oitenta e quase oitenta quilos de peso. A
força correspondia-lhe à dimensão. Certa vez, Minnie vira-o a
levantar os irmãos, um em cada mão.
Willy Jenkins era grande e forte, e os outros miúdos teriam medo
dele, não fosse pelo sorriso.
Mr. Charingford fez uma vénia obsequiosa, dobrando-se de tal
modo que quase chegou ao chão. Mal conseguiu debitar as
palavras.
? Posso apresentar-lhe...?
Mr. Charingford nem imaginava que aquele homem lhe
autorizasse uma apresentação, antes parecia pensar que a recusa
seria de um bom-tom absoluto.
? Por quem é ? respondeu o homem. Susteve o olhar de Minnie,
que o desviou rapidamente. ? O meu círculo de conhecimentos
tem sempre espaço para mais donzelas.

19
Outra vez o sorriso apologético: o sorriso de Willy. Era o sorriso
de Willy quando vencia no braço de ferro, e ele nunca perdia ao
braço de ferro. Era um sorriso que dizia:
Desculpa ser maior e mais forte do que tu. Vou ganhar sempre,
mas vou fazer o possível por não te magoar. Era o sorriso de um
homem que sabia ser dono de uma força considerável,
situação que considerava um tudo-nada embaraçosa.
? Mas que atencioso da sua parte ? disse Mr. Charingford. ? Esta
é a minha filha, Miss Lydia Charingford, e a amiga, Miss
Wilhelmina Pursling.
O louro curvou-se sobre a mão de Lydia ? a cabeça inclinada ao
de leve ? e, em seguida, procurou os dedos de Minnie.
? Meninas ? apresentou Mr. Charingford ?, este é Robert Alan
Graydon Blaisdell.
Os olhos ? de um azul tão pálido que a levaram a pensar num
lago no inverno ? cruzaram-se com os dela. O sorriso ergueu as
pontas dos lábios, mais embaraçado do que nunca.
Os dedos tocaram-se, e mesmo através das luvas de ambos, a
mão dele pareceu-lhe excessivamente quente. Contra todo o bom
senso, Minnie sentia-se a reagir àquele homem. O sorriso
equiparou-se ao dele. Naquele breve momento, na sua
imaginação, eram caminhos ao luar. E essa luz prateada
transmitia magia a cada face sombria da sua vida.
A seu lado, Mr. Charingford engoliu em seco, o som audível
mesmo àquela distância.
? Obviamente, trata-se de Sua Alteza, o duque de Clermont.
Minnie quase puxou a mão. Um duque? Fora encontrada atrás do
sofá por um malfadado duque? Não. Não. Era impossível.
Charingford indicou o outro homem a seu lado.
? E este, aaa, este cavalheiro...
? O meu amigo ? interrompeu o duque.
? Sim. ? Charingford voltou a engolir em seco. ? É claro. O
amigo de Sua Alteza, Mr. Oliver Marshall.
? Miss Charingford. Miss Pursling ? disse o duque, acenando
com a cabeça a Lydia sobre o ombro de Minnie. ? Sem dúvida, o
prazer desta apresentação é todo meu.
Minnie inclinou muito ao de leve a cabeça.
20
? Vossa Alteza ? balbuciou.
Tudo, naquela noite, conspirava para a sua destruição. O noivo da
sua melhor amiga julgava que ela estava envolvida com sedição e
o malfadado duque de Clermont poderia desgraçá-la
com uma única palavra. Era o resultado da sua imaginação
traiçoeira. Era o resultado dos caminhos ao luar. Era o resultado
da breve contemplação de um romance. Os sonhos por
vezes saíam gorados, e quando desapareciam, a realidade ficava
um pouco mais fria.
Sua Alteza susteve-lhe o olhar imediatamente antes de Minnie
sair. E, mais uma vez, ofereceu-lhe aquele sorriso tímido. Um
sorriso que ela agora sabia o que significava.
Ela não era nada. Ele tinha tudo. E ele, valesse isso o que valesse,
sentia-se embaraçado com o poder de que dispunha.
A carruagem balançava, não suavemente, mas com solavancos
bruscos. Em tempos, as molas teriam sido novas, imaginava
Minnie, e cada buraco na estrada de regresso à quinta das
tias-avós não seria amplificado para estremeções de bater os
dentes. Mas os fundos eram escassos e quaisquer reparações eram
um luxo, algo longe das posses das suas tias.
A tia-avó Caroline estava no banco à frente de Minnie, a bengala
sobre o joelho. Ao seu lado estava Elizabeth, menos curvada, mas
bastante mais encanecida. Nem escolhidas
a dedo seriam mais diferentes. Caro era alta e rechonchuda,
enquanto Eliza era baixa e angular. O cabelo de Caro era liso e
escuro, com meia dúzia de madeixas brancas; o cabelo
em tempo louro de Eliza ficara branco e frisado.
Com a sua idade, deveriam ter passado aquela noite fria de
novembro em casa, junto à lareira, não em passeatas para assistir
a serões musicais. Mas haviam-na acompanhado,
e agora envergavam expressões condizentes de desagrado.
No escuro, abrigadas do olhar do cocheiro, estavam de mãos
dadas em mútuo reconforto.
E, como sempre, Minnie estava prestes a piorar as coisas.
? Tia Caro. Tia Eliza. ? A voz soava baixa na noite aveludada,
quase abafada pelo estrépito das rodas. ? Tenho de vos contar
uma coisa. É sobre o capitão Stevens.
21
As duas mulheres trocaram um olhar demorado.
? Nós sabemos ? disse a tia-avó Caro. ? Estávamos na dúvida
quanto a comentá-lo contigo.
? Ele anda a investigar o meu passado.
As duas mulheres entreolharam-se mais uma vez, mas foi Caro
quem acabou por falar.
? É um revés, sem dúvida, mas já passámos por situações piores.
Minnie abanou a cabeça.
? Ele sabe. Ou vai saber. Em breve. Não sei o que fazer.
Eliza estendeu a mão e deu uma palmadinha no joelho de Minnie.
? Estás a entrar em pânico ? disse tranquilamente. ? Nunca entres
em pânico; isso mostra aos outros que algo se passa. Lembra-te
de que a verdade é demasiado extravagante
para ser imaginada. Nunca ninguém vai adivinhar.
Minnie inspirou fundo e depois engoliu nova golfada de ar.
? Mas...
? Para descobrir a verdade ? descansou-a Eliza ?, ele teria de
fazer as perguntas certas. E acredita, minha querida. Não há
ninguém que vá perguntar se o teu pai te fez passar
por rapaz durante os teus primeiros doze anos de vida.
? Mesmo assim, ele só tem de desconfiar...
? Chega, Minnie. Respira. Ficar nesse estado não ajuda.
Para elas era fácil. Ao fechar os olhos quase conseguia ver a turba
a rodeá-la, as palavras dissonantes que provinham de expressões
distorcidas pela fúria...
? Está tudo bem ? asseverou Eliza, movendo-se atrapalhadamente
na carruagem para se sentar ao lado de Minnie. Passou-lhe a mão
sobre o ombro. ? Está tudo bem. Está tudo bem.
? A cada repetição ia afagando o cabelo de Minnie. Cada
murmúrio trouxe mais calma, até que Minnie foi capaz de
controlar o pânico crescente. Fechou a recordação no passado,
onde era o seu lugar, e aí a reteve até que a visão deixou de ficar
toldada e a respiração voltou a um ritmo normal.
? Assim está melhor ? disse Eliza. ? Nós tratamos disto. O
Stevens também falou comigo. Ele julga que nos estás a mentir.
Chegou a sugerir que podias não ser quem afirmavas,
que estarias a aproveitar-te da nossa generosidade.
22
? Meu Deus. ? Minnie mergulhou o rosto nas mãos.
? Não, não ? murmurou Caro. ? Sendo obviamente falsa, esta
história é mais fácil de refutar. Nem sequer temos de mentir.
Disse- -lhe que tinha estado presente no dia em que
nasceste e que prometera à tua mãe, no seu leito de morte, que
cuidaria do teu bem-estar e que não gostava que ele andasse a
meter o nariz onde não era chamado. Acreditou
em mim quando lhe disse que era impossível que fosses um cuco
enfiado às escondidas no nosso ninho. ? Caro anuiu com
gravidade. ? Ele sabe que és minha sobrinha-neta... quanto
a isso não há dúvida. Ele desconfia de alguma coisa menos
correta, mas deixei-o inseguro. Não vai fazer nada.
? Mas não sou. ? Minnie arquejou, tentando recuperar o fôlego. ?
Não sou vossa sobrinha. Eu...
Caro pegou na bengala e deu algumas pancadas discretas na
perna de Minnie.
? Não te quero a falar assim. Sabes como são as coisas.
Era verdade. Desde que se recordava que Minnie tratava Caro e
Eliza por tias-avós, embora só Eliza fosse sua familiar de sangue.
Há quase cinquenta anos, as duas mulheres
haviam concluído a escola juntas. Tinham sido apresentadas à
sociedade de Londres ao mesmo tempo. E quando, passadas
algumas temporadas, não haviam conseguido encontrar homens
que amassem, recusaram-se a casar-se por conveniência. Em vez
disso, haviam-se retirado juntas para a pequena quinta que Caro
tinha nos arredores de Leicester ? amigas e solteironas
para o resto da vida. Eram chegadas como irmãs. Minnie
desconfiava que fossem ainda mais chegadas do que isso.
? Não te preocupes ? descansou-a Eliza. ? Eu jurei à tua mãe.
Ambas jurámos. ? A voz fraquejou-lhe. ? Para minha grande
vergonha, falhei-lhe uma vez. Não voltará a acontecer.
Minnie levou a mão à cicatriz na face. Em criança julgara-se
invulnerável. Os outros podiam fraquejar e cair, mas ela não. O
arrojo do que conseguira só era equiparado pela
queda que dera em seguida. Ainda se lembrava de estar deitada
no escuro, sem saber se voltaria a ver daquele olho. Fora quando
as tias-avós haviam chegado em seu auxílio.
23
? Se vieres connosco ? dissera-lhe Caro ?, terás uma
oportunidade.
Não lhe haviam oferecido a vida fascinante com que a maioria
das meninas sonha. Se fosse com as tias-avós, teria uma vida
frugal. Um nome falso. Teria alguns anos de infância,
seguidos por algum tempo para conhecer os homens da terra.
Talvez viesse a casar-se e a ter filhos. Não haveria fama, nem
adulação. Só lhe garantiam uma benesse: um futuro
sem multidões enraivecidas.
As tias haviam sacrificado muito para lhe proporcionar essa
ínfima possibilidade. Juntaram cada centavo para que ela tivesse
um guarda-roupa respeitável quando chegasse à
idade de se juntar a uma companhia mista. Nunca se queixaram,
mas Minnie sabia porque não havia açúcar para o chá delas.
Sabia porque tinham deixado ? com muita pena ? caducar
a assinatura da biblioteca. Haviam sacrificado cada conforto da
sua velhice por Minnie.
E ela nem sequer se dignara a querer aquilo que elas tão
generosamente lhe haviam conquistado.
? Talvez ? aventou ?, talvez se contássemos a verdade ao capitão
Stevens...
As tias fitaram-na, desalentadas.
? Minnie ? disse Eliza com vagar. ? Minha querida. Depois de
tanto tempo! Sabes que não podes fazer isso, nunca.
Caro deu continuidade às palavras de Eliza.
? Estas regras que te estipulámos... elas não são dogmas. Nem
castigos. Estabelecemo-las porque te amamos. Porque queremos
que tenhas um futuro. O Walter Gardley não é gentil
contigo? Porque se o apanhasses e casasses rapidamente com
ele... isso talvez fosse boa ideia.
? Isso ? ecoou Caro, assentindo. ? Seria muito boa ideia. Se
casares com o filho de um destilador, as dúvidas do Stevens
perderiam força. Nessa altura, seria o teu ganha-pão
que estaria em jogo caso os trabalhadores se organizem. O
casamento pode não só assegurar-te o futuro, mas também as tuas
referências.
Nada em que não tivesse já pensado.
24
Sabia como seria bom conseguir nem que fosse isso. Para uma
rapariga sem dote e com um aspeto mediano, qualquer homem
era um excelente partido. Mesmo que ele só a quisesse
por imaginar que suportaria em silêncio o seu comportamento
grosseiro. Não obstante, ela não sentia o mais leve entusiasmo
com a ideia.
? Ouvi-o a falar ? admitiu Minnie. ? Ele disse que eu era uma
ratita... que eu ficaria calada enquanto ele estivesse com a
amante.
Caro e Eliza entreolharam-se.
? Não tens de te casar com ele ? disse Eliza lentamente. ? Se isso
te deixa infeliz, é claro que não tens de te casar com ele. Mas
antes de recusares, pensa nas outras opções.
Talvez te aconselhasse a esperar. ? O conselho foi dado com uma
expressão de dúvida, uma expressão que dizia que era improvável
que Minnie tivesse uma proposta melhor à medida
que envelhecesse. ? Se houver a mais pequena das probabilidades
que o Stevens descubra a verdade... ? Calou-se.
Não precisava de pronunciar as palavras. Se a verdade se
soubesse, não haveria mais ofertas.
Minnie não mentira ao duque de Clermont. Gardley era realmente
o melhor por que podia esperar ? um homem que só sabia que ela
ficava calada no meio dos ajuntamentos. Um homem
que a preferia calada. Não se dera ao trabalho de procurar saber
fosse o que fosse acerca dela: a cor preferida, o prato favorito.
Claro que seria mais seguro casar-se com
alguém que não quisesse saber nada sobre ela.
Miss Wilhelmina Pursling ficaria pateticamente grata por
Gardley propor casamento. Minerva Lane, por outro lado...
? Ele nem sequer sabe quem eu sou! ? exclamou Minnie. ?
Chamou-me ratita. Minerva Lane nunca foi um rato.
? Não digas esse nome. ? O tom de Eliza era baixo, mas
alarmado, e a mão pressionou os joelhos de Minnie, apertando-
os.
? Cala-te ? acrescentou Caro. ? Nunca é bom dizer a verdade.

25
Cala-te. Não entres em pânico. Nunca contes a verdade a
ninguém. Vivera com essas regras durante doze anos, e para quê?
Para que um dia pudesse ter a sorte de ser completamente
esquecida.
A memória de Minerva Lane ? de quem ela fora, do que fizera ?
era como uma brasa coberta por cinzas frias. Continuava quente,
muito depois de o fogo ter sido molhado. Por
vezes, o calor chegava à superfície até sentir a necessidade de
gritar como uma chaleira. Até querer incinerar os restos da sua
personalidade estraçalhada.
Essa rebeldia fervente subia-lhe no íntimo naquele preciso
momento.
A parte dela que continuava a ser Minerva ? a parte que não fora
reduzida a pó ? murmurava-lhe tentações ao ouvido. Não precisas
de te calar. Precisas de uma estratégia.
Nada de estratégias. Se soubessem que estava a contemplar
algum tipo de ação, aí sim, as tias iriam protestar. Havia anos que
não se permitia fazê-lo.
O Stevens julga que andas a escrever os panfletos. Sabes que não
és tu. Portanto, descobre quem o está a fazer.
Estúpido. Tolo. Idiota. Impossível.
Mas por mais que se reprimisse, essa ideia não a deixaria. Como
encontrar o responsável? Podia ser qualquer um.
Não, não pode. Sabes que não foi o capitão Stevens. Nem as tuas
tias. Nem foste tu. Se identificasse quem não o poderia ter feito,
só restaria o culpado. Através de um processo
de eliminação...
Não, sua tola. Há centenas de possíveis culpados. Milhares.
Claro que agora que se atribuíra uma tarefa, era quase impossível
calar os pensamentos. Havia as maiúsculas, os pontos de
exclamação. Parágrafos de texto que descreviam os
donos das fábricas e seus descendentes. Havia qualquer coisa
estranha em tudo aquilo.
Depois, sem saber porquê, pensou em algo completamente
diferente. Minnie sabia porque estava escondida atrás do sofá.
Evitava a multidão e a proposta de Gardley.
Mas o que estava o duque de Clermont ali a fazer?
26
ORGANIZEM-SE, ORGANIZEM-SE, ORGANIZEM-SE!!!!
E aquele sorriso estranho ? aquele sorriso afável, vagamente
embaraçado? Alguma vez um duque aprenderia a desculpar-se
por ser o que era?
Não, havia qualquer coisa estranha em tudo aquilo. Algo...
A perceção assolou-a com tal força que a carruagem quase
pareceu desaparecer num clarão de luz.
Momentos como aqueles eram um dos motivos por que fora tão
bom ser Minerva Lane. Havia momentos em que parecia que as
palavras eram simples meadas, de todo capazes de conter
a enormidade dos seus pensamentos. A paisagem na sua cabeça
reformou-se com uma violência tectónica, organizando-se com
uma certeza mais vasta do que a sua capacidade de explicar.
E vindo do nada, mesmo tendo consciência de que não devia ?
mesmo sabendo com era perigoso tecer estratégias ?, Minnie
soube o que tinha de fazer. O plano caiu-lhe no regaço
com toda a força.
Não era o tipo de coisa em que a ratita Miss Pursling pensasse.
Mas Minerva Lane ? essa sabia bem o que fazer.
E, graças a Deus, não tinha de se casar imediatamente com
Walter Gardley.
Talvez um dia se casasse. Mas se conseguisse que Stevens
deixasse de desconfiar dela, talvez pudesse adiar o casamento
durante meses. E talvez ? talvez ? aparecesse algo melhor.
CAPÍTULO 3
Era tão bem-apessoado que quase era injusto, pensou Minnie
quando o duque de Clermont entrou na saleta. O sol da manhã
que atravessava as vidraças refletiu-se no cabelo louro,
que seria demasiado comprido, não fosse pelas leves ondas
revoltas. O duque parou à soleira da porta e passou a mão pelo
cabelo enquanto a observava, desgrenhando-o ainda
mais. No entanto, qualquer suavidade que o cabelo rebelde
pudesse transmitir à aparência era contrariada pelos olhos.
Atentos e frios, de um azul penetrante, qual ribeiro
engrossado pelas águas geladas do degelo. Os olhos pousaram
nela e aí se demoraram alguns segundos, após o que saltaram
para Lydia, ao lado dela.
27
Lydia soltara risadinhas quando ouvira Minnie dizer-lhe que
pretendia visitar o duque de Clermont e nem pestanejara quando
a amiga lhe explicara que precisava de falar com
ele em privado.
O facto de o olhar do duque lhe atravessar a fachada que
apresentava ao mundo estava apenas na imaginação de Minnie.
Ele só parecia saber tudo.
Não saberia nada, pois, ao olhá-la, ofereceu o que parecia ser um
sorriso de prazer. Um leve toque na boca, mas também houve
uma alteração discreta nos olhos ? uma mudança,
do azul pálido da água gelada para o azul um tudo-nada menos
pálido de um céu limpo de verão.
A beleza dele tinha algo de pueril: uma sugestão de timidez no
sorriso, uma leveza no corpo. Ou talvez fosse a maneira como ele
desviava o olhar dela e depois não perdia tempo
a regressar.
Se na véspera não tivesse ouvido o deputado Packerly a falar, a
enaltecer a prestação do jovem duque no Parlamento, ela tê-lo-ia
considerado uma fraude. Bonito, jovem e modesto?
Demasiado bom para ser verdade. Os duques reais eram
barrigudos, velhos e exigentes.
? Miss Pursling ? disse ele. ? Mas que prazer inesperado.
Inesperado, acreditava que sim. Quanto ao prazer... bem, quando
terminassem, ele retiraria o que dissera.
? Vossa Alteza ? disse Minnie.
Tomou-lhe ao de leve a mão na dele ? através das luvas, Minnie
teve a sensação de calor ? e aproximou a cabeça.
? Miss Charingford. ? Clermont curvou-se sobre a mão da amiga
de Minnie como se fosse a mais grandiosa das damas. Ao fazê-lo,
Lydia mirou Minnie pelo canto do olho e pressionou
os lábios, como a tentar reprimir a vontade de rir. ? O que vos
traz aqui, minhas senhoras? ? perguntou.
Lydia atirou um olhar interrogador a Minnie, esperando que tudo
fosse revelado.
? Se alguém perguntar ? disse Minnie ?, viemos solicitar
donativos para a Comissão de Higiene dos Trabalhadores. ?
Susteve o fôlego, interrogando-se até que ponto ele seria
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astuto.
O duque ponderou o comentário por alguns instantes.
? Considero-me solicitado ? afirmou. ? Farei um donativo
adequado se me deixar os pormenores. Quanto ao resto... Se é
acerca de ontem, pode ficar descansada. Sou o expoente
máximo da discrição.
Astuto quanto bastasse.
Lydia ergueu uma sobrancelha ao perceber a insinuação de que
haviam falado antes, e Minnie abanou a cabeça.
? Não, Vossa Alteza. Há outro assunto que gostaria de discutir
consigo. Por força das circunstâncias, Miss Charingford veio
como acompanhante, mas o que tenho a dizer-lhe
não deve ser ouvido.
? É verdade ? confirmou Lydia alegremente. ? Não faço ideia do
que se trata.
? Estou a ver.
O sorriso desvaneceu-se para uma calma reservada. Sem dúvida
estaria a imaginar algo sinistro e escandaloso ? alguma artimanha
para o encurralar num casamento. Era um duque
atraente com uma fortuna razoável; por certo, deparar-se-ia com
tais enredos regularmente. Mas não a expulsou. Em vez disso,
esfregou o queixou e olhou para o espaço em seu
redor.
? Bem, se conseguir falar baixo, Miss Charingford poderá ficar
aqui. ? Indicou uma cadeira junto à porta. ? Deixamos a porta
aberta e instalamo-nos à janela. Poderá ver tudo,
garante a propriedade e não escutará nada.
Ofereceu a cadeira a Lydia. Agia como um perfeito cavalheiro,
de modos tão naturais que ela quase duvidou do seu instinto. O
duque tocou uma sineta ? chá em dois tabuleiros,
pediu, quando uma criada espreitou. Enquanto aguardavam,
levou a mão ao fundo das costas de Minnie e acompanhou-a à
janela. O contacto foi mínimo, apenas o calor da mão no
dorso, abafado por camadas de tecido, mas ela sentiu-o até ao
latejar acelerado no pescoço.

29
Era tão injusto que teve vontade de gritar. Ele era rico, atraente e
deixava-lhe o coração aos saltos com um mero toque do dedo.
Estava ali para o chantagear, não para o cortejar.
Pela janela, via a praça lá fora.
As praças eram menos comuns em Leicester do que em Londres,
e aquela não estava bem mantida. Tinha uma única árvore, tão
enfezada que mal merecia esse título. A erva perecera
havia muito, dando lugar a saibro cinzento. Não obstante, aquele
era um dos poucos bairros de Leicester onde havia praças.
Os comerciantes mais bem-sucedidos tinham as suas casas na
estrada de Londres, em Stoneygate. A pequena aristocracia vivia
em grandes propriedades nos campos circundantes.
Todos os que possuíam verdadeira fortuna e posição estabeleciam
as suas casas fora da cidade.
Mas o duque não. Minnie tocou no papel que tinha no bolso e
juntou isso à lista de coisas estranhas acerca daquele homem.
Quando chegavam duques àquela região, eles instalavam-se
em Quorn ou em Melton-Mowbray, para as caçadas à raposa. Ele,
contudo, alugara uma residência a poucos quarteirões das
fábricas.
? Em que posso ajudá-la? ? perguntou.
Havia muita coisa que não batia certo. Ele estava a mentir. Tinha
de estar. Minnie só não sabia porquê. Um tabuleiro de xadrez
estava montado na mesa de apoio. Minnie tentou
não olhar, evitar a atração inevitável. Mas...
As brancas estavam a vencer. Faltavam apenas seis jogadas para
xeque-mate, talvez apenas três. Já via o final, o ataque realizado
pela torre e pelo bispo, a linha de três
peões brancos que dividia o tabuleiro em dois.
? Joga xadrez? ? perguntou ela.
? Não. ? Acenou com a mão. ? Sou terrível a xadrez. Mas o
meu... quero dizer, um dos homens que me acompanham joga
xadrez por correspondência com o pai. É aqui que ele guarda
o tabuleiro. Não vai desafiar-me para um jogo, pois não? ? Sorriu
com a ideia.
Minnie abanou a cabeça.
? Não. Perguntei por perguntar.
30
As criadas chegaram com o chá. Minnie esperou até que saíssem.
Depois levou a mão ao bolso da saia e tirou o panfleto que
Stevens lhe enfiara na mão na véspera. As bordas,
molhadas pela chuva da noite, tinham-se enrolado e amarelecido
ao secarem, mas ela apresentou-o, não obstante.
O duque não o aceitou. Olhou com curiosidade para o papel ? o
suficiente para ler o título em maiúsculas que ocupava o quarto
superior da página ? e depois devolveu a atenção
a Minnie.
? É suposto interessar-me por panfletos radicais?
? Não. ? Mal acreditava na audácia que estava a mostrar. ? Vossa
Alteza não se interessa por panfletos radicais. Vossa Alteza
escreve-os.
O duque olhou para o papel. Depois olhou lentamente para ela e
arqueou a sobrancelha. Minnie desviou o olhar, as entranhas a
contorcerem-se com o escrutínio intenso de que
estava a ser alvo. Finalmente, ele pegou num pão doce e partiu-o
ao meio. O vapor escapou do interior, mas o calor não parecia
incomodar-lhe as mãos.
Nem sequer precisou de responder, tão absurda era a acusação
dela. Estava instalado na sua cadeira confortável, cercado por
mobília encerada e polida diariamente por criadas
cuja única responsabilidade era limpar os grãos de pó que se
atrevessem a aparecer. O duque de Clermont arrendara uma casa
e contratara uma dúzia de criados pelo período de
dois meses. Era dono de propriedades espalhadas por toda a
Inglaterra e de uma fortuna que os pasquins só conseguiam
imaginar ser de dezenas, se não centenas de milhares.
Um homem assim não tinha motivos para publicar panfletos
políticos radicais.
Mas ela já sabia que o duque não era o que parecia.
Como se para sublinhar tudo isso, ele comeu descontraidamente
um naco de pão doce e indicou-lhe que fizesse o mesmo.
Nem pensar. Minnie sentiu um nó no estômago com a mera
sugestão de beber um gole de chá. Estava Minnie a imaginar que
o duque ia, pura e simplesmente, recusar-se a comentar
a acusação, quando ele virou o papel.
31
? Operários ? leu. ? Organizem-se, organizem-se, organizem-se,
seguido por uma imensidão de pontos de exclamação. ? Produziu
um som de desdém. ? Para começar, abomino pontos
de exclamação. O que a leva a pensar que posso ter algo que ver
com isto?
Minnie não tinha provas, apenas a intuição de como tudo se
encaixava. Não obstante, tinha a certeza. Na pior das hipóteses
estaria errada e ficaria embaraçada à frente de
um homem que não voltaria a ver. Cruzou as mãos sobre o regaço
e aguardou. Também ela podia fazê-lo sentir-se desconfortável
com o silêncio.
Com efeito, foi ele quem falou primeiro.
? É porque acabei de chegar e não quer que os seus amigos sejam
responsabilizados? ? Minnie manteve-se calada. ? É porque
pareço um agitador? ? O tom era seco. Ele parecia,
e soava, tudo menos isso. A voz era tranquila e fluida,
exprimindo as sílabas no melhor inglês de Sua Majestade.
Ostentava um esboço de sorriso, uma expressão condescendente
que mostrava que lhe estava a fazer a vontade. ? Ou é porque
ouviu histórias acerca das minhas atividades radicais?
Nunca se ouvira tal coisa. Ele tinha reputação de ser um
diplomata, alguém a um tempo astuto e bem falante.
? O que está aqui a fazer? ? perguntou Minnie. ? Ouvi o que se
diz por aí, mas uma pessoa do seu estatuto que pretendesse
investir na indústria de Leicester enviaria um representante.
Não viria pessoalmente surpreender tudo e todos.
? Tenho amigos nas redondezas.
? Se fossem amigos que merecessem uma visita, ficaria em casa
deles.
O duque encolheu os ombros.
? Detesto impor a minha presença.
? Vossa Alteza é um duque. Está sempre a impor-se.
O duque franziu o cenho, parecendo vagamente embaraçado.
? É por isso, Miss Pursling, que detesto fazê-lo. Tem algo que
prove a sua acusação?
Minnie pegou no papel.

32
? Por acaso, esta circular tem dois parágrafos que me
convenceram de que a autoria é sua.
? Mas por quem é. ? Estendeu a mão, a palma para cima. ? Leia-
os e revele-me.
Minnie tirou os óculos do bolso e encontrou a passagem.
? "O que fazem os senhores para merecerem o grosso dos lucros?
Supervisionam. São donos. E por essa tarefa ? algo que não exige
raciocínio, que não exige esforço ? recebem
somas tão avultadas que lhes permitem não precisar de mexer um
dedo para se vestirem. Em vez de labutarem a partir dos catorze
anos, as filhas podem fazer o que quiserem;
os filhos só se preocupam com o grau de diversão."
Não houve reação por parte do duque, que se limitou a
permanecer sentado da cadeira, a mirá-la com os olhos de um
azul de gelo e a bater ao de leve com os dedos no braço.
? Acha que foi um duque que escreveu isso? ? acabou por
perguntar, com um toque de humor na voz.
? Não foi um operário.
? Ficaria surpreendida com o nível de literacia de muitos...
? Eu estou envolvida na Comissão de Higiene dos
Trabalhadores ? interrompeu Minnie. ? Não subestimo ninguém.
Há um indivíduo com uma memória enciclopédica que lê o mais
recente
seriado de Dickens à noite e o recita aos outros durante o dia.
Não é apenas o primeiro parágrafo que o denuncia. É o primeiro
em conjunção com o segundo.
? Oh! ? exclamou o duque, sem deixar de sorrir. ? Temos um
segundo parágrafo mais condenatório. Claro que o panfleto só
tem dois parágrafos. Portanto, não se faça rogada.
? Não posso fazer isso. ? Minnie pousou o papel e tirou os
óculos. ? Vossa Alteza não escreveu o segundo parágrafo.
Escreveu sobre aquilo que os donos não fazem. Nunca refere
aquilo que os operários fazem. Um operário iria concentrar-se na
forma como passa o dia, o que faz, quem lucra com isso, não no
modo como outra pessoa passa os seus dias.
Isto foi escrito por alguém que, quaisquer que sejam as suas
intenções, estava a pensar como um patrão.
33
Clermont fez uma pausa e meneou a cabeça. Depois pegou no
papel e leu-o. Quando começou tinha os lábios tensos. Leu
rapidamente, com os olhos a percorrerem a página. Mas ela
viu a expressão a alterar-se ? a passar de descrença para o erguer
surpreendido de uma sobrancelha. Lentamente, a boca formou
um sorriso. Quando desviou a atenção do papel,
os olhos ? antes duros e frios ? cintilavam.
? Homessa ? acabou por exclamar. ? Tem toda a razão.
? Sabendo isso, acaba por ser uma questão de lógica. ? Minnie
cruzou as mãos. ? Um patrão não escreveria isso... tem
demasiado em jogo. E depois de ter eliminado os operários
e os patrões, as hipóteses tornam-se escassas. Ontem à noite,
Vossa Alteza estava escondida atrás do cortinado. Não é quem
parece. Tendo em conta as provas disponíveis, Vossa
Alteza é a única possibilidade que faz sentido.
Minnie esperava que ele voltasse a negar a autoria do panfleto, já
que o que apresentara fora a mais débil das deduções.
Mas ele não argumentou. O duque relanceou Lydia ? que
beberricava o seu chá no outro extremo da divisão, lançando-lhes
olhares prenhes de curiosidade. Depois baixou ainda
mais o tom de voz.
? Se pretendesse denunciar-me publicamente teria falado com o
magistrado, que viria com um punhado de patrões furiosos a
reboque, a exigir-me que deixasse de agitar os operários.
Não o fez. Pelo contrário ? inclinou a cabeça na direção de
Lydia ?, deu-se ao trabalho de ocultar de todos o motivo da sua
visita. O que pretende de mim? ? Assentou a mão
sobre o bolso do colete, onde um homem poderia guardar a bolsa
das moedas.
? Quero que pare.
O duque fulminou-a com o olhar.
? Por favor. ? Ela engoliu em seco. ? Bem vê, estes panfletos
deixam toda a gente de candeias às avessas. Andam todos
desconfiados. E eu estou envolvida com a distribuição
de panfletos para aquela associação de trabalhadores, coisas que
não têm nada de radical; são sobre cólera. Não obstante, as
suspeitas podem recair sobre mim.
34
? Imagino que ficaria rapidamente ilibada, caso a apontassem. ?
Fez uma pausa. ? A menos que tenha mais alguma coisa a
esconder. Talvez não queira que se comente o motivo
por que uma jovem à beira do casamento anda a esconder-se atrás
de um sofá quando o pretendente aparece. ? Ergueu uma
sobrancelha.
Minnie teve de desviar o olhar.
? É assim a vida ? murmurou, fitando a chávena.
? Mas que surpresa ? comentou o duque, o tom baixo e
provocador. ? Nunca imaginei que a menina tivesse algo no seu
passado que desejasse esconder.
Minnie deixou-se mirar o líquido castanho na chávena.
? Para Vossa Alteza, isto pode ser muito divertido, mas o meu
futuro não é uma brincadeira. Esforcei-me muito para chegar
onde estou e irei lutar por manter o pouco conforto
que consegui. Não pretendo que as minhas ações sejam
escrutinadas com demasiada atenção. E imagino que Vossa
Alteza também não queira. Se parar com isso, ambos ficaremos
descansados.
? Descansados. ? Deixou arrastar a palavra, como se a saboreasse.
? Não me interessa ficar descansado. E se a separasse desse seu
pretendente estaria a fazer-lhe um favor.
Não tinha argumentos contra isso, mas, não obstante, abanou a
cabeça.
? Não será um favor se com isso não for capaz de encontrar
outro. Saiba Vossa Alteza que eu vivo como o destino quer.
Quando a minha tia-avó falecer, a quinta ficará para
o primo dela. A minha tia-avó Elizabeth e eu não teremos para
onde ir. Tenho de me casar. ? Ergueu finalmente a cabeça e fitou-
lhe os olhos. ? Não tenho alternativa.
O olhar do duque suavizou-se.
? Esse seu passado... É assim tão escabroso que receia que
alguém possa investigá-lo por causa de um panfleto?
Por um breve instante de loucura, Minnie ponderou contar-lhe a
história completa. Ele parecia tão recetivo, com a cabeça
inclinada daquela forma aberta e sedutora. Certamente,
ela poderia...
35
Até o simples facto de pensar na confissão chegava para gelar o
ar, para a deixar sem fôlego.
Voltou a olhar para o chá.
? Sabe como é ser mulher nestes tempos modernos? Os
cavalheiros casam-se cada vez menos. Li que trinta e quatro por
cento de donzelas de boas origens chegam aos vinte e sete
anos de idade sem se casarem. Não preciso de algo embaraçoso
no meu passado. Tudo o que fuja à normalidade, por mais banal
que seja, será uma catástrofe.
O duque recostou-se na cadeira e pensou um pouco.
? Nesse caso tenho uma solução alternativa para o nosso
problema mútuo. Ao que parece, preciso de um motivo mais
credível para permanecer na cidade. Se não acreditou naquilo
que eu disse, haverá outros que também o porão em causa. Tem
de estar nos sessenta e seis por cento de mulheres núbeis, por
assim dizer. ? Encolheu os ombros. ? Portanto,
vou seduzi-la durante a minha estadia. Pode rejeitar-me; eu
vagueio por aí, melancólico. Vai fazer maravilhas pela sua
reputação. Eu continuo a escrever e a menina terá o
seu marido.
A sugestão foi apresentada com naturalidade, mas a imagem
invocada ? dele a seduzi-la, da mão dele sobre a dela durante uma
valsa ? provocou-lhe um frio no estômago. Abanou
a cabeça com veemência.
? É uma péssima ideia. Ninguém vai acreditar que se interessou
por mim.
? Posso fazer com que acreditem. Nem uma em dez mil pessoas
chegaria à conclusão a que chegou. Nem uma. Posso fazer com
que todos acreditem na mulher que o viu... calada,
sim, e talvez um pouco tímida na presença de outros... ? Minnie
produziu um som desagradável, mas o duque silenciou-a com um
gesto. ? Tem bastante coragem e um talento raro
para ver o que está à sua frente. Posso fazer com que todos
percebam isso. ? O olhar intenso trespassava-a. Não havia como
fugir. O duque baixou o tom de voz. ? Posso fazer
com que todos a vejam.

36
Era só o estômago que lhe estremecia? Não. Tinha o corpo todo à
beira de um ataque de tremores. Havia anos que ninguém fingia
interessar-se por ela. Ter a atenção daquele
homem concentrada nela... Era demasiado.
Mas ele ainda não acabara.
? E o seu cabelo. O cabelo não devia mudar de cor só porque se
encaracolou, mas as pontas parecem refletir a luz, e não sei se é
castanho ou louro ou até ruivo, quando isso
acontece. Era capaz de passar horas a observá-lo, só para tentar
perceber.
Minnie tinha o coração aos saltos no peito. Não estava a bater
mais depressa, só com mais força, como se o sangue precisasse
de mais esforço para se deslocar.
Mas isso era um exercício de probabilidades, e Minnie estava
demasiado desesperada para se permitir ser algo mais do que
prática.
? Pare com isso. ? Pretendia que as palavras fossem definitivas,
mas a voz tremia-lhe. ? O que diria caso se encontrasse na
companhia exclusiva de homens? Quando lhe perguntassem
o que diacho viu naquela Miss Pursling, que mais parece uma
ratita? Duvido que lhes dissesse que ficou maravilhado com os
meus caracóis. Isso é o tipo de coisa que um homem
diz para convencer uma mulher, mas os homens não falam assim
entre eles.
Era óbvio que o duque esperava que ela engolisse aquele
enaltecimento ao cabelo, pois fez uma pausa ligeiramente
surpreendida. Depois abanou a cabeça e ofereceu-lhe um sorriso.
? Vamos, Miss Pursling ? comentou. ? Os homens não
perguntariam tal coisa. Eles já saberiam o que me chamou a
atenção. ? Debruçou-se e murmurou, à laia de conspiração. ? Foi
o seu peito.
Minnie ficou de boca aberta. De repente sentiu total consciência
do dito peito ? quente e com um formigueiro de antecipação,
mesmo sem ele estar perto.
? É magnífico ? murmurou o duque.

37
Nem sequer estava a olhar para ele, mas as mãos de Minnie
ansiavam cobrir-se, não para bloquear a vista, mas para explorar
as suas próprias curvas. Para confirmar se os seios
eram realmente magníficos, se haviam sido magníficos durante
todos aqueles anos, sem ela nunca reparar.
Fosse outro homem a dizer que tinha um peito magnífico e talvez
o tom saísse lúbrico, libidinoso ? um tom que a deixaria
arrepiada. Mas o duque de Clermont sorria bem-disposto,
e dissera-o como se se tratasse de mais um simples facto a ser
enumerado. O tempo está uma maravilha. As ruas estão
calcetadas. O seu peito é magnífico.
? Não proteste ? disse o duque. ? Foi a menina que perguntou. E,
afinal de contas, depois de aprofundarmos a nossa relação com
um pouco de chantagem, acho que não há necessidade
de nos atrapalharmos com falsas modéstias.
Minnie endireitou os ombros, consciente de que isso lhe elevava
ligeiramente o peito.
Experimente ver-se ao espelho de vez em quando ? sugeriu o
duque. ? Olhe para lá disto. ? Tocou na sua própria face,
indicando o ponto no rosto dela onde a cicatriz se encontrava.
? Olhe para si como está agora, cheia de fogo, pronta a digladiar-
se comigo. Se já se tivesse olhado assim, não poria em causa se
eu quereria seduzi-la. Saberia que sim.
Minnie sentia o corpo em chamas ? um fogo frio e fremente.
Nunca tivera tamanha consciência da sua carne ? cada
centímetro, desde a ponta dos seios, que podiam ou não ser
magníficos, aos calcanhares. Os olhos dele trespassavam-na.
Engoliu em seco.
? Não me parece correto de sua parte tentar dar-me a volta à
cabeça antes de ter concordado com o plano. ? E se por acaso o
tivesse ponderado por um instante que fosse, aquela
tirada seria decisiva. Um homem que tentasse seduzir daquela
maneira não era digno de a tentar seduzir.
O duque franziu o cenho e depois esfregou a testa.
? Vamos, Miss Pursling. ? Ofereceu-lhe um breve sorriso. ? É a
pessoa mais interessante que conheci desde que cheguei. Seria
um prazer passar mais tempo na sua companhia.
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Para ele, isso significava que poderia partir para outras paragens.
Para ela... Para ela seria um breve período com aquele homem a
cortejá-la. Um mês de elogios, algumas semanas
de sorrisos que a derretiam. Seria dia após dia idílico em que
corria o risco de se deixar encantar. Bastava pensar no que ele lhe
fizera em dez minutos.
Minnie abanou a cabeça, dispersando a rede que ele tão
habilmente lançara. Isso significaria ter toda a gente a olhá-la em
cada encontro. Não suportaria tal escrutínio.
? Vossa Alteza sabe que eu não tenho nada a ganhar com esse
plano. Se eu o ajudar e formos expostos, Vossa Alteza será
desculpada como sendo abastado, excêntrico e poderoso.
Eu serei a mulher... a traidora!... que abdicou de tudo por si. E se
me fizer passar por seduzida, todos vão acreditar que fui sua
amante. Ficarei desgraçada. E quando...
? Sentiu-se percorrer por uma onda de tristeza e não conseguiu
acabar a frase. Não queria imaginar a tia-avó Caroline morta.
Respirou fundo. ? No fim de tudo, eu ficarei desamparada
e Vossa Alteza continuará a ser um duque.
? Não é assim que eu trato as minhas amantes. Mesmo as falsas.
Minnie levantou o queixo e fitou-o.
? Saiba Vossa Alteza que o meu futuro não é uma piada.
O duque franziu o cenho.
? Estou a lidar mal com a situação. Oiça, Miss Pursling. ?
Suspirou. ? Não estou a querer tratar a sua situação com
leviandade. Mas não vim a Leicester por mero capricho.
Estou aqui por causa de uma promessa que fiz. O meu pai deixou
algumas coisas mal e eu quero corrigi-las. Não desejo prejudicá-
la, mas não vou desistir só porque mo está a
pedir. Não há necessidade para tal conflito.
? Não desejo ter de ir dando pistas que venham a constituir
provas que inevitavelmente o deem como culpado ? contrapôs
Minnie. ? Mas fá-lo-ei, se assim tiver de ser. E se
o fizer à minha maneira, quando esta história chegar ao fim, as
pessoas vão dizer, "Bem, a Minnie teve muito juízo, mesmo com
a presença de um duque".

39
? E os homens vão casar-se consigo por causa disso? ? indagou o
duque, num tom carregado de dúvida.
? Só preciso que um homem o faça ? replicou Minnie. ? Mais do
que um seria ilegal.
O sorriso regressou aos lábios do duque.
? Não lhe escapa nada, pois não? Nem acredito que o Gardley lhe
tenha chamado ratita. A Miss Pursling é a ratazana mais
formidável que eu já vi.
Pousou o indicador nas costas da mão dela. Não era uma carícia.
Não podia ser uma carícia. Não obstante, Minnie sentiu-se a
estacar, imobilizada por aquele solitário ponto
de contacto.
? Minha querida ? disse ele. ? Dou-lhe a minha palavra em como
terá uma proposta de casamento antes de partir. Nem que tenha
de ser eu a fazê-lo.
Minnie pôs-se de pé, afastando-se dele.
? Isso não tem piada! ? exclamou, sem se dar ao trabalho de
moderar o tom de voz. ? Não pense que se trata de uma anedota,
e agradeço que deixe de agir como tal.
Na tentativa de fugir dele e daquela horrível proposta, Minnie
derrubou a chávena para cima do pé. Sentia o líquido a ensopar-
lhe a meia. Mas ele não teceu qualquer comentário,
limitando-se a endireitar o tabuleiro na mesa. Atrás deles, Lydia
estava de sobrancelhas erguidas, observando-os com nervosismo.
? Muito bem ? declarou o duque, mantendo a voz baixa. ? Faça-o
à sua maneira e eu fá-lo-ei à minha. Veremos quem vence.
? Isso é impossível ? declarou Minnie. ? Não pode tentar seduzir-
me. Vou estar em guerra consigo.
? Não, não vai ? respondeu ele educadamente. ? Experimente
entrar em guerra com um combatente relutante. Acho que nem a
Minnie seria capaz de tal feito.
? Não faz ideia daquilo de que sou capaz.
? Pois não. ? E ofereceu-lhe um sorriso rasgado que lhe
desencadeou um formigueiro no estômago.
Depois levantou-se e tomou-lhe a mão. Desta vez debruçou-se
sobre ela ? de tal modo que os lábios lhe roçaram na curva da
palma. Minnie descalçara as luvas e sentiu da cabeça
40
aos pés o leve beijo na mão.
? Não sei ? concluiu o duque. ? Mas estou ansioso por saber.
CAPÍTULO 4
A chuva salpicava as vidraças do estúdio de Robert no primeiro
andar, dissolvendo o mundo exterior em espirais difusas. As duas
mulheres na rua surgiam como borrões de saias
esvoaçantes por baixo de sombrinhas escuras. Azul-claro ? o
borrão que era Miss Charingford ? e castanho-escuro ? a
inimitável Miss Pursling. Vista de cima, nada distinguia
Miss Pursling de qualquer outra sombrinha naquela rua. Se não a
tivesse visto poucos minutos antes, Robert nem se aperceberia de
quem era.
Sentia-se como se tivesse acabado de acordar, fraco e confuso, e
lhe dissessem que passara as últimas três semanas de cama, com
febre, e que durante a doença, a Rainha Vitória
abdicara do trono e fugira com um domador de leões de
Birmingham. O mundo parecia um lugar completamente
diferente. E no entanto, lá estava Miss Pursling, a fazer uma
pausa
por baixo de um toldo à esquina, virada para a amiga e a girar a
sombrinha como se nada tivesse acontecido.
Como se não lhe tivesse virado a vida do avesso.
A porta abriu-se silenciosamente atrás dele e aproximaram-se
passos. Não precisou de olhar para saber quem era; os criados
naquela casa ainda o viam com demasiada reverência
para se aproximarem sem rogarem autorização, pelo que só
restava uma possibilidade: Mr. Oliver Marshall.
? E então? ? disse Oliver atrás dele. ? Foi tão mau como
receavas?
Robert tamborilou os dedos no peitoril da janela e pensou no que
responder.
? Duas jovens a pedir uma contribuição para a Comissão...
Diacho, como era? Não me lembro... ah, sim. A Comissão de
Higiene dos Trabalhadores.
Eram muito poucos os segredos que Robert guardava de Oliver.
Na véspera não referira Miss Pursling. Para começar, não lhe
parecera relevante, e, por outro lado, a haver um
41
segredo, era da parte dela, não dele. Mas aquilo... Aquela
situação beirava um dos poucos segredos que era obrigado a
manter de Oliver.
? Compreendo. Vieram apreciar-te. ? Havia um toque de humor
na voz do amigo, que se acercou. Espreitou também pela janela e
franziu o sobrolho quando não viu nada de interesse.
? Na verdade, não.
Do outro lado, Miss Pursling e a amiga passaram por baixo do
toldo, as cabeças juntas, os ombros a tocar-se. A chuva escorria
pela beirada que as protegia, caindo ao chão
em ondas sujas. Oliver julgava que eles se encontravam ali para
falar com os residentes da cidade acerca de reformas potenciais.
Miss Pursling ameaçara revelar a verdade acerca
das outras atividades de Robert e isso fora substancialmente mais
irritante do que uma eventual adulação. Por outro lado...
Robert dirigiu-se ao homem que o acompanhava.
? Oliver ? disse ?, como é que chegaste à conclusão de que eu era
um ser humano digno?
Oliver tirou os óculos e limpou-os com um lenço.
? Achas mesmo que cheguei?
? Estou a falar a sério. Até te conhecer, quem olhava para mim
não via uma pessoa. Só via o filho de um duque. ? Desde Oliver
que mais ninguém o voltara a ver como uma pessoa.
Viam um voto na Câmara dos Lordes, uma fortuna herdada do
avô. Viam as probabilidades que ele representava.
Miss Pursling desapareceu à esquina e Robert abanou a cabeça.
Ela era um problema ? e um prazer ? com que deveria lidar numa
outra ocasião.
Oliver esfregou uma última vez os óculos e depois olhou para
Robert.
? Bem ? respondeu. ? Talvez tenha percebido quanto vale ser
filho de um duque. Não eras o único.
? Mas, quando te conheci, eu era um perfeito idiota.
? É verdade ? admitiu Oliver.
A amizade de ambos ? ou fosse lá o que partilhavam ? não fora
fácil. Quando conhecera Oliver, fizera dele um inimigo,
encorajando os outros rapazes a atormentá-lo. Não que
42
Oliver precisasse de grande ajuda nisso.
Certo dia, Oliver contara-lhe ? discretamente e casualmente ? que
eram irmãos. E o mundo de Robert ficara virado do avesso.
? Porquê tanta introspeção? ? perguntou Oliver. ? É simples.
Brigávamos; é normal entre irmãos. Precisámos de algum tempo
para nos conhecermos. Depois... ? Encolheu os ombros.
? Tens uma memória péssima. Nós não "precisámos de algum
tempo para nos conhecermos" ? contrapôs Robert. ? Incitei os
outros miúdos a implicarem contigo. E mesmo depois de
fazermos as pazes, demorei bastante a aceitar o que me tinhas
contado.
Passara meses a ponderar sobre as terríveis e inevitáveis contas ?
contas que retiravam nove meses à idade do irmão e davam uma
data dois meses após o casamento dos pais de
Robert. A sua mente continuava a tentar conjurar um bom motivo
para que o pai tivesse gerado um filho fora do casamento,
abandonando-o depois sem apoio financeiro. Robert
desenvolveu explicações complexas com base em mensagens
desgarradas, mentiras contadas, criados que por acaso ficaram de
folga...
? Só deixei de procurar desculpas para o comportamento do meu
pai quando lhe perguntei o que acontecera.
Não quero saber do que ela diz, resmungara o pai. Foi ela que
quis. Querem sempre.
Essa negação reflexa de um crime de que não fora acusado
tornara tudo dolorosamente claro. Robert encontrara Oliver logo
após as férias.
Não sou o meu pai, dissera, a voz a tremer. Não quero saber o
que os outros possam dizer, não sou o meu pai.
E Oliver limitara-se a sorrir-lhe. Eu sei, respondera,
atrevidamente. Tenho estado à espera que o percebesses.
Sei que não és o teu pai. Com o passar dos anos, essas palavras
haviam assumido uma importância maior do que qualquer lisonja
que com tanta frequência lhe era dirigida. Um
professor de Cambridge fitara-o e dissera-lhe: "Por Deus, é a
imagem chapada dele." Ao atingir a maioridade, os homens
davam-lhe palmadas nas costas e comentavam quão parecido
43
era com o velho duque de Clermont. Sempre que o elogiavam
quanto à linhagem, ouvia a queixa do pai. Foi ela que quis.
Querem sempre.
Robert era dois dedos mais alto do que o irmão. Era três meses
mais velho. E ? a única coisa que realmente importava ? era o
filho legítimo, aquele que herdaria o título do
pai e a vasta fortuna da mãe. Ninguém diria nada se pusesse o
irmão no seu devido lugar ? algures bem atrás dele.
Razão pela qual Robert nunca o faria. Venci a primeira batalha,
por isso vou vencer tudo o resto não era um bom grito de guerra.
Sobretudo quando essa primeira ronda fora
vencida devido à traição do pai.
Desde então, cada lembrete dos seus privilégios ? da fortuna do
pai, do título do pai ? deixava-o amargurado. Recordava-o do
momento em que descobrira o que implicava ter
um pai duque. Significava que ninguém o poria em causa, por
mais erradas que fossem as suas ações. Significava que nunca
seria responsabilizado pelos seus crimes, independentemente
de quem pagasse por eles. Significava que ninguém se importaria
que Robert seguisse as pisadas do pai.
Afinal de contas, os homens tinham as suas necessidades. E as
mulheres queriam-no. Queriam sempre.
Em toda a sua vida, só uma pessoa olhara para ele e dissera "Não
tens de ser o teu pai".
Uma e... O olhar de Robert voltou a espreitar pela janela. Uma e
meia.
Pois Miss Pursling estivera em sua casa, entregara-lhe aquele
panfleto e acusara-o de o ter escrito. Precisara de todas as suas
forças para não se sentir ufano e pedir a opinião
dela. Estava convincente? Gostou?
Em vez disso, limitara-se a franzir o nariz.
? O nosso pai era um idiota.
Oliver franziu o cenho.
? O teu pai ? retorquiu. ? O duque de Clermont não me criou.
Não me levou à pesca. Ele é meu progenitor, não é meu pai.
Nunca foi meu pai.

44
Visto por esse prisma, Robert fora criado por colheres de chá e
por folhas de erva.
? Não me referia à história ? respondeu Robert secamente. ? Só à
biologia.
Oliver abanou a cabeça.
? A família não é uma questão de história. Nem de biologia ?
disse calmamente. ? É uma questão de escolha. E não fiques
assim. Sabes bem o que quero dizer. Lá porque me recuso
a deixar que esse homem seja meu pai, isso não quer dizer que
não possas ser meu irmão.
? Se as coisas fossem assim tão simples. ? Robert levou as mãos
aos bolsos e desviou o olhar. ? Esta manhã tinha uma mensagem
da minha mãe.
? Ah. ? Oliver tocou-lhe no ombro. ? Deveras?
? Eu sei ? replicou Robert, com um tom que esperava soasse
divertido e sarcástico. ? E ainda há dois meses estive com ela em
Londres.
O irmão relanceou-o ao ouvir o comentário ? uma breve olhadela
pelo canto do olho, numa expressão que continha um tudo-nada
de pena a mais. Robert acenou-lhe para que não
tecesse mais comentários.
? Não comeces ? resmungou, com brusquidão. ? Ela vem cá.
Clermont, escrevera. Irei ficar hospedada no Three Crowns Hotel
de Leicester durante um certo período de tempo. Uma vez que
julgo que estás nas redondezas, jantaremos juntos
a dezanove de novembro.
? Não disse porquê, nem imagino o que a possa trazer cá. ?
Robert teve o cuidado de evitar o olhar do irmão. ? Se a família é
uma questão de escolha, há muito que ela escolheu
todos os outros em detrimento da minha pessoa. Para quê
incomodar-se comigo agora, se nunca se importou antes...
? Talvez... ? disse Oliver. ? Talvez ela queira...
? Ela não quer ? atalhou Robert, com maus modos. ? Ela nunca
quer.
Oliver e Robert conheciam-se há mais de metade da vida.
Haviam frequentado Eton juntos e, depois disso, Cambridge.
Durante esse tempo, recebera cartas constantes da família,
45
e reparara que Robert quase não recebia correspondência dos
pais.
Os olhos de Oliver ergueram-se e desviaram-se para a direita,
como se escolhesse as palavras seguintes com todo o cuidado.
? E o que vais fazer?
? Já lhe respondi a dizer que estaria ausente nessa data... que já
prometera acompanhar o Sebastian.
? Ah ? disse Oliver, num tom átono.
? E depois escrevi ao Sebastian, a rogar-lhe que viesse ? admitiu
Robert. ? Ela não quererá nada de importante, seja o que for.
Além disso, há quase um ano que não estamos
os três no mesmo sítio. Se os Irmãos Sinistros em toda a sua
gloriosa vilania não chegarem para a demover...
Oliver sorriu.
? Só nos chamavam isso em Eton porque éramos todos canhotos.
Hoje em dia já sou praticamente respeitável. Tu és um duque. E o
Sebastian é... ? Franziu o sobrolho. ? Bem visto,
entre as pessoas inteligentes. Algumas.
Robert riu-se.
? Boa tentativa, mas não pega. A minha mãe julga que a tua
existência é um insulto pessoal. Ela tem a certeza de que o
Sebastian é um apóstata... e desde que ele a tentou
seduzir no ano passado, tem-no como um libertino.
? Ele o quê? ? tartamudeou Oliver.
? Pedi-lhe que me salvasse num encontro. E ele assim fez. ?
Robert abanou a cabeça. ? À maneira dele.
Oliver franziu o cenho.
? Ele não estava a sério ? lembrou Robert. ? Mas o importante é a
essência. Se ela insistir em encontrar-se comigo apesar da
mudança de data e da presença de duas pessoas
que odeia, a situação é grave.
Em tempos, Robert talvez se perdesse num devaneio em que a
mãe acorreria a ele lavada em lágrimas, desesperada pela sua
ajuda. Ele salvá-la-ia através de uma combinação de
inteligência e bom senso. E ela imploraria perdão por o ter
evitado.

46
Na sua juventude, ao imaginar o lamento sentido, ele dizia-lhe
sempre para não chorar.
"Não se preocupe", imaginava-se a dizer-lhe. "Ainda nos restam
anos à nossa frente."
O tempo ainda não se esgotara, mas a esperança tinha um
determinado prazo de validade até ser abandonada por cansaço.
Havia mais de uma década desde que se permitira sonhar
com um mundo em que a mãe se interessava por ele e não ia
voltar a fazê-lo. Por mais improvável que parecesse, talvez ela
tivesse assuntos a tratar em Leicester ? assuntos
que a levariam dali antes que ele chegasse. Seria melhor para
ambos se não tentassem encontrar-se.
? E o que vais fazer se a situação for dramática? ? indagou
Oliver.
Robert abanou a cabeça.
? Faço o que sempre fiz. Aquilo que for preciso, Oliver. O que
for preciso.
*
Como é óbvio, a questão sobre o que fazer acerca de Miss
Pursling esperou até que Robert a viu outra vez. Isso aconteceu
três dias depois, na residência Charingford, para
onde Robert e Oliver haviam sido convidados para jantar.
Claro que pensara nela durante esses dias. Havia qualquer coisa
que o atraía. A perspicácia, o estilo intrépido ? tudo isso o
cativava. Certa noite acordou de um sonho em
que ela estava a ser agradavelmente ousada.
Mas as fantasias noturnas raramente chegavam à realidade.
Duvidava que ela pretendesse dar-lhe qualquer tipo de prazer. A
bem da verdade, desconfiava que estivesse prestes
a ser vítima de uma incómoda investigação amadora. Maus
disfarces, questões toscas, tentativas de lhe revirar o lixo em
busca de pistas... Miss Pursling era, sem dúvida, o
tipo de jovem estouvada que se entregaria à busca com abandono.
Assim sendo, não se surpreendeu quando a encontrou ao jantar.
Ela já se instalara quando Robert chegou, mas seria uma questão
de tempo até que o procurasse. Observou-a pelo

47
canto do olho antes de se sentarem para a refeição, esperando que
ela se pusesse à escuta da sua conversa.
Em vez disso, ela ignorou-o.
Ignorou-o tão bem que mesmo antes de serem chamados para a
mesa, ele dera por si a posicionar-se para ouvir a conversa dela
com outras três jovens. Tinha a certeza de que
ela estaria a perguntar por ele.
Não estava.
Ela mal falou. E quando o fez, a voz soou tão baixa que ele teve
de se esforçar por perceber as palavras.
Recordava uma melodia sensual no discurso dela, uma luz
marcial que lhe iluminara as feições, tornando-a bonita. Agora,
não havia nada disso.
Ela envergava um vestido de gola alta castanho, adornado
unicamente com um simples cordão militar nos punhos e em
torno do pescoço. Os óculos deviam estar guardados na bolsa
que usava à cintura. Manteve distância dele e não disse nada de
inteligente. Praticamente não disse nada.
Quase a indicara a Oliver como sendo espirituosa; quando se
sentaram para jantar, ela ficou ao lado do irmão. Não meteu
conversa com Oliver. Nem sequer levantou os olhos do
prato, salvo para olhar esporadicamente para o nível de vinho
aguado no copo. A dada altura murmurou qualquer coisa a
Oliver, mas como ele respondeu passando-lhe o saleiro,
Robert imaginou que fosse algo absolutamente inócuo.
Aquela mulher ameaçara expô-lo como responsável pelos
panfletos? Inacreditável.
Durante a refeição, Oliver dirigiu-lhe algumas perguntas. Em
resposta, ela resmungava algumas coisas ininteligíveis, os olhos
postos no prato. O irmão acabou por desistir
de qualquer conversa.
Os vestígios da mulher que ele vira haviam desaparecido,
deixando atrás deles uma sombra com uma postura perfeita e sem
conversa. Ela tinha razão. Todos iriam estranhar se
ele a tentasse seduzir. Nem sequer sabia como o fazer. Não se
podia seduzir uma mona.

48
Não obstante, depois de os cavalheiros terem regressado para
junto das damas, ele cumpriu o seu dever ? fazendo uma pausa
para falar com cada presente, ficando a saber os
seus nomes e como estavam de saúde. Fá-lo-ia de qualquer
maneira ? de que valia ser duque se não pudesse usar o título para
fazer os outros sorrir ?, mas desta vez tinha novo
incentivo. Percorreu a sala, acabando, inevitavelmente, por
chegar a ela. Estava sentada numa cadeira a um dos lados da sala,
de onde olhava os restantes presentes. Robert
não notou que ela se demorasse a observar alguém em especial.
? Miss Pursling. É um prazer voltar a vê-la.
Ela ergueu o olhar, mas não para ele. Em vez disso, concentrou-
se num ponto acima do ombro de Robert.
? Vossa Alteza ? cumprimentou.
A voz era baixa, mas continuava tal como guardara na memória,
um tom aveludado rouco. Pelo menos isso não fora imaginado.
? Posso fazer-lhe um pouco de companhia?
Continuou sem olhar para ele. Fitou a carpete entre eles e depois,
com um breve movimento da mão, indicou uma cadeira a seu
lado. Robert sentou-se e esperou que ela falasse.
Passado um minuto de silêncio, Robert percebeu que ela não diria
nada.
Recostou-se na cadeira.
? Já estou a ver como vai ser. Deixemos que o Robert trate da
conversa... ele é um duque, portanto deve ser bom nisso.
? Mas não. ? O canto da boca de Minnie estremeceu. ? Nunca
pressuporia que Vossa Alteza tivesse algum talento particular
nesse campo.
Era o primeiro indício que ela lhe dava de que se passasse algo
mais do que um excesso de timidez. Começara a duvidar da
própria memória. Aquela mulher não poderia ter ido
a casa dele tentar chantageá-lo, pois não?
? Diga-me ? insistiu ?, como se chega a Minnie a partir de
Wilhelmina? Minnie faz-me pensar em miniaturas... e nada em si
me parece diminuto.
Minnie observou cuidadosamente as luvas.
? Saiba Vossa Alteza que vem da terceira sílaba.
49
E voltavam aos meios sentidos. Teria imaginado a conversa?
Talvez estivesse a perder o juízo.
? Qual o problema da primeira sílaba? ? indagou. ? Ou da
segunda?
Minnie ergueu o olhar e, pela primeira vez naquele serão, fitou-
lhe os olhos. Robert podia jurar que teria de haver alguma
centelha neles ? alguma indicação da inteligência
que os haviam iluminado durante o primeiro encontro entre
ambos. Mas se os olhos eram janelas para a alma, os dela haviam
sido tapados para evitar que fossem perscrutados.
Não via absolutamente nada neles.
? Imagino ? replicou ela num tom gentil ? que seja capaz de se
aperceber dos problemas. Willy não poderia ser. É
excessivamente masculino.
? É verdade ? murmurou Robert.
? Quanto à segunda sílaba... ? Voltou a olhar-lhe sobre o ombro,
evitando o seu escrutínio. Os olhos dela pareciam velados, mas os
lábios voltaram a estremecer. ? Pois imagine
só Vossa Alteza. O que poderia eu dizer? "Olá, sou Wilhelmina
Pursling, mas pode tratar-me por Hell1".
Robert riu-se, deveras espantado. Ela ainda parecia uma mona a
revirar timidamente os dedos, e recusando-se a suster-lhe o olhar.
Mas a voz... A voz fazia-o pensar no aroma
a lenha queimada numa noite de outono, em seda disposta sobre
lençóis finos. No cabelo dela libertado daqueles ganchos
castradores e espalhados sobre uma almofada, as pontas
cor de mel a cobrir-lhe os seios.
Engoliu em seco e tossicou.
? Não era bem isso que eu esperava quando disse que ia entrar em
guerra comigo.
? Deixe-me adivinhar. ? Dedilhou cuidadosamente a luva, e
Robert percebeu que ela estava preocupada com um buraco
minúsculo na ponta. ? Julgava que eu ia ficar a rir como
uma tolinha quando me sorrisse. Quando lhe disse que ia provar a
toda a gente aquilo que anda a fazer, imaginou que fosse dar
início a uma investigação descuidada das suas
atividades diárias.
50
? Eu... não. É claro que não. ? Mas Robert sentia as faces a arder,
provavelmente por ter sido isso em que pensara.
Minnie mordeu o lábio, um retrato vivo de timidez. As palavras,
contudo, eram exatamente o contrário.
? Agora ? murmurou ela ? está surpreendido por eu o suplantar.
? Estou? ? ecoou Robert, olhando-a. ? Suplanta?
Minnie tinha os olhos fitos sobre o ombro dele, sem que a postura
denunciasse o que acabara de dizer tão baixo.
? É claro que sim ? retorquiu ela, falando como se fosse uma
questão óbvia. ? Vossa Alteza é um duque bem instruído... um
dos homens mais poderosos de Inglaterra. Tem centenas
de criados em várias propriedades. Caso necessário, poderia
angariar dezenas de milhares de libras.
O canto da boca ergueu-se, eliminando a ilusão de uma jovem
simples e discreta. Surgiu-lhe uma covinha na face. Fitou-o, por
meros instantes, e ele quase perdeu o fôlego.
Era aquela a mulher que o ameaçara.
? Tem isso tudo ? continuou. ? Mas eu tenho algo de que não
dispõe. ? Robert inclinou-se para ela, não querendo perder nada
do que fosse dito. ? Eu tenho perfeita noção de
táticas.
Robert teve um mero vislumbre de um sorriso, um breve
momento em que susteve a respiração, que logo depois
desapareceu. As feições recompuseram-se; ela voltou a baixar o
olhar
e Miss Pursling ficou com um aspeto banal.
Outro homem talvez ficasse surpreendido a ponto de se submeter,
mas Robert não podia contemplar uma retirada ? não com ela a
baixar a cabeça e fitar o chão. Não; queria trazê-la
outra vez ao de cima.
? Não fez nada ? disse Robert. A expressão de Minnie não se
alterou. ? Estou a vencer ? proclamou ele. ? Não consegue
obrigar-me a render-me.
? Deve julgar que as batalhas se vencem com canhões, com
discursos e investidas audazes. ? Alisou as saias enquanto
falava. ? Não é assim. As guerras vencem-se com as botas

51
adequadas. São vencidas pelos rapazes que produzem as
munições nas fábricas, pelos suprimentos escondidos do olhar do
inimigo. As guerras vencem-se graças à atenção ao pormenor.
Se espera ver a carga da cavalaria, Vossa Alteza já perdeu.
Robert pestanejou.
? Está a tentar fazer-me recuar. Isso não vai resultar.
? É a beleza da estratégia. Tudo o que faço contém uma ameaça
dupla. Se não abdica das palavras, revela o seu carácter. Tudo o
que diz, tudo o que faz, cada sorriso encantador
e cada doce protesto... na melhor das hipóteses vai alterar a forma
como chego à vitória. Mas é claro que ela é um facto consumado.
Parecia tão pequena naquela cadeira, tão frágil. Só quando
fechava os olhos e apagava a imagem de uma solteirona tímida é
que Robert conseguia apreender as provas captadas
pelos seus ouvidos. Miss Pursling nem sequer o olhava, mas a
voz soava indómita.
? Quer dizer que me acha encantador ? comentou ele. ? Não o
tinha incluído na lista das minhas qualidades.
? É claro que é encantador. ? Continuou sem erguer o olhar. ? Eu
estou encantada. Estou encantada até à raiz dos cabelos. ? Algo
na voz dela parecia tão amargo que quase dava
a ideia de um sabor doce. ? Vossa Alteza é uma força da natureza
? concluiu Minnie. ? Mas eu também sou. Eu também sou.
Não dissera que ela era encantadora... e, verdade fosse dita, não
era. Não num sentido habitual. Mas ela tinha algo de cativante. Já
não fazia ideia de quem ela era. Começara
por tomá-la por uma mulher espirituosa e inteligente. De seguida,
interrogara-se se ela seria uma enjeitada. Naquele momento,
contudo, ela parecia além de qualquer categoria,
mais profunda e mais complexa do que qualquer pessoa que ele já
conhecera.
? Se quer que eu recue ? adiantou ele baixinho ?, não devia ser
tão interessante.
Minnie cerrou os lábios.
No entanto, antes que pudesse responder, ouviu-se burburinho do
outro lado da sala. Robert virou a cabeça a tempo de ver uma
mulher ? Miss Charingford, a filha da casa e,
52
se bem se lembrava, a amiga com que Miss Pursling se fizera
acompanhar no outro dia ? a levantar-se tão abruptamente que a
cadeira tombou.
? Então, Lydia ? disse o homem que estivera sentado ao lado
dela. ? De certeza que não vai...
? Vou ? atalhou Miss Charingford. E, dito isso, pegou num copo
de ponche da mesa junto dela. Antes que alguém pudesse intervir,
atirou-o ao rosto do indivíduo, que ficou com
o líquido vermelho a escorrer-lhe pelo nariz, pelo queixo, a
manchar-lhe o plastrão. Um pouco por todo o lado ouvia-se gente
a arquejar.
? Não pode fazer isto! ? exclamou ele, levantando-se.
O homem era George Stevens. Robert falara com ele por duas
vezes, o suficiente para se recordar de que era o responsável pela
milícia. Segundo a mentalidade da zona, isso
fazia dele um homem importante.
? Não? ? retorquiu Miss Charingford. ? Então veja. ? Retirou um
segundo copo de ponche dos dedos do vizinho e atirou-lhe
igualmente ao rosto. ? Está a ver? Pelos vistos posso.
E com essas palavras, empinou o nariz e saiu, tempestuosa, porta
fora.
Robert virou-se para Miss Pursling.
? Ela...
Mas Miss Pursling já estava a meio caminho do lado oposto da
sala. Não se desculpara, nem se escusara. Limitara-se a sair dali,
atrás da amiga. Momentos depois, a porta fechou-se
atrás dela.
Robert ficara espantado com o facto de a postura dela, a
expressão do rosto, se terem mantido incólumes durante a
conversa. Mas ela também fora dissimulada. Indicara-lhe a
cadeira que lhe permitiria conversar enquanto se mantinha de
olho na amiga. Julgara que ela desviara o olhar para fingir
timidez. Em vez disso, estava a vigiar Stevens.
Tudo o que faço contém uma ameaça dupla. Isso também não
fora gabarolice. Ela rechaçara as tentativas de conversa apenas
com parte da sua atenção, dando-lhe lições sobre estratégia

53
e fingindo ser uma mona aos olhos de quem a visse. E enquanto
fazia isso, nunca deixara de acompanhar a escalada do drama da
amiga, no outro lado do salão.
Por Deus. A cabeça latejou-lhe ao pensar nas meadas que ela
teria em mente e cujos fios não perdera.
? Vossa Alteza.
Robert despertou das divagações, virou-se e viu um homem de pé
à sua frente. Era George Stevens, com uma expressão carregada
no rosto e tensão no maxilar. Limpara a maior
parte do ponche, mas o plastrão continuava com manchas rosadas
e a testa ostentava um brilho que deixava a pele de Robert
retesada em solidariedade.
? Capitão Stevens ? respondeu Robert.
? Concede-me uns minutos do seu tempo?
Robert voltou a olhar para porta através da qual Miss Pursling
desaparecera.
? É claro.
Stevens descreveu uma vénia rígida e depois ocupou, com igual
postura, o lugar que Miss Pursling vagara tão recentemente.
? É admirável ? começou Stevens. ? É absolutamente admirável
que um homem da vossa posição se digne a falar com todos os
convidados de um encontro destes. ? Esfregou as mãos.
? Mas... ah, como dizê-lo? ? Baixou a voz. ? Nem todas as
mulheres são igualmente merecedoras. E Miss Pursling não é o
que parece.
? Deveras? ? Robert continuava demasiado surpreendido. ? E em
que difere do seu aspeto a realidade de Miss Pursling?
Stevens pareceu relaxar um pouco.
? Tenho razões para crer que ela não é quem diz ser.
? Razões? Que razões?
Stevens pestanejou, como se não estivesse habituado a ser posto
em causa.
? Bem. Eu, aaa, falei com uma pessoa que era bastante íntima da
tia-avó dela. Essa mulher não tinha conhecimento da existência
de Miss Pursling.

54
? Era bastante íntima? ? Robert manteve o tom afável. ? Há
quanto tempo é que essa pessoa conheceu a tia-avó de Miss
Pursling?
Stevens começava a contorcer-se, qual menino apanhado numa
mentira.
? Tecnicamente, ela conhecia-a antes de se ter mudado para
Leicester. Ou seja...
? Tecnicamente? ? Robert ergueu uma sobrancelha. ? Perdoe-me,
pois não conheço as famílias da zona tão bem como o senhor.
Mas a tia-avó de Miss Pursling não se mudou para
esta zona há cinquenta anos?
? Sim. ? Stevens afundou-se no lugar. ? Mas ela conhecia a
família toda, que di... aaa, que diacho. ? Stevens calou-se e
respirou fundo. ? Ela saberia se a jovem Miss Elvira
Pursling se tivesse casado... a mulher que supostamente será a
mãe de Miss Wilhelmina. Vossa Alteza sabe que as pessoas
falam, sobretudo acerca de acontecimentos felizes.
Mas não existe registo de tal coisa. Tenho razões para acreditar
que Miss Pursling pode não ser legítima.
Talvez fosse verdade. A ser esse o caso, isso explicaria o motivo
por que ela insistia que não queria quem lhe remexesse no
passado. Um pouco diferente, deveras.
A haver um fundo de verdade naquilo que Stevens afirmava,
Robert poderia resolver de vez a questão. Bastaria uma pequena
ameaça, e, afinal de contas, ela já avançara com chantagem...
Mas não. Ele era um cavalheiro, e um dos homens mais
poderosos do país. Os homens poderosos que se serviam dos seus
privilégios para magoar mulheres... eram escumalha.
Robert deixou que a expressão gelasse. Não o fulminou com o
olhar. Limitou-se a observar o outro homem, sem pestanejar, até
que o capitão da milícia baixasse o olhar e franzisse
o cenho.
? Stevens ? disse Robert, sem se preocupar com o título ?, terá
ouvido alguma coisa sobre a minha pessoa que o levasse a
imaginar que gostaria de ouvir tais difamações?
? Mas, Vossa Alteza. Miss Pursling é-lhe desconhecida. Eu só
queria...
55
? Pensou que eu aceitaria tais boatos infundados única e
exclusivamente por não serem dirigidos a alguém que eu
conheço?
? Eu só queria... ? balbuciou Stevens.
? Estou farto das suas especulações. Se eu souber que prosseguiu
com tais calúnias, irei certificar-me de que Leicester conta com
novo capitão da milícia.
Stevens empalideceu.
? Não seria capaz.
Claro que o capitão sabia perfeitamente que Robert seria capaz.
Não diretamente, é verdade, mas bastaria que tecesse um mero
comentário junto de quem de direito... Robert
não empregaria a sua influência sem bons motivos e, tendo em
conta o que esperava conseguir ali, precisava de conservar esse
poder o mais possível. Não obstante, as ameaças
não custavam nada.
O capitão baixou a cabeça.
? Vossa Alteza queira perdoar-me. Essa mulher não é nada. Agi
mal. Nunca imaginei que se interessasse por alguém tão abaixo
da sua posição.
? De que vale ser duque se não me interessar? ? A questão saiu-
lhe à boca antes de se conseguir deter; mas não se deteria, mesmo
que o conseguisse.
Stevens pestanejou, confuso, e Robert abanou a cabeça. Era
loucura dar tanto poder a um homem e esperar que não o
utilizasse. Podia esmagar Miss Pursling com uma única frase.
Poderia esmagá-la com silêncio. Mas isso seria errado.
? Vossa Alteza ? acabou Stevens finalmente por dizer ?, a sua
preocupação enaltece-o.
Ver aquele homem a engolir um sapo não o fazia.
Robert susteve o olhar de Stevens.
? Não. Trata-se de decência humana, nada mais, e não mereço ser
enaltecido por fazer aquilo que todos os homens deveriam fazer.
Stevens voltou a estremecer e levou a mão à testa ? a testa
peganhenta, a julgar pelas dedadas que ficaram para trás.
? Agora ? declarou Robert, levantando-se ?, se me permite, tenho
outras pessoas com quem falar.
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Teve noção dos olhos do indivíduo que o fulminavam enquanto
ele cruzava a sala. Robert fez uma nota mental: era preciso
manter aquele homem debaixo de olho.
1 Que significa "Inferno" em português (N.T.)
CAPÍTULO 5
? Lydia ? chamou Minnie, apressando-se pelo corredor. ? Lydia,
espera! O que estás a fazer?
Lydia estacou no corredor, os braços esticados ao lado do corpo,
terminando em punhos cerrados.
? Vou lá para cima. ? Não se virou. ? O que te parece?
Minnie chegou junto à amiga.
? Ainda não é demasiado tarde. Volta lá para dentro e pede
desculpas... o Stevens perdoa-te. Tenho a certeza.
? Pois quem não o perdoa sou eu! ? exclamou Lydia. ? Ele
contou-me um boato terrível sobre ti: que não és legítima. O
miserável, a dizer-me tal coisa!
Minnie segurou-lhe os ombros.
? Lydia, ouve-me. Volta lá para dentro. Pede desculpa. Diz que
lamentas. Que foi um erro. Diz que bebeste ponche a mais, e de
certeza que ele te aceita de volta.
? Pois sou eu que não o quero. ? Lydia bateu o pé. ? Não quero.
Não quero um homem que fale assim da minha melhor amiga.
Não me vou casar com alguém capaz de se rir disso
e esperar que eu nada responda. Não vou.
? Sabes o que acontece quando o teu pai morrer. O teu irmão fica
com a fábrica e tu...
? Eu fico com o meu quinhão. ? Lydia ergueu o queixo.
Com mal que chegue para sobreviveres, pensou Minnie. E depois
de cortar relações com Stevens daquela maneira, seria muito
improvável que Lydia encontrasse mais alguém. Além
disso...
? E se da próxima vez os boatos forem sobre ti? ? insistiu Minnie.
Não precisou de dizer o que poderia ser. O segredo de Lydia era
por de mais conhecido. O médico que a diagnosticara. Todos os
que a tinham visto na Cornualha durante esses
meses fatídicos. Lydia corria tanto risco de ruína como Minnie.

57
? O que interessa quem sabe? ? indagou Lydia, desviando o olhar.
? Pelos vistos, a verdade não impede os boatos. Afinal de contas,
o Stevens anda a espalhar aquele boato terrível
sobre ti.
Explicar a fonte do boato suscitaria questões ? questões a que
Minnie seria incapaz de responder. Questões como, porque não
havia registo do nascimento de alguém chamado Wilhelmina
Pursling? Qual fora o seu nome e por que razão precisara de o
mudar?
Minnie abanou a cabeça.
? Garanto-te que os meus pais eram casados. ? Garantia isso e
nada mais. ? Mas Lydia, tens de ter mais cuidado com o teu
futuro. Perder um noivo só porque ele disse algo de
que não gostaste? Ninguém é perfeito.
Lydia envolveu-se com os braços e abanou a cabeça.
? Como podes pedir tal coisa? Como podia eu ficar calada?
? Mas ele era... ? Perdeu as palavras. ? Disseste que...
Lydia dissera que Stevens a faria feliz. Repetira-o vezes sem
conta, como se tentasse convencer-se a ela própria. Lydia era
assim. Acreditava no melhor. Queria que todos fossem
felizes. Encontraria o lado soalheiro de um eclipse.
Lydia dirigiu-se a Minnie.
? Às vezes ? disse lentamente ? deparamo-nos com escolhas.
Quando algo parece inevitável... quando, por exemplo, casar-me
com alguém seria bom para o meu pai... quando ele
é uma pessoa decente que gosta de mim... Bem, parecia que não
encontraria melhor partido. Faz sentido. ? Franziu intensamente o
cenho. ? Fazia sentido.
? Então vai pedir desculpa.
Lydia endureceu as feições.
? Depois do que ele disse sobre ti? Ele disse-me que eu não podia
voltar a falar contigo. Não acredito que este mundo seja cruel a
ponto de me exigir que sacrifique a minha
mais querida amiga para conseguir um bom casamento.
Oh, Lydia. Minnie sentiu um aperto no coração. Mesmo depois
de tudo o que acontecera à amiga, ela ainda acreditava nisso.

58
? Pode ser cruel a esse ponto ? murmurou Minnie. Depois, como
sabia até que ponto o mundo podia ser cruel, acrescentou: ? E é.
? Não é. ? Lydia descruzou os braços, mas apenas tempo
suficiente para envolver Minnie, para a chegar a si. ? Não vou
deixar que seja.
Minnie quase deixou que o calor desse abraço a iludisse. Quase.
Um dia...
Um dia, Lydia descobriria tudo o que Minnie lhe escondera. A
sua amizade não sobreviveria a isso. Não era a verdade sobre o
que acontecera que lhes destruiria a intimidade,
mas sim o facto de ela o ter ocultado durante tantos anos. Seria o
facto de ela ser o repositório dos segredos mais negros da amiga,
enquanto guardava o seu egoistamente.
Não se punha em causa se deixariam de ser amigas. A questão era
quando. No entanto, Minnie fora incapaz de abdicar dela. Lydia
era carinhosa, esperançosa e feliz, e por vezes,
mesmo com o pendor lógico de Minnie, Lydia conseguia infetá-la
com o otimismo dela.
Por vezes acreditava que seriam felizes. Não haveria mais receio
pelo futuro. Tudo correria bem e seriam amigas para sempre.
De todas as fantasias tolas que Minnie poderia acalentar, essa era
a que se arraigava no seu íntimo, era a única de que ela nunca
conseguira abdicar. Por isso, limitou-se
a abraçar a amiga e rezou para que demorasse ainda muito para
que se revelasse que ela tinha razão.
? E então ? disse Lydia. ? O duque de Clermont passou muito
tempo a falar contigo. O que foi que ele disse?
? Nada. ? Mas Minnie foi incapaz de reprimir um sorriso. ?
Absolutamente nada.
A casa ? se é que se podia chamar-lhe isso, e Robert duvidava
que merecesse tal título ? era um pardieiro terrível. O reboco que
restava na parede da divisão única estava
estalado e sujo de fuligem. O espaço cheirava a vinagre azedo e a
repolho velho. A cadeira onde se sentara estava
desconfortavelmente próxima do chão, como se uma das pernas

59
se houvesse partido e as outras tivesse sido cortadas para ficarem
à mesma altura. Quando se inclinava demasiado para qualquer
dos lados, a cadeira gemia e balançava. Aquele
espaço esquálido representava tudo o que de mau o pai de Robert
levara para Leicester, e ele estava ali para resolver a questão.
Robert demorara-se excessivamente a tentar corrigir as coisas.
Claro que, em abono da verdade, só recentemente descobrira o
que correra mal.
À sua frente, o residente ? um homem magro com ataques de
tosse chamado Finney ? apertou mais o casaco.
? Graydon Boots. ? Finney recostou-se no seu lugar e mirou o
teto. ? Ora aí está um nome que não ouvia há anos. Trabalhei para
eles em... 58, não foi?
? É isso que dizem os registos ? assentiu Robert.
O homem apontou o cachimbo a Robert.
? E está a dizer-me que depois de tantos anos, depois da Graydon
Boots ter fechado há mais de uma década, que um palerma
importante qualquer quer atribuir-me uma pensão. A
mim.
Robert assentiu.
? Mr. Blaisdell, eu passei quatro meses na prisão. Isso deu-me
cabo da saúde, mas a minha cabeça ainda funciona. Não acredito
nisso, não acredito. Tem de haver alguma coisa
por trás disso.
Não havia. O avô de Robert entregara a fábrica ao pai dele como
parte de um acordo. O pai ? que não percebia nada de indústria ?
deixara a fábrica nas mãos de um capataz e
ordenara-lhe que conseguisse tanto lucro quanto possível. Robert
só descobrira esse sítio ao analisar os registos do avô, de há
décadas. Os livros-caixa do pai, habitualmente
incompletos, nem sequer a referiam.
? Mr. Finney ? disse Robert ?, não estou a dizer que a Graydon
Boots lhe vai atribuir uma pensão. Isso seria um absurdo. A obra
de caridade que eu represento tem analisado
os acontecimentos desse ano e decidiu que o senhor foi
injustamente encarcerado.
? Há anos que eu o digo.
60
? Leicester tem uma história curiosa quanto a isso ? adiantou
Robert. ? Sabia que, na última década, foram condenadas mais
pessoas em Leicester por sedição criminosa do que
em toda a Inglaterra?
Mais uma situação provocada pelo capataz do pai, segundo
Robert sabia, e que não chegara ao fim quando a fábrica fora
encerrada.
? Por estas bandas dizemos o que nos vai na alma.
Robert pousou os documentos na mesa.
? Dizer o que lhe vai na alma só é ilegal se as suas palavras
tiverem como objetivo criar descontentamento com o governo.
Não com os seus patrões; com o governo. ? Robert
começara por só querer emendar aquilo que o pai destruíra. No
entanto, quanto mais esgaravatava, mais encontrava. Acabara por
analisar os registos dos julgamentos, tornando-se
óbvio que o júri entendera mal a lei. ? Não devia ter sido
condenado unicamente por organizar um sindicato.
Finney olhou-o, abanando a cabeça.
? Como queira. Mas os patrões conseguem o que querem. E eu
não quero continuar envolvido. A Cooperativa já me dá o que
fazer.
À laia de corroboração, a porta do quarto minúsculo abriu-se e
duas mulheres deixaram-se ver à entrada. Uma dela era uma
idosa magra de vestido castanho largo, com um saco
de mercearias na mão. Tirou a touca amarelada que lhe
escorregava da cabeça e gesticulou para a mulher que a
acompanhava.
? Acho que não vai resultar, só isso.
A companheira era Miss Pursling, um retrato vivo da severidade,
com o cabelo castanho-mel apanhado num puxo e apenas alguns
caracóis domados no pescoço.
As duas mulheres estavam absolutamente concentradas uma na
outra.
? Mrs. Finney ? dizia Miss Pursling ?, já falei com todas as
farmácias da cidade. A senhora é a minha última esperança.
Mrs. Finney desatou as fitas do chapéu.

61
? Mas a Cooperativa vende alimentos, não lida com nenhum
desses disparates.
? Mas o anúncio...
? Miss Pursling, sabe que gosto muito de si, mas como é que
posso apresentar isso à Direção?
Miss Pursling baixou o olhar.
? Não faz ideia de como o resto da Comissão me vai censurar se
voltar de mãos a abanar. ? Sabia bem como exibir humildade, de
cabeça baixa, as mãos cruzadas à sua frente.
? Por favor.
? Bem. ? Mrs. Finney pousou o xaile na mesa de entrada. ? Se
calhar. Talvez eu possa dizer alguma coisa.
? Obrigada ? agradeceu Miss Pursling. ? Obrigada.
Foi nesse momento que o marido interveio.
? Mrs. Finney ? chamou. ? Temos um convidado. Nem vais
acreditar no que ele está a dizer.
As duas mulheres viraram-se para Mr. Finney. Quando o olhar de
Miss Pursling assentou em Robert, ela arregalou os olhos e deu
um passo atrás.
? É um cavalheiro de Londres ? indicou Mr. Finney. ? Mr.
Blaisdell, a minha esposa. E Miss Pursling. Ele é advogado, creio
eu.
Miss Pursling nem sequer pestanejou.
? Um advogado ? repetiu. ? Mas que curioso, Mr. Blaisdell.
? Apenas um representante ? replicou Robert.
? Aqui Mr. Blaisdell está a dizer que há um fundo que atribui
pensões a quem se dedicou aos sindicatos e se encontra agora em
más situações por causa disso. ? Mr. Finney riu-se.
Mrs. Finney limitou-se a franzir o cenho.
? Bem, e o que querem eles connosco? ? Olhou em volta. ?
Somos só dois nesta sala grande e temos carne na mesa três vezes
por semana. Não estamos assim tão mal.
Robert pestanejou ao ouvir a senhora e mirou a divisão onde se
encontravam, tentando vê-la segundo a perspetiva dela. Não
estavam assim tão mal?

62
? Ofereceram-me uma pensão! ? Finney riu-se. ? A mim! Quando
o único serviço que prestei à Graydon Boots foi tirar de lá toda a
gente depois de o Jimmy ter morrido envenenado.
Robert desviou o olhar. Um dos primeiros mecanismos de
redução de despesas do capataz fora substituir o produto original
para tingir as botas por uma fórmula menos dispendiosa,
mas bastante mais perigosa para quem tinha de passar os dias
com as mãos mergulhadas no líquido. O dinheiro nunca serviria
para compensar isso, mas ele tinha de tentar.
? Pois ? disse Robert. ? E já expliquei que isso não é pelo seu
trabalho na Graydon Boots, mas sim pela sua experiência com
organização.
Finney limitou-se a abanar a cabeça, com uma expressão triste.
? Você é jovem e não compreende. Na altura aprendi a ficar no
meu lugar. Acabaram-se as reuniões. Acabaram-se as associações
a esse tipo de coisas. Sobretudo agora. Ouvi dizer
que o duque de Clermont está por cá.
? É verdade ? interveio Miss Pursling.
Finney cuspiu para o chão.
? Tudo começou quando ele adquiriu a Graydon Boots. ? As
mãos manchadas pela idade tremiam. ? Mais horas de trabalho
por menos ordenado. Depois vieram os fura-greves e as
condenações. Ele é um animal, e eu nunca...
? Nathan Finney ? interrompeu Mrs. Finney ?, essa conversa é
perigosa. Já te levaram de mim. Não aprendeste a pensar antes de
falar?
? Não, não ? asseverou Robert. ? Não tem de se calar por minha
causa. Eu concordo plenamente.
Miss Pursling avançou dois passos mais para o interior da sala.
? Deveras?
Era óbvio que pensava que ele ali se encontrava por capricho.
Robert olhou-a.
? Analisei os registos daquilo que o Clermont fez ? disse Robert
calmamente. ? Será assim tão mau querer emendar as coisas?
Minnie virou a cabeça.
? Apenas ponho em causa os seus métodos. ? A testa franziu-se
ao de leve. ? Os seus motivos... ainda não os compreendi.
63
? Mas o meu motivo é simples. Acho que é um desperdício
empregar os privilégios com os pares ? explicou Robert. ? Eles
têm o direito de ser julgados na Câmara dos Lordes.
Pense, Mr. Finney, no que isso teria representado para si. Os
lordes nunca teriam aceitado um caso de sedição criminosa com
base nas provas apresentadas contra si. A lei é
bem clara; eles protegeriam os pares.
? É verdade, é bem verdade ? admitiu Finney.
? Julgo ? disse Robert, dirigindo-se a Miss Pursling ? que se o
duque de Clermont, por exemplo, escrevesse panfletos a dizer
aquilo que aqui o Finney disse em 58... ele poderia
dizer a verdade sem que o impedissem com ameaças de prisão
baseadas numa corrupção da lei.
Miss Pursling meneara a cabeça para ele.
? Será? ? indagou.
Finney assentiu.
? É bem verdade, Mr. Blaisdell.
? Claro que os pares não se servem desse privilégio para dizer a
verdade, mas sim para a suprimir. Pense, Mr. Finney, o que faria
com um assento na Câmara dos Lordes?
? Eu, com um lugar nos Lordes? ? Finney riu-se. ? Gostava de ver
isso.
? E eu também ? garantiu Robert. ? Se eu tivesse a oportunidade
de participar no governo desta nação, não a desperdiçaria a
proteger os meus privilégios e interesses. Não.
Procuraria descobrir como se pode deixar que pessoas como o
Clermont envenenem os trabalhadores e os castiguem por dar voz
às suas queixas. E erradicava-os a todos.
Ficou surpreendido com a veemência na própria voz.
? Ora isso ? disse Mrs. Finney ?, isso é sedição, e é melhor não
dizer palavras dessas, por mais seguro que se julgue. O senhor é
jovem, Mr. Blaisdell. Todos nós já fomos
jovens. Mas respire fundo e não diga essas coisas. Isso não ajuda
ninguém. ? Olhou para Miss Pursling. ? Além disso, Miss
Pursling, não conheceu já o duque de Clermont? A
menina desloca-se nesses círculos. De vez em quando.

64
Mr. Finney mexeu-se na cadeira, com um ar um tudo-nada
embaraçado.
Miss Pursling desviou o olhar de Robert.
? É verdade.
? E como está esse velho diabo? ? perguntou Finney. ? Espera-se
que...
? Caluda, Mr. Finney.
? Julgo ? disse Miss Pursling ? que se trata do filho desse
cavalheiro.
Finney desdenhou o comentário.
? Quem viu um duque viu-os a todos. Não é verdade, Mr.
Blaisdell, não é verdade?
Robert não respondeu. Limitou-se a observar Miss Pursling, que
mal exibira emoção quando ele falou, nem a mais leve ruga de
concentração na testa.
Agora estava a abanar a cabeça.
? É alto. É abastado. É bem-apessoado, e isso raramente abona a
favor do carácter de um homem.
Robert franziu o sobrolho.
Mas ela não acabara.
? Duvido muito que ele compreenda o que é ser um operário, e
imagino que sempre tenha tido tudo de mão beijada.
Era uma avaliação dura, ainda mais severa por ser verdade.
Robert mal conseguia manter-se sentado.
? Os homens que nunca passaram por dificuldades não são
capazes de as compreender ? comentou Miss Pursling.
Era incrível quão dolorosas podiam ser as verdades. Robert nem
sequer era capaz de se sentir zangado com ela.
? Ainda assim...
Calou-se e abanou a cabeça, e Robert chegou-se à frente, ansioso
por ouvir o que ela poderia dizer acerca da sua pessoa.
A voz soou muito baixa, mas a sala parecia ainda mais sossegada,
à espera que ela preenchesse o silêncio.
? Ainda assim ? continuou, sem nunca olhar na direção de Robert
?, acho que ele não é de todo como o pai. Não sei o que pensar
dele.

65
Robert sentia-se preso ao lugar, incapaz de se mexer. Ela nunca o
olhara enquanto falava. Não levantara a voz. E, não obstante, as
palavras, ditas quase num murmúrio, soaram
a uma bênção que lhe fosse pronunciada sobre a cabeça.
Não é de todo como o pai.
Soltou um fôlego entrecortado.
? Vai falar desta conversa com os magistrados, Miss Pursling?
? E envolver os Finney? Não me parece. ? Mordeu o lábio. ?
Diga-me, Mr. Blaisdell. Essa obra que representa. Está a oferecer
pensões a todos os que trabalharam na Graydon
Boots?
A todos, não. Para começar, ninguém acreditaria nisso. Metade
morrera; outros haviam deixado a cidade.
? Aos que foram injustiçados ? respondeu, num tom tenso, e
desviando o olhar.
? Mrs. Finney ? disse Miss Pursling ?, estou muito grata por
aceder a apresentar a proposta à direção da Cooperativa.
? Claro ? respondeu a outra mulher.
? Mr. Finney. Mr. Blaisdell. ? Miss Pursling inclinou a cabeça,
tocou nas saias numa reverência rápida e saiu.
Robert considerara-a pouco atraente naqueles termos, a cabeça
curva, a voz baixa. Já não era o caso. Havia mulheres que
reluziam com luz e energia. Miss Pursling recordava-o
da sugestão da alvorada que se insinuava por baixo da porta
depois de uma longa noite. Tinha uma certa graciosidade discreta,
qual tigre às voltas na sua jaula. As garras
recolhidas, os músculos preparados para a ação que não se
iniciava denotavam majestade. Um animal enjaulado tinha uma
beleza sombria.
Queria vê-la libertada dessa melancolia. Queria vê-la a dirigir-lhe
aqueles olhos inteligentes e a dizer-lhe que não era o pai, que ele
não seria o pai.
O que se encontrava entre eles tornara-se, a um tempo,
infinitamente simples e demasiado complicado.
Não é de todo como o pai.
Queria que ela o repetisse e queria que o dissesse com
sinceridade.
66
CAPÍTULO 6
O sonho de Robert nessa noite, à semelhança de muitos dos seus
sonhos ultimamente, esteve carregado de anelo sexual.
Nesse sonho, teve Minnie onde a conhecera: atrás do sofá na
biblioteca, os cortinados a protegê-los de olhares indiscretos.
Desta vez, no entanto, em vez de ouvirem conversas
alheias, eles ouviam o suave murmúrio das ondas. Nenhum deles
comentou a estranheza de terem mar numa biblioteca. Robert não
tinha nada vestido ? e ela estava despida até
à cintura. A versão onírica de Minnie sorriu-lhe
convidativamente. Tinha o cabelo castanho-mel solto sobre os
ombros, enquadrando os seios nus e os mamilos rosados. Os
peitos
roçaram-lhe os joelhos quando ela se acocorou e lhe tomou o
membro na boca.
Os pormenores dos seus sonhos eram sempre de uma diluição
frustrante. Não lhe sentia o calor húmido da boca nem a pressão
da língua. Sentia apenas o calor imenso do seu desejo
e uma vaga sensação de luxúria. Todavia, nos sonhos não
precisava de se preocupar com moralidade ou com
consequências. Nos sonhos havia só a verdade física do desejo e
nessa
dominava-o por completo.
No sonho, ela era muito, muito boa. Ele sabia-o, embora não o
sentisse. Por mais que se mexesse, por mais que a tentasse
agarrar, não conseguia tocar-lhe. Só sentia o seu
desejo ardente a crescer a cada movimento. Só conseguia desejar,
desejar e voltar a desejar.
? Meu Deus, Minnie ? suplicou no sonho. ? Dá-me o que eu
quero.
Mas em vez de o tomar com mais ímpeto ? ou de se mover para
que ele o fizesse ?, a Minnie do sonho limitou-se a olhá-lo e a
chegar-se atrás.
? Já que insistes ? disse ela, com um sorriso coquete. Chegou-se à
frente e de súbito, tal como sempre acontece nos sonhos, estava a
sussurrar-lhe ao ouvido: ? Sei quem tu
és.
67
O choque foi tão grande que o acordou. Pestanejou, confuso.
Estava-se a meio da noite e o silêncio imperava. O quarto estava
às escuras. Embora se tivesse destapado durante
o sono, sentia-se como se ardesse com febre. Tinha o membro
duro como pedra e o corpo estremecia-lhe de tensão, exigindo
algum alívio. E era incapaz de apagar a imagem do
sonho. Miss Pursling, desnudada, o cabelo pelos ombros, a mirá-
lo com aquele sorriso brilhante.
Cristo.
Já pensara que seria difícil explicar aos amigos o que via nela.
Não tinha uma beleza clássica; nem sequer era espampanante. E
embora a figura fosse bastante recomendável,
Robert tinha noção de que havia melhor.
Talvez fosse simplesmente isto: quando ela o vira pela primeira
vez, não vira um duque, mas sim um homem que escrevia
panfletos radicais.
Sei quem tu és.
Envolveu a ereção com a mão esquerda.
Robert acreditava em contenção. Fazia questão de não imitar o
pai. Recusava-se a ser o tipo de homem que tomava uma mulher
só porque se sentira atraído. Mas, que raios, por
vezes gostaria de ser. Gostaria de ser assim com cada fibra do seu
ser.
Desviou os lençóis que ainda o cobriam e deixou que o ar frio o
banhasse. Não serviu de nada.
Nunca servia de nada, pelo menos sozinho. Esfregou lentamente
o membro, entrando no ritmo tão familiar. Voltou a reproduzir o
sonho na sua mente ? Minnie de joelhos, Minnie
a sorrir-lhe enquanto os lábios se fechavam em torno do membro.
Esfregou-se com movimentos breves e rápidos, acelerando cada
vez mais até ao momento do clímax.
E nesse momento imaginou Minnie a sorrir-lhe ? um sorriso que
não reprimia nada ? e a dizer-lhe que sabia quem ele era. Mordeu
o lábio ante o prazer selvagem que o preencheu.
Depois disso, precisou de alguns momentos para se recompor,
para admitir que se encontrava invulgarmente fixado numa única
pessoa. Não era a primeira vez que sonhava com ela.
68
Também não era a primeira vez que acordava a meio do desejo e
se satisfazia sozinho. Na sua mente já a possuíra contra paredes e
em camas. A beleza da masturbação era que
conseguia sempre o que queria, do modo que o queria. Ninguém
se magoava e não havia efeitos secundários.
Sei quem tu és.
Olhou para a escuridão. É claro que não passara de um sonho.
Nos sonhos aconteciam coisas que não tinham qualquer
correspondência com a realidade. Se os sonhos dele tivessem
alguma relação com a verdade, há muito que teria sido afastado
de companhia decente. Não obstante, muitas vezes, os sonhos
serviam de alavanca para o desejo. Acordava febril,
pensava nas imagens do sonho enquanto caminhava para o
clímax, e a combinação do sonho e dos seus empreendimentos
aliviavam o grosso das frustrações.
Mas não havia orgasmos no mundo que atenuassem a
necessidade que o atormentava. Até então, tivera o bom senso de
deixar desenvolver desejos que pudesse satisfazer facilmente.
Não havia razão para mudar agora.
Sei quem tu és.
Olhou para o escuro e desejou que essas palavras
desaparecessem. Contudo, elas ali ficaram, ainda por dizer, mas a
soar-lhe aos ouvidos.
Ela não o considerava igual ao pai. Ele queria que ela soubesse
quem era. E queria saber quem ela era.
*
Apesar do esforço de Robert, só uma semana depois voltou a ver
Miss Pursling ? e foi preciso engendrar o encontro.
Doara cem libras à Comissão de Higiene dos Trabalhadores. Isso
fazia com que fosse um dos patronos ? e fazia sentido querer ver
como gastariam o seu dinheiro.
Todavia, a Comissão não se reunia numa sala privada respeitável
no Three Crowns Hotel, nem na sala principal do Bell. Reunia-se,
isso sim, nos arredores da cidade velha, num
estabelecimento miserável chamado Nag's Head.

69
Robert chegou dez minutos depois da hora marcada e não
chamou a atenção de ninguém quando se esgueirou para a sala
atrás de uma criada. A rapariga percorria a sala com grande
competência, servindo o que parecia ser cevada às senhoras e
cerveja fraca aos cavalheiros, limpando os derrames inevitáveis
com um grande pano sujo pendurado nos cordões
do avental.
Ninguém lhe prestou atenção, tão concentrados estavam na
presente discussão.
Ocupou uma cadeira ao fundo.
Aquela comissão não só se reunia num local bizarro, como a sua
composição também era digna de nota. Já vira bastantes
comissões do género para saber o que esperar ? algumas
pessoas abastadas, a quem fora pedido dinheiro e contactos, e não
conhecimentos, a par de alguns profissionais. Mas ali estava um
homem que sabia ser médico. Lá estava o capitão
Stevens. Miss Pursling, claro, estava ao lado de uma mulher mais
velha de aparência abastada. Esses representavam a composição
habitual daquele tipo de comissões de caridade.
Do outro lado da mesa, no entanto, estava uma jovem, talvez da
idade de Miss Pursling, que usava um camiseiro de aspeto
prático. Ao seu lado estava um homem mais velho, já
encanecido, com um casaco de tweed de boa qualidade. A seguir
estava uma mulher anafada com vestido de lã preta de gola alta,
completo com um colarinho também preto ? o tipo
de vestimenta que gritava aos quatro ventos que era servente.
Metade dos participantes parecia gente trabalhadora.
Isso fazia com que aquela comissão não se parecesse com nada
que Robert já tivesse visto. Chegou-se à frente, interessado.
Stevens abanava a cabeça.
? Bom ? resmungou ?, depois preocupamo-nos com isso. Miss
Pursling, já tem o seu relatório sobre o desinfetante?
Miss Pursling assentiu. Estava de costas para Robert, e ele via-lhe
os caracóis a cair-lhe sobre o pescoço. Eram caracóis
interessantes; não eram os canudos gordos como salsichas

70
que as criadas construíam com todo o cuidado. Aqueles caracóis
eram uma dissimulação ? demasiado enrolados, excessivamente
revoltos. Imaginava que o cabelo dela fosse encaracolado
por natureza, com jeitos impossíveis de domar por um ferro.
? A direção da Cooperativa reuniu-se ontem à noite. ? Teve de se
esforçar para a ouvir. Embora claro, o tom da voz era muito
baixo. ? Concordaram em ceder a solução desinfetante
a preço de custo, conquanto se refira a Cooperativa no cartaz.
Acabaram por se convencer de que a publicidade era
compensação suficiente.
Era uma forma estranha de o dizer ? acabaram por se convencer.
Qualquer outra pessoa diria convenci-os, reclamando assim o
mérito. Robert juntou a ponta dos dedos.
Só lhe conseguia ver a parte de trás da cabeça, a magnífica
curvatura da cintura, a breve sugestão de anca antes que o corpete
e as saias lhe encobrissem as curvas naturais.
Enquanto falava, Minnie virou a cabeça. Continuava três quartos
virada em frente, pelo que ele não lhe conseguia ver os olhos ?
apenas a face e os ténues traços da cicatriz.
Mas estava de óculos postos e lia dos papéis à frente dela.
Ah, sim. Pensara nela na semana que passara. Pensara tanto nela
que já não se deixava enganar pelo discurso calmo, pelos olhos
baixos. Por mais improvável que parecesse, Miss
Pursling convencera todos os presentes de que ela não era nada.
A verdade da sua competência parecia agora um segredo íntimo
partilhado pelos dois.
? Então em quanto fica a solução? ? perguntou uma das jovens
operárias. A voz dela era normal, mas depois do tom calmo de
Miss Pursling, quase parecia falar demasiado alto.
? Um xelim por frasco. Se usada com moderação, essa
quantidade deverá durar um mês inteiro num agregado familiar
de seis ou sete elementos. Miss Peters, será um montante
razoável
a pedir a uma família operária, ou teremos de encontrar
financiamento para reduzir ainda mais o custo? ? Miss Pursling
virou a cabeça na direção da mais jovem das operárias.

71
A outra rapariga olhou para um bloco que folheou. ? Mmm ?
murmurou ela. ? Isso... deve ser suficiente.
? Disparates ? interrompeu Stevens. ? Tal como eu já tinha dito,
isso são tudo disparates... as instruções sobre desinfeção, a
solução, os panfletos. ? Fitou Miss Pursling
com um olhar que mostrava que não acatara o alerta de Robert e
que ainda a tinha em má conta.
? Imagino que não seja tudo um disparate ? adiantou Miss Peters.
? Afinal de contas...
Robert chegou-se à frente.
Stevens esmurrou a mesa.
? Não haveria necessidade de desinfeção se esses malditos
trabalhadores vacinassem os filhos, tal como manda a lei.
O homem de tweed pôs-se de pé.
? Diabos me levem se vou deixar que os meus filhos sejam
espetados com uma doença qualquer!
? A minha mãe, ela foi inoculada e morreu na semana a seguir!
A mulher anafada debruçou-se sobre a mesa.
? Pois eu levei o meu Jess a ser vacinado e ele mesmo assim
adoeceu com varíola e perdeu a visão. Pelos vistos, o vacinador
tinha acabado a vacina quando lá fomos, por isso
usou um líquido alcoólico qualquer e cobrou o mesmo!
Metade das pessoas à mesa estava agora de pé e fulminavam o
capitão com o olhar. Uma palavra em falso e a situação podia
rebentar em violência.
No meio da atmosfera tensa, Miss Pursling voltou a acomodar-se,
de costas muito direitas. Levou a mão à cicatriz na face,
percorrendo-a com os dedos como se fosse um talismã
contra algum mal futuro.
? Stevens ? disse um homem com um tom arrastado ?, imagino
que me interesse tanto pela vacinação como o senhor.
O comentário viera de um homem de cabelo escuro numa das
pontas da mesa ? o doutor Grantham, um jovem com consultório
em Belvoir Street. As palavras cortaram a tensão crescente
e Miss Pursling soltou um suspiro breve, recostando-se na
cadeira.
Grantham revirava calmamente a caneta de tinta permanente.
72
? Mas acabei por aprender que temos de tratar os pacientes que
temos e não aqueles que eu gostava de ter.
Stevens fitou-o.
? E o que quer dizer com isso?
Grantham encolheu os ombros.
? Gostava de ter doentes que comessem carne e legumes em todas
as refeições, que tivesse água limpa com que se lavar e janelas
em cada divisão. Gostava de ter doentes que
não precisassem de se curvar para trabalhar. ? Enquanto falava ia
batendo com a caneta nos nós dos dedos. ? Isso é mau tanto para
a coluna como para os órgãos internos. ?
Voltou a encolher os ombros. ? Também gostava de ter doentes
que ganhassem o dobro daquilo que ganham nas fábricas.
Infelizmente, tenho os doentes que tenho.
? Mostre-lhe como é, doutor ? murmurou a viúva.
? Permitir que tomem decisões dessas sozinhos leva a
pensamentos de autonomia ? sibilou Stevens. ? A que queiram
fazer as próprias regras. Quando dermos por nós temos de
esmagar
mais um episódio de Cartistas. Já temos pessoas a falarem em
eleições. Esta terra é um barril de pólvora de agitação e vocês
andam com um archote nas mãos. ? Com o gesto,
Stevens abarcou não só Grantham, mas também Miss Pursling. ?
Estas conversas só servem para lhes dar ideias.
Grantham sorriu e chegou-se à frente.
? Sabia que durante a minha formação clínica vim a aprender que
toda a gente usa o cérebro? Até os pobres e os operários. Não
precisam que alguém abastado lhes dê ideias.
Eles têm-nas sozinhos.
? Cavalheiros. ? Miss Pursling bateu com os dedos na mesa, o
primeiro som alto que ela produzira. ? Podemos adiar a questão
da vacinação. Neste momento, o tópico em causa
é o desinfetante... e gostaria de vos recordar que o desinfetante
ajuda a prevenir a cólera e a gripe, duas doenças para as quais,
seja como for, não temos vacinas.
? Ah, Miss Pursling ? disse Grantham tranquilamente. ? Usar
factos para resolver disputas. Mas que arrojado da sua parte.
73
Miss Pursling nem sequer pestanejou em resposta, mas Robert
imaginava que ela ficara desconcertada até com esse
reconhecimento.
? Então fica decidido ? concluiu ela. ? A Marybeth Peters e eu
vamos afixar os cartazes...
? Duas mulheres sozinhas pelas ruas? ? atalhou Stevens. ? Não
me parece.
? Se for preciso, eu acompanho-as ? ofereceu-se Grantham. ? E
talvez Miss Pursling possa levar a sua amiga... Miss Charingford,
não é?
A mulher que recentemente batizara Stevens com a sua bebida.
Com o comentário, o rosto de Stevens ficou quase tão vermelho
como o ponche que lhe fora atirado havia mais de
uma semana.
? Os três a afixar cartazes sobre a Cooperativa? ? escarneceu. ?
Não permito tal ajuntamento de radicais na minha cidade, muito
menos debaixo do meu nariz. Não, eu irei acompanhá-las...
e diga a Miss Charingford que fique em casa, que é o lugar dela.
? Já que receia uma mulher solitária ? comentou Grantham num
tom melífluo ?, duvido que consiga prestar a proteção de que as
senhoras vão precisar. Eu irei acompanhá-las.
? Vá à... passear ? resmungou Stevens. ? E o mesmo para esta...
? Eu vou ? voluntariou-se Robert.
Todos se viraram ao som da voz de Robert. Miss Pursling
arregalou os olhos; o doutor Grantham mirou-o com curiosidade.
Mas Stevens empalideceu profundamente.
? Imagino que não desconfia que eu tenha tendências radicais,
não é verdade, Stevens? ? disse Robert.
? Vossa Alteza! ? Stevens pôs-se de pé de um salto. ? É claro que
não, Vossa Alteza. Mas nem pensar em incomodá-lo. E... e, o que
está aqui a fazer?
Robert ignorou a questão.
? Não é incómodo. Terei oportunidade de ver um pouco mais da
cidade a pé.
Miss Pursling lançou-lhe um olhar repressivo.

74
? Miss Pursling deu-se ao trabalho de convencer a Cooperativa a
vender a solução a um bom preço ? lembrou Robert. ? Será um
prazer assegurar que o trabalho que ela teve não
foi em vão.
Quando muito, Miss Pursling parecia vexada por ter o mérito tão
claramente identificado.
Mas...
? Concordo ? disse o doutor Grantham.
? De acordo ? resmungou Stevens.
Restavam assim os pormenores a serem decididos com Miss
Pursling, que só lhe concedeu um olhar furibundo antes de voltar
a mirar a distância, de mãos cruzadas. Não voltou
a olhar na direção dele durante o resto do encontro ? nem sequer
para o fulminar. Não lhe dirigiu a palavra quando se levantaram,
começando, em vez disso, a arrumar as suas
coisas.
Robert acercou-se antes que ela tivesse possibilidade de
desaparecer.
? Envio-lhe uma nota a combinar a data adequada para afixar os
cartazes?
Minnie não olhou para ele enquanto guardava papéis e um lápis
numa bolsa estreita.
? Se assim aprouver a Vossa Alteza.
? Podemos decidir já.
? Se for esse o desejo de Vossa Alteza.
Oferecia-lhe propositadamente o perfil ? mais uma vez, o lado
com a cicatriz. Robert sabia que a cicatriz era o tipo de defeito
que levaria a maior parte dos homens a desviar
o olhar, recusando-se a sequer mirar a marca. Mas isso não o
incomodava. Ela usava-a como se fosse uma máscara num baile,
como se com isso o pudesse afastar.
? Estarei fora nos próximos dias ? informou-a. ? Disse que
acompanharia o meu primo... não importa.
Miss Pursling baixou a cabeça.
? Como Vossa Alteza queira. Seja como for, os cartazes
corrigidos só estarão prontos daqui a uns dias.
? Digamos, então, quinta-feira?
75
? Como for mais fácil.
? Então encontremo-nos às duas da manhã ? sugeriu ele. ? Pela
calada da noite.
Com isso, Minnie ergueu finalmente a cabeça, com um olhar
rápido carregado de fúria que foi suprimido com igual celeridade.
Robert suspirou. Ela esforçava-se por não atrair
atenções ? a voz baixa, o modo discreto de falar sobre o que
conseguira. Interrogou-se se haveria ligação entre a marca na face
e a reticência mostrada. Afinal de contas,
a timidez dela não parecia natural, mas sim um silêncio de outra
qualidade.
? Vamos, Miss Pursling ? disse Robert. ? É capaz de melhor do
que isto. Não me pareceu o tipo de pessoa que faz ameaças vãs.
? Não sei a que se refere. ? Desviou-se ligeiramente. E teria
erguido ao de leve o nariz?
Sim. Ela levantara-lhe o nariz.
Robert conteve um sorriso.
? Estamos combinados ? disse Robert. Falava baixo, para que o
doutor Grantham, agora junto à porta, a apertar o casaco, não
ouvisse. ? Eu tento seduzi-la e a Miss Pursling
tenta destruir-me a reputação. Não está a cumprir a sua parte do
acordo. Ainda não me fez nada. Não a tomava por desistente.
Miss Pursling meneou a cabeça para o olhar de lado.
? Rogo a Vossa Alteza que me perdoe. ? Ela parecia tudo menos
repesa. ? Estava à espera que lhe apresentasse relatórios de
progresso? ? Foi abotoando as presilhas da bolsa
enquanto falava.
? Imaginei que procedesse a algumas investidas preliminares,
sim.
Minnie lançou-lhe um olhar gelado.
? Vossa Alteza contenta-se com padrões muito baixos. Sejam
quais forem os seus defeitos, eu não invisto prematuramente.
Robert mal conteve uma gargalhada indignada e olhou em seu
redor. Mas já não havia ninguém presente que ouvisse o
comentário.

76
Minnie dobrou o panfleto que levara como exemplo, agora
preenchido com os apontamentos da Comissão, e guardou-o no
bolso da saia.
? Não pavoneio a minha estratégia à frente dos inimigos. Isso
seria uma atitude idiota.
? Com isso quer dizer que ainda não encontrou provas.
Miss Pursling susteve-lhe o olhar e abanou ao de leve a cabeça.
? Quero dizer que não sou tola a ponto de revelar o que descobri
por causa de uma alfinetada desajeitada da sua parte.
? Au! ? disse ele com um tom pesaroso. ? Primeiro acusa-me de
investidas prematuras e agora de alfinetadas desajeitadas. Tenha
cuidado com o orgulho de um cavalheiro.
Minnie esboçou um sorriso com as palavras, debruçando-se um
pouco e dando-lhe uma palmadinha na mão.
? Sinto muito ? disse ela, num tom doce. ? Não fazia ideia que
fosse tão sensível ao murchar do seu... orgulho. ? Dito com um
tom baixo e certeiro, a insinuação lançou-lhe
uma onda de calor pelo corpo. Murchar era o oposto do que lhe
vinha a acontecer. Ela pôs a bolsa ao ombro e dirigiu-se para a
porta. Dera meros dois passos quando se virou
e lhe ofereceu um sorriso discreto, um gesto que lhe chegou ao
mais fundo do ser. ? Imagino que tenha outras partes suas tão
duras como a sua cabeça.
Não iria deixá-la escapar-se com aquele comentário tão
condescendente e carregado de tensão sexual, deixando-o a arder
de desejo.
Robert deu três passos atrás dela, levando a mão à manga da
jovem.
? Espere.
Mas ela não parou, e Robert deu consigo a segui-la, mantendo-se
em silêncio enquanto percorriam o estabelecimento até à rua. Ao
chegarem à luz do dia, e depois de se afastarem
o suficiente de todos para que não fossem ouvidos, Robert voltou
a falar.
? O que eu queria dizer era... eu sei que não descobriu nada.
Esteve em todas as gráficas da cidade, sob o pretexto de obter
orçamentos para esse seu panfleto, e procurou
77
provas de que estariam a trabalhar comigo. E não descobriu nada.
Com essas palavras, Minnie fez uma pausa, meneou a cabeça e
virou-se para Robert.
? Tem estado a vigiar-me ? acabou por dizer.
? Não propriamente. Mandá-la seguir seria sórdido. Mas pedi a
alguns colaboradores que me dissessem aquilo que pudesse andar
a perguntar. ? Sorriu-lhe. ? Não estava à espera
que me fizesse relatórios de progresso.
Miss Pursling encolheu os ombros.
? Seria sórdido mandar seguir uma amante por causa de um
ataque de ciúmes. Mas lembre-se Vossa Alteza de que somos
inimigos. Manter-me vigiada é um gesto prudente, e dou-lhe
os meus parabéns por isso.
Retomou a marcha, com Robert a fitá-la, divertido.
Ele tentava ser honesto consigo próprio. Tinha de o ser, já que
poucos o eram. O seu amigo Sebastian seria capaz de encantar até
a mais rígida das matronas ? e já o fizera.
O irmão era dono de uma grande perspicácia, por um lado, e, por
outro, era capaz de deixar os outros confortáveis. Oliver fazia as
senhoras rir.
Quanto a ele... raramente sabia como responder quando
envolvido numa daquelas trocas. Às vezes lembrava-se de
comentários inteligentes... horas depois. Regra geral cometia
o pior dos pecados: dizia aquilo em que realmente estava a
pensar, razão pela qual se saía com pérolas como Gosto dos seus
peitos. Não fora um dos seus melhores momentos.
? Não ? disse ele, abanando a cabeça e acompanhando-lhe o
ritmo. ? Porque temos de ser inimigos? Podíamos ser... aliados.
Miss Pursling mirou-o, desconfiada.
? Porquê? Precisa de mais quase solteironas míopes ao seu lado?
Robert franziu o sobrolho.
Os lábios de Minnie estremeceram.
? Esqueça. Vi-o em casa dos Finney. É óbvio que precisa.
Robert ignorou o comentário.
? Porque quando se decidiu a provar que eu era o autor dos
panfletos começou por fazer uma lista das várias gráficas locais,
que depois visitou sistematicamente. Tem uma mentalidade...
78
tática. Isso é algo que admiro.
Minnie bateu ao de leve com o dedo enluvado nos lábios.
? Está sempre a dizer que eu não descobri nada ? meditou. ? Está
enganado. Descobri que os panfletos não estavam a ser impressos
em Leicester. Como só há um possível suspeito
que não é nativo, quer-me parecer que fiz progressos.
Robert pestanejou. Teve a sensação de que estava a perder-se
naqueles olhos cinzentos, de que era incapaz de se afastar. Ele era
um duque. Ela era uma... como é que dissera?
Uma quase solteirona míope. Não devia ser um combate justo.
? Vossa Alteza julga que, por ter identificado um dos meus
objetivos, sabe o que estou a fazer. Mas estas visitas às gráficas
foi uma espécie de ataque a descoberto.
Agora que estava mais próximo começava a ver a diferença. Ela
continuava a olhar para baixo, continuava a agir de forma tímida
e reservada, pelo que quem se encontrasse a
mais de três passos não faria ideia do que ela estava a dizer. Mas
as mãos tinham agora um pouco mais de entusiasmo. Os lábios
estremeciam, à beira de um sorriso.
? O que quer dizer com um ataque a descoberto?
? É um termo tático. ? Juntou as pontas dos dedos. ? Há duas
coisas que fazemos quando empreendemos uma jogada. Em
primeiro lugar avançamos, e o espaço que agora ocupamos
tem valor. Mas também deixamos vago o ponto onde nos
encontrávamos, expondo o flanco do inimigo a ataques mais
distantes. É preciso ter consciência de onde nos encontramos
e do espaço que deixamos para trás.
? Isso não é sentido tático ? comentou Robert, fitando-a. ? Isso
parece treino tático real. Onde é que uma quase solteirona míope
adquiriria tal coisa?
Onde é que qualquer mulher adquiriria isso? Miss Pursling, no
entanto, não pareceu abalada.
? Reuni uma série de documentos que vão provar que é o
culpado. E o que é que Vossa Alteza conseguiu? Fingiu tentar
seduzir-me.

79
Robert pestanejou, absolutamente surpreendido. Ela não estava a
olhar para ele. É claro que não o olhava. Estava a mirar o chão
junto aos pés como se fosse uma mera mulher
tímida e receosa, incapaz de o fitar.
? Fingi? ? Sentia-se quase perigoso. ? Não me olha nos olhos.
Limita-se a murmurar as suas respostas espirituosas. Rejeita
qualquer sugestão de ser uma mulher inteligente.
É a Minnie que está a fingir, minha cara.
Os olhos de Minnie arregalaram-se ao de leve.
? Isso... isso é apenas a conformidade para com as pressões da
sociedade...
? Será? Olhe para cima, Minnie. Olhe-me nos olhos. Deixe que
todos quantos se encontram nesta rua vejam aquilo que ambos
sabemos ser verdade. Não está a submeter-se a mim.
Está a desafiar-me. Olhe para cima.
Ela não o fez. Manteve a cabeça teimosamente curvada perante
ele. Robert queria agarrá-la e abaná-la. Queria levantar-lhe o
queixo e obrigá-la a fitar-lhe os olhos. Queria...
Queria muitas coisas depois disso, mas nada que conseguisse
arrancar-lhe à força.
? Não estou a fingir que tento seduzi-la ? disse ele, em vez de agir
fisicamente. ? Não há qualquer falsidade nisso. Eu quero-a. Meus
Deus, como a quero.
Minnie arquejou ao de leve e depois ? quase involuntariamente ?
ergueu o olhar.
Por um breve instante, Robert viu algo que imaginou não ser
fingimento ? um anseio impotente na forma como o rosto se
virou para o dele, um estremecer no suspiro entrecortado.
Entreabriu os lábios e, de repente, pareceu devastadoramente
bela.
Mas depois fechou os olhos e voltou a baixá-los. A respiração
tornou-se mais arrastada; os punhos cerraram-se ao lado do
corpo.
? Sorte sua ? comentou Minnie, amargamente. ? Sorte sua poder
planear, pensar e maquinar sem fingimentos. Poder desejar
abertamente, não ter de o guardar dentro de si a ganhar

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bolor. Sorte sua poder olhar para o céu sem chamuscar as asas.
Sorte sua poder pensar no futuro sem terror. ? As mãos
começavam a tremer-lhe. ? Eu fitei as alturas. ? A voz
era um suspiro urgente. ? E caí mais fundo do que alguma vez
poderá imaginar. Portanto, não me dê sermões. Só quero fingir
que isto basta... que posso ficar satisfeita com
as migalhas que me restam.
Robert voltou a ter a sensação de um animal feroz às voltas na
jaula. Queria tocar-lhe a face, erguer-lhe o rosto para o seu.
Queria murmurar-lhe que tudo ficaria bem.
? Minnie ? disse, em vez disso.
Miss Pursling franziu o cenho.
? Não diga o meu nome dessa maneira. Por favor, Vossa Alteza,
se tem o mínimo de consideração por mim... finja que pretende
seduzir-me. Não o faça mesmo.
? Minnie ? repetiu ele. ? Quem poderia vir a ser se não dedicasse
três quartos da sua atenção a ocultar o que poderia conseguir?
Minnie abanou a cabeça.
? Não me diga para olhar para cima. Não me peça para querer. Se
eu o fizer, não sobrevivo. ? A voz tremia-lhe. Pelo som das
palavras, Robert imaginaria que estivesse à beira
das lágrimas, mas ela tinha os olhos secos e fitos no passeio.
Nesse momento quis abraçá-la com força, protegê-la do que
pudesse recear. Se ela voltasse a olhá-lo, nem que por um
segundo, ele beijá-la-ia, e que se danasse quem os pudesse
ver.
Não o fez. Em vez disso, Minnie pareceu recuperar a sua estranha
calma graciosa a cada fôlego.
? A Marybeth Peters está à minha espera ? disse ela, a voz mais
uma vez uniforme. ? Vossa Alteza permite que me retire?
Não era uma pergunta. Ele não tinha alternativa.
Ficou então a vê-la a afastar-se, deixando-a regressar ao espaço
exíguo da jaula onde andava às voltas.
CAPÍTULO 7
Quando Minnie chegou a casa, as tias aguardavam-na à porta,
entusiasmadas. O motivo para tal agitação tornou-se rapidamente
evidente quando lhe disseram que Walter Gardley
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a esperava na sala de entrada. Sozinho.
Gardley. Naquele momento!
Minnie levou a mão ao abdómen. Sentia-se como se um fogo
grassasse no seu íntimo, como se se tivesse empanturrado com
tudo o que o duque lhe dissera.
É uma mulher inteligente, brilhante.
Olhe para cima.
Quero-a. Meu Deus, como a quero.
Não podia falar com Gardley a sentir-se assim. Mas não tinha
grande escolha. Se o mandasse embora, ele regressaria. E se não
regressasse...
Alisou a saia e foi ao encontro dele.
Gardley levantou-se quando ela entrou.
? Ora, cá está ? disse ele, como se lhe tivesse perdido o paradeiro
e a encontrasse agora, entre as bolas de cotão por baixo do divã.
Minnie tentou convencer-se de que ele não era assim tão mau.
Era bem-apessoado, valesse-lhe isso. Pouco mais velho era e não
parecia que viesse a perder o cabelo.
É a Minnie que está a fingir, ouvia ela o duque a sussurrar-lhe ao
ouvido.
? Mr. Gardley ? obrigou-se a cumprimentar, com tanta
amabilidade quanto possível. ? O que posso fazer por si?
Gardley fitou-a com um olhar indiferente.
? Bem, Minnie ? disse. ? A minha mãe anda a pressionar-me para
que resolva as coisas. Já fiz o que era preciso. Vou publicar os
banhos este domingo, para um casamento em dezembro.
? Considerava-a de tal modo garantida que nem esperou por uma
resposta. Endireitou o casaco e voltou a sentar-se antes que ela
conseguisse acomodar-se. ? Creio que meados
do mês será a melhor altura.
Quem poderia vir a ser se não dedicasse três quartos da sua
atenção a ocultar o que poderia conseguir?
Era uma idiotice comparar o perene Walter Gardley com o
inalcançável duque de Clermont. Não obstante, Minnie não pôde
deixar de o fazer. Gardley ficava aquém em todos os aspetos.

82
Havia a protuberância da barriga acima do cinto, a forma
preguiçosa como se atirara de volta à cadeira sem esperar que
Minnie se sentasse primeiro. Havia o que dissera sobre
ela. Ele considerava-a uma ratita que ficaria quieta onde fosse
deixada. Que não se queixaria das amantes.
E havia ainda as coisas que ele não fazia.
Não lhe provocava um aperto na barriga. Não a fazia perder o
fôlego. Nunca sequer fingira tentar seduzi-la.
Isso não é sentido tático. Isso parece treino tático real.
Era o seu futuro que estava em jogo. Não podia dar-se ao luxo de
ser irracional. Todas as mulheres na sua posição teriam de
aguentar as imperfeições de um parceiro. Um pouco
de barriga, algumas mulheres pela calada, não precisava de se
atormentar com isso. Ele queria-a porque acreditava que ela
ficaria pateticamente grata. E não estava errado.
Ela sentia-se grata. Ela era patética. Não era?
? Não ? ouviu-se Minnie a dizer.
Gardley encolheu os ombros.
? Pois seja depois do Natal... imagino que queira passar a época
com as suas tias-avós? Acho que o posso permitir.
Minnie respondera em voz alta à sua própria pergunta ? Não, não
era patética. Mas pronunciar essas palavras em voz alta dera nova
clareza à questão. Ele queria-a por julgar
que era patética. E se ela se casasse com ele, estaria a ser.
? Permite-me escolher a data do meu casamento? ? resmungou
Minnie. ? Mas que permissivo.
Gardley levantou a cabeça.
? Permissivo? Lá porque lhe concedo isto, não julgue que serei
um marido fácil. De todo. Se a Minnie tentar alguma artimanha
depois de nos casarmos, ponho-a na rua. E ambos
sabemos que não tem para onde ir.
Minnie não conseguia respirar.
Céus, não era capaz de respirar.
Nada do que ele dissera fora uma surpresa, mas ela imaginara que
um casamento ? mesmo com um homem que a repugnava ? fosse
dar-lhe segurança e estabilidade. Para ela, o casamento

83
era eterno. Nunca lhe ocorrera que houvesse quem o visse de
outra maneira.
Se viesse a casar-se com ele, só ficaria mais desesperada. Se a
verdade sobre ela viesse ao de cima, ele expulsá-la-ia, sem pensar
duas vezes no casamento.
Minnie alisou a saia com as mãos.
? Mr. Gardley, este foi um não para toda a proposta, não só para a
data do casamento. Obrigada, mas não.
Gardley franziu o cenho e esfregou a testa.
? Porque haveria de se recusar?
Depois de ouvir aquele discurso?
? O senhor acha que sou calada, dócil e obediente. ? Ainda agora,
o tom era baixo, mal chegando para encher um canto da sala.
Gardley mexeu-se no lugar, com a cadeira a gemer
sonoramente. Minnie sentia-se a afogar-se naquele ruído.
Gardley soltou uma breve gargalhada forçada.
? Miss Pursling, a sua personalidade feminina é a sua maior
virtude. ? Chegou-se à frente. ? Nunca se julgue fraca por ser
vergável.
? O senhor não me está a ouvir, Mr. Gardley.
? A mulher verga-se como um junco durante uma tempestade ?
continuou Gardley, falando por cima dela. ? O homem quebra
como um carvalho. ? Franziu o sobrolho. ? Ou será como
uma faia? Sim, é isso. Com um vendaval, um homem quebra
como uma faia. ? Procurou-lhe a mão. ? Escolhi-a porque iria
entender as minhas necessidades e por acreditar que teria
a capacidade de as executar.
Olhar para cima? Não, o duque de Clermont estava errado. Ela
tinha de olhar para baixo. Permitira-se acreditar que aquele
homem lhe poderia dar alguma segurança. Padecia de
um excesso de otimismo, não de falta. Gardley deixara bem claro
que não lhe devia qualquer lealdade. Onde estava a segurança
nisso?
? Isso é ridículo ? contestou Minnie. ? As mulheres também
quebram como faias. Porque acha que sou assim tão flexível se
estou a recusar-me a casar-me consigo?

84
? Está a recusar-se? ? Franziu o cenho. ? Não se pode recusar. A
ideia era essa... ? Tossiu, com um esgar.
? A ideia era dizer à sua mãe que estava a cortejar-me? ? concluiu
Minnie por ele. ? Que escolheria alguém que ela aprovasse,
alguém tão desesperada que seria incapaz de se
recusar, mesmo que nunca se desse ao trabalho de me tentar
conquistar?
Gardley manteve-se em silêncio. Nem sequer era homem
suficiente para a olhar nos olhos e admitir. Finalmente encolheu
os ombros, carrancudo.
? O que é que quer? Quer que a leve a passear umas quantas
vezes?
Stevens continuava a desconfiar dela e a ameaça de exposição era
tão grande como sempre. Mas se ela se casasse com Gardley
nunca estaria segura. Essa consciência deixava-a
mais aterrorizada do que nunca. Durante muito tempo, o
casamento parecera uma bênção. Mas não bastava. Já não sabia o
que bastaria.
Estendeu as mãos e virou o rosto de Walter Gardley para o seu.
Ele não a olhava nos olhos, e como a atenção dele se desviava
constantemente da cicatriz, ele acabava por fitar
o canto da face direita.
? Não ? asseverou ela baixinho. ? Não me vou casar consigo.
Ele pareceu absolutamente desconcertado.
? Mas... mas... o que é que vai fazer? ? perguntou.
? Mas o que é que vais fazer? ? perguntou a tia Eliza menos de
trinta minutos depois.
Minnie estava na sala da frente, com as tias no sofá à frente dela.
As agulhas de Eliza tilintavam enquanto ela cerzia
cuidadosamente uma meia. Caro limitava-se a olhá-la
de braços cruzados.
Tem sempre noção do caminho que te espera. Essa fora uma das
regras do pai. Depois de tudo o que ele lhe fizera, não sabia
porque se estava a agarrar a elas. Talvez porque,
se as esquecesse, isso levasse a que a sua infância fosse não só o
resultado de mentiras, mas completamente falsa. Não obstante,
Minnie abanou a cabeça.
85
? Queremos que sejas feliz ? disse Caro. ? E nunca te diria para
não teres ambições. Ora, o truque é querer apenas a quantidade
apropriada. Bem vês, se eu desejasse ser rainha
de Inglaterra, nunca teria o meu desejo satisfeito.
? Eu não quero ser rainha de Inglaterra. ? Minnie envolveu o
tronco com os braços.
? Não, não. ? Caro ofereceu-lhe um sorriso triste. ? Só estou a
dizer que tens de querer o suficiente para estenderes os braços um
bocadinho. Mais do que isso e acabas por
te magoar.
Minnie levantou-se.
? Não rejeitei o Gardley por querer demasiado. Não o fiz por
pensar que podia ter melhor. Fi-lo por pensar que não podia ter
pior.
Caro tentou reprimir um suspiro, mas não conseguiu.
? Pensem nisto com lógica ? disse Minnie. ? Eu já o devia ter
feito. Se me casar com alguém que quer uma esposa calada e
obediente, ele rejeita-me se descobrir o meu passado.
As agulhas de Eliza imobilizaram-se.
Todas sabiam que aquela era uma conversa perigosa.
Olhe para cima. Mas não o faria. Se olhasse para cima, pensaria
num homem de pé a seu lado, com o sol a cintilar-lhe no cabelo
louro, enquanto ele a elogiava e lhe dizia como
era esperta.
? Mas tu és calada, Minnie ? acabou Eliza por dizer. ? Não quero
que contraries a tua natureza.
Sim, era calada. A voz dela não fora feita para ser projetada. Não
queria atrair atenções. Nunca conseguia estar à vontade, salvo nas
orlas de um ajuntamento. Agora, obediente...
Quase podia ver Clermont pelo canto do olho, como se ainda
estivesse ao lado dela. Ele tinha olhos de um azul brilhante e um
sorriso que se curvava nos cantos quando a via.
Pensou na mão dele, a envolver-lhe o pulso antes que pudesse
voltar a esmurrar o sofá. No timbre rico da voz dele, ao seu lado,
a dizer-lhe...
Quero-a.

86
Abanou a cabeça. Se chegasse a tais alturas, de certeza que sairia
queimada. Só queria um pouco de segurança.
? Os homens procuram muitos tipos de esposas ? acabou Eliza
por dizer. ? Esposas bonitas e animadas. Esposas abastadas e
indulgentes. Damas nobres e orgulhosas. ? Mordeu o
lábio. ? Não te quero magoar, Minnie. Mas é meu dever fazer-te
encarar a verdade. Ninguém procura uma rapariga tímida e
inteligente cujo pai morreu a meio da sentença de trabalhos
forçados.
Minnie levou os dedos à cana do nariz, pressionando-a para tentar
afastar a dor. Não ajudou. Os limites da sua vida oprimiam-na,
quais paredes de uma cela. Olhar para cima?
Com pedras daquelas por baixo dos pés, olhar para cima era
garantir uma queda.
? Faz uma lista com aquilo que és ? sugeriu Eliza ? e pergunta-te
que homem quereria isso.
Eu quero-a. Mas Clermont também não a conhecia.
? As tuas escolhas pertencem-te ? declarou Eliza. ? Não tas
iremos roubar.
Não. Elas nunca lhe roubavam as escolhas. Apenas frisavam ? de
forma gentil, doce, implacável ? que tinha muito poucas, logo
para começar. As mãos de Minnie tremiam-lhe. Não
fizera nada de mal, apenas se permitira acreditar que tinha uma
escolha, em vez de zero.
Minnie não tinha noção de qualquer caminho em frente. Não via
qualquer futuro. Sentia-se absolutamente cega.
Só havia uma coisa que podia fazer: avançar na direção que
encetara. Evitar a ruína por mais uma semana, rezar por abrigo
onde até agora não o encontrara. E para isso tinha
de encontrar provas daquilo que Clermont fizera. Tinha de ter
cuidado com o passo seguinte e de ter esperança no futuro.
E isso implicava...
? Amanhã vou a Londres ? anunciou.
As tias arregalaram os olhos e pestanejaram. Eliza endireitou-se.
? Mas...
? Tu já...

87
? Vais a uma entrevista para uma posição? ? As tias atropelavam-
se a falar. As mãos haviam-se encontrado no sofá entre as duas.
? Tem cuidado ? alertou Caro. ? Já li sobre esses esquemas nos
jornais... madames desleais que anunciam bons empregos com
salários excelentes, mas só...
? Não vou preencher uma posição ? asseverou Minnie. ? Têm
razão. Não posso olhar para cima. Não posso sonhar. Não me
atrevo. Só posso dar o passo seguinte.
Caro franziu o sobrolho.
? E o passo seguinte é para... Londres?
? O passo seguinte ? explicou Minnie ? é ganhar o jogo que estou
a jogar. E isso implica falar com alguns fabricantes de papel.
Regresso daqui a três dias.
As tias entreolharam-se ? olhares preocupados, olhares que lhe
apertavam o coração. Mas não podia explicar e não podia recuar.
E embora não fosse exatamente próprio que uma
jovem da sua idade viajasse sozinha de comboio, ela não era uma
debutante que tivesse de dar conta de cada momento do dia.
? Muito bem ? acabou Caro por dizer. ? Se acreditas que tens de o
fazer. Tens... tens meios?
? Sim.
Tinha o dinheiro dos ovos. Ao atingir a maioridade, as tias-avós
haviam-lhe entregado a responsabilidade pelas galinhas ? e
concederam-lhe os rendimentos por elas garantido.
Fora um presente, pois podiam ter mantido essas verbas. Mas não
fora apenas uma oferta pecuniária; era um presente de
independência. Algo a que quase não podiam dar-se ao
luxo.
Deixaram que Minnie fosse para o quarto preparar as coisas. No
entanto, em vez de fazer as malas, Minnie deu consigo atraída
pelo tabuleiro de xadrez que ficara a apodrecer
no baú que tinha no quarto. Havia doze anos que não olhava para
ele, e, mesmo assim, procurou-o com cautela sombria. Ajoelhou-
se à frente da arca de madeira, afastou o tecido
que a cobria e soltou as fivelas. O metal não cedeu à primeira, e
ela teve de empurrar com a mão.

88
O tabuleiro estava no fundo, escondido debaixo de roupas velhas
e de vários recortes quebradiços de jornal. Cá está. As peças eram
de marfim e de ébano, a um tempo estranhamente
familiares e curiosamente estranhas. As suas recordações mais
antigas eram daquele jogo ? de levantar peças que pareciam
grandes e pesadas. Agora conseguia esconder os peões
na mão fechada.
Pegou no tabuleiro e tirou as peças do saco de veludo. Pousou
tudo na secretária. Mesmo após tantos anos, nem precisava de
pensar em qual o lugar de cada peça. Rainha, rei
e uma série de peões assumiram as suas posições. Se fosse uma
peça de um jogo de xadrez, ela seria... Não, nem sequer um peão.
Tornara-se demasiado pequena, mesmo para isso.
Em tempos, dispor as peças ajudara a animá-la. O início de cada
jogo era ocasião prenhe de possibilidades. Tudo podia acontecer.
Estava tudo em aberto. Naquele dia, ela não
sentia nada. Fitou as peças e percebeu que não estava no início do
jogo, mas sim perto do fim. Zonas inteiras do tabuleiro estavam
inacessíveis, peças haviam sido roubadas,
certas jogadas nunca mais poderiam ser feitas.
Não restava quase nada no seu tabuleiro. Mesmo assim, pegou
nos óculos, pô-los e observou o tabuleiro.
? Há um objetivo em quase todos os jogos ? dissera-lhe o pai ?,
quando a vitória é inevitável. Quando cada uma das nossas
jogadas obriga o adversário a reagir e, ao reagir,
a abrir a sua cova.
Estranho. Já não se lembrava das feições do pai, mas conseguia
visualizar a disposição das peças no tabuleiro naquele momento.
Retirou algumas peças do tabuleiro, deixando
apenas as que se encontravam lá nesse dia. O seu bispo e cavalo,
a prenderem-lhe a torre; a sua rainha contra dois peões que eram
a única defesa frágil contra a ofensiva dela.
? Já chegámos a esse ponto? ? perguntara-lhe ele. ? Planeia
sempre. Tem sempre consciência do caminho em frente.
Fitara o tabuleiro, semicerrando os olhos, e vira-o pela primeira
vez. Podia obrigar aqueles peões a afastar-se. Seriam eliminados
pelo cavalo e pela rainha até que a torre
89
dela avançasse e trespassasse o rei contra a parede que era o
bispo.
? Sim ? dissera ela, maravilhada. ? Já chegámos.
? Então, na próxima jogada, quando pegares na peça... dá-lhe um
beijo. Assim, querida.
Ela pegou no bispo. Na sua memória, a peça era grande, as suas
mãos rechonchudas. Não teria mais do que seis anos na altura.
? Porquê? ? quisera saber.
? Tradição da família Lane. ? O pai sorriu. ? Quando encurralares
o adversário, dás-lhe um beijo para mostrar que não há
ressentimentos.
A partir daí, sempre que jogavam ? quando um deles se
aproximava de um xeque-mate ?, ele ria-se e dizia que havia um
beijo à espreita. Ela queria recordar o pai assim ? caloroso
e a sorrir, a transmitir-lhe tudo o que sabia. A rir-se, a dizer que
ela era o centro da sua existência. Tinha de recordar o pai assim,
pois a alternativa era pensar nele
como estivera no fim.
Olhar para cima? O pai não lhe dissera para se limitar a olhar
para cima. Ele ensinara-a a voar. E depois, quando chegara ao
topo do mundo, ele arrancara-a do céu.
CAPÍTULO 8
Robert acabou por precisar de quatro dias para trazer Sebastian,
em grande medida porque Violet, a recém-viúva condessa de
Cambury, insistira em acompanhá-lo.
? Em primeiro lugar ? dissera Violet, trespassando Robert com o
olhar ?, estou farta de passar o dia numa propriedade em
Cambridgeshire sem nada que fazer. Em segundo lugar,
vais precisar de alguém que mantenha o Sebastian em rédea
curta. ? Indicou Sebastian, que tentara parecer inocente.
Isso tinha um fundo de verdade. Quando queria, Violet conseguia
fazer com que Sebastian se comportasse. Violet era dois anos
mais velha do que Robert e Sebastian. Crescera
na propriedade ao lado da de Sebastian, e até que fosse
considerada demasiado velha para brincar com rapazes, Violet
acompanhara-os durante o verão.

90
Claro que Robert tinha muito mais recordações de Violet a
fustigar Sebastian e a mandá-lo trepar a árvores em busca de ovos
de falcão num acesso de fúria do que de Violet
a fazer com que Sebastian se comportasse.
? Finalmente ? concluiu Violet ?, a tua mãe gosta de mim, e se
quisermos distraí-la, o melhor será uma abordagem dupla. O
Sebastian afugenta-a e eu atraio-a para longe de
ti.
No entanto, depois de Violet desaparecer no primeiro serão, fora
Sebastian quem avançara o argumento decisivo.
? Olha ? dissera a Robert ?, ela está de luto por um homem que
detestava. Dá-lhe uma oportunidade de sair daqui.
E, assim, Robert cedera ? e vira-se a braços com uma comitiva de
criados, criadas e aias, com mensagens enviadas a reservar
quartos num hotel, já que Violet não podia ficar
na casa de solteiro de Robert. Passaram mais de quarenta e oito
horas até que Robert deu consigo, com o primo, a condessa de
Cambury, nove serviçais, dois gatos e uma coruja
na plataforma da estação de Euston Square em Londres.
Os criados tentavam enfiar a bagagem no compartimento certo e
Robert foi dar um passeio com o primo. Levantara-se uma brisa,
suficiente para que o ar ao longo da plataforma
estivesse fresco e agradável. O fumo de tabaco ? a desculpa de
Robert para não ficar na estação propriamente dita com Violet ?
estabelecia um contraste acre com o cheiro a
folhas de outono.
Ao caminhar ao lado do primo, as preocupações que o
atormentavam pareceram desvanecer-se.
? Quer dizer que estão a tomar as medidas necessárias para te
criar uma posição em Cambridge ? disse a Sebastian. ? Tendo em
conta o que disseram de ti quando lá estudaste,
imaginei que esperasses tudo menos isso. Estás em choque?
Sebastian lançou-lhe um olhar demorado.
? Já não sou um estudante, sabes?
? Não finjas que cresceste.
O comentário arrancou-lhe um sorriso matreiro.

91
? Espera até que eu recuse ? disse o primo. ? Isso vai deixar toda
a gente chocada.
Robert pestanejou e olhou-o com mais atenção. Sebastian era
afamado pelas suas partidas, mas levava muito a sério o trabalho
que fazia agora.
? Vais recusar?
? Receio que sim. ? Sebastian enfiou as mãos nos bolsos. ? Até
Newton teve de receber uma dispensa de Carlos II por não
acreditar na Trindade. Oxford tornou-se mais liberal,
mas Cambridge... ? Encolheu os ombros. ? Lá ainda se vive na
Idade das Trevas. Insistem em seguir a doutrina da Igreja
Anglicana. Metade dos cientistas naturais quer-me por
achar que estou a levar a cabo um trabalho interessante. A outra
metade acredita que se me convidar para o corpo diretivo, isso
obriga-me a ficar calado.
? E isso calava-te? ? Robert mirou-o. ? Não me lembro de alguma
vez te calares em relação fosse ao que fosse. E és um descrente?
Li os teus artigos todos, até aqueles que
não percebi, e não me lembro de tomares uma posição.
Sebastian encolheu os ombros.
? Não sabias? Sou um cientista ateu, um seguidor apóstata de
Darwin.
? Até Mr. Darwin é um crente.
Sebastian não respondeu à pergunta, limitando-se a encolher os
ombros, num gesto resignado.
? Não só defendo que as espécies evoluíram, como posso provar
de forma científica e fidedigna que as características são
transmitidas de pai para filho. Não acontece pela
graça de um ser divino. Acontece segundo princípios simples e
naturais. ? Mirou Robert. ? Isso faz de mim um descrente aos
olhos de metade da sociedade. Quem sou eu para os
pôr em causa?
? Imagino que isso seja uma questão retórica, já que aproveitas
cada oportunidade para discutir. ? Sebastian sorriu com prazer e
abanou a cabeça. ? Acho que gostas de ser
um pária.
? Deve ser. ? Voltou a encolher os ombros.
92
? E conseguiste distrair-me. Não chegaste a responder-me à
pergunta. Acreditas em Deus?
? Dei-te a resposta que darei a qualquer pessoa. Acho que é uma
pena que Mr. Darwin tenha de dar conta da sua religião por causa
do trabalho que faz. As crenças de cada um
devem ficar entre a pessoa e a divindade em que acredita... ou
não. Ninguém pergunta a um tanoeiro se acredita em Deus.
Porque terei eu de responder? Porque será isso do interesse
seja de quem for?
A fama de Sebastian surgira de repente. De tal maneira que ainda
era um choque descobrir que Sebastian ? o perspicaz e desbocado
Sebastian Malheur, seu primo e coconspirador
ocasional ? se tornara um cientista famoso. Não que Sebastian
não fosse inteligente; sempre fora sagaz e esperto. Mas era mais
fácil ver o primo como a criança traquina que
fora e não como um adulto sério.
? Além disso ? continuou Sebastian ?, é muito mais divertido
provocar toda a gente. Recusar-me a responder à pergunta levou
os botas de elástico a riscarem-me das listas de
convidados.
Isso talvez se devesse ao facto de Sebastian não se ter tornado um
verdadeiro adulto sério. Robert sentira a falta dele.
O revisor soprou o apito e os passageiros começaram a embarcar.
Ao fundo da plataforma, Robert e Sebastian esperaram que a
multidão se dissipasse e depois regressaram. Passaram
pelos vagões de bagagem e depois pelas cabinas de segunda
classe a caminho dos seus lugares.
Ao passar por uma das carruagens, Robert pestanejou. Não podia
ter visto... Deu rapidamente meia-volta e retrocedeu.
? Então? ? chamou Sebastian. ? Estás a ir para o lado errado.
Robert ignorou-o. Tivera a mais estranha das ilusões ao passar ?
que a mulher que vira pelo canto do olho era, nada mais, nada
menos do que Miss Pursling.
Não podia ser.
Quando chegou à janela viu que os olhos não o haviam enganado.
A mulher levantou a cabeça do livro que segurava e olhou pela
janela do outro lado. O sol brilhou sobre a poeira
93
acumulada na janela, iluminando aquele nariz que ele tão bem
conhecia ? e aqueles lábios.
Miss Pursling ocupava aquele compartimento. Ficaria ali durante
toda a viagem até Leicester ? várias horas sem ninguém com
quem falar. Sem ninguém, a menos que...
Violet também saíra da estação e atirava ordens ao bagageiro.
Robert bateu-lhe no ombro.
? Violet, emprestas-me a tua criada? ? pediu.
Violet semicerrou os olhos, desconfiada.
? Se te empresto a minha criada? Não, não te empresto a Matilda.
Para que a queres?
? Eu... ? Tentou não olhar na direção de Miss Pursling. ? Ah.
? É uma mulher ? adiantou Sebastian. ? Vê-se pelo ar ansioso
com que está... é uma mulher.
? Oh? ? Violet olhou discretamente em redor. ? Será... Não.
Deixa-me adivinhar. Não me digas quem é.
Violet olhou recatadamente em volta, mas Sebastian esticou o
pescoço, olhando de um lado para o outro com movimentos
exagerados.
Robert estremeceu.
? Parem. Chega. Têm de dar tanto nas vistas?
? Eu sabia que era uma mulher! ? gabou-se Sebastian. ? Estamos
a envergonhá-lo... tem de ser uma mulher.
Momentos antes, Robert pensava como era bom estar com
pessoas que o compreendiam. Já não. Enrubesceu.
? Se eu admitir que é uma mulher, param com isso e fingem que
são pessoas normais?
Violet fungou.
? Continuo sem perceber o que pode ter uma mulher que ver com
o quereres levar a Matilda.
? Ela está sozinha num dos compartimentos de segunda classe ?
admitiu Robert. ? Quero fazer-lhe companhia.
A afirmação foi recebida com um silêncio rígido. Sebastian olhou
para Violet; Violet olhou para Sebastian. Era como se abanassem
as sobrancelhas em acusação.
? Estás interessado numa mulher que anda de segunda classe ?
acabou Sebastian por dizer.
94
Violet ofereceu-lhe um olhar quase idêntico.
? Estás interessado numa mulher que anda de segunda classe e o
teu interesse é tal que te preocupas com a reputação dela.
Sebastian esfregou as mãos.
? Ah ? exclamou alegremente ?, a tua mãe vai adorar saber disto.
? Detesto quando se põem assim ? admoestou Robert, o que era
mentira. Regra geral adorava quando eles falavam daquela
maneira, com as ideias de Violet a sobreporem-se às de
Sebastian e transformando a conversa numa confusão divertida.
Naquele momento, no entanto, ia revelar-se uma grande
inconveniência. Tinha de se livrar daqueles dois antes
que eles dissessem algo incómodo.
Violet ergueu o olhar.
? Pois sinto muito, Robert. Não te vou emprestar a minha criada.
? Mas...
? Mas ? atalhou ela, esfregando as mãos de satisfeita ?, terei todo
o prazer em acompanhar-te.
Robert engoliu em seco. Tentou imaginar uma conversa com
Miss Pursling enquanto a condessa de Cambury os observava
com um interesse ávido.
? Segunda classe ? disse Sebastian. ? Nunca andei de segunda
classe. Isto vai ser divertido.
Robert tossiu vigorosamente para a mão.
? Não, os dois não. Garantidamente, os dois não.
? Precisas dos dois ? asseverou Sebastian. ? São quatro lugares.
Se levares a Violet sozinha, pode entrar mais alguém. São quatro
lugares. Imagino que não queiras desperdiçar
essa oportunidade para conversarem.
? Mas...
? Já me conheces ? atalhou Sebastian. ? Sou o espelho da
discrição.
? Não, não és. És exatamente o contrário.
Sebastian exibiu um sorriso rasgado.
? Sou o espelho de só me meter contigo quando não há ninguém
que nos possa ouvir. Além disso, se não fizeres companhia a esta
mulher misteriosa, sou eu que a acompanho. Acho
que vi onde ela está.
95
Estava condenado. Quase seria preferível não falar com ela de
todo. Mas...
Voltou a olhar para a carruagem. Ela olhava pela janela oposta à
estação, os dedos pressionados contra o vidro. Não estava a
observar ninguém; estava a fitar a distância,
para lá das colunas altas da estação, como se aquilo por que
ansiava se encontrasse muito longe.
? Não digas nada de embaraçoso ? alertou.
? Eu?! ? exclamou Sebastian. ? Seria contraproducente. Não
estudo o comportamento humano, mas em questões científicas, é
necessário não interferir para se observar adequadamente
os rituais primitivos de acasalamento do...
Céus! Aquilo ia ser terrível. Não devia ter dito nada.
? A sério ? disse Robert. ? Se forem os dois, não quero ouvir um
pio que seja. Nem uma palavra durante a viagem toda.
? Sabes bem que podes contar com a minha circunspeção ?
garantiu Violet.
? Não estou preocupado contigo ? disse Robert, o que era
verdade, num certo sentido. ? Sebastian?
? Podes ficar descansado. Juro pela minha alma imortal que não
quebro o meu voto de silêncio até que me dês autorização para
tal.
Uma promessa menos grandiloquente inspiraria mais confiança.
Sobretudo porque Sebastian se recusava a admitir se acreditava
numa alma imortal. Não obstante, Robert baixou
a cabeça e esperou ? fervorosamente ? que aquilo não corresse
tão mal como receava.
O revisor incitava o embarque dos passageiros no comboio que
partia de Euston Square, e Minnie escondera-se na carruagem de
segunda classe. Os carros estavam quase vazios
e ela aconchegara a capa para lhe cobrir o rosto. Regra geral, um
olhar de reprovação firme mandava quaisquer potenciais
companheiros de viagem para o compartimento a seguir.
Assim, quando a maçaneta estremeceu, Minnie envergou uma
expressão carregada. As dobradiças rangeram; a porta abriu-se e
uma mulher entrou no compartimento.

96
Não era apenas uma mulher; era uma senhora. Vestia o cinzento-
escuro do meio luto, com fitas e laços de um alfazema tão pálido
que era quase incolor. Minnie não precisava
de ver os punhos debruados a pérolas para saber que era alguém
de riqueza e importância. Tê-lo-ia percebido pelas pregas e folhos
cuidadosos do vestido, pelo tecido que caía
em volutas num excesso descuidado, pela forma como lhe caía o
vestido, prova de inúmeras visitas de uma modiste.
O que faria uma mulher daquelas nas carruagens de segunda
classe?
Tinha as sobrancelhas baixas; bateu ao de leve no banco à frente
de Minnie, como se pretendesse confirmar que era tão duro
quanto parecia. Depois encolheu os ombros prosaicamente.
Antes que ela pudesse olhar para Minnie, um homem ? um
cavalheiro, segundo parecia, de calças engomadas e vincadas,
colete vermelho coberto por uma casaca de viagem comprida
? espreitou à porta.
? O Cobber voltou a perder o carrinho ? informou. ? E a Matilda
diz que o bagageiro insiste em pôr o teu segundo caixote em
baixo, independentemente do que dizem os avisos.
? Mas que inferno! ? exclamou a mulher.
O homem nem pestanejou com a blasfémia. Limitou-se a chegar-
se para o lado e deixá-la sair porta fora.
Curiosamente, o cavalheiro ? de cabelo e olhos escuros ? olhou
para Minnie. Provavelmente já seria demasiado tarde para
expulsar aquela gente, fossem quem fossem, mas não
deixou de o fulminar com o olhar.
Em resposta, ele piscou-lhe o olho.
? Os carros de primeira classe ficam para ali. ? Gesticulou.
Ele encolheu os ombros, dispôs o sobretudo sobre outro lugar, e
depois seguiu a mulher.
Afinal de contas teria companheiros de viagem ? e bizarros.
A porta voltou a estremecer. Minnie ergueu o olhar, esperando
ver os curiosos companheiros ? mas não. Sentiu um aperto no
coração. As mãos irromperam em chamas.
? Miss Pursling! ? exclamou o duque de Clermont. ? Mas que
maravilha encontrá-la.
97
Da última vez que o vira, ele dissera-lhe que olhasse para cima.
Ela quisera fazê-lo. E depois... depois percebera que tinha ainda
menos escolhas do que julgava. Olhar para
ele levara-a a querer esquecer tudo isso. Esperara abdicar desse
desejo de vez, mas, ao vê-lo, a memória regressou sem freios,
ficando-lhe à flor da pele, renovando-se a cada
fôlego que lhe passava pelos lábios.
Eu quero-a.
Essas palavras haviam-lhe dominado a imaginação, e embora a
sua mente soubesse que nunca acontecera nada entre eles, a carne
não parecia convencida. Ficou com pele de galinha
ao ter consciência da presença dele. Olhou para baixo.
? Está a ter uma boa viagem? ? Robert pousou uma pasta na
prateleira de cima e depois sentou-se à frente de Minnie.
? Sim ? disse ela, com alguma rigidez. ? Visitei um fabricante de
papel em Londres para descobrir onde consegue os seus
materiais.
Disse-o para que ele soubesse em que pé se encontravam ? tão
distantes quanto ela os conseguisse afastar.
Robert franziu o nariz.
? Um relatório de progressos ? disse alegremente. ? Estou a ver
que subi na sua consideração. Que maravilha. ? E sorriu-lhe.
Ele e os seus desejos não tinham lugar na vida dela. De todo.
Felizmente, a porta voltou a abrir-se para permitir a entrada da
senhora de impressionantes vestes de viagem.
? Robert ? disse ela ?, não podemos partir ainda. Eles não sabem
do Herman e o revisor está a ameaçar que vamos partir na
mesma. Que importa se o comboio se atrasar? Temos
de os deter, pois os meus estratagemas não vão durar muito mais.
? Os teus estratagemas? ? O duque de Clermont endireitou-se e o
tom da voz assumiu um toque mais sombrio. ? O que é que
fizeste?
A mulher exibiu um apito prateado.
? É do revisor ? disse ela calmamente.
O duque fitou-a, depois gemeu e esfregou a testa.
? Céus! ? Tocou no chapéu e dirigiu-se a Minnie. ? Espere aqui.
Eu já volto.
98
A porta voltou a fechar-se e ela ficou outra vez sozinha. Minnie
ainda pensou em mudar de compartimento, mas se o fizesse, ele
voltaria a encontrá-la. Além disso, o revisor
registara-lhe o bilhete como pertencendo àquele lugar e não podia
ter a certeza de que ele se lembraria dela caso mudasse para outro
sítio.
A tentação seguinte não tardou a fazer-se sentir. Ele deixara a
pasta no lugar ao lado dela, com uma simples fivela metálica a
separá-la de quaisquer documentos. Documentos
potencialmente incriminadores.
Ele teria de estar a importar os panfletos de algures. Talvez
naquela pasta tivesse uma fatura ou um recibo de compra.
Mas... seria uma tremenda violação de privacidade.
E o que faria ela mesmo que encontrasse alguma coisa? A palavra
dele contra a sua continuaria a representar a ruína. Continuou a
debater mais um pouco, até que a passagem
do tempo tomou a decisão por ela.
A porta abriu-se. Era o duque. Olhou para a pasta e abanou a
cabeça.
? A sério que não a abriu? ? indagou Robert.
? A sério. ? Minnie cerrou os dentes. ? Não a abri.
? Não sou seu inimigo? Não estamos em guerra?
? Não sei o que é. Seguramente, não sei o que estamos a fazer. ?
Franziu o nariz. ? Mas seria muito difícil provar a origem.
Mesmo que encontrasse um monte de panfletos radicais
na sua pasta, o que poderia eu fazer? Levava-os e mostrava-os ao
magistrado? Não teria provas de que eram seus.
O duque pegou na pasta e olhou para Minnie.
? É uma caixinha de surpresas. Tenho de me recordar
constantemente de que seja o que for que esteja a planear, vai ser
planeado de forma mais meticulosa do que tudo o que
eu possa imaginar. ? Soltou a presilha de cabedal e tirou um
punhado de papéis. ? Olhe ? indicou. ? Era isto que encontrava se
tivesse aberto a minha pasta. Seja como for,
escrevi-o para si.
Estendeu uma folha.
Minnie não a aceitou.
99
? Na última vez que falámos disse que tinha medo do futuro.
Quero tréguas. É a melhor proposta que posso fazer. ? Sorriu-lhe
e... meu Deus... ela sentiu-o, sentiu a força
daquele sorriso da cabeça aos pés.
Minnie estendeu a mão e aceitou timidamente o que lhe era
oferecido. Ele tinha razão; a carta tinha o nome dela rabiscado à
frente.
? Tréguas durante a viagem?
? Eu... não sei.
? Algumas horas, Miss Pursling. É só o que eu peço. ? O sorriso
esmoreceu. ? E, já agora, quanto aos outros dois passageiros...
A porta abriu-se e ele estremeceu, cruzando os braços sobre o
peito. As duas pessoas de há pouco estavam de regresso.
Os olhos da mulher assentaram em Minnie... e semicerraram-se o
suficiente para que Minnie percebesse que aquela senhora calma
e impressionante teria ouvido qualquer coisa
sobre ela da boca do duque. O suficiente para abarcar o vestido
simples de Minnie, a cicatriz na face, e meneasse a cabeça. Atrás
dela estava o cavalheiro que lhe piscara
o olho, de cabelo escuro e plastrão branco.
O duque de Clermont ofereceu um sorriso pesaroso.
? Pois ? disse. ? Bem, quanto a isso. ? Mordeu o lábio. ? Sim.
Violet, Sebastian, permitam-me que lhes apresente Miss Pursling.
Miss Pursling, esta é Violet Waterfield, condessa
de Cambury.
? Encantada, imagino ? disse a condessa, num tom que sugeria
exatamente o contrário.
? E atrás dela está Mr. Sebastian Malheur.
Minnie esqueceu-se do voto de silêncio. Ficou de boca aberta.
? O Sebastian Malheur?! ? deu consigo a exclamar. ? Aquele que
escreveu a defesa apaixonada de Mr. Darwin?
Céus. Se as histórias sobre ele tivessem um mínimo fundo de
verdade, ele era um verdadeiro réprobo. Dizia-se à boca cheia
que, mais do que dissidente religioso, ele era ateu.
Mulherengo. Um libertino. Mas Mr. Malheur limitou-se a
encolher os ombros e a levar dois dedos aos lábios, num gesto
exagerado.
100
? Sim ? disse o duque, após uma breve pausa. ? É esse indivíduo.
Tudo o que ouviu sobre ele é verdade. Além disso, é meu
primo. ? Suspirou. ? Bem, mais vale que entrem e se
sentem ? acabou por indicar. ? As coisas não podem ficar piores.
Minnie não fazia ideia do que ele poderia querer dizer com
aquilo, se estava a falar com eles ou com ela. Mas o par avançou
para o compartimento. Sentaram-se sem dizer nada
e sem sequer olharem para Minnie.
CAPÍTULO 9
Lá fora ouviu-se um apito.
O comboio estremeceu à medida que as portas se fechavam a
todo o comprimento da composição. E Robert aguardou com
desespero pelo tormento que sabia estar a aproximar-se.
Tudo pareceu bem durante alguns instantes. Violet procurou na
bolsa e tirou fio e agulhas de malha; Sebastian deixou-se ficar
sentado, a olhar em frente para o vazio.
Miss Pursling manteve o olhar fito nas ripas de madeira que
constituíam o piso. Enfiara a carta no bolso sem sequer tocar no
tecido. O comboio deu início à marcha, aos solavancos,
e ela continuou sem falar.
Isso não seria surpresa para Robert ? ela repetia a graça sempre
que se encontravam ?, mas Violet ergueu o olhar para ele e
depois para Miss Pursling. As sobrancelhas desceram
como se confusa, e trocou um relance preocupado com Sebastian.
? E então ? disse Robert. ? Miss Pursling, vem de Londres?
Miss Pursling olhou por breves instantes, após o que desviou o
olhar.
? Sim, Vossa Alteza ? respondeu timidamente.
? O que a trouxe aqui?
Minnie baixou a cabeça de modo a que fosse impossível cruzar o
olhar com o de Robert.
? Tive assuntos a tratar, Vossa Alteza. Assuntos de natureza
pessoal.
Se aquilo eram as tréguas... Robert suspirou.
Não podia falar sobre os panfletos. Nem Sebastian nem Violet
tinham conhecimento deles, pois não dispunham da proteção de
Robert, e ele preferia que assim continuasse. O silêncio
101
prolongou-se no compartimento e ocorreu a Robert que talvez
não tivesse sido a melhor das ideias proibir Violet e Sebastian de
falar. O que pareceria um silêncio cúmplice
entre dois era profundamente embaraçoso com quatro pessoas
que se entreolhavam de boca fechada. Aquela arriscava-se a ser a
mais dolorosa viagem de comboio de sempre.
? Com que então ? voltou a tentar ?, a Comissão de Higiene dos
Trabalhadores. Porque se interessou por isso?
Minnie meneou a cabeça e olhou-o. Cerrava os lábios como se
reprimisse um sorriso.
? Porque a higiene é importante ? respondeu. ? Vossa Alteza não
acha?
? É claro, mas há muitas coisas importantes. Todos fazemos
escolhas diferentes quanto ao modo como gastamos o nosso
tempo. Aqui a Violet voluntaria o tempo no Jardim Botânico
de Cambridge, para todos os efeitos porque gosta de plantas. O
Sebastian...
Sebastian ergueu o olhar, com uma expressão interessada no
rosto.
? Sim ? incitou Miss Pursling ?, gostaria muito de saber como
Mr. Malheur emprega o seu tempo.
? Ah... ? Até a descrição mais clínica do trabalho de Sebastian
seria suspeita em certas companhias.
? Pois eu ouvi dizer ? continuou Miss Pursling ? que ele ameaçou
criar um programa de reprodução humana entre o corpo docente
de Cambridge para provar as suas teorias sobre
a herança sexual das características.
Sim. Era por isso que se tornava difícil falar acerca daquilo que
Sebastian fazia. Porque para o fazer era preciso dizer "herança
sexual" sem corar, algo que Miss Pursling
fazia invulgarmente bem.
Sebastian lançou-lhe um olhar profundo e Robert lembrou-se,
talvez demasiado tarde, que o primo tinha um certo talento para
fascinar mulheres. Onde é que estaria com a cabeça
para aproximar aquele homem de Miss Pursling? No final da
viagem, ela estaria enlevada.
Provavelmente até já estaria.
102
Mas Sebastian limitou-se a encolher mais uma vez os ombros,
levou a mão à boca num gesto exagerado e depois baixou a
cabeça, indicando Robert. Robert traduziu-o como querendo
dizer Lamento imenso, mas como prometi ao meu primo que não
diria nada, agora tenho de o embaraçar o mais possível com
gestos.
? Oh, pelo amor de Deus ? resmungou Robert, pressionando os
dedos contra a testa. O comboio gemeu ao descrever uma curva.
Sebastian abanou o dedo na direção do primo, invocando
vergonha, e depois fez um breve gesto com a mão, sem invocar
claramente grande coisa.
? Estará... magoado? Doente? ? aventou Miss Pursling. ? Incapaz
de falar por algum motivo?
O rosto de Sebastian iluminou-se e ele apontou-lhe um dedo.
? Já experimentou chá? ? perguntou Miss Pursling. ? Com mel...
é muito bom para acalmar a garganta.
Outro gesto sem sentido por parte de Sebastian ? desta vez, os
braços levantados aos céus e depois rapidamente baixados.
? Pelo menos tenta não me bater na cara, Sebastian ? pediu
Violet. ? E, pelo amor de Deus, ambos sabemos o que o Robert
queria dizer com o que pediu. Ele queria que não o
embaraçássemos... algo que estás a conseguir na perfeição sem
recorrer a palavras.
Os olhos de Miss Pursling saltaram entre os dois. Se havia
mulher capaz de perceber o que não fora dito, era Miss Pursling.
Imaginava-a a reconstruir o que ele teria dito
àquele par.
Sentiu as faces a arder.
? Mais vale falares ? resmungou, com maus modos.
? Sei perfeitamente o que querias dizer ? indicou Sebastian. ?
Mas sempre achei que a maneira mais rápida de levar alguém a
desistir de ordens tolas é obedecer-lhes literalmente
e executá-las cegamente.
? Ainda vou a tempo de te atirar para fora desta carruagem ?
ameaçou Robert. O comboio lá ia balançando, arrastando-se pela
linha. Ainda não atingira a velocidade máxima ?
afinal de contas, mal tinham saído de Londres.
103
? Ora aí tem ? disse Sebastian a Miss Pursling ?, a verdadeira
natureza do meu primo a revelar-se: inclemente, cruel e violenta.
Robert esforçou-se por não gemer e teve quase a certeza de o ter
conseguido.
? E, já agora ? prosseguiu Sebastian ?, eu não ameacei criar um
programa de reprodução humana em Cambridge para provar a
minha teoria. Para começar, não provamos uma teoria
nessa aceção do termo. Testamo-lo, tendo em conta a explicação
mais plausível. Além disso, essa história foi deveras exagerada
quando a contaram. Frisei apenas que poderíamos
usar princípios simples para determinar, após o facto consumado,
a probabilidade de uma determinada esposa de um professor ter...
? Ah. Pois. ? Robert atalhou a conversa, antes que fossem longe
de mais. ? Talvez haja coisas que seja melhor não discutir.
? Queira perdoar o meu primo ? disse Sebastian, encolhendo os
ombros ?, pois ele é um bocado pudico. Mas, as minhas
desculpas; estava a intrometer-me na vossa tão agradável
conversa. Por favor, continuem com o que não estavam a dizer
um ao outro. ? Recostou-se.
? Isso ? acrescentou Violet. ? Não se incomodem connosco.
Quase nem aqui estamos. E se quiserem partilhar segredos,
podem ficar descansados que nunca os repito. Sou conhecida
por ser de confiança.
? É verdade ? adiantou Sebastian. ? A condessa de Cambury é
como um buraco negro bem fundo... os segredos entram, mas
nunca mais saem.
? Sebastian ? replicou Violet, enrolando calmamente o fio à volta
de uma das agulhas ?, não é próprio nem respeitoso deixar que
uma mulher saiba que só pensas nela com sendo
um mero buraco.
Miss Pursling engasgou-se e tossiu, e Robert afundou-se ainda
mais no lugar, desejando não ter deixado o chapéu na prateleira
acima dele. Precisava de algo com que cobrir
o violento rubor nas faces. Não devia ter deixado que nenhum
daqueles dois se tivesse aproximado de Minnie, e se
continuassem assim, nunca os perdoaria.

104
A expressão de Violet manteve-se impávida e prosseguiu com a
malha.
Sebastian agitou a mão.
? As minhas desculpas; obviamente, a condessa é uma doce flor
de feminilidade.
Cala-te. Cala-te.
Felizmente, Sebastian não desenvolveu o pedido de desculpas.
Violet pareceu aceitá-lo sem comentários.
? Não se incomode por minha causa ? disse. ? Na verdade, não se
incomode com nenhum de nós. ? Pestanejou e ergueu as agulhas
à sua frente, como se estivesse a construir um
muro.
? Talvez a conversa não tenha começado da melhor maneira ?
acabou Robert por dizer. Na verdade, se a conversa fosse viva, o
gesto mais caridoso seria abatê-la e acabar com
o sofrimento.
? A sério? ? Miss Pursling olhou pela janela.
? Só achei que se nos tratássemos cordialmente por uma tarde,
talvez pudéssemos...
? Oh, nunca acredite nele quando ele começa a falar assim! ?
interrompeu Violet, ainda fingindo estar concentrada na malha. ?
Ele pode dizer o que quiser sobre justiça e igualdade,
mas era sempre ele que se recusava a brincar às princesas.
O sorriso de Robert pareceu-lhe repulsivo. Fora precisamente
aquele tipo de coisa que receara. Abater a conversa? Ele queria
matá-la à paulada e atirá-la para uma cova anónima.
Miss Pursling olhou para a outra mulher, de sobrancelhas
franzidas em confusão.
? Brincar às princesas?
? Sim ? respondeu Violet. ? Costumávamos brincar em crianças.
Durante o verão, o pai dele ia fazer visitas e deixava o Robert
com a irmã... a mãe do Sebastian. O Robert, o
Sebastian e eu costumávamos fazer um jogo a que eles
chamavam "Cavaleiros e Dragões" e a que eu chamava
"Profundamente Aborrecido". Eles podiam ser cavaleiros, mas eu
era
a princesa e tinha de ficar à espera que eles me salvassem.
105
? Estou a ver.
? Portanto, um dia ? prosseguiu a condessa serenamente ?,
enquanto eles andavam a fingir que atacavam o dragão, eu
escrevi um recado a dizer que tinha fugido para o mar.
Sebastian fungou.
? Se bem me lembro, acrescentaste que primeiro irias entregar a
tua virtude a uma quadrilha de bandidos.
A condessa não pareceu de todo ofendida com a lembrança.
? Na altura não fazia ideia do que isso implicava, mas a minha
ama passava o tempo a alertar-me para proteger a virtude com a
minha vida. Foi a pior ameaça de que me lembrei.
Miss Pursling chegou-se à frente com o esboço de um sorriso nos
lábios. Ergueu os olhos para os de Violet.
? O que fizeram os seus valentes cavaleiros quando tiveram
conhecimento da sua deserção?
? Decidiram que era seu dever perseguir-me e dar-me de comer
ao dragão como castigo. ? Violet franziu o cenho ao perceber a
confusão que ia na malha, após o que desfez calmamente
a última linha. ? Não foram bem-sucedidos. Seja como for, isso
deu lugar a um jogo muito mais divertido.
? Envolvia lama ? acrescentou Sebastian.
? A partir daí ? prosseguiu Violet ? concordou-se que era
manifestamente injusto que fosse sempre eu a princesa. Por isso
tirávamos à sorte com uma moeda. Mas o Robert nunca
fez de princesa... nem mesmo quando era a vez dele. ? A
condessa franziu o cenho para Robert, que a olhou.
? Uma moeda só tem dois lados ? explicou ele. ? Não era possível
atribuir-me um lado.
? Exceto se...
Robert levantou a mão.
? E não é altura de vermos os métodos para fazer com que uma
moeda possa ser atirada e distribuída por três. Basta dizer que eu
seria uma péssima princesa.
? Estou a ver ? disse Minnie lentamente.
? Não está ? interveio Sebastian. ? Está a pensar que a Violet
seria uma princesa razoável. Mas ela já era exatamente assim em
criança: educadinha e afetada por fora, mas
106
um monstro quando não havia adultos por perto. Ela só parece
respeitável. Não sei como é que ela o conseguia, mas o Robert e
eu chegávamos das brincadeiras na rua cobertos
de lama e a Violet parecia fresca como uma alface.
? Há uma coisa maravilhosa chamada água ? adiantou Violet. ?
Os rapazes parecem nem dar pela sua existência. ? Lançou uma
olhadela a Minnie por cima da malha. ? A higiene
é importante.
Miss Pursling sorriu e baixou o olhar.
? Já agora ? acrescentou Sebastian, ? a bem da minha dignidade,
Miss Pursling, devo informá-la que quando eu desempenhava o
papel, era um "príncipe". Não era "princesa".
? Tu é que dizias que eras príncipe ? esclareceu Robert. ? Nós
chamávamos-te "princesa". Caso contrário, não faria sentido. Os
dragões querem devorar princesas. Eles não querem
saber de príncipes.
? Tens muito a aprender sobre dragões. Pensa lá bem: obtemos
mais carne de novilhos do que de vacas. É sabido que o macho da
espécie produz melhor carne.
? Pensava ? interveio Miss Pursling ? que não comíamos vacas
porque as preferíamos guardar para leite.
Não aquela discussão. Aquilo só poderia levar a um mau
resultado. Robert voltou a afundar-se no banco e esperou pelo
momento inevitável em que Sebastian deixaria Miss Pursling
aos gritos.
Sebastian piscou o olho a Miss Pursling.
? Os dragões gostam de queijo.
? Mas os dragões não podem ordenhar princesas ? replicou Miss
Pursling. ? Não têm polegares oponíveis.
Sebastian olhou para cima.
? Muito bem pensado, e quase tem toda razão. Mas os dragões
têm lacaios. Seja como for, é sabido que a carne da fêmea da
espécie humana é inferior. Têm os infelizes depósitos
de gordura à frente. Ao passo que o flanco da carne masculina é
magra, macia e suculenta. ? Enfatizou as suas palavras
levantando-se e levando a mão ao assento das calças.
A condessa revirou os olhos.
107
? Quanto menos se disser sobre carne de homem, melhor para
todos nós. Além disso, pensei que gostasses bastante desses
infelizes depósitos frontais. Passas bastante tempo...
Robert tossiu com vigor.
? As minhas preferências são irrelevantes ? conseguiu Sebastian
dizer, com basta altivez. ? Eu não sou um dragão.
? É verdade ? acrescentou Robert. ? És um pavão... exibes as
penas para a fêmea da espécie.
? Se resultar... ? Sebastian sorriu e virou a cabeça, espreitando
para as penas imaginárias no traseiro. ? E sim, essa é uma das
minhas melhores características, muito obrigado.
A condessa produziu um suspiro sonoro e derrotado.
? Estamos outra vez a falar das nádegas do Sebastian? Mas será
que ele não tem outras partes do corpo?
Foi nesse momento que Robert se apercebeu de que Miss
Pursling não estava a fitar o chão, e já não o fazia há algum
tempo. Tinha um pequeno sorriso e olhava de um para o outro,
os olhos arregalados com o fascínio, as faces afogueadas.
Robert apontou o dedo a Sebastian.
? Estás a ver? ? acusou. ? Eu sabia que ia acontecer. Levaste-me a
isso. Não volto a acreditar em nada do que digas.
? Não tens de quê. ? Sebastian fez uma vénia e voltou a sentar-se.
? Tanto embaraço desnecessário... ? Fingiu sentir um arrepio. ?
Mais tarde cobro-te o agradecimento.
? Apre. Detesto-vos aos dois.
Em situações normais, ele adoraria passar o tempo assim ? a
ouvir os amigos a trocarem respostas entre eles, quais gatos
alucinados. Mas Miss Pursling pensaria que ele era
doido por estar com aqueles dois. Que raios; era da família de
Sebastian. Primos direitos. Mais valia anunciar que tinha um
ramo inteiro da família no manicómio.
? Nossa Senhora ? exclamou Sebastian. ? Não devíamos ter dito
nada disto?
? É claro que sim ? afirmou Violet. ? Referimos especificamente
que ele nunca brincou às princesas. Isso faz dele másculo.
Continua a achá-lo másculo, não é verdade, Miss
Pursling?
108
? Creio ser importante não tecer comentários. ? Miss Pursling
fitou o chão, mas os olhos cintilavam.
? Sabe ? disse Sebastian ?, tenho de me opor a esse tipo de
raciocínio. É preciso muita confiança na masculinidade para se
brincar às princesas. Talvez só o tenhamos feito
parecer inseguro.
? Talvez ? disse Violet, um pouco alto de mais ? ela não repare se
não o referirmos.
Miss Pursling sorriu.
? Não se incomodem comigo ? disse ela, baixando o olhar. ? Eu
nunca reparo em nada.
? Muito bem. ? Violet empregava o tom tudo-está-bem-quando-
acaba-bem. ? Não sei porque estás perturbado. Robert, desata o
burro.
Derrotado, Robert fechou os olhos.
Quando o comboio parou, Robert esperou que Sebastian pegasse
nas suas coisas e se fosse embora e que Violet o seguisse, para
ver da coruja. Só então se dirigiu a Miss Pursling.
Minnie estava à porta da carruagem, a enrolar um cachecol ao
pescoço.
Robert revirou o chapéu nas mãos.
? Olhe ? disse ele. ? Quanto àquela conversa... ? Mas, que
desculpa adiantar?
Eles não costumam ser assim.
Era mentira.
Tem de compreender. As piadas do Sebastian ajudaram-me em
muitos maus momentos. Amo-o mais do que o quero matar.
Mas a verdade era excessiva. Procurava uma maneira de se
lamentar ? e nem sabia se devia estar a pedir desculpas. Mas ela
ajeitou as luvas, olhando para baixo, antes de voltar
a encará-lo.
? Vossa Alteza.
? Miss Pursling.
Os olhos dela eram cinzentos, claros e cristalinos, e pareciam ver
através do torcer de mãos não propriamente apologético.
? Sempre pensei que se podia julgar um homem segundo a
companhia mantida.
109
? Au. ? Robert estremeceu. ? O Sebastian ? acabou por dizer ?,
ele sempre foi excessivo. Às vezes é complicado, mas é bom
homem. ? E era. Mais ou menos.
Miss Pursling franziu o cenho.
? Está a falar de quê? Eu gosto dos seus amigos.
? Eu... a Minnie... ? Inspirou fundo. ? Quase parece que gosta de
mim.
Minnie assentiu.
? A lógica é uma coisa maravilhosa, Vossa Alteza ? comentou
ela. ? Foi exatamente isso que eu disse. Só gostava que não fosse
verdade. ? Girou a maçaneta e saiu.
? Espere ? disse ele, estendendo a mão atrás dela.
Mas a porta já se fechara. Continuava a fitar o espaço que ela
ocupara quando o revisor soprou o apito. Pegou nas coisas e saiu
a correr.
Ela gostava dos amigos dele. Ela gostava dos amigos dele? Era
estranho ter aquele embaraço a inverter-se. Deu consigo a sorrir
alegremente quando chegou junto de Violet e
de Sebastian, e da restante comitiva. Estavam reunidos à volta do
caderno de Violet, a olhar para as páginas.
? Riem de quê? ? perguntou, desconfiado.
Violet fechou o caderno.
? Estive a registar a pontuação ? informou. ? Detesto ter de te
dizer isto, mas a tua Miss Pursling venceu a conversa.
Robert continuava com o sorriso tolo nos lábios, e não parecia
disposto a dissipar-se.
? Sim ? concordou. ? Não é uma maravilha?
CAPÍTULO 10
A diligência deixou Minnie a quase um quilómetro da quinta das
tias, pelo que pôs a mala debaixo do braço e deu início à
caminhada de regresso a casa.
Quando ficou com as poucas casas pelas costas, tirou a carta do
bolso da saia e desajeitadamente ? afinal de contas, só tinha uma
mão disponível ? quebrou o selo de cera.
A carta tinha data de há dois dias.

110
Estimada Miss Pursling, escrevera ele. Quero deixar claro o que
disse no outro dia, quando nos encontrámos na residência dos
Finney. Escrever panfletos não é um capricho.
No outro dia disse-me que tivera um objetivo altaneiro e que fora
derrubada. Não é a única. A sociedade inglesa tem por hábito
fazer isso: manter em baixo as classes baixas
e elevar ainda mais alto as classes altas. Tenho a sorte de poder
almejar o que quiser.
O meu desejo mais ardente é que a Miss Pursling, e todos os seus
semelhantes, olhem para cima. Que o faça e não volte a ser
derrubada. Escrevo panfletos porque posso escrever
essas palavras sem receio de represálias ? porque, se for
descoberto, a Câmara dos Lordes nunca me processará. Escrevo
porque essas palavras têm de ser escritas. Escrevo porque
não escrever, porque não falar seria desperdiçar o que me foi
dado. Mantenho-o em segredo porque, caso contrário, todos os
meus relacionamentos seriam alvo de investigação.
É, sem sombra de dúvida, muito superior em relação a táticas. A
prová-lo tem consigo uma carta escrita por mim, onde admito o
que fiz. Use-a para me expor, caso seja isso
que poderá levá-la a conseguir um bom casamento com um
homem comum que só deseje ter uma esposa pacata. Use-a, se
assim tiver de ser, ou então guarde-a e não diga nada. Disse-
-me que o futuro a aterroriza. Não o posso mudar todo, mas posso
alterar pelo menos isto.
Ou então pode olhar para cima. Pode dar uso a essa sua mente
superior e criar um lugar diferente para si. Pode ser mais do que
é. Pode ser muito, muito mais.
Qualquer outra coisa seria um desperdício criminoso dos seus
talentos.
Um seu criado,
Robert Alan Graydon Blaisdell.
Sem título. Claro que o único título que escolhera para ele nos
escritos fora De minimis ? uma coisa pequena. Mas não era assim
tão pequena. Minnie sentia a força da esperança
dele a erguê-la a cada passo.
Pode ser mais do que é.
111
Em tempos, ela provara mais ? fora apenas uma migalha, mas
bastara para que a vida que tinha agora parecesse miserável. Era
como comer papas insonsas a cada refeição, mas
passar o dia a cheirar salsichas e bolos. Depois de tanto tempo a
engolir uma gosma sensaborona, havia alguém a oferecer-lhe
carne.
Não era capaz de pensar logicamente. Não era capaz de analisar.
Só conseguia pensar na fome que sentia.
Eu podia ser mais.
Não fazia ideia do que o futuro lhe reservava, mas até o pequeno
vislumbre de alívio sentido com a confissão dele ? menos uma
coisa a recear, uma preocupação dispensada no
meio da tensão dos últimos dias ? pareceu aliviar-lhe o fardo.
A sensação de falso conforto acompanhou-a durante o regresso a
casa. Sustentou-lhe cada passo, elevou-lhe cada fôlego.
Percorreu-a ao cumprimentar as tias, ao refrescar-se
para a refeição da noite. E não mudou nada. Só fez com que o
fardo da realidade parecesse ainda mais pesado quando o seu
peso lhe assentou nos ombros.
Chegado o jantar, Minnie apercebeu-se de que não era capaz de
saborear a sopa.
As tias estavam à frente dela, a comer, a conversar, tal como seria
de esperar em duas boas amigas que houvessem passado décadas
na companhia uma da outra. A conversa variou
entre a produção de nabos e os usos a dar ao campo mais distante
na primavera seguinte.
Falavam como se nada tivesse mudado, e Minnie detestou-as por
nada ter mudado. Por terem sido elas a resgatá-la de Londres no
dia em que a sua vida ficara de pernas para o
ar. Haviam sido elas a abrir-lhe o percurso em que se encontrava.
Se vieres connosco, dissera a tia-avó Caro, Minerva Lane morrerá
para sempre. Nunca dirás esse nome. A pessoa que és hoje irá
desaparecer.
Papas. Nada, além de papas ? e o receio de que um dia, nem isso.
? Sabias que o Billy anda a fazer a corte? ? comentou a tia-avó
Caro.
? Não! Não pode ter idade para isso.
112
? Já tem dezoito anos ? informou Caro. ? Parece que ainda no
mês passado ele nasceu...
Não conseguia acompanhar a conversa. Minnie não se limitara a
assumir um nome novo quando as tias a levaram; ela assumira
uma personalidade nova. Ao início, nem sequer sabia
andar como uma menina. As tias passaram esse primeiro ano a
corrigir-lhe o comportamento. Não contradigas. Não levantes a
voz. Não avances. Tudo que pudesse chamar a atenção
era absolutamente proibido; deu com ela a encolher-se cada vez
mais, até que a personalidade passara a caber numa avelã ? e
ouvia-a a chocalhar, tal era o espaço que sobrava.
Fora pequena e calada. Depois de ter visto tanto, a ambição
frustrada desvanecera-se. Agarrou-se ao escasso trabalho de
caridade que era permitido às mulheres, mas isso não
lhe bastava. E agora deparava-se com uma vida inteira com esse
tormento ? ser obrigada a tornar a alma tão pequena e
sensaborona quanto possível, na esperança de a adequar
à dimensão da sua vida.
Tem bastante coragem e um talento raro para ver o que está à sua
frente. Posso fazer com que todos percebam isso.
Malditos fossem os olhos dele. Maldita fosse a carta dele.
Maldito fosse o sorriso que a fazia querer beijá-lo, para que
soubesse que lhe acendera uma luz no interior.
Qualquer outra coisa seria um desperdício criminoso dos seus
talentos.
Maldito fosse ele, pois mesmo que não estivesse a ser sincero ?
mesmo que aquilo não passasse de uma maneira de lhe toldar a
mente e de a distrair ?, levara-a a acreditar
que podia alterar as coisas. E que desta vez, quando o fizesse...
Essa vontade fez-se sentir poderosa, como um murro no peito ?
dolorosa e paralisante. Ela não o queria simplesmente. Ansiava
por isso. Precisava disso. Sonhava que desta vez,
quando fosse revelada à multidão, não fosse cercada e
apedrejada. Desta vez não lhe chamariam animal ou filha do
demo. Agora, em vez de a despojarem de tudo, alguém iria amá-
la
pelo que era.
113
Um anseio assim era demasiado para a pessoa que ela tinha de
ser.
Maldito fosse o duque de Clermont, por lhe dar essa esperança.
Maldito fosse por tê-la aconselhado a olhar para cima. Maldito
fosse por levá-la a acreditar.
Ardiam-lhe os olhos. Apontou o garfo ao prato e investiu às
cegas.
? Minnie ? disse Eliza, as sobrancelhas franzidas em preocupação
?, estás bem?
? Estou... ? Perfeitamente bem.
Era suposto dizer essas palavras. Não pedir nada, não admitir
desconforto. Era assim que uma senhora deveria agir.
Mas foi incapaz de pronunciar tal mentira. Estava à beira de
rebentar de emoção. Em vez de murmurar uma desculpa e de
deixar a sala de jantar, tal como deveria ter feito,
ela sentiu o garfo a voar-lhe da mão, a passar sobre a mesa e a
bater na parede oposta com estrépito metálico.
? Não ? disse. ? Não, não estou bem.
? Minnie!
? Não estou bem ? repetiu. ? Não estou bem. Como puderam
fazer-me isto?
Eliza levantou-se e deu um passo em direção a ela.
? Minnie, o que se passa?
? As duas fizeram-me isto ? repetiu, a voz a tremer com todos os
anos de lágrimas por verter. ? Fizeram-me isto. Transformaram-
me neste... neste...
Encontrou a colher ao lado do prato e atirou igualmente esse
talher para o outro lado da sala.
? ...neste nada! ? concluiu. ? Agora estou encurralada, sem
conseguir encontrar uma saída.
Eliza e Caro trocaram um olhar chocado.
? Tenho tanto dentro de mim... tantos pensamentos, tantas
vontades, tantas ambições.
Caro estremeceu com a última palavra.
? E elas não são nada ? concluiu. ? Nada, nada, nada! Tal como
eu.

114
? Oh, Minnie ? disse Eliza gentilmente, qual moço de cavalariça a
um cavalo que se empinasse. ? Lamento tanto. Prometi à tua mãe
que cuidaria de ti quando ela falecesse. Se
tivesse cumprido essa promessa, não te sentirias como sentes.
Nunca saberias...
Não foram as palavras que resultaram, mas sim o tom ? calmo e
apaziguador. Sentia a fúria a dissipar-se em resposta. Mais alguns
minutos e voltaria a ficar plácida, sem nada
que recordasse o que se passara, além das marcas no papel de
parede onde os dentes do garfo haviam batido.
Mas ainda ouvia a voz dele. Ainda lhe via os olhos, de um azul
tão brilhante, a intensidade da expressão dele. Aquela carta
poderia ser um gesto vazio de um homem que o podia
fazer. Mas o que ele dissera contivera verdade suficiente para a
deixar agarrada.
Podias tê-lo tido, provocava-a a memória, se fosses outrem.
Podias tê-lo se fosses tu própria. Mas não és. Não és.
Eliza chegou junto de Minnie e pousou-lhe a mão no ombro.
? Nunca saberias ? repetiu.
E essa memória de si própria ? da audácia, do entusiasmo
juvenil ? parecia tão distante que Minnie se sentiu a assentir.
Não és nada. O nada não sente.
Eliza pressionou-lhe o ombro e Minnie voltou a sentar-se.
? Pronto, pronto ? murmurou a tia-avó. ? Já passou. Não foi nada.
? É claro que não foi nada ? murmurou Minnie. ? É o que eu sou.
E então, não houve como reprimir o jorro de lágrimas. Minnie
chorou até expulsar todo o desejo do coração ? as saudades do
passado perdido, entremeado com o futuro com que
não podia sonhar.
? Talvez ? aventou a tia, quando as lágrimas pararam ?, talvez
precises de algum tempo longe da... questão... do casamento. Fica
aqui na quinta. Umas semanas. O que te parece?
Ela não dispunha de semanas. Mas tinha aquela carta ? a prova de
que precisava. Amanhã já podia acabar com a suspeita de Stevens
em relação a ela.
Então... porque não o fazia?
Minnie abanou a cabeça.
115
? Não vai ajudar ? respondeu. ? Nunca ajuda. Já nada ajuda.
*
A mesa no hotel poderia ser posta para oito pessoas, caso
necessário. Naquele dia acomodava a mãe de Robert numa ponta,
e na outra, com dois metros de mogno polido entre os
dois, estava ele. Parecia que todos os garfos de prata do hotel
haviam sido postos, a par da maioria das colheres. Podia montar
uma torre de relógio com tantos talheres.
No outro lado da mesa, a mãe de Robert pousou lentamente o
garfo.
Era a maneira que a mãe tinha de enviar uma mensagem. Ela
alterara a data. Concordara com o encontro, mesmo sabendo que
Sebastian e Oliver se encontravam na cidade. Isso significava
que não se tratava apenas de uma refeição, mas sim de uma
negociação ? duas partes independentes e levemente hostis que se
encontravam para chegarem a acordo quanto às pautas
aduaneiras entre as suas nações.
Como sempre, ela não tinha um cabelo fora do sítio. Vestia-se
segundo o que imaginava ser o auge da moda, caso ele se desse
ao trabalho de o acompanhar. O vestido era azul-escuro,
debruado com um padrão branco e dourado bordado de cinco
centímetros. A cintura era estreita, mas não demasiado cingida;
um xaile de renda preta cobria-lhe os ombros.
Sempre parecera imponente, qual torre distante agigantando-se
no horizonte. Sempre fora distante, mesmo quando o visitava em
criança.
Agora, os dois metros que os separavam bem podiam ser
duzentos. Nos anos desde que ele atingira a maioridade, haviam
chegado a um compromisso confortável. Quando se encontravam
ambos na mesma localidade, jantavam juntos ? não mais do que
uma vez ? e não falavam de nada importante. As obras de
caridade dela, o trabalho dele no Parlamento. Tudo o que
era dito nessas refeições, poderiam ter sabido por uma simples
leitura das páginas sociais. Ele não tinha quaisquer expectativas e
ela já não o desiludia.
Mas tê-la a visitá-lo... isso era novidade.

116
? Muito bem, Clermont. ? Ela pousou a colher e um criado
recolheu o prato de sopa. O olhar que repousava nele era afável,
educado e banal. ? Deve saber o motivo que me trouxe.
? Não ? disse Robert. ? Não sei.
A mãe ergueu uma sobrancelha.
? Não se lembra? Na última vez que falámos, referiu que
tencionava tomar uma esposa.
A última vez que haviam falado fora dois meses antes. Com
efeito, ele concordara que quando um homem se aproximava dos
trinta anos, devia pensar em casar-se. Na altura parecera
uma declaração inócua quanto bastasse. Fora menos do que
conversa de ocasião.
? Aceitou cumprir o seu dever ? disse ela calmamente.
? Disse que me casaria ? replicou ele com cuidado. ? Não creio
ter mencionado dever.
O nariz dela franziu-se e os lábios espalmaram-se, como se a
ideia de que o casamento pudesse ser algo mais do que um dever
a fizesse querer espirrar. Não obstante, continuou
sem dizer nada até que lhes serviram o prato seguinte. Depois,
esperou que Robert levasse uma garfada à boca ? e não pudesse
protestar ? antes de falar.
? Abordar devidamente a questão pode demorar anos. Tal coisa
não pode ser feita de ânimo leve. É preciso investigar
antecedentes, obter informações. ? Pegou no garfo. ? Temos
de fazer listas. Já comecei três.
Robert engoliu a garfada de peixe, mesmo tendo ficado com a
garganta seca. Mesmo que aquela mulher à sua frente fosse sua
mãe, ela não passava de uma estranha. Mal a vira
em criança. Houvera uma altura em que quisera que ela cuidasse
dele. Quisera-o desesperadamente; procurara desculpas atrás de
desculpas para a ausência dela. Mas ela deixara
dolorosamente claro que as desculpas dele não passavam disso
mesmo, e que nada queria ter que ver com ele.
? Perdão ? disse Robert quando se apercebeu de que a sala
estivera mergulhada em silêncio desde que ela falara. ? O que
quer dizer com temos de fazer listas? Quem é esse nós?

117
? Não tem de se preocupar com isso. ? Abanou a mão num gesto
elegante. ? Posso mostrar-lhe o que tenho até agora. Organizei os
nomes que reuni em três categorias: filhas de
pares, herdeiras e outras. ? Fungou. ? Com algum esforço da
minha parte poderei obviar a necessidade de considerarmos
qualquer mulher na categorias outras.
Vinte e oito anos de quase indiferença por parte daquela mulher e
agora aquilo?
? Portanto, quando diz nós ? adiantou Robert lentamente ?, está a
referir-se a si.
? Bem... ? Ela pareceu surpreendida com a questão. ? Não precisa
de ficar tão zangado, Clermont. É claro que os seus desejos serão
tidos em conta.
? Os meus desejos serão tidos em conta ? repetiu ele. ? Mas que
generosidade. E que maneira curiosa de o dizer, sem quaisquer
atores. Posso indagar quem é a pessoa que tão
gentilmente se oferece para ter os meus desejos em conta? Afinal
de contas, trata-se apenas do meu casamento.
A mãe humedeceu os lábios e calou-se. Dirigiu o olhar ao prato,
mas os dedos apertaram o garfo.
? Obrigado, duquesa ? disse Robert. ? Mas a sua ajuda não será
necessária nesta questão.
? Clermont. ? A voz denotava agora um toque de exasperação. ?
O casamento pode ser seu, mas vai afetar-me a mim. ? Ergueu a
cabeça, de olhos arregalados. ? Se o seu casamento
for alvo de comentários, todos quantos estejam associados a si
irão sofrer com isso. Tenho décadas de experiência na sociedade.
Seria uma tolice se não quisesse aproveitar
isso.
Estava agora hirta, com pequenas rosetas nas faces. Sem dúvida
ter-se-ia apercebido de que assim que ele se casasse, ela tornar-
se-ia a condessa viúva de Clermont, sem vontade
de abdicar a sua posição na sociedade para uma qualquer que não
a respeitasse como desejava.
? A mamã não leve a mal ? disse Robert ?, mas não a considero
perita em casamentos. Imagino que, para isso, teria de ter
mantido um matrimónio.
118
A condessa cerrou os lábios.
? Insultos. ? Fungou. ? Cada vez mais é um verdadeiro filho do
seu pai. Pense na minha oferta, Clermont, e fale comigo quando
estiver menos emotivo. Não pode andar por aí
até encontrar uma candidata de cujo aspeto goste. Esta é uma das
mais importantes decisões da sua vida. A sua esposa vai partilhar
a sua vida até ao fim da sua vida.
? Não necessariamente ? contrapôs Robert. ? Pode sempre sair de
casa. ? Fitou-a do outro lado da mesa. ? No caso de tal ser
necessário, eu indico-lha. Creio que terá mais
qualificações nessa área.
As narinas da duquesa estremeceram e Robert imaginou que ela
pudesse bater com o pé e raspar no chão, qual touro enraivecido.
Mas limitou-se a desviar a cabeça e a levar mais
uma garfada à boca.
Havia um motivo para que até àquele momento tivessem limitado
as conversas a amabilidades inócuas. Não conseguiam falar sobre
mais nada sem amargura. Não tinham um passado
em comum, quase não partilhavam conhecimentos. A mãe
passara mais tempo de visita à mãe de Sebastian ? irmã do
marido ? do que na casa de Robert quando este era pequeno.
E fora ela que o escolhera. A dada altura, ele talvez a tivesse
perdoado. A dada altura, ele ter-lhe-ia perdoado tudo. Sabendo o
que sabia acerca do pai, não lhe parecia justo
responsabilizá-la por tê-lo deixado. Mas ao fazê-lo, nunca
pensara no filho. Por mais que ele lhe pedisse, ela nunca olhara
para trás.
? Pelo menos ? acabou por dizer, num tom um pouco rígido ?,
pelo menos pode servir-se das minhas listas.
? Não, Vossa Alteza. ? Robert sentia o gelo das próprias palavras.
? Não me parece que nós precisemos das suas listas.
A duquesa pestanejou e baixou o olhar, contemplando o prato.
? Nós ? acabou por dizer. ? Quem estará abrangido por esse seu
nós?
? Ora, não lhe disse? Sebastian Malheur. ? Robert ofereceu-lhe
um sorriso. ? Porque julga que o chamei?
A duquesa arregalou os olhos.
119
? Esse homem! ? sibilou. ? Ele já me visitou, e... ? Soprou, num
gesto de descontentamento. ? Ele não saberia o que é o decoro
nem que lhe aparecesse à frente. Pode associar-se
a ele por um qualquer sentido de lealdade familiar, mas serem
íntimos...
? Vossa Alteza não se preocupe ? atalhou Robert. ? O Oliver
Marshall também cá está, e ele vai...
? É essa a companhia que mantém? Um réprobo e um bastardo?
Com essas palavras, Robert levantou-se, quase de um salto, a
irritação a crescer. Mas os gritos nunca lhe haviam conseguido
nada. Lentamente, soprou a fúria, deixando que
o abandonasse, substituída, mais uma vez, pela serenidade do
gelo.
? Ah ? acabou por dizer. ? Insultos.
A duquesa fungou.
? Parece que, afinal de contas, tenho a quem sair. Espero que não
fique demasiado horrorizada com a descoberta.
Mas ela não pareceu incomodada. Pelo contrário, um leve sorriso
aflorou-lhe aos lábios ? o primeiro desde a chegada dela.
? Já o sabia ? declarou. ? Porque julga que aqui estou?
CAPÍTULO 11
? Onde tens andado nos últimos dias? ? perguntou Lydia. ?
Enviei uma mensagem há duas noites, mas as tuas tias
responderam que estavas doente.
Minnie olhou para a amiga. Lydia sorria; não parecia preocupada.
Em vez disso, dera o braço a Minnie e estava a levá-la até às
traseiras da casa Charingford.
? Não estive doente.
? Eu sei, tolinha. ? Lydia deu-lhe uma palmadinha na mão. ? Se
fosse sério, insistias que eu fosse informada. E se não fosse
grave, tinhas sido tu a escrever-me. E então,
o que foi?
Minnie olhou em volta. Não havia criados nas redondezas,
ninguém que ouvisse o que diriam. Apenas a parede apainelada a
madeira do corredor.
? Não te posso contar tudo, mas neste momento ando envolvida
com outra estratégia.
120
O rosto de Lydia ficou desprovido de expressão.
? Nada disso ? apressou-se Minnie a acrescentar. ? Nunca isso.
? Meu Deus, assustaste-me. Olha para as minhas mãos. ?
Estendeu-as e mostrou como tremiam.
? Se estivesses envolvida, teria falado contigo primeiro ? garantiu
Minnie. ? Isto... ? Franziu o cenho. ? É um segredo de outra
pessoa.
Lydia aceitou o que lhe era dito com um breve encolher de
ombros e abriu a porta para a sala dos fundos. Para surpresa de
Minnie estava ocupada. Ocupada e muito, muito quente.
Três criadas estavam sentadas à lareira, com chamas de um
laranja vivo altas a ponto de lamberem o início da chaminé. As
criadas enrolavam papéis que atiravam um a um para
o lume, para que as chamas não se descontrolassem. O ar estava
carregado com o cheiro das fibras incineradas.
? O que se passa? ? perguntou Minnie.
? Não sabias? ? disse Lydia. ? Um grupo de radicais anda a
deixar panfletos pela cidade. Deixaram uma pilha enorme à porta
da fábrica do papá. Teve de os arrancar das mãos
dos trabalhadores. Passou a manhã a tentar reunir tudo.
Minnie olhou para a amiga.
? São assim tão maus?
Lydia ofereceu-lhe um sorriso alegre e entrou na sala, salvando
um folha amarrotada das mãos de uma criada antes que as
chamas a devorassem.
? Vê por ti.
Minnie olhou para a página estendida pela amiga. Pegou nela,
perscrutou-a...
E deteve-se num parágrafo que a fez levar a mão à boca.
...Interromper o trabalho é um ataque a descoberto. Em primeiro
lugar, damos voz às nossas preocupações, uma voz gritada com o
volume acrescido de mil gargantas. Em segundo
lugar, abandonamos as fábricas onde trabalhamos ? deixando
assim os bolsos vazios dos patrões como argumento veemente.
Tenhamos noção de quem somos e do espaço que deixamos
para trás.
? Estão a falar de uma greve ? disse Lydia ?, não é verdade?
121
Interromper o trabalho é um ataque a descoberto.
Minnie sentiu o sangue a gelar-se-lhe.
? Talvez. ? Estava um pouco tonta. ? Vai uma grande distância
entre conversa e organização, e entre organização e
implementação. ? Procurou a parede para se apoiar.
Tenhamos noção de quem somos e do espaço que deixamos para
trás.
Essas palavras eram familiares ? demasiado familiares. A última
frase era uma citação quase direta do obscuro Sobre Xadrez, de
Tappitt. Citara-a ao duque de Clermont sem dar
grande relevância às palavras. Afinal de contas, ele admitira a sua
ignorância em relação ao jogo.
Também ela já usara aquelas palavras. Dissera algo quase
idêntico a Stevens, havia poucos meses, quando falavam sobre a
bomba de água de Harley Street. Não a surpreendia,
já que os termos sobre xadrez faziam parte do seu vocabulário
desde que se lembrava. A primeira memória que tinha era de
estar sentada a um tabuleiro de xadrez, com o pai
à frente.
Isto, dissera ele, é um ataque a descoberto. Estás a ver? Uma
jogada, duas ameaças. Mostras-mas?
? Se não fosse verdade ? insistiu Lydia ?, o meu pai não estaria
tão furioso. Mas ele não vai deixar que a fábrica pare.
? Estou a ver ? disse Minnie.
Lydia acenou às criadas.
? Nós acabamos isso ? indicou. ? Deixem-nos.
As criadas levantaram-se e saíram da sala. Lydia sentou-se junto
ao lume e começou a deitar os panfletos para as chamas a
intervalos regulares.
Isso. Que os queimasse a todos. Talvez ninguém os tivesse lido.
Ele usara as palavras dela.
? Lydia, tens visto o Stevens?
? Ainda hoje. Depois de isto ter sido distribuído, ele e o meu pai
passaram horas fechados. Afinal de contas, a haver uma greve,
será o Stevens a lidar com ela. Discutiram

122
sobre qualquer coisa. E depois o Stevens saiu. O papá disse-me
que ele ia a Manchester confirmar uma coisa. Claro que não faço
ideia o que ele pode saber em Manchester acerca
dos nossos trabalhadores. Talvez os operários comuniquem entre
eles?
Não. Stevens lera o panfleto. Lembrara-se que Minnie, em
tempos, referira um ataque a descoberto. E ? fiel a si próprio ?
fora a Manchester investigar os antecedentes dela,
pois acreditava que ela estaria envolvida. Minnie sentia-se tonta.
? Achas que o meu pai paga o suficiente aos trabalhadores? O
Stevens diz que se ele ceder uma vez que seja às exigências, eles
tornam-se cada vez menos razoáveis. Mas aposto
que serias capaz de pensar em alguma coisa para evitar isso. Tal
como fizeste com a C. H. T.
Agora, não havia nada que pudesse fazer quanto a isso. Minnie
abanou a cabeça, afugentando os receios que lhe atormentavam a
mente.
? Não sei ? respondeu. ? Mas o Stevens e o teu pai...
Lydia revirou os olhos.
? Não quero falar do Stevens. ? Depois baixou a voz e, numa
contradição direta ao que acabara de dizer, fitou-a. ? Achas que o
Stevens percebeu o que aconteceu há tantos anos?
Que os boatos sobre o teu passado podem ter levado a que se
falasse sobre mim? Ambas fomos à Cornualha. Talvez... talvez
ele tenha encontrado alguma coisa.
? Não encontrou ? asseverou Minnie.
? Mas como...
? Sei, porque ele me confrontou com as provas que tem ? disse
Minnie. ? Não há nada sobre ti. São disparates... qualquer coisa
sobre a minha mãe não ser casada, um boato que
ouviu da boca de uma tola que está a perder a memória no fim da
vida.
Lydia suspirou de alívio.
Para Minnie, no entanto, isso não servia de alívio. Stevens fora
procurar informações acerca de Minnie. A sala parecia envolta
em fardos de algodão. Ouviam-se gritos à distância;

123
gritos abafados. O som de uma multidão, o pestanejar com o sol
brilhante a toldar-lhe a visão...
? Minnie, está tudo bem?
A voz preocupada de Lydia trouxe-a de volta ao presente. Sem
gritos. Sem tumultos. Sem multidões.
Pelo menos por enquanto. E talvez...
? Estou bem ? respondeu lentamente. ? Estava só a... pensar.
Stevens precisaria de pelo menos uma semana para desenterrar a
verdade ? se soubesse o que estava a ver quando o encontrasse. E
Minnie tinha a carta do duque. Isso, a par
de tudo o resto que ela desencantara, provaria que não estivera
envolvida.
Lydia observou-a com atenção.
? Querias falar comigo sobre o quê?
Minnie suspirou e olhou para a amiga.
? No outro dia, na C. H. T., o doutor Grantham pediu para falar
contigo.
Lydia ergueu ao de leve o nariz.
? E então?
? Então... ele quis falar contigo. ? Embora pudesse tê-lo dito
apenas para provocar Stevens. ? Ele é bem-apessoado e jovem.
Até gosto dele.
? Eu não ? afirmou Lydia perentoriamente. ? Ele estava a
trabalhar com o doutor Parwine quando aquilo aconteceu. E
desde então que me olha como quem sabe de alguma coisa.
? Ele olha assim para toda a gente ? lembrou. ? Acho que ele não
o consegue evitar.
? E é tão sarcástico.
? É sarcástico com toda a gente.
Lydia desviou o olhar.
? Não gosto de me recordar, e ele faz-me recordar. Olha-me
sempre que me rio, como se me julgasse pela minha frivolidade.
Não suporto estar perto dele.
? Não fazia ideia ? disse Minnie, sentando-se ao lado da amiga.
? Trabalho tanto para ter a minha frivolidade. ? As mãos de Lydia
tremiam. ? Como se atreve ele a julgar-me! ? Só Minnie sabia a
verdade quanto a essa questão. ? Sei que por
124
vezes julgas que não sou suficientemente séria. Que sonho
demasiado. Que devia ser mais racional. ? Lydia fungou.
? Não é verdade.
? Só as tragédias são grandiosas ? continuou Lydia. ? A
melancolia é sabedoria. O sofrimento é força.
? Lydia...
? Há quem me julgue fraca por ter sido seduzida por um homem
mais velho.
Minnie olhou em volta, mas a sala estava vazia e a amiga falava
em voz baixa.
? Porque eu não sabia que ele era casado. Eu não compreendi o
que se passava. Haverá quem julgue que fui fraca porque te pedi
ajuda.
? Eu não julgo.
Lydia procurara Minnie, que tratara de tudo: afastar Lydia dos
olhos do público até ao fim da gravidez, fazer com que a viagem
parecesse respeitável, para que ninguém falasse.
Bastara apenas um pouco de estratégia e, nessa altura, Minnie
ficara satisfeita por ter algo que fazer.
Lydia atirou uma pilha de panfletos para o lume e esperou que
eles se inflamassem.
? Há quem me julgue fraca porque chorei quando abortei. E a ti
acham-te tola por me teres abraçado e garantido que ia tudo
correr bem. Mas, sobretudo, eles julgam que fui
tola por ter aprendido a sorrir outra vez. Eles consideram-te inútil
por não usares sedas e fitas, por terem de escutar com atenção
para ouvirem o que dizes. E essas pessoas
não sabem nada.
Ninguém a vê, Miss Pursling? Recordou as palavras do duque de
Clermont.
Sim, quisera Minnie responder. Sim. Há quem veja.
? Por uma vez que fosse ? disse Lydia ?, gostava que todos te
vissem como eu te vejo.
Minnie abanou a cabeça e envolveu-se com os braços.
? Não. Não. Não quero que olhem. Não suporto que olhem.
? Bem, toda a gente talvez não. ? Lydia ofereceu-lhe um sorriso
matreiro. ? Mas então e...
125
Minnie arquejou.
? Não digas o nome dele.
? ... o duque de Clermont ? concluiu Lydia. ? E esse é o título
dele, não é o nome, por isso não me olhes dessa maneira. Ele está
envolvido na tua mais recente estratégia,
não está?
? É claro que não ? respondeu Minnie, mas a amiga limitou-se a
sorrir.
? Quero que tenhas uma oportunidade ? disse Lydia. ? Quero que
todos saibam como se enganaram a teu respeito, ao imaginar-te
calada e dócil. Quero que compreendam aquilo que
eu conheço tão bem. Que tens um coração enorme e uma mente
forte.
Minnie fungou e desviou o olhar.
? Isso só acontece nos contos de fadas. As mulheres reais saem-se
melhor quando têm grandes dotes e cabelo dourado.
? E o que mais detesto é não podermos contar a ninguém as
provas que tenho de como és maravilhosa. Mas continuo a
acreditar que a verdade sobre ti virá ao de cima. Que um
dia todos te vão conhecer como eu.
? E achas que iam gostar do que vissem?
Lydia assentou com veemência.
? Sei que sim.
O otimismo de Lydia nada tinha de ingénuo. Conquistara-o com
toda a justiça, e nem Minnie poderia privá-la disso. Era estranho
que Lydia pudesse ser tão firme na sua visão
de futuro e Minnie não fosse capaz de ver nada.
Virou a cabeça.
? Mas tenho mais uma coisa nessa frente que te devia contar. O
doutor Grantham queria que eu te convidasse para vires afixar
cartazes comigo e com a Marybeth Peters.
Os olhos de Lydia dirigiram-se para o papel amarrotado que ela
deitara para o lume.
? Não é esse tipo de cartaz ? descansou-a Minnie com um sorriso
que não sentia. ? Dos aborrecidos, sobre varíola e desinfetante.
? E o doutor Grantham vai lá estar?

126
? Não. ? Minnie esboçou mais um sorriso que não sentia. ? Essa é
a parte que vais achar interessante. Houve quem se voluntariasse
para o lugar dele, e nem imaginas quem.
? Tolinha. ? Lydia apertou-lhe a mão. ? Eu já sei. Foi como num
conto de fadas? A Minnie, consumida com a preocupação...
espera, tu não és assim. A Minnie, a apertar a cana
do nariz enquanto os homens idiotas discutem, a interrogar-se
como levá-los a fazer o que quer. ? Lydia sorriu. ? E depois, o
príncipe de Gales entrou na sala!
Minnie soltou uma gargalhada.
? Pronto, está bem ? disse Lydia. ? Imagino que isso seria pouco
provável. Além do mais, ele é casado, e detesto imaginar que
pudesse ser infiel à princesa Alexandra. Portanto,
tenho de imaginar que tenha sido o duque de Clermont. Ele
irrompeu pela sala, olhou-te para o peito e reclamou-te como
sendo dele.
? Bem...
Lydia apontou para Minnie.
? Eu sabia. Devias ver a maneira como ele olha para ti.
Minnie tentou não o fazer, mas ela recordava-o sem precisar que
a incitassem. Sentiu as faces a arder.
? Não ganhes ideias ? alertou-a Minnie.
Ele tinha olhado para ela, e depois? Isso não queria dizer nada.
Ele falava sem pensar, sem ter em consideração as consequências
das suas ações. Provavelmente também olhara
sem segundas intenções.
? Ele estava só a ser... ? Calou-se, sem saber como concluir.
Cavalheiresco? Irritante?
Uma vez que ele usara as palavras dela diretamente nos panfletos,
sentia-se inclinada para a segunda hipótese. Mas lembrava-se da
intensidade com que ele a olhara depois do
final da reunião da Comissão de Higiene dos Trabalhadores. E
daquele sorriso surpreendido quando ela lhe dissera que gostara
dos amigos dele. Fora uma sensação tão agradável
como uma alvorada.

127
? Ele mandou uma mensagem ? acabou por dizer. ? Sugeriu que
nos encontrássemos amanhã à tarde. Serei eu, a Marybeth
Peters...
? E o duque de Clermont. ? Lydia sorriu. - Tenho um bom
pressentimento quanto a isto, Minnie.
Olha para cima.
Minnie envolveu-se com os braços.
? Não. Não tenhas. Não posso permitir-me sentir.
Lydia limitou-se a abanar a cabeça.
? É claro que não. É por isso que eu tenho de sentir por ti.
CAPÍTULO 12
No dia seguinte, Minnie não precisou de grande esforço para
levar o duque de Clermont a ter uma conversa quase privada.
Afinal de contas, a melhor maneira de afixar cartazes
era em pares ? e uma vez isso estabelecido, Lydia emparelhou-se
com Marybeth Peters e atravessaram a estrada, de cola e papel
em riste, deixando Minnie sozinha com o duque.
Claro que não estavam propriamente sozinhos. Para começar,
encontravam-se numa via pública, e Lydia e Marybeth estavam à
distância de um grito, no outro lado de Haymarket.
Pessoas desciam as ruas. Um homem vendia castanhas à esquina;
alguns rapazes haviam feito uma fogueira no passeio,
alimentando-a cuidadosamente com bocados de lixo.
E Minnie não sabia o que lhe dizer. O que estaria ele a magicar?
Dera-lhe aquela carta. Dissera-lhe que a queria, e ela ainda sentia
arrepios na espinha quando se recordava
do olhar do duque ao dizer essas palavras. E depois usara as
palavras dela num panfleto, escurecendo ainda mais as nuvens de
suspeita que a seguiam.
Em vez de tentar descortinar isso, Minnie entregou-lhe o balde de
cola.
? O que sabe acerca de trabalho manual?
? Aaa... ? Os olhos dele cintilaram ao olhar para Minnie. ? Já li
sobre isso. Visitei as fábricas que herdei do meu avô. Faço
questão de falar com os operários sempre que
posso.
? Mas nunca trabalhou manualmente.
128
? Não... exatamente.
Minnie entregou um pau ao duque.
? Parabéns! ? exclamou ela. ? Está prestes a descer a novas
profundezas.
? Mal posso esperar. ? Fascinado, aceitou o pote de barro e
seguiu-a passeio fora. Minnie parou na primeira esquina e ergueu
um cartaz.
? O que faço? ? perguntou o duque.
? Pega na cola ? explicou Minnie ? e besunta-a no cartaz. Depois,
eu colo o cartaz na parede.
? Assim, sem mais nada? ? Desenroscou a tampa do pote,
mergulhou o pau e espalhou atabalhoadamente a gosma branca
no cartaz que Minnie segurava.
? Não tem muito jeito para a cola. ? Virou-lhe as costas, colou o
papel na parede e seguiu em frente.
Minnie não acreditava que ele lhe quisesse levantar problemas.
Olhava-a como se nada tivesse acontecido. E, para ele, nada
mudara. Haviam trocado sorrisos no comboio e ela
dissera-lhe que gostava dele.
Quando se virou, Minnie apanhou-o a sorrir das palavras dela.
Aqueles sorrisos eram como relâmpagos à noite, rápidos e
efémeros, iluminando toda a paisagem por breves momentos
antes de se extinguirem. Obrigou-se a recordar-se sombriamente
que sorrisos como aquele podiam ser bonitos, mas, não obstante,
amiúde deixavam escombros na sua esteira.
? Bem ? disse o duque atrás dela, num tom baixo e divertido. ?
Sabe como se diz: "No colar é que está o ganho".
Minnie pestanejou.
? Os trocadilhos são a forma mais vil de humor ? disse ela, sem
se virar.
? Não quando ditos por um duque.
Minnie ergueu um cartaz para receber cola e depois pressionou-o
contra a parede, mantendo-se assim por um instante, para garantir
que ficava colado.
? É um duque? ? indagou. ? Pensava que era um morto.
Sua Alteza, o duque de Clermont, não deu sinais de a ter ouvido,
levantando o pote de cola na mão e sorrindo.
129
? Avançamos para a esquina seguinte? Miss Peters e Miss
Charingford já estão um passo à nossa frente. ? Susteve-lhe o
olhar. ? Ou melhor, um cartaz ? corrigiu-se.
Ela não ia ? de maneira nenhuma ? deixar-se seduzir e rir-se de
piadas reles sobre cola e cartazes. Minnie cerrou os lábios e
prosseguiu rua abaixo.
O duque seguiu-a.
? Há algum... problema? Leu a minha carta?
? Sim ? respondeu ela. ? Li tudo o que escreveu. E estou furiosa
consigo.
? Vá lá ? admoestou-a ?, não se deixe colar a esses sentimentos. ?
Soltou uma risada, mas calou-se quando ela se virou e deixou ver
a expressão. O sorriso desapareceu-lhe
do rosto. ? Oh! Está mesmo zangada. Fiz alguma coisa de mal?
Se fizera algo de mal? Queria dar-lhe um murro.
? A sua mais recente obra-prima. Nem acredito naquilo que disse.
O duque franziu o nariz.
? Porquê? Porque uma greve iria prejudicar os seus amigos?
Porque não quer saber das condições em que os operários
trabalham? Ou acha que não o devia ter escrito? Que devia
ter ficado calado, a remoer os meus pensamentos...
? Pelo amor de Deus! ? exclamou Minnie, exasperada. ? Se eu
achasse que não devia escrever aqueles malditos panfletos, já
teria mostrado a sua carta aos magistrados. Por vezes
também me apetece gritar... gritar a plenos pulmões, sem me
importar com quem ouve. Estou zangada porque usou as minhas
palavras no seu mais recente trabalho! As minhas palavras.
O duque pestanejou.
? Oh. ? Mordeu o lábio. ? Isso. Bem, por assim dizer, se calhar é
verdade. E porque não? Eram boas palavras.
? Não me venha com coisas. Não ouviu a conversa do Stevens?
Ele já me acusou de nutrir sentimentos radicais. Porque usou uma
expressão que me ouviu a dizer? Não compreende
como a minha vida se vai tornar impossível se desconfiarem de
mim?

130
Com os operários nas fábricas até ao apito do fim do dia, as ruas
estavam calmas. Viam-se algumas mulheres a caminho da
mercearia; passou uma lavadeira de saca ao ombro. O
ronco ritmado das máquinas a algumas ruas de distância abafava
quaisquer outros ruídos, fazendo com que as ruas parecessem
sossegadas.
? Estou aterrorizada ? disse ela ?, e o senhor não tem nada a
temer. Não é justo.
Do outro lado da rua, e dez metros mais à frente, Lydia e
Marybeth dispunham cartazes de forma metódica.
? E então? ? exigiu Minnie, brandindo um cartaz na direção
dele. ? Não esteja a perder tempo. Preciso de cola.
? Miss Pursling ? disse o duque formalmente ?, lamento imenso.
Ele envergara roupas mais escuras e grosseiras para aquela saída:
calças de lã cinzenta e uma casaca a condizer, de tecido menos
fino, mas de corte perfeito. Ao pescoço enrolara
um cachecol macio castanho-avermelhado. As roupas faziam-no
parecer não um duque, mas sim um escroque, um vigarista, e
talvez com bastante malandrice. O tipo de homem que
procuraria tentar uma rapariga a sair com ele à noite e que lhe
daria goles de bebida de uma garrafa de bolso. Seria fácil ficar
inebriada junto dele.
Soava sincero, e Minnie queria acreditar nele.
? Lamenta ter-me posto em risco?
E, com aquele sorriso levemente embaraçado, também parecia
sincero. Depois olhou para ela. Girou o pau no pote e depois
retirou-o, com uma grande bola de cola na ponta.
? Não. ? As palavras soavam pesarosas, mas os olhos
brilhavam. ? Por isso, não. Por isto.
E, com essas palavras, brandiu o pau na direção do abdómen de
Minnie, que mal teve oportunidade de baixar o cartaz em sua
defesa. A ponta apanhou a bola de cola voadora, desfazendo-a
em pleno voo e atirando gosma por todo o lado.
Minnie fitou-o, sem querer acreditar.
? Não sabia que deixavam miúdos de doze anos ocupar lugares na
Câmara dos Lordes! ? exclamou ela, num tom gelado.

131
O duque piscou-lhe o olho e depois virou-se na direção das
mulheres no outro lado da estrada e acenou.
? Estamos na bomba ali no beco ? informou. ? Tivemos aqui uma
emergência com cola.
? Uma emergência com cola! ? soprou Minnie. ? Tivemos foi um
ataque com cola.
Mas o duque já lhe segurava o braço, encaminhando-a por uma
abertura estreita entre dois edifícios, até um pátio sujo onde se
encontrava uma bomba de água. Despiu a casaca
antes de se agarrar à manivela da bomba; Minnie pôde ver-lhe a
forma dos músculos através das mangas da camisa. Ela estava
aterrorizada, e ele estava a exibir-se.
? Para que conste ? disse ele, enquanto dava à manivela da bomba
?, tenho vinte e oito, e não doze anos.
? Parabéns.
? Obrigado. Finalmente tenho-a sozinha.
Voltou a sorrir-lhe e ela sentiu-se trespassada por um relâmpago.
Desviou o olhar. A bomba produziu um assobio oco, indicando
que a água estava quase a chegar.
? Tentar seduzi-la é um trabalho sujo.
Enquanto falava, a água jorrou do bico da bomba. O duque
apanhou-a no balde acorrentado à bomba.
? E então? ? O duque ergueu uma sobrancelha. ? Queria gritar
comigo. Quis dar-lhe essa oportunidade sem que fizesse uma
cena. Aproveite.
? Porque usou as minhas palavras? Tentou pôr a minha reputação
em risco de propósito? Achou que se me culpassem por isso,
escaparia impune?
O duque limitou-se a abanar a cabeça.
? Já devia saber que não ia gritar. ? O duque encolheu os ombros,
soltou o cachecol do pescoço e mergulhou-o na água do balde. ?
Para responder à sua pergunta, não, não era
de todo essa a minha intenção. Posso ter sido inconsiderado, mas
não malicioso.
Para surpresa de Minnie, o duque ajoelhou-se à frente dela e, com
o lenço, começou a limpar uma das manchas de cola na saia.

132
? Foi, pura e simplesmente, o seguinte ? continuou ele, a atenção
fita na cola. ? Provocou uma grande impressão em mim. Se
reconheceu as suas palavras naquilo que eu disse,
foi porque tenho pensado em si. ? Olhou-a. ? Amiúde.
Não era justo que ele fosse capaz de lhe privar o coração de fúria
e os pulmões de ar só com uma palavra. O olhar dele susteve o
dela.
Não era justo. Não havia direito. Ali estava ele, de joelhos, e, não
obstante, era ela que estava a ficar enfeitiçada.
Minnie desviou o olhar.
? Isso não muda nada. Continua a deixar-me numa posição
ingrata. Não sei o que fazer. Não pode simplesmente pedir
desculpa e esperar que lhe ofereça um sorriso.
O duque baixou o olhar ? não a render-se, mas com um ar
indiferente, como se não estivesse preocupado ? e atacou mais
uma mancha de cola.
Minnie não lhe sentia as mãos pela saia, mas imaginava-as;
imaginava que a leve pressão exercida sobre as saias se transmitia
aos saiotes, e daí às roupas íntimas, às meias,
às pernas. Fechou os olhos enquanto ele ia subindo.
Quanto mais alto ele chegava, mas ela o sentia. Quando chegou
ao último pedaço de cola, estava a tocar-lhe a barriga. Tocava-a
por cima de camadas de tecido e de corpete,
sim ? mas tinha a mão pressionada contra a sua barriga. Minnie
inspirou fundo.
? Nem acredito que me atirou cola ? resmungou. ? Deve ter sido a
coisa mais tola...
? É claro que foi tolo. ? Olhou para a ponta molhada do cachecol,
depois encolheu os ombros e atirou-o sobre o ombro. ? As coisas
são assim. ? Levantou-se enquanto falava,
deixando Minnie a olhar para baixo, diretamente para os botões
do colete.
? As coisas são assim? ? repetiu ela, num tom dúbio. ? Vossa
Alteza está a dizer que é tolo?
? Em determinadas circunstâncias. ? O tom da voz baixou para
um murmúrio leve e o duque chegou-se à frente, ficando quase a
murmurar ao ouvido dela. ? Bem vê, é que há uma
133
certa mulher...
Não ia olhar para ele. Não ia.
? Normalmente talvez se dissesse que seria uma mulher bela...
mas não creio que se qualifique como uma beleza clássica. Não
obstante, quando ela está por perto, não quero
olhar para mais ninguém.
O duque encostou dois dedos à face dela e Minnie inspirou
fundo. Não ia olhar para ele. O anelo nos seus olhos estaria
visível, e depois...
? Há qualquer coisa nela que me atrai. Algo que desafia as
palavras. Talvez seja o cabelo, mas tentei dizer-lhe isso, e ela
respondeu que eu estava a ser ridículo. Se calhar
era verdade. Talvez sejam os lábios. Talvez sejam os olhos,
embora ela raramente olhe para mim.
Os dedos na face desceram até ao queixo. Minnie sentia-se
imobilizada.
? Ela é inteligente ? murmurou o duque. ? Sempre que a vejo,
descubro que subestimei as capacidades dela. Ela deixa-me sem
fôlego.
Eram só palavras ? as palavras que qualquer homem diria para
dar a volta à cabeça de uma mulher. Apenas palavras. Não
significavam nada.
Mas não eram só palavras. Nunca ninguém lhas dissera; nem
sabia que queria que alguém as dissesse até as ter ouvido da boca
dele. Agora pareciam uma faca alojada entre as
costelas. Ansiava que fossem verdadeiras ? queria-o a tal ponto
que cada fôlego era um sofrimento.
? O que está a tentar dizer-me? ? perguntou Minnie para os
botões do colete. A voz não lhe tremeu, não fraquejou. ? Que foi
sobrepujado? Já tínhamos chegado a essa conclusão.
? É claro que fui sobrepujado. ? Afagava-lhe ao de leve a face. ?
O macho da espécie humana tem um defeito fundamental.
Quando mais precisamos de dizer algo inteligente e
impressionante, o sangue foge-nos do cérebro.
? Deveras?

134
? É um facto psicológico ? asseverou Sua Alteza. ? A excitação
deixa-me tolo. Faz-me dizer coisas parvas, como "Gosto dos seus
peitos" e "Socorro, temos uma emergência de
cola". Faz-me querer estar perto de si, mesmo sabendo que fui
sobrepujado, mesmo sabendo que vou perder. ? Baixou o tom de
voz. ? Bem vê, quero observá-la a fazê-lo.
Minnie engoliu em seco. E, durante esse instante, acreditou nele.
Que ela iria ganhar, que conquistaria um futuro tão brilhante que
a cegava só de pensar nele.
? Mesmo sabendo que vou dizer coisas tolas ? disse o duque. ? E,
pelos vistos, atirar-lhe cola. ? Seguiu-se uma pausa. ? Peço
desculpa por isso ? acabou por dizer. ? Céus,
mas que parvoíce.
? Pensei que houvesse... coisas... que o macho da espécie humana
pode fazer quanto a essas limitações fisiológicas.
O duque continuava a tocá-la, os dois dedos pressionados ao de
leve contra o queixo. Minnie não conseguia obrigar-se a olhar
para ele enquanto falava. Sentia o rosto a aquecer
só de pensar no que isso implicaria.
? Aqui não ? respondeu ele, parecendo divertido. ? Não agora. ?
O polegar roçou-lhe o lábio muito ao de leve, qual beijo. ? Não,
consigo ? acrescentou, muito baixinho. ? Infelizmente.
Oh, como ela ardeu com essas palavras. A pele parecia em
chamas. Minnie sentiu-se humedecer por baixo das saias. Mas
esse jorro de líquido só a fez ficar triste.
Ambos haviam percebido bem o insinuado. Minnie era
demasiado distinta para que ele a levasse para a cama de modo
tão banal, mas não tinha posição suficiente para ser sua esposa.
Isso fazia com que não fosse nada para ele, uma inexistência de
saias. Fosse o que fosse que houvesse entre eles, era a um tempo
devastadoramente real e impossivelmente não
existente.
Quando voltou a falar, a voz saiu-lhe roufenha.
? Então fustigue-me ? disse ele. ? Vença. Sobreponha-se, Minnie.
E quando estivermos sozinhos... ? Tocou-lhe ao de leve no
queixo. ? Quando estivermos sozinhos ? murmurou
?, olhe para cima.
135
Podia ter-lhe erguido o queixo, podia tê-la obrigado. Mas o dedo
manteve-se quente e firme no rosto dela. O duque aguardou, e,
finalmente, Minnie não pôde conter-se. Olhou
para cima.
Os olhos dele receberam os dela num cumprimento caloroso.
? Olá, Minnie. ? Não sorriu. Não se baixou para ela. ? Mas
quando murmurou: ? Gostava que me chamasse Robert ? a voz
foi quase uma carícia.
? Robert.
? Agora ? murmurou Robert, num tom solene ?, seria a altura em
que eu diria algo de extrema inteligência. Isso, é claro, se o meu
cérebro não se tivesse transformado em papa.
? Se não é capaz de falar nesta fase, como vai seduzir seja quem
for? ? indagou Minnie.
? Eu... ? Deteve-se, abanou a cabeça e estendeu as mãos, num
gesto frustrado.
É uma tradição da família Lane. Quando encurralares o
adversário, dás-lhe um beijo para mostrar que não há
ressentimentos.
? Estou a ver como é ? disse ela, baixinho.
? Está?
Não estava. Não conseguia ver nada. Não sabia o que fazer em
relação a Stevens, o que fazer quanto ao futuro que parecia estar a
desmoronar-se à frente dos seus olhos. Aquele
era o oposto do momento em que teria beijado uma peça de
xadrez.
No entanto, ao olhar para os olhos dele, ela não via finais; não via
a finalidade do casamento com um homem que não a conhecesse,
não via a certeza sombria de uma prisão futura.
Ela via inícios.
Aquela atração entre eles era absolutamente impossível.
? Estou a ver ? disse Minnie. ? Não seduz mulheres.
Robert esboçou um sorriso.
? Ah. Pois. Em relação a isso...
? São elas que o seduzem a si.

136
E então, antes de pensar nas consequências, antes de visualizar os
talvez e os nunca, esticou-se em bicos de pés. Havia meros
centímetros entre os dois e Minnie cruzou a distância
sem pensar.
Robert suspirou de surpresa. Os lábios quentes tocaram-se e,
depois do primeiro momento de choque, Robert apertou os braços
em volta dela.
? Assim ? murmurou; e então, os lábios deixaram de se limitar a
pressionar os dela, passando a correr-lhe pela boca, incitando ao
aprofundar do beijo.
O beijo dele também não foi um fim, mas algo novo e vibrante,
brilhante com as possibilidades. Os lábios dele encontraram os
dela, capturaram-nos, uma e outra vez. Quando
as línguas se tocaram, as mãos dele seguraram-lhe o rosto,
trazendo-a até ele com tanta veemência que ela receou poder
quebrar-se.
Ele beijou-a e ela pressionou-se contra ele, as mãos contra o
peito, os botões daquele colete a enterrarem-se nela. Os dedos
dela deslizaram por baixo do cachecol, puxando-o
para si.
E depois, ele afastou-se. Minnie abriu os olhos e viu o pátio, a
bomba.
Ele sorriu.
? Creio que é a primeira vez que tenho a sua atenção por inteiro.
? Robert. ? Minnie engoliu em seco, embaraçada.
? Em resposta ao que me disse... Tem razão. Devo-lhe mais do
que um pedido de desculpas. Só posso repetir o que já lhe disse.
Não a vou deixar pior do que a encontrei. Sei
que está preocupada. Sei que por vezes posso ser insensível. Mas
não permaneço insensível, Miss Pursling. Há muito que eu posso
fazer, e não deixarei que ninguém a magoe.
Dou-lhe a minha palavra.
Minnie sabia que não devia acreditar nele. Era impossível que ele
se limitasse a afirmar tal coisa. Já lhe arruinara o íntimo,
deixando-a a pôr em causa a paisagem desolada
que era a vida dela. Levara-a a ter esperança. Sentia-se nas
nuvens, e isso implicava que o chão estava muito lá em baixo.
137
? Não devia acreditar em si. ? Passou com as mãos pelo rosto. ?
Devia entregar já a sua carta a Mr. Charingford.
? Devia tê-lo feito há dois dias.
Minnie sentiu o rosto a ser dominado pelo esboço de um sorriso.
? Eu sei.
Devolveu o pote de cola ao duque. Quando os dedos se tocaram,
o corpo dela vibrou em resposta. E, pela primeira vez, Minnie
percebeu a inteligência que residia no duque. Ela
não o sobrepujara. Robert entregara-lhe a chave para a desgraça
dele... e fizera com que fosse impossível que ela a usasse.
CAPÍTULO 13
Quando, nessa noite, Minnie apagou a vela e se deitou, a emoção
do dia já se desvanecera. Sentia-se como se no rescaldo de um
incêndio florestal, com o terreno em volta enegrecido
e incinerado até onde a vista alcançava. Quase podia cheirar o
fumo, quase sentia as brasas ainda ardentes no seu íntimo, à
espera que se transformassem em cinzas frias.
? Não te apaixones por ele, Minnie ? alertou-se. Mas o quarto
estava escuro e o corpo ainda não aquecera os lençóis.
Se ele fosse menos atraente, menos abastado... e não fosse um
duque. Um ferreiro. Um livreiro. Se fosse outra pessoa com
aquela mente arguta, aqueles olhos penetrantes, aquele
sorriso radioso que parecia brilhar só para ela.
Em vez disso, ele era um dos pares mais elevados do reino. Podia
escolher entre milhares de mulheres. Com efeito, provavelmente
estaria a fazê-lo nesse momento ? era isso
que os duques faziam, não? Os duques tinham amantes que
escolhiam entre louras e morenas, dependendo do capricho do
serão, tomando o que queriam e deixando um punhado de moedas
como recordação. Ser duque implicava ter um harém eterno à
disposição. Bastava estalar os dedos.
Pensar nisso devê-la-ia ter enojado, mas, por algum motivo,
imaginou Robert ? não, tinha de pensar nele como sendo o duque,
não como um nome, não como uma pessoa ? a passar
em revista uma ala de mulheres, apresentadas por uma madame
de rosto escanzelado. Imaginou o olhar dele a assentar numa
rapariga de cabelo castanho-mel e peito maior do que
138
o normal.
? Ela ? apontaria o duque. ? Quero aquela para esta noite.
Quero-a.
Parva, parva, parva, por imaginar que o desejo dele ? qualquer
vestígio que ele tivesse ? duraria o suficiente para que
encontrasse uma substituta. Contorceu-se na cama, mas
não conseguiu esquecer essa ideia.
Podia estar na cama com ela naquele momento. As mãos dele
afagar-lhe-iam os seios, assim. Os lábios dele não lhe
encontrariam a palma da mão, mas sim o pescoço, os lábios.
Não haveria hesitação, ninguém se retrairia. Só haveria o desejo
dele, duro como pedra.
O corpo dele cobriria o dela e ela entregar-se-ia. Abriria as
pernas, envolvendo-o com elas...
Esses pensamentos chegavam para lhe aquecer a cama, mas
assim que as imagens começaram a encher-lhe a mente, viu-se
incapaz de as reprimir. Eram os seus dedos entre as pernas,
a sua mão sobre o mamilo. Mas imaginou-o a querê-la tanto
como ela o desejava a ele, a tomá-la na imaginação como ela
nunca poderia permitir na vida real. A mergulhar dentro
dela, com vigor; ela a estremecer ao chegar ao... E quando atingiu
o êxtase, mordendo o lábio para não gritar, foi o rosto dele que
viu.
Depois disso, a cama ficou demasiado quente, a tal ponto que
afastou o cobertor e deixou que o ar frio a cobrisse, voltando a
endurecer-lhe os mamilos. Mas o frio não lhe
trouxe a clareza de que tanto precisava.
Levantou-se, dirigiu-se à bacia e despejou água do jarro. A água
estava gelada; a toalha com que esfregou a pele era áspera.
Talvez, naquela noite, ele escolhesse uma mulher parecida com
ela. Talvez não tivesse escolhido ninguém; podia ter ficado no
quarto, fazendo a ele o que ela acabara de fazer.
A ideia deixou-a com um anelo profundo.
Se pelo menos...
? Não há "ses" ? admoestou-se. ? Só há realidade.

139
Era essa a verdade que teria de aceitar: Aquilo que acontecera era
o mais próximo que chegaria de vir a fazer amor com o duque de
Clermont. Numa noite poderia pensar nele,
e, se tivesse sorte, ele talvez lhe cedesse um pensamento em
resposta. Sentiu um nó na garganta com o desejo.
Não importava.
Havia muito que aprendera que as suas emoções nunca
importavam. As coisas eram o que eram, independentemente do
que sentisse. E aquela emoção específica... já a afastara o
suficiente do rumo certo.
Não obstante, abriu os cortinados. Numa outra noite talvez
olhasse para baixo ? para a courela das couves, para o meio anel
de saibro esmagado em frente à casa das tias.
Naquela noite, durante o tempo que precisou para que o coração
voltasse ao seu ritmo normal, ela olhou para cima. Olhou para a
Lua em quarto, que brilhava entre as camadas
de nuvens, para as estrelas que cintilavam para todos, nobres e
plebeus. Olhou para cima até que as nuvens cobriram a Lua e
apagaram toda a luz.
Só muito mais tarde nessa noite é que Robert voltou a percorrer
as ruas de Leicester ? agora, com Oliver a seu lado. O nevoeiro
instalara-se, misturando-se com o fumo do carvão
e criando uma papa terrível que se agarrava ao sobretudo.
Algures, o sino de uma igreja à sua direita começou a bater as
nove; a ele juntaram-se os vizinhos à esquerda e depois
os que estavam à frente e atrás ? um coro de sinos que pareciam
ainda mais tétricos quando abafados pela neblina.
? O que foi? ? acabou Oliver finalmente por perguntar. Desde o
repique da meia hora que andavam no escuro sem trocar qualquer
palavra.
Robert cerrou o punho no bolso.
? Estou a tentar fazer o que está certo ? respondeu, por fim.
A cidade estava em silêncio. Era estranho como a sereia da
fábrica ali dividia os dias. Num momento não havia como fugir
ao estrépito das máquinas; de repente ficava silenciosa

140
e parada, como um colosso a derrubar-se. O silêncio que ficava
era curioso, mais sonoro do que a calma do campo. Robert quase
sentia os dentes a estremecer com o som que as
máquinas não faziam.
? Passa-se alguma coisa? ? Oliver relanceou-o.
? Há uma mulher... ? Robert soltou as palavras num grande jorro
de ar, e o irmão riu-se à gargalhada.
? Aleluia, tenho estado à espera que me contes. O Sebastian
referiu-a e ficou chocado quando percebeu que eu não fazia ideia
do que ele estava a falar. Quem é?
Robert contou-lhe. Não tudo ? não podia falar dos panfletos, já
que esse risco era apenas seu. Mas contou-lhe sobre Minnie ?
como ela parecia tão calada até que falara com
ele. Como ela o virara do avesso.
? Beijei-a. Não me consigo esquecer ? afirmou. ? Não posso
voltar a fazê-lo. Sei como se fazem estas coisas e isto não é
correto.
? Não é correto? ? perguntou Oliver gentilmente.
O silêncio pesou entre eles. Raramente falavam acerca das
circunstâncias que os levaram a ser irmãos, mas era algo que se
erguia entre eles. A mãe de Oliver era governanta
quando o duque de Clermont visitara a sua casa. Que alternativa
tinha uma governanta quando um duque a perseguia? Se
aceitasse, ele tomá-la-ia. Se recusasse, ele tomá-la-ia.
? Não sei o que é o correto ? acabou por admitir. ? Sou um duque.
Ela é sobrinha-neta de uma mulher com mera pretensão à baixa-
nobreza. Se eu agir mal, só tu poderás dar-me
um murro.
Oliver abanou a cabeça.
? Não vai chegar a esse ponto.
O último sino fez-se ouvir à distância. Robert ainda lhe sentia o
beijo, ainda sentia o desejo a aquecer-lhe o sangue.
? Talvez chegue. Sabes quem é o meu pai. O tipo de homem que
ele era. ? Baixou o tom de voz. ? E eu quero-a.
E pronto, dissera-o. Ele tinha necessidades. Não queria apenas o
corpo dela. Não havia muita gente que soubesse quem ele era, o
que desejava. E, no entanto, Minnie aceitara-o
141
enquanto pessoa. Não se vergara, nem correra para ele; em vez
disso, dissera-lhe que ela o superava.
Mais do que isso. Ele passara tanto tempo a esconder o que
sentia, o que queria. Tinha de se esforçar no Parlamento para que
se aprovassem leis que minimamente servissem para
concretizar os seus objetivos, sempre a ranger os dentes com o
progresso lento de todo esse processo. A Câmara dos Lordes
debatia o limite correto da posse de propriedade,
e Robert arrepiava-se com o simples conceito de limite de
propriedade. Resmungavam sobre os privilégios dos pares,
enquanto ele queria eliminar todos os privilégios. Claro
que afirmar algo radical a esse ponto iria afastá-los a todos. Por
isso mantinha-se calado. Debatia pormenores. Votava a favor de
leis que tornavam a vida um tudo-nada mais
suportável, quando o que queria era gritar com todos os que o
rodeavam.
Mas Minnie... Ela era uma mulher que sabia o que significava
ocultar o que sentia. E ele queria-a tanto, tanto.
Oliver encolheu os ombros.
? Nesse caso, porque confias em mim? Tenho tanto de Clermont
em mim como tu.
? Mas tu... ? Robert parou e virou-se para o irmão. ? É diferente.
? O sangue é o mesmo. ? O irmão tirou os óculos. ? Os mesmos
olhos. O mesmo nariz.
? Mas tu... o teu... ? Procurou uma explicação. ? Consigo ser um
sacana de primeira. Tu, mais do que ninguém, devias saber isso.
E, no entanto, nunca vou perceber porque me
deste uma oportunidade.
? É simples. ? Oliver encolheu os ombros e fitou o passeio. ? Se
não saísses ao duque, eu também não precisava de sair. ? Robert
parou. ? Também não sou flor que se cheire.
Consigo ser um grande sacana. Tenho o pior feitio da minha
família. Quando era pequeno, assustava-me com o meu feitio. Sei
que assustava a minha mãe. ? Oliver abanou a cabeça.
? Não sou a tua consciência, Robert. Não sou eu que te vou
mostrar o que é correto. O sofrimento da minha mãe não diluiu
por completo o sangue dos Clermont.
142
? Não é por isso que to pergunto. ? O nevoeiro parecia engolir-lhe
as palavras. ? Pergunto-to porque...
Quando estavam em Eton, Oliver passara horas a criar caixas
com folhas de papel ou a esculpir em madeira um pequeno
rebanho de ovelhas, incluindo pastora, para as irmãs. A
mãe recebera desenhos das construções. Quanto ao pai... nunca
nada era suficientemente bom para o pai. Certo ano, ele decidira-
se a oferecer botões de punho ao pai. Assim,
Oliver passara os meses antes de novembro, pois o aniversário de
Mr. Marshall era em novembro, a trabalhar, a entalhar coisas para
os outros rapazes por um penny, para ter
dinheiro para uma prenda.
Robert sempre o observara com assombro.
? Estás a perguntar-me porque... ? incitou o irmão.
? Porque não tenho mais ninguém a quem perguntar ? disse
Robert.
Robert sempre desejara uma família própria ? primeiro
imaginando que o pai era mais carinhoso do que na realidade e
depois esperando que a mãe o amasse. Quando se apercebera
da futilidade dos seus sonhos, os desejos haviam sido dirigidos
para fora. Começara de forma tão discreta que não tinha como
identificar o momento exato.
Sonhava que acompanhava Oliver a casa durante as férias de
verão. Imaginara que passavam dias inteiros juntos, a falar, a
jogar, a brigar, a pescar, a fazer tudo o que os
irmãos talvez fizessem juntos.
Mas embora isso não tivesse acontecido ? o pai, e depois o
guardião, não permitiam que passasse as férias com meros
comerciantes ?, ele fora mais longe. Não era só um irmão
que desejava; queria uma família inteira.
E Oliver tinha uma pronta.
Nos seus sonhos, os pais de Oliver viriam a conhecê-lo. Mr.
Marshall daria conselhos sábios a Robert e ocasionais palmadas
nas costas, enquanto Mrs. Marshall lhe daria fatias
de bolo, ou lá o que as mães faziam. Esses pormenores haviam
sido sempre muito vagos, mas não importava. Nas suas fantasias,
imaginava-se a tornar-se um amigo querido, quase
143
um filho para aquelas pessoas que amavam Oliver sem reservas.
Aos dezasseis anos inventara um mundo onírico complexo ? um
mundo onde se apaixonaria pela irmã mais velha de Oliver (sem
qualquer parentesco; fizera questão de se convencer
quanto a isso) e, que se danassem as diferenças de estatuto,
casaria com ela.
Claro que nunca chegara a conhecer a irmã mais velha de Oliver.
Também não conhecera Mr. e Mrs. Marshall. Mas a realidade não
influenciava a substância dos sonhos. Sempre
que Oliver recebia uma carta de casa ? ou quando enviava nova
criação para uma irmã mais nova ?, Robert apaixonava-se um
pouco mais por eles. Não importava quem eram, nem
como eram. Se lhe retribuíssem o amor, finalmente teria um lugar
só seu.
? Ah ? disse Oliver, dando-lhe um murro no ombro. Uma
verdadeira pancadinha de amor. ? Pois bem, eu acho que não tens
nada do teu pai em ti.
Robert encolheu os ombros.
? Se o dizes.
Mas ele sabia que não era assim ? e isso fora-lhe mostrado pela
família de Oliver.
Acontecera da seguinte forma. No dia em que os pais de Oliver
finalmente o iriam visitar, Robert vestira-se com um cuidado
redobrado. Escovara o cabelo e os dentes por duas
vezes, e arranjara o plastrão três vezes, tentando parecer sério e
respeitável. Deu consigo a andar de um lado para o outro com
uma energia desesperada e imparável, enquanto
Oliver o relanceava com curiosidade.
Sabia que os seus sonhos eram apenas isso. Eram tão tolos que
nunca os referira ao irmão. Mas mesmo que tudo aquilo fosse um
disparate, mesmo que nunca o amassem... talvez
pudessem gostar um pouco dele. Não era?
A porta abriu-se. Robert virou-se.
Mr. e Mrs. Marshall seriam, porventura, a mais bela visão que ele
alguma vez tivera. Tão normais. Tinham avançado, de braços
estendidos, e abraçado Oliver. Que reclamara e

144
resmungara, o ingrato, com expressões como "Para, mãe, o meu
cabelo não", e "Não me beijes à frente dos rapazes!" Tal
demonstração, e só porque não o viam há um par de meses.
Robert, com um nó na garganta, observara do outro lado da sala.
E, então, chegara o momento. Depois dos cumprimentos
afetuosos, Oliver virara-se.
? Mãe ? dissera ?, pai, este é...
Mas Mrs. Marshall olhara, tal como o filho. O olhar pousou em
Robert. E ficou imóvel ? de tal modo que foi como se a sala se
tivesse imobilizado com ela. Arregalou os olhos
e ficou exangue. Fitou-o.
Depois, sem dizer nada, sem sequer levantar uma mão à laia de
cumprimento, endireitou-se, virou-se e saiu da sala.
Os pulmões de Robert pareceram encher-se de cacos de vidro.
Cada fôlego doía. Deu um mero passo hesitante atrás dela, mas
Mr. Marshall interveio.
? Deve ser o duque de Clermont ? dissera Mr. Marshall, pondo-se
no caminho de Robert.
Pretendia dizer Tratem-me por Robert depois das apresentações.
Mas essas palavras ? esse pedido de intimidade ? deixá-lo-iam
com um aspeto ainda mais desesperado. Conseguiu
assentir com um gesto firme da cabeça.
A voz de Mr. Marshall era baixa, mas isso não suavizou a dureza
do golpe.
? É muito parecido com o seu pai. Muito parecido. ? Fez uma
pausa. ? Tão parecido, que julgo que a minha esposa o tenha visto
em si.
Robert assentira através de uma névoa de dor.
? Talvez ? aventara gentilmente Mr. Marshall ? não seja a melhor
altura para apresentações.
? Sim, senhor ? respondera Robert.
E compreendera que nunca haveria lugar para apresentações. Não
haveria verões tranquilos em família, nada de conversas de
homem para homem, nada de fatias de bolo num prato.
Não importava o que fizesse. Era parecido com o pai; o seu pai
impusera-se a Mrs. Marshall.

145
De certa forma, aquilo em que se transformara derivara daquele
momento ? o desespero para provar que era mais do que o rosto.
Era uma tolice dizer que ficara de coração partido por causa de
pessoas que nunca vira. Era ainda mais idiota saber que era
verdade. No entanto, durante os meses que se seguiram,
sempre que pensava naquele momento sentia uma pontada de
perda. Como se fosse a família dele, e os tivesse perdido em
circunstâncias trágicas.
Lamentara mais a perda desses sonhos do que a morte da sua ama
de infância.
? Não tenho de ser a tua consciência ? disse Oliver,
interrompendo-lhe as recordações. O irmão chegara-se
ligeiramente a ele enquanto andavam, o suficiente para transmitir
afeto. ? Tens a tua própria consciência. E mesmo que tu não
confies em ti próprio, eu confio.
Não tinha grande coisa, mas agarrar-se-ia ao pouco que tinha. E
nunca o largaria.
Deu uma cotovelada bem-disposta ao irmão, mas sentia um nó na
garganta.
? Sempre soube que eras crédulo ? comentou. ? Que sorte a
minha.
CAPÍTULO 14
Minnie não viu o duque nos dias que se seguiram.
Contudo, era impossível não pensar nele. Examinou o papel com
uma lente de joalheiro emprestada, analisou a tinta usada nos
panfletos, catalogou as peculiaridades do tipo
usado para o criar. Havia um e minúsculo com uma racha
diminuta na perna inferior; já a vira em quatro panfletos
diferentes. Um b ligeiramente deformado.
As provas que havia encontrado iam ganhando força.
Mas tudo isso eram pormenores. Agora que tinha a carta dele, o
resto tornara-se supérfluo.
Ainda mais importante, quando se imaginava nas ruas de
Leicester, já não se via a recolher amostras de papel, mas sim a
passear de braço dado com o duque de Clermont.
Tola. Era tão tola.

146
Era algo que se chamava habitualmente, mas, mesmo assim, não
conseguia deixar de pensar nele. Recordava a sensação dos lábios
dele, a expressão nos olhos. Recordava as mãos
dele, quentes no seu corpo. Recordava tudo o que ele lhe dissera
e não se sentia tola.
Certa tarde viu-se ao espelho.
? Tu ? disse ao reflexo ? és uma idiota.
Os olhos cinzentos fitaram-na com gravidade.
Ele enviara-lhe uma mensagem. Nesse serão, o primo ia fazer
uma apresentação na Sociedade Mecânica de Leicester, e ele
convidava-a a assistir.
Minnie suspeitou que não deveria ir. A estupidez daquilo que ela
queria estava patente até mesmo no seu espelho. Usava um
vestido azul-claro muito simples, uma roupa que ele
já vira por duas vezes. Era severo e de gola alta, as mangas
compridas sem adornos. A saia mal tinha rodado, e não
apresentava folhos nem laços. O tecido era caro e as fitas
ainda mais. Aquele tipo de roupa era uma questão de lógica
quando se tinha pouco dinheiro extra. Assim vestida, ninguém
olharia para ela. E não queria que as pessoas olhassem
para ela.
Mas queria fazê-lo sorrir.
? Ó, Minnie! ? exclamou, exasperada. ? A sério. Ele? Não podias
ter missão mais impossível.
Ele era um duque. Ela era...
? Olha para ti, palerma! ? exclamou.
E obrigou-se a olhar ao espelho. Não para se concentrar nas
partes agradáveis ? a curva do peito ou a cintura ?, mas para fitar
quem era, de verdade. Para ver a cicatriz na
face. Aquilo não era apenas superficial. Estava-lhe gravado na
alma. Wilhelmina Pursling era seca, severa, calada, apagada.
? Miss Pursling ? declarou Minnie lentamente ? não é ninguém.
Por escolha.
Mas eram os olhos dela que a fitavam. E não importava o que
dizia para consigo, por mais que se chamasse de tola, aquele
desejo incontrolável fervia dentro de si.
? Tu ? repetiu, apontando o dedo ao espelho ?, és uma tola.
147
Não obstante, se ia ser idiota, mais valia fazê-lo em grande estilo.
Desceu então as escadas e dirigiu-se aos campos em pousio.
Percorreu uma colina atrás da outra, procurando
nas encostas sul, abrigadas, até encontrar o que buscava ? uma
faixa de amores-perfeitos amarelos tardios, escondidos entre os
caules do milho.
E colheu-os todos.
*
Se havia estrelas a brilhar atrás do espesso manto de nevoeiro e
fumo, Robert não as via. Saiu da carruagem e depois virou-se
para ajudar Violet a descer. Os candeeiros lançavam
uma luz baça e pesada, o suficiente para mostrar a mole de
pessoas que aguardava à entrada do New Hall. Na noite, todas as
roupas pareciam pretas, o que criava um efeito quase
funéreo. E assim seria, caso não estivessem a entoar cânticos.
? Ah, que bom ? disse Sebastian ao lado dele. ? Temos uma
multidão.
? Uma turba ? corrigiu Robert.
Sebastian limitou-se a esfregar alegremente as mãos.
? Regra geral é a mesma coisa, quando falo. Aquilo são cabras?
Eram cabras. Na praça à frente do edifício, alguém montara dois
cercados temporários. Ambos tinham cartazes atados, mas, no
escuro, não os conseguia ler. Um dos currais estava
cheio de cabras ? quase uma dúzia, que andavam às voltas, a
balir.
O outro cercado, curiosamente, estava cheio de crianças. Crianças
pequenas, em maior número do que as cabras. Robert franziu o
cenho ao aproximar-se. A criança mais alta mal
lhe chegaria à cintura; a mais pequena ainda mal andava,
tropeçando atrás das outras na sua determinação férrea. Nenhum
dos gritos vinha dos miúdos; os berros provinham todos
dos adultos que ali se encontravam.
Ao chegar junto aos cercados, Robert conseguiu finalmente ler os
cartazes.
ISTO SÃO ANIMAIS, declarava o cartaz que adornava o
cercado das cabras. O cartaz sobre o curral das crianças dizia:
ISTO NÃO SÃO.
148
Robert olhou para Sebastian. O primo continuava a sorrir ? ele
sempre gostara de deixar as mais variadas situações em
ebulição ?, mas o sorriso era tenso. Sebastian deu alguns
passos em frente até encarar as crianças.
Os miúdos estavam bastante mais agitados do que as cabras. Um
dos meninos tinha as mãos no painel central da vedação. Usava
apenas um casaco e luvas finos. Se tivesse chapéu,
ter-lhe-ia caído. Os olhos pareciam luminosos no frio da noite; o
fôlego saía em baforadas de ar gelado.
Sebastian curvou-se e os berros intensificaram-se.
? Não somos animais! ? dizia uma mulher. ? Não somos animais!
Não estavam a gritar para Sebastian; ninguém o reconheceu. Para
eles, era apenas mais um cavalheiro a apreciar o espetáculo. Mais
um motivo para ouvirem a própria voz. Lentamente,
Sebastian tirou o cachecol e pô-lo à volta do pescoço do menino.
O acrescento da peça enorme só o fez parecer ainda mais
diminuto. Sebastian aquiesceu sem palavras e virou-se.
? O que é que pensa que está a fazer? ? guinchou uma mulher ali
perto. ? Aquele é o meu filho. Não precisamos da vossa caridade.
Sebastian continuou a andar.
? Se forem ouvir aquele louco ? gritou a mulher para as costas
que se afastavam ?, vão perder a vossa alma imortal. Não
queremos palavras do diabo.
Sebastian não olhou para trás; a mulher ficou a vê-lo afastar-se e
levou as mãos às ancas. Franziu os lábios; bateu os dedos,
impaciente. Finalmente, dirigiu-se ao filho.
? E o que é que estás tu a fazer aí sentado como uma saca de
carvão? ? Pegou na ponta do cachecol de Sebastian e deu-lhe um
puxão. ? Disse-te para cantar. Quero-te ouvir a
cantar. Vá lá: "Não sou..."
Calou-se a meio da frase, ainda sem ter retirado o cachecol do
pescoço da criança, quando Robert surgiu ao lado dela. Olhou-lhe
para as botas, depois subiu pelas calças, pelo
colete e deteve-se no rosto.
? Minha senhora ? disse Robert ?, por acaso sabe a temperatura
que está esta noite?
A mulher pareceu sobressaltada.
149
? Pois, não. Mas acho que está um termómetro na...
? Estão dois graus na rua. Está um gelo e é possível que arrefeça
ainda mais.
A mulher lançou-lhe um olhar carrancudo.
? Se já sabia, porque é que perguntou?
Robert voltou a olhar para o menino à frente dele. O nariz do
pequeno estava vermelho e pingava.
? Não tem o direito de dar sermões a ninguém quanto ao cuidado
dos animais ? admoestou-a Robert. ? Muito menos o meu primo.
A mulher franziu o cenho, confusa, e ele foi-se embora, de
punhos cerrados. Atrás dele, os cânticos prosseguiam. Não somos
animais. Não somos animais.
Sebastian era um provocador, capaz de levar as pessoas para lá da
irritação. No entanto, nunca seria cruel e insensível como aquela
mulher estava a ser com o próprio frio.
Incomodava Robert que o primo fosse acusado e ameaçado de
perder a alma, quando não era ele a tratar crianças como se
fossem gado para ganhar alguns pontos.
Sentiu-se agradecido por deixar a multidão pelas costas. O
interior estava mais quente e seco. Quando as portas se fecharam,
cortaram o grosso do barulho do exterior. Encontrou
Miss Pursling numa das últimas filas, sentada junto à coxia ao
lado da amiga. Agarrava com força a borda do assento. Robert
fez uma pausa junto dela.
? Miss Pursling ? disse. ? Se quiser juntar-se a nós com Miss
Charingford, temos lugares lá à frente.
? Não, obrigada. ? A voz soava-lhe fria. ? Eu... eu não gosto de
multidões. Se soubesse que ia ser assim tão mau, não teria vindo.
Se houvesse maneira de sair daqui...
Pressionou os lábios. Era difícil avaliar o tom da pele com a luz
débil do fundo da sala, mas pareceu-lhe um pouco pálida.
? Sente-se bem? ? perguntou Robert.
? Não é nada. ? Engoliu em seco. ? Não é nada. Não é nada. Não
sou nada.
? Perdão?
Minnie levantou o olhar, após o que o desviou apressadamente.

150
? Não é nada ? repetiu. ? Se não se importa, pare de olhar para
mim.
Sentou-se na fila atrás dela.
? Pronto. Já não estou a olhar. Tem flores no vestido. ? E
verdadeiras. Florzinhas amarelas a debruar-lhe a bainha e os
punhos.
? Tendo em conta o trabalho de Mr. Malheur, pareceu-me
adequado. Ele discute plantas, não é verdade?
? Em parte, sim. Mas julgo que começou com bocas-de-lobo, não
com... são o quê? Amores-perfeitos. Uma oportunidade perdida
da sua parte. ? Relanceou-a e avistou-lhe o esboço
de um sorriso. ? São lindos.
? Ah. ? Minnie olhou em frente.
? Pronto ? concluiu ele, satisfeito. ? Agora já está a respirar
normalmente. Estava a precisar de uma distração.
Fez menção de se levantar.
? Vossa Alteza.
? Sim?
? Obrigada. ? Continuava a olhar em frente, embora já não
estivesse agarrada ao banco, como se fosse a única coisa que a
mantinha ereta. ? Saiba Vossa Alteza que não pus as
flores em honra de Mr. Malheur.
Robert sorriu.
? Eu sei. Sei precisamente para quem as pôs.
? S-sabe?
? Pô-las porque sabia que essa cor suavizaria os ângulos do seu
vestido. Esse toque na gola faz com que os seus olhos pareçam
nuvens de trovoada. É um efeito lindo, Minnie.
Sei para quem as pôs.
Minnie ficou hirta.
? São para si ? concluiu ele. ? E fez muito bem.
Minnie soltou o fôlego.
? O senhor é um homem perigoso.
Robert levantou-se.
? O salão está quase cheio. É pena que queira aqui ficar. Tenho
de ir para a frente ao encontro do meu primo. Vejo-a depois da
apresentação?
151
? Eu... a multidão... ? Olhou em volta. ? Devo sair antes, Vossa
Alteza. Para não ser apanhada na enchente. ? Falou sempre de
olhos no regaço, mas o rosto voltara a empalidecer.
? Não está bem.
? Não é nada.
Desta vez falou com mais dureza, e o cavalheiro lá à frente
levantara-se e parecia à beira de apresentar Sebastian. Robert não
teve outra hipótese que não deixá-la. Quando
chegou ao seu lugar, o homem resumia o historial de Sebastian.
? ... Depois de um início distinto em Cambridge ? dizia o
homem ?, Mr. Sebastian Malheur destacou-se...
Um início distinto? Pois sim. Ele mal conseguira passar a
primeira parte dos exames. Estivera sempre à beira da expulsão
devido às partidas que pregava. Ninguém ficara mais
chocado com o êxito repentino de Sebastian do que a velha
guarda que o havia examinado.
Em certos aspetos, o posterior êxito de Sebastian ? tanto a
natureza como o modo como o alcançara ? fora a maior partida
de todas. E Sebastian tinha perfeita noção disso.
Subiu ao palco com o que parecia pedantismo no andar e um
sorriso afetado.
? Obrigado, obrigado a todos ? agradeceu ? pela vossa receção
calorosa. ? A expressão nos lábios era a única coisa que denotava
que metade dessa comissão de boas-vindas estava
ali para o insultar. ? Vim falar-vos acerca da ciência das
características herdadas, tema que mereceu anos de estudo da
minha parte. Ao longo dos meus estudos, cheguei a várias
conclusões. Uma delas é que as características, como a cor dos
olhos, a altura, o número de pétalas numa flor ou a forma de um
rabanete, são herdadas dos progenitores segundo
regras rígidas e invioláveis. Em segundo lugar, que as regras da
herança parecem ser constantes entre os animais e as plantas,
entre os legumes e as árvores, entre os gatos,
as ovelhas e as cabras, e, é claro, até no animal humano.
Ah, como se divertia. Os olhos brilhavam enquanto falava, e o
sorriso alargou-se com o arquejo que percorreu o salão.

152
? Em terceiro lugar, explicarei como as regras da herança andam
de mãos dadas com as descobertas de Mr. Darwin sobre a origem
das espécies. Sei que muitos de vós aguardam
especificamente por esta parte, pelo que irei explicar a ligação e a
forma como cheguei às minhas conclusões, usando...
? Usando as ferramentas do demo! ? gritou alguém ao fundo.
Sebastian fez a mais breve das pausas.
? Usando factos, lógica e experiências reproduzíveis ? continuou
calmamente. ? Tudo isso poderá parecer-lhes enfadonho, mas,
regra geral, os meus colegas abstêm-se de aceitar
provas com influências demoníacas. ? Mais um esboço de
sorriso, e depois abriu os braços, dirigindo-se para um cavalete
que montara à frente.
? Irei começar com a cor da boca-de-lobo.
Pousou a mão no tecido que cobria o cavalete. No entanto, nesse
momento, a porta dos fundos do salão escancarou-se. As cabeças
viraram-se. Por um instante, só se viu escuridão.
Depois:
? Vá lá! ? gritou alguém, e as cabras que se encontravam na praça
entraram no salão. Olhavam em volta, levemente intrigadas.
? Já que acha que não há diferença entre humanos e animais ?
gritou alguém ?, tome lá uns quantos para o público!
Ouviram-se gargalhadas abafadas.
Ovelhas teriam sido uma melhor opção, pensou Robert
indolentemente. As ovelhas eram coisinhas assustadiças que
fugiam com o agitar de um pano. Estariam em pânico num abrir
e fechar de olhos. As cabras, por outro lado... As cabras viam um
ajuntamento como aquele como sendo uma oportunidade.
Percorreram o corredor.
? Dou as boas-vindas a todas as criaturas com inteligência
suficiente para compreender ? declarou Sebastian. ? Nada tema,
bom homem. De certeza que, quando acabar, os seus
animais poderão explicar-lhe os princípios com termos muito
simples, palavras pequenas que até o senhor irá perceber.
Mais uma onda de gargalhadas.

153
A cabra líder deu mais um passo em frente. Depois parou. Virou
a cabeça, como em contemplação... e mordeu as flores na bainha
de Minnie.
Robert soergueu-se do seu lugar e estendeu a mão, mesmo
estando a metros de distância. Minnie empurrou a cabeça da
cabra. Robert viu-lhe os lábios a mexer, viu-a a bater no
cachaço do animal, mas não conseguiu ouvir o que era dito.
? Então ? gritou o tratador atrás dela. ? Não toque no animal!
Ouviu o homem... ela é um de nós. Se volta a tocar-lhe, acuso-a
de agressão. ? Soltou mais uma gargalhada sonora.
Outra cabra acercou-se, estendendo discretamente o pescoço.
Miss Pursling pegou na sombrinha de uma mulher junto dela e
usou-a como bastão.
? Agressão! Que violência!
Mais gargalhadas. Outra pancada com a sombrinha; e mais uma
cabra a juntar-se à manada. Esta última mordeu-lhe a bainha do
vestido. O tecido azul rasgou-se, deixando entrever
a combinação creme.
Foi então que Robert percebeu o que se passava de errado.
Ninguém fizera o mais pequeno esforço para a ajudar. Rodearam-
na, observando, rindo-se. Robert deu consigo a levantar-se
e a descer o corredor em direção a ela.
? Animal ou humano? ? gritava o cabreiro. ? Ah, estão a ver...
sempre sabemos ver a diferença!
As pessoas à volta dela riam-se do tolo ? retraindo-se, enquanto
Miss Pursling tentava rechaçar o ataque sozinha. Robert abriu
caminho por entre a multidão, chegando junto
do homem.
? Acha que isto é agressão? ? perguntou, com maus modos.
O homem não se virou para ver quem estava a falar.
? O quê?
Robert agarrou-lhe um ombro e obrigou-o a virar-se.
? Isto! ? exclamou. ? Agressão é isto.
E com essas palavras, esmurrou o homem em cheio no queixo.
Os olhos do indivíduo arregalaram-se. Pareceu vacilar por um
instante. Depois os olhos reviraram-se e ele tombou.
Robert virou-lhe costas.
154
? Que vergonha ? bradou para a multidão ali reunida. ? Mas que
vergonha. Afastem as cabras desta mulher. Já.
Minnie olhou para cima. Estivera tão ocupada a tentar defender-
se das cabras que nem reparara na multidão que a rodeara. No
entanto, em vez de parecer aliviada com os homens
que investiram contra as cabras, a cabeça de Minnie virava-se
atrapalhadamente de um lado para o outro. Ficou completamente
exangue. Robert viu-lhe os olhos a revirarem-se-lhe
na cabeça.
Se, até àquela noite, alguém lhe perguntasse, ele apostaria que
Minnie tinha nervos de aço. Começou a avançar entre o público,
mas já era tarde.
Minnie colapsou antes que ele lhe chegasse.
CAPÍTULO 15
O mundo era feito de vinagre e as narinas de Minnie estavam em
chamas. Tossiu e apercebeu-se de que jazia numa superfície
desconfortável ? dura, irregular e quente, tudo ao
mesmo tempo.
Abriu os olhos.
Lydia fitava-a, agitando-lhe um frasco de sais de cheiro por baixo
do nariz. Minnie tossiu profundamente e afastou os sais.
? Pronto ? disse a melhor amiga alegremente. ? Isto resolveu o
problema. Tens uma dor de cabeça terrível?
Recordou-se de tudo. As flores. As cabras. A multidão.
? Ai, meu Deus ? gemeu. ? Lydia, por favor, diz-me que não
desmaiei à frente de toda a gente.
? Desmaiaste.
Só queria voltar a fechar os olhos. Robert estivera lá. O que
pensaria dela?
? As cabras comeram-me o vestido todo?
? As partes boas, não ? respondeu outra voz, diretamente acima
dela.
Foi então que Minnie se apercebeu de que a cabeça não estava
assente numa almofada. Aqueles altos desconfortáveis eram
coxas; tinha a cabeça aninhada no colo do duque de Clermont.

155
Sentou-se de repente, ignorando o latejar atrás das pálpebras, e
afastou-se dele. Fora deitada num banco de madeira dura. Havia
uma secretária lá à frente e algumas cadeiras
chegadas para o lado. Imaginou que estivesse numa das salas de
reuniões do piso superior.
Com o duque de Clermont.
? Lydia ? gemeu ela ?, como foste capaz?
Mas Lydia não respondeu de imediato. Olhou para o duque,
corou, e desviou o olhar.
? Alguém tinha de a trazer ? acabou ele por explicar ?, e fui o
primeiro a oferecer-me.
Sentiu-se enjoada só de pensar nisso. Todos a teriam fitado
quando desmaiou. Mas ter o duque de Clermont a intervir ? isso
faria com que todos prestassem atenção. Sem dúvida,
os boatos já teriam começado.
? Agora ? disse Lydia, pronunciando cada palavra com todo o
cuidado ? vou buscar um copo de água...
? Não te atrevas a deixar-me sozinha com...
Mas Lydia já estava a sair.
? Lydia!
A porta fechou-se.
Minnie pôs-se de pé de um salto, só pensando em distanciar-se.
Se ele não lhe tocasse...
Ele levantou-se também; quando ela cambaleou, Robert agarrou-
lhe o braço.
? Sente-se, Minnie.
? As pessoas vão pensar que estamos aqui juntos! ? exclamou,
frenética. ? Vão vê-la. Vão pensar que estamos sozinhos. Toda a
gente vai pensar...
? Toda a gente ? atalhou Robert ? já está a pensar. A sua amiga
deixou-me sozinho consigo porque sabia o que lhe ia dizer. Por
favor, sente-se e escute.
Minnie fitou-lhe os olhos. Ele tinha um aspeto ameaçador, e a
cabeça continuava a girar-lhe. Voltou a sentar-se.
? Quando as cabras a cercaram ? explicou Robert ?, esmurrei o
homem que as conduzia. À frente de toda a gente. E depois,
quando desmaiou, levantei-a do chão e retirei-a da
156
sala. Sejam quais forem os boatos que possa querer obstar saindo
daqui agora... acredite, eles já estão a correr.
Por Deus. Acontecera. Acontecera mesmo. Sentiu-se zonza.
Estava desgraçada; Stevens ia regressar com as provas e nada
mais importaria. Minnie respirou fundo.
? Sinto muito ? lamentou-se Robert. ? Não pensei. Eu disse-lhe
que sou capaz de ser estúpido. Quando a vi, a última coisa que
me passou pela cabeça foi pensar. Só quis estar
a seu lado.
Minnie abanou a cabeça, o que a deixou ainda mais tonta.
? A culpa também é minha. ? A ser um desastre, ela também o
provocara. Sabia da atração entre ambos. Ele só faltara dizer-lhe
que seria impossível terem uma relação. E ela,
mesmo assim, beijara-o; beijara-o e quisera que ele olhasse para
ela. Era o resultado de se expor. ? Eu trato disto, seja como for.
Teria de haver uma explicação que pudesse dar, alguma maneira
de as coisas correrem bem. Talvez se mais alguém desmaiasse e
ele também a levantasse? Nesse caso poderia ser
simples cavalheirismo de parte dele.
Mas isso não lhe parecia bem. Demasiado forçado. Artificial.
Perturbada, Minnie esfregou a testa.
Robert sentou-se ao lado dela e pegou-lhe na mão.
? Minnie ? disse gentilmente. ? Lembra-se de quando foi a minha
casa e me ameaçou?
? Como poderia esquecer-me? ? Franziu o cenho. ? Talvez
pudesse usar isso. Expô-lo e explicar que estava a querer manter-
me em silêncio. Continua sem me parecer bem. Não me
parece que vá resultar.
? Na altura disse-lhe que se acontecesse alguma coisa, iria
certificar-me de que tinha uma proposta de casamento. Creio que
as minhas palavras exatas foram que teria a minha
palavra, nem que fosse eu a fazê-la.
Os planos dela estacaram. Minnie fitou-lhe os olhos. Seria uma
piada maliciosa, e ele ainda não fora cruel. Não obstante, era
mais fácil imaginá-lo frio e insensível.
? Não estava a falar a sério ? disse ela. ? Disse-o à laia de piada.
Robert encolheu os ombros.
157
? Disse-o por estupidez, não como piada. Digo muitas coisas
parvas quando a tenho por perto. ? Passou a mão pelo cabelo e
suspirou. ? Mas por mais tolo que tenha sido, não
deixa de ser verdade. Fui sincero, Minnie. Gostava que se casasse
comigo. ? Olhou-a. ? Mesmo sem que isto tivesse acontecido, ia
perguntar-lhe. Há dias que não penso em mais
nada. Case-se comigo.
Minnie não compreendia aquilo. Levantou-se e acercou-se da
janela estreita. Dali podia ver a praça lá fora. O que restara da
multidão dispersara-se, levando as cabras. Não,
o que ele estava a dizer não parecia possível.
? Vossa Alteza sabe que isso não faz sentido ? disse. ? Isso é a
loucura a falar. Não se pode casar com alguém como eu.
Robert não fingiu não saber aquilo a que ela se referia.
? É o que toda a gente diz. ? Observou-a. ? E admito que nunca
ponderara essa hipótese até a conhecer. Mas quando comecei a
pensar nisso, a Minnie passou a fazer todo o sentido.
Sabe porque ainda não me casei?
? Nem sequer tem trinta anos. Tem a vida à sua frente...
Minnie calou-se, de súbito incomodada. Os olhos dele fixavam-
na com tal intensidade que lhe deixavam o coração aos saltos, de
um modo que nada tinha que ver com a idade. Sentiu
as mãos húmidas.
? Minnie ? continuou ele ?, faz ideia daquilo que pretendo
conseguir? Já deve ter percebido que o meu pai assumiu a posse
de uma fábrica nesta cidade e arruinou-a... que pretendo
compensar o que aconteceu. Tenho um meio-irmão que é mais
importante para mim do que qualquer outra pessoa, alguém que é
menosprezado pelas circunstâncias do seu nascimento.
Não me faço valer dos meus privilégios.
Minnie mal conseguia respirar.
? Mas isso é apenas parte daquilo que pretendo alcançar na minha
vida. Se pudesse levar a minha avante, aboliria por completo o
pariato hereditário.
Minnie arquejou.

158
? Até ao mais ínfimo pormenor ? asseverou Robert, veemente. ?
Os lordes devem ser acusados como os plebeus e ser julgados por
júris. Não devíamos ter o direito de rejeitar
leis propostas pelos Comuns. Na verdade, acho que a Câmara dos
Lordes nem devia existir. Quem me dera ser apenas Mr.
Blaisdell. O meu pai... não faz ideia de como ele era
horrível.
Cerrou os punhos ao lado do corpo; os olhos ardiam com um
fulgor que ela não via desde que ele falara com Finney.
? Poderia pedir desculpa pelos benefícios que herdei dele ?
continuou Robert. ? Mas há muito que aprendi que as desculpas
não alteram nada. Assim sendo, pretendo usá-los...
vou usá-los para me certificar de que mais nenhum lorde poderá
repetir aquilo que o meu pai fez.
Aquilo não podia estar a acontecer. Ele não podia estar a dizer
aquelas coisas.
Mas pensá-lo não servia de nada. Minnie tinha igualmente a
certeza de que estava a observar o verdadeiro íntimo do duque.
? De todos os benefícios de que pretendo abdicar, o primeiro a
desaparecer será a possibilidade de me casar com a filha de um
par. Pense nas implicações se me juntasse a uma
rapariga dessas. O que diria ela quando descobrisse que o meu
objetivo de vida era despojar o pai ou o irmão dos seus
privilégios? Sempre que estavam juntos, os meus pais
passavam a vida a brigar. Recuso-me a ter um casamento desse
género.
Minnie não tinha resposta para isso.
? Em segundo lugar ? prosseguiu o duque ?, nunca esperei amor
num casamento. Na melhor das hipóteses esperava encontrar uma
aliada. Alguém que me apoiasse no que acontecesse.
? Olhou-a. ? É melhor estratega do que eu. Seria uma esposa
terrível para um duque. Agora, para um homem já não quer ser
duque? Não consigo imaginar melhor.
Ela não imaginava ninguém pior. Ele não a conhecia. Não sabia.
? Em terceiro lugar ? concluiu ?, quero-a. Quero-a perdidamente.
Quero-a de tal maneira que quando cai a meio salão de distância,
estou ao seu lado antes que mais alguém se
159
mexa. Quero-a tanto que há noites em que só penso em tê-la.
Minnie sentiu essas palavras, sentiu-as no seu íntimo, sentiu-as
como o ardor do desejo que preenchia cada noite solitária. Nisso,
estavam bem um para o outro. Mas...
? E quanto à fidelidade? ? indagou Minnie. ? Gostaria de saber o
que esperar. Vai ter amantes? Será que eu posso ter amantes?
Robert mirou-a.
? Neste momento, a última coisa em que estou a pensar é em
outras mulheres ? resmungou.
? Responda à pergunta, por favor. ? A voz tremia-lhe.
? É isso que quer? Que possamos ter amantes a nosso bel-prazer?
? Disse que não me ama. ? A voz de Minnie soou curiosamente
calma. ? A ter escolha, gostaria que os meus votos significassem
alguma coisa. Estava mais a pensar nas suas necessidades.
Não quero ser apanhada de surpresa.
Robert suspirou e ofereceu-lhe o esboço de um sorriso.
? Ah.
Minnie acercou-se dele.
? Disse que seríamos aliados, que pensaríamos um no outro.
Imagino o que seja ser um duque. Até agora pôde escolher as
suas mulheres. ? E muitas, sem dúvida. ? Não faça promessas
que mais tarde serão quebradas. Neste momento, prefiro
honestidade crua, em vez de fidelidade e lisonja.
? Honestidade crua?
Minnie assentiu.
? Nesse caso, minha querida, é o que terá. Não sou assim tão
desesperado por relações sexuais como possa imaginar. Não
preciso de arrastar mulheres para a minha cama para
ter a minha libertação regular. Deus deu-me uma mão esquerda
bem forte e há muitas noites em que a prefiro a uma mulher. ?
Não olhava na direção dela. Estaria embaraçado com
a confissão?
Mas as palavras lançaram nova onda de calor através dela ? a
ideia de o ver nu e duro, da mão a envolver o falo. Como seria ao
acariciar-se? Gostaria de movimentos longos
e fortes, ou de gestos mais suaves?

160
? Não posso manchar a reputação da minha mão ? continuou ?,
nem magoá-la, nem deixá-la grávida. Revelou-se, de longe, a
mais segura das opções. Portanto, diga-me a Minnie.
Acha que vai precisar de ter amantes?
? Nunca pensei nisso. ? Era verdade; ela nunca considerara a
hipótese de ser infiel num casamento. Nem mesmo se viesse a
casar-se com um homem que tivesse amantes.
? Porque acredito em deixar tudo bem claro ? declarou. ? Não
quero mal-entendidos entre nós. E, se chegar a esse ponto,
prometo que a deixo ir, se deixar de gostar de mim.
Sem estratagemas para tentar trazê-la de volta. Sem chantagens
monetárias. Nada disso. ? Engoliu em seco. ? Sei bem que as
coisas mudam. Num casamento não há nada pior do
que ter um marido que se serve do seu poder para forçar a esposa.
Não o farei.
? Robert. ? Minnie encarou-o. ? Não há risco de vir a deixar de
gostar de si.
Minnie não teve a certeza de quem se mexeu primeiro. Talvez ela
tenha dado um passo na direção dele. Talvez ele se tenha
inclinado para ela. Talvez tivesse sido mútuo, uma
vibração no ar que os uniu por fim. As mãos dela agarraram-lhe
os ombros; os braços dele envolveram-na com força.
Estavam vestidos, mas o beijo dele pareceu carnal, de uma
maneira que o último não fora. Aquele era o prelúdio do que
poderia acontecer caso ela dissesse sim. As mãos dele
vaguearam pelo corpo dela, tomando-lhe os seios, agarrando-lhe
as ancas. Era o precursor do ato do amor.
Robert interrompeu o beijo, meio sorriso nos lábios.
? Há uma coisa que tenho de dizer. ? Parecia quase ofegante. ?
Quando os meus pais se casaram, o meu pai jurava amar a minha
mãe. Era mentira, e isso provocou mais estragos
do que a verdade. Recuso-me a casar com falsas expectativas. ?
Fletiu os dedos e procurou os olhos de Minnie. ? Compreendo
perfeitamente o que representamos um para o outro.
Não espero que me ame.
? O que representamos um para o outro? ? quis ela saber.

161
? Quero filhos. Tantos quanto possamos ter sem que perca a
saúde.
? Vossa Alteza ? disse Minnie, enfatizando deliberadamente o
título. ? Isso não é resposta.
Robert encolheu os ombros e desviou o olhar.
? Não sei como explicar. A Minnie olhou para mim e, em vez de
ver um duque, viu um homem capaz de escrever panfletos
radicais. Sabe quem eu sou.
E isso fez a realidade desabar mais uma vez sobre os ombros de
Minnie. Ele pintara um quadro lindo. Se bastasse ficar atrás dele
no Parlamento e murmurar-lhe conselhos ao
ouvido, por assim dizer, ela diria que sim.
Mas aquilo...
As duquesas frequentavam festas ? ajuntamentos com a presença
de centenas de pessoas. Quando passeavam pelos parques, as
pessoas apontavam e ficavam a olhar. E Minnie... Minnie
entrava em pânico se tivesse mais de meia dúzia de pessoas a
olhar na direção dela. Desmaiara com vinte pessoas à volta dela.
? Ai, meu Deus! ? exclamou, afastando-se dele e envolvendo-se
com os braços. ? Isto não vai resultar.
? Minnie?
Virou-se mais uma vez para o duque.
? O que julga que aconteceu ali fora?
Robert pestanejou.
? Ali fora? Há um ali fora?
? Porque julga que desmaiei?
? Aaa. ? Passou as mãos pelo cabelo. ? As cabras?
? Vivo numa quinta, Robert. Estou habituada a cabras.
Robert franziu o cenho.
? Tem razão. Foi depois de as cabras se terem afastado. Estavam
todos à sua volta.
Regra geral, ela tentava não recordar os momentos que a faziam
entrar numa espiral de terror; apagava-os da memória assim que
despertava. Mas agora conseguia vê-los, uma muralha
de rostos e de tecido, todos a fazerem pouco dela. Sentiu um
aperto no estômago só de pensar nisso. O coração batia-lhe
intensamente.
162
? Tenho medo de multidões. ? As palavras saíram quase num
guincho, mas conseguira dizê-las. ? Não, não é medo: é terror.
Robert agarrou-lhe a mão.
? Sobretudo multidões em que toda a gente está a olhar para mim.
Certa vez, quando tinha doze anos, fiquei encurralada no meio de
uma multidão. ? Levou a mão à face. ? Isto
veio daí. Estavam a atirar pedras.
Robert levou a mão ao rosto dela. As luvas eram de cabedal
preto, e Minnie conseguia cheirá-las, tão perto estavam. Assentou
os dedos na cicatriz, percorreu-lhe o rosto, primeiro
ao de leve, depois com um tudo-nada mais de força.
Minnie omitira um ligeiro pormenor. Não estavam apenas a atirar
pedras. Estavam, a atirar-lhe pedras.
? Foi atirada com força.
Minnie assentiu.
Robert voltou a passar os dedos pela cicatriz, agora fazendo mais
pressão.
? Sinto uma fratura no crânio. Tão perto do olho...
? Nos primeiros dias, quando estava coberta de hematomas,
chegou a haver dúvida quanto a voltar a ver desse olho. ? Robert
não afastara a mão da face dela. ? E agora não suporto
grupos grandes de pessoas. Se estiverem todas a olhar para mim,
torna-se impossível. Não consigo pensar. Não consigo respirar.
Só quero fugir.
? E por isso fica calada. Esconde tudo aquilo que tem de bom e
espera que ninguém olhe.
Minnie fitou as saias.
? Sim. ? A palavra foi dita num tom angustiado. Encolheu-se
ainda mais.
Robert não disse nada durante bastante tempo. Depois,
lentamente, fê-la erguer a cabeça.
? É pena ? murmurou. ? Eu já a vi.
Os lábios roçaram os dela. Não foi propriamente um beijo. Um
beijo seria mais do que um mero encontro de bocas, uma troca de
odores. Se fosse um beijo, ele não se afastaria
tão depressa.
Minnie deu consigo a olhá-lo. A mão dele tomava-lhe a face.
163
? O que foi isto? ? perguntou ela.
? Se não sabe, devo tê-lo feito mal.
Depois, mais lento, de forma mais deliberada, chegou-se. Desta
vez, os lábios não se limitaram a roçar os dela; encontraram-nos.
A boca dele era quente e seca; em vez de uma
pressão breve, mordiscou-a. A mão manteve-se na face,
aproximando-a, e aquele beijo...
Minnie desviou-se, mas isso serviu apenas para que a testa
entrasse em contacto com o ombro dele. Deixou-se apoiar,
enquanto voltava a aprender a respirar.
? Não posso casar-me consigo ? disse. ? Como posso eu ser uma
duquesa?
? É fácil ? asseverou ele. ? Diz que sim. Os meus advogados
compõem os acordos. Isso demora três ou quatro dias, e por essa
altura já terá chegado a licença especial.
Céus! A versão de casamento dele começava com advogados. Se
precisasse de mais provas para quão afastados estavam, como
eram diferentes os mundos em que viviam...
A mão dele assentou na dela e cada músculo no corpo de Minnie
imobilizou-se: os pulmões deixaram de inspirar; a boca parou
meio aberta. E os dedos... não se atrevia a mexer
os dedos, nem um milímetro. Só o coração continuava a
ribombar-lhe no peito, uma batida após a outra.
? Depois disso ? continuou ele ?, posso levá-la para a cama.
Pelo menos isso era o mesmo. Minnie não conseguiu evitar um
sorriso.
Robert percorreu o lado da mão de Minnie com o polegar numa
carícia.
? O que vou fazer consigo, Minnie? ? indagou, com indolência.
Minnie desviou a mão de repente, o coração apertado com uma
emoção que não conseguia identificar.
? Pare. Pare de fazer seja o que for.
Robert virou a cabeça para ela. O perfil perfeito era nítido. A luz
da lâmpada beijava-lhe a ponta do nariz e Minnie sentiu uma
pontada irracional de ciúmes ? ter a luz a
poder tocá-lo com tal indiscriminação e ela a mal suportar a
pressão da ponta dos dedos.
164
? Vossa Alteza ? declarou ?, terei de ser mais clara. Disse-lhe que
havia qualquer coisa no meu passado. Algo que eu não queria que
viesse à luz do dia.
Robert não interrompeu a carícia à mão.
? Imagino o que estará prestes a dizer ? comentou tranquilamente.
? E isso não me interessa.
As palmas das mãos de Minnie começaram a transpirar. Sentia os
primeiros indícios da náusea. Há muito que não o contava a
ninguém, há muito que não o dizia em voz alta.
? Até aos doze anos... ? Estava a tremer, e ele endireitou-se para a
fitar, preocupado. Não havia nada a fazer, se não dizê-lo
depressa. ? Até aos doze anos ? debitou ?, o
meu pai vestia-me calças e apresentava-me a toda a gente como
sendo um rapaz.
Robert pestanejou, arregalando os olhos com a surpresa.
? Eu... garanto que não ia imaginar tal coisa.
? Acabou por se saber ? continuou Minnie. ? Veio a lume da pior
maneira. ? Esfregou as mãos, tentando impedir que tremessem. ?
Londres ficou toda a saber. Saiu nos jornais.
Aquela turba de que lhe falava? Estavam atrás de mim. Queriam
castigar-me por me atrever a tal fingimento. Por ser tão
contranatura.
? Ah.
Quando a olhou, tinha a testa franzida ao de leve. Os olhos
percorreram-na, como se a vissem de novo, agora como algo que
não correra bem. Talvez, na altura, tivesse lido
sobre o escândalo. Porventura estaria a tentar recordar
pormenores. Talvez fizesse parte da multidão, parte do grupo que
atirara as pedras.
Não. Não era isso. Não lhe largara a mão, e ela não o imaginava a
atirar pedras a ninguém, muito menos a uma criança.
? Foi tão mau que tive de abandonar a minha vida. Mudei de
nome. Nasci Minerva Lane. Quando estava... quando estava a
fingir, o meu pai chamava-me Maximilian.
? Ah ? repetiu. O maxilar mexia-se, mas ele não falou.

165
? Diga alguma coisa ? pediu Minnie. ? Seja o que for. Não o
sabia, quando propôs o casamento. Não o censurarei se recusar. ?
Fitou-lhe os olhos. ? Mas diga alguma coisa.
Robert perscrutou-lhe o rosto por um instante e depois encolheu
os ombros.
? Gostava de ser rapaz?
? Eu... bem. ? Nunca pensara nisso, e a questão fê-la esquecer o
medo. ? Ao início não tinha qualquer termo de comparação. A
mentira começou quando ainda era muito nova. Não
tinha qualquer opinião. ? Suspirou. ? Mas detestava ter de mentir.
As desculpas para evitar despir-me ao pé dos outros. Detestava
isso. E quando fiz doze anos, comecei a gostar
de um dos meus amigos. Isso foi... embaraçoso.
? Imagino. ? Olhou-a a pestanejar. ? Isso explica muita coisa a
seu respeito.
? Depois tive de voltar a aprender a ser rapariga. A andar. A falar.
Tantos pormenores que fazia mal. Era... mais fácil ficar calada e
apagada. Assim não cometia erros.
? Isso faz-me pensar que temos de ter uma longa conversa sobre
os temas adequados à educação feminina ? disse Robert com um
sorriso repentino. ? Depois de nos casarmos.
? Vossa Alteza não pode estar a falar a sério. Sou um escândalo
em potencial.
? Minnie, eu quero abolir o pariato. Escrevo panfletos radicais às
escondidas. Não vou gritar "Oh, não! Um escândalo!" e fugir.
Não quero saber dos escândalos.
Minnie olhou-o nos olhos.
? Mas eu quero, Vossa Alteza.
A porta estremeceu uma vez, e outra. Momentos depois, após
mais um pouco de estremeções sonoros, Lydia abriu a porta e
entrou, com um jarro de água na mão.
? Deves ter ido buscar isso a Bath ? comentou Minnie. ? Foste a
pé ou apanhaste o comboio?
Lydia ofereceu-lhe um sorriso maroto.
? E então? Está tudo tratado?
? Eu pergunto o mesmo. ? Robert ergueu uma sobrancelha.

166
E Minnie percebeu que não tinha como responder. Queria-o.
Gostava dele. Se fosse qualquer outro homem, aceitá-lo-ia. Mas
se viesse a casar-se com ele, ficaria à frente não
só de algumas pessoas, mas de todo o país. E todos olhariam se
ele estivesse ao seu lado. Sentiu-se enjoada só de pensar nisso.
Desviou o olhar.
? Preciso de mais tempo.
? Tempo? Tempo para quê? ? quis saber Lydia.
Mas Robert levantou a mão.
? Seja ? disse. ? Pense nisso de todos os ângulos. Pondere as
estratégias, se assim tiver de ser, e avance as linhas de
fornecimento. Tudo o que precisar de fazer para se
sentir segura. ? Ofereceu-lhe um sorriso confiante. Um sorriso
que dizia que sabia que não seria rejeitado. ? Demore o seu tempo
? disse, acercando-se dela e debruçando-se.
? E no fim, Minnie, aceite-me.
CAPÍTULO 16
Robert deveria ter adivinhado o que os boatos trariam consigo,
mas, não obstante, a visita da manhã seguinte foi uma surpresa.
Estava prestes a sair ? com efeito, estava com
um pé na rua ? quando uma carruagem parou à frente da casa.
Um criado saltou das traseiras do veículo e assentou um banco no
passeio.
A porta abriu-se e a mãe saiu. Depositou os olhos em Robert.
Não franziu o cenho. Nem sequer piscou. Na verdade, a duquesa
não mostrou qualquer emoção. Limitou-se a descer
do carro e a subir os degraus.
? Clermont ? disse ela, à laia de cumprimento.
Robert inclinou a cabeça ao de leve.
? Duquesa.
A mãe entrou pela porta aberta como se ele a esperasse. Sem
pedir autorização, deteve uma criada de passagem e ordenou que
lhe trouxessem chá. Robert seguiu-a, espantado.
Dois minutos depois, ela instalara-se na sala da frente. Mandou
embora a sua criada e encarou-o.
? Espero ? disse ela ? que não tenha passado a ser seu hábito
seduzir jovens plebeias da classe média.
167
Pronunciou classe média como se as palavras cheirassem a ovos
podres.
? Refere-se aos acontecimentos de ontem à noite? ? questionou
Robert, imitando o tom da mãe. ? Faço questão de seduzir um par
delas antes do chá. A antecipação faz com que
a madrugada passe mais depressa.
A duquesa fungou.
? Esse é o tipo de piada que o seu pai faria.
Robert cerrou a mão enluvada.
? Não ? contrapôs. ? É o tipo de coisa que o meu pai faria. Ele
nunca faria uma piada dessas, pelo menos com companhia mista.
A mãe assentiu com um gesto da mão.
? Não é a primeira vez que ouço o seu nome associado ao de
Miss Pursling. Diga-me que não está a pensar em nada menos
próprio.
? Não sei porque isso haveria de lhe interessar. Nunca lhe
interessou.
A duquesa de Clermont limitou-se a encolher os ombros.
? As suas ações refletem-se em mim.
É claro. Não estava interessada nele; nunca se interessara. Estava
apenas a cuidar da sua reputação, preocupada com as dificuldades
que ele poderia levantar-lhe. Robert passara
a vida à espera que ela reparasse nele.
Estudara bastante quando entrara para a escola, recebendo elogios
de todos os professores. Escrevera-lhe, entusiasmado, à espera
que ela lesse a carta, ansioso por deixá-la
orgulhosa.
Mas a primeira carta não tivera resposta. Por isso esforçara-se
ainda mais. Se, mais do que bom, fosse excelente... Certamente, a
mãe ficaria orgulhosa. Por isso estudou com
mais afinco, esforçou-se ainda mais, conseguiu melhores
resultados. Voltara a escrever-lhe passados quatro meses,
apresentando-lhe timidamente os seus feitos.
Em respostas tivera... nada.
Sem se deixar abater, empenhou-se ainda mais. No final do ano
enviou a terceira carta, informando-a de que fora o primeiro da
turma. Nesse verão, passara uma semana em pulgas
168
sempre que o carteiro chegava. Passara uma semana de desilusão.
Então, certo dia, recebera uma linha em resposta.
Diga ao seu pai que esta estratégia também não vai resultar.
Prosseguir como antes fora uma questão de princípio ? quisera
provar que todo aquele esforço não fora por ela. Não obstante,
precisara de anos para quebrar o hábito da esperança.
? E então? ? insistiu a duquesa, observando-o. ? Quais são as suas
intenções quanto àquela rapariga?
Do outro lado da sala, Robert fitou-a.
? Acredito ? disse ele lentamente ? que um filho deve deferência
à mãe. Tem de lhe responder às perguntas, pois deve-lhe respeito
pelos anos de cuidado que ela lhe dedicou.
? A duquesa ficou hirta. ? Sinto-me generoso. Irei responder a
uma questão por cada mês que passou na minha companhia,
quando eu era criança.
Olhou-a e viu-lhe os lábios a estreitarem-se. Os dedos a marcar
um ritmo zangado no pires.
Robert levantou-se.
? Imagino que não será uma surpresa ? concluiu ?, mas isso
deixa-a sem perguntas a fazer. O interrogatório chegou ao fim.
E, com essas palavras, Robert saiu da sala.
Uma proposta de casamento não a deveria deixar aflita, pensou
Minnie. Sobretudo porque gostava de quem a fizera. Claro que
não podia pôr em causa a verdade do corpo. Sentia
cãibras no estômago só de pensar no que implicaria o casamento
com ele. Na manhã seguinte, não estava a mentir quando disse às
tias-avós que precisava de se deitar.
Prometera pensar nas vantagens da proposta, mas todas as
tentativas empreendidas haviam sido abafadas pela visão de
rostos furiosos que a rodeavam. "Fraude!", gritavam, e
"Filha do demo!" As duquesas atraíam multidões. As duquesas
frequentavam festas. As duquesas não desmaiavam quando havia
demasiada gente a olhar para elas. Se assim fosse,
passariam a vida num colapso constante.
Também imaginava perfeitamente a parte privada da relação
entre os dois. A pele ardia-lhe com a antecipação. Já havia
demasiados beijos entre os dois para que fingisse não
169
o querer. Todavia, embora pudesse vir a sair-se bem enquanto
amante de Robert, pensar em ser a esposa de um duque deixava-a
fisicamente doente. E, por isso mesmo, qualquer
entendimento privado que viessem a ter seria abafado pelo
inevitável desastre público.
À tarde, estes devaneios foram interrompidos pelo estrépito de
rodas no acesso. Minnie soergueu-se num cotovelo para espreitar
pela janela e observou, espantada, os quatro
cavalos escuros a pararem em frente à casa das tias. Um criado
saltou do fundo, abriu a porta da carruagem, e pousou um
banquinho estofado em cores garridas. E de lá saiu
a duquesa de Clermont. Olhou em seu redor, de nariz empinado.
Estaria, sem dúvida, a observar os campos de repolhos além da
casa, a tinta a descascar no estábulo à esquerda,
a ferrugem nas dobradiças... todos os sinais de pobreza que se
deixavam ver por todo o lado.
Envergava um vestido cor-de-rosa claro, debruado com renda nos
punhos e na bainha, qual bolo elaborado na montra da padaria. A
duquesa abanou a cabeça, como se quisesse apagar
a visão tão banal da casa que tinha à sua frente, e percorreu o
acesso. Um dos criados antecipou-se a ela e foi bater à aldraba.
Já começava. As multidões. Os olhares dúbios. A recriminação.
Minnie não ficou surpreendida quando, minutos depois, a tia-avó
Caro foi ter com ela.
? Minnie ? disse, num tom assarapantado ?, sei que estás a sentir-
te uma lástima, mas a duquesa de Clermont deseja falar
especificamente contigo. Mando-a embora?
Obviamente, a duquesa já soubera as notícias em relação ao filho.
? Não ? disse Minnie. ? É melhor falar com ela.
Caro ajudou-a com o vestido e a penteá-la. Não disse nada
enquanto trabalhava. Não perguntou o motivo da visita da
duquesa de Clermont, nem pôs em causa a indisposição de
Minnie. Minnie podia acusar as tias de muitas coisas, mas elas
deixavam-na em paz e confiavam nas suas decisões.
? Minnie ? disse finalmente, depois de pousar a escova e de ficar
satisfeita com a apresentação do vestido ?, se precisasses de
alguma coisa, fosse o que fosse, dizias-me,
170
não é verdade?
A tia usava um vestido que virara pela quinta vez. Metade das
rugas no rosto seriam, provavelmente, culpa de Minnie. Se
acontecesse algo a Eliza, Caro não teria para onde
ir. Ainda assim, ela confiava em Minnie.
Não importava o que pudesse acontecer caso Minnie se tornasse
duquesa. Não importava que fosse péssima nesse papel. As
escolhas haviam sido eliminadas, uma a uma, e havia
coisas piores do que sentir-se obrigada a casar com um homem
de quem gostava.
? Não ? respondeu Minnie. ? Não lhe diria. O tempo de estar
dependente de si já passou há muito. É a tia que devia confiar em
mim.
Os olhos da tia assumiram uma expressão pesarosa.
? Ó, Minnie ? disse, com a voz embargada.
Minnie apertou-lhe a mão.
? Não se preocupe comigo. ? Respirou fundo e desceu, a caminho
da batalha.
Visto de perto, o vestido da duquesa era ainda mais
impressionante. Quatro camadas da mais fina renda orlavam-lhe
as mãos. O tecido tinha um padrão de flores delicadas, bordadas
e cosidas com pontos de uma mestria muito distante da
capacidade de Minnie. Não via traços de Robert no rosto daquela
mulher, que tinha o nariz pequeno e arrebitado, e a boca
aparentemente num esgar perpétuo.
Chegada à porta, Minnie baixou a cabeça e fez uma reverência
baixa, perfeitamente consciente do vestido puído que envergava:
uma roupa de um cinzento simples e prático, com
punhos pretos que haviam sido virados uma vez para ocultar as
pontas gastas. A duquesa analisou-a em silêncio, sem dúvida a
elencar cada deficiência. Não precisou de dizer
nada. A sobrancelha erguida, o leve arregalar surpreendido dos
olhos ? tudo dizia o mesmo. Como se atreve a pensar em casar-se
com o meu filho?
Fosse qual fosse a decisão de Minnie, ela não se acobardaria
perante aquela mulher. Iria suster-lhe o olhar, sem desviar o seu.

171
? Bem ? acabou a duquesa por dizer. ? Compreendo o que ele vê
em si.
As palavras foram tão surpreendentes que Minnie se esqueceu da
decisão.
? A sério?
A duquesa levantou-se e acercou-se de Minnie.
? Pobre ? disse, tocando nos punhos coçados das mangas de
Minnie. ? Marcada. ? Indicou-lhe a face. ? Sem porte, sem
modos, sem noção de boas-maneiras. É um projeto de caridade.
Depois da agitação da véspera, foi um alívio sentir uma fúria
simples e gelada. O queixo de Minnie ergueu-se.
? E, ainda assim, ele não me ofereceu uma libra que fosse.
? O matrimónio com ele valerá mais do que alguns guinéus.
Minnie levou uma mão à anca.
? Se julga que o interesse do seu filho por mim se limita a
caridade, não deve conhecê-lo muito bem. Decerto haverá
vítimas mais merecedoras do que eu.
A duquesa abanou a cabeça.
? Conheço bem o meu filho ? replicou, num ronco baixo. ? É tão
parecido com o pai que precisei de anos para ver a verdade. Ele é
demasiado parecido comigo.
? Consigo? ? Minnie voltou a olhar para a mulher. À parte a cor
clara do cabelo, o filho não tinha nada dela. A duquesa não teria
mais de cinquenta anos de idade, mas a atitude
severa já lhe deixara marcas fundas na testa. A boca imobilizara-
se numa expressão de antipatia permanente. ? Ele não é nada
parecido consigo.
Pérolas deslizaram no pulso da duquesa quando esta acenou a
mão num gesto de desprezo.
? Como eu era ? corrigiu. ? Mole. Clemente. ? A expressão dos
lábios endureceu ainda mais. ? Crédulo. É um romântico
incurável... não o negue. Tem de ser, para pedir uma mulher
como a Miss Pursling em casamento.
? Uma mulher como eu. ? Minnie sentiu a própria boca a curvar-
se para baixo em aversão. ? O que quer dizer com isso, uma
mulher como eu?

172
? As pessoas vão passar o resto da vida dele a questionar-se
quanto ao motivo por que ele se casou consigo, a comentar como
o nome da família Blaisdell pôde cair tão baixo.
? Julgo que isso deve ser uma preocupação dele, e não sua.
Os olhos da outra mulher faiscaram.
? Sabe de quanto abdiquei para que o meu filho nascesse com
todos os privilégios? Passei anos de sofrimento num casamento
com o cretino adúltero que era o pai dele. O bastardo
dele foi-me atirado à cara. Tive de... ? Interrompeu-se e abanou a
cabeça. ? Não interessa. Abdiquei de tudo para que o meu filho
pudesse ter esta vida. Tudo. Não tem como
conceber aquilo que suportei. Não sacrifiquei a minha vida para
que ele se desperdice com alguém que não é nada.
Com isso, Minnie deduziu que a mãe de Robert não saberia da
vontade do filho de abolir o pariato.
Mas a tirada da duquesa prosseguiu.
? A menina não vem acrescentar nada, nem família, nem
dinheiro, nem terrenos, nem poder.
? Tenho noção das minhas mais-valias, Vossa Alteza.
? E, mesmo assim, vai casar-se com ele ? desdenhou a duquesa. ?
Conheço o meu filho. Deve estar a pensar no certo e no errado,
com uma vontade desesperada de pertencer a alguma
coisa. Vai atirar-se de cabeça à causa que escolher,
independentemente do mal que isso lhe venha a causar.
Talvez a duquesa conhecesse Robert melhor do que Minnie
julgara inicialmente.
A duquesa fungou.
? Ele deve julgar que a vai salvar de uma vida miserável.
As faces de Minnie ficaram afogueadas quando a outra mulher
voltou a mirar o vestido por demais simples. O olhar da duquesa
deslocou-se até às luvas de Minnie e regressou
ao nó simples que Caro fizera com o cabelo. Minnie endireitou-se
e devolveu-lhe o olhar.
? Ele está a salvá-la de uma vida miserável ? concluiu a
duquesa. ? Não a censuro por deixá-lo fazê-lo.

173
? Quem diz que estou a deixar? ? retorquiu Minnie. ? Não me
quero ver no seu lugar. Nem por um desses seus vestidos
ridiculamente indulgentes.
Curiosamente, isso invocou um sorriso que suavizou o rosto da
outra mulher, fazendo-a parecer décadas mais nova.
? A sério? Nesse caso talvez haja uma réstia de bom senso em
si. ? A mulher pousou a bolsa perlada na mesa. ? Sei que pareço
dura, mas ele é o meu único filho. Tal como nós
somos filhas únicas. ? Suspirou. ? Não sou completamente
insensível. Já estive na sua posição. ? Os lábios curvaram-se, mas
a expressão não era um sorriso, apenas um esgar.
? Ser cortejada por um duque dá-nos a volta à cabeça. Um duque
jovem e bem-apessoado. Sabia bem da reputação do pai do
Robert, mas eu tinha a certeza de que seria capaz de
o curar da maleita que o atormentava. Deixaria de jogar e de
beber em excesso, e se me tivesse... ora, nunca mais voltaria a
olhar para outra mulher.
A duquesa descalçou uma luva, que dobrou antes de voltar a
suster o olhar de Minnie.
? Antes dos vinte anos, essas ideias românticas já me tinham sido
arrancadas. Mas o duque não foi o único responsável. Todos
quantos encontrei tiveram a sua dose de culpa.
A alta sociedade não me via como mais do que uma fonte de
dinheiro para o duque de Clermont. Durante anos e anos disseram
que não estava ao nível do meu marido, em murmúrios
que não eram trocados propriamente pelas minhas costas. Não
importava que ele não tivesse nem juízo nem dinheiro. Eu estava
abaixo dele, e o facto de me atrever a opor-me...
Nada daquilo que o meu marido fazia era comentado, mas a
minha insistência de que deveria ser tratada com respeito? Isso
era um escândalo. Quando ele procurava meretrizes,
a sociedade fechava os olhos. Ele batia-me por eu insistir em
fidelidade marital, mas a única coisa que a sociedade via de
chocante era o facto de eu me atrever a contrariá-lo.
? A voz da duquesa tremia. ? Pelo menos eu tinha dinheiro.
Como acha que as coisas vão ser para si?
Minnie engoliu em seco.
174
? O Robert não é assim.
As mãos da duquesa apertaram a luva solitária.
? Saiba que li o Orgulho e Preconceito, e sei exatamente qual é o
papel que me está a atribuir: Lady Catherine, a tola intrometida
que acredita que Darcy tem de se casar com
a sua filha miserável. ? Cerrou os lábios. ? Talvez seja esse o meu
lugar. Devia pôr-me a gritar-lhe "Deverá a Casa Clermont ser
poluída desta maneira?"
Minnie pestanejou, surpreendida, e a mulher sorriu.
? Eu disse-lhe que em tempos fui romântica ? lembrou. ?
Portanto, talvez seja mesmo Lady Catherine. Mas vejo nele tanto
do meu eu mais jovem e tolo... aquele cavalheirismo,
aquela certeza quanto ao amor, aquela esperança pelo futuro. Não
desejava a minha vida a ninguém.
A conversa não estava a correr como Minnie imaginara. Em vez
de a enfurecer, as palavras da duquesa deram uma espécie de
clareza gelada à situação.
? Deve amar muito o seu filho ? aventou.
? Não ? disse calmamente a outra mulher. ? Acho que tal poderia
ter acontecido, em tempos. Mas há um limite para o número de
vezes que uma criança pode ser usada como faca
contra o coração antes de deixarmos de sentir seja o que for. Não
tive opção quanto a isso, e... ? Encolheu os ombros. ? Não me
resta emoção para a intimidar muito mais, e
muito menos para suplicar. Por isso vou só pedir-lhe, tão
delicadamente quanto conseguir. ? Fitou os olhos de Minnie. ?
Por favor, não faça isto ao meu filho.
A duquesa era uma mulher bizarra, concluiu Minnie.
Extremamente bizarra. Sentiu uma certa compaixão por ela.
? Ele é um menino muito mais gentil do que o pai foi. ? Franziu
os lábios. ? Quando ele vir como a vão tratar, vai sentir-se de
rastos. Nunca suportou crueldade.
? Isso é tudo muito bonito ? proclamou Minnie. ? Se eu fosse
melhor pessoa, talvez concordasse e recusasse o pedido a bem
dele. Mas foi Vossa alteza quem o disse. Não tenho

175
fortuna, não tenho família, não tenho futuro. ? Ofereceu um
sorriso embaraçado. ? Já ouviu boatos que me associam ao seu
filho. Como julga que a minha reputação vai ficar
na ausência dele?
A duquesa semicerrou os olhos.
? Ele...
? Não fiquei desgraçada ? continuou Minnie. ? E, até agora, os
comentários são apenas de ultraje. Mas só preciso da mais leve
sugestão de mácula. A gentileza de princípios
é um luxo reservado aos abastados. Nunca terei direito a tal. ?
Abanou a cabeça. ? Sei como seria desastroso casar-me com ele.
Mais do que imagina.
Pensar em ser duquesa ? responder aos murmúrios, sentir o peso
dos olhares alheios para onde quer que fosse ? deixava Minnie
zonza. Mas tinha a oportunidade de poder encontrar
sustento para si, para as tias, de vez. Abanou a cabeça.
? Sei que seria um desastre. Mas não disponho de alternativa.
Tenho de o fazer.
Ergueu o olhar e viu que a duquesa lhe sorria.
? Mas que interessante ? replicou a outra mulher. ? Pensava que
iria barafustar e afiançar o seu amor. Mas é de uma singular falta
de romantismo.
Minnie abanou bruscamente a cabeça, negando a afirmação.
? Sou bem capaz de imaginar castelos e duques como qualquer
mulher.
Mas nunca imaginaria alguém como Robert. Ele era melhor do
que qualquer príncipe. Vira-lhe o brilho nos olhos quando ele lhe
dissera que queria a abolição do pariato. Se fossem
apenas eles os dois, Minnie talvez se apaixonasse por ele. Tendo
em conta o passado dela, era um milagre ter encontrado alguém a
quem amar e que aparentava mostrar algum tipo
de reciprocidade. Parecia-lhe arriscado rejeitar tal coisa. Certas
dádivas podiam não surgir uma segunda vez.
Mas, proclamar-se esposa de um duque? Era o tipo de orgulho
que antecedia não um mero tropeço, mas sim a queda de um
penhasco íngreme.
Via cada pedra afiada à sua espera, no fundo.
176
Sentia-se deveras encurralada entre a esperança e a húbris.
? Poderia ser romântica ? disse baixinho. ? Mas o romance é algo
mais a que não me posso dar ao luxo.
? Mas que irónico. ? A outra mulher fitou-a. ? A bem da verdade,
acredito que fosse a pessoa indicada para ele... se a menina fosse
outra pessoa completamente diferente.
Minnie riu-se e fechou os olhos.
A duquesa chegou-se à frente.
? Vejamos como se portam os seus princípios ao defrontar-se
com uma escolha. Dou-lhe cinco mil libras.
Os olhos de Minnie arregalaram-se de repente. Fitou a mulher.
Decerto estaria a brincar. A duquesa, no entanto, mirava-a com
grande seriedade.
? Deveras... ? disse Minnie, num torpor.
Cinco mil libras ? parecia uma quantia impossível. O suficiente
para se sustentar. Para garantir o futuro das tias. Para formar um
dote razoável, se fosse essa a sua intenção,
ou para se mudar para o Continente. Era dinheiro a mais.
Mas depois pensou no vestido que a duquesa envergava ? tanto
tecido, metros e metros de renda, o bordado minucioso. Só a
roupa teria custado mais de cem libras.
? Imagino que, para isso, tenha de o rejeitar.
A duquesa encolheu os ombros.
? Não vou fingir que posso oferecer-lhe o suficiente para
compensar o casamento. Ele provavelmente atribuir-lhe-ia mais
do que apenas cinco mil. Mas... tal como lhe disse,
eu conheço-o. É demasiado persistente para uma simples
rejeição. ? A mulher olhou para a distância, como se estivesse a
recordar alguma coisa. Cerrou os lábios numa expressão
de repulsa. ? Ele insiste e continua a insistir. Quando lidamos
com o Robert, ele só desiste quando o esbofeteamos com toda a
força. Traia-o uma vez, e ele nunca mais a olhará.
A duquesa dissera que não amava o filho. Todavia, era uma
mulher bizarra: fria e lapidar num instante, frágil logo de
imediato. Era um fragmento de vitral, lançando cores

177
pelo espaço onde se encontrava, mas, ao mesmo tempo, cortando
tudo em que tocava. Num momento, parecia preocupar-se com o
filho. Logo a seguir...
? Não acredito que queira que eu magoe o Robert ? disse
Minnie. ? Não pode estar a pedir-me que faça isso.
A duquesa voltou a encolher os ombros.
? Acho que seria bom para ele. É um homem demasiado
romântico. Demasiado crédulo. ? Olhou para Minnie e encolheu
os ombros sem o mais leve vislumbre de querer desculpar-se.
Era uma mulher estranha e dura. Talvez Robert pudesse vir a
tornar-se uma criatura como aquela...
? Não sei se seria capaz ? disse Minnie, num tom roufenho. ?
Magoá-lo a tal ponto que ele...
No entanto, já cogitava como o fazer.
? Parece-me uma mulher capaz ? adiantou a duquesa, com um
franzir de sobrancelhas.
Em tempos, os segredos de Minnie haviam sido lançados ao
mundo. Como poderia ela fazer o mesmo a alguém? Como
poderia fazer tal coisa a ele?
Mas, como poderia casar-se com ele?
Minnie susteve o olhar da duquesa.
? Não sei se seria capaz - repetiu.
*
Após a saída da duquesa, depois de se escusar às questões bem-
intencionadas de Caro e Eliza, Minnie subiu para o seu quarto. A
casa na quinta não era grande; Minnie tinha
uma pequena divisão à frente, por cima da sala do rés do chão.
Daí podia ver os hectares de campos de repolhos, à espera de
serem lavrados. O panorama da janela, no entanto,
era composto, sobretudo, pelo estábulo. Nos dias frios, quando as
portas estavam abertas, o calor do gado saía na forma de vapor.
Hoje, só pequenos fios brancos escapavam
do estábulo, mal visíveis com a chuva que começara a cair.
Em tempos, a propriedade fora constituída por um pavilhão de
caça com alguns hectares de terreno associados. Caro e Elizabeth
haviam-no convertido em quinta. Juntaram o pouco

178
dinheiro que tinham entre as duas e, ano após ano, contratavam
homens que cuidassem dos terrenos. No entanto, mesmo com
todo esse esforço, os terrenos não eram delas. Caro
recebera o pavilhão de caça apenas durante o tempo de vida que
lhe restasse. Quando falecesse, a propriedade passaria para um
primo distante.
Com cinco mil libras, Minnie poderia comprar a quinta das tias
quando chegasse a altura.
Com cinco mil libras, poderia fazer isso e partir para muito longe.
Wilhelmina Pursling podia desaparecer. Podia ir para onde nunca
tivessem ouvido falar dela. Algures onde
não tivesse de se encolher para tentar agradar a um homem. Para
obter tal segurança, teria apenas de fazer o que prometera a
Robert logo à partida. Teria de ser sua inimiga.
Todavia, a alternativa...
Podia limitar-se a recusar a proposta da duquesa. Por mais que
essa mulher afirmasse conhecer o filho, Minnie não acreditava
que fizesse ideia de quem ele era. Robert não
se contentaria com uma qualquer filha de um par. Vira-lhe a luz
nos olhos quando ele falava sobre os planos que tinha para o
futuro. Se Minnie fizesse o que lhe era pedido,
não poderia fingir que seria a bem dele.
Seria por ela, pois preferia trair um homem que poderia vir a
amar a ter de voltar a enfrentar as multidões.
Viu o seu leve reflexo na vidraça, sobrepondo-se à quinta.
Observou a sua imagem ? as faces demasiado pálidas, a cicatriz
no rosto. Olhos que se recusavam a imobilizar-se
num único ponto. Levantou a mão e viu-a a tremer.
? Só consideras esta hipótese por estares assustada ? disse para
consigo.
Mas não era bem isso. Era porque estava aterrorizada.
CAPÍTULO 17
"
Quando a noite caiu, Minnie ainda não tomara uma decisão.
Andava às voltas no quarto quando ouviu baterem com força à
porta lá em baixo. Ouviu-se alguma agitação e depois
um grito da entrada por baixo dos seus pés.
179
? Minnie! Minnie! ? Era a voz de Lydia.
Minnie correu para a sua porta. Depois da visita da duquesa,
instalara-se uma trovoada, com a chuva a fustigar as vidraças.
Minnie não fez uma pausa para calçar os chinelos, limitando-se a
escancarar a porta do quarto e a correr escadas abaixo. A amiga
esperava à entrada, com uma poça a formar-se
à sua volta. O cabelo soltara-se dos caracóis, formando uma
massa negra ensopada sobre os ombros. Tinha as saias e os
saiotes sujos de lama.
? Minnie ? repetiu, antes que Minnie descesse e chegasse a ela. ?
O Stevens voltou, e nem acreditas no que ele está a dizer ao papá.
Ele está a dizer...
Minnie levou o dedo aos lábios.
? Chiu. ? Inclinou a cabeça na direção da criada, que as
observava, confusa. Não digas nada. Elas podem comentar.
? Ele está a dizer ? informou Lydia em voz baixa, chegando-se às
escadas ? que és tu a autora dos panfletos.
O coração de Minnie saltava-lhe no peito.
? A sério? Ele tem provas?
? Ele diz que és mentirosa, uma aldrabona... que tem provas de
que a tua mãe nunca se casou, de que nasceste em pecado. Diz
que o teu nome é Minerva Lane...
Minnie levou a mão à boca de Lydia.
? Chiu ? repetiu baixinho. ? Sei o que ele está a dizer. Não
precisas de o repetir. Quem é que ele julga que a Minerva Lane
é?
Lydia franziu o cenho com a pergunta que lhe foi feita.
? Que é... que é uma outra mulher qualquer. O Stevens acha que
foi o nome que te deram para ocultar a verdade quanto à tua
ilegitimidade.
Com que então, Stevens descobrira o seu nome verdadeiro ? ela
morara em Manchester quando era bebé, e alguém dever-se-ia
recordar da ligação. Mas ele não remontara o historial
da família dela, nem descobrira por que motivo ela assumira um
nome novo. Se estava a procurar em Manchester, seria bem
provável que tivesse passado ao lado da razão. Afinal
de contas, o escândalo rebentara em Londres.
180
? Tens de vir resolver o problema. O Stevens está a falar em pedir
um mandato pela tua captura.
? Ele quer prender-me? ? arquejou Minnie.
? Por sedição criminosa. O papá conhece-te há tantos anos. Não
sei como é que isto pôde ter acontecido, como é que pode
acreditar em algo tão impossível. Ouvi-o pela porta.
Minnie, tens de vir. Talvez se mandares chamar o duque...
Um trovão fez estremecer as janelas, o seu ribombar tão forte que
Minnie deu um salto.
? Não ? apressou-se a dizer. ? Ele não. Ele não. Ele não pode
salvar-me.
Stevens podia não saber porque mudara Minerva Lane de nome,
mas em breve viria a descobrir. Assim que o seu nome fosse dito
em público, não haveria como ocultar o passado.
Se Minnie se casasse com Robert, a revelação não seria apenas
uma possibilidade: seria uma certeza. Não seria capaz de se livrar
daquela corda ao seu pescoço. Já a sentia
a apertar-se.
Novo ronco de trovão, longo e grave, vibrou pelo ar. As mãos
tremeram com ele e, no fim, o medo tomou a decisão por ela.
Tinha o mais breve instante para escolher entre a
ruína e a traição, entre a possibilidade de amor e a certeza da
derrota. E, bem feitas as contas, o amor nunca lhe servira de
grande coisa.
? Temos de ir já ? insistiu Lydia. ? Sei que és capaz de resolver a
situação. Resolves sempre.
Minnie sabia o que tinha a fazer. Já o via, uma visão de pesadelo
desprovida de cor.
? Manda selar um cavalo ? disse Minnie à criada, que continuava
à espera junto à entrada.
Só havia uma maneira de sair daquela confusão, algo que partiria
o coração de Minnie.
? Anda, vamos. ? Lydia puxou-lhe a manga.
? Seca-te primeiro. ? Não que servisse de grande coisa, se iam
voltar a sair. ? Preciso... de cinco minutos. Cinco minutos para
juntar alguns documentos. ? Cinco minutos para
matar dois coelhos com uma única traição.
181
Entrou no quarto num torpor. Lentamente, tirou o molho de
papéis de juntara. Provas, minuciosamente recolhidas. Incluindo
a carta que ele lhe escrevera.
Minnie olhou em frente. Tinha o coração aos saltos, mas juntou
tudo sem tremer.
Minnie precisou de quase três quartos de hora para chegar à casa
dos Charingford naquela trovoada. Quando chegou, as saias de
Minnie escorriam e não haveria dúvida de que
o cabelo estaria horrível, de tão ensopado. Claro que não havia
tempo a perder com algo tão frívolo como secar-se. Assim que
Lydia a acompanhou para o interior, escancarou
as portas do salão e entrou.
? Miss Pursling! ? exclamou Mr. Charingford, pondo-se de pé de
um salto.
Stevens levantou-se com vagar, cruzando os braços num gesto de
reprovação. Os olhos desviaram-se de Minnie, assentaram em
Lydia, atrás dela, e depois afastaram-se.
? Miss Charingford ? disse, num tom gelado. Devolveu o olhar a
Minnie.
? Conta-lhes ? incitou Lydia atrás dela. ? Conta-lhes a verdade.
Stevens encarou Minnie.
? Segundo imagino, a senhora é Miss Minerva Lane.
Minnie sabia que um dia aquilo ia acontecer. Mesmo assim,
sentiu um nó no estômago quando ouviu o antigo nome a ser
proferido, quando viu a expressão nos olhos de Stevens.
Pequenos pontos de luz cintilaram-lhe à frente dos olhos.
Não é nada. Não és nada. Não te pode fazer mal aqui.
? Correto ? asseverou Minnie.
Atrás dela, Lydia arquejou, mas Minnie não podia olhar para trás.
Não suportaria ver o rosto da amiga naquele momento.
? Portanto, é uma bastarda. O que mais tem vindo a esconder?
Minnie levantou a mão.
? Sou muitas coisas ? disse calmamente. ? Mas há uma acusação
que não aceito. Não sou, nem nunca fui, autora de panfletos
sediciosos.
? Mentiras ? resmungou Stevens.
Minnie susteve o olhar de Mr. Charingford.
182
? Nunca estive envolvida nisso... e os indícios apontam para
outro homem.
Stevens abanou o dedo na direção dela.
? Mais mentiras.
Mr. Charingford, no entanto, avançou.
? Tem a certeza? ? indagou. ? É que, sabe, Minnie, por mais que
me custe pensar que pode estar envolvida nisto, sei bem aquilo de
que é capaz.
Não olhou para a filha ao falar, mas Minnie sabia que ele estaria
a pensar naquela tarde, há tanto tempo, quando ela explicara o
que fazer para salvaguardar a reputação de
Lydia.
Ignorou-o.
? Irei prová-lo.
As emoções pareciam-lhe distantes ? uma luz debaixo de uma
cobertura metálica, a brilhar intensamente onde ninguém a via.
Estava sombria e calma. Não era nada no seu íntimo.
? Quem acusa como responsável? ? quis saber Charingford. ?
Grantham? Peters?
Minnie abriu o saco de tecido que tinha ao lado. Embrulhara o
conteúdo com papel encerado, e depois em oleado; estavam
apenas húmidos quando tirou os papéis.
? Estes ? apresentou, separando o primeiro molho de folhas ? são
os papéis que o nosso caro amigo De minimis produziu até agora.
Podemos observar o seguinte com uma lente
de joalheiro. Em primeiro lugar, o tipo que os produziu tem um e
defeituoso: tem uma falha mínima. Aqui. ? Factos. Nada mais era
do que isso: um acumulado de factos e nada
mais. Apontou e depois virou uma folha. ? E aqui. E no seguinte.
É uma característica marcante.
Espalhou outro molho de papéis à sua frente.
? Estes são os vários tipos de papéis que podem ser adquiridos
em Leicester em grande quantidade.
Stevens fez menção de avançar.
Minnie levantou a mão.

183
? São todos produzidos localmente. Note que assinalei a origem
no canto; mesmo que não confie em mim, basta uma manhã de
indagações para confirmar a veracidade do que digo.
Se usar a mesma lente neste papel irá descobrir algo que não será,
de todo, uma surpresa. Todo o papel feito em Leicester dá uso a
matérias-primas locais. As três papeleiras
da região incorporam os restos da indústria têxtil nos papéis que
produzem: trapos, pedaços de algodão, lã. Quando analisado
cuidadosamente, o papel de Leicester revela tramas
características de fibras, seja qual for a categoria do papel.
Isto... ? bateu com o dedo nos panfletos de Robert ? ...não tem
tramas.
? O que está a insinuar?
Ignorou Stevens. Ela era uma enciclopédia, um dicionário,
alguém que dizia a verdade e nada mais.
? Eis amostras da impressão das gráficas locais. Cataloguei
pessoalmente os defeitos presentes nos tipos; mais uma vez,
garanto que algum tempo investido da sua parte pode
confirmar a afirmação. Note a ausência de fraturas em qualquer e
do tamanho que surge no panfleto.
? Diga de uma vez o que pretende, Miss Lane. ? Stevens
fungou. ? Já sabíamos que o autor do panfleto não estaria a
trabalhar sozinho. Isto só serve para mostrar que teve ajuda
externa. Talvez de uma organização nacional?
Não deixaria que ele a atrapalhasse. Mr. Charingford observava-a
com mais atenção. Pegou em mais folhas de papel.
? Ora, este papel foi adquirido em Londres. Note que nesta pilha
tenho vários tipos de categorias de papel. Este... ? tirou a folha do
fundo ? ...verá que este corresponde
exatamente ao papel em que se imprimiram os panfletos. Mas
não se esqueça do resto do papel. Quem acha que é o produtor?
? Não estou com vontade de brincar às adivinhas. Já nos disse
que é de Londres.
? É de Graydon Mills. Sabe alguma coisa sobre a Graydon Mills?
? Escute bem, Miss Lane, se não chegar rapidamente a uma
conclusão...
? Deixe-a acabar ? atalhou Charingford.
184
Minnie aquiesceu.
? A Graydon Mills foi fundada há sessenta e sete anos por Mr.
Hansworth Graydon, um agricultor que fez a primeira fortuna
com ovelhas, e a segunda, a terceira e a quarta fortunas
na produção. Era dono de um vasto império. A sua riqueza era
tão grande que conseguiu um bom casamento para a filha.
Quando Mr. Hansworth Graydon morreu, deixou o grosso das
propriedades ao neto. Devê-lo-á conhecer como Robert Alan
Graydon Blaisdell, nono duque de Clermont.
O discurso foi recebido com silêncio e depois com uma fungadela
de escárnio.
? Deve estar louca ? ofereceu Stevens. ? Pretende esquivar-se ao
castigo que merece com a exploração de uma coincidência tão
descabida?
Mr. Charingford não disse nada, limitando-se a incitar Minnie a
prosseguir.
? Sua Alteza também usa o papel da Graydon Mills para a sua
correspondência pessoal ? continuou Minnie. ? Uma categoria de
alta qualidade.
? Não quero saber o papel que ele usa! ? O rosto de Stevens
estava a ficar vermelho. ? Já ouvi insinuações mais do que
suficientes. Charingford, se não se importa...
Lentamente, Minnie mostrou a carta que o duque lhe entregara no
comboio.
? Isto ? anunciou ? é correspondência pessoal de Sua Alteza. ? A
voz começara a tremer-lhe. As mãos também. Alisou o papel em
cima da mesa e agarrou-se à borda. ? Note-se
que ele usa o papel de mais qualidade produzido pela Graydon
Mills... eis a marca de água. Também se poderá autenticar a
assinatura. ? Apontou. ? Mas creio que o conteúdo
será mais interessante do que a origem.
Stevens arrancou-lhe o papel da mão.
? Nem sei o que estou a fazer... ? resmungou, começando a ler.
Depois parou e olhou-a. ? "Escrevo panfletos" ? leu, lentamente.
Voltou a ler, e depois uma terceira vez, com

185
os olhos a deslocar-se mais devagar sobre o papel a cada leitura.
Atrás dele, Charingford espreitou as palavras com um franzir
crescente do cenho. Afastou-se a abanar a cabeça.
? Não acredito ? disse Stevens. No entanto, as suas palavras não
eram as de um homem que duvidasse da carta. Eram uma
tentativa de negar a realidade.
? Minnie ? disse Charingford ?, esta carta... o tom é muito íntimo.
A saudação. As palavras empregues. Até a maneira como foi
assinada. Como é que esta missiva ficou na sua
posse?
Robert talvez perdoasse Minnie se a verdade fosse revelada em
outras circunstâncias. A duquesa dissera que seria preciso traí-lo
para que merecesse o seu desprezo.
Se fosse um jogo de xadrez, aquele seria o momento em que ela
beijaria a peça. Uma vez feita a jogada, não havia como voltar
atrás.
Minnie ergueu uma sobrancelha.
? Fui abordada pela duquesa de Clermont ? disse Minnie com a
maior das clarezas. ? Ela quer que o filho abdique dos seus ideais.
Ofereceu-me cinco mil libras se o conseguisse
deter.
A verdade. Não era a verdade completa, e dita daquela maneira
denotava um sentido completamente falso. As mãos tremiam-lhe.
? Diga ao duque que eu disse isto ? pediu, a voz com uma firmeza
surpreendente. ? Mostre-lhe a carta e ele não irá negar o
envolvimento.
Já não havia como voltar atrás. Se tivesse interpretado
corretamente a relação, dizer ao duque que estava de conluio com
a mãe eliminaria qualquer estima que ele pudesse sentir
por Minnie.
Claro que assim que Stevens a ligara ao nome Minerva Lane,
qualquer hipótese de um casamento feliz com o duque fora
gorada.
? Ele é um duque ? disse Stevens num tom monótono. ? Como é
que um duque pode fazer uma coisa destas?
? Pergunte-lhe. ? Minnie baixou a cabeça. ? Não sei o que faz um
duque, e muito menos o motivo que o leva a fazê-lo.
186
? E como vou eu levá-lo a responder, mesmo que tenha realmente
sido ele o autor? ? Stevens continuava a fitar o papel. ? Ele
deixou a cidade em alvoroço com os panfletos e
as afirmações que neles constam. Quando dermos por isso,
vamos ter operários a marchar pelas ruas, a recusarem-se a ir
trabalhar. Como vou manter a paz se os cidadãos julgarem
que a lei pode ser quebrada com impunidade?
Minnie levou a mão à carta, mas Stevens tirou-lha. Espalhou
furiosamente os papéis, fitando-os.
? Alguém ? declarou. ? Alguém tem de pagar.
Ela já pagara uma vez e não voltaria a fazê-lo. Mas por agora...
merecera o dinheiro. Teria o suficiente para partir, para fugir de
vez a Minerva Lane. Mas, então, porque
sentia vontade de chorar?
? Saia ? ordenou Stevens. ? Saia daqui. Depois trato de si.
Minnie saiu lentamente da sala.
Lydia ficara à espera, encostada à parede. Mas quando Minnie
passou, ela seguiu-a até à entrada.
? Lydia. ? A voz de Minnie tremia.
? O que foi aquilo? ? quis saber Lydia. ? Não pode ter sido a
verdade. A duquesa de Clermont a pagar-te? Minnie, ela só
chegou há uns dias, e isto com o duque vem a decorrer
há mais tempo. Dizeres que o teu nome verdadeiro é Minerva
Lane? Se te chamasses mesmo Minerva Lane ter-me-ias contado.
Eu sei que sim.
Minnie estremeceu.
? Lydia.
? Ter-me-ias contado ? repetiu Lydia. ? Para mim és como uma
irmã. Não podes ser mais ninguém.
? O meu nome é mesmo Minerva Lane. ? Baixou o olhar. Devia
ser mais fácil contar a história uma segunda vez, mas com os
olhos da amiga fitos nela, foi ainda mais difícil.
? Não. ? Lydia abanou a cabeça com mais vigor. ? Não pode ser.
Ter-me-ias contado.
? De certa forma, a Minerva Lane nunca existiu ? contou
Minnie. ? Quando eu era muito pequena, o meu pai vestiu-me de
menino e exibiu-me pela Europa. Chamava-me Maximilian.
187
A verdade veio ao de cima. ? Engoliu em seco. ? Fiquei
desgraçada. Nem imaginas o quanto. Mudei de nome para fugir
ao legado dele.
? Mas... ? Lydia continuava a abanar a cabeça. ? Mas, como pode
isso ser verdade? Se fosse verdade, ter-me-ias contado. ?
Tornava-se mais veemente a cada repetição.
? Não ? contrapôs Minnie. ? Não teria.
Lydia levantou o queixo.
? Ficaste a saber tudo... absolutamente tudo sobre mim. Como
foste capaz de não me contar?
A respiração entrecortada de Lydia, os punhos cerrados: isso foi
ainda pior do que quando a multidão a cercara, quando a tinham
agredido...
? Lydia. Não podia. Se te contasse...
? Eu não teria dito nada. Nunca.
Minnie sentiu a pele na cicatriz a arrepanhar-se. A cabeça ardia-
lhe. Tinha o estômago às voltas.
? Mal consigo falar nisso. Quando falo, o corpo treme-me. Não
consigo respirar. Não ia aguentar que me olhasses enquanto o
contasse. Não aguentava.
? Deus nos livre de mostrares uma fraqueza! ? exclamou Lydia.
Até podia pensar que eras uma simples mortal.
Minnie fechou os olhos.
? Ainda gosto muito de ti. Lydia?
? A sério? ? retorquiu Lydia num tom gelado. ? A pessoa que era
minha amiga... ela nem sequer era real. Foi uma invenção.
? Não. Era... era real. ? Mas a voz soava-lhe tão baixa, era tão
difícil controlá-la, e Lydia nem sequer a olhava.
? Sai ? disse Lydia. ? Neste momento não consigo olhar para ti.
Sai.
Minnie cambaleou até à porta. Continuava a chover intensamente
e o ronco dos trovões parecia o bater de pés, o ulular de uma
multidão. Um relâmpago ofuscou-lhe a visão.
? Toma ? disse Lydia, enfiando-lhe uma sombrinha na mão. ?
Leva isto. Não, sua tola, não quero saber o que te acontece. Só
quero que me desapareças da vista. Vai!

188
Minnie não soube como desceu os degraus até ao passeio. Mal
conseguia ver por entre as lágrimas. Quando abriu os olhos, viu
três homens do outro lado que a olharam com curiosidade.
Talvez não vissem uma mulher a cambalear para fora de uma
casa todos os dias. Eram apenas três, mas era o suficiente.
Não é nada. Não é nada. Não és nada.
Não, ela era alguma coisa, e não podia fingir que os
acontecimentos daquele dia haviam sucedido a alguém que não
ela. Dobrou-se para a frente e vomitou sonora e violentamente
para o passeio.
Quando o estômago se acalmou, endireitou-se. Continuava a
tremer, mas era como se aquela náusea tivesse levado tudo atrás.
Não apenas os tremores físicos, mas o medo, a timidez,
doze anos de mentiras. Tudo que fizera dela Wilhelmina Pursling,
a tímida jovem que se deixava ficar pelos cantos, fora levada.
Olhou sobre o ombro para a casa dos Charingford. Wilhelmina
Pursling desaparecera, e, com ela, uma década de amizade.
Muito bem, Minnie. Bravo.
Com um suspiro, abriu a sombrinha e encaminhou-se para a
estrebaria onde deixara o cavalo.
CAPÍTULO 18
Era estranho, pensou Robert, como o seu estado de espírito podia
mudar tão radicalmente em vinte e quatro horas. Há dois dias ele
propusera casamento. Sentia-se repleto de
esperança, desejo e anelo. E hoje...
? Como Vossa Alteza vê, encontramo-nos num impasse.
Robert estava sentado no seu gabinete. Tinha à frente o capitão
Stevens, com um molho de papéis dispostos na mesa.
? Não posso anunciar que é Vossa Alteza o autor dos panfletos ?
disse Stevens. ? Dar a sanção de um duque a tais sentimentos
seria deixar a ralé sem motivos para se conter.
Robert mal o ouvia. Continuava fito na carta. Ainda bem que
estava sentado quando Stevens a apresentara e lhe dissera que a
sua própria mãe pagara a Minnie para a obter; caso
contrário, poderia ter caído.
Ela podia simplesmente ter recusado.

189
? Como é óbvio, Vossa Alteza provavelmente não sofrerá
quaisquer consequências. ? Stevens franziu o cenho. ? Mas se
detetar a sua participação corretamente... Por cada panfleto
que crie, mandarei deter e aprisionar um suspeito.
? Sem provas? Sabendo que eles não estão envolvidos? ? Robert
manteve o tom de voz calmo e baixo.
? Está tudo ligado ? disse Stevens. ? Alguém terá de pagar. Se
ninguém pagar, pagamos todos. Não posso, a lei não pode, ser
desprezada desta maneira.
Mesmo com o troar nos seus ouvidos, Robert percebeu o que
Stevens estava a fazer: ameaçava-o, ameaçando outros. Sabia que
alguém estava por trás das condenações por sedição
criminosa ? condenações que nunca deveriam ter acontecido.
Sempre quisera identificar quem pervertera a lei dessa maneira.
Finalmente conseguira. Decidiu que teria de afastar Stevens do
cargo. Assim que conseguisse recuperar.
? Estou a ver ? disse Robert. ? Bem, muito obrigado pelo seu
tempo.
? Mas...
Robert já estava a levantar-se e deixou a sala sem olhar para trás.
Andou às voltas na biblioteca, esperando que as emoções
rebentassem.
No fim, o que restou foi uma estranha sensação de calma ? como
se tivesse passado por uma tempestade de areia que esfoliasse a
carne em excesso das emoções, deixando ficar
apenas os ossos. Os ossos não ansiavam. Os ossos não
desejavam. Graças a Deus por isso.
Não sentia o mais leve traço de fúria quando ordenou aos criados
que lhe aparelhassem um cavalo. A estrada até à quinta das tias-
avós dela era longa, mas ele não sentiu qualquer
incómodo com o passar do tempo. Não sentiu absolutamente
nada.
Não sentiu nada quando prendeu as rédeas ao poste. Nem um
estremecer do peito ao bater à porta. Era como se estivesse
envolto em algodão que o abafasse, como se o mundo inteiro
emudecesse em seu redor. A porta abriu-se silenciosamente e mal
se ouviu ao pedir para falar com ela.
190
A sala para onde foi levado podia estar vazia, tal a atenção que
não prestou a qualquer mobiliário. Não se sentou. Não olhou para
nada. Limitou-se a esperar, sabendo o que
poderia estar para chegar.
Ela abriu a porta.
Talvez, no fundo, receasse que, ao ver Minnie uma vez mais, se
sentisse de tal modo sobrepujado pelas emoções e pelos
sentimentos que perdoasse o que ela fizera. Ele construíra
uma imagem dela, desenvolvendo o que ela não dissera, as
palavras que não haviam sido proferidas, até se imaginar
apaixonado por uma mulher que não existia. Mas quando ela
entrou, não sentiu nada.
Ela era pequena e estava encolhida sobre si própria. A magia
desaparecera. Robert sentia apenas uma dor vaga no sítio onde
ela estivera.
Graças a Deus, estava seguro. Estava seguro dele mesmo.
? Vossa Alteza ? limitou-se ela a dizer.
Robert inclinou a cabeça na direção dela.
Era a primeira vez, desde que se haviam conhecido, que ela o
tratava como duque. Era a primeira vez que ele queria ser tratado
assim. Os duques não precisavam de dar explicações.
Não precisavam de rogar. Limitavam-se a fazer, e ninguém lhes
questionava as ações.
? Deve saber o que me traz aqui ? disse ele.
Ela baixou a cabeça. Ao longe, ele apercebeu-se de que ela
parecia devastada. Tinha olheiras escuras. E a luz que lhe vira nos
olhos ? aquela luz maravilhosa que parecia encher
uma divisão ? extinguira-se em absoluto.
Não se importava com isso. Já não queria saber disso.
? Vossa Alteza. Devo-lhe uma explicação.
? Não quero uma explicação. ? O gelo não ouvia.
? Mas...
? Não quero saber porque o fez ? atalhou ele. As palavras
pareciam soar ocas, com um som entrecortado. ? Não quero saber
quanto a minha mãe lhe pagou. Não quero saber de si,
de todo.
Ela estremeceu.
191
? Então deixe-me garantir-lhe...
? Ainda menos quero as suas garantias.
Não que ela alguma vez lhas houvesse dado, apercebeu-se. Fora
ele o único a apresentá-las. Iludira-se ao pensar que se o
conhecesse, se lhe conseguisse explicar, talvez ela...
o quê?
Talvez também gostasse dele. Só um pouco. Ficara a saber quem
ele era, o que queria. Contara-lhe os sonhos que tinha, os seus
desejos mais secretos. Oferecera-lhe tudo.
E ele não fora o suficiente.
Mais uma vez, iludira-se a si próprio. Um sonho tolo,
desenvolvido em torno de alguém que mal reparava nele.
A diferença era que, desta vez, não seria ele a ver mais alguém a
afastar-se. Não seria ele a esperar por cartas que nunca
chegavam.
Obrigou-se a respirar calmamente, até ao regresso daquela
sensação de calma entorpecida. Envolto em algodão? Não, o
algodão era demasiado leve para o conter totalmente. Estava
enterrado em areia, com cada grão a pressionar-lhe o peito, um
peso tal que bloqueava quaisquer outras sensações. Não sentia
absolutamente nada, e gostava disso.
Ela deve ter notado algo daquilo que ele não sentia no seu rosto,
pois baixou a cabeça.
? Sinto muito, Vossa Alteza.
? Não quero desculpas ? retorquiu ele.
? Nesse caso, o que faz aqui?
? Simples ? declarou. Gostava de se ter sentado, para que naquele
momento pudesse levantar-se. ? Estou aqui para dizer adeus. ?
Dirigiu-se para a porta, onde se virou. Ela
fitava-o, de boca aberta. ? E agora, já o disse.
E com essas palavras, saiu.
Pareceu-lhe demorar uma eternidade para atravessar o hall até à
porta de entrada, e outra para pegar no chapéu e na capa. Ouvia o
coração a troar-lhe no peito.
Desta vez, Minnie correria atrás dele. Lançar-se-ia a seus pés e
rogaria clemência, e ele... ora, ele teria a maior satisfação em nem
sequer se dignar a olhar para baixo.
192
Removê-la-ia dos sapatos como se fosse pó.
Não a perdoaria. Para a perdoar, teria de se preocupar, e para se
preocupar, teria de permitir-se sentir.
Mas ela não veio, pelo que não precisou de decidir o que fazer.
Na manhã seguinte, o pequeno-almoço com a mãe combinou na
perfeição com o seu estado de espírito. O retinir da colher quando
ela mexeu o chá interrompeu o silêncio que parecia
ser oprimido pela centena de conversas que nunca haviam tido.
Naquele dia, ele sentia-se irritável.
Por fim, a duquesa pousou a chávena com a decisão de um
pedreiro que assenta tijolos na argamassa e fitou-o.
? Imagino ? disse ela, levantando o queixo ? que tenha aceitado
encontrar-se comigo por estar zangado com o que fiz.
Robert limitou-se a cruzar os braços e a olhá-la.
? Mas não lhe disse o que fazer ? adiantou a duquesa. ? Isso foi a
sua Miss Pursling que decidiu sozinha. Mas sim, admito de bom
grado. Paguei realmente cinco mil libras a
Miss Pursling para que recusasse a sua oferta da maneira menos
graciosa que conseguisse.
A mente de Robert pareceu esvaziar-se. Precisou de cada gota de
força de vontade para manter os braços cruzados, para a continuar
a fitar. No entanto, desta vez, o seu silêncio
não suscitou qualquer comentário. A duquesa bebeu mais um
gole de chá, deixando-o a tentar deslindar a confusão que sentia.
? Pagou-lhe para me rejeitar ? disse Robert.
A duquesa assentiu.
Stevens dissera ? indubitavelmente ? que Miss Pursling fora paga
para descobrir os segredos dele. Ele julgara que ela pretendera
ludibriá-lo. Julgara que a atração fora toda
de parte dele. Recordara, com desgosto, a forma como ela fingira
ser ensimesmada e tímida, e interrogara-se como fora possível
não se ter apercebido desse elemento de falsidade.
? Meu Deus, mãe ? acabou por dizer, num tom arrastado. ? Não
imaginava que se preocupasse.
Pesasse embora o tom sarcástico das palavras, elas tinham um
fundo de verdade. Ela nunca fizera nada que pudesse ser
considerado sequer remotamente maternal. Vindo dela, a
193
interferência nas suas perspetivas maritais era quase tão bom
como um beijo na face. Era... comovente. E irritante. Errado.
Arrogante. Mas... comovente.
A duquesa fungou e desviou o olhar.
? Foi dinheiro, nada mais. Não exagere na interpretação.
? Pelo contrário. Estou-lhe profundamente grato. Se ela se ven-
de com tamanha facilidade, ainda bem que o fiquei a saber agora.
A mãe observou-o por alguns instantes, como se não acreditasse
que ele fosse capaz de permanecer tão calmo, tão impávido.
? Disse-lhe ? explicou a mãe ? que se a traição fosse
suficientemente má, o menino nunca mais olharia para ela.
Segundo parece, eu tinha razão.
A duquesa parecia não estar a retirar qualquer prazer da sua
vitória. Não sorria. Não havia quaisquer vestígios de jactância na
voz.
? O menino é demasiado indulgente ? comentou ?, até que deixa
de perdoar por completo. Diga-me: em que altura é que acabou
por desistir de mim?
Robert inspirou fundo.
? Mas que ideia odiosa. Nunca esperei nada de si. ? Mas foi
incapaz de a olhar. Ela tinha demasiadas cartas dele para acreditar
em tais palavras.
? Foi no funeral do seu pai, não é verdade?
Robert nem sequer se permitia pestanejar.
? Escreveu-me antes, pedindo-me que comparecesse. Disse que,
agora que ele se fora...
Robert esmurrou a mesa. O chá salpicou tudo.
? Pedi-lhe que comparecesse?
Agora fulminava-a com o olhar. Ela não estremeceu. Não
retribuiu a fúria do olhar. Limitou-se a mirá-lo calmamente, tão
impávida como sempre. A emoção nos olhos dela era tanta
como a de uma boneca de porcelana.
? Não lhe pedi que comparecesse ? corrigiu-a calmamente. ?
Supliquei-lhe. Sabia que eu acreditei sinceramente que poderia
levar-me consigo? Convencera-me de que o único motivo

194
para não me querer conhecer melhor era o facto de não suportar a
presença do meu pai. Que, uma vez desaparecido, talvez
pudéssemos ter uma oportunidade. Quando não a vi no
serviço fúnebre, disse para comigo que chegaria depois do fim.
Quando não chegou, convenci-me de que iria esperar que todos
se tivessem ido embora. Finalmente, disse que assim
que escurecesse, e ninguém nos visse, iria buscar-me. Até esse
dia acreditei, não sei como, pois não tinha quaisquer provas, de
que era o meu pai que nos mantinha afastados.
Mas não era isso. A mãe não queria saber.
? Pois não ? replicou ela baixinho.
? Alguma vez quis? Ou odeia-me tanto como o odiava a ele?
? Tanto? ? A duquesa franziu o cenho. ? Diria que o odeio de
uma maneira diferente.
Robert queria ser capaz de recuperar a calma imperturbável que
mostrara momentos antes. Embora soubesse que tinha de ser
verdade ? embora suspeitasse de que a mãe não gostava
dele ?, ouvi-lo proferido em voz alta tornava-o real. Mesmo
passados tantos anos, depois do tempo que passara a fazer-se
indiferente, ainda magoava.
? Aqueles primeiros meses ? disse a duquesa ?, quando o seu pai
o levou de mim... julguei que não voltaria a ser capaz de respirar.
Mas não podia deixar que ele percebesse
como era importante para mim. Se deixasse, sabe Deus com o
que poderia tê-lo ameaçado. Portanto, todos os dias acordava,
vestia-me e juntava-me à sociedade. Ria-me quando
as coisas eram engraçadas e mostrava compassividade quando
não eram, sempre com o que parecia ser uma caverna no meu
peito.
Tal era a tranquilidade com que falava que parecia nunca ter tido
nada dentro do peito.
? Quando fez três anos, o menino era uma armadilha para o meu
coração. Cada palavra que me dirigia, cada breve visita que o seu
pai permitia a contragosto, era um muro que
me rodeava. Quanto mais adorável se tornava, mais certo ficava o
seu pai do meu regresso... e mais me ameaçava. Tive de fingir
que não me importava. Passado algum tempo, tornei-me
195
tão boa a fingir que... que talvez tenha deixado de me importar de
vez. E sim, ficava ressentida de cada vez que me fazia sentir
alguma coisa. ? Encolheu friamente os ombros.
? Mas, o que podia eu fazer? Ficar com ele? Tentei. Mas nessa
altura ele já se tornara impossível. Depois dessa última vez,
quando o menino tinha nove anos... passei um serão
barricada no meu quarto, com ele a esmurrar-me a porta, aos
berros, a ameaçar... ? Relanceou mais uma vez o filho. ? Acredito
que as coisas poderiam ter ficado excessivamente
feias caso ele não estivesse tão embriagado. Não podia ficar. E,
legalmente, o menino era dele. O que podia eu fazer, se não
deixar de querer saber?
Robert abanou a cabeça.
? Sempre que a mãe se ia embora, ele dizia-me que a culpa era
minha. Que não conseguira cativá-la. Que eu devia ter sido
mais...
Mais adorável, embora o pai nunca se houvesse servido dessa
palavra.
A duquesa olhou-o.
? Quando o seu pai morreu, parti do princípio de que ele o tivesse
transformado à imagem dele. Quando me apercebi de que não
fora esse o caso... ? Voltou a encolher os ombros.
? Nessa altura já era demasiado tarde para salvar fosse o que
fosse entre mãe e filho. Felizmente, nessa altura, eu já não queria
saber. Não sentia absolutamente nada. E agora,
sabendo que é demasiado tarde para fazer seja o que for, agora...
Fitou-o.
? Agora ? concluiu ?, vejo que continuo sem querer saber. ? Os
olhos da duquesa cintilaram momentaneamente e ela desviou o
olhar, o maxilar a cerrar-se e os lábios a criarem
linhas brancas.
? Estou a ver ? disse ele, perplexo.
? Não quero saber, a sério. Não consigo. Já não sei como. ? E,
dito isso, pegou num lenço rendado, que levou aos olhos.
? Está a...
? Não. Eu nunca choro. ? Susteve-lhe friamente os olhos.
? Estou a ver ? repetiu ele.
196
E realmente acreditava que sim. Aquela visita ? a presença dela
ali, as afirmações grosseiras, a interferência tola ? talvez não
quisesse saber. Talvez, depois de tantos anos,
ela se tivesse esquecido de como gostar dele. Mas estava a tentar.
Lembrava-o de um potro recém-nascido que se esforçava por se
erguer sobre as pernas magras, a tentar levantar-se
e a estatelar-se no chão.
A duquesa voltou a fungar.
? Quando finalmente o descobrir ? continuou ela ?, o menino já
terá desistido de mim de vez. Parece-me um castigo mais do que
adequado.
Pousou o lenço e fitou-o, como se o desafiasse a contradizê-la.
Certa vez, quando era pequeno, ela chegara para uma visita. Ele
correra ao encontro dela, na carruagem. Não se lembrava da
idade que teria na altura, mas recordava-se de a
abraçar pelos joelhos, tão alto quanto conseguia.
Ela não lhe tocara em resposta, não se curvara sequer para lhe
afagar a cabeça. Limitara-se a olhá-lo de relance, dissera-lhe para
mostrar um pouco de decoro e continuara
a andar.
Por isso, agora, ele não se mexeu para a tocar. Não julgava que
ela fosse gostar disso, e sentia-se demasiado fraco para se arriscar
a ser afastado.
? Muito bem ? disse com brusquidão. ? Obrigado por ter roubado
um pouco de tempo à sua indiferença para se intrometer nos meus
planos de casamento. Pensei que ela fosse mais
resistente. Aparentemente.
? Oh, não ? afirmou a duquesa. ? Eu aprovo-a. Encontre outra
como ela, mas, desta vez, que seja filha de um marquês.
? Sabe ? comentou ele ?, não faço ideia de quem é a família dela.
Pursling nem sequer é o nome verdadeiro.
? Não?
? Nasceu Minerva Lane.
Com essas palavras, a mãe arquejou sonoramente.
? Minerva Lane?
? Sabe quem ela é? ? Fitou-a, surpreendido. ? Ela disse-me que
seria um escândalo.
197
? Escândalo? Ela? Não. ? A duquesa abanou a cabeça
violentamente. ? Um escândalo é o que acontece quando uma
rapariga cede os seus favores com demasiada facilidade... um
assunto
simples de ultrapassar, algo que se pode remediar, mesmo que
não esquecer, com um bom casamento e dinheiro suficiente. Miss
Lane não ficou arruinada, Robert. Ela ficou destruída.
Absolutamente destruída.
CAPÍTULO 19
Na véspera, Minnie não fora capaz de falar com as tias-avós.
Mas não pôde adiar mais a conversa quando a duquesa de
Clermont enviou um cheque. Minnie levou-as até à sala da frente
e sentou-as.
? Há uma coisa que deviam saber ? apresentou. ? A Lydia veio
buscar-me ontem porque o Stevens tinha ido a Manchester. Ele
sabe que Miss Wilhelmina Pursling não existe. Que
eu sou uma impostora. Ele sabe que o meu nome é Minerva Lane.
As duas mulheres arquejaram e entreolharam-se.
? Eles sabem o que...
Minnie abanou a cabeça.
? Eles não sabem tudo.
? Não me assustes dessa maneira ? pediu Caro, levando a mão ao
peito. ? Mas, o que havemos de fazer? Com o Gardley fora de...
Minnie desviou o olhar.
? Arranjei algum dinheiro. Cinco mil libras.
As tias fitaram-na. As duas mulheres eram muito diferentes, mas
as expressões chocadas no rosto de cada uma eram espelhos
autênticos.
? Minha querida ? acabou Eliza por dizer ?, sabemos que estás a
passar por uma altura difícil, mas cinco mil libras é muito
dinheiro e seria uma lástima se... aaa... se...
Julgavam mesmo que ela poderia ter conseguido essa soma
através de meios suspeitos. Se pensavam assim, talvez
imaginassem...
? Não ? afirmou Minnie, num tom amargo. ? Mereci-os, com
justiça.

198
Bem, talvez não tivesse sido justo. Não obstante, conseguira esse
dinheiro legalmente.
? Como?
? Propuseram-me casamento. A mãe dele não quis que eu
aceitasse. ? Minnie desviou o olhar. ? Não aceitei. ? Duas
palavras que ainda lhe partiam o coração.
Claro que ela há muito desistira do desejo de que as coisas
fossem diferentes. Os desejos eram coisas tolas, insensatas.
? Uma proposta de casamento? ? ecoou Caro. ? Mas, de quem?
Nem imagino... ? Calou-se quando a criada entrou.
? Miss ? disse, indicando Minnie. ? Senhoras. Está aqui uma
pessoa para falar com Miss Pursling.
? Quem é? ? perguntou Eliza.
Lydia. Lydia estava ali. Minnie poderia explicar tudo, sanar a
situação entre elas...
Mas a criada baixou a cabeça, de súbito envergonhada, e, com
profundo agouro, Minnie teve consciência de quem era.
? Sua Alteza ? indicou ?, o duque de Clermont.
Sentiu o estômago gelado, mas as mãos pareciam-lhe
excessivamente quentes. Não sabia se devia rir ou chorar, se
correr para os braços dele ou fugir saltando pela janela. Limitou-
se
então a olhar em frente, com o cheque de cinco mil libras
dobrado no bolso, numa acusação silenciosa.
? Oh! ? exclamou Eliza.
? Ouvi alguns comentários. ? Caro esfregou a cabeça. ? Mas
pareceu-me tão improvável. Ter-nos-ias contado se houvesse
algum fundo de verdade, não é?
Minnie foi incapaz de lhes suster o olhar.
? Eu... talvez devamos falar sobre isto depois. Depois.
Caro assentiu. Eliza levantou-se, apoiando-se na bengala que
usava dentro de casa.
? Minnie ? disse, calmamente. ? Não tens de te casar com ele se
não quiseres. Nunca te obrigaremos a isso. Não importa o que
aconteceu... o que disseste, o que fizeste. Não
importa o que escolheres. Gostamos muito de ti.

199
Quando, daí a pouco, o duque entrou, Minnie reprimia lágrimas.
Não era capaz, sequer, de se virar para o olhar. Distinguia apenas
o som das botas dele no soalho, a aproximar-se,
a deter-se a pouca distância atrás dela.
Deixou-se ficar, porventura à espera que ela o cumprimentasse.
Mas não podia. Se ela se virasse naquele momento...
? Pensei em trepar até à sua janela ? disse, com uma voz grave ?,
mas teria de descalçar as botas para escalar o tijolo, e, além disso,
a janela que imaginei ser a sua pareceu-me
excessivamente estreita. Agora já sei porque é que a Julieta tinha
uma varanda. Decidi então optar pelo caminho menos romântico:
bati à porta.
Minnie soltou uma gargalhada entrecortada.
? O Romeu tinha dezasseis anos. ? Respirou fundo mais uma vez,
obrigou o rosto a assumir uma máscara de calma, e virou-se. ?
Pensei que já se tivesse despedido. O que faz
aqui?
Em resposta, o duque pegou-lhe na mão. Enquanto Minnie
estivera de costas voltadas, ele descalçara as luvas e pousara-as
na mesa. Devia ter-se afastado, mas tudo continuava
demasiado fresco para resistir. Os dedos de ambos entrelaçaram-
se. As mãos dele eram macias e fortes contra as dela.
? Está bem ? disse ele. ? Vou dizê-lo de uma vez. Estraguei tudo.
? Estragou tudo ? repetiu Minnie. ? O Robert estragou tudo. ?
Fitou-o, interrogando-se se, porventura, ele teria perdido o juízo
durante a noite. Mas o duque assentiu em resposta,
e ela apontou-lhe uma cadeira. Tinha a cabeça às voltas.
? Disse-me ? explicou ele, sentando-se ? que não poderia ser uma
duquesa. Eu ignorei a sua ansiedade.
Minnie pestanejou e depois sentou-se na cadeira à frente dele.
? As coisas só fizeram sentido quando a minha mãe me disse que
lhe pagara para me rejeitar, não para me expor. E, depois de
pensar mais um pouco, isso também não fazia sentido.
É de conhecimento geral que tenho um rendimento mínimo de
dez mil libras anuais. Tendo de escolher entre cinco mil libras e
casar-se comigo, qualquer pessoa racional iria

200
escolher-me. Se fosse tão calculista e fria como eu pensei,
estaríamos casados, não a trocarmos estes olhares a meio metro
um do outro.
Minnie abanou a cabeça.
? Além disso, se a minha mãe estivesse a pagar-lhe para me deter,
a Minnie teria usado a minha carta de imediato. Não teria
esperado. E como saberia ela o que eu estava a
fazer? Como saberia que a Minnie era a única pessoa que poderia
tê-lo descoberto? Essa história não bate certo. ? Olhou-a. ? Nunca
me senti tão grato por me aperceber de que
me mentiram.
Minnie sentia a garganta a doer-lhe. Tanto esforço para o
afastar ? e ele continuava ali.
? Não ouvi o que estava a dizer-me. ? Fitou-a. ? Não ouvi o que
não estava a dizer-me. Só ouvi o que me dizia respeito. Ouvi que
não me queria. Que não queria saber de mim.
Ouvi sobre a sua ansiedade quanto à atenção, mas não escutei. ?
Juntou a ponta dos dedos. ? Deixe-me então dizer-lhe aquilo que
eu devia ter ouvido. O seu pai foi um dos mais
destacados jogadores de xadrez...
Minnie pôs-se de pé de um salto.
? O Robert sabe. ? O coração saltou-lhe no peito. O fôlego
reduziu-se a arquejos cada vez mais breves. O ar à sua volta
pareceu cintilar. Mas é claro que ele sabia. Ela dissera-lhe
o seu nome. A partir daí seria questão de pesquisar. Deu um
passo atrás e tropeçou na cadeira.
Mas antes de dar uma queda que a magoaria, Robert avançou e
segurou-a, os braços sólidos e quentes à volta dela.
? Chiu ? murmurou. ? Sou só eu. Não vou magoá-la. Nunca a
magoarei, Minnie.
Fitou-o. Tinha o coração aos saltos, mas não havia multidões nas
redondezas, não havia gritos.
Era só ele.
Desta vez, quando Robert se sentou, puxou-a para cima dele.
Encaixaram-se como duas peças de um puzzle, a cabeça de
Minnie a tombar de imediato sobre o ombro dele, que lhe

201
levou a mão ao cabelo. Minnie não devia estar encostada a ele.
Aquilo não devia estar a acontecer. Ficara de coração partido
quando o afastara; como poderia voltar a fazê-lo?
? Vamos tentar outra vez ? disse Robert gentilmente, envolvendo-
a com os braços. ? Só descobri meros pormenores. O seu pai era
um dos mais destacados jogadores de xadrez do
mundo. O que aconteceu então?
Minnie continuava a sentir borboletas no estômago. Mas ele
abraçava-a ? e sabia. Ele sabia e não lhe atirava coisas. Esperava,
pacientemente, que ela estivesse pronta.
A última coisa que sentia quando tinha de pensar nesse período
negro era segurança ? mas, pelo menos naquele momento, não
tinha vontade de vomitar.
Respirou fundo.
? Na verdade, o meu pai era o quinto filho de um baronete. Tinha
um estatuto elevado, embora de todo segundo os seus padrões,
mas empobrecido. Singrou no mundo rentabilizando
a sua perícia com xadrez. Era sociável e aberto, e todos gostavam
dele. Quase não tinha fortuna pessoal, mas era tão afável que isso
nunca importou. Tinha sempre convites
de lugar onde ficar.
Por vezes havia convites em Inglaterra, outras vezes era
convidado a visitar a Europa, onde passava meses com homens
que queriam estudar xadrez com um jovem inteligente e
dado. Certa vez, numa das viagens marítimas que ela
empreendera com o pai, um marinheiro dissera-lhe para olhar
para a costa quando se sentisse enjoada, pois, assim, a náusea
passaria. Olhava agora para a estante e ficou surpreendida ao ver
como o mundo se estabilizou.
? Os meus pais estiveram casados poucos anos, e depois a minha
mãe morreu durante o parto. Não me lembro de grande coisa
antes dos cinco anos, salvo das visitas do meu pai.
As minhas primeiras recordações são dele a ensinar-me a jogar
xadrez. Antes de saber o abecedário, já sabia como movimentar
as peças. Mais do que tudo, ansiava pelas visitas
dele. Certo dia, quando eu era muito pequenina, ele perguntou-
me se queria ir com ele da próxima vez que fosse ao estrangeiro.
202
Minnie soltou um fôlego entrecortado. Robert não disse nada.
Limitou-se a abraçá-la com mais força.
? É claro que uma menina não podia viajar sozinha com o pai
pelo Continente... não quando se ficava com o tipo de gente que o
convidava. Precisaria de uma aia, de uma ama,
e, nessa altura, as finanças estavam demasiado apertadas para se
fazer tal coisa. Era simples, disse o meu pai. Ia apresentar-me
como Maximilian Lane, seu filho. Perguntou-me
se me importava. ? Fechou os olhos. ? Eu tinha cinco anos. Não
sabia o que pensar. Ele disse que ia ser muito divertido e eu
concordei.
A agitação sentida na barriga começara a acalmar-se.
? Nesses primeiros anos, acho que não tive noção da curiosidade
que eu era. Lembro-me de as pessoas me apresentarem problemas
de xadrez. Às vezes conseguia resolvê-los. Outras
vezes não. ? Encolheu os ombros. ? À medida que fui crescendo,
comecei a resolver cada vez mais problemas.
? O único relato que li sobre Maximilian Lane ? acrescentou
Robert ? dizia que era reservado, solene e deveras brilhante.
Jogava com adultos com anos de experiência e vencia-os
sem esforço... e quando a Minnie era elogiada, remontava quinze
jogadas e explicava, com fervor, o que deviam ter feito para
ganhar.
? Sim ? murmurou Minnie, fechando os olhos. ? Lembro-me
disso. Estar sempre a vencer... isso teve um grande efeito sobre
mim. Pensava que nunca iria perder. Não entendia o
conceito de risco.
Também não entendera o conceito de perda.
? O resto, tive de adivinhar depois. Aos doze anos, o meu pai
estava profundamente endividado. Fazia promessas e dizia que
fizera investimentos fabulosos na indústria russa.
Para suportar essas afirmações e para atrair novos investidores,
ele pagava dividendos com os seus fundos limitados. Depois
pagava aos investidores seguintes com os fundos
obtidos com os novos intrujados. Mas não havia quaisquer
investimentos, e, a menos que encontrasse dinheiro rapidamente,
ele seria exposto.
203
Minnie baixou o olhar. Na altura, só sabia que ele se tornava mais
instável ? felicíssimo num momento, furioso logo a seguir.
? Não fui convidada para o primeiro torneio internacional de
xadrez em Londres. O meu pai foi. No entanto, dias depois, ele
queixou-se de uma indisposição súbita e sugeriu
que eu ocupasse o lugar dele. Ninguém se opôs.
Não conseguiu evitar os leves tremores que lhe percorriam o
corpo.
? Ele precisava de muito dinheiro, e as probabilidades estavam a
meu favor. Pediu então a um dos amigos que apostasse cada
cêntimo que tinha contra mim. Depois mandou-me perder
o jogo.
Não lhe explicara porquê. Nesse dia haviam trocado gritos.
? Os Lane podem fazer qualquer coisa ? atirara-lhe ela à cara. O
pai olhara-a com uma expressão estranha quando ouviu isso. Só
mais tarde é que Minnie se apercebeu de que
ele nunca esperara que as suas palavras fossem usadas contra ele.
Sentia os braços de Robert quentes contra as costelas, o peito a
acompanhar-lhe a respiração. O silêncio da sala envolvia-os. Não
havia nada à volta deles, ninguém por perto.
Só ela e as recordações.
? Em criança somos curiosamente cegos aos defeitos dos nossos
pais. O meu pai era o meu amigo mais querido. Estávamos
sempre juntos. Ele ensinou-me tudo o que eu sabia. Nunca
falou comigo com aspereza. Eu venerava-o. Ele costumava dizer
que se acreditássemos com força suficiente, tudo correria bem.
Que se pensássemos e aguardássemos, encontrávamos
saídas. Quando me recusei a perder, ele encontrou uma saída. ?
Respirou fundo mais uma vez. ? Ele contou aos jornais de
escândalos que eu era uma rapariga. A meio do torneio.
Ainda via o tabuleiro no último jogo. Acabara de beijar a torre e
pousara-a no tabuleiro. Estava a quatro jogadas do xeque-mate.
? Os juízes interromperam-me. Desqualificaram-me. Atiraram-
me para a rua por uma orelha, e, nos dias que se seguiram, a
situação encheu as páginas dos jornais de Londres.

204
Tudo o que eu fora, tudo, as pessoas que julgara serem minhas
amigas, as coisas que conquistara, perdi tudo. Tinha-me
travestido de rapaz e escandalizara toda a gente.
? É incrível como durou tanto tempo ? comentou Robert.
? Tinha doze anos. Mais um ano... Nessa altura já tinha peito e
seria incapaz de esconder a verdade. ? Abanou a cabeça. ? Não
sei o que teria acontecido se os acontecimentos
seguissem o seu rumo natural. Mas agora que a verdade viera ao
de cima, as pessoas começaram a pôr o meu pai em causa.
Estavam milhares de libras em jogo e as histórias que
ele contava não batiam certo. O julgamento foi um caso bastante
público. Assisti à audiência... tinha doze anos, usava saias pela
primeira vez desde há anos, sentia-me atrapalhada
e insegura. Foi aí que ouvi pela primeira vez a defesa do meu pai.
Ele afirmou que tinha sido levado a fazê-lo. Por mim. Ele disse
que eu lhe tinha dito para me vestir de
rapaz e para me levar com ele. Que eu inventei o esquema com a
falsa indústria russa. Que eu causei a ruína dele. Era eu a culpada.
Robert envolveu-a com o braço.
? Tinha cinco anos quando isso começou.
? Eu era uma criança desnaturada. Foi o que ele repetiu à boca
cheia. Eu era uma criança desnaturada. Quem poderia dizer o
contrário? Eu era realmente estranha. Capaz de vencer
adultos em xadrez, alguns dos melhores jogadores do mundo. Eu
era muito calada, sempre a observar. Não ajudou que todos me
vissem no julgamento, que vissem como eu era estranha.
Não sabia como me mexer como uma rapariga. Tinha o cabelo
curto. Passara a minha infância junto de homens dissolutos. Não
sabia como me comportar devidamente.
"O meu pai sempre disse que se acreditarmos com força
suficiente em alguma coisa, a realidade não tem outra alternativa
que não seja concretizá-la. Quando testemunhou em tribunal,
ele estava convencido. Chamou-me filha do demo à frente de
toda a cidade de Londres.
Pensara que as coisas não poderiam ficar piores do que aquele
horror no tribunal ? ver o homem que ela amava, o homem que
nunca lhe falara com aspereza, apontá-la e acusá-la.
205
Ver a luz assustadora naqueles olhos que mostrava que ele
acreditava piamente no que dizia. O pai era tudo o que ela tinha
no mundo ? e, de repente, em público, abandonara-a.
? Era um homem carismático e convincente. Condenaram-no, não
de roubo, mas de fraude... o suficiente para dois anos de trabalhos
forçados, mas nada mais. Mas as pessoas lá
presentes ficaram convencidas de que ele fora injustiçado.
Quando saí do tribunal, completamente sozinha, fui cercada por
uma multidão. Eles gritaram. Cuspiram. Não sei quem
atirou a primeira pedra. Não sei quantas atiraram. ? Olhou-o. ?
Quando os afastaram de mim, eu tinha desmaiado, mas nunca o
esqueci. Desde então que não suporto ajuntamentos.
Penso naquilo e começo a tremer. Entro em pânico.
? Nunca teve ninguém que a apoiasse? ? perguntou Robert. A voz
era baixa e roufenha.
? As minhas tias-avós. A Lydia, até... ? As palavras saíram-lhe
embargadas. Mas, mesmo agora, não conseguia acreditar nelas.
As tias viriam a falecer. Sempre soubera que,
um dia, Lydia viria a descobrir a verdade e afastar-se-ia dela. ?
Até ao último momento, nunca acreditei que o meu pai fizesse
isso. Gosto de pensar que talvez estivesse doente.
Que não sabia o que estava a fazer quando me traiu. ? Os olhos
cintilaram-lhe. ? Faleceu na prisão, por isso, talvez seja verdade.
Tenho de acreditar nisso, pois, por mais
que tente, não consigo deixar de o amar. Ele ensinou-me tudo o
que eu sabia. Era a minha vida inteira. E não sei como odiá-lo
como merece. Portanto, Vossa Alteza, bem vê,
não posso casar-me consigo. Nem sou capaz de pensar nisso sem
tremer. A sociedade londrina desfar-me-ia.
? Não ? replicou ele baixinho. ? Isso não vai acontecer.
Minnie virou-se para ele.
? Como pode dizer isso?
? Não vai acontecer ? asseverou ?, pois não vou deixar que
aconteça. ? Virou-lhe o queixo para que o olhasse diretamente. ?
Certa vez disse-me que eu tinha sorte por poder

206
olhar sem receio para onde quisesse. Acho que só a percebi
realmente quando descobri... ? Apertou-a mais nos seus braços. ?
Sei que ficou perturbada. Disse-me que estava assustada.
Sorte minha não perceber o que quis dizer... como se sentiu
aterrorizada.
Minnie tremia.
? Dou-lhe a minha palavra em como se vier a casar-se comigo,
irei protegê-la. Estarei a seu lado e nunca a magoarei. Já falei
com o Stevens e o Charingford, e eles vão ficar
de boca calada. Prometo-lhe, por tudo o que é mais sagrado, que
farei o possível por manter o seu passado em segredo e que, se
falhar, farei tudo o que estiver ao meu alcance
para a proteger. Se se casar comigo, não terá de voltar a recear.
? E o que terei de lhe dar em troca?
? A sua fidelidade. ? Abraçou-a. ? Enquanto suportarmos a
presença um do outro, também seria interessante ter o seu corpo.
Não espero amor. Não espero que me queira eternamente.
Mas acho que poderemos fazer disso uma boa experiência.
? Não espera amor. ? Abanou a cabeça, confusa. ? É a segunda
vez que diz isso. Vai ser como um daqueles romances medonhos,
em que me diz para não me apaixonar por si e que,
se me apaixonar, vai transformar-se no barba-azul e tentar cortar-
me a cabeça? É bem-apessoado. Tem os dentes todos. ? Mirou-
lhe os olhos e tocou-lhe ao de leve a face com
a mão. Robert imobilizou-se. ? Não posso garantir-lhe nada. Se
for bom na cama, talvez me apaixone por si. Se isso vai ser
anátema...
? Não ? apressou-se Robert a dizer. Desviou o olhar dela e,
quando voltou a falar, as palavras saíram-lhe levemente
arrastadas. ? Não. Será perfeitamente... aceitável.
Pelas palavras dele, Minnie poderia tê-lo tomado por insensível.
Mas o tom da voz e a forma como voltou a menear a cabeça na
direção dela, confirmou que a indiferença era
falsa. Olhava-a como um homem sedento que apreciasse um
oásis, a tentar decidir se seria uma ilusão provocada pelo calor.
Isso, de repente, dava sentido a tudo. Ele não quer um casamento
sem amor. Está apenas a resignar-se a isso.
207
A mãe dele dissera que Robert tinha um coração romântico. Na
altura, Minnie sentira-se avassalada com outras preocupações,
mas talvez a duquesa tivesse razão. Ele defendia
quem não tinha voz própria. E, por algum motivo, há muito que
se convencera de que nunca seria amado.
Minnie estava tão prestes a apaixonar-se por ele que quase abriu a
boca para o dizer. Mas aquela luz nos olhos dele ? a forma como
a fitara ao dizer que seria aceitável. Seria
cruel da sua parte dizer algo antes de ser verdade.
Será verdade muito em breve, pensou.
Desde a traição do pai que se admoestava, dizendo que fora ela a
responsável pelo que acontecera, pois quisera demasiado.
Atrevera-se a pensar que aos doze anos ? enquanto
rapariga ? podia desafiar homens adultos e sair ilesa.
Mas talvez o seu erro tivesse sido não tentar o suficiente.
? Há muita coisa ? disse ele ? que uma duquesa pode fazer e uma
jovem solteira não pode. Venha ter sorte comigo, Minnie.
O momento para abrir as asas era quando estivesse em queda. Se
não tentasse, não seria surpresa se o chão fosse contra ela.
Passara tanto tempo a pensar que era tolo ter esperança. Mas
talvez não fosse. Não via como o futuro poderia resultar. Mas
podia esperar amor e segurança, e talvez, talvez,
não se estatelasse por procurá-lo de mãos trementes.
? Ai, meu Deus! ? exclamou, a voz a tremer. ? Vou mesmo fazer
isto.
Robert soltou um suspiro entrecortado.
? Ótimo. Ótimo. ? Abraçou-a com mais força, esmagando-a
contra si. Abraçou-a e murmurou-lhe ao ouvido. ? Espero ser
bom na cama.
Foi o mais próximo que chegou de admitir que queria que ela o
amasse. Minnie sorriu e beijou-o. Ele sabia a água do mar. O
coração batia-lhe no peito como as asas de um bando
de pássaros.
? Também espero que seja ? respondeu Minnie timidamente. E
voltou a beijá-lo, de mãos entrelaçadas. Beijou-o até que o sol
vespertino encheu a sala, até ficar zonza com a

208
sensação. Abraçou-o e beijou-o até que a tia-avó Caro chegou
junto à porta e pigarreou.
Minnie enrubesceu, mas Robert levantou-se.
? Deve ser uma das tias-avós da Minnie ? disse ele,
tranquilamente. ? Sou Robert Blaisdell, duque de Clermont, e
gostaria muito de me casar com a sua sobrinha.
CAPÍTULO 20
Robert voltou a casa e encontrou o irmão e o primo presentes, a
folhear resmas de papel ministro rabiscado. A julgar pelas
anotações, fazia parte do próximo artigo de Sebastian.
Não deram pela entrada dele.
? E outra coisa ? dizia Sebastian. ? Porque é que os gatos riscados
são quase sempre fêmeas? A menos que se leve a cabo um
programa imenso de reprodução de gatos...
Ergueu o olhar quando Robert parou junto dele.
? Vais fazer criação de gatos? ? sorriu Robert.
Sebastian gesticulou freneticamente.
? Estava a contar ao Oliver sobre a minha coleção de
curiosidades. Coisas que observei, mas que ainda não tenho como
explicar. Há uma mulher de oitenta anos em Londres que
todos os dias dá de comer a gatos vadios num beco. Pedi-lhe que
fizesse esboços dos gatos, a par de algumas descrições: peso,
género, cor dos olhos, números de dedos nas patas.
Uma série de informações interessantes. Imaginei que isso viesse
a dar em alguma coisa. ? Meneou a cabeça na direção de
Robert. ? Pareces diferente.
? Pareço? ? Sentia-se diferente. Era uma sensação de maravilha
recém-descoberta, uma confiança satisfeita.
? Pareces ? confirmou Oliver. ? Muito sinceramente, nos últimos
dias parecias...
? Qualquer coisa com que um gato andasse a brincar ? adiantou
Sebastian. ? Um gato de seis dedos. Sabias que os gatos com seis
dedos têm dezassete por cento mais de garras?
Oliver encolheu os ombros.
? Uma coisa com que os vadios do Sebastian andassem a brincar.
E depois o olhar para o infinito.

209
? E os suspiros perturbados. ? Sebastian procedeu a uma
demonstração, inspirando profundamente e depois deixando-se
esvair.
? Suspiros perturbados! ? protestou Robert. ? Nunca cheguei aos
suspiros perturbados! Posso ter bufado com opressão máscula. ?
Exemplificou, cruzando firmemente os braços
e pressionando os lábios com um breve ronco.
? Ah, sim? E o que chamas a isto? ? Sebastian olhou para longe,
com um ar de enfado no rosto. Fungou ao de leve e depois soltou
o fôlego num suspiro longo e profundo.
? Chamo a isso um exagero. Chamo a isso perfídia! Morte a
quem diz tais coisas!
Oliver riu-se.
? Estou a ver que te sentes melhor. E o que nos trouxe essa
mudança de humor? Ela sempre aceitou casar-se contigo?
Robert pestanejou.
? Como...? Mas nem cheguei a contar que tinha feito o pedido.
O sorriso de Oliver alargou-se.
? Dez libras, Malheur.
Sebastian produziu algo que poderia ser considerado um suspiro
perturbado.
? Sim ? admitiu Robert calmamente. ? Ela aceitou casar-se
comigo. A cerimónia terá lugar daqui a quatro dias. Só preciso de
tratar da licença e dos acordos. Ainda bem que
vos encontrei juntos, pois queria que fossem os primeiros a saber.
Não sei se vão compreender, mas... ? Calou-se.
Nenhum deles disse nada, e esse silêncio confortável explicou a
situação de forma mais fluente do que Robert seria capaz de
fazer. Sebastian era capaz de fazer piadas com
tudo. Oliver estava sempre pronto a troçar dele. Mas sabiam
quando fazê-lo e quando deviam parar.
? Vocês dois são a única família que tenho ? declarou Robert, a
voz um tanto ou quanto roufenha. ? Gostava que me
acompanhassem no meu casamento. Que assinassem como
testemunhas.
Esse tipo de coisas.
? É claro ? concordou Oliver.
210
Sebastian encolheu os ombros.
? Sou exatamente o tipo de pessoa que escolheria para essa honra
caso estivesse no teu lugar. Louvo-te o bom senso.
Robert nem se deu ao trabalho de tentar perceber o que Sebastian
queria dizer com isso. Durante um breve instante ? muito breve ?,
Robert sentiu-se capaz de abraçar aqueles
dois. Quase quis fazê-lo ? estender os braços, agarrá-los e abraçá-
los. Haviam estado presentes nos piores momentos da vida dele ?
o funeral do pai, os dias que se seguiram,
ao dar volta aos papéis do pai e descobrir que ele fora ainda pior
do que imaginara...
Limitou-se a cruzar os braços, à laia de abraço.
? Seria muito importante para mim.
? É claro ? disse Sebastian, desviando-se de Robert ? que sabes o
que isto quer dizer, Oliver. Temos de organizar uma festa
completamente debochada e louca de despedida dos
dias de liberdade do Robert. ? Esfregou alegremente as mãos.
Oliver susteve-lhe calmamente o olhar.
? Louca ? repetiu. ? Debochada. Concordo completamente.
Robert sentiu uma pontada de apreensão.
? Pois, sabem ? disse ?, é muito simpático da vossa parte, mas
não será necessário.
Ignoraram-no, encarando-se.
? Ora, sabes como é. A cada um o seu, estás a ver? Afinal de
contas, estamos a falar do Robert. ? Sebastian passou a mão pelo
cabelo, desgrenhando-o. ? Muito bem, e quanto
às mulheres?
? A sério ? disse Robert, num tom mais severo. ? Sei que ainda
não disse os votos, mas devo insistir...
Mas os dois não lhe prestavam atenção.
? Já sei! ? exclamou Oliver, animando-se. ? Mary Wollstonecraft.
Tenho um exemplar de Uma Reivindicação pelos Direitos da
Mulher no meu quarto... vou levá-lo.
? Excelente ? concordou Sebastian, esfregando as mãos. ? E
recebi uma carta de uma americana curiosa... uma tal de
Antoinette Brown. Escreveu coisas extraordinárias sobre
a evolução e os direitos das mulheres. Levo-a comigo.
211
? Tenho um panfleto da Emily Davies.
Robert não conseguiu conter o esboço de um sorriso.
? Estava a pensar em levar um exemplar de Thomas Payne ?
disse Oliver ?, mas assim ficamos desequilibrados.
? A Violet ? lembrou Sebastian, com um gesto da mão. ? Ela
consegue ser de grande utilidade numa discussão.
? Ah, imagino que, assim de repente, ela sirva. ? Oliver levantou-
se e assentou a mão no ombro de Robert. ? Que ninguém diga
que os Irmãos Sinistros não sabem como ser depravados.
? Tem de haver brandy! ? Sebastian levantou-se. ? E até o vamos
beber, mesmo com o Robert a parar depois de dois cálices, que é
o que faz sempre.
? Tem de haver comida! ? declamou Oliver, imitando a pose de
Sebastian. ? E não a vamos beber, pois engasgávamo-nos.
Sebastian riu-se.
? Na véspera do teu casamento, Robert, vamos oferecer-te as
delícias femininas com que sempre sonhaste. Tratos filosóficos
atrás de tratos filosóficos, todos eles a defender
mudanças políticas que resultariam na inversão absoluta da
presente ordem social. Apresentaremos os seus ensaios e depois...
? Fez uma pausa, como se pretendesse uma ênfase
dramática. ? Depois, meus amigos, iremos discuti-los!
Robert sorriu e desviou o olhar.
? Vocês dão cabo de mim. Não sei o que faria sem vocês os dois.
Não sou assim tão mau.
? Por falar nisso ? adiantou Oliver. Assumiu uma expressão
momentaneamente solene. ? O teu casamento. O teu pai já não se
encontra entre nós, e a tua mãe não... aaa, nem sempre
sabe quais os seus deveres. Pensei que poderíamos ajudar.
Ao seu lado, Sebastian assentiu.
Robert estava convicto de que pensara em tudo. Já decidira o
presente de casamento. Destacara advogados em Londres que
tratassem dos acordos. Mas não ficaria surpreendido
se tivesse olvidado alguma coisa. Havia tanta coisa em torno do
conceito de família que ele, pura e simplesmente, desconhecia.
? Ajudar com...?
Oliver chegou-se à frente.
212
? Tem que ver com a noite de núpcias ? disse com ar muito
sério. ? Com o que se passa nessa noite. É preciso que saibas. ?
Baixou o tom de voz, procurando um efeito dramático.
? Quando um homem e uma mulher se amam, eles unem-se de
uma forma muito especial.
Robert deu uma cotovelada ao irmão.
? Vocês são terríveis ? disse. Mas não conseguia deixar de sorrir.
? Ora muito bem.
Na manhã seguinte, Minnie ergueu o olhar do pequeno-almoço a
tempo de ver a duquesa de Clermont à entrada.
A tia-avó Caro começou a levantar-se com dificuldade; Eliza já
estava de pé. Uma criada seguia a outra mulher, torcendo as mãos
e tentando transmitir desculpas silenciosas
pela intrusão.
Mas a duquesa não olhou para essas outras mulheres. Tinha o
olhar fito em Minnie.
? Vai casar-se com o meu filho daqui a três dias. Sabe que isso
vai ser um desastre absoluto.
Aquela mulher seria sua sogra durante décadas, recordou-se
Minnie. Não seria assisado tê-la como inimiga.
Também não seria bom deixar que a duquesa julgasse que ela se
acobardara. Minnie ofereceu-lhe um aceno quase impercetível de
cabeça, como se entre iguais.
? Veio dissuadir-me? Exigir que lhe devolva as cinco mil
libras? ? Levantou o queixo e devolveu a atenção à torrada que
tinha no prato. ? Irei rasgar o seu cheque.
A duquesa fungou e entrou na sala. Puxou uma cadeira para si
antes que a criada conseguisse mexer-se e sentou-se à mesa,
expectante.
? E então? ? exigiu. ? Sirva o chá.
Minnie assim fez, e depois, segundo a orientação da duquesa,
juntou-lhe açúcar.
Enquanto isso, as tias entreolhavam-se, como se discutissem
silenciosamente entre as duas se deveriam intervir. A duquesa, no
entanto, não lhes ligou. Pegou numa torrada ?
ligeiramente queimada ? e pousou-a no prato.

213
Minnie entregou-lhe a chávena e o pires. A duquesa bebeu um
gole e pousou-a, como se assim houvesse satisfeito as regras da
boa educação.
? E eu que pensava que a Miss Pursling tinha um pouco de bom
senso.
? E tenho. Veio espezinhar-me mais um pouco?
A duquesa abanou a cabeça.
? Só a mais iludida e romântica das mulheres na minha posição
julgaria que fazer uma birra à frente da futura noiva do filho
alteraria o desfecho. Está a par dos riscos. O
meu filho sabe a verdade. Fiz a minha oferta e isso não chegou. O
mundo raramente se compadece com a minha vontade. Quando
as coisas não correm à minha maneira, só resta uma
coisa a fazer. ? Com essas palavras, ergueu a torrada e deu-lhe
uma pequena dentada.
? E qual é essa coisa? ? perguntou Minnie.
A duquesa engoliu o pedaço de pão com um breve franzir de
cenho, pousou a torrada e mexeu o chá.
? Gosta de gatos, Miss Pursling?
Minnie foi surpreendida pela mudança do tema da conversa.
? Aprecio gatos, embora gostasse que o Pouncer deixasse de levar
fígados de ratos para a minha cama.
A duquesa espantou as imagens de entranhas de roedores com a
luva rendada.
? Alguma vez viu um gato a desculpar-se ou a admitir um erro?
? Os gatos não falam ? adiantou Caro, as suas primeiras palavras
nessa manhã.
A duquesa fulminou-a com o olhar.
? Uma mulher capaz de manter a sobrinha-neta infame em
segurança durante uma década saberá, por certo, compreender
algo dito num sentido figurado. ? Devolveu a atenção a Minnie.
? Já viu um gato a atirar-se a um alvo e a falhar?
? É claro.
? E o que faz o gato? ? A duquesa não esperou por uma
resposta. ? Ele finge que pretendia falhar. "Sim", diz ele, "deixei-
o fugir como aviso para todos os outros. Agora vou
passar cinco minutos a lamber as patas, tal como eu planeara".
214
? Ele diz isso? ? perguntou Minnie, com toda a inocência.
? Num sentido figurado. O que eu quero dizer é que deve ser o
gato. Todos respeitam os gatos.
? Bem, na verdade ? interveio Eliza ?, na altura da Peste Negra...
A duquesa estendeu a mão.
? Não polua a minha imagem figurada com factos irrelevantes! ?
bradou. ? Não há necessidade. ? Voltou a concentrar-se em
Minnie. ? Muito bem, decidi que irá passar a lua de
mel com o meu filho em Paris.
A mudança abrupta de tema deixou Minnie a abanar a cabeça.
? Isso parece... romântico. Tem a certeza?
? Exatamente ? disse a duquesa. ? Parece romântico, e por mais
que desaprove a existência de romance, sei perfeitamente de que
precisam bastante dessa aparência. ? Franziu
os lábios e olhou para a parede.
Minnie quase pensou que ela parecia embaraçada. Daí a pouco
voltou a falar ? pela primeira vez, sem olhar diretamente para
Minnie.
? Em segundo lugar ? continuou ?, talvez considere a hipótese de
não consumar o casamento.
? O quê? Porquê? Para que possa ser anulado?
A duquesa revirou os olhos.
? Isso é um mito horrendo. Não se pode anular um casamento
pura e simplesmente por falta de consumação. Acredite; consultei
todos os advogados de Londres quanto às formas
de acabar com um casamento. Conheço cada palmo da lei. Julgo
apenas que é melhor que o vosso primeiro filho não apareça antes
de dez ou onze meses após o casamento. Não deixe
que pensem que se casou porque estava de esperanças, caso
contrário, eles vão falar. Durante décadas.
? É mais um discurso figurado? ? indagou Caro.
? Experiência ? respondeu sombriamente a duquesa. ? O Robert
foi um bebé de oito meses.
Minnie arquejou e fechou os olhos, tentando expulsar as
implicações da mente.

215
? Foi prematuro ? explicou calmamente a duquesa. ? Os
primeiros filhos costumam ser. Há vinte e oito anos que o repito
todos os dias, por isso deve ser verdade. ? Fitou Minnie.
? Portanto, vai abster-se de relações maritais durante pelo menos
dois meses.
? Não o farei ? retorquiu Minnie. ? Não pretendo abster-me de
algo que quero fazer meramente porque pessoas que nunca vi
possam presumir mal de mim. Além do mais, tendo em
conta o meu passado, seria mais ou menos como um assassino a
temer ir para o inferno por ter falado mal do cavalo de um amigo.
? Mmm. ? A duquesa franziu o cenho e depois encolheu os
ombros. ? Bem, estava apenas a testá-la. Com o seu passado,
tinha de me certificar de que se interessava por homens.
É preferível descobrir tais coisas agora.
Parecia segura de si. Soava segura de si. Não obstante, Minnie
tinha a distinta impressão de estar a olhar para um gato a lamber
as patas. Eu até nem queria aquele rato.
? Por falar nisso, o motivo mais importante para ir a Paris. ? A
duquesa apontou para Minnie. ? Precisa de guarda-roupa novo.
Não se pode ficar pelo aceitável. Tem de ser
brilhante. Portanto, diga-me, minha menina, prefere vestir-se
como uma camponesa sensaborona ou só usa vestidos
repugnantes porque as suas tias-avós pobres a obrigam a isso?
Caro e Eliza arquejaram em uníssono do outro lado da mesa.
Minnie tossiu.
? Absolutamente. Nada me agrada mais do que virar um vestido
pela quarta vez! Se os punhos não estiverem a cair, não me sinto
à vontade. ? Fulminou a outra mulher com o olhar.
? Agradeço que não insulte as mulheres que me acolheram,
mesmo não tendo a obrigação de o fazer. Insulte-me à vontade,
mas não meta Caro e Eliza ao barulho.
A duquesa nem pestanejou.
? O que acha do meu estilo de roupas?
? Demasiado elaborado, demasiado conservador ? disse Minnie
sem hesitar. ? Acho que lhe fica bem, mas para mim...
? Excelente. O que escolheria para si? Que tipo de duquesa seria?

216
Os anos a folhear revistas de moda com Lydia agrediram-na com
uma sensação aguda de perda, algo que pareceu um murro no
estômago. Devia estar a escolher o vestido de noiva
com Lydia, que lhe diria como estava certa...
? Bem ? disse Minnie ?, não vou fingir que sou uma duquesa
convencional. Por mais populares que sejam agora, não gosto
dessas camadas de renda. Sentir-me-ia enterrada debaixo
disso. Quereria linhas limpas, tecidos claros. ? Suspirou,
imaginando. ? Muito tecido. Sem ter de continuar a poupar.
? E vai ter de aprender a cobrir essa sua cicatriz. A minha criada
pode...
Minnie dirigiu-se à outra mulher e lançou-lhe um olhar
repressivo.
? Isto? ? indagou, tocando na face. ? Ah, não. Eu quis ter isto.
Considero-a uma cicatriz de beleza.
A duquesa soltou uma gargalhada breve e levantou-se
abruptamente.
Minnie fitou-a.
? E então? ? disse a outra mulher, num tom irritado. ? Não temos
o dia todo. Tenho as revistas de moda no meu hotel. Se
comunicarmos as suas medidas à minha gente em França,
eles podem fazer as provas finais assim que lá chegar. E há muita
coisa que pode ser comprada aqui.
? Veio... veio até aqui só para me levar às compras? ? indagou
Minnie.
? Assim que se tornar duquesa de Clermont ? recomendou a outra
mulher, sem lhe responder à pergunta ?, não deixe que ninguém
lhe diga que pode ser outra coisa. Se não ouvir
o que dizem sobre si, essas coisas não podem ser verdade. Tem
de já ser uma duquesa quando a sociedade descobrir a sua
existência.
CAPÍTULO 21
Os dias até ao casamento de Robert passaram em grande
velocidade. Robert não sabia se deveria sentir-se entusiasmado ou
apreensivo. Sentia as duas coisas. Para começar, a

217
mãe acolhera Minnie debaixo da sua asa e chamara uma
costureira de Londres para garantir aquilo que ela chamava "o
básico".
Quando lhe perguntou, a mãe afugentou-o com um rude "Se vais
atirar a rapariga aos lobos, mais vale que envergue uma capa
vermelha".
Depois havia os fugazes momentos juntos. Teve alguns beijos
para atenuar o apetite ? se é que se poderia chamar apenas um
beijo à altura em que ele a encostara à parede e
lhe desabotoara a frente do vestido até meio. Na manhã do
casamento, o apetite era deveras aguçado.
Por um lado, ainda bem que a cerimónia estava marcada para
cedo. Na verdade, a hora de tal modo antecipada fora escolhida
especificamente para que chegassem a Paris ao final
do dia. Se o comboio postal do início da manhã não se atrasasse a
chegar a Londres, se o vapor fizesse um bom tempo a cruzar o
canal...
Mas foi incapaz de pensar nisso ao olhá-la nos olhos e ao dizer os
votos. O que o deixava tão nervoso não era apenas o desejo
físico. Quando ela prometeu amá-lo, acarinhá-lo,
Robert sentiu uma corrente elétrica a percorrer-lhe o corpo. E
quando ele prometeu o mesmo, isso pareceu uni-los de uma
forma que nem o beijo que se seguiu foi capaz de fazer.
Sabia que muitos dos seus compatriotas evitavam o casamento a
todos os custos. Viam o matrimónio como um incómodo, a
esposa como mais uma pessoa que os iria atazanar e reprimir.
Mas quando repetiu os votos, ouviu "até que a morte vos separe"
e teve esperança.
Separaram-se brevemente após a cerimónia. Minnie foi com as
tias-avós emalar algumas coisas; Robert supervisionou o
carregamento da bagagem. Só meia hora depois voltaram a
encontrar-se na estação. Não tiveram oportunidade de conversar
ao embarcar. Robert apertou a mão do irmão e depois a do primo.
Violet abraçou-o, e a mãe... inclinou a cabeça
na direção dele. Acenaram da janela do carro até que a estação
desapareceu no meio do campo.

218
? Quem teve a ideia ? murmurou-lhe Robert ao ouvido ? de
separar a cerimónia e a consumação do casamento com uma
viagem de dezasseis horas?
? Eu. Acho.
Virou-se mais na direção dele e Robert vislumbrou-lhe o rosto.
Não parecia ansiosa com o que se avizinhava; parecia infeliz.
Minnie voltou a olhar pela janela com um ar quase
de anelo, para as silhuetas da cidade que se iam reduzindo à
distância. Os edifícios iam-se fundindo numa amálgama de pedra
cinzenta e numa floresta de chaminés de tijolo.
Nada de que fosse ter muitas saudades.
Depois, Robert recordou que ela tinha duas tias-avós que a
amavam, e que ele a estava a levar embora.
? Dá-me um momento ? pediu ela. ? Não tarda estou como nova.
Só pensei... pensava mesmo que a Lydia ia estar presente no meu
casamento.
Robert precisou de um instante para se lembrar de quem deveria
ser essa Lydia ? Miss Charingford, a amiga que estivera sempre
ao lado dela.
? Enviei-lhe uma carta a contar tudo, absolutamente tudo sobre
mim. Pedi-lhe que fosse. Pensei que, pelo menos, se fosse
despedir de mim ? disse. ? Mas nem sequer enviou uma
mensagem.
Robert estivera à beira de sugerir que passassem a viagem a
preparar-se para a cama do hotel em Paris, mas ali não havia
lugar para divertimentos libidinosos. Em vez disso,
Robert tocou-lhe na mão ao de leve, receando dizer alguma coisa
que lhe piorasse o estado de espírito.
Mas Minnie não estava a brincar quando dissera que precisaria de
pouco tempo para recuperar. Quando chegaram a Londres já
sorria outra vez.
? Sabes ? disse ?, a última vez que estive em Paris tinha oito
anos. Na altura, a viagem até ao Continente demorava dias. ?
Abanou a cabeça. ? Dias para chegar a qualquer
lado.

219
? Só visitei o Continente quando atingi a maioridade ? disse
Robert. ? Por isso só conheço o tempo em que o comboio e o
vapor nos levam para todo o lado.
Chegaram a Londres às dez e meia, a Southampton pouco depois
do meio-dia e às três dessa tarde encontravam-se em solo francês.
Fiel à palavra de Minnie, qualquer vestígio
de infelicidade por parte dela já desaparecera. Minnie observou
tudo com interesse, sorriu como se nada se passasse... e, quando
finalmente entraram no último comboio do dia,
encostou a cabeça ao ombro dele, numa mostra de simples afeto
que o levou a suster a respiração e a pensar em gelo a ser-lhe
aplicado diretamente nas coxas.
Ainda bem que não sugerira que fizessem algo mais. A simples
sensação da mão dela entrelaçada na sua deixava-o a interrogar-
se se tomaria a esposa pela primeira vez enquanto
a composição deslizava pelos carris.
Não. Ia tomá-la num quarto de hotel. Numa cama. E seria
incrível.
Seria incrível, repetiu para consigo ao chegarem a Paris.
Voltou a repeti-lo, entre dentes cerrados, quando descobriu que a
mãe marcara uma prova aquando da chegada de Minnie ? um
atraso de uma hora às nove da malfadada noite, antes
do jantar, na sua noite de núpcias.
Quando finalmente se sentaram para uma refeição íntima juntos,
Minnie com um robe de brocado pesado que a cobria do pescoço
aos pés, eram onze da noite. Robert debicou a comida,
mal-humorado; ela fez o mesmo. Dispensaram os criados após o
segundo prato; Minnie disse não ter fome e pousou os talheres.
Levantou-se.
Era quase meia-noite. Haviam passado a maior parte do dia em
viagem; durante grande parte desse dia, ele pensara no que
poderia fazer nessa noite. E agora, a noite chegara.
? Minnie ? disse ele lentamente. ? Depois da viagem extenuante
deste dia, pensei que poderíamos...
Minnie desatou o cordão do robe, que deixou cair ao chão,
ficando o resto da frase dele por dizer.
? Pensaste que poderíamos? ? incitou ela, sorrindo-lhe.
220
Céus, aquela voz. Céus, aquele corpo. Minnie usava uma túnica
de tecido branco transparente, bordado com volutas que ligavam,
sugestivamente, as ancas aos seios. Que estavam
livres de restrições. Junto às pernas, o tecido tinha algumas
aberturas; ela deu um passo na direção dele e o tecido agitou-se,
oferecendo vislumbres de pele nua, de pernas
compridas.
Estivera mesmo prestes a sugerir que adiassem a noite de núpcias
até terem descansado um pouco?
? Pensei ? concluiu, com o sangue a descer-lhe pelo corpo ? em
passar o resto da noite a arrebatar-te.
Minnie sorriu.
? Era o que eu pensava que fosses dizer.
? Olha para ti. ? E agora podia fazê-lo. Levantou-se e contornou-
a. ? Olha só para ti.
O tecido desenhava-lhe os altos dos mamilos. Os sonhos e a
imaginação febril empalideciam perante a realidade. Um sonho
conjurara um peito com a forma de uma meia-lua perfeita,
mas não contemplara as sardas espalhadas pela pele. Talvez
imaginasse pele macia e pálida. Àquela distância podia ver a pele
de galinha provocada pelo frio. E havia uma paleta
de cores ? uma leve cobertura rosada, onde o sangue lhe corria
abaixo da pele, vestígios de creme e branco. Conseguia até
identificar uma linha branca pálida ao longo de uma
costela, que poderia ser uma cicatriz.
Aquelas pequenas imperfeições fascinavam-no. Não se tratava da
imaginação de um pintor, não era uma fantasia irreal a
desenrolar-se na mente dele. Aquela era Minnie, e ela
estava ali, verdadeira e a respirar.
Laços de fita vermelha sustinham-lhe a túnica pelos ombros. O
do braço direito estava solto, e parecia querer provocá-lo, o nó
meio feito, que não fora apertado devidamente,
a ameaçar soltar-se e deixar que o tecido transparente lhe
deslizasse pelo corpo.
? Lembras-te daquele defeito fisiológico fundamental? ?
murmurou ele.
? Se me lembro? Tencionava aproveitar-me dele.
221
? Oh. ? Aproximou-se dela. ? Ótimo. Então, faz de conta que eu
disse algo brilhante.
Segurou-lhe os ombros e puxou-a para um beijo. Não foi apenas
um beijo, lábios contra lábios. Nem sequer foi apenas o corpo
dele pressionado contra o dela. Sentiu a respiração
de Minnie a acelerar, sem a contenção do corpete. As mãos
percorreram-lhe o corpo. Os seios eram redondos e firmes; os
mamilos entumeceram quando os dedos roçaram neles. Era
o início de tudo.
? Imagina que disse qualquer coisa brilhante ? resmungou.
A partir do seio, a distância era curta até àquela fita solta,
bastando apenas um gesto dos dedos para desfazer o laço e baixar
a seda. Voltou a encontrar-lhe o peito, desta
vez destapado. A textura da pele feminina ? tão quente e vibrante,
macia ao toque e, não obstante, firme quando acariciada ?
fascinava-o.
Mas ela foi ainda menos tímida do que ele. Enfiou-lhe as mãos
por baixo da casaca, em torno da cintura. Beijou-o profunda e
lentamente.
? Estás com medo? ? murmurou ele, acercando-a da cama.
? Sei que devia estar... mas não. Não. ? Sempre achara aquela voz
sensual, mas agora era absolutamente erótica.
Minnie sentou-se na cama e arqueou o dedo.
? Também não me sinto particularmente inteligente. Quero-te.
E, com isso, qualquer esperança que ele tivesse de se conter
evaporou-se. Despiu a casaca enquanto ela lhe desabotoava o
colete. Despiram-lhe juntos a camisa, com ambos a
rirem-se quando a mão dele ficou presa no punho e ela teve de o
virar do avesso e puxá-lo. Os dedos dela exploraram-lhe o peito,
deixando-o a tremer enquanto ele tratava das
calças.
Quando as calças e a roupa interior formaram um monte no chão,
ela puxou-o para a cama e voltou a beijá-lo. Este beijo foi ainda
melhor ? pele contra pele, as mãos dela a
afagarem-lhe as coxas e depois a explorarem-lhe gentilmente o
órgão. Quando as línguas se encontraram, ele soltou-lhe a outra
fita do ombro. Ficaram peito contra peito e depois,
222
após ele a ter privado atrapalhadamente da camisa de noite,
pernas contra pernas. Pegou-lhe nas mãos e pressionou-as
abertas.
Sentiu a boca dela quente contra a sua. Tinha o membro duro
contra a anca dela. Beijaram-se, a pélvis dele a esfregar-se na
dela, e todos os seus sonhos, toda e qualquer fantasia
mais sórdida, empalideceram perante a realidade. Ia tê-la.
Finalmente ia tê-la. Abriu-lhe as pernas e ajoelhou-se entre elas.
Quando deparado com as bonitas pregas rosadas do sexo dela, foi
impossível não lhes mexer. Ela soltou um breve arquejo ao senti-
lo ? não de choque, mas de encorajamento. Empurrou-se
contra os dedos. Os dedos não bastavam. Deitou-se sobre ela,
tomando cuidado com o peso. Ela gemeu quando sentiu a cabeça
da ereção a tocar-lhe a abertura íntima.
? Ó, meu Deus! ? exclamou ela, naquela voz excitante. ? Robert...
? Céus. Quero-te tanto.
Introduziu-se um centímetro dentro dela.
Minnie respirou fundo e levou a mão aberta ao peito dele ? não
numa carícia, mas numa pressão leve que o afastava, e ele parou.
Sentiu uma leve dor nos bíceps ao imobilizar-se
por cima dela.
? Dói? ? perguntou.
? Não... ? Minnie esboçou um sorriso e depois, em direta
contradição, disse: ? Só um bocadinho.
Foi o suficiente para rebentar a bolha de desejo insensível que o
tomara completamente. Estava a apressar-se. Estava a forçar-se
praticamente sem um beijo e uma carícia que
a preparasse.
? Não pares ? pediu ela, mas quando ele se introduziu mais, o
corpo de Minnie retesou-se.
O prazer que ele sentia só serviu para lhe ampliar o desconforto.
Ela fechou-se em torno dele ? macia e quente, apertada, tão
apertada. Ela sabia bem. Mas ele sentia-lhe os
músculos, tensos e hirtos, por baixo do corpo. Os dedos dela
agarraram-se aos lençóis. Tinha o maxilar cerrado, como se
precisasse de um esforço sobre-humano para ranger os
dentes.
223
? Desculpa. ? Tentou beijá-la. ? Sinto muito.
Minnie ergueu a mão e tocou-lhe na face.
? Deixa de te preocupar, Robert. Eu digo se ficar insuportável.
Suportável. Aquilo que era bom para ele era suportável para ela.
Apenas bom.
De alguma maneira, ele imaginara que a relação sexual com ela
seria diferente. Que a complexidade daquilo que sentia por
Minnie, a harmonia entre eles... Imaginara que tudo
isso faria com que aquele momento pudesse ser diferente. Que,
de algum modo, ele entraria nela e o mundo ficaria em chamas.
Saber que era apenas suportável para ela despojava o ato de tudo,
menos do prazer físico. Aquela era a sua noite de núpcias. Por
mais tolo e ingénuo que isso soasse, devia
ser mágica.
Ao entrar nela, devia sentir-se diferente. Ansiava por algo mágico
que lhe saísse da carne ? algo secreto que os arrebatasse. Algo
que tornasse o ato mais do que bom para
ele, mais do que suportável para ela. A ser assim ? com o corpo
dela por baixo do seu, tão sensível, tentou reprimir a ideia, mas
não conseguiu ?, preferiria ter usado a mão
esquerda.
Não importava como a tomava, lenta ou rapidamente, por mais
que lhe passasse as mãos pelo cabelo ou as pousasse junto aos
ombros dela, não havia magia no ato. Era suposto
ser diferente quando se fazia amor com a mulher de quem se
gostava.
Se for bom na cama, talvez me apaixone por si.
Ela dissera-o a sorrir, mas ele não se apercebera do quanto queria
que ela o amasse. Ansiava por isso, e sentia a possibilidade a
desvanecer-se a cada estocada meramente suportável.
Fechou os olhos e pensou em Inglaterra, concentrou-se nos
pequenos prazeres do ato ? o som agradável do seu corpo a entrar
nela, o calor lento do prazer, que se acumulava
ao fundo da coluna.
? Meu Deus, Minnie ? disse, e entrou com mais força nela.

224
Era bom. Bom chegava. Ela chegava ? o corpo dela, a apertar-se
em torno dele, as ancas, os seios que lhe roçavam no peito a cada
investida. E depois, nos últimos momentos,
foi muito bom. Chegou com intensidade dentro dela, a libertação
a imobilizá-lo num momento quase tão doce como ele desejara.
Quando terminou, soltou-se dela e deitou-se, percorrendo-lhe as
costelas com os dedos.
Muito bem. Mais um sonho romântico e idealizado que era
vítima da realidade. Não valia a pena chorar por causa disso. E...
não seria sempre assim para ela, pois não? Esperava
que não. Quase desejava ter pedido conselhos a Oliver.
A seu lado, Minnie virou-se para ele. Continuava sem conseguir
encará-la. Lentamente, Minnie pousou a mão no braço dele.
? Não quero alarmar-te. ? A voz tinha uma certa frieza; Robert
virou a cabeça para o lado e olhou-a o melhor possível naquela
luz débil.
? O que foi?
? Acho que o fizemos mal.
Robert sentiu o corpo a ficar hirto. Se ela não o tivesse dito,
podiam fingir. Afastou-se discretamente dela.
? Segundo ouvi dizer, a primeira vez é a pior. Para as mulheres.
Vai... melhorar. ? Tinha de melhorar.
? Não ? repetiu ela, com mais gravidade. ? Estivemos a fazê-lo
mal. Sei o que é suposto sentir no fim. E o que aconteceu
contigo? Comigo, não aconteceu.
? Eu sei ? retorquiu ele. ? Céus! Não tens de me dizer isso. Mal
suportaste o ato. Não precisas de me esfregar na cara que não
consegui dar um orgasmo à minha esposa. Estou
bem ciente da verdade.
A reação exagerada foi recebida com silêncio, e Robert libertou
um suspiro entrecortado.
? Não quero criticar ? acabou ela por dizer. Dadas as
circunstâncias, ela parecia extraordinariamente razoável, o que o
irritou ainda mais. ? É só que... da maneira que o
estávamos a fazer, nunca ia acontecer comigo. E... bem, até
esperava que acontecesse.
? Como não ia acontecer? Como sabes?
225
Minnie limitou-se a olhá-lo, e Robert percebeu que estava irritado
com a esposa porque não a levara ao êxtase. Porque tivera mais
satisfação do que ela.
Magnífico trabalho, Robert.
? Desculpa. ? Suspirou. ? Não devia gritar contigo. A culpa não é
tua. ? Respirou fundo.
Minnie agarrou-lhe o braço.
? Somos inteligentes. Vamos encontrar maneira. Temos dez dias
em Paris para acertar.
Maldição! Dez noites como aquela? Seria mesmo ele o primeiro a
recuar.
? Nove ? corrigiu Robert. ? Um já foi.
? Este ainda não acabou. ? Minnie mordeu o lábio. ? Não tenho
experiência com homens, mas... Queres que te mostre?
? Mostrar-me?
As faces dela coraram ao de leve.
? Tu sabes. Mostrar-te o que faria sozinha.
Depois do espetáculo em que ele transformara a noite, era
impossível que ainda a quisesse. No entanto, aquelas palavras
acenderam-lhe algo ao fundo da mente, um toque de interesse.
Pigarreou.
? Não tenho mais nada planeado para esta noite.
Minnie riu-se.
? Imagino. Começa aqui. ? Levou a mão entre as coxas.
? Eu comecei aí.
? Um pouco mais acima. ? Fez qualquer coisa com a mão, algo
que ele só viu quando se sentou e se concentrou nos dedos dela.
Não entraram na passagem, concentrando-se, isso
sim, no alto reluzente que ela tinha entre as pernas. Os gestos
eram leves e rápidos. Susteve a respiração uma vez e depois
voltou a suspirar.
Ele imitou-a.
? Em que estás a pensar?
Minnie encontrou-lhe o olhar.
? Em ti. Lembras-te de quando me atiraste a cola?
? Mmm.
? Nessa noite fui para casa e pensei em ti a despires-me.
226
Ele acabara de verter a sua semente nela. Não devia ser capaz de
nova ereção antes de mais algum tempo. O sangue, no entanto,
fluía-lhe para o membro.
? Engraçado ? disse ele, num tom roufenho. ? Nessa noite pensei
em qualquer coisa do género.
? Pensava bastante em ti à noite ? admitiu Minnie. ? Era...
embaraçoso.
? Houve uma altura em que pensei que a minha mão esquerda
tinha o teu nome gravado. Bastava tocar-me e pensar em ti...
Tinha o corpo dela aberto à sua frente, o cabelo espalhado numa
massa sobre a almofada.
Afastou-lhe os joelhos para ver o que ela estava a fazer. Quando
o fez, sentiu a garganta ressequida. A pele parecia suavizar-se
enquanto ela se tocava. Era de um rosa escuro
entre as pernas, com os lábios inferiores a desabrocharem à luz
rosada. O tom atraía-o, convidando ao toque.
As mãos delas pressionavam a carne num movimento experiente,
e ele via-lhe a passagem a reluzir. Cheirava a diferença no ar ? o
aroma da excitação crescente.
? Bastava-me pensar em ti e ficava duro como uma pedra. Céus,
Minnie, continua a fazer isso.
Nunca a imaginara assim ? a dar-se prazer ?, mas era mais
excitante do que qualquer dos cenários que inventara.
? Preciso de mais um pouco. ? As pestanas estremeceram. ?
Queres ajudar?
Robert sentia a garganta seca.
? Adorava. Como?
? Toca-me. ? Curvou a mão em torno de um seio. ? Assim.
Robert baixou-se e levou-lhe a mão ao seio, percorrendo-lhe a
curva com o dedo.
? Mais. Mais força ? incitou-o ela.
Tomou-lhe então o mamilo na boca. Minnie soltou um breve
gemido, com o corpo a arquear-se ao lado do dele. O gemido
devolveu-lhe a vida à ereção, passando de levemente interessada
a totalmente pronta.
? Sim ? gemeu ela. ? Por favor. Assim mesmo.

227
Começou por lambê-la e depois mordiscou-a ao de leve. Os
gemidos intensificaram-se.
Robert assentou a mão sobre a dela, no sexo de Minnie. Sentia-a
a tocar-se, sentia a cama a abanar com o ritmo dos dedos. Estava
húmida quando a penetrara; agora estava inundada.
Escorregadia e gloriosa. Os dedos dela pressionavam com mais
força; cada vez mais; os dele movimentavam-se juntamente com
os dela, apreciando a maravilhosa suavidade.
? Queres saber como foi a primeira vez que pensei em ti? ?
perguntou ele. ? Na noite em que nos conhecemos. Céus, o
encontro foi tão diferente quando o revivi. Uma mulher
com uma voz como a tua, uma figura como a tua, a encontrar-me
sozinha atrás de um sofá? Pensei em ti de joelhos, a fechar esses
lábios astutos à volta de mim. E eu desejava-te.
Minnie chegou ao clímax com um grito febril. O corpo
estremeceu-lhe em ondas de prazer. Por um instante, era como se
essas ondas também o percorressem. Quando ela terminou,
ele mal conseguia pensar. O corpo gritava as suas exigências.
Não pediu. Não falou. Limitou-se a abrir-lhe as pernas e a entrar
nela.
Desta vez mergulhou nas profundezas dela com uma estocada
firme. E agora sentiu-lhe a diferença no corpo. As breves ondas
que ainda a percorriam prenderam-lhe o membro. Estava
molhada com o desejo.
Devolveu-lhe a mão ao seu lugar.
? Não pares ? pediu, num tom rouco. ? Continua assim.
As ancas dela foram ao encontro das dele. A mão continuou o
movimento, um estímulo adicional na base do membro. Robert
sentia-lhe o prazer à sua volta, primeiro a desvanecer-se
e depois a recrudescer, quando a tomou. E ao passo que fora
como um dique a rebentar com o primeiro orgasmo, desta vez ela
chegou rapidamente ? em menos de um minuto, com
a libertação a ser um jorro escaldante de desejo puro que o
manteve preso.
Robert não se conseguia fartar. Investiu uma e outra vez, cada
estocada melhor do que a anterior, acumulando-se até ao
crescendo que o avassalou em ondas imensas. A segunda
228
libertação foi quase dolorosa. Foi suja, peganhenta e errada, e
soube tão, tão bem.
Não pretendera tomar a esposa virgem duas vezes na mesma
noite ? sobretudo depois daquela primeira vez desastrosa. Perdera
o controlo assim que a vira a tocar-se entre as
pernas. Isso provocara algo que invocara um instinto profundo e
primevo. Deixara de pensar em absoluto.
A segunda vez fora tudo o que ele esperara, e mais ainda.
Depois beijou-a, e ela devolveu-lhe o beijo. Parecia
impossivelmente suave à volta dele, a derreter-se. Era isso que
ele pretendera ? aquela união.
? Robert ? acabou ela por dizer ?, acho que pensei que... sendo o
que és, pensei que tivesses alguma experiência. Tens?
? Depende do que consideras experiência ? respondeu ele
cuidadosamente.
Ela não disse nada.
? Quando tive idade suficiente para começar a ganhar experiência
já tinha uma certa noção daquilo que o meu pai era. Não queria
ser como ele. Portanto, tinha de ter a certeza,
a certeza absoluta, de que não estava a obrigar ninguém a fazer
fosse o que fosse. ? Sentia a face a arder. ? Além disso, tinha
ainda de ter a certeza de que não ia deixar-me
dominar, como o meu pai, por instintos físicos primitivos. O
desejo deixa-me idiota. Tinha de me certificar de que não me
tornava também egoísta.
Minnie continuou sem dizer nada.
? Houve algumas festas em que... as coisas ficaram muito perto, e
teriam chegado a esse ponto, caso eu permitisse que as coisas
seguissem o seu ritmo natural. Mas eu encontrava
sempre um motivo para não o fazer. Ela estava interessada na
minha fortuna, não em mim. Ela acreditava que teria uma
proposta de casamento em seguida. Nunca parecia honesto
tomar uma mulher que queria um duque, quando eu estava apenas
a ser eu.
Olhou para o teto, sentiu a mão dela no seu corpo e encolheu os
ombros.

229
? Acho que ? acrescentou cuidadosamente ?, dado o uso que dei à
minha mão esquerda, não devia ser considerado virgem. Já tive
dezenas de experiências sexuais. Só que... não
com outras pessoas. Não estava a guardar-me para o casamento.
Só para ti.
Não o disse. Parecia algo demasiado íntimo, demasiado próximo
do calor do ato para partilhar.
Não fora assim que imaginara a relação sexual nos seus
devaneios românticos. Nestes, havia demasiadas flores e raios de
luar, frios, perfeitos e limpos.
Aquilo... aquilo era quente e sujo, e ele queria repeti-lo com uma
ferocidade que não compreendia.
? Agora fizemo-lo bem?
Minnie aninhou-se contra ele.
? Oh, sim ? disse ela, como num sonho. ? Muito bem.
Robert fez questão de se lembrar daquilo: se ela bocejasse nos
seus braços depois do ato, ele teria feito um bom trabalho.
Esgotar a esposa: ora aí estava um belo objetivo.
Com as pálpebras a fecharem-se, sentiu uma pontada de orgulho
a percorrê-lo.
Ele dissera-lhe que não tinha expectativas quanto ao amor.
Não era que não acreditasse em amor. Pensar em amor era como
água no deserto. Sim, esse era um cliché idiota, algo que o fazia
pensar num homem esfarrapado a cambalear pelo
Sara, em busca de um oásis no meio das dunas.
Mas a Antártica também era um deserto ? um deserto frio,
tornado seco porque a água se transformava em gelo ainda no ar.
Portanto, ele acreditava no amor. Sempre acreditara. Passara a
vida cercado por água; o problema era que sempre estivera
congelada. Amara com tanta intensidade quanto se atrevera
e observara o amor a congelar à sua frente. Agora, ao analisar os
sentimentos, não se admirou ao perceber que a amava. A surpresa
era que desta vez, quando se atreveu a beber
um gole, encontrou água, e não gelo.
Sentia-se capaz de chorar.
? Isto ? disse a Minnie ? foi... realmente... o ato mais avassalador
em que já participei. E quero repeti-lo.
230
? Amanhã ? murmurou ela. ? Afinal de contas, temos mais nove
dias.
CAPÍTULO 22
Antes de o Sol chegar ao horizonte, Minnie acordou com os
lábios do marido contra o pescoço, os braços dele à sua volta.
Dormira um sono exausto; tinha a vaga noção de que
ainda estava cansada. Mas não importava. Se estava cansada, era
um cansaço agradável, o cansaço que apreciava a sensação do
corpo dele contra o seu, das mãos dele a percorrerem-lhe
as costelas num gesto possessivo. Parecia mais um sonho do que
um despertar. Sentia-se quente, e o toque dele era doce.
Se a véspera fora uma descoberta, esta manhã prendia-se com a
exploração ? com o encaixar das mãos dela na curva das costas
do marido, com o percorrer-lhe o peito, apercebendo-se
dos pontos sensíveis. A ansiedade inebriante e insistente da noite
de núpcias fora substituída por uma sensação de maravilha calma.
Quando ele a penetrou, já estava pronta. Naquela manhã, as
estocadas eram um embalar gentil, um beijo com todo o corpo,
um ato que lhe foi provocando o orgasmo por partes,
em vez de o arrancar à força.
Quando ele terminou, encostou a testa à dela.
? Bom dia.
O céu começava a ficar rosado. Ela não teria tido uma noite
completa de sono, mas não queria voltar a mergulhar em sonhos.
Queria capturar aquele momento e prolongá-lo para
sempre.
? Bom dia.
Ele não a largara.
? Sabes ? disse ele ?, estou esfomeado. Se bem me lembro da
minha última viagem, há uma padaria ao fundo da rua que já deve
ter qualquer coisa pronta.
Quando acabaram de se vestir, a luz matinal já inundara as ruas lá
em baixo. O hotel em que se encontravam hospedados ? um local
elegante; na véspera, não prestara de todo
atenção ao nome ? dava para uma avenida larga. A um lado
ficava um parque, rodeado por uma vedação metálica. Do outro
marchavam edifícios de pedra de fachadas imponentes.
231
Robert levou-a por uma rua lateral além do parque. A pequena
padaria, na verdade, era um café com vista para o rio Sena. E não
apenas o Sena; o hotel ficava no coração da
cidade, a meros passos da Île de la Cité.
Meses antes, nunca lhe passaria pela cabeça que um dia estaria
em Paris com um marido. Nunca sonharia com um hotel a meros
quatrocentos metros da catedral de Notre Dame. Era
mais do que Lydia alguma vez imaginara ? mas não. Pensar na
amiga provocava-lhe uma dor no coração.
Em vez disso, concentrou-se em tudo o que era antigo e belo,
tudo o que era brilhante e novo. Os toldos coloridos; os prédios
elegantes; o pequeno bando de pombos que se aproximou
deles enquanto comiam, meneando as cabeças com interesse na
direção dos croissants que Robert comprara ao padeiro.
Os folhados eram tão saborosos, cremosos e estaladiços que
Minnie quase não os queria partilhar com os pássaros.
Mas enquanto atiravam os restos do pequeno-almoço aos pombos
que arrulhavam ? ao mesmo tempo que procuravam certificar-se
de que as intrépidas aves castanhas mais pequenas
também recebiam algumas migalhas ?, um menino de muletas
aproximou-se. Tinha uma boina de orelhas na cabeça, embora
não grande a ponto de lhe cobrir as próprias orelhas exageradas.
Deveria ser demasiado jovem para ter aquela expressão calculista
nos olhos. Mas a idade nada tinha que ver com a necessidade de
manha. Coxeou mais um passo na direção deles,
apoiando-se pesadamente na muleta. A instabilidade no andar era
demasiado exagerada para ser real. Havia coisas que não
precisavam de ser traduzidas.
Os dedos de Minnie fecharam-se sobre a pulseira que usava no
pulso.
Os olhos do pequeno brilharam, mais uma vez calculistas. Se
tencionara roubar-lhes as bolsas enquanto atiravam pão, a criança
mudou de estratégia rapidamente.
? Uns centimes, Monsieur ? disse o menino num inglês aceitável.
Tirou a boina e acenou na direção de Robert. ? Uns centimes para
o aleijadinho.

232
A pedir esmola em inglês... Bem, não seria de espantar. Afinal de
contas, tinham estado a falar um com o outro.
Minnie imaginara que Robert fosse enxotar o catraio, mas ele
parou e puxou de uma bolsa. Sem dizer nada, levou a mão ao seu
interior e de lá tirou uma moeda. Minnie viu o
cintilar do ouro quando a atirou ao menino.
Os dedos do rapaz voaram e agarrou a moeda em pleno ar por
reflexo. Mas a boca escancarou-se quando viu aquilo em que
agarrara. A muleta caiu-lhe; ele continuou a fitar a
moeda, sem se importar com mais nada.
Robert largou o braço de Minnie e deu dois passos em frente,
após o que se baixou e pegou na muleta.
? Da próxima vez ? disse, no seu francês com forte pronúncia
inglesa ?, não deixes cair a bengala. Outro homem poderia não ter
percebido que se tratava de um embuste e ser
menos compreensivo.
? M'sieur. ? O rapaz voltou a olhar para a moeda que tinha na
mão, depois pegou na muleta que Robert estendia e fugiu a
correr, sem quaisquer sinais de defeitos.
? Sabias que ele estava a fingir? ? perguntou Minnie.
Robert encolheu os ombros.
? Parecia provável.
? E deste-lhe... o que lhe deste, afinal?
? Uma moeda de vinte francos. Duvido que já tivesse visto uma
na vida.
Vinte francos. Isso valia quase uma libra. Para miúdo de rua, esse
tipo de prémio representava meses e meses de esmolas.
? Porquê, se sabias que ele estava a mentir?
Robert ofereceu-lhe o esboço de um sorriso.
? Os vigaristas também precisam de ajuda. Sei bem como é. ?
Olhou para a rua por onde o menino desaparecera. ? Sobretudo
quando é feito assim.
? Sabes o que é contar mentiras por dinheiro? ? Minnie sentiu o
sorriso a formar-se. Levantou-se, sacudiu as migalhas do vestido
e dirigiu-se a ele.
? É verdade. Algumas das minhas recordações mais antigas
prendem-se com mentiras por dinheiro.
233
Enfiou a mão dela na curva interna do cotovelo e começaram a
andar. À esquerda, uma vedação de ferro forjado separava o
carreiro do Sena. O rio corria ao lado deles. Minnie
recusava-se a acreditar que as águas pudessem ser castanhas e
sujas.
? A sério? ? Minnie fungou, sem acreditar. ? E que bugiganga
compraste?
? Não foi por bugigangas. ? Ofereceu-lhe um sorriso e afagou-lhe
o braço. ? Até é uma história divertida. Bem vês, os meus pais
casaram-se em circunstâncias... bizarras. O
meu pai convenceu a minha mãe de que a amava. Ela acreditou;
quando queria, o meu pai conseguia ser bastante convincente.
Mas o pai dela era um pouco mais vivido, e desconfiava
que os duques não se apaixonavam perdidamente por filhas de
mercadores de lã com grandes dotes. Muito menos depois de as
conhecerem há poucas semanas. Portanto, em vez de
entregar uma vasta soma de dinheiro ao meu pai após o
casamento, ele depositou tudo num fundo que daria rendimentos
enquanto a minha mãe fosse feliz.
Robert trouxera um outro saco da padaria. Abriu-o e entregou-lhe
um pão ? estaladiço, dourado e quente ? e tirou outro para si.
Começou a dividi-lo em nacos que atirou sobre
o corrimão para os patos.
? Não parece o início de uma história divertida ? duvidou Minnie.
? Bem, imagino que a informação para situar a cena não seja
propriamente bonita. ? Robert franziu o cenho e partiu um pouco
de côdea. ? Mas o resto é, prometo. Seja como for,
e resumindo: o meu pai não tinha dinheiro próprio, e a minha
mãe controlava o resto. Portanto, quando ela chegava de visita...
? A tua mãe visitava-te? Ela não morava contigo?
? Não, a maior parte do tempo, não. Não me lembro de a ver nos
três primeiros anos de vida. ? Coçou o queixo. ? Se ela morasse
com o meu pai, o fundo revertia para ele...
eram essas as condições. A minha mãe controlava o dinheiro
através da presença dela. Não queria que o meu pai recebesse um
cêntimo, e quando ele lhe disse que teriam de viver
juntos se ela me quisesse ver, ela mandou-o para o inferno.
234
Minnie recordou as conversas com a mãe dele. Ela dissera uma
série de coisas, mas não aquilo. Mas explicava muito. Na
verdade, explicava demasiado. Aquela história não se
estava a revelar divertida. Minnie pestanejou na direção do
marido, mas ele esboçava um sorriso, como se fosse tudo parte de
uma piada. Atirou pão ao ar e riu-se quando os
patos se digladiaram por ele.
? Bom, seja como for...
? Espera um pouco. O teu pai não deixou que a tua mãe te visse
nos teus primeiros três anos de vida?
? Correto. ? Franziu o cenho e partiu mais um pouco de côdea do
pão. ? Segundo as cláusulas do fundo, ele não controlava o
dinheiro, mas, legalmente, controlava-me a mim.
Por isso... ? Voltou a encolher os ombros, como se tudo aquilo
fosse perfeitamente normal. ? Não podemos censurá-lo por tentar.
Não podemos? Minnie podia.
Mas Robert continuou simplesmente a atirar pão à água e a falar.
? Quando fiz quatro anos ? continuou ?, eles tinham chegado a
um acordo. O pai da minha mãe deu algumas fábricas ao meu pai,
para que ele mantivesse os piores credores afastados.
? Relanceou Minnie. ? A Graydon Boots foi uma dessas fábricas.
Em troca, a minha mãe podia ver-me durante alguns dias, duas
vezes por ano. Eu tentava desesperadamente portar-me
bem sempre que ela aparecia... bem o suficiente para que, desta
vez, ela não se fosse embora. Como é óbvio, o meu pai apoiava-
me com essas tentativas. Quando fiz seis anos,
o plano brilhante dele foi o seguinte: iria fingir que não sabia ler,
para todos os efeitos, porque no seu estado depauperado, ele não
tinha como pagar um precetor. Ele estava
certo de que isso a convenceria.
Minnie clareou a garganta, que lhe parecia estranhamente
apertada.
? E convenceu?
? Quase. Representei o mais desgraçado dos catraios. Fingi que
não sabia o abecedário. Olhava vagamente para as folhas e
encolhia os ombros. Começava a recitar o alfabeto,

235
mas saltava do L para o P. Contei até cem e troquei os sessentas
pelos setentas. Somei cinco e seis e disse que era treze. ? Sorriu-
lhe. ? E o meu pai tinha razão... quase
resultou. Passados alguns dias, ela enviou uma carta ao pai dela,
ordenando que lhe enviassem outra arca com coisas.
Encomendou um livro de leitura numa loja local. E, todas
as tardes, recebia-me na sala dela, sentava-me e revíamos o
alfabeto. Era muito severa... militar, até. Tínhamos um horário
muito rígido.
? Tu... ? Minnie não conseguia imaginar o filho de um duque sem
saber ler nessa idade, mas também não era capaz de imaginar um
duque a crescer sem ver a mãe. ? Já sabias ler,
não sabias?
Robert encolheu tranquilamente os ombros.
? Obviamente. Não tinha muito mais que pudesse fazer, além de
ler. Depois de três dias a fingir ignorância, já estava a ficar farto,
a pensar quando poderia voltar ao meu
Robinson Crusoe. Mas estava a resultar... ela ainda não se tinha
ido embora. Quando chegámos ao "M é de Memé", mudei-o para
"M é de Mamã". Ela olhou-me severamente, com os
lábios cerrados, e quis saber porque eu dissera aquilo. Respondi-
lhe que era porque não queria ovelhas por ali, mas gostava de a
ter presente.
Minnie, de coração partido, não fazia ideia como ele seria capaz
de sorrir.
Mas Robert abanou a cabeça, num gesto que lhe parecia de
humor silencioso.
? Pelos vistos, aquilo foi abusar um pouco do mel, pois ela
abanou a cabeça e disse que naquele dia já não íamos aprender
mais o alfabeto; ela tinha cartas privadas muito
importantes a escrever e eu teria de brincar sozinho em silêncio.
Deu-me papel e um lápis e disse-me que me entretivesse a
desenhar.
? Não acredito que não lhe tivesses derretido o coração.
? Oh, não. Nessa altura, a minha mãe já tinha uma alma
endurecida. E sabia como me cativar. Cartas muito importantes,
muito privadas... repetiu isso duas vezes. Obviamente,
236
não pude resistir à tentação de as espreitar. Escreveu-as ao meu
lado, enquanto eu fingia desenhar pássaros. A sua carta muito
importante e muito privada dizia, vezes sem
conta, "O Clermont é um sodomita".
Sorriu com essa recordação ? da mãe a escrever obscenidades
sobre o pai ?, enquanto Minnie continuava estupefacta.
? É claro que lhe perguntei, "O que é um sodomita"? Assim se
expôs a minha tentativa infantil de cometer uma fraude. Acabara
de provar que sabia ler. Ela não disse nada. Limitou-se
a levantar-se e saiu da sala. Depois disso, ela e o meu pai tiveram
uma briga medonha. Julgo que, desta vez, ela lhe atirou com
coisas. E não a voltei a ver durante quase
dezoito meses.
Minnie não sabia o que dizer. Ele ali ficou, a sorrir, como se
tivesse narrado uma história divertida ? como a história sobre
como Minnie se perdera quando tinha sete anos
e enfiara a mão no bolso de outro homem, julgando que era o pai.
? Meu Deus ? disse ele ?, nem acredito no fedelho desprezível
que eu era.
Como podia ele sorrir por o pai o ter recrutado, aos seis anos de
idade, como arma contra a própria mãe? Como podia rir-se de a
mãe o ter abandonado? Como podia ele fingir
que havia algo de divertido no facto de o pai ter retirado um bebé
recém-nascido à mãe para obter mais dinheiro com isso?
? Sabes, Robert ? disse ela, engasgando-se com as palavras ?,
essa história não tem nada de divertido. Nada.
Lentamente, o sorriso desvaneceu-se.
? Não lhe achaste piada? Mas... - Franziu o cenho e esfregou o
queixo. ? À primeira parte não, isso eu compreendo. E... e
imagino que não seja uma história que acaba propriamente
bem. Não tinha pensado nisso, mas estou tão habituado ao fim,
que já nem reparo. Mas as partes intermédias... foram divertidas.
Não foram?
? Quando disseste "M é de-Mamã", estavas a falar a sério?
Por um segundo, os olhos dele perderam qualquer vestígio de
divertimento. Pareceu envelhecer, com as rugas minúsculas ao
canto da boca a realçarem-se enquanto cerrava os lábios.
237
No entanto, parecia tão jovem ? impossivelmente jovem, como se
o seu eu de seis anos continuasse a espreitar por trás dos olhos
dele, a ver a mãe a afastar-se.
? Talvez. ? Desviou o olhar e depois voltou a mirá-la. A alegria
urbana regressara-lhe ao rosto, mas agora parecia do avesso,
como se tentasse usar um chapéu que não lhe servisse.
? É por isso que não é divertida.
? Mas tem elementos engraçados ? insistiu ele. ? Somar cinco e
seis e obter treze?
A mão apertava com mais força o cotovelo dela. Atirou com tanta
força o naco seguinte de pão que um dos patos grasnou,
surpreendido, e afastou-se rapidamente, até que se apercebeu
de que estava a fugir de comida. E talvez tenha sido nesse
momento que ela se apercebeu do significado para ele. Para ele,
tinha de ser uma história engraçada. Aquela breve
narrativa sobre as mentiras a pedido do pai e sobre o desejo
imenso de que a mãe ficasse era uma narrativa sobre o destroçar
do seu coração de criança.
Aquele era o homem que compreendera que o casamento com a
esperada filha de um nobre acabaria em remorsos e recriminações
caso se soubesse que ele pretendia abolir o pariato.
No seu âmago, ele sabia o que seria ter uma esposa a afastar-se
dele, e rejeitara essa possibilidade ? rejeitara-a, embora isso
significasse boatos e escândalos, embora isso
significasse que os estratos mais elevados da sociedade nunca
aceitariam a sua família.
Não olhou para ela.
? E aquela parte sobre saltar partes do alfabeto? Pelo menos isso
terá sido divertido?
Era um homem que queria que a esposa o amasse, mas que não se
permitia esperar que tal acontecesse. Foi então que Minnie
percebeu que ela tivera algo que ele nunca conhecera.
Ela fora amada. O pai adorara-a até ao momento em que a
condenação iminente lhe quebrara o espírito. Ela tinha anos de
recordações felizes com ele. Depois de o pai ter desaparecido,

238
as tias-avós haviam intervindo. Ela podia não concordar com
tudo o que lhe diziam, mas elas amavam-na. Tratavam-na como
se ela importasse. Ela tomava o amor como garantido.
Sorte dela.
Ele tinha de se rir do que acontecera. Se não o fizesse, iria chorar.
Ela não o poderia ter compreendido antes daquele momento ?
pois naquele momento, ela percebeu que também
teria de se rir, caso contrário ficaria lavada em lágrimas por ele.
Ele olhava-a com tal urgência que Minnie não se atreveu a forçar
o assunto.
? Sim ? admitiu ela baixinho, entrelaçando os dedos nos dele. ?
Agora percebo. É engraçado.
Os primeiros dias em Paris pareceram joias a Robert. Como se
tivesse passado a vida atrás das nuvens e o Sol as rasgasse agora,
com uma força ofuscante.
Acordavam. Passeavam. Visitavam museus e pontos de interesse;
à tarde voltavam aos seus aposentos e faziam amor. Camarotes na
ópera ficaram por ocupar para terem mais tempo
na cama.
? Disseste que pensaste em mim de joelhos ? comentou ela certa
tarde. ? Como iria isso resultar?
Ele explicou-lhe. Ela insistiu em experimentar e, após algumas
instruções, o devaneio dele tornou-se realidade, a boca de Minnie
a abarcá-lo todo, as mãos dele nos ombros
dela. Arquejara quando os movimentos dela o fizeram atingir o
êxtase. Depois, seria mais do que justo retribuir o favor. Ele
precisara de um pouco mais para perceber o que
fazer, mas valera a pena.
Se for bom na cama, talvez me apaixone por si.
Estava determinado a tornar-se bom, e tinha anos de fantasias a
explorar.
Por vezes, as coisas que imaginavam revelavam-se
anatomicamente impossíveis, e eles acabavam no chão, às
gargalhadas. Por vezes ? como na altura em que a dobrara sobre a
secretária
? era muito, muito bom.

239
Na quarta noite em Paris, ele pôs-lhe rubis ao pescoço ? só rubis,
depois de ter despido tudo o resto ? e serviu-se dela.
Depois, ela dedilhou as pedras ao pescoço.
? É suposto ser um suborno? ? perguntou ela. ? Por esta altura já
deves ter percebido que não tens de me oferecer nada para me
levares para a cama.
? Eu teria percebido isso ? replicou ele alegremente ?, mas,
felizmente para ti, o desejo deixa-me tolo. E tu ganhas rubis.
Ela limitara-se a sorrir.
Mas ela tinha razão. Eram um suborno. Não pelos favores dela;
não gostava da ideia de pagar por sexo, nem casado, nem solteiro.
Mas naquela altura, ele queria que ela o amasse.
Queria-o com uma ânsia profunda e inexplicável. Nessa noite, ele
quase lhe dissera que a amava. Mas tinham quase uma semana
pela frente. Havia tempo para que o amor chegasse.
Não havia pressa.
Adormeceu com o braço à volta dela e, na manhã seguinte,
acordou na mesma posição. Os rubis que ela tinha ao pescoço
cintilaram-lhe à primeira luz, um portento vermelho-sangue
do que estava por vir.
Fitou-os e abanou a cabeça para se livrar de tão perturbador
pensamento.
E foi então que alguém bateu à porta.
*
Minnie acordou com uma corrente de ar e a memória de alguma
balbúrdia. Abriu os olhos; o quarto estava vazio. Pestanejou e
olhou em seu redor. Foi então que ouviu o murmúrio
de vozes no salão principal. Levantou-se, encontrou um robe e
dirigiu-se para a porta entre as divisões.
Estava um criado de pé no salão. Entregou a Robert, também de
roupão, um envelope castanho simples. Robert deu-lhe uma
moeda.
? Espere lá fora, para o caso de haver necessidade de uma
resposta imediata.
Fechou a porta.
? Um telegrama? ? indagou Minnie. ? Espero que não sejam más
notícias.
240
Sem mais nada vestido além daquela cobertura bordada, os rubis
que ele lhe pusera na véspera pareciam-lhe pesados, deslocados
no pescoço.
Robert passou o indicador por baixo da aba para quebrar o selo.
? Imagino que seja do Carter, o meu gestor de negócios. Pode
esperar até depois de... ? Enquanto falava casualmente, abriu o
envelope e olhou para o papel no interior.
Minnie viu-lhe o rosto a ficar exangue. Robert fitou a mensagem,
com os lábios a mexerem-se ao de leve. Finalmente, ergueu o
olhar.
? É do Sebastian.
? Mr. Malheur? O teu primo, o cientista?
Ele sugou um fôlego, qual cobra a sibilar.
? Esse mesmo.
? Robert, o que foi?
Ele continuava a fitar o papel. O rosto parecia talhado em
mármore: duro e branco.
? Diz ao Rogers que me emale as coisas. ? Falava num tom frio e
breve. ? Ele que as carregue no próximo comboio. ? Tirou um
relógio do bolso e franziu as sobrancelhas ao olhá-lo.
Depois abriu a porta e falou para o criado que aguardava. ? Envie
uma resposta: "Irei de imediato." ? Atirou nova moeda ao
homem, que desapareceu.
Robert continuou sem cruzar o olhar com Minnie, mas virou-se.
? Tenho de apanhar o expresso das nove e meia. Isso dá-me quase
uma hora. Não tenho tempo de...
? O que se passa?
Teve de o seguir para o vestiário, apressando-se para lhe
acompanhar as passadas longas.
O esgar nos lábios suavizou-se momentaneamente quando a
olhou.
? Tu ficas ? indicou, com mais gentileza. ? Tens compras a fazer,
e não há necessidade de...
Minnie assentou-lhe a mão no peito.
? Não há necessidade, além do facto de te ter dito os meus votos
há poucos dias. Para o melhor e para o pior, Robert. Achas que
vais mesmo fugir já de mim, deixando-me a imaginar
241
o que possa ter acontecido? Se tu fores, eu vou contigo.
Ela esperara que pudessem discutir, mas ele limitou-se a abanar a
cabeça e chamou o criado pessoal.
? O que foi? ? voltou Minnie a perguntar.
? Parece que acusaram um suspeito de sedição criminosa por
distribuir os meus panfletos ? explicou Robert. ? Encontrado...
ha. Detido. Acusado.
? O quê? Acusaram-te na tua ausência?
? Não. Não sou eu. ? Os lábios arrepanharam-se ainda mais. ? O
homem que eles têm é inocente, mas isso não vai impedir que
continuem com o processo. Talvez pretendam embaraçar-me,
sem pensarem que estão a destruir a vida de um homem que é, e
sempre foi, meu superior.
? Quem? Quem é ele?
O rosto dele contorceu-se e as mãos agarraram-se às dela.
? Oliver Marshall ? respondeu. ? O meu irmão.
CAPÍTULO 23
Robert reservou um compartimento inteiro de primeira classe no
expresso Paris-Bolonha. Não por uma questão de luxo, algo que,
naquele momento, não lhe diria nada. Era um simples
caso de sobrevivência. Receava o que poderia acontecer caso
fosse obrigado a empreender uma conversa educada. Assim, em
vez disso, deixou-se fitar a paisagem campestre enquanto
o sol subia no céu. As horas passaram.
Não ocupou um dos lugares confortáveis, nem partilhou os
apetitosos bolos de creme e fruta que Minnie lhes pedira. Provou
um biscoito sob a insistência dela, mas era como
se comesse cinzas, e pousou-o depois da primeira dentada. Ficou
de pé, junto à frente do compartimento, uma mão na parede, outra
com uma cigarrilha fora da janela aberta.
Há muito que percebera que usava as cigarrilhas como desculpa
para evitar companhia. Agora, o fio de fumo que entrava no
compartimento criava uma nova barreira, um muro difuso
entre ele e a esposa. Não obstante, deu uma baforada, com o
fumo acre a picar-lhe os pulmões, um castigo bem mais adequado
ao que provocara do que os remorsos que sentia.

242
Soubera que Stevens queria um culpado. Sabia e, na pressa ? e
luxúria ? do casamento, adiara a questão para quando regressasse.
Imaginou que teria tempo suficiente para tratar
do assunto.
Os quilómetros foram passando com estrépito, marcados apenas
pelo seu relógio e pelas aldeias por onde passavam. As horas
foram passando, pontuadas apenas pelo guincho dos
travões e pelo apito do comboio nas poucas paragens feitas pelo
expresso. Primeiro Beauvais, depois Amiens, ficaram para trás.
Só quando o comboio contornou as faias de casca
prateada da floresta de Crécy é que a esposa enfrentou o olhar
sombrio que ele lhe deu e se acercou.
? Sabes ? disse ela, juntando-se a ele na parede oposta ?,
castigares-te não fará com que o tempo passe mais depressa.
? Não? ? Bateu a ponta da cigarrilha pela janela e observou a
cinza incandescente a afastar-se com o vento. ? Também não o
abranda. Pelo menos que eu veja.
Minnie desviou o olhar. Bateu com os dedos na janela; cerrou o
maxilar.
Aquela reserva era um terceiro castigo, algo que magoava mais
do que o fumo que inspirava.
Mas, assim, também a estás a castigar a ela. Cerrou o punho e
abanou a cabeça.
Minnie não disse nada. O comboio descreveu uma curva e ela
encostou a mão à parede para se equilibrar. Foram cercados pelos
protestos do metal. O som do comboio, que avançava
com estrépito a cerca de cinquenta quilómetros por hora, engoliu
qualquer outra resposta que ela poderia ter dado.
Nem sequer uma semana de casado e ele já estava a estragar tudo.
Quisera... tanto. Não só uma esposa no papel, mas uma família
real. Alguém que o escolhesse.
Um sonho tolo. Naquele momento, nem ele se escolheria a si.
Bateu mais uma vez a cigarrilha e observou as faúlhas a voarem.
E foi então que sentiu o braço dela a abraçá-lo pelas costas. Ela
não disse nada, limitando-se a encostar-se a ele. Apertou-o até
ficar bem claro que não o largaria, por pior

243
que fosse o seu humor. Sentiu o fôlego a raspar-lhe os pulmões e
desta vez não era do fumo.
? Ó, Minnie ? ouviu-se a dizer. ? O que hei de fazer?
? Tudo o que puderes. Quando é o julgamento?
Robert abanou a cabeça.
? Não sei.
? És um duque. Tem de haver alguma coisa que possas fazer. ?
Fez uma pausa. ? Não sei quase nada sobre as questões legais.
Mas, os julgamentos não podem ser anulados?
? Este tem como objetivo embaraçar-me ? explicou Robert. ?
Uma forma de retaliação, segundo creio.
A expressão endureceu-lhe.
? Há qualquer coisa de estranho a decorrer em Leicester.
Comecei a investigar porque descobri o que o meu pai fizera com
a Graydon Boots. As acusações de sedição criminosa
surgem sempre quando as questões entre operários e donos
atingem determinadas proporções. São rancores presentes, e não
a aplicação correta da lei.
? Então será ainda mais fácil anular os procedimentos ? adiantou
Minnie.
? Não é assim tão simples. ? Robert voltou a bater a cigarrilha na
janela. ? O Sebastian disse que já tinham chegado repórteres de
Londres para cobrir o caso. Diz-se que um
homem das minhas relações cometeu um crime. Sem dúvida que
o Stevens julga que terá uma condenação fácil, que por estar fora
do país, eu não terei como reagir. Acha que quando
eu regressar, os estragos já estarão feitos. Eu terei ficado
embaraçado e o Oliver, hóspede em minha casa e alguém das
minhas relações, será marcado como criminoso.
? Mas isso não vai acontecer ? asseverou Minnie.
Robert permaneceu mais um pouco em silêncio.
? Posso pressionar para que o caso seja esquecido.
Os braços dela apertaram-no.
? Mas se interromper o inquérito, não poderei impedir o falatório
que vai resultar. O meu irmão... ele trabalhou tanto para
conquistar algum respeito. Está a começar a desenvolver

244
a reputação de ser um homem inteligente e justo. Se eu
interromper os procedimentos ? mesmo que viéssemos a ganhar,
alegando que os panfletos não tinham nada de radical ?,
a ideia de que ele escrevera esses panfletos com um pseudónimo
destruiria tudo aquilo por que trabalhou. Portanto, sim, posso
interromper os procedimentos legais, mas o meu
irmão não precisa apenas de um veredito favorável. Ele tem de
ser exonerado publicamente de todas as acusações.
? E vais tratar disso.
Ela disse-o com tanta confiança, de forma tão gentil que, por um
instante, ele quase acreditou.
? Farei tudo. ? A voz fraquejou-lhe. ? Certa vez, o meu irmão
disse-me que a família é uma questão de escolha. Que tipo de
irmão seria eu, se lhe virasse as costas neste momento?
Largou a cigarrilha, que rodopiou com o vento e desapareceu na
curva antes de a ver a cair. A floresta passou por eles, diminuindo
à distância. Agora só se viam pastos.
Contou três postes antes de voltar a falar.
? O meu pai violou a mãe dele.
Minnie susteve a respiração com um arquejo.
? Foi o que me ficou dele... que uma mulher, em tempos, foi
forçada a submeter-se à vontade do meu pai. Que a minha família
era tão poderosa que a justiça foi subvertida.
? Não foste tu.
? Foi o duque de Clermont. Tenho o nome dele, o rosto. ? Cerrou
os punhos. ? A responsabilidade dele. Acho que, de certa forma,
aceitá-lo como irmão foi o auge do egoísmo.
Mas não posso ignorá-lo. Se a família é uma questão de opção, eu
escolho-o. E voltarei a fazê-lo, até que...
Essa ideia era um peso que lhe oprimia o peito. Quase o fazia
cambalear. E cambaleou, quando o comboio voltou a mudar de
direção. Mas Minnie encostou-se ao ombro dele, equilibrando-o,
e depois levou-o até um dos bancos almofadados.
? Vais escolhê-lo até quando? ? perguntou.
? Até que as estrelas caiam do céu ? respondeu Robert. ? Pois foi
ele que me escolheu primeiro.

245
Não era fácil admitir tal vulnerabilidade. Sentia-se uma tartaruga
a quem lhe houvesse sido arrancada a carapaça, a ser preparada
para a sopa.
Mas ela não o menosprezou por isso. Ficou à frente dele, as saias
à volta dos joelhos dele. Os dedos percorreram-lhe as
sobrancelhas, pressionaram-lhe as frontes, antes de
voltarem a correr os sulcos na testa. Era uma sensação...
maravilhosa. Como se ela pudesse expulsar o remorso tenso das
feições dele.
? As minhas tias costumavam fazer isto uma à outra ? explicou
ela. ? Quando as coisas não corriam bem.
Afastou-lhe as mãos.
? Não preciso de conforto.
Não o merecia.
Mas antes que ele pudesse levantar-se e virar-se, ela agarrou-lhe
as mãos. O aperto não era firme, mas era decidido.
? Se a família é uma questão de opção ? disse-lhe, gentilmente ?,
eu escolhi-te a ti.
Robert suspirou profundamente.
? E voltarei a fazê-lo ? garantiu ?, sempre.
Robert ergueu a cabeça. Os olhos dela eram grandes, cinzentos e
puros, e ela dizia-lhe o que ele passara anos a querer ouvir.
Levantou-se e estendeu os braços. As mãos fecharam-se
em torno das ancas dela; instantes depois, as bocas encontraram-
se. O beijo não foi pensado, não foi calculado. Apenas surgiu.
? Minnie ? murmurou contra o calor dos lábios dela, e depois
outra vez: ? Minnie.
Aquela seria a quinta noite do casamento deles. Já a tivera com
ela a rir-se. Já a tivera com ela a gemer por ele. Nunca a tivera a
sentir-se daquela maneira ? sombrio e inseguro.
Desta vez não pediu, nem lhe murmurou o que queria fazer. Não
a preparou com beijos. Empurrou-a contra a parede do vagão e,
antes que ela tivesse hipótese de se debater ou
de protestar, agarrou-lhe as saias, puxando combinações e
crinolinas. Bastava-lhe libertar a ereção. Uma estocada ? uma
investida dentro dela e seria tão mau como o pai, tomando

246
uma mulher só porque ela estava presente e ele queria senti-la.
Um movimento e ele castigar-se-ia ainda mais.
Ela tinha a cabeça baixa, curvada ante ele. Ele agigantava-se. Não
estava ali ninguém, ela não tinha como pedir ajuda.
Provavelmente tê-la-ia aterrorizado.
Largou-lhe as saias e afastou-se.
? Desculpa ? lamentou-se. ? Estou com um humor miserável. É
melhor saíres daqui enquanto podes.
Olhou-o então. Os olhos cinzentos-claros eram adoráveis. Mas
não se mexeu além disso.
As sombras das árvores que passavam por eles pintalgavam-lhes
as caras com uma paleta de luz e escuridão. O corpo dele
estremecia com a necessidade.
? A sério, Minnie ? disse baixinho. ? Afasta-te. Se pudesses ver
aquilo em que estou a pensar neste momento, ficarias aterrada.
Sabes o que te podia fazer?
? Não. ? A voz era quase plácida. ? Diz-me.
? Empurrei-te contra a parede. ? Assentou as mãos dos lados da
cabeça dela. ? Podia ter levado a minha avante contigo.
? Podias ter levado a tua avante comigo ? repetiu ela, abanando a
cabeça. ? E isso seria o quê?
Robert semicerrou os olhos.
? Sabes bem o que eu quero dizer.
? Receio não fazer ideia.
Robert deu um passo em frente, encurralando-a contra a parede.
? Tenho de te fazer um desenho?
? Por favor.
? Podia enfiar o meu membro dentro de ti. ? Esmagou-lhe as
ancas com as dele. ? Sem preâmbulos. Sem nada.
Minnie arregalou os olhos. O canto da boca estremeceu.
? Oh, não ? disse ela. Apareceu-lhe uma covinha na face. ? O teu
membro, não. Tudo, menos o teu membro.
Robert não conseguiu reprimir um sorriso.
? Raios partam, Minnie. Não és capaz de levar o meu estado de
espírito a sério?
Ignorou-o.

247
? E eu que me sentia tão... vazia. Ora, se entrasses em mim, isso
dar-me-ia sensações deveras curiosas. ? Enquanto falava foi-lhe
abrindo as calças. Percorreu-lhe a ereção
com os dedos, afagando-o.
? Mas não é preciso recear ? disse ela. ? És tão grande que acho
que não ias caber. ? Apertou-lhe a cabeça do pénis enquanto
falava e ele arquejou com uma gargalhada.
? Céus, Minnie. Nem vejo bem.
?Ainda bem que consegues conter os teus impulsos ? continuou
ela, mais baixinho ?, porque neste momento estou tão molhada,
que seria deveras embaraçoso se...
Robert levantou-a contra a parede, envolveu-se com as pernas
dela e penetrou-a. Estava molhada, tão molhada, e quente. O
prazer do corpo dela, a envolvê-lo, era tão intenso
que quase magoava. O leve abanar ritmado do vagão embalava-o
para ela.
Apoiou-se contra a parede, com os músculos retesados.
? É isso, Robert. ? Envolveu-o com os braços. ? É isso. Assim
mesmo.
Moveu-se dentro dela, deslizando, forçando, até que o suor lhe
rebentou na testa. Deixou que o desejo levasse a melhor, deixou-
se controlar pelo instinto, até só restar ela,
ela à sua volta, os seios por baixo das suas mãos, a pulsação dela
a acompanhar-lhe as estocadas.
Ela atingiu o cume à volta dele, apertando em ondas de calor. E
ele investia dentro dela, com força, depois ainda com mais força,
até ao seu próprio clímax. Quando derramou
a semente, imaginou-os unidos por muito mais do que apenas os
dentes que lhe roçavam o maxilar, as mãos entrelaçadas, as
pernas que ainda o envolviam. Era mais do que o gesto
físico de se enterrar no corpo dela.
Naquele momento, pela primeira vez na vida, Robert acreditou
que havia alguém para ele. Alguém que estaria presente nos
piores momentos. Mais do que uma amante, uma amiga,
uma aliada. Uma esposa ? para o melhor e para o pior, na riqueza
e na pobreza. Na saúde e na doença. Nas lágrimas e nas
gargalhadas.
248
Ergueu-se, ofegante, assoberbado pela dádiva que recebera. Só
lhe conseguiu tocar na face, abismado.
? Minha Minerva ? murmurou.
Sentia-se com se a descobrisse pela primeira vez. Como se, no
meio de toda a agitação daquele dia, ele por fim visse cumprido o
seu desejo mais profundo. E agora que a tinha,
não a queria largar.
Minnie assentou a cabeça no ombro dele.
? Assim está melhor ? disse.
Era tão nova aquela sensação entre eles. Nova e desconhecida, e
tão bem-vinda que quase receava reconhecê-la, não fosse
desaparecer. Ainda assim, se não dissesse nada...
? Algures ? disse então ?, alguém está a dizer que cometi um erro
terrível ao casar-me contigo.
Minnie ergueu a cabeça do ombro dele e fitou-o, de olhos
arregalados.
? Estão errados. ? Envolveu-a com os braços. ? Todos eles, quem
quer que sejam. Foste a melhor escolha que já fiz.
Quando o fitou, os olhos cinzentos estavam iluminados, uma luz
que o fazia sentir alto como uma montanha. Era capaz de vencer
um exército inteiro com ela a seu lado. O que
tivesse corrido mal iria agora sair bem.
Era quase demasiado para acreditar.
Assim, em vez de qualquer outra coisa, baixou a cabeça e voltou
a beijá-la.
Quando chegou a Leicester, Robert passara o grosso do dia em
viagem. A noite de núpcias, a recordação intemporal de acordar
ao lado de Minnie na manhã seguinte, seguidos dos
dias de amor lânguido com ela... tudo isso fora abafado pelo
estrépito ritmado dos comboios expressos, pela vibração dos
vapores.
Quando o comboio chegou finalmente a Leicester, ao fim da
tarde, não se permitiu tempo para comer ou para se lavar. Estava
escuro e a Lua ia já bem alta no céu. Embarcou Minnie
numa carruagem e dirigiu-se de imediato a pé para o centro da
cidade.

249
O serão estava escuro e ventoso, mas não propriamente frio. O
telegrama de Sebastian indicara onde Oliver se encontrava ? na
Câmara de Leicester, por baixo da biblioteca onde
ele conhecera a esposa, a poucos passos do auditório onde
haviam sido apresentados.
Ao chegar ao edifício, no escuro da noite, era como se
regressasse ao serão em que se haviam conhecido. Decorria
algum tipo de evento no Salão Nobre. Bateu à porta lateral,
aguardou, e depois bateu com mais força, até que o homem que
fazia as vezes de carcereiro apareceu.
? A esta hora não há visitas. ? Franziu o cenho na direção de
Robert.
Robert deu uma moeda pesada ao indivíduo.
? Não sou uma visita.
O homem nem sequer pestanejou.
? Por aqui, sir ? indicou.
Paris e os croissants pareciam muito distantes. A recordação
pertencia a outro homem, alguém com um casamento feliz,
deleitado com o futuro que se ia revelando lentamente.
Essa felicidade foi substituída por uma sensação de vazio no
estômago enquanto se dirigia para a sala de detenção. O
carcereiro pegou num candeeiro que iluminou paredes sujas
e portas de madeira. Destrancou as portas principais e depois
subiu até uma das celas. Madeira raspou em madeira.
Robert apontou a luz em frente. O homem não abrira a porta da
cela. Tinha, isso sim, desviado um painel que cobria uma abertura
ao nível dos olhos, com alguns centímetros
de altura e talvez meio palmo de largura.
O carcereiro recuou alguns passos e fez sinal a Robert para que
avançasse.
Robert acercou-se, erguendo a lanterna. Os raios de luz não
chegavam ao interior negro como breu da cela além da ranhura.
? Oliver? ? A voz soou baixa.
? Robert? ? Ouviu um restolhar. ? Céus, tanta luz. Não vejo nada.
A luz da lanterna era, quando muito, anémica, incapaz sequer de
mostrar as dimensões da cela onde o irmão se encontrava. Para
que Oliver a considerasse brilhante... devia
250
estar às escuras desde há horas. O irmão estivera ali durante todo
o tempo passado por Robert em primeira classe. Estremeceu com
o pensamento.
? Tens cobertores? ? quis Robert saber. ? Comida?
? O que fazes aqui? ? replicou Oliver num tom por de mais
alegre. ? Estás em lua de mel. Devias estar em Paris.
? A culpa é minha. ? Robert pousou a lanterna e avançou,
baixando a voz. ? Fui eu que escrevi aqueles malditos panfletos.
Nunca quis que te envolvesses. É por minha causa
que estás nesta cela fedorenta. ? E não era uma maneira de dizer.
Chegara-se o suficiente para sentir o ar que emanava daquela
pequena ranhura. Fedorenta era um eufemismo.
? Sim, imaginei que fosses tu o autor ? disse Oliver após uma
breve pausa. ? Soavam a ti, se é que me entendes. Uma leitura
fascinante. Porque não me contaste?
? Sabia que andavam a promover condenações falsas por sedição
criminosa ? bufou Robert; o fôlego saía branco no frio da sala. ?
Queria descobrir quem era. Eu sou a única pessoa
que eles não poderiam condenar. Se te contasse, talvez fosses
considerado meu cúmplice.
? Ah. Inteligente.
? Pelos vistos, não o suficiente. Estou espantado por ter chegado
a tempo. Pensei que te quisessem condenar o mais depressa
possível.
? Pelos vistos, não. ? Oliver suspirou. ? Estão à espera de uma
testemunha. Lembras-te de Lorde Green, do nosso tempo em
Cambridge?
? Lorde Green? Sim, lembro-me dele... Mas que diacho pode ele
dizer? Falaste com ele recentemente?
? Não falo com ele desde a nossa aposta naquele jogo de xadrez,
há três anos. Mas convocaram-no como testemunha, e não faço
ideia do que ele irá dizer.
Outra vez xadrez. Não podia ser coincidência. Mas o que
significaria tudo aquilo... Robert abanou a cabeça.
? Bom, também tens uma testemunha. Quero ver um júri a
condenar-te com o duque de Clermont a afirmar que a autoria é
dele. Que tu não sabias de nada.
251
Levou a mão à ranhura. Mas em vez de agarrar na mão do irmão,
ou de lhe bater no ombro, os dedos tocaram numa grade fria de
metal, com as barras demasiado juntas para que
conseguisse enfiar mais do que um dedo. Só conseguiu roçar as
pontas dos dedos do irmão.
? Então ? protestou o carcereiro. ? Acabem com isso... nada de
passar facas, ou assim, onde eu não os veja.
Frustrado, Robert baixou a mão.
? Volto pela manhã ? prometeu Robert. ? Tratamos de tudo nessa
altura. Vou encomendar uma garrafa de champanhe para celebrar
a tua libertação.
? Encomenda antes um garrafão de óleo de parafina.
? Óleo de parafina?
? Esta cela tem piolhos.
Robert estremeceu. Escura, malcheirosa, infestada de piolhos ?
fora ele o culpado. A recriminação ferveu-lhe no íntimo. Mas se
Oliver conseguia mostrar boa disposição...
? Então, ainda bem que não te consegui bater no ombro ?
gracejou.
? Ha.
Fez menção de se afastar, mas ainda acrescentou:
? Dei-te a minha palavra. Não vou deixar que te condenem.
Mas quando se virou apercebeu-se de uma segunda figura que se
juntara a eles no escuro ? alguém mais baixo do que Robert e
mais largo. No escuro só vislumbrava a sugestão
de músculos duros e de uma força imponente.
? Não ? disse o homem, olhando para Robert. ? Não vai. Cobrar-
lhe-ei essa promessa, Vossa Alteza.
A figura deu mais um passo em frente, e a luz da lanterna
iluminou-lhe o rosto.
? Dei a minha palavra, Mr. Marshall ? repetiu Robert.
O pai de Oliver fitou-o. Limitou-se a olhar, mas o homem
projetava uma ameaça silenciosa sem dizer nada.
? Pai ? disse Oliver atrás deles. ? Para com isso. Estás a
embaraçar-me.

252
? Mmm. ? Mr. Marshall avançou. ? Viemos assim que fomos
informados. A tua mãe está à procura de lugar para ficarmos.
Deve chegar daqui a alguns minutos, assim que passar pela
mulher do carcereiro.
Era a sua deixa para sair dali, decidiu Robert. Tinha de
desaparecer antes que o resto da família de Oliver aparecesse.
? Vemo-nos amanhã ? prometeu, e escusou-se antes de
sobrecarregar ainda mais Mrs. Marshall.
Ao fundo da rua havia um ponto de carros de praça. Estava a
caminho de lá quando ouviu o ressoar de pés atrás dele.
? Espere ? chamou a voz de uma mulher. ? Vossa Alteza.
Robert pestanejou, surpreendido, e virou-se. Uma figura
encapuzada acercou-se dele e tirou o capuz.
? Miss Charingford! ? exclamou Robert, surpreendido.
? Escute-me ? disse a mulher num tom urgente ? com toda a
atenção. O Stevens prendeu Mr. Marshall para o embaraçar.
? E conseguiu. Nesse ponto e em muito mais.
? Ele julga que vai estar em Paris durante o julgamento. Que vai
fazer com que o seu testa de ferro...
? Ele não é meu testa de ferro ? cuspiu Robert.
? Seja o que for. O Stevens julga que pode provar que ele esteve
envolvido, que pode insinuar que ele seguiu as suas ordens.
Robert fitou-a.
? Ele não pode provar isso ? acabou por dizer. ? Não é verdade, e
eu bem o sei. Ele não tem como prová-lo, a menos que suborne
alguém.
Miss Charingford abanou a cabeça.
? Ele pode provar que Mr. Marshall esteve envolvido ?
asseverou. ? Pelo menos vai tentar.
? Ele não pode fazer nada disso ? repetiu Robert.
Miss Charingford pestanejou.
? Eu sei ? acabou ela por dizer, mais calmamente. ? Mas Vossa
Alteza... tem de saber como ele está a planear fazê-lo. Há uma
frase num desses panfletos, uma citação de um
manual obscuro sobre estratégia de xadrez. É de conhecimento
geral que Vossa Alteza não se interessa pelo jogo. Mas está a
chegar uma testemunha que vai atestar que discutiu
253
estratégia com o Marshall, que lhe emprestou o volume em causa.
? Oh. ? Robert suspirou, recordando a fúria de Minnie no dia
seguinte. ? Eu sei... sei exatamente a que frase se refere. E
também sei como o sei.
Sentiu o receio a acumular-se. Recordou como Minnie ficara
zangada com ele por ter usado essas palavras, a certeza de que
seriam usadas contra ela. Sentiu-se nauseado.
? Exatamente ? disse Miss Charingford. ? A Minnie enviou-me
uma carta a explicar tudo. Tinha de lhe dizer. O Stevens não sabe
do passado dela. Só sabe o nome dela. ? Abanou
a cabeça. ? Ele julga que o nome é a única coisa que importa.
Nunca lhe ocorreu questionar o que poderia ter feito.
? Como descobriu os planos deles?
Lydia ficou em silêncio por um instante, após o que suspirou.
? O meu pai contou-me. Foi ele o magistrado que redigiu o
mandato para a captura do Marshall. Bem vê, ele não teve
escolha.
? Não? ? indagou Robert perigosamente.
? Não ? asseverou ela. ? O Stevens é bom a acabar com greves. O
melhor. Mas ele ajuda quem o ajuda a ele, e como eu o rejeitei,
ele insistiu que o meu pai teria de fazer mais.
? Compreendo ? disse Robert. E era verdade. Fosse o que fosse
que viesse a acontecer com Oliver, Stevens não continuaria a
servir na milícia. ? Acha que o seu pai falaria
comigo se eu o visitasse?
Lydia assentiu brevemente e fez menção de se afastar.
? Espere, Miss Charingford. Só mais uma coisa.
Ela não estivera presente no casamento. Recordou as breves
horas entre Leicester e Londres, quando Minnie parecera quase
de luto por aquela mulher.
Fitou-a.
? A Minnie sente a sua falta.
Miss Charingford encolheu-se, quase como se ouvisse a acusação
naquelas palavras.
? Eu também ? murmurou. ? Não, não sinto. Não sei. Continuo
zangada, mas isso não quer dizer que queira vê-la magoada. ?
Abanou a cabeça. ? Tenho de me ir embora, antes que
254
alguém perceba que saí. Eu... tinha de contar a alguém e ainda
não a consigo encarar. Por favor, não lhe diga que fui eu. Pelo
menos antes de estar preparada.
E com essas palavras, afastou-se.
Iam apresentar provas em como Oliver estava envolvido. Robert
retomou a marcha, mas desta vez passou pela praça onde um
condutor de cabriolé solitário cabeceava, de mãos nas
rédeas.
Podia fazer o possível por pôr termo à investigação ? e deixar o
irmão sob a égide da suspeita. Ou podia confessar. Se a confissão
implicasse assumir sozinho a responsabilidade
pelo escândalo, não seria preciso pensar duas vezes. No entanto,
agora tinha de explicar como Sua Alteza, o duque de Clermont,
fora capaz de citar um volume obscuro sobre
xadrez.
Prometera a Minnie que lhe guardaria os segredos. Prometera ao
irmão que o libertaria e ilibaria. Não podia cumprir as duas
promessas.
Um demónio no seu interior levou-o a imaginar qual seria
exatamente a reação de Minnie ao ouvi-lo a admitir a verdade.
Não havia nada pior que lhe pudesse fazer ? levá-la
a tribunal, onde veria alguém que a amava a abdicar dela sem
hesitar. Não podia fazer-lhe isso. Não podia.
Mas Oliver... Oliver era seu irmão. O homem que o aceitara sem
hesitar, apesar do facto de o pai só ter trazido desgostos à família
dele. Era seu irmão. Seu irmão, a única
família que tivera durante anos.
A imagem do tribunal ? de Minnie a empalidecer enquanto ele a
traía ? repetiu-se vezes sem conta na sua mente. Quanto pior
fosse para ela, mais o público acreditaria que ele
estava a dizer a verdade. Robert sentiu-se fisicamente doente ao
pensar nisso. Isso destruir-lhes-ia absolutamente o casamento.
Ela iria deixá-lo ? e ele não poderia apresentar
o mais leve protesto.
Porque ela teria razão. Ele mereceria.

255
Robert andou pelas ruas durante bastante tempo, até lhe doerem
os pés e as mãos ficarem geladas, até mal conseguir pensar com o
turbilhão que lhe ia na mente. Andou e decidiu.
CAPÍTULO 24
Quando finalmente regressou a casa, estava certo de que Minnie
perceberia o que ele pretendia fazer. Afinal de contas, ela
percebera facilmente tudo o mais acerca dele. Mas
ela aguardava-o com chá e uma ceia tardia, e aquilo que lhe viu
na expressão tê-lo-á atribuído à tristeza pela situação em que se
encontrava o irmão.
? Não me parece que a acusação pegue ? disse-lhe Robert,
agarrado a uma chávena quente.
? Parecem boas notícias.
Robert estendeu a mão e descreveu um gesto hesitante.
? Não são as piores notícias. Não há provas suficientes para o
condenar, mas... pode também não haver provas que o ilibem. A
menos que eu explique o meu envolvimento.
? E vais fazê-lo?
Fez uma pausa e fitou-a.
? Já não me envolve só a mim.
Minnie olhou-o. Quando começara a confiar nele? Porque deixara
ele que isso acontecesse?
? Quem mais estará envolvido? ? perguntou Minnie.
? A minha mãe, para começar. ? Fechou os olhos, incapaz de a
encarar enquanto dizia a primeira mentira. ? Se eu explicar tudo,
terei de revelar a minha relação com o Oliver.
A verdade seria embaraçosa para a minha mãe ? ele foi concebido
poucos meses após o casamento deles ? e humilharia os pais do
Oliver. Quanto ao Oliver... bem, não faria mal
ser conhecido como filho de um duque.
? Estou a ver ? disse ela lentamente.
? É pior do que julgas. Bem vês, já não se prende apenas com o
julgamento, mas com o facto de tudo isto se tornar público. Se
me limitasse a afirmar que ele é meu irmão, haveria
sempre quem acreditasse que só o dissera para o salvar da
condenação. Não seria ilibado. Mas... imagina, a bem da
plausibilidade, que anunciava a verdade quanto à filiação
256
dele com a minha mãe presente na sala. Como julgas que ela iria
reagir?
? Eu... Bem. A duquesa, quero dizer, a duquesa viúva, é forte
como pederneira. Mas igualmente quebradiça.
? Provavelmente ficaria exangue. Talvez saísse de lá. E essa
reação, acima de tudo o resto, confirmaria a afirmação. Poderia
levá-la a reagir. ? Olhou-a. ? Iria humilhá-la,
mas talvez salvasse o meu irmão.
? Talvez se ela estivesse a par do que iria ocorrer...
? Quando souber o que está por acontecer pode preparar-se para
não reagir. Se soubesse o que iria acontecer, o mais provável
seria não comparecer. ? Voltou a olhar a esposa.
? Tenho a certeza de que posso argumentar com êxito a inocência
do Oliver. No entanto, para isso, posso ter de sacrificar, de vez,
quaisquer tréguas que pudesse vir a estabelecer
com a minha mãe. Diz-me, Minnie. Vale a pena?
Minnie quedou-se em silêncio durante algum tempo, sempre a
fitá-lo. Robert enterrou a verdade no fundo do seu ser, tão fundo
que ela não fosse capaz de ouvir o que ele não
dissera.
? E farias tal coisa? ? acabou ela por perguntar. ? Perder qualquer
esperança de reatar com a tua mãe pelo bem do teu irmão?
? O meu pai... ? As palavras saíram embargadas. Fechou os
olhos. Era a sua única hipótese de explicar, mesmo que ela ainda
não soubesse o que estava a ouvir.
? Não ? disse ela. ? Não tens de responder. Na escala das coisas,
estamos a comparar a humilhação da tua mãe com o futuro do teu
irmão. O teu irmão tem de vir primeiro.
Abraçou-o. O toque dela ardia. Não merecia esse abraço. Não a
merecia a ela. Afastou-a, levantou-se e deu alguns passos.
? É mais do que isso ? disse ele, calmamente. ? Não se trata
apenas do facto de o meu pai ter forçado a mãe dele. Não é o
facto de ele ter tentado expulsá-la, de se ter recusado
a reconhecer o filho, de não ter dado nada, além de um mísero
apoio. Não tem que ver apenas com o facto de terem sido as
minhas ações a deixá-lo naquela cela horrível. ? Cerrou

257
os punhos. ? Tentei escolher tudo aquilo que o meu pai nunca foi.
Por isso, não posso. Não posso deixar o meu irmão sozinho. Não
posso arriscar que seja condenado, e não vou
ficar à margem enquanto tiver fôlego para o salvar.
? Não, Robert ? disse ela. ? É claro que não. ? Afagou-lhe a
face. ? Não podes desperdiçar a tua energia com remorsos. Faz o
que tiveres de fazer.
Ao olhar para ela, percebeu que não tinha como fugir aos
remorsos. Não ajudava que tivesse recebido a sua autorização
tácita. De certa forma, isso só lhe apertava mais o nó
que sentia no estômago.
Minnie sorriu-lhe.
? Muito bem, o que posso fazer para ajudar?
O coração quase se lhe partiu ao olhá-la.
? Podes certificar-te de que a minha mãe está presente no tribunal
no dia do julgamento ? disse lentamente. ? Senta-te com ela, e
garante que está lá quando eu falar.
Porque se Minnie levasse a duquesa... também ela lá estaria.
Não havia tempo para remorsos.
Não obstante, sentiu-os a picarem-lhe a pele, quais farpas
silenciosas, quando ela lhe sorriu.
? Confia em mim ? prometeu ele.
E pronto. Ludibriara a esposa.
*
Robert voltou à cela do irmão às dez horas da manhã seguinte. O
dinheiro que dera ao carcereiro na véspera já fizera diferença. A
metade superior da porta da cela estava aberta,
revelando as barras de ferro atrás dela. A cela fora limpa, e Oliver
recebera água com que se lavar.
Ainda se sentia um fedor na cela, mas pelo menos já só era
hediondo, e não chegava para provocar náuseas.
? Esta manhã falei com os advogados ? disse Oliver
alegremente. ? Os meus pais estão a tomar o pequeno-almoço,
mas regressam em breve.
? Nesse caso, não vou demorar ? disse Robert.

258
O rosto do irmão denotou um traço de confusão, mas Robert não
perdeu tempo e disse-lhe o que descobrira na véspera: a essência
do testemunho de Lorde Green, a citação de um
volume sobre estratégia no xadrez.
Oliver recostou-se contra a parede da cela.
? Pensando bem ? disse ele ?, é uma boa ideia. Não reconheci a
citação. Onde é que ouviste o termo ataque a descoberto? Nunca
jogaste xadrez.
Robert respirou fundo.
? Sabes quem é Minerva Lane? Ou, se calhar, talvez Maximilian
Lane seja o mais correto.
Oliver bufou ao de leve, surpreendido, e chegou-se à frente.
? Maximilian Lane? É claro que sei quem ele... quem ela é. Ficou
famosa nos anais do xadrez. Ou talvez infame. Estudei os jogos
dela, sabes. Foram registados durante... ?
Calou-se e fitou Robert. ? Estás a brincar ? disse. ? Não me digas
que a tua Minnie é a Minerva Lane.
? Pois. ? Robert encolheu os ombros. ? Por acaso... é.
? Então foi assim que soubeste.
Novo assentimento.
? O Stevens sabe o nome verdadeiro dela, mas não lhe descobriu
o passado.
? Estou a ver. ? Oliver deu dois passos até ao limite da cela e
virou-se. ? É claro que ela está a esconder a verdadeira
identidade. Ficaria devastada se isso viesse a lume.
? Não disse nada; não perguntou o motivo por que Robert haveria
de expor o passado da sua esposa. Não lhe rogou que o fizesse.
Oliver nunca pediria tal coisa. Mas segurou
as barras da cela, que apertou até ficar com os dedos brancos. ?
Que grande confusão.
? Não é uma confusão. ? Robert acercou-se. ? De nós dois, sou eu
quem tem tudo: o título, a fortuna. Compensei a diferença o
melhor que pude. O mínimo que posso fazer é garantir
que ficas livre.
Oliver meneou a cabeça e olhou para o irmão. Voltou a franzir o
nariz, desta vez confuso.

259
? É isso que pensas? Achas que, de nós dois, foste quem ficou
com a melhor parte, que eu fiquei sem nada?
Não era uma opinião. Era um facto. Dera ao irmão tanto quanto
ele aceitara, mas Oliver continuava a debater-se para garantir a
sua posição na sociedade.
? Esquece ? disse Robert.
? Não, não vou deixar passar com um esquece. Achas mesmo que
nasceste com mais do que eu?
? Sei que sim.
Oliver virou-se, de ombros hirtos.
? Pensa melhor, Robert. Pensa melhor. Não trocaria o que tenho...
cela, piolhos e tudo o resto... pela tua fortuna.
? E o que tens tu que é tão valioso?
? Tenho uma família que me ama.
As palavras foram como um murro no estômago para Robert.
Ainda agora começara a sonhar com a possibilidade de ser feliz, e
isso fora-lhe roubado. Sentia-se incapaz de respirar.
Era como se tivesse levado uma pancada forte o suficiente para
lhe deixar os pulmões com espasmos.
Olhou para o irmão, à sua frente, o rosto em meio perfil. A pouca
luz naquele espaço refletia-se nos óculos dele, iluminava-lhe o
cabelo claro.
Não era apenas Oliver que via atrás daquelas barras de ferro, mas
todos que se preocupavam com ele ? o rude e ameaçador Mr.
Marshall, a nobre Mrs. Marshall, três irmãs, uma
tia, dois sobrinhos... e, refletido na luz dos óculos, um irmão.
Um irmão que conhecera aos doze anos, alguém que ele adotara
com uma alegria que chocara Robert. Oliver ensinara-lhe tudo o
que ele sabia sobre fazer parte de uma família.
? Sim ? disse Robert, a voz quase embargada. ? Bem. Ao que
parece, eu também tenho família que me ama. E não o vou
abandonar.
Levou a mão às barras de ferro.
? Tenho piolhos ? recordou-o Oliver.
? Cala-te e aceita a minha mão.
Trocaram um aperto atrapalhado, com uma barra de ferro entre as
palmas, mas Robert não o trocaria por nada.
260
? Deixa-me fazer isto por ti ? pediu. - Porque quando nos
conhecemos, em Eton, podias ter-me derrubado e pontapeado nas
costelas, mas optaste por ser meu irmão.
? E a tua mais recente fonte de contágio ? acrescentou Oliver
alegremente.
Robert riu-se.
? Já tenho dois garrafões de óleo de parafina à tua espera. Se for
preciso, posso dispensar uma caneca onde mergulhar os dedos.
Robert ouviu pigarrear e virou-se. O pouco humor que encontrara
desvaneceu-se.
Não sabia há quanto tempo a mulher ali se encontrava. Já a vira,
há mais de uma década, mas essa única vez fora mais do que
suficiente. Estava gravada a fogo na sua memória.
Mrs. Marshall era bastante mais baixa do que o filho. O cabelo
castanho ganhara um pouco mais de branco desde a última vez
que a vira, mas isso só ampliava a nobreza dela.
Entreolharam-se, como duas gazelas que se cheirassem num
prado ? a observar, a olhar, esperando que nada as caçasse.
? Sinto muito ? disse Robert. ? Estou de saída.
Passou por ela, mantendo tanta distância quanto possível sem se
espalmar contra a parede. Saiu para o pátio. Reboco e madeira
erguiam-se dois andares acima dele, protegendo-o
do sol de finais de outono. Estava frio; calçou as luvas e puxou o
chapéu mais sobre as orelhas.
E quando se preparava para partir, voltou a ouvir passos, com
Mrs. Marshall a surgir da sala de detenção. Cruzaram mais uma
vez o olhar; Robert baixou o dele.
Lentamente, ela cruzou as lajes até ele.
? Mrs. Marshall. ? Mal conseguia respirar. ? Lamento imenso.
? Vossa Alteza. ? Mirou-o e rapidamente desviou o olhar.
? Sem títulos. ? Sentou-se num banco no extremo do pátio.
Estava molhado da chuva da véspera, sentia a humidade a
atravessar-lhe as calças, mas não queria agigantar-se sobre
ela. Já bastava que a tivesse encontrado durante aquela provação
e lhe invocasse outras recordações. ? A senhora é a última pessoa
que deve tratar-me assim.
Ela virou-se para Robert, que fitava as lajes a seus pés.
261
? Depois daquilo que o coletivo que são os duques de Clermont
lhe fizeram a si e aos seus ? disse baixinho ?, não merecemos tal
respeito. Só posso dizer que lamento imenso.
Sinto muitíssimo que o Oliver...
? A culpa não é sua.
? Mas é. O meu irmão aguarda julgamento por uma ação de
minha autoria, sem qualquer outro motivo que não seja o facto de
não me poderem tocar. Se isso não se traduz em responsabilidade
minha, não sei que lhe diga. ? Contemplou as paredes. ? Mas
garanto-lhe que não vou deixar que nada lhe aconteça. Não vou.
Mrs. Marshall deixou-se ficar mais alguns momentos à frente de
Robert, que ficou de cabeça baixa, ciente de cada fôlego dela.
Depois, lentamente, ela chegou as saias para o lado e sentou-se à
cautela no banco ao lado dele. A um palmo, mas, não obstante, ao
seu lado.
? Tem sido um bom amigo para o meu filho.
? Tenho sido irmão dele. ? Continuou sem a olhar.
? Ele falava muito de si sempre que ia a casa durante o tempo de
escola. De si e do Sebastian Malheur... mas sobretudo de si.
Escusado será dizer que Mr. Marshall e eu considerávamos
tal facto alarmante. Mas ele nunca falou sobre um rapaz que
parecesse uma versão mais jovem do seu pai. Parecia ponderado
e reservado, duas coisas que o duque de Clermont
nunca conseguiu ser. Sempre desejei estar mais bem preparada na
altura. Quando o Oliver falava de si, parecia tão doce que sempre
imaginei um menino completamente diferente.
Quando entrei naquela sala e o vi a olhar para mim... com os seus
olhos, o seu nariz, a sua boca... não sei o que me deu. Só me
recompus quando dei comigo a um quilómetro
dali.
? Não é preciso explicar-se. Sei o que o meu pai fez. No seu
lugar, também não seria capaz de olhar para mim.
? Posteriormente, o Oliver disse que achava que eu o tinha
magoado.
Robert abanou a cabeça.

262
? Os meus sentimentos não são para aqui chamados. A senhora
foi prejudicada. Não é sua responsabilidade oferecer o ramo de
oliveira, mas é minha responsabilidade sair do seu
caminho. Dar-lhe o pouco conforto que possa.
? Talvez ? disse ela, lentamente. ? Talvez. Mas há uma coisa em
que não consigo deixar de pensar.
O céu estava azul, sem uma única nuvem que interrompesse a
cor. Parecia impossível, naquela altura do ano, mas ali estava.
Robert inclinou a cabeça para trás e fechou os olhos.
? Contámos a verdade ao Oliver sobre o seu nascimento quando
ele ainda era bastante novo. Ou melhor, o Hugo contou-lhe. Não
tudo, bem vê, mas uma versão infantil. Havia um
homem mau que me magoou. Talvez houvesse quem preferisse
dizer-lhe que o pai era outro homem, mas sempre o amámos, e
isso não era verdade. Eu não queria dizer nada, mas o
Hugo convenceu-me. ? Suspirou.
Robert tentou imaginar o que seria ter pais que pensassem com
cuidado no que dizer aos filhos, que se preocupassem com esses
pormenores. Que lhe garantissem que gostavam dele.
Quero ser um pai assim. Cerrou os punhos.
? O Hugo foi bastante direto quanto a tudo isso e o Oliver
aceitou-o bem. Até descobrir sobre a sua existência. Depois
começou a ter pesadelos.
? Comigo? ? indagou Robert.
? Sim. Certa noite acordou a chorar e não era capaz de parar.
Quando lhe perguntei o que se passava, ele disse que o homem
mau tinha o irmão dele e tínhamos de ir buscá-lo.
Robert sentiu um nó na garganta.
? Ah ? conseguiu dizer, com todo o cuidado.
? Pareceu-me uma atitude muito querida, e essa fase passou.
Mas... ? Virou-se e fitou-o diretamente. ? Mas agora, já passaram
quase trinta anos desde que vi o seu pai. Aquilo
que ele me fez demorou dez minutos, e eu ainda me lembro disso.
Fez uma pausa, depois estendeu a mão e deu-lhe uma palmadinha
no joelho.
Robert fitou-a, e, desta vez, ela não desviou o olhar.

263
? Cresceu com ele ? disse Mrs. Marshall tranquilamente. ? Deve
ter sido terrível.
Por um instante, Robert viu o pai a agigantar-se sobre ele, tão
mais alto, na altura, tão maior.
Mas que raio de filho és tu? Atirara as mãos ao ar, exasperado. Se
fosses outro miúdo, as coisas estariam muito melhores. Nem a tua
mãe te quer o suficiente para aqui ficar.
? Oh ? respondeu Robert baixinho. ? Não foi assim tão mau.
Regra geral, o meu pai nem reparava em mim.
E talvez Mrs. Marshall se tenha apercebido do leve engasgar na
voz dele, pois, lentamente, envolveu-o com o braço.
? Meu pobre jovem ? disse.
*
A tarefa de Robert para a tarde não prometia ser tão esclarecedora
como a manhã.
? Não faço ideia do que pensar de Vossa Alteza.
Robert estava na entrada da casa dos Charingford. Parecia um
lugar confortável, forrada com papel de parede creme e azul, e
uma entrada clara e alegre. Mr. Charingford, por
outro lado, de cabelo grisalho e ralo, não parecia satisfeito.
Cruzou os braços sobre o peito.
? Concordei com isto ? disse o outro homem ? porque revelou
bom senso exatamente numa ocasião.
? Uma ocasião? ? Robert ergueu uma sobrancelha. ? E quando foi
isso?
? Quando se casou com Miss Pur... Acho que já não lhe posso
chamar isso, não é verdade? ? Charingford meneou a cabeça e
quase sorriu. ? Quando se casou com a sua esposa. Tentei
convencer o meu filho a olhar para ela, mas ele nunca passou da
cicatriz. A amizade dela com a minha filha... Passámos quatro
meses na Cornualha, em viagem, e acho que a conheço
melhor do que ninguém nesta cidade, à parte as tias-avós. Foi
uma excelente escolha.
Era verdade. Robert sofria ao pensar no que estava reservado para
o dia seguinte.

264
? Só espero que parte do espírito dela tenha chegado à sua
consciência. Não sei o que lhe ia pela cabeça ao escrever aqueles
panfletos. Vir tentar convencer pessoas como eu
a apoiar as reformas. ? Charingford mirou-o por baixo das
sobrancelhas franzidas.
? Se sabe que fui eu que escrevi aqueles panfletos ? indagou
Robert ?, porquê indiciar Mr. Marshall?
Charingford baixou o olhar.
? Há indícios suficientes a apontar para o envolvimento dele. E...
? E o Stevens pediu-lhe ? concluiu Robert.
Charingford mordeu o lábio.
? Sabe disso?
? Não me venha dar sermões acerca de consciência ? admoestou-
o Robert. ? Pedi-lhe para ver a sua fábrica, e o senhor concordou
em mostrar-ma. Avancemos com isso.
Charingford fez um sinal com a mão e um lacaio abriu a porta da
frente. De imediato, o ronco baixo que vinha da fábrica do outro
lado da rua acelerou para um troar.
? Por favor ? disse, num tom sombrio ?, Vossa Alteza.
Ao atravessarem as pedras da rua, o estrépito da maquinaria era
quase ensurdecedor. Os portões da fábrica haviam sido
recentemente pintados de um verde reluzente, destacando-se
contra os tijolos manchados das paredes. Foram cercados pelo
barulho, uma cacofonia de gritos e estremeções. Mr. Charingford
indicou-lhe a entrada com uma série de gestos
e, depois de subirem uma pequena escadaria até uma plataforma
metálica de onde se via toda a fábrica, virou-se para Robert.
? Este é o piso principal ? gritou, esforçando-se por se fazer ouvir
acima do clamor das máquinas lá em baixo. ? É aqui que o fio é
tricotado em peúgas.
Apontou para a fábrica lá em baixo. Num lado do espaço, uma
mulher, de cabelo grisalho apanhado num puxo descuidado,
operava uma máquina que enrolava fio em bobinas metálicas.
Um punhado de homens deslocava-se entre estruturas circulares,
movendo peças sempre que necessário, trocando bobinas,
entregando os produtos a rapazes que se afastavam com

265
ela para um espaço adjacente. Deslocavam-se com uma economia
de movimentos que parecia derivar mais do cansaço do que da
experiência.
? Cada máquina pode produzir dois pares de meias em nove
minutos ? gritou Charingford. ? E os homens só têm de tirar o
trabalho dos ganchos no final e repor os cilindros que
orientam a forma da meia. Vossa Alteza olhe para eles. Nem
precisam de tomar decisões no trabalho que fazem. Como
haveríamos de lhes confiar a decisão do futuro do nosso país?
A compreensão do funcionamento da indústria?
Robert limitou-se a menear a cabeça, fazendo por ouvir acima do
estrépito das máquinas.
? Estão a cantar ? disse. ? Porque estão eles a cantar?
Mr. Charingford fez uma pausa e levou a mão ao ouvido, à
escuta.
? Estão felizes por estar a trabalhar, Vossa Alteza. Estão a cantar
um hino... louvado seja Deus.
Robert era um homem a olhar de cima para o piso de uma
fábrica. Só precisava de olhar, enquanto os operários lá em baixo
viravam, montavam e cortavam.
Sorte sua poder pensar no futuro sem terror, ouvia ele Minnie a
dizer. Não era capaz de compreender o que seria estar lá em
baixo, labutar com aquele barulho interminável
dia após dia. Só sabia que não podia ser tão simples como
gratidão e hinos.
Durante o breve período do casamento, nunca se sentira tão
afastado de Minnie como naquele momento. Mentira-lhe, e
amanhã ia quebrar a promessa que lhe fizera e iria magoá-la.
Mas, naquele momento, podia ouvi-la sobre o ribombar da
maquinaria.
? Não vou fingir que compreendo o que é ser um operário, Mr.
Charingford, mas sou um proprietário. Herdei bastante indústria
do meu avô. E quando olho para esta sua fábrica,
não vejo pessoas felizes por estarem a trabalhar.
Uma mulher lá em baixo olhou-os enquanto falavam. Não tinha
ódio nos olhos, nem desprezo. Apenas uma expressão gentil em
torno dos olhos ? um anseio discreto.
266
Talvez em tempos tivesse sido uma jovem educada que não
encontrou casamento. Talvez não tivesse outra opção que não
trabalhar até o cabelo ficar grisalho prematuramente e
a pele tisnada. Mas olhava para cima. Como todos os outros, os
lábios moviam-se a acompanhar a canção.
? E então? - incitou Mr. Charingford. ? O que vê Vossa Alteza?
? Vejo a Minnie. ? Ficou com a voz embargada. ? Vejo quem
poderia ser daqui a dez anos, quando a saúde das tias-avós se
deteriorasse.
Mr. Charingford respirou fundo.
? Vejo a sua filha, caso o mercado das meias colapse.
? A Lydia, não ? atirou Charingford, num tom chocado. ? Ela de
certeza que não... ? Mas calou-se, infeliz.
? Vejo quem o meu irmão poderia ter sido, se não houvesse outro
homem que o educasse. Vejo a cozinheira da minha infância, se
não lhe tivesse dado uma pensão. Só não me vejo
a mim. ? Percorreu o corrimão com as mãos. ? Nunca ali estive e
nunca estarei. A única coisa que compreendo agora é que não
consigo ter noção do que é estar numa fábrica,
a olhar para cima e a cantar.
Mr. Charingford inclinou a cabeça e olhou-o, finalmente a
escutar.
? Tenho os meus defeitos. Corro quando devia andar devagar.
Falo quando devia escutar. Mas quando os ouço a cantar, não
ouço um hino. Eles cantam a Deus porque não encontraram
mais ninguém que os ouça.
Charingford falou com palavras ponderadas.
? O Stevens diz que se os ouvirmos uma vez que seja, vamos
estar a incitar os operários a um maior exagero.
? Por acaso viu o Stevens tornar-se mais razoável à medida que o
senhor cede às exigências dele?
Charingford desviou o olhar.
? O que lhe pediu ele, Charingford? O senhor é um magistrado.
Ele ameaçou não o ajudar se não fizer o que ele diz? Pediu-lhe
dinheiro? Ou limitou-se a exigir a mão da sua
bela filha em troca dos esforços dele?

267
Os punhos de Charingford cerraram-se no corrimão à sua frente.
Fechou os olhos.
? Isso ? admitiu. ? Ele fez... tudo isso.
? Descobri ? explicou Robert ? que a longo prazo, custa menos
pagar o suficiente aos meus trabalhadores para que não encarem
o futuro com terror do que empregar quem os aterrorize.
? Parece a Minnie a falar ? resmungou Charingford. O
comentário soou a uma queixa.
Robert limitou-se a sorrir e abanou a cabeça. Seria, porventura, o
melhor elogio que já recebera.
Um pequeno correu lá em baixo, entregando uma bobina a um
homem que desligara uma das máquinas.
? Se não olhar com atenção ? disse Robert ?, os homens e as
mulheres que estão lá em baixo fundem-se em castanhos e
cinzentos indistinguíveis. Deixa de os ver como outra coisa
que não braços das máquinas, de carne e osso em vez de ferro e
aço. Que lhe custam salários, em vez de serem comprados logo à
cabeça. Mas as máquinas não cantam. As máquinas
não sonham. E, Charingford, não me parece que os consigamos
deter, nem com mil cópias do capitão Stevens. Não pretendo
tentar.
? Vossa Alteza é um radical.
Não havia fogo na acusação. Charingford olhou para a fábrica,
mas agora foi-se detendo aqui e ali ? nas mulheres que
embrulhavam as meias em papel, nos homens que operavam
as máquinas.
? Eu sei ? respondeu Robert.
? Se tivesse falado comigo logo quando chegou, em vez de se pôr
a escrever panfletos...
? Estou a crescer. E, ao que parece, a minha esposa está a ter
efeito sobre mim. ? Robert encolheu os ombros. ? Nunca se sabe.
Talvez, quando chegar aos trinta, eu comece
a fazer alguma diferença.
CAPÍTULO 25
Já era tarde quando o marido de Minnie voltou a casa ? tão tarde,
que todos os criados se haviam recolhido, salvo por um lacaio
solitário. Minnie ouviu a porta da rua a abrir-se
268
e depois a fechar-se. Imaginava Robert a despir-se ? sobretudo e
casaca que entregaria ao lacaio. Esperou para ouvir os passos nas
escadas, mas os minutos passaram e ele não
subiu.
Minnie levantou-se lentamente e saiu do quarto em bicos de pés.
A casa lá em baixo estava mergulhada em trevas. Só viu onde
pisava nos degraus da escadaria que dava para a
entrada graças à luz débil que saía por baixo da porta de uma
divisão nas traseiras. Seguiu esse trilho de luz dourada corredor
abaixo.
A porta ao fundo estava entreaberta. Robert estava sentado à
mesa, um prato à frente com os restos frios do jantar. Não estava
a comer; limitava-se a segurar o garfo na mão,
enquanto fitava o vazio. Tinha a cabeça curvada ao de leve, como
se suplicasse algo grandioso à carne. Enquanto Minnie
observava, a mão dele subiu ao canto do olho e esfregou-o
? quase como se limpasse uma lágrima.
Não estava a chorar. Não procurou um lenço. Mas a mão aí ficou,
junto ao olho, como se pretendesse reprimir qualquer outra
emoção.
Minnie sentiu o fôlego entrecortado.
Voltou atrás pelo corredor, maldizendo os chinelos macios. Ele
não a ouvira a chegar. Abriu com estrépito a porta da sala e
pegou no embrulho que recebera nesse dia. Bateu
com a porta ainda com mais força.
Era impossível fazer soar chinelos arrastados numa carpete, mas
deu o seu melhor. Quando chegou à porta, ele baixara a mão. A
expressão de tristeza desaparecera, e ele até
conseguira esboçar-lhe um sorriso.
? Minnie ? disse. ? Não pensei que estivesses acordada.
Como se fosse capaz de dormir, a pensar nele e preocupada com
o cunhado. O julgamento estava marcado para o dia seguinte. Via
o que a tensão lhe estava a causar. Tinha olheiras
fundas e rugas acentuadas na testa.
? Custa-me dormir sem ti ? respondeu ela.
Pousou o embrulho na mesa junto dele.
Robert espetou um pouco de carne com o garfo.
269
? Não tive tempo de jantar ? disse, num tom quase apologético,
antes de o levar à boca. ? E afinal estou cheio de fome.
Minnie sentou-se ao lado dele.
? Eu também tenho um ratito.
Provavelmente estariam os dois a mentir. Provavelmente, ambos
teriam noção disso.
Não obstante, Minnie pegou num pão para lhe fazer companhia;
enquanto ele comia, desfez o pão no prato. Na pior das hipóteses,
a presença dela levava-o a comer o que tinha
à frente. Comeu mecanicamente ? ervilhas, nabos e cenouras,
além da carne que se encontrava num molho que solidificara.
Minnie sentiu o estômago dar uma volta só de pensar
nisso, mas ele não pareceu saborear nada do que levava à boca.
Pareceu ficar surpreendido quando o garfo não encontrou mais
nada no prato.
? Foi um dia comprido ? comentou. ? Eu... acho que vou
diretamente para a cama. ? Mas não se levantou.
Minnie entendeu isso como um convite para se ir ao aparador e
servir um copo de xerez. Levou-o a ele; os dedos tocaram-se
quando lho entregou.
? Vai correr tudo bem? ? perguntou ela.
Em resposta, Robert pousou a cabeça nas mãos. Minnie assentou
os dedos sobre os dele. Tinha a pele quente ao toque; quase lhe
sentia as frontes a palpitar. Lentamente, esfregou-lhe
a testa; Robert soltou um leve ronco e deixou a cabeça descair
para a pressão.
? Não sei ? disse baixinho. ? Eu não... ? Virou a cabeça para lhe
suster o olhar, após o que se desviou rapidamente. ? Não tenho a
certeza. ? Tamborilou os dedos na mesa.
? Mas farei tudo o que estiver ao meu alcance. O meu irmão... ?
Respirou fundo mais uma vez. ? O meu pai nunca se importou.
Nunca ajudou. O Oliver cresceu sem nenhum dos privilégios
que eu tive, e vê-lo acusado publicamente de algo que eu fiz...
Não suporto tal coisa, Minnie. Sinto-me à beira da loucura só de
pensar. Deves ter noção disso.
? Eu sei. ? Esfregou-lhe a testa. ? Mas estás a fazer tudo o que
podes.
270
? Sim. ? A voz soava débil, tão fraca. ? Mas não vejo maneira de
isto poder correr bem.
? Talvez não. Mas, aconteça o que acontecer, vamos enfrentá-lo
juntos.
Robert inspirou fundo mais uma vez.
? Minnie... Amanhã vai estar uma multidão no tribunal. Alguém
alertou os jornais londrinos para o facto de que eu iria
testemunhar, pelo que agora, em vez de dois, vão estar
vinte jornalistas presentes.
? Estás a perguntar se consigo lidar com uma multidão? Sou
capaz de estar em multidões. É desconfortável, mas aguento,
conquanto não esteja toda a gente a olhar para mim.
Quando muito, isso serviu apenas para intensificar a tristeza nos
olhos dele. Pareceu desabar na mesa.
? Eu... Minnie. Não sei o que dizer.
Minnie abanou a cabeça.
? Tenho de estar presente ? declarou. ? Não há outra maneira. Por
isso estarei lá. ? Depois pensaria nos pormenores.
Foi a vez de ele abanar a cabeça.
? Pelo menos houve uma coisa boa a sair de tudo isto. Vim a
Leicester para acabar com o uso indevido da sedição criminosa
como ferramenta para acabar com greves. Agora já
sei quem está por trás disso. ? Ofereceu-lhe um sorriso frio. ?
Tive uma conversa deveras interessante com... com um
magistrado sobre aquilo que o Stevens pediu para o ajudar
a manter a paz. A justiça será feita.
? Ótimo ? respondeu Minnie. ? Excelente. Tenho algo para ti, que
espero também seja bom. Comprei-te uma coisa. ? Indicou o
objeto embrulhado em papel pardo que levara com
ela.
Robert observou o objeto sobre o comprido à cautela, depois
pegou-lhe num canto e puxou-o.
? O que é isto?
? Uma prenda.
? Não faço anos. ? Olhou-a. ? E ainda falta mais de um mês para
o Natal.

271
? Não é uma prenda por nenhuma ocasião específica. ? Sentia o
coração aos saltos no peito. ? É só uma coisa que vi e quis que
tivesses.
Como os rubis que ele lhe dera, agora guardados numa caixa, à
espera de uma ocasião mais feliz.
? É pesado ? disse ele, sopesando as bordas. ? É um livro? Um
atlas?
? Não te vou dizer ? declarou ela. ? Tens de abrir e descobrir.
Robert puxou o cordel, deixando-o cair para o chão quando o
laço grosseiro se desfez. O papel amachucou-se quando o abriu.
O volume estava encadernado em pele creme, com um padrão
discreto. Não tinha título na capa, nem na lombada, tal como
percebeu quando o inclinou. Minnie susteve a respiração
quando ele abriu a capa e folheou as primeiras páginas.
O livro não viera de uma gráfica. Fora ilustrado paciente e
perfeitamente à mão. Minnie julgava que as ilustrações eram
aguarelas, mas se fossem, tinham cores vibrantes ?
as várias camadas de tinta sobrepunham-se até que os vermelhos
se tornavam fortes como folhas moribundas no outono, e os azuis
tão reais como o céu estival. A primeira ilustração
? uma letra A gigantesca ? estava no cimo de uma colina. A letra
propriamente dita era composta por uma miríade de imagens
mais pequenas. Um abeto, curvado pelo vento, formava
um dos lados da letra. No cimo dos ramos estava um albatroz, de
asas abertas para o céu. Uma alpaca tentava comer um ananás,
com o pescoço a formar o outro lado. Uma aranha
de aspeto venenoso estava a seus pés, mas em vez de ameaçar as
outras criaturas, parecia entretida a comer um alperce. Toda a
ilustração era composta por coisas que começavam
com A.
Robert observou-a por alguns momentos, antes de virar para a
letra B ? borboletas, bétulas e beija-flores.
? Compraste-me um livro de leitura? ? Parecia estupefacto.
? Pensei... ? Minnie engoliu em seco. ? Disseste que querias
muitos filhos. Pensei em arranjar-te um livro de leitura sem
palavras impressas. Assim, podes inventar o que quiseres
para cada letra. E nunca estás errado.
272
Robert olhou para as folhas. Tocou na borda de uma e Minnie
interrogou-se se ele estaria a pensar no M ? que, realmente, tinha
ovelhas e a figura de uma mãe, de mão dada com
o filho ao luar, com morcegos e mariposas a voar em torno de um
arbusto de mirtilos à meia-noite. Mas ele não abriu nessa letra.
Em vez disso, virou-se e olhou-a.
? Compraste-me isto ? disse.
Minnie assentiu.
? Porque...
? Porque estava a pensar em ti.
Robert levantou-se. Minnie não lhe conseguiu ler a expressão.
Mas, depois, ele levou-lhe as mãos aos ombros e, quando ela
levantou o olhar, beijou-a. Beijou-a sem meiguice, sem cuidado.
Beijou-a com toda a emoção que ele não mostrara
desde que entrara naquele aposento ? ferozmente, selvaticamente,
como se regressado de uma ausência de dez anos e precisasse de
lhe recordar de tudo o que acontecera. Os braços
envolveram-na, apertando-a como correntes. O corpo dele
libertava um calor imenso. Beijou-a repetidas vezes, mal lhe
permitindo recuperar o fôlego antes de a envolver em mais
um beijo. Apertou-a tanto nos seus braços que ela mal se
apercebeu que a levantara e pousara na mesa à frente dele.
Largou-lhe a boca tempo suficiente para lhe sugar o queixo,
o pescoço. O percurso dos beijos deixou pequenas rosetas de
prazer, e ele continuou a descer ? até desabotoar a gola da camisa
de dormir e lhe desnudar os seios.
Fechou a boca sobre o mamilo e ela entregou-se. Nada mais
havia no mundo, só o calor da língua dele contra ela, a força das
mãos dele nas suas ancas. As costas dela encontraram
a madeira dura da mesa.
? Céus, Minnie ? murmurou ele. ? O que faria eu sem ti?
? Achas mesmo que precisas de saber? Não vou a lado nenhum.
Robert pareceu nem a ouvir. Largou-a durante o tempo
necessário para abrir as calças e depois agarrou-lhe os pulsos,
segurando-lhos na mesa, ao lado do corpo. Mas não a olhou
nos olhos.

273
? Estou aqui ? disse ela. ? Não tens de me prender. Não vou a
lado nenhum.
Não a largou. Em vez disso, soltou um ronco e penetrou-a. O
corpo dela estava molhado para o receber. Ele nem sequer se dera
ao trabalho de despir por completo as calças,
e, quando se enterrou dentro dela, Minnie sentiu o tecido a
raspar-lhe as coxas. O facto de ele estar de tal modo desesperado
por ela que nem sequer se despira, que a empurrara
para cima de uma mesa, apenas lhe aumentou o desejo. O
escorregar glorioso do corpo dele para dentro dela pareceu ainda
mais delicioso, ainda mais proibido.
O ato nada teve de correto. Foi algo bastante mais feral, uma
força elemental que ela ainda não vivera. As estocadas eram
fortes e constantes; o cabelo dele encaracolava-se
na testa, pingando suor.
? Meu Deus ? gemeu ele.
Agarrou-o com força e ele voltou a soltar um ronco.
? Quero-te ? exclamou. ? Meu Deus, como te quero. Porque não
te posso ter?
? Podes. Tens.
Mas ele não respondeu. Em vez disso, tomou-a com mais força.
Parecia quase num frenesim. Roncou uma última vez ao atingir o
clímax. Largou-lhe os pulsos nesse momento ? mas
só para lhe segurar o rosto e beijá-la.
À medida que o auge passou, o beijo acalmou-se, de selvagem
para doce. Retirou-se gentilmente, inspirou um fôlego
entrecortado e olhou em redor, como se quisesse confirmar
que acabara de a tomar em cima da mesa.
Resistente, a mesa. Mal se mexera, fosse qual fosse o modo como
a tomara.
Soltou-se dela e recuou. Ela sentou-se lentamente.
? Minnie ? sussurrou.
? Se disseres alguma coisa que não seja, "Meu Deus, isto foi
magnífico", eu mordo-te ? ameaçou ela.
Robert riu-se.
? Céus. ? Passou-lhe os dedos pela face. ? És magnífica.

274
Mas a expressão dele continuava sombria, como um cortinado
que houvesse sido puxado. Recuou e Minnie sentiu-o a afastar-se
dela.
E Minnie percebeu. Viu-o na forma como ele meneava a cabeça,
no modo como os olhos dele a evitavam. Havia qualquer coisa
que ele não lhe estava a dizer.
Minnie ofereceu-lhe um sorriso triste e tocou-lhe no pulso.
? Não quero conceber os teus filhos todos em cima de uma mesa
de madeira, mas esta vez... esta vez não foi nada má.
? Eu... eu só precisava de saber se ainda eras minha. ? A mão dele
pairou-lhe sobre o ombro e depois baixou para o lado do corpo. ?
Não sei o que me deu.
Minnie estendeu a mão e entrelaçou os dedos nos dele.
? Sabes, levar um homem à loucura sempre foi um dos meus
desejos mais profundos. ? Tocou-lhe nos lábios com os dedos. ?
Imagino como este dia terá sido difícil para ti...
como os últimos dias terão sido complicados. Quando te casaste
comigo, disseste que querias uma aliada, alguém que te visse a ti
e não apenas um duque. ? Puxou-o mais para
ela. ? E aqui estou eu.
? Aqui estás tu ? murmurou ele. A voz era roufenha. Passou-lhe
as mãos pelo cabelo. ? Aqui estás tu.
Às três da manhã, a mente febril de Robert assumiu o controlo.
Viu-se na barra do tribunal e Minnie ? uma versão dela mais
jovem e vulnerável ? na audiência.
? Ela é uma criança bizarra ? ouviu-se a dizer. ? Filha do próprio
demo. Ela levou-me a fazê-lo.
Ela observava-o, os olhos arregalados e magoados ? e depois
estilhaçou-se, numa fonte de vidro cinzento. Robert procurou
alcançá-la, mas os fragmentos só lhe estraçalharam
as mãos em tiras.
Acordou a arquejar, à procura dela, absolutamente consciente do
que vira. Céus! Ele ia fazer-lhe aquilo ? traí-la na barra, à frente
de todos, tal como o pai lhe fizera.
Minnie estava enroscada ao seu lado. Adormecida, a mão
assentava na anca dele; a cabeça estava encostada ao seu ombro.
Até no sono confiava nele.
275
Não o podia fazer. Não lhe podia fazer tal coisa.
Levantou-se a custo. À luz da vela tremeluzente, escreveu-lhe
uma carta em que lhe contava tudo ? o que planeara, porque o
quisera.
Tenho de contar a verdade sobre ti, acabou por escrever. Não
consigo contornar isso. Mas não compareças no tribunal.
Lamento o que terá de ser dito ? mas não vás.
Amo-te.
A mão ficou a pairar, querendo desesperadamente escrever uma
derradeira frase.
Por favor, perdoa-me.
Mas não via como ela seria capaz de tal clemência. Nem sabia se
seria capaz de se levar a pedi-lo.
Antes de sair ao encontro dos advogados de Oliver, Robert
acordou a criada pessoal de Minnie e depositou-lhe a carta nas
mãos.
? Tome ? disse, apontando para uma cadeira à porta do quarto. ?
Sente-se aqui. Certifique-se de que ela lê a carta assim que
acordar, e nem um segundo depois. É urgente.
O resto da manhã passou como um borrão. Pareceu-lhe esperar
uma eternidade pelo início do julgamento, mas assim que
começou, as provas da acusação fundiram-se num fluxo confuso
de testemunhos e análises. A sensação de inquietude de Robert
foi crescendo.
À volta deles, os repórteres tiravam apontamentos em
estenografia. A defesa deu início à sua apresentação. Seria nesse
momento que Minnie apareceria na sala, seguida pela
mãe dele. Mas não apareceu. Graças a Deus.
Finalmente, Robert foi chamado a depor, e tudo o resto pareceu
desaparecer ? a sala de audiências, os jurados, os repórteres à
espera, com um interesse ávido. Não havia nada
além dele e do advogado que conduzia o interrogatório.
As perguntas começaram por ser simples ? o seu nome, o título, a
última vez que comparecera no Parlamento. E então...
? Sabe quem escreveu os panfletos no cerne do caso da acusação?
? perguntou o advogado.
? Sim ? respondeu Robert. ? Fui eu.
276
Da multidão ouviu-se um burburinho surpreendido.
? Alguém o ajudou?
? Foram distribuídos por um homem que não sabe ler, foram
impressos a quase duzentos quilómetros daqui. Ninguém na casa
que aqui tenho faz ideia deles. Certifiquei-me de que
assim fosse.
? Ninguém? Então e Mr. Marshall?
? Sobretudo Mr. Marshall ? afirmou Robert enfaticamente. ? Bem
vê, escrevi-os pois tive conhecimento de que nesta cidade vinha a
acontecer uma série de condenações por sedição
criminosa, acusações essas que não teriam sido feitas ao abrigo
da lei. Queria expor os envolvidos nesse esquema. Escrevi os
panfletos porque não poderia ser levado a julgamento,
mas nunca incluiria qualquer outra pessoa na jurisdição de
Leicester. Nunca arriscaria outra pessoa.
? Porque haveria de se preocupar com Mr. Marshall? ? indagou o
advogado. ? Ele não passa de um funcionário pago, não é
verdade?
? Não, não é verdade ? disse Robert num tom veemente. ? Nunca
lhe paguei um salário; atribuí-lhe fundos isso sim. E mesmo que
não me preocupasse com o bem-estar dos meus funcionários,
ele é meu irmão.
Arquejos e mais burburinho. Robert estivera de tal modo
concentrado nas perguntas que nem olhara para a sala de
audiências. Olhou finalmente para os presentes. Por um instante,
os repórteres na primeira fila fitaram-no, em choque. Depois
ostentaram sorrisos rasgados de prazer ao perceberem que aquela
história se tornava cada vez mais interessante.
Os lápis começaram a escrever furiosamente. Robert sorriu
enquanto os mirava ? até que o olhar se deteve no fundo da sala.
Sentada na última fila estava Minnie. Devia ter entrado enquanto
ele falava. Ao lado estava a mãe dele.
Será que não recebera a mensagem? O que estava ela a fazer ali?
? Vossa Alteza. ? A voz do advogado parecia lenta, tão arrastada,
mas Robert não era capaz de lhe fugir. Nem sequer era capaz de
se mexer no lugar. ? Vossa Alteza joga xadrez?
Os olhos de Minnie prenderam-se aos dele.
277
? Não. ? Era incapaz de se desviar.
? Alguma vez jogou xadrez?
? Algumas partidas, quando era jovem. O suficiente para saber as
regras do jogo. Mas pouco mais.
? Pode explicar-nos como pôde escrever sobre um "ataque a
descoberto" nos seus panfletos e como o fez em termos tão
próximos das palavras de um manual obscuro sobre estratégia
em xadrez?
? Sim ? afirmou Robert. ? Posso.
A sala de audiências ficou mergulhada em silêncio.
? Quando o escrevi tinha falado com alguém que domina xadrez.
Não foi Mr. Marshall.
? E quem era essa pessoa?
Minnie já saberia o que estava a acontecer. Compreenderia o
motivo por que ele lhe pedira que fosse ao tribunal. Saberia que a
encurralara, que a traíra em público, que lhe
fizera tudo o que prometera não fazer. Devia tê-la acordado nessa
manhã e contado tudo pessoalmente.
Minnie observava-o com uma expressão curiosa no rosto. Depois,
por estranho que parecesse, levou dois dedos aos lábios e
estendeu-os na direção dele.
Desculpa-me, Minnie.
? Em 1851 ? ouviu-se Robert a dizer ?, uma menina de doze anos
chamada Minerva Lane quase venceu o primeiro torneio
internacional de xadrez.
Em 1851, Minerva Lane foi traída e arruinada pelo pai. Agora,
Robert voltava a fazê-lo.
? Conhece Minerva Lane?
Obrigou-se a suster o olhar de Minnie quando enterrou a faca. O
rosto dela estava da cor da cinza, os olhos arregalados.
Lentamente, ela baixou os dedos que beijara.
As palavras pareciam-lhe vidro na boca, mas, mesmo assim, ele
formou-as.
? Sou casado com ela.
CAPÍTULO 26

278
Saber o que ia acontecer não ajudava. Minnie nem sequer sentia o
coração a bater, tal era a ansiedade. O corpo transformou-se em
gelo enquanto Robert falava. E quando todos
se viraram para ver para quem estava a olhar ? quando todos os
olhos caíram nela, negros de acusação ?, foi tomada por um
pânico desesperado. Os murmúrios cresceram de intensidade.
? É ela ? disse alguém.
Nem se lembrava de como respirar. Os pulmões pareciam
bloqueados em espasmos sem ar. Pôs-se de pé, mas a multidão
cercava-a. Gritavam. Berravam. A visão foi tomada por pontos
negros que cresciam cada vez mais. A última coisa que viu foi
Robert a levantar-se do banco das testemunhas e a saltar a
divisória. E depois, tudo ficou escuro.
Não tinha a certeza de quando recuperara a consciência. Voltou
aos poucos, como um excerto de um sonho que gradualmente vai
ganhando vida. Sentia o leve embalar da carruagem,
os braços do marido à sua volta, o fôlego dele no seu pescoço. As
mãos dele. Murmurava-lhe palavras de encorajamento, mas ela
não conseguia abrir os olhos.
A perceção chegou-lhe em clarões. Ser levada escadas acima. A
sensação de algo macio à sua volta. E a voz dele ? a voz de
Robert ? estava presente, mesmo no meio dos sonhos
agitados. Murmurou-lhe, abafada, ao ouvido, até que a
inquietação se desvaneceu e ela adormeceu.
Quando acordou, era de tarde. Estava na cama. Mas não era a
cama deles. Era a cama dela ? a cama que fora preparada nos
aposentos da duquesa. Era a primeira vez que se deitava
naquele colchão, e não gostou.
Alguém lhe despira o vestido azul e o corpete, os saiotes e as
roupas íntimas, deixando-a de combinação. Não estava cercada
por uma multidão ? mas sim, voltara a desmaiar.
Em público. Outras recordações seguiram essa rapidamente. A
sala de audiências. Robert, sentado à frente. Robert, a olhar
diretamente para Minnie enquanto revelava os segredos
dela a todos.
Não se sentia propriamente zangada, mas sim vazia. Minnie
suspirou e sentou-se.
279
Lembrava-se de cair. Mas o mais curioso era que não se lembrava
de chegar ao chão. Lenta e cuidadosamente, pôs um dedo de fora
da cama. Os pés encontraram o soalho; experimentou
assentar o peso sobre eles, e estes aguentaram.
E foi então que os olhos assentaram na figura na cadeira do outro
lado ? uma figura feminina.
? Lydia ? arquejou. ? O que fazes aqui?
Lydia levantou-se.
? O teu marido mandou-me buscar. ? O rosto parecia
obscurecido. ? Soube o que aconteceu. Ele disse que precisavas
de mim, por isso eu... eu vim.
? Mas...
? Desculpa ? apressou-se Lydia a dizer, correndo para o lado da
amiga. ? Durante muito tempo só consegui pensar que me tinhas
mentido, que não podia confiar em ti. Que não
confiavas em mim. ? Sentou-se ao lado dela. ? Eu disse-te que
não me contaste nada, mas eu sabia. Sabia que tinhas estes
ataques, que detestavas multidões. Não é a primeira
vez que te vejo a colapsar à frente de toda a gente. Se eu pensasse
um bocadinho, tinha percebido. Fui miserável.
Minnie olhou para a amiga.
? Não digas isso.
? Como posso não dizer? Não foi mentira quando descobriste que
eu estava grávida e me disseste que ia tudo correr bem. Não foi
mentira quando abortei e tu passaste horas a
ler para mim, enquanto eu fiquei de cama, a recear que também
eu fosse morrer. Gostava que me tivesses contado, mas... ?
Calou-se. ? Nunca houve nada entre nós que fosse mentira.
E devia ter estado ao teu lado, tal como tu estiveste, muito antes
disto.
Lydia abraçou-a com força, de tal modo que Minnie julgou que
ela nunca a largaria. Não queria que largasse.
? Também lamento muito ? acrescentou Lydia num tom mais
prosaico ?, porque isso significa que nunca tive hipótese de dizer
que te tinha avisado.
Entreolharam-se e riram-se.

280
? É verdade. E tinhas razão. Tem sido... ? Minnie franziu o
cenho. ? Que barulho é este?
Lydia virou-se.
? Aquilo? É o teu marido a falar com pessoas nos aposentos dele.
Os aposentos dele? Aquele era o quarto deles. Até então, nunca
haviam usado quartos separados. Mesmo durante o estado de
espírito mais sombrio do marido nos últimos dias,
eles tinham partilhado a cama. O quarto onde estava ficara
sempre por usar.
Ouvia-o a falar, não alto o suficiente para distinguir as palavras,
mas o volume permitia-lhe ouvir a cadência do discurso, o ritmo
das ordens que estavam a ser dadas.
? Lydia ? perguntou ela ?, onde está o meu marido?
Podia jurar que ele a levara para casa. Mandara chamar Lydia. Na
última vez que ela colapsara, ele estava presente quando acordou,
mesmo sabendo que o golpe sofrido pela reputação
dela exigia que ele lhe propusesse casamento. Porque não estava
ali agora?
Lydia abanou a cabeça.
? No outro quarto.
? Devia estar aqui. Ele esteve aqui.
Tirou um robe do guarda-vestidos. Depois cruzou os poucos
passos até à porta que os separava. A maçaneta girou com o peso
dela, e a porta abriu-se.
Estavam três criados no quarto ? o criado pessoal e dois lacaios ?,
a par de várias malas. Robert estava sentado de costas para ela,
observando a azáfama deles. Um dos lacaios
acabara de sair do vestiário, os braços carregados de coletes de
seda coloridos. Depositou-os numa das malas, e o mundo de
Minnie gelou.
? Robert, o que estás a fazer? ? quis saber Minnie.
O duque estacou, de costas para ela. Os criados desviaram o olhar
e começaram a emalar mais depressa, mais silenciosamente.
Apenas os relances evidenciavam o seu interesse.
? Recuperaste com celeridade ? comentou ele, ainda de costas. ?
Pensei que já estivesse fora quando acordasses.
? Fora? Mas, para onde vais?
281
Finalmente, Robert levantou-se e virou-se. Mas embora o corpo
estivesse apontado na direção geral dela, continuava sem a olhar.
? Vou-me embora.
Entrara em pânico quando ele falara à frente de todas aquelas
pessoas. Haviam-na olhado; o antigo terror viera ao de cima. No
entanto, por mais horrível que fosse desmaiar,
isso era fácil. Assim que acontecia, deixava de ser preciso lidar
com a situação. Não havia como fugir àquilo. Aquilo... aquilo
magoava.
? Embora? Embora para onde? Durante quanto tempo?
? Fiz-te uma promessa ? acabou Robert por dizer. ? E quebrei-a
em mais pedaços do que alguma vez se julgaria possível. Nem
imagino como estarás furiosa comigo. ? Cerrou o
maxilar. ? Não vou ficar agarrado. Não vou suplicar. ? Ofereceu-
lhe um sorriso gelado. ? Estou a facilitar-te as coisas.
A cabeça dela girava.
? Assim, sem mais nem menos?
? Sem cenas. Sem discussões. Sem necessidade de atirar coisas. ?
Lá acabou por erguer a cabeça e exibiu um sorriso cansado. ?
Terás tudo o que quiseres; basta pedires.
Quando muito, os lacaios emalavam as coisas ainda mais
depressa, como se quisessem provar que os seus ouvidos não
podiam ouvir nada do que estava a ser dito.
Minnie percorreu lentamente o quarto e deteve-se à frente dele.
? Não percebo. Estás a dizer...
? Sei bem o que aconteceu. Só te casaste comigo porque prometi
que te protegia. E eu...
? Espera aí, Robert. ? Minnie acenou na direção dos criados. ?
Acho que é melhor saírem daqui. Na verdade, talvez seja
preferível deixarem esta ala durante a próxima hora,
mais ou menos.
Fez-se uma pausa. Um dos lacaios olhou para os plastrões que
tinha nas mãos. Outro relanceou o duque, que cerrou o maxilar e
não disse nada.
Minnie bateu as palmas.
? Larguem tudo e vão-se embora.
Os criados desapareceram.
282
Minnie virou-se. Lydia continuava à porta que ligava os dois
quartos, de olhos arregalados, a observar. Levantou as mãos.
? Já fui! ? exclamou. ? Depois vai ter comigo, Minnie.
Lançou um olhar duro a Robert e também se foi embora.
Aguardaram, à escuta, até que os passos se desvaneceram à
distância.
Depois, Minnie encostou as mãos ao peito dele e empurrou-o
com força.
? Robert, seu idiota, mas o que te está a passar pela cabeça?
? Teve de ser. ? Fitou-a. ? Tive de o fazer. Era o meu irmão, e
tinha de...
? Oh, seu idiota. ? Empurrou-o novamente e ele cambaleou para
trás, com as pernas a bater na cama. ? Não estou a falar disso.
? Deixei-te uma carta ? disse ele. ? Esta manhã. Devia ter falado
contigo antes. Devia ter-te acordado. Precisei de tempo para me
decidir. Sentia-me mal, a pensar que tinhas
sido exposta àquilo só porque...
? Recebi a tua carta ? atalhou Minnie. ? Li-a. Decidi que tinhas
razão.
? Tu... fizeste o quê? ? Robert limitou-se a pestanejar, incrédulo.
? Recebi a tua carta ? repetiu Minnie. ? Li-a. Decidi que o teu
impulso inicial estava certo. Não valia a pena esconder a verdade
quanto à minha identidade, pois acabaria
por vir a saber-se. Portanto, eu teria de passar por uma pequena
humilhação. Mas o que seria isso, comparado com a vida do teu
irmão?
? Minnie! ? Parecia horrorizado. ? Mas tu...
Minnie pousou a mão no ombro dele.
? Tinhas de contar a toda a gente a verdade sobre o meu passado
para salvares o teu irmão de ser ostracizado. Julgavas que ia
insistir no teu silêncio com isso em jogo? Sim,
foi uma cena terrível. Sim, não quero repetir nada sequer
remotamente parecido. Não gosto que olhem para mim. Fico sem
conseguir respirar. Não vejo bem. ? Fitou-o. ? Foi terrível,
mas não foi o fim do mundo. E achas que isso representa o fim
do nosso casamento?
Robert deixou-se pestanejar.
283
? E... não é? ? Finalmente, lá a olhou. Parecia surpreendido, até
espantado. ? Mas posso ver que estás zangada comigo.
? É claro que estou zangada.
Robert abanou a cabeça.
? Então... Não te vais embora?
? É claro que estou zangada ? repetiu ela. ? Porque achava que eu
significava alguma coisa, que era importante para ti. E agora
estás pronto a afastar-te só porque não te
dás ao trabalho de tentar remediar as coisas.
? Não me dou ao trabalho... ? Repetiu ele, num tom pasmado.
Olhou-a. Virou-se e olhou para as malas meio cheias, para o
monte de plastrões que o criado abandonara numa gaveta.
? Eu... ? Tinha a voz baixa e cansada. ? Não compreendo.
Magoei-te. Sabia que isso ia acontecer e, mesmo assim, fi-lo.
Como remediar isso? Não te posso dizer para não estares
zangada. Tens de estar zangada. Mereces ficar zangada.
Aquele era o homem cuja mãe o abandonara em criança. Aquele
era o homem cujo pai só o vira como ferramenta para retirar
dinheiro dos bolsos alheios. Robert perdoara Minnie.
Mas ele, no entanto, tinha tão pouca esperança de ser perdoado
que nem sequer era capaz de o pedir.
Minnie pegou-lhe na mão.
? Sabes porque estou furiosa? Porque preferes ir-te embora a
tentar fazer com que o nosso casamento resulte.
Robert perscrutou-lhe os olhos.
? Eu...
? Eu sei. Não queres brigar. Mas não são as brigas que destroem
os casamentos. É o não querer compor as coisas.
Robert engoliu em seco.
? Tu queres brigar?
? Sim. E quero que digas que estavas terrível, profunda e
sordidamente errado.
Robert estremeceu.
? E estava. E sei que estava.
? Quero acreditar em ti quando pedires desculpa. Quero saber, na
minha alma, que não voltarás a fazer nada para me magoar.
Quero que me prometas que da próxima vez que uma
284
coisa dessas aconteça, primeiro vais falar comigo, e depois
decidimos juntos o que fazer.
Robert fitava-a, de cabeça levemente inclinada.
? Depois, quando passarmos por isso tudo, quero perdoar-te. ? Os
olhos dela ficaram marejados de lágrimas.
? Mas porque queres fazer isso tudo?
? Porque te amo ? disse Minnie. ? Eu amo-te. Eu amo-te.
Robert suspirou profundamente.
? Tens a certeza? ? indagou baixinho.
Minnie assentiu.
? Estou a ver ? disse ele. E depois, sem dizer mais nada, saiu do
quarto.
CAPÍTULO 27
Minnie fitou a porta por onde Robert saíra, a mente num
turbilhão. Porque saíra? Onde fora? O que faria ela?
Foi até à janela para ver se ele estava a deixar o edifício,
espreitou e recuou, a arquejar. Uma pequena multidão estava à
porta da casa, uma mole de chapéus em tons castanhos
e negros a formar um meio círculo com quase três alas. Um dos
homens olhou para cima, viu-a, apontou...
Minnie saltou para trás, de coração aos pulos.
Se Robert tivesse saído, ela não seria capaz de o seguir.
Voltou a encarar o quarto dele. Um jornal jazia em cima da
cómoda. Minnie desdobrou-o com cuidado e descobriu que fora
impresso nessa tarde. Não teria mais de meia hora.
Duque de Clermont Autor de Panfletos, proclamava a manchete.
O subtítulo, com um corpo de letra mais pequeno, acrescentava:
Duquesa Antiga Campeã de Xadrez.
Voltou a ler as parangonas, abanando a cabeça com quão
insípidas lhe pareciam.
? Bem ? acabou por murmurar. ? Imagino que "Duquesa é antiga
fraude que se vestia de rapaz e enganou centenas" não coubesse.
E vivam as limitações do papel.
O artigo era de uma imparcialidade surpreendente. Ausentes
estavam as piores acusações que enfrentara no passado: monstro,
vigarista, filha do demo. O seu passado encontrava-se

285
resumido num parágrafo breve e factual. Era chocante, claro, mas
o tempo atenuara a potência e o carisma das palavras do pai.
Mr. Lane afirmou que o esquema fora da autoria da filha, embora
nunca se houvessem encontrado provas de que uma criança de
doze anos estivesse envolvida na fraude.
Sentia-se como se tivesse aberto uma porta atrás da qual julgasse
estar um monstro imponente, acabando por descobrir que ele só
tinha um palmo de altura. Havia coisas que
podiam ser ditas acerca da filha de um criminoso. Ninguém dizia
tais coisas sobre a esposa de um duque.
O relato do julgamento desse dia parecia igualmente estranho.
Ler sobre o seu próprio colapso foi uma experiência
decididamente bizarra. Era como se estivesse a observar as suas
emoções à distância. Ouvira os arquejos dos que a rodearam
na sala de audiências, mas compreendia agora que haviam sido de
surpresa e não condenatórios. Viu-se a empalidecer sem que a sua
pele ficasse pastosa ou o fôlego perigosamente
acelerado.
Também lhe permitiu ver o que acontecera em seguida. Caíra,
desfalecida. Um homem perto dela cuspira-lhe ? e a duquesa
viúva batera no homem com a sombrinha. Depois fulminara
todos os presentes com o olhar, mantendo-os à distância.
Robert saltara por cima de três bancos ? o que, certamente, seria
um exagero ? para chegar até ela.
Depois de ter retirado a esposa da sala de audiências, Sua Alteza
dignou-se a responder a algumas perguntas. Afirmou estar ciente
da identidade da esposa aquando do casamento
? afirmação que é sustentada pelo assento, que identifica a esposa
como sendo Minerva Lane. Sua Alteza explicou da seguinte
maneira a escolha da noiva: "Para quê casar-me
com uma mulher convencional, se podia ter uma mulher
excecional?"
Minnie pousou o jornal e fechou os olhos, que lhe ardiam com as
lágrimas por verter. Conseguia ouvi-lo naquela citação ?
imaginava-o a revirar os olhos, a irritação com que
os teria fitado. O corpo recordava ter sido levantado, mesmo que
a mente não se lembrasse.
286
Não tinha a certeza do que aquilo significava, mas estava certa de
uma coisa.
Ele ia regressar.
Continuou a ler. O artigo só tinha algumas colunas. Um
comentário relacionado dizia que, depois do julgamento, o
capitão George Stevens fora detido e acusado de receber
subornos
para realizar o seu dever oficial. Minnie esboçou um sorriso.
Ótimo.
A porta abriu-se. Robert estava no corredor, com um livro
apertado junto ao peito. Susteve-lhe o olhar, de expressão
cautelosa.
? Tens de me desculpar se isto sair confuso ? disse ele baixinho. ?
Mas nunca fiz nada assim.
? O que estás a fazer?
Em resposta, Robert entrou no quarto e pousou o volume
encadernado a pele na cómoda junto dela.
Era o livro de leitura que ela lhe comprara no outro dia.
? Eu... ? Olhou para baixo e depois para ela. ? Já decidi o que
representam estas letras. Queria dizer-te.
Minnie demorou um instante a perceber que ele estava nervoso.
Ele relanceou-a pelo canto do olho e abriu o livro na primeira
página.
? O A ? disse ? é de "Amo-te de muitas maneiras".
As lágrimas fizeram-lhe arder os olhos com um vigor renovado.
Minnie pestanejou, decidida a impedir que lhe toldassem a visão.
Queria vê-lo, identificar os pormenores do cabelo
louro desgrenhado, ver como mordia o lábio.
Robert desviou o olhar.
? Isto é uma tolice ? resmungou, pegando no canto da capa. Já
quase a fechara quando Minnie se apercebeu daquilo que ele
estava a fechar e insinuou a mão entre as folhas abertas.
? Não! ? protestou. ? Não é.
Robert assentou a mão sobre a dela e engoliu em seco.
? Não há nada de tolo em dizeres-me que me amas. Nunca.

287
? Oh ? exclamou ele baixinho. Pareceu demorar alguns
momentos para o apreender, até que voltou a abrir o livro de
leitura.
? A é de "Amo-te de muitas maneiras". São mais do que vinte e
seis, mas é este o alfabeto que temos, portanto, vou ter de me
conter. Pelo menos por agora.
Virou a página para um B roxo brilhante, iluminado da forma que
se esperaria num manuscrito medieval. Bétulas compunham um
dos lados da árvore e uma borboleta estava empoleirada
no topo da curva do B.
? B é de "Bem vês, vou cometer erros". Algo que não deve ser
uma surpresa. ? Olhou para ela e virou a página. ? C é de
Confissão. Não sei como fazer isto. Não sei como ser
um marido. Não sei como ser um pai. Com o meu pai, aprendi
como não o fazer, e isso não me parece um bom guia. Mas... ?
Outra página virada. ? D é de Determinação. ? Mais
uma folha. ? E é de Eternidade, pois é quanto vai demorar até que
volte a desistir. F... é para Fleuma, pois vai ser precisa muita
paciência até começar a acertar nas coisas.
? Neste momento estás a acertar ? disse Minnie com um sorriso. ?
Continua.
Robert assentiu e virou a página.
? G é de... G é de... G é de "Grande chatice, devia ter apontado
isto". Esqueci-me.
Minnie sentiu os cantos da boca a estremecer.
Robert franziu o cenho, perplexo.
? A sério. Não faço ideia do que vem a seguir. Pensei em todas, e
iam ser brilhantes, e quando acabasse ias saltar-me para os braços
e tudo ficaria bem.
Minnie virou algumas páginas até encontrar a letra M. Era a
página exposta quando ela comprara o livro. O M fora feito com
tons de azul e negro, com toques de dourado, com
a silhueta de arbustos de mirtilos a compor a forma escura da
letra contra um céu iluminado pelo luar. Talvez aquele M
evocasse a meia-noite.
? Esta é a mais importante ? disse ela. ? M é de Minnie. Sou tua,
mesmo quando cometes erros. ? Tamborilou o dedo na letra.
288
Robert avançou e muito lentamente puxou-a para os seus braços.
? Minnie ? disse ele ?, minha Minerva. O que faria eu sem ti?
? Só precisamos de uma letra. ? Minnie voltou ao início. ? A é de
amor. Porque te amo, Robert. Amo-te pela gentileza do teu
coração. Amo-te pela tua honestidade. Amo-te porque
queres acabar com o pariato. Eu amo-te, Robert. ? Puxou-o para
si. ? Não te vou deixar por causa de um erro.
? Mas eu...
Minnie abanou a cabeça.
? Depois tratamos disso. Por agora, Robert... há outros assuntos
que nos chamam.
? Sim ? disse ele, lentamente.
? Está um bando de repórteres lá em baixo ? disse ela ?, e
acabámos de dizer a toda a gente quem eu realmente sou.
? Eu livro-me deles. ? Levantou-se.
Minnie ergueu uma mão.
? Não ? disse, com vagar. ? Acho que não vai ser preciso.
? Pretende apresentar a duquesa à sociedade?
? O que pensa a duquesa viúva de Clermont de tudo isto?
? Porque escreveu os panfletos? Faz parte de um ardil
parlamentar?
Quando, horas depois, Robert entrou na sala, as questões que lhe
eram gritadas avassalaram-no, sobrepondo-se umas às outras,
criando uma cacofonia indistinguível. O sol já
se pusera; os candeeiros brilhavam e os corpos amontoados na
sala haviam elevado a temperatura acima da zona de conforto.
Os jornalistas haviam sido convidados a entrar quinze minutos
antes e, ao que parecia, tinham-se posto à vontade, gritando sem
pejos no interior da sua residência privada.
Esperou até que Oliver entrasse na sala e levantou a mão. As
perguntas continuaram a ser gritadas, mas à falta de respostas por
parte de Robert ? tendo até começado a fulminar
os homens ali presentes com o olhar ?, o estrépito acabou por se
desvanecer.
? Cavalheiros ? disse ele, depois de todos se calarem. ?
Permitam-me explicar o que vai acontecer. Convidei-os para
minha casa. Ofereci-lhes chá e biscoitos.
289
Com esse comentário, mais do que uma mão sacudiu
discretamente migalhas dos casacos.
? Se respeitarem as regras estabelecidas, todas as vossas
perguntas terão resposta. Mas quem levantar a voz acima de um
tom agradável... esse indivíduo será posto na rua por
uma orelha. Quem falar fora da sua vez será convidado a sair. Se
se comportarem como uma turba, serão tratados como tal. Agora,
se agirem como pessoas civilizadas, responderemos
a todas as questões.
? Vossa Alteza ? gritou alguém ao fundo ?, porquê essas regras?
Receia alguma coisa específica?
Robert abanou a cabeça com gravidade.
? Oliver. ? Fez sinal para trás de si. ? Por favor, acompanha o
cavalheiro dos gritos à rua.
? Espere! Eu não...
Robert ignorou os protestos, deixando que os outros o vissem a
ser acompanhado para fora da sala. Quando a porta se fechou,
Robert encarou os restantes. Seriam uns quarenta,
em cadeiras saqueadas nas outras divisões. Todos empunhavam
blocos. Quarenta olhos miravam-nos, circunspectos.
? Compreendam que não haverá segundas oportunidades ?
alertou Robert. Ouviu a porta abrir-se mais uma vez. ? Oliver,
podes exemplificar a maneira correta de fazer uma pergunta?
O irmão acercou-se do jornalista mais próximo e levantou a mão
em silêncio.
Robert apontou para ele.
? Tem a vez o cavalheiro do lado.
? Vossa Alteza ? disse Oliver num tom normal ?, porquê
estabelecer estas regras? Receia alguma coisa?
? Uma excelente questão ? disse Robert. ? Estabeleci estas regras
porque, daqui a poucos momentos, a minha duquesa juntar-se-á a
mim e não pretendo expô-la a uma turba ululante.
Com isso, os homens endireitaram-se e chegaram-se à frente.
? Como veem ? prosseguiu Robert ?, o que me interessa é o modo
de perguntar. Todas as perguntas serão escutadas, embora
reservemos o direito de nos negarmos a responder às
que sejam mais pessoais. Alguém quer começar?
290
Os homens entreolharam-se, como se receassem cometer algum
erro. Passados alguns instantes, um homem ao fundo levantou
timidamente a mão. Robert fez-lhe sinal.
? Vossa Alteza ? perguntou ?, porque se casou com Minerva
Lane?
? Queria mais uma duquesa que fosse bonita, inteligente e
corajosa do que uma nascida na nobreza. Eu não precisava de
dinheiro. O facto de também estar apaixonado por ela
foi uma mais-valia agradável. ? Robert indicou outro homem. ? É
a sua vez.
? É ela quem veste as calças no vosso casamento?
Robert imaginava que essa seria uma questão que ouviria
repetidamente, até que respondesse ao gosto de todos.
? Querem saber a primeira coisa que ela fez com o meu dinheiro?
? indagou Robert. ? Visitou uma modiste em Paris.
O comentário provocou risos.
? Acreditem ? prosseguiu Robert ?, quem fica tão bem de saia e
corpete como a minha esposa não tem intenção de usar calças.
As cabeças baixaram-se para escrevinhar essas palavras.
Minnie estava certa. Eles têm um padrão definido que uma
mulher deve seguir, dissera ela. Por um lado, é tudo mentira. Mas
podemos usar essas mentiras contra eles. Se lhes
mostrares que, por um lado, correspondo ao padrão deles, eles
não questionam se por acaso sou diferente em outros aspetos.
Sorrira. No meu caso é muito simples. Gosto de roupas
bonitas. Se os fizermos ver isso, não perguntam mais nada.
? Isso é tudo muito bonito ? disse outro homem quando Robert
lhe deu a vez ?, mas acredita que a jovem Minerva Lane levou o
pai a defraudar outros, que foi ela a causa da
condenação e morte prematura de Mr. Lane? E se for esse o caso,
estará ela arrependida?
Robert cerrou os dentes, sentiu a irritação a crescer, mas obrigou-
se a acalmar-se.
? Não ? respondeu. ? Foi o pai quem abriu as contas falsas. O pai
mentiu aos compatriotas na ausência dela. O bom senso sugere
que ao ser detido e ver a iminência da prisão,

291
não hesitou em contar mais uma mentira para se salvar,
independentemente de quem saísse prejudicado.
"A duquesa de Clermont sofreu o suficiente pelas falsidades do
pai ? continuou. ? Assim sendo, invoco o direito do marido. ?
Ofereceu um sorriso tenso. ? Assim, espancarei
quem sugira outra coisa.
A declaração foi recebida com o som de uma dúzia de canetas a
raspar em papel.
Se disseres isso, alertara Minnie, tens noção de que terás de o
fazer. Pelo menos uma vez.
Mal podia esperar.
? Por falar nela ? adiantou Robert ?, creio estar na altura de a ir
buscar.
Virou-se, ciente do burburinho que se fez ouvir atrás de si. Abriu
a porta lateral e saiu da sala.
Minnie esperava na divisão adjacente, de mãos cruzadas, a andar
de um lado para o outro.
Estacou ao vê-la. Ela envergava um vestido que ainda não vira ?
encomendado, sem dúvida, em Paris, entre as sessões de amor.
Era de um carmesim brilhante, o tipo de vestido
que chamaria a atenção de todos. Era cintado, enfatizando-lhe as
curvas. E usava os rubis que ele lhe dera.
Tinha um xaile de renda preta sobre os braços desnudados e
flores no cabelo. Mas a tudo isso acrescentara algo que ele só vira
em quadros do século anterior. Colara um simples
sinal de beleza preto no canto da boca. Isso chamava a atenção
para a cicatriz, fazendo com que a rede branca na face parecesse
uma decoração intencional e não o lembrete
de um ato de violência insensato. A modernidade do vestido, a
par desse toque de moda antiga, tornava-a uma criatura
intemporal.
Apercebeu-se de que a fitava, estupefacto.
? Sabes uma coisa, Minnie ? disse ele, num tom um pouco
roufenho ?, estás deslumbrante.
? A sério? A tua mãe detesta o sinal ? disse ela. ? São muitos?
Robert acercou-se.

292
? Quase vinte. Mas fiz o possível por assustá-los para que sejam
urbanos. Tens a certeza?
Minnie respirou fundo; o diamante estremeceu-lhe no peito.
? Absoluta.
Robert tomou-lhe a mão.
? Porque não me importo de os mandar para o diabo...
Minnie tinha a palma fria, húmida, e ofegava um pouco.
? ...e estarei sempre ao teu lado ? asseverou. ? Ninguém se vai
aproximar. Prometo.
? Eu sei. ? Minnie apertou-lhe a mão e depois, juntos,
regressaram ao salão. Ela fez uma pausa à entrada. Robert não
sabia se eram os nervos que a levavam a parar ou se pretendia
apenas causar uma impressão forte.
Mas foi o que conseguiu. Os homens arquejaram, surpresos ?
como se, no fundo, esperassem que ela lhes aparecesse de calças
e casaco. E depois apressaram-se a levantar-se.
Minnie sorriu. Robert, de mão dada, sentiu-lhe a pulsação a
acelerar, sentiu-lhe os dedos a enterrarem-se-lhe na palma quando
os olhos a fitaram. Sabia o quanto lhe estaria
a custar aquele sorriso. Também sabia que se eles gritassem
naquele momento, ela talvez desmaiasse de imediato. Mas todos
permaneceram em silêncio, sem quererem ser expulsos.
Robert acompanhou-a até ao divã à frente do salão, instalou-a, e
depois sentou-se também.
O divã encontrava-se num estrado levemente elevado.
Minnie olhou em volta, observando-os a todos.
? Bem ? disse ela. ? Imagino que seja o mais perto que alguma
vez vá estar de um trono.
O comentário arrancou uma gargalhada surpreendida da
audiência.
? Vão desculpar-me, cavalheiros. ? A voz dela era baixa, tão
baixa que todos se chegaram à frente para a ouvir. ? Pedi silêncio.
A minha voz não é muito alta e eu estou nervosa.
Uma mão levantou-se.
? Receia as verdades que possamos desenterrar?
Era uma pergunta audaz a colocar-lhe. Minnie nem pestanejou.

293
? Não ? respondeu com simplicidade. ? O meu medo tem uma
origem mais primeva. Aos doze anos... ? Fez uma pausa, respirou
fundo, e continuou. ? Bem, acho que todos sabem o
que aconteceu quando eu tinha doze anos, desde a declaração do
meu pai em tribunal até à multidão que depois me rodeou.
Deixaram-me com esta cicatriz. ? Levou a mão à face.
? Desde então, os grandes ajuntamentos fazem-me perder o
fôlego. Não consigo ter tantos olhos fitos em mim sem me
lembrar dessa altura. Na verdade, estou grata por todos vocês
estarem a escrever. É muito melhor do que ter-vos a fitar-me. ?
Disse-o com um sorriso, mas os dedos continuavam cerrados em
torno dos de Robert.
As canetas registaram essas palavras. Não detetariam aquilo que
Robert via claramente ? o tom das faces, o rosa pálido dos lábios
normalmente mais escuros.
? Ainda hoje ? continuou Minnie ?, depois de tantos anos, pensar
nisso deixa-me as mãos a tremer. ? Soltou a mão da de Robert e
estendeu-a como prova. ? Se aqui estivessem
mais dez jornalistas, não sei se seria capaz de estar presente. E, se
estivessem a gritar, é bem provável que desmaiasse. ? Voltou a
sorrir. ? Foi isso que aconteceu hoje
no tribunal.
? Como participará em bailes, festas... os eventos onde as
duquesas são obrigadas a marcar presença?
? Imagino ? disse Minnie ? que venha a receber imensos convites
dos meus pares para tais eventos.
Haviam debatido essa questão, revendo-a até que cada palavra
saísse na perfeição.
? Tenho igualmente a certeza ? prosseguiu ? que todos
compreenderão que ao recusar esses convites, não será por mal.
Todavia, ao longo dos próximos anos, o meu marido e eu
organizaremos vários eventos mais pequenos. Irei gerir algumas
das obras de caridade do meu marido, e acredito que virei a
conhecer muitos dos meus pares dessa forma.
? E não receia ser afastada devido à sua história?

294
? Imagino que haja quem não deseje conhecer-me. Mas a minha
situação levará a que o meu círculo de conhecimentos seja, por
necessidade, exclusivo. Se alguma mulher desejar
afastar-se da possibilidade de deter um lugar nesse círculo, não
deverá hesitar. ? Sorriu para a audiência.
Enquanto falava, os repórteres transcreviam as palavras em
estenografia. Surgiriam reproduzidas à letra em metade dos
jornais da nação. Mas, enquanto escreviam, alguns homens
levantaram a cabeça para a olhar.
Parecia indubitavelmente feminina; mostrara-lhes uma fraqueza e
pusera-os à vontade. No entanto, o repórter grisalho mais para o
lado ? Parret, julgava Robert ser o seu nome
? olhava com interesse para Minnie. Ele cobria os mexericos e a
política de Londres desde antes de qualquer deles nascer, e talvez
estivesse a identificar aquilo que Robert
já sabia. A duquesa de Clermont acabara de lançar um desafio às
senhoras de Londres. Não ia suplicar a sua companhia, nem
pedinchar uma boa opinião. A amizade dela seria uma
honra singular e original, a qual seria atribuída com cautela.
Parret levantou a mão.
? Vossa Alteza ? disse ele ?, o seu talento para o xadrez foi... um
acaso infantil? Uma fraude?
O esboço de um sorriso bailou-lhe nos lábios, mas desta vez era
genuíno.
? Não ? respondeu simplesmente. ? Não foi.
Ergueu uma sobrancelha e contemplou-a.
? Disse que estava nervosa. Não parece nervosa.
? Quando me sentia ansiosa, costumava dizer para comigo que
não sentia nada. Ajudava, mais ou menos, até conseguir
escapar. ? A mão fechou-se em torno da de Robert. ? Agora
sei que não estou sozinha. E isso ajuda ainda mais.
Não estava sozinha.
Não era apenas a mão na dele, os corpos lado a lado no divã. Era
a sensação de que estavam a enfrentar, juntos, não só aquela
provação, mas toda uma vida. Não seria fácil.
Nem sempre seria divertido. Mas, até nas piores alturas, seria
melhor por tê-lo a seu lado.
295
Não estava sozinho. Essa certeza preencheu-o. Ao lado deles,
Oliver sorria. Minnie pousou a outra mão sobre a de Robert e, por
um segundo, entreolharam-se. Quando aquilo acabasse
? quando tivessem mandado aqueles homens dizer ao mundo que
o duque e a duquesa de Clermont eram uma força a ter em
conta ? ele mostrar-lhe-ia como ela não estava sozinha.
Decidiu que lhe deixaria ficar o colar. Tudo o resto...
? Vossa Alteza ? perguntou alguém, interrompendo-lhe o
devaneio ?, podemos falar sobre os panfletos? Qual era a sua
intenção ao escrevê-los?
? Ah, sim ? disse Robert. ? É muito simples. Sou um duque.
Como tal, considero-me responsável não só pelo meu bem-estar,
mas também pelo de todo o país. ? Sorriu, encontrou
o olhar do irmão e chegou-se à frente. ? Se silenciarmos quem
deseja falar, como poderei cumprir o meu dever? A detenção do
capitão Stevens foi apenas o início.
As mãos de Minnie apertaram as dele.
? Não sei o que virei a conseguir em vida ? concluiu ?, mas isto é
apenas o início.
EPÍLOGO
Quatro anos depois.
Para qualquer outra pessoa, talvez parecesse um dia banalíssimo,
mas Robert sabia que não era assim. A tensão no ar era palpável;
um cavalheiro junto dele cerrou o punho e
chegou-se à frente. Ao seu lado, Oliver e o pai observavam.
Lydia e o marido ocupavam, nervosos, cadeiras no lado oposto da
sala. Lydia pouco sabia acerca de xadrez, mas observava
o que se passava de mão na boca. Outros três presentes elevavam
a contagem da assistência para oito, sem contar com as duas
pessoas no meio da sala.
Oito, no entanto, já não chegavam para deixar Minnie nervosa.
Com efeito, ela parecia ter esquecido tudo. Estava sentada à
pequena mesa que fora colocada no centro da sala
e parecia ser a única presente que não sentia uma ponta de
nervosismo.

296
Tomara Londres de rompante ? o que significava que havia quem
se desviasse do caminho dela e ficasse atrás de portas fechadas.
No entanto, de um modo geral, as pessoas relevantes
não a haviam excluído. Era mais a curiosidade em relação à
duquesa de Clermont do que má vontade. Ela organizara salões ?
salões exclusivos, com participação limitada ? e
as pessoas haviam comparecido. Pessoas importantes.
Habituara-se, gradualmente, ao seu papel. Mas continuava a não
frequentar grandes festas; ainda tentava evitar quem a encarava
nas ruas. Mas em cenários como aquele... Em
cenários como aquele, todos podiam ver quem ela realmente era.
Envergava um belo vestido de seda azul, e não parecia de todo
deslocada. O homem à sua frente começara a transpirar.
Finalmente, ele pegou na peça. Segurou-a na mão e depois
pousou-a. Gustav Hernst, que acabara por ser o vencedor do
primeiro Torneio Internacional de Xadrez em Londres, havia
quinze anos, fez a sua jogada.
Minnie estudou tranquilamente o tabuleiro. Após um momento
de contemplação pegou numa peça e, à vista de todos, beijou-a.
Hernst abanou a cabeça e derrubou o rei. Deixou-se abater na
cadeira.
? Continua muito boa ? declarou. ? Demasiado boa. Teria
vencido, na última vez que jogámos. ? O sotaque alemão mal se
percebia. ? Mas não consegui resistir.
Minnie levantou-se e estendeu a mão.
? Foi um bom jogo ? disse ela.
? Foi um jogo excelente. Fico muito satisfeito por o seu marido
me ter convidado. Aquilo que aconteceu há tantos anos... não
devia ter ocorrido. O jogo não devia ter sido
interrompido, sobretudo consigo prestes a vencer. Foi algo que
sempre me ficou atravessado. Foi um prazer dar por encerrada a
questão.
Com isso, Minnie olhou para Robert. Mesmo depois de tantos
anos, o calor que ele sentia ao fitar-lhe os olhos continuava
presente. Intensificara-se ainda mais, com a familiaridade
a deixá-lo entendido no estado de espírito da esposa. Minnie
sorriu-lhe e estendeu a mão.
297
? Vamos ? disse. ? Temos refrescos no salão principal.
Mas quando saíram da pequena sala, deixaram que Oliver
servisse de guia. Minnie e Robert ficaram para trás, e depois de
todos desaparecerem ao fundo do corredor, abriram a
outra porta.
A duquesa viúva de Clermont recusara-se a assistir àquilo que
denominava de espetáculo, afirmando que era impróprio e tolo.
Robert, no entanto, imaginava que houvesse um motivo
ulterior da parte dela.
Com efeito, o pequeno Evan, com três anos acabados de fazer,
estava sentado no joelho dela, a olhar para o livro de leitura.
? Ganso! ? declarou ele alegremente.
? O que mais começa por G?
? Grandiosa, como a avozinha ? disse Evan.
A mulher fungou.
? Lisonjeador. Faça o favor de escolher outra palavra.
Evan franziu o cenho.
? Grisalho ? acabou por dizer. ? A avó sabia que tem cabelo
grisalho?
? Isso é uma calúnia do piorio ? disse calmamente a mulher. Mas
apertou o neto entre os braços e debruçou-se, inspirando-lhe o
cheiro.
? Mamã ? indicou Robert ?, os refrescos foram servidos no salão.
Ela ergueu o olhar.
? Oh ? disse ela, franzindo ao de leve a testa. ? Estou...
ocupada. ? Baixou outra vez a cabeça e esboçou um sorriso. ?
Estou muito ocupada.
NOTA DA AUTORA
Dou a todos os meus livros nomes de código, os quais, regra
geral, revelo na minha página de internet. Este chamava-se
"Campeã de Xadrez", e como o nome revelava demasiado,
não o quis revelar. Agora já sabem.
Todas as obras de ficção história alteram a história em algum
aspeto. Neste livro tive de adulterar a história em vários
momentos, e quis reconhecer à partida essas áreas.

298
Em primeiro lugar, obviamente, o primeiro torneio internacional
de xadrez ? que, realmente, teve lugar em Londres, em 1851 ? foi
vencido por Adolf Anderssen e não por Gustav
Hernst, não tendo ocorrido tumultos durante o torneio, nem a
participação de crianças de doze anos de qualquer género.
A descrição do que aconteceu a Minnie quando se descobriu que
ela era uma rapariga ? e o pai a traiu ? foi retirada de um recorte
de jornal que li há anos. Nele descrevia-se
um homem que veio a descobrir-se ser uma mulher. Formou-se
uma multidão e a mulher foi espancada. Na altura, os papéis de
género eram vigiados com muita atenção.
O maior afastamento, que viria a alterar o mundo que se seguiu,
prende-se com as descobertas científicas no centro das palestras
de Sebastian. Quis que Sebastian fosse um
cientista infame e seguidor de Darwin, mas também quis que ele
apresentasse descobertas próprias igualmente revolucionárias.
Quem está a par da história da ciência sabe que
no nosso mundo, a ciência da genética foi descoberta por Gregor
Mendel, num artigo apresentado em 1866, e que não teve
qualquer consequência. Ninguém estabeleceu a ligação
entre a descoberta de Mendel e a teoria da evolução, embora
aquilo que Mendel apresentou fosse, basicamente, uma teoria da
transferência de genes entre gerações. Só no início
do século xx é que o trabalho de Mendel foi recuperado e
valorizado.
Neste meu mundo, o trabalho de Mendel foi da autoria de
Sebastian. São descobertas que ele poderia ter feito na altura.
Mas a descoberta da genética por alguém com um relacionamento
direto com Charles Darwin alteraria radicalmente o ritmo do
desenvolvimento científico. Nesse sentido, o mundo que criei
teria, necessariamente, de divergir do mundo em que
vivemos após o tempo em que os livros se passam.
(Na verdade, o trabalho de Sebastian centrou-se na cor das bocas-
de-lobo, que, ao contrário das ervilhas de Mendel, não são
incompletamente dominantes entre si.)

299
Num quarto afastamento, a Leicester de 1863 não precisava de
um duque que escrevesse panfletos e radicalizasse a populaça. A
cidade já era bastante radical por si só. Por
exemplo, em 1863, os operários de Leicester tinham já
desenvolvido uma cooperativa alimentar. Hoje em dia, esse tipo
de cooperativa é bastante comum. Na altura foi um grande
salto em frente. Os operários eram pagos pelos donos das
fábricas, que também detinham a maior parte das lojas das
redondezas.
Uma cooperativa alimentar ? onde os operários juntavam o
dinheiro, usando-o para comprar frutas e legumes a preços
razoáveis ? foi um importante desenvolvimento nas cidades
fabris. Permitiam que os operários pagassem menos e obtivessem
mais, e a cooperativa alimentar de Leicester foi uma das
primeiras ? e das mais bem-sucedidas ? a ser criadas.
Stevens refere-se a ela como um empreendimento "radical",
sendo verdade que alguns proprietários concordariam com essa
descrição. Tudo que reduzisse a dependência dos operários
em relação aos senhores era tido como "radical".
Outra fonte de discórdia civil era a questão da vacinação. As
vacinas tornaram-se obrigatórias em Inglaterra em 1853, e foram
muitos os que abominaram tal decisão, dando azo
a bastante desobediência civil. Os motivos dados na altura eram
muito diferentes dos motivos para a recusa atual das vacinas -
para começar, a vacinação antes da compreensão
da teoria dos germes levou a uma série de complicações com que
não nos deparamos atualmente. Imagine-se as doenças
disseminadas nos nossos dias ao reutilizar-se agulhas -
e a inclusão dessa parte ínfima do debate histórico tem apenas
como objetivo representar o período e não tecer comentários
sobre a questão moderna.
Não tenho como saber se um duque, em 1863, poderia, ou não,
batalhar pela abolição do pariato. Seja como for, não sei se
Robert estaria satisfeito com o ritmo do desenvolvimento
em Inglaterra. Hoje em dia, os pares britânicos já não são
julgados pela Câmara dos Lordes; já não contam com poder de
veto sobre as leis promulgadas pela Câmara dos Comuns.
300
E só foram precisos meros dois séculos para se chegar a esse
ponto.
Oliver pede "óleo de parafina" quando está detido. Talvez tenha
ido longe de mais ao referir-me a essa substância como "óleo de
parafina". Nos EUA chamamos-lhe "querosene".
No RU é designada como "parafina". Este termo revelou-se
confuso para os leitores da primeira versão deste livro, que
associavam parafina à substância cerosa usada hoje em
dia para manicura. No início da década de 1860, a
parafina/querosene/óleo de parafina era nova o suficiente para
que o emprego de um termo ainda não tivesse sido fixado. "Óleo
de parafina" foi usado para descrever a substância. Neste caso
decidi tomar alguma liberdade e usar um nome que poderia ter
sido empregue na altura, algo que não confundisse
ninguém.
AGRADECIMENTOS
Nunca sei por onde começar nos agradecimentos, pois há sempre
muita gente a quem agradecer. Na melhor das hipóteses espero
lembrar-me das pessoas em grandes grupos, fazendo
figas para que não me esqueça de ninguém importante. Acabo
sempre por me esquecer de quase todos. Em primeiro lugar, a
minha família ? os meus pais, e as muitas irmãs e poucos
irmãos: sinto-me sempre grata por compreenderem coisas que
não fazem sentido a mais ninguém. Sr. Milan, por preferir
rabugice de um modo geral. E estou especialmente agradecida
a Pele e Silver, o que não faz qualquer sentido, pois eles passam
o dia apenas a exigir atenção e a brincar com ratos de um lado
para o outro.
Este livro não foi fácil de escrever nem de rever. Tessa, Carey e
Leigh, não sei o que faria sem vocês. Peeners ? igualmente.
Sherry e Tessa voltaram a ajudar-me a escrever
a sinopse do livro, pois, sejamos sinceras, sou péssima nisso.
Robin Harders obriga-me sempre a pensar naquilo que preferia
não pensar; Martha Trachtenberg identifica as várias
versões que uso para o nome da mesma personagem, algo em
que, sinceramente, também sou péssima. Nick Ambrose é rápido
e confiável, e sem Anne Victory, eu diria "Ups!" com
301
muito mais frequência.
Sobretudo, quero agradecer aos meus leitores. Todos os livros
difíceis chegam a um ponto em que só quero espernear e gritar.
Se não soubesse que estão à espera do novo livro,
talvez me refugiasse na cama, a tremer, em vez de respirar fundo
e voltar à escrita. Fazem com que tudo valha a pena, e só espero
ter sido capaz de retribuir o favor.
Sumário
Ficha Técnica
CAPÍTULO 1 - Leicester, novembro 1863
CAPÍTULO 2
CAPÍTULO 3
CAPÍTULO 4
CAPÍTULO 5
CAPÍTULO 6
CAPÍTULO 7
CAPÍTULO 8
CAPÍTULO 9
CAPÍTULO 10
CAPÍTULO 11
CAPÍTULO 12
CAPÍTULO 13
CAPÍTULO 14
CAPÍTULO 15
CAPÍTULO 16
CAPÍTULO 17
CAPÍTULO 18
CAPÍTULO 19
CAPÍTULO 20
CAPÍTULO 21
CAPÍTULO 22
CAPÍTULO 23
CAPÍTULO 24
CAPÍTULO 25
CAPÍTULO 26
CAPÍTULO 27
EPÍLOGO - Quatro anos depois.
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NOTA DA AUTORA
AGRADECIMENTOS

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