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A

GUERRA DA DUQUESA
A senhorita Minerva Lane era uma mulher retraída e calma que se
escondia atrás de seus óculos. Afinal, a última vez que tinha sido o centro das
atenções, tinha terminado muito mal. Tanto é assim que ela tinha mudado seu
nome para escapar de seu passado escandaloso. Sempre passava despercebida,
provavelmente nunca seria a rainha da festa, mas tampouco fazia inimigos.
Assim, quando um belo Duque veio para a cidade, a última coisa que ela
queria era que a notasse.
Mas isso foi exatamente o que aconteceu.
Porque Robert Blaisdell, o Duque de Clermont, não se deixou enganar por
sua timidez. Quando a mulher adivinhou a que ele se propunha, ele percebeu
que havia mais nela do que seus óculos e sua forma inibida. Ele decidiu
descobrir seus segredos antes que ela descobrisse o seu. Mas, no final, a mulher
retraída provou ser a fôrma de seu sapato e algo mais.
CAPÍTULO 1

Leicester, novembro de 1863


Robert BLAISDELL, NONO DUQUE DE CLERMONT, não se escondia.
Era certo que tinha subido à biblioteca da Casa do Conselho, que tinha se afastado bastante da
multidão embaixo, de modo que o ruído tinha se convertido em um retumbar distante. E era certo que não
havia mais ninguém por ali. E que estava de pé atrás de grossas cortinas de veludo azul cinzento que o
ocultavam da vista. Como também era certo que, para chegar ali, tinha tido que mover o velho sofá de
couro marrom.
Mas não tinha feito tudo isso para se esconder, mas sim porque, e isso era um ponto chave em sua
linha de pensamento lógico, naquela sala centenária de madeira e gesso apenas uma das folhas da janela
se abria e, casualmente, era a que ficava escondida atrás do sofá.
Ali estava, cigarro em mãos, com a fumaça elevando-se no frio ar outonal. Não se escondia, só
tentava preservar da fumaça os livros antigos.
Uma desculpa na qual possivelmente ele mesmo teria acreditado... Se fosse fumante.
Através do cristal velho podia distinguir a pedra escurecida da igreja situada justo em frente. A luz da
rua lançava sombras imóveis sobre o pavimento. Alguém tinha empilhado um montão de folhetos contra a
porta, mas a brisa outonal os tinha espalhado pela rua e os jogado nas poças d'água.
Aquilo era um desastre. Um condenado desastre. Robert sorriu e golpeou a ponta do cigarro contra a
janela, lançando cinzas nas pedras embaixo.
O fraco rangido de uma porta se abrindo o sobressaltou. Voltou-se ao ouvir o ruído das tábuas de
madeira do chão. Alguém tinha subido as escadas e tinha entrado na biblioteca. Os passos eram leves…
de mulher, possivelmente, ou de um menino. Também eram estranhamente hesitantes. A maioria das
pessoas que subia à biblioteca no meio de um sarau musical tinha um motivo para fazê-lo. Um encontro
clandestino, talvez, ou a busca por um parente perdido.
De seu lugar privilegiado atrás das cortinas, Robert podia ver apenas uma parte da sala. A pessoa em
questão se aproximou mais, com passos ainda hesitantes. Não podia vê-la, mas a ouvia deter-se
frequentemente para examinar o que a rodeava.
Não chamava a ninguém nem fazia uma busca decidida. Não parecia estar à procura um amante
oculto. Mas seus passos davam volta em torno da sala.
Robert demorou meio minuto em dar-se conta de que tinha esperado muito para anunciar sua
presença.
– Oh! – podia dizer. – Estava admirando o gesso. Está muito bem posto neste lado, não lhe parece?
A mulher, pois Robert estava seguro de que era uma mulher, o tomaria por louco. E até o momento,
ninguém tinha chegado ainda a essa conclusão. Assim, em vez de falar, jogou o cigarro pela janela e este
caiu com a ponta laranja brilhante para o chão até que aterrissou em uma poça e se apagou.
Quão único via do cômodo era meia estante de livros, a parte traseira do sofá e, ao lado, uma mesa
com um jogo de xadrez em cima. O jogo estava iniciado. Pelo pouco que recordava Robert das regras,
estavam ganhando as negras. A visitante se aproximou e Robert se encostou mais à janela.
Ela entrou em seu campo de visão.
Não era uma das jovens às quais tinha visto antes no salão. Essas eram todas belezas que esperavam
que prestasse atenção nelas. E a visitante, quem quer que fosse, não era uma beleza. Levava o cabelo
moreno recolhido em um coque sério na nuca. Seus lábios eram finos; e seu nariz, afilado e um pouco
grande. Usava um vestido azul escuro com cós de cor marfim, sem rendas nem laços, só de tecido
singelo. Até o corte do vestido parecia severo: uma cintura tão apertada que Robert não sabia como
podia respirar e umas mangas que caíam dos ombros até os pulsos sem nenhuma sobra de tecido de
enfeite que suavizasse a imagem.
Não viu Robert atrás da cortina. Tinha inclinado a cabeça de lado e contemplava o jogo de xadrez
com a mesma expressão com a qual um membro da Liga da Moderação olharia uma garrafa de brandy,
como se fosse um diabo ao qual teria que espantar com orações e hinos. Ou, em sua falta, com a lei
marcial.
A mulher adiantou um passo e depois outro. A seguir colocou a mão na bolsinha de seda que trazia
pendurada no punho e tirou uns óculos.
As lentes deveriam ter acentuado seu ar severo, mas produziram o efeito contrário, suavizaram seu
olhar.
Robert a tinha julgado mal. A mulher não apertava os olhos com desdém, entreabria-os para ver
melhor. Não era severidade o que via em seu olhar a não ser algo muito diferente, algo que não conseguia
identificar de tudo. Ela tomou um cavalo negro do tabuleiro e o virou na mão uma e outra vez. Robert não
via nada na peça que merecesse tanta atenção. Era de madeira sólida, sem nada especial. Entretanto, ela a
estudava com olhos grandes e luminosos.
Logo, inexplicavelmente, a levou aos lábios e a beijou.
Robert a olhou petrificado. Quase tinha a sensação de interromper um encontro amoroso entre uma
mulher e seu amante. Aquela mulher tinha segredos e não queria compartilhá-los.
A porta da sala voltou a ranger de novo.
A mulher abriu muito os olhos como se estivesse com medo. Olhou frenética a seu redor e se lançou
por cima do sofá; em sua pressa por esconder-se, aterrissou no chão a dois pés de distância de Robert.
Não o viu nem sequer então. Fez-se uma bola, envolvendo o vestido ao redor de seu corpo por trás da
barreira do sofá. Sua respiração era ofegante e superficial.
Menos mal que Robert tinha movido um pouco o sofá ou a mulher jamais teria conseguido esconder
atrás dele a ela e ao vestido!
Seguia apertando o cavalo na mão; empurrou-o com violência debaixo do sofá.
Nessa ocasião se ouviram passos pesados na estadia.
– Minnie? – chamou uma voz de homem. – Senhorita Pursling?
Está aqui?
Ela enrugou o nariz e se apertou contra a parede. Não respondeu.
– Uau! – disse outra voz que Robert não reconheceu. Uma voz jovem e meio pastosa pela bebida. –
Não invejo a essa mulher.
– Não fale mal de minha quase prometida – respondeu a primeira voz. – Você sabe que é perfeita para
mim.
– Essa ratinha tímida?
– Cuidará bem de casa. Se ocupará do meu conforto. Se encarregará dos meninos e não se queixará
das minhas amantes – se ouviu um ranger de dobradiças, o som inconfundível de alguém que abria uma
das portas de cristal que protegiam as estantes de livros.
– O que faz, Gardley? – perguntou o homem bêbado. – A procura entre os volumes em alemão? Não
acredito que caiba aí – terminou com uma gargalhada.
Gardley. Podia ser o ancião senhor Gardley, dono de uma destilaria, mas a voz soava jovem, assim
devia ser o senhor Gardley filho. Robert o tinha visto a distância: um indivíduo anódino de estatura
média, cabelo castanho e traços que lhe recordavam vagamente os de cinco pessoas mais.
– Ao contrário – dizia o Gardley jovem. – Acredito que caberia muito bem. No que se refere a
esposas, a senhorita Pursling será igual a esses livros. Quando queira lê-la, ela estará aí. Quando não,
esperará pacientemente, no mesmo lugar onde a deixei. Será uma esposa cômoda para mim, Ames. Além
disso, a minha mãe aprova.
Robert não acreditava conhecer Ames. Encolheu os ombros e olhou a que supunha devia ser a
senhorita Pursling para ver como reagia a essa revelação.
Ela não se mostrava nem surpreendida nem escandalizada pelos comentários pouco românticos de seu
quase prometido. Parecia mais era resignada.
– Terá que se deitar com ela, sabe? – perguntou Ame.
– Certo. Mas, graças a Deus, não muito frequentemente.
– É como um camundongo. E como todos os ratos, é claro que chiará quando nela se enterrar.
Houve um ruído surdo.
– O que? –protestou Ames.
– Está falando de minha futura esposa.
Robert pensou que possivelmente Gardley não fosse tão mau depois de tudo.
Até que o ouviu continuar:
– Eu sou o único que pode pensar em se enterrar nesse camundongo.
A senhorita Pursling apertou os lábios e ergueu a vista como se implorasse ao céu. Mas dentro da
biblioteca não havia céu ao que implorar. E quando ergueu a vista e olhou através da separação das
cortinas…
Seu olhar se encontrou com o de Robert. A mulher abriu muito os olhos. Não gritou nem lançou um
coice. Nem mesmo se moveu. Simplesmente lhe lançou um olhar terrivelmente acusador e lhe tremeram
as aletas do nariz.
Robert não pôde fazer outra coisa que saudá-la com um gesto de mão.
Ela tirou os óculos e se voltou com tanto desdém que ele teve que olhá-la para assegurar-se de que
estava sentada a seus pés. E de que, do ângulo onde estava em cima dela, podia ver o interior de seu
decote, justo a única parte da figura dela que não lhe parecia severa, mas suave.
“Guarde isso para depois”, disse-se, e ergueu o olhar umas polegadas. Como ela se virou, ele viu
pela primeira vez uma débil cicatriz em sua bochecha, uma espécie de teia de aranha branca com linhas
cruzadas.
– Seja qual lugar que seu camundongo foi, não está aqui – dizia Ame. – Provavelmente estará no
quarto das damas. Eu digo que voltemos para a diversão. Sempre pode dizer a sua mãe que falaste com
ela na biblioteca.
– Certo – repôs Gardley. – E não tenho que lhe dizer que ela não estava presente para responder. De
todo modo, tampouco diria alguma coisa se estivesse.
Seus passos se afastaram. A porta voltou a ranger e os homens saíram.
A senhorita Pursling não olhou para Robert nem se dignou a reconhecer sua existência de nenhum
outro modo. Ficou de joelhos, fechou o punho e golpeou com ele a parte de atrás do sofá, uma, duas
vezes, com tanta força que o golpe moveu o móvel para diante, e este pesava alguns quilos.
Robert lhe deteve a mão antes que golpeasse pela terceira vez.
– Vamos, vamos – murmurou. – Você não quer se machucar por ele. Não vale a pena.
Ela o olhou com um olhar irado. Como alguém podia chamar aquela mulher de tímida. Era puro
desafio. Soltou-lhe o braço antes que a fúria feminina pudesse percorrer a mão dele e consumi-lo. Já
tinha raiva suficiente com a sua própria.
– Eu não me importo – respondeu ela. – Ao que parece, não sou capaz de ajudar a mim mesma.
Robert quase deu um salto. Não sabia como tinha imaginado sua voz. Aguda e severa como sugeria
seu aspecto? Possivelmente tinha esperado um chiado, como se fosse o camundongo que haviam dito os
outros homens. Mas aquela voz era quente e profundamente sensual. Uma voz que fez que de repente
ficasse muito consciente de que ela estava de joelhos diante dele com a cabeça quase ao nível de sua
virilha.
“Guarde isso para depois também”.
– Sou um camundongo. Os ratos chiam quando os cravam – ela voltou a golpear o sofá. Se continuasse
assim, acabaria machucando-se nos nódulos. – Você também quer me cravar?
"Isso também ficaria para mais tarde."
– Não – graças a Deus, as divagações mentais não contavam; ou todos os homens arderiam no inferno
por toda a eternidade.
– Sempre se esconde atrás das cortinas para escutar conversas privadas?
Robert notou que lhe ardiam as pontas das orelhas.
– Você sempre salta detrás dos sofás quando ouve a chegada do seu prometido?
– Sim – disse ela, desafiante. – Não o ouviu? Sou como um livro que deixaram esquecido. Um dia um
de seus serventes me encontrará coberta de pó quando fizerem limpeza geral. “Ah”, dirá o mordomo. “Aí
foi onde acabou a senhorita Wilhelmina. Tinha-me esquecido dela”.
Wilhelmina Pursling? Que nome tão horroroso!
A jovem respirou fundo.
– Por favor, não conte isso a ninguém – fechou os olhos e apertou as pálpebras com os dedos. – Por
favor, parta, quem quer que seja.
Robert afastou a cortina e se colocou diante do sofá. Já não podia vê-la, somente imaginá-la
amontoada no chão, furiosa até estar á beira das lágrimas.
– Minnie – disse. Não era amável chamá-la por um nome tão íntimo, mas ele queria ouvi-lo em sua
voz.
Ela não respondeu.
– Dar-lhe-ei vinte minutos – disse ele. – Se então não a vir lá embaixo, subirei para procurá-la.
A mulher demorou um momento em responder.
– O bom do matrimônio é que me dá direito à monogamia – disse por fim. – É suficiente que só um
homem tente ditar meu paradeiro, não lhe parece?
Robert olhou o sofá, confuso, até que se deu conta de que ela tinha interpretado que ele a tinha
ameaçado buscá-la a força.
Ele se saía bem em muitas coisas, mas a comunicação com as mulheres não era uma delas.
– Não queria dizer isso – murmurou. – É apenas que… – se aproximou do sofá e se agachou por cima
da borda de pele. – Se uma mulher a que apreciasse se escondesse atrás do sofá, iria querer que alguém
se incomodasse em ver se, se encontra bem.
Essa vez a pausa foi mais longa. Logo ouviu rumor de tecido e ela o olhou. Seu cabelo tinha
começado a fugir do coque severo e pendurava em torno de seu rosto, suavizando seus traços e realçando
a brancura pálida de sua cicatriz. Não era bonita, mas sim… interessante. E não lhe importaria ouvir sua
voz toda a noite.
Ela o olhava perplexa.
– Oh! –exclamou. – Tenta ser amável – falava como se nunca lhe tivesse passado pela cabeça essa
possibilidade. Suspirou e moveu a cabeça. – Mas sua amabilidade está mal dirigida. Verá, isso –
assinalou a porta por onde seu quase prometido tinha desaparecido– é o melhor a que posso aspirar.
Levo anos desejando algo assim. Assim que essa ideia deixe de me ser indigesta, casarei-me com ele.
Não havia nem rastro de sarcasmo em sua voz. Ficou em pé. Arrumou o coque com um gesto eficiente
e alisou as saias até que recuperou seu ar de correção.
Somente então se agachou e buscou debaixo do sofá até encontrar o cavalo. Examinou o tabuleiro,
inclinou a cabeça de lado e devolveu a peça a seu lugar com muito cuidado.
Quando saiu pela porta, Robert seguia observando-a em silêncio, tentando encontrar sentido em suas
palavras.


Minnie DESCEU A ESCADA QUE LEVAVA a biblioteca até o pátio em penumbra situado ao lado do
Grande Salão. O pulso disparado com força ainda. Tinha temido por um momento que aquele homem
começasse a interrogá-la. Mas não, tinha escapado sem que lhe fizesse perguntas. Tudo voltava a ser
como sempre: tranquilo e incrivelmente aborrecido. Justo o que necessitava. Nisso não havia nada a
temer.
Lembrou-se do concerto que, sofrivelmente executado pela parca habilidade do quarteto de corda da
região, mal se ouvia no jardim. A escuridão pintava de cinza o pátio aberto. Embora tampouco haveria
muitas cores com a luz do dia; somente a pedra azul cinzenta que formava o pátio e o gesso envelhecido
das paredes de vigas de madeira. Umas quantas ervas tinham brotado insistentes entre as gretas das
pedras que pavimentavam o chão, mas tinham murchado até adquirir um tom sépia. Quase não mostravam
cor no azul marinho profundo da noite. Ao lado da porta do salão havia umas figuras na penumbra com
copos na mão. Ali fora tudo estava apagado: as cores, o som e o torvelinho de emoções de Minnie.
A apresentação musical tinha atraído um número surpreendente de pessoas. Tantas que a sala
principal estava a transbordar, com todos os assentos ocupados e algumas pessoas de pé. Era estranho
que os fracos acordes de um Beethoven mal interpretado cativassem a tanta gente, mas as pessoas tinham
ido em massa. Uma olhada ao salão cheio e Minnie tinha retrocedido com o estômago tenso por um sem-
fim de nós. Não podia entrar ali.
Possivelmente pudesse fingir-se doente. De fato, nem teria que fingir muito.
Mas…
Abriu-se uma porta detrás dela.
– Senhorita Pursling. Está aqui.
Minnie se sobressaltou e se voltou no ato.
O Conselho de Leicester era um edifício antigo, uma das poucas estruturas de madeira da época
medieval que não tinha padecido em algum incêndio. Ao longo dos séculos tinha servido para diferentes
usos. Era lugar de encontro para eventos como aquele, sala de reuniões para o prefeito e seus vereadores,
ou armazém para os objetos cerimoniosos da cidade. Inclusive tinham convertido uma de suas alas em
celas para presos. Um lado do pátio era de tijolo em vez de gesso e ali tinha sua sede o chefe de polícia.
Essa noite, entretanto, estavam usando o Grande Salão, e por isso Minnie não esperava encontrar
ninguém do escritório do prefeito.
Uma figura corada se aproximou dela com passos rápidos e seguros.
– Lydia leva meia hora procurando-a. E eu também.
Minnie respirou aliviada. George Stevens era um sujeito decente. Melhor que os dois caipiras dos
quais tinha escapado. Era o capitão da tropa da cidade e o prometido de sua melhor amiga.
– Capitão Stevens. Há tanta gente aí dentro! Tive que sair para tomar ar.
– De verdade? – ele se aproximou mais. Ao princípio era só uma sombra. Logo se aproximou o
suficiente para que ela o visse sem óculos e distinguisse seus traços familiares; seu bigode jovial e suas
gordas costeletas.
– Não gosta das multidões, verdade? – perguntou ele com voz solícita.
– Não.
– Por que não?
– Simplesmente, nunca gostei.
Mas não era verdade. Minnie tinha uma vaga lembrança de homens rodeando-a, chamando-a em voz
alta para falar com ela. Naquele tempo não havia possibilidade de paquerar. Ela tinha oito anos e se
vestia como um menino, mas tinha havido um tempo no qual a energia vibrante das multidões a tinha
estimulado em vez de lhe produzir nós no estômago.
O capitão Stevens se situou a seu lado.
– Tampouco gosto das framboesas – confessou Minnie. – Me fazem cócegas na garganta.
Ele a olhou com o cenho franzido. Esfregou os olhos como se não estivesse seguro do que via.
– Vamos – Minnie sorriu. – Faz anos que me conhece e nunca gostei das reuniões com muita gente.
– Não – respondeu ele, pensativo. – Mas verá, senhorita Pursling. Dá a casualidade de que a semana
passada fui a Manchester a negócios.
“Não mostre nenhuma reação”. Isso era algo que Minnie tinha muito inculcado. Seguiu sorrindo e
alisando as saias sem permitir que a paralisasse o medo. Mas ouvia um grande rugido em seus ouvidos e
o coração lhe pulsava com força.
– Oh! – sua voz lhe pareceu muito corajosa, e muito crispada. – Meu antigo lar. Faz tanto tempo!
Como a encontrou?
– Estranha – ele deu um passo mais para ela. – Visitei o antigo bairro de sua tia avó Caroline. Minha
intenção era simplesmente conversar cortesmente, dar suas notícias às pessoas que pudessem recordá-la
de menina. Mas ninguém recordava que a irmã de Caroline se casou. Procurei e não encontrei seu
nascimento no registro da paróquia.
– Que estranho! – Minnie olhou os paralelepípedos do chão. – Não sei onde registraram meu
nascimento. Terá que falar com a tia avó Caroline.
– Ninguém ouviu falar de você. Viveu no mesmo bairro onde ela se criou, não é assim?
O vento açoitava o pátio com um assobio lastimoso de dois tons. O coração de Minnie pulsava com
um ritmo similar. “Agora não. Agora não. Por favor, não te derrube agora”.
– Nunca gostei das multidões – se ouviu dizer. – Nem sequer então. Não era muito conhecida quando
menina.
– Humm.
– Era tão jovem quando parti que temo que não posso lhe ajudar.
Pouco recordo de Manchester. A tia avó Caroline, por outra parte…
– Mas não é sua tia avó quem me preocupa – interveio ele, devagar. – Sabe que manter a paz é parte
de meus deveres.
Stevens sempre tinha sido um homem sério. Embora no ano anterior só tinham tido que recorrer à
tropa uma vez, e tinha sido para que ajudassem a combater um fogo, tomava seu trabalho muito a sério.
A confusão de Minnie já não era fingida.
– Não compreendo. O que tem a ver tudo isto com a paz?
– Estes tempos são perigosos – repôs ele. – Eu formei parte da tropa que reprimiu as manifestações
dos cartistas em 42 e não esqueci como começaram.
– Isto não tem nada a ver com…
– Lembro-me dos dias antes que explodisse a violência – prosseguiu ele com frieza. – Sei como
começa. Começa com alguém que diz aos operários que deveriam ter voz própria em vez de fazer o que
lhes mandam. Reuniões. Bate-papos. Panfletos. Ouvi o que disse como membro da Comissão de Higiene
dos Operários, senhorita Pursling. E eu não gosto. Eu não gosto nada.
Sua voz se tornou muito fria e Minnie sentiu um calafrio nos braços.
– Mas eu apenas disse que era…
– Sei o que disse. Naquele momento o atribuí a simples ingenuidade. Mas agora sei a verdade. Você
não é quem diz ser. Mente.
O coração de Minnie começou a pulsar com mais força. Olhou a sua esquerda, ao pequeno grupo
situado a dez pés dela. Uma das garotas bebia ponche e ria. Se gritasse, certamente…
Mas gritar não serviria de nada. Por impossível que parecesse, alguém tinha descoberto a verdade.
– Não posso estar seguro – disse o homem. – Mas sinto nos ossos que ocorre algo. Você é parte disto
– lhe passou um papel; empurrou-o até quase golpeá-la com ele no rosto.
Minnie pegou automaticamente e o ergueu à luz que saía das janelas. Por um segundo não soube o que
tinha na mão. Um artigo de jornal? Tinha havido muitos. Mas o papel não tinha a textura do jornal. Sua
certidão de nascimento? Aquilo podia ser grave. Tirou os óculos do bolso.
Quando por fim pôde lê-lo, quase soltou uma gargalhada de alívio. Com todas as acusações que ele
podia lhe haver feito; com todas as mentiras que tinha contado ela, começando com a de seu nome, e
Stevens pensava que estava mesclada naquilo? O capitão lhe tinha dado um santinho como os que
apareciam nas paredes das fábricas e deixavam em montões desordenados nas portas das Igrejas.
OPERÁRIOS, dizia a primeira linha em grandes letras maiúscula. E debaixo: se organizem, SE
organizem, SE organizem!!!!
– Oh, não! – protestou ela. – É a primeira vez que vejo isto. E não é meu – para começar, porque ela
considerava uma abominação qualquer frase que usasse mais exclamações que palavras.
– Estão por toda a cidade – grunhiu ele. – Alguém é responsável por eles – ergueu um dedo. – Você se
ofereceu para fazer os panfletos da Comissão de Higiene dos Operários. Assim tinha uma desculpa para
visitar todas as imprensas da cidade.
– Mas…
Ele ergueu um segundo dedo.
– E foi você a que sugeriu que os operários participassem da Comissão.
– Eu apenas disse que devíamos perguntar aos operários se tinham acesso a água corrente. Se não o
fazíamos, faríamos todo o trabalho e depois descobriríamos que sua saúde não tinha mudado em nada. Há
um longo caminho entre isso e sugerir que se organizem.
Ele levantou o terceiro dedo.
– Suas tias avós participam dessa horrível cooperativa de mantimentos e eu sei que você contribuiu
para organizá-la.
– Uma transação de negócios. O que importa onde guardamos nossas couves?
Stevens a apontou com os três dedos.
– Tudo encaixa. Você simpatiza com os operários e não é quem diz ser. Alguém os ajuda a imprimir
os santinhos. Deve acreditar que sou muito idiota para assinar desse jeito – assinalou o pé do santinho,
onde havia um nome.
Minnie o olhou através das lentes.
Não era um nome, era um pseudônimo.
– De minimis – leu. Não tinha estudado latim, mas sabia um pouco de italiano e bastante de francês e
pensou que significava algo como “pequeno”. Algo minúsculo.
– Não compreendo – moveu a cabeça. – O que tem a ver isso comigo?
– De. Minnie. – ele pronunciou as sílabas por separado, dando um tom estranho a seu nome. –
Acredito que me toma por tolo, senhorita Minnie.
Aquilo tinha uma espécie de lógica, tão retorcida que ela teria rido com vontade… a não ser porque
as consequências da piada não tinham nada de divertidas.
– Não tenho provas – disse ele. – E como sua amizade com minha futura esposa é pública e notória,
não desejo vê-la humilhada publicamente e acusada de rebelião criminal.
– Rebelião criminal! – exclamou ela com incredulidade.
– Assim, considere-o uma advertência. Se seguir adiante com isto… – lhe golpeou as mãos com o
papel, – descobrirei a verdade de suas origens. Demonstrarei que está por trás disto. E a afundarei.
– Eu não tenho nada a ver com isto! – protestou ela. Foi inútil. Ele já se afastava.
Minnie apertou o santinho na mão. Que assunto tão inoportuno! Stevens partia de uma premissa falsa,
mas pouco importava como encontrasse o rastro. Se o seguia, descobriria tudo. O passado de Minnie, seu
verdadeiro nome.
E, sobretudo, seus pecados, há muito tempo enterrados, mas não mortos.
De minimis.
A diferença entre a desonra e a segurança era minúscula. Um ponto muito pequeno. Mas ela não
pensava perdê-lo.
CAPÍTULO 2

– Minnie!
Essa vez, quando ouviu que a chamavam através do pátio, não se sobressaltou. Seu coração não se
acelerou. Em realidade, descobriu que estava cada vez mais tranquila e um sorriso sincero se estendeu
por seu rosto. Voltou-se estendendo as mãos.
– Lydia – disse calorosamente. – Me alegro muito em ver-te.
– Onde estiveste? – perguntou sua amiga. – Te procurei por toda parte.
Minnie podia mentir a todos os outros, mas não a ela.
– Escondida – disse. – Atrás do sofá da biblioteca.
Qualquer outra pessoa talvez tivesse estranhado isso, mas Lydia a conhecia muito bem. Fez uma
careta e moveu a cabeça.
– Isso é tão… tão…
– Ridículo? – perguntou Minnie.
– Tão pouco surpreendente – respondeu sua amiga. – Mas me alegro de te haver encontrado. É a hora.
– A hora? A hora do que? – esse dia não tocavam nada além de Beethoven.
Sua amiga não respondeu. Puxou-a pelo cotovelo e caminhou com ela até a porta do escritório do
prefeito.
Minnie se deteve em seco.
– Lydia, o digo a sério. A hora do que?
– Sabia que não suportaria a apresentação no Grande Salão com toda essa gente – Lydia sorriu. – Por
isso pedi a papai que vigiasse o escritório. É hora de ser apresentada.
– Apresentada? – o pátio estava quase vazio atrás delas. – A quem tenho que ser apresentada?
Sua amiga a apontou com um dedo.
– Tem que estar a par dos rumores. Como é possível que não saiba? Só tem vinte e oito anos, sabe? E
já tem fama de estadista. Lhe atribuem a criação do Compromisso de Importação de 1860.
Lydia falava como se soubesse o que era isso… como se todo mundo conhecesse o Compromisso de
Importação de 1860. Minnie não tinha ouvido falar dele e estava quase segura de que sua amiga
tampouco.
Lydia suspirou fundo.
– E está aqui.
– Sim, mas quem é? – Minnie olhou a sua amiga. – E a que vem esse suspiro? Está prometida.
– Sim – respondeu Lydia. – E sou muito, muito feliz com meu compromisso.
Muitos “muito” para resultar acreditáveis, mas Minnie não havia contradito nunca esse ponto e não
tinha sentido começar nesse momento.
– Mas você não está prometida – Lydia fez um gesto com a mão. – Ainda não. E, além disso, o que
tem a ver a realidade com a imaginação? Não posso sonhar por uma vez contigo embelezada com um
formoso vestido de seda vermelha e te aproximando de uma multidão admirada de braço dado com um
homem?
Minnie sim podia imaginá-lo, mas as multidões de sua imaginação não estavam admiradas. Gritavam.
Jogavam objetos. Insultavam-na e ela voltava a reviver o pesadelo.
– Não digo que deva começar a se preparar para o pedido de casamento agora mesmo. Somente que
sonhe um pouco – Lydia abriu a porta.
Na sala havia só um punhado de pessoas. O senhor Charingford as esperava perto da porta. Saudou
sua filha com uma inclinação de cabeça. A estadia era pequena, mas as paredes estavam forradas de
madeira, os cristais pintados, e a chaminé adornada com uma escultura. O brasão de Leicester ocupava
um lugar de honra na parede mais afastada, e a pesada poltrona do prefeito estava na parte frontal do
lugar.
Ali se tinham congregado as poucas pessoas presentes: o prefeito, sua esposa, Stevens, um homem ao
qual Minnie não reconhecia e… A jovem conteve o fôlego.
Era ele. O homem loiro de olhos azuis que tinha falado com ela na biblioteca. Tinha-lhe parecido
muito jovem para ser alguém importante. Melhor dizendo, tinha-lhe parecido muito amável para isso. E
ver o prefeito mostrando-se obsequioso com ele…
– Vê? – disse Lydia em voz baixa. – Acredito que até você poderia sonhar com ele.
Bonito, amável e importante. A imaginação de Minnie reagiu de um modo quase visceral e a levou
por caminhos pavimentados de fantasia à luz da lua.
– Às vezes – comentou, – acredito no impossível…
Ela era muito jovem quando seu pai era bastante bem visto para ser convidado a todas as partes.
Viena. Paris. Roma. Ele tinha tido pouco mérito nisso além de seu sobrenome, uma conversa fácil e um
talento quase sem igual para o xadrez. Tinha sonhado com o impossível e sua loucura tinha contagiado a
Minnie.
“Quão único tem que fazer é acreditar”, havia-lhe dito desde que ela tinha cinco anos. “Não
necessitamos fortuna. Não necessitamos riquezas. Os Lane só têm que acreditar com mais intensidade que
os outros e nos acontecem coisas boas”.
E ela tinha acreditado. Tinha acreditado tanto nele, que uma fé vazia era o único que lhe tinha ficado
quando todas as maquinações dele tinham ficado destruídas.
– Creia no impossível – disse Lydia, devolvendo-a ao presente, – pode ser que se cumpra.
– Se crê no impossível – respondeu Minnie com aspereza, – deixará ir o que tem.
Não havia caminhos iluminados pela lua que levassem até aquele homem. Apenas era um cavalheiro
que lhe tinha falado com amabilidade. Nada mais. Nem sonhos nem fantasias.
– E você tem muito que perder – disse Lydia com voz zombadora.
– Tenho muitíssimo que perder. As pessoas não me assinalam com o dedo e começam a murmurar
quando passo pela rua. Não me seguem multidões raivosas procurando vingança. Não me atiram pedras.
E homens desconhecidos seguiam sendo amáveis com ela. Ele era injustamente atrativo. E sem dúvida
isso explicava o brilho nos olhos de Lydia. Pelo que havia dito sua amiga, ele participava da política.
Um membro do Parlamento possivelmente? Parecia muito jovem para isso.
– Que séria! – Lydia fez uma careta. – Sim, tem razão. Poderiam te cuspir pela rua e te insultar como
a um monstro. E também os Dragões poderiam te comer. Seja razoável. Nada disso é nem remotamente
possível. Se você não pode sonhar, farei-o eu por ti. Vou passar um minuto imaginando que ele se vire e
te olhe.
Não houve necessidade de imaginar. Ele, quem quer que fosse, voltou-se então. Olhou para Lydia, que
mal pode conter seu entusiasmo, lhe fez uma reverência profunda. Logo seus olhos se pousaram em
Minnie.
“Está aí”, parecia lhe dizer com o olhar. Ou algo pelo estilo. Porque uma faísca de reconhecimento
percorreu as veias dela. Não foi algo tão simples como ver sua cara e que lhe resultasse familiar. Foi a
sensação de que se conheciam, e de um modo mais profundo que os poucos momentos passados juntos
atrás de um sofá.
Os olhos dele viraram à direita e pousaram no pai de Lydia, que estava ao lado delas. Separou-se da
gente que o rodeava e se adiantou uns passos.
– Senhor Charingford, verdade? – perguntou.
Ao aproximar-se, olhou de novo para Minnie nos olhos e lhe dedicou um sorriso que parecia surgir
de alguma recordação por um longo tempo escondida.
Se o nervosismo do senhor Charingford não lhe tivesse dado já uma pista, aquele sorriso teria
convencido a Minnie de que aquele homem era importante. Demorou um momento em se localizar a
curiosa expressão de sua cara, aquele sorriso acompanhado de uns olhos que se enrugavam com um jeito
parecido à inquietação.
Tinha visto essa expressão oito anos atrás na cara de Willy Jenkins. Este era então maior que todos os
outros meninos de sua idade, até um ponto alarmante. Aos quinze anos media um metro e oitenta e pesava
cento e oitenta libras. E tinha uma força de acordo com seu tamanho. Minnie o tinha visto levantar seus
dois irmãos mais jovens, um em cada braço.
Willy Jenkins era grande e forte e os outros meninos teriam tido medo dele a não ser por seu sorriso.
O senhor Charingford se inclinou obsequioso, tanto que quase se dobrou em dois. Mal se entendiam
suas palavras.
– Posso lhe apresentar…?
Nem sequer dava é obvio que aquele homem permitiria a apresentação. Parecia pensar que não seria
de má educação que dissesse que não.
– É obvio – disse o homem importante. Seus olhos pousaram nos de Minnie e ela afastou rapidamente
à vista. – Meu círculo de conhecidos nunca é tão amplo que não possa incluir a mais senhoritas – voltou a
sorrir daquele modo com o que parecia justificar-se, o mesmo sorriso que usava Willy quando ganhava
uma queda de braço… e ele sempre ganhava. Era um sorriso que dizia: “Sinto ser maior que você e mais
forte que você. Sempre vou ganhar, mas tentarei não te machucar no processo”. Era o sorriso de um
homem que sabia que possuía uma força considerável e lhe resultava embaraçoso.
– Muito considerado – disse o senhor Charingford. Esta é minha filha, a senhorita Lydia Charingford;
e sua amiga, a senhorita Wilhelmina Pursling.
O homem loiro se inclinou levemente sobre a mão de Lydia, e a seguir tomou os dedos de Minnie.
– Senhoritas – seguiu o senhor Charingford –, este é Robert Alan Graydon Blaisdell.
Os olhos azuis do homem, tão claros que faziam pensar em um lago no inverno, encontraram-se com
os de Minnie. Seu sorriso era mais desassossegado que nunca. Seus dedos roçaram os dela e Minnie
encontrou sua mão muito quente inclusive através das luvas de ambos. Contra seu sentido comum, sentiu
que respondia a ele. Sorriu. Em sua imaginação, por um momento, sim houve caminhos iluminados pela
lua. E essa luz prateada pintou de magia todas as facetas sombrias de sua vida.
A seu lado, o senhor Charingford tragou saliva audivelmente.
– É obvio, ele é Sua Excelência o duque de Clermont.
Minnie quase retirou os dedos. Um duque? Um condenado duque a tinha encontrado atrás do sofá?
Não. Não. Impossível.
Charingford indicou ao outro homem que havia ao lado do duque.
– E seu, ah, seu administrador… – Meu amigo – o interrompeu o duque.
– Sim – Charingford tragou saliva. – É obvio. Seu amigo, o senhor Oliver Marshall.
– Senhorita Charingford, senhorita Pursling – o duque fez um gesto com a cabeça a Lydia por cima do
ombro de Minnie. – Todo o prazer da apresentação é meu.
Minnie inclinou um pouco a cabeça.
– Excelência – murmurou.
Essa noite, tudo conspirava para destruí-la. O prometido de sua melhor amiga acreditava que se
dedicava à rebelião e o condenado duque de
Clermont podia destruí-la com uma só palavra. Isso era no que dava se dedicar a imaginar coisas. Que
visse caminhos iluminados pela lua. Que albergasse pensamentos românticos embora apenas por um
momento. Os sonhos fracassavam e, quando voavam, deixavam a realidade ainda mais fria.
Sua Excelência o duque a olhou nos olhos justo antes que Minnie se retirasse. De novo lhe dedicou
aquele sorriso como envergonhado. Essa vez ela soube por que.
Ela não era nada. Ele tinha tudo. E pelo que pudesse servir, ele envergonhava-se de sua própria força.


A CARRUAGEM QUE A LEVAVA DE RETORNO à granja de suas tias avós se balançava para frente
e para trás, não com suavidade, mas com movimentos bruscos. Minnie supunha que as molas teriam sido
novas em outro tempo e não teriam amplificado tanto cada buraco do caminho. Mas o dinheiro
escasseava e as reparações eram um luxo que suas tias não se podiam permitir.
Sua tia avó Caroline ia sentada em frente a ela, com a bengala apoiada no joelho. A seu lado se
sentava Elizabeth, menos encurvada, mas muito mais grisalha. Se as tivessem escolhido ao azar entre uma
multidão, não teriam podido ser mais diferentes. Caroline era alta e gordinha, e Eliza era baixa e
angulosa. Caroline era morena com o cabelo liso, com apenas algumas mechas grisalhas, e o cabelo de
Eliza, antes loiro, tornou-se branco e crespo.
Na sua idade, numa noite fria de novembro, deveriam haver ficado em casa ao lado do fogo em vez
de ter que andar vadiando para assistir a musicais. Mas a tinham acompanhado e agora ambas tinham a
mesma expressão descontente.
Na escuridão da carruagem, que as escondia da vista do homem que conduzia a carruagem, tinham
suas mãos unidas em busca de calor.
E, como sempre, Minnie estava a ponto de estragar tudo ainda mais.
– Tia Caroline. Tia avó Eliza – sua voz soava tranquila na noite aveludada, quase silenciada pelo
estalo continuo das rodas. – Há algo que tenho que lhes dizer. Trata-se do capitão Stevens.
As duas mulheres trocaram um longo olhar.
– Sabemos – disse sua tia avó Caroline. – Não sabíamos como lhe dizer isso.
– Está investigando meu passado.
As duas mulheres trocaram outro olhar. Caroline foi primeira a falar.
– É um contratempo, certamente, mas atravessamos tormentas piores.
Minnie moveu a cabeça.
– Sabe. Ou saberá logo. Não sei o que fazer.
Eliza estendeu o braço e lhe deu uns tapinhas no joelho.
– Está cedendo ao pânico – murmurou. – Nunca faça isso. Isso indica que há algo estranho. Você
mesma recorda que a verdade é muito estranha para que pensem nela. Ninguém o adivinhará nunca.
Minnie respirou fundo algumas vezes.
– Mas…
– Para descobrir a verdade, teriam que fazer as perguntas pertinentes – disse Eliza. – E me acredite,
querida. Ninguém jamais perguntará se seu pai te fez passar por um moço os primeiros doze anos de sua
vida.
– Mas só tem que suspeitar…
– Basta, Minnie. Respire. Te alterando não vais obter nada.
Para ela era fácil dizê-lo. Minnie, com os olhos fechados, podia ver a multidão fechando-se a seu
redor e ouvindo os gritos duros e dissonantes que brotavam de seus rostos desfigurados pela raiva.
– Não é nada – disse Eliza. Moveu-se na carruagem para sentar-se ao lado de Minnie e lhe pôs uma
mão no ombro. – Não é nada. Não é nada – Enquanto falava, alisava o cabelo de Minnie. Cada sussurro
lhe produzia uma calma maior, até que Minnie conseguiu controlar o pânico. Encerrou aquela lembrança
no passado a qual pertencia e o manteve ali até que deixou de lhe dançar à vista e sua respiração
recuperou uma cadência regular.
– Assim está melhor – murmurou Eliza. – Nos ocuparemos disto. Stevens também falou comigo.
Acredita que nós estamos mentindo. De fato, insinuou que podia não ser quem afirma ser, que te aproveita
de nossa bondade.
– Oh, Senhor! – Minnie enterrou a cabeça nas mãos.
– Não, não – disse Caroline. – Esta história é mais fácil de combater, porque é claramente falsa. Nem
sequer temos necessidade de mentir. Disse-lhe que eu estava presente no dia que nasceu, que prometi a
sua mãe em seu leito de morte que cuidaria de ti e que eu não gostava que colocasse o nariz onde não lhe
importava. Quando lhe disse que era impossível que fosse um passarinho que tinham jogado- em nosso
ninho sem que nos déssemos conta, acreditou-me – assentiu com força com a cabeça. – Sabe que é minha
sobrinha neta e que não há nenhuma dúvida nisso. Suspeita que há algo estranho, mas eu lhe fiz duvidar.
Não fará nada.
– Mas não o sou – Minnie respirou com força. – Não sou sua sobrinha neta. Sou…
Caroline tomou sua bengala e roçou com ela a perna de Minnie.
– Não fale assim. Já sabe o que acontece.
Minnie sabia. Desde que podia recordar, tinha chamado as duas de tia, embora só Eliza fosse sua
parente de sangue. As duas mulheres tinham ido juntas a uma escola para senhoritas quase cinquenta anos
atrás. Tinham sido apresentadas na sociedade em Londres ao mesmo tempo. E quando não tinham
conseguido encontrar homens que as amassem depois de algumas temporadas na boa sociedade, tinham
recusado casar-se por conveniência. Em vez disso, retiraram-se juntas à pequena granja que possuía
Caroline nos subúrbios de Leicester e tinham permanecido amigas e solteiras o resto de suas vidas.
Estavam tão unidas como se fossem irmãs. Minnie suspeitava de mais.
– Não tema – interveio Eliza. – Prometi a sua mãe. Prometemos as duas – lhe tremeu a voz. – Já lhe
falhei uma vez, e nunca me perdoei por isso. Nunca mais.
Minnie ergueu a mão e tocou a cicatriz da bochecha. Desde menina se considerou invulnerável.
Outras pessoas podiam vacilar e fracassar, mas ela não. A ousadia do que tinha conseguido sozinha tinha
comparação com o muito que tinha perdido depois. Ainda se recordava deitada na escuridão, sem saber
se voltaria a ver por um dos olhos. Suas tias avós tinham ido então por ela.
– Se vier conosco – lhe havia dito Caroline, – terá uma oportunidade.
Não lhe tinham oferecido a vida brilhante e sofisticada com a qual sonhavam muitas jovens. Se fosse
com suas tias podia esperar uma vida frugal. Um nome falso. Teria uns poucos anos de infância, seguidos
por um tempo breve para conhecer homens. Poderia casar-se e ter filhos. Não conheceria a fama nem a
adulação. O único privilégio que elas podiam lhe oferecer era um futuro sem multidões furiosas.
Suas tias tinham sacrificado muito para lhe dar essa oportunidade. Tinham economizado para que
pudesse ter um guarda-roupa respeitável quando foi o bastante crescida para conhecer homens. Nunca se
queixavam, mas Minnie sabia que tomavam o chá sem açúcar. Sabia por que tinham deixado caducar, a
contra gosto, sua assinatura da biblioteca. Tinham sacrificado todas as comodidades de sua velhice por
ela.
E ela não queria nem sequer metade do que lhe tinham dado tão generosamente.
– Possivelmente se disséssemos a verdade ao capitão Stevens… – sugeriu.
Suas tias a olharam consternadas.
– Minnie – disse Eliza. – Querida. Depois de tanto tempo! Sabe que nunca deve fazer isso.
Caroline interveio.
– Essas regras que criamos para ti não são para te incomodar nem são castigos. As fixamos porque
lhe amamos. Porque queremos que tenha um futuro. Walter Gardley não está te cortejando? Porque se
pudesse apanhá-lo e te casar rapidamente com ele, seria uma boa ideia.
– Sim – assentiu Caroline. – Seria muito boa ideia. As suspeitas de Stevens perderiam força assim
que estivesse casada com o filho de um destilador. Então seu meio de vida estaria em perigo se, se
organizassem os operários. O matrimônio não só asseguraria seu futuro, mas também sua credibilidade.
Minnie já tinha pensado em tudo aquilo.
Sabia que seria uma grande sorte assegurar-se isso. Para uma garota sem dote e não muito agraciada,
qualquer homem era um bom partido. Embora ele a quisesse porque pensava que ela suportaria suas
grosserias em silêncio. E, entretanto, essa possibilidade não a entusiasmava nem um pouco.
– O ouvi falar sobre mim– comentou. – Disse que sou um camundongo e que não direi nada se tiver
amantes.
Caro e Eliza se olharam.
– Não tem por que te casar com ele – declarou Eliza. – Se isso te fizer infeliz, é obvio que não. Mas
antes de recusar, por favor, considera quais seriam suas outras alternativas. Sempre pode esperar algo
mais.
Disse-o com dúvida, com uma expressão que indicava que, à medida que Minnie ficasse mais velha,
seria improvável que recebesse outra proposta mais satisfatória.
– Se houver alguma possibilidade de que Stevens adivinhe a verdade… – prosseguiu.
Não precisava que terminasse a frase. Se soubesse a verdade, não haveria nenhuma oferta.
Minnie não tinha mentido ao duque de Clermont. Gardley era o melhor ao que podia aspirar, um
homem que só sabia que ela permanecia calada em público. Um homem que a preferia silenciosa. Não
tinha se incomodado em descobrir algo sobre ela, nem sua cor favorita nem sua comida predileta.
Embora, por outra parte, seria mais seguro casar-se com um homem que não queria saber nada dela.
A senhorita Wilhelmina Pursling sentiria uma patética gratidão por
Gardley por lhe oferecer matrimônio. Mas Minerva Lane, por sua parte…
– Nem sequer sabe quem sou – disse. – Me chamou de camundongo. Minerva Lane jamais foi um
camundongo.
– Não pronuncie esse nome – Eliza falava com voz baixa e assustada. Sua mão apertou o joelho de
Minnie.
– Silêncio – interveio Caroline. – Não tem sentido dizer a verdade. “Silêncio. Não ceda ao pânico.
Não diga a verdade a ninguém”. Minnie tinha vivido doze anos com as regras delas, e para que? Para
poder ter a sorte de ser totalmente esquecida algum dia.
A lembrança de Minerva Lane, pelo que tinha sido e o que tinha feito, era como um carvão quente
abafado com cinzas. Seguia ardendo muito depois que se extinguiu o fogo. Às vezes todo esse calor ardia
dentro dela até que sentia a necessidade de gritar. Até que desejava queimar todos os retalhos tímidos de
sua maltratada personalidade.
Essa rebeldia feroz se ergueu naquele momento em seu interior.
A parte dela que seguia sendo Minerva, a parte que não tinha sido asfixiada, sussurrou-lhe tentações
ao ouvido. “Não precisa guardar silêncio, o que precisa é uma estratégia”.
Nada de estratégias. Suas tias protestariam se soubessem que estava considerando atuar. Fazia anos
que não se permitia fazer isso.
“Stevens acredita que escrevo os panfletos. Eu sei que não sou eu.
Averiguarei quem o faz”.
Era uma estupidez. Uma tolice. Uma idiotice. Era impossível.
Mas por muitas coisas que se dissesse, aquele pensamento insidioso não a abandonava. Como podia
averiguar quem o tinha feito? Podia ser qualquer um.
“Não, qualquer um não. Você sabe que não é o capitão Stevens. Tampouco são suas tias. Nem é
você”. Se pudesse eliminar quem não tinha sido, só ficaria o culpado. Por um processo de eliminação…
“Não, tola. Há centenas de pessoas que poderiam ser culpados. Milhares”.
Mas tinha se imposto uma tarefa e lhe resultava quase impossível mudar seus pensamentos. Pensou nas
letras maiúsculas, nos sinais de exclamação. Nos parágrafos do texto que descreviam os donos das
fábricas e a suas vergônteas. Ali havia algo estranho.
E então, por alguma razão, pensou em algo totalmente diferente. Minnie sabia por que se escondeu
atrás do sofá. Queria evitar à multidão e a proposta de Gardley.
Mas o que fazia ali o duque de Clermont?
Organizem-se, Organizem-se, Organizem-se!!!!
E aquele estranho sorriso seu… seu sorriso amistoso e levemente envergonhado? Desde quando um
duque se desculpava por ser o que era?
Não, definitivamente, ali havia algo estranho. Algo…
A verdade lhe chegou com uma força tão cegadora que a carruagem quase pareceu desaparecer em um
relâmpago de luz.
Momentos como aquele eram uma das razões pelas quais tinha sido tão maravilhoso ser Minerva
Lane. Havia vezes nas quais parecia que as palavras eram simples fios, totalmente inapropriados para
conter a enormidade de seus pensamentos. O quebra-cabeças se reorganizou em sua mente com um vigor
tectônico; as peças encaixaram com uma certeza que era muito maior que sua capacidade para explicar-
se.
E assim foi como Minnie soube o que tinha que fazer, embora soubesse que não devia fazê-lo. O
plano lhe chegou com ímpeto.
Era algo que a insignificante senhorita Pursling não faria jamais. Mas Minerva Lane sim sabia o que
teria que fazer.
E graças a Deus, não teria que casar-se com Walter Gardley imediatamente.
Possivelmente o faria algum dia. Mas se pudesse impedir que Stevens suspeitasse dela,
possivelmente poderia prorrogá-lo durante meses. E possivelmente, só possivelmente… sim tivesse uma
oferta melhor.
CAPÍTULO 3

QUANDO O DUQUE DE CLERMONT ENTROU no salão,


Minnie pensou que quase resultava injusto que fosse tão atraente. O sol da manhã que entrava pelas
janelas se refletia em seu cabelo loiro que seria muito longo se não fosse por aqueles cachos rebeldes.
Ele se deteve na soleira e passou a mão pelo cabelo olhando-a, com o que desordenou ainda mais os
cachos. Mas qualquer suavidade que pudesse dá o cabelo revolto a seu semblante se via rebatida pelos
olhos. Eram vivos e frios, de um azul cortante, como um lago cheio de água gelada da primavera.
Aqueles olhos descansaram um momento nela e depois se pousaram em Lydia, que estava a seu lado.
Esta tinha rido ao ouvir que Minnie pensava visitar o duque de Clermont, e não se alterou quando sua
amiga lhe tinha explicado que tinha que falar com ele em privado.
Minnie pensou que o olhar do duque atravessava a fachada que ela apresentava diante do resto do
mundo, mas se disse que devia ser produto de sua imaginação. Simplesmente lhe parecia que ele sabia
tudo.
Mas não podia saber nada, porque quando a olhava, sorria com algo parecido ao prazer. Era um
simples franzir dos lábios, mas também uma mudança sutil em seus olhos, que passavam do azul pálido
do gelo ao azul ligeiramente menos pálido de um céu claro do verão.
Seu atrativo tinha um ar juvenil: uma ameaça de acanhamento em seu sorriso, certa magreza na
figura… Ou possivelmente era o modo como afastava a vista quando ela o olhava nos olhos para logo
voltar a olhá-la.
Se Minnie não tivesse ouvido a noite anterior o deputado Packerly elogiar os esforços do duque no
Parlamento, o teria tomado por uma fraude. Atrativo, jovem e modesto? Muito bom para ser verdade. Na
realidade, os duques eram barrigudos, velhos e exigentes.
– Senhorita Pursling – disse ele. – Que prazer tão inesperado!
Sobre o inesperado sim acreditava ela. Sobre o prazer… certamente ele o retiraria antes que tivessem
terminado.
– Excelência – disse.
Tomou brevemente sua mão e inclinou a cabeça. Minnie sentiu uma sensação de calor através das
luvas.
– Senhorita Charingford – Clermont se inclinou sobre a mão de Lydia como se fosse a dama mais
importante do reino. Ela olhou de soslaio a sua amiga e apertou os lábios como se reprimisse uma
gargalhada.
– O que as traz por aqui, senhoritas?
Lydia olhou para Minnie, esperando inteirar-se ela também.
– Se alguém perguntar – murmurou Minnie, – viemos solicitar um donativo para a Comissão de
Higiene dos Operários – conteve o fôlego, perguntando-se quão ardiloso seria ele.
O duque pensou um momento em suas palavras.
– Considero-o solicitado – respondeu. – Farei um donativo se me deixar os detalhes. Quanto ao
resto… Se isto for pelo ocorrido ontem à noite, pode estar segura de que sou a personificação da
discrição.
Era bastante ardiloso.
Lydia arqueou uma sobrancelha ao captar a implicação de que o duque e sua amiga tinham falado
antes. Minnie negou com a cabeça.
– Não, Excelência. Há algo mais que devo comentar com você. A senhorita Charingford veio como
acompanhante, mas temo que o que tenho para dizer não é para seus ouvidos.
– Certo – corroborou Lydia, corajosa. – Não sei o que está acontecendo.
– Entendo – disse o duque.
Seu sorriso adquiriu uma frieza cautelosa. Sem dúvida imaginava algo acidentado e escandaloso,
algum complô para apanhá-lo em matrimônio. Era um duque de aparência agradável com uma fortuna
razoável; provavelmente sofria tais complôs de modo regular. Mas não a expulsou de sua casa. Esfregou
o queixo e olhou ao seu redor.
– Se quiser falar em voz baixa, a senhorita Charingford pode sentar-se aí – assinalou uma cadeira ao
lado da porta. – Deixaremos a porta aberta e nós podemos nos colocar junto à janela. Assim ela verá
tudo, comprovará que não faltamos ao decoro, mas não ouvirá nada.
Sustentou a cadeira para Lydia. Atuava em tudo como um cavalheiro, com tanta naturalidade que
Minnie quase duvidou de seu instinto.
Ele chamou uma campainha e, quando apareceu um servente, pediu chá em duas bandejas. Enquanto
esperavam, pôs uma mão na parte baixa das costas de Minnie e a guiou para a janela. Era um contato
minúsculo, só a calidez da mão dele na coluna, apagada por camadas de tecido, mas ela o sentiu até
mesmo no pulso que lhe palpitava na garganta.
Era tão injusto que tinha vontade de gritar. Ele era rico, atraente e podia acelerar o coração dela com
um simples toque de seu dedo. Ela tinha ido ali para chantageá-lo, não para paquerar. Pela janela se via a
praça de fora.
As praças eram menos comuns em Leicester que em Londres.
Aquela estava muito descuidada. Havia uma árvore tão franzina que dificilmente se poderia chamar de
árvore. A erva secou e deixou espaço para um cascalho cinza. Mas, por outra parte, aquele era um dos
poucos bairros de Leicester onde havia praças.
Os comerciantes de mais êxito viviam perto dali, na estrada de Londres, em Stoneygate. A
aristocracia vivia em propriedades rodeadas de muito terreno no campo circundante. Todos os que
tinham riqueza e boa posição se estabeleciam fora da cidade.
Mas o duque não o tinha feito. Minnie tocou o papel que levava no bolso e acrescentou isso à lista de
coisas estranhas daquele homem. Quando iam duques a aquela zona, estabeleciam-se no Quorn ou no
Melton-Mowbray para a caça da raposa. Ele, entretanto, tinha alugado uma residência situada a poucas
quadras das fábricas.
– No que posso ajudá-la? – perguntou ele.
Havia muitas coisas que não encaixavam. Ele mentia. Tinha que ser isso. Simplesmente, Minnie não
sabia por que. Em uma mesinha lateral havia um jogo de xadrez. Ela tentou não olhá-lo, esforçou-se por
não sentir sua inevitável atração, mas…
Ganhavam as brancas. Faltavam seis jogadas para o cheque mate, possivelmente só três. Podia ver o
final, a pinça que formavam a torre e o bispo, com a linha de três peões brancos cortando o tabuleiro em
dois.
– Joga xadrez? – perguntou.
– Não – ele moveu uma mão no ar. – Perco no xadrez. Muito.
Mas meu… um dos homens que há aqui comigo joga xadrez por correspondência com seu pai. Guarda
o tabuleiro aqui. Não vai me desafiar a uma partida, verdade? – sorriu.
Minnie negou com a cabeça.
– Não. Era somente curiosidade.
Chegaram às donzelas com o chá. Minnie esperou até que saíram. Logo tirou do bolso da saia o
santinho que lhe tinha dado Stevens. As bordas, molhadas pela chuva da noite anterior, dobraram-se e se
haviam posto amareladas ao secar-se. Ela a estendeu.
O duque não pegou. Olhou o papel com curiosidade, o tempo suficiente para ler o título em letras
maiúsculas, que ocupava o primeiro quarto da folha. Logo olhou para ela.
– Supõe-se que devo me interessar pelos santinhos radicais? – perguntou.
– Não, Excelência – Minnie quase não podia acreditar na sua audácia. – A você não interessa ler os
santinhos radicais. Você os escreve.
Ele olhou o papel. Passou a vista lentamente para ela e arqueou as sobrancelhas. Minnie afastou a
vista, afetada pela intensidade do olhar dele. Ao fim ele tomou um bolinho e o partiu pela metade. Saiu
vapor, mas o duque não deu amostras de que lhe incomodasse o calor nas mãos.
Nem sequer precisava responder. A acusação dela era ridiculamente absurda. Estava sentado em sua
confortável poltrona, rodeado de móveis que limpavam e enceravam diariamente serventes que não
tinham nada que fazer exceto tirar bolinhas de pó assim que ousavam aparecer. O duque de Clermont
tinha alugado uma casa e contratado doze serventes por dois meses. Tinha propriedades espalhadas por
toda a Inglaterra e uma fortuna que a imprensa de fofocas calculava em dezenas, se não centenas, de
milhares de libras esterlinas. Um homem como aquele não tinha motivos para publicar circulares
políticas radicais.
Por outra parte, ela já sabia que ele não era o que parecia.
Como se quisesse sublinhar tudo isso, ele mordeu um pedaço de pão-doce com ar casual e lhe fez
gestos de que fizesse o mesmo.
Minnie não podia. Lhe encolhia o estômago só de pensar em sorver o chá. Quando já acreditava que
ele ia ignorar deliberadamente sua acusação, o duque estendeu a mão e olhou o papel.
– Operários – leu. – Organizem-se, organizem-se, organizem-se, tudo com muitos pontos de
exclamação – fez um gesto desdenhoso. – Para começar, me aborrece os pontos de exclamação. Por que
supõe que eu tenho algo a ver com isto?
Ela não tinha provas, só intuição pelo modo como encaixavam as peças. Mas estava segura. Quão
pior podia ocorrer seria que estivesse equivocada. Nesse caso, ficaria em evidencia diante de um homem
a quem não voltaria a ver nunca. Cruzou as mãos no colo e esperou. Se ele podia pô-la incômoda com
seu silêncio, ela podia fazer o mesmo.
E ele foi o primeiro em falar.
– É porque acabo de chegar à cidade e não quer que culpem a algum de seus amigos?
Ela guardou silêncio.
– Porque pareço um agitador? – havia certa secura em sua voz. Soava suave e fluida, arrastava as
sílabas no melhor inglês da rainha. Mostrava um indício de sorriso, uma expressão condescendente que
indicava que lhe seguia a corrente. – Ou é porque ouviu histórias de minhas inclinações radicais?
Não havia tais histórias. Tinha fama de estadista, de homem ardiloso e de maneiras suaves.
– Por que veio aqui? – perguntou Minnie. – Ouvi o que se diz, mas um homem de seu status que queira
investir na indústria de Leicester enviaria a um procurador em vez de vir pessoalmente para impressionar
a todos. – Tenho amigos na região.
– Se fossem tão bons amigos que precisasse visitá-los, hospedaria se com eles.
O duque encolheu os ombros.
– Não quero impor minha presença a ninguém.
– Você é um duque. Sempre impõe sua presença.
Ele fez uma careta; parecia levemente envergonhado.
– Por isso, senhorita Pursling, eu não gosto de fazê-lo. Tem alguma base para suas acusações?
Ela tomou o papel.
– Se quer sabê-lo, há dois parágrafos neste santinho que me convencem de que você o escreveu.
– Por favor – ele estendeu uma mão com a palma para cima. – Leia-os e me desmascare.
Minnie tirou suas lentes do bolso e procurou os parágrafos.
– O que fazem os amos para levar a parte do leão do pagamento? Fiscalizam. São os donos. E por
essa tarefa, que não requer nem pensamento nem trabalho, ganham somas tão grandes que nem sequer
precisam levantar um dedo para vestir-se. Suas filhas, em vez de trabalhar duro aos quatorze anos, são
livres para fazer o que desejarem; seus filhos só têm que se preocupar até onde querem chegar com sua
dissipação.
O duque não mostrou nenhuma reação. Limitou-se a olhá-la com seus olhos azul gelo e tamborilou
levemente com os dedos no braço da poltrona.
– Você acredita que isso o escreveu um duque? – perguntou ao fim com uma nota de humor na voz.
– Não foi um operário.
– Surpreenderia a gramática que alguns…
– Sou membro da Comissão de Higiene dos Operários – o interrompeu Minnie. – Não subestimo a
nenhum deles. Há um homem com memória de enciclopédia que lê a última série de Dickens de noite e o
recita aos outros pelo dia. Você não se delata só no primeiro parágrafo. É o primeiro tomado junto com o
segundo.
– Oh! – exclamou ele, ainda sorridente. – Há um segundo parágrafo muito mais daninho. Claro que o
panfleto tem apenas dois parágrafos, assim por favor, leia-o.
– Não posso fazê-lo – Minnie deixou o papel na mesinha do chá e tirou os óculos. – O segundo
parágrafo, Excelência, é o que você não escreveu. Escreveu o que não fazem os donos, mas não
mencionou o que fazem os trabalhadores. Um operário teria se centrado em seu trabalho, no que faz e a
quem beneficia, não no que faz outra pessoa. Isto foi escrito por alguém que, fossem quais fossem suas
intenções, pensava como um dono.
Clermont inclinou a cabeça para um lado. Estendeu a mão, pegou o papel e o leu. Quando começou,
tinha os lábios franzidos. Leu com rapidez, percorrendo a página com os olhos. Mas ela viu que sua
expressão se alterava, passava da incredulidade à surpresa. Sua boca se curvou lentamente em um
sorriso. Quando ergueu a vista, seus olhos, antes frios e severos, brilhavam.
– Vá – disse ao fim. – Que me condenem. Tem razão.
– É questão de pura lógica – Minnie cruzou as mãos. – Um dono não escreveria isso, delataria-se
muito. E se descartar os operários e os donos, ficam poucas opções. Você estava escondido ontem à noite
atrás da cortina. Não é o que parece. Você é a única possibilidade que tem sentido com as provas
disponíveis.
Esperava que ele voltasse a negar a autoria, pois as provas dela eram muito débeis.
Mas o duque não discutiu. Olhou para Lydia, que sorvia seu chá e lhes dirigia olhares de curiosidade.
Baixou a voz ainda mais.
– Se pensasse me denunciar publicamente, o haveria dito ao magistrado, que teria vindo aqui com um
punhado de donos de fábricas zangados para me exigir que deixasse de agitar os operários. Não o fez.
Em realidade – assinalou com a cabeça a Lydia, – tomou o cuidado de esconder de todo mundo o
verdadeiro propósito desta visita. O que é que quer de mim? – apoiou a mão no bolso do colete, onde era
habitual que um homem guardasse a bolsa das moedas.
– Quero que pare.
Ele a olhou nos olhos.
– Por favor – ela engoliu em seco. – Verá, esses panfletos fazem com que todo mundo se enfrente.
Todo mundo vigia a todo mundo. E eu participo da distribuição de folhetos para a higiene dos operários.
Esses não são radicais, são sobre a cólera, mas as pessoas podem suspeitar de mim.
– Mas embora suspeitassem de você, seguro que não demoraria para justificar seu trabalho – ele fez
uma pausa. – A menos que tenha algo mais para esconder. Possivelmente não quer que ninguém pergunte
por que uma jovem senhorita a ponto de casar-se, se esconde atrás de um sofá quando aparece seu
pretendente – arqueou uma sobrancelha.
Minnie já não pôde seguir olhando-o nos olhos.
– Isso é o que ocorre – sussurrou, com a vista fixa em sua xícara de chá.
– Que surpresa! – exclamou ele em voz baixa e zombadora. – Jamais teria adivinhado que você teria
algo que ocultar em seu passado.
Ela olhou o líquido marrom de sua xícara.
– Para você é fácil encontrar tudo isto divertido. Mas meu futuro não é nenhum jogo. Trabalhei duro
para chegar onde estou e lutarei por conservar as poucas comodidades que ganhei, por pequenas que
possam parecer. Não desejo que examinem muito de perto minhas ações. E suspeito que você tampouco.
Se parar, os dois estaremos seguros.
– Seguros – ele arrastou a palavra como se a saboreasse. – Não me importa muito a segurança, e lhe
estaria fazendo um favor se a separasse de seu pretendente.
Minnie dificilmente podia discutir aquele ponto. Mas negou com a cabeça.
– Não é favor se fizer com que me resulte impossível encontrar outro. Eu vivo o dia, Excelência.
Quando minha tia avó morrer, a granja irá para o seu primo. Minha tia avó Elizabeth e eu não teremos
aonde ir. É preciso que me case – ergueu a cabeça e o olhou aos olhos. – Não tenho escolha.
O olhar dele se suavizou.
– Seu passado… é tão mau para que tema que alguém meta o nariz nele devido a um santinho?
Durante um momento de loucura, Minnie considerou a possibilidade de lhe contar toda a história. Ele
parecia muito aberto, com a cabeça inclinada de um modo sedutor. Seguro que poderia…
Só a ideia de confessar-se fez com que o ar lhe parecesse mais frio e lhe fechou um pouco os pulmões.
Voltou a olhar seu chá.
– Sabe o que é a vida para uma mulher nestes tempos modernos? Os cavalheiros se casam cada vez
menos. Tenho lido que trinta e quatro por cento das damas da boa sociedade chegam aos vinte e sete anos
solteiras. Não é necessário que haja algo vergonhoso em meu passado; algo que saia do normal, por
inofensivo que possa parecer, é uma catástrofe.
Ele se recostou em sua poltrona e pensou naquilo.
– Nesse caso, vejo uma solução alternativa a nosso mútuo problema. Aparentemente, eu necessito
uma razão mais acreditável para permanecer na cidade. Se você não acreditou no que eu disse, os outros
tampouco acreditarão. Você precisa estar nos sessenta e seis por cento de mulheres que se casam –
encolheu os ombros. – Me dedicarei a cortejá-la enquanto estou aqui. Você pode me rechaçar e eu insisto
um pouco. Todo o assunto fará maravilhas para sua reputação. Eu sigo escrevendo e você consegue seu
marido.
Disse tudo isso com naturalidade, mas a imagem que suscitou… dele dançando com ela, de sua mão
apoiada na dela em uma valsa, provocou borboletas no estômago de Minnie. Ela sacudiu a cabeça com
força.
– Isso é uma ideia terrível. Ninguém acreditará que você se interessa por mim.
– Posso fazer com que acreditem. Nenhuma pessoa em dez mil teria adivinhado o que adivinhou você.
Ninguém. Posso fazer com que creiam na mulher que viu isso. Uma mulher calada, sim, e possivelmente
um pouco tímida em companhia…
Minnie fez um ruído grosseiro com a boca, mas ele ergueu uma mão para lhe pedir silencio.
– Você tem um caráter de aço e um talento estranho para ver o que há diante de seus olhos. Eu poderia
fazer com que todos vissem isso – a olhou nos olhos com intensidade. Aparentemente, era impossível
escapar. Ele baixou a voz. – Poderia fazer com que todos a vissem como é.
As borboletas estavam somente no estômago de Minnie? Não, todo seu corpo parecia trêmulo. Fazia
anos que ninguém fingia interessar-se por ela.
Ter a atenção dele tão concentrada nela… Era muito. Mas o duque não tinha terminado.
– E também há seu cabelo. O cabelo não deveria mudar de cor só porque se frisa, mas as pontas
parecem apanhar a luz, e quando isso ocorre, não sei se é castanho, loiro ou inclusive ruivo. Poderia
passar horas olhando-o para tentar decifrá-lo.
Pulsava-lhe com força o coração. Não ia mais depressa, só pulsava com mais força, como se seu
sangue requeresse mais trabalho para mover-se.
Mas tudo aquilo eram hipóteses, e Minnie estava muito desesperada para ser outra coisa além de
pragmática.
– Não diga bobagens – pretendia que suas palavras soassem depreciativas, mas lhe tremia a voz. – O
que diria você quando estivesse entre homens? Quando lhe perguntassem que diabos via na diminuída
senhorita Pursling? Não acredito que se atrevesse a lhes dizer que estava extasiado pelos cachos de meu
cabelo. Isso o diz um homem para convencer a uma mulher, mas os homens não falam assim entre eles.
Sem dúvida ele esperava que tragasse essas tolices sobre seu cabelo, porque pareceu surpreso ao
ouvi-la. Moveu a cabeça e sorriu.
– Vamos, senhorita Pursling – disse. – Os homens não perguntariam isso. Saberiam em seguida o que
me tinha atraído em você – se inclinou para diante e sorriu com ar conspirador: – seus seios.
Ela abriu muito a boca. De repente era muito consciente de seus seios, quentes e com um comichão de
espera, embora ele não estava perto deles.
– São magníficos – murmurou o duque.
Nem sequer os olhava, mas Minnie ansiava levar as mãos ali, não para os tampar, a não ser para
explorar suas curvas. Para ver se, possivelmente, seus seios eram de verdade magníficos, se o tinham
sido todos esses anos e ela simplesmente não se deu conta.
Se outro homem houvesse dito que seus seios eram magníficos, possivelmente o haveria dito de um
modo luxurioso, de um modo que lhe teria resultado repelente. Mas o duque de Clermont sorria corajoso
e tinha dito a frase como se fosse só um dado mais a ter em conta. “Faz um dia precioso”. “As ruas estão
cobertas de paralelepípedos”. “Suas tetas são magníficas”.
– Não proteste – disse ele. – Você me perguntou isso e, depois de ter vindo me visitar em minha casa
para me chantagear, não é necessário fazer alarde de falsa modéstia.
Minnie endireitou os ombros, muito consciente de que ao fazê-lo erguia mais os seios.
– Olha-se alguma vez no espelho – sugeriu ele. – Olha, além disto – tocou a bochecha no ponto onde
ela tinha a cicatriz. Veja-se alguma vez tal e como está agora, cheia de fogo e de fúria, disposta a batalhar
comigo. Se tivesse se visto alguma vez assim, não questionaria que queira cortejá-la. Saberia que quero.
Minnie sentia todo seu corpo em chamas, umas chamas ardentes e cintilantes. Jamais tinha sido tão
consciente de seu corpo, de cada polegada dele, dos bicos dos seios, que podiam ser magníficos ou
podiam não sê-lo, até os calcanhares. Ele a olhava nos olhos com intensidade.
Ela tragou saliva.
– Não é justo de sua parte tentar me confundir antes que tenha aceitado seu plano – e se tivesse
pretendido aceitar, aquele olhar a teria dissuadido de fazê-lo. Um homem que podia paquerar assim não
fazia sentido que paquerasse com ela.
O duque franziu o cenho e passou uma mão pela fronte.
– Vamos, senhorita Pursling – sorriu. – Você é a pessoa mais interessante que conheci desde minha
chegada. Seria um prazer passar mais tempo em sua companhia.
Para ele isso implicaria que poderia partir a outras cidades. Para ela… Para ela significaria um
período curto de ter aquele homem dançando com ela e cortejando-a. Um mês de elogios, umas semanas
de sorrisos sedutores. Significaria dia sobre dia que ela poderia cair presa de seu feitiço. Era só ver o
que tinha conseguido em dez minutos.
Moveu a cabeça para limpar as teias que ele tinha tecido com tanta arte. Isso implicaria que a
olhariam todos em todos os lugares que comparecesse. Não poderia suportar esse tipo de escrutínio.
– Esse plano não me beneficia em nada, Excelência. Se lhe ajudar e nos descobrem, o desculparão
por ser rico, excêntrico e poderoso. Eu serei a mulher, a traidora que deu tudo por você. E se me dá fama
de coquete, todos acreditarão que fui sua amante. Ficarei desonrada. E quando… – uma onda de tristeza a
envolveu e não pôde terminar a frase. Não queria pensar em sua tia avó Caroline morta. Respirou fundo.
– E ao final de tudo, eu estarei na miséria e você será um duque.
– Eu trato minhas amantes melhor que isso. Embora sejam fingidas.
Ela ergueu o queixo e o olhou séria.
– Meu futuro não é nenhuma brincadeira, Excelência.
O duque fez uma careta.
– Acredito que me expressei mal. Ouça senhorita Pursling – suspirou, – não pretendo me burlar de
sua situação. Mas não vim a Leicester paquerar por capricho. Estou aqui por uma promessa que fiz. Meu
pai torceu algumas linhas e eu as devo endireitar. Não desejo lhe causar nenhum dano, mas não pararei o
que faço apenas porque você me pede isso. E não é necessário que estejamos em conflito.
– Eu não desejo ter que lançar insinuações nem ir reunindo provas que o assinalarão indevidamente
como o culpado – respondeu ela. – Mas o farei se for necessário. Se o fizer a meu modo, quando tudo
isto termine, as pessoas dirão: “Vá, Minnie manteve a cabeça em seu lugar apesar de haver um duque no
meio”.
– E os homens se casarão com você por isso? – perguntou ele duvidoso.
– Só necessito que o faça um homem – replicou ela. – Mais seria ilegal.
O duque recuperou o sorriso.
– Você não deixa nada por menos, verdade? Não posso acreditar que Gardley a chamasse
camundongo. É você o roedor mais formidável que conheci.
Colocou seu dedo indicador em cima da mão dela. Não foi uma carícia. Não podia ser uma carícia.
Mas bastou para que Minnie ficasse paralisada no lugar, presa por esse único ponto de contato.
– Querida – disse o duque. – Lhe dou minha palavra de que terá uma oferta de matrimônio antes que
eu vá. Embora tenha que fazer-lhe eu mesmo.
Minnie se levantou de um salto e se separou dele.
– Isso não tem graça – repôs sem incomodar-se em moderar seu tom. – Isto não é nenhuma
brincadeira apesar do que você possa pensar, e lhe agradeceria se deixasse de falar como se fosse.
Em seu intento por escapar dele e de sua horrível proposta, tinha derrubado a xícara de chá da mesa e
esta lhe tinha caído no pé e sentia o líquido atravessando a meia. Ele não disse nada, simplesmente
endireitou a bandeja sobre a mesa. Lydia, atrás deles, tinha as sobrancelhas erguidas e os olhava
incômoda.
– Nesse caso – comentou ele, ainda em voz baixa, – eu o farei a meu modo e você prove o seu. Já
veremos quem ganha.
– Isso é impossível – repôs ela. – Não pode paquerar comigo. Estarei em guerra com você.
– Não o estará – murmurou ele. – Prove estar em guerra com um competidor que não quer lutar.
Acredito que nem sequer você será capaz disso.
– Você não sabe do que sou capaz.
– Não – ele sorriu de um modo que fez voar faíscas pelo ventre dela.
Levantou-se e tomou sua mão. Essa vez se inclinou até que seus lábios roçaram a palma. Minnie tinha
tirado as luvas e sentiu em todo seu corpo o leve beijo que ele depositou na mão.
– Não sei – comentou ele. – Mas estou desejando descobri-lo.
CAPÍTULO 4

A CHUVA SALPICAVA OS CRISTAIS da janela do escritório de Robert e dissolvia o mundo exterior


em redemoinhos nebulosos. Abaixo, na rua, as duas mulheres eram já borrões que se afastavam entre
saias que revoavam debaixo do guarda-chuva. O azul marinho era da senhorita Charingford; e o marrom
escuro, da inimitável senhorita Pursling. De cima, nada o diferenciava de qualquer outro guarda-chuva da
rua. Se ele não tivesse visto seu vestido só uns minutos antes, não teria sabido quem era.
Sentia-se como se tivesse despertado fraco e confuso e que lhe houvessem dito que tinha passado três
semanas em cama com febre e que, durante sua enfermidade, a rainha Vitória tinha abdicado para fugir
com um domador de leões de Birmingham. O mundo parecia um lugar completamente diferente. E
entretanto, ali estava a senhorita Pursling, detendo-se debaixo de um toldo na esquina, conversando com
sua amiga e girando o guarda-chuva com os dedos como se nada tivesse ocorrido.
Como se não acabasse de truncar todas suas expectativas.
A porta se abriu em silêncio a suas costas e uns passos se aproximaram dele. Robert não tinha que
olhar para saber quem era; os serventes daquela casa o temiam ainda muito para aproximar-se sem pedir
permissão. Isso deixava só uma possibilidade: o senhor Oliver Marshall.
– Então – disse Oliver atrás dele. – Foi tão mal como temia?
Robert tamborilou com os dedos no batente e considerou a resposta.
– Vieram duas senhoritas solicitar uma contribuição para a
Comissão… Oh, o diabo o leve, não me lembro. Ah, sim. A Comissão de Higiene dos Operários.
Robert tinha poucos segredos com Oliver, mas a noite anterior não lhe tinha mencionado sobre a
senhorita Pursling. Em primeiro lugar, porque não lhe tinha parecido importante e, em segundo, porque se
ali havia um segredo, pertencia a ela, não a ele. E isso… isso o convertia em um dos poucos segredos
que não tinha mais remedeio que ocultar a Oliver.
– Entendo. Vieram para te olhar embevecidas – havia um traço de humor na voz de Oliver, que foi
situar-se ao lado de Robert. Olhou também pela janela e franziu o cenho ao não ver nada de interesse.
– Pois a verdade é que não.
A senhorita Pursling e sua amiga passaram sob a marquise com as cabeças inclinadas uma para a
outra e os ombros roçando-se. A chuva caía do teto metálico que as resguardava e salpicava o chão em
ondas de água suja. Oliver acreditava que tinham ido a essa cidade para tentar convencer a seus
habitantes de que votassem numa reforma. A senhorita Pursling tinha ameaçado revelando as outras
atividades de Robert ali, e isso era muito mais irritante que o fato de que o olhassem embevecidas. Por
outra parte… Robert se voltou para seu amigo.
– Oliver – disse. – Como pôde chegar à conclusão de que eu era um ser humano que valia a pena?
Oliver tirou as lentes e as limpou com um lenço.
– O que te faz pensar que cheguei a essa conclusão?
– Digo-o a sério. Até que te conheci, ninguém dos que me olhavam via uma pessoa de verdade.
Apenas ao filho de um duque.
E desde Oliver, ninguém tinha visto tampouco uma pessoa de verdade. Viam um voto na Câmara dos
Lordes, ou uma fortuna herdada de seu avô. Viam as possibilidades que representava.
A senhorita Pursling desapareceu ao dobrar a esquina e Robert moveu a cabeça. Ela era um problema
com o qual teria que lutar. Mas também era um prazer.
Oliver terminou de limpar suas lentes e o olhou.
– Bom – disse. – Possivelmente foi porque eu sabia muito bem quanto valia ser filho de um duque.
Você não foi o único.
– Mas quando te conheci, comportei-me como um imbecil.
– Certo – comentou Oliver.
Sua amizade, ou o que quer que fora aquilo, não tinha sido fácil. Quando Robert conheceu Oliver,
tratou-o como a um inimigo e inspirou a outros meninos a meter-se com ele. Embora o certo era que
Oliver não necessitava que o inspirassem muito para brigar.
Um dia Oliver lhe havia dito em voz baixa que eram irmãos. E Robert tinha tido a sensação de que
todo seu mundo virava do avesso.
– A que vem tudo isto? – perguntou Oliver. – Foi simples. Brigamos; os irmãos brigam muito.
Demoramos um pouco em aprender a nos conhecer e depois… – encolheu os ombros.
– Tem uma memória terrível. Demoramos um pouco em aprender a nos conhecer – lhe recordou
Robert. – Eu animava a outros meninos a que se metessem contigo. E quando fizemos as pazes, custou-me
muitíssimo aceitar o que me havia dito.
Tinha passado meses ponderando o inevitável, fazendo contas. Retrocedia nove meses do nascimento
de seu irmão e lhe saía uma data dois meses depois do casamento de seus pais. Sua mente não deixava de
procurar uma boa razão para que seu pai tivesse engendrado um filho fora do casamento e logo o tivesse
abandonado sem lhe dar apoio econômico. Robert construía explicações elaboradas apoiadas em
mensagens que se perdiam, mentiras que se contavam, serventes que estavam ausentes…
– Apenas deixei de procurar desculpas ao comportamento de meu pai quando lhe perguntei o que
tinha ocorrido.
“Dá-me igual o que ela diga”, tinha grunhido seu pai. “Ela queria aquilo. Sempre o querem”.
Essa negação automática de um delito de que não tinha sido acusado tinha deixado às coisas
dolorosamente claras a Robert. E tinha procurado Oliver assim que voltou das férias.
– Eu não sou meu pai – lhe havia dito com voz trêmula. – Digam o que digam as pessoas, não sou meu
pai.
E Oliver lhe tinha sorrido.
– Já sei – tinha respondido com insolência. – Estava esperando que te desse conta.
“Sei que não é seu pai”. Ao longo dos anos, essas palavras tinham significado mais para Robert que
nenhuma das adulações que tão frequentemente lhe dirigiam. Um catedrático de Cambridge o tinha
observado nos olhos e lhe havia dito: “meu Deus, é sua viva imagem”. Quando alcançou a maioridade, os
homens lhe davam tapinhas nas costas e lhe diziam o muito que se parecia com o velho duque de
Clermont. Sempre que o felicitavam por ser filho dele, Robert ouvia o lamento queixoso de seu pai. “Ela
queria aquilo.
Sempre o querem”.
Robert era duas polegadas mais alto que seu irmão. Era três meses mais velho que ele. E, quão único
de verdade contava, era o filho legítimo, que tinha herdado o ducado de seu pai e uma vasta fortuna pelo
lado de sua mãe. A ninguém teria estranhado que tivesse posto a seu irmão em seu lugar… muito atrás
dele.
Por isso precisamente, não o faria nunca. “Os jogo de dados me favoreceram no primeiro lançamento,
e portanto já ganho sempre” não era um bom grito de batalha. E se ele sozinho tinha ganhado aquela
primeira ronda era porque seu pai tinha feito armadilhas.
Desde aquele dia, irritava-lhe que lhe recordassem seus privilégios, a riqueza ou a nobreza de seu
pai. Porque isso lhe recordava o momento em que tinha descoberto o que significava ser seu pai um
duque. Significava que ninguém lhe questionava por muito equivocados que fossem seus atos. Significava
que não pagava por seus crimes independentemente de quem sofresse no processo. Significava que, se
Robert seguia os passos de seu pai, ninguém teria nada que dizer.
Depois de tudo, os homens tinham suas necessidades. E as mulheres queriam aquilo. Sempre o
queriam.
Em toda sua vida, só uma pessoa o tinha observado e lhe havia dito:
“Você não tem por que ser seu pai”.
Uma e… Robert olhou pela janela. Uma e meia.
Porque a senhorita Pursling tinha entrado em sua casa, tinha-lhe dado um santinho e lhe havia dito que
o tinha escrito ele. E ele teve que se reprimir para não resplandecer de orgulho e lhe perguntar o que lhe
parecia. Se resultava convincente e se tinha gostado.
Enrugou o nariz.
– Nosso pai era um imbecil.
Oliver fez uma careta.
– Seu pai – respondeu cortante. – Não me criou o duque de Clermont. Não me levou para pescar. É o
homem que me engendrou, não é meu pai. Nunca foi meu pai.
Segundo essa lógica, Robert tinha sido criado por colherinhas e fibras de erva.
– Eu não falava de história – repôs com rigidez. – Só de biologia.
Oliver negou com a cabeça.
– A família não é questão de história nem de biologia – comentou com suavidade. – É questão de
escolha. E não te mostre tão sombrio. Você sabe a que me referia. Que me negue a deixar que esse homem
seja meu pai não significa que você não possa ser meu irmão.
– Oxalá fosse tudo tão fácil! – Robert meteu as mãos nos bolsos e afastou a vista. – Esta manhã recebi
uma mensagem de minha mãe.
– Ah! – Oliver lhe pôs uma mão no ombro. – A sério?
– Sim – repôs Robert com uma voz que esperava soasse humorística. – E só faz dois meses que a vi
em Londres.
Seu irmão o olhou então pela extremidade do olho. Foi um olhar compassivo e Robert o afastou com
um gesto.
– Não faça isso – murmurou com brutalidade. – Vai vir aqui.
Clermont, dizia a nota, ficarei um tempo no hotel Três Coroas de Leicester. Como acredito que está
perto, jantaremos juntos em dezenove de novembro.
– Não disse por que e não me ocorre o que pode havê-la empurrado a vir – Robert evitou olhar a seu
irmão. – Se a família for questão de escolha, ela escolheu a todos menos a mim faz muito tempo. Por que
se incomoda em me ver agora quando no passado nunca se fixou em mim…
– Possivelmente queira… – respondeu Oliver.
– Não quer – o interrompeu Robert, cortante. – Ela não quer nunca.
Oliver e Robert se conhecem durante mais da metade de suas vidas. Tinham frequentado juntos
primeiro a Eton e depois a Cambridge. Durante esse tempo, Oliver tinha recebido continuamente cartas
de sua família. Tinha que ter notado que Robert mal recebia correspondência de seus pais.
Oliver moveu o teto; pareceu que escolhia com cuidado suas seguintes palavras.
– O que vais fazer?
– Já lhe respondi e disse que nessa data estarei fora, que prometi acompanhar Sebastian.
– Ah! – exclamou Oliver sem comprometer-se.
– E em seguida escrevi a Sebastian e lhe supliquei que venha – confessou Robert. – Não sei o que
quer ela, mas não pode ser muito importante. Além disso, faz quase um ano que não coincidimos os três.
Se os Irmãos
Sinistros com toda sua maldade não são capazes de espantá-la daqui… Oliver sorriu.
– Assim nos chamavam em Eton porque os três somos canhotos.
Eu agora sou quase respeitável, você é um duque e Sebastian é… – franziu o cenho. – É um homem
bem considerado entre pessoas inteligentes. A menos por algumas delas.
Robert pôs-se a rir.
– Bem pensado, mas não servirá. Minha mãe acha que sua existência é um insulto pessoal. Está
convencida de que Sebastian é um apóstata e, desde que flertou com ela o ano passado, um libertino.
Oliver quase se engasgou com a saliva.
– Ele fez o quê?
– Pedi-lhe que me salvasse em uma reunião e o fez – Robert moveu a cabeça. – A seu modo.
Oliver fez uma careta.
– Não pretendia nada com isso – esclareceu Robert. – Mas tudo se reduz a uma coisa. Se ela insistir
em me ver apesar da mudança de data e da presença de duas pessoas que odeia, é que é algo sério.
Em outro tempo, Robert teria se permitido sonhar acordado com uma situação em que sua mãe iria a
ele banhada em lágrimas, a lhe pedir desesperadamente sua ajuda. Ele a salvaria então com uma mescla
de engenhosidade e bom senso. E lhe pediria perdão chorando por havê-lo evitado por tanto tempo.
Em sua juventude, quando imaginava as desculpas sentidas dela, Robert lhe dizia que não chorasse.
“Não se preocupe”, imaginava que lhe dizia. “Temos muitos anos pela frente”.
A ele não lhe tinha acabado o tempo, mas as esperanças só podiam ver-se frustradas certo número de
vezes antes que o cansaço o fizesse se entregar. Fazia mais de uma década que não se permitia sonhar
com um mundo em que sua mãe se importasse com ele e não estava disposto a começar a fazê-lo outra
vez. Por improvável que parecesse, ela certamente teria assuntos em Leicester, assuntos que a afastariam
dali antes que ele chegasse a vê-la. Os dois seriam mais felizes se não tivessem que ver-se.
– E o que fará se a situação for séria? – perguntou Oliver.
Robert moveu a cabeça.
– O que sempre fiz. O que for preciso, Oliver, o que for preciso.


A QUESTÃO DO QUE ia fazer em relação à senhorita Pursling teve que esperar até que Robert
voltou a vê-la. Isso aconteceu três dias depois, na residência dos Charingford, onde Robert e Oliver
tinham sido convidados para jantar.
É obvio, tinha pensado nela nesses dias. Algo nela lhe chamava a atenção. Seu engenho rápido e seu
estilo intrépido. Gostava disso. Uma noite despertou de um sonho em que ela se mostrava alegremente
descarada.
Mas as fantasias da noite poucas vezes se tornavam realidade. Duvidava que ela tivesse intenção de
lhe dar prazer de nenhum jeito. Na realidade, suspeitava que estivesse a ponto de ser submetido à
investigação de uma detetive amadora. Disfarces ruins, perguntas indiretas, intenção de revirar seu lixo
em busca de pistas… A senhorita Pursling era sem dúvida o tipo de jovem veemente que se entregava à
caça com paixão.
Por isso não lhe surpreendeu vê-la no jantar. Já tinha se posto confortável quando ele chegou, mas era
apenas questão de tempo antes que tentasse falar com ele. Robert a observou pelo canto do olho antes que
se sentassem para jantar. Pensava que ela tentaria escutar sua conversa.
Mas ela o ignorou.
Fez-o tão bem que foi ele quem, justo antes que anunciassem o jantar, descobriu-se tentando ouvir a
conversa dela com outras três senhoritas.
Tinha certeza de que estaria fazendo perguntas sobre ele.
Não era assim.
Ela falava muito pouco. E quando o fazia, falava com voz tão baixa que ele tinha que se esforçar para
ouvir suas palavras.
Recordava a cadência sensual de sua voz e o desafio que iluminava suas feições e a deixava bonita.
Esse dia não havia nem rastro de nenhuma das duas coisas.
Usava um vestido de pescoço alto feito de um tecido marrom rígido, enfeitado com uma trança militar
nos punhos e no pescoço. Devia levar os óculos guardados na bolsa singela que pendurava de seu punho.
Mantinha distância dele e não dizia nada engenhoso. Quase não dizia nada.
Robert tinha estado a ponto de dizer a Oliver que se tratava de uma jovem com muito engenho.
Quando se sentaram para jantar, ela ficou sentada ao lado de seu irmão, mas não tentou falar com ele.
Nem sequer ergueu a vista de seu prato exceto para olhar de vez em quando o nível do vinho rebaixado
com água de seu copo. Murmurou algo a Oliver em uma ocasião, mas como ele respondeu lhe entregando
o saleiro, Robert assumiu que não havia dito nada interessante.
E aquela mulher tinha ameaçado provar que ele era responsável pelos santinhos? Incrível.
Oliver lhe dirigiu várias vezes a palavra no transcurso do jantar. Ela, em resposta, murmurava algo
ininteligível sem tirar a vista de seu prato. O irmão de Robert acabou por renunciar a tentar manter uma
conversa.
A mulher que Robert tinha visto em sua casa se evaporou; ficava somente uma sombra com uma
compostura perfeita e nada de conversa. Ela tinha razão. Todos se perguntariam o que tinha visto se
tentasse cortejá-la. Nem sequer saberia como fazê-lo. Não se podia paquerar com uma pedra.
Quando os cavalheiros se reuniram de novo com as damas depois do jantar, Robert cumpriu com seu
dever. Parou para falar com todos os presentes, inteirou-se de seus nomes e perguntou por sua saúde.
Teria feito isso de todos os modos, pois não tinha sentido ser duque se não podia usar sua posição para
fazer sorrir às pessoas, mas dessa vez tinha um incentivo a mais. Fez seu circuito pela sala e acabou
aproximando-se indevidamente dela. Estava sentada em uma cadeira numa das laterais da sala olhando às
pessoas que falavam. Se olhava mais a uns que a outros, Robert não o detectou.
– Senhorita Pursling, é um prazer voltar a vê-la.
Ela ergueu a vista, mas não o olhou, mirou além de seu ombro.
– Excelência – respondeu.
Sua voz era baixa, mas continuava sendo como ele a recordava: rouca e aveludada. Ao menos isso não
tinha imaginado.
– Posso me sentar um momento ao seu lado?
Ela continuou sem olhá-lo. Baixou a vista ao tapete e assinalou uma cadeira contigua com um gesto da
mão. Robert se sentou e esperou que ela falasse.
Depois de um minuto completo em silêncio, compreendeu que não ia dizer nada.
Robert se recostou na cadeira.
– Já vejo o que se passa aqui. Deixa o peso da conversa a Robert. É um duque, supõe-se que deve
fazer isso bem.
– Oh, não! – ela franziu os lábios. – Eu não assumiria que você tenha nenhum talento concreto nesse
aspecto.
Era a primeira pista que dava de que podia haver algo mais nela além de um excesso de acanhamento.
Robert tinha começado a duvidar de sua própria memória. Não era possível que aquela mulher tivesse
ido à sua casa para tentar lhe fazer chantagem. Ou sim?
– Me diga – insistiu. – Como pode Minnie vir de Wilhelmina? Minnie me faz pensar em miniaturas, e
não há nada em você que pareça diminutivo.
A jovem observou suas as luvas com muita atenção.
– Vem da terceira sílaba, Excelência.
Havia tornado a ser a jovem tímida. Tinha imaginado Robert a conversa em sua casa? Talvez
estivesse ficando louco.
– O que tem de mais a primeira sílaba? – perguntou. – Ou a segunda.
Ela ergueu a vista. Pela primeira vez em toda a noite, olhou-o nos olhos. Ele teria jurado que tinha
que haver algum tipo de faísca nela, alguma indicação da inteligência que tinha exibido em seu último
encontro. Mas se os olhos eram as janelas da alma, as dela tinham sido muradas. Robert não podia ver
nada em seus olhos.
– Imagino que poderá perceber o problema – repôs ela, amável. – Willy não ficaria bem. É muito
masculino.
– Isso é certo – murmurou ele.
– Quanto à segunda sílaba – ela voltou a olhar por cima do ombro dele, esquivando seu olhar. Seus
olhos eram uma máscara, mas sua boca se franziu de novo. – Pense-o bem, Excelência. O que eu poderia
dizer? Meu nome é Wilhelmina Pursling, mas pode me chamar Hell{1}?
Robert riu, quase com admiração. Ela seguia parecendo uma pedra, movia os dedos com acanhamento
e se negava a olhá-lo nos olhos. Mas em seguida havia sua voz. Uma voz que o fazia pensar em fumaça de
lenha em uma tarde outonal, em sedas colocadas em cima de camas suntuosas. O cabelo dela livre de
todas aquelas forquilhas que o capturavam e solto sobre o travesseiro, com as pontas de cor mel lhe
roçando os peitos.
Ele tragou saliva e pigarreou.
– Isto não é o que esperava quando disse que iria à guerra contra mim.
– Deixe-me ver se adivinho – ela tocou a luva com cuidado e ele se deu conta de que lhe preocupava
um minúsculo buraco que havia em um dedo. – Pensou que eu sorriria com afetação se você me sorrisse.
Supôs que, quando disse que demonstraria o que está fazendo, pensou que começaria a investigar de
maneira desajeitada todas suas atividades.
– Não. É obvio que não – disse Robert. Mas sentiu que se ruborizava, porque isso era exatamente o
que tinha pensado.
A jovem mordeu o lábio inferior. Era a viva imagem do acanhamento. Mas suas palavras eram o
oposto a tímidas.
– Agora se surpreendeu ao descobrir que sou melhor que você.
– Ah, sim? – perguntou ele, olhando-a. – Você é?
Ela tinha a vista fixa no ombro dele. Em sua postura não havia nenhuma indicação do que dizia com
voz baixa.
– Pois claro que sim – respondeu. Falava como se o assunto fosse evidente. – Você é um duque bem
educado, um dos homens mais poderosos da Inglaterra. Certamente terá centenas de empregados em suas
distintas propriedades. Se fosse preciso, poderia reunir dezenas de milhares de libras.
Ergueu o canto da boca, o que apagou a ilusão de que era uma garota singela e tranquila. Em sua
bochecha apareceu uma covinha. Olhou-o uma vez e ele quase não pôde respirar.
Aquela sim era a mulher que o tinha ameaçado.
– Tem todas essas coisas – disse ela. – Mas eu tenho uma coisa que você não tem.
Robert aproximou o tronco porque não queria perder nenhuma palavra.
– Tenho talento como estrategista – terminou ela.
Robert captou o brilho de um sorriso por um breve momento que lhe fez conter o fôlego, e logo
desapareceu tudo. O rosto dela se alisou, voltou a baixar a vista e a imagem da senhorita Pursling se
voltou comum.
Outro homem teria deixado o tema ali, mas Robert não podia imaginar-se retrocedendo nesse
momento, quando ela agachava a cabeça e olhava o chão. Não. Ele queria que ela voltasse a se mostrar.
– Não fez nada – disse.
A expressão dela não mudou.
– Estou ganhando – insistiu ele. – Não vai me vencer por meio de aborrecimento.
– Você provavelmente acredita que as batalhas se ganham com canhões, discursos valentes e cargas
temerárias – ela alisava as saias enquanto falava. – Não é assim. As guerras ganham os que fazem
sapatos bons. Ganham os moços que fabricam balas nas fábricas de munições, os trens de fornecimentos
escondidos dos olhos do inimigo. As guerras ganham prestando muita atenção aos detalhes aborrecidos.
Se esperar para ver a carga da cavalaria, Excelência, já teria perdido.
Robert piscou.
– Você pode tentar me convencer. Não se dará bem.
– Essa é a beleza da estratégia. Tudo o que faço contém uma ameaça dupla. Se você não voltar atrás,
mostrará sua verdadeira face. Tudo o que diga, tudo o que faça, cada sorriso encantador e cada frase
doce, quão máximo pode esperar é trocar a forma da minha vitória. Mas esta é inevitável.
Parecia tão pequena sentada em sua cadeira, tão frágil! Apenas fechando os olhos e apagando a
imagem de solteirona diminuída, podia ele compreender a evidência do que ouvia. A senhorita Pursling
nem sequer o olhava aos olhos, mas sua voz parecia indomável.
– Isso quer dizer que você acredita que sou encantador – comentou ele. – Antes não tinha posto isso na
lista das minhas qualidades.
– Pois claro que é encantador – ela não ergueu a vista. – Me cativou. Estou completamente
enfeitiçada.
Em sua voz havia uma nota que soava tão amarga que quase resultava doce.
– Você é uma força da natureza, Excelência – disse ela. – Mas eu também. Eu também.
Não havia dito que era encantadora. E, de fato, não o era. Não no sentido habitual. Mas havia algo
muito persuasivo nela. Robert já não sabia quem era ela. Ao princípio lhe tinha parecido uma mulher
corajosa e inteligente. Em seguida tinha pensado que era a feia do baile. E nesse momento parecia estar
além de qualquer categoria, resultava maior e mais complexa que qualquer outra pessoa que ele tivesse
conhecido até então.
– Se quiser que volte atrás – disse com suavidade, – você não deveria ser tão interessante.
Minnie apertou os lábios.
Mas antes que pudesse responder, soou um ruído do outro lado do aposento. Robert voltou a cabeça a
tempo de ver a senhorita Charingford, a filha da família, a mesma amiga que tinha acompanhado a
senhorita Pursling uns dias atrás, levantar-se com tal brutalidade que derrubou sua cadeira.
– Vamos, Lydia – disse o homem que estava sentado a seu lado. – Não pode falar a sério.
– Pois sim – replicou a senhorita Charingford.
Pegou um copo de ponche da mesa que tinha ao lado e, antes que alguém pudesse intervir, jogou seu
conteúdo no rosto do homem. Gotas vermelhas caíram por seu nariz e seu queixo e mancharam seu
peitilho.
Ouviram-se murmúrios sobressaltados.
– Não pode fazer isso! – disse ele, levantando-se da cadeira.
O homem era George Stevens. Robert tinha falado com ele em duas ocasiões, suficientes para
recordar que estava no comando da tropa. Um homem importante naquele tipo de entorno.
– Não posso? – perguntou a senhorita Charingford. – Olhe-Me.
Pegou outro copo de ponche da mão de sua vizinha e o jogou também à cara.
– Vê? Parece que posso sim.
Depois de dizer isso, ergueu o queixo e saiu como um furacão pela porta. Robert se voltou para a
senhorita Pursling.
– Está…?
Mas a senhorita Pursling não estava ali, já cruzava a sala. Não tinha se desculpado com ele nem
pedira permissão; simplesmente tinha saído correndo atrás de sua amiga. Um momento depois, a porta se
fechou atrás dela.
Robert tinha admirado que sua postura e a expressão de seu rosto tivessem permanecido tão anódinas
durante sua conversa. Mas ela o tinha enganado de novo. Tinha-lhe indicado uma cadeira que lhe
permitiria falar com ele enquanto observava sua amiga. Ele tinha acreditado que não o olhava aos olhos
para fingir acanhamento, quando em realidade estava vigiando Stevens.
“Tudo o que faço contém uma ameaça dupla”. Nisso não tinha sido uma fanfarronada. Ela mal tinha
prestado à conversa a metade de sua atenção; tinha-lhe falado de estratégia e tinha fingido ser tímida e
diminuída perante outros. E enquanto fazia isso, seguia também a pista do drama de sua amiga no outro
lado do aposento.
Deus santo! Robert ficava com dor de cabeça só de pensar em todos os fios que devia manter ela em
sua mente.
– Excelência.
Robert saiu de seu sonho e olhou o homem que tinha ao lado. Era George Stevens, que o olhava com
ar sombrio e a mandíbula apertada em um gesto de desaprovação. Limpou-se a maior parte do ponche,
mas seu peitilho seguia manchado de rosa e em sua testa tinha um brilho que fez com que a Robert
picasse a pele em solidariedade.
– Capitão Stevens.
– Permite-me um momento?
Robert olhou a porta pela qual tinha desaparecido a senhorita
Pursling.
– É obvio.
Stevens lhe fez uma inclinação rígida de cabeça e se sentou com a mesma rigidez no assento que tinha
deixado livre a senhorita Pursling.
– É admirável – disse. – Admirável de todo ponto, que um homem de sua posição tenha a
condescendência de falar com todo mundo em uma reunião como esta – esfregou as mãos. – Mas, ah,
como dizer-lhe? Baixou a voz. – Nem todas as mulheres são igualmente merecedoras disso, e a senhorita
Pursling não é o que parece.
– Oh? – Robert estava muito surpreso para reagir de outro modo–. De que modo a realidade da
senhorita Pursling difere de sua aparência?
Stevens pareceu relaxar-se então.
– Tenho razões para acreditar que não é quem afirma ser.
– Razões? Que razões?
Stevens piscou, como se não estivesse acostumado a que lhe fizessem essa pergunta.
– Bom, há… falei com alguém que conheceu intimamente a sua tia avó. Era uma mulher. E não tinha
notícias da existência da senhorita Pursling.
– Você diz que conheceu intimamente a sua tia avó? – perguntou Robert com voz tranquila. – Quanto
tempo faz que a conheceu essa pessoa?
Stevens começava a retorcer-se como um menino apanhado em uma mentira.
– Conheceu-a antes que se mudasse para Leicester. Quer dizer…
– Ah, sim? – Robert arqueou as sobrancelhas. – Me Perdoe se não conheço às famílias da região tão
bem como você. Mas a tia avó da senhorita Pursling não se mudou a esta região faz cinquenta anos?
– Sim – Stevens se afundou mais no assento. – Mas ela conhecia toda a família – fez uma pausa para
respirar fundo. – E se a senhorita Elvira Pursling, a mulher que se supõe ser a mãe da senhorita
Wilhelmina, casou-se, ela o teria sabido. As pessoas falam, Excelência, em particular dos êxitos
venturosos. Mas não há notícias disso. Tenho motivos para suspeitar que a senhorita Pursling pode ser
filha ilegítima.
Possivelmente fosse certo. Isso explicaria a insistência dela de que não queria que ninguém
investigasse seu passado. “Um pouco diferente”, sim.
Robert pensou que, se havia algo de verdade na suspeita de Stevens, ele poderia solucionar aquele
assunto de uma vez por todas. O que era uma pequena ameaça quando ela tinha começado fazendo
chantagem?
Mas não. Ele era um cavalheiro e um dos homens mais poderosos do país. Os homens poderosos que
utilizavam seus privilégios para fazer mal às mulheres eram escória.
Robert adotou uma expressão muito fria. Não pôs má cara. Simplesmente olhou ao outro sem piscar
até que o capitão da tropa baixou a vista.
– Stevens – disse Robert, sem incomodar-se em usar o título de capitão. – Possivelmente ouviu algo
de mim que lhe faça pensar que quero ouvir tais calúnias?
– Mas Excelência, a senhorita Pursling é uma desconhecida para você. Eu apenas queria…
– Você acreditou que eu aceitaria escutar fofocas sem fundamento só porque versam sobre alguém que
não conheço? Stevens apertou os dentes.
– Eu só pretendia…
– Não quero ouvir mais especulações sobre elas. Se me inteirar de que segue com elas, ocuparei-me
de que Leicester tenha outro capitão da tropa.
Stevens empalideceu.
– Não pode fazer isso.
Mas sem dúvida sabia que Robert sim podia. Não diretamente, mas apenas tinha que dizer uma
palavra às pessoas apropriadas. Robert não queria empregar sua influência sem uma boa razão, e tendo
em conta o que esperava encontrar ali, precisava conservar esse poder o melhor que pudesse. Mas isso
não implicava que tivesse que se privar de ameaçar.
Stevens inclinou a cabeça.
– Me perdoe, Excelência. Essa mulher não é nada, cometi um engano. Não tinha me ocorrido que se
interessasse por alguém que está tão abaixo de você.
– Que sentido teria ser duque se não o fizesse? – A pergunta saiu sem pensar, mas Robert não a teria
retirado embora tivesse podido.
Stevens piscou confuso e Robert moveu a cabeça. Era uma loucura dar tanto poder a um homem e não
ter expectativas sobre como o utilizaria. Podia esmagar à senhorita Pursling com uma frase.
Possivelmente, inclusive, poderia esmagá-la com seu silêncio. Mas isso não estaria certo.
– Excelência – disse Stevens por fim. – Essa preocupação pelos outros lhe honra.
Tais lisonjas, em troca, não honravam nada a ele.
Robert o olhou aos olhos.
– Não, não é certo. Chama-se decência básica. E não mereço elogios por fazer o que deveriam fazer
todos os homens.
Stevens se encolheu visivelmente e levou uma mão à fronte. Uma fronte pegajosa, a julgar pelos
rastros de dedos que deixou nela.
– E agora – Robert ficou em pé, – se me desculpar, há outras pessoas com as quais devo falar.
Cruzou a sala muito consciente de levar os olhos de Stevens cravados nas costas. Tomou nota
mentalmente de que teria que vigiar a aquele homem.
CAPÍTULO 5

– LYDIA – DISSE Minnie, QUE IA CORRENDO pelo corredor. – Lydia espere! O que está fazendo?
Lydia se deteve com os braços colados aos lados e os punhos apertados.
– Vou subir – não se voltou. – O que te parece?
Minnie chegou a seu lado.
– Não é muito tarde. Volta lá e peça desculpas. Stevens te perdoará, estou segura.
– Pois eu não o perdoarei – retrucou Lydia. – Me contou os rumores mais vis sobre ti, que não é filha
legítima. E esse canalha me diz isso!
Minnie lhe pôs as mãos nos ombros.
– Lydia, me escute. Volte e se desculpe. Diga que sente muito. Diga que te equivocaste. Diga que
bebeste muito ponche e tenho certeza de que voltará a te aceitar.
– Pois eu não – Lydia golpeou o chão com o pé. – Não o farei. Não estarei com um homem que pode
falar assim de minha amiga mais querida. Não me casarei com alguém que pode rir disso e espera que eu
concorde com a cabeça. Não o farei.
– Sabe o que acontecerá quando seu pai morrer. Seu irmão herdará a fábrica e…
– Eu terei minha parte – Lydia ergueu o queixo.
Minnie sabia que não seria suficiente para viver disso. E depois de ter terminado sua relação com
Stevens de um modo tão pouco civilizado, seria improvável que encontrasse outro noivo. Além disso…
– E se a próxima vez o rumor for sobre ti? – insistiu Minnie.
Não foi necessário que especificasse sobre o que seria o rumor. O segredo de Lydia sabiam muitas
pessoas. O doutor que a tinha diagnosticado.
Qualquer um que a tivesse visto em Cornwall durante aqueles meses horríveis. Lydia, como ela, vivia
também com o risco de uma desonra pública.
– O que importa quem saiba? – perguntou Lydia, afastando a vista. – Ao que parece, a verdade não é
óbice para que haja rumores. Stevens está espalhando esse vil rumor sobre ti.
Explicar a fonte desse rumor suscitaria perguntas que Minnie não podia responder. Perguntas tais
como por que não havia registro do nascimento de Wilhelmina Pursling. Ou qual tinha sido seu nome
anterior e por que tinha sido necessário trocá-lo.
Minnie moveu a cabeça.
– Meus pais estavam casados, isso posso lhe assegurar – isso e nada mais. – Mas Lydia, não podemos
desprezar assim seu futuro. Vais renunciar a um prometido apenas porque disse algo que não gostou?
Ninguém é perfeito.
Lydia rodeou o corpo com os braços e moveu a cabeça.
– Como pode perguntar isso? Como poderia guardar silêncio?
– Mas ele era… – murmurou Minnie. – Você disse…
Lydia havia dito que Stevens a faria feliz. Havia-o dito uma e outra vez, como se tentasse convencer-
se a si mesma. Lydia era assim. Acreditava o melhor das pessoas. Desejava que todo mundo fosse feliz.
Era capaz de encontrar o lado bom em todas as situações.
– Às vezes – disse, – alguém se vê forçada a tomar decisões. Se algo parecer inevitável. Se, por
exemplo, for um homem que pode ajudar a meu pai. Se for um homem decente e gostasse… E não parecia
que fosse encontrar nada melhor. Tem sentido – franziu o cenho com ferocidade. – Tinha sentido –
retificou.
– Pois volte e peça desculpas.
O rosto de Lydia se endureceu.
– Depois do que disse de ti? Disse-me que não deveria estar contigo. Não posso acreditar que este
mundo seja tão cruel para exigir sacrificar minha amiga mais querida para poder fazer um bom
matrimônio.
“Oh, Lydia!”. O coração de Minnie doía por sua amiga. Apesar de tudo o que lhe tinha ocorrido,
seguia pensando assim.
– Pode ser tão cruel, sim – sussurrou. E porque sabia quão cruel podia ser, acrescentou: – E é.
– Não é – Lydia abraçou a sua amiga e a atraiu para si. – Não deixarei que seja.
Minnie quase se permitiu deixar-se enganar pelo calor desse abraço. Quase.
Algum dia…
Algum dia Lydia descobriria tudo o que Minnie lhe tinha ocultado. Sua amizade não poderia
sobreviver a isso. Não seria a verdade do que tinha ocorrido o que destruiria sua amizade, a não ser o
fato de que o tivesse ocultado todos esses anos. De que tivesse sido depositária dos segredos mais
escuros de sua amiga e de que guardou o seu para si.
A questão não era se deixariam de ser amigas. A questão era quando ocorreria isso. E, entretanto,
Minnie tinha sido incapaz de renunciar a ela. Lydia era carinhosa, feliz e cheia de esperança. E às vezes,
apesar da inclinação de Minnie pela lógica, sua amiga conseguia lhe contagiar com seu otimismo.
Às vezes acreditava que seriam felizes. Acabariam-se os medos pelo futuro. Tudo sairia bem e
seriam sempre amigas.
De todas as fantasias tolas que Minnie poderia haver-se permitido, aquela era a que lhe tinha mais
introjetada, a que nunca podia abandonar de tudo. Por isso abraçou a sua amiga e rezou para que a vida
não lhe desse razão muito cedo.
– E então? – perguntou Lydia. – O duque de Clermont falou muito tempo contigo. – O que te disse?
– Nada – mas Minnie sorriu a contra gosto. – Nada.
Absolutamente nada.


A MORADIA, SE, SE PODIA chamar assim, e Robert não estava seguro de que merecesse esse
nome, era um verdadeiro antro. O pouco gesso que restava na parede da única sala estava rachado e sujo
de fuligem. O aposento cheirava a vinagre amargo e a couve rançosa. A cadeira em que se sentava estava
muito perto do chão, como se tivesse quebrado uma perna e tivessem cortado as demais para deixá-las no
mesmo nível. Se, se movia muito para qualquer dos dois lados, a cadeira rangia e oscilava. Aquela casa
sórdida representava tudo o que o pai de Robert fez de mal em Leicester, e ele tinha ido ali para arrumá-
lo.
Tinha demorado muito tempo em tentá-lo. Mas em sua defesa podia aduzir que fazia pouco tempo que
tinha descoberto o que tinha se passado.
Em frente dele, o habitante da casa, um homem magro que tossia muito e respondia pelo nome de
Finney, envolvia-se bem em sua jaqueta.
Botas Graydon – Finney se voltou para trás em seu assento e olhou para o teto. – Esse é um nome em
que não me permiti pensar em anos.
Deixei de trabalhar para eles em cinquenta e oito, não?
– Isso é o que diz o registro – retrucou Robert.
O homem o apontou com seu cachimbo.
– E você me diz que, depois de tantos anos, depois de que Botas Graydon desapareceu faz quase uma
década, há um ricaço que quer me dar uma pensão. A mim.
Robert assentiu.
– Senhor Blaisdell. Passei quatro meses no cárcere. Isso arruinou minha saúde, mas minha cabeça
ainda funciona. Não acredito nisso, não senhor. Com certeza há algum truque.
Não havia truque. O avô de Robert tinha dado a fábrica a seu pai como parte do trato. Seu pai, que
não entendia nada de indústria, tinha entregue a fábrica a um capataz e lhe tinha ordenado que lhe tirasse
todos os benefícios que pudesse. Robert tinha descoberto o lugar revisando os arquivos de seu avô de
décadas atrás. Nos livros de seu pai, sempre incompletos, não aparecia.
– Senhor Finney – explicou. – Não lhe digo que Botas Graydon vá dar uma pensão. Isso seria
absurdo. A organização benéfica a que represento esteve investigando as ocorrências daquele ano e
decidiu que foi injustamente encarcerado.
– Eu levo anos dizendo o mesmo.
– De fato, Leicester tem uma história curiosa a esse respeito – prosseguiu Robert. – Sabia que na
última década se condenou a mais pessoas por rebelião criminal em Leicester que em todo o resto da
Inglaterra junto?
Até onde Robert sabia, isso também tinha começado o capataz de seu pai e não se acabou com o
afundamento da fábrica.
– Aqui dizemos o que pensamos.
Robert pôs os papéis na mesa.
– Dizer o que pensa apenas é ilegal se com suas palavras pretende criar animosidade contra o
Governo. Não contra seus patrões, contra o Governo.
A princípio, Robert só tinha querido tentar emendar o que seu pai tinha destruído. Mas quanto mais
investigava, mais encontrava. Tinha terminado por investigar os arquivos desses julgamentos, e estava
claro que aos jurados não lhes tinham explicado claramente a lei.
– Não deveriam havê-lo condenado apenas por organizar um sindicato.
Finney o olhou. Negou com a cabeça.
– Tem razão. Mas os patrões conseguem o que querem. Eu não quero me colocar mais nisso. Estou
muito ocupado com a cooperativa.
Nesse momento se abriu a porta da casa e apareceram duas mulheres na soleira. Uma delas, anciã e
magra, embelezada com um vestido largo marrom, levava um saco com comida. Empurrou para trás o
gorro amarelo que lhe escorregava na cabeça e fez um gesto a sua acompanhante.
– Eu apenas digo que não acredito que funcione.
Sua companheira era a senhorita Pursling. Parecia a viva imagem da severidade, com o cabelo
castanho e cor mel recolhido em um coque apertado e só uns poucos cachos soltos no pescoço.
As duas mulheres estavam totalmente absortas uma na outra.
– Senhora Finney – disse a senhorita Pursling. – Falei com todos os farmacêuticos da cidade. Você é
minha última esperança.
A senhora Finney tirou o xale.
– Mas a cooperativa vende comida, não essas outras tolices.
– Mas o anúncio…
– Senhorita Pursling, eu a aprecio, mas como vou levar isso à Junta?
A senhorita Pursling baixou a vista.
– Você não sabe como vão se esquivar os outros membros da Comissão se fracasso nisto – tinha um
ar muito manso, com a cabeça inclinada e as mãos unidas. – Por favor.
– Bom – a senhora Finney deixou seu xale na mesa da entrada. – Suponho que poderia dizer algo.
– Obrigado – repôs a senhorita Pursling. – Obrigado.
Nesse momento interveio o marido da primeira.
– Senhora Finney – chamou. – Temos visita. E não vais acreditar no que diz.
As duas mulheres se voltaram para eles. A senhorita Pursling olhou para Robert. Abriu muito os olhos
e retrocedeu um passo.
– É um cavalheiro de Londres – disse o senhor Finney. – Senhor Blaisdell, minha esposa. E a
senhorita Pursling. É um advogado, acredito.
A senhorita Pursling não piscou ao ouvir isso.
– Um advogado – repetiu. – Que curioso senhor Blaisdell!
– Simplesmente represento a todos – comentou Robert.
O senhor Blaisdell diz que há um fundo que estabeleceu pensões para homens que se dedicaram aos
sindicatos e que se encontram em apuros por isso – o senhor Finney riu.
Sua esposa franziu o cenho.
– E o que é o que querem de nós? – olhou a seu redor. – Vivemos os dois sós nesta casa grande e
temos carne na mesa três vezes à semana. Não estamos tão mal.
Robert piscou ao ouvir isso e olhou a seu redor, tentando ver o lugar com os olhos dela. Não estavam
tão mal?
– Ofereceram-me uma pensão – Finney voltou a rir. – Para mim. Quando o único que fiz por Botas
Graydon foi conseguir que ninguém fosse trabalhar quando Jimmy morreu por envenenamento.
Robert afastou a vista. Uma das primeiras iniciativas do capataz tinha sido substituir o método
original de tingir as botas de negro com uma fórmula que era mais barata, mas muito mais perigosa para
as pessoas que tinham que colocar as mãos nela diariamente. O dinheiro não podia compensar por aquilo,
mas ele tinha que tentá-lo.
– Sim – disse. – E já lhe expliquei que não é por seu trabalho em Botas Graydon, mas sim por sua
experiência no sindicato.
Finney moveu a cabeça com tristeza.
– Você é jovem. Não entenderia. Aprendi a lição de que tinha que ficar em meu lugar. Acabaram-se as
greves. E acabou o associar-se com essas coisas. E menos agora. Disseram-me que o duque de Clermont
está na cidade.
– É verdade – interveio a senhorita Pursling.
Finney cuspiu no chão.
– Tudo começou quando ele comprou Botas Graydon – lhe tremeram as mãos, amareladas pelos anos.
– Mais horas de trabalho por menos pagamento. Logo chegaram os fura greves e as condenações. Esse
homem é uma besta e eu nunca…
– Nathan Finney – o interrompeu a senhora Finney. – É perigoso falar assim. Já lhe separaram de mim
uma vez. Não aprendeu a pensar antes de falar?
– Não, não – disse Robert. – Por mim não tem que conter a língua. Eu estou de acordo.
A senhorita Pursling se aproximou dois passos a ele.
– Está senhor?
Sem dúvida pensava que sua presença ali se devia a um capricho.
Robert se voltou para olhá-la.
– Revisei os arquivos do que fez Clermont – disse com suavidade. – É tão ruim querer emendar as
coisas?
Ela afastou a cabeça.
– Eu apenas questiono seus métodos – franziu levemente o cenho. – Seu motivo… ainda não o
compreendo.
– Mas meu motivo é simples. Acredito que os nobres não merecem seus privilégios – repôs Robert. –
Têm o direito para serem julgados na Câmara dos Lordes. Pense, senhor Finney, no que teria significado
isso para você. Os lordes jamais teriam ouvido um caso de rebelião criminal apoiado nas provas
apresentadas contra você. A lei é muito clara e eles protegeriam aos seus.
– Muito certo, muito certo – assentiu Finney.
Robert olhou à senhorita Pursling.
– Acredito que se o duque de Clermont, por exemplo, escrevesse santinhos dizendo o que disse
Finney em 58, ele poderia dizer a verdade e ninguém poderia detê-lo com ameaças de cárcere apoiados
em uma perversão da lei.
A senhorita Pursling inclinou a cabeça para um lado.
– Sério?
Finney assentiu.
– Tem muita razão, senhor Blaisdell.
– Mas os nobres usam esse privilégio, não para dizer a verdade a não ser para ocultá-la. Pense,
senhor Finney. O que faria você se tivesse um lugar na Câmara dos Lordes?
– Eu sentado com os lordes? – Finney riu. – Isso eu gostaria de vê-lo.
– A mim também – respondeu Robert. – Se eu tomasse parte no Governo desta nação, não perderia
tempo protegendo meus privilégios e interesses. Não. Encontraria todas as falhas que tem a lei e que
permitem que pessoas como Clermont envenenem seus operários e em seguida os castiguem quando se
queixam disso. E erradicaria todas essas falhas.
A ele mesmo surpreendeu a veemência de suas palavras.
– Isso sim é rebelião – interveio a senhora Finney. – E será melhor que não diga essas palavras por
muito seguro que creia estar. É jovem, senhor Blaisdell. Todos fomos jovens. Mas respire fundo e
esqueça esse modo de falar. Não fará nenhum bem a ninguém – olhou à senhorita Pursling com
nervosismo. Além disso, senhorita Pursling, você não viu o duque de Clermont? Você se move às vezes
nesses círculos.
O senhor Finney se afundou mais em seu assento. Parecia envergonhado.
A senhorita Pursling afastou a vista de Robert.
– Sim, o conheci.
– E como é esse velho estúpido? – perguntou Finney. – Porque espero que…
– Silêncio – interveio sua esposa.
– Acredito que este é o filho do velho – disse a senhorita Pursling. Finney fez um gesto com a mão no
ar.
– Se tiver visto um duque, viu-os todos. Não tenho razão, senhor Blaisdell?
Robert não respondeu. Observava à senhorita Pursling, que não tinha mostrado nenhuma emoção
quando falava dele. Nem sequer tinha enrugado a testa pensativa.
Ela moveu a cabeça.
– É alto, rico e atrativo. Essas coisas não chegam a ser boas para a personalidade de um homem.
Robert fez uma careta.
Mas ela não tinha terminado.
– Duvido muito que entenda o que significa ser um homem trabalhador e suspeito que em sua vida
sempre conseguiu o que queria apenas pedindo.
Era um julgamento duro, e o fato de que fosse verdade o fazia ainda mais duro. A Robert custava ficar
quieto no assento.
– Os homens que só conheceram bons tempos, frequentemente não podem compreender os tempos
duros – continuou ela.
Era incrível quanto podia ferir a verdade. Robert nem sequer podia zangar-se com ela. Ele havia dito
o mesmo.
– E, entretanto…
Ela se interrompeu movendo a cabeça, e Robert inclinou para frente, desesperado por ouvir o que ia
dizer a seguir.
– E, entretanto – repetiu ela sem olhar nenhuma só vez em sua direção, – acredito que não se parece
nada a seu pai. Não sei o que pensar dele.
Robert se sentiu colado à cadeira, incapaz de mover-se. Ela não o havia olhado nem tinha elevado a
voz. Mas suas palavras, pronunciadas quase em um sussurro, tinham sido uma bênção.
“Não se parece nada a seu pai”. Exalou o ar entrecortadamente.
– E você contará esta conversa aos magistrados, senhorita Pursling? – perguntou.
– E envolver os Finney? Acredito que não – ela mordeu o lábio inferior. – Me diga, senhor Blaisdell.
Essa associação benéfica a que representa, oferece pensões a todos os que trabalharam em Botas
Graydon?
A todos não. Para começar, muitos não acreditariam. Além disso, a metade tinha morrido e outros
partiram da cidade.
– Aos que foram tratados injustamente – repôs Robert, afastando a vista.
– Senhora Finney – disse a senhorita Pursling, – agradeço-lhe muito que tenha concordado a
apresentar a proposta ante a junta da cooperativa.
– É obvio – respondeu a outra mulher.
– Senhor Finney. Senhor Blaisdell – a senhorita Pursling inclinou a cabeça, tocou as saias com uma
pequena reverência e se retirou.
Robert a tinha considerado pouco atrativa vista assim, com a cabeça e a voz baixa. Mas já não.
Algumas mulheres resplandeciam com luz e energia. A senhorita Pursling lhe recordava a primeira luz do
amanhecer que penetrava por debaixo da porta depois de uma longa noite. Possuía uma graça calada,
como um tigre passeando em sua jaula. Havia majestade nas garras que não se usavam, nos músculos
preparados para uma ação que nunca chegava. Uma besta enjaulada possuía uma beleza sombria.
Ele queria vê-la livre dessa melancolia. Queria que ela o olhasse com seus olhos inteligentes e lhe
dissesse que não era como seu pai, que ele nunca seria seu pai.
O que se interpunha entre eles se tornou imensamente simples e também, de repente, muito
complicado.
“Não se parece nada a seu pai”.
Queria lhe ouvir repetir isso e queria que ela acreditasse de verdade.
CAPÍTULO 6

ESSA NOITE, O SONHO de Robert, como tantos outros nesses dias, esteve carregado de desejo
sexual.
Em seu sonho tinha a Minnie onde a tinha conhecido: atrás do sofá da biblioteca do Conselho, com as
cortinas ocultando-os à vista de todos. Mas essa vez, em vez de escutar a conversa de outras pessoas,
ouviam o murmúrio gentil das ondas do oceano. Nenhum dos dois comentou a raridade de ouvir o mar na
biblioteca. Robert não usava nenhuma roupa e ela estava nua até a cintura. A versão sonhada de Minnie
lhe sorria com um encanto convidativo. Seu cabelo cor marrom mel ia solto e lhe caía em cachos sobre
os ombros, emoldurando os seios nus e os mamilos rosa profundo. Esses mesmos seios roçaram os
joelhos de Robert quando ela se ajoelhou diante dele e introduziu todo o pênis na boca.
Para Robert, os detalhes de seus sonhos eram terrivelmente vagos. Não podia sentir o calor úmido da
boca dela nem a pressão da língua. Apenas percebia o fogo de sua luxúria ardente e uma apagada
sensação de desejo. Mas ao menos nos sonhos não tinha que preocupar-se da moralidade nem das
consequências. Nos sonhos só estava a verdade física do desejo, e essa o tinha bem agarrado.
Em seu sonho ela era muito habilidosa. Sabia embora não pudesse senti-lo. Por muito que se movesse
e que tentasse abraçá-la, não conseguia chegar a tocá-la. Apenas sentia a força de seu desejo crescendo
com cada carícia. Só havia luxúria e mais luxúria.
– Por Deus, Minnie! – dizia-lhe no sonho. – Dê-Me o que quero.
Mas em vez de acariciá-lo com mais força ou de mover-se para que pudesse penetrá-la, a Minnie do
sonho o olhou e se sentou nos calcanhares.
– Se insiste – disse com um sorriso sedutor. Inclinou-se e, de repente, como aconteciam essas coisas
nos sonhos, sussurrou-lhe ao ouvido: – Sei quem é.
A surpresa foi tão grande que despertou. Piscou sonolento. Era de noite e reinava o silêncio. Seu
quarto estava às escuras. Embora tivesse afastado a maior parte das mantas durante o sonho, tinha a
sensação de estar ardendo de febre. Seu pênis estava muito duro e seu corpo se estremecia pela tensão e
exigia alívio. E ele não podia afugentar a imagem do sonho. A senhorita Pursling nua, com o cabelo
caindo pelos ombros e olhando-o com um sorriso brilhante.
Santo céu!
Tinha pensado que seria difícil explicar a seus amigos o que via nela. Não era bonita no sentido
clássico; nem sequer era chamativa. E embora sua figura estivesse bastante bem, Robert sabia que havia
melhores.
Possivelmente era simplesmente que a primeira vez que ela o tinha visto, não tinha visto um duque,
mas um homem que escrevia santinhos radicais.
“Sei quem é”.
Robert levou a mão esquerda a sua ereção.
Acreditava na moderação. Decidira não imitar a seu pai. Negava-se a ser o tipo de homem que
possuía a uma mulher só porque gostava. Mas havia vezes em que desejava sê-lo. Desejava sê-lo com
todas as fibras de seu ser.
Afastou os lençóis que o cobriam ainda e deixou que o ar frio tocasse sua pele. Não serviu de nada.
Isso, em si mesmo, nunca servia de nada. Baixou a mão pelo pênis muito devagar e foi adotando um
ritmo familiar. Pensou no sonho. Em Minnie de joelhos, Minnie sorrindo-lhe quando fechava os lábios em
seu membro. Acariciou-se com movimentos curtos e bruscos, que foram voltando-se mais rápidos e
urgentes até que chegou o momento do clímax.
E nesse momento imaginou que Minnie lhe dedicava aquele sorriso aberto e espontâneo e lhe dizia
que sabia quem era. Robert mordeu o lábio para resistir ao prazer selvagem que o embargou.
Demorou um momento em recuperar o sentido comum e admitir que estava em uma situação em que
tinha fixação por uma pessoa. Aquela não era a primeira vez que tinha sonhado com ela. Tampouco era a
primeira vez que despertou em um frenesi de luxúria e se masturbou. Imaginava possuindo-a contra a
parede e na cama. A beleza da masturbação era que sempre conseguia o que queria e como o queria. Não
sofria ninguém e não tinha consequências.
“Sei quem é”.
Olhou a escuridão da noite. É obvio, tinha sido apenas um sonho. Nos sonhos aconteciam coisas que
não tinham relevância na realidade. Se seus sonhos tivessem algo de verdade, faria anos que o teriam
expulsado da companhia das pessoas decentes. Não obstante, os sonhos frequentemente serviam como
alavanca para sua luxúria. Despertava aquecido, recordava imagens do sonho enquanto se provocava o
orgasmo, e a combinação de seu sonho e seus esforços aliviava o pior de suas frustrações.
Mas não havia orgasmos suficientes no mundo que pudessem aliviá-lo do desejo que o enchia por
dentro naquele momento. Até então tinha tido a sensatez de deixar-se levar por desejos que podia
satisfazer facilmente. E não havia motivos para mudar isso.
“Sei quem é”.
Olhou a escuridão e desejou esquecer aquelas palavras, mas ficaram flutuando a seu redor. Umas
palavras não pronunciadas e que, entretanto, ressonavam em seus ouvidos.
Ela acreditava que ele não era como seu pai. E Robert queria que soubesse quem era. E queria
conhecê-la por sua vez.


Apesar de SEUS ESFORÇOS, passou uma semana até que voltou a ver a senhorita Pursling, e foi em
um encontro que teve que organizar ele mesmo.
Fez um donativo de cem libras à Comissão de Higiene dos Operários. Isso o convertia em um de seu
mecenas, e não teria sentido ver como se gastaria seu dinheiro?
A Comissão não se reunia em uma respeitável sala privada do Hotel Três Coroas, nem na sala
dianteira do pub O Sino. Reunia-se nos subúrbios da cidade velha, em um lugar decrépito chamado
Hospedaria Cabeça de Cavalo.
Robert chegou dez minutos depois da hora assinalada e não chamou a atenção de ninguém, pois entrou
na sala atrás de uma donzela. A mulher se movia pela sala com ar competente, enchendo as xícaras das
damas com o que parecia água de cevada, servindo cerveja aos cavalheiros e limpando as inevitáveis
gotas derramadas com um trapo grande e sujo que pendurava do cinturão de seu avental.
Ninguém lhe dava atenção; todos estavam absortos na conversa.
Robert se aproximou da parte de trás e se sentou em uma cadeira.
Aquela Comissão não só se reunia em um lugar estranho, como também sua composição era
surpreendente. Robert tinha sido membro de muitas juntas benéficas para saber o que podia encontrar
nelas: a uns quantos ricos, aos quais tinham pedido por seu dinheiro e seus contatos, mais que por seus
conhecimentos; e a umas quantas pessoas de carreira. E ali havia um homem de que recordava que era
doutor. Estava o capitão Stevens; é obvio, também a senhorita Pursling, sentada ao lado de uma senhora
mais velha de ar rico. Eles pertenciam ao tipo de pessoas que estava acostumado a haver nas juntas das
organizações benéficas. Mas ao outro lado da mesa havia uma moça, possivelmente da idade da senhorita
Pursling, embelezada com uma blusa de trabalho. A seu lado havia um homem mais velho, grisalho,
vestido com um traje antigo remendado. Um assento mais à frente havia uma mulher gorda com vestido de
lã negro de decote alto e pescoço negro postiço, a classe de uniforme que a identificava como
pertencente ao serviço doméstico. A metade dos assistentes pareciam ser da classe operária.
Robert nunca tinha visto uma organização benéfica como aquela.
Escutou com interesse.
Stevens movia a cabeça naquele momento.
– Nos preocuparemos disso mais tarde – disse. – Senhorita
Pursling, tem o relatório sobre o desinfetante?
A interpelada assentiu. Estava de costas para Robert e ele podia ver os cachos de seu cabelo lhe
roçando o pescoço. Aqueles seus cachos eram interessantes, diferentes aos cachos em forma de salsicha
que criavam esmeradamente as donzelas com ferros. Esses eram uma farsa: muito parecidos com um
saca-rolha, muito selvagens. Suspeitava que o cabelo da senhorita Pursling tinha um cacho natural que
nenhum ferro podia domar curvando-o de um modo regular.
– A junta da Cooperativa se reuniu ontem à noite – teve que prestar atenção ao ouvi-la. A voz dela era
clara, mas baixa. – Concordaram em vender o desinfetante a preço de custo, sempre que mencionarmos a
Cooperativa no folheto. Ao final se convenceram de que a publicidade era compensação suficiente.
Um modo estranho de dizer aquilo. “Ao final se convenceram”. Outra pessoa haveria dito: “Eu os
convenci”, e se teria atribuído o mérito. Robert cruzou as mãos.
Quão único podia ver dela era a parte de trás da cabeça, a forma encantadora da cintura e a leve
curva do quadril, antes que a crinolina e o tecido tampassem todas suas curvas naturais. Enquanto falava,
virou a cabeça. Seguia sem poder lhe ver a cara totalmente. Não lhe via os olhos, só a bochecha e a
cicatriz. Ela tinha posto os óculos e lia os papéis que tinha diante.
Robert tinha pensado nela na última semana. Tinha pensado tanto nela que já não se deixava desalentar
por sua fala baixo ou seu olhar caído. Por improvável que parecesse, a senhorita Pursling tinha
convencido a todos os dali de que ela não era quase nada. Sua verdadeira competência parecia ser um
segredo íntimo entre eles dois.
– E qual será o custo da solução desinfetante? – perguntou uma das garotas trabalhadoras. Sua voz era
normal, mas depois da voz da senhorita Pursling, soava quase muito alta.
– Um xelim por garrafa. Se, se usar com bom senso, essa quantidade deverá durar um mês inteiro em
uma casa de seis ou sete pessoas. Senhorita Peters, isso é uma soma razoável para uma família operária
ou devemos procurar um modo de subvencionar mais o custo? – a senhorita Pursling inclinou a cabeça
em direção a mais jovem das garotas trabalhadoras.
A garota olhou uma caderneta e passou páginas.
– Humm – respondeu. – Isso deve ser suficiente.
– Tolices – interveio Stevens. – Como já disse, tudo isso são tolices. As instruções sobre a
desinfecção, a solução, os folhetos – olhou com dureza à senhorita Pursling. O seu foi um olhar que
denotava que não tinha feito caso da advertência de Robert e que seguia pensando mal dela.
– Não podem ser tudo tolices – disse a senhorita Peters. – Depois de tudo… – Robert se inclinou
para diante. Stevens golpeou a mesa com a mão.
– Se esses operários rebeldes vacinassem a seus filhos como exige a lei, não haveria necessidade de
desinfetantes.
O homem de tweed remendado se levantou de um salto.
– Que me condenem se for deixar que um vacinador coloque em meus filhos injeções feitas de alguma
enfermidade.
– Minha mãe se vacinou e morreu na semana seguinte.
A mulher gorda se inclinou sobre a mesa.
– Eu fiz com que meu Jess se vacinasse e mesmo assim adoeceu da varíola e perdeu a vista. O caso é
que tinha terminado a vacina quando chegamos, assim o vacinador usou álcool e cobrou o mesmo.
A metade das pessoas sentadas à mesa se pôs em pé e olhavam mal para o capitão. Uma palavra
equivocada e podia explodir a violência.
Nessa atmosfera tensa, a senhorita Pursling ficou rígida e com as costas muito retas. Tocou a cicatriz
do rosto com uma mão; roçava-a como se fosse um talismã contra maus presságios.
– Stevens – disse um homem com voz de tenor. – Asseguro que eu tenho tanto interesse pelas vacinas
como você.
Era um homem moreno que estava sentado perto do pé da mesa. Era o doutor Grantham, um jovem
que tinha um consultório no Belvoir Street. Suas palavras relaxaram a tensão e a senhorita Pursling
lançou um pequeno suspiro e se recostou no respaldo da cadeira.
Grantham brincava com sua caneta-tinteiro.
– Mas em meu consultório aprendi que tenho que tratar a quão pacientes tenho, não aos que eu
gostaria de ter. Stevens jogou faíscas pelos olhos.
– O que significa isso?
Grantham encolheu os ombros.
– Eu gostaria de ter pacientes que comessem carne e verduras em todas as refeições, tivessem água
limpa para lavar-se e janelas em todos os cômodos. Pacientes que não tivessem que encurvar-se para
trabalhar – enquanto falava, golpeava seus nódulos com a caneta. – Encurvar-se é mau para as costas e
para os órgãos internos – encolheu os ombros. – Eu gostaria de ter pacientes que ganhassem o dobro nas
fábricas. Mas tenho quão pacientes tenho.
– Bem dito, doutor – murmurou a viúva.
– Deixá-los tomar essas decisões por si mesmos conduz a ideias de autogoverno – vaiou Stevens. –
Que fazem suas próprias regras. Quando nos dermos conta, teremos outro episódio dos cartistas para
reprimir. As pessoas falam já de votar. Esta cidade é um barril de pólvora de descontente e vocês estão
agitando uma tocha – a julgar por seus gestos, Stevens implicava não só Grantham, mas também à
senhorita Pursling. – Este modo de falar lhes dá ideias.
Grantham sorriu e se inclinou para diante.
– Sabe que durante meu treinamento médico aprendi que todas as pessoas têm cérebro? Até os
mendigos e os operários. Não necessitam que um rico lhes dê ideias. Eles as têm sozinhos.
– Cavalheiros – a senhorita Pursling golpeou a mesa com os nódulos; era o primeiro som forte que
fazia. – Devemos deixar para depois a questão das vacinas. O tema atual é o desinfetante. E quero
recordar aos dois que esse desinfetante ajuda a prevenir a cólera e a gripe, duas enfermidades contra as
quais não podemos vacinar.
– Ah, senhorita Pursling – murmurou Grantham. – É muito próprio de você utilizar os fatos para
resolver disputas.
A senhorita Pursling nem sequer piscou, mas Robert acreditou ver que se sentia incômoda com aquele
reconhecimento.
– Então está resolvido – respondeu ela. – Marybeth Peters e eu repartiremos os santinhos.
– Duas mulheres caminhando sozinhas pelas ruas? – interveio Stevens. – Me parece que não.
– Se for por isso – apontou Grantham, – eu também irei. E senhorita Pursling, possivelmente possa
trazer sua amiga, a senhorita Charingford, não?
Essa devia ser a mulher que tinha batizado Stevens com sua bebida. Depois dessa insinuação, o
capitão ficou com a cara tão vermelha como o ponche que tinham jogado nela mais de uma semana atrás.
– Os três repartindo folhetos sobre a Cooperativa? – fez uma careta de desdém. – Não permitirei essa
reunião de radicais em minha cidade e diante de meus narizes. Não, eu as acompanharei. E diga à
senhorita Charingford que fique em casa, onde deve estar.
– Posto que tem medo de uma mulher – repôs Grantham com suavidade, – duvido que possa oferecer
o amparo que requerem as damas. Irei eu.
– Vá ao inferno – grunhiu Stevens. – De fato, ao inferno com toda esta…
– Irei eu – disse Robert.
Todos se voltaram para olhá-lo. A senhorita Pursling abriu muito os olhos. O doutor Grantham o
olhou com curiosidade. Mas Stevens ficou muito pálido.
– Suponho que não me atribuirá tendências radicais, verdade, Stevens? – perguntou Robert.
– Excelência – Stevens ficou de pé. – Claro que não, Excelência.
Mas não queremos lhe causar incômodos. E… e o que faz aqui? Robert fez um gesto com a mão no ar.
– Não é incômodo. Assim terei ocasião de ver a cidade a pé.
A senhorita Pursling lhe lançou um olhar de recriminação.
– A senhorita Pursling tomou a responsabilidade de convencer à Cooperativa para que fizesse esse
desinfetante a bom preço – disse Robert. – Para mim seria um prazer ver que todo esse trabalho se
aproveitou.
A aludida parecia envergonhada de ver reconhecidos seus méritos com tanta claridade.
– De acordo – assentiu o doutor Grantham.
– De acordo – grunhiu Stevens.
Depois disso, apenas restava arrumar os detalhes com a senhorita Pursling. Esta lhe lançou um olhar
venenoso e depois fixou a vista na distância e cruzou as mãos. Durante o resto da reunião, não voltou a
olhar em sua direção, nem sequer com recriminação. Tampouco o fez quando se levantaram e começou a
recolher suas coisas.
Robert se aproximou dela antes que tivesse oportunidade de desaparecer.
– Envio uma nota para fixar o momento apropriado para distribuir os folhetos? – perguntou.
Ela seguiu sem olhá-lo. Guardava papéis e um lápis em uma bolsa estreita.
– Como queira, Excelência.
– Ou poderíamos decidi-lo agora.
– Se o desejar, sim, Excelência – respondeu ela.
Mostrava a Robert seu perfil no lado da cicatriz. Objetivamente, Robert sabia que a cicatriz era o
tipo de falha na simetria que faria com que muitos homens afastassem a vista para não ver essa marca.
Mas não lhe incomodava. Ela a usava como uma máscara em um baile, como se quisesse utilizá-la para
afastá-lo.
– Estarei fora da cidade nos próximos dias – disse ele. – Aceitei acompanhar a meu primo a… Bom,
isso não importa. A senhorita Pursling agachou a cabeça.
– Como desejar, Excelência. De todos os modos, demorarão uns dias em imprimir os folhetos.
– Digamos na quinta-feira?
– Quando melhor venha a você.
– Nesse caso, fiquemos às duas da manhã – sugeriu ele. – Quando saem os ursos para brincar.
Ela sim o olhou então; lançou lhe um olhar rápido de fúria que reprimiu quase imediatamente. Robert
suspirou. Aquela mulher fazia todo o possível por não chamar a atenção. A voz fraca e o modo de infra
valorizar seus lucros tinham esse objetivo. Ele se perguntou se aquela reticência teria alguma relação
com a cicatriz na bochecha. Além disso, o silêncio dela não era o de uma pessoa que era tímida de um
modo natural, era um silêncio diferente.
– Vamos senhorita Pursling – disse ele. – Você pode fazer melhor que isso. Não me parecia que fosse
das que fazem ameaças vãs.
– Não sei a que se refere – ela se virou levemente. De fato, sim, olhou-o por cima do ombro com
certo desdém.
Robert reprimiu um sorriso.
– Tínhamos um trato – disse em voz baixa, para que não o ouvisse o doutor Grantham, que pegava o
casaco ao lado da porta. – Eu flerto com você e você tenta destroçar minha reputação. Não cumpriu sua
parte. Não me fez nada. Acreditava que era uma mulher que cumpre o que promete.
Ela inclinou a cabeça e o olhou de soslaio.
– Mil perdões, Excelência – sua voz não mostrava nenhuma contrição. – Acaso espera que lhe dê
informações de meus progressos? – enquanto falava, grampeou as fivelas de sua bolsa.
– Supunha que usaria alguns sarcasmos, sim.
Lhe lançou um olhar gelado.
– Está claro que seus padrões não são os meus. Sejam quais forem seus defeitos, eu não os presumo
antes de tempo.
Robert soltou uma gargalhada ultrajada e olhou a seu redor, mas não havia ninguém que tivesse
podido ouvir o comentário dela.
A senhorita Pursling dobrou o folheto de amostra que tinha levado consigo, marcado agora com as
notas da Comissão, e o guardou no bolso da saia.
– Eu não exibo minha estratégia diante de meus inimigos. Isso seria coisa de idiotas.
– O que quer dizer é que ainda não encontrou nenhuma prova.
Ela o olhou nos olhos e moveu a cabeça.
– O que quero dizer é que não estou tão cheia de orgulho tolo para contar tudo o que tenho descoberto
apenas porque você me pergunte de um modo inepto com esse objetivo.
– Uau! – exclamou ele. – Primeiro me acusa de presumir prematuramente e agora de não saber
provocá-la. Compadeça do orgulho de um homem.
Ela sorriu um pouco; adiantou-se e lhe deu uns tapinhas na mão.
– Sinto-o – murmurou com doçura. – Não sabia que seria tão suscetível à flacidez de seu… orgulho –
o disse com uma voz tão insinuante que ele sentiu uma onda de calor. Flacidez era quão último sentia seu
corpo nesse momento.
Ela jogou a bolsa no ombro e se dirigiu à porta. Deu dois passos e se virou para olhá-lo com um
sorriso que atravessou o corpo dele até a virilha.
– Estou segura de que seus atributos são tão grandes como espessa é sua cabeça.
Robert não podia deixá-la partir com aquela despedida condescendente cheia de carga sexual, que o
deixava fervendo de luxúria.
Seguiu-a e lhe pôs uma mão na manga.
– Espere.
Mas ela não o fez e ele se encontrou caminhando atrás e guardando silêncio enquanto atravessavam a
hospedaria e saíam à rua. Quando estiveram à luz do sol e se afastaram o bastante das pessoas para que
ninguém os ouvisse, disse:
– Sei que não descobriu nada. Com a desculpa de conseguir o melhor preço para esses folhetos,
visitou todas as impressoras da cidade procurando provas de que trabalham comigo. E não encontrou
nada.
Ela se deteve então. Inclinou a cabeça e se voltou para ele.
– Vigiou-me – disse por fim.
– Absolutamente. Seria muito sórdido fazer com que a seguissem. Mas pedi a alguns conhecidos de
negócios que me dissessem o que você perguntava – sorriu. – Porque não esperava que você me
informasse de seus progressos.
A senhorita Pursling encolheu os ombros.
– Seria sórdido se fizesse seguir a uma amante por ciúmes. Mas recorde que somos inimigos. É
prudente me vigiar. Aplaudo-o.
Pôs-se a andar de novo e Robert a olhou com regozijo.
Procurava ser sincero consigo mesmo. Tinha que sê-lo, já que pouca gente o era. Seu amigo Sebastian
podia conquistar até às matronas mais estritas da sociedade, e às vezes o fazia. Seu irmão possuía um
engenho afiado combinado com uma facilidade para fazer com que as pessoas se sentissem confortáveis
com ele. Oliver sabia fazer às damas rirem.
Quanto a ele… Quase nunca sabia como responder em uma conversa engenhosa. Às vezes lhe
ocorriam respostas inteligentes… horas depois. Normalmente cometia o pior pecado possível. Dizia o
que pensava. Por isso lhe ocorriam coisas como “Eu gosto de suas tetas”. Não, aquele não tinha sido um
de seus melhores momentos.
– Não – moveu a cabeça e ficou ao passo dela. – Por que temos que ser inimigos? Poderíamos ser…
aliados. Ela o olhou com receio.
– Por quê? Porque precisaria de solteironas meio cegas a seu cargo?
Ele fez uma careta.
A senhorita Pursling franziu os lábios.
– Não responda. Vi-o na casa dos Finney. É evidente que sim.
Robert ignorou essas palavras.
– Porque quando se propôs demonstrar que eu era o autor dos santinhos, começou por fazer uma lista
de todas as impressoras da cidade e depois as visitou sistematicamente. Você tem um sentido de
estratégia e eu valorizo isso.
Ela esfregou o lábio inferior com um dedo enluvado.
– Você não deixa de dizer que não encontrei nada – murmurou. – Equivoca-se. Descobrir que os
santinhos não se imprimiram em Leicester. E só há um suspeito possível que não seja daqui. Acredito que
avancei muito.
Robert piscou. Tinha a sensação de estar perdido naqueles tranquilos olhos cinzas e de não poder
afastar a vista. Ele era um duque e ela era… como se chamava a si mesma? Uma quase solteirona meio
cega. A luta teria que ter sido muito mais desigual.
– Você acredita que, porque identificou um de meus objetivos, já sabe o que faço – continuou ela. –
Mas as perguntas aos impressores eram só um ataque a descoberta.
Estando tão perto dela, Robert podia começar a ver a diferença. Ela seguia com a vista baixa e o ar
tímido e calado, de modo que qualquer um que estivesse a mais de três passos de distância não saberia o
que dizia. Mas havia mais movimento em suas mãos e seus lábios se franziam a ponto de sorrir.
– A que se refere com o de ataque a descoberta?
– É um término de estratégia de xadrez – ela juntou as gemas dos dedos. – Em um movimento se
fazem duas coisas. A primeira é avançar… e o espaço que se passa a ocupar tem um valor. Mas também
se deixa vago o posto que se ocupava antes, com o que se expõe o lado do inimigo a ataques de maior
categoria. Temos que ser conscientes do lugar que ocupamos e do espaço que deixamos atrás.
– Não é que você tenha intuição para a tática – respondeu ele. – Isso soa a treinamento tático. Onde
aprende isso uma quase solteirona meio cega?
Em realidade, onde poderia aprender isso alguma mulher? Mas a senhorita Pursling não pareceu
alterar-se por isso.
– Reuni um montão de papéis que demonstrarão que é o culpado. O que conseguiu você, Excelência?
Fingir que flertava comigo.
Robert piscou, sobressaltado. Ela não o olhava. É obvio, não o olhava. Examinava o chão a seus pés
como se fosse uma mulher pálida e tímida que não se atrevia a olhá-lo nos olhos.
– Fingir? – Robert se sentia quase perigoso. – Você não me olha nos olhos. Dá suas inteligentes
respostas em sussurros. Rechaça qualquer insinuação de que seja uma mulher inteligente. É você que
finge querida. Ela abriu mais os olhos.
– Isso é… isso apenas é aceitar as pressões da sociedade…
– É? Levante à vista, Minnie. Me olhe nos olhos. Deixe que todo mundo nesta rua veja o que os dois
sabemos que é verdade. Não está se inclinando ante mim, está me desafiando. Olhe para cima.
Ela não o fez. Manteve a cabeça teimosamente baixa ante ele. Robert tinha vontade de agarrá-la e
sacudi-la. Queria lhe elevar o queixo e obrigá-la a olhá-lo nos olhos. Queria…
Depois disso queria muitas coisas, nenhuma das quais as ia conseguir pela força.
– Eu não finjo paquerar com você – declarou. – Não há nenhum fingimento nisso. A desejo. Por Deus
que a desejo!
Ela soltou um leve coice e levantou, quase involuntariamente, à vista.
Por um momento, Robert viu algo que acreditou que não era fingido… captou um desejo
desesperançado no modo como ela elevava a cara para ele, uma hesitação em sua respiração
entrecortada. A mulher entreabriu os lábios e de repente pareceu incrivelmente bonita.
Mas logo fechou os olhos e voltou a baixar a cabeça. Sua respiração se fez mais firme; apertou os
punhos dos lados. Moveu a cabeça.
– Tem sorte – disse com amargura. – Tem sorte de poder fazer planos e atuar sem fingir. De poder
desejar abertamente e não ter que guardar isso para que se apodreça em seu interior. Tem sorte de poder
erguer os olhos ao céu sem queimar as asas. E de poder pensar no futuro sem terror.
Começaram a lhe tremer as mãos.
– Eu olhei para cima – continuou ela. Sua voz era um sussurro urgente. – E tenho caído mais do que
você possa imaginar. Assim não me exorte. Apenas quero fingir que isto é suficiente, que posso estar
satisfeita com as migalhas que ficam.
Robert voltou a ter a sensação de um animal grande passeando em sua jaula. Desejou lhe tocar a
bochecha e lhe voltar o rosto para ele. Queria lhe sussurrar que tudo ficaria bem.
– Minnie – foi tudo o que disse.
Ela fez uma careta.
– Não diga meu nome assim. Por favor, Excelência. Se de verdade lhe importar algo, finja que flerta,
mas não o faça de verdade.
– Minnie – repetiu ele. – Quem seria se não dedicasse três quartas partes de sua atenção para
esconder do que é capaz?
Ela negou com a cabeça.
– Não me diga que olhe para cima. Não me peça que deseje. Se o fizer, não sobreviverei – lhe tremia
a voz. A julgar por seu tom, parecia a beira das lágrimas, mas seus olhos estavam secos e limpos. E
cravados no chão.
Robert desejava tomá-la em seus braços e estreitá-la contra si, fazer com que se sentisse a salvo do
que quisesse que fosse o que temia. Se ela tivesse elevado de novo a vista para ele, embora tivesse sido
um segundo, a teria beijado sem lhe importar quem pudesse vê-los.
Minnie não o olhou. Parecia estar procurando aquela calma antinatural a cada respiração.
– Possivelmente Peters esteja me esperando ali adiante – disse ela, com voz tranquila de novo. – Se
me permitir, Excelência.
Não era uma pergunta. Ele não tinha escolha.
Olhou-a afastar-se e voltar a caminhar dentro dos limites de sua jaula.
CAPÍTULO 7

QUANDO Minnie CHEGOU EM CASA, suas tias a receberam na porta, muito nervosas. A razão de
seu nervosismo se fez evidente quando lhe disseram que Walter Gardley esperava na sala. Sozinho.
Gardley. Que inoportuno!
Minnie levou uma mão ao abdômen. Tinha a sensação de que ardia um fogo em seu interior, como se,
se tivesse ficado empanzinada com todas as coisas que lhe havia dito o duque.
“É uma mulher inteligente, brilhante”.
“Olhe para cima”.
“A desejo. Por Deus que a desejo!”.
Não podia aproximar-se de Gardley sentindo-se assim, mas não tinha muita escolha. Se o despedia,
voltaria outro dia. E se não voltasse… Alisou a saia e entrou para vê-lo.
Ele ficou de pé ao vê-la.
– Aí está – disse, como se a tivesse perdido e acabasse de encontrá-la entre as penugens de pó de
debaixo do divã.
Minnie tentou dizer-se que ele não era tão mau. Em geral, não era mal parecido. Apenas tinha uns
poucos anos mais que ela e não dava amostras de perder cabelo.
“É você que finge”, pareceu-lhe que sussurrava o duque a suas costas.
– Senhor Gardley – disse, com todo o calor de que foi capaz. – No que posso lhe servir?
Lhe dirigiu um olhar indiferente.
– Bom, Minnie – respondeu. – Minha mãe está me pressionando para que arrume as coisas. Já fiz o
que devia. Publicarei os proclamas neste domingo para um casamento em dezembro.
Estava tão seguro dela que nem sequer esperava uma resposta.
Ajustou-se a jaqueta e voltou a sentar-se, antes que Minnie se sentasse. – Acredito que em meados do
mês nos viria bem.
“Quem seria se não dedicasse três quartas partes de sua atenção para esconder do que é capaz?”.
Era uma estupidez comparar ao sempre possível Walter Gardley com o inalcançável duque de
Clermont. Mas Minnie não pôde evitar fazê-lo. Gardley saía perdendo em todos os sentidos. Mostrava
um indício de barriga em cima do cinturão e se sentou com desinteresse, sem esperar até que ela se
sentasse primeiro. E, além disso, estavam suas palavras. Tomava-a por um ratinho tímido que não se
moveria de onde a deixasse. E que não se queixaria de suas amantes.
E tinha também o que não fazia.
Não fazia com que ela sentisse mariposas no estômago. Não a deixava sem fôlego. Jamais tinha se
incomodado nem sequer em fingir que a cortejava.
“Isso não é ter intuição para a tática. Isso soa a treinamento tático”.
Estava em jogo seu futuro. Não podia permitir-se ser irracional. Todas as mulheres em sua posição
tinham que suportar imperfeições em seu par. Um pouco de barriga e umas quantas amantes não eram
coisas que devessem preocupá-la. Queria-a porque acreditava que ela se mostraria pateticamente
agradecida. E não se equivocava. Estava agradecida e era patética. Não?
– Não – se ouviu dizer.
Gardley encolheu os ombros.
– Depois do Natal, então. Presumo que quer celebrar as festas com suas tias? Suponho que posso
permitir isso.
Minnie tinha falado em voz alta em resposta a sua própria pergunta. “Não, não era patética”. Mas
aquela palavra tinha contribuído com claridade ao empenho. Queria-a porque acreditava que era patética.
E se, se casasse com ele, seria-o.
– Permitirá que eu escolha a data de meu casamento? – murmurou. – Que tolerante por sua parte!
Ele ergueu a cabeça ao ouvi-la.
– Tolerante? Não ache que vou ser um marido fácil por lhe conceder isso. Não o serei nem um pouco.
Se tentar algum truque quando estivermos casados, Minnie, jogarei-a de casa. E os dois sabemos que não
tem aonde ir.
Minnie não podia respirar.
Céu Santo, não podia respirar!
As palavras dele não a surpreendiam. Mas tinha imaginado que o matrimônio, embora fosse com um
homem que lhe produzia repulsa, lhe daria segurança. Em sua mente, o matrimônio durava para sempre.
Jamais lhe tinha ocorrido que alguém pudesse vê-lo de outro modo.
Se, se casava com ele, estaria ainda mais desesperada, não menos. Se alguma vez soubesse a verdade
sobre ela, jogaria-a à rua sem que importasse o matrimônio.
Minnie esfregou as mãos na saia.
– Senhor Gardley, o “não” era toda sua proposta, não só à data da cerimônia. Obrigado, mas não.
Ele franziu o cenho e esfregou a testa.
– Por que diz que não?
Tinha que perguntá-lo depois do discurso que lhe tinha feito?
– Você acredita que sou calada, débil e tola – inclusive então falava em voz baixa, que não chegava a
todos os cantos da sala.
Ele se moveu e seu assento rangeu. Minnie sentia que sua voz se afogava no ruído dele.
O homem soltou um risinho forçado.
– Seu caráter feminino, senhorita Pursling, é sua maior virtude – adiantou o tronco para ela. – Nunca
se considere fraca porque se dobra.
– Senhor Gardley, não está me escutando.
– A mulher se dobra como um junco na tormenta – continuou ele, falando por cima dela. – O homem
se parte como um carvalho – franziu o cenho. – Ou é uma faia? Sim, isso, com um vento forte, o homem
se quebra como uma faia – tomou a mão dela. – A escolhi porque você compreenderia minhas
necessidades, e porque acredito que as pode cumprir.
Olhar para cima? Não, o duque de Clermont estava muito equivocado. Ela tinha que baixar a vista.
Permitiu-se acreditar que aquele homem lhe oferecia algum tipo de segurança. Tinha sido muito otimista,
não muito pouco. Gardley tinha deixado muito claro que não sentia nenhuma obrigação para com ela. Que
segurança havia nisso?
– Isso é ridículo – disse. – As mulheres também se quebram, como a faia. Como pode imaginar que
sou tão flexível se estou me negando a me casar com você?
– Es… está me rechaçando? – ele franziu o cenho. – Não pode negar-se. Essa era a razão… – tossiu e
fez uma careta.
– Essa era a razão para dizer a sua mãe que me cortejasse? – terminou Minnie em seu lugar. –
Escolher a uma mulher que contasse com a aprovação dela e que estivesse tão desesperada que não
pudesse dizer que não embora você não se incomodasse em tentar conquistá-la?
Ele guardou silêncio. Nem sequer era o bastante homem para olhá-la aos olhos e admiti-lo. Ao fim
encolheu os ombros mal-humorado.
– O que quer? Que a leve para dar um passeio de carruagem algumas vezes?
Stevens suspeitava ainda dela. O risco de ser descoberta era tão grande como sempre. Mas se, se
casasse com Gardley, nunca estaria segura. Dar-se conta disso a aterrorizava mais que nunca. O
matrimônio lhe tinha parecido um talismã durante muito tempo. Mas não era suficiente. E já não sabia o
que podia sê-lo.
Estendeu o braço e virou a cara de Walter Gardley para ela. Ele não queria olhá-la nos olhos, e como
se esforçava por desviar o olhar da cicatriz, acabou lhe olhando a bochecha direita.
– Não – murmurou ela. – Não me casarei com você. Ele parecia atônito.
– Mas… mas… mas o que fará então? – perguntou.


– MAS O QUE VAIS FAZER? –perguntou sua tia Eliza, menos de meia hora depois.
Minnie estava sentada na sala em frente a suas tias, que tinham se instalado no sofá. As agulhas de
tecer de Eliza tilintavam sem cessar. A mulher tecia uma meia. Sua tia Caroline olhava a sua sobrinha
neta com os braços cruzados.
“Conheça sempre o caminho que há pela frente”. Essa era uma das regras de seu pai. Minnie não
sabia por que se agarrava agora a elas depois de tudo o que lhe tinha feito. Possivelmente porque
esquecê-las converteria sua infância não só no resultado de mentiras, como também em uma falsidade
absoluta. Mesmo assim, Minnie sacudiu a cabeça.
– Queremos que seja feliz – disse Caroline. – E eu jamais te diria que não tenha ambição. Mas o
truque está em ter apenas a quantidade apropriada. Se eu desejasse ser rainha da Inglaterra, por exemplo,
jamais estaria satisfeita.
– Eu não quero ser rainha da Inglaterra – Minnie cruzou os braços.
– Não, não – Caroline lhe sorriu com tristeza. – O que digo é que deve desejar apenas o suficiente
para que te faça esticar um pouco os braços. Se desejar mais, isso te fará sofrer.
Minnie ficou em pé.
– Não rechacei ao Gardley porque queira muito. Não foi porque pensasse que podia ter algo melhor.
Foi porque sei que não podia ter nada pior.
Caroline tentou reprimir um suspiro, mas não conseguiu.
– Pensem nisto com lógica – disse Minnie. – Porque eu deveria havê-lo pensado antes. Se me casar
com alguém que queira uma esposa calada e solícita, jogara-me de sua casa se descobrir meu passado.
As agulhas de Eliza ficaram imóveis.
Era perigoso falar assim e todas sabiam.
“Olhe para cima”. Mas Minnie não o faria. Se olhasse para cima, pensaria em um homem colocado a
seu lado, com o sol arrancando reflexos de seu cabelo loiro enquanto dizia que era uma mulher
inteligente.
– Você é calada, Minnie – disse por fim Eliza. – Eu não iria querer que fosse contra sua natureza.
Calada, sim. E sua voz, além disso, era fraca. Não gostava de chamar a atenção. Mal estava à vontade
nos cantos de uma reunião. Mas solícita…
Quase podia ver Clermont pelo canto do olho, como se estivesse ainda a seu lado. Tinha olhos azuis
brilhantes e um sorriso que lhe curvava os cantos dos lábios para cima quando a via. Pensou em sua mão
segurando o pulso dela para que não voltasse a golpear o sofá. No timbre profundo de sua voz quando
estava ao seu lado e dizia…
“A desejo”.
Moveu a cabeça. Se sonhasse tão alto, queimaria-se com certeza. Ela apenas queria segurança.
– Os homens procuram muitos tipos de esposas – disse Eliza. – Esposas bonitas e vivazes. Esposas
ricas e indulgentes. Ou de alto berço e orgulhosas – mordeu o lábio inferior. – Não quero te ferir, Minnie.
Mas é meu dever te fazer ver a verdade. Ninguém busca uma garota tímida e inteligente cujo pai morreu
cumprindo uma condenação a trabalhos forçados.
Minnie levou um dedo à ponta do nariz e apertou com força para tentar vencer a dor. Não conseguiu.
As fronteiras de sua vida se fechavam a seu redor como os muros de um cárcere. Olhar para cima? Com
as rochas pontudas que havia sob seus pés, se olhasse para cima, tropeçaria.
– Faz uma lista das coisas que é – disse Eliza. – E te pergunte que homem as quereria.
“A desejo”. Mas Clermont tampouco sabia.
– Suas escolhas são tuas – continuou Eliza. – Nós não lhe tiraremos isso.
Não. Elas nunca lhe tiravam suas opções. Apenas assinalavam, de um modo amável, doce e
implacável, as poucas que tinha. As mãos de Minnie tremiam. Quão único tinham feito mal tinha sido lhe
permitir acreditar que tinha uma opção quando não havia nenhuma.
Minnie não via nenhum caminho para percorrer. Não podia ver nenhum futuro. Sentia-se
asfixiantemente cega.
Apenas havia uma coisa que podia fazer, e era seguir na direção que tinha começado. Evitar a
desonra uma semana mais, rezar pedindo um refúgio embora ainda não tivesse encontrado nenhum. E isso
implicava que precisava encontrar provas do que tinha feito Clermont. Tinha que se ocupar do passo
seguinte e confiar no futuro.
E isso queria dizer…
– Amanhã vou a Londres – anunciou.
Suas tias abriram muito os olhos. Eliza se sentou mais reta.
– Mas…
– Há…?
– É por um posto de trabalho? – suas tias falavam atropelando-se uma à outra. Tinham unido suas
mãos no sofá, entre elas.
– Tome cuidado – lhe recomendou Caroline. – Tenho lido nos jornais. Senhoras sem fé que anunciam
bons trabalhos e salários excelentes, mas depois…
– Não vou procurar trabalho – disse Minnie. – Têm razão. Não posso olhar para cima. Não posso
sonhar, não me atrevo. Quão único posso fazer é dar o seguinte passo para frente.
Caroline franziu o cenho.
– E o próximo passo para diante é Londres?
– O próximo passo para diante é ganhar o jogo no que estou colocada. E isso significa que devo falar
com alguns vendedores de papel. Voltarei dentro de três dias.
As tias de Minnie trocaram um olhar nervoso que entristeceu a jovem. Mas não podia explicar-lhe
nem podia voltar atrás. E embora não fosse bem visto que uma jovem de sua idade viajasse sozinha no
trem, não era nenhuma senhorita da boa sociedade que teria que dar conta de cada minuto.
– Bom – disse Caroline por fim. – Se acha que é o que deve fazer… Tem recursos?
– Sim.
Tinha seu dinheiro dos ovos. Embora esse não fosse o nome apropriado. Ao chegar à maioridade, suas
tias lhe tinham dado a responsabilidade das galinhas e lhe tinham permitido guardar o dinheiro
procedente delas. Um presente, posto que bem podiam haver ficado com tudo. E não tinha sido apenas um
presente de dinheiro, mas também de independência.
Presente que podiam permitir-se muito pouco.
Minnie foi ao seu quarto preparar suas coisas. Mas em vez de fazê-lo, sentiu-se atraída pelo jogo de
xadrez que se apodrecia em seu baú. Fazia doze anos que não o olhava e se aproximou com nervosismo.
Ajoelhou-se diante o baú de madeira, afastou o tecido que o cobria e desatou as fivelas. O metal resistiu
ao movimento e ela teve que puxar com força.
O xadrez estava no fundo, oculto debaixo de roupas e recortes de jornais. As peças eram de ébano e
marfim, familiares e, entretanto, curiosamente estranhas. Suas primeiras lembranças eram daquele xadrez,
dela levantando peças que então lhe pareciam grandes e pesadas. Agora podia fechar a mão ao redor dos
peões e escondê-los por completo.
Tomou o tabuleiro e tirou as peças de sua bolsa de veludo. Colocou-o tudo em cima da escrivaninha.
Apesar dos anos transcorridos, não tinha necessidade de pensar aonde ia cada peça. A rainha, o rei e os
peões ocuparam seu lugar. Se ela, Minnie, fosse uma peça de xadrez, seria… Não, ela não seria nem
sequer um peão. Tornou-se muito pequena para isso.
Em outro tempo a tinham animado colocar as peças. O começo de cada partida estava cheio de
possibilidades. Podia ocorrer de tudo. Todas as opções estavam abertas. Esse dia não sentia nada. Olhou
as peças e se deu conta de que não estava no começo dessa partida, a não ser quase no final. Havia partes
inteiras do tabuleiro que eram inalcançáveis, peças que tinham sido roubadas, movimentos que jamais
poderia fazer.
Em seu tabuleiro não ficava quase nada. Mesmo assim, tirou suas lentes e o estudou.
“Em todas as partidas há um ponto no qual é inevitável uma vitória”, havia-lhe dito seu pai em uma
ocasião. “No que todos seus movimentos obrigam seu oponente a reagir e, ao reagir, cava sua própria
tumba”.
Que estranho! Minnie já não podia recordar o rosto de seu pai, mas podia ver o tabuleiro tal e como
estava naquele momento. Retirou peças do tabuleiro e deixou apenas as que havia então. Um bispo e um
cavalo dele que paralisavam a torre dele; sua rainha colocada contra dois peões dele, que era o único
amparo que ficava a seu pai contra o ataque dela.
– Chegamos já a esse ponto? – tinha perguntado ele. – Planeje. Conheça sempre o caminho por
percorrer.
Ela tinha observado o tabuleiro, e então o tinha visto pela primeira vez. Podia obrigar os peões a se
afastarem. Comeriam seu cavalo e sua rainha e depois ele teria que mover a torre e isso colocaria a seu
rei contra a bigorna do bispo dela.
– Sim – havia dito, maravilhada. – Já estamos aí.
– Pois no próximo movimento, quando te comer uma peça, lhe dê um beijo. Assim, querida.
Minnie tinha pegado o bispo. Em sua lembrança, a peça era maior e suas mãos pequenas e gordinhas.
Certamente não tinha mais de seis anos naquele momento.
– Por quê? – tinha perguntado.
– Tradição da família Lane – seu pai tinha sorrido. – Quando abandonaste ao oponente, dá-lhe um
beijo para demonstrar que não o quer mal.
Depois disso, sempre que jogavam e um dos dois se aproximava de um cheque mate, ele ria e dizia
que se aproximava um beijo. Minnie queria recordar a seu pai assim, sorridente e carinhoso, lhe
ensinando tudo o que sabia. Rindo, dizendo que ela era o centro de sua existência. Tinha que recordá-lo
assim porque a alternativa era vê-lo como tinha sido no final.
Olhar para cima? Seu pai não só lhe havia dito que olhasse para cima, tinha-lhe ensinado a voar. E
depois, quando ela tinha chegado ao topo do mundo, tinha-a jogado do céu.
CAPÍTULO 8

AO FINAL, Robert DEMOROU DIAS em levar Sebastian com ele, em grande parte porque Violet, a
recente condessa viúva de Cambury, tinha insistido em ir com eles.
– Em primeiro lugar – havia dito, olhando para Robert, – estou cansada de estar presa em uma
propriedade de Cambridgeshire sem nada que fazer. E em segundo, precisará de alguém que traga
Sebastian em rédea curta – tinha observado a ele, que se esforçou por parecer inocente.
Aquilo tinha algo de verdade. Violet podia conseguir que Sebastian se comportasse bem quando ela
queria. Era dois anos mais velha que Sebastian e Robert. Criou-se na mansão contigua à de Sebastian e
tinha sido companheira deles nos verões até que tinha sido considerada muito mais velha para brincar
com meninos.
Mas Robert tinha mais lembranças de Violet desafiando Sebastian e enviando-o, em um ataque de
raiva, a subir às árvores para procurar ovos de falcão do que fazendo com que Sebastian se comportasse
bem.
– E finalmente – tinha acrescentado ela, – a sua mãe caio bem. E se queremos distraí-la, um ataque
duplo funcionará melhor. Sebastian a afastará e eu a afastarei de ti.
Mas tinha sido Sebastian o que deu o golpe final, quando Violet se retirou daquele primeiro encontro.
– Ouça – havia dito a Robert, – está de luto por um homem a qual odiava. Dê-lhe uma oportunidade
de sair daqui.
E Robert tinha cedido, e tinha tido que ocupar-se de um séquito de lacaios, donzelas e costureiras, de
enviar mensagens para reservar acomodações em um hotel, pois Violet não podia ficar em sua casa de
solteiro. E tinham decorrido quarenta e oito horas até que Robert se viu por fim, com sua prima, a
condessa de Cambury, nove serventes, dois gatos e um cão manco, na plataforma da estação de Euston
Square em Londres.
Os serventes se ocupavam de colocar a bagagem no compartimento apropriado e Robert passeava com
seu primo. Havia um pouco de brisa, suficiente para que o ar na plataforma resultasse fresco e agradável.
O aroma de tabaco, que tinha sido a desculpa de Robert para não sentar-se na estação propriamente dita
com Violet, punha um contraponto acre ao aroma das folhas de outono.
Passeava ao lado de seu primo e sua miríade de preocupações parecia diminuir-se.
– E estão dando passos para criar uma posição para ti em Cambridge – dizia a seu primo. – Tendo em
conta o que diziam de ti quando estudava ali, imagino que é a última coisa que esperava. Não ficaste
atônito?
Sebastian o olhou.
– Já não sou um estudante, sabe?
– Não finja que amadureceu – disse Robert.
Seu primo sorriu com picardia.
– Espere quando eu recusar o posto – disse. – Isso escandalizará a todos.
Robert piscou e o observou melhor. Sebastian era um brincalhão contumaz, mas tomava muito a sério
seu trabalho.
– O vai rechaçar?
– Temo-me que terei que fazê-lo – Sebastian meteu as mãos nos bolsos. – Até Newton teve que
conseguir uma dispensa de Carlos II porque não acreditava na Santa Trindade. Oxford se tornou mais
liberal, mas Cambridge… – encolheu os ombros. – Ali seguem na Idade Média. Insistem em que defenda
a doutrina da Igreja da Inglaterra. A metade dos cientistas naturalistas me querem ali porque acreditam
que faço um trabalho interessante. A outra metade acredita que me nomear professor fará com que me
cale.
– E o faria? – perguntou Robert. – Nunca te vi calar por nada. E acaso é um não crente? Tenho lido
todos seus ensaios, incluídos os que não entendo, e não recordo que tenha tomado posição nisso.
Sebastian encolheu os ombros.
– Não te inteiraste? Sou um cientista pagão, um apóstata seguidor de Darwin.
– Mas o senhor Darwin não é um não crente.
Sebastian não respondeu a isso. Encolheu os ombros com resignação. – Eu não só acredito que as
espécies evoluíram; também posso provar, de um modo científico e confiável, que se transmite traços de
pais para filhos. Não pela graça de nenhum ser divino, mas sim por simples princípios naturais – olhou
para Robert. Isso me converte em um não crente para a metade da sociedade. Quem sou eu para discutir
com eles?
– Assumo que isso é uma pergunta retórica, posto que discute com eles sempre que pode.
Sebastian sorriu de prazer e negou com a cabeça.
– Acredito que você gosta de ser um emparelha – declarou Robert.
– Deve ser isso.
– E conseguiste me distrair. Não respondeste a minha pergunta. Crê em Deus?
– Respondi-te tudo o que penso responder. Acredito que é uma vergonha que o senhor Darwin tenha
que incluir sua religião na base do trabalho que faz. As crenças de uma pessoa deveriam ser algo entre
ele e a deidade a qual adore ou não adore. Ninguém pergunta a um toneleiro se acredita em Deus. Por que
tenho que responder eu? Por que deveria importar a alguém? A fama de Sebastian tinha chegado muito
rápida. Tanto que para Robert seguia sendo uma surpresa que Sebastian, o inteligente e desbocado
Sebastian Malheur, seu primo e cúmplice de outros tempos, converteu-se em um cientista famoso. Não
porque não tivesse cérebro para isso, mas sim porque era mais fácil vê-lo como o brincalhão que tinha
sido de menino que como o adulto sério atual. Possivelmente porque Sebastian não se converteu em um
adulto sério.
– Além disso – disse Sebastian, – é muito mais divertido despistar todo mundo. Me negando a
responder a isso, fiz com que todas as velhas maritacas me tirem de suas listas de convidados.
O revisor tocou o apito e as pessoas começaram a subir no trem. Robert e Sebastian esperaram ao
final da plataforma até que se dissipasse a multidão e depois se aproximaram. A caminho de seus
assentos, passaram diante dos vagões da bagagem e depois dos da segunda classe.
Quando passavam diante de um dos vagões, Robert piscou. Não podia ser que… Se voltou e pôs-se a
andar.
– Ué! – chamou-o Sebastian. – Está indo em direção contrária.
Robert agitou uma mão no ar. Tinha tido uma ilusão muito estranha ao passar por ali… Acreditava ter
visto a senhorita Pursling pelo canto do olho.
Não podia ser.
Quando chegou diante do guichê em questão, viu que seus olhos não lhe tinham enganado. A mulher
ergueu a cabeça do livro que lia e olhou pelo guichê do outro lado. O sol atravessou o pó acumulado no
cristal e iluminou aquele nariz que ele conhecia tão bem… e aqueles lábios.
A senhorita Pursling ia sentada naquele compartimento. Estaria ali todo o caminho até Leicester,
várias horas sem ninguém com quem falar. A menos que…
Violet tinha saído também da estação e dava ordens a um servente.
Robert lhe deu um golpezinho no ombro.
– Empresta a sua donzela? – perguntou.
Violet o olhou receosa.
– A minha donzela? Não, não empresto a Matilda. Para que a necessita?
Robert procurou não olhar em direção à senhorita Pursling.
– Eu… Ah…
– Trata-se de uma mulher – interveio Sebastian. – Se nota pelo nervoso que se pôs. É uma mulher.
– Oh? – Violet olhou discretamente a seu redor. – É…? Não, não me diga quem é. Me deixe adivinhá-
lo.
Violet podia olhar com discrição, mas Sebastian esticou o pescoço e olhou de um lado a outro com
movimentos exagerados.
Robert fez uma careta.
– Para. Para. É preciso que seja tão óbvio?
– Sabia que era uma mulher! – exclamou Sebastian, triunfante. – Se o envergonhamos, é que se trata
de uma mulher.
Apenas um momento atrás, Robert pensava que era maravilhoso estar com gente que o compreendia.
Mas já não. Ruborizou-se.
– Se admitir que é uma mulher, deixarão de olhar boquiabertos e se comportarão como pessoas
normais?
Violet soltou um bufo.
– Ainda não entendo o que tem a ver uma mulher com que necessite da Matilda.
– Viaja sozinha em um compartimento de segunda classe – explicou Robert. – Quero me sentar com
ela.
Sua declaração se encontrou com um silêncio. Sebastian olhou para Violet e esta olhou a ele. A
expressão de ambos resultava acusadora.
– Interessa-te uma mulher que viaja na segunda classe – disse por fim Sebastian.
Violet o olhou também.
– Interessa-te uma mulher que viaja em segunda classe e te interessa de tal modo que também te
importa o que possa afetar a sua reputação.
Sebastian esfregou as mãos.
– Oh! – exclamou com regozijo. – A sua mãe adorará isto.
– Odeio quando fazem isso – grunhiu Robert.
Não era certo. Normalmente adorava que falassem assim, com os pensamentos de Violet sobrepondo-
se aos de Sebastian e confundindo a conversa. Mas esse dia lhe resultava inconveniente. Tinha que
livrar-se deles antes que dissessem algo horrível.
– Pois o sinto, Robert, mas não empresto a minha donzela – declarou Violet.
– Mas…
– Mas… – ela esfregou as mãos com brutalidade. – Te acompanharei eu mesma encantada.
Robert tragou saliva. Tentou imaginar-se conversando com a senhorita Pursling sob o ávido olhar da
condessa de Cambury.
– Segunda classe – comentou Sebastian. – Nunca viajei na segunda classe. Seguro que será divertido.
Robert tossiu em sua mão.
– Não, os dois não. Definitivamente, os dois não.
– Necessita aos dois – declarou Sebastian. – Há quatro assentos. Se levar apenas a Violet, pode
entrar alguém e sentar-se com vocês. Há quatro assentos. Estou seguro que não quer te arriscar a perder a
oportunidade de poder falar.
– Mas…
– Já me conhece – insistiu Sebastian. – Sou a discrição personificada.
– Não, não o é. É justamente o contrário.
Sebastian sorriu.
– Apenas burlo de ti quando ninguém nos ouve. E, além disso, se você não se sentar com essa
misteriosa mulher, irei eu mesmo. Acredito que vi onde estava.
Robert não podia fazer nada. Quase seria melhor afastar-se e não falar com ela. Mas…
Olhou de novo o vagão dela. A senhorita Pursling olhava pelo guichê oposto, com os dedos apoiados
no cristal. Não observava a ninguém, tinha a vista perdida na distância, longe das colunas altas da
estação, como se o que desejava estivesse muito longe.
– Não digam nada embaraçoso – pediu Robert.
– Eu? – perguntou Sebastian. – Seria contraproducente fazê-lo. Não estudo o comportamento humano,
mas, cientificamente, a não interferência é imprescindível para observar devidamente os rituais
primitivos de acasalamento de…
Robert ergueu os olhos ao céu. Aquilo ia ser horrível. Teria que ter guardado silêncio.
– Digo-o a sério – advertiu. – Se vierem, não quero ouvir nenhuma palavra em toda a viagem.
– Vamos – murmurou Violet. – Acredito que sabe que pode confiar em minha prudência.
– Não é você quem me preocupa – repôs Robert, e era certo. – Sebastian?
– Pode estar seguro de que não romperei meu voto de silêncio até que você me dê sua permissão; que
perca minha alma imortal se não o cumprir.
Uma promessa menos grandiloquente teria inspirado mais confiança em Robert. Em particular porque
Sebastian se negava a admitir se acreditava em uma alma imortal. Mas Robert baixou a cabeça e confiou
com ardor em que aquilo não acabasse tão mal como temia.


O REVISOR CHAMAVA A TODOS a subir ao trem que partia de Euston Square e Minnie se escondeu
no vagão da segunda classe. Os compartimentos estavam quase vazios e tinha subido a capa para cobrir o
rosto. Um olhar de severa desaprovação costumava servir para que qualquer companheiro de viagem em
potencial decidisse passar ao seguinte compartimento.
Por isso, quando ouviu a porta, adotou uma expressão sombria e pouco convidativa. Rangeram as
dobradiças, abriu-se a porta e uma mulher entrou no compartimento.
Não era uma mulher qualquer, era uma dama. Vestia o cinza escuro do meio luto, com laços e fitas de
um rebordo cor lavanda tão pálido que quase resultava incolor. Minnie não precisou ver as pérolas que
levava nos punhos para saber que aquela mulher era rica e importante. Adivinhou-o antes disso, pelos
cuidadosos enfeites e bordados do vestido, pelo tecido que formava uma nuvem excessiva, pelo modo
como lhe sentava o vestido, que só podia ter conseguido mediante muitas visitas a uma costureira.
Que fazia uma mulher assim em um vagão de segunda classe?
A dama arqueou as sobrancelhas. Tocou ligeiramente o banco em frente de Minnie, para assegurar-se
de que era tão duro como parecia. Encolheu os ombros.
Antes que pudesse olhar para Minnie, um homem, um cavalheiro a julgar por seu aspecto, com as
calças bem engomadas, um colete vermelho coberto por um casaco longo de viagem, apareceu a cabeça.
– Cobber tornou a perder o baú – disse. – E Matilda diz que o moço insiste em colocar seu segundo
baú debaixo, sem fazer caso do que diz a etiqueta.
– Oh, diabos! – exclamou a mulher.
O homem não se alterou pelo palavrão. Simplesmente, fez-se a um lado e a deixou sair pela porta.
Curiosamente, aquele cavalheiro, um homem moreno de olhos negros, olhou para Minnie.
Provavelmente era muito tarde para espantá-lo, mas ela o olhou de cima abaixo de todos os modos.
Lhe piscou os olhos.
– Os vagões de primeira classe estão ali – assinalou com a mão.
Ele encolheu os ombros, deixou seu pesado casaco em outro assento e saiu atrás da mulher.
Parecia que Minnie ia ter companheiros depois de tudo. E uns muito estranhos.
A porta voltou a soar. Ergueu a vista, esperando ver seus estranhos companheiros de viagem. O
coração lhe deu um tombo. Sentiu calor nas mãos.
– Senhorita Pursling – disse o duque de Clermont. – É um prazer vê-la.
A última vez que o tinha visto, lhe havia dito que olhasse para cima.
Ela tinha querido fazê-lo então. E logo… logo tinha descoberto que tinha ainda menos opções do que
supunha. Vê-lo fazia querer esquecer tudo isso. Tinha acreditado ter superado aquele desejo, mas lhe
bastou vê-lo para que a lembrança voltasse espontaneamente, como se esperasse escondido na superfície
de sua pele e revivesse com cada fôlego que passava pelos lábios dela.
“A desejo”.
Essas palavras continuavam na imaginação dela, e embora sua mente soubesse que não tinha
acontecido nada entre eles, seu corpo não parecia tão convencido. Sua pele fazia cócegas na presença
dele. Baixou a vista.
– Faz uma boa viagem? – ele colocou uma bolsa na prateleira metálica que havia sobre sua cabeça e
se sentou frente a ela.
– Sim – respondeu Minnie com rigidez. – Visitei um fabricante de papel de Londres para descobrir de
onde tira você seus materiais.
Disse-o para que ele soubesse bem onde estavam… tão longe como ela pudesse fazer que estivessem.
Ele franziu o nariz.
– Um relatório de seus progressos – comentou alegremente. – Vejo que avançou em sua posição. Que
bom! – sorriu a Minnie.
Ela pensou que em sua vida não havia lugar para ele nem para seus desejos. Não havia. Por sorte, a
porta se abriu de novo e entrou a mulher do impressionante vestido de viagem.
– Robert – disse. – Não podemos ir ainda. Perderam o Herman e o revisor ameaça partir de todos os
modos. O que importa que o trem se atrase? Tem que detê-los, porque meus estratagemas não durarão
muito mais.
– Seus estratagemas? – o duque de Clermont se endireitou em seu assento e sua voz se voltou
sombria. – O que fez?
A mulher mostrou um apito prateado.
– É do revisor – comentou.
O duque a olhou; soltou um grunhido e esfregou a testa.
– Santo céu! – tocou o chapéu e olhou para Minnie. – Espere. Volto em seguida.
A porta voltou a fechar-se e Minnie ficou sozinha de novo. Pensou por um momento em trocar de
compartimento. Mas se o fazia, ele voltaria a encontrá-la. Além disso, o revisor tinha marcado seu
bilhete com aquele assento e não estava segura de que se lembrasse dela se trocasse de compartimento.
No minuto seguinte a assaltou outra tentação. O duque tinha deixado sua bolsa no assento contiguo ao
dela. Só uma fivela metálica a separava dos papéis dele. De seus papéis potencialmente condenatórios.
De alguma parte tinha que levar os santinhos. Possivelmente houvesse um recibo ou uma nota naquela
bolsa.
Mas… seria uma tremenda violação de intimidade.
E o que faria embora encontrasse algo? A palavra dele contra a sua a desonraria igualmente. Discutiu
consigo mesma os prós e os contra, até que o passar do tempo tomou a decisão por ela.
Abriu-se a porta do vagão. Era o duque. Ergueu a vista até sua bolsa e moveu a cabeça.
– De verdade não a vasculhou?
– De verdade – Minnie apertou os dentes. – Não.
– Não sou seu inimigo? Não estamos em guerra?
– Não sei o que você é. E certamente, não sei o que estamos fazendo – enrugou o nariz. – Mas ia me
custar muito provar a procedência das provas. Embora encontrasse um montão de santinhos radicais em
sua bolsa, o que poderia fazer? Levar isso e mostrar ao magistrado? Não teria provas de que tinham
estado em sua posse.
Ele baixou a bolsa e a olhou.
– Você me surpreende continuamente. Não devo esquecer que, o que quer que você planeje, será
muito mais consciencioso que nada do que já vi – abriu a tira de couro e tirou uns papéis. – Aqui está –
disse. – Se tivesse vasculhado minha bolsa, teria encontrado isto. Escrevi-o para você.
Na mão tinha um pedaço de papel.
Minnie não pegou.
– A última vez que falamos disse que a aterrorizava o futuro. Quero uma trégua. Esta é minha melhor
oferta – lhe sorriu e, Oh, Deus! Ela sentiu a força desse sorriso até a ponta dos dedos dos pés.
Estendeu a mão e pegou o papel com cautela. Era uma carta, e levava seu nome na parte frontal.
– Paz durante a viagem?
– Não sei.
– Umas horas, senhorita Pursling. É tudo o que lhe peço – o sorriso dele vacilou. – E a propósito, os
outros dois passageiros…
Abriu-se a porta e ele fez uma careta e cruzou os braços sobre o peito. As duas pessoas de antes
entraram de novo no vagão.
A mulher olhou para Minnie… e entreabriu por um segundo os olhos, suficiente para que Minnie
compreendesse que aquela mulher tranquila e elegante provavelmente tinha ouvido o duque falar.
Suficiente para dar a entender que tinha captado o vestido simples de Minnie e a cicatriz de sua
bochecha. Atrás dela estava o cavalheiro que lhe tinha piscado os olhos antes, um homem moreno com
um laço branco no pescoço.
O duque de Clermont sorriu com ar de desculpa.
– Com respeito a eles… – mordeu o lábio. – Então. Violet, Sebastian, posso lhes apresentar à
senhorita Pursling? Senhorita Pursling, ela é Violet Waterfield, a condessa de Cambury.
– Encantada, certamente – murmurou a condessa, com uma voz que sugeria que estava algo menos que
isso.
– E o cavalheiro que há atrás dela é o senhor Sebastian Malheur.
Minnie se esqueceu de guardar silêncio. Abriu muito a boca.
– Sebastian Malheur? – perguntou. – O homem que escreveu essa defesa apaixonada pelo senhor
Darwin?
Santo céu! Se o que diziam dele era certo, aquele homem era todo um infame. Se comentava que era
não só um dissidente religioso, mas além disso um verdadeiro ateu. Um mulherengo. Um libertino. O
senhor Malheur encolheu os ombros e levou dois dedos aos lábios em um gesto exagerado de silêncio.
– Sim – respondeu o duque depois de uma pausa um pouco forçada. – É esse mesmo sujeito ignorante.
Todos os rumores que ouviu são certos. Além disso, é meu primo – suspirou. – Bom, vocês dois podem
se sentar – disse. – Além disso, tampouco podem piorar mais isto.
Minnie não sabia a que se referia com aquilo. Se o dizia por eles ou por ela. Mas os outros dois se
sentaram sem dizer uma palavra e sem olhar em sua direção.
CAPÍTULO 9

FORA SOOU UM APITO.


O trem estremeceu com as portas que se fechavam em todo o comprimento do comboio. E Robert
esperava com tristeza o que sabia que se produziria a seguir.
Por um momento tudo pareceu ir bem. Violet tirou de sua bolsa lã e agulhas de tecer. Sebastian olhava
à frente e não dizia nada.
A senhorita Pursling tinha a vista fixa nas tábuas de madeira que formavam o chão. Guardou a carta
no bolso e não havia tornado a tocá-la. O trem começou a mover-se, oscilando de lado a lado, e ela
seguia sem falar.
Robert não se surpreendia com isso, pois era o que sempre fazia quando a via. Mas Violet olhou
primeiro a ele e a seguir à senhorita Pursling. Enrugou o cenho com confusão e trocou um olhar
preocupado com Sebastian.
– E bem – murmurou Robert. – Esteve em Londres, senhorita
Pursling?
A mulher o olhou e afastou a vista.
– Sim, Excelência.
– O que a trouxe por aqui?
Ela inclinou a cabeça de modo que era impossível olhá-la aos olhos. – Tinha assuntos de índole
pessoal, Excelência.
Se aquilo era paz… Robert suspirou.
Não podia falar dos santinhos. Nem Sebastian nem Violet estavam sabendo, e como não gozavam do
amparo do qual gozava ele, Robert preferia que não soubessem. O silêncio se estendeu pelo vagão e o
duque pensou que não tinha sido boa ideia proibir seus amigos de falar. O que podia ser um silêncio
cômodo entre os dois, voltava-se terrivelmente incômodo com quatro pessoas olhando-se com os lábios
apertados. Aquela viagem de trem tinha potencial para ser a mais desagradável da história.
– Bom – voltou a provar. – A Comissão de Higiene dos
Operários. Por que se interessa por isso?
Ela o olhou então. Franziu os lábios como se reprimisse um sorriso. – Porque a higiene é importante.
Não está de acordo, Excelência?
– É obvio, mas muitas coisas são importantes. Todos fazemos diferentes opções sobre como
empregamos nosso tempo. Violet trabalha de voluntária no Jardim Botânico de Cambridge,
presumivelmente porque gosta das plantas. Sebastian…
Sebastian ergueu a vista com interesse.
– Sim – interveio a senhorita Pursling. – Eu gostaria muito de ouvir como emprega seu tempo o
senhor Malheur.
– Ah! – não era fácil fazer uma descrição asséptica do trabalho de Sebastian.
– Porque ouvi – continuou a senhorita Pursling, – que ameaçou instituindo um programa de
reprodução humana entre os professores de Cambridge para provar sua teoria sobre a herança sexual dos
traços.
Sim. Por isso era difícil falar do trabalho de Sebastian. Porque, para isso, a gente tinha que dizer
coisas como “herança sexual” sem ruborizar-se; algo que a senhorita Pursling conseguiu fazer muito bem.
Sebastian a olhou com intensidade e Robert recordou, um pouco tarde, que seu primo tinha um grande
talento para cativar às mulheres. Como lhe tinha ocorrido aproximá-lo da senhorita Pursling? Ao final da
viagem, ela estaria encantada com ele.
De fato, provavelmente já o estivesse.
Mas Sebastian se limitou a encolher os ombros mais uma vez, levou uma mão à boca com um
movimento exagerado e assinalou com a cabeça ao Robert. Este traduziu aquilo como: “Sinto-o muito,
mas depois de haver prometido a meu primo que não diria nenhuma palavra, agora tenho que envergonhá-
lo o mais possível com gestos”.
– Oh, pelo amor de Deus! – murmurou Robert. Apertou a testa com os dedos. O trem chiou ao tomar
uma curva.
Sebastian o olhou movendo o dedo indicador em sua direção em um gesto de vergonha e a seguir fez
um gesto gentil para frente e para trás com a mão, que não indicava claramente nada.
– Está… ferido? Doente? – perguntou a senhorita Pursling. – Impossibilitado para falar por alguma
razão?
O rosto de Sebastian se iluminou e a apontou com um dedo.
– Tentou tomar um chá? – perguntou ela. – Com mel pode aliviar muito a garganta.
Outro gesto por parte de Sebastian; essa vez ergueu os braços em direção ao teto e os baixou
rapidamente.
– Ao menos tente não me golpear na cara, Sebastian – disse Violet. – E pelo amor de Deus! Os dois
sabemos que Robert não o dizia em um sentido literal. Apenas queria que não o envergonhássemos, coisa
que você faz muito bem sem palavras.
Os olhos da senhorita Pursling passavam de um a outro. Se havia uma mulher capaz de captar o que
não se dizia, era ela. Ao Robert não custava nada imaginá-la reconstruindo o que devia haver dito ele aos
outros dois.
Sentiu que se ruborizava.
– Pode falar – grunhiu.
– Sabia perfeitamente bem o que queria dizer – respondeu Sebastian. – Mas sempre descubro que o
modo mais rápido de conseguir que alguém esqueça seus decretos mais ridículos é tomar sua ordem em
um sentido literal e obedecê-la ao pé da letra.
– Não é muito tarde para te jogar deste vagão – replicou Robert. O trem oscilava para frente e para
trás em sua viagem ao longo das vias. Ainda não tinha alcançado sua velocidade máxima; depois de tudo,
acabaram de sair de Londres.
– Aí vê revelada a verdadeira natureza de meu primo – disse Sebastian à senhorita Pursling. –
Desumano, cruel e violento.
Robert fez o que pôde por reprimir um gemido, e estava quase seguro de havê-lo conseguido.
– E para que conste – continuou Sebastian. – Eu não ameacei criar um programa de reprodução
humana em Cambridge para provar minha teoria. Para começar, isso não prova uma teoria nesse sentido
da palavra. Põe-na a prova considerando a seguinte explicação mais provável. E em segundo lugar, essa
história se exagerou muito em suas versões sucessivas. Eu me limitei a fazer notar que poderíamos usar
princípios simples para determinar, depois do fato, a probabilidade de que a esposa de certo professor
houvesse…
– Pare! Sim – Robert interveio na conversa antes que fosse mais longe. – E possivelmente haja outros
temas que nos alegre mais.
– Perdoe meu primo – Sebastian encolheu os ombros. – É um pouco puritano. Mas minhas desculpas.
Intrometi-me em sua encantadora conversa. Por favor, continuem com o que estavam dizendo – se
recostou em seu assento.
– Na verdade – disse Violet. – Não se preocupe conosco. Apenas estamos aqui. E pode estar segura
de que, se querem falar de segredos, eu jamais repetirei nenhum. Sou conhecida por minha discrição.
– Isso é verdade – respondeu Sebastian. – A condessa de Cambury é como um buraco escuro e
profundo. Os segredos entram nela, mas jamais sai nenhum.
– Sebastian – replicou Violet com calma, voltando para seu trabalho de ponto, – não é nem
apropriado nem respeitoso dizer a uma mulher que a considera somente um buraco.
A senhorita Pursling se engasgou com a saliva e tossiu; Robert se afundou mais em seu assento,
arrependido de ter atraído aquilo sobre sua cabeça. Necessitava algo para tampar seu rubor. Não deveria
ter deixado que nenhum dos dois se aproximasse da senhorita Pursling e, se seguiam assim, ele, Robert,
jamais o perdoaria.
Violet seguiu tecendo como se nada tivesse ocorrido.
Sebastian agitou uma mão no ar.
– Minhas desculpas; é obvio, a condessa é uma doce flor de feminilidade.
“Te cale. Te cale”, pediu em seu interior Robert.
Por sorte, Sebastian não levou mais à frente a desculpa.
Violet pareceu aceitá-la sem comentários.
– Não se preocupe comigo – repetiu. – De fato, não se preocupe com nenhum de nós – piscou e
ergueu as agulhas ante si como se levantasse um muro.
– Acredito que começamos esta conversa com o pé esquerdo – interveio por fim Robert. De fato,
pensava que, se aquela conversa tivesse sido um ser vivo, o mais misericordioso teria sido arrastá-lo
atrás do celeiro e lhe dar um tiro.
– Sério? – a senhorita Pursling olhou pelo guichê.
– Eu apenas pensei que, possivelmente se lutássemos um com o outro com franqueza por uma vez,
poderíamos…
– Oh! Não acredite nele quando fala assim – interrompeu Violet, fingindo ainda estar absorta em seu
trabalho de ponto. – Pode falar tudo o que queira de equidade e justiça, mas ele foi o único que se negou
a se fazer de princesa.
Robert sorriu com inapetência. Aquele era o tipo de coisa que mais temia. Dar um tiro à conversa
seria muito misericordioso; queria matá-la a golpes e jogá-la em uma tumba desconhecida.
A senhorita Pursling olhou à outra mulher com o cenho franzido.
– Fazer de princesa? – perguntou, confusa.
– Sim – repôs Violet. – O fazíamos quando éramos crianças. Nos verões, seu pai ia de visita e
deixava Robert com sua irmã, a mãe de Sebastian.
Os três jogávamos um jogo que eles chamavam “Cavalheiros e dragões” e eu chamava
“Profundamente aborrecido”. Eles eram cavalheiros e eu tinha que ficar sentada como uma princesa e
esperar até que me resgatassem.
– Entendo.
– E um dia – prosseguiu a condessa com calma– enquanto eles fingiam atacar dragões, eu escrevi uma
nota onde dizia que tinha fugido para me dedicar a vida de pirata.
Sebastian soprou.
– Acredito que acrescentou que antes pretendia entregar sua virtude a um grupo de bandidos.
A condessa não pareceu nada ofendida.
– Naquele momento não sabia o que significava isso, mas minha professora me advertia
constantemente de que devia proteger minha virtude com a vida. Pareceu-me a pior ameaça que podia
lançar.
A senhorita Pursling se inclinou para frente com um leve sorriso no rosto. Olhou para Violet.
– E o que fizeram seus valentes cavalheiros quando descobriram sua deserção?
– Decidiram que era seu dever me caça e me castigar me entregando como comida ao dragão – Violet
olhou seu trabalho com o cenho franzido e começou a desfazer com calma a última volta. – Não tiveram
nenhum êxito. Em qualquer caso, isso fez o jogo mais divertido.
– O barro também jogou um papel importante – informou
Sebastian.
– Depois disso – continuou Violet, – decidiu-se que era injusto que eu fosse sempre a princesa.
Lançamos uma moeda para escolher, mas Robert nunca quis se fazer de princesa quando chegou sua vez. –
A condessa o olhou com o cenho franzido e Robert afastou a vista.
– Uma moeda só tem dois lados – declarou. – Era impossível me atribuir um.
– Exceto por…
Robert ergueu uma mão.
– E este não é o momento de entrar nos métodos para lançar moedas entre três de um modo
equilibrado. Basta dizer que eu teria feito muito mal uma princesa.
– Entendo – murmurou Minnie.
– Não o entende – interveio Sebastian. – Você acredita que Violet era uma princesa responsável, mas
ela então era já como agora. Afetada e esnobe por fora, mas um vândalo quando não olhavam os adultos.
Ela sempre parece respeitável. Não sei como o fazia, mas Robert e eu voltávamos de nossas excursões
enlameados de cima abaixo e Violet estava tão fresca como um dia de primavera.
– Há uma coisa maravilhosa que se chama água – declarou Violet. – Os meninos parecem
desconhecer sua existência – olhou para Minnie por cima das agulhas. – A higiene é importante.
A senhorita Pursling sorriu e baixou a vista.
– Por certo, e em defesa de minha dignidade – disse Sebastian, – devo dizer que, quando eu fazia esse
papel, chamava-me “príncipe”, não princesa.
– Chamava-lhe isso você – interveio Robert. – Nós lhe chamávamos “princesa”. A brincadeira não
tinha sentido de outro modo. Os dragões querem devorar princesas, os príncipes pouco importam.
– Tem muito que aprender de dragões. Pensa-o bem. Tiramos mais “vitela” dos bezerros que das
vitelas. É bem sabido que o macho da espécie produz uma carne mais fina.
– Eu acreditava que não comíamos as vitelas porque preferíamos as guardar para o leite – declarou a
senhorita Pursling.
Robert não queria tampouco aquela conversa. Suspeitava que ao final só suportaria problemas.
Afundou-se mais em seu assento e esperou o momento inevitável no qual Sebastian faria à senhorita
Pursling gritar.
Seu amigo piscou à senhorita Pursling.
– Os dragões gostam do queijo.
– Mas os dragões não podem ordenhar princesas – respondeu ela. – Não têm polegares objetáveis.
Sebastian olhou o teto.
– Muito inteligente, e quase correto. Mas os dragões têm ajudantes. Em qualquer caso, está claro que
a fêmea da espécie humana tem uma carne inferior. Está carregada com depósitos de gordura feminina na
parte dianteira.
Enquanto que o flanco do macho é magro, macio e suculento – enfatizou suas palavras levantando-se e
pousando uma mão em seu traseiro.
A condessa ergueu os olhos ao céu.
– Quanto menos se diga do flanco da carne masculina, mais nos alegraremos todos. Além disso,
acreditava que você gostava desses desafortunados depósitos de gordura feminina. Passas suficiente
tempo… Robert tossiu audivelmente.
– Minhas preferências são irrelevantes – declarou Sebastian, com altivez. – Eu não sou um dragão.
– Certo – declarou Robert. – É um pavão que exibe suas plumas diante da fêmea da espécie.
– Se funcionar… – Sebastian sorriu. Voltou a cabeça para olhar uma imaginária cauda de plumas em
seu traseiro. – E sim, esse é um de meus melhores traços, obrigado.
A condessa emitiu um suspiro de derrota.
– Já estamos falando outra vez do traseiro de Sebastian? Não tem mais nenhuma parte no corpo?
Aquele foi o momento no qual Robert se deu conta de que a senhorita Pursling não olhava o chão; de
fato, fazia já tempo que não baixava à vista. Sorria e olhava os outros dois com fascinação e com as
bochechas rosadas.
Robert apontou para Sebastian com o dedo.
– Vê-o? – perguntou acusador. – Sabia que o faria. Estendeste-me uma armadilha. Não voltarei a
acreditar nenhuma palavra do que diga.
– De nada – Sebastian baixou a cabeça e voltou a sentar-se. – Tanto desconforto não vinha a conto –
fingiu um estremecimento. – Já logo me agradecerá.
– Não. Odeio-lhes aos dois.
Normalmente teria gostado de passar o tempo assim, escutando a seus amigos jogando conversa como
felinos enlouquecidos. Mas a senhorita Pursling pensaria que estava louco para passar tempo com
aqueles dois. Estava aparentado com Sebastian. Eram primos irmãos. Aquilo era quase como anunciar
que tinha a um ramo inteiro de sua família no manicômio.
– Oh, vá! – murmurou Sebastian. – Não tínhamos que haver dito nada disso?
– Pois claro que sim – repôs Violet. –Mencionamos especificamente que ele jamais se fazia de
princesa. Isso o converte em varonil.
Você o segue considerando varonil, verdade, senhorita Pursling?
– Parece-me importante não fazer comentários – a interpelada baixou a vista, mas lhe brilhavam os
olhos.
– Eu protesto por essa linha de raciocínio – declarou Sebastian. – Tem que ter muita confiança em sua
virilidade para se fazer de princesa.
Possivelmente o que conseguimos foi fazê-lo inseguro.
– Possivelmente, se não o mencionarmos, ela não se dê conta – respondeu Violet.
A senhorita Pursling sorriu.
– Não se preocupem comigo – baixou mais à vista. – Eu nunca me fixo em nada.
– Nesse caso – declarou Violet com sua melhor voz de “bem está o que bem acaba”, – não vejo que
motivo há para incomodar-se. Robert, deixa de te zangar.
Robert fechou os olhos, derrotado.
Quando o trem parou, esperou até que Sebastian recolheu suas coisas e saiu, e até que Violet o seguiu
para fiscalizar sua bagagem. Só então se voltou para a senhorita Pursling.
Ela estava na porta do vagão; envolvia um lenço ao redor do pescoço.
Robert começou a virar o chapéu em suas mãos.
– Ouça, em relação à conversa… – guardou silêncio. O que podia dizer?
“Normalmente não são assim”.
Isso era mentira.
“Tem que entendê-lo. As brincadeiras de Sebastian me causaram muitos momentos difíceis. Mas o
amo mais do que quero matá-lo”.
A verdade era muito. Seguia esforçando-se por procurar um modo de desculpar-se, embora nem
sequer estivesse seguro de querer fazê-lo. Ela ajustou as luvas com a vista baixa antes de olhá-lo.
– Excelência.
– Senhorita Pursling.
Os olhos dela eram cinzas, luminosos e claros, e pareciam ver através dos movimentos nervosos
dele.
– Sempre pensei que se pode julgar a um homem pela companhia em que anda.
– Credo! – ele fez uma careta. – Sebastian sempre foi excessivo. Pode ser muito, no princípio. Mas é
um bom homem, isso é certo. Mais ou menos.
A senhorita Pursling franziu o cenho.
– Por que diz isso? Eu gostei de seus amigos.
Robert respirou com força.
– Isso quase soa como se gostasse de mim.
Ela assentiu.
– A lógica é uma coisa encantadora, Excelência. Isso é exatamente o que disse. Mas oxalá não fosse
assim! – girou o trinco e saiu pela porta.
– Espere – disse ele.
Mas a porta se fechou atrás dela. Robert seguia olhando o espaço que ela tinha ocupado quando o
revisor soou o apito. Pegou sua bolsa e saiu correndo.
Ela gostava de seus amigos. Gostava de seus amigos? Era estranho esquecer toda a vergonha anterior.
Quando alcançou Sebastian, Violet e o resto do séquito, sorria como um parvo. Seus amigos olhavam as
páginas do caderno de notas de Violet e riam.
– Do que riem? – perguntou Robert receoso.
Violet fechou o caderno.
– Estou levando a conta – respondeu. – Lamento te informar disto, mas sua senhorita Pursling ganhou
a conversa.
Robert seguia luzindo seu sorriso tolo; não podia evitá-lo.
– Sim – assentiu. – Não é maravilhoso?
CAPÍTULO 10

O ÔNIBUS DEIXOU Minnie a meia milha da granja de suas tias avós. Colocou a valise sob o braço e
pôs-se a andar.
Quando deixou para trás o último grupo de casas, tirou a carta do bolso da saia e, como pôde, pois
somente tinha uma mão livre, rompeu o selo de cera.
A carta estava datada dois dias atrás.
Minha querida senhorita Pursling. Quero esclarecer ao que me referia ao outro dia quando nos
encontramos na residência dos Finney. Escrever santinhos não é um capricho da minha parte.
Você me disse que tinha olhado para cima e que tinha sofrido por isso. Não é a única. Está na
natureza da sociedade inglesa fazer precisamente isso: manter abaixo às classes mais baixas e elevar
ainda mais às classes superiores. Eu sou afortunado de poder olhar aonde me agrade, sim.
Meu desejo mais ardente é que você, e todo mundo, olhe para cima. Que o façam e não tenham que
voltar a cair por isso. Escrevo santinhos porque eu posso escrever essas palavras sem medo a
represálias, porque se for descoberto, a Câmara dos Lordes jamais me julgará. Escrevo-as porque é
necessário escrever essas palavras. Escrevo-as porque se não as escrever, não falar, desperdiçaria o
que me foi dado. Mantenho-o em segredo porque, se não o fizesse, todas as pessoas associadas comigo
seriam objeto de uma investigação.
Não há dúvida de que, em assuntos de estratégia, é você muito superior a mim. Como prova disso,
aqui tem uma carta de meu punho e letra em que confesso o que tenho feito. Utilize-a para revelar
minha identidade, se acreditar que assim obterá um bom matrimônio com um homem corrente que só
deseja ter uma esposa calada. Utilize-a se o necessita, ou guarde-a e não diga nada. Disse-me que a
aterrorizava o futuro. Eu não posso mudá-lo inteiro, mas posso mudar isto.
Ou você pode olhar para cima. Pode utilizar bem essa mente superior que possui e criar um lugar
diferente para si mesma. Você poderia ser mais. Poderia ser muito, muito mais.
Qualquer outra coisa seria um desperdício criminal de seu talento.
Seu servidor,
Robert Alan Graydon Blaisdell.
Não havia título. Mas, por outra parte, o único título que tinha escolhido em seus santinhos era De
minimis, algo pequeno. Embora aquilo não fosse tão pequeno. Minnie sentia que a maré da esperança
dele a elevava mais e mais a cada passo que dava.
“Você poderia ser mais”.
Em outro tempo tinha provado mais; só um pouco, mas suficiente para fazer que sua vida atual lhe
resultasse muito deprimente. Era como se comesse papa sem sal em todas as comidas, mas passasse o dia
cheirando salsichas e empanadas. Depois de todo o tempo que levava tragando aquela massa insípida,
alguém lhe oferecia carne.
Não podia pensar com lógica. Não podia analisar. Não podia pensar em nada que não fosse sua fome.
“Eu poderia ser mais”.
Não sabia o que lhe reservava o futuro, mas inclusive aquele pequeno alívio que tinha sentido ao ler a
confissão dele… o de uma coisa menos que temer, uma preocupação que podia esquecer depois do temor
dos últimos dias… até isso parecia diminuir sua carga.
Essa sensação de falso conforto a acompanhou durante todo o caminho até sua casa. Alegrava-se a
cada passo que dava e animava-se a cada fôlego que tomava. Vibrava através dela quando saudou suas
tias, quando foi lavar-se e assear-se para o jantar. E não mudou nada. Somente serviu para que o peso da
realidade resultasse mais pesado quando caiu sobre seus ombros.
Na hora do jantar, descobriu que não podia provar a sopa.
Suas tias comiam com bom ânimo, conversando como era de esperar que fizessem duas boas amigas
que tinham passado décadas uma em companhia da outra. A conversa passou da produção de nabos aos
usos que dariam na primavera ao campo mais afastado.
Conversavam como se nada tivesse mudado, e Minnie odiava isso porque nada tinha mudado. Porque
o fatídico dia em que se truncou sua vida, tinham sido elas as que tinham ido procurá-la em Londres. E
elas lhe tinham acenado com aquele caminho.
Se vier conosco – lhe havia dito sua tia avó Caroline, – Minerva Lane morrerá para sempre. Não
pronunciará nunca mais esse nome. A pessoa que é hoje desaparecerá.
Papa. Nada a não ser papa, e o medo a que um dia não tivesse nem sequer isso.
– Sabia que Billy está cortejando? – perguntou sua tia avó
Caroline.
– Não! Não pode já ter essa idade.
– Tem dezoito – respondeu Caroline. – E que o céu me ampare se souber quando ocorreu isso. Parece
que foi só o mês passado quando acabava de nascer.
Minnie não podia atender à conversa. Tinha adotado um nome novo quando suas tias a levaram com
elas; e com o nome, tinha adotado também uma personalidade nova. Ao princípio nem sequer sabia andar
como uma garota. Com o passar do primeiro ano, suas tias a tinham corrigido constantemente. “Não
contradiga”. “Não eleve a voz”. “Não dê um passo à frente”. Tudo o que chamasse a atenção estava
proibido. Minnie tinha se tornado cada vez mais pequena até que sua personalidade teria cabido em uma
noz… e teria demasiado pequeno para mover-se
Tornou-se pequena e calada. E, como tinha conhecido outras coisas, sua frustrada ambição reprimida
foi murchando. Tinha atacado o pouco trabalho caridoso que permitia às mulheres, mas não era
suficiente. E agora lhe esperava uma vida inteira desse mal, de ver-se obrigada a tornar sua alma o mais
pequena e insípida possível com a esperança de que acabasse por entrar nos limites estreitos de sua vida.
“Você tem uma personalidade de aço e um estranho talento para ver o que tem diante de seus olhos.
Eu poderia fazer com que todos vissem isso”.
Minnie amaldiçoou os olhos dele e amaldiçoou sua carta. Amaldiçoou seu sorriso, esse sorriso que
fazia com que quisesse beijá-lo somente para que ele soubesse que tinha aceito aquela luz em seu
interior.
“Qualquer outra coisa seria um desperdício criminal”.
Amaldiçoou aquele homem, porque, embora não falasse a sério, embora tudo aquilo fosse só um
modo de tentar lhe nublar a mente e desviá-la de seu caminho, tinha-lhe feito acreditar que ela podia
mudar as coisas. E que dessa vez, quando o fizesse…
Aquele desejo a golpeou com a força de um murro no peito. Foi doloroso e lhe paralisou. Não só
desejava. Tinha esperança. Necessitava.
Sonhava que, dessa vez, quando revelassem à multidão o que era em realidade, não a rodeariam nem
lhe atirariam pedras. Essa vez não a chamariam besta nem semente do diabo. Essa vez, em vez de tirar-
lhe tudo, alguém a amaria por ser quem era.
Um desejo que era muito grande para a pessoa que tinha que ser.
Amaldiçoou ao duque de Clermont por lhe dar aquela esperança. Amaldiçoou-o por seu conselho de
que olhasse para cima. Amaldiçoou-o por lhe fazer acreditar.
Picavam-lhe os olhos. Apontou com o garfo no prato e golpeou cegamente.
– Maggie – Eliza arqueou as sobrancelhas com preocupação. – Está bem?
– Estou…
“Muito bem”.
Supunha-se que tinha que responder isso. Não devia pedir nada nem admitir nenhum desconforto. Uma
dama tinha que comportar-se assim.
Mas a mentira não pôde cruzar seus lábios. Estava cheia, transbordando de emoção. E, de algum
modo, em vez de murmurar uma desculpa e sair da sala, como tinha que ter feito, sentiu que lhe escapava
o garfo da mão, cruzava a mesa e golpeava a parede de frente com um som metálico.
– Não – repôs. – Não, não estou bem.
– Minnie!
– Não estou bem – repetiu. – Não estou bem. Como puderam me fazer isto?
Eliza ficou em pé e deu um passo para ela.
– Minnie, o que te ocorre?
– Vocês me fizeram isto – repetiu a jovem. Tremia-lhe a voz por tantos anos de lágrimas não
derramadas. – As duas me fizeram isso.
Converteste-me nesta… nesta…
Encontrou a colher ao lado de seu prato e lançou também aquela parte de estanho contra a parede.
– … neste nada! – terminou. – E agora estou presa nela e não posso encontrar a saída.
Eliza e Caroline trocaram um olhar doído.
– Tenho tudo isto dentro de mim. Todos estes pensamentos, estes desejos, estas ambições.
Caroline fez uma careta de dor ao ouvir isso.
E não são nada – continuou Minnie. – Nada, nada, nada. Igual a mim.
– Oh, Minnie! – disse Eliza, com a mesma gentileza que usaria um moço de estábulo com um cavalo
que se encabritava. – O sinto muito. Prometi a sua mãe antes de morrer que cuidaria de ti. Se tivesse
cumprido minha promessa, agora não se sentiria assim. Nunca teria sabido…
Não foram as palavras o que conseguiram; foi o tom quente e acalmado. Minnie sentiu como se
evaporava sua fúria em resposta a esse tom. Em poucos minutos voltaria a sentir-se plácida, e não ficaria
nada que recordasse aquela noite salvo alguns arranhões no papel pintado da parede, onde tinham
deixado seu rastro os dentes do garfo.
Mas ainda podia ouvir a voz do duque. Podia ainda ver seus olhos, tão azuis e brilhantes, e a
intensidade de sua expressão. Aquela carta podia não ser mais que um gesto nobre por parte de um
homem que podia permitir-se aquelas coisas. Mas no que dizia havia verdade suficiente para que Minnie
não pudesse evitar agarrar-se a ela.
“Isto poderia ter sido teu, se fosse outra pessoa”, atormentou-a sua lembrança.
“Ele poderia ser teu se fosse você mesma. Mas não o é. Não o é”. Eliza se aproximou e lhe pôs uma
mão no ombro.
– Não deveria havê-lo sabido nunca – repetiu.
E a lembrança da Minnie, a lembrança de sua audaz confiança, de seu entusiasmo juvenil, parecia tão
longínquo que notou que assentia com a cabeça.
“Você não é nada. Um nada não sente”.
Eliza lhe apertou o ombro e Minnie se deixou cair de novo em sua cadeira.
– Vamos, vamos – sussurrou sua tia avó. – Não é nada, não é nada.
– Pois claro que não é nada – sussurrou Minnie, é quão único fui.
Depois disso, foi impossível conter um grande rio de lágrimas.
Chorou até que expurgou todos os desejos de seu coração… seu desejo nostálgico pelo passado que
tinha perdido, entrelaçado com o futuro que não podia contemplar.
– Possivelmente – disse sua tia avó, quando se acalmaram as lágrimas, – possivelmente deva tomar
um descanso nesse assunto de… do matrimônio. Fica umas semanas na granja. O que te parece?
Minnie não tinha umas semanas. Mas tinha a carta, a prova que necessitava. Podia pôr fim às
suspeitas de Stevens sobre ela no dia seguinte.
E por que, então, não queria fazê-lo?
Negou com a cabeça.
– Isso não ajudará – disse. – Isso nunca ajuda. Nada ajuda.


NA MESA DO HOTEL PODERIAM ter comido oito pessoas, caso tivesse sido necessário. Esse dia
estava a mãe de Robert em uma ponta, e na outra, separado dela por seis pés de mogno bem encerado e
polido, estava Robert. Parecia que todos os garfos de prata que possuía o hotel estavam naquela mesa, e
também a maioria das colheres. Ele poderia ter construído uma torre de relógio completa com todos
aqueles talheres.
A mãe de Robert depositou um desses garfos na mesa com muito cuidado.
Robert sabia que era seu modo de enviar um sinal. Tinha mudado a data e tinha ido vê-lo sabendo que
Sebastian e Oliver estavam na cidade. Isso implicava que aquilo não era somente uma refeição, a não ser
um parlamento. Duas partes independentes e levemente hostis que se reuniam para acordar as tarifas entre
suas nações.
Como sempre, ela não tinha nem um fio de cabelo fora de seu lugar. Ia vestida ao que certamente seria
a última moda, embora Robert não se incomodava em segui-la. Usava um vestido azul escuro, com a
prega bordada com um desenho branco e ouro de duas polegadas de largura. Sua cintura era fina, mas não
muito apertada, e um xale de renda negro lhe cobria os ombros.
Sempre tinha sido uma mulher imponente, como uma torre de castelo longínqua que espreitasse no
horizonte. E sempre se mostrou distante, inclusive quando o visitava quando menino.
As duas jardas que havia nesse momento entre eles poderiam ter sido um estádio. Desde que ele
alcançou a maioridade, tinham obtido uma espécie de confortável convívio. Quando ambos coincidiam na
cidade, jantavam juntos, nunca mais de uma vez, e não falavam de nada. Das obras benéficas dela, do
trabalho dele no parlamento… Tudo o que se diziam nesses jantares poderiam havê-lo sabido lendo as
páginas da sociedade. Ele não tinha expectativas com ela e ela já não o decepcionava.
Mas que ela fosse vê-lo… aquilo era novo.
Bem, Clermont – a duquesa deixou a colher e um servente retirou sua tigela de sopa. Ela tinha a vista
cravada em Robert. Olhava-o com expressão afável e cortês. Nada fora do comum. – Suponho que sabe
por que vim.
– Não – respondeu ele. – Não sei.
Ela arqueou uma sobrancelha.
– Não o recorda? A última vez que falamos, mencionou que pensava tomar uma esposa.
A última vez que tinham falado tinha sido dois meses atrás. Robert tinha assentido quando ela havia
dito que um homem que se aproximava dos trinta deveria pensar no matrimônio. Em seu momento lhe
tinha parecido um comentário inócuo. Um tema de conversa sem complicações.
– Você concordou em cumprir com seu dever – disse ela com calma.
– Disse que me casaria – recordou ele. – Acredito que não disse nenhuma palavra sobre o dever.
Lhe palpitaram as aletas do nariz e apertou os lábios, como se a ideia de que o matrimônio pudesse
ser algo mais que um dever lhe desse vontade de espirrar. Mas não disse nada até que lhes serviram o
seguinte prato. Então esperou até que Robert tomasse uma dentada, e não pudesse protestar, antes de
falar:
– Se tivermos que abordar o tema como é devido, poderia levar anos. Tais assuntos não se podem
tratar de um modo cavalheiresco. Terá que investigar antecedentes, obter informação – pegou um garfo. –
Devemos fazer listas. Eu já comecei três.
Robert tragou a dentada de pescado apesar de que tinha a garganta seca. Embora a mulher sentada
frente a ele fosse sua mãe, era uma estranha. Quando era menino a tinha visto muito pouco. Em outro
tempo tinha querido que ela o cuidasse. Tinha-o desejado desesperadamente; tinha inventado uma
desculpa atrás de outra para justificar sua ausência. Mas ela tinha deixado dolorosamente claro que suas
desculpas eram somente isso e que não queria ter nada a ver com ele.
– Perdão – disse Robert, consciente de que um manto de silêncio cobria a sala desde que ela tinha
falado. – O que quer dizer com o de que devemos fazer listas? Quais listas devemos fazer?
– Você não tem do que preocupar-se – ela fez um movimento elegante com a mão. – Posso te mostrar
o que tenho até agora. Organizei os nomes que recolhi em três categorias: filhas de nobres, herdeiras e
outras – aspirou o ar. – Com um pouco de trabalho de minha parte, acredito que poderei evitar a
necessidade de considerar qualquer mulher da categoria “outras”.
Vinte e oito anos de quase indiferença por parte daquela mulher e de repente saía com aquilo?
– Ou seja, que quando diz “devemos” – comentou Robert, – em realidade se refere a ti mesma.
– Bom… – ela se mostrou surpreendida pela pergunta. – Não é preciso que pareça tão decepcionado,
Clermont. É obvio que se terão em conta seus desejos.
– Terá em conta meus desejos – repetiu ele. – Que generosidade! E que curioso modo de dizer essa
frase tendo em conta que aqui não há ninguém mais! Posso perguntar pelo nome da pessoa que tão
amavelmente se advém a ter em conta meus desejos? Depois de tudo, apenas se trata de meu matrimônio.
Sua mãe lambeu o lábio inferior e guardou silêncio. Fixou a vista no prato, mas apertou os dedos em
torno do garfo.
– Obrigado, duquesa – comentou Robert, – mas não necessito sua ajuda neste assunto.
– Clermont – a voz dela continha um deixe de exasperação. – Pode ser que seja seu matrimônio, mas
sua escolha me afetará – ergueu a cabeça com os olhos muito abertos. – Se seu matrimônio for tema de
falatórios, sofreremos todos os relacionados contigo. Tenho décadas de experiência com a boa
sociedade. Seria estúpido não aproveitá-la.
Estava sentada muito rígida. Pequenas manchas de rosa apareciam em suas bochechas. Sem dúvida se
dava conta de que, quando ele se casasse, ela se converteria na duquesa viúva de Clermont, e
provavelmente aborrecia ceder seu posto na sociedade a uma moça que não a respeitasse como queria.
– Não te ofenda, mãe – grunhiu Robert, – mas não te considero uma perita em matrimônios. Para ser
uma perita, teria tido que ter um.
Ela apertou os lábios.
– Insultos – aspirou ar– Cada dia te parece mais a seu pai. Considere minha oferta, Clermont, e
falaremos quando tiver tido tempo para refletir. Não pode te dedicar a passear por Londres até que veja
uma candidata cujo aspecto você goste. Esta é uma das decisões mais importantes de sua vida.
Sua esposa compartilhará o resto de seus dias.
Não necessariamente – a contradisse Robert. – Sempre pode partir. Olhou-a nos olhos através da
mesa. – Se decidisse fazer isso, direi que fale contigo. Acredito que tem experiência nessa frente.
Lhe palpitaram as aletas do nariz. Robert quase pensou que ia golpear o chão com o pé e caminhar
por ali como um touro zangado. Mas a duquesa se limitou a baixar a vista e comer um pouco de comida.
Havia uma razão para que sempre tivessem falado de coisas superficiais. Era impossível falar a sério
sem amargura. Não tinham um passado comum no que apoiar-se, quase não tinham conhecidos comuns.
Sua mãe tinha passado mais tempo de visita com a mãe de Sebastian, irmã de seu marido, que vivendo na
mesma casa que Robert quando este era menino.
E tinha sido escolha dela. Ele poderia havê-la perdoado em outro tempo. Tinha havido um tempo no
qual teria perdoado tudo. Sabendo o que sabia de seu pai, parecia injusto acusá-la por havê-lo deixado.
Mas quando deixou a seu marido, tinha abandonado também a seu filho. Por muito que ele o tinha pedido,
ela nunca tinha olhado para trás.
– Ao menos – disse ao fim a duquesa, com certa rigidez, – ao menos pode utilizar minhas listas.
– Não, Excelência – respondeu Robert com voz tão fria como se sentia ele. – Acredito que não
necessitaremos suas listas.
Ela piscou. Olhou sua comida.
– Como assim necessitaremos? – perguntou. – A quem te refere com esse plural?
– Não lhe disse? A Sebastian Malheur – Robert sorriu. – Por que acha que lhe pedi que venha?
Ela abriu muito os olhos.
– Esse homem! – vaiou. – Já me chamou e… – vaiou com desgosto. – Não tem nem o mínimo sentido
do decoro. Parece-me bem que te relacione com ele por lealdade familiar, mas que o trate com
intimidade…
– Não tema, Oliver Marshall também está aqui e ele…
– Essa é a companhia que frequenta? Um infame e um bastardo?
Robert quase ficou em pé de um salto com fúria. Mas gritar nunca o tinha levado a nenhuma parte.
Exalou devagar e esperou até que recuperou a calma gelada de antes.
– Ah! – exclamou. – Insultos.
Ela fez uma careta de desprezo.
– Parece que nos parecemos apesar de tudo – continuou ele. – Espero que não te horrorize muito esse
descobrimento.
Ela não parecia zangada. De fato, em seus lábios se vislumbrou uma ameaça de sorriso, o primeiro
que via Robert desde sua chegada.
– Já sabia – respondeu. – Por que crê que estou aqui?
CAPÍTULO 11

– ONDE ESTIVESTE ESTES últimos dias? – perguntou Lydia. – Te enviei uma nota faz duas noites,
mas suas tias me responderam que estava doente.
Minnie olhou para sua amiga. Lydia sorria e não parecia preocupada. Pegou Maggie pelo braço e a
levou até a parte traseira da casa dos Charingford.
– Não estava doente.
– Já sei, parva – Lydia lhe deu um tapinha na mão. – Se tivesse sido grave, teria insistido em que me
dissessem. E se não tivesse sido grave, teria escrito você mesma. Onde estava?
Minnie olhou a seu redor. Não havia serventes por perto; ninguém que ouvisse o que diziam. Apenas a
parede com painéis de madeira do corredor.
– Não posso lhe contar tudo, mas neste momento estou metida em outra estratégia.
Lydia empalideceu.
– Nada disso – se apressou a dizer Minnie. – Isso nunca mais.
– Oh, Deus! Assustaste-me. Olhe minhas mãos – Lydia as estendeu. Estavam tremendo.
– Se tivesse a ver contigo, haveria dito antes de qualquer coisa.
Dessa vez… – fez uma careta– é um segredo de outra pessoa.
Lydia aceitou aquilo com um leve encolhimento de ombros e abriu a porta da sala dos fundos. Minnie
viu com surpresa que estava ocupada. Ocupada e muito, muito quente.
Três faxineiras estavam sentadas diante da chaminé, onde se elevavam alegres chama laranjas
bastante altas. As faxineiras amassavam papéis e os jogavam ao fogo um por um, para que não se
descontrolassem as chamas. O ar cheirava a papel queimado.
– O que é isso? – perguntou Minnie.
– Oh! Não ouviste? – respondeu Lydia. – Um grupo de radicais está deixando santinhos por toda a
cidade. Deixaram um montão diante da camisaria de papai. Teve que arrancar-lhe ele mesmo e os
operários. Passou a manhã tentando retirar todos.
Minnie olhou para sua amiga.
– Tão horríveis são?
Lydia sorriu com picardia e se aproximou para pegar um das mãos de uma das faxineiras.
– Olha-o por ti mesma.
Minnie olhou o papel que tinha diante. Começou a ler…
E se topou com um parágrafo que fez com que levasse uma mão à boca.
… Deixar de trabalhar é uma espécie de ataque à descoberta. Primeiro deem voz a seus problemas,
gritem com o volume de mil gargantas. Segundo, esvaziem as fábricas em que trabalham, deixando
assim que se encolham os bolsos de seus amos em um contraponto veemente. Sede conscientes de onde
estão e do espaço que deixam para trás.
– Está falando de uma greve – disse Lydia. – Verdade?
“Deixar de trabalhar é uma espécie de ataque à descoberta”. Minnie sentiu que lhe gelava o sangue
nas veias.
– Possivelmente – estava um pouco tonta. – Ainda há um longo caminho entre os santinhos e a
organização, e entre a organização e o seguimento – apoiou uma mão na parede para apoiar-se.
“Sede conscientes de onde estão e do espaço que deixam para trás”.
Aquelas palavras eram familiares… muito familiares. A última frase era quase uma entrevista direta
de “Sobre xadrez”, de Tappitt, um livro pouco conhecido. Ela o tinha comentado ao duque de Clermont
sem dar importância a suas palavras. Depois de tudo, ele tinha confessado que ignorava o jogo.
Ela também tinha usado essas palavras antes. Havia dito algo quase idêntico á Stevens uns meses
atrás, quando falavam da bomba de água do Harley. Isso não tinha nada de estranho. As palavras da
estratégia do xadrez formavam parte de seu vocabulário desde que tinha memória. Sua primeira
lembrança era estar sentada ante um tabuleiro de xadrez com seu pai em frente.
– Isto – lhe havia dito ele– é um ataque à descoberta. Vê? Um movimento, duas ameaças. Assinala-me
isso?
– Se não fosse verdade – disse Lydia, – meu pai não teria ficado tão furioso. Mas não pode permitir-
se que pare a camisaria.
– Entendo – murmurou Minnie.
Lydia despediu as faxineiras com um gesto.
– Nós terminamos isso – disse. – Se retirem.
As donzelas saíram da sala. Lydia se sentou ante o fogo e começou a jogar panfletos a intervalos
regulares.
Minnie respirou em silêncio. Melhor que os queimassem.
Possivelmente ninguém os teria visto. O duque tinha usado suas palavras.
– Lydia, viu o Stevens? – perguntou.
– Sim. Hoje. Depois que distribuíram isto, meu pai e ele estiveram horas trancados. Depois de tudo,
se houver uma greve, terá que ser Stevens que a pare. Discutiram por algo e Stevens se foi. Meu pai me
disse que ia a Manchester para investigar algo, embora não sei o que poderia averiguar ali de nossos
operários. Possivelmente que os operários se comunicam entre eles?
Não. Stevens tinha lido o santinho. Tinha recordado as palavras que lhe tinha mencionado sobre o
ataque à descoberta. E fazendo honra a sua palavra, tinha ido a Manchester para investigar a vida dela
porque a acreditava culpada. Minnie se sentia enjoada.
– Crê que meu pai paga suficiente a seus operários? Stevens diz que, se ceder uma vez a suas
exigências, cada vez serão menos razoáveis. Mas eu acredito que poderia te ocorrer um modo de impedir
isso. Como fez com o Comitê de Higiene dos Operários.
Minnie não podia fazer nada sobre tema. Sacudiu a cabeça para limpar seus medos.
– Não sei – disse. – Mas Stevens e seu pai… Lydia ergueu os olhos ao céu.
– Não quero falar de Stevens – baixou a voz. Olhou-a. – Crê que se inteirou do que passou há alguns
anos? – perguntou, em direta contradição com sua declaração anterior. – Que esses rumores sobre seu
passado são porque alguém lhe falou de mim? Nós duas fomos a Cornwall. Possivelmente…
possivelmente descobriu algo ali.
– Estou segura que não – retrucou Minnie.
– Mas como…?
– Sei por que me falou de suas provas – disse Minnie. – Não tem nada sobre ti. São todas tolices,
algo sobre minha mãe não estar casada, algum rumor que ouviu de uma velha que está perdendo a
memória ao final de seus dias.
Lydia suspirou.
Mas a Minnie isso não tranquilizou. Stevens tinha ido procurar notícias delas. Tinha a impressão de
que a sala estava envolta em partes de algodão, em nuvens e nuvens de algodão que a rodeavam. Na
distância ouvia gritos apagados. Os ruídos de uma grande multidão, a piscada quando o sol brilhante
tragava sua visão…
– Minnie, está bem?
A voz preocupada de Lydia a devolveu ao presente. Não havia gritos nem distúrbios. Não havia
multidão.
Ao menos ainda. E possivelmente…
– Estou bem – disse. – Somente… pensava.
Stevens demoraria uma semana ao menos em descobrir a verdade… caso soubesse vê-la quando a
tivesse diante dele. E ela tinha a carta do duque. Isso, junto com todo o resto que tinha descoberto,
provaria que ela não tinha estado envolvida.
Lydia a observava com atenção.
– Do que queria me falar?
Minnie suspirou. Olhou a sua amiga.
– O outro dia na Comissão de Higiene dos Operários, o doutor Grantham perguntou por ti.
Lydia ergueu um pouco o nariz.
– E o que?
– Que… queria verte – embora talvez o houvesse dito apenas para incomodar ao Stevens. – É jovem
e atrativo. Cai-me muito bem.
– A mim não – retrucou Lydia. – Ele trabalhava com o doutor Parwine quando ocorreu aquilo. E
agora me olha com cumplicidade.
– Olha a todo mundo assim – replicou Minnie. – Acredito que não pode evitá-lo.
– E é muito sarcástico.
– É sarcástico com todo mundo.
Lydia afastou a vista.
– Eu não gosto de recordar e ele me faz recordar. Cada vez que ri para mim, que me olha, julga-me
por minha frivolidade. Não suporto estar perto dele.
– Não tinha nem ideia – Minnie se moveu para sentar-se ao lado de sua amiga.
– Minha frivolidade já me deu muito trabalho – as mãos de Lydia tremiam. – Como se atreve a me
julgar por ela?
Minnie sabia muito bem a verdade que escondia a afirmação de sua amiga.
– Sei que às vezes crê que não sou séria. Que sonho muito. Que deveria ser mais racional – Lydia
suspirou.
– Eu não acho isso.
– Apenas as tragédias são grandes – comentou Lydia. – A melancolia é sabedoria. O sofrimento é
força.
– Lydia…
– Alguma pessoas me considerariam fraca porque fui seduzida por um homem mais velho.
Minnie olhou a seu redor, mas não havia ninguém mais na sala e sua amiga falava em voz baixa.
– Porque não sabia que estava casado. Porque não entendi bem o que estava passando. Algumas
pessoas me considerariam fraca porque te pedi ajuda.
– Eu não.
Lydia tinha pedido ajuda a Minnie e esta tinha pensado em tudo. Como afastá-la da vista do público
durante a gravidez, como fazer com que a viagem parecesse respeitável para que ninguém falasse. Tinha
sido questão de estratégia, e naquele momento, Minnie tinha acolhido com alegria ter algo que fazer.
Lydia jogou um punhado de santinhos no fogo e esperou até que se queimassem.
– Algumas pessoas pensariam que era fraca porque chorei quando tive o aborto. E pensariam que
você foi boba por me abraçar e me dizer que tudo se arrumaria. Mas, sobretudo, me tomariam por
estúpida porque aprendi a sorrir de novo. Pensariam que você não vale nada porque não usa seda nem
laços e porque terão que escutar com atenção para captar o que diz. E essas pessoas não sabem nada.
Minnie recordou as palavras do duque de Clermont.
“Vê-a alguém, senhorita Pursling?”.
“Sim”, queria responder. “Sim, alguém me vê”.
– Apenas por uma vez, eu gostaria que todos lhe vissem como eu
– disse Lydia.
Minnie moveu a cabeça e abraçou a si mesmo.
– Não, não. Não quero que me olhem. Não posso suportar que me olhem.
– Bom, possivelmente todos não – Lydia sorriu com astúcia. – Mas tudo bem…?
Minnie conteve o fôlego.
– Não pronuncie seu nome.
– O duque de Clermont – terminou Lydia. – Quero que todos aqui saibam o mal que lhe julgaram ao
imaginar calada e obediente. Quero que entendam o que eu sei tão bem, que tem um coração amoroso e
uma mente inteligente.
Minnie afastou a vista.
– Isso apenas ocorre nos contos de fadas. Às garotas de verdade ficam melhores com um bom dote e
o cabelo loiro.
– E o que mais odeio é que não podemos mostrar provas de quão maravilhosa é. Mas sigo pensando
que a verdade se saberá algum dia. E esse dia, todos lhe conhecerão como eu.
– E crê que gostariam do que veriam?
Lydia assentiu com firmeza.
– Estou segura de que sim.
O otimismo de Lydia não tinha nada de ingênuo. O tinha ganhado limpamente, e nem sequer Minnie
podia privá-la dele. Que estranho que Lydia pudesse estar tão segura de sua visão do futuro e ela não
pudesse ver nada!
Voltou a cabeça.
– Pois há algo mais que devo te dizer. O doutor Grantham queria que te convidasse para distribuir os
panfletos com Marybeth Peters e comigo.
Lydia olhou o papel enrugado que acabava de jogar ao fogo.
– Esses panfletos não – murmurou Minnie com um sorriso pouco sincero. – São aqueles ainda mais
aborrecidos, sobre varicela e desinfetante.
– E o doutor Grantham estará presente?
– Não – Minnie lhe dedicou outro sorriso pouco sincero. – Essa é a parte que te resultará
interessante. Outra pessoa se ofereceu em seu lugar, e jamais adivinharia quem.
– Tola – Lydia lhe apertou a mão. – Já sei. Foi como um conto de fadas? – Minnie retorceu as mãos
com angustia… – Espera, você nunca diria isso. Minnie beliscando a ponta do nariz enquanto esses
homens idiotas discutiam com ela perguntando-se como conseguir com que todos fizessem o que queria –
sorriu. – E de repente o príncipe de Gales entrou na sala.
Minnie soltou uma gargalhada.
– Oh, muito bem – disse Lydia. – Suponho que isso seria pouco provável. Além disso, está casado. E
eu não gostaria de imaginá-lo sendo infiel à princesa Alexandra. Assim vou me decidir pelo duque de
Clermont. Entrou, jogou uma olhada a seus seios e te reclamou para si.
– Bom…
Lydia a apontou com o dedo.
– Sabia. Deveria ver como ele lhe observa.
Minnie tentou não fazê-lo, mas a lembrança foi a ela sem que tivesse que esforçar-se. Ruborizou-se.
– Que não lhe coloquem coisas na cabeça – advertiu.
E o que tinha se a olhava o duque? Isso não significava nada. Falava sem pensar e não considerava as
consequências de seus atos. Provavelmente seus olhares tampouco queriam dizer nada.
– Apenas estava sendo… – Minnie se interrompeu. Não sabia como terminar a frase. Cavalheiresco?
Irritante?
Inclinava-se pelo último, tendo em conta que tinha usado as palavras dela tal qual nos santinhos. Mas
recordava o olhar intenso dele depois do último encontro da Comissão de Higiene dos Operários. E
também seu sorriso surpreendido quando lhe havia dito que gostava de seus amigos. Um sorriso tão
luminoso como um amanhecer.
– Enviou uma nota – disse. – Sugere que nos vejamos amanhã pela tarde. Estaremos, Marybeth Peters,
eu…
– E o Duque de Clermont – Lydia sorriu. – Tenho um bom pressentimento com isto, Minnie.
“Olhe para cima”.
Minnie se abraçou o corpo.
– Não. Não o tenha. Eu não posso pressentir isso.
Lydia moveu a cabeça.
– Pois claro que não. Por isso o faço eu por ti.
CAPÍTULO 12

NO DIA SEGUINTE, a Minnie não custou nenhum esforço manobrar para ter uma conversa privada
com o Duque de Clermont. Depois de tudo, os pôsteres se colocavam melhor em duplas, e assim que
estabeleceram isso, Lydia se pegou a Marybeth Peters e cruzaram a rua com os papéis e a massa de
pregar na mão, deixando sozinhos Minnie e o duque.
Ainda que não totalmente. Em primeiro lugar, estavam em um lugar público. E Lydia e Marybeth se
achavam a pouca distância, na outra calçada de Haymarket. As pessoas passavam pelas ruas. Um homem
vendia castanhas em uma esquina; uns moços tinham feito fogo no chão e o alimentavam com pedaços de
lixo.
E Minnie não sabia o que dizer. O que se propunha ele? Tinha-lhe dado a carta, havia-lhe dito que a
desejava e ela sentia ainda calafrios na coluna quando recordava o olhar dele ao lhe dizer aquelas
palavras. E depois tinha usado as palavras dela em um panfleto e escurecido assim a nuvem de suspeita
que a envolvia.
Em vez de tentar esclarecer tudo aquilo, entregou-lhe o recipiente com a massa de colar.
– O que você sabe de trabalho manual?
– Humm – lhe brilharam os olhos. – Tenho lido algo sobre isso. Percorri as fábricas que herdei de
meu avô e falei com todos os operários que pude quando tive ocasião.
– Mas nunca o fez.
– Não… em realidade, não.
Minnie lhe entregou um bastão de madeira.
– Parabéns – disse. – Está a ponto de rebaixar-se a novas profundidades.
– Estou desejando isso – ele, divertido, tomou a vasilha de cerâmica e a seguiu pela calçada. Ela se
deteve na primeira esquina e segurou um folheto em alto.
– O que faço? – perguntou ele.
– Você põe a massa de grudar no folheto e eu o prego na parede.
– Simples assim? – destampou a jarra, molhou o bastão nele e aplicou desajeitadamente a substância
branca no folheto que entregava Minnie.
– Este é um grude muito sujo – ela se voltou, pregou o papel no tijolo e seguiu avançando.
Acreditava que ele não se propôs a lhe causar problemas. Olhava-a como se não tivesse ocorrido
nada. E para ele não tinha mudado nada. Sorriram-se no trem e lhe havia dito que gostava dos seus
amigos.
Quando se voltou, pegou-o sorrindo. Seus sorrisos eram como relâmpagos na noite, rápidos e fugazes;
iluminavam toda a paisagem por breves momentos e voltavam a dissipar-se. Minnie se lembrou que esses
sorrisos podiam parecer bonitos, mas podiam deixar montões de escombros fumegantes na sua trilha
– E então – disse ele a suas costas, com voz baixa e divertida. – Conhece o ditado: “Não deseje nada
e não pecará”?
Ela piscou.
– Jogos de palavras – disse sem voltar-se. – São a forma mais vulgar de humor.
– Se os disser um duque, não.
Ela ergueu um folheto para que ele o empastelasse, pregou-o na parede, apertando-o um momento
para assegurar-se de que se aderia.
– Você é um duque? – perguntou. – Eu pensava que era um homem morto.
Sua Excelência o Duque de Clermont não deu amostras de havê-la ouvido. Sorriu.
– Passamos a seguinte esquina? A senhorita Peters e a senhorita Charingford nos adiantaram – a olhou
apertando os olhos. – Empastelam melhor que nós.
Minnie se negava a rir com ele e fazer piadas sobre a massa.
Apertou os lábios e caminhou rua abaixo.
Ele a seguiu.
– Acontece algo? Leu minha carta?
– Sim. Li tudo o que escreveu. E estou furiosa com você.
Vamos, vamos – brigou ele. – Não seja melindrosa – soltou um risinho, que terminou assim que ela o
olhou e ele viu sua expressão. O sorriso abandonou sua cara. – Oh. Está muito zangada. Fiz algo errado?
Se tinha feito algo errado? Minnie sentiu desejos de lhe bater.
– Sua última obra de arte. Não posso acreditar no que pôs.
Ele enrugou o nariz.
– Por quê? Porque uma greve prejudicaria a seus amigos? Porque não lhe importa as condições nas
quais trabalham os operários? Ou acredita que não deveria escrever isso, que deveria guardar silêncio,
não dizer o que penso…?
– Oh, pelo amor de Deus! – exclamou ela exasperada. – Se pensasse que não deveria escrever esses
condenados santinhos, já teria mostrado sua carta aos magistrados da cidade. Às vezes eu também quero
gritar tão alto como posso sem que me importe quem me ouça. Estou zangada porque você usou minhas
palavras em sua última aventura. Minhas palavras!
Ele piscou.
– Oh! – mordeu o lábio inferior. – Por isso. De certo modo, suponho que é certo. E por que não ia
fazê-lo? Suas palavras eram boas.
– Não diga tolices. Não me ouviu falar sobre Stevens? Já me acusou de ser uma radical. Por que usou
uma frase que tinha ouvido de mim? Não compreende quão difícil será minha vida se suspeitarem de
mim?
As ruas estavam tranquilas, pois os operários se achavam nas fábricas até que soasse o apito da
tarde. Havia algumas mulheres nas ruas, que iam as lojas, ou lavadeiras com um saco de roupas no
ombro. O murmúrio rítmico de máquinas a umas ruas de distância fazia com que as ruas parecessem mais
tranquilas, pois cobria todos os outros ruídos como uma manta.
– Eu estou aterrorizada – disse ela. – E você não tem nada que temer. Não é justo.
Na calçada em frente, a dez jardas mais acima, Lydia e Marybeth pregavam panfletos de um modo
metódico.
– E bem? – perguntou Minnie, agitando um folheto diante dele. – Não perca tempo. Necessito grude.
– Senhorita Pursling – disse ele formalmente, – peço-lhe desculpas.
Pôs roupa mais escura e áspera para a ocasião. Calças de lã cinza e levita combinando, de tecido
mais áspero, mas de corte perfeito. Usava um cachecol marrom suave ao redor do pescoço. Com esse
traje não parecia um duque, a não ser um patife loiro, peralta e um pouco cínico. O tipo de homem que
tentaria a uma mulher para que passeasse com ele de noite e que lhe daria goles de álcool forte de sua
cigarreira. Seria muito fácil acabar enredada com ele.
Parecia sincero e ela queria acreditá-lo.
– Sente me haver posto em perigo?
Seu sorriso envergonhado também parecia sincero. Olhou-a, introduziu o bastão na jarra e o tirou com
um grande emplastro de betume de massa na ponta.
– Não – suas palavras soavam envergonhadas, mas lhe brilhavam os olhos.
– Isso não. Isto.
Lançou o bastão para o meio do corpo dela. Minnie quase não teve tempo de baixar o panfleto para
defender-se. A borda golpeou o emplastro de betume de massa voadora, que se quebrou no ar e lançou
massa em todas as direções.
Ela o olhou com incredulidade.
– Não sabia que permitiam que meninos de doze anos se sentassem na Câmara dos Lordes – comentou
com voz gelada.
Piscou-lhe, voltou-se para as mulheres da calçada em frente e fez gestos com o braço.
– Estaremos na bomba de água do final desse beco – disse. – Tivemos um acidente com a massa.
– Um acidente com a massa? – Minnie soprou. – O que tivemos foi um ataque.
Mas ele já a tinha tomado pelo braço. Levou-a por um beco entre dois edifícios até um pátio lôbrego
onde havia uma bomba de água. Ele tirou a jaqueta antes de manobrar a manivela da bomba de água; ela
podia ver a forma de seus músculos através das mangas. Estava aterrorizada e ele se dedicava a
presumir.
– E que conste que tenho vinte e oito anos, não doze – disse, sem deixar de trabalhar.
– Felicidades.
– Certamente. Por fim a tenho a sós.
Sorriu de novo e ela se sentiu golpeada pelo raio. Afastou a vista. A bomba soltou um assobio oco, o
que implicava que a água estava a ponto de chegar.
É um assunto sujo paquerar com você.
Enquanto falava, a água saiu pela boca da bomba. Ele a apanhou no balde que tinha preso à bomba de
água.
– E bem? – arqueou uma sobrancelha. – Você queria gritar comigo e me ocorreu lhe dar ocasião de
fazê-lo sem causar uma cena. Adiante.
– Por que utilizou minhas palavras? Fez-o de propósito para pôr em perigo minha reputação? Pensou
que, se me jogavam a culpa, você ficaria livre de toda censura?
Ele negou com a cabeça.
– Teria que ter sabido que não gritaria – encolheu os ombros; tirou o cachecol do pescoço e o molhou
no balde. – Respondendo à sua pergunta, não, não queria nada disso. Talvez tenha sido um pouco
desconsiderado, mas não o fiz com malícia.
Para surpresa de Minnie, ajoelhou-se diante dela e lhe limpou uma mancha de massa com o cachecol.
– Foi simplesmente isto – ele parecia ter sua atenção fixa na massa. – Você me causou uma grande
impressão. Se pode reconhecer suas palavras no que escrevi, é porque meus pensamentos versavam
sobre você – ergueu a vista para ela. – Me ocorre frequentemente.
Maggie pensou que não era justo que ele pudesse esvaziar seu coração da fúria e seus pulmões de ar
com apenas umas palavras. Lhe sustentou o olhar.
Não era justo. Não estava certo. Ele estava ajoelhado diante dela e, entretanto, era ela a que caía sob
seu enfeitiço.
Afastou a vista.
– Isso não muda nada. De todos os modos me pôs em uma posição insustentável. Não sei o que fazer.
Não pode limitar-se a pedir desculpas e esperar que eu lhe sorria.
Ele afastou a vista, não em um gesto de rendição a não ser com ar indiferente, como se quisesse
indicar que não podia incomodar-se com aquilo, e esfregou outra mancha de massa.
Minnie não podia sentir suas mãos através da saia, mas podia imaginar. Imaginar que a leve pressão
que exercia em sua saia se transmitia às anáguas e dali aos calções, as meias e as pernas. Fechou os
olhos enquanto ele ia subindo para cima.
Quanto mais subia, mais ela podia senti-lo. Quando chegou a última parte de massa, não ficava mais
remedeio que aceitar a verdade. Lhe tocava o estômago. Através de camadas de tecido e espartilho, sim,
mas a mão dele estava em seu ventre. Minnie respirou com força.
– Não posso acreditar que tenha tirado massa de minha roupa – murmurou. – Isso deve ser o mais
estúpido…
– Pois claro que foi estúpido – ele olhou a ponta molhada de seu cachecol, encolheu os ombros e o
jogou por cima do ombro. – Estas coisas são assim – se levantou e Minnie ficou olhando para baixo…
aos botões do colete dele.
– As coisas são assim? – perguntou duvidosa. – Está dizendo que é estúpido, Excelência?
– Em certas circunstâncias, sim – a voz dele era só um murmúrio. Adiantou o corpo até que quase lhe
sussurrou ao ouvido: – Verá, há uma mulher.
Minnie se negava a olhá-lo. Não o faria.
– Normalmente, poderíamos dizer que é uma mulher bonita, mas acredito que não é uma beleza
clássica. Mesmo assim, quando ela está perto, eu prefiro olhá-la e a ninguém mais.
Apoiou dois dedos na bochecha dela e Minnie conteve o fôlego.
Não o olharia. Se o fazia, ele veria o desejo em seus olhos e então…
– Há algo nela que atrai meu olhar. Algo que desafia às palavras. Possivelmente seja seu cabelo, mas
tentei dizer-lhe e me disse que era ridículo. Suponho que o era. Possivelmente sejam seus lábios. Ou seus
olhos, embora quase nunca me olhe.
Os dedos que estavam na bochecha de Minnie baixaram até o queixo. Ela se sentia paralisada no
lugar.
– É inteligente – murmurou ele. – Sempre que a vejo, descubro que subestimei seu poder. Confunde-
me muito.
Eram apenas palavras, palavras que diria qualquer homem que queria deixar louca a uma mulher.
Eram apenas palavras. Não significavam nada.
Mas não eram somente palavras. Ninguém mais as havia dito antes; não sabia que as queria ouvir até
que ele as havia dito. Agora estavam cravadas como uma faca entre suas costelas. Desejava que fossem
verdade… o ansiava tanto que lhe doía a cada respiração.
– O que é que tenta dizer? – perguntou aos botões do colete dele. Sua voz não vacilou nem tremeu. –
Que está em desvantagem? Isso já o estabelecemos.
Pois claro que estou em desvantagem – lhe tocava levemente a bochecha. – O varão da espécie
humana tem uma falha fundamental. No momento em que mais desejamos dizer algo inteligente e que
impressione, todo o sangue foge de nosso cérebro.
– Ah, sim?
– É um fato fisiológico – respondeu o duque. – A excitação me torna estúpido. Faz-me dizer idiotices
como: “Eu gosto de suas tetas” e
“Socorro! temos um problema com a massa”. Faz com que queira estar perto de você embora saiba
que estou em desvantagem, embora esteja seguro de que você vai ganhar – baixou a voz. – Verá, quero
ver como o faz.
Minnie tragou saliva. E por um momento, acreditou. Acreditou que ela ganharia, que ganharia de
algum modo um futuro tão incrivelmente brilhante que a deslumbrava apenas pensando nele.
– Embora saiba que vou dizer tolices – disse. – E fazer coisas como lhe jogar pasta em cima – houve
uma pausa. – Perdoe-me por isso – disse por fim. – Foi muito estúpido por minha parte.
– Eu acreditava que havia… coisas… que o macho da espécie humana podia fazer com suas falhas
fisiológicas.
Ele seguia tocando-a; seus dois dedos apertavam levemente o queixo dela. Minnie não podia olhá-lo
enquanto falava. Lhe esquentava o rosto só de pensar o que podiam entranhar essas “coisas” das quais
falava.
– Aqui não – murmurou ele com voz divertida. – Agora não.
Seu polegar acariciou o lábio dela; recordava vagamente a um beijo.
– Com você não – continuou ele. – O sinto.
E ela sentiu muito calor então. Tinha a sensação de que lhe ardia a pele. Notava que se umedecia sob
as saias. Mas aquele banho de desejo líquido apenas servia para entristecê-la.
Os dois tinham interpretado bem o momento. Minnie era muito gentil para que ele se deitasse com ela
de um modo casual, e não o bastante elevada para desposá-la. Isso fazia com que não fosse nada para ele,
uma insignificância com saias. O que quer que fosse aquilo que havia entre eles, era ao mesmo tempo
dolorosamente real e impossivelmente inexistente.
A voz dele soou rouca quando voltou a falar.
– Mas me derrote a consciência – disse. – Ganhe. Me supere,
Minnie. E quando estivermos sozinhos…
Seus dedos esfregaram levemente o queixo dela.
– Quando estivermos sozinhos – sussurrou, – olhe para cima.
Podia lhe haver subido o queixo e havê-la obrigado a fazê-lo. Mas seu dedo indicador permaneceu
quente e firme no rosto dela. Esperou e, ao final, Maggie não pôde evitá-lo. Ergueu a vista.
Seus olhos se encontraram em uma saudação quente.
– Olá, Minnie – ele não sorria. Não se inclinou para ela. Mas quando sussurrou: – Eu gostaria que me
chamasse Robert – sua voz era quase uma carícia.
– Robert.
– Agora – murmurou ele– seria quando eu diria algo muito inteligente, se meu cérebro não tivesse se
convertido em massa.
– Como seduz a alguém se não poder falar nessa fase? – perguntou ela.
– Eu… – ele se interrompeu, sacudiu a cabeça e ergueu as mãos com frustração.
“É uma tradição da família Lane. Quando abandonaste a seu oponente, dá-lhe um beijo para provar
que não há má intenção”.
– Já vejo o que acontece – disse ela com suavidade.
– Vê-o?
Não o via. Não podia ver nada. Não sabia o que fazer sobre o Stevens, o que fazer com o futuro que
parecia derrubar-se diante de seus olhos. Aquilo era justamente o contrário de quando beijava uma peça
de xadrez.
Mas ao olhá-lo nos olhos não via finais, nem a finalidade do matrimônio com um homem que não a
conhecia, nem a certeza cinza de um futuro asilo para pobres. Via começos.
Aquela atração entre eles era impossível. – Entendo – disse ela. – Não seduz às mulheres. Ele sorriu.
– Com respeito a isso…
– Elas o seduzem – e então, antes que pudesse pensá-lo bem, antes que pudesse dizer-se por que
jamais devia fazer aquilo, ficou nas pontas dos pés. Havia apenas umas polegadas entre eles e Minnie
fechou a distância sem pensá-lo.
Ele fez um gesto suave de surpresa. Seus lábios resultavam quentes nos dela, e depois do primeiro
momento de indecisão, estreitou-a contra si.
– Assim – murmurou; e então seus lábios não só apertaram os dela, como se moveram sobre eles
incitando-os ao beijo.
Aquele beijo tampouco era um final, a não ser algo novo e vibrante, brilhante de possibilidades. Os
lábios dele apanharam os dela uma e outra vez. Quando suas línguas se encontraram, ele levou as mãos
aos lados do rosto dela e a atraiu mais para si, com tanta brutalidade, que ela temeu que pudesse quebrar-
se.
Beijou-a e ela se apertou contra ele, com as mãos em seu peito e os botões de seu colete cravando-se
nela. Deslizou os dedos debaixo do cachecol dele e o apertou mais contra si.
E então ele se separou. Minnie abriu os olhos e olhou ao pátio, à bomba de água.
Ele sorriu.
– Acredito que é a primeira vez que me emprestaste toda sua atenção.
– Robert – ela tragou saliva, indecisa.
– Em resposta ao que disse, tem razão. Não lhe devo somente uma desculpa. Apenas posso repetir o
que já lhe disse. Não a deixarei em pior situação que a que estava quando a conheci. Sei que tem medo.
Sei que posso ser desconsiderado. Mas não sou sempre desconsiderado, senhorita Pursling – disse,
renunciando ao seu prenome de repente. – Há muitas coisas que posso fazer e não permitirei que ninguém
lhe faça mal. Tem minha palavra.
Ela sabia que não devia acreditá-lo. Ele não podia assegurar aquilo. Já a tinha arruinado por dentro,
tinha-lhe feito questionar a paisagem sombria que era sua vida. Tinha-lhe feito conceber esperanças.
Tinha a sensação de estar flutuando entre nuvens e isso implicava que estava acostumada ao muito
abaixo.
– Não deveria acreditá-lo – passou as mãos pela cara. – Deveria lhe mostrar sua carta ao senhor
Charingford agora mesmo.
– Deveria havê-lo feito faz dois dias. Minnie sorriu fracamente.
– Sei.
Devolveu-lhe o jarro com a massa de colar. Seus dedos se encontraram e todo o corpo dela cantou em
resposta. E se deu conta, pela primeira vez, de que ele era muito preparado. Ela não o tinha vencido, lhe
tinha entregue a chave de sua queda… e assim tinha conseguido que lhe resultasse quase impossível usá-
la.
CAPÍTULO 13

QUANDO Minnie SOPROU a vela AQUELA NOITE e se meteu na cama, todas as emoções do dia a
tinham abandonado. Tinha a sensação de que se achava nas labaredas de um fogo selvagem, com o
terreno a seu redor enegrecido e queimado até onde alcançava à vista. Quase podia cheirar a fumaça e
sentir em seu interior as brasas ocultas que ainda não se converteram em cinza.
– Não te apaixone por ele, Minnie – advertiu a si mesmo. Mas o quarto estava às escuras e seu corpo
não tinha esquentado ainda os lençóis.
Se ele fosse menos atrativo, menos rico e não fosse duque… Poderia ter sido um ferreiro ou um
livreiro. Alguém humilde, mas com sua mente aguda, seus olhos penetrantes e aquele sorriso luminoso
que parecia feito apenas para ela.
Em vez disso, era uma das pessoas de mais linhagem do reino. Podia escolher entre milhares de
mulheres. De fato, provavelmente estava escolhendo uma naquele momento. Os duques faziam essas
coisas, não? Tinham uma amante, que podia ser loira, castanha ou morena, dependendo do capricho que
tivessem aquele dia. Tomavam o que queriam e deixavam um punhado de moedas como lembrança. Ser
duque implicava que tinham um harém perpétuo a seu alcance. Só tinham que pedir.
Aquela ideia deveria ter aborrecido a Minnie, mas, por alguma razão, imaginou ao Robert… Não,
tinha que pensar nele como “o duque”, não por seu nome, não como uma pessoa. Imaginou, pois, ao duque
olhando um desfile de garotas que lhe mostrava uma proprietária de rosto magro. Imaginou que pousava
os olhos em uma garota de cabelo castanho claro e peito grande. – Ela – dizia. – Esta noite quero a essa.
“A desejo”.
Era muito estúpido por sua parte imaginar que esse desejo persistiria o suficiente nele para pagar uma
substituta. Minnie trocou de posição na cama, mas não pôde tirar a ideia da cabeça.
Ele podia estar na cama com a outra naquele momento. Suas mãos roçariam os seios dela. Assim. Seus
lábios não encontrariam a palma da mão dela, a não ser seu pescoço, seus lábios. Não haveria hesitação
nem contenção. Não haveria nada fora do desejo excitado dele.
Cobriria à mulher com seu corpo e ela se entregaria a ele. Abriria as pernas, abraçaria com elas o
corpo dele…
Aqueles pensamentos conseguiram esquentar a cama de Minnie, mas uma vez que tinha começado, já
não pôde frear sua mente. Levou uma mão entre suas pernas e a outra a um dos mamilos. Imaginou
desejando-a tanto como o desejava ela, possuindo-a em sua imaginação como não podia permitir que
acontecesse na vida real. Ele se afundou nela com força; ela se estremeceu quando chegou à beira do
orgasmo. E quando alcançou o clímax, mordendo o lábio para não gritar, foi a cara dele o que viu.
Depois disso, a cama estava já muito quente, assim teve que afastar as mantas e deixar que a
envolvesse o ar frio, que voltou a converter seus mamilos em pontas duras. Mas o frio não lhe
proporcionou a claridade mental que necessitava desesperadamente.
Levantou-se, aproximou-se do lavatório e jogou água da jarra à bacia. A água estava gelada e a toalha
de lavar-se resultava áspera contra a pele.
Possivelmente ele teria escolhido essa noite uma mulher que se parecesse com ela. Ou possivelmente
não tinha escolhido a nenhuma mulher, mas estava em seus aposentos e se deu prazer a si mesmo como
tinha feito ela. Aquela ideia lhe produziu um desejo profundo.
Se pudesse…
– Nada de ilusões vãs – disse a si mesmo com dureza. – O que tem é o que há.
Tinha que aceitar a realidade. O que acabava de ocorrer era o mais próximo que estaria de fazer amor
com o Duque de Clermont. Podia pensar nele e, se tivesse muita sorte, possivelmente lhe dedicasse
também um pensamento.
O desejo lhe oprimiu a garganta.
Não importava.
Tinha aprendido tempos atrás que seus sentimentos nunca importavam. As coisas eram o que eram
independentemente do que ela sentisse.
E aquele sentimento em particular… Aquele sentimento já a tinha desviado muito de seu rumo.
Abriu as cortinas. Qualquer outra noite teria observado os campos de couves ou o semicírculo de
cascalho que havia diante da casa de suas tias avós.
Essa noite, durante o tempo que demorou seu coração em voltar a pulsar com normalidade, Minnie
olhou para cima. Olhou a lua minguante que aparecia entre as nuvens, as estrelas que brilhavam igual
para a rainha que para os camponeses. Ergueu a vista até que as nuvens cobriram a lua e cortaram toda a
luz.


ESSA MESMA NOITE, MUITO MAIS TARDE, Robert percorria de novo as ruas de Leicester, essa
vez acompanhado por Oliver. Tinha descido a névoa, que se mesclava com a fumaça do carvão e formava
uma espécie de sopa espessa que se grudava a suas roupas. Em algum lugar à sua direita, o relógio de
uma igreja deu nove badaladas; outros relógios responderam quase imediatamente a sua esquerda e o
mesmo fizeram outros mais adiante e atrás deles, formando um coro de badaladas que resultavam ainda
mais sinistras dentro do cárcere silencioso da névoa.
– O que ocorre? – pergunto Oliver por fim. Tinham caminhado em silêncio desde que os relógios
tinham dado meia-noite.
– Tento fazer o que devo – respondeu Robert.
A cidade estava em silêncio. Era estranho como dividiam ali os dias os apitos das fábricas. De dia
era impossível escapar do ruído das máquinas e de noite tudo estava em silêncio, como se uma besta
enorme tivesse saído deixando atrás um curioso silêncio; um silêncio mais ruidoso que o silêncio do
campo. Robert quase podia sentir seus dentes tocar castanholas com o som que não faziam as máquinas.
Oliver se voltou para ele. – Algo vai mal?
– Há uma mulher…
Robert pronunciou aquelas palavras exalando o ar com força e seu irmão pôs-se a rir.
– Estava esperando que me dissesse isso. Sebastian a mencionou e me surpreendeu não saber nada.
Quem é ela?
Robert o disse. Não contou tudo; não podia lhe falar dos santinhos, pois aquele era um risco que
insistia em correr sozinho. Mas lhe falou da Minnie, do calada que parecia até que falava com ele. De
como havia tornado seu mundo do avesso.
– Beijei-a e não posso esquecê-lo – disse. – Tampouco posso repeti-lo. Sei como se fazem essas
coisas e isto não está certo.
– Não está certo? – perguntou Oliver.
O silêncio que seguiu parecia um silêncio afiado. Quase nunca falavam das circunstâncias que os
tinham feito irmãos, mas isso era algo que se erguia entre eles. A mãe de Oliver tinha sido governanta em
uma casa que tinha visitado o anterior Duque de Clermont. O que podia fazer uma governanta quando a
perseguia um duque? Se aceitava, ele a fazia dele. Se negava-se, ele a fazia dele.
– Não sei o que é que está certo – respondeu por fim. – Sou um duque. Ela é sobrinha neta de uma
mulher que tem alguma pretensão de ser uma dama. Se fizer algo que não devo aqui, é o único em quem
posso confiar que me dará um murro no estômago.
Oliver negou com a cabeça.
– Não chegaria a isso.
As últimas badaladas morriam na distância. Robert sentia ainda o beijo dela, podia sentir ainda o
desejo em seu sangue.
– Talvez sim. Você sabe quem foi meu pai. O tipo de homem que era – baixou a voz. – E eu a desejo.
Aqui estava; havia-o dito em voz alta. Desejava-a. E não desejava apenas seu corpo. Poucas pessoas
sabiam quem era em realidade nem o que desejava. E, entretanto, Minnie tinha aceitado suas palavras.
Não tinha se inclinado perante ele nem lhe tinha arranhado; em vez disso, havia-lhe dito que podia vencê-
lo.
Mais que isso. Robert tinha passado muito tempo escondendo o que sentia e o que queria. Tinha que
trabalhar no Parlamento para que se aprovassem todas as leis que podia fazer avançar, mesmo
remotamente, seus objetivos, embora ele apertasse os dentes pela lentidão do progresso. A Câmara dos
Lordes debatia o limite apropriado de propriedade de bens quando a Robert chateava a ideia de que
houvesse propriedades. Eles murmuravam sobre os privilégios dos nobres, quando ele os queria todos
abolidos. Mas se declarava um pouco radical, alienaria a todo mundo. E por isso seguia na brecha.
Discutia por minúcias. Votava leis que fariam a vida um pouco mais suportável quando em realidade
queria gritar a todos.
E Minnie… Ela era uma mulher que sabia o que era esconder o que sentia. E ele a desejava tanto!
Tanto!
– Não confio em mim mesmo – comentou.
Oliver encolheu os ombros.
– E por que vai confiar em mim, então? Tenho tanto do Clermont como você.
– Você… – Robert se interrompeu; olhou a seu irmão – é diferente.
– O mesmo sangue – seu irmão tirou as lentes. – Os mesmos olhos. O mesmo nariz.
– Mas você… você… – Robert se esforçou por procurar uma explicação. – Eu posso ser um autêntico
bastardo. Você precisamente deveria sabê-lo. E nunca saberei por que me deu uma oportunidade.
– Isso é fácil – Oliver encolheu os ombros e olhou o chão. – Se você não se parecia com o duque, eu
tampouco teria por que me parecer.
Robert deixou de andar.
– Eu tampouco sou nenhuma joia – prosseguiu seu irmão. – Tenho um temperamento pior que alguém
de minha família. Quando era menino, meu temperamento assustava às vezes a mim mesmo. E sei que
assustava a minha mãe – Oliver moveu a cabeça. – Eu não sou sua consciência. Não sou um homem que
te mostrará o que está certo. O sofrimento de minha mãe não me lavou por completo o sangue de
Clermont.
– Não lhe peço isso por isso – a névoa parecia tragar as palavras de Robert. – Lhe peço isso por
que…
Quando estudavam juntos em Eton, Oliver passava muitas horas fazendo caixas engenhosas de papel
ou esculpindo pequenos rebanhos de ovelhas com pastores para suas irmãs. Fazia desenhos dos edifícios
de Eton para enviar a sua mãe e, quanto a seu pai, nada lhe parecia o bastante bom para ele. Um ano se
empenhou em lhe conseguir uns gêmeos. E os meses anteriores a novembro, o mês em que o senhor
Marshall completava anos, Oliver tinha trabalhado, fazia esculturas para os outros meninos a um
piquenique a peça, com o fim de reunir o dinheiro para um presente.
Robert sempre tinha observado tudo aquilo divertido.
– Pede-me isso por que… – lhe recordou seu irmão.
– Porque não tenho ninguém mais a quem pedir – o respondeu
Robert.
Sempre tinha querido ter também uma família. Primeiro imaginando a seu pai mais carinhoso do que
era; logo esperando que o quisesse sua mãe. Quando se tinha dado conta de quão fúteis eram seus sonhos,
tinha mudado a direção de seus desejos. Tinha sido algo tão sutil, que não podia assinalar o momento
concreto.
Tinha sonhado acordado acompanhando ao Oliver a sua casa nas férias de verão. Tinha-os imaginado
passando dias inteiros juntos, falando e jogando, boxeando, pescando e fazendo o que quer que fizessem
os irmãos.
Mas embora isso não tivesses ocorrido, pois nem seu primeiro pai, nem seu tutor depois, lhe teriam
permitido jamais passar suas férias com plebeus, ele tinha dado um passo mais. Não era só um irmão o
que desejava, era uma família completa.
E acontece que Oliver já tinha uma formada.
Nos sonhos que tinha acordado, os pais de Oliver chegavam a conhecê-lo. O senhor Marshall lhe
dava conselhos sábios e uma palmada no ombro, e a senhora Marshall lhe daria fatias de pão de
gengibre, ou o que quer que fizessem as mães. Esses detalhes sempre tinham sido fastidiosamente vagos,
mas isso não lhe tinha importado. Em suas fantasias se imaginava convertendo-se em uma espécie de
amigo especial, um quase filho para as pessoas que amavam Oliver sem limitações.
Quando chegou aos dezesseis anos, tinha inventado um elaborado mundo de sonho em que se
apaixonava pela mais velha das irmãs de Oliver. Sabia que não havia nenhum parentesco com ela;
preocupou-se de inteirar-se. E se casava com ela sem lhe importar sua diferença de status social.
Na realidade nunca tinha conhecido à irmã de Oliver nem tampouco aos senhores Marshall. Mas a
realidade não alterava em nada a substância de seus sonhos. Cada vez que Oliver recebia uma carta de
casa, ou enviava uma escultura para alguma irmã, Robert se apaixonava um pouco mais por todos eles.
Não importava quem fossem nem como fossem. Se correspondiam a seu carinho, teria por fim um lugar
em que se encaixaria.
– Ah! –exclamou Oliver. Deu-lhe um murro no ombro que foi uma autêntica amostra de afeto. –
Acredito que você não tem nada de seu pai.
Robert encolheu os ombros.
– Se você diz…
Mas ele tinha provado que sim… e precisamente com a família de
Oliver.
A coisa tinha sido como esperava. O dia em que os pais de Oliver foram de visita por fim, Robert
tinha se vestido com muito esmero. Escovou o cabelo e os dentes duas vezes e amarrou três vezes o laço
do pescoço em um esforço por parecer sério e respeitável. Descobriu-se passeando pela sala com uma
energia impaciente e desesperada enquanto Oliver o olhava com estranheza.
Robert sabia que seus sonhos eram apenas sonhos. Eram tão tolos que nunca os tinha mencionado a
seu irmão. Mas embora fossem somente fantasias, embora eles não chegassem a querê-lo, sim podia lhes
gostar um pouco. Não?
Quando se abriu a porta e entraram os senhores Marshall, pareceu-lhe que nunca tinha visto nada tão
bonito. Tão normal. Eles tinham se adiantado com os braços abertos para abraçar Oliver. E este, o
ingrato, tinha franzido o cenho e se queixou com frases como: “Basta, mamãe, o cabelo não”. Ou “não me
beije diante dos meninos”. Todas essas amostras de carinho só porque levavam uns meses sem vê-lo.
Robert os tinha observado do outro lado da sala com um nó na garganta.
E logo tinha chegado o momento que Robert esperava. Depois das saudações afetuosas, Oliver se
virou então.
– Mãe – disse, – pai, este é…
Mas a senhora Marshall se voltou ao mesmo tempo em que seu filho. Seu olhar se pousou em Robert
e, ao fazê-lo, ela ficou muito quieta, tanto que quase deu a impressão de que a sala inteira se paralisou
com ela. Abriu muito os olhos e sua cara ficou branca. Olhou-o fixamente.
E sem dizer uma palavra, sem nem sequer elevar uma mão em uma ameaça de saudação, ergueu-se
muito reta, voltou-se e saiu da sala.
Robert teve a sensação de que seus pulmões se enchiam de partes de cristal. Doía-lhe respirar. Deu
um passo para ela… mas interveio o senhor Marshall.
– Você deve ser o Duque de Clermont – disse, colocando-se diante dele.
Robert tinha pensado lhes pedir que o acolhessem e o chamassem por seu nome de batismo depois
das apresentações. Mas essas palavras, essa busca de intimidade, lhe teria feito parecer mais
desesperado. Conseguiu assentir com a cabeça com firmeza.
O senhor Marshall falou com voz baixa, mas isso não pôde suavizar a dureza do golpe que supuseram
suas palavras.
– Parece-se muito a seu pai. Muito – fez uma pausa. – Tanto que acredito que minha esposa, ao vê-lo,
viu-o a ele.
Robert tinha assentido, envolto em uma bruma de dor.
– Possivelmente este não seja o melhor momento para realizar as apresentações.
– Sim, senhor – respondeu Robert.
E compreendeu então que nunca haveria um momento para essas apresentações, que para ele não
haveria lentos verões familiares, nem bate-papos de homem a homem nem pão de gengibre.
Pouco importava o que fizesse. Parecia-se com seu pai e seu pai tinha forçado à senhora Marshall.
Em certo modo, tudo o que tinha feito em seguida havia surgido daquele momento, de seu desespero
por provar-se a si mesmo que ele era algo mais que sua cara.
Era estúpido dizer que um par de pessoas às quais nunca tinha conhecido lhe tinham quebrado o
coração. E resultava ainda mais idiota porque era verdade. Mas nos meses seguintes, sempre que
pensava naquele momento, sentia uma aguda sensação de perda. Como se de verdade tivessem sido sua
família e os tivesse perdido a todos de uma vez em circunstâncias trágicas.
Tinha chorado a perda daqueles sonhos mais do que tinha chorado a morte da babá de sua infância.
– Não necessita que eu seja sua consciência – disse Oliver, tirando-o de suas lembranças. Inclinou-se
levemente para ele, o suficiente para lhe transmitir afeto. – Você tem a tua. E eu confio em ti, embora nem
você confie.
Robert não tinha muito, mas se agarraria ao que tinha e não o soltaria nunca.
Deu um empurrão brincalhão a seu irmão, mas sentia a garganta oprimida.
– Sempre soube que foi um crédulo – comentou. – Por sorte para mim.
CAPÍTULO 14

NOS DIAS SEGUINTES, Minnie não voltou a ver o duque.


Mas lhe resultava impossível não pensar nele. Examinou sua carta com uma lupa de joalheiro que
pediu emprestada, olhou a tinta usada em seus santinhos, catalogou as particularidades das letras. Havia
um “e” minúsculo que tinha uma ligeira greta na ponta; tinha-a visto em quatro santinhos diferentes. E um
“b” perdia um pouco a forma.
Todas as provas que tinha encontrado encaixavam.
Mas tudo eram detalhes. E agora que tinha sua carta, eram também supérfluos.
E o mais importante. Quando se imaginava nas ruas de Leicester, já não se via recolhendo
industriosamente mostra de santinhos, a não ser passeando de braço dado com o Duque de Clermont.
Estúpida. Era uma estúpida.
O chamava frequentemente e, entretanto, descobriu que não podia deixar de pensar nele. Recordava a
sensação de seus lábios e o olhar de seus olhos. Recordava suas mãos, cálidas no corpo dela. Recordava
tudo o que lhe havia dito e não se sentia estúpida.
Uma tarde olhou sua imagem no espelho.
– É idiota – lhe disse.
Seus olhos cinzas lhe devolveram o olhar com solenidade.
O duque lhe tinha enviado uma mensagem. Seu primo dava uma conferência essa tarde na Sociedade
Mecânica de Leicester e Robert lhe pedia que assistisse.
Minnie suspeitava que seria melhor não ir. A estupidez do que queria resultava evidente com apenas
olhar-se no espelho. Usava um vestido azul, que ele já a tinha visto usar duas vezes. Era um vestido
severo de pescoço alto, com mangas longas sem enfeite. E a saia não trazia volantes nem laços. Os
tecidos eram caros e as fitas mais ainda. Era pura lógica se vestir assim quando tinham tão pouco
dinheiro. Embelezada daquela maneira, não a olharia ninguém. E ela não queria que a olhassem.
Mas queria o fazer sorrir.
– Oh, Minnie – disse com desespero. – A sério? A ele? Poderia ser mais iludida?
Ele era um duque. Ela era… – Te olhe, maldição – disse.
Obrigou-se a olhar-se no espelho. A não centrar-se nas partes mais agradáveis, a curva dos seios e na
cintura, a não olhar de verdade quem era em realidade. A olhar a cicatriz da bochecha. Não era
superficial, estava gravada em sua alma. Wilhelmina Pursling era seca, severa, calada.
– A senhorita Pursling – pronunciou devagar– não é ninguém.
Por iniciativa própria.
Mas seus olhos seguiam olhando-a. E por muitas coisas que se dissesse e por muitas vezes que se
chamasse idiota, aquele desejo selvagem e indômito seguia preso em seu interior.
– Você – repetiu, apontando-se com um dedo no espelho– é idiota.
Mas se ia ser idiota, ao menos tentaria sê-lo com estilo. Assim saiu da casa e foi até os campos.
Subiu uma colina e baixou outra; procurou nas ladeiras meridionais, mais resguardadas, até que
encontrou o que procurava: um ramo de amores-perfeitos amarelos, escondidos entre os pés de milho.
Recolheu todos.


SE BRILHAVA ALGUMA ESTRELA depois da grossa manta de névoa e fumaça, Robert não podia
vê-la. Desceu da carruagem e se voltou para ajudar a Violet. As luzes da rua emitiam uma luz apagada e
pesada, suficiente para mostrar ao grupo de pessoas que esperavam nos degraus dianteiros do Salão
Novo. Na noite, toda a roupa parecia negra e o efeito era quase funerário.
Ou o teria sido, a não ser porque as pessoa cantavam.
– Ah, bem – disse Sebastian a seu lado. – Há uma multidão.
– Uma multidão – repôs Robert.
Sebastian esfregou as mãos com satisfação.
– Sempre que falo, acontece o mesmo. Essas coisas são cabras?
Eram. Na praça do mercado, ao lado do salão de conferências tinham montado dois cercados
provisórios. Havia placas atadas a ambos, mas Robert não podia ler na escuridão. Um dos cercados
estava cheio de cabras, quase uma dúzia de animais balindo.
No outro cercado, curiosamente, havia meninos. Meninos pequenos. Robert franziu o cenho ao
aproximar-se. O menino mais alto apenas lhe chegaria à cintura; o menor quase não andava, mas
tropeçava atrás dos outros com determinação sombria. Os gritos não procediam dos meninos, mas sim
dos adultos que os rodeavam.
Quando se aproximaram dos cercados, Robert pôde ler por fim as placas.
ESTES SÃO ANIMAIS, proclamava a que estava atada ao cercado das cabras. A do outro cercado
dizia: ESTES NÃO O SÃO.
Robert olhou para Sebastian. Seu primo, que sempre tinha gostado de criar controvérsia, sorria ainda,
mas seu sorriso não era do todo franco. Adiantou-se uns passos até ficar em frente aos meninos.
Estavam muito mais confundidos que as cabras. Um menino pequeno tinha as mãos na barra
intermediária da cerca. Usava apenas um casaco leve e luvas finas. Se lhe tinham posto um gorro, devia
ter caído. Seus olhos resultavam luminosos no frio da noite; seu fôlego criava vapores no ar frio.
Sebastian se agachou e os gritos se redobraram.
– Não somos animais – gritava uma mulher. – Não somos animais.
Não gritavam a Sebastian; nenhum deles o reconhecia. Para eles era somente mais um cavalheiro que
observava o espetáculo. Uma razão mais para gritar mais alto. Sebastian tirou lentamente o cachecol e,
sem dizer uma palavra, o enrolou no pescoço do menino. O cachecol, grande, fazia com que o menino
parecesse ainda menor. Sebastian assentiu sem palavras e se voltou para partir.
– O que acredita que está fazendo? – perguntou uma mulher próxima. – Esse é meu filho. Não
necessitamos sua caridade.
Sebastian seguiu andando.
– Se escutar a conferência desse louco – gritou a mulher a suas costas, – perderá sua alma imortal.
Aqui não queremos os ensinamentos do diabo.
Sebastian não voltou a olhar para trás. A mulher pôs os braços na cintura e o observou afastar-se.
Apertou os lábios e moveu os dedos com impaciência. Por fim se voltou para seu filho.
– O que fazia sentado aí como um pasmado? – agarrou uma ponta do cachecol de Sebastian e puxou. –
Te disse que fizesse coro aos gritos. Quero te ouvir gritar. Prova agora. Eu não… – se deteve na metade
da frase e deixou de puxar o cachecol, quando Robert se aproximou dela. Olhou-lhe as botas e subiu
depois os olhos pelas calças e o colete até que chegou à cara.
– Senhora – disse Robert. – Sabe por acaso a temperatura que faz esta noite?
Ela pareceu sobressaltada.
– Não. Mas acredito que montou um termômetro em… – Dois graus. Está quase gelando e é provável
que baixe mais.
Lhe lançou um olhar estranho.
– Se já sabia, por que se incomodou em perguntar?
Robert olhou ao menino, que tinha o nariz vermelho e escorria pelo frio.
– Você não tem nenhum direito a dizer a ninguém como cuidar de animais – comentou Robert com
amargura. – E menos a meu primo.
Ela franziu o cenho confusa e Robert se afastou apertando os punhos. A suas costas, a multidão seguia
fazendo coro: “Não somos animais.
Não somos animais”.
Sebastian era um provocador. Podia incomodar um homem até irritá-lo grandemente. Mas jamais
tinha sido tão desconsiderado, tão cruel como era aquela mulher com seu próprio filho. A Robert
incomodava que julgassem que seu primo estava em perigo de perder sua alma imortal, quando eram eles
os que prendiam os meninos em cercados e os tratavam como mercadoria somente para lançar uma
mensagem.
Alegrou-se de deixar a multidão para trás. O interior do edifício resultava mais quente e seco.
Quando se fecharam as portas a suas costas, apagaram a maior parte do ruído de fora. Descobriu à
senhorita Pursling em uma das últimas filas, sentada junto a sua amiga ao lado do corredor. Agarrava à
beira do assento com as mãos. Robert se deteve seu lado.
– Senhorita Pursling – disse. – Temos assentos diante, se a senhorita Charingford e você quiserem
unir-se a nós.
– Não, obrigada – disse ela com voz fria. – Eu não gosto das multidões. Se soubesse que ia ser assim,
não teria vindo. Se houvesse um modo de partir…
Apertou os lábios. Não era fácil julgar a cor de sua pele na débil luz da parte de trás da sala, mas lhe
pareceu que estava pálida.
– Encontra-se bem? – perguntou.
Não é nada – ela tragou saliva. – Não é nada. Não é nada. Não é nada.
– Perdão?
Ela ergueu a vista e em seguida afastou os olhos.
– Não é nada – repetiu. – Por favor, deixe de me olhar.
Robert se sentou na fila atrás dela.
– Está bem. Já não olho para você. Leva flores no vestido – era certo, levava flores de verdade.
Amores-perfeitos amarelos decoravam a barra do vestido e dos punhos.
– Pareceu-me apropriado à luz do trabalho do senhor Malheur. Ele estuda essas flores, não é assim?
– Pois sim. Entretanto, parece-me recordar que ele começou com bocas de dragão, não com… o que é
isso? Amor-perfeito. Você aproveitou a ocasião – a olhou de soslaio e surpreendeu um sorriso suave em
seu rosto. – São preciosas.
– Ah! – ela manteve a vista fixa à frente.
– São sim – murmurou ele com satisfação. – Agora respira como se deve – ela pensou. Apenas
precisava distrair-se por um momento.
Começou a levantar-se.
– Excelência.
– Sim?
– Obrigada – ela seguia olhando à frente. Já não agarrava o assento como se precisasse fazê-lo para
manter-se erguida. – Não pus as flores em honra do senhor Malheur, Excelência.
Robert sorriu.
– Sei. Sei muito bem para quem as pôs.
– …Sabe?
– As pôs porque sabia que essa cor suavizaria os ângulos de seu vestido. Esse toque no pescoço faz
que seus olhos pareçam nuvens tormentosas.
Cria um efeito encantador, Minnie. Sei para quem as pôs.
Ela se mantinha imóvel.
– As pôs para si mesma – comentou ele. – Fez bem.
Minnie exalou devagar o ar.
– É você um homem muito perigoso.
Ele ficou em pé.
– O local está quase cheio. Sinto que prefira ficar aqui. Eu devo ir mais à frente e assistir a meu
primo. Nos veremos depois?
Eu… a multidão… – ela olhou a seu redor. – Possivelmente saia cedo, Excelência, para não me ver
apanhada na multidão – falava olhando o colo, mas Robert viu que seu rosto havia tornado a empalidecer.
– Não se encontra bem.
– Não é nada.
A voz dela soou quase cortante e o cavalheiro da primeira fila se levantou e parecia a ponto de
apresentar Sebastian. Robert não tinha mais saída do que deixá-la. Quando chegou a seu assento, o
homem repassava a história de Sebastian.
– Depois de um começo distinguido em Cambridge, o senhor
Sebastian Malheur se fez homem com…
Começo distinguido? Arre! Sebastian tinha sido aprovado nos exames pelos cabelos. Sempre tinha
estado à beira da expulsão por jogar uma brincadeira pesada atrás da outra. A ninguém tinha
surpreendido tanto o êxito repentino de Sebastian como aos velhos que o tinham examinado em outro
tempo.
Em certo sentido, o subsequente êxito de Sebastian, tanto a natureza desse êxito como a maneira, eram
a maior de suas brincadeiras. E ele sabia. Subiu ao palco rebolando um pouco e com um certo sorriso de
suficiência.
– Obrigado, graças a todos por suas amáveis boas-vindas – disse. A suficiência de seu sorriso era
quão único indicava que sabia que a metade de seus ouvintes tinham ido insultá-lo. – Vim aqui para lhes
falar da ciência dos caracteres herdados, um tema que estudei durante anos. No transcurso de meus
estudos, cheguei a várias conclusões. A primeira, as características como a cor dos olhos, a estatura, o
número de pétalas de uma flor ou a forma de um rabanete, herdam-se dos progenitores segundo umas
regras estritas e invioláveis. A segunda, que as regras da herança parecem ser constantes nos animais e
nas flores amor-perfeito, nas árvores, nos gatos, nas ovelhas, nas cabras e, é obvio, no animal humano.
Estava desfrutando. Brilhavam os olhos ao falar e tinha um sorriso débil que se fez mais intenso
quando se ouviram murmúrios de protesto espalhados pelo salão.
– Em terceiro lugar, explicarei como as regras da herança seguem de acordo com os descobrimentos
do senhor Darwin sobre a origem das espécies. Sei que muitos de vocês esperam essa parte concreta,
assim explicarei essa conexão e os meios pelos quais cheguei a minhas conclusões empregando…
Empregando as ferramentas do diabo – gritou alguém na parte de trás.
Sebastian fez só uma pausa breve.
– Usando os fatos, a lógica e experimentos reprodutíveis – disse com gentileza. – Tudo isso pode
resultar aborrecido a muitos de vocês. Mas meus colegas resistem colocar objeções às provas por
motivo de influência diabólica.
Um sorriso apareceu brevemente em seu rosto. Estendeu os braços e se aproximou de um cavalete que
tinha colocado na parte dianteira.
– Começarei pela cor das flores chamadas bocas de dragão.
Tocou com a mão o tecido que cobria o cavalete. Mas naquele momento se abriu a porta de trás do
salão. Algumas cabeças se voltaram para ali. Por um momento, apenas se viu escuridão.
– Vamos! – gritou uma voz. E as cabras que estavam antes no lugar entraram no salão e olharam
confusas a seu redor.
– Já que acredita que não há distinção entre humanos e animais – gritou outra voz, – aqui chega parte
de seu público.
Houve risadas.
Robert pensou que as ovelhas teriam sido melhor opção. As ovelhas eram animais assustadiços que
se espantavam ao movimento de uma capa.
Teriam cedido ao pânico em um instante. As cabras, entretanto… as cabras consideravam uma reunião
de tantas pessoas como uma oportunidade. Desciam pelo corredor entre os assentos.
– Eu recebo encantado a todas as criaturas inteligentes o bastante para compreender – declarou
pomposamente Sebastian. – Não tema, bom homem. Estou seguro que quando tivermos terminado, seus
animais poderão lhe explicar estes princípios com palavras simples, das quais até você possa entender.
Isso arrancou mais gargalhadas entre o público.
A cabra líder se deteve em sua marcha, moveu a cabeça com ar contemplativo, e se aproximou para
morder as flores da roupa de Minnie.
Robert se levantou pela metade de sua cadeira, com os braços estendidos para trás, embora ela estava
a metros de distância. Ela empurrou a cabeça do animal. Robert via que movia os lábios e a viu golpear
ao animal no ombro, mas não ouvia o que dizia.
– Vamos, vamos! – gritou o pastor atrás dela. – Não toque a esse animal. Já ouviu o senhor. Ela é uma
de nós. Se lhe voltar a pôr a mão em cima, farei com que a detenham por assalto – soltou uma grande
gargalhada.
Outra das cabras se aproximou da senhorita Pursling; essa apontava a seu pescoço. A jovem tomou
uma sombrinha de uma mulher próxima e a golpeou com ela.
– Assalto! Assalto com agressão!
As gargalhadas aumentaram. Outro golpe com a sombrinha e outra cabra mais se uniu à refrega. Esta
última aproximou a cabeça e lhe mordeu a prega. O tecido azul se rasgou, mostrando uma parte de anágua
de cor nata.
E então Robert se deu conta do que em realidade passava. Ninguém se tinha movido para ajudá-la.
Todos a rodeavam olhando e rindo. Ficou de pé e correu pelo corredor para ela.
– Animais ou humanos? – gritava o dono das cabras. – Ah, como verá, sim que podemos notar a
diferença depois de tudo.
A gente que rodeava Minnie ria daquele idiota e não fazia nada enquanto ela reprimia o ataque
sozinha. Robert empurrou para abrir caminho até aquele homem.
– Você acredita que isso é assalto? – grunhiu.
O homem não olhou atrás de si para ver quem falava.
– O que?
Robert lhe pôs uma mão no ombro e o obrigou a voltar-se.
– Isto – disse. – Isto é assalto.
Deu-lhe um murro na mandíbula. O homem abriu muito os olhos surpreso. Cambaleou-se um momento
no lugar e logo pôs os olhos em branco e caiu ao chão.
Robert se voltou.
– Que vergonha! –gritou à multidão. – Deveria lhes dar vergonha. Afastem agora mesmo às cabras
dessa mulher.
Minnie ergueu a vista então. Estava tão ocupada defendendo-se das cabras, que não se deu conta de
que a rodeava a multidão. Mas em lugar de mostrar-se aliviada ao ver que os homens se aproximavam
das cabras, sua cabeça oscilou de lado a lado e empalideceu. Robert viu que punha os olhos em branco.
Se alguém lhe tivesse perguntado antes dessa noite, ele haveria dito com absoluta segurança que ela
tinha nervos de aço. Começou a abrir caminho entre a gente, mas chegou muito tarde.
Minnie desmaiou antes que pudesse chegar até ela.
CAPÍTULO 15

O MUNDO ERA FEITO de vinagre e Minnie sentia o nariz em chamas. Tossiu e foi consciente de que
descansava em uma superfície incômoda: dura, com vultos e, ao mesmo tempo, cálida.
Abriu os olhos.
Lydia a olhava movendo um frasco de sais debaixo de seu nariz. Minnie tossiu pesadamente e afastou
a cabeça dos sais.
– Já está melhor – disse sua amiga, corajosa. – Isto funcionou.
Dói-te muito a cabeça?
Então recordou tudo. As flores. As cabras. A multidão.
– Meu Deus! – gemeu. – Lydia, por favor, me diga que não desmaiei diante de todo mundo.
– Sim o fez.
Minnie queria fechar os olhos de novo. Robert tinha estado presente. O que pensaria dela?
– As cabras comeram todo meu vestido? – perguntou.
– Nenhuma das partes boas – respondeu outra voz, essa diretamente em cima dela.
E então foi quando Minnie se deu conta de que não apoiava a cabeça em um travesseiro. Os vultos
incômodos eram coxas; sua cabeça descansava no colo do Duque de Clermont. Incorporou-se, sem fazer
caso do tamborilar que sentia atrás das pestanas, e se separou dele. Tinham-na deitado em um banco duro
de madeira. Havia um escritório adiante e algumas cadeiras em um dos lados. Supôs que se encontrava
em uma das salas de reuniões que havia para os comerciantes no segundo andar do Salão Novo.
E estava com o Duque de Clermont.
– Lydia – gemeu. – Como pudeste?
Mas sua amiga não respondeu. Olhou para o duque, ruborizou-se e afastou a vista.
– Alguém tinha que transportá-la – explicou ele. – E resulta que fui o primeiro em me oferecer.
Minnie sentia náuseas só de imaginá-lo. Certamente todo mundo a teria visto quando perdeu os
sentidos. E a intervenção do Duque de Clermont teria chamado a atenção. Sem dúvida haveria muitos
falatórios.
– Agora vou procurar um copo de água – disse Lydia, pronunciando as palavras com muito cuidado.
– Não te ocorra me deixar desacompanhada com… Mas sua amiga já se retirava.
– Lydia!
A porta se fechou atrás dela.
Minnie ficou em pé de um salto, sem pensar em nada que não fosse colocar espaço entre eles. Se ele
não a tocava…
O duque se levantou por sua vez. Quando ela cambaleou, ele a segurou pelo braço.
– Sente-se, Minnie.
– As pessoas sabem que estamos aqui juntos – respondeu ela, nervosa. – Olharão para ela e saberão
que estamos aqui sozinhos. Todo mundo pensará que…
– Todo mundo já o pensa – declarou ele. – Sua amiga nos deixou sozinhos porque sabe o que lhe vou
dizer. Por favor, sente-se e me escute.
Ela o olhou nos olhos. Ele era bastante imponente e a ela ainda estava tonta. Voltou a sentar-se.
– Quando a rodearam as cabras – disse ele, – golpeei ao homem que as conduzia diante de todo
mundo. E logo, quando você desmaiou, recolhi-a do chão e a tirei da sala. Se imaginar que vai deter os
falatórios saindo agora daqui, devo lhe dizer que acredito que é muito tarde.
Céu santo! Tinha ocorrido. Tinha acontecido de verdade. Minnie sentia a cabeça rodar. Estava
desonrada. Stevens voltaria com suas provas, e isso já pouco importava. Respirou fundo.
– Sinto-o – disse ele. – Não pensei. Já lhe disse que podia ser estúpido. Quando a vi aí fora, não me
ocorreu pensar. Apenas queria estar a seu lado.
Minnie sacudiu a cabeça, com o que se sentiu ainda mais enjoada.
– É tão culpa minha como sua.
Se aquilo era um desastre, ela tinha jogado com ele. Sabia que havia uma atração entre eles.
Virtualmente lhe havia dito que aquilo não podia conduzir a nada. E ela o tinha beijado de todos os
modos; tinha-o beijado e tinha querido que a olhasse. Arriscou-se muito e aquela era a consequência.
– Arrumarei isto de algum modo – disse.
Tinha que haver uma explicação que pudesse dá, um modo de que se ajeitasse tudo aquilo.
Possivelmente que desmaiasse outra mulher e ele também se ocupasse dela? Assim pareceria mero
cavalheirismo de sua parte.
Mas essa ideia não a convenceu. Muito forçado. Pouco natural.
Minnie esfregou a testa com desgosto.
Ele se sentou a seu lado e tomou sua mão.
– Minnie – disse com gentileza. – Recorda o dia que veio até minha casa e me ameaçou?
– Como poderia esquecê-lo? – ela franziu o cenho. – Suponho que poderia usar isso. Revelar agora o
que fez e explicar que apenas queria que ficasse calada. Mas não me convence. Não acredito que isso dê
resultado.
– Aquele dia lhe disse que, se ocorria algo, me asseguraria de que tivesse uma proposta de
matrimônio. Acredito que minhas palavras exatas foram que me asseguraria disso embora tivesse que
fazê-la eu mesmo.
Minnie deixou de pensar em planos alternativos e o olhou nos olhos. Seria muito cruel brincar com
algo assim e ele nunca tinha sido cruel. Mesmo assim, era mais fácil imaginá-lo a ele desalmado que
imaginar o universo amável.
– Não falava a sério – disse. – Disse aquilo por brincadeira.
Ele encolheu os ombros.
– Foi um modo estúpido de falar, não uma brincadeira. Eu digo muita estupidez quando você está
perto – passou a mão pelo cabelo e suspirou. – Mas por mais estúpido que fosse, também era verdade.
Dizia-o a sério, Minnie. Eu gostaria que se casasse comigo – a olhou nos olhos. – O teria pedido embora
não tivesse acontecido isto. Faz dias que não penso em outra coisa. Case-se comigo
Minnie não podia abranger aquilo com a mente. Levantou-se e se aproximou da estreita janela. Dali
tinha uma boa vista da praça, que estava adiante. A multidão se dispersou e não havia nem rastro das
cabras. Não, o que ele dizia não parecia possível.
– Isso não tem sentido, Excelência – respondeu. – É uma loucura falar assim. Você não pode casar-se
com alguém como eu.
Ele não fingiu que não sabia o que queria dizer.
– Isso é o que dizem todos – a olhou de frente. – E admito que essa possibilidade não me tinha
ocorrido até que a conheci. Mas assim que comecei a pensar nisso, pareceu-me que tinha muito sentido.
Sabe por que não me casei ainda?
– Não tem nem trinta anos. Ficam muitos anos pela frente…
Minnie se interrompeu, nervosa de repente. Ele a olhava de um modo que fazia com que lhe pulsasse
o coração com uma rapidez que não tinha nada a ver com a idade dele. Sentia as mãos suarentas.
– Minnie – comentou ele. – Tem alguma ideia do que espero obter? Acredito que já sabe que meu pai
entrou em posse de uma fábrica daqui e a arruinou; e suponho que intuiu que eu espero compensar isso.
Tenho um meio irmão que é a pessoa que mais me importa no mundo e é um homem ao qual olharam com
desprezo por seu nascimento. Eu não quero viver me apoiando em meus privilégios.
Minnie quase não podia respirar.
– Mas isso é somente uma parte do que espero ver em minha vida.
Se de mim dependesse, aboliria por completo a nobreza hereditária.
Ela deu um sobressalto.
– Todos os aspectos dela – declarou ele com ferocidade. – Os lordes deveriam ser processados como
os plebeus e julgados por um jurado. Não deveríamos ter o direito de rechaçar as leis que propõe a
Câmara dos Comuns. De fato, acredito que a Câmara dos Lordes não deveria existir. Eu gostaria
muitíssimo de ser simplesmente o senhor Blaisdell. Meu pai… você não tem nem ideia de quão horrível
ele foi.
Tinha os punhos apertados ao lado do corpo e lhe brilhavam os olhos com uma luz que ela não tinha
visto desde que ele tinha falado com o Finney.
– Poderia pedir desculpas pelos benefícios que herdei dele – disse Robert. – Mas faz tempo que
aprendi que uma desculpa não muda nada. Em vez disso, é minha intenção lutar para que nenhum nobre
possa voltar a fazer o que fez meu pai.
Aquilo não podia estar acontecendo. Ele não podia estar dizendo essas coisas.
Mas dizer-se aquilo não servia de nada. Minnie estava completamente segura de que nesse momento o
via como era em realidade.
– De todos os privilégios aos quais penso renunciar, o primeiro será a possibilidade de me casar com
a filha de algum nobre. Pense no que aconteceria propor matrimônio a uma garota assim. O que pensaria
ela quando se inteirasse de que o objetivo de minha vida é privar a seu pai e a seu irmão de seus
privilégios? Meus pais brigavam sempre que estavam juntos no mesmo cômodo. Eu não terei esse tipo de
matrimônio. Nego-me.
Ela não tinha nada que dizer sobre isso.
– Em segundo lugar – continuou ele, – jamais tinha esperado encontrar amor no matrimônio. Quando
muito, esperava encontrar uma aliada. Uma mulher que me apoiasse no que viesse – a olhou. – Você sabe
mais de tática que eu. Seria uma esposa terrível para um duque, mas para um homem que não quer seguir
sendo duque, não posso imaginar a ninguém melhor.
Minnie não podia imaginar ninguém pior do que ela. Ele não estava a par da vida dela. Não sabia.
– Em terceiro lugar – prosseguiu ele, – a desejo. A desejo muito. A desejo tanto que, quando
desmaiou no meio do salão longe de mim, cheguei a seu lado antes que alguma outra pessoa tivesse
podido mover-se. A desejo tanto que há noites nas quais não penso em outra coisa do que em fazê-la
minha.
Minnie sentiu aquelas palavras em seu âmago, em uma chama de calor e desejo que abrangia todas as
noites solitárias que tinha passado. Nisso faziam bom casal. Mas…
– E sobre a fidelidade? – perguntou. – Eu gostaria de saber o que posso esperar aí. Você terá
amantes? Me permitiria os ter?
O duque a olhou um momento em silêncio.
– O último no que penso agora é em outras mulheres – murmurou.
– Responda à pergunta por favor – pediu ela. Tremia-lhe a voz.
– Isso é o que quer? Que tomemos amantes por capricho?
– Você disse que não me amava – dessa vez, a voz dela soou surpreendentemente firme. – Se posso
mostrar minhas preferências, quero que meus votos matrimoniais signifiquem algo. Estava pensando era
em suas necessidades. Não quero que isso me pegue de surpresa. Ele respirou fundo. Sorriu.
– Ah!
Minnie se aproximou dele.
– Disse que seríamos aliados, que pensaríamos um no outro. Não posso imaginar o que é ser um
duque. Até o momento, pôde ter todas as mulheres que quis – e sem dúvida teria tido muitas. – Não
prometa algo que lhe chegue a chatear mais tarde. Neste momento prefiro a sinceridade à fidelidade e as
adulações.
– Sinceridade?
Minnie assentiu.
– Nesse caso, querida minha, a terá. Não desejo relações sexuais tão desesperadamente como pode
estar imaginando. Não preciso levar uma mulher a meu leito para me descarregar de um modo regular.
Deus me deu uma mão esquerda forte e houve muitas noites em que a preferi a uma mulher.
Falava sem olhá-la. Era possível que lhe envergonhasse reconhecer aquilo?
Mas sua confissão lançou outra chama de calor derretido pelo corpo dela, que imaginou nu e excitado,
com a mão em seu membro. Que aspecto teria quando se acariciava? Usaria carícias longas e fortes ou
suaves e gentis?
– Não posso arruinar a reputação de minha mão – disse ele. – Nem ferir seus sentimentos, nem deixá-
la grávida. Demonstrou ser, em muitos aspectos, a opção mais segura para mim. Assim me diga Minnie.
Acredita que você precisará tomar amantes?
– Jamais tinha pensado nisso – era certo; nunca tinha considerado a ideia de ser infiel em seu
matrimônio. Nem sequer no caso de que se houvesse desposado com um homem que tinha amantes.
– Porque eu acredito que é melhor deixar as coisas claras – disse ele. – Não quero que haja mal-
entendidos entre nós. E, se as coisas chegassem a esse ponto, prometo que, se, se desgostar comigo,
permitirei que se vá. Não idearei nenhum estratagema para fazer com que volte e não deixarei de lhe dar
dinheiro. Nada desse tipo – tragou saliva. – Sei que as coisas mudam. Não há nada pior em um
matrimônio que um marido que utiliza seu poder para forçar à esposa. Eu não o farei.
– Robert – Minnie se voltou para ele. – Não há nenhum perigo de que eu chegue a me sentir
desgostada por você.
Não soube quem foi o primeiro em mover-se. Talvez tenha sido ela que deu um passo para ele. Ou
possivelmente ele se inclinou para ela. Talvez tenha sido mútuo, uma mudança na atmosfera que os juntou
por fim. Lhe pôs as mãos nos ombros e a estreitou com força.
Estavam completamente vestidos e, apesar disso, o beijo dele resultou carnal de um modo que não o
tinha sido seu último beijo. Esse último era um prelúdio do que poderia seguir se ela aceitava. As mãos
dele se moveram pelo corpo dela, baixaram para roçar seus seios e se fecharam em seus quadris.
Aquele beijo era um precursor do ato do amor.
Ele interrompeu o beijo com um meio sorriso.
– Há uma coisa que devo dizer.
Falava quase como se estivesse sem fôlego.
– Quando se desposaram meus pais, meu pai jurou que amava a minha mãe. Era mentira, e isso fez
mais dano do que se falasse a verdade. Eu não me casarei com expectativas falsas – flexionou os dedos e
ela ergueu a vista para olhá-lo nos olhos. – Compreendo muito bem o que significamos um para o outro.
Não espero que me ame.
– O que significamos um para o outro? – perguntou ela.
– Eu quero filhos. Todos os que possamos ter sem que perca a saúde.
– Excelência – disse ela, enfatizando deliberadamente o título. – Isso não é uma resposta.
Robert encolheu os ombros e afastou a vista.
– Não sei como explicá-lo. Você me olhou e não viu um duque, viu um homem que podia escrever
santinhos radicais. Você sabe quem sou.
E aquilo devolveu a Minnie de repente à realidade. Ele tinha pintado um quadro encantador. Se o
único que tivesse tido que fazer ela tivesse sido sentar-se atrás dele no Parlamento e lhe sussurrar
conselhos ao ouvido, figurativamente falando, haveria dito que sim.
Mas aquilo…
As duquesas iam a festas, a grandes recepções onde havia centenas de pessoas presentes. Quando
saíam a passear pelo parque, as pessoas as assinalavam com o dedo e as olhavam. E Minnie… ela cedia
ao pânico se a olhava mais de um punhado de pessoas juntas. Desmaiava quando a rodeavam vinte
pessoas.
– Oh, Deus! – exclamou. Separou-se dele e se abraçou o corpo. – Isto não pode funcionar.
– Minnie?
A jovem virou-se para ele.
– O que acredita que aconteceu antes no salão?
Ele piscou.
– Em que salão? Há algum salão?
– Por que acredita que desmaiei?
– Humm – ele passou as mãos pelo cabelo. – Pelas cabras?
– Vivo em uma granja. Estou acostumada às cabras.
Ele franziu o cenho.
Tem razão. Desmaiou quando já tinham afastado às cabras. Quando as pessoas a rodeavam.
Normalmente, Minnie se esforçava por não recordar os momentos que lhe produziam um terror
abjeto. Separava-os de sua mente assim que recuperava o conhecimento. Mas naquele momento viu a
parede de rostos e trajes, um montão de caras que riam dela. Lhe encolheu o estômago só recordando-o.
O coração lhe pulsou com muita força.
– Tenho medo das multidões – suas palavras foram quase um gemido, mas ao menos as tinha
pronunciado. – Não, medo não. Terror.
Robert tomou a mão.
– Especialmente das multidões onde todo mundo olhe para mim. Uma vez me vi apanhada em meio de
uma multidão; tinha doze anos – tocou a bochecha. – O medo se deve a isso. As pessoas atiravam pedras.
Robert ergueu uma mão até o rosto dela. Suas luvas eram de couro negro; Minnie podia cheirá-los
muito perto. Ele colocou os dedos na cicatriz dela, seguiu-a pela cara com a gema dos dedos, primeiro
levemente, depois com um pouco mais de força.
Minnie não havia dito toda a verdade. A multidão não só atirava pedras. Atiravam nela.
– Isto foi uma pedra cruel.
Ela assentiu.
Robert voltou a percorrer a cicatriz com os dedos, essa vez apertando um pouco mais.
– Posso apalpar uma fratura no osso. Muito perto do olho.
– Nos primeiros dias, quando estava cheia de golpes, não estava muito claro que pudesse voltar a ver
por esse olho quando se curasse.
Ele não tinha afastado a mão de sua bochecha.
– Por isso agora não posso tolerar estar em grupos grandes de gente. E se todos me olham, torna-se
impossível. Não sou capaz de pensar. Não posso respirar. Apenas quero escapar.
– Por isso é tão calada. Por isso esconde tudo quão bom tem e espera que ninguém a olhe.
Minnie olhou as saias.
– Sim – sua voz soava angustiada. Sentia-se menor.
Robert não disse nada em um momento. Logo lhe pôs um dedo no queixo e lhe ergueu a cara.
– Pois o sinto – murmurou. – Mas eu já a vi.
Seus lábios roçaram os dela. Não foi um beijo. Não de tudo. Os beijos deviam ser algo mais que um
leve encontro dos lábios, que uma troca de aromas. Se tivesse sido um beijo, ele não teria se afastado tão
rápido.
Minnie se surpreendeu olhando-o. Pôs a mão na bochecha.
– O que foi isso? – perguntou ela.
– Se não o adivinhou, é que devo ter feito mal – ele se inclinou devagar, com deliberação. Essa vez
seus lábios não se limitaram a roçar os dela, mas sim os encontraram de frente. Sua boca resultava cálida
e seca; em vez de pressionar brevemente, mordiscou os lábios. Sua mão cobria a bochecha dela,
aproximando-a, e esse beijo…
Minnie se voltou, mas isso apenas serviu para que sua testa entrasse em contato com o ombro dele.
Apoiou-se nele e aprendeu a respirar de novo.
– Não posso me casar com você – murmurou. – Como poderia ser duquesa?
– É fácil – retrucou ele. – Você diz que sim e eu peço a meus advogados que preparem os contratos.
Isso levará três ou quatro dias, e até então, já terá chegado a licença especial.
Céu santo! A versão de Robert do matrimônio começava com advogados. Se Minnie necessitava
alguma prova de quão distanciados estavam, do distintos que eram os mundos nos quais viviam…
A mão dele descansou na sua e todos os músculos do corpo dela ficaram paralisados. Seus pulmões
deixaram de inalar ar; sua boca ficou meio aberta e imóvel. E seus dedos… não se atreveu a mover os
dedos nenhuma polegada. Apenas seu coração seguia pulsando no peito, com um ritmo mais ou menos
regular.
– Depois disso – disse ele, – poderei levá-la a minha cama.
Aquilo, ao menos, era igual nos mundos dos dois. Minnie sorriu a seu pesar.
Robert lhe acariciou a lateral da cara com o polegar.
– O que vou fazer com você, Minnie? – perguntou.
Lhe afastou a mão; doía-lhe o coração com uma emoção que não podia identificar.
– Basta. Não faça nada.
Robert inclinou a cabeça para ela. Seu perfil era largo e perfeito. A luz do abajur beijava a ponta de
seu nariz e Minnie sentiu ciúmes irracionais porque a luz pudesse tocá-lo daquele modo e ela quase não
pudesse resistir à pressão das pontas de seus dedos.
Excelência – disse claramente. – Tenho que ser mais clara.
Disse-lhe que havia algo em meu passado. Algo que não queria que saísse à luz.
Ele não deixou de acariciar sua mão.
– Posso adivinhar o que vai me dizer – murmurou. – E lhe asseguro que não me importa nada.
As mãos de Minnie começaram a suar. Começava a sentir as primeiras ondas de náusea. Fazia muito
tempo que não contava a ninguém; que não pronunciava aquelas palavras em voz alta.
– Até os doze anos… – começava a tremer e ele a olhou com preocupação. Minnie pensou que o
melhor que podia fazer era dizê-lo depressa. – Até os doze anos – disse com rapidez, – meu pai me
vestiu com calças e me apresentou a todo mundo como se fosse um menino. Ele piscou; seus olhos se
abriram surpreendidos.
– Eu acreditava… Definitivamente, jamais teria adivinhado isso.
– Acabou-se sabendo, claro – seguiu ela. – Se soube de um modo muito ruim – esfregou as mãos, em
um esforço por impedir que tremessem. – Toda Londres soube. Saiu nos jornais. A multidão de qual falei
antes? Prosseguia-me. Queriam me castigar por ter ousado fingir tanto. Por ser tão antinatural.
– Ah!
Robert a olhava com o cenho franzido. Seus olhos percorriam o corpo dela como se a visse de outra
maneira, essa vez como a uma coisa que não tinha saído bem. Possivelmente tinha lido o escândalo em
seu momento. Talvez tentasse recordar os detalhes. Ou possivelmente tinha formado parte daquela
multidão, do grupo que lhe jogava pedras.
Não. Isso não. Não lhe tinha soltado a mão e Minnie não podia imaginá-lo atirando pedras em
ninguém, e muito menos em uma menina.
– Foi tão duro que tive que renunciar totalmente a minha vida. Troquei de nome. Batizaram-me como
Minerva Lane. Quando estava… quando fingia ser um menino, meu pai me chamava Maximilian.
– Ah! –repetiu ele. Moveu a mandíbula, mas não falou.
– Diga algo – pediu ela. – Diga qualquer coisa. Você não sabia quando me Propôs matrimônio. Não o
culparei se mudar de ideia – ergueu a vista e o olhou aos olhos. – Mas diga algo.
Robert lhe observou um momento a cara; encolheu os ombros.
– Gostava de ser um menino?
– Ah… bom… – era a primeira vez que lhe faziam essa pergunta, e o sobressalto conseguiu com que
esquecesse o medo. – A princípio não conhecia outra coisa. O engano começou quando eu era muito
jovem. A mim nem sequer me ocorreu pensá-lo – suspirou. – Mas odiava mentir. As desculpas para não
ter que tirar a roupa diante de outras pessoas. Isso o odiava muito. E quando fiz doze anos, comecei a
gostar de um de meus amigos. Isso foi… foi muito incômodo.
– Imagino que sim – Robert piscou. – Isso explica muitas coisas sobre você.
– Depois disso, tive que aprender a ser uma garota. Tive que aprender a andar e a falar. Havia tantas
coisas pequenas que podia fazer errado que era mais fácil tornar-se tímida e calada. Assim não podia
cometer enganos.
– Isso me faz pensar que devemos ter uma longa conversa sobre os temas apropriados para a
educação feminina – disse ele com um sorriso. – Quando nós tivermos casado.
– Você não fala a sério, Excelência. Sou um escândalo em potencial.
– Minnie, eu quero abolir a nobreza. Escrevo santinhos radicais em segredo. Não vou gritar: “Oh,
não, um escândalo!”, e sair correndo. Não me importa o escândalo.
Minnie o olhou nos olhos.
– Mas a mim sim, Excelência. A mim sim.
Alguém bateu na porta. Uns momentos depois, repetiu-se a chamada. O trinco começou a mover-se
com lentidão; depois de fazer hora, Lydia abriu a porta e entrou com uma jarra de água.
– Parece-me que foste procurar essa água em Bath – comentou Minnie. – Caminhaste até ali ou
tomaste o trem?
Sua amiga lhe sorriu com malícia.
– E bem? Está tudo arrumado?
– Isso mesmo pergunto eu – Robert arqueou uma sobrancelha.
E Minnie se encontrou de modo que não podia responder. Desejava o. Gostava dele. Se tivesse sido
qualquer outro homem, teria aceito. Mas casar-se com ele a colocaria em exposição, não só de algumas
pessoas, mas sim de todo o país. E com ele a seu lado, todos a olhariam. Sentia-se doente apenas em
pensá-lo.
Afastou a vista.
– Necessito mais tempo – disse.
– Tempo? Tempo para que? – perguntou Lydia.
Mas Robert ergueu uma mão.
Nesse caso, tome-o – disse. – Pense-o bem desde todos os ângulos. Considere suas estratégias, se for
preciso, e adiante suas linhas de defesa. Faça o que tenha que fazer para sentir-se segura – lhe dedicou
um sorriso; era um sorriso confiado. Um sorriso que indicava que sabia que ela não o rechaçaria. –
Tome-se seu tempo – se aproximou e se inclinou para ela. – E ao final, Minnie, me aceite.
CAPÍTULO 16

Robert TERIA QUE TER adivinhado no que implicariam os falatórios, mas a visita da manhã seguinte
o pegou de surpresa. Dispunha-se a sair, acabava de fato de cruzar a porta, quando uma carruagem se
deteve diante da casa. Um lacaio saltou da parte de trás e colocou um tamborete no pavimento.
Abriu-se a porta e baixou a mãe de Robert. A mulher pousou os olhos em seu filho. Não franziu o
cenho nem entreabriu os olhos. De fato, a duquesa não mostrou nenhuma emoção. Simplesmente baixou
ao chão e subiu os degraus como flutuando.
– Clermont – o saudou.
Ele inclinou a cabeça meia polegada.
– Duquesa.
A mulher entrou pela porta como se ele a tivesse mantido aberta para ela. Sem pedir permissão,
abordou a uma donzela que passava e ordenou chá. Robert a seguiu divertido. Dois minutos depois, ela
estava sentada no salão principal. Despediu-se de sua donzela com um gesto e o olhou.
– Assumo que não terá por costume ir por aí corrompendo a jovens de classe média – disse.
Pronunciou as palavras “classe média” como se cheirassem a ovos podres.
– Refere-se aos acontecimentos de ontem à noite? – perguntou ele, imitando seu tom. – Tenho por
costume desonrar a um par delas antes do chá. Tenho descoberto que essa prática faz com que as horas da
manhã passem com uma celeridade deliciosa.
A condessa respirou com força.
– Esse é o tipo de comentário que teria feito seu pai.
Robert apertou o punho dentro da luva.
– Não – retrucou. – Esse é o tipo de coisa que teria feito meu pai.
Ele jamais teria brincado com isso, não diante de uma mulher.
Sua mãe agitou uma mão no ar em sinal de conformidade.
– Esta não é a primeira vez que ouvi seu nome acompanhado do da senhorita Pursling. Me diga que
não está considerando nada indecoroso.
– Não vejo o que possa te importar isso a ti. Não te importou nunca.
A duquesa de Clermont encolheu os ombros.
– Seus atos, sejam quais sejam, refletem-se em mim.
É obvio. Ela não se interessava por ele. Não o tinha feito nunca. Simplesmente se preocupava com
sua reputação, pensava nas dificuldades que isso podia causar a ela. Robert tinha esperado toda sua vida
que se fixasse nele.
Tinha estudado duro no colégio e ganhou louvores de todos seus tutores. Tinha escrito entusiasmado a
sua mãe, com a esperança de que lesse sua carta e de que se sentisse orgulhosa dele.
Mas sua primeira carta não tinha tido resposta. Esforçou-se mais ainda. Se não se limitava a ser bom,
mas sim chegava a ser muito bom, sua mãe estaria orgulhosa dele. Tinha estudado mais, esforçou-se mais,
tinha alcançado mais objetivos. Havia tornado a lhe escrever quatro meses depois e lhe tinha contado
seus sucessos com acanhamento.
O correio não lhe tinha levado nenhuma resposta.
Robert não se deixou afetar por isso e se esforçou ainda mais. Tinha-lhe escrito a terceira carta ao
final do curso. Nela a informava que tinha sido o primeiro de sua classe. A primeira semana daquele
verão tinha contido o fôlego todos os dias quando chegava o carteiro. E tinha levado uma decepção todos
os dias.
Por fim, ao oitavo dia, tinha recebido uma resposta. Constava de uma linha: diga a seu pai que essa
estratégia tampouco dará resultado.
Depois disso, para Robert tinha sido questão de princípios seguir como antes, para provar que todo
esse esforço não tinha sido por ela. Apesar disso, tinha-lhe levado anos perder a esperança.
– E bem? – perguntou ela, observando-o. – Quais são suas intenções com essa garota?
Robert a olhou.
– Acredito que um filho deveria obedecer a sua mãe e responder a suas perguntas por que lhe deve
respeito pelos anos de cuidados que lhe dedicou ela.
O corpo de sua mãe ficou rígido.
– Sinto-me generoso. Responderei a uma pergunta por cada mês que passou comigo em minha
infância.
Olhou-a. Ela tinha os lábios apertados. Seus dedos tamborilavam um ritmo irado no pires.
Robert ficou em pé.
– Como estou seguro que sabe – disse, – isso te deixa sem perguntas. Esta entrevista terminou.
Dito isso, saiu da sala.


Minnie SE DAVA CONTA DE QUE uma proposta de matrimônio não deveria fazer com que se
sentisse mal. Sobre tudo porque gostava do homem que a fazia. Mas não podia discutir com seu corpo.
Lhe encolhia o estômago só de pensar o que implicaria casar-se com ele. Quando na manhã seguinte disse
a suas tias que precisava descansar, não mentia.
Tinha prometido considerar as vantagens da proposta, mas qualquer tentativa nessa direção se via
impossibilitada assim que começava a ver-se rodeada por caras furiosas.
– Fraude – gritavam essas caras. – Semente do diabo.
As duquesas atraíam multidões. Assistiam a festas. Não desmaiavam quando as olhava muita gente.
Se o fizessem, estariam sempre desmaiando.
Podia imaginar muito bem a parte privada de sua relação. Ardia-lhe a pele de desejo pensando nisso.
Beijaram-se algumas vezes e não podia fingir que não o desejava. Mas embora poderia haver ido bem
como amante de Robert, a ideia de ser a esposa de um duque a punha doente. E antes ou depois, qualquer
entendimento privado que pudessem ter se veria escurecido pelo desastre inevitável que seria sua vida
pública.
Essa tarde, suas ruminações se viram interrompidas pelo ruído de uma carruagem no caminho de
entrada da casa. Minnie se incorporou sobre um cotovelo para aparecer pela janela e observou divertida
os quatro cavalos escuros que se aproximavam da casinha de suas tias avós. Um lacaio saltou da parte de
trás da carruagem, abriu a porta e colocou ao lado um tamborete estofado de cores brilhantes. Saiu a
duquesa de Clermont e olhou em todas direções enrugando o nariz. Sem dúvida se fixava nos campos de
couves depois da casa, na pintura que caía em pedaços no celeiro a sua esquerda, nas dobradiças
oxidadas… sinais da pobreza que espreitava de perto.
Usava um vestido rosa pálido, enfeitado com rendas nos punhos e prega; lembrava um bolo luxuoso na
cristaleira de uma confeitaria. Moveu a cabeça como se quisesse fazer desaparecer a vista da casa que
tinha diante e pôs-se a andar. Um de seus lacaios se adiantou a usar a aldrava.
Já começava aquilo. As multidões. Olhadas duvidosas. As recriminações.
Não lhe surpreendeu nada que sua tia Caroline entrasse para vê-la uns minutos depois.
– Minnie – disse a mulher com tom assombrado. – Sei que não te encontra bem, mas a duquesa de
Clermont insiste em ver-te. Digo-lhe que se vá?
Obviamente, a duquesa se inteirou da notícia através de seu filho.
– Não – repôs a jovem. – Será melhor que a veja.
Caroline a ajudou a atar o vestido e recolher o cabelo em um coque. Fez-o em silêncio. Não
perguntou por que a visitava a duquesa de Clermont nem questionou a enfermidade de Minnie. Ela
poderia ter muitas queixas contra suas tias, mas a deixavam livre e confiavam nela para que tomasse suas
próprias decisões.
– Minnie – disse ao fim sua tia, quando deixou a escova do cabelo e declarou seu vestido
apresentável. – Se necessitasse algo, o que fosse, você me diria isso, verdade?
Sua tia avó usava um vestido até que tinha virado pela quinta vez. A metade das rugas de sua cara
provavelmente eram culpa de Minnie. Se acontecia algo a Eliza, Caroline não teria aonde ir. E seguia
confiando em Minnie.
Esta pensou que não importava o que acontecesse se, se convertia em duquesa. Não importava que ela
fizesse muito mal seu trabalho. Suas opções tinham ido desaparecendo uma por uma e havia coisas piores
que sentir-se obrigada a casar-se com um homem que gostava.
– Não – disse. – Não lhe diria isso. Faz muito tempo que teria que ter deixado de depender de vocês.
Deveria ser você quem dependesse de mim.
Os olhos de sua tia se escureceram.
– Oh, Minnie! – exclamou com voz estrangulada.
Minnie lhe apertou a mão.
– Não se preocupe por mim – respirou fundo e desceu, disposta a combater
De perto, o vestido da duquesa era ainda mais impressionante. Quatro capas da mais fina renda
rodeavam suas mãos. O tecido levava um desenho de flores delicadas bordadas e costuradas com pontos
finos, muito acima das habilidades de Minnie. Não viu nada de Robert na cara da mulher. O nariz era
pequeno e arrebitado, e sua boca parecia luzir uma careta perpétua.
Minnie inclinou a cabeça e fez uma reverência na soleira, muito consciente de seu vestido gasto: um
objeto cinza com punhos negros que já tinham sido virados uma vez para esconder o desgaste. A duquesa
a examinou em silêncio, sem dúvida catalogando todas suas deficiências. Não era necessário que falasse.
O modo como arqueava as sobrancelhas e a surpresa que se lia em seus olhos indicavam uma mesma
coisa. “Como te atreve a pensar que pode te casar com meu filho?”.
Independentemente de qual seria a decisão final de Minnie, não se acovardaria diante daquela mulher.
Olhou-a nos olhos e se recusou a ser a primeira em afastar a vista.
– Bem – disse pôr fim a duquesa. – Compreendo o que vê em você.
Suas palavras foram tão surpreendentes que Minnie esqueceu sua resolução.
– Compreende-o?
A duquesa se levantou e se aproximou dela.
– Pobre – disse. – Tocou os punhos puídos das mangas de Minnie. – Com cicatrizes – assinalou a
bochecha. – Sem porte, sem boa postura e sem as maneiras apropriadas. Você é sua obra de caridade.
Depois das turbulências do dia anterior, foi um alívio sentir uma fúria fria sem complicações. Minnie
ergueu o queixo.
– E, entretanto, ainda não me ofereceu nenhuma só libra esterlina.
– O matrimônio com ele valeria mais de uns quantos guinés.
Minnie pôs uma mão no quadril.
– Se acreditar que o interesse de seu filho por mim é uma mera questão de caridade, é que não o
conhece muito bem. Certamente haverá vítimas mais merecedoras disso que eu.
A duquesa negou com a cabeça.
– Conheço meu filho – grunhiu. – Se parece tanto a seu pai que me levou anos me dar conta da
verdade. Parece-se muito a mim.
– A você? – Minnie voltou a olhar à mulher. Além da cor clara do cabelo, seu filho não tinha nada
dela. Provavelmente não teria mais de cinquenta anos, mas o cenho franzido tinha formado rugas duras
em sua frente. Sua boca estava curvada em uma permanente expressão de desagrado. – Ele não se parece
nada a você.
A duquesa agitou uma mão no ar com um gesto de desdém.
– A como eu era antes – disse. – Flexível. Branda – apertou ainda mais os lábios. – Ingênua. Ele é um
verdadeiro romântico, não o negue. Tem que sê-lo para pedir a uma mulher como você que se case com
ele.
– A uma mulher como eu – Minnie sentiu que sua boca se curvava também com desagrado. – A que se
refere com uma mulher como eu?
– Durante o resto de sua vida, as pessoas o olharão e se perguntarão por que se casou com você.
Murmurarão sobre o modo terrível como manchou o sobrenome Blaisdell.
– Eu acredito que disso deveria preocupar-se ele, não você.
A duquesa jogou faíscas pelos olhos.
– Sabe o quanto eu renunciei para que meu filho nascesse com todas as vantagens? Sofri durante anos
um matrimônio com o cretino e infiel de seu pai. Esfregaram seu bastardo na minha cara. Tive que… – se
interrompeu e moveu a cabeça. – Isso não importa. Renunciei a tudo para que meu filho pudesse ter esta
vida. Para que tivesse tudo. Você não pode conceber o que tive que suportar. E eu não sacrifiquei minha
vida inteira para que ele desperdice a sua com uma filha de ninguém.
Essas palavras deixaram claro a Minnie que a mãe de Robert desconhecia as esperanças dele de
abolir os títulos de nobreza.
Mas a duquesa seguiu com seu discurso.
– Você não contribui com nada a esse enlace. Nem sobrenome nem dinheiro nem terras nem poder.
– Conheço muito bem meus bens, Excelência.
– E de todos os modos, não se casará com ele – disse a duquesa com desprezo. – Conheço meu filho.
Provavelmente lhe interessam o bem e o mal; deseja tão desesperadamente encontrar seu lugar em alguma
parte que se empregará a fundo em qualquer causa que escolha cegamente, sem lhe importar os danos
para si mesmo.
Talvez a duquesa sim conhecesse Robert melhor do que Minnie tinha suposto ao princípio.
A duquesa soprou.
– Provavelmente pense que a está salvando de uma vida de penalidades.
Olhou mais uma vez o vestido singelo de Minnie e esta se ruborizou. O olhar da duquesa viajou até as
luvas da jovem e voltou a subir até o coque severo que lhe tinha feito Caroline. Minnie se manteve reta e
lhe devolveu o olhar.
– Está-te salvando de uma vida de penalidades – concluiu a duquesa. – Não posso te culpar por
deixar que ele o faça.
– Quem disse que eu o fiz? – perguntou Minnie. – Eu não quereria me encontrar em seu lugar. Nem
por todos seus vestidos ridiculamente exagerados.
Surpreendentemente, isso fez sorrir à duquesa. O sorriso adoçou seu rosto, fazendo-a parecer décadas
mais jovem.
– Ah, não? Nesse caso, pode ser que não careça de sentido comum – a mulher depositou uma bolsinha
com contas bordadas sobre a mesa. – Sei que pareço dura, mas ele é meu único filho. É o único que tenho
– suspirou. – Não careço totalmente de sentimentos. Uma vez me encontrei na posição em que você está
agora.
Franziu os lábios, mas esta vez não houve sorriso, apenas um grunhido.
– Afeta muito ser cortejada por um duque. Um duque jovem e atrativo. Sabia que o pai de Robert
tinha muito má reputação, mas estava segura de poder curá-lo de todos seus defeitos. Tinha deixado de
jogar e de beber em excesso e, se me tivesse, não voltaria a olhar a outra mulher.
A duquesa tirou uma das luvas e a dobrou antes de olhar a Minnie nos olhos.
– Mataram todas as minhas ilusões românticas antes dos vinte anos. Mas não foi o duque o único
responsável. Foi todo mundo com que me encontrei. Toda a alta sociedade me via somente como uma
bolsa de dinheiro para o Duque de Clermont. Durante anos e anos, disseram-me todos os dias, em
sussurros que não eram sempre pelas minhas costas, que eu não era igual a meu marido. Dava no mesmo
se ele não tivesse nem sentido comum, nem dinheiro.
Eu estava abaixo dele e o fato de que ousasse contradizê-lo… Nada do que fazia meu marido
provocava jamais nem um sussurro, mas minha insistência em ser tratada com respeito era um escândalo.
Quando ele ia visitar prostitutas, isso não era nada para a sociedade. Golpeava-me porque eu insistia na
fidelidade marital e quão único a boa sociedade encontrava escandaloso era que eu ousasse questioná-lo
– à duquesa lhe tremia a voz. – Ao menos eu tinha dinheiro.
Como acredita que será essa vida para você?
Minnie tragou saliva.
– Robert não é assim.
As mãos da duquesa apertaram a luva que tirou.
– Li Orgulho e Preconceito. Sei exatamente em qual papel me colocou, o de lady Catherine, tola
intrometida que acredita que Darcy deve casar-se com sua miserável filha – apertou os lábios. –
Possivelmente seja esse meu papel. Deveria me erguer agora e lhe gritar: – “vão poluir assim as sombras
da mansão Clermont?”.
Minnie piscou surpreendida e a duquesa sorriu.
– Já lhe disse que eu também fui romântica – disse. – E possivelmente tenha que ser lady Catherine.
Mas me vejo também nele, quando eu era mais jovem. Em sua galanteria, sua certeza do amor, sua
esperança pelo futuro. E eu não desejaria minha vida a ninguém.
Aquela conversa não ia como Minnie tinha imaginado. Em lugar de enfurecê-la, as palavras da
duquesa contribuíam uma espécie de claridade fria à situação.
– Deve querer muito a seu filho – disse.
– Não – repôs a outra com suavidade. – Suponho que em outro tempo poderia havê-lo querido. Mas
se utilizarem muitas vezes a um menino como uma espada cravada em seu coração, deixa de sentir. Eu
não tive escolha e… – encolheu os ombros. – Não tenho esse sentimento para convencê-la, nem para
suplicar. Apenas o pedirei o mais amavelmente que possa – olhou a Minnie nos olhos. – Por favor, não
faça isso com meu filho.
Minnie concluiu que a duquesa era uma mulher estranha. Muito estranha. Sentiu uma faísca de
compaixão por ela.
– É muito mais gentil do que era seu pai – a duquesa apertou os lábios. – Quando vir como a tratam,
será desgraçado. Nunca pôde tolerar os abusos.
– Tudo isso está muito bem – respondeu Minnie. – Se eu fosse uma pessoa melhor, suponho que
recusaria me casar com ele. Mas você mesma disse. Não tenho fortuna nem família nem futuro – sorriu
com nervosismo. – Você já ouviu os rumores que me relacionam com seu filho. O que acredita que será
de minha reputação sem ele?
A duquesa entreabriu os olhos.
– Há-a…?
– Não estou desonrada – continuou Minnie. – E os falatórios até o momento são apenas de ultraje.
Mas eu não necessito mais que uma simples suspeita negativa. No tema da moralidade, os detalhes são
para os ricos. Eu não posso permitir isso – moveu a cabeça. – Sei que seria desastroso me casar com ele.
Mais do que você possa imaginar.
A ideia de ser duquesa, de suportar os falatórios, de sentir o peso do olhar de todo o mundo em
qualquer lugar que fosse, fazia com que Minnie se sentisse enjoada. Mas tinha a oportunidade de prover
para sempre suas tias avós e a si mesma.
– Sei que seria um desastre, mas não tenho escolha. Devo fazê-lo.
Ergueu a vista e viu que a duquesa lhe sorria.
– Que refrescante! – disse esta. – Eu pensava que choraria e golpearia o peito dizendo que o amava.
Mas você é muito pouco romântica.
Minnie negou com a cabeça.
– Posso sonhar com duques e castelos como qualquer um.
Mas jamais teria podido imaginar a Robert. Ele era melhor que nenhum príncipe. Via claramente o
brilho de seus olhos quando lhe dizia que queria abolir os títulos de nobreza. Se, tivesse se tratado
somente deles dois, possivelmente teria se apaixonado por ele. Dado seu passado, era um milagre que
encontrasse a alguém a quem podia amar, e que parecia corresponder de algum modo a esse amor.
Rechaçar isso seria muito perigoso. Alguns dons podiam não dar-se duas vezes.
E, entretanto, proclamar-se esposa de um duque? Esse era o tipo de orgulho que precedia, não a um
simples estrondo, a não ser a uma grande queda do alto de um precipício elevado.
Quase podia ver as pedras bicudas que a esperavam abaixo.
Estava apanhada entre a esperança e a presunção.
– Eu poderia ser romântica – murmurou com suavidade. – Mas o romantismo é outro luxo que não
posso me permitir.
– Que ironia! – exclamou a duquesa, observando-a. – Agora acredito que faria bom casal com ele…
se fosse outra pessoa. Minnie se pôs a rir e fechou os olhos.
A duquesa adiantou o peito para ela.
– Pois vamos ver como são seus princípios quando tem uma escolha. Darei a você cinco mil libras.
Minnie abriu os olhos imediatamente. Olhou à outra mulher. Estava segura de que brincava. Mas a
duquesa lhe devolveu o olhar com toda seriedade.
– Fala a sério – disse Minnie, aturdida.
Cinco mil libras esterlinas pareciam uma quantidade impossível. Suficiente para viver com isso.
Suficiente para assegurar o futuro de suas tias. Suficiente para formar um dote razoável, se era isso o que
queria, ou para mudar-se para viver no continente. Era muito dinheiro.
Mas em seguida olhou o vestido que usava a duquesa, a quantidade de tecido, as jardas e jardas de
rendas e o esmerado bordado. Apenas aquele vestido provavelmente custava mais de cem libras.
– Suponho que para isso terei que rechaçar o matrimônio.
A duquesa encolheu os ombros.
– Não vou pretender que possa lhe oferecer suficiente para compensá-la por não casar-se com ele.
Apenas no contrato de matrimônio, provavelmente lhe daria já mais de cinco mil libras. Mas… Já lhe
disse que o conheço. É muito perseverante para aceitar uma simples negativa – olhou a distância como se
recordasse algo. Apertou os lábios com desgosto. – Ele o tentará uma e outra vez. Robert não se renderá
até que o esbofeteie com todas suas forças. Mas traia-o uma vez e não voltará a olhá-la na cara.
A duquesa havia dito que não queria a seu filho. Mas era uma mulher estranha, fria e angulosa um
momento e frágil ao seguinte. Era uma parte quebrada de vidraça, que podia lançar cores à sala e, ao
mesmo tempo, também cortar tudo o que tocava. Às vezes parecia que seu filho lhe importava. E ao
momento seguinte…
– Não é possível que queira que faça mal ao Robert – disse Minnie. – Não pode me pedir que faça
isso.
A duquesa encolheu os ombros.
– Acredito que lhe viria bem. É muito romântico, muito crédulo – olhou a Minnie e voltou a encolher
os ombros sem o menor sinal de arrependimento.
Uma mulher dura e estranha. Possivelmente Robert poderia chegar a ser uma criatura como ela.
– Não sei se posso fazer isso – disse Minnie com voz rouca. – Lhe Fazer tanto dano que…
Mas já estava imaginando como podia fazê-lo.
– Você parece uma mulher capaz – respondeu a duquesa com o cenho franzido.
Os segredos de Minnie tinham sido revelados em uma ocasião a todo mundo. Como podia fazer o
mesmo com outra pessoa? Como poderia fazer precisamente a ele?
Mas como poderia casar-se com ele?
Minnie olhou à duquesa nos olhos.
– Não sei se posso fazer isso – repetiu.
Quando partiu a duquesa, esquivou as perguntas bem-intencionadas de Caroline e Eliza e subiu a seu
dormitório. A casa não era grande; Minnie tinha um quarto pequeno na parte dianteira, justo em cima do
salão. Dali podia ver os campos de couves; estas tinham sido recolhidas em preparação para o inverno e
os campos esperavam o arado. Mas seu campo de visão estava bloqueado pelo celeiro. Nos dias frios, o
calor do gado liberava vapor quando estavam abertas as portas. Esse dia só escapavam do celeiro
pequenas baforadas brancas, apenas visíveis entre a chuva que tinha começado a cair.
A propriedade tinha sido em outro tempo uma cabana de caça com alguns acres de terreno. Caroline e
Eliza a tinham convertido em uma granja. Tinham investido ali o pouco dinheiro que tinham entre as duas,
tinham contratado homens para formar os campos e ará-los ano após ano. Mas apesar de todo esse
trabalho, a terra não era realmente dela. Caroline tinha somente o usufruto da cabana de caça enquanto
vivesse. Depois de sua morte, a propriedade passaria a um primo longínquo.
Com cinco mil libras, Minnie poderia comprar a granja de suas tias quando chegasse o momento.
Com cinco mil libras, poderia fazer isso e ir-se muito longe. Wilhelmina Pursling poderia
desaparecer. Poderia ir aonde não tivessem ouvido falar dela. A algum lugar onde não teria que tornar-se
pequena para tentar agradar a um homem. E o único que teria que fazer para conseguir essa segurança era
justamente o que ao princípio tinha prometido ao Robert que faria. Teria que ser sua inimiga.
Mas a alternativa…
Podia dizer não à duquesa. Embora a mulher afirmasse que conhecia seu filho, Minnie suspeitava que
não tivesse nem ideia de quem era. Robert não seria feliz com a filha bem educada de um nobre. Ela tinha
visto a luz que brilhava em seus olhos quando falava de seus planos para o futuro. Se fazia aquilo, não
podia fingir que era pelo bem dele.
Era pelo seu próprio. Porque preferia trair a um homem a que poderia chegar a amar ao invés de mais
uma vez expor-se a uma multidão.
Podia ver sua imagem pálida no cristal da janela, sobre o reflexo da granja. Olhou-se as bochechas
pálidas, a cicatriz do rosto, os olhos que se moviam ao redor, negando-se a pousar-se em um ponto fixo.
Ergueu uma mão e viu que tremia.
– Se estiver considerando isto, é só porque está assustada – se disse.
Mas aquilo não era certo de tudo. Não estava assustada, estava aterrorizada.
CAPÍTULO 17

CHEGOU O ENTARDECER E Minnie não tinha tomado ainda uma decisão. Estava caminhando por
seu quarto quando ouviu uns golpes na porta de baixo. Houve um ruído como de empurrar a porta,
seguido de um grito procedente da entrada debaixo da sala.
– Minnie! Minnie! –era a voz da Lydia.
Minnie correu à porta. Depois da visita da duquesa tinha começado uma tormenta e a chuva golpeava
os cristais com força.
A jovem não se entreteve em esperar. Simplesmente abriu a porta e correu escada abaixo. Sua amiga
estava na entrada e havia uma poça de água a seus pés. Levava o cabelo solto, que caía empapado
formando uma massa negra sobre seus ombros. Suas saias e anáguas jorravam.
– Minnie – repetiu, antes que esta chegasse até ela. – Stevens retornou e não vai acreditar no que
disse a meu pai. Disse que… Minnie levou um dedo aos lábios.
– Shsss! – inclinou a cabeça em direção onde estava a donzela, que observava a cena confusa. “Não
diga nada. Podem te ouvir”. Lydia saiu ao seu encontro na escada.
– Diz que você é a autora desses santinhos – disse em voz baixa.
A Minnie pulsou com força o coração.
– Isso diz? Tem provas?
– Diz que é uma embusteira e uma trapaceira, que tem provas de que sua mãe nunca se casou e de que
você é filha do pecado. Diz que seu verdadeiro nome é Minerva Lane…
Minnie lhe pôs uma mão a sua amiga na boca.
– Shss! – repetiu com suavidade. – Já sei o que diz. Não é necessário repeti-lo. Quem ele acredita
que é Minerva Lane?
Lydia franziu o cenho ao ouvir a pergunta.
É… é outra mulher. Stevens diz que esse foi o nome que lhe puseram para ocultar que foi filha
ilegítima.
Então Stevens tinha descoberto seu verdadeiro nome. Ela tinha vivido em Manchester quando era uma
menina pequena e alguém devia recordar a conexão. Mas ele não tinha descoberto a história de sua
família nem adivinhado por que tinha adotado outro nome. Se tinha investigado em Manchester, era
provável que não tivesse encontrado o motivo. Depois de tudo, o escândalo tinha acontecido em Londres.
– Tem que esclarecer tudo. Stevens está falando de pedir uma ordem judicial para te deter.
Minnie deu um coice.
– Para me deter?
– Por rebelião criminal. Meu pai te conhece há anos. Não sei como pôde ocorrer, como pode pensar
algo tão impossível. Ouvi-os através da porta.
Minnie, tem que vir. Possivelmente se chamar o duque…
O trovão fez tremer os vidros; o ruído foi tão alto que Minnie se encolheu.
– Não – respondeu. – A ele não. A ele não. Ele não pode me salvar.
Se Stevens não sabia ainda por que Minerva Lane tinha trocado de nome, saberia logo. Assim que
esse nome fosse pronunciado em público, não poderia ocultar seu passado. Se, se casava com Robert,
essa revelação não seria só uma possibilidade, seria uma certeza. Jamais poderia escapar daquele nó que
havia ao redor de seu pescoço. Um nó que sentia apertar-se naquele momento.
Soou outro trovão, que vibrou por muito tempo e próximo através do ar. Tremeram-lhe as mãos e, ao
final, o medo tomou a decisão por ela. Tinha um instante para escolher entre a desonra e a traição, entre a
possibilidade do amor e a certeza da derrota. E bem observado, o amor não lhe tinha servido de muito na
vida.
– Temos que ir agora – insistiu Lydia. – Sei que você pode arrumar tudo. Sempre o faz.
Minnie sabia o que tinha que fazer. Via-o com claridade: uma visão de pesadelo desprovido de cor.
– Pede que selem um cavalo – disse à donzela, que seguia esperando na entrada.
Havia apenas um modo de sair daquela confusão, e esse modo lhe partiria o coração.
Vamos, vamos – Lydia insistiu.
– Te seque um pouco – disse Minnie, embora soubesse que não serviria de nada, já que iam voltar a
sair. – Necessito cinco minutos. Cinco minutos para recolher uns papéis – cinco minutos para matar dois
pássaros com uma traição.
Entrou em seu quarto como em uma névoa. Tirou lentamente os papéis que tinha reunido. As provas
recolhidas com esforço. E depois também tirou a carta de Robert.
Olhou em frente. O coração lhe pulsava com força no peito, mas atou todos os papéis juntos sem que
lhe tremesse a mão.


DEMOROU QUASE TRÊS QUARTOS de hora para chegar à casa dos
Charingford com a tormenta. Quando chegou, sua roupa jorrava água e seu cabelo era uma massa
embolada e empapada. Mas não podia perder tempo com uma coisa tão frívola quanto secar-se. Assim
que entrou na casa com Lydia, avançou diretamente para o salão e empurrou a porta.
– Senhorita Pursling! – exclamou o senhor Charingford, levantando-se de um salto.
Stevens ficou em pé mais devagar, com os braços cruzados e gesto desaprovador. Olhou primeiro a
Minnie, depois a Lydia, que estava atrás dela, e logo afastou a vista.
– Senhorita Charingford – disse com frieza.
Voltou a olhar a Minnie.
– Diga-o – murmurou Lydia, atrás de sua amiga. – Lhes diga a verdade.
Stevens seguia olhando a Minnie.
– Presumo que é você a senhorita Minerva Lane.
Minnie sabia que ocorreria aquilo. Mesmo assim, o coração lhe deu um tombo quando ouviu
pronunciar seu antigo nome em voz alta e viu a expressão do Stevens. Acreditou ver chamas de luz diante
de seus olhos.
“Não é nada. Você não é nada. Não pode te fazer nada”. – Assim é – respondeu.
Lydia teve um sobressalto atrás dela. Mas Minnie não podia voltar-se. Não podia suportar ver a cara
de sua amiga naquele momento.
– Quer dizer que é uma bastarda. Que mais esteve ocultando?
Minnie ergueu uma mão.
Sou muitas coisas – declarou com voz fraca, – mas há uma acusação que não se sustentará. Não tenho
escrito santinhos sediciosos nem agora nem nunca.
– Mentiras – grunhiu Stevens.
Minnie olhou ao senhor Charingford nos olhos.
– Eu não tive nada a ver com isso. E todas as provas assinalam a outra pessoa.
Stevens a apontou com um dedo.
– Mais mentiras.
Mas o senhor Charingford deu um passo para ela.
– Está segura? – perguntou. – Porque, Minnie, embora eu não goste de pensar isso de ti, sei do que é
capaz.
Não olhou a sua filha, mas Minnie soube que ele pensava em uma tarde de muito tempo atrás quando
ela tinha explicado o que teria que fazer para proteger a reputação da Lydia.
– Posso prová-lo – respondeu.
Todos seus sentimentos pareciam distantes… como uma luz escondida debaixo de um casco de metal,
que brilhava onde ninguém podia vê-la. Ela estava tranquila. Achava-se vazia por dentro.
– Quem diz que é o responsável? – perguntou o senhor
Charingford. – Grantham? Peters?
Minnie abriu a bolsa de tecido que levava de lado. Tinha envolvido seu primeiro conteúdo em papel
de cera e depois em tecido impermeável. Quando tirou os papéis, tinham somente uma leve umidade.
– Estes – disse, separando as primeiras folhas de papel– são os papéis que nosso querido amigo De
Minimis tem escrito até o momento. O que vou dizer agora se pode observar com uma lupa de joalheiro.
Em primeiro lugar, o tipo de letra no que estão impressos tem um defeito na “e”, uma ligeira greta. Justo
aí.
Dados. Fatos. Ela era só isso, uma coleção de dados e nada mais.
Assinalou com o dedo e trocou de folha.
– E neste. E também neste outro. É um traço distintivo.
Mostrou outros papéis.
– Estes se podem comprar em grandes quantidades aqui em
Leicester.
Stevens deu um passo à frente.
Minnie levantou uma mão.
Todos foram feitos na mesma região. Verão que marquei sua origem na esquina; se não confiarem em
mim, podem comprovar a verdade do que digo perguntando amanhã. Se olharem este papel com a lupa de
joalheiro, descobrirão algo que não acredito que lhes surpreenda muito. Todo o papel que se fabrica em
Leicester aproveita os materiais da região. As três fábricas de papel daqui incorporam desperdícios da
indústria têxtil em seus papéis: trapos, partes de algodão, lã… Os papéis de Leicester, quando se
examinam com atenção, têm traços característicos de fibras neles, seja qual seja seu grau. Estes –
mostrou os santinhos de Robert– não têm nenhum.
– O que é o que tenta dizer?
Minnie ignorou a pergunta do Stevens. Nesse momento era uma enciclopédia, um dicionário que dava
dados e nada mais.
– Aqui há amostras de impressões das prensas da área. Cataloguei pessoalmente os defeitos nos tipos
de letras; uma vez mais, asseguro-lhes que apenas têm que lhe dedicar um pouco de tempo para verificar
esta afirmação. Verão que não há gretas em nenhum “e” que sejam do tamanho das que aparecem nos
santinhos.
– Vá diretamente ao ponto, senhorita Lane – Stevens fez uma careta de desdém. – Já sabemos que a
pessoa que criou os santinhos não trabalhava sozinha. Isto apenas nos diz que você teve ajuda de fora.
Uma organização nacional, talvez?
Minnie não tinha intenção de deixar-se intimidar por ele. O senhor Charingford a observava com
atenção. Tirou outro papel do montão.
– Este papel foi comprado em Londres. Notarão que neste montão há papel de distintos graus. Este –
tomou um papel dos últimos do montão– verão que é idêntico ao papel no que estão impressos os
santinhos. Mas não se esqueçam do resto dos papéis. Quem acreditam vocês que é o fabricante deste?
– Não estou de humor para as adivinhações. Você já disse que é de Londres.
– É de Graydon Mills. Sabem vocês algo sobre Graydon Mills?
– Asseguro-lhe, senhorita Lane, que se não chegar a uma conclusão…
– Deixe-a terminar – grunhiu o senhor Charingford.
Minnie assentiu.
– Graydon Mills é uma fábrica que fundou faz sessenta anos um tal senhor Hansworth Graydon, um
granjeiro que ganhou sua primeira fortuna com ovelhas e a segunda, terceira e quarta com fábricas.
Chegou a ter todo um império. Era tão rico que pôde casar muito bem a sua filha. Quando o senhor
Graydon morreu, deixou o grosso de suas propriedades a seu neto. Vocês o conhecem como Robert Alan
Graydon Blaisdell, o nono Duque de Clermont.
Aquela declaração foi seguida de um silêncio; depois houve um grunhido depreciativo.
– Deve estar louca – protestou Stevens. – Acredita que vai escapar a seu castigo explorando uma
coincidência tão inverossímil?
O senhor Charingford não disse nada; apenas fez um gesto a Minnie para que continuasse.
– Sua Excelência utiliza também papel de Graydon Mills para sua correspondência pessoal –
prosseguiu ela. – Um papel de boa qualidade, sim.
– Isso não me importa nada! – A cara de Stevens se tornou vermelha. – Já ouvi suficientes calúnias.
Charingford, se você não…
Minnie tirou devagar a carta que Robert lhe tinha dado no trem.
– Isto é uma carta pessoal de sua Excelência – nesse momento lhe tremia a voz e lhe tremiam as mãos.
Alisou o papel contra a mesa e o agarrou pela borda. – Devo assinalar que utiliza o papel de maior
qualidade da Graydon Mills. Aí está a marca d'água e sua assinatura também se pode autentificar –
assinalou. – Mas me parece que encontrarão vocês o conteúdo muito mais interessante que a fonte.
Stevens lhe tirou o papel da mão. – Não sei o que faço… – murmurou lendo. Interrompeu-se e a olhou.
– Escrevo santinhos – leu devagar.
Leu em silêncio, movendo os olhos pelo papel. Charingford olhava a carta por cima do ombro do
Stevens. Tinha o cenho franzido. Quando se afastou, moveu a cabeça.
– Não acredito – murmurou Stevens. Mas suas palavras não eram as de um homem que duvidasse da
carta; eram um intento por negar a realidade.
– Minnie – disse Charingford. – Esta carta… o tom é bastante íntimo. A saudação… As palavras que
emprega… Até o modo como está assinada a carta. Como é que está em posse dessa carta?
Dadas as circunstâncias, Robert provavelmente lhe perdoaria que dissesse a verdade. A duquesa
havia dito que tinha que traí-lo, ganharia seu desprezo.
Se tivesse se tratado de uma partida de xadrez, aquele teria sido o momento no qual teria beijado a
peça. Quando fizesse aquele movimento, já não haveria volta atrás.
Arqueou uma sobrancelha.
– A duquesa de Clermont veio ver-me – comentou. – Quer que seu filho renuncie a seus ideais.
Ofereceu-me cinco mil libras esterlinas para que eu pudesse pará-lo.
A verdade. Não toda a verdade. E daquele modo, transmitia uma impressão que era totalmente falsa.
A Minnie tremiam as mãos.
– Digam que disse isso– comentou, com voz surpreendentemente firme. – Mostrem a carta e não
negará sua participação.
Já não havia volta atrás. Se tinha entendido bem a relação entre eles, ao fazer saber ao duque que se
havia mancomunado com sua mãe mataria qualquer afeto que ele pudesse sentir por ela.
E por outro lado, no momento em que Stevens a tinha relacionado o nome de Minerva Lane, tinha
terminado qualquer possibilidade que pudesse ter de um matrimônio feliz com o duque.
– É um duque – comentou Stevens. – Como pode fazer isto um duque?
– Lhe perguntem – Minnie baixou a cabeça. – Eu não sei o que faz um duque nem por que o faz.
– E como vou responsabilizá-lo, embora tenha sido ele? – Stevens seguia olhando o papel. – Instigou
à cidade com seus santinhos e suas afirmações. A próxima coisa será que os operários se manifestarão e
se negarão a ir trabalhar. Como vou manter a paz se os cidadãos acreditarem que se pode violar
impunemente a lei?
Minnie estendeu a mão para a carta, mas Stevens a separou dela.
Olhou com raiva os papéis.
– Alguém tem que pagar por isso – disse.
Minnie tinha pagado já uma vez e voltaria a pagar. Mas no momento… No momento fez jus ao seu
dinheiro. Teria suficiente para partir, para escapar de Minerva Lane para sempre. Por que, então, sentia
vontades de chorar?
– Parta – disse Stevens. – Agora vá. Lutarei com você mais tarde.
Ela saiu devagar da sala.
Lydia tinha esperado todo esse tempo apoiada na parede, mas quando Minnie passou a seu lado,
seguiu-a fora.
– Lydia – a voz de Minnie tremia.
– Por que disse isso? – perguntou Lydia. – Não pode ser verdade. A duquesa de Clermont pagou você?
Minnie, ela chegou à cidade faz uns dias e este assunto com o duque leva muito mais tempo. E isso de que
te chama Minerva Lane? Se de verdade te chamasse assim, haveria-me dito. Eu sei que me haveria dito.
Minnie se encolheu.
– Lydia.
– Haveria-me dito – repetiu sua amiga. – Você é como uma irmã para mim. Não pode ser outra
pessoa.
– Meu verdadeiro nome é Minerva Lane – Minnie baixou a vista. Aquela história deveria ter sido
mais fácil da segunda vez, mas com os olhos de sua amiga fixos nela, resultava ainda mais difícil.
– Não – Lydia negou com a cabeça com ferocidade. – Não pode ser. Haveria-me dito.
– De certo modo, Minerva Lane nunca existiu. Quando era pequena, meu pai me vestiu de menino e
viajou comigo por toda a Europa, me exibindo. Chamava-me Maximilian. Logo se soube a verdade –
tragou saliva–. Fiquei desonrada. Já pode imaginar como foi minha desonra. Troquei o nome para
escapar disso.
– Mas – Lydia negava com a cabeça, – como pode ser isso verdade? Se fosse verdade, você me
haveria dito – se tornava mais veemente a cada repetição da frase.
– Não – disse Minnie. – Não o teria feito.
Lydia ergueu o queixo.
– Você sabia tudo, absolutamente tudo, de mim. Como podia não me dizer isso. – Para Minnie, vê-la
com a respiração entrecortada e os punhos apertados, era pior que quando se viu rodeada pela multidão,
quando se tinham concentrado a seu redor e…
– Lydia, eu não podia. Se lhe dizia isso… – Eu não haveria dito nada jamais.
Minnie sentia a cicatriz tensa. Ardia-lhe a cabeça e o estômago.
– Quase não posso falar disso. Quando o faço, treme-me todo o corpo. Não posso respirar. Não podia
suportar que me olhasse enquanto o dizia. Não podia.
– Não permita Deus que você me tivesse mostrado uma debilidade.
Poderia ter pensado que foi uma simples mortal.
Minnie fechou os olhos.
– Eu ainda te quero. Lydia?
– Como pode me querer? – perguntou sua amiga com frieza. – A pessoa que era minha amiga… nem
sequer era real. Era uma invenção.
– Não. Era… era real – assegurou Minnie. Mas falava em voz mais baixa, e Lydia nem sequer a
olhava.
– Vá embora – disse esta. – Neste momento não posso nem te olhar. Parta.
Minnie se aproximou da porta cambaleante. Seguia chovendo forte e o ruído do trovão soava como o
tamborilar de pés, como o rugido de uma multidão. Um raio cruzou seu campo de visão.
– Toma – Lydia lhe pôs um guarda-chuva na mão. – Leve isto. Não é por ti, não me importa o que te
aconteça. Apenas te quero fora de minha vista. Parta!
Minnie não teria sabido dizer como desceu os degraus até a rua. Quase não podia ver através das
lágrimas e da chuva. Quando ergueu a cabeça, viu três homens na calçada em frente. Olhavam-na com
curiosidade. Possivelmente não viam todos os dias sair a uma mulher cambaleando-se de uma casa. Eram
somente três, mas bastava isso.
“Não é nada. Não é nada. Você não é nada”.
Mas ela era alguém e não podia fingir que os acontecimentos desse dia tinham ocorrido a outra
pessoa. Dobrou-se sobre si mesma e vomitou com violência na rua.
Quando se assentou seu estômago, incorporou-se. Tremia ainda, mas tinha a sensação de que o vômito
tinha levado tudo consigo. Não só os tremores físicos, mas também o medo, o acanhamento e doze anos
de mentiras. Levou tudo o que a tinha convertido em Wilhelmina Pursling, a jovem tímida e calada que se
escondia nos cantos.
Olhou a casa dos Charingford por cima do ombro. Wilhelmina Pursling tinha desaparecido e levou
consigo uma década de amizade.
“Bravo, Minnie. Bravo”.
Abriu o guarda-chuva com um suspiro e pôs-se a andar para o prado em que tinha deixado o cavalo.
CAPÍTULO 18

Robert PENSOU QUE ERA ESTRANHO que suas perspectivas tivessem podido mudar tanto em vinte
e quatro horas. Dois dias atrás tinha feito uma oferta de matrimônio. Tinha estado esperançoso, cheio de
desejo e desejo. E esse dia…
– Assim já vê, Excelência, estamos em um ponto morto.
Robert estava sentado em seu salão. O capitão Stevens se achava diante ele e havia um montão de
papéis sobre a mesa.
– Não posso anunciar que é você o autor dos santinhos – disse Stevens. – Se, se souber que tais
sentimentos contam com aprovação de um duque, a multidão já não terá razões para conter-se.
Robert apenas o ouvia. Sua mente seguia fixa na carta. Menos mal que tinha estado sentado quando
Stevens a tinha mostrado e lhe havia dito que sua mãe tinha pago a Minnie para que o traísse. Se não
fosse assim, poderia haver-se cambaleado.
“Podia haver dito que não e me preparado”.
– Você provavelmente não terá que confrontar consequências – Stevens franziu o cenho. – Mas lhe
direi algo. Por cada santinho que escreva, eu farei deter e encarcerar a um suspeito.
– Sem provas? Sabendo que não são os autores? – perguntou Robert com calma.
– É importante – repôs Stevens. – Alguém deve pagar. Se não pagar ninguém, pagaremos todos. Não
pode me… não se pode ignorar a lei desta maneira.
Embora ao Robert troassem os ouvidos, reconhecia o que fazia Stevens: ameaçava-o ameaçando a
outros. Robert sabia que alguém devia estar por trás das condenações por rebelião criminal, condenações
que não deveriam ter ocorrido. Seu desejo tinha sido encontrar quem tinha corrompido a lei.
Isso ao menos o tinha conseguido. Tomou nota mentalmente de que devia fazer com que retirassem
Stevens de seu posto. Assim que pudesse voltar a pensar com claridade.
– Entendo – respondeu. – Bem, obrigado pela visita.
– Mas…
Robert já se levantou. Saiu da estadia sem incomodar-se em olhar para trás.
Passeou por sua biblioteca, esperando que o embargassem seus sentimentos.
Mas ao final triunfou uma surpreendente sensação de calma, como se tivesse passado por uma
tormenta de areia e esta tivesse arrancado a carne pouco confiável de seus sentimentos e deixado só os
ossos. Os ossos não sentiam desejo. Não sentiam desejos. Graças a Deus por isso!
Quando pediu que lhe preparassem um cavalo, não sentia nem o mais leve indício de fúria. O caminho
até a granja das tias avós era longo, mas isso não o irritou. Não sentia nada absolutamente.
Seguia sem sentir nada quando jogou as rédeas sobre o poste de atar os cavalos. Nada se agitou em
seu peito quando bateu na porta. Era como se estivesse envolto em algodão, como se o mundo inteiro
tivesse emudecido a seu redor. A porta se abriu sem ruído e apenas ouviu a si mesmo perguntar por ela.
O salão ao qual o conduziram poderia ter estado desprovido de móveis e não o teria notado. Não se
sentou. Não olhou nada. Apenas esperou, sabendo o que poderia acontecer.
Ela abriu a porta.
Possivelmente, no fundo, tinha temido que, quando voltasse a vê-la, se sentiria tão afligido por seus
sentimentos que lhe perdoaria o que tinha feito. Tinha fabricado uma imagem dela, apoiando-se em coisas
que ela não havia dito, em palavras que não se pronunciaram; até que tinha chegado a acreditar-se
apaixonado por uma mulher que não existia. Mas quando ela entrou, não sentiu nada.
Ela era pequena, e parecia encolhida. Toda sua magia se perdeu.
Robert só sentiu uma dor apagada onde antes tinha estado ela.
Estava a salvo, graças a Deus. A salvo de si mesmo.
– Excelência – disse ela.
Ele inclinou a cabeça.
Era a primeira vez desde que se conheciam em que ela o tratava como a um duque. E também era a
primeira vez que ele queria ser tratado como tal. Os duques não tinham que explicar nada. Não tinham
que suplicar.
Simplesmente atuavam e ninguém questionava seus atos.
– Estou certo que sabe por que vim – comentou.
Ela inclinou a cabeça. Ele notou vagamente que parecia desgraçada. Tinha círculos escuros sob os
olhos. E a luz que tinha visto neles, a formosa luz que parecia encher a sala, estava completamente
apagada.
Não se importou. A Robert já não importava nada.
– Excelência. Devo-lhe uma explicação.
– Não quero explicações – respondeu ele. O gelo não tinha necessidade de ouvir nada.
– Mas…
– Não me importa por que o fez – murmurou Robert. Suas palavras tinham um som oco. – Dá no
mesmo saber quanto lhe pagou minha mãe. Você não me importa nada. Ela se encolheu.
– Pois me permita lhe garantir… – E não desejo quaisquer garantias.
Deu-se conta então de que ela nunca as tinha dado. O único que as ofereceu tinha sido ele. Enganou-se
pensando que, se ela chegava a conhecê-lo, que podia explicar-lhe bem, ela poderia… O que?
Ela poderia interessar-se também por ele. Apreciá-lo um pouco. Ela sabia quem era ele e o que
queria. Robert lhe tinha contado seus sonhos, Seus desejos secretos. Tinha confessado tudo.
E não tinha sido suficiente.
Uma vez mais teve uma desilusão. Dedicou-se a sonhar acordado com uma pessoa que pouco se
fixava nele.
A diferença estava em que dessa vez não seria ele quem veria como se afastava a outra pessoa. Não
seria ele o que esperaria inutilmente cartas que nunca chegavam.
Obrigou-se a respirar regularmente até que recuperou aquela sensação de calma paralisada. Envolto
em algodão? Não, o algodão era muito leve para conter todo seu ser. Estava enterrado em areia e cada
grão era um peso que lhe pressionava o peito, tão pesado que todas as demais sensações ficavam
bloqueadas. Não sentia nada absolutamente, e gostava.
Ela deve ter visto algo do que não se percebia em seu rosto, porque baixou a cabeça.
– Sinto muito, Excelência.
– Não quero uma desculpa – replicou ele, cortante.
– Então, por que veio?
– Muito simples – disse Robert. Lhe teria gostado de estar sentado sozinho para ter podido levantar-
se nesse momento. – Vim para dizer adeus – caminhou até a porta e ali se voltou. Ela o olhava com a
boca aberta. – E já o disse.
Saiu sem acrescentar nada mais.
Pareceu-lhe que demorava séculos em atravessar o corredor até a porta de entrada, e um século mais
em pegar o chapéu e a capa. Ouvia seu coração pulsando com força no peito.
Dessa vez Minnie correria atrás dele. Jogaria-se a seus pés e suplicaria piedade. E lhe agradaria
muito não dignar-se em baixar a vista. Separaria-a de seus sapatos como se fosse pó.
Não a perdoaria. Para perdoá-la, teria que lhe importar, e para que lhe importasse, teria que permitir-
se sentir.
Mas ela não chegou, e ele não teve que decidir o que ia fazer.


NO DIA SEGUINTE, O CAFÉ DA MANHÃ com sua mãe encaixava muito bem com seu humor
sombrio. O ruído da colherinha dela ao dissolver o açúcar interrompeu um silêncio que parecia
suportado por uma centena de conversas que nunca haviam tido. Esse dia gostaria de sentir-se irritado.
Por fim a duquesa depositou sua xícara com a determinação de um pedreiro que molhasse tijolos em
argamassa e o olhou.
– Suponho que concedeu em ver-me porque está zangado pelo que fiz – comentou, levantando o
queixo no ar.
Robert se limitou a cruzar os braços e a olhá-la.
– Eu não lhe disse o que tinha que fazer – continuou ela. – Isso o decidiu sua senhorita Pursling
sozinha. Mas sim, confesso-o. Paguei cinco mil libras à senhorita Pursling para que recusasse sua oferta
do modo mais descortês que pudesse.
A mente de Robert ficou em branco. Teve que recorrer a toda sua força de vontade para seguir com os
braços cruzados e não afastar a vista dela. Mas dessa vez seu silêncio não produziu nenhum comentário
Ela se limitou a tomar um sorvo de chá e deixar que Robert tentasse esclarecer a confusão que sentia.
– Pagou-lhe para que me rechaçasse – disse ele.
Ela assentiu.
Stevens havia dito claramente que tinham pago à senhorita Pursling para que descobrisse os segredos
de Robert. Este tinha acreditado que a intenção dela tinha sido lhe estender uma armadilha. Tinha
pensado que a atração se deu só por sua parte. Tinha recordado com inquietação o modo como ela tinha
fingido acanhamento e se perguntou como era possível que ele não tivesse notado o pouco confiável que
era.
– Vá, mãe! – exclamou. – Não sabia que eu te importava tanto.
A pesar do sarcasmo que cobria suas palavras, havia muito de verdade nelas. A duquesa jamais tinha
feito nada que pudesse qualificar-se nem remotamente como maternal. Intrometer-se em sua proposta de
matrimônio era quase tão bom como receber seu beijo na bochecha. Era… comovedor.
Exasperante, também. Era ruim. Era uma altivez. Mas… comovedor.
Ela respirou com força e afastou a vista.
– Foi apenas dinheiro. Não dê tanta importância.
– Ao contrário. Estou muito agradecido. Se ela se pode comprar tão facilmente, é melhor sabê-lo
agora.
A duquesa o observou um momento, como se não acreditasse que ele pudesse mostrar-se tão
tranquilo, tão sereno.
– Disse-lhe que, se sua traição fosse bastante má, não voltaria a pensar nela. E resulta que tinha
razão.
Não parecia alegrar-se de sua vitória. Não sorria e não havia jactância em sua voz.
– É muito indulgente – prosseguiu ela. – Até deixar de me perdoar em tudo. Me diga, em que momento
te rendeu por fim as esperanças para comigo?
Robert aspirou ar com força.
– Que presunção tão odiosa! Nunca tive esperanças contigo – disse. Mas não pôde olhá-la enquanto
falava. Ela tinha suas cartas para acreditar nisso.
– Foi no funeral de seu pai, verdade?
Robert nem sequer se permitiu piscar.
– Escreveu-me com antecipação e me pediu que fosse. “Agora que ele já não está…”, disse.
Robert deu um murro na mesa. Salpicou chá por toda parte.
– Te pedi que viesse?
Olhou-a de cima abaixo. Ela não se encolheu nem respondeu a seu olhar desafiante. Simplesmente o
olhou com calma, tão serena como sempre. Seus olhos mostravam tanta expressão como uma boneca de
porcelana da China.
– Eu não te pedi que viesse – comentou ele. – Lhe supliquei isso. Sabia que eu acreditava
sinceramente que me levaria contigo? Tinha-me convencido de que a única razão pela qual adiou me
conhecer melhor era que não podia tolerar a presença de meu pai. E que, quando ele já não estivesse,
poderíamos ter uma oportunidade. Como não veio ao funeral, disse-me que viria quando terminasse. E
quando vi que não chegava, convenci-me de que esperaria até que se fossem todos. Finalmente, disse-me
que viria para me buscar quando escurecesse e não se inteirasse ninguém. Até esse dia, acreditava, e não
sei por que, pois não tinha nenhuma prova, que era somente meu pai o que nos mantinha separados. Mas
não era isso. Eu não te importava.
– Não – repôs ela com suavidade. – Não é verdade.
– Importei-te alguma vez ou me odeia tanto como odiava a ele?
– Tanto? – ela franziu o cenho. – Eu diria que te odiava de um modo diferente.
Robert teria gostado de ter então a calma imperturbável de uns momentos atrás. Embora tivesse
sabido que devia ser assim, embora suspeitasse que aborrecia a sua mãe, ouvi-la dizer o convertia em
real. E depois de todos esses anos, de todo o tempo que tinha passado tornando-se indiferente com ela,
ainda doía.
– Naqueles primeiros meses – disse ela, – quando seu pai te separou de mim, pensei que não tornaria
a respirar. Mas não podia deixar que ele soubesse o quão importante você era para mim. Se o fazia, só
Deus sabe com o que teria ameaçado. Assim que despertava todas as manhãs, vestia-me e ia fazer visitas.
Ria-me quando encontrava coisas graciosas e mostrava minhas simpatias quando não era assim, e sentia a
todo momento que meu peito se convertia em uma caverna.
Falava com tanta suavidade que não induzia a pensar que tivesse tido alguma vez algo no peito.
– Aos três anos, foi uma armadilha para meu coração. Cada palavra que me dizia, cada curta visita
que seu pai me permitia à contra gosto, eram como se, se fechasse um muro a meu redor. Quanto mais
adorável te tornava, mais seguro estava seu pai de minha volta, e mais me ameaçava. Tinha que fingir que
não me importava. Depois de um tempo, comecei a fingir tão bem… que possivelmente deixou de me
importar de verdade. E não, eu não gostava que me fizesse sentir algo – encolheu os ombros com
indiferença. – Mas o que ia fazer? Ficar com ele? Tentei-o. Mas então, ele já era impossível. Depois da
última vez, quando tinha nove anos e passei uma noite entrincheirada em meu quarto com ele uivando e
golpeando a porta, ameaçando com… A duquesa o olhou de soslaio.
– Acredito que, se não tivesse estado tão bêbado, teria ocorrido algo muito feio. Não podia ficar. E
legalmente, você era dele. O que podia fazer eu exceto deixar de te querer?
Robert moveu a cabeça.
– Sempre que se ia, ele me dizia que era minha culpa. Que não tinha conseguido te cativar. Que teria
que ter sido mais…
Mais adorável. Embora seu pai jamais tivesse usado essa palavra.
Sua mãe o olhou.
– Quando morreu seu pai, assumi que te tinha feito a sua imagem.
Quando me dei conta de que não era assim… – voltou a encolher os ombros, – então já era tarde para
salvar algo entre mãe e filho. Por sorte, para então já não me importava. Não sentia nada. E agora,
sabendo que é muito tarde para fazer nada, agora…
Olhou-o nos olhos.
– Agora – disse, – descubro que segue sem me importar – lhe brilharam os olhos um momento e
afastou a vista. Ergueu o queixo e apertou os lábios.
– Entendo – comentou ele, confuso.
– Não me importa. Não pode me importar. Já não sei como fazê-lo – ela tirou um lenço com borda de
rendas e limpou os olhos.
– Está…?
– Não. Eu nunca choro – a duquesa o olhou com ferocidade.
– Entendo – repetiu ele.
E pensou que era assim. Aquela viagem… a visita dela, seus pronunciamentos exagerados, sua
estúpida interferência… Possivelmente não lhe importava. Possivelmente, depois de todos esses anos,
tinha esquecido como querê-lo. Mas o tentava. Recordava a um potro recém-nascido que lutava por
sustentar-se sobre suas patas trêmulas, tentava sustentar-se de pé e caía redondo ao chão.
Ela respirou lentamente.
– Quando conseguir aprender como – disse, – você já haveria renunciado a mim de tudo. Parece-me
um castigo merecido.
Guardou seu lenço e o olhou de cima abaixo, desafiando-o a contradizê-la.
Em uma ocasião, quando Robert era pequeno, ela tinha ido de visita. Ele tinha corrido para recebê-la
ao descer da carruagem. Não sabia quantos anos tinha então, mas recordava que se abraçou aos joelhos
dela, tão alto como podia alcançar.
Ela não o havia correspondido; nem sequer se tinha agachado para lhe dar tapinhas na cabeça.
Apenas o tinha observado, havia-lhe dito que mostrasse mais decoro e tinha seguido andando.
Por isso, esse dia na mesa do café da manhã, Robert não fez gesto de tocá-la. Acreditava que não
gostaria e se sentia muito vulnerável para arriscar-se a um desprezo.
– Pois muito bem – comentou com brutalidade. – Obrigado por tomar o incômodo de sair de sua
indiferença e te intrometer em meus planos matrimoniais. Pensava que ela valia mais. Aparentemente,
não.
– Oh, sim! – respondeu a duquesa. – Gostei dela. Encontre outra garota como ela, mas desta vez que
seja filha de um marquês.
– Sabe? Não tenho nem ideia de quem é sua família. Pursling não é seu nome verdadeiro.
– Não?
– Ela nasceu como Minerva Lane.
A duquesa soltou um coice audível.
– Minerva Lane?
– Você sabe quem é? – Robert a olhou surpreso. – Me disse que tinha havido um escândalo.
– Escândalo? Com ela? Não – a mulher negou com a cabeça com violência. – Escândalo é o que
ocorre quando uma garota entrega seus favores com ligeireza. É um assunto que se pode vencer, pode-se
arrumar, se não esquecer, com um bom matrimônio e dinheiro suficiente. A senhorita Lane não ficou
desonrada, Robert. Ficou completamente destruída.
CAPÍTULO 19

Minnie NÃO TINHA PODIDO FALAR com suas tias a noite anterior. Mas quando a duquesa de
Clermont enviou um pagamento de seu banco, já não tinha sentido adiar mais a conversa.
– Há algo que devem saber as duas – disse. – Ontem, quando veio para ver-me Lydia, foi porque
Stevens tinha ido a Manchester. Sabe que não há nenhuma senhorita Wilhelmina Pursling, que sou uma
impostora. Sabe que nasci como Minerva Lane.
As duas mulheres deram um coice e se olharam.
– Sabem o que…?
Minnie negou com a cabeça.
– Não sabem tudo.
– Não me dê esses sustos – Caroline levou uma mão ao coração– . E o que vamos fazer? Com o
Gardley fora de cena… Minnie afastou a vista.
– Resulta que obtive um pouco de dinheiro. Cinco mil libras.
Suas tias a olharam. As duas eram muito diferentes entre si, mas a expressão escandalizada de seus
rostos era idêntica.
– Querida – disse Eliza ao fim. – Sabemos que este é um momento difícil. Mas cinco mil libras é uma
grande quantidade de dinheiro, e nós não gostaríamos que, ah… que…
Certamente pensavam que tinha conseguido aquele dinheiro por meios ilícitos. E se pensavam isso,
perguntariam-se…
– Não – respondeu Minnie com amargura. – O ganhei limpamente – bom, possivelmente não tinha sido
de um modo muito limpo, mas o tinha ganho legalmente. De um modo legítimo. Teria que bastar com isso.
– Como?
– Tive uma proposta de matrimônio. Sua mãe não queria que a aceitasse – Minnie afastou a vista. –
Não aceitei – eram apenas duas palavras e, entretanto, rompiam-lhe o coração.
Mas fazia tempo que tinha renunciado a desejar que as coisas fossem diferentes. Os desejos eram
algo estúpido, coisas tolas.
– Uma proposta de matrimônio? – repetiu Caro. – Mas de quem?
Não imagino…
Interrompeu-a a chegada da donzela.
– Senhorita – disse esta, dirigindo-se a Minnie. – Senhoritas.
Perguntam pela senhorita Pursling.
– Quem é? – inquiriu Eliza.
Lydia. Lydia tinha ido vê-la. Minnie poderia explicar-lhe tudo, arrumar as coisas com ela.
Mas a donzela agachou a cabeça com acanhamento repentino e Minnie adivinhou no ato de quem se
tratava.
– Sua Excelência o Duque de Clermont – disse.
Minnie sentiu gelo no estômago, mas tinha as mãos muito quentes. Não sabia se ria ou chorava, se
corria para seus braços ou escapava saltando pela janela. Ficou com a vista cravada à frente; no bolso
tinha dobrado o pagamento bancário de cinco mil libras, a modo de acusação silenciosa.
– Oh! – exclamou Eliza.
– Tinha ouvido rumores – Caroline esfregou a testa, – mas parecia tão improvável que… Se tivesse
havido algo de verdade neles, você nos haveria isso dito, não é assim?
Minnie não podia as olhar aos olhos.
– Acredito que deveríamos falar disto em breve. Mais tarde.
Caroline assentiu. Eliza se levantou, apoiando-se com força na bengala que usava dentro de casa.
– Minnie – disse com suavidade. – Se não quer se casar com ele, não tem que fazê-lo. Nunca lhe
obrigaremos a fazer isso. Não importa o que tenha acontecido, o que disse nem o que tenha feito. Nós lhe
queremos, independentemente do que queira fazer.
Quando entrou o duque um momento depois, Minnie se esforçava por reprimir as lágrimas. Nem
sequer pôde voltar-se para olhá-lo. Percebeu o som de suas botas no chão, aproximando-se. Deteve-se a
poucos centímetros de distância dela.
Não disse nada; possivelmente esperava que ela o saudasse primeiro. Mas Minnie não podia. Se, se
voltava naquele momento…
– Pensei em escalar até sua janela – disse ele por fim, com voz grave. – Mas teria que tirar as botas
para subir pelos tijolos, e, além disso, a janela que me pareceu ser a sua é incrivelmente estreita. Agora
sei por que Julieta tinha um balcão. E por isso optei pela rota menos romântica e bati na porta principal.
Minnie soltou um risinho trêmulo.
– Romeu, além disso, tinha dezesseis anos – respirou fundo, esforçou-se em mostrar uma expressão
serena e se voltou por fim. – Acreditava que já tinha se despedido. Por que voltou?
Ele, em resposta, tomou a sua mão. Enquanto ela estava de costas, tirou as luvas e as tinha deixado
sobre a mesa. Minnie sabia que devia afastar-se, mas estava ainda muito fraca para resistir. Ele
entrelaçou seus dedos com os dela. Suas mãos eram suaves e fortes.
– Está bem – disse. – Vou dizer isto sem rodeios. Estraguei tudo.
– Você estragou tudo – repetiu Minnie com incredulidade. – Você – olhou-o, perguntando-se se tinha
perdido a cabeça durante a noite.
O duque assentiu com a cabeça e lhe assinalou uma poltrona. Dava voltas a cabeça.
– Você me disse que não podia ser duquesa – disse ele quando se sentou. – E eu não prestei atenção a
suas palavras.
Minnie piscou e se sentou em frente a ele.
– Não comecei a entendê-las até que minha mãe me disse que lhe tinha pago para me rechaçar, não
para me delatar. E uma vez que me pus a pensar nisso, isso tampouco tinha sentido. Meus ganhos são um
mínimo de dez mil libras ao ano, algo que todo mundo sabe. Qualquer pessoa racional que tivesse que
escolher entre cinco mil libras e casar-se comigo, escolheria-me. Se você fosse tão fria e calculista como
eu pensava, estaríamos casados, não nos olhando de cima abaixo.
Minnie negou com a cabeça.
– Além disso, se minha mãe lhe tivesse pago para me deter, você teria utilizado minha carta
imediatamente. Não teria esperado. E como ia estar ela a par de meus atos? Como ia saber que você era
a única pessoa que tinha me descoberto? A história não tem sentido, senhorita Pursling – a olhou nos
olhos. – Nunca tinha me alegrado tanto ao dar conta de que tinham mentido para mim.
Minnie sentia uma opressão na garganta. Esforçou-se muito por afastá-lo e ele seguia sem partir.
– Não prestei atenção ao que me dizia – ele seguia olhando-a nos olhos. – Nem prestei atenção ao que
não me dizia. Apenas ouvi o que tinha a ver comigo. Ouvi que não me desejava, que eu não podia lhe
importar. Ouvi que lhe causava ansiedade que as pessoas se concentrassem em você, mas não escutei –
juntou os dedos. – Permita que eu lhe diga o que deveria ter ouvido.
Seu pai foi um dos melhores jogadores de xadrez… Minnie ficou em pé de um salto.
– Sabe.
O coração lhe pulsava com força no peito. Tomava o ar em respirações curtas e superficiais. A
atmosfera parecia tremer ao seu redor. Mas é obvio que ele sabia. Lhe havia dito seu nome. Depois
disso, todo o resto era questão de investigar. Retrocedeu um passo sem pensar no que fazia e tropeçou
com sua poltrona.
Mas antes que chegasse a cair sobre o assento, Robert se adiantou e a tomou em seus braços. Uns
braços quentes e firmes.
– Shss! – murmurou. – Sou eu. Não vou lhe fazer mal. Eu nunca lhe farei mal, Minnie.
Ela ergueu a cabeça para olhá-lo nos olhos. O pulso lhe pulsava com força, mas não havia uma
multidão perto; não havia gritos.
Apenas ele.
Essa vez, quando se sentou, colocou-a em seu colo. Encaixavam juntos como duas peças de um
quebra-cabeça; a cabeça dela caiu automaticamente sobre o ombro dele, que pôs uma mão em seu cabelo.
Minnie sabia que não devia apoiar-se nele. Aquilo não deveria estar acontecendo. Tinha partido o
coração tentar afastá-lo uma vez. Como ia ser capaz de repeti-lo?
– Vamos começar de novo – disse ele com suavidade. Entrelaçou suas mãos em torno dela. – Apenas
descobri alguns detalhes. Seu pai foi um dos melhores jogadores de xadrez do mundo. O que aconteceu?
Minnie sentia mariposas no estômago. Mas ele a estreitava em seus braços. E ele sabia. Sabia e não
lhe estava lançando objetos à cabeça. Esperava com paciência que ela estivesse preparada.
“Salva” era o último que se sentia quando tinha que pensar naqueles tempos sombrios, mas ao menos,
no momento, não sentia vontade de vomitar.
Respirou fundo.
– Meu pai era o quinto filho de um baronete. Da nobreza menor, muito por baixo de seu padrão de
duque, e, além disso, empobrecidos. Ganhava a vida jogando xadrez. Era gregário, extrovertido caía bem
a todo mundo. Sua fortuna pessoal era quase inexistente, mas se saía tão bem que isso não importava.
Sempre tinha um convite para hospedar-se em alguma parte. Às vezes eram convites na Inglaterra, outras
vezes eram ofertas para visitar a Europa e passar meses com homens que queriam estudar o xadrez com
um homem jovem e brilhante.
Uma vez, em uma dessas viagens que tinha feito com ele, um marinheiro lhe havia dito que olhasse a
costa quando se enjoava no mar e desapareceria a náusea. Nesse momento olhou para a estante e lhe
surpreendeu descobrir que seu mundo se voltava mais firme.
– Meus pais se casaram só uns anos antes da minha mãe morrer de parto. Não recordo grande coisa
antes dos cinco anos, exceto as visitas de meu pai. Minhas primeiras lembranças são dele me ensinando a
jogar xadrez. Aprendi a mover as peças antes de aprender o alfabeto. Esperava suas visitas com muita
impaciência. E um dia, quando eu era muito, muito jovem, perguntou-me se queria acompanhá-lo a
seguinte vez que viajasse ao estrangeiro.
Minnie respirou com força. Robert não disse nada. Limitou-se a estreitá-la com mais força.
– É obvio, uma menina não pode viajar ao Continente só com a única companhia de seu pai e
hospedar-se com o tipo de pessoas com as quais se hospedava ele. Eu teria tido que viajar com uma babá
e uma governanta, e para então, nossa economia era muito pobre para nos permitir essas coisas. Meu pai
disse que havia uma solução fácil. Apresentaria-me como Maximilian Lane, seu filho. Perguntou-me se
me importava – ela fechou os olhos. – Eu tinha cinco anos. Não sabia o que pensar. Ele disse que seria
muito divertido e lhe disse que sim.
A revoada que sentia no estômago tinha começado a acalmar-se.
– Acredito que aqueles primeiros anos eu não compreendia a curiosidade que despertava. Recordo
que as pessoas me propunham desafios de xadrez. Às vezes resolvia e às vezes não – encolheu os
ombros. – À medida que crescia, ia resolvendo cada vez mais.
– Quão único li sobre Maximilian Lane – interveio Robert, – dizia que era calado, solene e muito
brilhante. Você jogava com adultos que tinham anos de experiência e os vencia sem problemas, e quando
a elogiavam por isso, retrocedia quinze movimentos no tabuleiro e lhes explicava com entusiasmo o que
deveriam ter feito para ganhar.
– Sim – Minnie respirou fundo; fechou os olhos. – Me lembro disso. Ganhar tanto teve um efeito
extraordinário sobre mim. Como pensava que ganharia sempre, não entendia o conceito do risco.
Tampouco tinha entendido o conceito de perder.
– O resto tive que adivinhar depois do fato. Quando fiz doze anos, meu pai estava muito endividado.
Fazia promessas às pessoas, proclamava que tinha feito investimentos fabulosos na indústria russa. Para
escorar essas declarações e atrair mais investidores, pagava com resultados de seus próprios e limitados
recursos. Depois pagava aos penúltimos investidores com o que contribuíam os últimos aos que
conseguia enrolar. Mas os investimentos russos não existiam e tinha que encontrar dinheiro rapidamente
se não queria que tirasse a ajuda toda.
Minnie baixou a vista. Naquele momento, ela apenas sabia que seu pai se mostrava cada vez mais
errático. Em um momento era imensamente feliz em outro estava furioso.
– Não me convidaram ao primeiro torneio internacional de xadrez em Londres. A meu pai sim. Mas
uns dias antes, declarou que havia ficado doente de repente e ofereceu que eu ocupasse seu posto.
Ninguém teve nada que objetar.
Pequenos tremores percorriam o corpo de Minnie. Ela não podia reprimi-los.
– Necessitava muito dinheiro e as probabilidades me favoreciam. Pediu a um de seus amigos que
apostasse até seu último centavo contra mim. E me ordenou que perdesse a partida.
Não lhe havia dito o motivo. Aquele dia gritaram mutuamente um com o outro.
– Os Lane podem fazer tudo – lhe havia dito ela.
E lhe tinha jogado um olhar estranho naquele momento. Minnie não se deu conta, até mais tarde, de
que seu pai não esperava que usasse suas palavras para desafiá-lo a ele próprio.
Minnie notava os braços de Robert quentes em suas costas e como subia e descia o peito dele com a
respiração. O silêncio da sala os envolvia. Não havia nada ao redor nem ninguém perto. Apenas eles e as
lembranças dela.
– Uma menina tem uma cegueira estranha para os defeitos de seus pais. O meu era meu amigo mais
querido. Estávamos sempre juntos. Ele me ensinou tudo o que sabia. Nunca me dizia nenhuma palavra
dura. Eu o idolatrava. Ele estava acostumado a dizer que, se acreditávamos com força suficiente, tudo
sairia bem. Que, se confiava em algo e esperava, encontraria o caminho. Quando me neguei a perder a
partida, ele encontrou seu caminho – respirou fundo. – Disse aos tabloides que eu era uma garota. No
meio do torneio.
Minnie recordava ainda o tabuleiro da última partida. Tinha beijado a torre e a tinha deixado de novo
no tabuleiro. Faltavam-lhe quatro movimentos para o mate.
– Os oficiais me interromperam e me desqualificaram. Tiraram-me dali me puxando a orelha e no dia
seguinte saiu a história em todos os jornais de Londres. Tudo o que tinha sido, todas as pessoas que
acreditava que eram meus amigos, todas as coisas que tinha obtido… tudo desapareceu. Tinha-me feito
passar por um menino e tinha escandalizado a todo mundo.
– É incrível que durasse tanto tempo a farsa – comentou Robert.
– Eu tinha doze anos. Se tivesse tido um ano a mais, me teria crescido o peito e teria sido impossível
ocultar a verdade – ela moveu a cabeça. – Não sei o que teria ocorrido se as coisas tivessem seguido seu
curso. Mas quando se soube a verdade, as pessoas começaram a fazer perguntas sobre meu pai. Tinham
investido milhares de libras com ele e suas histórias não suportaram uma investigação conscienciosa. Seu
julgamento teve muita publicidade. Eu assisti a ele. Era uma garota de doze anos, que tinha vestidos pela
primeira vez em anos; uma garota nervosa e insegura. Ali foi onde ouvi a defesa de meu pai. Declarou
que se viu obrigado a fazê-lo. Obrigado por mim. Disse que eu lhe tinha pedido que me vestisse de
menino e me levasse com ele. Que o plano da indústria russa falsa tinha sido meu. Que eu tinha causado
sua ruína. Que tudo o tinha feito eu.
Robert a rodeou com seus braços.
– Você tinha cinco anos quando começou aquilo.
– Disse que eu era uma menina antinatural. Isso foi o que disse. Disse-o uma e outra vez. Que eu era
uma menina antinatural. E quem ia contradizê-lo? Resultava evidente que era estranha. Podia ganhar no
xadrez de homens adultos, a alguns dos melhores do mundo. Era uma garota calada, sempre observando.
Não ajudou que todos pudessem dúvidas no julgamento, que notassem quão estranha era. Eu não sabia me
mover como uma garota. Tinha o cabelo curto e tinha passado os anos de minha infância com homens
dissolutos. Não sabia nada de bom comportamento.
Guardou silêncio um momento. Robert esperou.
– Meu pai sempre dizia que, se crê em algo com a força suficiente, a realidade não tem mais
remedeio que fazer que se cumpra. Quando declarou naquele estrado, já se tinha convencido a si mesmo.
Chamou-me “semente do diabo” diante de toda Londres.
Minnie tinha pensado que não podia haver nada pior que o horror paralisante do tribunal, que ver o
homem a que queria tanto, ao homem que nunca lhe tinha dirigido uma palavra dura, apontá-la com o
dedo e denunciá-la. Ver a terrífica luz em seus olhos que indicava que acreditava no que dizia. Ele tinha
sido quão único ela tinha no mundo e a tinha deixado de repente sozinha. E o tinha feito publicamente.
– Era um homem carismático e convincente. Condenaram-no, não por roubo, mas sim por impostura,
suficiente para lhe jogar dois anos de trabalhos forçados, mas não mais. Entretanto, as pessoas presentes
no julgamento estavam convencidas de que tinha sido tratado injustamente. Quando saí da sala,
completamente sozinha, rodeou-me uma multidão. Gritaram-me e me cuspiram. Não sei quem atirou a
primeira pedra. Não sei quantas atiraram – ergueu a cara para olhá-lo nos olhos. – Quando me tiraram
dali, tinha desmaiado, mas nunca esqueci. Após o que aconteceu não posso suportar as multidões. Penso
em um grupo de gente junta e ponho-me a tremer. Cedo ao pânico.
– Alguma vez teve a alguém que a ajudasse? – perguntou ele. Sua voz soava baixa e rouca.
– Minhas tias avós. Lydia também, até…
Minnie quase se engasgou ao dizer aquilo. Mas tampouco então tinha podido confiar plenamente
nelas. Suas tias morreriam e sempre tinha sabido que Lydia descobriria algum dia a verdade e se sentiria
enojada.
– Até o final, jamais teria adivinhado que meu pai pudesse fazer aquilo. Quero pensar que
possivelmente estava doente. Que não sabia o que fazia quando me traiu – lhe brilharam os olhos. –
Morreu na prisão, assim possivelmente era certo. Tenho que acreditar nisso porque, por muito que me
esforço, não posso deixar de querê-lo. Ele me ensinou tudo o que sabia. Meu pai era toda minha vida. E
não sei como odiá-lo tudo o que merece. Assim já vê, Excelência, não posso me casar com você. Nem
sequer posso pensar nisso sem ficar trêmula. A sociedade de Londres me destroçaria.
– Não – murmurou ele. – Não a destroçarão.
Minnie o olhou.
– Como pode dizer isso?
– Não a destroçarão porque eu não permitirei que ocorra isso – prometeu ele. Ergueu-lhe o queixo
para poder olhá-la nos olhos. – Uma vez disse que era afortunado porque podia olhar onde quisesse sem
medo. Acredito que não comecei a compreender o que queria dizer até que descobri… – a estreitou com
mais força em seus braços. – Sabia que estava chateada. Você me disse que tinha medo. Que era
afortunado de não entender o que queria dizer, quão aterrorizada estava.
Ela tinha começado a tremer.
– Dou-lhe minha palavra de que, se, se casar comigo, protegerei-a. Estarei ao seu lado e jamais lhe
farei nenhum mal. Já falei com o Stevens e Charingford e os dois ficarão de boca fechada. Prometo-lhe
pelo que considero mais sagrado que farei o impossível por manter seu passado em segredo e que, se
fracasso nesse empenho, farei tudo o que esteja em meu poder para que esteja segura. Se, se casar
comigo, não terá que voltar a ter medo.
– E o que terei que lhe dar em troca?
– Sua lealdade – ele a abraçou com mais força. – E enquanto os dois possamos suportar mutuamente
nossa presença, também seria bom que me desse seu corpo. Não espero seu amor. Não espero que me
deseje eternamente. Mas acredito que poderíamos ter um bom matrimônio.
– Não espera amor – ela moveu a cabeça confusa. – Esta é a segunda vez que diz isso. Será como em
uma dessas terríveis tipos de novelas onde me adverte que não me apaixone por você e, se o fizer,
converterá-se em
Barba Azul e tentará me arrancar a cabeça? É atrativo. Tem todos os dentes…
Olhou-o nos olhos e lhe tocou levemente a bochecha com a mão. Robert ficou muito quieto.
– Não posso fazer nenhuma promessa. Se for bom na cama, poderia me apaixonar por você. Se isso
for ser um anátema…
– Não – se apressou a dizer ele. Afastou a vista dela e, quando voltou a falar, sua voz soava
levemente rouca. – Não. Isso seria perfeitamente… plausível.
Se, se guiasse por suas palavras, Minnie poderia ter pensado que pouco lhe importava. Mas o modo
como quase lhe quebrava a voz e a maneira como inclinava a cabeça para ela indicavam que sua
indiferença era mentira. Olhava-a como olharia um oásis um homem sedento que queria decidir se aquilo
era só uma ilusão produzida pelo calor.
Minnie entendeu por fim o que ocorria ao duque. “Não é que queira um matrimônio sem amor.
Simplesmente se resignou a isso”.
Sua mãe havia dito que Robert tinha o coração de um romântico. Esse dia, Minnie tinha estado afligida
por outras preocupações, mas possivelmente a duquesa tinha acertado. Seu filho lutava pelos que não
tinham voz própria. E por alguma razão, convenceu-se a muito tempo de que não podia ser amado.
Minnie estava tão perto de apaixonar-se por ele, que quase abriu a boca e o disse. Mas a luz nos
olhos dele, o modo como a tinha observado quando lhe havia dito que isso seria plausível… tudo isso
fazia com que resultasse cruel dizer-lhe antes que fosse verdade.
“Logo será verdade”, pensou.
Desde a traição de seu pai, havia-se questionado e se dito que ela tinha provocado o ocorrido por
ambicionar muito. Por atrever-se a pensar que uma garota de doze anos podia desafiar a homens adultos e
não ter que encarar consequências por isso.
Mas possivelmente seu engano tinha sido não tentá-lo o suficiente.
– Uma duquesa pode fazer muitas coisas que não pode fazer uma jovem dama solteira – disse ele. –
Talvez seja afortunada comigo, Minnie.
Ela pensou que no momento em que abrisse as asas seria o momento no qual se estatelaria contra o
chão. Mas se não o tentava, não seria surpreendente que o chão se elevasse e a golpeasse.
Levava muito tempo dizendo-se que era uma estupidez confiar muito. Mas talvez não o fosse. Não
podia ver como seria seu futuro. Mas podia esperar amor e segurança e possivelmente, apenas
possivelmente, não lhe negaria por tentar alcançá-lo com mãos trêmulas.
– Céu santo! – exclamou com voz trêmula. – Acredito que vou.
Robert soltou um suspiro de alívio.
– Bem. Bem – a estreitou contra si com todas suas forças. Baixou a cabeça e lhe sussurrou ao ouvido:
– Espero ser bom na cama.
Era o mais perto que tinha estado de admitir que queria que o amasse. Minnie sorriu e o beijou. O
sabor dele se parecia com a água salgada do mar. O coração lhe bateu as asas no peito como as asas de
um bando de pássaros.
– Eu também o espero – respondeu com acanhamento.
Robert a beijou de novo e tomou a sua mão. Ela o beijou até que o sol da tarde encheu a sala, até que
se sentiu tonta por tanta sensação. Abraçou-o e o beijou até que sua tia avó Caroline apareceu na soleira
da porta e pigarreou.
Minnie se ruborizou. Robert ficou de pé.
– Você deve ser uma das tias de Minnie – disse com suavidade. – Sou Robert Blaisdell, o Duque de
Clermont, e eu gostaria muito de me casar com sua sobrinha.
CAPÍTULO 20

QUANDO Robert RETORNOU A SUA CASA, encontrou a seu irmão e a seu primo revisando molhos
de papéis rabiscados. A julgar pelas notas que havia neles, deviam ser parte do seguinte ensaio de
Sebastian.
Eles não o viram entrar.
– E há mais uma coisa – dizia Sebastian. – Por que os gatos pardos e os brancos são quase sempre
fêmeas? Além de montar um programa maciço de cria de gatos…
Interrompeu-se quando Robert se situou ao seu lado.
– Vai te converter em fornecedor de gatos? – perguntou este com um sorriso.
Sebastian fez um gesto com as mãos no ar.
– Estava falando com Oliver de minha coleção de curiosidades. Já sabe, coisas que observei e que
ainda não posso explicar. Em Londres conheço uma mulher de oitenta anos que começa todas as manhãs
dando de comer a gatos de rua em um beco. Pedi-lhe que fizesse esboços dos gatos e anotasse suas
descrições: peso, sexo, cor dos olhos, número de dedos… toda a informação interessante. Pensei que
possivelmente isso me levaria a alguma conclusão – inclinou a cabeça para um lado e olhou para Robert.
– Noto você diferente.
– Ah, sim? – Robert se sentia diferente. Embargava-o uma sensação nova quase maravilhosa, uma
confiança agradada.
– Pois sim – interveio Oliver. – Para sermos francos, nos últimos dias parecia…
– Um rato morto que um gato arrasta até em casa – o interrompeu Sebastian. – Um gato de seis dedos.
Sabia que os gatos de seis dedos têm dezessete por cento mais de unha?
Oliver encolheu os ombros.
– Um rato morto arrastado por um dos gatos guias de ruas de Sebastian – assentiu. – E ficava muito
tempo olhando o espaço.
E lançava suspiros pesarosos – Sebastian fez uma demonstração. Lançou um grande suspiro e a seguir
afundou os ombros com tristeza.
– Suspiros pesarosos não – protestou Robert. – Nenhuma só vez me rebaixei a lançar suspiros
pesarosos. Embora possa ter lançados grunhidos viris de opressão – fez uma demonstração. Cruzou os
braços com firmeza e apertou os lábios com um meio grunhido.
– Oh? Você chama assim a isto? – Sebastian olhou à frente com uma expressão de tristeza no rosto.
Soltou um leve choramingo e inalou o ar com um longo suspiro.
– A isso o chamo um exagero. Chamo-o uma perfídia. Morte ao homem que diga tais coisas!
Oliver pôs-se a rir.
– Vejo que se sente melhor. O que produziu essa mudança de humor? Aceitou casar-se contigo
finalmente?
Robert piscou.
– Como? Mas se eu não disse que o tinha pedido!
O sorriso de Oliver se ampliou mais ainda.
– Dez libras, Malheur.
Sebastian soltou o que poderia ter sido qualificado como um “suspiro pesaroso”.
– Sim – murmurou Robert. – Disse que se casará comigo. A cerimônia acontecerá dentro de quatro
semanas. Apenas tenho que tirar a licença e redigir os contratos. Me alegro de lhes encontrar juntos
porque queria que fossem os primeiros a saber. Não sei se entenderão, mas… – guardou silêncio.
Nenhum dos outros dois disse nada, e esse silencio cúmplice explicava o tema muito melhor do que
teria podido fazê-lo Robert. Sebastian era capaz de fazer brincadeiras sobre qualquer coisa e Oliver
sempre estava disposto a burlar-se dele. Mas ambos sabiam quando fazê-lo e quando parar.
– Se tenho uma família – disse o duque com voz um pouco rouca, – são vocês dois. Esperava que os
dois estivessem ao meu lado na cerimônia. Que sejam testemunhas e essas coisas.
– É obvio – lhe assegurou Oliver.
Sebastian encolheu os ombros.
– Sou exatamente a pessoa que eu escolheria para essa honra se estivesse em seu lugar. Aplaudo seu
sentido comum.
Robert não se incomodou em tentar decifrar o que queria dizer seu primo com tudo aquilo. Por um
momento, um momento muito curto, teve a sensação de que podia abraçá-los. Quase desejou fazê-lo.
Estender os braços e estreitá-los contra seu peito. Tinham estado a seu lado nos momentos mais difíceis
de sua vida: o funeral de seu pai, os dias seguintes, quando revisava os pertences de seu pai e descobrira
que o duque anterior tinha sido ainda pior do que tinha imaginado…
Em vez de abraçá-los, optou por cruzar os braços.
– Significaria muito para mim.
– É obvio – Sebastian se voltou para Oliver. – Já sabe o que significa isto – lhe disse. – Nós dois
temos que organizar uma festa selvagem e licenciosa para Robert a véspera de seu casamento – esfregou
as mãos com regozijo.
Oliver lhe devolveu o olhar com calma.
– Selvagem – repetiu. – Licenciosa. Estou plenamente de acordo.
Robert sentiu uma pontada de apreensão.
– São muito amáveis – comentou. – Mas isso não é necessário.
Os outros não lhe deram atenção. Seguiram olhando um ao outro.
– Bom, já sabe. O castigo tem que ser adequado ao crime e tudo isso. Depois de tudo, trata-se de
Robert – Sebastian passou uma mão pelo cabelo, alisando-o. – E o que vamos fazer no referente ás
mulheres?
– De verdade – insistiu Robert, essa vez com mais força. – Já sei que ainda não estou casado, mas
lhes repito que não… Os outros seguiam sem lhe dá atenção.
– Sei o que podemos fazer – comentou Oliver com um sorriso. – Mary Wollstonecraft. Em meu quarto
tenho um exemplar de Reivindicação dos direitos da mulher. Levarei-o a festa.
– Excelente – respondeu Sebastian, esfregando as mãos. – E eu tenho uma carta que me enviou uma
mulher muito curiosa dos Estados Unidos, uma tal Antoinette Brown. Escreveu-me coisas das mais
extraordinárias sobre a evolução e dos direitos das mulheres. Eu levarei isso.
– Eu tenho um panfleto de Emily Davies.
Robert sorriu quase a seu pesar.
– Acredito que eu posso levar um livro do Thomas Payne – declarou Oliver, – mas então estaríamos
em maioria os homens.
– Violet – disse Sebastian, agitando uma mão no ar. – Pode ser surpreendentemente útil em uma
discussão.
Ah, suponho que pode nos servir em caso de apuros – Oliver se levantou e pôs uma mão no ombro de
Robert. – Que ninguém diga que os Irmãos Sinistros não sabem ser depravados.
– Haverá brandy – Sebastian também se levantou. – E até o beberemos, embora Robert parará depois
de duas taças porque sempre o faz.
– Haverá comida – anunciou Oliver, imitando a postura de Sebastian. – E isso não a comeremos
porque nos engasgaríamos.
Sebastian sorriu.
– A véspera de seu casamento, Robert, lhe ofereceremos o tipo de prazeres femininos que sempre
gostou. Um panfleto filosófico atrás de outro, todos os quais advogarão por uma mudança política que
produza como resultado a alteração da ordem social atual. Leremos esses ensaios e depois… – fez uma
pausa como procurando uma ênfase dramática. – E depois, meus amigos, debateremos sobre eles.
Robert sorriu e afastou a vista.
– Vocês dois vão acabar comigo. Não sei o que faria sem vocês. E não sou tão mau.
– Falando do... – disse Oliver. Seu rosto se voltou solene por um momento. – Seu casamento. Seu pai
já não está entre nós e sua mãe não… ah, não conhece seu dever. Acredito que possivelmente poderíamos
te oferecer nossa ajuda.
Sebastian assentiu a seu lado.
Robert acreditava que já tinha pensado em tudo. Tinha decidido o presente de casamento e tinha
procurado advogados em Londres que se ocupassem dos contratos. Mas não lhe surpreenderia saber que
tinha se esquecido de algo. Havia tantas coisas que desconhecia nos temas de família!
– Ajudar com o que? – perguntou.
Oliver se inclinou para ele.
– Trata-se da noite de núpcias – disse com seriedade. – Do que acontece essa noite. Tem que sabê-lo
– baixou a voz com tom melodramático– . Quando um homem e uma mulher se amam, unem-se de um
modo muito especial.
Robert lhe deu uma cotovelada.
– É terrível – disse.
Mas sorria e não podia deixar de fazê-lo.


E BEM…
À manhã seguinte, Minnie ergueu a vista de seu café da manhã e viu a duquesa de Clermont na soleira
da porta.
Sua tia avó Caroline fez gesto de levantar-se. Eliza já se pôs de pé. Atrás da duquesa entrou uma
donzela retorcendo as mãos com ar impotente e tentando transmitir uma desculpa silenciosa pela intrusão.
Mas a duquesa não olhou às demais mulheres. Cravou a vista em Minnie.
– Vai se casar com meu filho dentro de três dias. Sabe que será um desastre completo.
Minnie se recordou que aquela mulher ia ser sua sogra durante décadas. Não seria boa ideia tê-la
como inimiga.
Tampouco seria boa ideia que a duquesa pensasse que podia acovardá-la. Minnie fez uma inclinação
de cabeça, como entre iguais.
– Veio para me dissuadir? Para pedir que lhe devolva suas cinco mil libras? – ergueu o queixo e
voltou sua atenção à torrada que tinha no prato. – Rasguei sua nota promissória bancária.
A duquesa fez uma careta de desprezo e caminhou pela sala. Separou ela mesma uma cadeira da
mesa, antes que a donzela tivesse tempo de fazê-lo e se sentou espectadora.
– E bem? – perguntou. – Sirva o chá.
Minnie assim o fez e, a pedido da duquesa, acrescentou-lhe açúcar.
Enquanto isso, suas tias se olhavam entre si como se debatessem em silencio entre elas se deviam
intervir. Mas a duquesa não lhes prestava nenhuma atenção. Tomou uma torrada um pouco queimada e a
colocou em seu prato.
Minnie lhe alcançou a xícara e o pires. A duquesa tomou um sorvo e os deixou na mesa, como se ao
fazer isso tivesse completado já com as exigências das boas maneiras.
– E eu que pensava que tinha bom senso, senhorita Pursling!
– E o tenho. Veio para tentar me intimidar de novo?
A duquesa negou com a cabeça.
– Apenas uma mulher muito iludida e romântica que se encontrasse em minha posição pensaria que
um chilique com sua futura nora poderia alterar em algo o resultado. Você conhece os riscos e meu filho
conhece a verdade. Fiz minha melhor oferta e não foi suficiente. Ao mundo raramente lhe interessa o que
eu pense. Quando as coisas não acontecem como eu gosto, apenas fica uma coisa por fazer – assim
dizendo, ergueu a torrada e a mordeu com elegância.
E qual é? – perguntou Minnie.
A duquesa tragou o mordido com o cenho levemente franzido, deixou a torrada no prato e mexeu o
chá.
– Gosta de gatos, senhorita Pursling?
Minnie piscou ao ouvir a mudança de tema.
– Eu gosto o bastante, embora eu gostaria que Pouncer cessasse de me deixar fígados de camundongo
em minha cama.
A duquesa moveu uma mão enluvada no ar para afastar de si qualquer possível entranha de roedores.
– Alguma vez viu um gato desculpar-se ou admitir que se equivocou?
– Os gatos não falam – interveio Caroline; eram as primeiras palavras que dizia desde a entrada da
duquesa.
Esta ergueu a vista e a olhou de cima a baixo.
– Uma mulher capaz de manter a salvo a sua tristemente célebre sobrinha neta durante uma década,
seguro que pode conseguir entender uma metáfora – voltou de novo a vista a Minnie. – Alguma vez viu
um gato saltar sobre um banco e falhar?
– Claro que sim.
– E o que faz o gato? – a duquesa não esperou resposta. – Atua como se tivesse sido sua intenção
falhar. “Sim”, diz. “Deixei escapar esse como advertência a todos os outros. Agora lamberei ás patas os
seguintes cinco minutos, tal e como tinha planejado”.
– Diz isso? – perguntou Minnie com ar inocente.
– Em sentido figurado. O que quero dizer é que terá que ser o gato. Todo mundo respeita os gatos.
– Bom, em realidade – interveio Eliza, – na época da peste negra…
A duquesa estendeu uma mão.
– Não polua minha perfeitamente aceitável linguagem metafórica com dados irrelevantes – trovejou. –
Não há nenhuma necessidade disso – voltou a olhar para Minnie mais uma vez. – Decidi que meu filho e
você devem ir de lua de mel a Paris.
A brusca mudança de assunto fez com que Minnie movesse a cabeça.
– Isso sonha… romântico. Está segura?
– Completamente – disse a duquesa. – Parece romântico, e apesar de que aprovo muito pouco a
existência deste amor, sou muito consciente de que vão necessitar muito essa “aparência” – apertou os
lábios e fixou a vista na parede.
Em outro momento e com outra mulher, Minnie poderia ter pensado que a duquesa parecia
envergonhada. Quando voltou a falar, fez-o pela primeira vez sem olhar diretamente a jovem.
– Em segundo lugar – disse, – possivelmente devam considerar não consumar o matrimônio.
– O que? Por quê? Para que possa ser anulado?
A duquesa ergueu os olhos ao céu.
– Isso é um mito horrível. Não se pode anular um matrimônio só porque não tenha sido consumado.
Acredite-me, eu consultei com todos os advogados de Londres os modos possíveis de pôr fim a um
matrimônio. Conheço a lei de cor. Simplesmente acredito que seria bom que o primeiro filho não
chegasse até ao menos dez ou onze meses depois do matrimônio. Que ninguém ache que o casamento foi
porque estava grávida. Se passasse algo assim, os falatórios durariam décadas.
– Isso é outra amostra de linguagem metafórica? – perguntou
Caroline.
– Experiência – respondeu a duquesa, sombria. – Robert nasceu aos oito meses de gravidez.
Minnie se engasgou com o chá e fechou os olhos, tentado expurgar de sua mente as implicações.
– Adiantou-se – explicou a duquesa com calma. – Ocorre frequentemente com os primogênitos. Eu
disse assim durante os últimos vinte e oito anos, assim deve ser verdade – olhou fixamente para Minnie.
– Portanto, não haverá relações matrimoniais até dois meses pelo menos.
– Haverá – respondeu Minnie. – Não sinto desejos de me privar de nada do que queira fazer somente
porque pessoas às quais nunca vi possam assumir o pior sobre mim. Além disso, tendo em conta meu
passado, isso é como se a um assassino preocupasse ir ao inferno por ter falado mal do cavalo de um
amigo.
– Humm – a duquesa franziu o cenho; encolheu os ombros. – Só a estava pondo a prova. Tinha que me
assegurar de que, com seus antecedentes, interessava-se pelos homens. É melhor averiguar essas coisas
agora.
Parecia segura. Falava com segurança. E, entretanto, Minnie teve a clara impressão do gato lambendo
as patas. “Não queria em realidade esse camundongo”.
– Falando disso, a razão mais importante para ir a Paris – a duquesa assinalou para Minnie. –
Necessita um guarda-roupa novo. Não pode se conformar apenas com um aceitável. Tem que ser
brilhante. Me diga, filha, gosta de se vestir como uma camponesa pobre ou usa esses farrapos unicamente
porque suas empobrecidas tias a obrigam a isso?
Caroline e Eliza soltaram um coice ao uníssono no outro lado da mesa. Minnie tossiu.
– É obvio. Nada me agrada mais que virar um vestido pela quarta vez. Se não usar punhos que caem
aos pedaços, não me sinto confortável – olhou de cima abaixo a sua futura sogra. – Agradecerei que não
insulte às mulheres que me deram um lar embora não estivessem obrigadas a fazê-lo.
Insulte a mim tudo o que queira, mas deixe em paz a Caroline e a Eliza.
A duquesa nem sequer piscou.
– O que pensa de meu estilo de roupa?
– Muito enfeitado, muito conservador – respondeu Minnie sem vacilar. – Suponho que está bem para
você, mas para mim…
– Excelente. O que escolheria você? Que classe de duquesa seria?
Minnie pensou nos anos passados olhando revistas de moda com Lydia e a embargou uma intensa
sensação de perda, uma sensação parecida com um golpe repentino. Teria que ter escolhido seu enxoval
de casamento com Lydia. Sua amiga teria se gabado de ter acertado e…
– Bom – respondeu Minnie, – não vou pretender ser uma duquesa convencional. Eu não gosto de
todas essas capas de rendas, embora agora sejam muito populares. Sentiria-me enterrada nelas. Eu gosto
das linhas definidas e os tecidos alegres – respirou fundo e deu rédea solta a sua imaginação. – Muito
tecido. Acabou-se o tempo de economizar em tecido.
– E terá que aprender a cobrir-se essa cicatriz. Minha donzela poderá fazer…
Minnie a olhou com ar de desaprovação.
– Isto? – tocou-se a bochecha. – Oh, não! Levarei-a descoberta.
Acredito que é uma cicatriz que realça minha beleza.
A duquesa soltou uma gargalhada; levantou-se com brutalidade.
Minnie a olhou fixamente.
– E bem? – perguntou a outra. – Não temos todo o dia. Em meu hotel tenho todas as revistas de modas.
Se enviarmos suas medidas a minha gente na França, poderão fazer as provas finais quando chegar ali. E
também há muitas coisas que se podem comprar aqui.
– Veio até aqui unicamente para me levar as compras? – perguntou Minnie.
– Quando for a duquesa de Clermont – respondeu a outra, sem responder à pergunta, – nunca permita
que ninguém saiba que poderia ser outra coisa. Se não ouvir o que dizem de você, não poderá ser
verdade. O melhor será que, quando a sociedade descubra sua existência, você já seja uma duquesa.
CAPÍTULO 21

OS DIAS ATÉ AS BODAS PASSARAM muito depressa para


Robert. Não sabia se sentia entusiasmo ou apreensão. Ou ambas as coisas de uma vez. Para começar,
sua mãe tinha tomado Minnie sob sua asa e tinha mandado procurar uma costureira de Londres para que a
provesse com o que ela chamava de “o mais básico”.
Lhe tinha perguntado por aquilo, mas ela se limitou a responder:
– Se for jogar a moça aos lobos, é apropriado que ao menos lhe proporcione uma capa vermelha.
E breve eram os momentos que Minnie e ele podiam roubar para estarem juntos. Robert tinha tido
alguns beijos para lhe abrir o apetite. Se podia se chamar de beijo empurrá-la contra a parede e lhe
desabotoar a metade do vestido no processo. Quando chegou a manhã do casamento, seu apetite estava
muito acordado.
Em certo sentido, era uma sorte que a cerimônia se realizasse cedo. Em realidade, o cedo da hora
tinha sido escolhido especificamente para que pudessem chegar a Paris ao final do dia. Se o primeiro
trem do correio não chegasse com atraso a Londres e se o vapor conseguisse cruzar o canal em um tempo
prudente.
Mas quando a olhou nos olhos e pronunciou seus votos matrimoniais, não podia pensar em nada
disso. O desejo físico não era quão único o tinha dentro de si. Quando ela prometeu amá-lo e honrá-lo,
sentiu um entusiasmo elétrico que percorreu todo seu corpo. E quando ele prometeu o mesmo, pareceu-
lhe que isso os unia, que fechava a distância entre eles como não podia fazê-lo nem sequer o beijo
posterior.
Sabia que muitos de seus compatriotas evitavam a todo custo o matrimônio. Viam este como um
motivo de irritação e à esposa como uma pessoa mais com quem brigaria e se queixaria. Mas quando ela
repetiu seus votos, ele ouviu: “Até que a morte nos separe”, e seu coração se encheu de esperança.
Depois da cerimônia, separaram-se brevemente. Minnie foi com suas tias para recolher algumas
coisas; Robert fiscalizou a carga da bagagem. Ao fim de só meia hora, reuniram-se de novo na estação do
trem. Enquanto subiam a bordo, não tiveram oportunidade de falar. Robert estreitou a mão de seu irmão e
depois a de seu primo. Violet lhe deu um abraço, e sua mãe… Esta lhe fez uma inclinação de cabeça.
Minnie e ele se despediram agitando as mãos através do guichê até que a estação desapareceu totalmente.
– De quem foi a ideia de fazer uma viagem de dezesseis horas entre a cerimônia e a consumação do
matrimônio? – sussurrou Robert ao ouvido de sua mulher.
– Minha, acredito – ela se voltou pela metade para ele, que pôde lhe ver a cara. Não parecia
impaciente pelo que demorava; parecia infeliz. Voltou a olhar pelo guichê quase com desejo, fixando a
vista na silhueta da cidade que retrocedia na distância. Todos os edifícios se mesclavam formando um
amálgama de pedra cinza e um bosque de chaminés de tijolo. Não havia muito que ter saudades disso.
E então Robert recordou que ela tinha duas tias que a queriam, e que ele a estava separando delas.
– Me dê um momento – pediu Minnie. – Estarei bem em seguida.
É que pensava… estava segura de que Lydia viria ao meu casamento.
Robert demorou um momento em recordar quem era Lydia. A senhorita Charingford, quão amiga tinha
estado sempre ao lado de Minnie.
– Enviei-lhe uma carta contando-lhe tudo, absolutamente tudo, sobre mim. Pedi-lhe que viesse.
Pensava que ao menos viria se despedir. Mas nem sequer me enviou uma nota.
Ele tinha estado a ponto de sugerir que passassem a viagem preparando-se para a cama do hotel em
Paris. Mas ali não havia espaço para jogos lascivos. Tocou-lhe a mão com gentileza, temeroso de dizer
algo que pudesse estragar ainda mais o humor dela.
Mas Minnie não tinha mentido ao dizer que apenas necessitaria um momento para recuperar-se.
Quando chegaram a Londres, voltava a sorrir.
– A última vez que estive em Paris tinha oito anos – lhe confiou–. Naquela época, levava dias viajar
ao continente – moveu a cabeça. – Levava dias ir a qualquer parte.
– Eu não fui ao continente até que alcancei a maioridade – disse Robert. – Assim apenas o conheci
nos dias nos quais se chega lá com o trem e com o vapor.
Chegaram a Londres às dez e meia, a Southampton pouco depois de meio-dia, e às três da tarde
pisavam em chão francês. Minnie honrou a sua palavra e já não dava nenhuma amostra de infelicidade.
Observava tudo com interesse, como se não tivesse nenhuma tristeza, e quando entraram no último vagão
de trem naquele dia, apoiou a cabeça no ombro dele em uma amostra de afeto que fez com que Robert
contivesse o fôlego e pensasse em pedaços de gelo aplicados diretamente em sua coxa.
Menos mal que não tinha sugerido que provassem nada mais! Apenas o contato da mão dela
entrelaçada com a sua o fazia perguntar-se se acabaria possuindo a sua esposa pela primeira vez em um
vagão de trem.
Não. Possuiria-a no quarto de um hotel. Sobre uma cama. E seria uma experiência incrível.
Quando chegaram a Paris, repetiu-se que seria incrível.
E voltou a repetir apertando os dentes quando descobriu que sua mãe tinha organizado para que
Minnie fosse provar vestidos ao chegar, o que supunha um maldito atraso de uma hora antes do jantar da
noite de núpcias
Quando por fim estiveram sentados juntos diante de um jantar íntimo, Minnie vestida com uma pesada
bata de brocado que a cobria da cabeça até os dedos dos pés, eram onze da noite. Robert bicava a
comida com o garfo e ela fazia o mesmo. Depois do segundo prato, despediram-se dos serventes.
Minnie declarou que não tinha fome e deixou os talheres na mesa.
Ficou de pé.
Era quase meia-noite. Tinham viajado durante a maior parte do dia; durante a maior parte do dia,
Robert tinha estado nervoso pensando no que poderia fazer aquela noite. E já tinha chegado o momento.
– Minnie – disse com lentidão. – Depois da viagem exaustiva de hoje, acredito que poderíamos…
Ela desabotoou o cinturão da bata e a deixou cair ao chão. Robert não foi capaz de seguir falando.
– Pensaste que poderíamos o que? – perguntou-lhe ela com um sorriso.
Deus santo, aquela voz! E aquele corpo! Ela levava uma camisola branca de tecido fino, com
desenhos bordados em espiral que se entrelaçavam de um modo muito sutil desde seus quadris até seus
seios. Uns seios que foram soltos e que resultavam muito visíveis através do tecido. Havia enfeites
impregnados à altura das pernas. Ela deu um passo para ele e o tecido girou a seu redor o que permitiu a
Robert ver partes da pele nua e das pernas longas.
De verdade ele tinha estado a ponto de sugerir que adiassem a noite de núpcias até que tivessem
descansado?
– Pensei – disse, com o sangue de seu corpo fluindo como uma corrente para sua virilha– que poderia
passar o resto da noite te possuindo.
Minnie sorriu.
– Sabia que iria dizer isso.
– Te olhando – ele podia fazê-lo já. Levantou-se da mesa e deu uma volta ao redor dela. – Viu isso?
O tecido se colava nos mamilos. Os sonhos e a imaginação aquecida de Robert empalideciam diante
da realidade. Num de seus sonhos tinha imaginado a meia lua perfeita dos seios, mas não tinha tido em
conta as pequenas sardas que o cobriam. Ele tinha imaginado pele Lisa e pálida. A essa distância, podia
ver que sua pele não era tão uniforme e que havia distintas cores: uma leve capa rosada onde o sangue
dela pulsava sob a pele, mostra de bronzeado e de branco. Até podia divisar uma linha branca mais
pálida ao longo de uma costela, que podia ser uma cicatriz.
Essas pequenas imperfeições o cativavam. Aquilo não era a imaginação de um pintor nenhuma
fantasia irreal desdobrada em sua mente. Aquela era Minnie e ela estava ali, real e respirando.
Umas fitas vermelhas prendiam a camisola nos ombros. A que caía sobre seu braço direito estava
solta, e aquele nó meio desfeito parecia burlar-se dele ameaçando soltar-se e deixar que o tecido fino
deslizasse pela pele dela.
– Recorda o defeito psicológico do qual te falei? – murmurou ele.
– Recordá-lo? Eu esperava poder explorá-lo.
– Oh! – Robert estendeu os braços para ela. – Bem. Nesse caso, assumo que disse algo muito
inteligente.
Pegou-a pelos ombros e a atraiu para si para beijá-la. Não foi só um beijo, uns lábios sobre outros
lábios. Nem tampouco foi apenas seu corpo pressionado contra o dela. Sentiu os seios dela, livres do
espartilho. Deslizou as mãos pelo corpo dela. Seus seios eram firmes e redondos; seus mamilos se
endureceram quando os dedos dele os roçaram. Aquele era o começo de tudo.
– Assumo que disse algo muito inteligente – murmurou.
Do peito dela, havia um curto caminho até as fitas soltas, apenas um movimento dos dedos para as
desatar e baixar a seda. Encontrou de novo o peito, essa vez descoberto. A textura da pele feminina, tão
cálida e vibrante, suave ao tato e, entretanto, firme à carícia, cativou-o.
Mas ela era ainda menos tímida que ele. Deslizou as mãos para baixo a levita dele e as pousou em
sua cintura. Deu-lhe um beijo longo e lento.
– Tem medo? – sussurrou ele, levando-a para a cama.
– Sei que seria normal o ter, mas não. Não.
Robert sempre achou sua voz sensual, mas naquele momento lhe parecia claramente erótica.
Ela se sentou na cama e fez um gesto com o dedo.
– Eu não me sinto particularmente inteligente. Desejo-te.
Qualquer esperança que pudesse ter ele de conter-se evaporou ao ouvir isso. Tirou a levita enquanto
lhe abria os botões do colete. Juntos tiraram a camisa, e riram juntos quando a mão dele ficou presa em
um dos punhos e ela teve que colocá-lo de volta no pulso para enfim retirá-lo. Os dedos dela exploraram
o peito dele, que se estremeceu enquanto tirava as calças.
Quando deixou a roupa interior em um montão no chão, ela voltou para a cama e o beijou de novo.
Esse beijo foi ainda melhor: pele contra pele, com as mãos dela roçando as coxas dele para depois
explorar com gentileza seu membro. Robert soltou a fita do outro ombro dela enquanto suas línguas se
encontravam. Então ficaram peito contra peito, e, quando lhe tirou a camisola, suas pernas nuas se
tocaram também. Tomou as mãos dela nas suas e as apertou em todo o comprimento.
Sentia a boca dela quente contra a sua. Seu pênis estava ereto colado ao quadril dela. Beijaram-se,
com a pélvis dele pressionando a dela, e todos os sonhos de Robert, suas fantasias mais sórdidas,
empalideceram em contato com a realidade. Ia fazê-la dele. Por fim ia possuí-la de verdade. Separou-lhe
as pernas e se colocou de joelhos entre elas.
Quando teve diante de si as belas dobras rosas de seu sexo, foi impossível não tocá-la. Minnie soltou
um coice quando a tocou ali. Não foi um coice escandalizado, a não ser alentador. Ficou tensa sob seus
dedos. Os dedos não eram suficientes. Robert se colocou em cima dela com cuidado, com muito cuidado
de não esmagá-la com seu peso. Ela gemeu quando ele esfregou a ponta de sua ereção contra a abertura
do sexo dela.
– Oh, Senhor! – murmurou com aquela voz seu tão excitante. – Robert…
– Meu Deus! Desejo-te muito.
Introduziu o pênis uma polegada.
Minnie inalou fundo e apoiou a mão no peito dele. Não foi uma carícia a não ser uma leve pressão
para afastá-lo, e ele se deteve. Os bíceps lhe doíam um pouco, colocado como estava em cima dela.
– Dói? – perguntou.
– Não – ela sorriu fracamente e acrescentou, em clara contradição: – Só um pouco.
Não foi muito, mas bastou para explorar a borbulha de luxúria inconsciente que o tinha envolvido até
esse momento. Estava fazendo aquilo errado. Estava-se impondo a ela depois de apenas um beijo e de
umas quantas carícias para prepará-la.
– Não pare – disse ela. Mas quando ele empurrou um pouco mais dentro, todo o corpo de Minnie se
esticou. O prazer que sentiu ele apenas serviu para incrementar seu nervosismo. Ela se fechou ao redor
de seu pênis, suave e cálida, apertada, muito apertada. A sensação era boa. Mas Robert sentia os
músculos dela tensos e rígidos sob seu corpo. Os dedos de Minnie agarravam com força os lençóis da
cama. Sua mandíbula denotava que estava se esforçando muito para não apertar os dentes com força.
– Sinto-o – Robert tentou beijá-la – sinto muito.
Ela ergueu uma mão e lhe tocou a bochecha.
– Deixa de preocupar-se. Eu te avisarei se, se tornar insuportável.
Suportável. Aquilo era suportável para ela quando para ele era bom.
Apenas bom.
Não sabia por que, mas tinha feito à ideia de que a relação sexual com ela seria diferente. Que a
complexidade do que sentia por Minnie, sua compenetração… Tinha imaginado que tudo isso faria que
aquele momento fosse diferente em algum aspecto. Que quando se deslizasse dentro dela, todo seu mundo
desprenderia fogo.
Saber que para ela era só suportável, privava ao ato de tudo exceto do prazer físico. Era sua noite de
núpcias. Supunha-se que devia ser mágica, por estúpido e ingênuo que soasse aquilo.
Quando a penetrasse, supunha-se que devia sentir outras coisas. Desejava algo mágico procedente da
carne dela, algo secreto que os arrebatasse. Algo que fizesse com que aquilo fosse mais que bom para ele
e mais que suportável para ela. Em realidade, embora tentasse suprimir aquele pensamento, com o corpo
dela tão tenso sob o seu, Robert teria preferido sua mão esquerda a aquilo.
Dava igual à possuir devagar ou depressa, que deslizasse suas mãos no cabelo dela ou as colocasse
ao lado de seus ombros, dava igual porque não havia magia no ato. Quando um homem fazia amor com
uma mulher que queria de verdade, supunha-se que tinha que sentir algo diferente.
“Se for bom na cama, possivelmente me apaixone por você”.
Minnie havia dito aquela frase com um sorriso, e Robert não se deu conta de até que ponto queria que
ela o amasse. Desejava seu amor, e sentia que essa possibilidade se afastava com cada investida que era
meramente suportável.
Fechou os olhos e pensou na Inglaterra. Concentrou-se nos prazeres menores do ato, a agradável
vibração de seu corpo quando se deslizava dentro dela, o calor de seu prazer acumulando-se na base de
sua coluna.
– Meu Deus, Minnie! – exclamou.
Investiu com mais força. Era bom. E “bom” tinha que ser suficiente. Ela era suficiente. Seu corpo,
apertando-se ao redor do membro dele, seus quadris, seus seios roçando o torso dele com cada investida,
eram suficiente. E logo, nos últimos momentos ofegantes, aquilo foi muito bom. Endureceu-se ainda mais
dentro dela e o clímax produziu um momento que foi quase tão doce como o que ele tinha desejado.
Quando terminou, separou-se dela e se tombou. Baixou os dedos pelas costelas dela.
Bem. Um sonho romântico e idealizado que caía presa da realidade. Não tinha sentido chorar por
isso. E… e não seria sempre assim para ela, verdade? Robert confiava em que não. Quase desejava
haver pedido conselho a Oliver.
Minnie, a seu lado, voltou-se para ele. Robert não podia olhá-la aos olhos ainda. Lhe pôs uma mão no
braço.
– Não quero te assustar – sua voz soava um pouco fria. Ele moveu a cabeça para um lado e a
observou o melhor que pôde com aquela luz tênue.
– O que ocorre?
– Acredito que não fizemos certo.
O corpo de Robert ficou rígido. Se ela não houvesse dito nada, ele podia ter fingido. Afastou-se
sutilmente dela.
– Tenho entendido que a primeira vez é a pior. Para as mulheres. Depois melhorará – tinha que fazê-
lo.
– Não – repetiu ela com voz grave. – O fizemos errado. Sei o que se tem que sentir ao final. E isso
que aconteceu a ti, não aconteceu comigo.
– Sei – replicou ele com voz cortante. – Não precisa que me diga isso. Quase não podia tolerar o ato.
Não precisa que me esfregue o fato de que não pude dar um orgasmo a minha esposa. Sou muito
consciente disso.
Aquela explosão foi seguido de um silêncio. Robert exaltou o ar com força.
– Não é minha intenção te criticar – disse ela ao fim. Sua voz soava incrivelmente razoável, dadas as
circunstâncias, e isso fazia com que
Robert desejasse lhe gritar. – É apenas que… pelo modo como o fizemos, isso jamais poderia me
acontecer e… e, bom, eu tinha esperado que me acontecesse.
– O que quer dizer com que não ia te acontecer? Como pode sabê-lo?
Minnie o olhou sem dizer nada, e ele se deu conta de que estava gritando a sua esposa por não havê-
la levado ao êxtase. Porque havia sentido mais prazer do que tinha dado a ela.
“Estupendo, Robert”.
– Sinto-o – suspirou. – Não devia ter gritado. Você não tem a culpa – respirou fundo.
Minnie pegou-o pelo braço.
– Somos inteligentes. Descobriremos. Temos dez dias em Paris para aprender a fazê-lo bem.
Demônios! Dez noites mais como aquela? Robert, antes, suplicaria que o liberassem disso.
– Nove – corrigiu. – Já passou uma.
– Esta não terminou – Minnie mordeu o lábio inferior. – Não tenho experiência com homens, mas…
quer que lhe ensine isso?
– Me ensinar?
Ela se ruborizou.
– Já sabe. Que te ensine o que faria eu sozinha.
Depois do desastre em que se converteu aquela noite, Robert pensava que seria impossível que
voltasse a desejá-la. E, entretanto, aquelas palavras provocaram um comichão em algum lugar de sua
mente, uma faísca de interesse. Pigarreou.
– Não tenho nenhum outro plano para esta noite.
Ela soltou uma gargalhada.
– Suponho que não. Começa aqui – deslizou uma mão entre suas coxas.
– Eu comecei aí.
– Um pouco mais acima – ela fez algo com a mão, algo que Robert não pôde ver até que se sentou na
cama e lhe observou os dedos. Deslizavam-se, não na abertura, a não ser mais acima, fixos no botão
brilhante entre as pernas dela. Suas carícias eram leves e rápidas. Ela conteve o fôlego de repente e logo
respirou de modo regular.
Ele fez o mesmo.
– No que está pensando? – perguntou.
Ela o olhou aos olhos.
– Em ti. Recorda o dia em que jogou a massa de colar na minha saia?
– Humm.
– Essa noite, quando fui para casa, imaginei que você me tirava o vestido.
Robert acabava de derramar sua semente nela. Pensou que não deveria ter outra ereção em um longo
momento. Mas o sangue fluía para seu pênis.
– É curioso – disse com voz rouca. – Eu pensei em algo parecido aquela noite.
– Eu pensava muito em ti de noite – confessou ela. – Era… embaraçoso.
– Chegou um momento no qual pensei que minha mão esquerda levava seu nome gravado. Quão único
tinha que fazer era tocar meu pênis e pensar em ti…
O corpo dela ficou estendido diante dele. Seu cabelo formava uma massa grande sobre o travesseiro.
Robert lhe separou os joelhos para ver o que fazia. Quando o viu, sentiu a boca seca. A pele dela
parecia suavizar-se à medida que se tocava. Era de uma cor rosa profundo entre as pernas, com os lábios
menores abrindo-se como uma flor à luz rosada do abajur. Esse rosa escuro o chamava, convidando o a
tocá-lo.
As mãos dela acariciavam seu corpo com um movimento suave e experiente, e ele podia ver como
brilhava sua abertura. E cheirava a diferença no ar… era o aroma da excitação crescente dela.
– Quão único tinha que fazer – disse com ferocidade– era pensar em ti e me punha tão duro como uma
pedra. Por Deus, Minnie! Segue fazendo isso.
Nunca tinha pensado nela fazendo aquilo, dando-se prazer, mas resultava muito mais excitante que
nenhum dos cenários que ele tinha imaginado.
– Necessito algo mais – ela bateu as pestanas. – Você gostaria de me ajudar?
Robert sentia a boca seca.
– Eu adoraria. Como?
– Me toque – ela colocou uma mão ao redor do peito. – Aqui.
Ele se inclinou, tomou o seio em seu polegar e deslizou o dedo ao longo da curva.
– Mais. Com mais força – pediu ela.
Robert tomou o mamilo de cor coral na boca. Ela lançou então um gemido e todo seu corpo se arqueou
ao lado do dele. Esse gemido terminou de excita ao Robert. Seu pênis passou de medianamente
interessado a completamente alerta.
– Sim – gemeu ela. – Por favor. Faça isso.
Robert lambeu primeiro o mamilo e depois o mordiscou levemente. Os gemidos dela cresceram em
intensidade.
Ele colocou a outra mão em cima da dela, em seu sexo. Sentia-a tocando-se, sentia a cama movendo-
se ao ritmo de seus dedos. Ela, que tinha estado levemente molhada quando ele a tinha penetrado, estava
agora grosseiramente empapada. Escorregadia e gloriosa. Seus dedos empurravam com mais força, cada
vez com mais força; os dele começaram a brincar ao lado dos dela, desfrutando daquela suavidade
sedosa.
– Quer saber quando foi a primeira vez que pensei em ti? – perguntou. – A noite que nos conhecemos.
E aquele encontro resultou muito distinto quando eu imaginei. Uma mulher com uma voz como a sua e um
corpo como o seu me encontra sozinho atrás de um sofá? Imaginei-a de joelhos, colocando esses lábios
inteligentes ao redor de meu pênis. E te desejei.
Minnie chegou ao orgasmo com um grito enrouquecido. Todo seu corpo se estremeceu em ondas de
prazer. Por um momento, Robert teve a sensação de que aquelas ondas viajavam também através dele.
Quando ela terminou, ele mal podia pensar. Todo seu corpo gritava sua exigência. Não perguntou nem
falou. Não disse nada. Simplesmente lhe abriu mais as pernas e a penetrou.
Essa vez se afundou até o fundo com uma firme investida. Essa vez pôde sentir a diferença no corpo
dela. As pequenas contrações estremecidas que percorriam ainda o núcleo dela espremiam seu pênis. Ela
estava empapada pelo desejo.
Ele devolveu a mão dela ao lugar anterior.
– Não pare – disse com voz rouca. – Segue fazendo isso.
Ela subiu os quadris para os dele. Sua mão continuou o movimento, o que supôs uma estimulação
acrescentada na base do pênis dele. Robert sentia o prazer a todo seu redor, primeiro mais débil, e
depois crescendo em intensidade à medida que a possuía. E, como se o primeiro orgasmo dela tivesse
aberto as comportas do prazer, essa vez Minnie chegou logo ao clímax, em apenas um minuto, e em uma
sucessão de ondas intensas de pura luxúria que a fizeram abraçá-lo com força.
Robert não se cansava daquilo. Investiu-a uma e outra vez, e cada investida era melhor que a anterior,
cada uma delas era mais intensa que as outras, até chegar a um clímax que o envolveu em ondas
selvagens. Seu segundo orgasmo foi quase doloroso. Foi desordenado, escorregadio e estranho, e lhe
produziu uma sensação incrivelmente boa.
Não tinha sido sua intenção possuir duas vezes em uma noite a sua esposa virgem, e menos depois do
desastre da primeira vez. Tinha perdido o controle no momento em que a tinha visto tocar-se entre as
pernas. Tinha havido algo nisso, algo que tinha conectado com um impulso profundo e primitivo dentro
dele. E não tinha sido capaz de seguir pensando.
A segunda vez tinha sido tudo o que tinha esperado e mais.
Depois do ato a beijou e lhe devolveu o beijo. Ela era toda suavidade e se derretia nele. Isso era o
que ele queria… aquela união.
– Robert – disse ela um momento depois. – Tinha assumido que, sendo quem é, que teria bastante
experiência. É assim?
– Depende do que entenda por experiência – respondeu ele sem comprometer-se.
Minnie não respondeu.
– Quando fui o bastante velho para adquirir experiência, tinha já uma ideia de como era meu pai. Não
queria ser como ele. Para isso, tinha que estar seguro, plenamente seguro, de que não forçava a ninguém a
fazer nada que não quisesse – sentiu que lhe ardia a cara. – E logo também tinha que me assegurar de que
não era como meu pai e não me deixava levar por meu pênis. A luxúria me faz estúpido. Tinha que estar
seguro de que não me fazia também egoísta.
Minnie seguiu sem dizer nada.
– Houve algumas festas nas quais… estive a ponto, e teria chegado a fazê-lo, se tivesse permitido que
as coisas seguissem seu rumo natural. Mas sempre me ocorria uma razão para não fazê-lo. Lhes
interessavam minha fortuna, não eu. Ou ela pensava que aquilo ia levar a uma proposta de matrimônio.
Nunca me pareceu sincero possuir a uma mulher que queria um duque quando apenas podia lhe oferecer a
mim.
Ergueu a vista ao teto. Sentiu a mão dela em seu corpo e encolheu os ombros.
– Acredito que, dada a frequência com a qual usei minha mão esquerda, não me deveria considerar
virgem – acrescentou com um suspiro. – Tive montões de experiências sexuais. Mas… não com outras
pessoas. E não estava me reservando para o matrimônio.
“Apenas para ti”.
Não o disse em voz alta. Parecia-lhe que estavam muito perto da paixão do encontro sexual para dizê-
lo nesse momento.
O sexo com a Minnie não era tal e como tinha imaginado sua relação sexual nos sonhos românticos
que tinha acordado. Nesses sonhos havia muitas flores e raios de lua, tudo era muito mais asséptico:
limpo e perfeito.
Aquilo… aquilo era quente e sujo, e ele queria repeti-lo uma e outra vez com uma ferocidade que não
conseguia compreender de tudo.
– Esta vez o fizemos bem? – perguntou.
Minnie se enroscou contra ele.
– Oh, sim! – respondeu com ar sonhador. – Muito bem.
Robert se disse que devia tomar nota. Se ela bocejava em seus braços depois, ele tinha feito um bom
trabalho. Aquilo, cansar a sua esposa, era um objetivo muito agradável. A ela lhe fecharam os olhos e ele
sentiu que o envolvia uma forte sensação de orgulho.
Havia-lhe dito que não tinha expectativas de ser amado.
Mas não era porque não acreditasse no amor. A ideia do amor era como água no deserto. Sabia que
isso era um tópico estúpido, um tópico que o fazia pensar em um homem vestido com farrapos
vagabundeando pelo Saara tentando procurar um oásis entre as dunas de areia.
Mas a Antártida também era um deserto, um deserto frio que se tornava seco porque a água se
convertia em gelo assim que tocava a atmosfera.
Assim acreditava ele no amor. Sempre tinha acreditado no amor. Tinha estado rodeado de água toda
sua vida; o que ocorria era que a água estava congelada. Ele tinha querido muito e tinha visto congelar-se
esse amor diante de seus narizes. Não lhe surpreendia analisar seus sentimentos e descobrir que amava a
Minnie. O que lhe surpreendia era que, nessa ocasião, quando se atrevia a tomar um sorvo, encontrava
água em vez de gelo.
Tinha vontade de chorar.
– Isso – disse a Minnie, – foi, sinceramente, o mais interessante e maravilhoso que já fiz em minha
vida. E quero repeti-lo.
– Amanhã – murmurou ela. – Depois de tudo, temos mais nove dias.
CAPÍTULO 22

ANTES QUE O SOL ENCONTRASSE o horizonte, Minnie despertou e sentiu os lábios de seu marido
no pescoço e os braços masculinos ao redor de seu corpo. Ficou adormecida de puro esgotamento; era
vagamente consciente de que seguia ainda cansada, mas não importava. Se estava cansada, era um tipo de
cansaço bom; desfrutava com a sensação do corpo dele colado ao seu, com as mãos dele percorrendo
suas costelas de forma possessiva. A sensação era mais parecida com um sonho do que a um despertar.
Tinha calor e o contato dele era quente.
Se a noite anterior tinha sido um descobrimento, essa manhã se tratava de explorar… de colocar as
mãos na curva das costas dele, de baixar as mãos por seu peito e voltar a subir fixando-se nos pontos
sensíveis. A impaciência apaixonada e insistente da noite de núpcias tinha dado lugar a uma sensação de
surpresa silenciosa.
Quando ele a penetrou, estava mais que preparada. Essa manhã, as investida dele eram um balanço
gentil, um beijo de todo o corpo, uma carícia que a levava ao orgasmo por fases em vez de arrancar-lhe à
força.
Quando terminou, ele apoiou a testa na dela.
– Bom dia.
O céu começava a tornar-se rosa. Minnie sabia que não tinha dormido uma noite inteira, mas não
queria voltar a inundar-se no sono. Queria apanhar aquele momento e prolongá-lo indefinidamente.
– Bom dia.
Robert não a tinha soltado.
– Sabe de uma coisa? – perguntou. – Estou morto de fome. Se não recordar mal de minha última
viagem, há uma padaria pequena rua abaixo que com certeza já tem algo inclusive a esta hora da manhã.
Quando terminaram de vestir-se, a luz da manhã já alagava as ruas embaixo. O hotel no qual estavam,
um estabelecimento de luxo cujo nome Minnie não recordava, pois a noite anterior não prestou atenção
nisso, dava a uma ampla avenida. Em um lado havia um parque, rodeado por uma cerca metálica. No
outro lado havia edifícios de pedra com fachadas artísticas. Robert a levou por uma rua lateral mais à
frente do parque. A padaria pequena da qual falava era em realidade um café com vistas ao Sena. E não
só ao Sena, pois seu hotel estava no coração da cidade, a poucos passos da Île de la Citè.
Uns meses atrás, Minnie não teria podido imaginar-se indo a Paris com um marido. Não teria podido
sonhar com um hotel que estava só a alguns metros da catedral de Notre Dame. Aquilo ultrapassava,
inclusive, a imaginação desbocada de Lydia. Mas não pensaria em sua amiga. Fazê-lo causava uma dor
profunda.
Em vez disso, se concentraria nas coisas bonitas e antigas que via; e também nas novas e brilhantes.
Os toldos coloridos, os elegantes edifícios, o pequeno bando de pombas que posou perto deles quando
comiam; e olhou com interesse os croissant que tinha comprado Robert.
Os pães-doces, quentes, macios e lubrificados de manteiga, estavam tão bons que Minnie quase não
queria compartilhá-los com os pássaros.
Mas quando jogavam os restos de seu café da manhã às pombas, e tentavam assegurar-se de que os
intrépidos pardais pequenos que se aproximavam pelo lateral levassem também sua parte, aproximou-se
coxeando um menino pequeno com um cajado. Na cabeça levava uma boina de feltro, que não era o
bastante grande para lhe tampar as orelhas.
O olhar calculista de seus olhos não estava em consonância com sua curta idade. Mas em seu caso, a
idade não tinha nada a ver com a necessidade de ser ardiloso. Aproximou-se coxeando a eles, apoiando-
se pesadamente na bengala. O balanço de seu passo era muito exagerado para ser real. Havia coisas que
não era necessário traduzir.
Minnie tocou com a mão o bracelete que levava no pulso.
Os olhos do menino brilharam calculadores. Se tinha pensado em lhes roubar enquanto jogavam
miolos às pombas, não lhe custou muito mudar de estratégia.
– Uns centavos, Monsieur – disse em um inglês passável. Tirou a boina e fez uma reverência a Robert
com ela. – Uns poucos trocados para o aleijado.
Minnie se perguntou como teria adivinhado que eram ingleses. Mas supôs que não devia ser muito
difícil. Depois de tudo, provavelmente os tinha ouvido falar.
Ela quase esperava que Robert o espantasse, mas em vez disso, tirou uma bolsa. Sem dizer uma
palavra, colocou a mão nela e extraiu uma moeda. Minnie viu o brilho do ouro quando ele lançou a
moeda ao menino.
O menino ergueu a mão e apanhou a moeda no ar com bons reflexos. Mas abriu muito a boca quando
viu o que tinha na mão. O cajado lhe caiu ao chão e ele não se deu conta e seguiu olhando a moeda.
Robert soltou o braço de Minnie e se aproximou do menino. Agachou-se e recolheu o cajado.
– A próxima vez – disse em um francês com muito acento inglês, – não jogue o cajado. Outro homem
poderia não haver-se dado conta de que isto era uma interpretação e possivelmente se mostraria menos
indulgente.
– Monsieur – o menino olhou de novo a moeda que tinha na mão e a seguir jogou o cajado em Robert
e saiu correndo sem o menor rastro de claudicação.
– Sabia que fingia a claudicação? – perguntou Minnie.
Robert encolheu os ombros. – Parecia muito provável.
– E lhe deste…? Por certo, quanto lhe deste?
– Uma moeda de vinte francos. Duvido que tenha visto outra em sua vida.
Vinte francos. Isso valia quase uma libra. Um garoto de rua necessitava meses e meses pedindo
esmola para reunir esse botim.
– Por que lhe deste isso se sabia que mentia?
Robert sorriu.
– Os farsantes necessitam ajuda tanto como outros. Eu sei muito disso – olhou na direção em que se
afastou o menino. – Especialmente quando se faz assim.
– Você sabe muito sobre dizer mentiras para tirar dinheiro? – Minnie sorriu. Ficou de pé, sacudiu os
miolos do vestido e caminhou para ele.
– Claro que sim. Algumas de minhas primeiras lembranças são de mim mentindo por dinheiro –
Robert pôs a mão dela em seu cotovelo e puseram-se a andar. A sua esquerda, uma cerca de ferro forjado
separava seu caminho do Sena. O rio fluía mais à frente. Minnie se negava a acreditar que sua água
pudesse ser marrom e suja.
– De verdade? – perguntou com incredulidade. – E que capricho queria comprar com esse dinheiro?
– Nenhum capricho – lhe dedicou um sorriso e lhe deu um tapinha no braço. – É uma história bastante
divertida. Verá, meus pais se casaram em circunstâncias estranhas. Meu pai convenceu a minha mãe de
que a amava. Ela acreditou; meu pai podia ser muito convincente quando se empenhava nisso. Mas o pai
de minha mãe sabia um pouco do mundo e suspeitava que os duques não se apaixonavam perdidamente
pelas filhas de comerciantes de lã que tinham dotes enormes. Ao menos não quando fazia apenas umas
poucas semanas que se conheciam. Assim, em vez de dar uma grande soma de dinheiro a meu pai ao
casar-se, a pôs em um banco e meu pai seguiria recebendo o dinheiro enquanto minha mãe fosse feliz.
Robert tinha comprado uma bolsa extra do padeiro. Abriu-a nesse momento. Entregou a Minnie um
pão-doce, dourado e quente, e tirou outro para si. Começou a cortar o seus em pedacinhos e jogá-los aos
patos por cima da cerca de ferro.
– Isso não parece o começo de uma história divertida – declarou Minnie, duvidosa.
– Suponho que a informação dos antecedentes não é muito divertida – Robert franziu o cenho e partiu
outro pedacinho de pão-doce. – Mas o resto sim o é, prometo-o. Em qualquer caso, resumindo: meu pai
não tinha dinheiro próprio e minha mãe controlava o seu. Assim, quando ela vinha de visita…
– Sua mãe ia de visita? Não vivia com vocês?
– Não, a maior parte do tempo não vivia em casa. Acredito que os três primeiros anos de minha vida
não a vi – ele arranhou o queixo. – Se tivesse vivido com meu pai, lhe teriam pago o dote. Essas eram as
condições. Minha mãe controlava o dinheiro mediante sua presença. Não queria que meu pai recebesse
dinheiro; por isso, quando lhe disse que, se queria algo, teria que viver com ele, lhe disse que se fosse ao
diabo.
Minnie pensou nas conversas que tinha tido com a mãe dele. A duquesa lhe havia dito algumas
confidências, mas não aquela. Embora, por outra parte, isso explicava muitas coisas. Muitas, em
realidade. Aquela história não tinha nada de divertida. Minnie olhou para seu marido com o cenho
franzido, mas ele sorria como se tudo aquilo formasse parte de alguma brincadeira. Lançava pedaços de
pão-doce aos patos e sorria quando estes brigavam por ele.
– Ou seja, que, em qualquer caso…
– Espera um momento. Seu pai não deixou que sua mãe te visse os primeiros três anos de sua vida?
– Exato – ele franziu o cenho e partiu outro pedacinho de seu pão-doce. – Segundo os termos do
contrato, ele não tinha nenhum controle sobre o dinheiro, mas legalmente sim me controlava. Assim… –
voltou a encolher os ombros como se tudo aquilo fosse perfeitamente normal. – Não se pode culpar por
tentá-lo.
Quem não lhe podia culpar? Minnie sim podia.
Mas Robert simplesmente seguiu jogando miolos à água e falando.
– Quando fiz quatro anos, tinham chegado a um acordo. Meu avô, o pai de minha mãe, deu um
punhado de fábricas a meu pai para que pudesse manter no lugar a seus piores credores – olhou para
Minnie. – Botas Graydon foi uma delas. Em troca, minha mãe poderia visitar-nos uns quantos dias duas
vezes ao ano. Eu tentava desesperadamente me comportar bem quando ela vinha. Me comportar muito
bem para que essa vez não partisse. Meu pai, naturalmente, apoiava-me nesse empenho. Quando tinha
seis anos lhe ocorreu um plano brilhante. Eu fingiria que não sabia ler, presumivelmente porque meu pai,
dada sua pobreza, não podia permitir-se me pagar um tutor. Estava seguro de que isso faria com que ela
se entregasse.
Minnie pigarreou; sentia uma opressão na garganta.
– E funcionou?
– Quase. Eu interpretei o papel do menino mais lastimoso do mundo. Fingi que não conhecia o
alfabeto. Olhava as páginas como se não me dissessem nada e encolhia os ombros. Comecei a recitar o
alfabeto, mas saltava letras. Saltava da L a P. Contei até cem e troquei os sessenta pelos setenta. Disse
que cinco e seis somavam treze – sorriu. – E meu pai tinha razão. Esteve a ponto de funcionar. Depois de
uns dias, ela enviou uma carta a seu pai lhe encarregando que enviasse outro baú com suas coisas.
Comprou uma cartilha em uma loja próxima e todas as tardes me levava ao salão, sentava-se comigo e
estudávamos o alfabeto. Mostrava-se muito severa nas aulas, quase autoritária. Tínhamos um horário
muito estrito.
– Você já… – Minnie não podia acreditar que o filho de um duque não soubesse ler a essa idade, mas,
por outra parte, tampouco podia acreditar que um duque crescesse sem ver alguma vez a sua mãe. – Você
já sabia ler então, não é assim?
Robert encolheu os ombros com indiferença.
– Naturalmente. Não havia muito mais que pudesse fazer ali além de ler. Depois de três dias fingindo
ignorância, a situação começava a me chatear porque queria terminar de ler Robinson Crusoé. Mas o
plano funcionava.
Ela não havia partido ainda. Quando chegamos a M de marmota, eu a troquei pela M de mamãe. Ela
me dedicou um olhar muito estrito com os lábios apertados e exigiu saber por que havia dito isso. Disse-
lhe que era porque as marmotas não eram nada especiais para mim, mas a ela gostava de tê-la ali.
Minnie não sabia como ele podia sorrir quando ela notava que lhe partia o coração.
Mas ele moveu a cabeça com um gesto que parecia quase de regozijo.
– Aparentemente, levei muito longe a exploração da lástima, porque ela moveu a cabeça e disse que
aquele dia não estudaríamos mais o alfabeto. Disse que tinha que escrever umas cartas muito importantes
e que eu fosse brincar sem fazer ruído. Deu-me papel e lápis e me disse que me distraí-se desenhando.
– Não posso acreditar que isso não lhe derretesse o coração.
– Oh, não! Para então, minha mãe se endureceu muito. E sabia muito bem como me tentar. Repetiu
duas vezes que eram umas cartas muito importantes e muito íntimas. Naturalmente, eu não pude resistir o
impulso de lhes dar uma olhada. Ela as escreveu sentada a meu lado, enquanto eu fingia desenhar
pássaros. Sua carta muito importante e privada repetia uma e outra vez:
“Clermont é um tolo”.
Robert sorriu recordando aquilo, a sua mãe chamando tolo a seu pai; mas Minnie o olhava
escandalizada.
– É obvio, perguntei-lhe o que era um tolo. E assim foi como tirou a limpo meu intento de engano.
Acabava de demonstrar que sabia ler. Ela não disse nenhuma palavra. Ficou de pé e saiu da sala. Depois
disso, meu pai e ela tiveram a briga mais terrível de todas. E acredito que dessa vez inclusive lhe atirou
coisas. Eu não voltei a vê-la em dezoito meses.
Minnie não sabia o que dizer. Ele sorria como se acabasse de relatar uma história divertida, como a
anedota que podia contar Minnie de uma vez que se perdeu aos sete anos e tinha metido a mão no bolso
de outro homem acreditando que era seu pai.
– Meu Deus! – exclamou ele. – Não posso acreditar que fora tão descarado quando menino.
Como podia sorrir recordando que seu pai o tinha recrutado com seis anos para utilizá-lo como arma
contra sua mãe? Como podia rir de que sua mãe se afastou dele? Como podia fingir que pudesse haver
algo divertido no fato de que seu pai arrebatasse um menino recém-nascido de sua mãe para tentar lhe
tirar mais dinheiro?
– Sabe, Robert? – perguntou, engasgando-se com as palavras. – Essa história não tem nada de
graciosa. Nada.
A ele foi apagando o sorriso pouco a pouco.
– Não lhe pareceu isso? Mas… – franziu o cenho e esfregou o queixo. – A primeira parte não. Isso o
compreendo. E… e suponho que não é exatamente uma história com um final feliz. Não tinha pensado
nisso, mas estou tão acostumado a esse final que não penso duas vezes nisso. E a parte do meio sim é
graciosa. Não te parece?
– Quando trocou a M de marmota pela M de mamãe, fazia-o a sério?
Por um momento, os olhos dele não mostraram nenhum regozijo. Parecia muito mais velho. Apertou
os lábios, ressaltando as pequenas rugas que tinha nos cantos dos lábios. E, entretanto, também parecia
jovem. Incrivelmente jovem, como se o menino de seis anos que tinha sido seguisse olhando desde detrás
de seus olhos, vendo como se afastava sua mãe.
– Pode ser – disse.
Afastou um momento a vista e depois voltou a olhá-la. O regozijo estava de novo presente em seu
rosto, mas se via um pouco forçado, como se tentasse usar um chapéu que não lhe cabia.
– Por isso não tem graça.
– A história tem elementos graciosos – protestou ele. – Dizer que seis mais cinco somam treze?
Minnie notava o braço dele tenso sob sua mão. A seguinte parte do pão-doce que lançou aos patos o
jogou com tanta força que um deles grasnou surpreso e se afastou antes de dar-se conta de que se tratava
de comida. E possivelmente foi nesse momento quando Minnie compreendeu o muito que significava
aquilo para ele. Para ele tinha que ser uma história divertida porque aquela lembrança dele dizendo
mentiras a pedido de seu pai e querendo desesperadamente que sua mãe ficasse, era em realidade uma
história sobre como tinham quebrado o coração de um menino.
Aquele era o homem que tinha entendido que um matrimônio com a filha de um nobre acabaria em
lamentos e recriminações e que queria abolir a nobreza. Robert sabia de primeira mão o que implicava
que uma esposa se afastasse dele e tinha rechaçado essa possibilidade. Tinha-a rechaçado embora isso
implicaria falatórios e escândalo, embora suportasse que os membros mais rígidos da alta sociedade
nunca aceitariam a sua família.
Robert não a olhou.
– E a parte em que saltava partes do alfabeto? Isso tampouco tem nada de divertido?
Aquele era um homem que queria que sua esposa o amasse, mas que não se permitia essa esperança.
E então foi quando Minnie se deu conta de que ela tinha algo que ele nunca tinha tido. Ela tinha sido
querida. Seu pai a tinha adorado até o momento no qual sua iminente condenação lhe tinha quebrado o
espírito. Ela tinha anos de lembranças felizes com ele. Depois do desaparecimento de seu pai, tinham
chegado suas tias. Embora não estivesse de acordo com tudo o que lhe haviam dito, tinham-na querido.
Tinham-na tratado de um modo que demonstrava que lhes importava. Ela dava por certo esse carinho.
Afortunada ela.
Robert tinha que rir do que tinha passado. Se não ria, choraria. Ela não tinha podido entendê-lo até
esse momento, porque nesse momento sabia que ela também tinha que rir ou ficaria a chorar. Ele a olhava
com tal desespero que ela não pôde suportar seguir contradizendo-o.
– Sim – murmurou, entrelaçando os dedos com os dele. – Agora o vejo. Sim tem graça.


OS PRIMEIROS DIAS EM Paris foram maravilhosos para Robert. Como se tivesse passado a vida
atrás de nuvens e de repente tivesse saído o sol com toda sua força cegadora.
Despertavam. Passeavam. Visitavam museus e lugares de interesse. Pela tarde voltavam para seu
quarto e faziam amor. Os camarotes da ópera ficaram sem usar para poder ficarem mais tempo na cama.
– Disse que tinha me imaginado de joelhos – disse ela uma tarde. – Como seria isso?
Robert o explicou. E então ela insistiu em prová-lo. E depois de umas leves instruções, endureceu
com a boca o pênis dele, que tinha as mãos nos ombros dela. Ele deu um coice e ela o acariciou em sua
boca até que derramou sua semente. Depois disso, lhe pareceu justo lhe devolver o favor. Demorou um
pouco mais em aprender a fazê-lo, mas o esforço valeu a pena.
“Se for bom na cama, poderia me apaixonar por você”.
Robert estava decidido a chegar a ser bom, e tinha anos de fantasias que explorar.
Às vezes as coisas que imaginavam resultavam anatomicamente impossíveis e terminavam caindo ao
chão e rindo. Em outras ocasiões, como a vez em que ele a debruçou sobre a escrivaninha, resultavam
muito, muito boas.
Em sua quarta noite em Paris, lhe pôs rubis ao redor do pescoço, só rubis e depois de lhe haver tirado
todo o resto, fez o que quis com ela.
Quando terminou, ela tocou as pedras que levava ao redor do pescoço.
– Supõe-se que isto é um suborno? – perguntou. – Porque já deveria haver te dado conta de que não
precisa me oferecer nada para me levar a sua cama.
– Poderia me dar conta – respondeu ele, corajoso, – mas por sorte para ti, a luxúria me deixa estúpido.
E você recebe rubis.
Minnie sorriu.
Mas tinha razão. Os rubis eram um suborno. Não para conseguir seus favores. A Robert, estando
casado, apreciava tão pouco a ideia de pagar pelo sexo como lhe tinha gostado quando solteiro. Mas
queria que ela o amasse. Queria-o com um desejo profundo que não podia explicar. Essa noite esteve a
ponto de lhe dizer que a amava. Mas ainda restava quase uma semana. Havia tempo para que chegasse o
amor. Não havia por que apressá-lo.
Adormeceu com o braço ao redor dela e despertou à manhã seguinte na mesma posição. Os rubis
piscavam à luz do amanhecer; eram uma promessa vermelho sangue de coisas futuras.
Robert os olhou e sacudiu a cabeça para afastar aquele pensamento estranho e perturbador.
E então bateram na porta.


Minnie DESPERTOU COM UMA CORRENTE fria e um ruído. Abriu os olhos. O quarto estava
vazio. Piscou e olhou a seu redor. Ouviu murmúrio de vozes na sala. Levantou-se, pôs uma bata e se
aproximou da porta que separava os dois cômodos.
Na sala havia um garçom de pé. Entregou um envelope marrom ao Robert, que também usava uma
bata. Robert lhe deu uma moeda.
– Espere do lado de fora se por acaso for necessária uma resposta imediata – disse.
Fechou a porta.
– Um telegrama? – perguntou Minnie. – Espero que não sejam más notícias.
Os rubis que ele lhe tinha posto à noite anterior lhe pesavam no pescoço e pareciam desproporcionais
quando ela levava apenas uma bata bordada.
Robert deslizou o dedo indicador sob a lapela para romper o selo.
– Adivinho que será do Carter, meu encarregado de negócios. Poderá esperar – comentou. Abriu o
envelope e olhou o papel que havia dentro.
Minnie viu que empalidecia. Ele leu a mensagem movendo os lábios com suavidade. Depois ergueu a
vista.
– É de Sebastian.
– O senhor Malheur? Seu primo cientista?
– O mesmo – Disse ele.
– Robert, o que aconteceu?
Ele seguia olhando a folha de papel. Seu rosto, duro e branco, parecia esculpido em mármore.
– Diga ao Rogers que empacote minhas coisas – falava com voz fria e tensa. – Pode as enviar no
próximo trem.
Tirou um relógio do bolso, olhou-o com o cenho franzido e abriu a porta para falar com o garçom.
– Envia uma resposta: Irei imediatamente – lançou outra moeda ao moço, que desapareceu.
Robert seguia sem olhar a Minnie, mas se voltou para ela.
– Devo partir no expresso das nove e meia. Falta menos de uma hora. Não tenho tempo de…
– O que ocorre?
Minnie teve que segui-lo até o closet, quase correndo para não ficar para trás.
A careta que ele tinha nos lábios se suavizou momentaneamente ao olhá-la.
– Você fica – disse com mais gentileza. – Tem que ir às compras e não há necessidade de…
Lhe pôs a mão no peito.
– Não há necessidade, exceto que faz só uns dias que fiz meus votos matrimoniais. No bem e no mal,
Robert. Crês que já vais fugir de mim e me deixar aqui tentando adivinhar o que ocorreu? Se você for, eu
também vou.
Pensava que ele podia tentar dissuadi-la, mas Robert se limitou a mover a cabeça e chamou seu
criado.
– O que aconteceu? – perguntou ela de novo.
– Acontece que acusaram a alguém de rebelião criminal pela distribuição dos meus santinhos – disse
Robert. – O processaram.
– O que? Acusaram-lhe em sua ausência?
– Não. A mim não – ele fez uma careta. – O homem a qual detiveram é inocente, mas isso não lhes
impedirá de seguir adiante com o assunto. Possivelmente procuram me envergonhar, mas não sabem que
estão destruindo a vida de um homem que é, e sempre foi, superior a mim.
– Quem? Quem é?
O rosto dele se contorceu e suas mãos agarraram as dela.
– Oliver Marshall – respondeu. – Meu irmão.
CAPÍTULO 23

Robert RESERVOU UM COMPARTIMENTO completo de primeira classe no trem de Paris a


Bologne. Não pelo luxo que isso supunha, pois mal se fixava nisso naquele momento. Era uma questão de
autopreservação. Se tivesse que ver-se obrigado a conversar educadamente durante a viagem, não
conseguiria sobreviver a ela. Em vez disso, olhou a paisagem com o sol subindo no céu. Passaram as
horas.
Não se sentou em nenhum dos assentos confortáveis nem pegou nenhuma das frutas nem dos pães-
doces de creme que supôs que Minnie teria pedido para ele. Por insistência dela, provou uma bolacha,
mas tinha sabor de cinza e a deixou no prato depois de uma mordida. Permaneceu horas de pé perto da
parte dianteira do compartimento, com uma mão na parede e a outra segurando um cigarro pelo guichê
aberto.
Fazia tempo que tinha se dado conta de que utilizava os cigarros para evitar companhia. A nuvem de
fumaça que criava no compartimento criava outra barreira, uma parede brumosa construída entre sua
esposa e ele. Aspirava a fumaça e o sentia acre e irritante nos pulmões, um castigo justo pelo que tinha
permitido que ocorresse que o castigo que supunham seus remorsos.
Sabia que Stevens queria um culpado. Sabia e, em sua pressa pela cerimônia, em sua luxúria, havia
prorrogado o assunto até sua volta. Tinha acreditado que teria tempo de lutar com isso mais tarde.
As milhas corriam, marcadas apenas por seu relógio e pelos povoados que passavam. Transcorreram
longas horas, pontuadas somente pelo chiado dos freios e o assobio do trem nas poucas paradas que fazia
o expresso. Primeiro deixaram para trás Beauvais e depois Amiens. Apenas quando o trem chegou até
Crécy, sua esposa se atreveu a desafiar sua expressão severa e se aproximou dele.
– Sabe uma coisa? – disse, apoiando-se na parede em frente do compartimento. – Empurrando-o não
vais conseguir que vá mais depressa. – Não? – ele deu uns golpezinhos com o dedo na ponta do cigarro
fora do guichê e ficou olhando como voavam as brasas no vento. – Pelo que eu posso ver, tampouco o
freia.
Minnie afastou a vista. Apertou a mandíbula e tamborilou com os dedos no vidro do guichê.
Esse ligeiro distanciamento dela supunha um terceiro castigo para Robert e lhe ardia mais que a
fumaça que tinha tragado.
“Mas deste modo, também castiga a ela”. Apertou o punho e moveu a cabeça.
Minnie não disse nada. O trem dobrou uma curva e ela apoiou uma mão na parede para sustentar-se
melhor. O metal protestou ao emparelhar-se e colocar-se em seu lugar. O som do trem avançando a pouco
mais de trinta milhas por hora afogou qualquer resposta que ela tivesse podido dar.
Robert pensou que não tinham passado nenhuma semana e ele já estava estragando tudo. Tinha
desejado tanto! Não só uma esposa de nome, a não ser uma família de fato. Alguém que escolhesse a ele.
Tinha sido um sonho estúpido. Naquele momento concreto, ele tampouco teria escolhido a si mesmo.
Aspirou uma vez mais do cigarro e olhou como se avivava a brasa laranja.
E então sentiu o braço dela rodeando-o por trás. Minnie não disse nada, apenas se agarrou a ele e o
estreitou com força. Abraçou-o até que ficou claro que não pensava soltá-lo por muito mal-humorado que
estivesse. Ao Robert a respiração raspou os pulmões, e essa vez não foi pela fumaça.
– Oh, Minnie! – ouviu-se dizer. – O que vou fazer?
– Tudo o que possa. Quando é o julgamento?
Robert negou com a cabeça.
– Não sei.
– É um duque. Tem que haver algo que possa fazer – ela fez uma pausa. – Eu não sei quase nada de
temas legais, mas não se podem invalidar os julgamentos?
– Este está destinado a envergonhar a mim – respondeu ele. – Acredito que é por vingança.
Seu rosto adquiriu uma expressão sombria.
– Há algo estranho em Leicester. Eu comecei a investigá-lo porque descobri o que tinha feito meu pai
com as Botas Graydon. Esses processos por rebelião criminal sempre se produziam quando se
desgastavam as relações entre os operários e os donos das fábricas. Davam-se por ressentimento, não
por uma aplicação da lei como é devido.
– Pois então será mais fácil invalidá-los – comentou Minnie.
– Não é tão simples – Robert golpeou o cigarro contra o marco do guichê. – Sebastian dizia que
chegaram uns quantos jornalistas de Londres para cobrir o assunto. Informaram que um homem de minha
casa cometeu um delito. Stevens sem dúvida pensa que conseguirá uma condenação facilmente, que
estando fora do país, eu não poderei responder. Acredita que, quando eu voltar, o dano já aparecerá. Eu
ficarei morto de vergonha e Oliver, um convidado de minha casa e reconhecido como meu amigo, será
tachado de criminoso.
– Mas isso não ocorrerá – retrucou ela.
Ele guardou silêncio um momento.
– Eu poderia pressionar para que abandonassem o caso.
Minnie o abraçou com mais força.
– Mas não poderia parar os falatórios que seguiriam se eu anulasse a investigação. Meu irmão
trabalhou muito duro para conseguir uma posição de respeito. Está construindo uma reputação de homem
inteligente e justo. Se invalidar a investigação, embora ganhássemos com a base de que os santinhos nem
sequer eram sediciosos, a ideia de que ele tinha escrito esses pensamentos tão radicais sob um nome
falso, destruiria tudo pelo qual trabalhou. Sim, eu poderia parar o julgamento legal, mas meu irmão não
só necessita um veredicto favorável; necessita que o exonerem publicamente de todas as acusações.
– E você te encarregará disso.
Ela o disse com tanta segurança, com tanta ternura, que Robert quase acreditou por um momento.
– Farei o que seja preciso – lhe quebrou a voz. – Meu irmão me disse uma vez que a família era
questão de escolha. Se lhe desse agora as costas, que classe de irmão seria para ele?
Soltou o cigarro, que chocou com o trem e desapareceu ao tomar uma curva antes que Robert o visse
chegar ao chão. O bosque se afastava já na distância. Nesse momento, o trem passava por diante de
pastos cercados.
Ele contou três cercas antes de voltar a falar.
– Meu pai estuprou a mãe dele.
Minnie aspirou ar com força.
– Esse é meu parentesco com ele. Porque uma mulher que não queria se viu forçada a fazer a vontade
de meu pai. E minha família era tão poderosa que não se fez justiça.
– Não foi você.
– Foi o Duque de Clermont. Eu levo seu nome e sua cara – Robert apertou os punhos. – Sua
responsabilidade. Suponho que, de certo modo, foi o cúmulo do egoísmo por minha parte reclamá-lo
como irmão. Mas não posso deixá-lo agora. Se a família for questão de escolha, eu escolherei a ele. E o
escolherei uma e outra vez até que…
Aquele pensamento foi como um peso que lhe esmagasse o peito. Esteve a ponto de cambalear-se. E
cambaleou quando o trem de novo trocou de direção. Mas Minnie apoiou-o em seu ombro, segurando-o e,
a seguir, o levou até um dos bancos estofados.
– Escolherá a ele até o quê? – perguntou.
– Até que as estrelas caiam do céu – respondeu Robert. – Porque ele me escolheu primeiro.
Era terrível admitir aquela vulnerabilidade. Sentia-se como uma tartaruga desprovida de sua
carapaça e à qual estavam preparando para fazer sopa com ela.
Mas Minnie não mostrou nenhuma surpresa. Situou-se diante dele com o vestido caindo ao redor dos
joelhos de Robert. Repassou suas sobrancelhas com os dedos e pressionou as têmporas com eles antes de
voltar a passá-los ao longo das rugas da testa. A sensação era… maravilhosa. Como se ela pudesse tirar
assim as tensões de seus traços.
– Minhas tias se fazem isto mutuamente quando as coisas não vão bem.
Robert lhe afastou as mãos.
– Eu não necessito que me reconforte.
Ele não merecia isso.
Mas antes que pudesse levantar-se e voltar-se, Minnie lhe agarrou as mãos. Seu apertão não era
firme, mas sim seguro.
– Se a família for questão de escolha – murmurou com suavidade. – Eu escolhi a ti.
Robert respirou fundo.
– E te escolherei uma e outra vez – declarou ela.
Ele ergueu a cabeça. Os olhos dela eram grandes, cinzas e cândidos. E dizia palavras que ele tinha
ansiado ouvir durante anos. Ficou de pé, abraçou-a pelos quadris e a beijou na boca. O beijo não teve
nada de premeditado nem de calculado. Simplesmente ela estava dolorosamente presente.
– Minnie – murmurou contra seus lábios. – Minnie – repetiu.
Essa noite seria a quinta noite de seu matrimônio. Havia-a possuído com ela rindo. Havia-a possuído
gemendo por ele. Nunca a havia possuído como se sentia naquele momento: sombrio e duvidoso.
Essa vez não pediu nem lhe sussurrou o que queria provar. Não a preparou com beijos. Empurrou-a
contra a parede do vagão e, antes que ela tivesse oportunidade de debater-se ou de gritar, agarrou-lhe as
saias e subiu as anáguas e a crinolina. Apenas tinha que liberar sua ereção. Uma investida, um empurrão
dentro dela e seria tão mal como seu pai, possuiria a uma mulher só porque estava ali e porque ele queria
senti-la. Uma investida e se castigaria ainda mais a si mesmo.
Ela tinha a cabeça baixa, inclinada ante ele. Ele era muito mais alto. Não havia ninguém mais ali e ela
não poderia pedir ajuda. Provavelmente lhe tinha dado um susto de morte.
Deixou cair as saias e se afastou.
– Sinto-o – disse. – Estou com um humor dos cães. Será melhor que te afaste enquanto pode.
Minnie ergueu a vista para ele. Seus olhos eram de cor cinza pálida e totalmente adoráveis. Mas ela
não moveu nem um músculo.
As sombras das árvores que passava o trem entremeavam sobre eles, pintando seus rostos com uma
paleta móvel de luz e escuridão. O corpo dele se estremeceu de desejo.
– Digo-o a sério, Minnie – murmurou com voz baixa. – Te afaste. Se pudesse ver o que penso agora,
levaria-te um bom susto. Sabe o que poderia te fazer?
– Não – a voz dela soava quase plácida. – Me diga.
– Empurrei-te contra a parede – ele pôs as mãos a ambos os lados da cabeça dela. – Poderia te haver
forçado.
– Poderia me haver forçado – repetiu ela, movendo a cabeça. – A que poderia me haver forçado?
Ele estreitou os olhos.
– Já sabe ao que me refiro.
– Temo-me que não tenho nem ideia.
Robert adiantou um passo e ela ficou presa contra a parede.
– Me vais obrigar a dizê-lo?
– Por favor.
– Poderia introduzir meu pênis dentro de ti – roçou a virilha dela com a sua. – Sem preâmbulos. Sem
nada.
Minnie abriu muito os olhos. Ergueu os cantos dos lábios.
– Oh, não! – exclamou. Em sua bochecha se formou uma covinha. – Seu pênis não. Qualquer coisa,
menos seu pênis.
Robert sorriu a despeito de seu pesar.
– Maldita seja, Minnie! Não pode levar a sério meu mau humor? Ela não fez conta.
– E eu que me sentia tão… tão vazia! Se me penetrasse, isso poderia ser uma sensação curiosa –
enquanto falava, desabotoou as calças dele. Tocou seu pênis, acariciando sua ereção. – Mas não há
nenhum medo disso – disse. – É tão grande que não acredito que caiba.
Apertou a ponta do pênis e ele soltou um coice seguido de uma risada.
– Por Deus, Minnie! Não posso pensar com claridade.
– Menos mal que você controla seus impulsos – murmurou ela, – porque eu estou empapada e seria
terrivelmente embaraçoso que agora fosse a…
Ele a ergueu contra a parede, colocou as pernas dela ao redor de seu corpo e se deslizou em seu
interior. Estava molhada, muito molhada e quente. O prazer de seu corpo, apertado ao redor de seu
membro, foi tão intenso que quase lhe doeu. O balanço rítmico do trem o embalava dentro dela.
Apoiou-a na parede com os músculos tensos.
– Isso, Robert – ela o rodeou com seus braços – Continue assim.
Ele se moveu em seu interior e investiu até que sua testa se encheu de suor. Deixou-se levar pela
luxúria, permitiu que seu instinto se apoderasse dele até que não ficou nada exceto ela, ela rodeando-o,
os peitos dela em suas mãos e o pulso dela pulsando em uníssono com as investidas dele.
Minnie chegou ao orgasmo assim, esticando-se em torno do pênis dele com ondas de calor vibrante. E
ele seguiu investindo, forte ao princípio e depois mais forte ainda, até que chegou também seu clímax. No
momento em que derramou sua semente, imaginou aos dois unidos por muito mais que o roce dos dentes
dele na mandíbula dela, mais que seus dedos entrelaçados e do que o modo em que as pernas dela
abraçavam ainda seu corpo. Era mais que o mero feito físico de enterrar-se em seu corpo.
Naquele momento, pela primeira vez em sua vida, Robert acreditou que havia alguém para ele.
Alguém que estaria ao seu lado nos momentos mais difíceis. Mais que uma amante, uma amiga e uma
aliada. Uma esposa nos bons e nos maus momentos, na riqueza e na pobreza, na saúde e na enfermidade,
na risada e nas lágrimas.
Incorporou-se, respirando pesadamente, emocionado pelo presente que lhe tinha sido dado. Acariciou
a bochecha dela, admirado.
– Minha Minerva – sussurrou.
Tinha a sensação de estar descobrindo-a de novo. Como se, entre todo o desassossego do dia,
tivessem-lhe concedido por fim o desejo de seu coração. E agora que a tinha, não queria deixá-la partir.
Ela apoiou a cabeça em seu ombro.
– Assim está melhor – disse.
Aquilo que Robert sentia entre eles era tão novo! Novo e desconhecido, e tão bem-vindo que quase
temia admiti-lo por medo de que desaparecesse. Mas se não dizia nada…
– Em alguma parte há alguém dizendo que cometi um terrível engano ao me casar contigo – comentou.
Minnie ergueu a cabeça do ombro dele e o olhou com olhos muito abertos.
– Equivocam-se – ele a rodeou com seus braços. – Se equivocam todos, quaisquer pessoas que
sejam. Você é a melhor escolha que já fiz.
Ela o olhou com uma luz em seus olhos cinzas, uma luz que fazia com que Robert se sentisse muito,
muito grande. Com ela a seu lado, via-se capaz de vencer a um exército inteiro. Tudo o que pudesse ir
mal acabaria arrumando-se.
Era quase muito para acreditá-lo.
Por isso, em vez de dizer-lhe, Robert baixou a cabeça e voltou a beijá-la.


QUANDO Robert CHEGOU A LEICESTER, tinha viajado quase todo o dia. Sua noite de núpcias, a
lembrança atemporal de despertar ao lado de Minnie na manhã seguinte, seguido de dias de lhe fazer
amor languidamente… Todas essas coisas tinham desaparecido de sua mente com o balanço rítmico dos
trens e a vibração do barco a vapor.
Quando o trem chegou por fim a Leicester, já tarde, não se permitiu tempo para comer nem para
lavar-se. Tinha escurecido e a lua pendurava alta no céu. Introduziu Minnie em uma carruagem e se
dirigiu a pé ao centro da cidade.
A noite era escura e ventosa, mas não muito fria. O telegrama de
Sebastian lhe havia dito onde estava detido Oliver, no próprio Conselho, justo debaixo da biblioteca
onde Robert tinha conhecido a sua esposa, a poucos passos da sala do prefeito onde tinham sido
apresentados.
E na verdade, quando chegou ao edifício já em plena noite, viu-o igual à noite em que se conheceram.
No Grande Salão havia algum acontecimento. Bateu na porta lateral e esperou. Voltou a chamar mais
forte, até que o homem que fazia as vezes de carcereiro lhe abriu a porta.
– Não há visitas – franziu o cenho. – Já é tarde.
Robert lhe pôs uma moeda na mão.
– Não sou um visitante.
O homem nem sequer piscou.
– Por aqui, senhor – disse.
Paris e os croissants pareciam muito longínquos. A lembrança pertencia a outro homem, um homem
felizmente casado e timidamente encantado com o futuro que se desvelava lentamente diante ele. No
caminho até as celas, toda essa felicidade se viu suplantada por uma sensação de vazio na boca do
estômago. O carcereiro levava uma lanterna que mostrava paredes sujas e portas de madeira. Abriu as
portas principais e subiu até uma das celas. Ouviu-se ruído de madeira raspando madeira.
Robert apontou a luz para diante. O homem não tinha aberto a porta da cela, mas tinha movido um
painel que cobria uma fresta fixa à altura do olho, uma ranhura de umas polegadas de altura e em torno de
meio pé de longitude.
O carcereiro retrocedeu uns passos e fez gestos a Robert para que se adiantasse.
Robert se aproximou da ranhura e levantou o lampião. A luz não chegava a iluminar o interior da cela.
– Oliver? – perguntou em voz baixa.
– Robert? – ouviu-se um murmúrio de roupa. – É muita luz. Não vejo nada.
A luz do lampião era bastante anêmica, não chegava nem a mostrar as dimensões da cela em que
estava seu irmão. Para que Oliver a achasse muito brilhante, tinha que ter passado horas sentado na
escuridão. Todo o tempo que Robert tinha passado em seu vagão de primeira classe, seu irmão tinha
estado ali. Estremeceu-se.
– Tem mantas? – perguntou. – Comida?
– O que faz aqui? – perguntou por sua vez Oliver com uma voz estranhamente corajosa. – Está de lua
de mel. Teria que estar em Paris.
Isto é culpa minha – Robert baixou o lampião, baixou a boca à ranhura e baixou mais a voz. – Eu
escrevi os malditos santinhos. Nunca quis te envolver nisto. É culpa minha que esteja nesta cela
pestilenta – aquilo não era um modo de falar. Aproximou-se o suficiente para captar o fedor que havia no
interior da cela.
– Bom, eu supunha que foi você o autor – repôs Oliver depois de uma curta pausa. – É seu estilo,
você já me entende. Fascinava-me as ler. Por que não me disse isso?
– Sabia que alguém estava conseguindo condenações falsas por rebelião criminal – Robert soprou;
seu fôlego saía branco no frio da cela. – Queria descobrir quem era. Sou a única pessoa que não podiam
acusar. Se dizia isso a ti, podiam te considerar cúmplice.
– Ah! Muito preparado.
– Obviamente, não o suficiente. Surpreende-me ter chegado a tempo. Imaginava que lhe fariam um
julgamento rápido e lhe condenariam.
– Parece ser que não – suspirou Oliver. – Estão esperando que chegue uma testemunha. Recorda a
lorde Green, de nossos dias em Cambridge?
– Lorde Green? Sim, lembro-me dele. Mas que demônios vai dizer ele? Viu-o em algum lugar?
– Não, não o vi desde que fizemos aquela aposta por uma partida de xadrez faz três anos. Mas o
chamaram para declarar e não tenho nem ideia de que diabos vai dizer.
De novo o xadrez. Não podia ser uma coincidência. Mas quanto ao que isso significava… Robert
moveu a cabeça.
– Pois eu também sou uma testemunha. Eu gostaria de ver um jurado votar sua condenação quando o
Duque de Clermont declare que o autor foi ele e que você não sabia nada.
Aproximou a mão à ranhura. Mas em vez de poder agarrar a mão de seu irmão ou de lhe tocar o
ombro, seus dedos encontraram um ralo de metal frio, com os barrotes tão juntos que entre eles apenas
cabia o dedo mindinho. Apenas pôde roçar as gemas dos dedos de Oliver.
– Vamos, vamos – disse o carcereiro. – Não posso permitir que passem navalhas e não as possa ver.
Robert deixou cair a mão com frustração.
– Voltarei pela manhã – prometeu. – Então arrumaremos tudo.
Pedirei uma garrafa de champanha para celebrar sua liberdade.
– Pede melhor um galão de azeite de carvão.
Azeite de carvão?
– Nesta cela há piolhos.
Robert fez uma careta. Uma cela escura, fedorenta, infestada de piolhos… Tinha feito aquilo a seu
irmão. Recriminou-se interiormente por isso.
Mas se Oliver podia mostrar-se corajoso…
– Pois menos mal que não pude te dar uma palmada no ombro – disse.
– Arre!
Robert se voltou para partir.
– Dou-te minha palavra de que não permitirei que lhe condenem.
Mas quando se voltou, deu-se conta de que havia uma segunda figura na escuridão. Alguém mais
baixo que Robert e mais largo. Na escuridão só pôde captar uma insinuação de força e de músculos
grandes.
– Não – disse o homem, olhando Robert. – Não o fará. Eu farei que cumpra sua palavra, Excelência.
A figura se adiantou um passo mais e a luz do farol iluminou seu rosto.
– Dou minha palavra, senhor Marshall – repetiu Robert.
O pai do Oliver o olhou. Apenas o olhou, mas conseguiu transmitir uma ameaça silenciosa sem dizer
nenhuma palavra.
– Pai – disse Oliver atrás deles. – Deixa de jogar faíscas pelos olhos. Está me envergonhando.
– Humm – o senhor Marshall adiantou um passo. – viemos assim que nos inteiramos. Sua mãe está
procurando hospedagem. Chegará em uns minutos, assim que consiga abrir caminho com a esposa do
carcereiro.
Robert decidiu que tinha chegado o momento de desaparecer. Tinha que ir-se antes que aparecesse o
resto da família de Oliver.
– Nos veremos amanhã – prometeu. E saiu dali para não atormentar à senhora Marshall mais do que já
o tinha feito.
Na praça, rua abaixo, havia uma parada de carruagens de aluguel.
Dirigia-se ali quando ouviu passos suaves atrás dele.
– Espere, Excelência – o chamou uma mulher.
Robert se voltou surpreso. Uma figura envolta em uma capa correu para ele e afastou o capuz.
– Senhorita Charingford – disse Robert, surpreso.
– Me escute – lhe pediu a mulher com urgência. – E me escute bem. Stevens colocou o senhor
Marshall no cárcere para envergonhar a você.
Pois conseguiu. Isso e mais.
– Acredita que você estará em Paris durante o julgamento. Que fará com que seu administrador…
– Ele não é meu administrador.
– O que seja. Stevens acredita que pode provar que estava envolvido nisso, que pode insinuar que
trabalhava por ordem dele.
Robert a olhou.
– Não pode provar isso – respondeu. – Não é verdade. E eu sei.
Não pode prová-lo a menos que tenha subornado a alguém para que declare.
A senhorita Charingford moveu a cabeça.
– Pode provar que o senhor Marshall estava envolvido – disse. – Ao menos, vai tentar.
– Não pode provar semelhante coisa – repetiu Robert.
A senhorita Charingford piscou.
– Sei – respondeu, baixando a voz. – Mas você tem que saber que seu plano é prová-lo. Há uma frase
em um dos panfletos, uma entrevista de um livro sobre estratégias de xadrez. É bem sabido que a você
não interessa nada esse jogo. Mas vai vir uma testemunha que declarará que ele falou dessas estratégias
com o senhor Marshall e que lhe emprestou esse livro em questão.
– Oh! – Robert respirou fundo, recordando o aborrecimento de Minnie. – Sei a qual estratégia você se
refere. E também sei como eu a aprendi.
Então sentiu medo. Recordava como se zangou Minnie com ele por ter usado suas palavras, e o quão
segura que estava de que essa frase faria com que a acusassem. Robert sentiu náuseas.
– Precisamente – repôs a senhorita Charingford. – Minnie me enviou uma carta me contando isso
tudo. Tinha que dizer-lhe a você. Stevens não sabe nada de seu passado, apenas o nome – moveu a
cabeça. – Acredita que quão único esconde ela é seu verdadeiro nome. Não lhe ocorreu perguntar o que
podia ter feito.
– Como sabe o que planejaram?
A jovem guardou silêncio um momento. Depois suspirou.
– Disse-me isso meu pai. Ele é o magistrado que assinou a ordem para a detenção do senhor
Marshall. Não teve outra opção, entende?
– Não a teve? – perguntou Robert com maus modos.
– Não – repôs ela. – Stevens gosta de acabar com as greves. É o melhor. Mas ajuda só aos que o
ajudam. E desde que eu o rechacei, insistiu em que meu pai tem que fazer mais por ele.
– Compreendo– murmurou Robert. E era certo. Independentemente do que acontecesse com Oliver,
Stevens não seguiria servindo na tropa. – Acredita que seu pai falaria comigo se fosse vê-lo?
Ela assentiu com a cabeça e se voltou para partir.
– Espere, senhorita Charingford. Há mais uma coisa.
A jovem não tinha ido a seu casamento. Robert recordava as poucas horas de trem de Leicester a
Londres em que Minnie tinha estado triste pela ausência de sua amiga.
Olhou-a aos olhos.
– Minnie sente a sua falta.
A senhorita Charingford se encolheu como se percebesse acusação em suas palavras.
– Eu também sinto a dela – sussurrou. – Não, eu não. Não sei. Sigo zangada com ela. Mas isso não
significa que queira lhe fazer mal – moveu a cabeça. – Tenho que ir antes que alguém se dê conta de que
não estou em casa. Mas… tinha que dizer a alguém e ainda não posso falar com ela. Por favor, não lhe
diga que me viu. Ainda não estou preparada para vê-la.
Depois disso, partiu.
Pensavam apresentar provas de que Oliver estava envolvido. Robert pôs-se a andar de novo, mas essa
vez passou ao longo da praça onde dormitava o chofer de um cabriolé solitário com as mãos nas rédeas.
Podia fazer o possível por invalidar a investigação e deixar a seu irmão sob uma nuvem de suspeita.
Ou podia falar. Quando falar só significava atrair o escândalo sobre ele, não o tinha duvidado. Mas agora
teria que explicar que sua Excelência, a duquesa de Clermont, citava de cor uma frase de um obscuro
volume de estratégias de xadrez.
Tinha prometido a Minnie que protegeria seus segredos. Tinha prometido a seu irmão que o veria em
liberdade e livre de acusações. Não podia fazer as duas coisas.
Algum diabo interior lhe fez imaginar como reagiria Minnie ao lhe ouvir confessar a verdade. Aquilo
era quão pior podia imaginar-se fazendo a ela: levá-la a um tribunal para que visse como alguém que lhe
importava a traía sem vacilar. Não podia lhe fazer isso; simplesmente, não podia.
Mas Oliver… Oliver era seu irmão. O homem que o tinha aceito sem duvidar, apesar de que o pai de
Robert tivesse causado muitos danos a sua família. Era seu irmão. Seu irmão, a única família que tinha
tido em anos.
Sua mente reproduziu uma e outra vez a imagem da Minnie na sala do tribunal empalidecendo
enquanto ele a traía. Quanto pior ficasse ela, mais acreditaria o público que dizia a verdade. Robert se
sentia doente apenas em pensá-lo. Isso destruiria seu matrimônio. Ela o deixaria e ele teria que aceitar
sem protestar.
Porque Minnie teria razão. Ele teria ganho.
Caminhou muito tempo pelas ruas até que lhe doeram os pés e lhe congelaram as mãos, até que a
desordem em sua cabeça já não lhe deixou pensar. Caminhou e tomou uma decisão.
CAPÍTULO 24

QUANDO RETORNOU POR FIM A SUA CASA, estava seguro de que Minnie veria o que tinha
intenção de fazer, tal era a facilidade como ela sempre tinha lido seus pensamentos. Mas ela o esperava
com chá preparado e um jantar tardio, e o que quer que visse em sua expressão provavelmente o atribuiu
a sua tristeza pela situação de seu irmão.
– Não acredito que haja uma condenação – disse ele, com a xícara de chá na mão.
– Isso é uma boa notícia.
Robert moveu uma mão no ar.
– Não é a pior notícia. Não há provas suficientes para condená-lo, mas… pode ser que tampouco haja
muito para defendê-lo. Ao menos sem que eu explique minha participação.
– E o vais fazer?
Robert a olhou nos olhos.
– Isto já não tem a ver somente comigo.
– E com quem mais tem a ver?
– Com meu pai, para começar – ele fechou os olhos, incapaz de olhá-la quando dizia a primeira
mentira. – Se explicar tudo, tenho que revelar publicamente meu parentesco com Oliver. A verdade
humilharia a minha mãe, pois ele foi concebido poucos meses depois do casamento de meus pais, e
humilharia também aos pais de Oliver. Quanto a ele… bom, não seria ruim que se soubesse que é filho de
um duque.
– Entendo – disse ela com calma.
– É pior do que crê. Verá, já não se trata somente do julgamento em si, mas sim da narração pública
do julgamento. Se me limitasse a asseverar que é meu irmão, sempre haveria gente que pensaria que só o
havia dito para salvá-lo porque somos amigos. Não ficaria exonerado. Mas imagina, é uma suposição,
que anunciasse a verdade de seu nascimento com minha mãe na sala. Como crê que ela reagiria?
– Bom, a duquesa viúva é tão forte como uma pederneira. Mas também igualmente quebradiça.
– Provavelmente ficaria branca. Talvez se levantasse e saísse dali. E essa reação, mais que nenhuma
outra coisas, daria um selo de verdade a minha afirmação. Poderia empurrá-la a reagir assim – olhou a
Minnie. – Seria uma humilhação para ela, mas isso poderia salvar a meu irmão.
– Possivelmente se ela soubesse o que vais fazer…
– Se souber o que vai se passar, pode esforçar-se por não mostrar reação. Se soubesse o que ia
ocorrer, provavelmente nem sequer assistiria – Robert olhou a sua esposa nos olhos. – Estou seguro de
que posso apresentar um caso convincente para Oliver. Mas para fazê-lo, possivelmente tenha que
sacrificar para sempre qualquer paz que pudesse ter com minha mãe. Me diga, Minnie. Vale a pena?
Ela guardou silêncio por um longo momento, olhando-o nos olhos. Ele enterrou a verdade tão fundo
de modo que ela não pudesse ouvir o que ele não havia dito.
– E você faria isso? – perguntou ela ao fim. – Renunciar a toda esperança com sua mãe pelo bem de
seu irmão?
– Meu pai… – a voz de Robert saiu rouca. Fechou os olhos. Era sua única oportunidade de explicar a
ela, embora Minnie não soubesse o que estava ouvindo.
– Não – disse ela. – Não é necessário que responda. Na balança estamos sopesando a humilhação de
sua mãe contra o futuro de seu irmão. Seu irmão deve vir primeiro.
Abraçou-o. A Robert queimava seu contato. Não o merecia. Não merecia a ela. Afastou-a, ficou de pé
e se colocou uns passos mais à frente.
– É mais que isso – explicou com suavidade. – Não é somente que meu pai forçasse a sua mãe. Não é
apenas que tentasse ignorá-la, que se negasse a reconhecer ao menino e que apenas lhe proporcionasse
um apoio mínimo. Não é somente que meus atos o tenham levado a uma cela fedorenta – apertou os
punhos. – Tentei escolher tudo o que meu pai não era. É por isso que não posso deixar meu irmão só
nisto. Não posso me arriscar que o condenem e não ficarei sem fazer nada enquanto fique um pouco de
fôlego para salvá-lo.
Não, Robert – respondeu ela. – Claro que não o fará pôs uma mão na bochecha. – Tem muito que fazer
para perder agora sua energia com remorsos. Faça o que deva fazer.
Era difícil escapar de seus remorsos quando a olhava. E a aprovação tácita dela não fazia com que se
sentisse melhor. Em certo sentido, o nó que sentia no estômago era ainda pior.
Minnie lhe sorriu.
– O que eu posso fazer para ajudar?
Robert a olhou e quase lhe partiu o coração.
– Pode te assegurar de que minha mãe esteja na sala no dia do julgamento – disse devagar. – Sente-se
com ela e te certifique de que esteja ali enquanto eu fale.
Porque se Minnie levava a sua mãe, também iria ela.
Já não havia tempo para arrependimentos.
Embora sentisse como estes lhe cravavam a pele como lascas silenciosas quando lhe sorriu.
– Pode confiar em mim – lhe prometeu Minnie.
Tinha-o conseguido. Tinha enganado a sua esposa.

Robert VOLTOU Para A CELA DE SEU IRMÃO às dez horas da manhã seguinte. O dinheiro que tinha
dado na noite interior ao carcereiro tinha começado a dar fruto. A metade superior da porta da cela
estava aberta, embora atrás houvesse pesadas barras de ferro. A cela tinha sido limpa e a Oliver tinham
dado água para lavar-se.
A cela seguia cheirando mal, mas ao menos já não dava vontade de vomitar.
– Esta manhã falei com os advogados – anunciou Oliver corajoso. – Meus pais foram tomar o café da
manhã, mas voltarão logo.
– Então não ficarei muito – disse Robert.
Seu irmão o olhou confuso, mas ele não deu importância. Contou-lhe o que tinha descoberto a noite
anterior sobre o testemunho de lorde Green em relação a entrevista sobre o livro de estratégias de
xadrez.
Oliver se apoiou na parede da cela.
– Agora que o penso – disse, – esse é um bom argumento. Não reconheci a citação. Onde você tinha
ouvido essa frase? Não joga xadrez.
Robert respirou fundo.
Sabe quem é Minerva Lane? Ou melhor dizendo, Maximilian Lane.
Oliver o olhou surpreso e adiantou o torso.
– Maximilian Lane? Pois claro que sei quem é. Essa mulher é célebre nos anais do xadrez.
Tristemente célebre, suponho. Estudei suas partidas, sabe? Registraram-nas durante… – se interrompeu e
olhou para Robert nos olhos. – É uma brincadeira – murmurou. – Não me diga que sua Minnie é Minerva
Lane.
– Ah – Robert encolheu os ombros. – Pois sim o é.
– E essa frase a ouviu dela.
Robert assentiu.
– Stevens sabe seu verdadeiro nome, mas não descobriu sobre seu passado.
– Compreendo – Oliver deu dois passos. Chegou à outra parede da cela e retornou. – É obvio, ela
está ocultando sua identidade. Ficaria desonrada se, se soubesse.
Não disse nada. Não perguntou a Robert se revelaria o passado de sua esposa. Não lhe suplicou que
o fizesse. Oliver jamais pediria algo assim. Mas apertou as barras da cela com as mãos até que seus
nódulos ficaram brancos. – Que desastre!
– Nem tanto – Robert se aproximou mais. – Entre você e eu… eu tenho tudo. O título, a fortuna…
Tento compensar essa diferença o melhor possível. O pouco que posso fazer é procurar que tenha de
volta a liberdade.
Oliver inclinou a cabeça de lado e o olhou. Enrugou o nariz. Parecia confuso.
– Isso é o que crê? Pensa que você é o que levou a melhor parte dos dois e que eu fiquei sem nada?
Na opinião de Robert, aquilo era um fato. Tinha dado a seu irmão tanto como este podia aceitar, mas
Oliver seguia lutando por assegurar sua posição na sociedade.
– Deixemos o tema – disse.
– Não, não penso deixar o tema. De verdade crê que você nasceu com mais opções que eu?
– Eu sei que sim.
Oliver se afastou; tinha os ombros rígidos.
– Pensa-o bem – disse. – Pensa-o bem. Eu não trocaria o que tenho, cela e piolhos incluídos, por toda
sua fortuna.
E o que você tem que seja tão valioso?
– Tenho uma família que me quer.
Essas palavras golpearam Robert com força. Acabava de começar a ser feliz e já tinha que renunciar
a isso. Teve a sensação de que não podia respirar. Foi como se acabasse de receber um murro no
estômago, um murro tão forte que lhe tinha bloqueado os pulmões.
Olhou para seu irmão, que estava diante ele de perfil. A pouca luz que havia se refletia em seus
óculos e iluminava seu cabelo brilhante.
Atrás daquelas frias barras de ferro não viu somente Oliver, mas também a todos os que o queriam.
Ao brusco e ameaçador senhor Marshall, à majestosa senhora Marshall, as três irmãs, uma tia, dois
sobrinhos… e refletido na luz de suas lentes, um irmão.
Um irmão que tinha encontrado aos doze anos. E ele, Oliver, tinha o aceito com uma alegria corajosa
que tinha surpreendido Robert. Seu irmão lhe tinha ensinado tudo o que sabia de família.
– Sim – disse Robert com voz rouca. – Pois acontece que eu também tenho uma família que me quer.
E não penso abandoná-la.
Ergueu a mão até as barras de ferro.
– Tenho piolhos – lhe recordou Oliver.
– Te cale e pegue minha mão.
Estreitaram-se as mãos com dificuldade, com uma barra de ferro entre as Palmas, mas Robert não
teria trocado aquilo por nada no mundo.
– Me deixe fazer isto por ti – disse. – Porque quando nos conhecemos em Eton, poderia ter me atirado
ao chão e me chutado as costelas, mas em vez disso, escolheu ser meu irmão.
– E também sua última fonte de contágio – retrucou Oliver.
Robert se pôs-se a rir.
– Tenho dois galões de azeite de carvão preparados para ti. Posso jogar um pouco nos dedos, se for
necessário.
Alguém pigarreou a suas costas. Robert se voltou. O pouco regozijo que tinha encontrado com seu
irmão desapareceu no ato.
Não sabia quanto tempo levava ali a mulher. Tinha-a visto uma vez antes, mais de uma década atrás,
mas essa única vez tinha bastado para que ficasse impressa de um modo indelével em sua memória.
A senhora Marshall era muito mais baixa que seu filho. Seu cabelo castanho tinha mais grisalhos que
a outra vez que a viu, mas também lhe dava um ar ainda mais majestoso. Olharam-se como duas gazelas
que se farejassem através de um prado, observando e observando com a esperança de que não as
caçassem.
– Sinto-o – disse Robert. – Já estava de saída.
Passou diante dela, deixando todo o espaço que pôde entre os dois.
Saiu pela porta que dava ao pátio. Ali não entrava o sol da tarde e fazia frio. Robert colocou as luvas
e baixou o chapéu sobre as orelhas.
Dispunha-se a partir quando ouviu passos e saiu a senhora Marshall. Seus olhares se encontraram de
novo através do pátio; Robert baixou o seu...
A mulher cruzou o chão de pedra até ele.
– Senhora Marshall – ele quase não podia respirar. – Sinto muito.
– Excelência – ela o olhou um instante e em seguida afastou a vista.
– Nada de títulos – ele se sentou em um banco. Estava molhado pela chuva da noite anterior e sentiu
que a umidade lhe molhava a calça, mas não queria estar muito mais alto que ela. Já era bastante mal que
a tivesse encontrado e houvesse lhe trazido para a mente más lembranças. – Você precisamente não
deveria me chamar Excelência.
Ela o olhou. Robert observou o chão de pedra entre seus pés.
– Depois do que os duques de Clermont fizeram a você e aos seus – disse com voz fraca, – não
merecemos seu respeito. Apenas posso dizer que o sinto. Sinto muito que Oliver…
– Você não tem culpa.
– Sim tenho. Meu irmão está esperando ser julgado por um ato que eu cometi, pela única razão de que
não podem me processar. Se isso não for minha culpa, não sei o que é – olhou a parede do pátio. – Mas
lhe prometo que não permitirei que lhe aconteça nada.
Ela permaneceu diante dele uns minutos mais. Robert manteve a cabeça baixa, consciente de cada
respiração dela.
E então, muito lentamente, ela se sentou com cuidado no banco a seu lado. A seis polegadas de
distância, mas a seu lado. – Você foi um bom amigo para meu filho.
– Fui seu irmão – ele seguia sem olhá-la.
– Quando vinha para casa de férias, falava muito de você. De Sebastian Malheur e de você, mas
sobretudo de você. Não é preciso dizer que a mim e ao senhor Marshall nos alarmava isso. Mas ele não
falava de um menino que parecia uma versão mais jovem de seu pai. Você parecia considerado e
tranquilo, duas coisas que o Duque de Clermont nunca pôde ser. Sempre pensei que eu gostaria de ter
estado mais preparada quando nos vimos faz anos. Pelas palavras de Oliver, eu tinha imaginado a um
menino muito diferente. E quando entrei na sala e o vi me olhando… com os olhos, o nariz e a boca
dele… não sei o que me ocorreu. Não voltei a ser eu mesma até que estive a meia milha dali.
– Não tem que explicar nada. Sei o que fez meu pai. Se eu fosse você, tampouco poderia suportar.
– Oliver me disse depois que acreditava que eu tinha ferido seus sentimentos.
Robert negou com a cabeça.
– Meus sentimentos não contam nisso. A atacaram. Não é sua responsabilidade estender o ramo de
oliveira, a não ser a mim me afastar de seu caminho. Lhe dar o pouco conforto que lhe possa oferecer.
– Talvez – repôs ela. – Mas eu não posso evitar pensar que sim é também minha responsabilidade.
O céu estava azul, sem uma só nuvem. Parecia impossível naquela época do ano e, entretanto, assim
era. Robert jogou a cabeça para e fechou os olhos.
– Contamos a verdade a Oliver sobre seu nascimento quando era muito jovem. Ou, melhor dizendo,
Hugo a contou. Não tudo, entenda-o, a não ser a versão infantil. Havia um homem mal. Atacou-me.
Algumas pessoas poderiam lhe dizer que seu pai era outro homem, mas nós o queríamos e a verdade era
essa. Eu não queria dizer nada, mas Hugo me convenceu – a mulher suspirou.
Robert tentou imaginar como seria ter uns pais que parassem para pensar no que dizer a seus filhos,
uns pais a quem importasse esses detalhes. Que assegurassem a seu filho que o queriam.
“Eu quero ser essa classe de pai”. Apertou os punhos.
– Hugo disse com muita naturalidade e Oliver aceitou bem. Até que se inteirou da existência de você.
Então teve pesadelos.
– Comigo?
– Sim. Uma noite despertou chorando e não podia parar. Quando lhe perguntei o que lhe ocorria,
disse-me que o homem mal tinha a seu irmão e tínhamos que ir por ele.
Robert sentiu um nó na garganta.
– Ah – murmurou.
– Pareceu-me algo muito terno, e essa fase passou. Mas… – ela o olhou. – Faz quase trinta anos desde
que vi seu pai. O que me fez durou dez minutos e ainda o recordo.
Fez uma pausa. Estendeu a mão e tocou Robert no joelho.
Ele a olhou nos olhos. Dessa vez ela não se encolheu nem se afastou.
– Você – continuou ela– cresceu com ele. Isso deve ter sido horrível.
Por um segundo, Robert viu seu pai inclinando-se sobre ele. Naquela época, seu pai era muito mais
alto, muito maior.
“Que classe de filho é você?”, perguntava o duque. Elevava as mãos no ar com exasperação. “Com
qualquer outro menino, tudo iria muito melhor. Nem sua mãe te quer o bastante para ficar”.
– Oh! – disse Robert. – Não foi tão mau. A maior parte do tempo, meu pai nem sequer recordava
minha presença.
Possivelmente a senhora Marshall captou uma leve vacilação em sua voz, porque se aproximou mais
e o rodeou com seu braço.
– Pobrezinho! – disse.


A VISITA DESSA TARDE de Robert não prometia ser tão esclarecedora como a da manhã.
– Não sei o que pensar de você, Excelência.
Robert estava de pé no vestíbulo da casa do senhor Charingford, uma casa que parecia bastante
confortável, decorada com papeis de parede em tons creme e azul e com um vestíbulo luminoso e alegre.
Mas o senhor Charingford, situado frente a ele, não se mostrava nem alegre nem corajoso. Tinha o cabelo
cinza e espaçado e cruzou de braços.
– Concordei com isto porque você mostrou muito sentido comum em uma ocasião concreta.
– Em uma ocasião? – Robert arqueou uma sobrancelha. – Quando foi isso?
– Quando se casou com a senhorita… Suponho que já não posso chamá-la assim, verdade? –
Charingford ergueu a cabeça e quase sorriu. – Quando se casou com sua esposa. Tentei convencer a meu
filho de que se fixasse nela, mas não foi capaz de ver além dessa cicatriz. Sua amizade com minha filha…
passamos quatro meses juntos na Cornwall em uma viagem, e acredito que a conheço melhor do que
ninguém daqui exceto a suas tias. Foi uma boa escolha.
Robert estava de acordo. Tinha sido uma boa escolha. E lhe doía pensar o que ocorreria ao dia
seguinte.
– Confio em que lhe tenha contagiado um pouco de seu sentido comum. Não sei no que estava
pensando para escrever esses santinhos. Para vir aqui e tentar convencer às pessoas como eu de que
apoiemos a reforma do voto – Charingford o olhou com o cenho franzido.
– Se sabe que eu escrevi esses santinhos, por que acusou ao senhor Marshall? – perguntou Robert.
Charingford baixou a vista.
– Havia provas suficientes para pensar que estava envolvido. E… – E Stevens o pediu – terminou
Robert.
Charingford mordeu o lábio inferior.
– Está informado disso?
– Não me fale de sentido comum – disse Robert. – Lhe pedi que me mostrasse sua fábrica e você
concordou em me mostrar isso. Vamos vê-la.
Charingford fez um gesto e um lacaio abriu a porta da rua. Quando o fez, o som apagado que procedia
da fábrica situada na calçada em frente se converteu em um rugido.
– Adiante, Excelência – disse Charingford sombrio.
Cruzaram a rua pavimentada acompanhados pelo ruído das máquinas, que resultava quase
entristecedor. As portas da fábrica tinham sido pintadas fazia pouco tempo de um verde brilhante e se
destacavam contra o tijolo manchado de carvão das paredes. Envolveu-os o ruído, uma cacofonia de
chiados e sacudidas. O senhor Charingford o guiou por uma pequena escada até chegar a uma plataforma
metálica de onde se via toda a planta. Aí se voltou para ele.
– Esta é a sala principal – gritou, esforçando-se por ser ouvido por cima do ruído das máquinas. –
Aqui é onde se tecem as meias.
Assinalou a fábrica de baixo. Uma mulher, com o cabelo grisalho recolhido em um coque descuidado,
dirigia uma máquina que enrolava novelos em umas bobinas de metal em um lateral da sala. Um punhado
de homens ia de uma forma circular a outra, movendo peças quando era necessário, substituindo bobinas
e entregando o produto a moços, que corriam com ele até uma sala adjacente. Utilizavam uma economia
de movimentos que parecia se dever mais ao cansaço que à experiência.
Cada máquina produz dois pares de meias em nove minutos – gritou Charingford. – E só se necessitam
homens para tirar os ganchos dos pontos ao final e para reajustar o cilindro que guia a forma da meia.
Olhe-os, Excelência. Não têm que tomar decisões em seu trabalho diário. Como vamos confiar em que
decidam o futuro de nosso país? O que entendem um funcionamento da indústria?
Robert inclinou a cabeça à direita e escutou por cima da animação das máquinas.
– Estão cantando – disse. – Por que cantam?
O senhor Charingford levou uma mão à orelha e escutou.
– Estão contentes de trabalhar, Excelência. Estão cantando um hino de louvor a Deus.
Robert olhava o chão da fábrica de cima. Ele somente tinha que olhar enquanto os homens abaixo
trabalhavam, machucavam-se e se cortavam. Recordou as palavras de Minnie: “Você é afortunado por
não olhar o futuro sem terror”. Robert jamais entenderia o que significava estar ali embaixo, trabalhar dia
após dia com aquele ruído incessante. Apenas sabia que não era algo tão simples como gratidão e hinos.
No transcurso de seu curto matrimônio, nunca tinha estado tão longe de Minnie como naquele
momento. Tinha-lhe mentido e ao dia seguinte ia quebrar sua promessa e ia traí-la. E, entretanto, podia
ouvi-la naquele momento por cima do estrondo das máquinas.
– Não pretendo entender o que significa ser um operário, senhor Charingford, mas sou dono de
fábricas. Herdei algumas de meu avô. E quando vejo esta planta, não vejo homens que estejam contentes
com seu trabalho.
Uma mulher do piso de baixo ergueu a vista e os olhou. Em seus olhos não havia ódio nem desprezo.
Apenas uma expressão suave nos cantos dos olhos. Um desejo.
Possivelmente tinha sido em outro tempo uma senhorita gentil que não tinha podido casar-se. Talvez
não tivesse outra opção que trabalhar até que seu cabelo embranquecesse antes do tempo e sua pele se
convertesse em couro. Mas ergueu a vista e seus lábios, como todos os outros, moviam-se cantando.
– E bem? – perguntou o senhor Charingford. – O que é que você vê?
– Vejo a Minnie – a Robert lhe quebrou a voz. – Vejo o que poderia ter sido dentro de dez anos,
quando suas tias tivessem morrido.
O senhor Charingford respirou com força.
Vejo sua filha, se desaparecesse o mercado das meias.
– Lydia não – respondeu o senhor Charingford, escandalizado. – Ela não… – mas deixou a frase pela
metade.
– Vejo o que poderia ter sido meu irmão se outro homem não se tivesse oferecido para criá-lo. Vejo a
cozinheira de minha infância, se eu não lhe tivesse dado uma pensão. A única pessoa a quem não vejo é a
mim mesmo – pousou as mãos no corrimão. – Eu nunca estive aí e nunca estarei. Quão único entendo
agora é que não posso compreender o que é estar trabalhando em uma fábrica e elevar a vista e cantar.
O senhor Charingford inclinou a cabeça para ele. Agora o escutava com atenção.
– Tenho um montão de defeitos. Vou correndo onde deveria ir caminhando com cuidado. Falo quando
deveria escutar. Mas quando os ouço cantar, não ouço só um hino. Cantam a Deus porque não
encontraram a ninguém mais que os escute.
– Stevens diz que, se os escutarmos uma vez, só conseguiremos inspirá-los a mostrar-se cada vez
mais irracionais – disse Charingford com cautela.
– Viu se Stevens se torna mais razoável quanto mais você cede às suas exigências?
Charingford afastou a vista.
– Quanto lhe pediu, senhor Charingford? Você é magistrado. Disse que não lhe ajudará se não fazer o
que lhe diz? Pediu-lhe dinheiro? Ou se limitou a lhe pedir que lhe desse a mão de sua formosa filha em
compensação por seus esforços?
Charingford apertou com força o corrimão de metal que tinha diante. Fechou os olhos.
– Isso – respondeu. – Tudo isso.
– Eu tenho descoberto – disse Robert– que, com folga, pagar meus operários o suficiente para que não
vejam o futuro com terror custa muito menos que empregar a homens que os aterrorizem.
– Você fala como Minnie – murmurou Charingford, ranzinza.
Robert sorriu e moveu a cabeça. Era o melhor elogio que já lhe tinham feito.
Um moço passou correndo para levar uma bombinha a um homem que se virou para uma das
máquinas.
Se não olharmos com atenção – disse Robert, – os homens e mulheres da fábrica se convertem em uma
massa indistinguível de tons cinzas e marrons. Então não terá que vê-los salvo como os braços das
máquinas, embora de carne e sangue em vez de ferro e aço. Que cobram salários em lugar de ter que
comprá-los com antecipação. Mas as máquinas não cantam. As máquinas não têm esperança. E não
acredito que possamos pará-los nem com mil capitães Stevens. Eu não penso tentá-lo.
– Você é um radical.
Não havia paixão na acusação. Charingford olhava a fábrica. Mas agora seu olhar se detinha aqui e
lá, em mulheres que envolviam as meias em papel, em homens que operavam as máquinas.
– Sei – disse Robert.
– Se tivesse falado comigo quando chegou, em lugar de escrever santinhos…
– Estou amadurecendo. E minha esposa, ao que parece, tem algum efeito em mim – Robert encolheu
os ombros. – Nunca se sabe. Possivelmente aos trinta anos comece a ter algum efeito no que me rodeia.
CAPÍTULO 25

ERA TARDE QUANDO O MARIDO DE Minnie voltou para casa.


Tão tarde, que todos os serventes menos um lacaio se haviam retirado já. Minnie ouviu abrir a porta e
tornar a fechar-se atrás de Robert. Imaginou-o tirando a capa, o chapéu e as luvas e entregando-as ao
lacaio. Esperava ouvir seus passos na escada, mas passaram os minutos e os passos não chegavam.
Levantou-se devagar e saiu nas pontas dos pés do quarto. A parte inferior da casa estava às escuras.
Se pudesse descer a grande escada que levava à entrada sem tropeçar. Foi graças a um raio de luz que
procedia de uma sala na parte de trás. Seguiu esse caminho de luz dourada corredor abaixo.
A porta do final estava entreaberta. Robert se achava sentado à mesa e tinha diante de si um prato
com restos frios do jantar. Não comia; segurava o garfo com uma mão e olhava inexpressivo à frente.
Tinha a cabeça um pouco inclinada, como se suplicasse algo à vitela que tinha diante de si. Enquanto ela
olhava, ele levou uma mão ao canto do olho e a passou por ali como se, se secasse uma lágrima.
Não chorava. Não tirou nenhum lenço. Mas deixou a mão ali, ao lado do olho, para espantar qualquer
outra emoção.
Minnie conteve o fôlego.
Retrocedeu pelo corredor, amaldiçoando as suaves sapatilhas de seda. Ele não a tinha ouvido
aproximar-se. Abriu fazendo ruído a porta do salão e tomou o pacote que tinha chegado esse dia. Voltou a
fechar a porta, fazendo mais ruído ainda.
Era impossível fazer ruído com sapatilhas sobre o tapete, mas fez o possível. Quando chegou à porta,
ele tinha baixado a mão. A expressão vazia de Robert tinha desaparecido e até conseguiu lhe dedicar um
sorriso.
– Minnie – disse. – Pensava que já estaria dormindo.
Embora o tivesse tentado, ela não teria podido dormir pensando nele e preocupando-se com seu
irmão. O julgamento aconteceria no dia seguinte. Podia ver o efeito que o estresse tinha produzido nele.
Tinha círculos escuros sob os olhos e rugas de preocupação sulcavam sua testa.
– Custava-me muito dormir sem ti – Disse. Deixou o pacote na mesa, perto dele.
Robert cravou uma parte de vitela com o garfo.
– Não tive tempo de jantar – disse, quase com ar de desculpa, antes de meter-lhe na boca. – E agora
estou morto de fome.
Ela se sentou a seu lado.
– Eu também estou um pouco faminta.
Provavelmente mentiam os dois. Certamente os dois sabiam.
Mesmo assim, Minnie pegou um pãozinho para lhe fazer companhia e, enquanto ele comia, ela o
esmigalhava em seu prato. Ao menos sua presença servia para que ele fizesse justiça à comida que tinha
diante dele. Comia mecanicamente as ervilhas, as cenouras e os nabos acompanhados da vitela e,
envolvendo tudo isso, um molho que se congelou. A Minnie lhe revolvia o estômago só de pensá-lo, mas
ele não parecia saborear nada do que levava a boca, pois mostrou-se surpreso quando seu garfo não
encontrou nada no prato.
– Foi um dia longo – disse. – Acredito que irei diretamente à cama – mas não se levantou.
Minnie tomou aquilo como um convite para aproximar-se do aparador e servir um cálice de xerez. O
levou e lhe roçou os dedos ao entregar.
– Sairá tudo bem? – perguntou.
Robert, em resposta, enterrou a cabeça nas mãos. Minnie pôs seus dedos sobre os dele. A pele de seu
marido resultava fria ao tato; quase podia sentir palpitar suas têmporas. Esfregou a testa devagar. Ele
emitiu um gemido e apoiou a fronte nos dedos.
– Eu não sei – ponderou –. Eu não... – Ele virou a cabeça de lado para olhá-la nos olhos e então
rapidamente desviou o olhar. – Não tenho certeza. Tamborilou na mesa com os dedos.
– Mas farei todo o possível para que assim seja. Meu irmão… – respirou fundo. – A meu pai não
importava nada. Não ajudou nada. Oliver cresceu sem nenhum dos privilégios que eu tive, e deixar que
agora o culpem de um modo tão público de algo que eu fiz… Minnie, não posso permiti-lo. Sinto-me à
beira da loucura só de pensá-lo. Tem que sabê-lo.
– Sei – lhe esfregou a fronte. – Mas você faz tudo o que pode.
– Sim – a voz dele soava oca. – Mesmo assim, não vejo nenhum modo de que isto possa sair bem.
– Talvez não, mas aconteça o que acontecer, confrontaremos juntos.
Robert respirou fundo.
– Minnie… amanhã haverá uma multidão na sala. Alguém avisou aos jornais de Londres de que eu
vou testemunhar e agora já não há dois jornalistas, mas vinte.
– Pergunta se posso suportar à multidão? Posso fazê-lo. Eu não gosto de estar com muita gente, mas
enquanto não me olhem, posso fazê-lo.
Sua resposta pareceu intensificar o vazio nos olhos dele, que dava a sensação de que podia derrubar-
se sobre a mesa.
– Minnie. Não sei o que dizer.
Ele negou com a cabeça.
– Tenho que estar ali. Não há outro modo, assim estarei – já pensaria nos detalhes mais tarde.
Ele moveu a cabeça.
– Ao menos saiu uma coisa boa de tudo isto. Vim a Leicester para tentar que deixassem de utilizar as
acusações de rebelião criminal como uma ferramenta para acabar com as greves e agora sei quem está
por trás disso – sorriu. – Tive uma conversa da mais interessante com… com um magistrado para o qual
Stevens pediu para ajudar a manter a paz. Se fará justiça.
– Bem – retrucou Minnie. – Excelente. Eu tenho algo mais para ti e espero que também seja bom.
Comprei-te algo – assinalou o objeto envolto em papel marrom que tinha levado consigo.
Robert olhou o pacote ovalado. Tomou uma ponta e o puxou para si.
– O que é isto?
– Um presente.
– Não é meu aniversário – a olhou. – E falta mais de um mês para o Natal.
– Não é um presente por uma ocasião especial – Minnie sentia o coração lhe pulsando com força no
peito. – É um presente de algo que vi e quis que o tivesse.
Como os rubis que ele lhe tinha dado, guardados agora em uma caixa para uma ocasião mais feliz.
– É pesado – disse ele, sopesando-o. – Um livro? Um atlas?
– Não vou lhe dizer isso. Terá que abri-lo se quiser sabê-lo.
Robert puxou o cordão e, quando se desfez a laçada, deixou-o cair ao chão. O papel se enrugou ao
abri-lo.
O livro estava encaderno em couro branco de cor creme, lavrado com um desenho sutil. Não havia
título na tampa nem tampouco no lombo. Minnie conteve o fôlego quando ele o abriu e passou as
primeiras páginas de cor creme.
Aquele livro não tinha saído de uma prensa. Tinha sido ilustrado amorosamente à mão. Ela pensava
que as ilustrações eram aquarelas, mas nesse caso, eram surpreendentemente animadas, capas e capas de
pintura colocadas uma em cima da outra até que os vermelhos eram tão profundos como as folhas
moribundas do outono e os azuis tão autênticos como um céu do verão. A primeira ilustração, um “A”
gigante, estava no topo de uma colina. A letra em si estava composta por uma miríade de desenhos
menores. Uma lateral da letra formava uma amendoeira inclinando-se ao vento. No alto de seus ramos
havia um albatroz com as asas estendidas para o céu. Uma alpaca se esticava para as amêndoas e seu
pescoço formava o outro lado da letra. A seus pés se enroscava uma sucuri, mas não ameaçava a nenhuma
das demais criaturas, mas sim parecia estar ocupada comendo um damasco. Toda a ilustração estava
formada por coisas que começavam pela “A”.
Robert a olhou antes de passar a página à letra B, onde havia mochos, balões e bouganville.
– Compraste-me uma cartilha? – parecia confuso.
– Pensei… – ela tragou saliva. – Você disse que queria ter muitos filhos. Me ocorreu comprar uma
cartilha que não tivesse palavras impressas. Assim poderia inventar o que quisesse para cada letra. E não
te equivocaria.
Ele olhou as páginas. Tocou a ponta de uma e Minnie se perguntou se estaria pensando na M, que tinha
desenhos de uma mãe que tinha a seu filho de mãos dadas à luz da lua, com mariposas sobrevoando um
arbusto de amoras.
Mas ele não passou a página até essa letra. Em vez disso, olhou-a.
– Você me compraste isto – disse.
Minnie assentiu.
– Por quê?
– Porque estava pensando em ti.
Robert ficou de pé. Ela não podia interpretar sua expressão.
Lhe pôs as mãos nos ombros e, quando ela ergueu a vista, beijou-a. Beijou-a sem gentileza. Beijou-a
com todo o sentimento que não tinha mostrado desde que entrou na casa. Com ferocidade, grosseiramente,
como se houvesse retornado de uma ausência de dez anos e precisasse lhe recordar tudo o que tinha
passado. Estreitou-a em seus braços com força. Seu corpo despedia muito calor. Beijou-a uma vez e
outra e outra mais, sem quase lhe permitir respirar antes de voltar a beijá-la de novo. Abraçou-a com
tanta força que ela quase não se deu conta quando a ergueu e a depositou na mesa diante dele. Então
deixou sua boca e lhe beijou o queixo e o pescoço. Seus beijos produziam comichões de prazer em
Minnie, e ele seguiu baixando até que desabotoou os botões do pescoço da camisola e pôde baixá-lo
pelos seios dela.
Tomou um mamilo em sua boca e ela se entregou a ele. Não ficava nada que não fosse o calor da
língua dele em sua pele e as carícias selvagens de suas mãos nos quadris. Apoiou as costas na madeira
dura da mesa.
– Meu Deus, Minnie! – exclamou ele. – O que vou fazer sem ti?
– Por que quer saber isso? Eu não irei a nenhuma parte.
Ele não pareceu ouvi-la. Soltou-a o tempo suficiente para abrir a calça e a seguir lhe agarrou os
punhos e os segurou nas laterais dela.
– Estou aqui – disse ela. – Não é necessário que me segure. Não irei a nenhuma parte.
Robert não a soltou. Em vez disso, lançou um grunhido e a penetrou. O corpo dela estava molhado
para recebê-lo. Ele nem sequer tinha se incomodado em tirar as calças e ela sentiu o tecido nas coxas. O
fato de que a desejasse tão desesperadamente que nem sequer se despiu e o modo como a tinha
empurrado sobre a mesa incrementaram ainda mais o desejo dela. A penetração gloriosa do membro dele
parecia mais deliciosa ainda, mais proibida.
Aquele ato sexual não tinha nada de imaculado nem de asséptico. Era algo primitivo, uma força
elementar que ela não tinha conhecido antes. As investidas dele eram duras e firmes; o cabelo lhe caia na
testa e suava.
– Sim – grunhiu.
Minnie o espremeu com força e ele voltou a grunhir.
– Desejo-te– disse com ferocidade. – Te desejo muito. Por que não posso te ter?
– Sim pode. Sim pode.
Mas ele não respondeu. Simplesmente investiu com mais força. Quase com frenesi. Grunhiu uma
última vez e chegou ao orgasmo. Então lhe soltou os punhos, mas apenas o fez para tomar seu rosto e
beijá-la.
Quando passou seu orgasmo, seu beijo mudou de selvagem a terno. Afastou-se com gentileza, respirou
fundo e olhou a seu redor como se quisesse verificar que acabava de fazer amor com ela em cima da
mesa.
Uma mesa bem construída que não se moveu nada apesar do modo como ele a havia possuído.
Separou-se dela e escorregou até o chão. Ela se sentou com cuidado.
– Minnie – suspirou ele.
– Se disser uma palavra que não seja para dizer que foi magnífico, morderei-te – lhe advertiu ela.
Ele soltou uma gargalhada. Roçou-lhe a bochecha com um dedo.
– Você é magnífica – disse.
Mas seguia havendo uma sombra em sua cara, uma cortina fechada sobre sua expressão. Separou-se
dela e Minnie pôde captar seu distanciamento.
Então soube. Via-o no modo como ele afastava a vista para não olhá-la nos olhos. Soube que havia
algo que não lhe dizia.
Sorriu fracamente.
– Não quero que engendre a todos nossos filhos em cima de uma mesa de madeira, mas esta vez…
não esteve tão mal – comentou.
– Apenas… só precisava saber que foi minha mais uma vez – ele se aproximou, pôs uma mão no
ombro e quase em seguida a deixou cair de lado. – Não sei o que me ocorreu.
Minnie tomou a mão e a entrelaçou com a sua.
– Sempre tinha sonhado fazendo um homem perder a cabeça. Foi glorioso consegui-lo – levou um
dedo aos lábios dele. – Sei quão difícil deve ter sido o dia de hoje para ti, quão difíceis devem ser estes
dias. Quando nos casamos, disse-me que queria uma aliada, alguém que visse a ti em vez da um duque –
o atraiu para si. – E aqui estou.
– Aqui está – murmurou ele. Sua voz soava rouca. Deslizou as mãos pelo cabelo dela. – Aqui está.


Às TRÊS DA MANHÃ, Robert começou a sonhar. Viu a si mesmo no estrado e Minnie, uma versão
mais jovem e vulnerável dela, entre o público.
– É uma garota antinatural – se ouviu dizer. – É da semente do diabo. Ela me obrigou a fazê-lo.
Ela o olhava com olhos muito abertos e doídos. E de repente se quebrou em um montão de cristais
cinzas. Robert estendeu os braços para ela, mas os cristais lhe cortaram as mãos.
Despertou ofegando e procurando-a, com a imagem do sonho muito presente em sua mente. Céu santo!
Ia fazer aquilo a ela. Traí-la no tribunal diante de todo mundo, igual tinha feito o pai dela.
Minnie estava aconchegada de lado. Dormia com a mão apoiada no quadril dele e a cabeça em seu
ombro. Até adormecida confiava nele.
Não podia fazê-lo. Não podia lhe fazer isso.
Saiu da cama com cuidado. À luz de uma vela trêmula, escreveu uma carta contando-lhe tudo, o que
tinha planejado e por que tinha querido fazê-lo.
Tenho que dizer a verdade sobre ti, escreveu. Não vejo o modo de evitar isso. Mas não venha hoje ao
julgamento. Sinto muito que devo dizer, mas não venha ao julgamento.
Amo-te.
Tremeu-lhe a mão. Desejava desesperadamente escrever uma última frase.
“Perdoe-me, por favor”.
Mas não sabia como ia poder perdoá-lo. Nem sequer estava seguro de poder pedir-lhe. Antes de sair
para reunir-se com os advogados de Oliver, despertou à donzela pessoal de Minnie e lhe deu a carta.
– Aconteça o que acontecer, procure com que leia isto assim que desperte e nem um instante depois. É
urgente.
O resto da manhã passou em uma nuvem. Pareceu-lhe que esperava eternamente até que começasse o
julgamento, mas uma vez que começou, as provas da acusação lhe pareceram uma sucessão sem sentido
de testemunhos e análise. O nervosismo de Robert cresceu.
A seu redor, os jornalistas tomavam notas em taquigrafia. A defesa apresentou seu caso. Esse era o
momento em que Minnie teria entrado na sala acompanhada por sua mãe. Mas, a Deus obrigado, ela não
chegou.
Por fim o chamaram ao estrado e lhe pareceu que todo o resto desaparecia: a sala, os jurados, os
jornalistas que olhavam com interesse ávido. Não havia ninguém exceto ele e o procurador que conduzia
o interrogatório.
As perguntas foram singelas a princípio. Seu nome, seu título, sua idade, a última vez que se sentou no
Parlamento. E depois:
– Sabe quem escreveu os santinhos pelos quais se processam ao acusado? – perguntou o procurador.
– Sim – respondeu Robert. – Fui eu.
Um murmúrio de surpresa se ergueu entre a multidão.
– Ajudou-o alguém?
– Fiz com que as distribuíssem um homem que não sabia ler, encarreguei que as imprimissem a mais
de cem milhas daqui. Nenhum membro da casa que tenho aqui em Leicester sabia nada delas. Assegurei-
me disso.
– Ninguém? O senhor Marshall tampouco?
– O senhor Marshall menos que ninguém – disse Robert, determinante. – Verá, escrevi-as porque tinha
me dado conta de que tinha havido uma série de condenações por rebelião criminal nesta cidade,
condenando a pessoas que não pareciam ter sido acusadas devidamente segundo a lei. Queria que
saíssem à luz os responsáveis por isso. Escrevi os santinhos porque a mim não podiam julgar, mas eu
jamais teria envolvido nenhuma outra pessoa na jurisdição de Leicester. Não queria pôr a ninguém em
perigo.
– Por que lhe importa tanto o senhor Marshall? – perguntou o procurador. – Só era um empregado,
não é assim?
– Não – respondeu Robert, cortante. – Jamais lhe paguei um salário. Atribuí-lhe uns recursos. E se
por acaso não bastasse que me interesse pelo bem-estar de meus empregados, ele, além disso, é meu
irmão.
Ouviram-se coices e murmúrios. Robert tinha estado tão concentrado nas perguntas que não tinha
observado a sala. Fez-o nesse momento. Os jornalistas da primeira fila o olharam um instante aturdidos.
Logo sorriram encantados, ao dar-se conta de que a história era ainda mais interessante do que tinham
suposto. Começaram a escrever com fúria. Robert sorriu olhando-os, até que seus olhos se posaram na
parte de trás da sala.
Ali, sentada na última fila, estava Minnie. Devia ter entrado enquanto ele falava. A seu lado estava
sua mãe.
Não tinha recebido sua mensagem? Por que tinha ido ali?
– Excelência – a voz do procurador soava lenta, muito lenta. E, entretanto, Robert não podia escapar
a ela. Nem sequer podia mover-se de seu assento. – Você joga xadrez?
Os olhos de Minnie se cravaram nos seus.
– Não – ele não podia afastar a vista dela.
– jogou alguma vez?
– Umas quantas vezes, quando era jovem. O suficiente para saber as regras do jogo. Mas não sei muito
mais.
– Pode explicar como chegou a escrever de um “ataque à descoberta” em seus santinhos e como o fez
em uns termos que parecem copiados de um manual não muito conhecido de estratégias de xadrez?
– Sim, posso.
A sala inteira ficou em silêncio.
– Casualmente, quando escrevi isso, tinha falado com uma pessoa perita em xadrez. Não o senhor
Marshall.
– E quem foi essa pessoa?
Minnie saberia nesse momento o que ocorria. Entenderia por que lhe tinha pedido que fosse à sala.
Saberia que lhe tinha estendido uma armadilha, que a tinha traído em público e lhe tinha feito o que lhe
tinha prometido não fazer. Teria que havê-la despertado essa manhã e haver-lhe dito pessoalmente.
Ela o olhava com expressão estranha. E de repente, curiosamente, levou-se dois dedos aos lábios e os
ergueu em direção a ele.
“Sinto muito, Minnie”.
– Em 1851, uma moça de doze anos chamada Minerva Lane esteve a ponto de ganhar o primeiro
torneio internacional de xadrez.
Em 1851, Minerva Lane tinha sido traída e desonrada por seu pai. E agora Robert estava repetindo
aquilo.
– Conhece você Minerva Lane?
Robert se obrigou a olhá-la aos olhos quando cravou a faca. Ela tinha a cara cinza e os olhos muito
abertos. Baixou muito lentamente os dedos que tinha beijado.
As palavras foram como partes de cristal na boca de Robert, mas as pronunciou de todos os modos.
– Estou casado com ela.
CAPÍTULO 26

SABER O QUE IA ACONTECER não ajudava. Era tanta a ansiedade de Minnie, que nem sequer
sentia os batimentos de seu coração. Quando Robert falou, seu corpo inteiro se converteu em gelo. E
quando todos se voltaram para ver quem olhava, quando todos os olhos se cravaram nela, olhos
acusadores, um pânico absoluto se apoderou da jovem. Os murmúrios cresceram até tornarem-se
ensurdecedores.
– Essa é ela – disse alguém.
Minnie não recordava como respirar. Espasmos sem ar fechavam seus pulmões. Ficou em pé, mas a
multidão a rodeava gritando e uivando. Pontos escuros, que se faziam cada vez maiores, encheram sua
visão. Quão último viu foi ao Robert levantando-se no estrado das testemunhas e saltando por cima da
borda. Em seguida tudo ficou às escuras.
Não soube bem quando recuperou a consciência. Voltou para a realidade lentamente, como um sonho
que cobrasse vida gradualmente. Notou o balanço gentil de uma carruagem, os braços de seu marido em
torno dela, sua respiração no pescoço dela. Suas mãos. Ouviu que lhe murmurava palavras de carinho,
mas ela não podia abrir os olhos.
A realidade chegava em partes. Sentiu que a conduziam escada acima. Percebeu a suavidade que a
rodeava. E a voz de Robert estava ali, inclusive na metade dos sonhos inquietos. Formou um murmúrio
apagado em seu ouvido até que a inquietação desapareceu e ficou adormecida.
Quando despertou, era tarde. Jazia na cama. Não na cama dos dois, aquela era a sua, a cama que
tinham preparado nos aposento da duquesa. Era a primeira vez que estava naquele colchão e não gostou.
Tinham-lhe tirado o vestido de dia de seda azul e o espartilho, as anáguas e a tinham deixado de
camisa. Não estava rodeada por uma multidão, mas havia tornado a desmaiar. Em público. Outras
lembranças seguiram rapidamente a esse. O tribunal. Robert sentado na parte dianteira. Robert olhando-a
nos olhos quando contava seu segredo a todo mundo.
Não estava furiosa, sentia-se estranhamente vazia. Suspirou e se sentou na cama.
Recordava ter caído. Mas o curioso era que não conseguia recordar ter chegado ao chão. Devagar,
com cuidado, tirou os pés da cama. Pousou-os no chão e provou se sustentavam seu peso. Sustentaram-
no.
E então seus olhos se pousaram em uma figura que havia em uma poltrona ao outro lado do quarto.
Uma figura feminina.
– Lydia – murmurou. – O que faz aqui?
A outra se levantou.
– Seu marido enviou alguém para me buscar – seu rosto parecia escurecido. – Me contaram o que
aconteceu. Ele disse que me necessitava e… e vim.
– Mas…
– Sinto-o muito – Lydia se situou a seu lado. – Durante muito tempo, só podia pensar que tinha
mentido para mim e que não podia confiar em ti. Que você não confiava em mim – Lydia se sentou a seu
lado. – Disse que não tinha me contado nada, mas eu sabia. Sabia que tinha esses desmaios e que odiava
as multidões. Eu tinha te visto desmaiar diante de todo mundo. Se o tivesse pensado, teria compreendido
o que acontecia. Fui odiosa.
Minnie olhou para sua amiga.
– Não diga isso.
– Como não vou dizê-lo? Quando se inteirou de que eu estava grávida e me disse que tudo sairia bem,
não era mentira. E tampouco era mentira quando abortei e você passou horas lendo para mim enquanto eu
estava na cama temendo morrer também. Eu gostaria que houvesse me dito isso, mas… – baixou a voz. –
Entre nós, nada nunca foi mentira. E eu deveria estar ao seu lado como você esteve ao meu muito antes.
Lydia a abraçou com tanta força que Minnie pensou que nunca a soltaria. E não queria que o fizesse.
– Também o sinto porque não tive oportunidade de te dizer: “Eu te disse” – continuou isso Lydia com
um tom de voz mais prosaico.
Olharam-se nos olhos e puseram-se a rir.
– É verdade. E você tinha razão. Foi… – Minnie franziu o cenho. – Que ruído é esse?
Lydia se voltou.
– Esse? Esse é seu marido falando com pessoas em seu quarto.
Seu quarto? Aquela era o quarto dos dois. Até o momento, não tinham usado quartos separados.
Tinham dormido juntos inclusive os últimos dias, em que seu marido tinha estado de um humor sombrio.
O quarto em que estava nesse momento nunca tinha usado antes.
Ouvia-o falar… não tão alto para entender o que dizia, mas a um volume no qual captava a cadência
de sua voz e o ritmo das ordens que dava.
– Lydia – perguntou. – Onde está meu marido?
Teria jurado que ele a tinha levado para casa. Tinha mandado procurar Lydia. A última vez que
Minnie desmaiou, ele estava presente quando despertou, embora soubesse que o golpe à reputação dela o
obrigaria a lhe oferecer matrimônio. Por que não estava ali nesse momento?
Lydia moveu a cabeça.
– No outro quarto.
– Deveria estar aqui. Estava aqui – Minnie tirou uma bata do armário, a pôs e se aproximou da porta
que comunicava as dois quartos. Girou o trinco e a porta se abriu.
Havia três serventes no quarto. O criado pessoal dele e dois lacaios. E vários baús. Robert estava
sentado de costas a ela, vendo os criados trabalharem. Um dos lacaios acabava de sair do quarto de
vestir com os braços carregados com coletes de seda de diferentes cores. Deixou-os em um baú e Minnie
teve a sensação de que seu mundo se detinha.
– Robert, posso saber o que faz? – perguntou.
Ele ficou imóvel de costas para ela. Os serventes baixaram à vista e começaram a trabalhar mais
depressa e em silêncio. Apenas seus olhares de soslaio denotavam seu interesse.
– Recuperaste-te muito rápido – respondeu ele, de costas ainda. – Pensava que já teria ido antes que te
levantasse.
– Ido? Mas aonde vai?
Ele se levantou por fim e se voltou. Mas seguiu sem olhá-la.
– Vou.
Minnie tinha sentido pânico quando ele tinha falado diante de todas aquelas pessoas. A multidão a
tinha observado e isso tinha despertado seu antigo terror. Mas por horrível que fosse, desmaiar era fácil.
Uma vez que acontecia, já não tinha que lutar com a situação em questão. Agora, entretanto, era
impossível escapar a aquilo. Aquilo… aquilo simplesmente doía.
– Vai? Aonde? Quanto tempo?
– Fiz-te uma promessa – disse ele ao fim. – E a quebrei em pedaços. Não quero nem imaginar quão
furiosa deve estar comigo – apertou a mandíbula. – Não te reterei à força. Não te suplicarei – sorriu com
tristeza. – Quero te facilitar as coisas.
Sua cabeça dava voltas.
– Assim sem mais?
– Sem cenas nem discussões. Sem necessidade de quebrar coisas – ele a olhou ao fim e sorriu com
cansaço. – Terá tudo o que queira; apenas tem que pedi-lo.
Os lacaios tinham começado a empacotar ainda mais depressa, como se quisessem provar assim que
não ouviam nada do que se diziam.
Minnie entrou devagar no quarto e se colocou diante de Robert.
– Não compreendo. Está dizendo…?
– Sei o que aconteceu na sala. Você apenas se casou comigo porque te disse que te protegeria. E acabo
de…
– Um momento, Robert – Minnie fez um gesto com a mão aos serventes. – Acredito que será melhor
que saiam todos. De fato, acredito que estaria bem que limpassem esta parte da casa por uma hora no
mínimo.
Houve uma pausa. Um lacaio olhou os lenços e laços para pescoço que tinha nos braços. Outro olhou
para o duque, que apertou os dentes e não disse nada.
Minnie deu umas palmadas.
– Deixem tudo e saiam.
Os serventes obedeceram.
Minnie se voltou para Lydia, que olhava a cena com olhos muito abertos da soleira que conectava
ambas os quartos. Ergueu as mãos.
– Eu já fui – disse. – Veem ver-me logo, Minnie.
Lançou um olhar de dureza a Robert e ela também desapareceu.
Minnie esperou, escutando, até que os passos de sua amiga se perderam na distância.
Então pôs as mãos no peito de seu marido e empurrou com força.
– Robert, idiota, em que demônios está pensando?
– Tinha que fazê-lo – ele a olhou fixamente. – Tinha que fazê-lo.
Era meu irmão e tinha que…
– Oh, homem estúpido! – lhe deu outro empurrão e ele cambaleou para trás e suas pernas se chocaram
com a cama. – Não estou falando disso. – Deixei-te uma nota – disse ele. – Esta manhã. Deveria ter
falado contigo antes. Teria que haver despertado. Custou-me muito pensar com claridade. Sinto-me
doente ao pensar no que tiveste que passar apenas por que…
– Deram-me sua nota – o interrompeu ela. – A li. Decidi que tinha razão.
– Deci… decidiu o que? – ele piscou e a olhou sem compreender.
– Deram-me sua nota – repetiu ela. – A li. Decidi que seu primeiro impulso era correto. Não serviria
de nada esconder minha identidade. Fizéssemos o que fizéssemos, saberia cedo ou tarde. Eu apenas
estaria exposta a um pouco de humilhação. O que era isso comparado com a vida de seu irmão?
– Minnie! – ele parecia horrorizado. – Mas você… Lhe pôs a mão no ombro.
– Você tinha que dizer a todos a verdade de meu passado para salvar a seu irmão. Imagina que eu
teria insistido em que guardasse silêncio quando estava isso em jogo? Sim, essa cena foi horrível. Não,
não quero voltar a passar por isso nunca mais. Eu não gosto que as pessoas me olhem. Não posso
respirar. Não posso pensar claramente – o olhou. – Foi horrível, mas não foi o fim do mundo. E você crê
que isso significa o fim de nosso matrimônio?
Robert piscou.
– Não… não é assim? – pôr fim a olhou nos olhos. Parecia surpreso, atônito inclusive. – Mas você
está zangada comigo. Noto-o.
– Pois claro que estou zangada. Ele moveu a cabeça.
– E… vais partir?
– Pois claro que estou zangada – repetiu ela. – Porque pensava que significava algo para ti. E você
está disposto a partir somente porque não pode te incomodar em arrumar as coisas.
– Não me posso incomodar… – repetiu ele, com voz atônita. Olhou-a. voltou-se e olhou os baús
feitos pela metade e o montão de lenços para o pescoço que tinha deixado o lacaio em cima da cômoda.
– Eu apenas… – disse com voz suave e cansada. – Não compreendo. Te magoei. Sabia que ia fazer
isso e o fiz de todos os modos. Como posso arrumar isso? Não posso te dizer que não te zangue. Tem o
direito de se zangar. Merece se zangar.
Aquele era o homem cuja mãe se afastou dele quando era menino.
Era o homem cujo pai o havia visto apenas como uma ferramenta para tirar dinheiro de outros. Robert
tinha perdoado Minnie de seu engano anterior, mas tinha tão poucas expectativas de ser perdoado por sua
vez que nem sequer podia pedi-lo.
Minnie estendeu o braço e lhe tocou a mão.
– Sabe por que estou furiosa? Porque você preferiria ir antes de tentar fazer funcionar nosso
matrimônio. Ele a olhou nos olhos.
– Eu…
– Sei. Não quer brigar. Mas as brigas não destroem um matrimônio. Não fazer as pazes, sim.
Robert tragou saliva.
– Você quer brigar?
– Sim. E quero que diga que foste terrível e que foi muito errado o que fez.
Ele se encolheu.
– É verdade. Sei que fui muito mal.
– Quero acreditar em ti quando pede perdão. Quero saber em meu coração que você nunca me faria
mal. Quero que me prometa que a próxima vez que ocorra isto, antes deverás falar comigo e decidiremos
juntos o que terá que fazer.
Robert a olhava com a cabeça inclinada para um lado.
– E depois de que tenha feito tudo isso, quero te perdoar – os olhos dela se encheram de lágrimas.
– Mas por que quer fazer tudo isso?
– Porque te amo – respondeu ela. – Te amo, amo-te.
Ele respirou fundo.
– Tem certeza?
Minnie assentiu.
– Já vejo – disse ele.
E saiu do quarto sem acrescentar mais nada.
CAPÍTULO 27

Minnie OLHOU A PORTA POR ONDE tinha saído Robert com a mente convertida em um redemoinho
confuso. Por que tinha saído? Aonde ia? O que ia fazer ela?
Aproximou-se da janela para ver se ele ia sair de casa, olhou para fora e retrocedeu dando um coice.
Havia uma pequena multidão na porta, um montão de chapéus marrons e negros que formavam um
semicírculo de três filas de largura. Um homem ergueu a vista, viu-a e assinalou com o dedo.
Minnie retrocedeu com o coração galopante.
Se Robert saía de casa, não seria capaz de segui-lo.
Voltou para seu quarto. Em cima da cômoda havia um jornal. Desdobrou-o com curiosidade e
descobriu que era um jornal dessa tarde. Não podia fazer mais de meia hora que tinha saído.
O Duque de Clermont tem escrito santinhos, anunciava o titular. Em letras menores, lia-se: A duquesa
é uma antiga campeã de xadrez.
Minnie voltou a ler aquilo e moveu a cabeça por quão inócuo parecia.
– Bom – murmurou, – suponho que “duquesa é antiga farsante que se vestiu de menino e enganou a
centenas de pessoas” não cabia. Três hurras pelo tamanho restritos das manchetes.
O artigo em si era surpreendentemente imparcial. As piores acusações que lhe tinham jogado no
passado, as de monstro, mentirosa, antinatural e semente do diabo, estavam ausentes. Seu passado ficava
resumido em um parágrafo curto. Era escandaloso, sim, mas o tempo tinha tirado poder e força das
palavras de seu pai.
O senhor Lane declarou que todo o plano tinha sido ideia de sua filha, mas nunca se encontraram
provas que apoiassem a afirmação de que uma moça de doze anos tivesse planejado aquele
empreendimento fraudulento.
Minnie se sentia como se tivesse aberto a porta em que acreditava ter um monstro gigante e tivesse
descoberto que apenas media cinco polegadas de altura. Havia coisas que se podiam dizer da filha de um
criminoso e que não se diziam da esposa de um duque.
A narração do julgamento daquele dia era igualmente estranha.
Ler sobre seu desmaio foi uma experiência estranha. Parecia-lhe estar observando suas emoções a
distância. Podia ouvir os coices das pessoas na sala do tribunal, mas agora entendia que eram de
surpresa e não de condenação. Podia ver-se empalidecer sem sentir um suor frio na pele e sem que sua
respiração se voltasse superficial.
Isso lhe permitiu ler o que tinha acontecido depois. Ela tinha desmaiado. Um homem próximo lhe
tinha cuspido e a duquesa mãe o tinha golpeado na cabeça com seu guarda-chuva. Logo tinha observado
de cima a baixo todos os que a ameaçavam aproximando-se, mantendo-os longe.
Robert tinha saltado por cima de três bancos para chegar até ela. Minnie supôs que a parte dos três
bancos seria um exagero.
Quando o duque tirava sua esposa do tribunal, dignou-se a responder algumas pergunta. Afirmou que
conhecia a identidade de sua esposa antes de seu matrimônio, uma afirmação que resulta incontestável
tendo em conta que, no registro matrimonial, sua esposa figura como Minerva Lane. Sua Excelência
explicou sua escolha de esposa com as seguintes palavras: “por que ia tomar uma esposa convencional se
podia levar uma extraordinária?”.
Minnie deixou o jornal e fechou os olhos, que lhe ardiam por causa das lágrimas. Quase podia ouvi-
lo dizendo essas palavras. Não lhe custava nada imaginá-lo elevando os olhos ao céu e olhando com
irritação aos jornalistas. Seu corpo tinha a lembrança dos braços dele embora sua mente não o
recordasse.
Não estava segura do que significava tudo aquilo, mas estava segura de uma coisa.
Ele voltaria.
Seguiu lendo o jornal. O artigo tinha somente umas colunas de longitude. Uma nota relacionada
mencionava que, depois do julgamento, o capitão George Stevens tinha sido detido e acusado de aceitar
subornos em troca de cumprir com seu dever oficial. Minnie sorriu fracamente. Bem!
Abriu-se a porta. Robert apareceu na soleira abraçando um livro contra o peito.
– Terá que me desculpar se não fiz isto bem – disse com calma. – Mas é a primeira vez que o faço.
O que é que faz?
Ele entrou no quarto e deixou o livro encadernado em couro sobre a cômoda que havia perto dela.
Era a cartilha que lhe tinha dado no dia anterior. Robert olhou primeiro o livro e depois para ela.
– Decidi o que significam estas letras – disse. – E me ocorreu que lhe podia dizer isso
Minnie demorou um momento em dar-se conta de que estava nervoso. Ele a olhou de soslaio e abriu o
livro pela primeira página.
– “A” – disse– é de “Amor”. Por todos os modos que te amo.
Ela sentiu mais forte ainda a ardência das lágrimas. Piscou, pois não queria que nublassem sua visão.
Queria vê-lo, perceber todos os detalhes de seu cabelo claro revolto e o modo como mordia o lábio
inferior.
Robert afastou a vista.
– Isto é estúpido – murmurou. Tentou fechar o livro, mas Minnie se deu conta do que fazia e
introduziu rapidamente a mão entre as páginas abertas.
– Não! – protestou. – Não o é.
A mão dele cobriu a sua. Tragou saliva.
– Não tem nada de estúpido que me diga que me ama. Jamais.
– Oh! – exclamou ele. Deu a impressão de que demorava um momento em absorver aquilo e voltou
para a cartilha. – “A” é de “Amor”. De muitos modos. Tantos que são mais de vinte e nove, mas como
nosso alfabeto não tem mais, terei que me restringir. Ao menos no momento.
Passou a página até a letra B, que estava iluminada como se fosse um manuscrito medieval. Uma série
de bouganvilles formavam um lado da letra, e na curva superior da B havia uma coruja.
– A “B” é de “Balança”. Para pesar meus erros. Porque vou cometer erros, algo que suponho não te
pegará de surpresa – a olhou e passou a página. – A “C” é por “Confissão”. Confesso que não sei como
fazê-lo. Não sei como seu marido e não sei como ser pai. Quão único aprendi de meu pai foi como não
fazê-lo, e isso não está acostumado a ser um bom guia, mas… Voltou a passar página.
– A “D” é de “Determinação” – passou uma página mais. – A “E” é por “Eternidade”, porque isso
será o que quero que volte a me render outra vez. A “F” é de “Favor”, porque terá que fazer o favor de
me perdoar até que comece a fazer bem isto.
Agora o está fazendo bem – disse Minnie com um sorriso. – Continue.
Robert assentiu e passou a página.
– A “G” é de “Graça”. E a “H” … Tinha que ter escrito isto, porque não sei o que vem agora.
Esqueci-o.
Minnie sorriu.
Ele franziu o cenho com perplexidade.
– Sério. Não sei o que vem agora. Tinha pensado algo em minha cabeça para quase todas e ia ser
brilhante, e quando terminasse, você se jogaria em meus braços e tudo estaria arrumado.
Minnie se aproximou e passou várias páginas até chegar a M. Era a página pela qual estava aberto o
livro quando o viu na cristaleira. A M estava grafada em azuis e negros com um toque dourado, o desenho
dos arbustos de amoras formava a silhueta escura da letra contra um céu iluminado pela luz da lua. Esse
M possivelmente evocava à meia-noite.
– Esta é a mais importante – disse. – A “M” é de Minnie”. Sou tua inclusive quando cometer erros.
Robert se aproximou dela e a estreitou em seus braços.
– Minnie – disse. – Minha Minerva. O que eu faria sem ti?
– Há outra letra que é igualmente importante – ela voltou para
“A” de “Amor”. Porque te amo. Amo-te pela bondade de seu coração, amo-te por sua honradez, amo-
te porque quer abolir a nobreza, amo-te, Robert – o abraçou com força. – E não vou te expulsar de meu
lado por um erro.
– Mas…
Ela negou com a cabeça.
– Falaremos disso logo. No momento, Robert, há outras coisas que exigem nossa atenção.
– Sim – respondeu ele.
– Há uma nuvem de jornalistas lá embaixo e acabamos de dizer ao mundo quem sou em realidade.
– Livrarei-me deles.
Minnie ergueu uma mão.
– Não – disse. – Acredito que isso não será necessário.

– PENSA APRESENTAR À DUQUESA EM SOCIEDADE?
– O que opina disto a duquesa mãe?
Por que escreveu esses santinhos? É parte de um estratagema parlamentar?
Quando Robert entrou no salão principal de sua casa poucas horas depois, encontrou-se com um
montão de perguntas lançadas aos gritos, uma em cima da outra, formando uma cacofonia indistinguível.
O sol se pôs, os abajures de azeite iluminavam a estadia e os corpos que enchiam a sala tinham subido a
temperatura mais do que resultava confortável.
Os jornalistas tinham sido convidados a entrar quinze minutos antes e, ao que parece, sentiam-se já o
bastante confortáveis para gritar em sua casa.
Esperou até que Oliver entrou atrás dele e levantou a mão. As perguntas aos gritos continuaram, mas
como Robert não deu nenhuma resposta, a animação acabou por arrefecer.
– Cavalheiros – disse, quando todos guardaram silêncio. – Me permitam que explique o que vai
acontecer. Convidei-os a minha casa. Ofereci chá e bolachas.
Mais de uma mão sacudiu discretamente miolos de alguma jaqueta depois desse comentário.
– Se respeitarem as normas que imponho, responderei a todas suas perguntas. Mas ao homem que
levante a voz mais do que o necessário, tirarão daqui pela orelha. Ao que responda de volta será
mostrada a porta. Se, se comportarem como uma multidão enfurecida, serão tratados igualmente.
Entretanto, se atuarem como pessoas civilizadas, responderemos a todas suas perguntas.
– Excelência – gritou um homem da parte de trás. – Por que essas regras? Teme algo em particular?
Robert moveu a cabeça com gesto grave.
– Oliver – fez um gesto atrás de si. – Por favor, mostre a porta ao cavalheiro.
– Espere! Eu não di…
Robert ignorou os protestos do jornalista e deixou que outros vissem como o acompanhavam para
fora. Quando se fechou a porta atrás dele, voltou-se para os outros. Havia possivelmente uns vinte,
acomodados em cadeiras levadas de outras salas. Todos tinham seus cadernos preparados. Quarenta
olhos o olhavam curiosos.
– Verão, não há segundas oportunidades – disse Robert. Ouviu que se abria a porta atrás dele. –
Oliver, quer fazer o favor de demonstrar o modo correto de fazer uma pergunta?
Seu irmão se aproximou do jornalista mais próximo e levantou a mão em silêncio.
Robert o assinalou com um gesto.
– Pergunta do cavalheiro na lateral.
– Excelência – disse Oliver com um tom de conversa normal. – Por que pôs estas regras? Tem medo
de algo?
– Excelente pergunta – disse Robert. – Estabeleci estas normas porque dentro de uns momentos
entrará aqui minha esposa, a duquesa, e não tenho intenção de que se encontre com uma multidão que fala
gritando.
Os homens se sentaram mais retos ao ouvir isso.
– Verão – continuou Robert, – o que me importa é a maneira de perguntar. Podem fazer todas as
perguntas que queiram, embora possivelmente declinemos responder as mais pessoais. Quem quer
começar?
Os jornalistas se olharam entre eles, como se tivessem medo de fazê-lo errado. Depois de uns
momentos, um homem situado na parte de trás, ergueu a mão. Robert assentiu.
– Excelência – perguntou o homem. – Por que se casou com Minerva Lane?
– Queria uma duquesa que fosse bonita, inteligente e valente mais do que queria uma de alto berço.
Não necessitava dinheiro. E o fato de que, além disso, estivesse apaixonado por ela ajudou bastante –
assinalou a outro homem. – Sua vez.
– É ela que usava calças em seu matrimônio?
Robert suspeitava que ouviria aquela pergunta uma e outra vez até que a respondesse para a
satisfação de todos.
– Querem saber o primeiro que fez com meu dinheiro? – perguntou. – Visitar uma costureira em Paris.
Aquilo produziu risadas.
– Me acreditem – continuou Robert, – uma mulher tão bonita como minha esposa com saias e
espartilho não tem nenhuma intenção de usar calças.
Os jornalistas anotaram aquelas palavras. Minnie tinha acertado.
“Têm uma ideia mental do que deve ser uma mulher”, havia dito a Robert. “Por uma parte, é um
montão de mentiras. Mas pode utilizar essas mentiras em seu favor. Mostre-lhes que eu correspondo a
esse padrão em um aspecto e não questionarão se não tiver de fazê-lo em outros. E em meu caso é muito
fácil. Eu gosto da roupa bonita. Se podemos lhes fazer ver isso, não perguntarão mais nada”.
– Tudo isso está muito bem – disse outro homem quando Robert lhe deu permissão para perguntar, –
mas você crê que a jovem Minerva Lane induziu a seu pai a enganar aos outros, que ela foi a causa de sua
condenação e de sua morte? E em caso afirmativo, arrependeu-se disso?
Robert apertou os dentes e sentiu que ficava furioso, mas se obrigou a manter a calma.
– Não – respondeu. – Seu pai abriu as contas falsas. Seu pai mentiu a seus compatriotas quando ela
não estava presente. O sentido comum sugere que, quando o apanharam e enfrentava o cárcere, optou por
seguir mentindo para salvar-se, sem lhe importar a quem prejudicasse no processo. A duquesa de
Clermont já sofreu bastante pelas falsidades de seu pai. Neste tema, vou reclamar meu direito de marido
– sorriu. – Darei uma surra a qualquer um que sugira outra coisa.
Sua declaração foi seguida do som de uma dúzia de lápis arranhando o papel.
“Se disser isso”, havia-lhe dito Minnie, “tem que saber que terá que fazê-lo ao menos uma vez”.
Robert estava desejando que chegasse esse momento.
– Falando da duquesa – disse, – acredito que é hora de que vá procurá-la.
Voltou-se, consciente dos sussurros que se elevaram a suas costas. Abriu a porta lateral e saiu.
Minnie esperava na sala adjacente com as mãos entrelaçadas e caminhando de parede a parede.
Robert se deteve ao vê-la. Usava um vestido que não conhecia e que sem dúvida tinha comprado em
Paris. Era uma roupa de cor escarlate brilhante, o tipo de vestido que enfatizava suas curvas e atrairia
todas as olhadas. E usava os rubis que lhe tinha dado.
Usava também um xale de rendas negro sobre os braços, que além disso estavam nus, e flores no
cabelo. A tudo isso tinha acrescentado algo que somente ele tinha visto em quadros do século anterior.
Desenhou uma simples pinta negra perto do canto dos lábios. Isso atraía a vista para a cicatriz e fazia
com que a teia de aranha branca da bochecha parecesse uma decoração intencionada em vez da
lembrança de um ato de violência insensato. O moderno vestido, combinado com aquela moda antiga,
contribuíam para que parecesse uma mulher de nenhum século concreto.
Robert se deu conta de que ficou parado olhando-a.
– Sabe? – perguntou com voz rouca. – Está espetacular.
– De verdade? A sua mãe não gosta do lunar postiço – repôs ela–. Há muitos?
Robert se aproximou dela.
– Quase vinte. Mas lhes coloquei medo para que se mostrem civilizados. Está certa de que quer fazer
isto?
Minnie respirou fundo.
– Sim. Muito.
Tomou sua mão.
– Porque eu estou disposto a enviá-los ao diabo – a mão dela estava fria e suarenta e sua respiração
era muito rápida. – E eu estarei a seu lado em todo momento – disse ele. – Ninguém se aproximará de ti.
Prometo-o.
– Sei – lhe apertou a mão e caminharam juntos. Minnie se deteve na entrada. Robert não soube se era
por nervosismo ou se o fazia para causar impressão.
Em qualquer caso, conseguiu-o claramente. Os jornalistas lançaram coices de incredulidade… como
se esperassem que ela aparecesse na porta vestida com calças e levita. E todos ficaram de pé.
Minnie sorriu. Robert, que a levava pela mão, sentiu que o pulso dela se acelerava no punho e notou
que lhe cravava os dedos na palma quando todos aqueles olhos se pousaram nela. Sabia o muito que lhe
custava sorrir. Sabia também que, se eles tivessem gritado naquele momento, se tivessem feito algum
ruído, ela teria desmaiado ali mesmo. Mas os homens estavam silenciosos como mortos porque não
queriam que os expulsassem.
Robert a levou ao divã situado na parte dianteira da sala, sentou-a e se sentou por sua vez.
O divã estava sobre uma plataforma um pouco levantada.
Minnie olhou a seu redor.
– Bem – comentou. – Suponho que isto é o mais perto que vou estar de um trono.
A frase arrancou uma gargalhada surpreendida aos jornalistas.
– Terão que me desculpar, cavalheiros – a voz dela era tão fraca que todos tinham que esforçar-se
para ouvi-la. – pedi silêncio porque minha voz não é muito alta e estou nervosa.
Um jornalista levantou a mão.
– Tem medo das verdades que possamos descobrir?
– Não – respondeu ela. – Meu medo tem uma origem mais primitiva. Quando tinha doze anos… – fez
uma pausa e respirou fundo. – Bem, acredito que todos vocês sabem o que ocorreu quando tinha doze
anos, das declarações de meu pai no tribunal e até a multidão que me rodeou depois.
Produziram-me esta cicatriz.
Tocou-se a bochecha.
– Após, custa-me respirar quando estou com um grupo grande de pessoas. Não posso suportar que me
olhe muita gente sem recordar aquilo. De fato, sinto-me muito agradecida porque tenham que escrever em
seus cadernos. É muito melhor que se me olhassem em massa – sorriu, mas seus dedos seguiam agarrando
com força os de Robert.
Os jornalistas escreviam com fúria. Eles não detectavam o que Robert via claramente: a palidez das
bochechas dela e o rosa claro dos lábios que estavam acostumados a ser mais escuros.
– Ainda agora – disse Minnie, – tantos anos depois, pensar nisso faz com que me tremam as mãos – se
soltou de Robert e ergueu a mão como prova. – Se houvesse dez pessoas mais aqui, não sei se poderia
fazer isto. E se estivessem gritando, possivelmente desmaiaria– lhes dedicou outro sorriso - Isso foi o
que aconteceu hoje no tribunal.
– E como assistirá a bailes e festas, ao tipo de reuniões onde as duquesas estão obrigadas a ir?
– Estou segura de que receberei muitos convites amáveis de meus pares para esses acontecimentos.
Tinha ensaiado essa resposta com o Robert. Tinham-na repetido uma e outra vez até que cada palavra
tinha ficado perfeita.
– Também estou segura – continuou ela– de que todo mundo compreenderá que, quando rechaçar
esses convites, não será por desprezo. Não obstante, ao longo dos próximos anos, meu marido e eu
organizaremos uma série de eventos mais íntimos. Fiscalizarei algumas das obras de beneficência de meu
marido e confio em que chegarei a conhecer meus pares desse modo.
– E não teme que a rechacem por seus antecedentes?
– Estou segura de que haverá pessoas que não quererão me conhecer. Mas minha situação sem dúvida
implica que meu círculo de conhecidos será, necessariamente, exclusivo. Se alguma mulher desejar não
estar incluída nele, contará com meu beneplácito para isso – sorriu aos homens.
Estes escreviam em taquigrafia o que dizia ela. Suas palavras apareceriam tal qual na metade dos
jornais da nação. Mas, enquanto escreviam, uns poucos homens levantaram a cabeça para olhá-la.
Sem dúvida ela se mostrava feminina; tinha-lhes contado uma debilidade e tinha feito com que se
sentissem confortáveis. Mas o jornalista de cabelo cinza que havia em um lateral, que Robert acreditava
que se chamava Parret, olhava-a com grande interesse. Levava muitos anos escrevendo de política e
crônicas de sociedade e provavelmente tinha reconhecido o que Robert já sabia. Que a duquesa de
Clermont acabava de lançar um desafio às damas de Londres. Não ia suplicar sua companhia nem ia se
arrastar para que tivessem uma boa opinião dela. Sua amizade seria uma honra singular e original que ela
outorgaria com cautela.
Parret ergueu a mão.
– Excelência, seu talento com o xadrez foi pura sorte infantil? Um engano?
Minnie sorriu. E seu sorriso, essa vez, foi genuíno.
– Não. Não foi um engano.
O jornalista arqueou uma sobrancelha e a observou.
– Há dito que estava nervosa. Não o parece.
– Antes, quando estava ansiosa, dizia-me que não sentia nada. Isso me ajudava um pouco até que
podia afastar o nervosismo – tomou a mão de Robert. – Agora sei que não estou sozinha. E isso me ajuda
ainda mais.
Robert pensou que tinha razão. Não estava sozinha.
Não era somente a mão dela na sua e seus corpos lado a lado no divã. Era a sensação de que
confrontavam juntos não só aquela prova, a não ser a vida. Não seria fácil. Nem sempre seria divertido.
Mas inclusive nos piores momentos, tudo seria melhor com ela ao lado.
“Não estou sozinha”. Robert se deixou embargar por essa certeza. A seu lado, Oliver sorria
fracamente. Minnie pôs a outra mão em cima da de Robert e ele a olhou um segundo nos olhos. Quando
terminassem aquilo, quando os jornalistas partissem para contar ao mundo que o duque e a duquesa de
Clermont eram uma força a ter em conta, lhe demonstraria quão certo era que não estava sozinha.
Decidiu que lhe deixaria o colar posto. Todo o resto…
– Excelência – perguntou alguém, interrompendo seu devaneio. – Podemos falar dos santinhos? Qual
era sua intenção ao escrevê-los?
– Ah, sim! – respondeu Robert. – É muito simples. Sou duque. E como tal, considero-me responsável
não só de meu bem-estar, mas sim do de todo o país – sorriu, olhou para seu irmão nos olhos e inclinou-
se. – Se silenciarmos aos que querem falar, como vou fazer meu trabalho? A detenção do capitão Stevens
foi apenas o começo.
Minnie lhe apertou a mão.
– Não sei quanto poderei obter em minha vida – disse Robert, – mas isto é somente o princípio.
EPÍLOGO

Quatro anos depois


PODIA PARECER UM DIA COMO OUTRO QUALQUER para algumas pessoas, mas Robert sabia
que não era. A atmosfera resultava tensa. A seu lado, um cavalheiro apertou o punho e se voltou para
frente. Oliver e seu pai estavam sentados ao outro lado, olhando. Lydia e seu marido se acomodaram em
poltronas no outro lado da sala. Lydia sabia pouco de xadrez, mas olhava com a mão na boca. Havia um
total de oito pessoas, sem contar às duas que ocupavam o centro do salão.
Mas oito pessoas não eram tantas para pôr Minnie nervosa. De fato, parecia que ela se esqueceu de
tudo. Estava sentada diante da mesa pequena que tinham instalado em meio da sala e dava a impressão de
ser a única dos presentes que não estava nada nervosa.
Tinha tomado Londres por assalto, o que implicava que, como em qualquer assalto, havia pessoas que
se refugiavam em sua casa quando a viam chegar. Mas em conjunto, as pessoas que importavam não
tinham fugido. A curiosidade pela duquesa de Clermont tinha podido mais que a hostilidade. Ela tinha
organizado reuniões exclusivas, em números limitados, e as pessoas tinha acudido. Gente importante.
Minnie tinha ido relaxando gradualmente em seu papel. Seguia sem ir a grandes festas e seguia
tentando evitar que a olhasse o povo nas ruas. Mas em encontros como aquele, todos podiam vê-la como
era em realidade. Usava um espetacular vestido de seda azul e não parecia nada alterada, embora o
homem que tinha em frente tinha começado a suar.
Ao fim ele pegou uma peça. Sustentou-a um instante na mão e voltou a colocá-la no tabuleiro. Gustav
Hernst, que tinha sido o ganhador do primeiro Torneio Internacional de Xadrez de Londres quinze anos
atrás, tinha movido peça.
Minnie estudou o tabuleiro. Depois de um momento de contemplação, ergueu uma peça e, com todo
mundo olhando, beijou-a.
Hernst moveu a cabeça e tombou seu rei no tabuleiro. Desabou-se em sua poltrona.
– Segue sendo muito boa – disse. – Muito. Deveria ter ganhado de você a última vez que jogamos –
seu acento alemão mal se notava. – Mas não pude resistir.
Minnie ficou de pé e lhe estendeu a mão.
– Uma boa partida – disse.
– Uma partida excelente. Me alegro de que seu marido me haja convidado. O que passou faz tantos
anos… não deveria ter passado. Não deveriam ter parado a partida, e menos quando você estava a ponto
de ganhá-la. Aquilo sempre me incomodou. Foi um prazer emendar a situação.
Minnie olhou então para Robert. Depois desses anos de matrimônio, o calor que sentia quando ele a
olhava nos olhos não tinha diminuído. Mas era ainda mais profundo, à medida que a familiaridade lhe
tinha feito conhecê-la mais. Lhe sorriu e estendeu a mão.
– Venham – disse. – Há refrescos preparados no salão principal.
Quando todos saíram, deixou que Oliver se fizesse de guia e eles ficaram para trás. Uma vez que os
outros desapareceram no corredor, abriram uma porta.
A duquesa viúva de Clermont se negou a ver o que ela considerava um espetáculo alegando que era
indecoroso. Mas Robert suspeitava que havia outro motivo por sua parte.
E na verdade, o jovem Evan, de apenas três anos, estava sentado em seus joelhos olhando a cartilha.
– Alma! – proclamou feliz.
– Que mais começa com A?
– Avó – disse Evan.
A mulher soprou.
– Adulador. Agora uma com a C, por favor.
Evan franziu o cenho.
– Cinza – disse ao fim de um instante. – Você tem cabelo cinza, sabia?
– Isso é uma calúnia da pior espécie – respondeu a mãe de Robert com calma. Mas abraçou a seu neto
e baixou a cabeça para inalar seu aroma. – Mãe – disse Robert. – Estão servindo refrescos no salão
principal.
Ela ergueu a vista.
– Oh! – exclamou, com o cenho franzido. – Estou… ocupada – voltou a baixar a cabeça e um sorriso
apareceu em seus lábios. – Muito ocupada.
NOTA DA AUTORA
Eu dou a meus livros nomes em código, que estou acostumado a revelar em minha página na Web.
Este se chamava “Campeã de xadrez”, e como isso descrevia muito, não queria usá-lo no título. Mas
agora já sabem.
Todas as obras de ficção histórica alteram a história embora seja minimamente. Neste livro tive que
mudar a história em vários casos e quero dizer quais foram.
O primeiro caso, e o mais óbvio, é o do primeiro torneio internacional de xadrez, que se realizou em
Londres em 1851. Ganhou Adolf Anderssen, não Gustav Hernst; e não houve nada estranho relacionado
com o torneio, nem nenhum menino ou menina de doze anos participou dele.
A descrição do que aconteceu a Minnie quando as pessoas descobriram que era uma garota, e a traiu
seu pai, tirei-a de um recorte de jornal que li faz anos. Falava de um homem que na verdade era uma
mulher. Congregou-se uma multidão e o golpearam. Naquela época se controlavam muito os gêneros.
O terceiro caso é algo que depois mudaria o mundo, os descobrimentos científicos que são objeto da
conferência que dá Sebastian no livro. Eu queria que fosse um cientista controvertido e seguidor de
Darwin, mas também queria que fizesse descobrimentos próprios igualmente revolucionários. Aqueles
que seguem a história da ciência, saberão que, em nosso mundo, a genética foi descoberta por Gregor
Mendel em um ensaio que apresentou em 1866 e que não foi divulgado. Ninguém estabeleceu a conexão
entre o descobrimento de Mendel e a teoria da evolução, embora o que publicou Mendel foi basicamente
uma teoria da transmissão de genes de uma geração a outra. Até princípios do século XX não se
redescobriu o trabalho de Mendel e nem este foi valorizado quanto se devia.
Em meu livro adjudiquei o trabalho de Mendel ao de Sebastian. Esses descobrimentos se poderiam
ter feito naquela época. Mas o descobrimento da genética por alguém que tinha contato direto com
Charles Darwin, trocaria radicalmente o ritmo do progresso científico. Nesse sentido, o mundo que eu
descrevi divergiria necessariamente do mundo no que vivemos depois da época desses livros. (Em
realidade, o trabalho de Sebastian começava com a cor das bocas de dragão, que diferentemente das
pêras de Mendel, são incompletamente dominantes entre elas).
A quarta alteração é que, nos protestos de 1863 em Leicester, não foi necessário que um duque
escrevesse santinhos e radicalizasse às pessoas. Esta era já bastante radical. Por exemplo, em 1863, os
operários já tinham organizado uma cooperativa de mantimentos em Leicester. Hoje em dia, uma
cooperativa de mantimentos parece algo muito corrente. Em seu tempo, foi um gigantesco passo adiante.
Os operários pagavam os donos das fábricas, que a sua vez possuíam quase todas as lojas.
Uma cooperativa de mantimentos, em que os operários punham dinheiro e o utilizavam para comprar
fruta e verdura a preços razoáveis, foi um grande avanço nas cidades industriais. Permitia aos operários
pagar menos em troca de mais, e a cooperativa de mantimentos de Leicester foi uma das primeiras, e das
mais eficazes que se criaram. Stevens a descreve como “radical” e, na verdade, teria parecido isso a
alguns donos de fábricas. Tudo o que reduzia a dependência dos operários com seus amos era “radical”.
Outro tema de descontentamento civil foi a questão das vacinas. As vacinas se fizeram obrigatórias na
Inglaterra em 1853, e muitas pessoas as odiavam. Foram objeto de uma grande desobediência civil. As
razões que se alegaram em seu momento eram muito diferentes às que se dão hoje contra as vacinas.
(Para começar, vacinar às pessoas antes da teoria do estudo dos micróbios suportava todo tipo de
complicações que já não existem hoje. Pensem nas enfermidades que se transmitem hoje ao reutilizar
agulhas). E incluí essa pequena porção do debate histórico apenas para representar a época, não para
dizer nada sobre o debate moderno.
Se em 1863 podia haver um duque que lutasse pela abolição da nobreza, é algo que eu não posso
saber. Em qualquer caso, não sei se Robert teria estado contente com o ritmo das mudanças na Inglaterra.
Hoje aos lordes não os julga mais a Câmara dos Lordes; já não têm poder de vetar as leis aprovadas pela
Câmara dos Comuns; e, só demoraram uns poucos séculos em chegar a esse ponto.
Oliver pede “azeite de carvão” quando o metem no cárcere. Chamá-lo assim é um pouco atrevido por
minha parte. Nos Estados Unidos o conhecemos como “querosene”. No Reino Unido o chamam
“parafina”. Utilizar este último término me parecia confuso para os leitores jovens que associam a
parafina com a substância de cera que se usa hoje em dia nas manicures. Na década de 1860, a parafina/
querosene/ azeite de carvão era tão novo que ainda não tinha passado às unhas. A substância se descrevia
como “azeite de carvão”. Neste caso, decidi tomar essa liberdade e optar por um nome pelo qual
poderiam havê-lo chamado nessa época e que não confundiria a ninguém.
Obrigado
PRIMEIRO CAPÍTULO DE: A VANTAGEM DA
HERDEIRA

Cambridgeshire, Inglaterra, 1867


A MAIORIA DOS NÚMEROS que a senhorita Jane Vitória
Fairfield tinha encontrado em sua vida tinham resultado inofensivos. Por exemplo, a costureira que lhe
provava um vestido a tinha cravado sete vezes ao colocar quarenta e três alfinetes, mas a dor tinha
desaparecido logo. Os doze buracos de seu espartilho eram um inferno, sim, mas um inferno necessário;
sem eles, não poderia reduzir sua cintura de um contorno terrível de trinta e seis polegadas a outro,
também terrível, de trinta e uma.
O dois não era um número espantoso, nem sequer referido ao número das irmãs Johnson que estavam
atrás dela vendo a costureira cravar com alfinetes o vestido à figura tão pouco elegante de Jane.
Nem sequer embora as irmãs tivessem soltado risinhos nervosos ao menos seis vezes na última meia
hora. Não, esses números eram meramente irritantes… mosquitos aos quais se podia espantar com um
leque banhado em ouro.
Não, todos os problemas de Jane se podiam expressar com dois números diferentes a esses. O
primeiro era cem mil, e era um veneno absoluto.
Respirou tão profundamente como lhe permitia o espartilho e saudou com uma inclinação de cabeça à
senhorita Geraldine e à senhorita Genevieve Johnson. Aquelas jovens não podiam fazer nada errado aos
olhos da sociedade. Foram embelezadas com vestidos de dia quase idênticos; um de musselina azul e o
outro verde pálido. Levavam leques idênticos, ambos com cenas bucólicas pintadas. As duas eram
bonitas ao estilo mais tópico de boneca de porcelana da China: olhos azul Wedgwood e cabelo loiro
claro que se frisava formando cachos de cabelo brilhantes. O contorno de suas cinturas era muito inferior
às vinte polegadas. O único modo de distinguir às irmãs era que Geraldine Johnson tinha um lunar
perfeitamente colocado e perfeitamente natural na bochecha direita e Genevieve tinha outro igualmente
perfeito na esquerda.
As primeiras semanas depois de conhecer Jane tinham sido amáveis com ela.
Jane suspeitava que deviam ser bastante agradáveis quando não as pressionavam até limites extremos.
Mas Jane tinha um talento para empurrar às garotas amáveis a deixar de sê-lo.
A costureira colocou o último alfinete.
– Aqui está – anunciou. – Agora olhe-se no espelho e me diga se quer trocar algo, mover parte das
rendas, talvez, ou utilizar menos.
Pobre senhora Sandeston! Pronunciava aquelas palavras igual falaria do tempo um homem a quem
fossem pendurar essa tarde. Com melancolia, como se a ideia de menos rendas fosse um luxo, algo que
apenas conheceria graças a um extraordinário e improvável ato explícito de clemência.
Jane caminhou para frente e observou o efeito de seu novo vestido. Nem sequer teve que fingir um
sorriso, pois este se estendeu por seu rosto como manteiga derretida sobre pão quente. O vestido era
odioso. Verdadeiramente odioso. Nunca antes se investiu tanto dinheiro com tão pouco gosto. Olhou sua
imagem no espelho com regozijo. A imagem lhe devolveu o olhar: cabelo moreno, olhos escuros,
coquetes e misteriosos.
– O que pensam? – perguntou, voltando-se. – Deveria ter mais rendas?
A atormentada senhora Sandeston lançou um gemido a seus pés.
Tinha motivos. O vestido mostrava já três tipos diferentes de rendas. Jardas e jardas de gaze azul
rodeavam a cintura formando ondas grossas. Uma peça fina de rendas belga marcava o decote e um
chantilly negro com um desenho de flores criava manchas negras ao longo das mangas. O tecido era uma
bela seda estampada, mas não se veria muito debaixo do polido de rendas.
O vestido era uma abominação de rendas e Jane adorava.
Supunha que uma verdadeira amiga lhe haveria dito que tirasse toda a rendas.
Genevieve assentiu.
– Mais rendas. Definitivamente, acredito que necessita mais. Um quarto tipo, possivelmente?
Santo céu! Jane não sabia onde ia pôr mais rendas.
– Um cinturão engenhoso de rendas? – insinuou Geraldine.
Uma curiosa forma de amizade, a que compartilhava Jane com as gêmeas Johnson. Eram bonitas por
seu bom gosto; em consequência, nunca falhavam ao guiar mal a Jane. Mas o faziam com tanta
amabilidade, que era quase um prazer que rissem dela.
E como Jane queria que a aconselhassem errado, apreciava seus esforços.
Elas mentiam a Jane, que a sua vez mentia. E posto que Jane queria ser objeto de mofa, o acerto
funcionava maravilhosamente para as três.
Às vezes Jane se perguntava como seria a relação se as três fossem sinceras. Se as Johnson poderiam
converter-se em amigas de verdade em vez de ser inimizades encantadoras e educadas.
Geraldine olhou o vestido e assentiu com decisão.
– Apoio plenamente o cinturão de rendas. Daria ao vestido um ar de indefinível dignidade de que
carece neste momento.
A senhora Sandeston emitiu um som estrangulado.
Jane apenas se perguntava às vezes se podiam ser amigas. Normalmente recordava as razões pelas
quais não podia ter amigas de verdade.
As cem mil razões.
Por isso assentiu às sugestões horríveis das irmãs.
– O que lhes parece essa tira de rendas maltês que vimos antes… o dourado com as condecorações?
– Certamente – assentiu Geraldine. – O maltês.
As irmãs se olharam por cima de seus leques. As suas eram olhadas ardilosas que diziam claramente:
“vamos ver o que podemos conseguir que faça hoje a herdeira das plumas”.
– Senhorita Fairfield – a senhora Sandeston juntou as mãos imitando sem pensar o gesto de rezar. – O
suplico. Tenha em conta que se pode obter um efeito muito superior empregando menos enfeites. Uma
bonita peça de rendas é a peça central de um vestido formoso, deslumbrante em sua simplicidade. Mas
muitas rendas...
– Muito pouco e ninguém saberá o que tem a oferecer – interveio Genevieve com calma. – Geraldine
e eu só temos dez mil libras cada uma e nossos vestidos devem refletir isso.
Geraldine apertou seu leque.
– Assim é – murmurou.
– Mas você, Jane, tem uma dote de cem mil libras esterlinas. Tem que procurar que a gente saiba.
Nada expressa tanto a riqueza como as rendas.
– E nada expressa tanto a rendas como… mais rendas – acrescentou Geraldine.
As irmãs trocaram outro olhar.
Jane sorriu.
– Obrigado. Não sei o que faria sem vocês. Fostes muito boas comigo, ensinando-me isso tudo. Eu
não sei o que está na moda nem que mensagem transmite minha roupa. Sem seus conselhos, com certeza
faria tudo errado.
A senhora Sandeston fez um ruído estrangulado com a garganta, mas não disse nada mais.
Cem mil libras esterlinas. Essa era uma das razões pelas quais Jane estava ali, observando aquelas
mulheres encantadoras e perfeitas trocarem sorrisos maliciosos que acreditavam que ela não
compreendia. Inclinaram-se uma para a outra e sussurraram, com as bocas ocultas detrás dos leques, e
logo a olharam e riram ao uníssono. Consideravam-na um bufão carente de bom gosto, sentido comum e
razão.
Isso não lhe vinha nada mal.
Não lhe doía saber que a chamavam amiga em sua cara e depois contavam suas estupidezes a todos
que viam. Não lhe doía que a empurrassem a usar mais e mais rendas, mais joias, mais bijuteria, apenas
para divertir-se mais. Não lhe importava que toda a população de Cambridge risse dela.
Não podia lhe importar. Depois de tudo, Jane tinha escolhido aquilo.
Sorriu-lhes como se seus risos fossem amostras de amizade sincera.
– O maltês.
Cem mil libras. Havia pesos mais esmagadores que o de cem mil libras esterlinas.
– Tem que te pôr esse vestido na próxima quarta-feira – sugeriu Geraldine. – Está convidada ao jantar
do marquês do Bradenton, verdade?
Insistimos – as irmãs moveram os leques acima e abaixo, acima e abaixo.
Jane sorriu.
– É obvio. Não perderia isso por nada do mundo.
– Haverá um homem novo. Um filho de um duque. Nascido fora do casamento, desgraçadamente, mas
reconhecido. É quase tão bom como um autêntico.
Maldição! Jane odiava conhecer homens novos e o filho bastardo de um duque soava muito perigoso.
Teria uma alta opinião de si mesmo e uma baixa opinião de sua carteira. Era precisamente o tipo de
homem que veria as cem mil libras Jane e decidiria que podia lhe perdoar todas aquelas rendas. Esse
tipo de homem perdoaria muitos defeitos se levasse o dote dela na sua conta bancária.
– Oh? – perguntou sem comprometer-se.
– O senhor Oliver Marshall – disse Genevieve. – O vi na rua.
Não é…
Sua irmã lhe deu uma ligeira cotovelada e Genevieve pigarreou.
– Quero dizer que parece bastante elegante. Seus óculos são muito distintos e seu cabelo é muito…
brilhante e… acobreado.
Ao Jane não custou nada imaginar-se a aquele espécime aparentado com duques. Teria barriga.
Usaria coletes ridículos e um relógio de bolso que consultaria continuamente. Estaria orgulhoso de seus
privilégios e amargurado com o mundo por ter nascido fora do casamento.
– Seria perfeito para ti, Jane – declarou Geraldine. – É obvio, como nossos dotes são menores, não
lhe interessaremos.
Jane forçou um sorriso.
– Não sei o que faria sem vocês – disse com sinceridade. – Se não cuidassem de mim, poderia…
Sem elas dedicando-se a convertê-la no bobo da corte, Jane podia um dia impressionar um homem,
apesar de seus esforços pelo contrário. E isso seria um desastre.
– Cuidam-me tão bem que tenho a sensação de que são minhas irmãs – disse. E pensou nas meio-
irmãs de algum conto de fadas horripilante.
– Nós sentimos o mesmo – Geraldine lhe sorriu. – É como se fosse nossa irmã.
Houve quase tantos sorrisos na sala como rendas havia no vestido. Jane pediu perdão em silencio por
sua mentira.
Aquelas mulheres não eram em nada como sua irmã. Dizer isso era insultar o nome da irmã. E se
havia algo sagrado para Jane, era isso. Tinha uma irmã, uma irmã pela qual faria qualquer coisa. Por
Emily mentiria, enganaria e compraria um vestido com quatro tipos de rendas.
Cem mil libras não eram um grande peso. Mas se uma senhorita queria permanecer solteira, se
precisava seguir com sua irmã até que esta fosse maior de idade e pudesse abandonar a casa do tutor das
duas, esse número se convertia em uma impossibilidade.
Quase tanto como quatrocentos e oitenta, o número de dias que Jane tinha que permanecer solteira.
Quatrocentos e oitenta dias até que sua irmã fosse maior de idade. Então poderia abandonar a casa e
Jane, a que lhe permitiam seguir ali com a condição de que se casasse com o primeiro bom partido que o
pedisse, poderia deixar de fingir. Emily e ela seriam livres por fim.
Jane estava disposta a sorrir, a levar jardas e jardas de rendas e Napoleão Bonaparte a sua irmã se
assim podia protegê-la.
Mas o que tinha que fazer nos próximos quatrocentos e oitenta dias era procurar um marido, buscá-lo
assiduamente e não casar-se.
Quatrocentos e oitenta dias nos quais não se atrevia a casar-se e cem mil libras esterlinas para o
homem que a desposasse.
Essas duas cifras descreviam as dimensões de sua prisão.
Por isso Jane sorriu de novo a Geraldine, agradecida por seu conselho e porque a aconselhasse mal
uma vez mais. Sorriu, e seu sorriso foi sincero.
A SÉRIE OS IRMÃOS SINISTROS

A Paixão da Governanta
A Guerra da Duquesa
A Vantagem da Herdeira
A Conspiração da Condessa
O Escândalo da Sufragista
Courtney Milan: A Guerra da Duquesa
Título original: “The Duchess War”
©2013 Courtney Milan
A Guerra da Duquesa (Os Irmãos Sinistros 1): Courtney Milan
Tradução e Revisão: GTR
Formatação Epub e Mobi: Starbooksdigital



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Hell - Inferno

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