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Sinopse: Quando o pai da jovem Leigh falece, deixa um pedido e um

conflito para filha: esta deve ir conhecer a mãe, Helen Bradley, famosa
ex-estrela de Hollywood que abandonou o cinema devido a uma tragédia
ocorrida durante a realização de seu último filme, anos atrás...
Em seus sentimentos ambivalentes pela mãe, Leigh começa uma cruzada
pessoal - para descobrir a verdade sobre Helen e também a verdade sobre
o crime em seu passado... O que parece despertar a ira de alguém...
Alguém que não deseja que Leigh investigue...
Titulo original norte-americano:
LISTEN FOR THE WHISPERER

Copyright (C) 1971, 1972 by Phyllis A. Whitney

O contrato celebrado com a autora proíbe a exportação deste livro para


Portugal Continental e Ultramarino.

Direitos de publicação exclusiva em língua portuguesa no Brasil


adquiridos pela
DISTRIBUIDORA R ECORD DE S ERVIÇOS DE I MPRENSA S. A.
Av. Erasmo Braga, 255 — 8. andar — Rio de Janeiro, GB
que se reserva a propriedade literária desta tradução
Impresso no Brasil

Ocerização: The Flash


Digitalização, formatação e correção: Chuncho (LAVRo)
Com apreço e admiração por Gunvor V. Blomqvisty
que já traduziu tantos livros meus com sentimento
pelo estado de espirito que eles pretendem transmitir.
1
Eu estava no cinema escuro com as mãos cruzadas no colo, tensa, e
olhos fitos na tela, sem piscar. O homem a meu lado tocou em meu braço
e eu me afastei dele, sem querer que alguma coisa rompesse o
encantamento da cena que se dirigia inexoravelmente para seu clímax.
— Sossegue, Leigh — murmurou Dick. — Isso é puro
sentimentalismo, embora Laura Worth tenha realmente ganhado um
Oscar por isso, há muitos anos.
Precisamente, 20 anos. Eu bem o sabia. Mas não lhe queria dar
ouvidos. Excluí o rapaz e fiquei olhando para a tela. Eu sabia a cena de
cor, mas o impacto era sempre o mesmo. Minha ambivalência, sempre a
mesma. Ficava fascinada com todos os gestos que a mulher fazia na tela,
e ao mesmo tempo eu a detestava completamente. Ninguém tinha melhor
direito de detestá-la.
No papel de Helen Bradley, na adaptação para o cinema do romance
de meu pai, Sussurros, Laura Worth vinha descendo por aquela famosa
escadaria vitoriana que se tornara quase um personagem do livro. Não só
eu, mas todo o público compartilhava seu medo. O terror parecia emanar
dela, quando desceu as escadas, uma das mãos sobre o corrimão, a outra
presa à garganta, apavorada. Era uma mulher que ia ao encontro da morte
— e que o sabia. A plateia também o sabia. Certos do final, certos de que
ela escaparia, no fim, eles assim mesmo sentiam o terror que ela queria
transmitir. Até Dick se calou, olhando, quando ela chegou ao pé das
escadas.
A tela preta e branca conseguia reproduzir os tons fantásticos da luz
de gás; até o mobiliário parecia sugerir o tremeluzir cinzento que era a
própria cor do terror. Helen Bradley sabia que morava naquela casa com
um marido que pretendia matá-la. Sabia que ninguém acreditaria em sua
acusação, se ela a fizesse, e que não havia como escapar do que estava
para acontecer — muito breve. E no entanto, ela tinha de descer aquelas
escadas, atravessar o hall e entrar na sala, onde ele a esperava. A música
de fundo era abafada, devidamente tensa e cheia de pressentimentos. A
pessoa esquecia que aquela era Laura Worth, a atriz. Cada um tornava-se
a própria Helen Bradley.
O modo como ela caminhava por aquele hall escuro em direção à
sala, sua pausa diante da porta foram memoráveis. Certamente ninguém
jamais conseguira percorrer um caminho tão curto de maneira tão gráfica.
Eu sabia até o tom exato do vestido que ela usava. Embora a tela fosse
preta e branca, a cor verdadeira era um rico vermelho-veneziano, como
fora no livro de meu pai. A mão de Helen pousou na maçaneta de
porcelana e a plateia conteve a respiração. Alguns de nós, que já
tínhamos visto a fita, sabíamos o que viria. Quando a mulher fez um
esforço para abrir a porta, aquela voz aterradora surgiu murmurando no
ar, de parte alguma.
Escute... — E depois, sinistramente mais perto: Escute...
Helen Bradley abriu a porta de repente e entrou depressa na sala.
Qualquer coisa seria preferível a ficar no hall escuro, ouvindo aquele
sussurro malévolo.
Ela entrou correndo na sala, a câmara seguindo-a. Por um momento
só houve seu medo intenso — e o silêncio. Até a música prendia o fôlego.
A câmara viajava pela sala, tocando no consolo da lareira com seu
relógio enfeitado, passando para a porta da sala de jantar. Fiquei
arrepiada — como sempre ficava nesse ponto — por causa do que não
estava lá. Numa cena anterior, um prendedor de ferro, em forma de um
gato, mantinha aquela porta aberta. Agora o prendedor desaparecera e,
horrorizada, eu sabia por que. O motivo nada tinha a ver com o faz-de-
conta e uma tela de cinema.
Aí a câmara passou para o rosto de Helen, e a pessoa via seus olhos
se arregalarem num novo terror. A vista passava rapidamente para o
corpo do homem que estava deitado no tapete diante de uma lareira
vitoriana — e voltava para o rosto de Helen. Via-se aumentar esse terror
novo e mais terrível, quando ela percebeu que o marido não era o
assassino, e sim a vítima, e que estava ali deitado na sala. Via-se nos
olhos de Helen surgir a compreensão de que o assassino era desconhecido
e ainda estava ao largo — que, afinal, não era o lado desconhecido do
homem com quem ela se casara. E agora ela estava sozinha na casa com
o que sussurrava. Foi aí que ela gritou, e o som ressoou pelos nervos de
todos os ouvintes, por muitas horas depois.
Eu me levantei, com dificuldade, e puxei Dick.
— Vamos embora. Não quero ver o resto.
Ele se levantou, espantado, e acompanhou-me para fora do cinema.
Ficamos piscando na rua iluminada. Por um momento, eu me agarrei ao
braço dele, tremendo, embora a noite de primavera fosse suave. Por trás
de nós, os cartazes do cinema exibiam o rosto inesquecível de Laura
Worth. Por cima, as luzes da marquise anunciam o Festival Worth em
exibição.
Dick afagou a minha mão.
— Tem razão — disse ele. — Retiro tudo aquilo sobre
sentimentalismo. Ela fez aquele grito parecer tão real quanto um grito
pode ser. Ainda sinto arrepios pela espinha.
— Foi real — disse eu. — Ela sabia por que estava gritando. Leve-
me para casa, Dick. Quero ir para casa.
Ele olhou para mim, curioso, enquanto nos dirigíamos para a Rua
59.
— Você tem obsessão por ela, não tem? Você é mesmo um
pouquinho estranha quando se trata de Laura Worth. É verdade que ela
era sua mãe?
— Era, não. É. — Eu ouvia o gelo em minha voz. Eu não queria que
Dick percebesse tudo o que eu sentia. — Ela ainda vive, sabe. Fez 58
anos o mês passado.
— Não, eu não sabia. Ela desapareceu depois de Sussurros, não foi?
Não houve um escândalo que prejudicou o filme, de modo que ela afinal
perdeu o Oscar e nunca mais representou?
Ele ainda estava curioso, mas vagamente. Não se importava
realmente com aquilo. E eu me importava tanto que aquilo me dilacerava.
Tínhamos chegado à casa de cidade, de tijolos, que pertencera a
meu pai, Victor Hollins, e paramos ao lado da escada de corrimão de
ferro.
— Obrigada por me levar, Dick — disse eu. — Desculpe por ter
ficado tão perturbada.
Ele fez um gesto descuidado.
— Valeu a pena ver o filme. Um dia, você me conta o final.
Desculpe se fiz perguntas demais.
Eu não o convidei para entrar, e nem ele o esperava. Éramos
amigos. Uma vez, ele me dissera que, aos 23 anos, já era hora de eu
acordar e me apaixonar. Não necessariamente por ele. Ele só tinha uma
ideia pálida do que eu pensava sobre o amor. Eu nunca exibia o que se
poderia chamar de minhas aberrações para os homens que conhecia. Eles
acabavam descobrindo que eu não podia ser atingida, e ou me
conservavam como amiga, ou se afastavam. Ninguém se magoava, e era
assim que eu queria que fosse.
Subi as escadas correndo, abri a porta e entrei em casa. Uma
lâmpada estava acesa no hall térreo, e havia luzes no andar de cima. Ruth
me chamou por cima do corrimão.
— Você voltou cedo, meu bem. Viu um bom filme?
Hesitei, pois não queria magoá-la. Ela era minha madrasta e muito
querida. Mas, dessa vez, eu teria de magoá-la, se quisesse cumprir os
desejos de meu pai. Ele morrera havia um mês, e me deixara uma carta
explícita em suas instruções. Ruth nada sabia da carta. Eu a trancara
numa gaveta até poder resolver o que tinha de fazer. Naquela noite eu
fora propositadamente ver Sussurros e o fato de ver Laura Worth na tela
me levara afinal a uma resolução.
Respondi, no tom mais brando que consegui:
— Dick levou-me para ver um filme de Laura Worth.
Percebi quando ela prendeu a respiração ligeiramente, mas ela se
afastou do corrimão sem responder. Ouvi que ela foi para o quarto,
batendo seus chinelos felpudos. Eu nunca conhecera ninguém mais
delicada, bondosa e carinhosa — e no entanto, para mim sempre
importara o fato de ela não ser minha mãe. E, mesmo quando eu era
pequenina, sentia que o amor que meu pai lhe dedicava não era o mesmo
tipo de amor que ele sentira por Laura Worth. Essa noção fora finalmente
confirmada quando meu pai estava morrendo. Ele segurara a mão de
Ruth, mas vira o rosto de outra mulher, e uma alegria estranha e
comovente surgira em seus olhos.
— Laura — murmurara ele. — Minha querida Laura. — E foi-se,
deixando-me para tentar consolar Ruth, com um ódio melancólico e
amargo a me consumir.
Então, pensei em correr para cima e abraçar Ruth, tão pequenina, e
dizer-lhe por que eu tinha ido ver aquele determinado filme. Mas
primeiro eu tinha de estar mais segura de mim.
Fui para o gabinete de meu pai e acendi a lâmpada que iluminava a
secretária. Que agora era minha secretária. Meu gabinete. Ele se
orgulhava de meus escritos, tão diferentes dos dele. Ficara ainda mais
feliz do que eu quando um jornal publicou meu primeiro artigozinho
sobre personalidade. Ele sempre dissera que aquela sala seria minha
quando ele morresse — mas eu não esperava que esse dia chegasse tão
cedo. A perda dele me cercava por todos os lados. Sempre deve ferir
aqueles que ficam quando os pertences de uma pessoa duram mais que
ela.
Eu conservara a sala como ela sempre estivera, acrescentando
apenas algumas coisas minhas. A biblioteca continuava abarrotando as
estantes. Havia uma longa prateleira, junto da lareira, com os livros dele
— todos os romances que ele escrevera. Romances que o fizeram famoso
e que já lhe haviam rendido um bom dinheiro. Ele não era esperto em
matéria de guardar dinheiro, e seus livros não eram mais tão populares
quanto já tinham sido, de modo que sobrou pouca coisa. Ruth mal teria
do que viver — e eu nada queria. Sabia ganhar minha vida, e a ajudaria
se fosse preciso. Mas ali estavam os livros que tinham feito sua
reputação, com Maggie Thornton encabeçando a fila, e todas as suas
edições encadernadas e em brochura ao lado. O livro fora traduzido em
32 línguas. Quando menina, eu me lembrava de ter entrado na sala para
contar as edições, à medida que aumentava seu número.
Maggie Thornton foi o primeiro livro dele adaptado para o cinema
para Laura Worth, e ele fora para Hollywood para preparar o script do
filme para ela. A combinação tivera tal êxito que ela foi indicada pela
primeira vez para um Prêmio da Academia, e daquela vez o Oscar fora
seu. Foi durante a filmagem que eles se apaixonaram. Victor Hollins
quisera casar-se com ela, mas ela recusara. O trabalho era tudo para ela.
Ela pretendia ter romances, mas nunca se prender. Victor não queria ficar
em Hollywood, para prestar homenagens ao ego dela. Ele tinha seu
orgulho e seu próprio trabalho, que o satisfazia, e voltou para casa para
casar-se com uma moça que o amava havia muito tempo.
Quando eu tinha idade suficiente, ele me contou todas essas coisas.
Disse-me que, quando soube que Laura ia ter um filho dele, pedira a Ruth
para tomar conta do bebê. Ela nunca hesitara, e me amava como se eu
fosse sua filha — e eu a amara. Pelo menos eu tinha a segurança de ter
meu próprio pai.
Nada do que ele me contara tinha a intenção de me levar a odiar
Laura. Ele mesmo não a detestava, e achava que no coração humano
devia haver lugar para muitos amores, de muitos tipos, e para muito
perdão. Mas alguma coisa não funcionou na intenção dele. Eu só via dor
em seus olhos quando ele falava de Laura. Eu só via a mágoa de Ruth, a
ofensa a mim por ter tido uma mãe que não me queria.
E assim eu cresci com aquela ambivalência perturbadora. Tinha
desejos de saber tudo o que podia a respeito de Laura Worth. Descobri
velhas revistas de cinema, que traziam artigos sobre ela, muitas vezes
nada lisonjeiros e cheios de boatos. Via claramente que ela era uma
pessoa que eu não havia de querer conhecer e, no entanto, continuava a
pesquisar e acumular meu fundo secreto de conhecimentos,
provavelmente falhos. Uma vez, no colégio, eu me gabei abertamente de
que ela era minha mãe, chocando minha professora e intrigando meus
colegas, só para negar tudo no dia seguinte. Até mesmo brincando com
minhas bonecas, eu era atormentada pelo espectro de uma mãe que nunca
me quisera conhecer. Dizia a meus filhos bonecos que eu era mãe deles,
mas que estava muito ocupada e que não podia ficar com eles. Depois,
desatava a chorar, porque não conseguia deixá-los. Depois disso, eu
procurava compensar as coisas para eles, dando-lhes o tipo de amor que
Ruth me dava. Mas isso nunca era satisfatório, porque eu sabia que eles
nunca se esqueceriam das palavras cruéis que eu pronunciara, e nunca me
poderiam amar novamente.
Laura tinha 34 anos quando eu nasci. Quatro anos depois, ela
filmara Sussurros mas daquela vez não foi meu pai quem escreveu o
script. A carreira de Laura terminou antes do fim do filme — embora ela
não pudesse sabê-lo, na ocasião. Muitas vezes, enquanto eu crescia, me
alegrei com o fato. Esperava que ela não tivesse largado o trabalho por
sua vontade. Que ela tivesse sofrido quando ele lhe foi tirado. Pois, por
mais que eu tentasse, não via por que ela merecesse qualquer
compreensão ou bondade.
Fiquei sentada na imensa secretária em que Victor Hollins escrevera
seus romances, com tanta dificuldade, a mão. Minha máquina de escrever
portátil tornava-se pequena demais naquela extensão de mogno. Empurrei
a máquina para longe, afastei o artigo inacabado que eu estava
escrevendo para uma revista, e estendi a mão para a fotografia no porta-
retrato a minha frente. No canto inferior direito, numa caligrafia
marcante feminina, estava escrito: “Para meu querido Victor, com todo
meu amor — Laura.”
Eu tinha encontrado a fotografia numa gaveta trancada na secretária
de meu pai e a colocara de propósito num lugar em que me provocasse e
me levasse a resolver as coisas. Ruth não compreendera, e eu não lhe
podia explicar o que sentia. Ela tinha conseguido ter pena de Laura com o
passar dos anos, enquanto que em mim não havia qualquer sentimento de
compaixão.
Agora, eu estava estudando o rosto de Laura Worth. Fora
incrivelmente bela, mas nunca com uma beleza convencional. Não era
bonitinha. O pai dela era americano, casado com uma norueguesa de
cabelos louros, e Laura tinha saído a ele, com olhos e cabelos escuros.
No retrato, o cabelo estava penteado fofo, à moda do princípio dos anos
30, o queixo levantado para mostrar a linha alongada e linda do pescoço.
Por cima das maçãs salientes, seus olhos grandes e escuros tinham
pestanas naturalmente espessas, e suas sobrancelhas estavam pintadas de
escuro. O nariz forte, com narinas dilatadas, e a boca larga e generosa
formavam um rosto que só poderia pertencer a Laura Worth. Era um rosto
que poderia ser reconhecido em qualquer lugar, embora não fosse visto
na tela em nenhum filme novo desde 1950.
Virei o retrato para captar a luz e o vidro transformou-se um
espelho, com meu próprio rosto superposto ao dela. Eu não me parecia
nem com Laura Worth nem com Victor Hollins. Meu queixo não era
suavemente arredondado como o de Laura; era um queixo forte e
obstinado como o nariz de Laura. Meus olhos eram de um azul-
esfumaçado, meus cabelos, de um louro-escuro, e eu os usava lisos,
cortados logo abaixo da linha do queixo. Eu nada me parecia com a
fotografia, e no entanto sentia semelhança indesejável dentro de mim.
Sabia que possuía alguma coisa de sua natureza tempestuosa e
indomável. Eu queria ser suave como Ruth. Não queria sentir tão
profundamente nem ser tão dominada por minhas emoções. Esse era um
dos motivos por que eu receava o amor. O amor entre um homem e uma
mulher era perigoso, machucava — eu não queria saber disso.
Uma vez, quando eu tinha 10 anos, meu pai me levou a uma matinê
de cinema. O filme a que fomos assistir foi Maggie Thornton.
— Quero que você saiba como era sua mãe — dissera ele.
A mulher dinâmica na tela me fascinou. Ao lado dela, eu me sentia
um zero. Como poderia qualquer filha crescer para ser igual a uma mãe
daquelas? Seria isso que meu pai queria, pensei — que eu fosse igual a
ela?
No caminho de volta para casa, ficamos os dois calados, ambos
atormentados pelo que tínhamos visto. Quando chegamos, papai me
levou ao gabinete e me empoleirou em cima da mesa. Eu não queria ouvir
o que ele pudesse dizer.
— Não quero ficar igual a ela, quando eu for grande! — exclamei.
— Ela não me quis e eu não a quero. Só quero você e Ruth. Eu a detesto,
detesto!
Ele me abraçou muito e deixou que eu chorasse bastante no ombro
dele. Acho que minhas emoções violentas o alarmavam e entristeciam.
Não era aquilo que ele pretendia.
Quando fiquei exausta, ele me beijou com carinho.
— Você nunca mais deve fazer isso — disse ele. — Era assim que
Laura era. É preciso que você a perdoe, mas não que seja igual a ela.
Eu nunca a perdoei, e tinha um medo terrível de ser igual a ela.
***
Dois dias antes de morrer, meu pai tornou a me levar ao gabinete
dele.
— Quero lhe dar uma coisa — disse ele.
Abriu uma gaveta trancada e pegou um objeto — eu nunca o vira
antes. Era um lindo peso de papéis francês — chamava-se millefiori,
conforme ele disse. Por baixo do vidro havia uma multidão de florezinhas
azuis, vermelhas, verdes e amarelas. Eu o segurei com cuidado, enquanto
ele me falava a respeito.
— Laura Worth me deu isso de presente, para comemorar o término
de Maggie Thornton. É muito antigo e muito valioso. Quero dá-lo a você.
Guarde-o para lembrar-se de nós dois.
Dois dias depois, ele tinha desaparecido. Eu não precisava do peso
de papel para me lembrar dele. Agora, eu tinha a carta dele, escrita com a
consciência de que seu coração estava fraco. Nela, ele me dizia que
sempre desejara que eu conhecesse minha mãe, e que ela me conhecesse.
Agora, que eu estava crescida, poderia ser possível para mim transpor o
vão que ela parece nunca ter tentado fazê-lo. Conforme eu já sabia, ela
morava em Bergen, na Noruega, e ele queria que eu fosse procurá-la e
conhecê-la.
“Sei que você está coligindo material para um livro sobre grandes
estrelas cinematográficas do passado”, escreveu ele. “Um livro desses
não estará completo se não incluir Laura Worth. Há 20 anos que ela não
dá uma entrevista, mas, se você lhe levar o peso de papel millefiori, creio
que ela a receberá."
Eu compreendia perfeitamente que a carta dele me procurava
prender. Eu me orgulhava da justiça e objetividade com que escrevia os
artigos que estavam começando a me dar um nome. Se eu entrevistasse
Laura Worth, teria de considerá-la sem emoções subjetivas e
tempestuosas. Era isso que ele pretendia.
“Se você tiver alguma dificuldade em localizá-la", continuava a
carta, “procure meu bom amigo Gunnur Thoresen. A carta anexa é para
ele.”
Eu sabia quem era Gunnar. Ele agora devia estar com seus 38 anos,
mas anos antes, quando ele estava na universidade, tinha escrito a meu
pai uma carta extraordinariamente objetiva sobre um dos romances dele,
que deu origem a uma longa troca de correspondência. O pai de Gunnar,
já falecido, era proprietário de uma linha de navegação mercante com
base em Bergen, e ele tinha participação na companhia e também
trabalhava nela. Nas vezes em que Gunnar fora mandado a Nova York,
ele e meu pai se conheceram e se tornaram bons amigos, a despeito da
diferença de idade entre eles. Gunnar conhecia Laura Worth, e eu sabia
que ele eventualmente dava notícias dela a meu pai. Eu o vira uma ou
duas vozes quando era mais mocinha, mas não me lembrava dele. Meu
pai geralmente se encontrava com ele fora de casa, talvez para poderem
conversar livremente.
“Sua herança de parte de sua mãe está na Noruega”, continuava a
carta de meu pai, “e já está em tempo de você saber qual é essa herança.
Acho que sua mãe mora na casa de sua avó e, embora os velhos tenham
morrido, a casa, a cidade e o país lhe dirão mais a respeito de você
mesma do que você pode saber, atualmente. Já chegou o momento de
você perdoar e compreender sua mãe. Ruth não a impedirá de ir. Ela
compreenderá.”
Ele concluía com expressões de carinho, desejando minha
felicidade, o que me deixou com lágrimas nos olhos. Há muito que ele se
preocupava comigo. Era essa a sua maneira de tentar remendar em mim
alguma coisa que fora danificada havia muito tempo. A carta a Gunnar
Thoresen estava fechada, e eu nem pensei em saber o que ela conteria.
Laura Worth e eu nunca poderíamos ser amigas. Eu seria capaz de
escrever um artigo sobre ela como atriz, mas nunca poderia perdoá-la
como ser humano. Quanto ao fato de sermos mãe e filha, eu sentia dentro
de mim uma amarga necessidade de confrontá-la com isso. Talvez para
fazê-la sofrer, se isso fosse possível.
Vendo-a em Sussurros, naquela noite, eu firmara minha resolução.
Iria a Bergen. Usaria toda minha habilidade para conseguir falar com ela.
Fossem quais fossem os muros que ela tivesse construído em volta de si,
eu os escalaria. Confrontada com minha pessoa em carne e osso, ela teria
de me dar alguma coisa mais que o silêncio de pedra que eu recebera
durante todos aqueles anos. Concedendo-me ou não uma entrevista, ela
teria de me admitir como sendo de seu próprio sangue. Era chegada a
hora de ela encarar o que fizera no passado, compreender que as ações
têm suas consequências. Não me ocorreu que em minha atitude havia
uma certa arrogância digna da própria Laura Worth. Eu só sabia que
pretendia levar-lhe mais que um simples peso de papel millefiori.
Do retrato na secretária, seu rosto jovem me olhava com aquele ar
ligeiramente zombeteiro que ele mostrava muitas vezes em suas
caracterizações. Como seria ela aos 58 anos? Eu já conversara com outras
atrizes envelhecidas. Sabia como elas conservavam sua beleza com
carinho, e as admirava pela vida e energia que as conservavam como
figuras ativas, ocupadas e atraentes. Mas Laura fugira da própria vida que
ela tanto amara, como fugira de meu pai e de mim.
Eu sabia de alguns detalhes do que acontecera depois que ela partiu
de Hollywood. Viajara pela Europa e casara-se com um inglês que
ocupava um cargo diplomático em Oslo. Por algum tempo moraram na
Noruega, mas o casamento não dera certo. Divorciaram-se. Por alguns
anos, tudo o que Laura Worth fazia era notícia. Mas depois do divórcio
ela se mudou para a antiga casa dos pais, em Bergen, desaparecendo
completamente de cena.
Por que ela fugira de tudo? Por que, realmente, fugira? Ah, eu sabia
do escândalo que houvera em Hollywood antes do término da filmagem
d e Sussurros. Mas outras atrizes tinham superado fatos igualmente
maldosos, continuando em suas carreiras. O que importava que o diretor,
Cass Alroy, fosse encontrado morto — assassinado — no próprio set de
Sussurros, que eu vira naquela mesma noite? É bem verdade que a
princípio suspeitaram de Laura Worth. Houve um momento em que até se
pensou que ela podia ser julgada pelo assassinato dele. Todo mundo sabia
que Cass e Laura tinham brigado o tempo todo, nesse seu primeiro filme
juntos. Dizia-se que eles eram amantes — mas esse tipo de mexerico
sempre perseguia todas as estrelas. Os colunistas sociais estavam sempre
à espreita para pegar qualquer indício superficial e aumentá-lo
exageradamente. Pelo menos ela fora completamente inocentada durante
as investigações e, se os mexericos continuavam, eram certamente o tipo
de coisa que uma mulher como Laura Worth teria forças para combater.
Então, o que teria causado sua crise?
Nunca se encontrou a solução daquele assassinato. Continuava
aberto nos arquivos. Mas depois que Laura Worth ficou isenta de todas as
suspeitas, ela teve um esgotamento nervoso total. Seus amigos a
esconderam, cuidaram dela e mantiveram os jornalistas a distância.
Sussurros — que ela conseguira terminar — não deu os lucros esperados,
e outra pessoa ganhou o Oscar. Depois que ela se restabeleceu, verificou
que seu contrato não seria renovado por Premier Pictures onde ela
trabalhava, e ninguém mais queria seus serviços, no momento.
Por conversas com outras estrelas, eu sabia que uma queda de
popularidade podia acontecer assim de repente. Mas geralmente as atrizes
continuavam firmes. Especialmente se tinham admiradores e a atração
que Laura Worth despertava. Faziam papéis teatrais quando podiam,
apareciam na televisão, trabalhavam no estrangeiro. Mais cedo ou mais
tarde, o veículo certo poderia aparecer e seu brilho de estrela refulgir
como antes. Bette Davis, Joan Crawford, Lillian Gish, Gloria Swanson,
todas eram mulheres ocupadas e ativas. Mas Laura Worth fugira.
Havia perguntas demais. Afastei o retrato e levantei-me. Numa das
extremidades da estante, papai mantinha seus álbuns de recortes, e eu fui
olhar os anos marcados nas capas. Ruth guardava esses livros fielmente
para ele, pois papai não era do tipo de guardar todos os comentários,
todos os retratos ou relatos das conferências que ele realizara em todo o
país. Mas Ruth os colecionava a todos, e eu tinha de agradecer a ela por
ter um registro completo da vida profissional de Victor Hollins. Havia
apenas um álbum em que ele mesmo tinha colado certos itens — nesse
caso, itens que não lhe diziam respeito pessoalmente. Eu descobrira esse
álbum havia muito tempo e o procurei agora, levando-o então para a
secretária.
Ele se abriu facilmente onde eu queria, pois eu já devorara aquela
história muitas vezes. Fotos de uma Laura Worth mais velha e ainda mais
bonita me olhavam da página. Não eram fotos de pose estudada, mas
instantâneos de fotógrafos de jornal, ávidos de retratarem uma mulher
envolta em uma tragédia. Seus olhos estavam desolados e destacavam-se
as famosas covinhas em suas faces. Aqueles maxilares largos davam a
seu rosto força e caráter; a suavidade juvenil de antigamente
desaparecera. Era uma mulher que sofrera muito — a mesma mulher que
representara com tanto brilhantismo o papel de Helen Bradley em
Sussurros.
Mais abaixo, na mesma página, havia uma foto de Cass Alroy, com
um relato de suas habilidades e realizações como diretor. Eu nunca
apreciara a cara dele. Era magra, um tanto ascética, e a boca me parecia
cruel. Diziam que ele tratava os atores que trabalham com ele quase com
despotismo. Ele os obrigava a fazer o que queria a todo custo, recorrendo
até a artifícios para despertar emoções quando o desejava, por causa de
alguma cena num filme.
Mas não eram as fotos do jornal que me interessavam mais, no
momento. Era a história do que acontecera naquela noite no estúdio,
quando Cass Alroy foi encontrado assassinado, e que meu pai tinha
recortado com tanto cuidado e colado em seu álbum. Eu conhecia o relato
de cor, mas tornei a lê-lo.
Às vezes, quando Laura Worth estava trabalhando em um filme, ela
ficava no estúdio, morando em seu camarim, e até dormindo ali em
algumas noites. Ela verificara que podia conservar o estado de espírito de
um determinado papel, com muito mais facilidade, se não permitisse que
o mundo exterior interferisse. Ela estudava o script, decorava suas falas
para a filmagem do dia seguinte e às vezes passeava pelo palco de som,
no escuro, ensaiando as cenas.
Naquela determinada noite, ela fora ao set vazio da escadaria, hall e
sala do Sussurros, representando uma cena que seria filmada no dia
seguinte. Depois disso, voltara para seu camarim e se preparara para
dormir. Tudo parecia estalar e farfalhar, no grande palco de som, e
embora ela nunca tivesse ficado nervosa, quando pernoitava em seu
camarim, naquela noite ela ficou escutando apreensivamente. Quando
ouviu um estrondo vindo na direção do set, vestiu um roupão e saiu
correndo.
Uma luz ficava acesa a noite toda, de modo que o set se conservava
parcialmente iluminado, como estava quando ela ensaiara antes. Ela se
dirigiu apressadamente para o set da sala e quase tropeçou no corpo de
Cass Alroy. Horrorizada, correu para a porta do palco e gritou por
socorro. Um dos guardas do estúdio tinha entrado. Verificou-se que Cass
fora derrubado por um pesado prendedor de portas, de ferro, usado no
set, sendo seu crânio esmagado por um golpe que devia ter provocado
morte imediata.
Outros recortes desenvolviam a história. Laura Worth estava sendo
interrogada pela polícia. As discussões de Laura com Cass Alroy, seu
suposto caso amoroso com ele, seu ressentimento contra a direção dele,
tudo isso foi exposto nos mínimos detalhes. Mas havia três circunstâncias
que não podiam ser mudadas nem negadas, e que afinal desviaram dela
todas as suspeitas.
Antes de mais nada, havia outra pessoa no set naquela noite — uma
mocinha, fã de Laura Worth, tinha conseguido esconder-se dentro do
estúdio quando foi encerrado o expediente, na esperança de avistar Laura,
e tinha ficado no palco de som durante a noite.
Os fãs eram parte integrante da vida de todos os astros
cinematográficos. Qualquer estrela popular podia ter um fã-clube, cujos
membros se espalhavam por todo o país. Os fãs formavam uma raça à
parte, e os astros os amavam e temiam. Podiam invadir um cinema ou
teatro, numa exibição pessoal, e arrancar as roupas das costas de seu
ídolo. Ou podiam também dar recados, atender a telefones, escrever
carta, fazer uma infinidade de pequenos serviços, se lhes fossem
permitido satisfazer seu desejo de servir. Alguns chegavam a extremos,
para ficar perto da estrela que adoravam. Muitos eram jovens, impulsivos
e emotivos.
Laura tinha desses fãs em todo o país. Tinha uma, especialmente,
em Los Angeles. O nome da moça era Rita Bond, uma pequena impulsiva
de 18 anos, que resolvera que o melhor meio de se aproximar de Laura, e
talvez ter uma oportunidade de lhe falar, seria a de ser contratada como
extra num de seus filmes. Seu plano saiu melhor do que ela esperava, e
deram-lhe a ponta de uma empregada em Sussurros. Era preciso um rosto
— um rosto jovem, redondinho, que pudesse exprimir pavor na cena
devida. Rita devia parecer perpetuamente assustada e tímida, a julgar
pelas notícias dos jornais.
Essa pequena descobriu que Laura às vezes pernoitava em seu
camarim junto ao set. Na ocasião, Laura comunicara, ao terminar a
filmagem do dia, que era essa sua intenção. Não apenas Rita, como todos
n o set sabiam de seu plano. Rita aproveitara uma oportunidade e se
escondera no meio dos guinchos e imensos equipamentos de câmaras e de
som — toda a confusão normal de um set onde se estivesse fazendo uma
filmagem. Conseguiu permanecer no palco de som, despercebida, quando
o estúdio fechou as portas. Pegou uma ou duas almofadas do set de
Sussurros, e arrumou para si uma espécie de cama perto do camarim de
Laura. Mais tarde, ela confessou que não sabia exatamente de que modo
iria abordar seu ídolo. Agitada e emocionada demais para poder dormir,
ela ficou acordada em sua cama improvisada.
Ouviu Laura a recitar suas falas em voz alta. Acompanhou-a
furtivamente, quando ela foi para o set e se pôs a andar por ali, ensaiando
as cenas do dia seguinte. A moça não a atrapalhou de maneira alguma.
Para sua almazinha tonta, era suficiente poder assistir a ritos tão divinos.
Quando Laura voltou a seu camarim, Rita acompanhou-a, sem ser vista.
Tornou a deitar-se, mas não dormiu, ainda. Quando ouviu o estrondo do
set, e Laura saiu correndo do camarim, Rita correu atrás dela, bem
pertinho. Ficou esperando, num pavor desamparado, quando Laura foi até
a porta e gritou pedindo socorro. Ela estava lá quando chegou o guarda. E
estava lá nas semanas de depoimentos que se seguiram. Felizmente,
estivera montando guarda sobre Laura a noite toda, e vira todos os
movimentos que a atriz fizera, fora de seu camarim. Tinha confirmado os
fatos ocorridos.
Houve outra circunstância que constituiu prova ainda mais forte de
que Laura não poderia seriamente ser objeto de suspeita, apesar dos
boatos que corriam. Verificou-se que o prendedor de portas de ferro, em
forma de gato, que matara Cass Alroy, era pesado demais para poder ter
sido usado por Laura ou por Rita. Nenhuma das duas poderia levantá-lo
com facilidade, e muito menos usá-lo para dar um golpe. Um homem
grande poderia tê-lo feito, mas não uma mulher do tipo de Laura, ou de
Rita.
Teria havido um impasse total se não tivesse vindo à tona uma nova
circunstância. A polícia descobriu que a saída de incêndio do estúdio fora
aberta naquela noite. Um dia ou dois antes, alguém depositara um monte
de terra nova, para ser usada numa cerca de plantas diante da porta, que
raramente era utilizada. Naquela terra havia as pegadas de sapatos de
homem, tamanho grande, feitas claramente quando ele saíra da porta.
Não havia pegadas de entrada, de modo que ele devia ter entrado pela
porta principal. Porções de terra apareciam ainda por um trecho da
alameda de asfalto e depois sumiam, sem dúvida desprendidas de seus
sapatos em sua fuga.
Cass tinha conquistado mais de um inimigo com o correr dos anos
— portanto, havia muitas possibilidades. As investigações apontavam um
desses especialmente como provável suspeito. O Dr. Miles Fletcher era o
médico particular de Laura Worth — homem um pouco mais velho que
ela, e que, diziam, estava apaixonado por ela. Laura fora vista em sua
companhia na cidade muitas vezes, ultimamente. Ele era um homem alto,
bem feito, musculoso, e calçava o mesmo número que o dos sapatos das
pegadas encontradas no monte de terra. E mais, tinha estado no estúdio
naquela tarde, para atender à Srta. Worth, que tinha ficado muito nervosa
com uma discussão com Cass Alroy. Todos, no set o tinham ouvido a
trocar palavras ásperas com Cass, na ocasião. Mas isso foi tudo o que a
polícia pode descobrir. O Dr. Fletcher tinha um álibi perfeito.
Ele passara pelo portão do estúdio depois de atender à Srta. Worth.
A descoberta do assassinato ocorrera por volta das 11 horas, da noite.
Nesse momento, Miles Fletcher estava em companhia da irmã, Sra. Donia
Jaffe, assistindo a uma peça num teatro do centro da Cidade. Havia outras
pessoas no teatro que atestaram tê-lo visto ali em companhia de Donia.
Nada se podia fazer para associar o Dr. Fletcher com o assassinato. Não
obstante, restavam aquelas pegadas, e não havia como negá-las. O
veredicto foi assassinato por pessoa ou pessoas desconhecidas. Passara a
primeira onda.
Laura ficou livre para ter seu esgotamento nervoso e Rita Bond
estava livre para ir aonde vão todas as fãs adolescentes, ex-adoradoras.
Os recortes que eu lia tinham quase esgotado a história. Havia
apenas mais um. O Dr. Miles Fletcher cuidara de Laura constantemente
em seus dias de incerteza e aflição. Ela se voltava para ele como para
nenhuma outra pessoa e, quando afinal teve um colapso, foi ele quem
ajudou a levá-la, em segredo para um lugar em que ele e a irmã lhe deram
assistência até ela se restabelecer. De que modo ela recompensou essa
dedicação, nunca se soube. Ou pelo menos, não ficou claro em tudo que
eu li sobre o caso. Ele também pareceu desaparecer de cena quando a
própria Laura sumiu.
Isso era a coisa mais estranha para mim — que se tivessem passado
tantos anos. O escândalo morreu, afinal, e houve uma imensa procura
pelos filmes de Laura Worth. Se ela quisesse, teria tido ofertas de
contratos. Mais uma vez, nos filmes antigos, ela aparecia nas telas de
cinema e televisão, em plena beleza de sua juventude e maturidade. Para
o mundo, ela nunca envelheceria, embora na realidade ela agora se
estivesse aproximando dos 60. Os recortes um pouco amarelados, no
álbum em minha frente, tinham o mesmo sentido de imediatismo.
Contavam fatos que tinham — no espírito de quem escrevia — acabado
de acontecer. Vendo-os depois do filme a que eu assistira naquela noite,
parecia que a tragédia devia ter ocorrido na véspera. Se eu ligasse o
rádio, um noticiário certamente daria o nome de Laura pelo ar, para
assustar os ouvintes.
É, realmente, todos os que naquela época eram jovens e belos já
estavam velhos, a essa altura. Os que ainda estivessem vivos teriam
rugas, cabelos grisalhos e pele plácida. Nenhum deles teria semelhança
com essas fotos de jornal de uma outra época.
Levei o álbum para a estante e guardei-o, com o coração
estranhamente pesado. Não me entristecia pensar que Laura Worth não
era mais jovem. Eu não podia deixar de esperar que ela sentisse falta de
sua juventude e beleza perdidas. Qualquer que fosse a dor que sofresse,
ela a merecia. Ela nunca poderia realmente pagar o mal que fizera a
outros que eram bons e dignos. Victor, meu pai, e Ruth, mulher dele. E
eu. Eu não era nem tão boa nem digna como eles. Não obstante, tendo
relido aqueles recortes, a sensação de tragédia pesava sobre meu espírito.
Depois de apagar a lâmpada da mesa, fiquei por um momento no
silêncio escuro do gabinete de meu pai. De fora das janelas, vinha o
ronco abafado de Nova York. Um luar pálido atravessava as vidraças,
tocando um tapete, uma poltrona, a secretária. Eu nada via daquilo. Uma
voz murmurava em minha mente. Escute..., dizia. Escute... No livro de
meu pai, uma mesinha fora usada para conseguir a ilusão de sussurros
que vinham do vazio. Eu não precisava de nada disso. A própria voz
parecia soar pelos meus pulsos e eu tornava a lembrar-me da cena em
Sussurros em que Helen Bradley encontrava o corpo do marido — aquele
momento terrível em que ela gritava.
Sim, Laura Worth sabia gritar.
Outro diretor fora contratado para terminar o filme. E Laura, sendo
atriz, adiara o momento de seu colapso e representara o papel até o fim.
Eu ficava pensando como é que aqueles do estúdio — fotógrafos,
auxiliares, encarregada do script, técnicos —, toda a turma e assistentes
de diretor e da estrela, se teriam sentido quando ela gritou. Devia ter sido
um momento de horror para todos. Talvez o corpo de Cass Alroy tivesse
manchado o próprio tapete em que os atores estavam pronunciando suas
falas, que agora tinham um significado terrível. Todos deviam ter
consciência daquela porta para a sala de jantar. Onde existira um
prendedor de porta de ferro. Este sumira, nas últimas cenas do filme.
Ninguém procurara substituí-lo.
Abruptamente, eu me arranquei desses pensamentos, acendi a luz e
tornei a olhar para os olhos do retrato. Não havia horror neles — isso
ainda estava por vir. Só aquele vago traço de zombaria, aquela sugestão
de uma confiança crescente, de inclemência, talvez, na boca larga e
jovem que não era bem suave. Mas eu não queria mais pesquisar seu
rosto jovem, e coloquei o retrato de cara para baixo sobre a mesa. Depois
abri uma gaveta embaixo e peguei o peso de papel millefiori. Conforme
os desejos de meu pai, eu levaria comigo esse presente de Laura para
Victor — presente deste para mim. Eu esperava que os olhos dela
revelassem alguma coisa da dor antiga, quando eu o entregasse a ela.
Subi para dizer a Ruth que iria para a Noruega.
2
Fiquei de pé junto da janela de meu quarto confortável, no Norge
Hotel, olhando para o que se podia ver de Bergen. Aquela parte da cidade
ocupava uma península que avançava pelas águas do fiorde da cidade, e
ali se localizava grande parte do bairro comercial. Chegando do
aeroporto, eu tinha tido a consciência opressiva de penhascos de rochas
dominados por montanhas negras, algumas com os picos cobertos de
neve.
Às vezes, havia uma casa, empoleirada no que parecia ser um
penhasco inacessível, com sua tinta amarelo-vivo a desafiar a paisagem
marrom e preta. Uma paisagem proibitiva, conquistada por um povo
enérgico. Eu não tinha a menor sensação de pertencer àquela terra.
Da janela do hotel, podia olhar para a praça movimentada, onde
havia uma estátua de um violinista tocando. Também ele estava sobre
uma rocha escarpada. O tempo estava frio, apesar do sol, e o povo na rua
usava roupas de inverno. Eu deixara as forsítias em flor em Nova York,
mas aqui havia neve nas montanhas, e o bafo das pessoas fazia fumaça no
ar. As gaivotas voavam ao nível da janela, e eu ouvia seus gritos roucos.
Por sobre os telhados dos prédios vizinhos a montanha Flöyen
erguia-se íngreme até seu pico de rochas, com filas de casinhas de
telhados vermelhos subindo até quase à altura em que os escuros abetos
tomavam conta, indo até o cume. À direita, densamente agrupadas nas
encostas mais baixas, havia mais casas, dispostas ao acaso, como se suas
ruas fossem tortas. Para lá ficava o bairro de Kalfaret — onde
antigamente morara minha avó norueguesa.
Perguntei ao porteiro do hotel se ele sabia onde ficava a casa da ex-
atriz do cinema americano, Laura Worth. Ele fez que sim com a cabeça,
ao ouvir o nome dela. Sabia.
— Ela mora em Kalfaret, a zona da antiga aristocracia da cidade. Se
a senhorita for até o parque, pode ver as casas. Talvez possa vê-las de seu
quarto.
Eu lhe pedi que me desse o endereço e número de telefone, e ele os
procurou e escreveu num papel.
— Deve lembrar-se de que a Srta. Worth é meio norueguesa — disse
ele, sorrindo, passando-me o papel. — Ela agora pertence a Bergen.
Eu lhe agradeci, sem comentários, e me dirigi para o elevador, sem
cabineiro, cuja porta não se abria automaticamente. Quando cheguei a
meu quarto, fui logo para o telefone. Uma ação imediata era o que eu
queria. Tinha almoçado ao chegar do aeroporto, e isso demorara, levando
mais de uma hora. Agora, queria pôr as coisas para funcionar, fazer
aquilo para que eu viajara.
Uma voz de mulher, com sotaque americano, atendeu ao chamado.
Meu coração começou a bater como eu nunca imaginei que batesse.
Quando perguntei pela Srta. Worth, perguntaram-me logo qual era o
assunto. Eu disse que era Leigh Hollins, de Nova York, e que desejava
falar com Laura Worth, Ela sabia quem eu era.
A mulher repetiu meu nome, e senti um choque no tom dela. A Srta.
Worth não podia falar com ninguém no momento, explicou a voz. Eu
estaria no hotel durante a próxima hora? Se estivesse, ligariam para mim.
Tive de satisfazer-me com isso. Mais de uma hora se passou, e eu já
estava ficando inquieta. Tinha a impressão de que Laura Worth não me
iria receber, que meu método direto fora abrupto demais para me
conseguir mais que uma recusa. Mas não importava. Restava-me ainda
Gunnar Thoresen. Meu pai tinha certeza de que ele me ajudaria.
A campainha estridente me levou a atender correndo, a mais uma
vez o meu coração começou a bater daquela maneira descompassada.
Será que a voz dela seria a mesma de que eu me lembrava, de todos
aqueles filmes? Eu reconheceria aquele tom rouco em qualquer parte,
tinha a certeza. Mas foi um homem quem atendeu ao meu “alô” —
apenas o porteiro.
— O Dr. Fletcher está aqui para falar com a senhora, Srta. Hollins
— disse ele.
Dr. Fletcher? Era um nome do passado. Será que o mesmo Dr.
Fletcher que salvara Laura Worth depois da tragédia, estava ali em
Bergen?
— Ele pergunta se pode ir falar com a senhorita — continuou o
porteiro. — Diz respeito à Srta. Worth e é muito importante.
— Sim... sim, é claro — consegui dizer. — Diga-lhe que pode subir.
Desliguei, adaptando-me a essa nova reviravolta nos acontecimentos
e andando pelo quarto, guardando algumas coisas e endireitando as
cadeiras e mesinhas na sala de estar.
Em menos de cinco minutos, bateram à porta e eu fui abri-la. Estava
preparada para um homem grande, pelas notícias dos jornais, e a foto que
eu vira. Ele tinha 40 anos, na época, e agora tinha 60 — e talvez fosse
maior ainda do que fora, pois parecia ter aumentado bastante. Seus
cabelos pretos não tinham traços de grisalhos, mas ele os penteava
atravessados por cima da cabeça para esconder a calvície, e usava um
bigode preto espesso, que lhe escondia a boca. No retrato de que eu me
recordava, o rosto era raspado, e sua boca tinha um ar muito severo.
Talvez por bons motivos, na ocasião. Agora, parecia haver uma certa
suspeita em seus olhos cinzentos, mas nenhuma falta de autoconfiança.
Era um homem que sabia o que queria, tinha certeza do que pretendia
fazer, mas que, não obstante, não tinha muita certeza sobre mim.
— Entre, por favor — disse eu, mostrando um sofazinho.
Ele atravessou o quarto e ficou um momento junto da janela.
— Tem uma boa vista da montanha aqui, apesar dos prédios. Bergen
é uma bela cidade. E vejo que pode ver Ole Bull tocando.
Eu sabia que ele se referia à estátua do conhecido músico e
compositor debaixo de minha janela. Reparei que ele pronunciava o
nome com o sotaque norueguês. Assim como Gunnar se pronunciava com
um u longo, o compositor era “O-le Buul”.
Mas eu não estava disposta a conversas sem finalidade.
— Sabe quem eu sou? — perguntei francamente.
Ele se virou da janela e eu me sentei numa cadeira diante do sofá.
— Sim, claro. É filha de Victor Hollins.
— E de Laura Worth — acrescentei.
Ele se sentou com cuidado no sofá.
— Sempre tive dúvidas de que essa história fosse mesmo verdade.
— Claro que é verdade — disse eu.
Ele deu de ombros, como quem duvida, mas examinou-me ainda
mais cuidadosamente. Senti o frio de uma dispensa imediata por trás do
olhar dele, e suspeitei de que, se o Dr. Fletcher tivesse alguma coisa a
dizer a respeito, eu não veria Laura Worth.
— Para que veio aqui? — perguntou ele, tão francamente quanto eu.
— Meu pai morreu há um mês, e verifiquei que ele me deixou uma
carta. Ele queria que eu visse minha mãe, e havia outro motivo para eu
vir aqui. Tenho escrito um pouco, embora naturalmente nunca pudesse
seguir as pegadas dele. Já publiquei algumas coisas e agora estou fazendo
um livro de entrevistas com famosas estrelas cinematográficas dos anos
30 e 40. Eu gostaria de um esboço sobre Laura Worth para completar o
livro.
— A Srta. Worth nunca dá entrevistas. Há 20 anos, não dá uma
entrevista. Você deve saber disso.
Os olhos dele me perturbavam. Eram de um cinza-pálido que
pareciam conter em si a luz de maneira estranha e brilhante. Eram olhos
que nada perdiam. Repararam em minha roupa de malha azul-marinho, os
cabelos louro-escuros que me desciam pelo rosto, estudavam meu rosto e
obviamente o achavam jovem e não muito interessante. Sondavam meus
motivos. Punham-me na defensiva. O Dr. Fletcher era ainda mais
confiante em si agora, e confiante de estar com os trunfos do jogo, fosse
qual fosse. Absolutamente não gostei dele, e nem sabia qual era o jogo.
— Talvez ela queira receber-me — disse eu. — Eu lhe trouxe uma
coisa da parte de meu pai. Em certo sentido, sou uma mensagem dele
para ela.
— Já é um pouco tarde na vida para essa mensagem — disse-me o
Dr. Fletcher, com um sorriso pálido. — Sinto muito que tenha feito uma
longa viagem para nada. A Srta. Worth não está bem e um encontro
desses a perturbaria inutilmente. Não posso permiti-lo.
— Na qualidade de seu médico?
O sorriso tomou um ligeiro ar de triunfo.
— Na qualidade de marido dela, Srta. Hollins.
Fiquei a fitá-lo, longe de me sentir calma e segura de mim.
— Eu... eu não sabia que ela estivesse casada.
— O fato não foi muito divulgado — disse ele. — A Srta. Worth me
concedeu a honra de se tornar minha esposa há dois meses. Felizmente,
foi minha irmã quem atendeu ao telefone quando a senhorita ligou, e
naturalmente ela reconheceu seu nome e me procurou imediatamente.
Não dissemos à Sra. Fletcher que a senhorita estava aqui. Nem o faremos.
Quero deixar isso bem claro, Srta. Hollins. Nossa porta lhe estará
fechada. E minha mulher nunca atende ao telefone pessoalmente. Tenho
muito cuidado com a saúde e o bem-estar dela, e não pretendo que ela se
perturbe com espectros do passado. Ela já sofreu bastante.
Então agora eu era um espectro do passado. Fiquei examinando-o,
sem nada poder fazer, por um momento, e, diante do meu olhar, ele
tornou a dar de ombros e levantou-se.
— Espero que estejamos entendidos, Srta. Hollins. Achei melhor vir
esclarecer isso pessoalmente. Posso dizer que a Sra. Fletcher está
protegida de qualquer interferência externa que ela possa achar cansativa
e perturbadora. De nada adiantará a senhorita permanecer em Bergen.
Mesmo se eu tivesse certeza de que é filha dela, sei que ela rejeitou a
maternidade há muito tempo. Ela não gostaria de vê-la.
Ele passou por mim ao sair, e eu o acompanhei, automaticamente,
sem poder pensar em alguma coisa para dizer. Depois que ele saiu e ouvi
seus passos sumirem no tapete macio do corredor, atirei-me na cama e
fiquei a olhar para o teto furiosa.
Havia uma coisa em que eu me parecia demais com minha mãe.
Meu pai me dissera isso, com melancolia, várias vezes. A palavra “não”
era uma coisa que nunca podíamos aceitar. Mesmo quando eu era
pequena, tinha sido difícil me proibirem as coisas. Ruth aprendera logo
que eu podia ser convencida, mas nunca ser mandada de maneira
negativa.
Em outros tempos Laura Worth fora assim. Parece que não o era
mais. Estava velha e doente, e afinal se casara com Miles Fletcher, com
quem não se quisera casar naqueles velhos tempos de Hollywood. Um
marido! Isso eu não esperava ter de enfrentar. E especialmente não esse
homem que tinha figurado de maneira um tanto desagradável naqueles
recortes de jornais, que eu lera tantas vezes. Ele tinha amado Laura e
tinha trocado palavras violentas com Cass Alroy no estúdio na tarde do
assassinato. Mas, a despeito daquela pegada na terra do lado de fora da
porta de incêndio, pela qual o assassino devia ter escapado, ele tinha um
álibi seguro. De tudo isso eu me lembrava.
Mas nada adiantava pensar em tudo aquilo, nem permitir que esse
contratempo me derrotasse. Possivelmente agora nem mesmo Gunnar
Thoresen me poderia ajudar, mas tinha de tentá-lo como o passo seguinte:
Se ele falhasse, deveria haver um outro jeito.
Encontrei o nome da companhia dele no catálogo de telefones e fiz a
ligação. Depois de uma pequena demora, ele atendeu e gostei de sua
maneira de falar. Sua voz tinha um timbre profundo, uma ressonância
agradável. O sotaque dele era mais inglês que americano e o estilo um
tanto formal.
— Sou Leigh Hollins! — comecei — e vim a Bergen... — mas ele
me interrompeu logo.
— Leigh Hollins! Filha de Victor Hollins? Senti muito ao saber da
morte de seu pai.
— Trouxe-lhe uma carta dele — disse eu.
— Eu lhe agradeço. Posso levá-la para jantar hoje à noite? Teremos
muito sobre que falar.
— Obrigada. Mas estou aqui por outro motivo, também. Meu pai
queria que eu conhecesse Laura Worth. Talvez ele lhe tenha contado que
também estou escrevendo. Agora, quero fazer uma entrevista com ela
para um livro que estou planejando, sobre estrelas cinematográficas de
sua época. Mas parece que é difícil chegar até ela. Parece que não
permitirão que eu a veja.
Ele pareceu pensar em minhas palavras, e fiquei imaginando se ele
saberia do parentesco entre mim e Laura.
— Talvez meu pai lhe tenha contado — acrescentei —, ela é minha
mãe.
— Sei disso — disse ele, com delicadeza. — E claro que você tem
de vê-la, a despeito do Dr. Fletcher.
Gostei de sua confiança calma, e o fato de ele saber logo onde
estava a fonte de minhas dificuldades.
— Vou pensar em alguma coisa — disse ele, e vi que acreditei nele
implicitamente.
Contei-lhe da visita de Miles Fletcher ao hotel e exatamente o que
ele dissera.
A voz tranquila e profunda do outro lado do fio pensou em voz alta:
— Tenho uma amiga em casa de Laura... Irene Varos. Acho que ela
poderá ajudar-nos.
— Quem é Irene Varos?
— É difícil classificá-la. É uma iugoslava que Laura conheceu há
muitos anos, quando estava viajando pela Europa. Contratou-a como uma
espécie de secretária e governanta, além de amiga pessoal e assistente.
Irene não gosta do Dr. Fletcher. Vou convencê-la. Você verá.
— Você está salvando minha vida — disse-lhe eu.
Ele se riu, mas logo ficou sério de novo.
— Você chegou na hora certa. Laura precisa de você. Você deve
fazer-lhe muito bem. Pode ser que possa ajudá-la.
As palavras dele me desanimaram. Eu não queria dar-lhe uma
impressão falsa logo de saída.
— Acho que... — comecei, mas ele interrompeu antes que eu
pudesse continuar.
— Desculpe, mas há uma ligação interurbana para mim no outro
telefone. Tenho de atender. Se seis e meia for uma boa hora, vou apanhá-
la em seu hotel, o Norge, não é? E depois vamos conversar. Não se
preocupe. Vou providenciar. Então até logo, Leigh Hollins.
Só pude agradecer e concordar. Por um momento ou dois, depois de
desligar, fiquei olhando para o telefone. Gunnar Thoresen poderia bem
ser a solução para meu problema. Ele parecia confiante e resolvido a que
eu me encontrasse com Laura. Mas ele também nutria a nosso respeito
uma de mãe-filha que nada tinha a ver com os fatos. Talvez fosse até bom
ele ter interpretado mal meus motivos. Se ele soubesse meus verdadeiros
sentimentos com relação a Laura Worth, poderia não estar tão disposto a
me ajudar. Não obstante, eu me sentia um pouco culpada por iludi-lo. Ele
estava sendo bondoso e prestativo, e era amigo de meu pai. Eu não tinha
vontade de fazê-lo acreditar naquilo que, infelizmente, não podia ser
verdade. Mas, ao mesmo tempo, eu precisava de toda a ajuda possível
para poder confrontar-me com Laura Worth, com meu propósito-duplo.
Agora, eu tinha a tarde livre, e não pretendia passá-la sentada num
quarto de hotel. Bergen estava lá fora, esperando-me, e mais valia
começar a conhecê-la. Até aquele momento, eu não sentia sensação
alguma de reconhecimento, nenhum sentimento de que, através de minha
mãe, eu viera daquele lugar. O círculo próximo de montanhas negras —
as Sete Montanhas que circundavam Bergen — só me deprimiam. Mas
havia uma coisa ativa que eu poderia fazer.
Embaixo, não encontrei táxi na porta do hotel, mas o porteiro me
disse que havia um ponto de táxis a meio quarteirão, em Torgal-menning,
a principal rua comercial da cidade. Atravessei no meio do tráfego e
chamei um táxi. O motorista estudou o pedacinho de papel que lhe
mostrei e fez que sim com a cabeça, enquanto eu me recostava. Estava a
caminho do bairro em que morava Laura Worth.
Passamos pelo parque aberto, com seu lago, sua fonte central, coreto
e grandes museus e passamos a uma encosta com muito movimento de
carros. Havia poucos sinais de tráfego, e no entanto este não era confuso
demais nos cruzamentos. Cada motorista parecia estar delicadamente
blefando para ver quem conseguia atravessar primeiro. As ruas eram
estreitas, não eram feitas para automóveis, mas a maior parte dos carros
era de um tamanho razoável. Passamos pela velha barreira, que;
antigamente marcava os limites da cidade, e o motorista identificou-a
para mim. Passamos pelas tílias de Kalfaret.
As casas da encosta eram, na maioria quadradas e brancas, embora
houvesse algumas vivamente coloridas. Havia duas com dois andares, e
telhados de lousa muito pontiagudos e cheios de chaminés. O táxi tomou
uma rua lateral, subindo o morro, e agora mal havia espaço para se
passar. Os carros, porém, eram poucos, o motorista diminuiu a marcha e
fez sinal para uma casa em frente.
Um muro de sustentação alto ficava junto da rua, e a casa que ele
indicou ficava bem ao alto. Eu não podia vê-la direito pela vidraça do
táxi e pedi a ele que passasse por ela. Quando estávamos a alguma
distância, depois de uma curva, pedi que ele parasse e me esperasse. Aí
saltei e voltei.
A casa era branca, contrastando com uma encosta que ainda
guardava os marrons mortos do inverno. Eu via as telhas azuis muito
inclinadas do telhado, bem acima de mim, e apenas as janelas da parte
superior, vazias diante de mim, resguardadas por cortinas, distantes.
Havia uma garagem embutida num corte perto da escada, no morro, e um
carro pequeno estava estacionado ao lado da porta. Degraus íngremes,
paralelos à rua, levavam à casa.
Passei pela casa do outro lado da rua e depois virei-me para olhar
para trás. Uns arbusto próximos, junto da casa em frente, ofereciam um
abrigo, e fiquei ali parada alguns instantes, estudando o lugar. Ruas
tortuosas passavam para um lado e outro, e as casas eram construídas de
modo a cada uma dominar as chaminés dos vizinhos que ficavam mais
abaixo, na encosta íngreme.
Minha avó um dia morara naquela casa. Agora, Laura Worth estava
ali. Eu disse essas palavras para mim mesma, mas nada aconteceu dentro
de mim. Elas eram vazias de significado, de emoção. Nenhuma sensação
repentina de parentesco me dominou. Eu não pertencia à Noruega.
Ouvi ruídos vindos de cima, e vi que quatro pessoas se
aproximavam do lado da casa, por um caminho que dava para a escada.
Instintivamente, afundei-me mais nos arbustos que me escondiam da
vista.
O homem era o Dr. Fletcher. Uma mulher se apoiava sobre seu
braço. Ela estava embrulhada num casaco de uma cor de outono, com
peles, com a gola pálida e macia puxada para cima, em volta de seu rosto.
Do outro lado ela estava guardada por uma mulher mais jovem, bem
magra e ligeiramente mais alta. Uma segunda mulher vinha saltitante,
muito enérgica, atrás desse cortejo — era pequena, morena, mirrada, com
um colorido suéter norueguês e calças verdes. Eu os identifiquei como
pude. A mulher de peles naturalmente era Laura Worth. Eu não conseguia
ver-lhe o rosto, mas ela andava como inválida, como se fosse muito mais
velha do que eu sabia que ela era. A segunda mulher devia ser a
governanta — secretária que Gunnar mencionara — Irene Varos. A
última, enérgica mirrada, devia ser irmã do médico.
Com dificuldade, a mulher desceu a escada, apoiando-se em seus
acompanhantes. Quando chegou ao nível da rua, ergueu a cabeça pela
primeira vez, e pela primeira vez, eu vi o rosto dela e prendi a respiração.
Era um rosto branco e magro, sem pintura, sua bela estrutura óssea
visível debaixo da pele, que havia muito perdera o viço da juventude.
Mas era um rosto que eu teria reconhecido em qualquer lugar. Os olhos
escuros pareciam encovados, mas sua forma e inclinação estavam ali. E a
idade nunca poderia modificar a estrutura daqueles ossos faciais, nem
destruir a recordação da beleza que havia por baixo daquela pele
translúcida.
Os dois que a ajudavam conduziram-na para o carro e a fizeram
entrar. Em seguida, Irene Varos acomodou-se ao lado dela enquanto o Dr.
Fletcher se sentava à direção. A mulherzinha ficou nos degraus, olhando
o irmão enquanto ele dava marcha à ré e dirigia o carro pela rua. Depois,
ela correu escada acima e desapareceu de minha visão, no lado da casa.
Quando o carro estava se afastando, Laura olhou pela vidraça de seu
lado. Ela pareceu diretamente para mim, e por um instante nossos olhos
se encontraram, embora eu duvide de que ela me tivesse visto ali. O carro
desapareceu morro abaixo, e fiquei olhando para uma casa vazia da
presença do Laura.
Só então descobri que eu estava tremendo. No ar frio, havia suor em
meu rosto e, quando abri a bolsa para pegar um lenço, meus dedos
tremiam tanto que quase a deixei cair. Minha reação me desanimou.
Laura Worth era minha adversária. Pelo menos, era isso que eu esperava.
Agora, tinha menos certeza. Não menos certeza de meu antagonismo
contra ela, mas menos certeza de que ali houvesse alguma coisa digna de
minha força. A mulher de peles era um fantasma do passado. Parecia que
mal podia andar sozinha, muito menos enfrentar uma filha que tinha
ferido.
Mas não era por isso que eu tremia. Era uma reação que eu não
entendia. Enxuguei minha testa com o lenço e fiquei ali por mais alguns
minutos, até o tremor passar. Depois, voltei para o táxi que estava à
minha espera. Ele ficara depois da curva, e o motorista nada vira. Entrei e
disse que desse uma volta por Bergen — a qualquer parte. Podia mostrar-
me a cidade.
Era uma cidade alegre e bonita, constituída tanto de prédios antigos,
com telhados de lousa inclinados e chaminés altas, como de blocos de
edifícios modernos. Estendia-se pelas águas do fiorde em dois lados, com
aquela península apinhada avançando no meio, para o centro do porto.
Além, havia mais água e ilhas montanhosas, algumas nos recifes ilhados,
rochosos do Mar do Norte que eu tinha visto quando chegava de avião.
Era uma cidade planejada por necessidades geográficas, forçada em seu
modelo pelas montanhas e água que a circundavam.
Para a Noruega, maio era um mês de festivais e feriados, e passamos
por grupos de jovens marchando pelas ruas, exercitando-se de uniforme,
com suas bandas. Alguns dos rapazes tinham bestas, armas
aparentemente simbólicas do passado. Havia bandeiras norueguesas por
toda parte, esvoaçando com seu fundo vermelho com a cruz azul e
branca.
Tudo aquilo passava por cima e em volta de mim. Eu continuava
perseguida por um lindo rosto branco, cercado por peles e virado para
mim com olhos que nada viam. Não era assim que eu queria que ela
fosse. Eu queria vê-la forte e confiante, segura de si. Só aí é que eu
poderia derrubá-la com um estrondo satisfatório. Aquela mulher pálida e
vacilante não era a Laura Worth que eu viera procurar. Talvez sua própria
vida a pegara e não havia necessidade de eu derrubá-la. Mas isso eu não
queria aceitar. Eu trazia comigo um ressentimento doloroso e amargo de
muito tempo, e não podia desistir dele assim tão facilmente.
Disse ao motorista que me levasse de volta ao hotel, onde lhe paguei
e subi para meu quarto. Eu tinha uma sensação de estar suspensa, e não
pertencer inteiramente ao mundo em que me encontrava. Certamente eu
tinha de levar avante meu plano de me encontrar com Laura face a face.
Mas, no momento, só podia esperar.
No fim da tarde, vesti-me com cuidado para o encontro com Gunnar
Thoresen. Pus um vestido de lã marrom, com uma gola branca em feitio
de capuz e punhos brancos compridos. Um broche de ouro antigo e
brincos eram as únicas joias, e escovei os cabelos até ficarem bem
lustrosos, em seu louro-escuro. Eu queria que o amigo do meu pai
gostasse de mim e me ajudasse. De certo modo, minha aparência tratada
esconderia meus sentimentos não muito tratados com relação a Laura
Worth.
Pontualmente, avisaram-me no quarto de que ele estava a minha
espera no saguão. Vesti meu casaco bege, peguei as luvas, uma carteira e
fui para baixo. Ele me esperava perto do elevador. Nós nos parecemos
conhecer imediatamente e ele me recebeu com a mão estendida. Gostei
da aparência dele — alto, bem feito, mas esguio e de rosto estreito, com
uma beleza agreste, com os cabelos e olhos castanhos mais típicos das
regiões do Oeste da Noruega. Ele foi amável e polido — eu era aceita
como filha de meu pai — e no entanto havia nele uma certa reserva que
contrastava com a camaradagem mais aberta dos americanos. Eu gostava
dessa reserva. Não queria que houvesse amizade demais entre nós. O
suficiente para me ajudar, mas não mais.
— Encontrei um lugar para meu carro — disse-me ele. — O
estacionamento é um problema. O restaurante fica pertinho, de modo que
se você não se importar de andar...
— Gosto de andar — disse eu.
A noite estava fria, mas clara, e o céu não se tinha escurecido.
Percebi que a luz do dia durava, em maio.
— Isso é o que chamamos de tempo de festival — disse Gunnar. —
Em Bergen, chove muito. Às vezes, chove o inverno todo. Não temos as
nevascas pesadas do resto da Noruega. Mas em maio o tempo limpa e
geralmente fica bom, em nossa temporada anual de festivais.
Eu sabia a respeito da famosa Festspillene, o grande festival de
música, teatro e folclore, realizado todos os anos na primavera, ao qual
compareciam artistas famosos de todas as partes do mundo. Ocorrendo ao
lugar onde nasceram Edvard Grieg e Ole Bull.
Juntos caminhamos pela rua, saindo da praça e subindo para o
grande prédio de pedra cinzenta do Teatro Nacional. Gunnar conversava
agradavelmente enquanto caminhávamos, e nenhum de nós mencionou
Laura. Tudo tem seu tempo, ele parecia dizer.
O restaurante ficava defronte do teatro e subimos por uma escadinha
em caracol para chegar ao segundo andar. Ali, sentamos numa mesa num
reservado, junto de uma janela que dava para o jardim do teatro. Toalhas
bege-claras e guardanapos azul-elétricos guarneciam as mesas, e havia
vasos de plantas verdes dependurados do teto. Só mais um casal jantava
no outro lado da sala pequena.
— Esta não é nossa hora normal de jantar em Bergen — disse
Gunnar. — Nós vamos trabalhar cedo e saímos do escritório cedo. Os
homens esperam estar em casa às quatro e meia ou cinco horas, para
começar o que chamamos de nosso segundo dia, o tempo que passamos
em casa, com a família. Então tomamos nossa refeição principal a essa
hora, e talvez um lanche por volta das nove da noite. A esta hora, só
vamos aos restantes para conversar ou beber cerveja. Esta é uma cidade
universitária, e você verá que muitos estudantes enchem os restaurantes,
agora.
Eu deixei que ele pedisse por mim e ele escolheu salmão, que disse
que me agradaria. Depois que a garçonete se foi, eu o encarei
deliberadamente, achando que já tinha esperado bastante.
— Esta tarde eu vi Laura Worth — disse-lhe.
Ele não demonstrou surpresa, e ficou calado enquanto eu explicava.
Eu não conseguira esperar, disse eu. Estava ansiosa para olhar para a casa
de minha avó.
— Cheguei lá justo a tempo de ver Laura descendo aquela escada
íngreme com o Dr. Fletcher e uma mulher que, suponho, seja a Srta.
Varos. Eles a ajudaram a tomar um carro e foram embora. Uma
mulherzinha — irmã do Dr. Fletcher? — ficou na casa.
— Claro — disse ele. — Estavam fugindo de você. Por algum
motivo, você deve ter assustado o Dr. Fletcher. Por que seria?
— Então, então não poderei vê-la?
— Talvez possa. — Ele me deu seu sorriso lento, bonito. Era um
homem sério e eu ainda não o vira a sorrir — Consegui falar com Irene
ao telefone depois de ter conversado com você. Ela não pode falar
livremente na casa, mas saiu para me chamar de volta. Disse que o Dr.
Fletcher parecia estar perturbado quando voltou da cidade, e que tinha
convencido Laura de que seria agradável passar uns dias numa casinha
que ela tem num laguinho perto de Fantoft. A Sra. Jaffe, irmã do médico,
ficou na casa de Kalfaret aqui em Bergen, mas Irene foi com Laura para
cuidar dela. Nós achamos que foi tudo um plano para impedir que Laura
a recebesse, caso você insistisse. Mas, como eu, Irene acha que pode
fazer bem a ela conhecê-la.
— Ela parecia estar bem doente — disse eu.
Gunnar concordou com a cabeça, muito sério.
— Essa doença só apareceu por último.
Desde seu casamento? pensei.
— Parece ser um caso de depressão — continuou Gunnar. — Já
estive com ela algumas vezes, e é como se de repente ela tivesse perdido
todo o desejo de viver.
Dessa vez, pensei em voz alta.
— É estranho que ela se tenha casado assim tão tarde. Agora que ela
não tem mais sua antiga beleza, sua mocidade...
Ele me contradisse um pouco severamente e senti que, embora
houvesse delicadeza e bondade naquele homem, havia também uma firme
camada de rocha.
— Você não a conhece, Leigh Hollins. Posso chamá-la Leigh? Ela
sabe ser uma mulher fascinante. A beleza é mais que um verniz
superficial, embora talvez uma pessoa jovem como você ainda não tenha
descoberto isso.
Intimamente, eu me revoltei diante daquelas palavras. Ele não era
assim tão velho, e eu não gostava de que me contrariassem.
— Ela também é uma mulher muito rica — disse eu, com certa
aspereza. — O Dr. Fletcher pode não desprezar isso.
— Existe essa possibilidade, é claro. Embora talvez você esteja
tirando conclusões precipitadas.
— Pode ser que ela esteja finalmente colhendo tudo o que construiu
para si, no passado — disse eu, esquecendo-me no momento de que tinha
de ficar em guarda com Gunnar Thoresen.
Seus olhos escuros me consideraram pensativamente, com a mesma
desaprovação que eu já notara neles.
— Nós todos construímos para nós o que acabamos por colher. Não
é esse o chavão? Conheço Laura Worth há muitos anos, Leigh. Como
talvez você saiba, nossas famílias se davam muito. Meu pai gostava
muito dela, enquanto viveu, e minha mãe também gosta. Ela é uma
mulher corajosa, uma mulher triste, que até agora não se deixou abater
pelos anos.
Fiquei grata por sermos interrompidos pela garçonete, que chegou
com os pratos de sopa e pão. Evitando o olhar de Gunnar, concentrei-me
na deliciosa sopa, feita com muitos cogumelos frescos. Eu conhecia mais
a respeito de Laura Worth e o passado do que ele. Mas, no momento,
tinha de guardar para mim aquilo que eu sabia e sentia.
— Irene e eu discutimos o assunto pelo telefone — continuou
Gunnar depois que a garçonete saiu. Sua maneira ligeiramente
cerimoniosa de falar tinha um tom agradável, em contraste com a fala
mais indistinta dos americanos. Eu estava começando a me habituar com
ela. — Resolvemos que será mais prudente não contar logo a Laura que
você é filha dela. Em seu atual estado de fraqueza, a ideia de conhecer a
filha que ela não vê desde bebê recém-nascido pode ser demais para ela.
Se ela a conhecer primeiro como jornalista, pode ser que se esforce por
causar uma boa impressão. Ela é bem capaz de fazê-lo. Depois, o passo
seguinte, de deixar que ela conheça sua identidade, será mais fácil.
Talvez você possa usar outro nome, temporariamente, e apenas
identificar-se como uma escritora que está ansiosa por entrevistá-la.
Sugeri Mary Thomas como um nome possível, já que temos de escolher
um nome. Se você não se opõe.
Eu sentia uma certa segurança masculina nas combinações dele, mas
não me opus. Elas poderiam até servir melhor a meus propósitos.
— Então vou conhecê-la, afinal?
— Planejamos alguma coisa, se você não se importa. — Pelo menos
ele parecia reconhecer que havia certa arbitrariedade nesses planos. —
Em Fantoft, para onde ele foi, existe um lugar onde ela gosta de passear.
Lá existe nossa famosa stavkirke, uma das poucas igrejas de esteios
remanescentes na Noruega. Fica num parquezinho agradável, de
alamedas e montes rochosos. Irene vai levar Laura lá às 10 horas amanhã
de manha, depois que o Dr. Fletcher voltar para a cidade. Se esses planos
lhe convierem, eu a levarei a Fantoft e Irene levará Laura. Na casinha há
um carro, que ela poderá usar. Aí vocês poderão se falar, a sós.
— Ela será prevenida a meu respeito, de antemão?
— Sim. Isto é, lhe dirão que você é uma jovem escritora americana
que deseja entrevista-la para um livro em que está trabalhando.
— Mas ela não tem recusado essas entrevistas, há tanto tempo?
— Acredito que Irene a convencerá. Nos últimos anos, ela começou
a acreditar que está esquecida nos Estados Unidos. É até possível que ela
goste de um interesse suficientemente grande que a traga até aqui.
— Sei. Então devo entrevistá-la ali, se ela o permitir? É só isso?
— Vocês americanos têm uma expressão — disse Gunnar. — Tocar
de ouvido, não é? Você tem de ver como ela reage. Não se pode forçar
nada, mas talvez você peça outra entrevista.
— E se o Dr. Fletcher descobrir e o proibir?
— Laura será avisada de que ele já o proibiu. Essa é uma palavra
que ela detestava no passado. Talvez ela não a aceite agora. Talvez ela
seja como você, nesse ponto!
Sorri para ele, concordando. Ele tinha; percepção, esse norueguês
esguio, com seu rosto bonito e estreito. Talvez também ele tivesse uma
certa obstinação. Eu suspeitava de que ele não gostava de Miles Fletcher.
— Laura sabe da morte de meu pai? — perguntei.
— Sabe. Saiu nos jornais daqui. Mas não sei como isso a afetou.
Desde seu casamento, eu não a vejo muito, e ela nada disse.
— Como tem sido a vida dela, desde que veio morar em Bergen?
— Tranquila. Quando ela chegou aqui, parecia ser uma mulher
muito sofrida. Tinha feito um casamento tolo, que não deu certo, e
acabava de se divorciar. Poucos anos antes, ela fora atingida pelo que
aconteceu em Hollywood, e pelas suspeitas que o público nutria contra
ela, na América, a despeito de ter sido inocentada por lei de qualquer
culpa. Enquanto que no passado ela vivia às vistas do público, passou a
se esconder dele. Em Bergen, nós não a molestamos. Preferimos cuidar
de nossas vidas e deixar em paz aqueles que o desejam. Há um certo
orgulho por essa mulher famosa ter nascido aqui em Bergen. Acho que a
mãe dela insistiu em voltar para casa para o nascimento da criança,
embora levasse depressa o bebê de volta a seu marido americano. Não é
um fato despercebido Laura Worth morar entre nós, agora. Mas não a
molestamos.
— O que ela fez de sua vida, em todos esses anos?
Ela aceitou certas amizades. Meu pai e minha mãe, e depois eu
mesmo, estamos entre estas. Interessava-se por nossos esportes do
Inverno, e nossas caminhadas de verão. Ela lê muito.
— Mas tudo isso é só marcar passo — disse eu. — É difícil
imaginar uma pessoa como Laura Worth vivendo afastada, tendo
desistido tão completamente de uma grande carreira.
A garçonete levou nossos pratos e trouxe salmão cozido com
batatinhas brancas e um pratinho de creme azedo. Depois que nos
servimos, Gunnar voltou a minha última pergunta.
— Ela não tem sido inteiramente infeliz, creio eu. Talvez tampouco
inteiramente feliz. E quem o é? Mas basta de falar de Laura Worth. Eu
gostaria de saber de você. Esses escritos, isso lhe Interessa muito?
Seu interesse parecia ser sincero, carinhoso e, a despeito dos
momentos em que ele me tratava como um tio despótico, eu me sentia
cada vez mais atraída por ele. Eu ainda não o desiludira de sua ideia de
que era uma filha boazinha à procura da mãe. E no entanto, embora eu
não o iludisse propositadamente, abstinha-me de uma verdade que
poderia levá-lo a recusar-se a me ajudar. Agora, tentei contar-lhe um
pouco a meu respeito.
— Meu pai sempre me encorajou a escrever — disse eu, e tentei
descrever o tipo de coisas que eu tinha publicado. Eu queria que ele
soubesse que eu estava trabalhando duro para ter sucesso em meu setor.
— Você descreve um quadro invulgar — disse ele, quando parei. —
Tem muita ambição, mas e o resto de sua vida? Não há lugar para os
divertimentos?
— O divertimento mais interessante é o trabalho que satisfaz. —
Como eu não queria ouvir sermão sobre uma vida equilibrada, fiz uma
pergunta. — Você tem família, Gunnar?
— Só minha mãe, que mora comigo. Astrid, minha mulher, morreu
há vários anos. Não tivemos filhos. Ela sempre foi um pouco frágil.
— Sinto muito — disse eu. Tive de fazer a pergunta seguinte. —
Vocês foram felizes juntos?
— Muito felizes. — O tom de voz dele me contava o quanto ele
sentira falta dela.
Comemos calados um pouco, e vi que o salmão era bom como ele
prometera. Não havia tensão em nosso silêncio. Ambos havíamos perdido
aqueles que nos eram queridos e nisso havia um certo companheirismo.
Quando chegou a hora da sobremesa, ele insistiu em que eu
provasse uma espécie de framboesa amarela que dá nas montanhas da
Noruega. Só ao café é que ele voltou ao assunto de Laura Worth. O que
eu dissera antes devia estar perturbando seus pensamentos.
— Você vai ser delicada com ela? — perguntou-me.
— Não estou certa de ser uma pessoa delicada — disse eu. — Em
geral sou franca.
— Um traço admirável. Nós, de Bergen, também somos francos.
Mas aquela mulher é vulnerável. Você pode magoá-la facilmente, porque
é filha dela. Quando ela souber disso, vai lembrar-se de todas as palavras
que você lhe tenha dito.
Ele se esquecia de minha própria vulnerabilidade. Laura Worth
ferira meu pai cruelmente e me abandonara. Eu também tinha feridas —
tanto por meu pai como por mim. Respondi com cuidado.
— Acho que ela não se importaria que eu fosse sua filha. Ela fez sua
escolha há muito tempo. Decidiu-se contra meu pai, e contra mim. Então,
por que a minha existência haveria de incomodá-la agora?
— Existe uma coisa chamada laços de sangue, não é? Talvez seja
mais uma coisa do coração que da cabeça. Talvez você o tenha sentido,
quando a viu hoje.
Ele colocara seu dedo sensível sobre algo que eu não queria
confessar nem para mim mesma, muito menos para ele. Eu não queria
lembrar-me daquele acesso de tremores que me assaltara tão
inesperadamente, tão irracionalmente. Seria isso os laços do sangue que
corria per meus pulsos e reagia a Laura Worth contra minha vontade
consciente?
— Ela é uma estranha para mim! — disse eu, com um pouco de
veemência demais. — Não sinto qualquer sensação por ela ser minha
mãe. Ela me interessa como atriz, uma atriz em seu trabalho. Posso
entusiasmar-me por sua carreira. Posso... — interrompi-me sabendo que
tinha protestado demais.
Eu tinha de ter mais cuidado com esse homem. Ele podia sondar
demais. E, se ele soubesse o que eu de fato sentia por Laura Worth,
desconfio que poria um fim a nosso encontro sem a menor vacilação. Ele
era amigo dela, não meu. Era amigo de meu pai e de Laura, e nele havia
um granito rude que machucaria qualquer pessoa que se atirasse
impensadamente contra ele. Minha primeira ideia de não querer iludi-lo a
respeito de Laura estava desaparecendo. Seria difícil iludi-lo e meu único
objetivo agora era realizar esse encontro planejado. O que acontecesse
depois teria de ser resolvido oportunamente.
— Suponho que, mais do que qualquer outra coisa, eu admire o fato
de ela ter sido tão dedicada a sua carreira — continuei. — Eu também
quero ser assim. Mas naturalmente, sei que há um preço que deve ser
pago em matéria de tempo, energia e concentração. Nada do externo deve
interferir, embora possa parecer atraente no momento. — Não acrescentei
que eu pretendia ser ainda mais dedicada do que Laura fora. Eu não seria
tola a ponto de cair em armadilhas emocionais que magoariam a outros,
como ela tinha feito.
— Como será uma ambição dessas? — meditou ele. — Isso é uma
coisa que eu nunca senti. Gosto do mar e de navios. Gosto de pintar, e
pinto um pouco. Gosto das montanhas no inverno e dos lagos e fiordes no
verão. Gosto de viver meus dias plenamente, com o trabalho e o prazer
misturados. Nós os noruegueses às vezes nos perguntamos se os
americanos não estão perdendo a melhor parte da vida por causa dessa
própria corrida e determinação de, como é que vocês dizem?, chegar a
alguma coisa.
— Quando estou trabalhando, estou feliz. Estou satisfeita.
Ele repetiu seu sorriso grave, um tanto atraente, e então eu vi que
seus olhos castanhos faiscavam um pouco.
— Talvez você seja feliz só porque não tirou o tempo para provar as
outras coisas. Talvez, enquanto você estiver aqui, você permitirá que eu a
apresente a alguma das coisas que apreciamos.
— Obrigada — disse eu, e sabia que não parecia nada entusiasmada.
Gunnar Thoresen não fazia parte de minha concentração propositada. Era
sobre Laura que eu tinha de me focalizar, e não tinha tempo para
distrações. Não importava realmente se ele gostasse ou não de mim, ou se
eu gostasse dele, desde que ele me ajudasse. Eu me assegurei disso bem
firmemente, resistindo a qualquer atração que ele pudesse ter para mim.
Eu não tinha tempo para nada, a não ser Laura.
Voltamos a pé para o hotel, numa noite que estava começando a
escurecer um pouco e nos despedimos no saguão, combinando que
Gunnar me viria buscar às nove e meia na manhã seguinte.
Subi para meu quarto, sentindo-me extraordinariamente cansada. Eu
sabia que a mudança da hora, o pouco sono que tivera no avião, tudo isso
estava começando a me dobrar. Mais uma depressão que eu não
conseguia entender bem. Uma depressão que parecia surgir do esforço
que eu fazia para ser meu próprio eu individual, propositada e
inabalavelmente. Gunnar, se soubesse de minhas intenções, procuraria
afastar-me delas — ou simplesmente impedir-me completamente. Era
difícil estar sempre em guarda, como eu tinha de estar.
Depois de um banho bem quente, fui para a cama, satisfeita,
descobrindo pela primeira vez o luxo de um edredon norueguês, que me
envolveu como um saco de dormir e rapidamente me embalou para o
esquecimento.
3
Parece que os estudantes que vagavam pelas ruas ficavam de pé até
bem mais tarde que o resto de Bergen. Até de madrugada ouviam-se
gargalhadas, gritaria, canções. Mas eu ouvi tudo isso vagamente no meio
de meus sonhos e só despertei completamente uma vez durante a noite.
Aí pensei que já era de manhã, por causa da luz do dia que entrava pela
minha janela. Pelo meu relógio, eram três e meia. Levantei-me e cerrei as
cortinas, voltando para o meu edredon.
Às sete e meia eu estava refeita e pronta para o dia. Descobri que
meus passos tinham uma certa animação enérgica, enquanto eu andava
pelo quarto, a me vestir. Minha depressão tinha passado e eu estava
pronta para o encontro com Laura Worth. Naquele dia, eu me forçaria a
vê-la apenas como atriz e a induziria a me aceitar como escritora. A
princípio, era assim que devia ser nosso relacionamento. Nada de
tremedeiras ao avistá-la. Nada de traições por “laços de sangue”. Nada de
fraquejar em meu propósito original.
Vesti uma saia de escocês, um suéter branco de lã e calcei uns
sapatos cômodos e resistentes, para caminhar. Quando desci para o café,
estava com fome.
A sala do café ficava no segundo andar, e já havia hóspedes ingleses
e americanos fazendo fila para se servirem do kodtbord. Verifiquei que
podia comer quanto quisesse de uma variedade de cereais, pães, carne,
arenque, queijos e a escolha de suco de frutas, café ou chá.
Enchi meu prato e tomei uma mesa junto da janela, de onde eu
podia observar meus companheiros, movimentando-se pela sala. Em
princípios de maio, ainda estávamos longe do verdadeiro fluxo de
turistas, mas já havia uma porção de visitantes em Bergen, além dos
homens de negócio que ali estavam, vindos de Oslo ou outras partes da
Escandinávia. Bergen era uma ativa cidade comercial, sendo a navegação
e a pesca suas principais indústrias.
O café da manhã, inclusive o queijo de leite de cabra, que apreciei,
me prepararam ainda melhor para o dia e, quando Gunnar me chamou, do
saguão, desci alegre para cumprimentá-lo.
Vi logo que ele lera a carta de meu pai e que o conteúdo, fosse qual
fosse, o tinha posto em guarda contra mim. De certo modo, tive pena
disso. Gostava de Gunnur Thoresen, mas não podia deixar que a mudança
cautelosa operada nele me derrotasse. Sem dúvida, meu pai escrevera
alguma coisa a respeito de minha atitude para com Laura, e Gunnar
estava disposto a aliar-se contra mim à minha primeira palavra
reveladora. Mas eu sabia como enfrentar o perigo. Estava disposta a ser
totalmente a escritora, naquele dia, com os sentidos inteiramente alertas a
tudo em volta de mim o meu caderninho pronto para anotar impressões.
Eu o usei uma ou duas vezes na viagem para Fantoft na Mercedes de
Gunnar, e isso pareceu acalmar as suspeitas dele com relação a mim, até
certo ponto. Eu não o estava iludindo, totalmente. Eu realmente era
escritora.
A viagem foi agradável. A estrada passava pela base de Ulriken, a
grande montanha negra perto de Flöyen. Era por ali que corria o
teleférico, disse-me Gunnar. Ainda se esquiava no Ulriken e ele tinha lá
uma cabana que pertencera a seu pai.
— Não é mais permitido aos particulares construírem lá em cima —
disse ele. — Mas eu posso conservar a cabana de meu pai. Vamos até lá,
antes de você ir embora. Talvez até possamos levar Laura conosco.
Assim, pelo menos ele não ia recuar, se eu tentasse travar relações
mais permanentes com ela. Na viagem, de vez em quando eu olhava
rapidamente para seu perfil severo, e via mais que nunca no rosto dele os
fortes penhascos de rochas que eram a Noruega. Agora eu tinha de agir
com cuidado, com muito cuidado.
Os campos ainda estavam marrons e crestados, mas laguinhos
luziam azuis ao sol da manhã e casas pequeninas enfeitavam as ilhas que
neles flutuavam. Quando chegamos a Fantoft, Gunnar foi logo para a
stavkirke e estacionou o carro numa clareira. Nós saltamos e ele ficou a
meu lado, ao sol forte que brilhava por entre os galhos desfolhados,
parecendo ainda mais magro e alto do que eu me lembrava da véspera.
— Ainda é cedo — disse ele. — Eu queria primeiro mostrar-lhe a
igreja. É uma coisa que você não verá em nenhuma outra parte do
mundo. Parece que fizeram uma cópia no seu Centro-Oeste, mas esta é
uma das construções antigas.
Eu estava preparada para a minha guerra particular, e não para fazer
turismo, mas não tinha escolha. A igreja ficava escondida de nós por um
morro. Juntos subimos pelo meio dos pinheiros e das faias cinzentas, a
terra ainda marrom do inverno em cada lado da trilha sinuosa. A não ser
um trabalhador, ninguém estava à vista. Não eram horas de turismo e a
igreja só estaria aberta de tarde, disse-me Gunnar.
O lugar tinha um ar sombrio, agreste, solitário e isolado, como
colorido escuro e triste de uma época em que as neves se foram e a terra
ainda não se animou de vida verdejante. Só os pinheiros davam uma nota
verde, e eles eram escuros e austeros.
Quando nos aproximamos do topo do morro, apareceu a igreja. Era
situada num retângulo fechado, com uma rocha pairando sobre ela de um
lado e o solo montanhoso descendo do outro. Parei para olhar,
assombrada, para um passado que tinha acabado de suplantar o
paganismo na Noruega. A construção era uma estrutura alta e estreita,
toda feita de madeira, e toda pintada de preto. Erguia-se esguia para o
céu, com seus telhados íngremes, de tabuinhas, sobrepondo-se como
camadas de uma armadura, desde a vara pontuda em cima da torre até os
fortes pilares de sustentação, que se erguiam do solo — os esteios, que
davam a essas igrejas seu nome comum.
O que mais me perturbava era aquele preto sem luz — tão
inesperado, numa igreja. Por toda parte, havia esculturas feitas a mão.
Cada tabuinha tinha sido carinhosamente entalhada para canalizar a
chuva, e de altas saliências a ornamentação entalhada lançava ao ar as
cabeças de dragões e serpentes. Fora do recinto murado, as faias erguiam
seus galhos ossudos como que imitando os dragões e as serpentes. Senti-
me paralisada por uma sensação que me oprimia e me perturbava.
Naquele lugar, havia uma sensação do bem guerreando contra o mal.
Naturalmente, era por isso que o prédio fora construído— para lutar
contra os males aglomerados de um mundo pagão.
— Conte-me sobre isso. — Eu falava baixinho, sem querer
perturbar o silêncio.
Gunnar respondeu igualmente baixo.
— A construção foi transportada para cá, creio que foi em 1884,
quando ia ser demolida em outro lugar. Mas grande parte data
provavelmente do século XII. Os noruegueses sempre amaram a madeira,
adorando trabalhar com ela e entalhá-la, e sua habilidade era muito
grande, mesmo naqueles tempos. Quando há ventania, o prédio se move
com o vento, como um bom navio, mas vento algum jamais a danificou.
— Por que é preta?
— Isso é o piche com que foi revestida para proteger a madeira.
Senão ela se desintegraria.
— E as cabeças de serpentes? Os dragões?
— Você encontrará os mesmos motivos nas proas dos navios dos
vikings. Significavam os espíritos malignos que poderiam tentar entrar,
mas em vez disso são obrigados a fugir. A santidade interior triunfa,
sabe?
Nós subimos pelo caminho para o portão de entrada de tabuinhas
que havia no recinto. Dentro à esquerda do portão, havia um monte de
terra marrom com uma imensa cruz de pedra negra no topo.
— Essa cruz é de uma época em que o cristianismo lutava contra o
paganismo, na Noruega. — disse Gunnar. — No ano 1000, não havia
igrejas. As pessoas faziam seu culto ao ar livre, junto dessas cruzes,
muito antes de serem construídas as igrejas. Em certa época havia muitas
dessas stavkirkes, mas hoje só restam umas 28. Nós as conservamos com
carinho.
Um passeio estreito e arqueado tinha sido construído do lado de
fora, junto das paredes, protegido pelos telhados mais baixos. A porta da
frente estava fechada e fomos sentar-nos num muro baixinho que cercava
o recinto, naquela manhã fria e ensolarada.
Olhei pelo caminho que tínhamos acabado de subir, cheia de
dúvidas.
— Se Laura está doente, como é que ela vai conseguir subir até
aqui?
— Se for preciso, eu ajudo Irene a trazê-la. Mas acho que ela se
forçará a fazê-lo. Talvez sua apatia e fraqueza sejam apenas uma
armadura que ela usa. Ela pode estar curiosa a seu respeito. Lembre-se de
que você é Mary Thomas.
Eu estava satisfeita com o disfarce. Podia ser melhor para meu
propósito se Laura não tivesse qualquer indicação de minha identidade
antes da hora.
Esperamos em silêncio, naquele lugar tranquilo, e ergui meu rosto
para sentir o calor do sol, como se ele pudesse aliviar minha inquietação.
Eu não sentia paz alguma nesse retiro sossegado. Era como se os dragões
e serpentes malignos encontrassem seus semelhantes em luta dentro de
mim, e não me deixassem em paz.
Depois de alguns momentos, escutamos o som de vozes no caminho
embaixo, e senti o bater acelerado de meu coração. Mas hoje eu estava
preparada. Não me abalaria. Eu me endureci contra qualquer traição do
sangue.
Ela veio adiante de Irene pelo caminho, sem se apoiar no braço de
ninguém. Estava de calças marrons e um suéter norueguês com estampas
alegres, que realçavam seu corpo, ainda admirável. Sua cabeça escura
estava descoberta e nenhuma gola de pele ocultava seu rosto. Seus
cabelos estavam penteados ligeiramente para trás, repartidos ao meio, e
presos num coque grego na nuca. Nenhum traço de cinza aparecia entre
os fios castanhos. Por cima da gola roulée do suéter sua cabeça se erguia,
altiva, o queixo levantado, as narinas delicadas, ligeiramente dilatadas,
aspirando o ar puro dos pinheiros, os olhos luminosos erguidos para
procurar o recinto acima dela. Hoje, ela estava de batom e havia um leve
tom vermelho nos maxilares largos, avivando seus olhos fundos. Ela nos
viu, acenou, e depois apressou o passo. Irene, bem mais moça, a seguia,
bufando.
— Ela é maravilhosa — disse Gunnar, baixinho. — Nunca a vi
deixar de atender a um desafio. Como eu pensava, você lhe fará bem.
Mostre logo sua admiração por ela. Dê-lhe um novo público. — Havia
um certo tom de comando na voz dele. Ele não pretendia deixar que eu
saísse da linha.
Eu também estava assombrada que a mulher fraca e indefesa que eu
vira na véspera, uma mulher que mal podia descer uma escada e entrar
num carro, pudesse transformar-se nessa pessoa radiosa que subia o
morro em nossa direção. Percebi o que ela estava fazendo. Estava
fazendo uma entrada, dando um espetáculo para mim, e isso lhe estava
fazendo um bem enorme. Contra a vontade, fui forçada a admirar o
esforço.
Ela alcançou o alto e entrou pelo portão, como se quisesse escapar
da perseguição preocupada de Irene Varos, que se apressava atrás dela,
muito aflita. Eu só tive tempo de dar uma olhada para a acompanhante e
vi a mulher magra e sossegada de casaco marrom, boina marrom posta
sobre cabelos pretos, puxados num coque liso na nuca. Ela
provavelmente não teria 40 anos e, no entanto, naquele momento, Laura
Worth, por sua maneira de se mover, parecia a mais jovem das duas.
— Meu querido Gunnar! — disse Laura, dirigindo-se para ele com
as duas mãos estendidas. Conheci logo a voz dela.
Ele pegou as mãos dela nas suas e curvou-se para beijar-lhe o rosto.
— Você está ótima, Laura. Eu trouxe uma pessoa para conhecê-la. É
a Srta. Thomas, de Nova York.
Ela se virou para mim, graciosamente encantadora e acolhedora,
mas não exagerando a acolhida. Era eu a suplicante, não ela.
A mão dela estava fria, dentro da minha mão quente, da qual
rapidamente eu tirara a luva. Seu rosto fino mostrava os estragos que eu
vislumbrara na véspera, mas a base, o batom e a sombra de olhos
delicadamente aplicados davam uma ilusão superficial de juventude, que
suas maneiras corroboravam. Senti que Laura Worth podia, se quisesse,
iludir a pessoa e fazê-la pensar que via o que não existia mais ali. Não
senti pena, ao pegar a mão dela, nenhum choque de desilusão. Era Laura
Worth a atriz quem me cumprimentava, e eu estava satisfeita de ser
assim.
— Srta. Thomas, quanta gentileza, querer me conhecer. Acreditar
que se lembram de mim.
Agora, eu estava em terreno bem firme.
— Mas claro que se lembram da senhora. No momento há um
Festival Worth de seus filmes em Nova York. Vi novamente Sussurros há
poucos dias. Sempre achei que estava admirável nesse filme.
— Obrigada. Como pode imaginar, não é meu filme predileto. Suas
associações são por demais dolorosas. Viu algum dos outros?
— Tantos quanto possível — disse-lhe eu. — Houve várias reprises.
Acho que eu tinha 10 anos quando fui assistir a um filme seu. Meu pai
me levou. Ele era grande admirador de Laura Worth.
Gunnar tossiu delicadamente, eu olhei para ele e continuei:
— Naturalmente, a senhora também é popular na televisão, portanto
é lembrada mesmo fora de Nova York, quando não há reprises Worth.
— É muito amável. Temos de conversar um pouco. Quero saber a
respeito desse livro que Gunnar disse que está escrevendo. Venha sentar-
se aqui a meu lado. — Ela indicou o muro de pedra e sentou-se ali.
Depois fez um sinal imperioso de despedida para Irene e Gunnar. — Não
se importam de nos deixar a sós um pouco? Quero conversar com essa
simpática moça de Nova York.
Percebi o olhar de advertência de Gunnar, quando me sentei no
muro ao lado dela. Eu estava bem satisfeita que ela me achasse
“simpática”. Satisfeita por ela estar confiante e sem suspeitas.
— Agora, então — disse ela —, diga-me o que quer de mim. Sabe
que há muitos anos tenho feito questão de não ser entrevistada.
— Talvez esteja na hora de esse silêncio ser rompido — disse eu. —
Entre a mocidade, em minha terra, há um culto crescente por Laura
Worth. E, naturalmente, a senhora é lembrada pelas gerações mais velhas.
Talvez seja o momento de deixar que o mundo torne a encontrá-la.
— Através de você ela me sorriu, mas não era tão confiante quanto
eu imaginara. Eu tinha de me lembrar de que aquela era uma mulher
sofisticada e experiente. Havia um ligeiro ceticismo nos olhos dela, e eu
me irritei.
— Já tive vários artigos publicados em jornais e revistas — disse
eu. — Embora seja jovem, não sou principiante. Várias estrelas famosas
que conhecem meu trabalho concordaram em deixar-me entrevistá-las.
— Sei. Mary Thomas? Não creio que tenha lido algum artigo seu.
Mas, também, não leio mais jornais nem revistas americanas.
— Meu livro não estaria completo sem a senhora.
Devia haver um tom de sinceridade em minha voz, pois ela estendeu
a mão e tocou em meu braço, no tipo de gesto cativante que eu a vira
fazer na tela tantas vezes. Minha pele pareceu queimar, ao toque dela, e
tive de fazer um esforço para não recuar.
— Você deve lembrar-se de que já fui maltratada na imprensa —
disse ela. — Esse é um dos motivos por que instituí a regra de não
conceder entrevistas. Isso e o fato de que me importunaram tanto, por
certo tempo, que os jornalistas se tornaram um grande aborrecimento
para mim. Não tenho muita certeza de que devesse fazer uma exceção ao
regulamento agora. Gunnar tentou convencer-me. Foi por isso que
concordei em recebê-la. Ele persuadiu Irene, que falou comigo. Ele é um
bom amigo e, se ele acha que isso é prudente, então talvez...
— A senhora o fará, não? — disse eu.
Seu sorriso iluminou as linhas de seu rosto e o tornaram
momentaneamente jovem.
— Então comece — disse ela. — Vamos experimentar. O que deseja
perguntar?
— Aqui não. — Sacudi a cabeça. — Vou precisar de mais tempo.
Vou precisar da oportunidade de sentar-me tranquilamente com a senhora
num lugar em que possamos conversar e eu possa tomar notas. Podemos
combinar isso?
O sorriso dela ficou trêmulo de incerteza e as rugas se acentuaram
de novo.
— Não tenho certeza de que isso seja possível.
— Por que não? — perguntei, francamente.
Ela afastou os olhos de mim e olhou para a igreja negra e pontuda
que se erguia acima de nós, seus olhos se movendo para a cabeça do
dragão mais próximo. Depois, estremeceu e fez um sinal para Irene.
— Quer dar-me meu casaco, por favor? Parece que está um pouco
frio. Sinto muito, Srta. Thomas, mas não tenho passado bem e acho que o
que está pedindo é impossível.
Gunnar ouviu o que ela disse e adiantou-se, enquanto Irene punha o
casaco sobre os ombros de Laura.
— Tolice! Seja o que for que lhe estejam pedindo para fazer, estou
certo de que o conseguirá. A Srta. Thomas lhe fará bem. Nesse pouquinho
tempo, ela a fez parecer a Laura Worth de que me recordo. Dê-lhe o que
ela pede. Deixe o mundo partilhar de você. Você faz parte de uma época
que não deve ser perdida.
Suas pestanas espessas tremeram um pouco e ela lhe deu um olhar
de esguelha que era eterno em seu charme encantador.
— Imagino que já tenha vivido o suficiente para passar à história.
Mas você acha mesmo que sou assim tão velha?
— Acho que você é eternamente jovem. — Ele não estava
zombando dela. Seus olhos estavam cheios de admiração e afeto. — Não
obstante, você se desenvolveu muito como mulher, desde a época em que
era estrela. Tem mais a dar numa entrevista do que tinha então. Tem o
critério para olhar as coisas passadas. Não sei se a Srta. Thomas é capaz
de lhe fazer justiça. Também não li seus escritos. Mas deve deixá-la
tentar.
Irene Varos estava ali de pé, calada, os olhos escuros preocupados,
como se ela também me estivesse pesando e julgando. Senti uma certa
guarda, uma proteção total para com Laura, nascida de longos anos de
companheirismo e confiança mútua. Se Irene se opusesse a mim, eu
poderia estar em dificuldades.
— Quer me ajudar? — disse eu, virando-me diretamente para ela.
Era como se eu quisesse forçá-la a lembrar-se do segredo de minha
identidade, de que ainda não se falara. Queria lembrar a Irene que eu era
filha de Laura Worth. Queria que ela pensasse que, como eu era filha
dela, poderia levar-lhe algo de consolo e rejuvenescimento que nada mais
poderia dar. Seria o natural para ela esperar.
— Poderá ser difícil trazer a Sra. Worth todos os dias — disse Irene,
na dúvida. Suas palavras só tinham um ligeiro sotaque. Aparentemente
sua longa ligação com Laura e os anos passados fora de sua pátria lhe
haviam dado um bom domínio do inglês.
Laura olhou diretamente para ela.
— Eu não estava pretendendo sair de casa todos os dias para me
encontrar com a Srta. Thomas. Eu preferia voltar para minha casa na
cidade e receber a visita dela lá.
— Dr. Fletcher... — começou Irene, hesitante, mas Laura de repente
juntou as mãos, com um ar de decisão juvenil.
— Não, melhor ainda! A Srta. Thomas virá morar conosco! Há
muito tempo que não tenho hóspedes. Lá poderemos trabalhar mais
razoavelmente. Srta. Thomas, tenho um quarto cheio de recordações. Em
casa, posso mostrar-lhe tudo. Posso contar-lhe histórias que nunca
ouviria em nenhum outro lugar. Posso até mostrar-lhe minhas origens,
pois nasci naquela casa.
— Bravo! — exclamou Gunnar. — É a solução perfeita.
Irene continuava na dúvida, não totalmente convencida.
— Não temos quarto de hóspedes — lembrou ela a Laura. — A Sra.
Jaffe está no quarto que usávamos para hóspedes.
Os olhos grandes e escuros de Laura estavam animados com uma
resolução e divertiam-se.
— Existe uma solução possível. Pode ser arrumado. Depois
conversaremos a respeito. Quer vir, Srta. Thomas?
— Claro — disse eu prontamente. Não podia querer coisa melhor.
Irene cedeu.
— Se é isso que deseja. Mas o Dr. Fletcher já nos disse que é contra
qualquer tipo de publicidade, e não o permitirá. Já ficará bem zangado,
quando souber deste encontro de hoje.
Laura afastou-se do muro, empertigando-se de modo a parecer
maior do que realmente era.
— Não precisa preocupar-se com Miles, Irene. Se eu disser que a
Srta. Thomas me vai visitar, estou certa de que ele fará minha vontade.
Afinal de contas, o que ele quer é o meu bem-estar.
— Ontem... — começou Irene, vacilando.
— Ontem, eu não me importava. Ontem, eu tinha desistido. Mas
graças ao meu bom amigo aqui — ela sorriu a Gunnar, e seu belo rosto
sofrido parecia quase alegre — e graças a esta mocinha, estou viva de
novo.
Ela se virou para mim rapidamente, de modo a ficar de costas para
os outros, encarando-me sozinha. O ar de alegria sumiu
instantaneamente. Seus olhos pareciam enviar uma mensagem de súplica
que me tomou de surpresa.
— Você virá, não é? — disse ela. — Venha, por favor, mesmo que
haja dificuldades. Eu arrumo tudo. Poderei fazê-lo, se você estiver lá. Hei
de arranjar forças.
Era como se ela me estivesse pedindo alguma coisa, indicando-me
alguma necessidade especial. Ela me queria naquela casa. Queria-me por
motivos que podia não ter confiado a Gunnar nem a Irene. Eu senti nela a
urgência, e uma coisa estranhamente semelhante ao medo.
— Já disse que irei — disse-lhe. — Não tenho medo das
dificuldades, desde que a senhora me queria lá e me dê o que lhe peço.
Com um gesto rápido, ela pôs as mãos em meus ombros e me beijou
de leve no rosto. Eu recuei tão vivamente como se ela me tivesse batido
mas felizmente ela não reparou. Já tinha se virado para olhar para os
outros dois.
— Temos de voltar para casa imediatamente — disse ela a Irene.—
Temos de aprontar a casa para receber uma hóspede. Amanhã, a Srta.
Thomas irá para lá. Não, ela poderá ir hoje à tarde. Não deve haver
demora alguma!
Uma demora a derrotaria, pensei. Ela estava fazendo aquilo numa
onda de energia nervosa. À noite, ela poderia fraquejar. Eu suspeitava de
que Irene Varos também pensava assim e que em parte sua relutância para
executar o plano se devia à consciência de que a força de Laura era
efêmera, pelo menos.
— Estou certa de que Gunnar me levará à hora que a senhora
desejar — concordei, e virei-me para ele, consultando-o.
— Claro — disse ele. — Estou às suas ordens, Laura. Estou
contente por você fazer esse esforço. Você já está com melhor aspecto do
que tem há meses.
Ela ficou obviamente satisfeita com as palavras dele, e agora chegou
a vez de ele ser beijado no rosto. Ele a segurou carinhosamente por um
momento e depois ela se virou para mim.
— Então está resolvido. Aguardo nossas conversas com prazer. E
tenho de saber mais a seu respeito. Isso não vai ser inteiramente
unilateral.
Eu sorri e peguei a mão dela, agradecendo-lhe. No final, não seria
unilateral. Eu tinha surpresas guardadas para ela, e agora que me seria
permitido passar por seus guardiões, eu poderia apresentá-las. Mas
primeiro eu seria a escritora. O resto viria depois.
Quando ela e Irene começaram a descer a trilha juntas, a sua energia
tinha começado a se esgotar um pouco, embora Laura conservasse a
cabeça erguida, ressaltando aquela elevação galante do queixo que eu já
vira tantas vezes no cinema.
Nós ficamos olhando para as duas que se afastaram calados. Quando
afinal levantei os olhos para Gunnar, vi que ele me estava olhando.
— Você se saiu muito bem — disse ele. — Controlou suas emoções.
Realmente, eu me controlara, mas, a despeito da carta de meu pai,
não achava que ele soubesse plenamente quais eram aquelas emoções.
— Se você não estiver com pressa — disse ele —, há aqui uma
coisa que eu lhe queria mostrar.
Ele me olhava com aquele olhar perscrutador, que sondava ela mais
fundo do que eu queria que fosse. Para o meu propósito final, poderia ser
melhor que eu visse o menos possível Gunnar Thoresen.
— Nada tenho a fazer — disse eu. — Mas e você? Eu já não
atrapalhei bastante seu dia de trabalho? Talvez fosse melhor você não me
ir buscar esta tarde. Posso perfeitamente ir de táxi.
Ele se dirigiu para o portão do recinto e eu o acompanhei.
— Não há nada de urgente no escritório que precise de minha
atenção, no momento. A carta de seu pai me tornou responsável por você.
É possível que eu tire uns dias de folga enquanto você ficar aqui.
O tom dele dava a entender que era uma responsabilidade que ele
não apreciava muito, mas que aceitava porque era seu dever. Tornei a
pensar sobre aquela carta, e o que Victor Hollins poderia ter-lhe dito,
exatamente, sobre mim.
— Não quero ser responsabilidade para ninguém — assegurei-lhe.
O sorriso dele era sério como sempre.
— Talvez você não tenha escolha, no assunto. Talvez isso seja uma
coisa entre Victor Hollins e eu.
Cruzamos o caminho pelo qual tínhamos chegado ao platô da igreja
e segui junto dele. Suas palavras me perturbavam, mas eu não tinha
resposta pronta para ele, ao vencermos o morrinho que se erguia do outro
lado do recinto. Uma trilha bem usada subia, em curvas, afastando-se da
superfície rochosa à qual o musgo dava um toque de verde.
— Quero mostrar-lhe um de meus lugares favoritos — disse ele.
O caminho subia em voltas fechadas e acabava por trás do morro,
continuando pelo outro lado. No cume, havia uma clareira nua e marrom,
rodeada de árvores. Nós olhávamos para baixo, por entre troncos retos e
cinzentos, para a igreja. Ela me parecia um navio de mastros altos — um
navio pirata negro, velejando contra um céu azul. Lá dentro, haveria
santidade e eu tinha a impressão de que os males do mundo tinham se
chocado com aquela armadura externa proibitiva, para nunca a
penetrarem, para serem derrotados contra aquelas tabuinhas pretas. Mas
parecia que o prédio era um ponto de atração. Seria porque o bem deve
sempre atrair o mal?
— Do outro lado, você pode ver uma parte de Bergen e as
montanhas que a protegem no Sul — disse Gunnar. — Uma linda vista.
Virei-me obedientemente para admirar a paisagem. Mais perto havia
um lago, algumas casas e mais para longe aqueles sempre presentes
braços do mar que avançavam pelo litoral nos fiordes por toda parte. O
silêncio em volta era tão intenso que vozes distantes chegavam até nós, e
um cachorro que passava pelo mato bem embaixo, no morro, fazia um
barulho explosivo de folhas mortas. Eu via o dono dele deitado numa
saliência da rocha, nu até à cintura, para absorver os raios quentes do sol.
Gunnar sorriu.
— Nós temos uma mística com relação à saúde e ao sol e ao ar livre,
sabe? Sempre que o sol estiver brilhando, você encontrará noruegueses
absorvendo-o. Construímos nossas casas para recebê-lo. Talvez seja
nossa reação natural diante dos invernos longos.
Eu tornei a olhar para a igreja, imaginando como ela devia parecer
triste na chuva escura do inverno, tendo por cima o céu tenebroso. Num
dia assim, ela teria de ser clara e santa lá dentro. Estremeci, como Laura
fizera, e cruzei os braços. Não sei se acredito ou não em pressentimentos.
Talvez se possa colorir qualquer acontecimento à luz de um
conhecimento posterior. Mas parecia-me que desde o princípio aquele
lugar me prometia alguma coisa tenebrosa, sinistra e ameaçadora.
Gunnar me trouxe de volta ao presente.
— O que você acha de Laura Worth? Você se vigiou bem, mas
fiquei pensando no que você estaria sentindo.
— Eu não tive qualquer impressão de ser filha dela, se é isso que
você quer saber — disse eu. — Não tive sensação alguma de
reconhecimento íntimo. — Isso se dera na véspera, mas eu não ia dizer a
ele. — Não estava representando. Estava sendo o que eu sou, uma
escritora com uma oportunidade de ter uma entrevista rara, à qual devo
dar tudo o que posso.
— É uma boa coisa você ir para a casa dela hoje à tarde. Agora você
terá a oportunidade de contar-lhe a verdade. Que você é filha de Victor e
dela. Terá primeiro conquistado um pouco a confiança dela, e isso será a
seu favor.
— Contar-lhe? Logo? — Eu sabia que parecia alarmada. — Mas se
ela souber, pode ficar zangada e me mandar embora.
— Você não pode ter certeza disso. Há vários motivos por que você
lhe deve contar logo que possível. Você não pode, em sã consciência,
ficar em casa dela sem lhe contar a verdade. Senão, eu também acharei
que estou iludindo minha velha amiga. Você não pode esperar que Irene,
que também é amiga dela, oculte dela a verdade, indefinidamente. E,
naturalmente, há o problema do Dr. Fletcher, que sabe quem você é.
Eu já estava preocupada com Miles Fletcher e sua visita ao hotel, na
véspera. Se ele a visse primeiro e soubesse do plano de me hospedar em
casa deles, se ele lhe contasse a minha identidade antes que eu pudesse
fazê-lo — então tudo poderia ir água abaixo.
— É, tenho de contar a ela — concordei. — Eu tinha pensado em
conseguir minha entrevista primeiro. É provável que ela falasse mais
francamente a uma estranha que à própria filha.
— Não necessariamente. Pode significar muito mais para ela se a
admiração que você tem pelo trabalho dela partir de alguém que seja de
seu próprio sangue. Talvez você ache que poderá dar a ela mais do que a
simples admiração.
Eu desviei o olhar de seus olhos penetrantes, para não o deixar ver
demais. Eu não podia modificar meus próprios sentimentos, profundos.
Eles tinham uma base por demais fundamental.
— Você já lhe deu uma coisa que ela não tem há muitos anos —
disse ele, com delicadeza. — Você lhe deu o apreço pelo trabalho dela,
Leigh, e a notícia de que ela não está esquecida. Isso pode ser vital para
ela. Houve tempo em que ela vivia da adulação do mundo, como tem de
ser, com uma mulher como Laura. Ela está faminta há muito tempo.
— Então por que ela desistiu de tudo? Por que fugiu?
— Ao que eu saiba, não havia lugar para ela. O estúdio dela tinha
medo do escândalo. Ninguém queria saber dela, no momento. Mas os
tempos mudaram, sabe?
— Ela podia ter lutado contra isso — disse eu. — Outras já o
fizeram. O palco não a teria barrado. Ou ela poderia ter representado no
estrangeiro. Ela nunca tentou. Por que?
Gunnar sacudiu a cabeça, sério.
— Não tenho ideia. Ela nunca fala sobre o que aconteceu. Acho que
deve ter falado alguma coisa com Irene, que nunca trairá as confidências
dela. Mas ela não quer falar dessas coisas com mais ninguém.
— E agora ela se casou com esse homem que pertence àquela época
— disse eu. — Isso parece uma coisa estranha.
— Ela é uma pessoa complexa. Não é fácil entender o que a motiva.
Se eu conseguisse minha entrevista, poderia sondar um pouco,
pensei. Havia perguntas que eu queria fazer a ela. Que ela respondesse ou
não, isso era outro problema.
— Agora vou levá-la de volta ao hotel — disse Gunnar. — Posso,
passar para pegá-la hoje às duas horas?
— E se o Dr. Fletcher chegar a casa antes disso?
— Irene acha que ele passará a tarde fora de casa. E ele pensa que
Laura está na casinha. Claro, há a irmã. Ela é uma pessoa estranha. Não
se pode saber o que ela vai fazer, ou quanto ela sabe a seu respeito. Mas
temos de nos arriscar a isso. Se você verificar que contaram a verdade a
Laura antes de você chegar, então... — Ele deu de ombros, com
desânimo.
— Então, eu tocarei de ouvido — disse eu, citando-o.
Ele não sorriu.
— Sim. Acho que você é boa nisso.
Começamos a descer o morro juntos, e fiquei pensando no que ele
queria dizer com aquilo. Haveria uma segunda intenção? Vi que não
queria que Gunnar Thoresen pensasse mal de mim — como
provavelmente ele estaria pensando, antes de terminar esse caso de Laura
Worth. Mas nada havia que eu pudesse fazer a respeito, de um modo ou
de outro, e não falei mais, a caminho do carro.
Ele também ficou calado, em nossa volta a Bergen. De vez em
quando, mostrava alguma vista interessante. E consegui perguntar a ele
sobre Kalfaret, o bairro onde ficava a casa de Laura.
— A palavra significa calvário — disse ele. — No princípio do
século XX, uma porção de famílias abastadas de Bergen se estabeleceram
ali, construindo as casas resistentes, interessantes, que hoje se vêem. Era
o bairro residencial elegante da cidade, suficientemente perto do centro
para ser cômodo, mas bastante elevado no morro para ter vistas
maravilhosas.
— Quem me dera poder me encontrar aqui — disse eu. — Nada na
Noruega me diz nada. É tudo interessante, mas estranho. Sempre fico
achando que devia haver mais alguma coisa.
Ele me olhou de relance e depois depressa para a estrada.
— Talvez você tenha passado tempo demais abafando seus
sentimentos. Talvez tenha feito uma coisa perigosa, recusando-se a sentir,
a não ser numa certa direção.
— O que quer dizer “numa certa direção”? — perguntei inquieta.
— É possível a pessoa se entregar tanto ao ódio quanto ao amor.
Não é verdade?
Eu senti o rubor me subindo às faces. De repente, fiquei zangada
com ele. E comigo mesma e com meu pai e Laura. E também estava
magoada. Não era minha culpa sentir o que eu sentia. O mal fora causado
a mim, afinal de contas. Eu não era culpada.
— O que foi que meu pai lhe disse, na carta? Fletcher — perguntei,
friamente.
A voz dele tinha a mesma frieza quando respondeu.
— Acho que não lhe vou dizer. Pelo menos, não por ora.
As lágrimas ardiam em meus olhos. Eu devia saber que meu pai me
trairia. Sem dúvida, para o meu próprio bem — segundo as ideias dele.
Não obstante, eu me sentia tristemente traída. Traída e magoada e ferida.
Não era verdade que eu não pudesse sentir. Eu estava dilacerada pela dor,
e o homem a meu lado o sabia.
Inesperadamente, ele estendeu uma das mãos e cobriu a minha, que
estava no meu colo. Ele apertou minha mão ligeiramente e a largou. Eu
não queria aquilo, mas o contato com ele foi confortador. Ele não
precisava pronunciar palavra alguma. Seu toque me dizia que ele não me
condenava pelo que eu estivesse sentindo, e que me deixaria em paz para
deixar aquilo passar. Não obstante, eu sabia que ele mudamente se pusera
em oposição às emoções que me guiavam, e não ousava aceitá-lo
plenamente como amigo.
Nenhum de nós dois falou até estarmos de volta à Plass Ole Bull,
diante do hotel, e aí eu já me havia controlado melhor. Agradeci-lhe e
disse que estaria pronta às duas horas. Quando me virei, os olhos dele
estavam sérios.
— Você é muito jovem, Leigh — disse ele. — Inevitavelmente, isso
será curado, provocando assim a ferida final.
Fugi dele pelas portas giratórias para o saguão. O elevador levou a
vida toda para me levar para cima, mas pelo menos eu estava sozinha.
Destranquei a porta com a mão trêmula, e entrei depressa no quarto,
fechando-a. Num segundo, eu tinha jogado o casaco e a bolsa numa
cadeira e me lançado na cama, rompendo num pranto desabalado.
Jovem! Eu nunca fora jovem, como as outras moças eram jovens. A
pessoa amadurece muito depressa quando sabe que tem uma mãe que não
a quer — que só quer ser famosa e rica e ter sucesso. Não era a juventude
meu problema, e sim um amadurecimento muito precoce. Eu tinha tido de
encarar minha vida como ela era, como tinha de ser, havia muito tempo.
Como Gunnar Thoresen sabia pouco sobre mim! Tão pouco quanto Victor
Hollins soubera. Fosse o que fosse que meu pai escrevera em sua carta a
Gunnar, não lhe contara a verdade. Tinha sido uma traição para comigo e
tudo o que eu sentia mais profundamente.
Uma vez, meu pai me disse que o amor era a coisa mais importante
no mundo. Eu conhecia o amor. Eu o amara muito, e a Ruth também. Mas
ele queria dizer o amor entre um homem e uma mulher — o tipo de amor
prejudicial, que não traz a felicidade a ninguém. Eu nunca tinha dormido
com um homem, mas tinha certeza de que faria essa escolha, se isso me
agradasse, antes de me apaixonar. Bastava ver como Victor tinha sofrido.
E Ruth também. Para não falar em mim — e tudo porque meu pai se
apaixonara tolamente por uma mulher como Laura Worth. Ela, por sua
vez, parecia ter tido vários amores — e nem por isso fora feliz.
Meu choro se acalmou enquanto eu esclarecia o meu propósito, os
meus sentimentos. O que é que Gunnar Thoresen podia saber, com aquela
sua fria reserva norueguesa? Como ousava ele dizer que eu podia ter
sufocado minha própria capacidade de sentir? Como ele estava errado!
Eu estava sentindo agora, tempestuosamente, dolorosamente, de um
modo que ele provavelmente não seria capaz de sentir.
Depois de algum tempo, meus pensamentos pararam de se remoer.
Eu tinha de lavar o rosto e descer para comer alguma coisa. Tinha de
estar forte para a prova a minha frente. Não era uma prova que eu
temesse inteiramente. A tempestade que me assolou de certo modo me
preparou para a luta. Eu estava satisfeita por nada poder sentir com
relação a Laura Worth, com respeito ao fato de ela ser minha mãe. Eu
queria conservar minha raiva pura e clara, para poder arder livremente
quando eu precisasse dela.
Havia uma coisa que ainda me preocupava. Por que Gunnar
Thoresen estava disposto a me deixar chegar perto de Laura Worth, se
meu pai lhe dissera o que eu sentia a respeito dela? Por que estaria ele
disposto a correr esse risco, se estava indubitavelmente em meu poder
ferir Laura de um modo que ele não devia querer que ela fosse ferida?
Para isso eu não tinha resposta.
4
A casa branca, com seu telhado íngreme de telhas azuis, erguia-se
ao alto, acima de nós, quando subimos a estreita escada que vinha da rua.
Em cima, seguimos por um caminho calçado para a entrada lateral nos
fundos. Muitas daquelas casas, disse Gunnar, tinha entradas assim, nos
fundos. Era uma planta que deixava livre a frente da casa para janelas e
portas de jardim, por onde entrava a luz.
Enquanto eu ficava ali olhando em volta, ele subiu uns degraus e
tocou a campainha. Um jardim circundava a casa, tendo uma cerca de
madeira branca de dois lados, e o forte muro de sustentação, que vinha da
rua, na frente. O quintal dos fundos subia pelo morro num ângulo
íngreme, terminando numa cerca de arame do vizinho acima. Em volta da
casa de Laura havia outras casas situadas em ângulos estranhos,
adaptados à curva da encosta do morro e às ruas que o cruzavam em
vários níveis.
Laura em pessoa atendeu logo à porta, abrindo-a para nos receber.
Ela estava com um vestido comprido de veludo grená, largo demais nos
ombros, à moda de outros tempos, mas que não tinha idade em sua
capacidade de ressaltar e favorecer. Fiquei imaginando-se seria um
Paquin ou um Chanel. Ela trazia um colar de contas douradas e brincos
de ouro pendurados nas orelhas. Sua maquilagem fora feita com esmero e
as pestanas escurecidas eram naturais e tão compridas quanto eu me
lembrava do retrato. Eu desconfiava de que ela se tivesse enfeitado para
mim, e ela tinha todo o aspecto da estrela cinematográfica.
Ela recebeu Gunnar com um abraço afetuoso — como se não o visse
há muito tempo, e deu-me a mão numa acolhida simpática. Eu vi logo
que Miles Fletcher ainda não tinha voltado, e que ninguém lhe dissera
algo a meu respeito.
Na tela, ela nunca exibira uma animação nervosa, mas ora sempre
de grande vitalidade, e era essa a sua maneira ao nos conduzir a antessala
escura que era o hall interno da casa. Era uma sala pequena, quadrada,
com portas para todos os lados, e uma estreita escada subindo à minha
direita. As paredes eram de madeira natural, o que aumentava a
penumbra, apesar de haver uma lâmpada acesa numa mesinha ao pé da
escada. Não sei por que, senti uma impressão de segredo naquela casa,
que era aumentada por vãos de portas sombrias e escadas escuras.
Um ruído na escada me chamou a atenção e levantei os olhos para
ver Donia Jaffe, a irmã de Miles, novamente com as calças verdes e o
suéter alegre que eu vira na véspera. Era baixinha, com olhos grandes
demais para seu rosto delicado e oval. Penteava os cabelos num corte de
garoto, com os fios grisalhos aparecendo entre os; castanhos. Quando ela
viu que eu estava olhando para ela, desceu depressa os degraus que
faltavam, passando por Irene Varos, que estava recuada.
Laura a viu e apresentou-me como Srta. Thomas, aparentemente
sem vontade de incluir a mulherzinha na cena.
Donia Jaffe estendeu a mão e murmurou “Srta. Thomas”,
educadamente, mas seus imensos olhos escuros me contavam que ela
sabia de coisas, mas que no momento ficaria calada.
— Irene, quer cuidar da mala da Srta. Thomas? — disse Laura,
falando por sobre o ombro, e a Srta. Varos adiantou-se para pegar a mala
das mãos de Gunnar. Em seguida desapareceu num quarto nos fundos,
enquanto Laura me levava por portas duplas para uma sala comprida na
frente da casa.
Era um living espaçoso, com portas que davam para o jardim na
frente e muitas janelas para atraírem a luz. As paredes eram pintadas de
um tom quase branco, mas a madeira era escura e o teto também. Grande
parte da mobília era maciça, escura e muito entalhada. Havia muito couro
e tachas de latão, que faziam lembrar a Espanha, embora me dissessem
que fosse trabalho nativo norueguês.
Numa das extremidades da sala havia uma parte, ligeiramente
separada, uma espécie de reservado. Gunnar, notando o que eu estava
olhando, disse que aquelas casas sempre tinham uma sala de cavalheiros,
onde o dono da casa costumava ficar, fumando e conversando com os
amigos.
Nessa extremidade da sala, por cima de um sofá estofado em
marrom, a parede estava cheia de quadros a óleo, a maior parte antigos.
Os fundos eram predominantemente sombrios — escuras florestas e
montanhas negras, agrestes cenas de inverno, tempestades no mar,
animais acuados.
Laura indicou os quadros.
— Você vê aí o sombrio caráter norueguês, forte ao lidar com os
elementos, e com uma tendência para a melancolia. Fico contente por
isso estar temperado em mim por meu pai americano, de ascendência
inglesa.
— Esse quadro triste que a Srta. Worth descreve não é o norueguês
completo, de maneira alguma — interrompeu Gunnar. — Você verá que
também temos nosso lado alegre.
Laura sorriu para ele com carinho, e continuou em sua volta pela
sala.
— Deixei tudo como estava, a não ser por alguns objetos pessoais
meus. Foi a família de minha mãe que construiu essa casa. Não é assim
tão velha, mas pertence a uma época especial, e eu a prezo muito.
Donia Jaffe ficou para trás, enquanto Laura me mostrava as coisas,
como se preferisse olhar em vez de participar. Irene tinha levado minha
mala e estava à porta, olhando não para Laura, mas seguindo os
movimentos de Donia, sem nenhuma amizade em sua expressão. Ela nem
se dava ao trabalho de esconder sua desconfiança pela irmã de Miles.
Laura parecia ignorar a tensão das outras, embora fosse evidente
que naquela casa o ambiente não era de contentamento. Com seu veludo
grená fazendo pregas graciosas, ela passou pelo piano de cauda, onde
estavam colocadas delicadas porcelanas francesas, chamando-me para
admirar a lareira de canto, tipicamente norueguesa. Sua frente de
porcelana tinha sido arredondada de modo a encher o canto, e nos fundos
havia uma concha de ferro forjado com um alto-relevo de três cabras e
um duende. Quando as chamas brilhassem, eu podia imaginar que
aquelas figuras de um velho conto popular haviam de adquirir vida.
— Tenho de lhe mostrar tudo — disse Laura. — Tudo isso faz parte
do que me constituiu, uma parte de Laura Worth. — Ela parecia encher a
sala com uma vitalidade ardente que contradizia a apatia pálida que eu
vira na véspera.
— Mas a senhora não se criou aqui — disse eu. — Portanto, como
pode sentir que isso faz parte de si? — Eu podia acrescentar que não
sentia que fizesse parte de mim.
Ela se virou para olhar para mim, seus olhos brilhando com alguma
recordação feliz.
— Minha mãe às vezes me trazia aqui de visita, quando eu era
menina. Era sempre um prazer vir à Noruega, Bergen, esta casa. E,
naturalmente, mais tarde ela mesma voltou para cá para morar aqui. Olhe,
tenho de lhe mostrar mais uma coisa.
Passando por Gunnar, sua saia ampla roçou por ele e ele estendeu a
mão para pegá-la delicadamente pelo braço.
— Calma, Laura, calma! Irene já está de cara feia comigo por ter
causado tudo isso. Você não se deve consumir num acesso de energia. A
Srta. Thomas ficará aqui pelo tempo que você quiser.
Mas ela não queria ser acalmada. As próprias rugas de seu rosto
tinham sumido e em seus olhos havia o entusiasmo satisfeito de uma
criança. Eu olhei para ela, inquieta, e vi que Gunnar tinha razão ao tentar
acalmá-la. Como ele dizia, Irene também tinha o ar de quem queria
interferir.
Do piano, Laura pegou um retrato e o estendeu para mim.
— É do Rei Haakon da Noruega, você tem de ver isso!
O rei estava em uniforme de gala — uma figura bela e digna. Ele
assinara seu nome num dos cantos da foto. Por cima, havia outro nome
— o nome de família de Laura, pelo lado da mãe. O nome de minha avó
— Thrane.
— Isto foi assinado para o meu tio, Elinar Thrane — disse Laura. —
Quando os alemães invadiram a Noruega, meu tio ajudou a esconder o rei
nas florestas próximas do que era então nossa casa de campo. Ajudou a
salvá-lo, e o rei nunca se esqueceu.
Ela tornou a colocar o retrato com orgulho sobre o piano, e virou-se
para Gunnar.
— Você era criança durante a guerra, mas deve lembrar-se de
alguma coisa da Noruega naquela época. Seu pai esteve envolvido, não
esteve?
— Eu tinha 11 anos quando terminou a guerra — disse Gunnar. —
Lembro-me de muita coisa. Sim, meu pai trabalhou com a resistência.
Minha maior tristeza naquela época era não poder ser útil como adulto.
— A Noruega foi um país pequeno e valente — disse Laura, com
calor. — Adoro todas as suas histórias de coragem.
Ela continuou, os sapatinhos de cetim cor de vinho pisando de leve
no tapete que era claramente artesanato norueguês — um padrão
ferrugem sobre bege, com uma borda larga, també, na cor ferrugem.
— Mas basta da sala. Você tem de admirar a minha vista! —
exclamou ela.
Eu tinha olhado de relance para a vista, ao acompanhá-la, e agora
me fui postar ao lado dela junto à janela. Descobri que éramos quase da
mesma altura. Ela usava um perfume que lembrava Paris, e parecia
emanar-se de seus cabelos castanhos, levemente ondulados, do vestido,
quando ela se movia, de suas mãos, ao fazer um gesto para a janela. Eu
não duvidava mais de seu fascínio e encanto. Mas não era a pessoa
indicada para reagir como ela queria.
Podíamos olhar sobre a cidade de Bergen, com seus lagos e
reentrâncias de baías profundas, seus prédios e pontes e montanhas. A
grande montanha comprida, do outro lado da cidade, tinha neve bem
próximo ao pico e, embaixo, aglomerados de prédios de telhados
vermelhos. Laura virou-se para puxar Gunnar para seu outro lado, e ele
veio logo, ela passando o braço no dele.
— Nossa cidade é linda, não é, Gunnar? Uma das mais belas da
Europa. — Ela olhou para cima, piscando as pestanas escuras, e ele lhe
devolveu o olhar com uma afeição temperada por um traço de
divertimento tolerante. Ela adorava fazer-se de coquete com ele e ele
reagia seriamente, representando bem seu papel.
Ela não sabe que é velha, pensei, com um ligeiro desprezo. E ele
também não parece sabê-lo.
Aí senti que o olhar dele tinha passado para mim, e entendi o que
queria dizer. Era como se ele tivesse dito: “Você não pode continuar a
iludi-la. Terá de contar-lhe logo.” Ele tinha menos tolerância por mim
que por Laura.
Eu recuei da janela.
— Tudo isso é lindo e interessante, mas foi Laura Worth que eu vim
ver. Quando podemos começar a falar?
Ela se afastou comigo da janela.
— Você está com medo de que eu mude de ideia, não está? Mas não
vou mudar, não. Há anos que não falo com ninguém sobre aqueles
tempos na Califórnia, e estou ansiosa por começar. Você terá de me
escutar por muito tempo, depois que eu começar.
Seu olhar passou por mim para as duas mulheres que estavam perto
da porta, e senti um certo desafio em suas palavras, como se ela esperasse
que alguém tentasse impedi-la. As duas nada disseram e Laura pôs a mão
em meu braço.
— Primeiro, tenho de lhe mostrar o quarto em que você vai ficar
durante sua visita. Gunnar, já adivinhou onde eu vou instalá-la?
Não havia como deter essa mulher em seu caminho. Era como um
navio dos seus vikings. Passou pelas duas mulheres que olhavam para ela
de junto da porta — Irene séria, cheia de pressentimentos, mas alerta,
pronta para estar ao lado de Laura diante do menor sinal de fraqueza;
Donia, os olhos brilhando com uma coisa parecida com maldade, como
que esperando, interessada, um colapso inevitável.
Gunnar acompanhou Laura, a meu lado.
— Seja delicada com ela. — Ele falava baixinho, mas quase com
severidade. — Ela precisa mais de você do que imagina.
Eu nada disse. Não quis encontrar os olhos dele, e sentia suas
dúvidas e desconfianças a meu respeito.
Laura atravessou o hall interno e passou por uma porta nos fundos.
Acompanhando-a, vi de relance, a minha direita, uma sala de jantar
comprida e elegante, com portas de vidro do outro lado, dando para um
terraço. Aí, Laura abriu a porta de um quarto que, no momento, estava
bem escuro. Quando ela apertou um interruptor, acendeu-se um lustre no
teto, com um quebra-luz de seda, e o quarto assumiu uma vista reprimida.
Ela foi até o centro, os braços esticados, como que para envolver as
próprias paredes e puxar para si, com amor e orgulho, tudo o que o quarto
continha.
Fiquei paralisada junto à porta, olhando em volta com uma sensação
de fascínio e de não pouco alarma. Alarma porque ali tudo me afetava
emocionalmente. O quarto estava mobiliado, pois continha um sofá, uma
mesinha baixa e uma ou duas cadeiras, mas essas coisas flutuavam num
mar do que, a essa altura, eram provavelmente peças de museu. Havia
manequins em que estavam carinhosamente vestidas as roupas dos
sucessos passados de Laura. Havia objetos de que eu me lembrava — um
vaso que aparecera em um dos filmes dela, um chapéu de Imperatriz
Eugênia jogado sobre o sofá. Empilhados sobre uma mesa comprida,
havia álbuns e, nas paredes, uma infinidade de fotos — cenas de várias
películas, e retratos e mais retratos de Laura Worth, como um
personagem ou outro. Gunnar ficou a meu lado, os dedos dele apertando
meu braço, em sinal de aviso, embora nada dissesse.
Laura deixou cair os braços ao lado do corpo e virou-se para mim, e
vi que tinha lágrimas nos olhos.
— Há muito tempo não entro nesse quarto — disse ela. — Não
suportava olhar para essas coisas. Já pensei em empacotar tudo e mandar
embora, queimar, destruir, qualquer coisa! Qualquer coisa para eu nunca
mais ter de vê-las e me lembrar do passado. Miles acha que é isso que
devo fazer. Acha que é mórbido agarrar-me a tudo isso, quando virei às
costas àquele mundo há tanto tempo.
— Meu irmão tem razão — disse Donia Jaffe, e em sua voz havia
um tom áspero de metal.
— Talvez — e Gunnar falava com delicadeza — possa haver um
meio-termo saudável entre ignorar totalmente uma parte de nossa vida,
fingindo que ela nunca existiu, e uma preocupação raivosa com ela, por
existir demais na recordação. Existe a... aceitação.
Laura pareceu murchar um pouco diante dos olhos dele. A exultação
que a enchera desapareceu, mas ela fez um visível esforço e se dirigiu
para uma penteadeira encostada a uma das paredes. Não respondeu a
Gunnar, enquanto passava os dedos pelo espelho de maquilagem, com
seu círculo de lâmpadas coloridas.
— Esta era a penteadeira que eu usava em meu camarim no estúdio
— disse ela. — Imagine o que esse espelho não refletiu! Não quero mais
olhar nele.
— Se você olhasse nele — disse Gunnar —, isto é, se você olhasse
nele com honestidade, veria uma senhora de grande beleza e coragem,
que já deixou para trás há muito tempo a mocinha bonita que já o usou.
Seus olhos estavam cheios de lágrimas e seus lábios tremeram, mas
ela não se curvou para olhar no espelho.
Eu não queria olhar para ela, deixei que minha fascinação pelo
quarto vencesse meu alarma enquanto eu o percorria.
— Se pretende que eu fique aqui enquanto a visito, nada poderia ser
mais maravilhoso — disse eu. — Aqui há tanta coisa sobre que eu posso
escrever. Tanto de Laura Worth!
Com sua maneira mutável, Laura animou-se e piscou para afastar as
lágrimas, mas estava visivelmente fatigada.
— Pode olhar para tudo isso depois — disse ela. — Agora, vamos
subir. Vou levá-la a meu quarto, onde poderemos ficar a sós. Gunnar,
obrigada por me ter trazido essa menina. Vou-me despedir. Espero vê-lo
brevemente.
Ele pegou a mão dela e curvou-se, cerimoniosamente.
Espero que você não tenha pena de eu tê-la trazido. — Os olhos dele
procuraram os meus por um momento e neles havia uma exigência clara e
severa.
Eu o enfrentei, sorrindo.
— Tenho muito sobre que conversar com a Srta. Worth.
Ele me acenou ligeiramente com a cabeça.
— Esta é sua oportunidade. Se precisar de mim novamente basta
telefonar.
Eu sabia o que ele queria dizer. Depois que eu dissesse a Laura
Worth tudo o que tinha a lhe revelar, podia ser que eu não ficasse naquela
casa, afinal. E isso seria uma pena, pensei, com mais um olhar rápido
pelo quarto, antes de acompanhar Laura ao hall. A escritora que eu era
estava ansiosa por absorver tudo o que pudesse.
Donia pareceu desaparecer de vista quando Laura conduziu Gunnar
até a porta, mas Irene Varos ficou ao pé da escada, esperando, como se
não pretendesse deixar Laura a sós comigo, se pudesse evitá-lo. Laura
resolveu o assunto.
— Por favor, veja que ninguém nos perturbe, Irene. A Srta. Thomas
e eu precisamos começar. — Ela me estendeu a mão. — Vamos subir a
meu quarto, onde podemos ficar sozinhas. Está com o seu caderninho, ou
seja o que for de que precisa?
— Tenho tudo — disse eu, e acompanhei-a pela escada estreita.
A escada de madeira nua tinha sido construída encostada a uma
parede, de modo que ocupava um mínimo de espaço. Seus degraus
curvos, em forma de cunha, e corrimão curvo eram polidos e enfeitados,
mas parece que as escadas norueguesas não eram feitas para serem
espaçosas. A escada dava em cima para um hall interno, como o inferior,
com portas para todos os lados. Um lustre iluminava o espaço e havia
tapetes noruegueses pelo chão e tapeçarias nas paredes.
Laura conduziu-me para a porta aberta de um grande quarto, que
ocupava parte da frente da casa. Ali, as antigas janelas divididas tinham
sido substituídas por um moderno janelão, que servia de moldura para a
vista magnífica. Portas de vidro davam para uma sacada, onde se podia
sentar ao sol. O teto inclinado de um lado descia para uma lucarna, e na
alcova formada pela inclinação do telhado estava colocada a cama de
casal de Laura. Ali, toda a madeira escura fora afastada e o quarto era
decorado em suaves cremes e beges, com ousados toques de cor de vinho.
A mobília era moderna, provavelmente sueca, de madeira clara, estofada
num padrão de bege e verde e vinho. O vestido grená de Laura dava ao
quarto alma e um foco, e sentia-se que ela o planejara assim.
No entanto, nada havia no quarto que lembrasse Laura Worth, a
atriz. Esse ambiente tinha sido planejado para uma bela mulher, sem
considerações pelo passado. Numa mesa, havia uma foto do Dr. Miles
Fletcher, num porta-retrato de prata. Não havia outros retratos no quarto,
mas sobre uma espreguiçadeira achava-se um quadro de um navio em
perigo, num mar encapelado. Por cima de seus mastros, o céu estava
cheio de nuvens de tempestade, e ondas, escuras, bordejadas de espuma,
saltavam contra seus costados frágeis. Percebia-se vagamente nos fundos
uma linha de costa negra e rochosa. No entanto, aquele quadro tinha um
toque de técnica mais moderna que os que eu vira embaixo.
— Mais Noruega? — perguntei. — É um quadro impressionante,
mas como pode viver com ele?
— Viver com o terror, quer dizer? Ah, mas isto é a Noruega. O
navio há de vencer. Gosto do quadro porque ele fala de uma coragem
indomável. Sabe, o resto da Escandinávia considera os noruegueses como
primos, mas somos nós os aventureiros, os audaciosos. Os suecos são
convencionais demais, e os dinamarqueses, muito comerciais. Não que os
de Bergen se tenham dado mal, em matéria de Comércio. — Enquanto,
alguns minutos atrás, ela mencionara sua ascendência inglesa, agora ela
se identificava com os noruegueses.
Mas uma coragem indomável? Achei estranho ela admirar esse
traço, quando ela própria tinha fugido, há muito tempo.
— Naturalmente, um dos motivos por que tanto prezo esse quadro
— continuou ela — é por ter sido pintado por Gunnar Thoresen.
Eu me aproximei para examinar a cena melhor.
— É muito bom. Imagino que ele possa ser um bom pintor, só faz
coisas assim.
— Gunnar pinta para se distrair — contou-me ela. — Ele não tem a
energia nem a ambição para ser um verdadeiro artista. É isso que dá a
pessoa ser bem ajustada. Dou graças por nunca o ter sido.
Eu atalhei rapidamente:
— Conte-me sobre isso. É isso o que quero saber. O que a fez ser
como era?
Ela fechou a porta que dava para o hall e depois foi para a
espreguiçadeira e recostou-se nela, fazendo sinal para eu me pôr à
vontade, numa confortável cadeira a sua frente.
— Era! Ah, é essa a palavra do ordem, não é? Eu era, mas não sou
mais.
— Isso depende do que quer associar nossas palavras — disse eu. —
A senhora devia ter aceitado o fato do não ser mais uma atriz, quando
resolveu abandonar aquela vida.
Ela fechou os olhos um momento, querendo me tirar das suas vistas.
— Você me vai fazer perguntas dolorosas. Irene bem o disse. Disse
que você ia entristecer-me e magoar-me, mas talvez isso me faça bem.
Mas pelo menos você está aqui, e é isso que importa.
Ela abriu os olhos e olhou para mim. Em plena luz das janelas, eu vi
que seus olhos escuros estavam mais encovados sob a estrutura óssea do
que eram antes, e parecia-me que neles havia uma estranha sombra de
inquietação. Mas o que poderia haver na vida de Laura Worth hoje que a
fizesse receosa e inquieta?
— É importante para a senhora eu ter vindo aqui para reabrir o
passado? — perguntei.
— É importante que tenha vindo alguém. Alguém que se importe
com o que eu fui antigamente. Alguém que possa ajudar-me. Embora
talvez isso seja uma tolice. Talvez não haja mais ajuda para mim. — Ela
estendeu as mãos, num gesto de derrota, e as deixou cair.
Ela estava dramatizando, pensei, representando um papel para mim,
e comecei a ficar impaciente. Eu ainda tinha de fazer o que Gunnar
pedira — e pretendia fazê-lo. Mas primeiro eu esperava conseguir mais
alguma coisa para o artigo que eu poderia escrever, mesmo que ela não
pudesse suportar minha presença depois que eu lhe revelasse minha
verdadeira identidade. Mas até então ela não respondera a nenhuma
pergunta, deslizara por entre elas numa espécie de névoa emocional na
qual eu não conseguia encontrar o caminho. Eu continuava com a
impressão de que ela parecia estar quase assustada, por vezes. Na
véspera, quando eu a vira pela primeira vez, parecia uma mulher que
obviamente tinha desistido de viver. Mas o que haveria para ela temer,
isso eu não sabia — e não parecia provável que ela me contasse.
Talvez ajudasse um pouco se eu agisse como se aquela fosse uma
entrevista de verdade, em vez de apenas tentar puxar por ela. Abri minha
bolsa e procurei meu caderninho e lápis. Meus dedos tocaram no peso de
papel millefiori, embrulhado em papel fino, e fecharam-se nele. Será que
eu devia dispensar o fingimento da entrevista e fazer logo o que
pretendia? Não — puxei o caderninho e abri-o. Primeiro, eu ia conseguir
alguma coisa desse encontro. Primeiro, eu a utilizaria como uma
jornalista, antes de confrontar-me com ela como filha.
Ela me estava olhando. Seus olhos notaram as páginas abertas, o
lápis pousado, e não eram sem desconfiança.
— Fui muito maltratada pela imprensa. Por que haveria de confiar
em você?
— Tem toda a razão — concordei. — Nunca confie num repórter. A
senhora acabou de me dizer que está contente por eu estar aqui, mas se
não quiser falar comigo, mais vale eu ir embora. Talvez eu escreva uma
história sobre uma senhora aprisionada numa casa construída nas rochas
negras de uma montanha norueguesa.
— Aprisionada! — ela repetiu, e em sua voz havia um tom sombrio,
repentino, que me deu arrepios. Tive de me dizer que ela era uma atriz.
— Aprisionada com recordações que ela teme e ressente? — sugeri.
— Com um quarto cheio de coisas que ela provavelmente mantém
trancadas, fora de suas vistas a maior parte do tempo, porque há uma
velha caixa de segredos que ela tem medo de abrir?
— Você parece tão jovem — disse ela. — Jovem e ávida e sem
maldade. Mas há algo de mordaz em você. Gosto disso. Acho que pouca
coisa lhe meteria medo. Assim como eu não tinha medo, quando era de
sua idade. Os jovens são tolamente corajosos. Que perguntas me deseja
fazer? Mas não vamos começar com a caixa de segredos, por favor.
— Vou repetir a pergunta que já fiz. O que lhe deu a energia para ser
uma atriz, uma grande atriz? Pode encontrar a resposta no seu, passado?
Ela deu de ombros e começou a recitar frases curtas.
— Meu pai morreu quando eu era adolescente. Eu e minha mãe não
tínhamos dinheiro. Morávamos no Centro-Oeste, em Mineápolis. Sempre
tive jeito para representar. Eu tinha tomado lições de dança e muitas
vezes tinha o papel principal em peças escolares, porque era bonitinha.
Minha mãe sonhava com o cinema, enquanto que eu achava que
preferiria o palco. Fomos para Hollywood. Ela trabalhava numa loja de
departamentos e me inscreveu numa escola de arte dramática. Meu pai
sempre dizia: “Em tudo o que você fizer, Laura, seja a melhor.” Não
faça-o bem, mas seja a melhor. Eu gostava muito dele e continuava
querendo agradá-lo... mas, Srta. Thomas, não está escrevendo.
Meu lápis não se movia porque me ocorrera a ideia de que ela
estava falando sobre meus avós. Que eu estava ali agora só porque eles
tinham vivido — essa gente sobre a qual eu nunca tinha ouvido falar.
— Não preciso escrever o tempo todo. São coisas de que me
lembrarei — assegurei-lhe.
— O resto não é espetacular. Minha mãe lutou pelas oportunidades
para mim. Ela se sacrificava constantemente. Eu gostaria de ter gostado
dela como gostava de meu pai. Ele era tudo para mim, mas nunca me
consegui sentir unida a minha mãe.
Eu mordi a borracha na ponta do lápis. Será que a vida tinha
completado o círculo para ela? Agora que ela tinha uma filha, que por sua
vez tinha amado o pai...
Ela olhou para mim, com uma expressão indagadora.
Você está com um ar estranho. Será que já a estou chocando? Tenho
de lhe dizer a verdade, sabe? É só o que importa, agora, embora fosse
uma coisa que eu escondesse, antigamente, pois tinha vergonha de não
amar minha mãe.
— O que eu quero é a verdade — disse eu.
— Bom. Como já disse, o início não foi espetacular. Eu fui notada.
Deram-me um teste no cinema. Não foi muito bom, mas parece que eu
tinha alguma coisa que aparecia nas câmaras. Quando a pessoa tem isso,
pode ser acima da média, se trabalhar. Naturalmente, desde que se deseje
isso bastante. A essa altura, eu o queria enormemente. Continuava a
querer mostrar a meu pai que eu podia chegar ao topo de qualquer escada
que tentasse subir. Vieram os papéis secundários. Eu não era má. Eles me
observavam. Deram-me um contrato com o que pareceu a mim e a minha
mãe um ordenado principesco.
Ela parou, sacudindo a cabeça, insatisfeita.
— Não lhe estou dando nada. Apenas um resumo dos fatos. Fatos
que você provavelmente conhece. Mas não consigo falar naqueles tempos
com muito entusiasmo. Na major parte, era trabalho enfadonho. Eu não
tinha namorados. Não ia a festas. Só havia tempo para o trabalho. Eu só
conhecia as pessoas que trabalhavam no estúdio comigo. E os meus
professores. Eu estava estudando dicção. O cinema falado tinha aparecido
e eu tinha de aprender a falar direito. Minha voz era naturalmente boa.
Sim — sua voz era naturalmente boa. Eu escutava o timbre que ela
não perdera. Era uma voz que podia abranger a escala inteira, e no
entanto seus tons naturais eram ligeiramente roucos.
— Distant Thunder (Trovão Distante) foi o seu primeiro papel como
estrela, não foi? — perguntei.
Ela se animou um pouco.
— Foi. Foi esse o começo, na verdade. Os críticos foram muito
bondosos. Tive um aumento e a oportunidade de papéis melhores. Mas,
naturalmente, eu não tinha a possibilidade de escolher meus filmes,
naquela época, e depois disso muitos foram medíocres. No entanto, eu
ganhava nome, uma certa popularidade. Meus filmes eram sucessos de
bilheteria. Eu me estava transformando numa estrela. Parece que o
público gostava da mediocridade.
— Até o dia em que conheceu Victor Hollins? — perguntei.
Ela continuou como se eu não tivesse falado.
— Meus galãs eram os melhores da época. Alguns se tornaram
astros. Por alguns eu me apaixonei. Isso acontecia com bastante
frequência, sabe. Os artistas começam a acreditar que são os personagens
representados e se apaixonam pelos papéis uns dos outros. Geralmente há
uma cruel desilusão quando os traços que eles admiram se evaporam.
— Mas nunca se casou, naquela ocasião? Sempre se esquivou? —
Eu estava me aproximando, aproximando do fim.
Ela ficou calada um momento. Tornou a fechar os olhos e as
pestanas espessas e escuras pousaram sobre as faces. Por algum motivo,
de olhos fechados ela parecia mais jovem, mais vulnerável. Talvez
porque seus olhos fossem cheios de recordações e experiência.
— Você escolheu uma boa frase — disse ela. — Sim, eu sempre, me
esquivei a tempo. Eu estava casada com meu trabalho. Era só o que eu
realmente queria, e não teria sido justo para com um marido dar-lhe uma
esposa assim.
Então ela se desculpava, pensei. Convencera-se de que fazia um
favor não se casando com o homem que gostasse dela. Talvez isso tivesse
sido verdade. Fiz o gesto de escrever alguma coisa nas minhas páginas
vazias. Ela teria de voltar ao nome do qual fugira, se eu lhe desse tempo.
Eu esperaria.
— Maggie Thornton foi o melhor papel que jamais representei! —
Ela abriu seus grandes olhos e neles havia sofrimento, bem como
experiência. Não admira que ela parecesse mais moça quando tapava
aquela expressão. — Eu mereci meu Oscar. O papel também o merecia, e
eu merecia ganhar devido ao que eu dava ao papel. Victor Hollins foi um
bom escritor. O melhor. Trabalhávamos juntos admiravelmente. Ele
escreveu o script para mim. Reforçou o papel para mim. O filme foi
melhor que o livro. Já leu as obras de Victor Hollins?
— Li tudo o que ele escreveu — disse eu, calmamente. — Não
achei o filme melhor que o livro.
— Já o leu? Estranho, considerando-se que ele não é mais popular
com a geração atual. Disseram-me que ele está esquecido, nos Estados
Unidos.
— Isso não é bem verdade. Maggie Thornton ainda é leitura
recomendada nas universidades. E Sussurros tornou-se um clássico, em
seu gênero.
— Por causa do filme — disse Laura. — Esse foi um caso em que o
filme fez o livro.
Dessa vez, concordei.
— Por causa de sua atuação no papel de Helen Bradley. Devia ter
ganhado o Oscar naquele ano também. Por que não o recebeu?
— Sabe tanta coisa, Srta. Thomas! Acho que também sabe a
resposta a isso.
— O escândalo a prejudicou? — Minhas palavras eram francas e
fiquei esperando a reação dela.
Novamente as pestanas escuras se abaixaram, e eu não podia ler o
que estava por trás.
— Claro que isso teria sido temporário — continuei. — Poderia ter
voltado, se esperasse mais um pouco. O seu público a apreciava bastante.
Por que fugiu?
— Não! — A palavra soou como uma explosão. Ela a repetiu.—
Não! Já lhe disse que não vou abrir a caixa de segredos! — Ela se
levantou da espreguiçadeira e foi para a porta da sacada, movendo-se
como uma rainha — em comando, como uma rainha.
Ela me assustava um pouco. Eu queria arrancar mais coisas dela.
Queria sondar tão fundo quanto ousasse — e não só por causa do que
pretendia escrever. Pela primeira vez, eu estava começando a sentir um
relacionamento, embora não fosse de amor. Não havia afeição por ela no
que eu sentia, mas uma certa admiração relutante. E a impressão de que
eu brotara dos ossos e sangue e músculos dessa mulher — que havia mais
dela em mim do que eu jamais quisera reconhecer. Agora eu queria não
reconhecer, mas saber. Saber tudo o que pudesse a respeito de Laura
Worth. No entanto, eu já tinha chegado quase ao máximo de aonde
poderia ir — sem dar aquele último passo à frente.
Quando ela ficava com a cabeça assim, com o queixo altivamente
erguido, conseguia parecer muito mais alta do que era. Os críticos
falavam de sua “autoridade”. Eu entendia o que queriam dizer. Até
mesmo num quarto, representando para uma plateia de uma só pessoa —
uma pessoa ressentida e crítica —, ela tinha autoridade. Passou à sacada,
ficando de costas para mim, as mãos apoiadas sobre a balaustrada de
madeira, olhando para a cidade, prendendo minha atenção. Foi um
momento dramático, e creio que ela estava gostando daquilo. Talvez ela
não representasse o papel de Laura Worth, a atriz, havia muito tempo.
Eu aplaudi baixinho, um tanto maliciosamente.
O som a chocou, a fez virar e ela voltou para o quarto. Imagino que
a pessoa tivesse de andar assim, como artista — com toda aquela graça e
segurança. Ela foi diretamente para a minha cadeira e postou-se diante
dela.
— Você estudou bem sua lição. Leu os livros de Victor Hollins. Viu
meus filmes. Faz assim tantas pesquisas sobre todas as atrizes que
entrevista?
Eu sorri para ela.
— Não. Só sobre a senhora. Era chegado o momento. Eu não podia
mais continuar com aquilo. Procurei na bolsa que tinha deixado ao lado
de minha cadeira, e tirei o peso de papel embrulhado em papel de seda.
— Tenho uma coisa para a senhora — disse eu, e levantei-me para
entregá-lo a ela.
Ela levantou a mão, sem virá-la para cima, a princípio, e reparei nas
manchas marrons nas costas da mão, e nas veias intumescidas. A idade
podia ser disfarçada e negada em qualquer coisa, quase, mas não nas
mãos. As mãos de Laura Worth pareciam mais velhas do que seus 58
anos. Ela pegou o embrulhinho.
O papel abriu-se facilmente e ela levantou o peso de papel para a
luz. Florezinhas alegres brilhavam ao sol poente das portas da sacada e
seu olhar fixou-se nelas, petrificado.
— Onde você encontrou isso? — perguntou ela. A autoridade
sumira de sua voz, que agora estava fraca e vacilante.
— Victor Hollins mandou-o para a senhora. Quando ele morreu,
deixou uma carta, pedindo-me que o trouxesse. Ele era meu pai. Meu
nome não é Mary Thomas. É Leigh Hollins.
Por um momento, pensei que ela fosse desmaiar. Sua palidez era
alarmante. Mas quando ia estender a mão para sustentá-la, ela se
adiantou, passando por mim e sentando-se na espreguiçadeira. Dessa vez,
ela não se recostou nem fechou os olhos. Ficou olhando para mim com
um olhar firme, movendo o peso de papel, como que hipnotizada, de uma
mão para a outra, para lá e para cá, repetidamente.
— Você não se parece nada comigo — disse ela, por fim. — Nem
com Victor. — Ela falava calmamente, sem emoção. Passara o momento
de fraqueza, e a cor lhe voltara ao rosto.
Seja o que for que eu esperava da parte dela, não era aquilo —
falarmos sobre o meu aspecto.
— Pareço comigo mesma — disse eu. — E dou graças por isso.
O olhar dela me examinou dos pés à cabeça, e de repente senti-me
desajeitada, de pé diante dela, sendo medida — e aparentemente,
deixando a desejar.
— Por que não me disse logo? — perguntou ela.
— Eu disse ao Dr. Fletcher quando o vi ontem — disse eu. — Ele
não quis deixar que eu a visse. Não queria que ficasse perturbada com
meu aparecimento repentino. Por isso, tive de arranjar outro meio de
conhecê-la. Meu pai me deixou uma carta para Gunnar Thoresen, e eu o
procurei. Ele falou com a Srta. Varos, e combinaram o nosso encontro de
ontem. Acharam melhor não lhe dizer logo a minha identidade. Gunnar
achou que faria bem à senhora conhecer alguém interessado em sua
carreira cinematográfica. Se soubesse quem eu era, poderia recusar-se a
receber-me.
— Ele tomou a si muita coisa, aquele rapaz! Terei de falar com ele.
— Ele sabe que meu interesse em escrever esse artigo é sincero. —
disse eu. Avisou-me de que eu teria de lhe contar a verdade assim que
fosse possível. Mas eu não fui completamente honesta.
— Que idade você tem?
Eu pisquei, surpreendida.
— Vinte e três.
Ela franziu os lábios, numa caretinha.
— O seu aniversário não é uma data que eu quisesse lembrar. Você
me faz sentir muito velha.
Eu me sentia enrijecer, com o antigo sofrimento e raiva. Não, ela
não havia de se lembrar de meu aniversário. Estranho que eu soubesse tão
bem o dela.
— Claro que não vou ficar aqui — eu lhe assegurei, friamente. —
Pode esquecer-se de mim assim que eu sair. Não precisa fazer nada a meu
respeito agora. Tudo o que já fez pertence ao passado. Não importa mais.
Embora eu estivesse zangada, não estava dizendo as coisas que
tinha ido ali para dizer. Desapontada, eu sabia que não adiantaria nada
dizê-las. Quaisquer acusações e reprovações seriam ignoradas sem
sofrimento pela mulher que estava diante de mim. Ela podia lembrar-se
de Victor com sentimento. Sua palidez ao ver o peso de papel me
mostrara isso. Mas eu não significava mais para ela como filha dele — ou
dela — do que antes.
— Se você é minha filha, não é covarde — disse ela.
Novamente, fiquei surpreendida. Eu não sabia o que ela queria
dizer, mas respondi indignada.
— Não vejo que isso tenha algo a ver com você, mas não creio que
eu seja covarde. Foi você quem fugiu. Fugiu pelo menos três vezes, que
eu saiba. Quando não quis casar com meu pai. Quando me abandonou. E
quando desistiu de sua carreira.
Por um ou dois minutos ela me ficou olhando, quase que sonolenta.
Era um olhar que eu já vira no cinema, e era uma advertência.
A voz rouca era quase uma carícia, embora as palavras zombassem
de mim.
— Que menina tola você é! Acontece que em todos os três casos eu
agi da maneira que exigia maior coragem. Mas isso não é de sua conta.
Então acha que não é covarde?
— Não creio que seja. — Eu sabia que falava duramente.
— Então por que está falando em não ficar aqui? Você veio para
fazer uma entrevista, não foi? Por que não ir até o fim? Tem medo de
mim agora, que já sei quem você é?
Olhei para ela, boquiaberta.
— Quer dizer que... ainda quer falar comigo?
— E por que não? Ser entrevistada por minha própria filha, parece
até uma cena de um dos livros de Victor! Só que Victor tinha sentimento,
e eu não tenho. Quando eu represento um papel, posso sentir
apaixonadamente, mas na vida real há muito tempo, que perdi o talento
da emoção. Portanto, se está esperando um encontro sentimental, vou
desapontá-la.
— Eu também não sou sentimental — disse eu, ouvindo o tremor
em minha voz. Ela estava penetrando as minhas defesas e me
enraivecendo muito mais do que eu estava penetrando as dela. — Se
quiser deixar-me ficar para entrevistá-la, então é isso que farei — disse
eu, sem expressão.
Ela estendeu a mão e colocou o peso de papel cuidadosamente sobre
uma mesinha. Depois estendeu-me a mão, ainda escarnecendo.
— Então está resolvido. Negócio fechado. Nada mudou. Continuo a
ser Laura Worth, e você é uma jovem que deseja escrever sobre mim.
Tudo o mais pode ser esquecido.
Ao pegar a mão dela, com relutância, lembrei-me das palavras que
Gunnar Thoresen me dissera. “Seja delicada com ela”, dissera ele. Como
se ela precisasse de delicadeza! Com aquele aperto de mão frio e firme,
eu estava comprometida a ficar, a despeito da raiva que me inundava.
Agora, eu também tinha de ser atriz. Mais do que nunca, eu tinha com ela
uma dívida que queria saldar — uma dívida de ressentimento e
sofrimento por antigos males, pela insensibilidade e crueldade. Pela
indiferença. Eu queria feri-la como ela tinha ferido a outros.
— Agora — disse ela —, não posso continuar a chamá-la de Srta.
Thomas, nem Srta. Hollins. Seu pai lhe deu o nome de Leigh, por causa
de uma tia, parece-me. Portanto, é como vou chamá-la.
Eu imitei o tom dela conforme pude.
— Nem eu posso continuar a chamá-la de Srta. Worth, nem Sra.
Mitcher. Portanto vou chamá-la de Laura. — Havia um outro nome que
eu poderia usar, um termo sentimental que ambas rejeitávamos.
A sombra de um sorriso tocou sua boca larga e linda.
— Pode chamar-me Laura, é claro. Não precisa ser rebelde para
isso. O jeito de seu queixo quando você fica assim; você deve ter
aprendido isso vendo meus filmes.
Abaixei o queixo revelador. A última coisa que eu queria era parecer
com ela em alguma coisa. Ela riu baixinho.
Bateram à porta e Laura disse “entre”.
Irene Varos entrou no quarto, olhando depressa para Laura e para
mim e para ela de novo.
— Já me contaram a verdade — disse Laura secamente. — Leigh
vai ficar conosco por algum tempo. Parece que você e o Sr. Thoresen
andaram conspirando.
Irene não deu atenção à acusação.
— Agora vai ter de falar com o Dr. Fletcher. Ele acabou de chegar a
casa, e dentro de alguns minutos vai subir. A Sra. Jaffe está contando a
ele sobre a chegada da Srta. Hollins.
— Falarei com ele — disse Laura. — A Srta. Hollins e eu o
esperaremos aqui.
— Talvez prefira... — comecei, mas ela me fez um gesto.
— Fique comigo. Vamos falar com ele juntas. Irene, quer dizer ao
Dr. Fletcher que eu quero falar com ele, sim?
Irene hesitou à porta, como se estivesse irresoluta por alguma coisa.
Depois saiu.
Quando ela saiu, a mulher de veludo grená respirou fundo e
devagar, como que se preparando para um embate de forças.
Ouvi passos lá fora, na escada. Engoli em seco, esperando. Nada se
passara como eu esperara, nem como eu quisera. Eu não sabia o que viria
agora.
5
O que se seguiu me assustou. Laura recostou-se na espreguiçadeira,
com as belas linhas do vestido drapejando em volta dela. Deixou um dos
braços cair, inerte, para o chão. Os planos de seu rosto pareceram
afrouxar e mudar, enquanto a depressão a dominava. Ela era novamente
uma mulher que não se importava com nada. Sentei-me numa cadeira
próxima, olhando-a com desconfiança. Qual seria o seu jogo, agora?
O Dr. Fletcher entrou no quarto com um passo firme e decidido.
Lançou-me um breve olhar de reconhecimento e de dispensa. Era
evidente que ele não queria saber de mim. Foi diretamente para onde
estava Laura e debruçou-se para beijar-lhe o rosto.
— Olá, querida. Como se está sentindo?
— Estou bem. — As palavras eram fracas. — Parece que já conhece
Leigh Hollins? Minha filha.
Ele teve de admitir que sim e trocamos cumprimentos forçados.
Depois ele pegou a mão de Laura para sentir seu pulso.
— Muito acelerado — disse ele. — Esse encontro a excitou. E agora
está esgotada.
Eu, imaginava que Laura estivesse maldizendo seu pulso revelador.
Ela abriu os olhos e deu um sorriso fraco ao marido.
— Foi fatigante. Mas é uma coisa que eu preciso fazer. Gunnar tem
razão. É uma coisa que eu devo ao mundo.
— O que é exatamente que você deve ao mundo? — O Dr. Fletcher
puxou uma cadeira para junto da mulher e sentou-se. Naquele momento,
com a luz do sol brilhando sobre ele, parecia mais moço que ela, embora
fosse mais velho. Seus cabelos e bigodes escuros não o envelheciam.
Laura respondeu com delicadeza, e em sua voz havia um tom de
súplica.
— Você se esquece de que eu já fui Laura Worth. Leigh me diz que
ainda se lembram de mim nos Estados Unidos. E Gunnar acha que devo
conceder essa entrevista. Há pessoas que querem saber o que aconteceu
comigo, onde estou, como vivo.
— O que as pessoas hão de querer saber — disse Miles, calmamente
— é a respeito da morte de Cass Alroy. O seu chamado público é ávido
de escândalos, como sempre. — Ele me lançou um rápido olhar. — Não é
verdade, Srta. Hollins?
— Imagino que as pessoas sempre se deleitem com escândalos —
disse eu —, mas há muitos que se interessam pela arte dela. Laura poderá
falar comigo sobre o que bem entender.
Ele me sacudiu a cabeça.
— Não vai ser assim. Isso é uma coisa que não posso permitir.
Conforme eu lhe disse em seu hotel ontem, você só vai perturbar minha
mulher. Obviamente, já o conseguiu.
— Convidei Leigh para ficar aqui alguns dias. — A voz de Laura
era fraca, cansada. — Por favor, não vamos complicar as coisas. É muito
mais fácil fazer o que ela pede do que discutir a respeito.
— Não vai haver discussão — disse Miles. — Eu simplesmente vou
proibir que ela fique aqui.
Ele se virou para mim, e vi nos olhos de Laura o lampejo sombrio
que ele não viu.
— Você proíbe que ela fique em minha casa? Ela sendo minha filha?
Ele se virou logo para ela, examinando-a pensativamente, ao
perceber que sua depressão não era tão total quanto parecia. Por um
momento, ele pareceu travar uma luta íntima, como se estivesse pensando
se devia ou não desafiá-la. Depois, cedeu, com elegância.
— Desculpe, amor. Você sabe que só penso em sua saúde, suas
forças.
— Estou sentindo-me melhor, desde que conversei com Leigh —
disse ela. — Talvez me faça bem lembrar-me de quem sou.
— Veremos — disse ele. — Se ficar, Srta. Hollins, posso contar que
vai perturbar minha mulher o menos possível?
Não era bem isso o que eu tinha planejado, mas concordei coma
cabeça, com bastante humildade, e ele se levantou e foi para a porta.
— Vou deixá-las, por enquanto. Espero que possamos dar-lhe
conforto, Srta. Hollins. A casa, como pode perceber, está um tanto cheia
no momento.
— Ela vai ficar em meu quarto lá embaixo — disse Laura. —
Poderá entrevistar o quarto, além de a mim.
Por algum motivo, isso pareceu espantá-lo, pois ele parecia menos
satisfeito do que nunca.
— Conforme Laura sabe, eu gostaria de que ela se livrasse de todas
aquelas coisas. Ela agora pertence a outra vida, e essas recordações só
podem ser dolorosas.
— Por quê? — perguntei francamente. — Eu acho que deve dar uma
satisfação imensa recordar um sucesso como foi o de Laura Worth. Deve
haver tantos detalhes simpáticos para relembrar.
— Terminando tudo em desastre — disse Miles. — O melhor é
largar, esquecer.
— O senhor estava lá, na ocasião, não estava? — Minha pergunta
foi propositada. Não havia motivo para eu ter tato com aquele homem. Eu
agora tinha Laura de meu lado e sabia que ela pretendia que eu ficasse na
casa. Portanto, podia bem provocá-lo com algumas das perguntas que eu
queria fazer. — Parece que o senhor esteve no estúdio naquela mesma
tarde, se me recordo direito das notícias dos jornais.
Mas foi Laura quem me fez parar.
— Essa porta ficará fechada, do contrário não lhe falarei de todo.
Miles curvou-se para ela.
— Você está tremendo, querida. — Ele parecia estar examinando-a
atentamente, esperando alguma coisa. — Nada disso pode atingi-la agora.
Há 20 anos que está tudo acabado.
Ela se agarrou à mão dele e olhou-o com os olhos cheios de
lágrimas, enquanto ele a afagava e acalmava. Era uma cena muito
comovente, pensei, sem acreditar em nada daquilo.
— Continuo a achar que isso não lhe vai fazer bem — disse Miles.
— O choque de ver sua filha...
— O ângulo mãe-filha não precisa incomodá-lo — interrompi. —
Nisso de ser mãe, ou filha, não há mais que apenas o sangue. Os
ingredientes estão faltando em nós duas: Laura e eu concordamos nisso.
Portanto, não precisa preocupar-se com o choque de nenhuma de nós.
Ele olhou para mim com uma expressão de curiosidade naqueles
olhos cinzentos, que pareciam captar a luz, pesando-me, de certo modo,
talvez não sabendo bem como interpretar-me, mas positivamente sem
gostar de mim.
— Leigh tem toda a razão — concordou Laura. — Ela nem pede
nem terá quaisquer privilégios de família.
— Vocês são calmas a respeito, ambas. Devo dizer que isso é
tranquilizador, de certo modo.
— Tranquilizador por causa de Victor? — Mais uma vez eu o
provocava. — Por causa da lenda a respeito de meu pai, do modo que o
senhor preferia que não houvesse sentimento nesse sentido?
O rosto dele mudou, perdendo seu aspecto desconfiado e observador
para algo estranhamente triste, e de repente eu me senti sem jeito. Eu me
via, com uma clareza brusca, mergulhada em águas profundas, de que eu
nada conhecia. A lenda dizia também que Miles Fletcher tinha amado
Laura Worth havia muito tempo. Amara-a o suficiente para restituir-lhe a
vida depois de sua doença, em seguida à tragédia, sem receber coisa
alguma de palpável por seus esforços. Até agora, talvez. Será que ele
podia realmente ter continuado apaixonado por ela todo esse tempo? E se
ela nunca o amara, porque se casara com ele depois de todos esses anos?
Que poder teriam um sobre o outro?
Ele não me respondeu, mas sua maneira tinha uma certa dignidade
que me fez conhecer meu lugar. Com um breve gesto de cabeça para
Laura, ele saiu do quarto.
Ela não se mexeu de onde estava. Parecia inteiramente exausta, e
toda sua força e animação tinham desaparecido. Até sua voz estava
cansada quando ela falou comigo.
— Talvez seja melhor você compreender, para início de conversa,
que Miles e eu temos uma afeição muito real pelo outro. O amor se
modifica com os anos. Hoje nós nos damos algo de diferente do que
poderíamos ter esperado há anos, mas não obstante, é real. Não quero que
você o provoque nem lhe arme ciladas. Se isso for preciso, eu o farei.
Compreendeu?
Olhei para ela zangada, não dando atenção às suas palavras. Não
acreditava que Miles Fletcher tivesse casado com Laura por amor, tão
tarde assim, nem que ela pudesse corresponder à afeição dele.
Quando ela viu que eu não pretendia responder, deu um suspiro
fatigado.
— Você se parece demais comigo, Leigh. Tem uma língua afiada,
que você não refreia. Era desnecessário feri-lo, falando no nome de
Victor. Não pode ser agradável para ele tê-la aqui.
As palavras dela me envergonharam, e minha raiva passou.
— Sei disso — disse eu, arrependida. Assim que eu falei, me
arrependi. Ele me deixou furiosa e tive vontade de dar nele.
— Nós todos somos vulneráveis. Você também, mais do que pensa.
E eu especialmente. Não fiz para mim a melhor das vidas. Uma carreira
sacrificada. Um casamento que não deu certo. Amor perdido. Uma filha
que nunca reconheci. É estranho que você queira escrever sobre mim.
— Não quero escrever sobre nada disso. Quero escrever sobre Laura
Worth, a atriz.
— Alguém que só existia nos papéis que representava? Alguém que
fora disso não era nada?
— Isso é autocomiseração — disse eu.
O riso dela me espantou.
— Essa língua afiada de novo. Mas você tem razão, é claro. Às
vezes, tenho pena de mim mesma. É por isso que estou satisfeita por você
ter vindo.
— Por que eu posso ajudá-la a recuperar o orgulho pelo que já foi?
Ela se levantou da espreguiçadeira.
— Não, minha interessada entrevistadorazinha. Porque você é mais
uma pessoa nesta casa. E eu a quero o mais cheia possível. Não quero
mais saber de cantos onde sombras se possam ocultar. Lugar nenhum em
que um sussurrador possa esconder-se.
Senti um calafrio pela espinha. Eu tinha razão, quando achei que ela
às vezes parecia perseguida pelo medo. Agora havia traços desse medo
em seus olhos escuros.
— Um sussurrador? — repeti, baixinho.
Por um momento demorado, ela me fitou como se me desafiasse
negar suas palavras.
— Você, com sua língua afiada! O que diria se eu lhe contar que
ultimamente já o ouvi mais de uma vez? O sussurrador!
— Talvez você esteja ouvindo com sua memória, porque está
cansada e desencorajada. Isso acontece, sabe, as pessoas ouvem vozes
quando estão exaustas. Já contou a seu marido?
— Para ele me dar drogas para curar minhas alucinações? Não. Não
contei a ninguém, além de você. Posso contar-lhe porque você é
seguramente minha inimiga.
As palavras dela me assustaram e eu fiz um som involuntário de
negação, embora fossem verdade. Mas ela continuou depressa.
— Ah, sim, eu vi logo. Uma atriz é observadora, sabe. Estamos
sempre à espreita para ver os modos como aqueles que nos rodeiam se
traem. Para podermos imitá-los. É um hábito que nunca passa. Mas
prefiro você assim. Assim você pode ser objetiva. Os outros são muito
íntimos de mim. Eles haviam de se preocupar e tomar providências e
fingir. Mas você, você vai escutar. É por isso que eu a quero aqui. Porque
você é um ouvido à escuta.
Mais uma vez, eu não estava acreditando em nada daquilo.
— Se há uma voz, o que é que ela diz?
— O que é que sempre diz?
Lembrei-me do livro de meu pai e da peça de cinema.
— Quer dizer a palavra “escute”?
Ela deu de ombros, com um ligeiro estremecimento.
— Claro. Mas agora você é que vai escutar. É o que lhe peço. Em
troca, eu lhe darei o material para o seu capítulo, até certo ponto. Voei
tem de aceitar o tabu. Nunca falarei da morte de Cass Alroy.
Eu concordei com a cabeça, mas não lhe fiz uma promessa verbal.
Havia perguntas que eu ia ter de fazer. Enquanto isso, eu faria a vontade
dela, dando a minha presença na escuta. Se ela realmente tinha
alucinações, então talvez eu pudesse ajudá-la a reconhecê-las e eliminá-
las. E ela me recompensaria respondendo às minhas perguntas. No final,
ela teria de responder, pois eu encontraria meios de pressioná-la.
Ela interrompeu os meus pensamentos.
— Seja o que for que estiver tramando, não é provável que tenha
êxito. Você tem um rosto franco e jovem, que a denuncia. Um rosto
bonito. Ou poderia ser. Não lindo, mas aceitável... Mas agora, só faltam
uma ou duas horas para jantar, e quero descansar. O jantar é às sete horas.
Aqui, não seguimos os costumes noruegueses.
Eu fui para a porta, constrangida, minhas emoções num estado de
confusão que seria difícil de entender. Nas últimas horas eu me sentira
envergonhada, zangada, humilhada, rejeitada, elogiada e suplicada.
Agora estava sendo dispensada.
— Até logo — disse eu, friamente, saindo do quarto.
No hall superior, escurecido, onde só havia uma janelinha junto da
escada, fiquei parada um instante, procurando controlar minha
indignação, e ao mesmo tempo orientar-me na casa.
A porta fechada na frente, ao lado do quarto de Laura, com certeza
devia ser de Miles Fletcher. As duas portas ao lado eram dos outros
quartos de dormir — de Irene e de Donia. O banheiro moderno, de bom
tamanho, e vários armários, ficava nos fundos. Enquanto eu estava
olhando, uma das portas laterais se abriu e Irene Varos se aproximou de
mim, ansiosa.
— Você faz bem a ela, afinal — disse-me ela, em sua voz comum
ligeiro sotaque.
— Não tenho certeza de que ela faça bem a mim — retruquei.
Ela não deu atenção, e olhou em volta depressa, como se não
quisesse ser ouvida.
— A princípio, eu não tinha certeza sobre a sua pessoa, Srta.
Hollins. O Sr. Thoresen me aconselhou a aceitá-la, e confio no
julgamento dele. Mas assim mesmo... parecia um risco. A filha da Srta.
Worth...
Fiquei pensando como Miles aceitaria o hábito de Irene de chamar a
mulher dele de “Srta. Worth”.
— Só me interessa a carreira de Laura Worth — assegurei-lhe — e
acho que talvez ela goste de ver uma pessoa nova. Ela parece estar
melhor do que estava ontem.
— É? — Um ligeiro sorriso tocou a boca reta da mulher. —
Naturalmente, com a Srta. Worth, sempre se pode ter certeza.
— Isso eu já descobri. Ela deve confundir qualquer médico.
Havia um certo orgulho na resposta dela.
— Ela os faz pensar o que bem entende.
— Já percebi isso. — Dirigi-me para a escada e ela me acompanhou
até o primeiro degrau.
— Procuramos instalá-la confortavelmente no quarto lá embaixo,
Srta. Hollins. O sofá é sofá-cama, e bom. E há um banheiro lá embaixo
que pode ser só seu. Espero que... o ambiente do quarto não a perturbe.
— Ambiente?
— Todas aquelas caras do passado. Concordo com o Dr. Fletcher
que tudo aquilo devia ser mandado embora. Dado a algum museu de
teatro americano, talvez.
Eu comecei a descer e ela veio atrás.
— Conheceu Laura Worth quando ela era artista? — perguntei, por
sobre o ombro.
— Não. Nunca estive em Hollywood. Nós nos conhecemos em
Dubrovnik, em minha terra, depois de ela ter deixado o cinema. Talvez
seja por isso que as coisas daquele quarto me perturbem. Pertencem a
uma época que eu não entendo.
Tínhamos chegado à porta fechada do quarto, e pus minha mão na
maçaneta.
— Vou descansar um pouco antes do jantar. Ainda estou tentando
me refazer da viagem.
— Sim... sim, claro. Leva alguns dias para a pessoa se ajustar. —
Mas ela parecia ligeiramente desapontada, como se quisesse entrar no
quarto e conversar mais a respeito de sua aversão pelas recordações.
— Não se preocupe comigo — disse eu. — Fico fascinada por tudo
que se refere a Laura Worth como atriz. Sinto-me à vontade nesse quarto.
Eu gostaria de escrever um artigo muito bom sobre ela.
— Ela já conversou comigo um pouco, sobre aqueles tempos —
disse Irene. — Se eu puder ajudar...
Olhei para ela, surpreendida, imaginando o que ela me poderia
oferecer que Laura não pudesse dar, pensando no que ela estaria
insinuando.
— Obrigada — disse eu, e abri a porta do quarto.
Todas as cortinas estavam fechadas, mas a luz central com o abajur
de Tiffany estava acesa, de modo que o centro do quarto tinha um brilho
amarelo, enquanto que os recantos estavam na sombra. O cheiro de
poeira e cânfora era sufocante. Ninguém se lembrara de arejar o quarto
para mim. Ou será que preferiam que ficasse incomodamente instalada?
E assim não me demorar muito.
Do outro lado do quarto percebi um ligeiro movimento, e parei no
umbral da porta, Irene espiando por cima de meu ombro.
— Estava esperando por você — disse uma voz suave, vinda das
sombras do quarto.
Aí eu a vi. Donia Jaffe estava encarapitada em cima de uma mala,
suas pernas curtas cruzadas, não tocando no chão. Ela tinha trocado de
roupa. Em vez das calças e suéter, estava agora com um estampado vivo,
verde e roxo, que espalhava um padrão de selvas por toda a sua
minúscula pessoa. Se Miles tinha 60 anos, ela deveria ter uns 10 anos
menos — se eu me lembrava bem das notícias.
Atrás de mim, Irene fez um ligeiro som de reprovação. Donia logo
fez um gesto com a mão pequena e ossuda em direção dela.
— Está tudo bem, Srta. Varos. Eu tratarei do conforto da Srta.
Hollins. Pode voltar para junto de Laura.
Sem dizer uma palavra, Irene foi embora, mas eu percebi que ela
estava ofendida, por sua maneira dura de andar. Entrei no quarto e olhei
para o sofá com vontade de me deitar. Se Donia viu o meu olhar, não deu
atenção.
— Que ótimo terem posto você neste quarto! — exclamou ela. —
Isso faz com que ele deixe de ser proibido. Imagine morar numa casa em
que há um quarto de Barba Azul, que é proibido a todo mundo!
Eu a considerei com um interesse de autora, desistindo da ideia do
sofá. Como uma atriz, uma escritora também tem de ser observadora e
estar alerta para os sinais que denotam o caráter e um significado íntimo.
— Eu não imagino que a carreira de Laura Worth tenha sido muito
misteriosa disse eu. — De certo modo, todas essas coisas são do domínio
público. Já se escreveu e comentou sobre tudo isso, tudo foi fotografado
e registrado.
— E depois fechado num quarto proibido. — Donia saltou da mala e
bateu em sua tampa com suas unhas compridas. — Essa mala, por
exemplo. Por que há de ficar trancada, desde que meu irmão e eu viemos
para cá? Você é repórter, devia interessar-se.
— Não sou exatamente um repórter — disse eu. — Não me
concentro em notícias novas. Interesso-me por personalidades.
— Ah, eu sei a seu respeito. Usei a palavra errada. Já li seus artigos.
Aquele sobre Barbra Streisand não foi nada simpático. Mas muito bem
feito. Você é ótima escritora. Vai ser igualmente ferina com Laura Worth?
— Acontece que sou uma boba quando se trata de filmes Worth. E
acho que na verdade prefiro escrever sobre aquele período de Hollywood,
quando ainda havia algo do antigo glamour.
Ela me observava com seus olhos brilhantes e espertos.
— Meu marido trabalhava no cinema e nós morávamos em Beverly
Hills, antes de nos divorciarmos. Por baixo do glamour, o negócio era de
muito mau gosto. Eu achei péssimo quando meu irmão começou a
atender as celebridades de Hollywood, em sua clínica. Claro, elas tinham
dinheiro. Parte do tempo. Mas Miles envolveu-se demais. Teria feito
melhor deixando-as em paz.
O que ela queria dizer era que ele teria feito melhor deixando Laura
Worth em paz. Eu não sabia se ela conhecia Laura bem, nos velhos
tempos, mas ela certamente tinha um ponto de vista sobre o qual eu
queria saber mais. E parecia disposta a falar. Se ao menos aquele quarto
não me abafasse com seus cheiros de mofo e coisa velha.
— Seria possível deixar entrar mais luz e ar nesse quarto? —
perguntei, e fui abrir as portas de venezianas que davam para o quintal.
Depois de abri-las de par em par, fiquei olhando pelo morro íngreme para
a casa e jardim acima. Um ar fresco e puro entrou, trazendo consigo um
cheiro do mar, com um toque de pinheiros com o calor do sol. Donia
imitou-me e abriu as venezianas de duas janelas laterais. O quarto ficou
mais claro e o cheiro de pó e cânfora melhorou. Eu certamente teria de
deixar tudo aberto, naquela noite.
— Quanto a essa mala — disse Donia, voltando para mexer na
fechadura, o cipó da floresta do vestido parecendo enroscar-se em volta
dela, quando se mexia —, você não deve perder tempo na sua pesquisa.
Por que não a abre agora?
— Você tem a chave? — perguntei. Ninguém me dissera para não
olhar para o que bem entendesse, e eu também achava que não havia
tempo a perder.
— Não cabe a mim abri-la — disse Donia, muito virtuosa.
Isso, pensei, significava que ela não sabia onde estava a chave. Sorri
para ela.
— Você está louca de curiosidade. Talvez a chave tenha sido largada
em algum lugar neste quarto. Vamos explorar.
Fui para a penteadeira que já tinha estado no camarim de Laura, e
remexi no seu tampo. Havia uma caixa de sândalo com uma tampa
travada, e eu a abri. Dentro havia uma argola com chaves. Eu as fiz
retinir nos meus dedos e virei-me para a mala.
A terceira chave serviu na fechadura e o fecho se abriu. Donia, cheia
de animação com sua estranha avidez de jovem e velha, estava a meu
lado. Uma onda de cânfora emanou-se da mala e eu tive de recuar,
sufocada.
Donia logo avançou no artigo que estava por cima da mala. Parecia
ser uma peça de fazenda vermelha, enrolada numa trouxa.
— Vamos desempacotar tudo! — exclamou ela.
Tomei-lhe a trouxa, começando a ter uma sensação de incerteza.
— Talvez seja melhor pedir licença primeiro.
— E se ela disser que você não pode revistar a mala? — perguntou
Donia. — Aí você perderá sua chance. Não espere, vá em frente!
Ela parecia uma criança com sua ansiedade, apesar de ter uma cara
de macaco mirrado. Senti uma repulsa diante da urgência dela.
— Pelo menos, acho que devo olhar isso com Laura — disse eu. —
Aí ela poderá me contar a respeito de tudo isso, conforme formos tirando
as coisas. Não adianta fazer isso sozinha.
Comecei a recolocar a trouxa de pano, mas Donia me impediu com
a mão estendida.
— Há alguma coisa aí dentro. Veja como é pesado. Desembrulhe-o
para ver.
Comecei a desenrolar o pano e, quando ele apareceu livre em
minhas mãos, reconheci o que era, e prendi a respiração. Eu estava
segurando a própria roupa que Laura Worth tinha usado como Helen
Bradley em Sussurros. O objeto pesado que estava embrulhado em suas
dobras caiu no tapete e eu nem prestei atenção, sacudindo a roupa
amassada que um dia representara um papel no filme feito do livro de
meu pai.
Sua cor — como no livro — era de um vermelho-veneziano. Era
debruado com tiras cinza, e tinha bordados em seda preta no corpete
ajustado e na saia. Embora o vestido aparecesse no filme como preto, eu
me lembrava do brilho do bordado de seda, o aspecto suave da pele. O
corpete ajustado tinha realçado lindamente o corpo de Laura — e ela
nunca parecera mais encantadoramente feminina, mais tocantemente
perdida.
Meu dedo do pé bateu no objeto que caíra de dentro do vestido, e eu
me abaixei para apanhar um castiçal alto. Seu dourado havia muito que
passara a um dourado esverdeado-escuro, mas devia ter sido um belo
objeto. Um dragão chinês se enroscava para cima em volta da haste do
castiçal, erguendo sua cabeça com as presas sob o bocal.
Polidas, as escamas do dragão teriam reluzido à luz das velas.
Donia deu um gritinho, estremecendo.
— É o castiçal! É o castiçal do dragão!
Eu não sabia o que ela queria dizer, mas era um objeto lindo. Atirei
o vestido de Laura sobre a mala aberta, e levei o castiçal para as portas
do jardim, para examiná-lo melhor na luz.
Laura me viu ali, quando saiu pela porta do hall. Viu o castiçal em
minha mão e, como Donia, deu um grito — um som de dor e tristeza. Eu
só pude olhar para ela, espantada, quando ela correu pelo quarto e o
arrancou de minhas mãos. Donia afastou-se para um canto, onde ficou
esperando com um gozo malicioso.
Laura levou o castiçal de volta para a mala, sem dizer uma palavra,
e deixou-o na prateleira de cima. Depois viu o vestido de vermelho-
veneziano e pegou-o, quase sem acreditar. O vermelho-arroxeado de seu
veludo grená e o tom marrom do vermelho-veneziano se fundiam,
misturando-se como um fluxo de sangue. Ela segurou a roupa junto do
peito, o rosto empalidecendo, os olhos fundos e escuros.
— Eu tinha esquecido que tinha guardado isto — disse ela, e
estendeu a mão para se equilibrar na tampa aberta da mala.
Eu falei baixinho:
— Eu gostaria de vê-la usar essa roupa de novo. Você não engordou.
Ainda lhe serviria muito bem.
Donia riu-se, mas foi apenas um som nervoso. A cara dela estava
com uma expressão assustada, quando a olhei.
Com um esforço, Laura pareceu controlar-se. Enrolou o vestido num
bolo e meteu-o na mala. Depois deixou a tampa cair, com um baque.
— Onde estão as chaves? — perguntou.
A argola tinha caído no chão e eu a apanhei para ela. Ela pegou as
chaves de minha mão e encontrou a chave certa. Depois de trancar a
mala, fechou os dedos sobre a argola. Pela primeira vez desde que entrara
no quarto, ela olhou diretamente para mim.
— Eu tinha esquecido uma coisa — disse ela. — Foi por isso que
desci. Para lhe dizer que há certas coisas neste quarto que não podem ser
mexidas. Esta mala é uma delas. Está me entendendo, Srta. Hollins?
Toda sua autoridade, sua presença de palco, estavam ali, enquanto
ela me dava ordens. O próprio uso de meu sobrenome era uma
repreensão, uma acusação. Ela se afastou da mala, virou-se para a porta
e, sem qualquer aviso, caiu num monte no chão desmaiada. Lembro-me
de ter ouvido o barulho das chaves ao caírem da mão dela. Lembro-me de
ter ouvido uns passos furtivos e repentinos do canto, quando Donia
agarrou a argola de chaves. Aí eu corri para a porta e pedi socorro.
Miles desceu depressa, seguido por Irene. Ele se ajoelhou ao lado de
Laura por um momento e depois levantou-a no colo e levou-a para o sofá
do outro lado do quarto. Irene foi para a penteadeira e pegou um vidro.
Sem dizer uma palavra, deu-o a Miles, e vi a tampa verde em forma de
coroa de um vidro antigo de sais aromáticos.
Ele segurou o vidro um pouco debaixo do nariz de Laura, e ela
sufocou com o cheiro de amônia e começou a respirar pesadamente. Suas
pestanas escuras se levantaram e ela olhou meio tonta pelo quarto.
— O que foi que a assustou? — Miles falou por cima do ombro,
dirigindo-se a Donia e a mim.
A irmã respondeu depressa:
— Foi aquele vestido vermelho que ela usou em um de seus filmes.
A Srta. Hollins encontrou-o naquela mala ali e Laura pareceu ficar muito
perturbada quando o viu.
Miles olhou para mim com desprazer.
— É natural. Ela tem de ficar fora desse quarto.
Laura pôs a mão no braço dele.
— Claro que não devo ficar fora dele, Miles, meu bem. Tenho de vir
aqui muitas vezes para ajudar a Leigh com tudo o que ela tem de saber
sobre mim. Foi uma tolice e uma fraqueza muito grandes de minha parte,
desmaiar. O vestido trouxe tudo aquilo de volta muito vividamente. O
vestido e... — ela interrompeu-se, e fechou os olhos, a respiração
ofegante.
— O vestido e o que? — perguntou Miles.
Ela virou a cabeça de um lado para outro, sem responder.
— Foi um castiçal de bronze — disse eu. — Ela o deixou cair de
novo na mala.
— Um castiçal! — Parecia haver um tom de surpresa na voz de
Miles.
— Com um dragão chinês enroscado em volta — disse eu.
— Ajude-me a ir para meu quarto, por favor. — Laura sentou-se e
Irene foi depressa para junto dela.
— Eu a levo para cima, Dr. Fletcher. Isso já aconteceu antes. Isso
passa. Acho que agora ela poderá andar.
Laura deixou que Irene a ajudasse a levantar-se do sofá e depois
empurrou as mãos da outra e ficou de pé sozinha.
— Desculpem. É uma fraqueza ridícula. — Virou-se para mim. —
Por favor, prefiro que aquela mala não seja aberta. Não há nada nela para
o seu capítulo sobre mim.
Por um momento, ela parecia uma figura de dar pena — forçando-se
a ficar de pé sozinha e ereta, tentando em vão recapturar aquela
autoridade de que ela precisava mais do que nunca. Ela agora não me
podia comandar. E como ela não estava comandando, eu cedi.
— Não lhe farei perguntas sobre a mala — prometi.
Ela pareceu ficar mais forte, ali mesmo, e lançou-me seu sorriso
rápido e radiante, ao se virar para a porta. Não tornou a olhar para Miles
e recusou o braço que Irene ofereceu para apoiá-la para atravessar o hall
e subir as escadas.
Donia correu para a porta e ficou olhando para ela. Depois virou-se
para o irmão.
— Foi o castiçal que a assustou. Eu vi a cara dela quando ela o viu
nas mãos da Srta. Hollins. Não foi o vestido. — Isso foi só o que eu
disse.
Miles foi até a mala e tentou levantar a tampa.
— Está trancada — disse ele.
Tenho as chaves. — Donia foi rápida.
Por um momento, ele pareceu hesitar. Depois olhou para mim,
sacudiu a cabeça.
— Deixe para lá — disse ele à irmã, e saiu do quarto.
Donia ficou olhando para ele e havia uma expressão estranha no
rosto dela. Era como se o amor se misturasse com desconfianças do
irmão, e isso a confundisse, de modo que ela não sabia qual o sentimento
que tinha precedência. Ela se deu uma sacudidela curiosa, que fez o cipó
verde e roxo se enroscar em volta de seu corpo esguio, e saiu correndo do
quarto, com a rapidez nervosa de movimentos que parecia ser uma
característica sua. Em um momento ela voltou, olhando para mim, com
os olhos brilhantes e maléficos.
— Foi muito esperto de sua parte prometer a ela que não faria
perguntas sobre a mala. Mas naturalmente isso não nos impedirá de
revistarmos em alguma outra ocasião, não é?
Creio que ela viu, pela minha cara, que era melhor não esperar uma
resposta. Dessa vez ela desapareceu de todo, e a ouvi subindo a escada.
Quando fiquei sozinha, fui para o sofá onde Laura se havia deitado, e me
estiquei toda nele. Eu me sentia extremamente cansada totalmente
confusa. Havia correntes ameaçadoras naquela casa, e eu estava
começando a esperar poder coligir depressa o material para meu artigo e
ir embora. Minha própria ambivalência para com Laura fazia parte de
minha confusão. Ela sempre existira, mas no passado eu aceitava o fato
de poder admirá-la como artista e detestá-la como mulher.
Agora, porém, as contradições ainda eram piores que antes. Quando
ela era arrogante, me enfurecia — e ela também sabia me humilhar. Ela
me fazia ansiar por qualquer oportunidade de usar as armas que pudesse
encontrar contra ela. Depois, no momento seguinte, ela passava a ter um
aspecto fraco e eu ficava desarmada — embora contra a vontade —,
porque não podia lutar contra um inimigo tão frágil. Havia até momentos
em que eu me pilhava admirando-a como uma mulher de coragem, só
para julgá-la inteiramente tola um minuto depois. Como poderia escrever
sobre uma mulher daquelas? E como fora boba, prometendo não fazer
perguntas sobre a mala. Com tantas contradições, eu precisava de uma
chave para o segredo de seu caráter complexo. Essa chave estava
sepultada num passado que ela partilhara em parte com Miles Fletcher, e
talvez até com a irmã dele, Donia. E ainda com um homem que estava
morto — Cass Alroy. Fiquei pensando se haveria uma foto de Cass Alroy
naquela mala.
Levada por uma curiosidade repentina, levantei-me do sofá e fui
para a penteadeira de Laura. Eu só pretendia procurar as chaves na caixa
de sândalo, mas havia uma cadeira estofada diante da mesinha curva e eu
a puxei e sentei-me, olhando para o meu próprio reflexo escuro no
espelho. Por trás de mim a luz do dia se irradiava das portas do jardim e
das janelas laterais, deixando meu rosto na sombra. Havia lâmpadas
coloridas em volta do espelho, e eu encontrei um interruptor e apertei-o.
A luz brilhava impiedosa no meu rosto. Mostrava-me uma juventude
de algum modo desfigurada. Laura tinha dito que eu tinha um rosto
franco e jovem. Mas a franqueza só parecia exibir emoções nada
atraentes. Eu provavelmente mostrava muito rapidamente a raiva e o
ressentimento. Só quando eu pensava em meu pai é que minha expressão
se abrandava um pouco, enquanto meus olhos se enchiam de lágrimas. Na
verdade, eu fora lá por causa dele. Mas não para algum propósito que ele
aprovasse. Ele era condescendente demais — Victor Hollins. Ele tinha
sido delicado, carinhoso e bondoso, e Laura o ferira cruelmente. Eu não
me podia esquecer disso. Eu nunca a perdoaria. Eu não podia olhar para
ela em seus momentos de fragilidade, esquecendo-me do que ela tinha
sido, do que ela tinha feito.
Com um gesto de rejeição por mim mesma, toquei no interruptor
para apagar as luzes em volta do espelho. A caixa de sândalo estava junto
de minha mão e eu levantei a tampa e espiei o que havia dentro. As
chaves estavam ali. Donia as pusera de volta. Sorri para mim mesma, mas
apenas fechei a caixa com um clique. Minha resolução sobre a mala viria
depois.
Em algum lugar na casa, um telefone tocou. Ouvi passos em cima e
uma voz atendendo. Aí Irene desceu correndo para me chamar.
— Para a senhorita. Há uma extensão no hall de baixo.
Gunnar! pensei. Não podia ser outra pessoa, e fiquei mais animada,
ao ir atender. Depois de algumas horas naquela casa, ele representava a
luz e o ar puro e a honestidade. Esqueci-me de que ele não me aprovava.
Eu me tinha quase esquecido de que a Noruega estava fora daquelas
janelas e que eu não tinha de ficar ali meditando a vida toda.
— Aqui, Leigh Hollins — disse eu, e minha voz refletia a nova
animação que eu sentia.
— Então você contou a ela quem você é — disse ele. — Bom. Você
parece alegre.
Ele pareceu estar satisfeito, e eu não o contradisse.
— Sim, contei a ela. Não lhe importa quem eu seja, contanto que eu
possa escrever a história.
Ele não fez comentários.
— Telefonei para saber se você quer vir almoçar comigo amanhã. É
feriado e não vou ao escritório.
— Eu gostaria muito. — Aceitei sem hesitação. Havia muita coisa
que eu queria contar a ele. Ele podia ajudar-me na minha confusão de
ideias, pois conhecia Laura muito melhor que eu.
— Ótimo — disse ele. — Sugiro irmos de carro parte do caminho
para Flöyen e depois largaremos o carro. Aí, iremos a pé o resto do
caminho até o restaurante que há no cume. Parece que Você gosta de
andar?
— Adoro — disse eu. Eu estava encantada com a ideia de fugir, o de
estar com alguém que não estivesse envolvido no passado, nem
perseguido por velhos terrores.
— Traga Laura com você, se puder — disse ele.
Minha alegria evaporou-se.
— Ah? — disse eu, meio vagamente.
— Se ela não conseguir fazer a escalada, podemos subir no
funicular — disse-me ele. — Este não é um convite oficial, entende?
Cabe a você convencê-la a ir com você.
Eu sabia o que ele queria dizer. Se ele a convidasse oficialmente,
teria de convidar Miles também, e era óbvio que ele não o queria.
— Farei o que puder — disse eu, e dali a pouco desligamos.
Laura estava cansada e não desceu para jantar naquela noite, de
modo que tive de adiar meu encontro com ela. Miles e Donia e eu
comemos na elegante sala de jantar. Havia uma imensa mesa retangular,
com cadeiras de couro de encostos altos em volta dela, e Miles sentou-se
numa das cabeceiras, e o lugar vazio de Laura era na outra. Donia e eu
estávamos defronte uma da outra. Eu trocara saia e suéter por um vestido
de malha bege, mas ela ainda vestia seu estampado de trepadeiras verde e
roxo.
Ali, também, havia madeira escura e muitos quadros pelas paredes.
Lindos pratos azuis e brancos, da China, estavam numa prateleira por
cima de uma das portas, e havia uma vitrina em cunha, feita para caber
no canto, tendo na frente uma cena com entalhes profundos — de cães e
homens, com uma montanha atrás. Um enorme canecão estava sobre o
aparador entalhado, com uma cena de portão de pedágio gravada sobre
sua prata.
Ao jantar, naquela noite, soube de mais detalhes sobre o modo de
viver do pessoal da casa. Em Bergen, quase não havia empregados,
embora Laura tivesse encontrado uma faxineira que ia lá duas vezes por
semana. Irene cozinhava e servia as refeições e cuidava em geral da casa,
pelo que era bem paga. Muitas vezes Donia lavava a louça. A casa
abastada com muitos empregados era coisa do passado.
Irene aprendera alguma coisa da cozinha norueguesa e naquela noite
comemos um prato típico — assado de renas, servido com um molho de
creme azedo, engrossado com um pouco de queijo de cabra derretido e
guarnecido com uvas brancas. Miles comentou que a caça na Noruega
não tinha sabor de caça porque era conservada no leite previamente, para
neutralizar o gosto. Havia as eternas batatas cozidas e uma salada de
pepinos frescos.
Donia tagarelava incessantemente, enquanto comíamos, e às vezes a
sua conversa continha indiretas maliciosas dirigidas a mim ou a Laura.
Senti que Irene a servia com relutância e ficaria contente se ela saísse da
casa. Miles esforçou-se para conversar um pouco, mas ele não era um
homem conversador e havia alguma coisa sombria em sua presença. Eu
gostaria que ele não tivesse aquele bigode escuro, para poder ver o
formato de sua boca e poder assim avaliar suas emoções.
Conversamos sobre Bergen e a Noruega, os costumes e as condições
de vida, com o interesse pelos esportes ao ar livre. Donia estava ansiosa
para aprender a esquiar. Miles não, embora Laura aparentemente ainda
esquiasse um pouco, quando conseguia. Ao contrário do que se dava nos
Estados Unidos, na Noruega o que se praticava mais era o esqui
atravessando os campos. Nada do que se falou tocava no passado, nem na
carreira de Laura. Uma ou duas vezes, quando tentei conduzir a conversa
numa direção que me poderia ajudar em meus propósitos, Miles
rapidamente desviou a conversa para outros assuntos.
Fiquei bem contente quando terminou a refeição. Sem pedir licença
a ninguém, nem demorar, para não me impedirem, eu corri para cima e
bati no painel de madeira escura da porta do quarto de Laura.
A voz dela, ainda não inteiramente refeita, me mandou entrar. Lá
fora a noite ainda estava clara, mas Laura tinha acendido uma bela
lâmpada feita de um alto vaso azul de porcelana real de Copenhague, que
ficava ao lado de sua poltrona. Ela trocara seu vestido grená por um
roupão em feitio de caftan, cor de areia, com bordados marrons e
dourados. Nos pés, tinha chinelos indianos, com pedrarias. Quando
admirei o roupão, ela disse, com satisfação, que Miles o dera de presente.
Ela estava lendo, e a bandeja que Irene lhe levara estava numa
mesinha ao lado, a comida quase não tocada.
— Trago-lhe um convite de Gunnar Thoresen — disse eu. — Ele
gostaria de nos levar, ambas, para almoçar no alto da montanha, amanhã.
Por um instante seus olhos brilharam. Mas depois sacudiu a cabeça.
— Vá com ele e divirta-se. É feriado, e Miles pode ter algum plano.
Não quero estragá-los.
Mais uma vez era uma indicação de seu afeto por Miles, e uma
consideração mais sincera por ele do que ele parecia demonstrar por ela,
apesar de seus cuidados aparentes com sua saúde. Mas fiquei aliviada por
ela preferir não ir e não insisti.
— Vamos poder conversar amanhã de manhã, antes de Gunnar vir?
— perguntei.
— Espero que sim. — Ela não parecia interessada.
— Tenho de tentar fazer aquilo para que vim — lembrei-lhe. — Eu
gostaria de escrever um artigo realmente bom sobre você. Mas, primeiro,
temos de ter muitas conversas. Está com forças para isso?
Ela fez um esforço e me encarou. Era uma mulher que não queria
compaixão, que não pedia abrigo. Contra minha vontade, tive de respeitá-
la.
— Claro que tenho força para isso. Não é frequente eu ter essas
crises como a que tive hoje à tarde. Eu não estava preparada para tornar a
ver aquele vestido. Por um momento, foi demais para mim.
— Então foi o vestido de Sussurros que a perturbou? A Sra. Jaffe
disse a seu marido que tinha sido o castiçal.
Ela parecia ainda mais pálida, mas dessa vez não mostrou fraqueza
alguma.
— Que castiçal? — perguntou ela, demonstrando mais uma vez
aquela arrogância que me provocava.
Virei-me para sair do quarto. Ela estava representando outra vez, e
eu não queria saber daquilo. Eu estava começando a perceber que minha
dificuldade com ela era que eu nunca podia saber o que era real, e o que
era representação. Não sabia se ela mesma sabia distinguir. Haveria uma
verdadeira Laura Fletcher? Ou apenas as muitas máscaras do papel que
ela representava como Laura Worth? Será que ela tinha um ser interior
real?
— Vou dar-lhe boa noite — disse eu. — Estou ansiosa por passar
algum tempo com seu quarto lá embaixo.
Se isso a deixou inquieta, ela nada disse, e eu saí, fechando a porta.
Irene estava no hall, como se estivesse me vigiando, e procurei
tranquilizá-la.
— Ela está muito cansada — disse eu. — Não vou importuná-la
mais esta noite.
A mulher concordou solenemente com a cabeça e foi até a porta de
Laura. Desci as escadas para o hall vazio embaixo. Um raio de luz vinha
da sala e deduzi que Donia e Miles deviam estar lá, passando uma noite
tranquila. Não achei que eles se preocupassem se eu desaparecesse
naquela hora.
O quarto de Laura me esperava. As portas e janelas continuavam
abertas e o cheiro abafado quase imperceptível. Acendi a lâmpada do
abajur de seda e fiquei no centro de sua luz. Eu tinha um encontro
marcado com aquele quarto, que já fora bastante adiado.
6
A princípio, eu não sabia por onde começar. Ao acaso, escolhi a
parte à direita da porta que dava para o hall. Um manequim ficava no
canto, com um vestido de baile de Maggie Thornton de franjas de contas.
Por trás dele, as duas paredes que formavam o canto eram totalmente
cobertas de fotografias enquadradas. Estas tinham sido dispostas com
bastante cuidado, para formarem uma sequência desde o primeiro filme
de Laura até o penúltimo. Reparei que não havia fotos de cenas de
Sussurros.
Levei algum tempo examinando as fotos, observando Laura crescer
em categoria, como artista e estrela. Alguns daqueles filmes eu linha
visto em Nova York, mas nem todos tinham tido reprises. Tiras
cuidadosamente datilografadas tinham sido coladas no canto inferior
direito de cada foto, com o nome do filme e o ano em que fora rodado.
Ali, estavam valiosas informações, algumas das quais eu poderia utilizar.
Depois do canto, uma parte da parede era dedicada a fotos de
famosos astros com quem Laura Worth contracenara. Havia muitas
fisionomias conhecidas, e reconheci Clark Gable, Leslie Howard,
Spencer Tracy, Herbert Marshall, Brian Aherne. Havia um Cary Grant
jovem, um Robert Taylor garoto. Tantos dos astros daquele tempo já
tinham ido-se. Alguns desses retratos eram assinados com linhas efusivas
como “Com muito amor”, “Sempre seu”, “Para a divina Laura”... e assim
por diante. Fiz uma careta para um de meus atores preferidos. “Você
estava mesmo falando sério?”, perguntei-lhe.
Mas naturalmente, nem ele nem os outros significavam algo de
muito profundo. Ou então, sua intenção era apenas temporária, como
parte daquele mundo falso em que eles viviam, em que a realidade não
era mais que um filme aparecendo numa tela prateada.
Mas para Laura, houvera uma realidade mais profunda. Não por ela
ter sido amada. Ser amada pelos homens devia ser uma coisa natural para
ela. Mas ela tivera uma filha. Gostasse ou não disso, essa experiência
tinha sido real. Ela podia me olhar com aquele seu olhar distante, aquela
arrogância insuportável — mas eu era real, e ela ainda tinha de lidar
comigo. Não podia escapulir completamente para o faz-de-conta.
Continuei a me movimentar pelo quarto, sem pressa, apreciando
cada descoberta como se eu revivesse o período que a criara, ainda
envolta naquela curiosa ambivalência que me era característica desde
minha infância. Era possível — quase — deixar de fora os ressentimentos
corrosivos, a inveja pelo que ela fora e eu não era, a mágoa profunda e
dilacerante que remontava aos primeiros dias em que eu soubera a
respeito dela e começara a compreender. Em vez disso, eu podia arder de
prazer como uma inveterada fã de cinema que tem a oportunidade de
penetrar no mundo de um ídolo muito admirado. Não me parecia mais
estranho que essas duas paixões opostas pudessem coexistir, sem que
uma destruísse totalmente a outra. Eu simplesmente aceitava e adiava o
momento da luta entre elas.
Encontrei um par de sapatos azuis que Laura usara em Sands of
Fortune (Areias da Fortuna). Eram de tiras em pulseira e saltos
mexicanos, completamente impróprios para se andar na areia. Eu me
lembrava da cena em que ela os tirara com um pontapé e tropeçara pelo
deserto só de meias, enquanto a câmara se aproximava para focalizar os
sapatos de um azul-vivo, largados na areia escura. No filme, era triste vê-
los ali, abandonados no calor do deserto — como a mulher da história
certamente seria abandonada, se não viesse socorro.
Claro que o socorro chegara. Sempre chegava, nos filmes daquela
época. Talvez fosse isso que os tornasse agradáveis. Era bom sentir que
as coisas se iam resolver direitinho e ter um desfecho feliz — quando na
vida real nada acontecia assim. Na vida real, a mulher que usara aqueles
sapatos estava sozinha, fraca e apavorada, num quarto lá em cima.
O rumo de meus pensamentos me assustou. Sozinha? Fraca?
Assustada? Por que eu pensava nela assim? Ela podia ser tudo, menos
solitária. Ela rapidamente convocava sua arrogância para vencer qualquer
fraqueza física e era a pessoa menos assustada que eu já conhecera — na
maior parte do tempo. E no entanto, de algum modo, essas coisas me
haviam impressionado e me deixavam curiosa. Tinha havido momentos
em que ela tinha tido medo.
Peguei um dos sapatos azuis e enfiei o dedo na parte da frente.
Incrível, ainda havia grãos de areia agarrados à parte interna. Ela com
certeza nunca mais os calçara. E agora eles levavam um deserto do Oeste
americano, com seu calor, para dentro daquele quarto norueguês. Larguei
o sapato com cuidado, para não deixar cair os grãos da meia. Eles faziam
parte da recordação.
Continuei a minha volta pelo quarto. Eu agora me estava
aproximando das portas que davam para fora e, numa parede escura, onde
não batia luz, havia outro retrato. Era muito maior que qualquer dos
outros, e, quando me aproximei dele, vi que estava voltado para a parede.
Minha curiosidade me levou logo a virá-lo. A moldura pesava em minhas
mãos, quando o levantei de seu prego e o levei para a luz clara da noite
que vinha pela porta.
Alguém tinha pintado um retrato admirável de Laura Worth, no auge
de seu sucesso. Era um retrato dela sentada. Ela usava um vestido
vermelho, que por um momento eu pensei ser o vestido de Sussurros.
Depois vi que não era. O vermelho sempre fora sua cor, mas o modelo
daquele era diferente, com um decote em V que mostrava seu lindo colo,
o jeito conhecido de seu queixo. O artista captara seu olhar luminoso, e
seus cabelos escuros e espessos caíam-lhe pelo rosto, dando-lhe um ar de
cigana. Seus lábios vermelhos estavam ligeiramente abertos, como se ela
estivesse ofegante. Suas mãos estavam abertas no colo, de palmas para
cima, diferentes das mãos, em geral cuidadosamente em pose, para o
retrato comum. Era um retrato um tanto exaltado. Ela parecia uma mulher
que desperta e está ansiosa pelo amor — ansiosa por dar seu amor. Ela,
que nunca fora capaz de dá-lo, de todo!
Levei o retrato de volta a seu lugar, pensando por que teria sido
virado para a parede. Certamente devia ser um retrato de que Laura
Worth se orgulharia, e prezaria. Então, teria sido ela quem o virara de
costas? Este era um enigma fácil de resolver. No dia seguinte eu lhe
perguntaria a respeito. Enquanto isso, deixaria aquele lindo rosto voltado
para o quarto, para que eu, pelo menos, pudesse gozar aquela visão mais
jovem de Laura como atriz.
No entanto, eu perdera o interesse em explorar o resto do quarto. O
retrato virado para a parede me deixara inquieta. Miles Fletcher dissera
que todas as explorações deviam conduzir ao desastre. Talvez ali
ninguém ousasse explorar o passado. Existira um assassino, que nunca
fora aprisionado, e ele pertencia a uma época sobre a qual Laura não
queria nem falar. Uma época que ela mantinha trancada numa mala com
aquele vestido que ela usara em Sussurros. Seria eu a pessoa que iria
explorar — que poderia provocar o desastre, ou libertá-la de alguma
ameaça antiga que ainda a perseguia?
Comecei a me ocupar com coisa de todo dia porque precisava de um
sentido de realidade para me equilibrar. Irene tinha aberto o sofá-cama e
seu edredon norueguês me aguardava. Eu rapidamente tirei da mala mais
alguns objetos e me meti em meu roupão de pelúcia. As janelas e portas
abertas tinham deixado o quarto frio, mas eu não queria fechá-las. Eu ia
tomar um banho e me meter na cama, por mais clara que fosse a luz. O
cansaço me estava dominando outra vez e eu não queria pensar em Laura
Worth, nem em nada que tivesse a ver com o passado. Nem mesmo meu
mísero passado. A única coisa que me animava era a ideia de me
encontrar no dia seguinte com o amigo de meu pai, Gunnar Thoresen. Eu
ia adormecer depressa e deixar que chegasse o amanhã.
Uma luz fraca estava acesa no hall do lado de fora de meu quarto.
Um rádio estava tocando e o som de música vinha do living — uma
irradiação da BBC de Londres, conforme verifiquei, pela voz do locutor.
O banheirinho do andar térreo dava para uma alcova embaixo da
escada. Quando me dirigi para lá, vi que também ali havia muitos
retratos, pendurados juntos. Eram fotografias pequenas, em molduras
pretas ovais, e eram obviamente retratos de família. Parei para olhar para
eles com interesse. Se conseguisse identificá-los, eram sem dúvida a
família de minha avó. Tios e tias o bisavós. Crianças de todas as idades
— talvez algumas fossem de primos. Estranhamente, vi que estava
imaginando qual seria minha avó. Queria saber como ela era. Tinha de
pedir a Laura para dizer-me. Não queria voltar para casa sem tomar
conhecimento de alguns de meus antepassados noruegueses.
Entrei no banheiro e fechei a porta. A banheira era deliciosamente
antiga — enorme e tão funda que a gente podia boiar nela. Abri as
torneiras e salpiquei meus sais de banho prediletos.
Depois de me ter regalado bastante numa aura de gerânio-rosa, e de
me ter esquentado até os dedinhos do pé, voltei para meu quarto. O
quarto de Laura. Eu tinha deixado a luz central acesa, mas alguém tinha
aberto a porta e, economicamente, a apagara. Eu tornei a acendê-la e vi
que as portas e janelas que davam para o jardim tinham sido fechadas. O
cheiro de cânfora e de poeira já estavam voltando.
Fui depressa abrir as janelas e deixei as portas entreabertas. Eu não
achava que alguma coisa pudesse me molestar, do lado de fora, durante a
noite. Estava na Noruega segura. Na Bergen sossegada.
Na parede junto das portas, estava o retrato de Laura. Alguém já o
virara de volta para a parede outra vez. Deixei que ficasse assim. Seria
menos provável que perturbasse meus sonhos. Tudo isso devia ser coisa
de Irene, naturalmente. No dia seguinte talvez eu perguntasse a ela sobre
o retrato.
O edredon me acolheu. Aquilo não era nenhum acolchoadozinho
inglês. Estava metido dentro de uma grande coberta de pano que era
amarrada com fitas azuis dos lados. Tinha o tamanho exato da cama e não
era para ser metido por baixo do colchão, e sim da pessoa que ali
dormisse. Seus lados estavam dobrados em cima da cama e aprendi a me
meter cuidadosamente dentro dessa espécie de saco de dormir e deixar
que ele me envolvesse em seu calor delicioso. Fechei os olhos para tapar
a noite clara, e, a despeito de tudo, adormeci profundamente.
Quando acordei de repente, o quarto estava escuro e meu coração
batia loucamente. Não sei o que tinha sonhado, mas alguma coisa me
perturbara. Acordada, no escuro, eu sentia o quarto fazendo pressão em
volta de mim. Os vultos sombrios dos manequins pareciam se estar
movendo — invadindo a minha intimidade. Os olhos das fotos me
olhavam das paredes e eu tinha uma forte impressão do vestido
vermelho-veneziano escondido de mim pela tampa fechada da mala,
brilhando em seu mundo fechado, de trevas.
A noite parecia muito quieta, embora houvesse sons de tráfego
distantes. Nenhuma tábua rangia dentro da casa. Os outros moradores
sem dúvida deviam estar dormindo lá em cima, e eu me sentia só,
naquele andar térreo, sem ninguém por perto, numa casa estranha.
O murmúrio veio tão baixinho que a princípio pensei que fosse só
minha imaginação. E aí vi que era de verdade.
“Escute...” dizia. E, enquanto eu escutava com todo o meu ser,
tornou a vir, de mais longe. "Escute...”
O som era inteiramente fantástico e totalmente devastador, porque a
minha mente, minhas emoções, estavam prontas para isso, naquele
quarto. Eu não sabia de que direção tinha vindo. Um murmúrio pode
parecer desencorpado, sem direção, nem masculino nem feminino.
Depois de ficar bem quieta por um ou dois minutos, sem o som se repetir,
saltei da cama, no ar frio, e meti os pés nos chinelos. Procurei o roupão e
o vesti, ficando no centro do quarto, esperando, escutando. Eu estava
meio receosa de que o murmurador estivesse no quarto comigo, alerta e
vigilante no escuro. Se eu ousasse acender a luz, alguma verdade terrível
me poderia ser revelada.
Não ousei, e nada mais ouvi. Não havia ninguém no quarto. Teria a
voz vindo das janelas abertas? Das portas que davam para o jardim? Fui
para a porta interna que dava para o hall e vi que estava entreaberta,
embora eu a tivesse fechado quando me deitara. Quando eu a abri e
escutei atentamente, a casa estava tão quieta como se também ela tivesse
prendido a respiração. Tornei a fechar bem a porta e tive vontade de
trancá-la.
Roçando a mala de Laura com o joelho, atravessei o quarto no
escuro e passei pelas portas abertas para o jardim. Ao alto, o céu era o
céu da noite, mas não totalmente escuro, e mal se viam as estrelas. Como
elas deviam brilhar no céu negro do inverno! Debaixo de meus chinelos,
a grama morta estava áspera, quando dei a volta à casa e passei para o
largo jardim da frente. Não havia ninguém ali. Nenhum vulto sombrio
fugiu de minha presença.
Não devia ser muito tarde, pois as luzes de Bergen ainda estavam
acesas, num tapete de joias cintilantes a meus pés. Em volta de Lille-
Lingegardsvann, o laguinho do parque, os caminhos estavam iluminados.
As ruas formavam alamedas sinuosas de luzes entrelaçadas como escuro,
e as águas do lago maior eram de um azul-profundo sob o céu, com as
pontes como fileiras de joias de ponta a ponta. Ao redor, as montanhas
escuras circundavam a cidade como guardas armados, e uma luz brilhava
da torre de comunicações no topo de Ulrien. Os picos nevados jaziam
dormindo, aguardando a primavera. Lá fora, os ruídos do tráfego eram
mais altos, mas nenhuma voz murmurava fantasticamente, mandando que
eu “escutasse”.
Teria o som sido parte de meu sonho? Seria possível que as
fantasias de Laura tivessem atormentado meus sonhos de tal maneira que
parecessem momentaneamente reais? Eu não sabia.
Mais embaixo, na colina de Kalfaret, havia uma festa numa casa
particular, e compassos de música chegavam até mim. Uma música
estranha para a Noruega, pensei, pois era como o som de flautas sendo
tocadas como deviam, ao ar livre — como se quem tocasse estivesse
numa sacada. Fiquei escutando mais um pouco, mas estava frio lá fora e
puxei a gola de meu roupão até as orelhas e voltei para o quarto.
No momento em que passei pelas portas, senti a mudança. Eu sabia
que havia alguém ali, no quarto, a minha espera. A porta que dava para o
hall estava aberta de novo, e um raio de luz passava por ali, tocando um
vulto sombrio que estava diante do retrato de Laura. Havia alguma coisa
fantasmagórica na quietude daquela figura, nas roupas brancas e longas
que a envolviam. O interruptor da luz ficava do outro lado do quarto e eu
fiquei esperando, gelada, sem ousar falar nem me mexer, mais assustada
do que jamais estivera em minha vida. Indo lá fora, eu tinha entregue o
quarto àquela presença.
Aí alguém entrou do hall, e tocou no interruptor perto da porta,
acendendo o lustre. A luz repentina me cegou por um instante, e então eu
vi que era Laura que estava ali diante de seu retrato, com uma camisola
branca comprida, com uma pala rendada e fitas no pescoço. O quadro
estava virado para ela, e ela estava olhando para ele. Numa das mãos ela
tinha uma tesoura, suas lâminas pontudas reluzindo à luz do lustre. Por
algum motivo, fiquei tão apavorada ao ver aquelas lâminas brilhando nas
mãos de Laura, que mal olhei para o homem que estava à porta. A voz
que murmurava podia ter sido de Laura. Ela podia ter ido ali para me
assustar, para me fazer algum mal. Se isso fosse verdade, então eu tinha
de duvidar de sua própria sanidade. Eu estava um pouco enjoada, além de
assustada.
Do umbral, Miles me viu e pôs um dedo sobre os lábios. Depois
entrou no quarto, com seu roupão de seda e pijama. Foi para junto da
mulher e delicadamente tirou-lhe a tesoura da mão e colocou-a sobre a
mesa.
Laura não pareceu reconhecê-lo. Estava com uma expressão absorta,
os olhos abertos e fixos, e percebi, com mais horror ainda, que ela estava
dormindo. Miles olhou além dela, para o retrato, e depois, sem nada
dizer, pegou o braço de Laura, dirigindo-a com uma ligeira pressão, de
modo que ela se virou para caminhar docilmente, atravessando o quarto e
indo para o hall, subindo a escada com ele. Eu fui para o hall, atrás deles,
e fiquei olhando enquanto subiam. Na volta da escada Miles olhou para
mim, e em seu rosto havia uma espécie de advertência sinistra.
Vi que eu estava tremendo, quando voltei para o quarto. E dessa
vez, quando fechei a porta do hall, coloquei uma cadeira inclinada
debaixo da maçaneta. Abaixei as janelas até ficarem só um pouquinho
abertas, e fechei as portas do jardim. Depois fui me postar diante do
retrato, onde Laura estivera — e vi então a terrível destruição que havia
sido feita.
Impressionantemente, desfigurando o retrato de um lado da moldura
a outro, corriam as linhas entrecruzadas de um jogo terrível. A mão de
um vândalo tinha marcado o retrato em vários sentidos, como numa
brincadeira do jogo da velha. Zeros e cruzes tinham sido cortados em
quase todos os lugares para o jogo — um jogo quase terminado. Duas
cruzes marcavam a diagonal, e faltavam apenas uma a ser colocada no
lugar para o X ganhar.
Estranhamente, o jogo maléfico e destruidor tinha sido cortado na
tela logo abaixo do rosto de Laura. Nenhum corte rasgado desfigurava
sua beleza. Os cortes passavam pelo seu busto, seu colo, suas mãos
abertas. Procurei a tesoura onde Miles a colocara e peguei-a com dedos
trêmulos. Fragmentos de tela e pigmento estavam agarrados as pontas
afiadas, como prova do uso para que tinham servido. Larguei a tesoura
como se me queimasse, e tornei a olhar para o retrato.
De quem seria a vez agora? Fiquei cismando, numa fascinação
misteriosa. Será que O teria oportunidade de impedir o outro de ganhar?
Ou seria X quem daria o coup de grâce da próxima vez? E quem seria O?
Quem seria X?
Fiquei pensando se Miles teria conseguido levar Laura para cima,
sem despertá-la. Quando ela acordasse, saberia o que tinha feito? Talvez
fosse melhor que ela não o soubesse. Talvez aquele olhar estranho de
advertência que Miles me lançara significasse justamente isso — que eu
nada lhe devia dizer sobre o que tinha visto. Virei o retrato
cautelosamente de novo para a parede, conforme Irene o pendurara. Eu
não queria pegar em uma coisa que se tornara maléfica e ameaçadora
quase que diante de meus olhos.
Minha cama ainda estava quente e eu me deitei, agradecida, e fiquei
ali tremendo. Era bom eu ver Gunnar Thoresen no dia seguinte. Ele já
representava sanidade e o bom senso a meus olhos. Eu lhe contaria tudo o
que acontecera e ele me tranquilizaria. Ele me daria seu sorriso tranquilo,
bonito — e eu ficaria tranquila. Para dizer a verdade, quando chegou o
momento, ele não fez nada disso. Mas a ideia de que ele o faria ajudou-
me a dormir.
Quando acordei, de manhã, havia muito que o dia clareara.
Provavelmente desde as três da madrugada. Mas pelo menos eu tinha
dormido e acordei descansada e quase convencida de que não tinha
ouvido a voz murmurando de noite. Mas o retrato ali estava, e a tesoura,
sobre uma mesa próxima. Eu estava contente de o quadro estar virado
para a parede, pois não tinha vontade de tornar a olhar para aquele
terrível jogo da velha.
O café da manhã era igual ao café de minha casa. Laura ensinara a
Irene nossos costumes americanos. Havia bacon e ovos e torradas, com
um café quente, delicioso. Um café que me agradava mais que o tipo
europeu, amargo, que serviam no hotel. Comi sozinha porque tinha me
levantado mais tarde, e fiquei satisfeita de não ter companhia, além de
Irene Varos.
Ela nada disse a respeito de Laura ser sonâmbula, nem sobre os
estragos causados ao retrato, e eu não sabia se ela estava a par dos dois
fatos. Por algum motivo, naquele dia ela parecia estar satisfeita comigo.
Sentou-se diante de mim na mesa, para tomar mais uma xícara de café, e
disse que Laura já estava de pé e sentindo-se refeita, e que queria muito
falar comigo. Isso significava que Miles nada devia ter contado à mulher
sobre o que acontecera na véspera. Mas ela no fim teria de saber — a não
ser que aquele retrato ficasse sempre virado para a parede, e que ela
nunca olhasse para ele.
Afinal eu tinha a oportunidade de conversar com Irene, e talvez
sondá-la um pouco. Com cuidado, contornei o perigo, olhando para ela
pela primeira vez como uma mulher e não como um dragão em guarda.
Se eu soubesse mais a respeito de Irene, ela poderia ajudar-me a
compreender Laura melhor.
Seu rosto magro, meio solene, com sobrancelhas negras e retas, não
era feio. Os cabelos escuros eram puxados para trás com demasiada
severidade. Se fosse mais solto, teria emoldurado seu rosto de modo mais
gracioso. Ela não era uma mulher bonita, mas em sua fisionomia
notavam-se força e caráter. Havia muitos anos que ela era íntima de
Laura, e eu sabia que ela poderia me contar coisas, como observadora,
que Laura pudesse até desconhecer. Na véspera, ela chegara a insinuar
que poderia ajudar-me.
— Tem família, Srta. Varos? — perguntei, puxando conversa. Minha
entrevista começara.
Ela sacudiu a cabeça.
— Meus pais morreram, e meu irmão mais velho também. Eu não
tinha ninguém, quando conheci a Srta. Worth na Iugoslávia, e ela me
convidou para trabalhar com ela. Trabalhei para ela lá um pouco, e nós
nos conhecemos melhor.
— Teve dificuldade em deixar seu país?
— A Srta. Worth tinha conhecidos em altos cargos, naquela ocasião.
Não foi difícil arrumar tudo.
Eu a pressionei um pouco mais ousadamente, porque era preciso
encontrar os pontos fracos. Era isso que revelava mais a respeito de um
homem ou uma mulher, e Irene Varos era muito ligada a Laura.
— Trabalhar para Laura não prejudicou sua vida? — perguntei.
O sorriso dela era duro, como se ela não o usasse muito. Não havia
muito divertimento nele.
— O Sr. Thoresen já me avisou que a senhorita está aqui, e que não
nos devemos incomodar. Claro que tudo o que cerca a Srta. Worth deve
ser de interesse e valor para a senhorita. Portanto, suponho que eu seja de
interesse e valor.
— Fiquei satisfeita de ver que compreende — disse eu.
A fisionomia dela ficou solene de novo, e um pouco triste.
— Houve um homem com quem eu me poderia ter casado. Ele... ele
morreu. Se isso tivesse sido diferente, eu poderia nunca ter deixado
minha terra.
— Sinto muito — disse eu.
Ela pegou a xícara de café com dedos magros.
— Foi há muito tempo. Nem consigo lembrar-me da cara dele. É
possível que eu tivesse tido uma vida diferente. Mas havia
circunstâncias... Talvez a Srta. Worth tenha sido meu trabalho e meu
filho. — Mais uma vez ela deu aquele sorrisinho duro. Irene tinha seus
30 e poucos anos, Laura seus 50 e poucos, mas eu sabia o que ela queria
dizer.
— Posso fazer-lhe outras perguntas? Menos pessoais?
— Claro. Procurarei responder.
— Estou fascinada com a coleção de objetos de Laura Worth, de
seus grandes dias no cinema. Todos parecem ter sido arrumados com
cuidado e carinho. Quando foi que ela teve ânimo para isso? Ela parece
ter afastado sua carreira de sua vida há muitos anos.
— Foi assim que chegamos a Bergen — disse Irene, e seu rosto
ficou mais suave, mais jovem. — Era a primeira vez que ela tinha um
lugar para sua coleção, e eu a ajudei a arrumar o quarto. Naquela época
ela ainda pensava em voltar ao cinema, e todas aquelas coisas
significavam muito para ela. E muito mais ainda depois que ela se casou
e se divorciou. Ela queria que fossem cuidadosamente conservadas e
etiquetadas, para o quarto ser uma vitrina onde ela pudesse levar os
amigos. Eu aprendia, enquanto a ajudava. Ela me contou muita coisa de
sua vida em Hollywood, quando estava fazendo os filmes.
— Já viu algum filme dela?
— Claro. Ela possui cópias de vários filmes. Assim que viemos para
cá, ela às vezes os exibia para alguns amigos.
— Ela tem o filme Sussurros?
— Tem, mas esse ela não gosta de exibir. As recordações são muito
dolorosas.
— Ela já lhe falou dessa época? A respeito da tragédia?
— Sim, ela me falou. — As palavras, o tom, de repente se tornaram-
se bruscos, e eu vi que Irene não me falaria sobre a noite em que morrera
Cass Alroy. Passei a um problema mais imediato, esperando pegá-la
desprevenida, para ela me falar francamente.
— Sabia que Laura andou como sonâmbula, ontem à noite?
Ela não pareceu ficar especialmente espantada.
— Ontem à noite? Não, não sabia. Ela às vezes sai da cama de
noite. Eu procuro vigiá-la e acompanhá-la. Ontem à noite acho que dormi
profundamente. O que foi que ela fez?
— Ela entrou no meu quarto. Eu tinha saído para o jardim um pouco
para... para ver como era Bergen de noite. Quando entrei, lá estava ela de
pé diante do retrato que você tinha virado para a parede. Tinha uma
tesoura na mão.
— Tesoura?
— É. O Dr. Fletcher deve ter sentido falta dela, pois ele desceu e
encontrou-a. Ele lhe tirou a tesoura e levou-a para cima.
Irene sacudiu a cabeça, com tristeza.
— Ela não devia ficar sozinha de noite. Um dia, eu a encontrei lá
fora às duas horas da madrugada. Ela tinha subido o muro de sustentação
que dá para a rua. Se eu não a tivesse acudido a tempo, ela podia ter
caído e se machucado gravemente.
Isso completava o quadro de uma mulher neurótica e seriamente
perturbada. Senti uma ansiedade crescente por ela. Mas o que mais me
interessava era o que tinha acontecido na véspera.
— Antes de o Dr. Fletcher encontrá-la — continuei —, ela
desfigurou seu próprio retrato. Com aquela tesoura que tinha nas mãos.
Irene me fitou por um momento e depois levantou-se da mesa. Eu a
acompanhei ao quarto e fiquei olhando enquanto ela tirava o quadro do
prego e o virava de frente para nós. As marcas rasgadas do jogo eram
ainda mais claras de dia. Irene estendeu a mão e traçou as linhas, tocando
os X e os O com a ponta do dedo.
— É um jogo — disse ela, cismando.
— Um jogo inacabado. O que pensa que significa?
— Como pode significar alguma coisa, se é algo que ela fez
dormindo?
— Talvez seja aí que apareçam os significados mais profundos disse
eu. — E você pode ver que ela não mutilou o rosto do retrato. Todos os
cortes foram feitos um pouco abaixo. Não há um significado nisso?
Irene olhou-me com intensidade.
— Quando foi que você viu o Dr. Fletcher?
— Quando ele entrou no quarto, vindo do hall. Ele deve ter dado
por falta dela e descido pouco depois de ela ter saído da cama. Acha que
ele terá contado a ela o que aconteceu? Ela lhe disse alguma coisa hoje?
— Nada. Absolutamente nada.
— Então ele não deve ter-lhes contado.
— Não... ainda não. — Com um gesto súbito e agitado, Irene pegou
o quadro e tornou a virá-lo para a parede. — Ela não deve entrar aqui e
levar um choque com isso.
— Mas ela terá de saber — disse eu. — Não seria melhor contarem
a ela antes que ela o descubra sozinha, por acaso?
— Talvez o Dr. Fletcher esteja esperando um momento oportuno. —
O tom de Irene era seco e ligeiramente amargo.
— O que quer dizer?
Ela se virou do retrato e voltou para a sala de jantar, eu atrás dela.
Nós nos sentamos à mesa e ela me serviu uma xícara de café quente.
Minhas perguntas pairavam no ar, entre nós.
— Talvez ele quisesse fazer mal a ela — disse ela, por fim.
— Mal a ela? Quer dizer que ele poderia contar isso a ela de
maneira a feri-la?
— Isso não me espantaria — disse Irene. — Ela tem afeição por ele.
Ele pode feri-la, quando quer.
— Então por que você não lhe conta, primeiro?
— E fazer com que o Dr. Fletcher me despeça por tê-la perturbado?
Ele bem que gostaria de fazer isso. Gostaria que ela ficasse desprotegida.
Talvez ela até sinta isso. Esse é um dos motivos por que quer você fique
aqui.
— Então talvez eu mesma lhe diga.
— Nesse caso, tem de fazê-lo com muito jeito.
Sacudi a cabeça, já rejeitando a ideia.
— Não. Não quero contar, não.
— E no entanto, alguém lhe contará — disse Irene, tranquilamente.
— Mas eu não posso fazê-lo.
Eu acabei o café e afastei minha cadeira da mesa.
— O Dr. Fletcher está em casa? Talvez eu possa conversar com ele,
descobrir o que pretende fazer.
— Ele teve um compromisso, já saiu. Ela está sozinha lá em cima, a
sua espera.
— O que é que ele faz em Bergen, parece que sempre tem
compromissos? Especialmente hoje sendo feriado. Pensei que ele
estivesse aposentado.
— Acho que ele está providenciando para arranjar uma nova clínica.
Sempre há falta de médicos. A Srta. Worth me disse que ele está
procurando um consultório adequado. Ela quer continuar a morar em
Bergen, mas ele não gosta de ficar inteiramente à toa. Há clientes que ele
poderia atender, mesmo num feriado.
— Vou falar com ela agora — disse eu. — Obrigada por me falar
dessas coisas, Irene. Você é muito boa para Laura.
Ela sorriu, pela primeira vez, e começou a tirar a mesa, calmamente.
Eu subi para o quarto de Laura. O “entre” dela foi dito numa voz animada
e forte. Mesmo ao pronunciar essa palavra, ela parecia a Laura Worth que
eu conhecia da tela, e tive uma sensação momentânea de irrealidade, ao
entrar no quarto. Como é que eu podia estar ali, falando com aquela
mulher lendária? E de que modo tudo o mais que eu estava sabendo se
coadunava com aquela lenda?
Naquela manhã, ela deixara a espreguiçadeira e se encontrava de pé
junto da porta da sacada. Estava novamente vestida com uma de suas
roupas fabulosas de outros tempos. Essa era de gaze turquesa-pálido, que
esvoaçava quando ela se movia — cheia de graça, enfeitando-a. Em
qualquer outra mulher, essa mania de se vestir numa moda antiga
pareceria ridícula — mas não em Laura Worth. Ela sabia o que lhe ia
bem, e tinha a confiança em si para criar sua própria moda. Como se o
mundo ainda fosse capaz de acompanhá-la. Era difícil reconciliar essa
mulher cheia de vida e confiança com a sonâmbula de olhos vidrados que
eu vira na véspera.
Ela se virou, o balcão claro por trás dela, seu rosto na sombra, de
modo que por um momento dava a ilusão de juventude.
— Bom dia, Leigh Hollins! Dormi bem, uma vez na vida. Nada me
perturbou, e já tomei um lauto café.
Eu queria perguntar “nada de sonambulismo?”, mas calei-me.
Naquele dia, eu estava mais do lado dela do que no dia anterior, e não
tinha vontade de feri-la, não importa o que tivesse ocorrido de noite.
Naquele dia, ela seria Laura Worth e eu seria a escritora, e nossa relação
mãe-filha não entraria no jogo. Mentalmente, bati uma porta sobre uma
voz de protesto. “Mais tarde” disse eu, “mais tarde”.
Ela deslizou em minha direção, entrando no quarto, indicou uma
cadeira para eu me sentar e sentou-se em outra. O arranjo era calculado.
Minha cadeira ficava de frente para a luz clara que vinha da grande janela
e da sacada, enquanto que a dela ficava na sombra. Eu não me importava
de ser manipulada. Assim conseguiria mais coisas dela. Era a artista que
eu fora entrevistar.
Mas ela não me deu oportunidade de começar.
— Sei o que lhe vou contar — informou-me ela, sentada ereta na
cadeira de brocado, de pernas cruzadas, de tal forma que a gaze turquesa
fazia uma linda linha de coxa e perna. Eu estava sentada com os pés
virados para dentro, o caderninho sobre os joelhos e o lápis agarrado
sobre o caderno, como uma criança. Eu nunca me sentira tão desajeitada
nas outras entrevistas que fizera, mas naquele momento senti que
endireitava os dedos e ficava com as costas mais retas.
Laura não pareceu notar. Creio que ela não reparava muito em mim
como pessoa — estava absorta em sua própria representação.
— Quer passar-me o peso de papel, por favor — disse ela, fazendo
um movimento gracioso, sem esperar que eu começasse as perguntas, e
assumindo o comando sem pedir licença.
O peso de papel não era coisa sobre que eu quisesse falar, mas não
tive escolha. Peguei a esfera de vidro da mesinha e levei-a para ela. Ela o
levantou para a luz, para as florezinhas rebrilharem de cores.
— Quero contar-lhe sobre o dia em que dei isso a Victor Hollins —
disse ela.
Larguei o lápis sobre a página que tinha tão pouca coisa escrita, da
véspera, e preparei-me intimamente. Fosse o que fosse que eu escrevesse
sobre Laura Worth, não seria nada daquilo. Eu nem queria ouvir, e meu
coração começou suas batidas descompassadas e rebeldes. Com poucas
palavras ela destruía minha capacidade de entrevistá-la.
— Nós tínhamos acabado de fazer Maggie Thornton — disse ela. —
Sabíamos que era bom. Victor me garantiu que eu teria um prêmio pelo
meu desempenho, e eu lhe disse que era por causa do que ele escrevera.
Estávamos muito apaixonados.
— Talvez... — disse eu. Eu tinha de fazê-la parar. Não queria saber
de nada daquilo.
Ela nem me ligou. Estava representando para mim, mas se esquecia
de mim, a não ser como plateia.
— Ele era muito bonito, naqueles tempos. Lembrava-me um pouco
Leslie Howard. Tinha a mesma delicadeza, a bondade que Leslie
retratava em seus papéis. Mas Victor tinha mais virilidade e as vezes ele
se esquecia de ser bondoso e falava com a mesma mordacidade que sabia
usar quando escrevia.
Eu fiz um som de resistência, de protesto. Eu só queria ver Victor
através de meus próprios olhos. Mas ela continuou.
— Quando o filme terminou e tivemos certeza de que não haveria
mais modificações, ele me disse que íamos partir juntos. Eu me entreguei
nas mãos dele. Nem perguntei para onde. E viemos para a Escandinávia,
porque ele sabia que minhas raízes eram daqui. Em Copenhague, nós nos
sentamos nos Jardins Tivoli, olhando o mundo passar. Paramos em
Stroget. Subimos na Torre Redonda, onde Catarina, a Grande, um dia
levou sua carruagem puxada por cavalos pela rampa larga até em cima.
Vimos Copenhague da torre de noite, as ruas iluminadas se irradiando de
onde estávamos.
— No dia seguinte — continuou — viemos para Bergen. Eu a vi
pela primeira vez, depois de adulta, com Victor Hollins. Subimos o
Ulriken e caminhamos pela neve. Tomamos um barco para os recifes.
Visitamos a stavkirke em Fantoft e Victor se apaixonou por aquele lugar.
Aquilo mexia com sua imaginação de escritor. Ele disse que ali havia
uma impressão imensa do bem em luta contra o mal. Disse que era disso
que tratava toda a literatura de ficção, essa batalha eterna entre o bem e o
mal. Nos livros dele, ele queria que o bem vencesse. Talvez seja por isso
que hoje sejam considerados antiquados.
Também eu sentira aquela guerra entre o bem e o mal em Fantoft, e
escutava Laura maravilhada. Mais do que eu pensava, eu era bem filha de
meu pai.
A voz abafada, que construía quadros que eu não queria ver em
minha mente, calou-se por um momento. Talvez ela estivesse pensando
na véspera, em Fantoft, de ter-me encontrado lá. Seria por isso que ela
gostava de passear naquele lugar — porque um dia ela passeara ali, feliz,
com meu pai?
— Tomamos o trem e atravessamos as montanhas para ir a Oslo. —
Ela continuou a história. — Olhamos das janelas do trem para os fiordes
profundos e por sobre os vales. Passamos da primavera para o inverno, lá
em cima onde as ruas de cidadezinhas junto do céu se estendem entre os
altos muros de neve compacta. Era tudo lindo porque estávamos juntos,
partilhando daquilo. Em Oslo, passeamos entre as estátuas de Vigeland,
vendo a vida toda representada naquelas obras monumentais. Depois de
Oslo, tomamos o navio para Estocolmo.
O peso de papel estava no colo dela e ela o pegou, virando-o nas
mãos, como se fosse uma bola de cristal em que ela visse o passado.
Prosseguiu:
— Estocolmo foi o fim de nossa viagem juntos. O fim de nossos
tempos juntos. Nós nos hospedamos num daqueles grandiosos hotéis
velhos do século XIX, perto de onde as águas do lago Malaren se
encontram com as águas do Báltico, debaixo da ponte. Era de tardinha
quando entramos no Gamla Sta’n, a velha cidade. Quando começou a
chover, nós não ligamos. Caminhamos por aquelas ruas estreitas de
pedras, de braços dados, com as velhas torres de cobre por cima de nós, e
eu queria que tudo fosse sempre assim. A torre do relógio pairava por
cima de nós, e por toda parte havia lojinhas com os balcões cheios de
tesouros antigos. Puxei Victor para dentro de uma delas porque queria
comprar uma coisa para ele que o fizesse lembrar-se daquele dia para
sempre. O peso de papel millefiori estava esperando por mim. Pedi à
moça que o embrulhasse, enquanto Victor estava em outro lugar da loja.
E o levei dentro da bolsa, quando voltamos para as ruas chuvosas.
Fez uma pequena pausa e continuou:
— Encontramos um restaurante inesperadamente elegante, bem
junto da calçada estreita e, quando a chuva ficou forte demais, nós nos
abrigamos nele. Não me lembro do que comemos naquela noite, mas
havia velas nas mesas. Como era cedo, ainda não havia ninguém ali.
Depois que a garçonete levou nosso pedido, eu lhe dei o peso de papel, e
ficamos de mãos dadas por cima da mesa. Depois de voltarmos para casa,
disse ele, nós nos casaríamos. Devia ser sempre assim para nós. Eu era a
única mulher que ele já tinha realmente amado. Ele me disse isso e, como
ele era Victor, acreditei nele. Naturalmente, eu sabia que não podia ser
sempre assim, mas sorri para ele e nada disse. Ele me murmurou que via
a luz das velas em meus olhos.
— Ainda chovia quando voltamos para o hotel — continuou —, mas
eu estava muito quente e feliz por dentro. Atravessamos o pátio vazio do
palácio e a ponte em que as águas negras se lançavam furiosas, como se o
lago e o mar não pudessem suportar uma fusão. Quando voltamos para
nosso quarto, no alto, a noite estava cinzenta, mas havia no céu uma
nesga de açafrão, para lá do prédio da ópera, e uma grande nuvem negra
o cortava. O céu a Leste continuava pálido e, de algum modo, havia uma
sensação de melancolia, talvez uma recordação recente demais do
inverno, embora tivéssemos visto as forsítias em flor. Ainda me lembro
do som tristonho das gaivotas. Quando as ouço em Bergen, lembro-me
daquilo. Mas em nosso quarto estava quente. Nosso amor era quente.
Eu estava chorando. Eu a detestei por me fazer chorar. Era esquisito
pegar o lenço da bolsa, mas eu tinha de enxugar as lágrimas. Eu mal
podia ver o rosto dela, na sombra, mas não havia lágrimas em sua voz —
só aquele tom rouco que só por si demonstrava a emoção.
— Tínhamos de voltar para casa no dia seguinte. — Ela tinha
parado de revirar o peso de papel, e o conservava nas mãos. — Esperei
até estar de volta em Hollywood para lhe dizer que não me podia casar
com ele. Ele ficou muito zangado comigo, mas sabia que eu estava
falando sério. Voltou para Nova York de avião, sem nem me avisar de sua
partida. Um mês depois, suspeitei de que ia ter um filho. Não contei a
ele. Não naquela ocasião. Ele poderia ter usado isso como desculpa para
me forçar. Naturalmente, eu não esperava que ele fosse ficar assim tão
zangado comigo, nem que se casasse com Ruth tão depressa. Meses
depois, eu contei a ele a respeito da criança. O que é que eu podia fazer
com um bebê em Hollywood?
O que, realmente! Baixei minha cabeça sobre as páginas vazias do
caderno, para ela não poder ver meu rosto e saber como eu estava
arrasada.
— Victor fez o que era sensato — disse ela. — Ele queria a filha
dele. Então eu o deixei levar o bebê. Era o único jeito.
O bebê, a criança — a filha dele — eram essas as palavras que ela
usava. Nunca “você”, numa referência direta a mim.
— Achei que você gostaria de saber a respeito do peso de papel —
disse ela, com delicadeza.
Como se ela me tivesse dado algum presente valioso! Era provável
que eu tivesse sido concebida naquela noite em Estocolmo — e no
entanto, ela me falava de um peso de papel.
Eu lhe atirei a palavra no rosto.
— Peso de papel! E o amor de meu pai, que você jogou fora? E eu?
E o modo como eu fui criada, sem uma mãe?
Ela não se perturbou, mas seu ar passara a ser de compaixão.
— Você teve em Ruth uma mãe melhor do que poderia ter tido em
mim. Sei disso porque Victor me escrevia a seu respeito, de vez em
quando, até você estar crescida, e aí ele parou. Ele nunca me mandou os
artigos que você escreveu, nem disse como é que você era agora. Ruth
deu a vocês dois as vidas felizes e satisfeitas que mereciam, e que eu
nunca poderia ter dado a nenhum de vocês. Como não consegui dar-me a
mim mesma uma vida contente e feliz.
— É assim que você se desculpa, e se perdoa! — retruquei, com
violência. — Foi assim que você conseguiu manter-se livre e
irresponsável.
— Você está chorando — disse Laura, admirada. — Mas nada disso
devia lhe importar, agora. Você é uma pessoa em si, assim como eu sou
uma pessoa. Concordamos que não devemos nada uma à outra, a não ser
como escritora e atriz. Então por que você há de chorar por uma coisa
que não me faz chorar?
— Você é um monstro! — Eu lhe cuspi a palavra. — Estou
chorando porque meu pai morreu há muito pouco tempo, e você me fez
ver bem o quanto você o feriu, e como isso significou pouco para você.
Eu sentia que estava ficando histérica. O próprio ar dela, de
tolerância divertida, me destruía. Ergui a cabeça e fiquei olhando para
ela, zangada, sem me envergonhar mais de meu rosto cheio de lágrimas.
— Agora eu entendo uma coisa! — exclamei. — Agora eu entendo o
que é que a levou a descer àquele quarto, ontem à noite, para destruir seu
próprio retrato. Se você não o tivesse feito, eu teria prazer de fazê-lo!
Não posso imaginar nada de mais maravilhoso do que sentir aquela
tesoura em minhas mãos, enquanto eu rasgasse aquele retrato todo.
Os olhos dela estavam enormes e tinham um brilho vidrado. Sua
palidez tinha um tom de chumbo.
— De que é que você está falando?
— É bom mesmo você saber! — disse-lhe, asperamente. — Ontem à
noite, você andou dormindo. Miles a encontrou em meu quarto, depois de
você ter mutilado o quadro, e a trouxe de volta cá para cima. Pode descer
e ver por si mesma.
Ela estava com um aspecto horrível e eu percebi, horrorizada, o que
eu tinha feito — como a chocara e assustara. Zangada como eu estava, eu
não pretendia fazer algo tão horrível. Mas antes que lhe pudesse falar, ou
amenizar minhas palavras, ela levantou-se de um salto, com o peso de
papel nas mãos. Com um só gesto desvairado, ela o atirou pelo janelão.
Ouviu-se um estardalhaço enorme de vidros se quebrando, e depois um
tilintar, quando os pedacinhos caíram do rombo.
— Saia! — disse-me ela. — Saia daqui. Nunca mais quero vê-la.
— Claro — disse eu. — Vou arrumar minha mala e vou embora
imediatamente. Não há mais nada que possamos nos dizer. Nunca mais.
Bati a porta atrás de mim com um pouco da fúria que ela
demonstrara, lançando-me escada abaixo numa velocidade perigosa.
Felizmente, não havia ninguém por ali. No quarto de Laura, cheio de
retratos e fantasias, fechei a porta e fiquei tremendo, em pé, no centro.
Do outro lado, o retrato mutilado estava dependurado, voltado para a
parede, como Irene queria que ele ficasse.
Eu me sentia por demais desnorteada para poder arrumar a mala,
para fazer qualquer coisa sensata. Meu estômago estava embrulhado, da
emoção. Precisava de um pouco de ar puro e frio. Num momento, passara
pelas portas para o jardim, dando a volta na casa e indo para a frente.
Junto de um canteiro, onde ainda nada havia em flor, encontrava-se
Donia Jaffe, com o peso de papel nas mãos. Ela estava quase tão pálida
quanto Laura tinha estado. Estendeu-me a bola de vidro de fores com
dedos trêmulos.
— Ela tentou matar-me — disse ela, e seus olhos vivos voaram para
a janela quebrada do quarto do andar de cima. — Esse peso de papel por
pouco não acertou em minha cabeça.
Eu o recebi das mãos dela, e o examinei atentamente, como se sua
perfeição fosse a coisa mais importante do mundo. Milagrosamente, ele
nada sofrera em seu voo pela vidraça e, tendo caído na terra macia, não
se danificara. Tentei respirar fundo, para minha voz não tremer.
— Ela não o atirou em você — disse eu. — Estava zangada comigo
e jogou-o com raiva.
Donia continuava a olhar para a janela.
— Ela está doente e perigosa. Desequilibrada. Há 20 anos, ela só
traz tristezas e sofrimento a meu irmão. Para ela, tudo o que aconteceu
naquela noite em Hollywood ainda continua. Nunca se desligou de nada
daquilo. Há de ficar para sempre na consciência dela. Só terminará
quando ela morrer. Devia ser levada para algum lugar onde não pudesse
fazer mais mal algum.
Por algum motivo insondável, voltei os restos de minha raiva contra
Donia, em defesa de Laura.
— Se você quer insinuar que ela está mentalmente doente, não está,
não! Nem é perigosa. Se fosse, teria atirado o peso de papel em cima de
mim. Eu a levei a fazer o que ela fez. Ela me enraiveceu, e eu a
provoquei. Os artistas são pessoas muito emotivas.
— Eu sabia que você ia fazer encrencas — disse Donia. — Meu
irmão era contra sua vinda para cá. Ela estava sossegada, e não tínhamos
problemas com ela. E aí você veio para provocá-la.
Mas, pelo menos, ela está viva de novo — disse eu. — No estado
que você chama de sossegada, ela estava meio morta.
— E é esse o único meio de ela poder afastar os fantasmas que a
atormentam.
Não sei por quanto tempo nós teríamos ficado ali nos digladiando,
se Gunnar Thoresen não tivesse aparecido naquele momento, pelo lado da
casa, em direção ao jardim da frente.
— Bom dia — disse ele, animado. — Ouvi vozes, e fui entrando.
Eu corri em sua direção e quase me atirei sobre ele. Ele me parecia
um amigo velho e querido, com quem eu poderia contar para ter apoio e
consolo. Lembrei-me a tempo de que ele não era nada disso, e estendi-lhe
a mão, desanimada.
— Estou contente por vê-lo — disse eu, e prendi a mão dele um
minuto mais do que o necessário.
— Aconteceu alguma, coisa. — Era uma declaração.
— Quase tudo!
— Então você me precisa dizer o que quer que eu faça, e tentaremos
remediar o que está errado. — Depois de um ligeiro cumprimento de
cabeça a Donia, ele só olhou para mim.
Donia fungou, descontente, e foi para a casa.
— Quando meu irmão chegar a casa, eu lhe contarei a respeito. Não
pense que engoli suas desculpas por Laura. Sei bem o que ela acabou de
tentar fazer.
Gunnar olhou para ela muito sério, com seus cabelos castanhos e
levemente ondulados brilhando ao sol.
— Há realmente alguma coisa. Talvez você me deva contar o que.
Ele me parecia maravilhoso, com seu rosto forte e estreito, seus
olhos penetrantes. Eu queria lançar os meus braços em volta dele e
abraçá-lo por toda aquela tranquila força norueguesa. Mas, em vez disso,
mostrei-lhe o peso de papel e fiz um gesto para a janela quebrada do
andar de cima. Ele olhou para cima, compreendendo, e sorriu
ligeiramente.
— Eu devia tê-la avisado de que Laura tem um gênio muito forte.
Ela não teve uma educação norueguesa, parece. Nós somos indulgentes e
carinhosos para com nossos filhos, mas também exigimos disciplina. De
qualquer forma, eu tinha receio de que tudo não andasse às mil
maravilhas a princípio, de modo que vim cedo, para ver se podia ajudar
em alguma coisa.
— Ela me mandou embora. De modo que é melhor eu ir arrumar
minhas coisas e você me pode levar para o hotel, até que eu pegue um
avião de volta para casa.
Ele sacudiu a cabeça e em seus olhos eu notei o brilho que já antes
tinha visto.
— Ela mudará de ideia. É preciso dar-lhe tempo. Ela vai arrepender-
se e há de querer que você fique. Por isso é melhor vir comigo agora, e
deixar as malas para depois.
Não tinha vontade alguma de voltar logo para dentro. Eu queria
simplesmente ficar mais tempo em companhia de Gunnar Thoresen.
Queria contar a ele tudo o que tinha acontecido desde a última vez que o
vira. Ficasse eu ou não naquela casa, queria que ele soubesse de tudo o
que ocorrera.
— Você andou chorando? — perguntou ele. — Por que ela atirou o
peso de papel?
— Não, não por causa disso. Por causa do que se passou antes.
— Então vá lavar o rosto. E passe batom, para se sentir uma mulher.
Depois, pegue seu casaco e vamos. É melhor eu não entrar na casa, nesta
crise. Espero por você no carro.
Corri para fazer o que ele pediu. Se um dia eu me pudesse
apaixonar, pensei, descabidamente, seria por um homem como aquele. E
isso não seria sensato. Não para mim.
Depois de refrescar o rosto com água fria e renovar o batom, atirei o
casaco em cima dos ombros e fui para o hall, onde encontrei Irene Varos
ao pé da escada, como se me estivesse esperando.
— Ela andou atirando coisas de novo?
— Então é hábito?
— Não tão frequente, agora — disse Irene.
— Já foi vê-la?
— Ainda não. É melhor deixar que ela se acalme primeiro. Aí, é
menos provável que ela me atire alguma coisa.
— Eu lhe falei sobre o retrato — disse eu. — Contei que ela andou,
dormindo, ontem à noite, e não o fiz com delicadeza. Talvez convenha
você saber também que a Sra. Jaffe pensa que o peso de papel que Laura
atirou era dirigido contra ela. Claro que não. Nem contra mim, embora
Laura estivesse zangada comigo. Mas a Sra. Jaffe está falando que ela
está doente, perigosa e desequilibrada. Disse mesmo que ela deveria ser
mandada para um lugar onde não pudesse molestar ninguém.
Uma expressão de uma raiva intensa brilhou nos olhos de Irene.
— A Sra. Jaffe é que devia ser mandada para algum lugar! Mas
obrigada por me contar. Nada disso será feito enquanto nós estivermos
aqui para protegê-la.
— Não conte com o nós — disse eu, saindo pela porta.
Foi maravilhoso sair daquela casa e subir as montanhas no
Mercedes.
7
A estrada sinuosa serpeava de um lado para outro pela encosta do
morro, com suas casas arrumadas e alegres, dispostas em níveis
ascendentes. Depois de uma ou duas voltas, eu podia ver lá embaixo as
telhas azul-escuras da casa de Laura Worth. Por toda parte, os jardins
eram tratados, quase prestes a florescer, e havia muitas plantas nas
janelas. Bem embaixo, Bergen avançava sua península pelas águas do
fiorde e espalhava suas construções por ambos os lados. Eu via barcos
ancorados na maior expansão de água à esquerda. Na margem dianteira,
bem à direita, estavam os cais, com os vapores atracados, e os telhados
pontudos da velha Bryggen na rua paralela a Vaen, a baía interna.
— É linda a sua cidade — disse eu. — Divina.
Ele concordou com a cabeça, complacente.
— É. É difícil entender como é que as pessoas podem querer morar
em outro lugar. Muito embora os habitantes de Oslo nos achem
provincianos. Naturalmente, estão errados. Nós somos o portão para o
ocidente. Temos 900 anos atrás de nós, e somos a porta que se abriu para
deixar penetrar as influências da Inglaterra e dos outros países da Europa.
Como era difícil passar por cima das montanhas para ir a Oslo, nos
tempos antigos. Agora os trens andam durante todo o inverno.
Ele estava falando para me distrair, para me animar, até eu estar
pronta para conversar com ele. Eu o deixei continuar. Não queria
começar minha história enquanto ele estivesse dirigindo numa estrada da
montanha. Além disso, era agradável recostar-me no assento e repousar,
vendo aquela vista maravilhosa a crescer embaixo de nós à medida que
subíamos, e, por alguns minutos, pensar em nada.
Quando a estrada chegou o mais alto possível, em Flöyen, Gunnar
estacionou o carro perto de uma tabuleta que avisava que não ser podia
prosseguir de carro. Nós saltamos e começamos a subir por um caminho
que logo se tornou íngreme, com a face negra da montanha nos
dominando lá de cima. No cume, os abetos escuros se destacavam contra
o céu.
Não estávamos sós. O sol tinha levado muita gente a aproveitar o ar
livre, e muitos haviam escolhido aquele feriado para escalar a montanha.
Crianças subiam com a mesma energia dos pais, e vimos mesmo um ou
dois carrinhos de bebê sendo empurrados pelo caminho íngreme. Por toda
parte, via-se o vermelho-vivo dos suéteres. Os noruegueses adoram o
vermelho. Mas os grupinhos não se estorvavam. Nós viajávamos em
ilhotas e cuidávamos de nossos assuntos.
Quando chegamos a um banco que fora colocado num lugar
elevado, com uma bela vista, subimos até lá e nos sentamos, podendo
avistar todos os arredores. Meus olhos acompanharam a estrada que
rodeava a montanha vizinha, Ulriken, e passava para Fantoft, em volta de
laguinhos e pelo campo.
Os ruídos constantes do tráfego de Bergen agora eram mais
distantes, mas ouvíamos intermitentemente o que já se estava tornando
familiar: o apito curioso que faziam as ambulâncias. Ouvia-se ainda um
som de banda de música do centro da cidade, pois, sendo feriado, os
grupos estavam nas ruas, os jovens e o pessoal das paradas. Da água lá
embaixo vinha o ronco de uma lancha e um avião zumbia ao alto. Por trás
de nós, nas árvores das florestas, cantavam os passarinhos.
— Ontem à noite — disse-lhe — tive certeza de ouvir tocar uma
gaita de foles. Será possível, em Bergen?
Ele sorriu.
— Não é provável. Sem dúvida o que você ouviu foi um de nosso
violinos Hardanger. Embora a gaita seja um instrumento de sopro e o
violino de corda, os sons são semelhantes. Eu mesmo tenho um desses
violinos. Um dia desses, tocarei para você. A música é típica, pertence à
Noruega.
— A festa parecia ir até bem tarde — disse eu, à toa.
— As festas norueguesas são assim. Antes de você partir, temos de
dar uma festa para você. Você não pode saber o que é ser brindada até ser
brindada numa festa norueguesa. Nós começamos com muito formalismo
e dignidade. Não nos soltamos facilmente. Mas à medida que a bebida
corre, nós nos tornamos extremamente espirituosos e espertos. Ou é o que
queremos crer. Naturalmente, ninguém vai dirigindo seu próprio carro a
essas festas, pois o Governo não aprova aqueles que dirigem depois de
beber. Por isso, todo mundo vai de táxi e de madrugada, sentindo-nos
muito alegres mesmo, voltamos todos para casa de táxi.
Ele falava despreocupadamente, com a capacidade inesperada que
tem o norueguês de rir-se de si mesmo, e sua conversa ligeira teve sobre
mim o efeito que ele desejava.
Aí eu já me acalmara. Já podia contar-lhe, sem chorar, a história que
Laura me confiara sobre aqueles tempos em Estocolmo. Os tempos em
que ela e Victor se amavam. Ele ouviu atentamente e só falou quando eu
terminei.
Aí, ele disse:
— Que lindo presente ela lhe deu.
— Presente? — eu me espantei.
— É bom saber que se nasceu de um amor tão terno.
Alguma coisa dentro de mim se enrijeceu contra ele.
— Não creio que Laura Worth conheça alguma coisa a respeito de
amor. Nem sobre ternura. Ela só o representa, só brinca disso.
— Você está aqui — disse Gunnar. — E ela se lembra até do céu de
açafrão sobre Estocolmo. A gente só lembra das coisas pequenas quando
o momento é importante. Mas agora você tem de me contar o resto.
Conte-me como aconteceu o negócio de atirar o peso de papel.
Com calma, ele me desviava das discussões e dos ataques. Tive de
voltar ao princípio, antes de ele poder entender o episódio da vidraça
quebrada. Contei-lhe o que Laura dissera a respeito de ouvir um sussurro.
Contei-lhe a respeito da roupa na mala, e do castiçal de dragão, e como
Laura tinha desmaiado. Contei o comportamento de Donia, e da voz que
eu ouvira de noite. E, embora não o quisesse — por causa da
consequência — contei sobre o sonambulismo, o retrato mutilado e Miles
Fletcher ter levado a mulher de volta para a cama.
Gunnar nada desprezou do que eu disse, mas no final me interrogou:
— Você acha realmente que ela faria uma coisa dessas, desfigurar
seu retrato, mesmo dormindo?
— Ela estava com a tesoura na mão. E quando olhei para a tesoura,
depois, encontrei pedacinhos de tela e tinta grudados.
Ele sacudiu a cabeça, muito sério. Sua testa estava franzida.
— Não estou gostando disso. Ela acordou? Ela sabe o que fez?
— Ela não o sabia naquele momento. Parece que o Dr. Fletcher a
levou para cima sem despertá-la. E Irene disse que ele não lhe contara
coisa alguma. Mas agora ela sabe.
— Como assim?
Não pude olhar para ele.
— Eu me descontrolei hoje de manhã, quando estávamos
conversando. Fiquei tão furiosa que contei tudo. Contei a ela o que tinha
feito. Foi aí que ela atirou o peso de papel pela janela.
As mãos compridas e estreitas de Gunnar estavam pousadas sobre
seus joelhos. Vi seus dedos se enroscarem e se agarrarem, e vi que ele
estava zangado comigo. Toda bondade e tolerância sumiram. Nada havia
que eu pudesse fazer para mitigar a indignação dele diante de meus atos,
nenhuma justificação que eu pudesse oferecer, mas senti que eu me
irritava com ele. Ele não podia saber como Laura agira, tão fria e distante
de mim, tão indiferente a tudo o que eu pudesse estar sentindo. Que ela
dissera que cada uma de nós era uma pessoa individual — e fim.
Quando ele falou, em sua voz havia uma reprovação tão fria como
eu nunca ouvira antes. A indignação dele tomou um aspecto frio e
torturante, como o aço penetrando na carne.
— Então você se saiu melhor ainda do que esperava em seu
propósito ao vir para cá? Eu nunca devia ter permitido que você a visse.
Devia ter rasgado a carta de seu pai e mandado você de volta para casa
imediatamente.
Eu engoli em seco, diante do choque de suas palavras, mas devolvi
a frieza com a frieza.
— Não sei por que não o fez. Talvez agora me possa revelar o que
dizia a carta.
— Era uma carta bondosa. Talvez mais bondosa do que você
merecia. Seu pai estava preocupado com você. Escreveu-me dizendo que,
embora você pudesse levar algum alívio para velhas feridas de Laura, não
era isso que importava. Disse que ela vivera sua vida e fizera suas
escolhas e que, se ela ficasse ferida agora, ele não achava isso muito
importante. Mas você é que era importante para ele. Ele achava que você
não poderia construir uma vida para si enquanto não se livrasse do ódio
que a consumia. Nada havia que ele pudesse fazer a respeito disso, apesar
de ter tentado. Ele se sentia culpado por isso lhe ter acontecido, mas ele
mesmo não sabia qual seria a cura. Esperava que esse encontro com
Laura pudesse realizar aquilo que ele não conseguiu. Você significava
muito para ele.
As lágrimas ardiam em meus olhos, e eu pisquei furiosamente para
elas não caírem.
— Foi uma tolice da parte dele achar isso — disse eu.
— Sim, foi tolice. Não posso concordar em absoluto com Victor que
Laura não importa. Ele podia escrever isso porque havia tanto tempo que
não a via, e ele achava que você era mais importante, por ser jovem. Mas
eu estou aqui. Eu a conheço e respeito. Tenho grande afeição por Laura
Worth. Ela não é só artifício, como você pensa. Bem no fundo há uma
mulher que merece escapar de alguma prisão em que se encerrou. Poderia
ter sido a sua oportunidade, e mesmo um privilégio para você, libertá-la.
Mas você fracassou.
Eu queria brigar com ele, lançar-lhe palavras zangadas, mas elas não
vinham. Não podia dizer isso a ele, mas com uma parte de mim eu sabia
como ele tinha razão. Ele estaria plenamente justificado se me mandasse
embora e nunca me permitisse ver Laura. Eu começara, com grande
êxito, a executar o propósito por que tinha ido a Bergen, não encontrava
satisfação em meu sucesso. Ainda terminaria o que pretendera fazer ali,
mas não teria com isso o prazer que esperava.
Levantei-me de repente e ele se levantou comigo.
— Se há mais montanha a escalar, vamos escalar — disse eu.
Ele me respondeu igualmente brusco.
— Há mais, sim.
Saí com ele do lugar rochoso em que ficava o banco e, quando
começamos a caminhar pela estrada, uma mudança se operou nele. Ele
caminhava um pouco na minha frente, como se estivesse sozinho.
Pareceu esquecer-se de mim no simples prazer de estar onde mais
gostava de estar — ao ar livre, sob um céu ensolarado, com árvores
enormes em volta, com seus valezinhos cheios de hastes de pinheiros, um
riacho correndo barulhento sob uma ponte que atravessamos, e a rocha
negra da montanha rebrilhando acima de nós no ar límpido. Ele parecia
estar seguindo a estrada para o topo como se uma nova vida tornasse a
correr em suas veias, depois do longo inverno. Ele não me incluía naquilo
tudo e, no entanto, estranhamente, eu também parecia pertencer àquilo —
como se tivesse vivido ali e conhecesse os intermináveis dias escuros, a
chuva e a neve, a escuridão da água, as tempestades — e agora estivesse
livre diante do sol quente.
Não conversamos. Eu perdera a minha oportunidade de saber o que
ele pensava sobre os primeiros fatos da casa de Kalfaret. Precisávamos de
nosso fôlego para a caminhada apressada. O caminho virava para dentro,
afastando-se do panorama, passando, menos íngreme, por sobre o cume
largo da montanha. Flöyen não tinha um pico aguçado como Ulriken.
Aplainava-se simplesmente em terras onduladas. Sob as árvores havia
grandes manchas de neve, e por vezes estas cobriam partes da estrada, de
modo que pisávamos pela crosta derretida. Numa volta do caminho, a
vista se abriu em nossa frente e vi o alto lago da montanha ao qual ele me
levara. Sua superfície límpida e reluzente era uma tênue camada de gelo,
com sombras de nuvens ocasionais sobre ele. Em volta, os altos abetos
montavam guarda, escuros e, além deles erguia-se outro pico de
montanha, com seus campos de neve de um branco-brilhante sob o sol.
Isso era a Noruega como eu a imaginara. Agora ela me dizia alguma
coisa.
— Este é o caminho mais longo — disse ele. — Mas achei que v
ocê gostaria de ver este lugar.
— Obrigada — disse eu, e talvez ele tenha percebido a ligeira
animação em minha voz. Olhou para mim rapidamente e desviou o olhar.
— Não é digno de você ter inveja dela — disse-me ele,
inesperadamente. — Você não precisa ter ressentimento do fato de não se
parecer com ela fisicamente. Sendo você mesma, você sem dúvida é
motivo de muita inveja para ela, até de sofrimento. Você é jovem e
atraente e talentosa. E tem certa força de caráter igual ou talvez superior
à dela. Tem a vida pela frente. Não pode ser fácil para ela descobrir você,
e fazer suas comparações.
Ele falava num tom impessoal, como se estivesse à distância, e
fiquei pensando por que é que eu achara que ele tinha percepção. Ele
podia pensar em Laura Worth, mas não em mim. O que eu era, o que eu
podia ter sentido e sofrido e esperado, ele não entendia em absoluto.
— Se você acha que tenho inveja, então nada conhece sobre mim —
disse eu, e caminhei mais depressa que antes. Ele me acompanhou em
silêncio, e eu só queria poder estar longe dele, livre de sua presença
condenadora.
A essa altura, quase não víamos ninguém. A maior parte dos
montanhistas tomara o caminho mais curto para o restaurante que ficava
no cimo da montanha. Encontramos um rapaz e uma pequena de suéteres
e calças de cores vivas, e um senhor idoso nas calças folgadas que eram
as roupas típicas do caminhar, para a geração mais velha. Eles nos
sorriram educadamente, ao passar.
Por fim, a estrada se desviava do lago e, depois de um trecho curto,
chegamos a um terraço de pedras diante do prédio baixo em cima do
Flöyen. Ali havia mesinhas brancas com cadeiras pretas em volta, cheias
de gente de todas as idades, bebendo cerveja e refrigerantes. Cachorros
também tinham chegado ao topo da montanha com suas famílias — cães
bem comportados, que não corriam nem perturbavam as pessoas. Os
carrinhos de bebê também estavam ali, embora nem todos tivessem sido
empurrados pelo caminho. Havia um funicular do outro lado do terraço,
fazendo suas viagens regulares para cima e para baixo, servindo às ruas
nas encostas da montanha, nas várias estações. Bandeiras da Noruega e
de outros países enfeitavam o terraço, adejando ao vento em seus mastros
altos. Além, ficava o precipício do penhasco rochoso — com toda Bergen
e suas águas e ilhas distantes espalhadas embaixo, até o Mar do Norte.
— Vamos arranjar uma mesa ao sol? — perguntou Gunnar.
Concordei, mas antes de nos sentarmos, um garçom de casaco
branco veio depressa para onde estávamos.
— Há uma mesa lá dentro — disse-nos. — A senhora está
esperando.
Gunnar e eu nos olhamos — e adivinhamos.
Minha animação sumiu. Ela tinha ido ali para acusar-me, para
recriminar-me diante de Gunnar. Haveria mais cenas horríveis.
— Não quero almoçar com ela — disse-lhe. — Não quero mais nada
com isso. Posso tomar o funicular para descer. Não precisa incomodar-se
comigo.
Ele pegou meu braço com delicadeza, mas firmemente, não
admitindo qualquer resistência.
— Eu insisto. Será melhor que você a veja agora. Depois do que
você fez, deve isso a ela.
Eu não devia nada a ela, e só queria atravessar o terraço para chegar
ao funicular, deixando os dois sozinhos. Mas Gunnar me levou com ele,
de uma maneira que não admitia qualquer oposição e acompanhamos o
garçom para dentro do prédio.
Uma varanda comprida, envidraçada, ficava acima do terraço, com
mesinhas de toalhas brancas numa fila comprida, onde os fregueses
podiam sentar-se abrigados e ao mesmo tempo ver o terraço e a vista. O
teto era bem inclinado e havia claraboias e lustres dependurados. Numa
mesa mais ou menos no meio da fila, encontrava-se Laura Worth, a nossa
espera.
Ela estava com um costume de lã cinza que lhe assentava bem, e um
chapeuzinho também cinza de uma época incerta, mas encantador, e tinha
uma aparência linda, jovem e feliz. Estendeu as duas mãos para Gunnar,
que se curvou para beijar-lhe o rosto. Depois, ela me cumprimentou com
a mão estendida e puxou-me para uma cadeira vermelha, a seu lado.
Sentei-me meio dura, sem poder acompanhar facilmente essa
mudança emocional. Gunnar aceitou-a mais prontamente do que eu,
embora me lançasse um olhar de advertência, sentindo meu espanto
diante dessa reviravolta.
— Eu sabia que chegaria aqui antes de vocês, pelo funicular —
disse-nos ela. — Estive esperando que vocês aparecessem. Você está
corada, Leigh. A Noruega lhe faz bem.
Gunnar sentou-se na cadeira em frente de nós e o garçom trouxe os
menus. Fiquei contente de poder examinar o meu. Não encontrava
palavras para dizer a ela. O que acontecera com seu choque e horror ao
saber que tinha feito uma coisa tão terrível com seu retrato? Que fim
levara sua raiva de mim? Eu simplesmente não consegui fazer as
mudanças assim. Ela me tinha expulsado de casa. Tinha tanta raiva de
mim que quebrara uma vidraça, atirando um peso de papel através dela. E
agora ali estava sentada, sorrindo como se parte de seu afeto por Gunnar
tivesse transbordado sobre mim. Aquela amabilidade me espantava. E me
deixava desamparadamente indignada. Eu passara por um tumulto
emocional, tinha afastado Gunnar completamente de mim — e,
aparentemente, tudo em vão.
— A não ser que você queira alguma coisa mais pesada para o
almoço — disse-me ela —, temos de apresentá-la aos nossos canapés.
Quer fazer o pedido, Gunnar, por favor?
O garçom se foi, levando os menus, e eu não tinha com que me
distrair. Só me restava olhar para Gunnar e para Laura, vendo-os terem
um prazer tão franco na companhia um do outro. Era óbvio que ele lhe
era dedicado e, a despeito da diferença de idade, ela ainda era mulher
suficiente para dar aquele toque picante em companhia de um homem
atraente.
Fiquei olhando para o terraço, vendo as pernas rosadas das
menininhas, a pele límpida e alva de uma mãe loura, as barbas dos
rapazes. Abaixo da borda do penhasco, as gaivotas mergulhavam e
subiam, aproveitando as correntes de ar formadas pela montanha.
Eu me estava sentindo completamente perturbada, confusa e
insegura. O sorriso de Laura era radioso, seus olhos brilhavam, e ela
tinha aquela ilusão de juventude. Se eu a chocara ou ferira de algum
modo, ela não o aparentava e, por algum motivo, eu achava que devia.
Gunnar não precisava ter-se preocupado, mas ele se preocupara e não
perdoara. Seus modos cerimoniosos para comigo me diziam isso.
— O que é que você acha de tudo isso? — perguntou-lhe ela. —
Que nessa época tardia eu arranje uma filha. Uma moça de 23 anos,
muito parecida comigo.
— Parecida com você? — repeti, exasperada.
Ela tocou meu braço levemente com um de seus gestinhos
carinhosos.
— Claro. Antes de você sair de meu quarto, furiosa, olhei para você
e me vi a mim mesma. Nós estávamos nos refletindo, nós duas, todos
aqueles acessos de raiva e reações furiosas. Mas isso passa muito
depressa, não é?
Mas se ela podia esquecer tão depressa suas próprias ações de
desespero, eu não podia. Nem as dela nem as minhas. O que aconteceu
foi para valer.
— Não sei esvoaçar assim — disse eu. — Não perdoo tão
facilmente.
Ela não deu atenção. Talvez achasse certo que seria perdoada—
como sempre era.
— Eu a vi no jardim com o peso de papel em suas mãos. Espero que
não se tenha quebrado. Eu gostaria de tê-lo de volta.
— Não se quebrou — disse eu. Eu não sabia se o devolveria ou não.
Estava em minha bolsa, mas eu não o peguei. A Sra. Jaffe está
convencida de que você o atirou na cabeça dela. Acha que tentou matá-la.
O riso de Laura era tão encantador quanto eu me lembrava do
cinema, e tão livre de qualquer sombra.
— Que maravilha! Eu não sabia que podia assustar a pestezinha.
Terei de tentar outra vez.
Gunnar olhava para nós duas, com um ar sério, sem se divertir.
— Você não gosta da irmã do Dr. Fletcher?
— Eu a detesto!
— Então precisa deixar que ela more em sua casa?
— Eu não a quero lá, pode crer. Miles tem pena dela. Diz que ela
não tem para onde ir, e não posso magoá-lo insistindo para ela partir. Às
vezes, há uma grande união entre irmão e irmã, e o resto da família deles
já morreu. Talvez seja só por pouco tempo. Acho que ele não se dá bem
conta do despeito que ela tem de mim.
Gunnar aceitou a explicação dela.
— Então diga-nos — disse ele —, você não veio aqui só para nos
fazer uma surpresa.
— Não, claro que não. Miles nada planejara para o feriado, afinal. E
assim eu fugi. Saí e peguei um táxi para me levar ao funicular. Vim por
mim, pelo prazer de almoçar com vocês dois na montanha.
Ela continuava a representar a jovem descuidada, mas agora a
máscara estava começando a cair um pouco, e senti alguma tensão por
baixo. Toda aquela alegria encobria alguma coisa. Não se devia aceitar
aquilo plenamente como parecia ser.
— Leigh contou-me o que está acontecendo — disse Gunnar.— As
coisas não vão bem com você, Laura?
Ela conservara suas mãos estriadas, reveladoras, debaixo da mesa,
mas agora ela as ergueu, num gestozinho de súplica.
— Quer intervir junto a minha filha por mim, Gunnar? Por favor,
peça-lhe para voltar para casa e ficar comigo pelo tempo que puder. Por
favor, peça que ela me perdoe.
— Pode pedir-lhe você mesma — disse ele, com brandura. — Se o
perdão for necessário. Talvez seja o contrário, quanto a quem deva ser
perdoado.
Ela se virou para mim e seus grandes olhos estavam molhados e
súplices, embora ela nada mais dissesse. Eu estava cada vez mais irritada,
embora não estivesse mais tão emotiva quanto antes. Fosse qual fosse o
papel dela, não era como filha que ela me queria na casa. Ela me queria
ali porque tinha medo de alguma coisa, e no momento eu era uma espécie
de escudo entre ela e o perigo que temia.
— De que é que você está com medo? — perguntei,
propositadamente.
O canto de sua boca tremeu ligeiramente. Seus dedos mexiam com
dois broches de prata na lapela do casaco. Broches, reparei, que
representavam as duas máscaras, de tragédia e comédia.
— Não podemos ajudar, a não ser que você nos diga o que é que se
passa de errado — acrescentou Gunnar.
— Eu... eu cometi um erro horrível. Talvez tenha estragado minha
vida e a de outros. Agora, só posso viver o dia que passa. Fugi quando
vim para aqui, mas isso era só faz-de-conta. Não há nenhum lugar aonde
eu possa ir sem que seja seguida pelo que sussurra. Agora eu sei disso.
Ali, naquela varanda clara, com gente jantando em volta de nós, e o
sol brilhando lá fora, com grupos de família às mesinhas brancas do
terraço, casais com mochilas andando de mãos dadas, tudo parecia sadio
e normal. As palavras de Laura tinham um toque melodramático. No
entanto, eu ainda me lembrava da noite da véspera com um terror bem
presente.
— Laura — disse eu. — Ontem à noite eu ouvi a voz. Eu a ouvi em
meu quarto, depois de eu estar dormindo havia algum tempo. Quem está
pregando essa peça?
Ela tinha empalidecido visivelmente, e tocava nos broches de um
modo cego, perdido.
— Tenho medo — disse ela. — Tenho um medo louco.
— Então você tem de se mudar daquela casa — disse-lhe Gunnar,
num tom prático. — Minha mãe gostaria muito que você ficasse lá em
casa. Você deve ir passar uns tempos lá, até que se esclareça isso que a
está perturbando.
— Obrigada, meu bem. Mas nunca permitiriam que eu saísse. Eu
mesma me meti numa armadilha. É o que lhes disse, só posso viver o dia
que passa. Se Leigh vier passar uns tempos, isso me ajudará, talvez me
salve, por algum tempo.
— Salvá-la de quê? — insisti.
Ela sacudiu a cabeça.
— Só sei que, se eu ficar sozinha, a espada cairá, de alguma
maneira, e serei destruída.
Esperei que Gunnar a acalmasse, a tranquilizasse, negando um
perigo tão nebuloso. Mas ele não o fez. Ele estava preocupado com ela, e
não menosprezou suas palavras. Não obstante, embora não a ofendesse
com palavras confortadoras, eu senti que ele não levava muito ao pé da
letra o tom sinistro de suas palavras. Ele sabia que havia um problema,
mas eu desconfiava que ele achava que era em grande parte criado por
ela, e ele sabia que ela gostava de dramatizar as coisas. Se ele acreditasse
nisso, então ela realmente não tinha ninguém a quem recorrer — a não
ser eu. Eu podia acreditar que algum Espírito maléfico habitava Kalfaret.
— Se quiser, voltarei com você — disse eu.
Fiquei surpreendida com minhas próprias palavras. Eu não tinha
intenção de pronunciá-las. Gunnar olhava para mim com uma aprovação
comedida. Sabia que ele não me perdoara, mas pelo menos podia
endossar minha volta para a casa dela. O sorriso de Laura era trêmulo e
comovente. Olhei zangada para os dois e pensei o que haveria de errado
com minha cabeça para fazer um oferecimento tão louco.
— Foi para isso que vim aqui — disse Laura. — Eu tinha esperança
de que você voltasse. Obrigada, Leigh.
Eu não confiava nada nela. Ela sempre encontraria um jeito de
conseguir o que queria e utilizar os outros. Era a natureza dela. O fato de
eu permitir que ela se utilizasse de mim não me deixava nada contente
comigo mesma.
O garçom trouxe os sanduíches, que eram pequenas obras de arte —
rodelas de pão com muita manteiga, com uma porção de camarõezinhos
com maioneses, anchovas, pepinos, tomates e alface, tudo disposto como
jardins floridos em miniatura. Como bons noruegueses, bebemos cerveja
com a refeição. No momento, evaporou-se tudo o que era sinistro, e
parecíamos ser iguais a todo mundo, jantando no topo de Flöyen naquele
dia. Por fora, era o que parecíamos.
— Enquanto Leigh estiver aqui, tenho de fazer planos para vocês
duas — disse Gunnar, embora eu soubesse que os planos eram para
Laura, e não para mim. — Ainda há neve em Ulriken e vocês têm de ir lá
para visitar minha cabana. Amanhã é sábado, vamos combinar para
amanhã.
— Miles nunca subiu a montanha — disse Laura. — Eu gostaria de
mostrá-la a ele.
— Mas é claro. Você tem de levar seu marido, e a irmã dele
também. Vamos fazer de amanhã um dia alegre e você se sentirá bem e
forte, sem nenhum temor.
Laura concordou com a cabeça.
— É, é assim que deve ser, viver o dia que passa. E Leigh tem de
passear um pouco. Nós iremos, Gunnar. Vou convencer o Miles.
Ninguém me consultou. Ele se inclinou para mim, demonstrando
aquela sugestão de exuberância que eu vira ao subirmos a montanha,
quando ele se esqueceu de sua zanga comigo em sua reação particular a
natureza. A expressão lhe ia bem, e tive um desejo inesperado de que
pudesse ser por mim.
— Você verá alguma coisa do inverno na Noruega, e vai gostar
disso. Tem roupas adequadas para usar?
— Eu empresto tudo o que ela precisar — ofereceu Laura. — Não
somos muito diferentes, em tamanho. Quando chegarmos a casa, vamos
passar uma revista em minhas roupas, Leigh.
— E depois, para a próxima semana, vamos planejar uma ida ao
teatro — continuou Gunnar. Novamente, eu sabia que ele estava
planejando para ela, tentando tirá-la daquela casa. Minha presença era
apenas o pretexto que ele usava. — Vou arranjar um camarote e...
— Não! — Laura sacudiu a cabeça. — O teatro, não. Há anos que
não vou a teatro, e não tenho vontade de ir.
— Como eu ia dizendo, vou arranjar um camarote — continuou
Gunnar calmamente. — E você e Leigh vão sentar-se juntas, na frente.
Todo mundo vai olhar para vocês e cochichar, e você ouvirá falarem seu
nome. Vai ver que não está esquecida.
Ela continuava a tentar sacudir a cabeça, mas seus lábios se
entreabriram num leve sorriso, e em seus olhos havia alguma coisa que
mostrava que ela se lembrava de como eram as coisas para ela.
— No hotel — disse eu, impulsivamente —, quando perguntei ao
porteiro onde morava Laura Worth, ele me disse logo. Eu me referi a
você como uma atriz americana, mas ele me lembrou que você era meio
norueguesa, e que agora pertencia a Bergen.
Gunnar tornou a dar-me seu sorriso de aprovação, embora ele não
confiasse em mim, e eu estremeci, intimamente enojada. Porque estaria
eu agora agindo dessa maneira — tentando convencê-la, ajudando
Gunnar em seus esforços para afastá-la da casa de Kalfaret? Eu não me
modificara, realmente. Não gostava mais dela que no princípio, e não
devia deixar que esse aparente abrandamento com relação a ela fosse
longe demais. Nem devia sacrificar meu propósito firme em algum
esforço tolo para agradar a Gunnar. Se eu fizesse isso, não me poderia
tolerar.
— Vamos ver — disse Laura.
Gunnar sacudiu a cabeça para ela, com firmeza.
— Você vai usar seu vestido mais bonito. E no Tidende, no dia
seguinte, vão publicar que Laura Worth apareceu num camarote no Teatro
Nacional, mais bela que nunca.
— Você quase consegue que eu acredite que isso pode acontecer —
disse ela, e eles se sorriram por cima da mesa.
Era difícil acreditar que era essa a mulher que na véspera desmaiara
à vista de um vestido — ou um castiçal. Que ela riscara o próprio retrato
com uma tesoura, e que naquela manhã eu a vira atirar um peso de papel
por uma vidraça, num gesto espetacular de raiva. Meu senso de confusão
e descrença voltaram. Só o momento ali era real. Nada mais.
Mas o nosso almoço não podia durar para sempre, e bem depressa
tínhamos tomado o café e nos levantávamos da mesa. Não teríamos de
descer a montanha a pé, disse Gunnar. Tomaríamos o funicular por uma
estação, e depois iríamos a pé pela encosta até onde estava estacionado o
carro dele.
Nós abrimos caminho pelo terraço, Laura na frente, andando com
aquela graça impressionante que fazia as pessoas se virarem para olhar
para ela. Gunnar comprou os bilhetes e encontramos um carro esperando
na plataforma.
Ele nos ajudou a sentar num lugar ao comprido no carro. O veículo
era construído inclinado, para corresponder à encosta íngreme, com os
assentos em camadas, como degraus. As portas se fecharam, ouviu-se o
ronco da maquinaria e dos cabos e partimos pelo caminho da montanha.
As árvores e pedras se erguiam diante de nós, ao passarmos, e a fileira
mais alta das casas se aproximou. Dentro de alguns momentos, tínhamos
alcançado a nossa parada e já estávamos na plataforma. Da rua, onde
paramos por um momento, ficamos a olhar o carro que descia, enquanto
seu correspondente — um carro azul — vinha lá de baixo.
Descemos perto do carro de Gunnar, e logo eu estava sentada no
banco traseiro, pois não tinha vontade de ficar junto deles, enquanto ele e
Laura se sentavam na frente. Podia ter sido uma manhã tão deliciosa, mas
pelo menos eu não era mais aquela menina escorraçada que tinha corrido
desesperada para se encontrar com Gunnar. Eu continuava perturbada e
ressentida, e não perdoara a nenhum dos dois, mas não estava mais
desesperada, e me sentia mais capaz de lidar com a casa e seus moradores
do que algumas horas antes.
8
A minha nova confiança em mim durou muito pouco. Gunnar não
entrou em casa. Pediu a Laura que lhe avisasse a respeito da
possibilidade da ida a Ulriken no dia seguinte — um sábado —,
agradeceu-nos por nossa companhia e foi embora. Laura ficou parada, ao
pé da escada, olhando-o desaparecer.
— Se eu fosse 20 anos mais moça... — disse ela, olhando para mim.
— Acontece que ele não enxerga mais ninguém, quando você está
presente — disse eu, despreocupada, subindo a escada, correndo, para
entrar em casa. Eu não gostaria em absoluto de alguma tentativa
casamenteira de parte de Laura.
— Um dia preciso falar-lhe a respeito da mulher dele, Astrid —
disse ela, subindo os degraus atrás de mim. — Uma moça linda e
encantadora. A morte dela foi uma tragédia de que ele nunca se
recuperou.
Eu não queria mais ouvir falar de Gunnar. E certamente não queria
ouvir falar da mulher dele.
Irene Varos nos esperava à porta, quando seguíamos o caminho do
lado da casa. No momento em que ela nos fez entrar, a atmosfera da casa
tornou a me envolver. Bastou a expressão de Irene para vermos que havia
algo errado.
— O que é que aconteceu agora? — perguntou Laura.
Irene atravessou o hall interno e parou à porta do quarto que
continha as recordações de Laura.
— Vocês têm de ver — disse ela, para nós duas.
Laura lançou um olhar ansioso para a escada — seu meio de fuga —
e suspirou profundamente.
— Eu antigamente gostava dessa casa. Mas não gosto mais. Voltar
para cá é o mesmo que voltar para uma prisão.
— Talvez seja você quem faz sua própria prisão — disse Irene,
secamente.
Nós passamos por ela e entramos no quarto. Não estava mais
envolto em escuridão, como quando eu o vi pela primeira vez, na
véspera. As janelas e portas que davam para o jardim estavam abertas,
para o ar e a luz. Nem mesmo o lustre de seda estava aceso. No centro do
quarto, estava a mala de Laura, que ela trancara na véspera. A tampa
estava levantada e o conteúdo espalhado pelo chão. Alguém desfizera a
mala toda, de maneira bastante atabalhoada, de modo que as roupas e os
objetos tinham sido mexidos e atirados para fora de qualquer jeito.
Vestidos de fazendas ricas estavam dependurados pela tampa e os lados.
Caixas e retratos e uma pasta de cartas estavam espalhados
desleixadamente pelo chão, com uma porção de joias de fantasia.
A expressão de Laura era tensa, mas pelo menos não parecia que ela
fosse desmaiar.
— Quem fez isso? — perguntou ela a Irene.
— A Sra. Jaffe. — Irene foi sucinta. — Ouvi barulhos desse quarto,
há pouco tempo, e saí para encontrá-la tirando o conteúdo da mala, como
podem ver.
Laura apanhou um vestido e sacudiu suas pregas azuis. Eu recuara,
olhando para ela, e ela me atirou o vestido.
— Usei este vestido uma noite em Estocolmo, há uns 100 anos atrás
— disse ela. — Levante-o, ainda se pode ver as marcas feitas pela chuva,
naquela noite. As marcas da água nunca saíram. Nunca mais pude usá-lo.
Não que eu o quisesse.
Larguei o vestido macio como se estivesse me queimando as mãos e
deixei-o cair sobre uma cadeira.
— O que foi que Donia disse quando você a encontrou aqui? —
perguntou Laura a Irene. — O que é que ela estava procurando?
Irene respondeu, inquieta.
— Ela disse que estava procurando provas.
— Provas? Provas de que?
— Ela não quis dizer.
— Vou falar disso com Miles, naturalmente. O procedimento dela
foi inominável. Pelo menos ela podia ter posto tudo nos lugares.
— Eu lhe disse para deixar assim — disse Irene. — Queria que você
visse o que ela tinha feito.
— Está bem, já vi. Quer fazer o favor de guardar essas coisas, sim?
Sua voz tinha uma nota de tensão, mas ela ainda era uma mulher
mais forte e confiante do que a que eu vira na véspera.
— Vou ajudá-la a arrumar as coisas — disse eu a Irene.
— Para você também remexer no meu passado? — perguntou-me
Laura.
— Se quiser considerá-lo assim...
Ela fez um gesto ligeiro, majestoso, com a cabeça.
— Pelo menos você é honesta. Depois que ficar satisfeita, suba para
começarmos nossa conversa.
— Farei isso — disse eu. Estávamos de volta em nossa base de
antagonismo, e isso era bom.
Ela se dirigiu para a porta e depois virou-se devagar. Desde que
entrara no quarto, não tinha sequer olhado para seu retrato em seu lugar
na parede. Agora ela foi diretamente para ele.
— Faça o favor de virar o retrato disse-me ela. — Desde que você
me contou o que aconteceu, não vim aqui para ver. Agora tenho de ver
por mim.
Irene postou-se rapidamente ao lado dela, atenta ao que pudesse
acontecer, mas Laura parecia estar calma, quando virei o retrato, de modo
que o rosto lindo ficou de frente para nós, com aquelas horríveis
mutilações por baixo.
Ouvi que ela prendeu a respiração, ao ver a terrível desfiguração.
Depois, estendeu a mão e tocou no quadrado vazio que esperava, na
diagonal, o terceiro X.
— De quem é a vez? — murmurou ela, como eu já me perguntara.
— Quem será X?
— Se foi você quem fez essas marcas, é a única que pode saber isso
— disse eu.
O controle dela estava ruindo. Parecia estar passando mal, ali diante
do retrato.
Não! Eu nunca faria uma coisa dessas. Nem mesmo dormindo. Diga
a Leigh que eu nunca o faria, Irene!
— Sempre achei que não podia tê-lo feito — disse Irene. — Quer
que a ajude a ir lá para cima?
Laura sacudiu a cabeça a foi para junto da mala, onde ficou olhando
para as coisas esparramadas.
— Se eu for O, então basta eu fazer minha marca naquele espaço,
para barrar X para sempre. Só que acho que não vai ser assim tão fácil.
Depois que você acabar aqui, Leigh quer subir para falar comigo?
— Posso ir agora, se quiser.
— Não — quero ficar sozinha um pouco. Tenho de pensar nisso.
— De que adianta pensar? — perguntou Irene, zangada. — A Sra.
Jaffe tem de partir!
Laura virou-se e saiu do quarto, sem responder. Ouvimos os passos
dela na escada, antes de nos animarmos a começar o trabalho de arrumar
a mala.
Ajoelhei-me no chão, dobrando e arrumando, enquanto Irene
trabalhava com uma energia furiosa que a fazia deixar cair as coisas, uma
ou duas vezes.
— Acha que poderia ter sido a Sra. Jaffe? — perguntei, calmamente.
— Isso? Claro que foi. Eu a pilhei fazendo-o.
— Não, quero dizer o retrato.
As mãos dela ficaram paradas por um momento, enquanto ela
dobrava um vestido.
— Você disse que ontem entrou no quarto e encontrou a Srta. Worth
aqui, e que o Dr. Fletcher apareceu logo depois?
— Foi. Ela estava com a tesoura na mão, mas alguém podia tê-la
posto ali. Ou ela podia tê-la apanhado no chão.
— Havia tempo para se fazer esse estrago no retrato, enquanto você
estava lá fora?
— Talvez, deve ter sido feito depressa e toscamente. Mas... não
creio. Não creio que Laura teria tido tempo, mesmo que ela só fingisse
estar dormindo.
— Em qual outro momento você saiu do quarto?
Lembrei-me.
— Quando fui tomar banho, mais cedo. Devo ter ficado fora do
quarto por uma meia hora. Quando voltei, alguém tinha estado aqui. As
portas e janelas estavam fechadas, e o retrato tinha sido virado
novamente para a parede.
— Fui eu quem fez isso — disse Irene. — Arrumei o quarto para a
noite. Mas isso só levou alguns minutos. Depois não voltei.
— Então podia ter sido a Sra. Jaffe. Não tornei a olhar para o
retrato. O que acontecerá se lhe perguntarmos, desafiando-a?
Irene fungou, demonstrando seu desprezo.
— Ela mentiria, naturalmente. Seu único objetivo é causar
encrencas. Ela tem horror a ver o irmão casado com Laura Worth. É uma
mulher neurótica.
— Mas não foi ela quem cuidou de Laura quando esta teve o
colapso, há 20 anos?
— O irmão dela é médico. A Sra. Jaffe faria o que ele pedisse, sob a
supervisão dele. Agora é diferente. Ela está mais velha e mais infeliz. E
só Deus sabe por que eles se casaram.
— O que a Sra. Jaffe podia querer dizer, ao falar em provas?
Irene tinha pegado o vestido vermelho-veneziano que Laura usara
em Sussurros. Ela o pegou e o estendeu para a luz.
— Ela só estava tentando assustar a Srta. Worth e perturbá-la. A Sra.
Jaffe está mesmo boa para falar em provas. Está pisando em ovos.
Fiquei olhando para o vermelho-quente do vestido nas mãos dela.
— O que quer dizer?
Por um momento prolongado ela me devolveu o olhar. Depois,
jogou o vestido sobre um dos braços e foi até uma mesa comprida, onde
estavam empilhados grandes álbuns. Não eram álbuns arrumados, todos
de um feitio e tamanho, como os que Ruth usava para reunir as críticas e
comentários sobre Victor, e sim volumes de feitios variados. Quando
encontrou o que queria, Irene levou-o para o sofá e sentou-se com o livro
no colo. Folheando as páginas, ela parou numa delas e me estendeu o
livro aberto.
Eram recortes de um jornal diferente dos que eu vira no escritório
de meu pai. Os parágrafos que Irene mostrava referiam-se a Miles
Fletcher e sua irmã, quando foram interrogados quanto ao paradeiro, dele
na noite do assassinato de Cass Alroy. O relato era diferente, mas os fatos
eram os mesmos. Miles tinha estado num teatro com a irmã, no momento
em que Cass devia ter morrido. O álibi dele era irrefutável.
Olhei para Irene.
— Já li essas reportagens. Isso conta a mesma história. Então o que
quer dizer?
Ela apertou os lábios, como se reprovasse minha burrice.
— Sempre achei que havia alguma coisa errada com essas
reportagens. Não acredito no testemunho da Sra. Jaffe.
— Mas eles foram vistos juntos no teatro, naquela noite. Há outras
pessoas que testemunharam isso. Amigos que os viram no teatro.
— Saindo do teatro — disse Irene. — Sob a marquise do lado de
fora do teatro.
— Não, houve uma mulher que disse que os viu juntos durante a
peça.
— Uma cliente do Dr. Fletcher — disse Irene, com desprezo.
— Isso não significa necessariamente que ela teria de mentir,
cometer perjúrio. Por que você suspeita?
— A Srta. Worth conversou comigo — disse Irene. — Quando eu a
conheci, ela conversava muito. Ficava repetindo sempre a mesma coisa.
Como aconteceu? O que aconteceu no set naquela noite?
— Ela acha que Miles não estava no teatro durante a peça?
Com um gesto rápido, Irene tirou o álbum de minhas mãos, e
fechou-o, levando-o de volta para a mesa.
— Você é jornalista — disse ela, por sobre o ombro. — Porque
estou falando com você? Nada disso pode ser publicado. Não deve ser
comentado.
— Mas também sou filha de Laura — lembrei-lhe.
Ela veio para junto de mim, seus olhos pesquisadores e
interrogadores.
— Mas não, ao que eu saiba, uma filha carinhosa e dedicada?
— E como é que eu podia ser assim? — Ergui as mãos e as deixei
cair em meu colo, num gesto desamparado. — Ela não conquistou
propriamente esse tipo de dedicação.
— Você me perguntou a respeito da Sra. Jaffe. Eu só disse que ela é
mesmo muito boa para falar em procurar provas. E mostrei-lhe por que. É
só isso. O assunto está encerrado.
— E não tem mais importância, realmente, não é? — perguntei.
— Sempre terá importância para a Srta. Worth. Ela vive
atormentada pelo passado. A verdade a libertará ou destruirá, mas ela
ainda assim tem de procurá-la.
— Que coisa estranha dizer isso, que poderá libertá-la ou destruí-la.
Como isso pode ser possível, depois de tantos anos?
Ela deu de ombros e virou-se para a mala, o vestido vermelho ainda
no braço.
— Imagino que seja uma questão de culpa. Imagino que ela tenha
uma sensação de culpa pelo que aconteceu. Dois homens que brigaram
por causa dela, talvez. Eu já a ouvi dizer que se culpa. — Irene fez um
gesto para o retrato que estava pendurado, virado para a parede. —
Quando ela faz coisas desvairadas, talvez seja porque ela se culpe por
seus próprios atos do passado. Ela tem de se castigar pelo passado.
— Por que você vira o retrato para a parede? — perguntei. — Há
quanto tempo isso se faz?
— Desde o casamento dela — disse Irene. — Ela acha que o marido
não pode amá-la, como a amava, porque ela não tem mais aquele aspecto.
Uma noite nós a encontramos aqui, chorando diante do retrato. Foi ele
mesmo quem o virou para a parede, e eu o conservei assim.
Ela se levantou de onde estava, guardando uma pilha de roupas na
mala, e atravessou o quarto propositadamente para virar o retrato de novo
para a parede. Agora, mais que nunca, o retrato tinha de ser oculto.
— Às vezes — disse Irene —, tenho medo de que ela se queira
castigar. Esse foi um dos motivos por que concordei com o Sr. Thoresen
que você devia vir para cá. De certo modo, você parece ter-lhe feito bem.
Mas em outras coisas, não tenho certeza. Você tem seus motivos para
querer ficar aqui.
Eu nada disse e ela tornou a sacudir o vestido vermelho,
examinando-o com cuidado para ver se havia algum rasgão na fazenda,
ou falta de algum botão, algum sinal de estrago nos debruns. Depois,
começou a dobrá-lo.
— Não — disse eu, num impulso súbito. — Não o guarde. Esse
vestido me fascina. Já vi o filme Sussurros mais de uma vez e... Você
acha que ela se importaria muito se eu o experimentasse?
Irene olhou para mim com surpresa. Depois, sua expressão
suavizou-se.
— Ela não precisa saber. Vou arejar o vestido e passá-lo a ferro para
você. Acho que lhe vai ficar bem.
Eu lhe agradeci e voltei a trabalhar, ajoelhada no chão, ao lado da
mala. Não tinha certeza de qual fora o impulso que me inspirara. Só sabia
que tinha um estranho desejo de me ver dentro daquele vestido vermelho,
que Laura tinha usado de maneira tão admirável no filme feito do livro de
meu pai. O vestido se originara do livro dele. Ele até o chamara de
vermelho-veneziano. E quando se produziu a película, Laura Worth
insistira em usar um vestido semelhante na cena em que ela descia a
escada e entrava na sala, para encontrar o marido morto. Como ela
conhecia a história tão bem, o vestido devia ter emprestado
verossimilhança à cena, embora o filme fosse em preto e branco.
Sem eu ter consciência do que estava fazendo, tinha apanhado uma
pilha de cartas que estavam espalhadas pelo chão. Uma folha aberta me
chamou atenção — as palavras “Minha querida Laura” escritas na
caligrafia de meu pai. Afastei os olhos depressa da página e comecei a
dobrá-la. Quando olhei para Irene, vi que ela me estava observando, com
aquela inesperada suavidade para comigo ainda em sua expressão.
— Pode ler as cartas, se quiser — disse ela.
Eu juntei as cartas depressa e coloquei o maço dentro da mala.
— Não quero! Não são minhas!
Ela me contradisse.
— São suas. Você se originou das duas pessoas interessadas, não
foi?
— Não posso lê-las sem licença dela — disse eu. — E mesmo
assim, não estou certa de que havia de querer ler o que ele disse a ela.
Isso podia tornar-me ainda mais zangada com ela.
Irene ficou logo desconfiada.
— Você está zangada com ela?
— Por que não estaria?
— Vocês duas têm medo demais do passado. Talvez seja bom para
ela reconhecer que tem uma filha.
— Você já leu as cartas? — eu a desafiei.
Ela não pareceu importar-se. Sua atitude para comigo estava mais
delicada, e pela primeira vez parecia aceitar-me com mais simpatia e
confiança.
— Não as li — disse ela. — Só me preocupo com o presente. Desde
que a conheço, ela nunca olhou para aquelas cartas. Mas não quer jogá-
las fora.
Eu juntei as coisas que restavam no chão junto de mim e coloquei-as
na mala.
— Acho melhor eu subir. Ela está a minha espera.
— É — disse Irene. — Eu acabo isso aqui. E mais tarde lhe apronto
o vestido.
Mas não me levantei logo. Alguma coisa me preocupava. Alguma
coisa de que eu me devia lembrar, com relação à mala. Eu tinha a
sensação estranha de que alguma coisa estava faltando. De repente
ocorreu-me.
— Onde está o castiçal?
— Castiçal?
— Sim, o castiçal com o dragão enroscado na haste. Estava
embrulhado naquele vestido vermelho quando eu o tirei da mala ontem.
Eu vi Laura recolocá-lo na mala, pessoalmente. Quando ela o viu,
pareceu ficar perturbada. Mas não está aqui agora.
— Talvez a Sra. Jaffe o tenha levado — disse Irene. O tom dela era
baixo, reprimido, como se ela estivesse ocultando alguma coisa. Ela
guardou o resto das coisas e fechou a mala.
— Para que a Sra. Jaffe havia de querer aquele castiçal? —
perguntei.
Novamente ela deu de ombros.
— Srta. Hollins, acho melhor subir para falar com a Srta. Worth. Às
vezes, ela fica impaciente, se a fazem esperar muito tempo.
Irene sabia de alguma coisa a respeito do castiçal e por que Donia
Jaffe o levara. Mas não pretendia contar-me o que pensava e não fiz mais
perguntas. Deixei-a e fui depressa para cima, para o quarto claro de
Laura.
Ela me esperava, esticada na espreguiçadeira, sem sapatos, e parecia
ter-se livrado tanto de seu choque ao ver o retrato mutilado como de seu
aborrecimento com Donia por causa da mala.
— Que manhã deliciosa nós tivemos — disse ela, quando entrei.
Eu olhei em direção da janelona.
— Já foi consertada!
— Claro. Pedi a Irene que providenciasse antes de sair. Estou
contente por não termos tido de esperar. Não gosto de lembrar-me de uma
coisa dessas.
Nem eu queria ser lembrada de minha atuação.
Ela nada me perguntou sobre a mala, nem sobre Donia Jaffe, nem eu
lhe contei sobre minha conversa com Irene. Estávamos nos encontrando
num nível totalmente diferente, e eu deixei assim. Seria preciso voltar às
coisas desagradáveis, mas por enquanto eu a deixaria livre delas.
— Que tipo de plano você vai seguir no seu capítulo sobre mim? —
perguntou ela.
— O plano virá depois. Gosto de coligir o meu material primeiro,
depois ver que tipo de forma se apresenta. E, naturalmente, procuro
pensar em que é que o público há de querer saber a seu respeito.
— Você acha realmente que há quem se interesse?
Eu vi que ela não estava sendo modesta. Queria realmente saber o
que o nome dela ainda significava nos Estados Unidos.
— Lá em minha terra, você ainda é uma lenda — disse eu. — Como
a Garbo. Haverá grande interesse, se você romper seu silêncio, e
entusiasmo, se você resolver fazer outro filme.
A ideia a fez rir baixinho.
— Eu gostaria de poder acreditar nisso. Então, diga-me o que esse
suposto público gostaria de saber sobre mim.
— Vão querer saber qual sua aparência, é claro. E como é sua vida
atual. Se você sente falta dos dias em que era famosa e popular. Talvez
possamos começar com isso. Você sente falta disso?
Ela fechou os olhos.
— Deixei de sentir falta dessa vida há muito tempo. Era uma vida
de muito trabalho, sabe? Grande parte era monótona e frustrante.
Passava-se tanto tempo sendo preparada para uma cena, as vestimentas, a
maquilagem, os penteados. E depois havia a espera interminável para
uma cena ser filmada. A maior parte do tempo, havia várias tomadas,
enquanto o diretor procurava conseguir exatamente o que ele queria dos
atores. E havia sempre os ciúmes, as rivalidades mesquinhas.
Ela parecia estar tentando convencer-se.
— Imagino que devia ser difícil conseguir ficar no estado de
espírito adequado, nessas circunstâncias, com toda aquela bateria de uma
força de trabalho em volta de você, distraindo-a.
— Eu aprendi a me isolar. Mas já vi bons atores de teatro se
desmantelarem sob a tensão de tentar concentrar-se e reagir direito diante
da câmara. Naturalmente, insistia em um silêncio absoluto no set, quando
estávamos ensaiando qualquer cena em que eu representava. Não me
importava de ter gente em volta, se eles ficassem quietos e me deixassem
preparar-me para uma cena. Acho que eu tinha a faculdade de assimilar
um personagem depressa, e conseguir a emoção que eu quisesse. Ou pelo
menos, o seu aspecto externo. Nunca pertenci à escola dos atores
metódicos. Claro que a gente tem de estudar o personagem, compreendê-
lo, mas um bom ator sabe como representar o que deseja. Tem de sentir o
que está fazendo, mas uma parte dele tem de se manter atenta, e em
controle, senão o desempenho pode tornar-se piegas. Há quem diga que,
se você realmente chorar, ninguém mais vai chorar. No momento em que
gritavam “silêncio, todo mundo, vamos filmar”, eu estava sempre pronta
para o desempenho real. A não ser que alguma coisa me tivesse realmente
perturbado.
Ela se calou, sem dúvida lembrando-se de ocasiões em que ficara
perturbada.
— Isso aconteceu quando você fez Sussurros, não foi? As notícias
dos jornais deram que Miles esteve no estúdio naquela tarde, e que ele
brigou com Cass Alroy.
— Ele não tinha motivos para gostar nem para confiar em Cass —
disse Laura, sem pensar. — E Cass estava me tratando muito mal,
naquela tarde. Nada do que eu fizesse ele achava bom. Quando vimos as
provas, concluímos que as cenas teriam de ser refilmadas no dia seguinte.
— Sabe por que Cass foi ao estúdio naquela noite?
— Porque ele sabia que eu estava lá, é claro. Mas isso, minha
esperta reporterzinha, é tudo o que lhe pretendo dizer.
Passei logo para outro assunto. Pelo menos ela me levara um passo
mais para próximo de meu objetivo.
— Você se lembra de alguma cena especialmente difícil que tenha
representado, há alguma história a respeito delas? Sobre outros diretores
e artistas?
Ela começou a falar livremente e, pela primeira vez, estávamos à
vontade juntas. Eu podia fazer o meu trabalho e ela o dela, sem os
conflitos e tensões que existiam entre nós previamente. Talvez
devêssemos isso ao passeio com Gunnar na montanha. Ele nos libertara
por algum tempo, permitindo que ficássemos à vontade nesse plano
profissional. No momento, o outro plano estava submerso. Toda aquela
parte que encerrava uma noite em Estocolmo, as cartas de Victor Hollins,
o nascimento de um bebê, tinham afundado sob a superfície.
Ela me falou com facilidade, enquanto eu tomava notas ativamente,
e ela parecia estar gostando de falar. Evocou velhas histórias, de que se
lembrava — histórias que eu nunca vira publicadas — e as expôs para
mim. Houve uma vez em que a companhia dela tinha ido instalar-se no
deserto, na produção de Sands of Fortune e ela tivera uma discussão
horrível com o galã. Seus olhos estavam absortos nas recordações,
enquanto ela se perdia num misto de divertimento e indignação. Havia,
também, uma satisfação evidente em ter trabalhado bem, e seu
ressentimento quando ela achava que um diretor a dirigia mal. Que rosto
maravilhoso ela tinha para exprimir todos os tons de emoção! E, no
entanto, tudo era feito com a reserva de uma atriz de cinema. No palco, a
pessoa tinha de ser de uma dimensão maior que a da vida. No cinema,
devia haver um comedimento que impedisse que a tela grande
transformasse a mais ligeira expressão em exagero. A pessoa
representava para a câmara, e nunca além dela.
Ela agora usava de toda sua habilidade, ao falar comigo,
representando trechos de papéis para mim, mostrando-me o lado humano
de ser atriz, além do lado profissional. Às vezes, eu me esquecia de meu
lápis, pois ela me absorvia completamente. Eu era a plateia perfeita.
Quando ela parou, para tomar fôlego, eu me debrucei na cadeira.
— Você deve voltar! Eles estão a sua espera, lá. Você seria
maravilhosa de novo na tela. O país inteiro iria em bandos para vê-la. O
mundo havia de invadir as portas dos cinemas.
Ela me fitou com seus olhos escuros e ligeiramente fundos, os
lábios entreabertos, a respiração ofegante. Por um momento, ela
visualizou uma volta assim.
— Está tudo acabado. Estou muito velha para voltar.
— Você tem a idade que quiser. Você é Laura Worth. Você nunca
será velha! — Eu ouvia a convicção ardente em minha própria voz.
O sorriso dela era tristonho e vi que o antigo desejo continuava
vivo. Talvez nenhuma atriz dedicada o perdesse completamente. Em
Laura, os fogos só tinham sido amortecidos.
— Ontem, quando fiquei em seu quarto lá embaixo — disse-lhe —,
encontrei os sapatos azuis que você usou em Sands of Fortune. Ainda
havia grãos de areia agarrados à palmilha. O passado não está tão longe
assim.
Os olhos dela estavam cheios de lágrimas.
— Você me faz sentir que pode ser que eu ainda esteja viva, afinal
de contas. Mas não lhe devo dar ouvidos. Sei como um sonho desses
seria impossível.
A essa altura, eu estava empolgada por meu próprio entusiasmo.
Caminhei pelo quarto, gesticulando e falando, argumentando. Segundo
minhas ideias, tudo seria tão fácil. Uma palavra aqui e ali, eletrizar o
público, as ofertas surgindo. Ora, sem dúvida ela poderia até escolher a
companhia que preferisse. Havia novos diretores que ainda admirariam
seu trabalho e respeitariam seu talento. Estariam ansiosos por trabalhar
com ela.
Parei diante do quadro que Gunnar Thoresen pintara, minha atenção
momentaneamente atraída pelo navio no mar agitado, o litoral rochoso,
os céus tempestuosos e ondas cheias de espuma — mas de repente era o
rosto de Gunnar que eu via, a voz dele que eu ouvia.
— O que é que você está fazendo? Que coisa louca é essa que você
está fazendo com uma mulher que já foi tão massacrada pela vida, que
mal pode suportá-la? O que você acha que aconteceria se ela voltasse ao
cinema e fracassasse, como seria quase certo, no cinema de hoje?
As palavras morreram em meus lábios e deixei cair minhas mãos
entusiasmadas. Quando me virei devagar e olhei para ela, seus olhos
estavam fechados de novo — como se ela estivesse vendo um sonho, e
em suas faces havia um pouco de cor. Lembrei-me de quem ela era. Não
Laura Worth, a atriz, que eu podia honestamente admirar, e sim a mulher
que Victor Hollins amara, e que o desprezara por causa de sua ambição. A
mulher que se recusara a conservar a própria filha — uma mulher
gananciosa pela fama, o sucesso e uma carreira. Sem coração, quando se
tratava dos outros. Talvez até com uma morte a lhe pesar na consciência.
Ela abriu os olhos e olhou para mim e suas palavras eram trêmulas.
— Você quase me faz crer que isso seja possível, Leigh. Que coisa
estranha se fosse você a pessoa a me levar de volta aos filmes.
Eu me virei do quadro e voltei para a minha cadeira, peguei meu
caderninho e fingi que escrevia muita coisa nas páginas. Possibilidades
terríveis se apresentaram a meus olhos. Se fosse eu quem a convencesse a
voltar, a retomar sua carreira — e se ela fracassasse, como alguma coisa
me dizia que ela bem poderia fracassar —, eu teria conseguido para ela
um castigo muito maior que qualquer coisa que pudesse imaginar ao
deixar Nova York, com uma resolução tão sinistra.
Mas eu não podia ser assim tão vil. Não podia!
Ou será que podia?
— Conte-me a respeito de quando estava representando Maggie
Thornton — disse eu. — Todo mundo se lembra daquele filme. É um dos
bons. Victor Hollins gostou do que você e o diretor fizeram? Vocês
tiveram discussões?
Ela abandonou seu novo sonho e voltou ao antigo. Seu rosto
brilhava, ao falar sobre aquela época. Discussões? Parece que tinha
havido batalhas. Victor, que não era muito temperamental, não obstante
tinha lutado por sua história — lutado com Laura e com o Diretor. No
final, tinham chegado a um acordo, e talvez o filme tivesse ganhado com
isso. Ambos os extremos poderiam ter sido errados.
— Quando acabou, precisávamos daquela viagem à Escandinávia —
disse ela. — Havia feridas a sarar.
E uma nova ferida a ser iniciada. De novo, senti-me confusa,
dilacerada como antes entre o amor e o ódio. Fiquei satisfeita por haver
uma interrupção, quando Miles Fletcher bateu à porta e entrou no quarto.
Seus cabelos pretos estavam penteados por cima da cabeça, e eu o
imaginava cuidando deles com esmero. Como sempre, o espesso bigode
sobre seu lábio superior escondia a expressão de sua boca, e seus ombros
estavam ligeiramente curvos, quando se aproximou de nós.
Ele mal me cumprimentou ao atravessar o quarto para beijar o rosto
da mulher.
— Você está com melhor aspecto — disse ele. — Está mais corada.
Ela pegou na mão dele com afeto.
— Por causa de minha filha! Ela admira meu trabalho. Acha que
ainda há um lugar para mim nos filmes. Acredita que o público quer
minha volta, e que há diretores que me contratariam se eu estivesse
disposta.
De onde eu estava, senti a raiva surgir dentro dele. Ele virou a
cabeça para olhar diretamente para mim, e fiquei um pouco abalada pela
fúria em seus olhos.
— Que idiotice é essa?
Provocada daquele modo, defendi minha posição.
— Não há nada de idiota nisso. Por algum motivo que eu não
entendo, Laura se desligou daquilo que ela faz melhor na vida. Ela ainda
é uma grande atriz. Isso não mudou. Por que ela não haveria de voltar?
Ele me ia responder, mas Laura levantou-se depressa e foi inclinar-
se no ombro dele, pedindo com carinho.
— Não, não se zangue com ela. Isto são sonhos, apenas. E também
sabe disso. Já é muito tarde para eu retomar minha carreira. As mulheres
de minha idade que continuam a representar nunca deixaram de fazê-lo.
Para mim, houve um hiato. Mas Leigh me fez bem. Você pode ver isso.
Ela me faz mais bem que qualquer medicação. Estamos começando a
encher o caderninho dela com material. Eu nem sabia o quanto tinha para
lhe contar.
Por algum motivo, senti um alívio enorme. Laura sabia encarar com
realismo o assunto de sua volta a Hollywood. Ela já afastara da cabeça
minhas palavras de alerta. Um perigo — para mim, bem como para ela —
tinha sido removido.
Miles passou o braço sobre os ombros dela e absteve-se de alguma
explosão que poderia pretender contra mim.
— Você está agitada demais — disse ele a Laura. — Isso também
não é bom. Há nisso uma energia falsa, e depois virá um colapso. Quanto
tempo essas entrevistas vão demorar?
— Ah, muito tempo! — respondeu ela, despreocupada. — Não é
verdade, Leigh?
Concordei, com um gesto da cabeça.
— É verdade. Talvez eu não fique só num capítulo de livro. Talvez
eu pudesse fazer uma biografia completa de Laura Worth. Nunca se fez
uma, e certamente já é tempo.
— Que ideia ótima! — Ela estava obviamente encantada.
Miles Fletcher não estava nada encantado.
— Isso é impossível! Acha que quero que toda a vida de minha
mulher seja publicada para o público ler?
Ela murchou logo e eu vi que ela, tão altiva e corajosa, tinha sido
humilhada pelo marido.
— Seria a biografia de uma atriz — disse eu. — Não me interesso
pela vida particular de Laura Worth.
— Uma atriz também é uma mulher — disse-me ele, friamente. —
Você não lhe faria justiça se não achasse isso.
— Talvez fosse possível, Miles. — De repente ela estava
suplicando, como eu nunca a vira suplicar. Ela parecia realmente
importar-se com o que aquele homem pensava. Queria apaziguá-lo. —
Minha vida não foi assim tão medonha.
Ele olhou para ela friamente, como que indagando, e eu vi que ela
se preocupava com o que ele pudesse estar pensando.
— De qualquer forma, não sei se será possível fazer um livro —
disse eu. — Vamos fazer um pouco de cada vez e ver como as coisas vão.
Laura mudou de assunto depressa.
— Miles, Gunnar Thoresen nos convidou a todos para irmos a
cabana dele em cima do Ulriken amanhã. Você e Donia, Leigh e eu. Você
virá, não é?
Ele pelo menos não parecia ter objeções a Gunnar. Concordou,
embora um pouco relutante, e Laura pareceu ficar aliviada.
— Obrigado, querido. Quer falar com Donia?
— Por que não fala você com ela? Partindo de você, ela se sentirá
mais bem recebida.
A expressão de Laura mudou e ela recobrou um pouco de sua
altivez.
— Não quero falar com ela. Não me importa se ela vá ou não. Sabe
o que foi que sua irmã fez agora?
Miles afastou-se dela, com um ar de um homem cheio de problemas
femininos, nos quais ele não se quer envolver.
— Não sei, mas sem dúvida você me dirá.
— Não, eu não — disse Laura, depressa. — Conte você, Leigh.
Você não toma partido, como eu poderia tomar.
Miles foi até a escrivaninha de Laura e puxou a cadeira pintada.
Com seu assento de seda listrada. Sentou-se a cavalo nela, olhando para
nós duas.
— Está bem. Então, conte-me — disse ele.
Tudo naquele homem me revoltava, e vi que tive prazer em lhe
contar a respeito de Donia. Expliquei que Irene a encontrara espalhando o
conteúdo da mala de Laura pelo quarto lá embaixo. E que quando Irene
lhe perguntou o que ela estava fazendo, ela respondera que estava
procurando provas. Depois, nós tínhamos descoberto que ela tirara o
castiçal de bronze com o enfeite de dragão.
Miles levantou-se da cadeira tão de repente que ela balançou. Ele
não estava mais distante.
— Eu mesmo falo com ela — disse ele, e saiu do quarto.
Eu tinha de saber o que ia acontecer, e o segui.
Quando cheguei ao hall, Miles estava no quarto de Donia, e eu parei
em frente da porta aberta. Ele estava diante da irmã, o castiçal de bronze
sobre uma mesa, entre eles. Donia se dera ao trabalho de colocar uma
vela no castiçal, e o pavio estava aceso. A chama vacilava no vento que
vinha da janela, fumaçando um pouco.
— O que é que você está pretendendo fazer agora? — perguntou-lhe
Miles. — Para que foi remexer na mala de Laura?
Ele parecia muito alto, do outro lado da mesa, e Donia parecia
pequenina, em contraste. Sua carinha morena e mirrada estava contorcida
numa careta e os olhos escuros e vivos tinham um ar venenoso.
— Encontrei o que eu procurava — disse ela, tocando no castiçal.
— Não era isso que você procurou por tanto tempo?
— Se você veio aqui para provocar encrencas, vou mandá-la para
casa — disse-lhe Miles. — Leve esse castiçal para baixo e guarde-o onde
o encontrou. Ela já está bastante perturbada só de vê-lo.
Donia abaixou a cabeça com penteado de menino e apagou a chama
de um jeito que exagerou sua careta.
— E você sabe por que, não sabe? De qualquer forma, não me pode
mandar embora. Não teria coragem.
Miles virou a cabeça, num movimento rápido e vigilante, e me viu
ali de pé. Atravessou o quarto em duas passadas e bateu a porta na minha
cara. Voltei para o quarto de Laura e encontrei-a deitada na
espreguiçadeira. Mas dessa vez ela não estava apática. Esperava-me
ansiosa, e parecia estar animada por algum entusiasmo febril.
— Conte-me o que aconteceu! — exclamou ela, no momento em
que entrei no quarto.
Contei-lhe o que eu tinha visto e ouvido, inclusive as palavras sobre
o castiçal.
Ela cobriu o rosto com as mãos.
— Se eles sabem sobre o castiçal, então isso significa que Miles
deve ter estado no estúdio naquela noite. Acho que eu sempre pensei que
isso devia ser assim, mas não queria admiti-lo, nem para mim mesma.
Não sei como conseguiram o álibi, mas Donia deve ter mentido por causa
dele. Ele podia ter estado no estúdio e ter chegado ao teatro a tempo de
parecer estar saindo com ela, depois do espetáculo. É por isso que meu
retrato foi mutilado. Para assustar-me, para ameaçar-me. Se o X for
marcado naquele lugar, significa o fim de tudo para mim!
— Psiu! — disse eu. Fui ajoelhar-me ao lado dela. O perfume de
rosa silvestre que ela usava estava em seus cabelos, em sua pele, quando
eu a abracei e segurei até ela se acalmar. Eu esperava que ela me
empurrasse, mas não o fez. Não reagiu, mas deixou que eu a segurasse
até parar de tremer. Depois, saiu, delicada e um tanto altivamente, de
meus braços. Mas continuava com medo.
Tínhamos chegado à beira de um mistério, o precipício que
conduzia ao assassinato. Laura estava com medo, e eu tinha medo por
ela. Mas agora ela não queria agarrar-se a mim. Levantei-me e me afastei
dela.
— O que pode ter um castiçal a ver com o que aconteceu naquela
noite? — perguntei.
Ela respondeu sem cuidado, porque me aceitara.
— O castiçal foi a arma que matou Cass Alroy.
Olhei para ela, sem poder acreditar.
— Mas como podia ser? A polícia, em todas as notícias dos jornais,
sempre deu a mesma arma. O prendedor de portas de ferro, em forma de
gato. O mesmo prendedor de porta usado no set de Sussurros foi a arma
que o matou. Não foi?
Ela se virou, desamparada, de um lado para outro.
— Não sei! Não sei!
— Mas e o castiçal? — insisti. — Onde é que ele figura?
— Eu o levei embora. — As palavras eram um murmúrio. — Ah, eu
era tão forte, naquele tempo! Sempre sabia o que devia fazer. Sempre
podia tomar conta das coisas, quando era preciso, e não tinha medo de
nada. Pus o castiçal em meu camarim, com uma vela, e ninguém reparou
nele ali. Nem mesmo a polícia. Ninguém. Não era preciso procurar outra
arma, tinham o prendedor de porta. Mas sempre guardei o castiçal,
supondo que como uma espécie de... bem, de prova.
E Donia Fletcher tinha procurado “provas”.
— Mas não entendo nada disso — disse eu. — Não entendo por que
tudo isso é importante agora.
Minhas palavras parece que lhe fizeram ter consciência de mim. Ela
sentou-se na espreguiçadeira e em seus olhos havia uma súplica
profunda.
— Eu me esqueço de como você é jovem. Você era pouco mais que
um bebê, quando tudo isso aconteceu. Quando Miles voltar, será melhor
que você não saiba de nada, não compreenda nada. Não deve dizer uma
palavra de tudo o que eu falei a ninguém. Nem a Donia, nem a Miles,
nem a Irene. Nem a Gunnar.
Ela estava ficando desesperada e tive de tranquilizá-la.
— Prometo — disse eu.
Ela se acalmou um pouco, mas tornou a cobrir o rosto, aflita.
— Quando é que isso vai parar? — murmurou. — Quando é que
isso vai acabar? Quando é que vou saber?
— Não fique assim — disse eu. — Por favor, não se aflija tanto.
Ela parecia frágil como uma boneca, parecendo que ia quebrar-se.
Senti um impulso em mim de salvá-la do que quer que fosse que a
ameaçava, de protegê-la de perigos desconhecidos. Tornei a chegar perto
dela.
Ouvimos os passos de Miles no corredor, e Laura me indicou que eu
me afastasse.
— Não, Leigh. Ele não deve encontrar-nos numa cena comovente de
mãe-filha.
Consegui ficar bem afastada dela quando ele entrou no quarto.
Laura estava recostada na espreguiçadeira, sem um cabelo fora do lugar,
e nenhum sinal da mulher trêmula que eu abraçara alguns momentos
antes. Agora era eu que estava abalada — abalada e chocada. Chocada
pelas palavras que ela me dissera, e por minha própria reação de proteção
para com ela.
— Já falei com Donia a respeito da mala — disse Miles à mulher. —
Disse-lhe que colocasse o castiçal onde o encontrou. Um dia você tem de
me contar por que é que a existência daquele castiçal a preocupa. Mas
Donia nada tinha de remexer em suas coisas. Acho que ela tem uma
curiosidade insaciável. — Ele olhou para mim com aversão. — Talvez eu
possa ficar a sós um pouco com minha mulher?
Ela me deu o que poderia ser um olhar de súplica, mas eu não sabia
se ela queria que eu fosse ou ficasse. De qualquer forma, não tive
escolha. Saí do quarto e os deixei juntos.
Donia Jaffe estava atravessando o hall, carregando o castiçal de
bronze em ambas as mãos. Tinha tirado a vela. Ela me sorriu com um
certo triunfo e eu a acompanhei pela escada abaixo e entrei com ela no
quarto de Laura. Calmamente, ela abriu a mala e deixou ali o castiçal.
— Pelo menos, consegui examinar quase tudo — disse ela, animada.
Fiquei olhando para ela. Não parecia haver nada que eu pudesse
dizer.
Depois que ela baixou a tampa da mala e girou a chave na
fechadura, levou a argola de chaves para a caixa de sândalo e a colocou
ali. Depois, virou-se para mim.
— Então vamos todos passear em Ulriken amanhã? Que grupo
encantador! Acho que Gunnar Thoresen não tem a menor ideia do que o
espera.
— Acho que ele saberá lidar com o que aparecer — disse eu.
— É possível. Gosto desses noruegueses fortes. Mas nós podemos
pô-lo a uma prova. Até logo.
Ela saiu do quarto e me deixou ali, olhando para a mala de Laura,
com o castiçal escondido de minhas vistas. Sentia-me ameaçada de
perigos de todos os lados. Os receios de Laura eram reais. Sua
perseguição era real. O passado não estava morto e enterrado. Pairava
sobre ela agora, embora eu não pudesse ter certeza de onde estaria o
perigo, nem que forma ele poderia assumir.
Mas ainda havia mais coisas para me assustar. Eu não sabia o que
me alarmava mais — saber que eu poderia infringir a vingança máxima
sobre Laura, se resolvesse seguir o caminho por onde começara, e a
encorajasse num esforço para recapturar sua carreira, ou minha
consciência da estranha emoção adversa, que se apossara de mim quando
me ajoelhei ao lado dela e a abracei. Este gesto fora uma traição a mim
mesma e a meu pai, em alto grau, e eu ficava desanimada ao pensar que,
afinal, eu podia ser uma pessoa tão fraca. A moça que se ajoelhara ao
lado de Laura não era eu. Eu era a outra — a filha de Victor Hollins.
Aquela cujo ódio nunca morreria.
Agora, pelo menos, eu sabia que havia algo a ser descoberto naquela
casa. Uma coisa que vinha do passado e tinha uma importância tremenda
no presente. Algo que poderia pôr em minhas mãos uma arma mais forte
do que eu jamais esperara.
Donia tinha examinado a mala, mas eu não. Eu tinha ajudado a
guardar certas coisas, mas não tinha mexido em tudo. Havia outros maços
de cartas além dos de meu pai, e me repugnava menos ler aquelas do que
ler as que Victor Hollins escrevera. Agora, não havia regras de conduta
para me restringir — desde que meu propósito fosse claro.
Atraída irresistivelmente, fui até a penteadeira de Laura e abria
caixa de sândalo. Donia largara as chaves ali, mas, quando as tirei, vi que
um pedaço de papel dobrado tinha sido metido debaixo delas. Curiosa,
peguei-o e o abri.
O papel era simples, de embrulho, claro, e nele tinham sido escritas
letras de forma, em lápis vermelho, como um rabisco de criança. As
palavras me saltaram aos olhos.

“NÃO SABE QUEM É O?


SÓ OS INTROMETIDOS TÊM DE SE PREOCUPAR.”

As letras vermelhas pareciam queimar o papel e, ao relê-las, um


novo padrão começou a se formar em minha cabeça.
Laura tinha sido incriminada, parecendo ter desfigurado seu próprio
retrato, mas nem ela nem Irene acreditavam que ela o tivesse feito. Mas
Laura acreditava que a ameaça era contra ela — que ela era o O que X
ameaçava. Com aquele papel em minhas mãos, eu sabia que não era
assim.
O retrato estava pendurado naquele quarto comigo. Era eu quem ia
olhar para ele, não Laura. Era eu o O que enfrentava alguma ameaça
oculta. Havia alguém que não me queria naquela casa — alguém que
sussurrava em meu quarto de noite e que praticara aquele ato de
vandalismo no lindo retrato de Laura só para me assustar.
Comecei a rasgar o bilhete, mas depois pensei melhor. Aquilo, sim,
era “prova”. Guardei-o em minha bolsa, adiando qualquer decisão quanto
ao que eu faria com ele. Eu estava lidando com um alguém ladino e
psicopata, dado a meios infantis de me ameaçar.
Havia meios de lidar com um espírito desses, levando-o a se trair.
Numa mesa perto da janela, estava a tesoura que fora usada para
mutilar o retrato. Eu a peguei e olhei para a lâmina. Os mesmos
pedacinhos de tela e pigmento estavam grudados nela. Com um sorriso
meio sardônico para mim mesma, fui até o quadro e virei-o para fora. O
espaço do X continuava vazio. Com cuidado, rabisquei um O no quadrado
vazio. Agora o X estava certamente impedido de ganhar o jogo. Quem
quer que fosse que imaginasse o que quisesse.
Não pensei mais em vasculhar a mala.
9
A casa toda estava em atividade na manhã seguinte, para estarem
todos prontos quando Gunnar nos fosse buscar para irmos à montanha.
Laura, como sempre, não desceu para tomar café, tendo comido alguma
coisa no quarto. Donia, Miles e eu tomamos o café na sala de jantar e
estávamos todos meio desconfiados uns dos outros.
Só Irene não estava apressada, pois não ia conosco. Sua posição
naquela casa nunca era bem clara. Tanto Miles como Donia tinham uma
tendência para tratá-la como uma governanta paga. Por Laura, ela era
aceita em termos de maior intimidade. Eu não sabia o que é que ela
achava de sua situação. Preferia servir-nos à mesa e comer sozinha, com
calma, depois. No entanto, não demonstrava qualquer atitude de
desigualdade para com as pessoas a quem servia.
Assim que terminei o café, pedi licença e fui para o quarto, pôr as
roupas de inverno emprestadas. Vesti as calças de esqui de Laura, de
corte impecável, marrons, e um suéter bege com um desenho em
ziguezague verde-vivo. Verificamos que um par de botas marrons dela me
servia bem, e eu as estava calçando quando Irene bateu à minha porta.
Quando eu disse que ela entrasse, ela apareceu, com o vestido
vermelho-veneziano de Sussurros.
— Eu o passei para você — disse ela, dirigindo-se ao armário que
ocupava um espaço contra a parede. Era um armário onde se guardavam
algumas roupas de Laura, e ela as empurrou para um lado para abrir lugar
para o vestido vermelho. — A Srta. Worth me viu passando o vestido e
ela também quer experimentá-lo.
Olhei para ela, espantada, e vi que alguma coisa tinha deixado Irene
aflita. A rigidez de seus ombros e pescoço sugeriam que ela estava
querendo controlar seus sentimentos.
— Mas eu pensava que ela detestava ver esse vestido — disse eu. —
Pensei que ela não quisesse lembrar-se de nada associado a Sussurros.
Irene pendurou o vestido no armário e virou-se, devagar.
— Não sei o que lhe deu hoje. Não é só que ela esteja entusiasmada
com a ida à montanha. É como se de repente ela tivesse rejuvenescido.
Ela hoje é uma mulher diferente.
— Mas isso é bom, não é? — disse eu.
— Eu não estou gostando.
— Por que não? Por que é que uma mudança para melhor deve
preocupá-la?
O rosto fino e solene de Irene tremia, em sua preocupação.
— Ela está falando tolices. Está falando em voltar para Hollywood.
— Ah, não! — Minha exclamação foi involuntária. Amarrei os
cadarços de minhas botas e recostei-me no sofá, esperando que Irene
continuasse.
— Ela diz que você lhe disse que seria possível ela voltar a ser uma
estrela. Ela acredita em você. Diz que nada a impedirá. — Havia uma
acusação contida, na voz de Irene.
— Mas ontem ela disse que estava muito velha, e que era tarde
demais — protestei. — O que aconteceu para fazê-la mudar de ideia?
— Ela andou pensando melhor. Está descartando-se dos fatos e
substituindo-os por sonhos. Convenceu-se de que o país inteiro a espera.
É uma loucura completa.
Concordei que era, e me sentia fria e quente ao mesmo tempo,
devido a minhas dúvidas.
— Isso passa — disse eu. Eu não sabia se o que Irene me contara
era uma boa ou má notícia. Havia em mim aquela revolta que me puxava
em sentidos opostos, e eu não podia enxergar um rumo firme.
— Se você a encorajou nisso, então tem de desencorajá-la — disse
Irene, severamente.
O impulso contrário me acionou.
— E se for inteiramente verdade que há um público à espera dela?
— Srta. Hollins, se há um público para ela nos Estados Unidos, eles
a querem como a lenda que conhecem. Querem-na jovem e linda como
ela era, e com um talento enorme.
— O talento não morre — disse eu.
— Mas pode enferrujar. Ela não tem força para enfrentar as
modificações que teria de fazer. Só será humilhada e derrotada.
Era isso mesmo o que eu pensava, e nada disse.
Irene se dirigiu para a porta.
— Srta. Hollins, como filha dela, deve dissuadi-la dessa tolice
tremenda.
A campainha tocou e ela foi atender, deixando-me visualizando a
imagem perturbadora que surgira em meu espírito. Do outro lado do
quarto, o retrato desfigurado me olhava com olhos escuros e luminosos,
os lábios entreabertos e sorrindo de leve. O rosto de uma mulher que
esperava o amor avidamente. Eu me endureci contra seu encanto. Talvez
ela tivesse esperado o amor, mas também o jogara fora. O O, marcado
havia pouco, parecia reluzir na tela.
Ouvi a voz de Gunnar no hall e vesti depressa o casaco de lã quente
que Laura me emprestara, amarrei um lenço alegre na cabeça, por causa
do vento que devia haver em cima do Ulriken, e saí para o hall.
Laura tinha acabado de descer a escada, correndo, vestida numa
roupa elegante de contraste, branco e preto. Calças de esqui pretas e
suéter branco, sobre o qual ela atirara um casaco de couro preto, de
confecção cara. Tinha uma écharpe de lã branca e preta no pescoço. Suas
roupas de todo dia podiam ser antiquadas, mas seus trajes esportivos
eram obviamente elegantes e na última moda. Até seu boné de pala, em
couro branco, parecia ser de uma boutique elegante.
Ela foi cumprimentar Gunnar, que estava deslumbrante, de suéter
vermelho e calças de esqui cinza. Depois, me abraçou com um afeto
igual, enquanto eu ficava rígida, os braços dela em volta de mim. Ela
sentiu minha falta de reação e se afastou, embora sua expressão só
demonstrasse um ligeiro divertimento. Ela realmente não se importava.
Observando-a entendi o que Irene queria dizer. Não havia mais
depressão alguma nessa mulher, mas tampouco havia a energia
concentrada que eu vira antes. De algum modo, durante a noite, Laura
tinha se recomposto e estava inteira, sólida. Era uma mulher confiante,
segura e alegre — e tudo isso se baseava em algo que ela acr editava ser
real em si. Seu rosto desolado dava a ilusão de juventude, seus
movimentos eram fortes e seguros, sua voz cheia daquele timbre rouco
que tinha eletrizado as plateias. Gunnar viu a modificação
imediatamente, e lançou-me um rápido olhar indagador e talvez um
pouquinho desconfiado.
— Você está formidável, Laura — disse-lhe. — Está parecendo
Maggie Thornton.
Ele não poderia ter-lhe feito elogio maior e eu tive vontade de
beliscá-lo, fazer-lhe caretas — qualquer coisa para ele não encorajá-la
mais.
— Tudo graças a minha filha — disse Laura, alegremente. — Leigh
me fez ver que eu não devo continuar a desperdiçar minha vida. Nos
Estados Unidos, há um público à minha espera. Eles me conhecem. Vão
me acolher bem, quando eu voltar para casa.
Uma vez na vida, Gunnar ficou completamente surpreendido. Ela
interpretou seu olhar mudo e fixo como uma expressão de aprovação, e
balançou sua cabeça com o boné branco, como eu via tantas vezes na
tela.
— Sim! Vou voltar a Hollywood, ou a seu equivalente de hoje.
Ainda conheço gente influente. Vou começar a escrever cartas
imediatamente. Vou deixar que o mundo saiba que estou disponível.
Gunnar me lançou um olhar prolongado e frio e recuperou seu
controle.
— Não gosto disso, Laura. Não creio que eu goste de ver Laura
Worth representando papéis de personagens como avós, ou talvez de
velhotas desleixadas. Você deu ao mundo uma coisa especial, que ainda
existe. Acho que você não deve roubar essa mágica.
As palavras dele não a convenceram em absoluto.
— Que tolice! Gunnar, meu bem, você não conhece o cinema como
eu conheço. Existem muitos papéis excelentes para a mulher madura.
Naturalmente, não vou aceitar a primeira oferta que aparecer. Terei de ter
muita certeza da história e de meu papel nela, e de quais os atores com
quem vou contracenar.
Miles, que vinha descendo a escada seguido por Donia, ouviu suas
últimas palavras.
— Não se iluda! — disse ele, bruscamente. — Você acha que ia
poder ter alguma escolha? Claro que haviam de experimentá-la. Se você
quiser voltar, vai haver uma grande onda. Eles a explorariam num papel
para satisfazer a curiosidade do público. E, depois disso, puft! Quanto
mais cedo você desistir dessa ideia, melhor.
Por um instante a confiança dela falseou, mas ela lhe respondeu com
dignidade.
— Mesmo que eu tenha de ir sozinha, tenho de fazer isso. Mas eu
esperava que você pudesse ir comigo.
Miles não disse mais nada, mas sua expressão sombria não mostrava
qualquer consentimento, nem aprovação.
Pelo menos uma vez, eu concordava plenamente com ele. Mas era
evidente que Laura estava seguindo seu próprio rumo alucinado, e
simples palavras não alterariam sua direção. Tive uma visão repentina de
mim mesma como uma mulher que eu poderia tornar-me — uma mulher
que agisse cegamente, e que certamente tomaria o freio nos dentes. A
imagem não era lisonjeira.
Donia, com seu corpinho mirrado, envolto num casaco deformado
nos joelhos, tinha descido a escada aos pulos atrás do irmão. Ela ficou
olhando de um rosto para outro com a expressão alerta da intrigante nata
e, quando falou, surpreendeu-nos a todos.
— Não lhes dê ouvidos, Laura. Claro que você estará estupenda nos
filmes, como sempre foi. Não deve deixar que a desencorajem.
Laura aceitou essa estranha aliada com calma, sem se impressionar.
Seus modos nos mostravam que ela no momento não precisava nem de
encorajamento nem de desencorajamento. Sabia qual o caminho que
devia seguir e pretendia segui-lo. Olhando para ela, eu me senti um
pouco enojada intimamente. Lembrei-me do bilhete repelente que
encontrara na véspera na caixa de sândalo. No momento, estava no bolso
de meu casaco. Ainda mais enojada, pensei em qual deles me teria
deixado aqueles rabiscos.
Irene tinha arrumado uma cesta de piquenique para nós levarmos
para a montanha, e nós todos saímos, Gunnar carregando a cesta. Laura
correu na frente, para a escada, seus movimentos ágeis contrastando
espantosamente com os da mulher apática que eu vira inclinada sobre o
braço de Miles. Gunnar ficou para trás, esperando por mim, enquanto os
outros seguiam na frente.
— Então você fez isso? — disse ele, muito sério.
Eu não conseguia encará-lo nos olhos. Sentia-me envergonhada
constrangida, e detestava sentir-me assim.
— Eu não esperava que ela reagisse dessa maneira extremada. A
princípio, ela não o levou muito a sério.
— Então, você tem de desfazer o mal que fez, não é? — perguntou
ele. — No momento, ela está ótima. Mas, pela frente, há de encontrar
desastres e desilusões terríveis.
Eu me virei e fui para a escada que dava para a rua. Era isso que
Irene dissera — que eu tinha de desfazer o mal. Eu fizera Laura tomar
esse rumo, e agora tinha de fazer o impossível, tinha de mudar o fluxo da
torrente.
Gunnar estava falando por cima de meu ombro.
— É possível levar-se a maldade longe demais. Eu não esperava
esse extremo de sua parte.
Não consegui responder-lhe. Uma raiva me estava invadindo e eu
sentia minhas faces ardendo, sentia a tensão em meu corpo. No entanto,
ao mesmo tempo, havia uma ardência por trás de minhas pálpebras. Eu
pisquei com força. Um dia eu quisera merecer aprovação e amizade
daquele homem. No entanto, eu só conseguia afastar-me cada vez mais de
conseguir qualquer das duas. Todos me culpavam — a não ser Donia —
e, no entanto, eu realmente não tinha tanta culpa quanto eles pensavam.
Eu tinha realmente iniciado a torrente em seu curso, mas eu o fizera
impulsivamente, sinceramente — e agora não havia meio de fazê-la
desviar-se. Bastava olhar para Laura para saber disso.
O carro de Gunnar estava ao pé da escada. Laura e Miles sentaram-
se na frente com ele, e a cesta de comidas, Donia e eu fomos
empacotadas atrás. Quando o carro partiu, Donia me cutucou, com
malícia.
— Você se está saindo muito bem — cochichou ela. — você quer
que ela se destrua, não é? Esse é o melhor meio de todos!
Eu nada disse, detestando-a, fixando minha atenção nas vistas de
Bergen que iam passando. Eu não sabia mais o que desejava, como
raciocínio frio de meu cérebro. Emoções imprevisíveis pareciam se estar
apossando de mim, deixando-me abalada, sob o domínio delas.
Nós seguimos pela encosta do morro para o Ultiksbanen — o
prediozinho com o telhado vermelho, impressionantemente inclinado,
que abrigava os teleféricos que sobem o Ulriken. Os esquis e varas de
esquis de Laura e Gunnar tinham sido amarrados numa grade na capota
do carro. Quando ele estacionou, pegou-os, levando-os para dentro da
estação. Não havia necessidade de se calçar as desajeitadas botas de
esquiar, pois usavam-se botas macias e confortáveis para os passeios em
esquis.
Ficamos na fila com os outros na plataforma, esperando que
descesse um carro. Por trás da estação, havia uma cascata que caía por
cima de rochas negras e sumia num riacho. Acima de nós, os cabos
subiam em linhas prateadas pela montanha. Mais uma vez, era “tempo de
festival”, com o sol brilhando num céu azul e límpido e um dia que
parecia de primavera. Laura disse que já havia crocos brotando no
jardim.
O carrinho amarelo que nos levaria até o topo chegou na estação
com uma barulhada de maquinaria e todos os que cabiam entramos nele.
Havia um banco em cada extremidade, com o verniz bem gasto, mas
ninguém se sentou. Ficamos todos de pé, para ver a subida, os
esquiadores com seus esquis seguros verticalmente a seu lado. Miles,
com relutância, pegara a cesta de comida.
Gunnar reservou um lugar para Laura e para mim junto de uma vidraça e
nós nos encostamos à janela. O pico agudo do Ulriken erguia-se, negro e
proibitivo, sobre os campos de neve acima de nós. Sua moderna torre de
comunicações era um marco que podia ser avistado de toda a cidade de
Bergen, e parecia tornar-se maior à medida que nos aproximávamos dele.
Por baixo do carro, enquanto subíamos no precipício, as encostas mais
baixas da montanha mostravam-se de um verde-acastanhado, com
vegetação rasteira, da qual se elevavam rochedos negros. À medida que
prosseguíamos, víamos a trilha de pedestres que subia a montanha à
nossa direita, os alpinistas já caminhando com suas botas altas, alguns
com bordões nas mãos.
O grupo que ia no carro era, em sua maioria, de jovens, que
ostentavam a beleza sadia da juventude norueguesa. As garotas tinham
cabelos compridos e as cabeças descobertas, e os rapazes em geral
usavam barbas de vários comprimentos e feitios. Laura estava de pé a
meu lado, olhando tudo com o interesse de uma mocinha que nunca
tivesse subido aquela montanha. Vi os moços olharem para ela e trocarem
sorrisos, que ela respondia prontamente. Eu duvidava de que eles
soubessem quem ela era, mas ela possuía um traço atraente e eles
reagiam à juventude que ela usava como um estandarte e que legava a
prova ocular. Pela primeira vez, entendi a tese de que a idade cronológica
nada significa.
A altitude da montanha era de uns 600 metros, disse Gunnar. As
montanhas norueguesas não eram tão altas como apareciam nas fotos,
mas como se erguiam diretamente do nível do mar, a impressão de
altitude era grande. O carro seguia suavemente e passamos por uma
gôndola vermelha que vinha descendo. Acenamos para os ocupantes. Pelo
menos Laura e eu acenamos. O pessoal de Bergen de nosso carro achava
muito natural ver os ocupantes do outro carro.
Agora, havia manchas de neve pela montanha, e as rochas cinzentas
e negras sobressaíam num contraste vivo. O ar era mais frio, embora
houvesse pouco vento. Quando ventava muito, disse Gunnar, os carrinhos
do teleférico não corriam. Por baixo de nós, o panorama magnífico
estendia-se mais impressionante que nunca, com as montanhas em volta
assumindo novas características, vistas daquela altura. Víamos os lagos
distantes dos campos, e acompanhávamos os fiordes sinuosos pelo Mar
do Norte afora. Não eram os fiordes que eu vira nos filmes, com suas
encostas íngremes e montanhosas, e sim as reentrâncias mais suaves que
pertenciam a esse litoral de Bergen. Entre Ulriken e Flöyen, Isdalen, o
vale do Gelo, cortava seu caminho, com o sombrio lago Svardiket em sua
base.
Com um ligeiro sacolejão, o carro deslizou para dentro da estação
em cima, as portas se abriram e nós saímos em fila. Depois de subirmos
uma escada, chegamos a uma plataforma de observação, da qual a neve
fora varrida, e aí a força maior do vento nos atingiu. Havia um
restaurantezinho e loja de souvenirs ao lado e o pessoal que subira
conosco se espalhou em todas as direções — alguns para restaurante,
outros para observarem a vista de outra plataforma, além dos ansiosos de
esquiar, que caminhavam pela neve com seus esquis leves sobre os
ombros.
Donia aparentemente nunca tinha subido aquela montanha, e ela
pulava como uma criança, correndo de um lado para outro para
contemplar a vista. Miles franziu o rosto diante de seu entusiasmo
infantil e ficou com Laura, Gunnar e eu.
Gunnar não se dirigira diretamente a mim desde que tínhamos saído
de casa, mas agora ele procurou, com uma cortesia fria, mostrar os vários
locais interessantes, e eu escutei polidamente, detestando a barreira que
se erguera para impedir nossa amizade florescente, incapaz de destruí-la.
— Lá à esquerda, para lá de Fantoft, pode-se ver o lago em que
Grieg construiu sua residência de veraneio. A casa é hoje um lindo
museu. Você deve ir visitá-lo antes de partir.
Laura sorriu para mim.
— E isso deverá ser em breve. Se quer escrever aquele livro, terá de
ir a Hollywood comigo, sabe. Agora que já estou resolvida, quero agir o
mais depressa possível. Talvez eu alugue uma casa nos morros acima de
Los Angeles e fique lá, enquanto leio os scripts. Será muito melhor se eu
estiver à mão, nesse período preparatório. Portanto, claro que você terá
de ir conosco, Leigh.
Nenhum dos dois homens disse uma palavra. Gunnar e Miles
olharam-me com aversão, e eu os detestei. Mas, dessa vez, fiz um esforço
para me unir à oposição.
— Não vou para Hollywood — disse eu. — Nem você vai, Laura.
Como você mesma disse ontem, isso é um sonho. É tarde demais para
que ele se realize.
Ela me lançou um olhar de surpresa — surpresa triste — como se eu
a tivesse traído.
— Mas foi você mesma quem disse... ah, não importa! Não preciso
de sua animação, nem da de ninguém mais, agora. Há alguns dias eu
estava disposta a desistir, a morrer. Agora, estou pronta para viver.
Pretendo aproveitar minha oportunidade de viver. Nada há de modificar
isso.
Miles deu uma espécie de grunhido e afastou-se de nós, na
plataforma. Laura olhou para ele com um afeto pesaroso.
— Ele não aprova — disse ela, triste. — Eu gostaria que ele fosse
comigo, mas acho que não irá.
Gunnar pôs as mãos nos ombros dela e delicadamente forçou-a a
virar-se e olhar para ele.
— Laura, Laura! Se você acha que tem de fugir de alguma coisa,
tem minha casa, e minha mãe está lá esperando para acolhê-la. Lá você
estará segura. Pode descansar e ficar forte de novo. E nada do que você
teme a tocará.
Ela sacudiu a cabeça.
— Não, meu bem. Isso não é para mim. Agora, eu sei o que quero.
Sei o que tenho de fazer. Mas, primeiro, tenho de apaziguar o Miles, um
pouco. Ele está aborrecido comigo e não pode ficar assim. Esperem aqui
por mim.
Ela acompanhou o marido pela plataforma, caminhando com aquela
graça que lhe era característica — uma figura de chamar a atenção, de
preto e branco. Como sempre, as pessoas se viravam para olhar para ela.
Senti um nó na garganta e novamente aquela ardência nos olhos.
— E se vocês estiverem todos enganados? — exclamei para Gunnar.
— E se ela tiver razão?
Ele sacudiu a cabeça.
— Você bem sabe que não. Mas estou decepcionado com você
Leigh Hollins. Eu tinha esperanças de que quando conhecesse Laura você
se modificasse, ficasse mais compreensiva.
Eu engoli minhas lágrimas, engasgando-me.
— Há coisas demais para serem perdoadas! — exclamei. Ele que
acreditasse o que quisesse. O que me importava o que pensasse aquele
norueguês obstinado!
Ele começou a falar comigo calmamente, de maneira impessoal,
como se eu fosse uma turista que ele tivesse acabado de conhecer, e seu
jeito me ajudou a acabar com as lágrimas.
— Sabia que todos os anos há uma data em Bergen em que todos os
que quiserem saem para escalar as Sete Montanhas? Nós nos reunimos
em certo lugar e todos, homens e mulheres, tentam completar a rota,
subindo uma montanha e descendo-a, e depois a seguinte. Já fiz isso mais
de uma vez e tenho meu certificado branco e azul com o esboço das Sete
Montanhas para prová-lo.
— Isso certamente deve ser muito inspirador — comentei, azeda.
Ele sorriu para mim, sem alegria.
— Você está zangada. Acho que eu também estou um pouco
zangado. Vamos, vamos caminhar pela neve. Podemos ir até minha
cabana. A crosta está bem dura, e há muitas trilhas de esquis e de
pedestres. Esse ar das alturas esclarece as ideias. Nós todos nos
sentiremos melhor depois de nos movimentar. Olhe, Miles e Laura estão
a nossa espera.
Laura e o marido estavam na beira da plataforma, onde começava a
neve, e ela acenava para nós. Donia veio correndo de outro lado e
partimos pela neve, juntos. Eu não sabia se Miles fora apaziguado ou
não. Ele parecia meio emburrado e ainda com um ar de reprovação.
A encosta caía bruscamente do ponto alto que dava ao Ulriken seu
pico frontal, nivelando-se num vale raso, cheio de neve. Defronte, erguia-
se um segundo pico, negro e rochoso e com manchas de neve. Havia
trilhas a seguir e Gunnar tomou a dianteira, permitindo agora que Laura
carregasse seus próprios esquis, num bom estilo norueguês. Miles seguia
Laura, que não precisava de nenhuma ajuda, e caminhávamos em fila,
Donia e eu à retaguarda. Ali o esqui era praticado no campo aberto, como
era o mais comum na Noruega, e vários esquiadores passaram por nós
enquanto seguíamos pelo vale alto junto ao cume da montanha. Lá havia
um clube do qual vários dos esquiadores eram sócios.
Depois de uma curva, e do outro lado de um campo de neve
escondido da plataforma do funicular, avistamos a cabaninha vermelha de
Gunnar. Uma espessa manta de neve cobria o telhado, e compridos
pingentes de gelo pendiam dos beirais. Ele destrancou a porta e depois
que entramos, foi diretamente acender a lenha já preparada na lareira.
A cabana era formada de uma grande sala principal, mobiliada em
estilo rústico, com um tapete, de desenho verde e marrom, colocado em
diagonal no chão áspero. Havia uma mesa rústica e várias cadeiras, e
catres contra uma das paredes. Minha vista foi logo atraída para um
quadro por cima da lareira, e vi que era obra de Gunnar. Dessa vez era
uma cena na neve, com sua própria cabana vermelha brilhando contra um
céu tempestuoso.
— Você sempre pinta tempestades? — perguntei, enquanto ele
acendia a lareira.
Os gravetos pegaram fogo, e as línguas de chamas lamberam as
achas, acendendo-se vivamente. Ele colocou a grade de proteção no lugar
e levantou-se, limpando as mãos.
— Talvez minha vida seja sossegada demais — disse ele. — Os
noruegueses são aventureiros por natureza, de modo que gosto de
transmitir em meus quadros uma noção de conflito e luta. Na Noruega,
estamos sempre em luta com os elementos.
— Esse é um dos meus quadros prediletos, Gunnar — disse Laura.
— Depois daquele que você me deu. Leigh, você tem de ver alguns dos
outros. Esse rapaz desperdiçou o próprio talento, assim como eu fiz. Mas
nunca é tarde demais para mudar.
Donia movia-se com sua energia característica pela sala grande,
examinando tudo, tocando e cutucando. Miles sentou-se numa cadeira,
taciturno, olhando para Laura. De repente, ela se virou para ele.
— Você se importa se Gunnar e eu formos dar uma corrida, meu
bem? Provavelmente, será nossa última oportunidade, na temporada.
Talvez vocês três possam ir caminhar um pouco por aí.
— Nós nos arranjaremos — disse Miles, sem entusiasmo, e vi que o
olhar que Laura lhe dirigiu era ansioso.
Por algum motivo, eu não tinha imaginado que Gunnar e Laura se
afastariam juntos, e que eu seria largada naquela companhia indesejável.
Resolvi sair sozinha e andar pela neve. Ao ar livre, e longe dos outros,
talvez eu pudesse analisar minhas emoções confusas. Laura estava
impaciente para partir e, depois que Gunnar nos deu instruções para
conservar o fogo aceso, os dois saíram, calçaram os esquis e deslizaram
pela neve, usando as varas de esqui. Reparei que aquele tipo de esqui
deixava livres os calcanhares, de modo que se levantavam a cada passo.
Por alguns minutos, fiquei junto de uma janelinha, a olhar para eles, que
partiam, sentindo-me desamparada e inconfortável. No momento, eu não
estava nas boas graças de ninguém.
Atrás de mim, Donia se encarapitara junto da lareira, aquecendo as
mãos junto às chamas crepitantes, sua carinha mirrada de macaco
brilhando à luz do fogo. Estava sentada de pernas cruzadas, falando com
Miles, sem se virar. Como sempre, procurou armar encrenca.
— Naturalmente, você está percebendo o que Leigh está tramando?
Miles apenas grunhiu; Donia parecia estar habituada a essa acolhida
a suas palavras, e continuou, com uma ligeira maldade.
— Você sabe se insinuar, não é, Leigh? Lisonjeando-a desse modo!
Laura cada vez a aceita mais como filha. Está voltando-se para você,
confiando em você. E agora que a convenceu de que ela pode voltar para
o cinema, ela a adora. Muito inteligente de sua parte, Leigh. Sua mãe é
uma mulher rica. E, ao que eu me lembre, Victor Hollins deixou muito
pouco do dinheiro que ele ganhou na vida para a família. Laura não foi
assim. Ela tem investimentos no estrangeiro e dinheiro em bancos suíços.
E os testamentos sempre podem ser modificados, não é mesmo, Miles?
— Cale-se, Donia — disse Miles.
Virei-me para olhar para ela, espantada, e vi o olhar venenoso que
lançou ao irmão. Ela se levantou sem dizer mais uma palavra e saiu da
cabana, virando a gola para cima, suas pernas, nas calças amarelas,
reluzindo sobre a neve.
Miles levantou-se e fechou a porta que ela deixara descuidadamente
aberta. Depois, ele voltou à sua cadeira junto da mesa, sem comentar o
procedimento insultuoso da irmã.
— Sente-se, Srta. Hollins — disse ele.
Ainda, estava frio na cabana e eu ainda continuava com meu casaco
de lã. Enfiei as mãos nos bolsos, ao fazer o que Miles pediu. Meus dedos
tocaram o papel rabiscado a lápis vermelho que eu metera num dos
bolsos. Eu sentia que o que estava para vir seria desagradável, e estava
aborrecida com Gunnar e Laura por me deixarem naquela situação.
— Talvez seja tempo de conversarmos — disse Miles.
— Não creio que adiante muito conversar — disse-lhe eu. — Desde
o princípio o senhor deixou bem claro que não me queria aqui.
— E eu tinha razão, não acha?
— Como pode dizer uma coisa dessas? Depois que foi a meu hotel,
naquele dia, peguei um táxi e fui a Kalfaret. Eu vi o senhor e Irene
levarem Laura para fora da casa. Ela mal parecia estar viva. Era uma
mulher doente, sem esperança, sem energia, sem nada. Agora ela é Laura
Worth de novo. Isso não é alguma coisa? E não foi porque eu vim aqui?
— Talvez que um restabelecimento lento fosse mais seguro. Um
restabelecimento baseado numa melhoria real em sua saúde, em vez de
ser em estímulos nervosos.
Ele era médico e eu não podia propriamente dizer-lhe que nada
havia de errado com a saúde dela. Mantive um silêncio descrente e,
depois de uma pausa ele continuou. Novamente, tive consciência dos
olhos dele, que pareciam ter uma pálida luz cinza no fundo.
— É difícil saber qual sua motivação, Srta. Hollins. Creio que
Donia está exagerando, mas como podemos ter certeza? Encorajou-a a
voltar a Hollywood e ela tomou o freio nos dentes.
— O que eu disse foi dito impulsivamente. E depois ela não quis
pensar em voltar atrás.
— Eu gostaria de crer que a senhorita não lhe deseja mal — disse
ele, e eu sabia que ele não acreditava em nada disso. — A coisa pior que
lhe pode acontecer será voltar a Hollywood.
— Por quê? — perguntei, bruscamente.
Os olhos cinzentos faiscaram.
— À parte o fato óbvio de que é tarde demais para ela recomeçar
uma carreira de artista, há o perigo de se reabrir um velho caso de
assassinato. Os jornalistas a perseguirão como lobos.
— Perigo para quem? — perguntei, lembrando-me de que fora
sugerido que o excelente álibi de Miles não era tão bom quanto as
autoridades pensavam.
Ele me fitou por algum tempo, e o único ruído no mundo era o
crepitar do fogo do outro lado da sala, o único movimento, a dança das
sombras formadas pelas chamas. Senti uma aflição dentro de mim, e tive
consciência de suas mãos grandes, os punhos cerrados na mesa entre nós.
Lamentei que Donia não tivesse ficado na cabana.
Ele falou de maneira brusca e brutal.
— Como poderei convencê-la a ir embora? Você trabalha no mundo
comercial, uma importância que lhe pagasse bem por esse esforço
perdido serviria para a fazer partir? É óbvio que você não gosta de Laura,
mas sei que esperava obter alguma coisa dessa entrevista, e eu estaria
disposto, em termos razoáveis...
Ele era igualzinho à irmã. Lutei contra mais aquela ofensa,
interrompendo-o:
— Por que está tão ansioso de que eu me vá embora?
— Tenho em alto grau os interesses de Laura. Você não. Desde o
princípio, isso foi evidente. Agora, você lhe causou um mal maior do que
pode imaginar. Deve partir assim que for possível, e estou disposto a
compensá-la, se houver um prejuízo financeiro devido a sua partida.
— Deve mesmo estar desesperado para fazer uma oferta dessas! —
exclamei, indignada. — Não me vendo!
Ele ficou ali cerrando e abrindo os punhos. Passou-se um momento
antes de me responder.
— É preciso proteger minha mulher, seja qual for o custo — disse
ele.
Ataquei rapidamente.
— Então por que foi que a deixou crer que tinha feito aquela coisa
horrível ao próprio retrato, aquela mutilação com a tesoura?
— Não fui eu quem lhe disse. Embora naturalmente ela tivesse de
saber, algum dia.
— Mas ela tem certeza de que não o fez. Ela me disse, e Irene o
confirma.
Ele tornou a me dirigir aquele olhar prolongado e frio.
— Você estava lá. Você viu. Ela estava com a tesoura na mão. Ela a
estava segurando quando entrei no quarto e encontrei vocês duas.
— A tesoura podia ter sido posta em suas mãos. Ou ela podia tê-la
apanhado.
Ele parecia estar querendo negar isso, e prossegui depressa!
Se aquele jogo cruel tem algum significado, quem pensa que seja X?
O jogo não tem importância. Ela estava inconsciente, não sabia o
que estava fazendo.
Eu enfiei a mão no bolso e puxei o papel dobrado que encontrara na
caixa de sândalo.
— Acha que foi Laura quem escreveu isso e o deixou para que eu o
encontrasse?
O rabisco feio e infantil estava na mesa entre nós. Ele podia ler o
que estava escrito, mas não o tocou. Sua expressão era fechada, nem
aceitando nem admitindo. Eu sentia que nele estava-se acumulando fúria
contra mim.
— Por que quer mantê-la prisioneira? — indaguei.
Ele afastou a cadeira com uma brutalidade que me assustou e, de
repente, tive medo. Saí de minha cadeira e fui para a porta. Num instante
estava lá fora, correndo por uma trilha onde não afundasse na neve. Um
pouco adiante, Donia tentava fazer um boneco de neve, com um ar alegre
de prazer. A neve não prestava para o que ela queria, mas ela não parecia
estar percebendo. Levantou-se para olhar para mim, sacudindo a neve das
luvas.
Miles não me seguiu. Quando olhei para trás, eu o vi de pé do lado
de fora da cabana, os pingentes de gelo caindo dos beirais sobre a cabeça
dele. Depois de um momento, desapareceu na casa e fechou a porta.
— É bom mesmo correr quando ele fica com raiva — disse Donia,
animada. — As raivas de Laura não são nada comparadas com os acessos
de fúria que meu irmão tem às vezes. Há algum tempo que ele se vem
enfurecendo com você. — Ela parecia estar satisfeita com o que tinha
acontecido.
— Sabe para onde foram Laura e Gunnar? — perguntei-lhe.
Ela apontou, sorrindo, mas, apesar de sua maneira alegre, havia
despeito em seus olhos, quando olhou para mim. Virei-lhe as costas e
segui as trilhas dos esquis que conduziam pela neve. Não era fácil andar
e, dentro de pouco tempo o esforço me deu algum alívio. Tentei afastar
da cabeça a conversa com Miles. Talvez eu me tivesse assustado por
nada.
Lá em cima, parecia que eu estava sobre o mundo. Nada se via de
Bergen, nem do litoral. Só mais picos de montanhas, com sua coberta de
neve, erguiam-se em volta de Ulriken, estendendo-se interminavelmente
pela Noruega. Somente Flöyen, cheio de árvores, a não ser em sua face
rochosa, e não tão alto quanto os outros picos, estava quase livre de neve,
com o negro de seu penhasco rochoso e o verde-escuro de seus abetos e
pinheiros aparecendo sob o céu ensolarado. Logo em volta de mim
estendiam-se os campos de neve, e os esquiadores os atravessavam
ativamente, movendo-se de joelhos dobrados, deslizando. Perto dali, eu
via Gunnar, de suéter vermelho, e o preto e branco de Laura. Eles se
moviam com uma facilidade espantosa por uma encosta acima, como
fazem os esquiadores em campo aberto, e eu sabia que dentro de um
minuto teriam sumido de minha vista. Não adiantaria nada tentar segui-
los. Mas, enquanto eu olhava, eles chegaram ao topo e fizeram uma volta,
para começar a corrida em minha direção. Esperei onde estava e eles não
haviam percorrido mais que alguns metros quando vi o corpo de Laura
torcer-se, enquanto ela caía, escorregando. Ela gritou e ouvi sua voz
fracamente. Gunnar já conseguira parar. Num instante, ele tinha tirado os
esquis e se ajoelhara ao lado dela.
Eu sabia que ela estava ferida. Comecei a correr pela neve, às vezes
caindo de joelhos, onde a crosta se rompia debaixo de mim, mas sem me
machucar, até alcançá-los. Ela não podia ter-se ferido gravemente, dizia
eu comigo mesma. A neve teria abrandado a queda, e ela não estava
esquiando muito depressa. Mas não gostei do jeito de Laura torcer o
corpo, e avancei para ela atabalhoadamente e com aflição.
Quando eu os alcancei, Gunnar já tinha ajudado Laura a levantar-se
e ela estava examinando o tornozelo, com cuidado.
Está machucada? — perguntei, batalhando pela neve para chegar
junto dela.
Gunnar e ela se viraram para me ver aproximar, e Laura me deu um
sorriso tranquilizador.
— Torci o tornozelo, mas acho que não é grave. Não se apresse
assim, Leigh! Você parece que também andou caindo por aí.
Comecei a retirar a neve de minhas calças e casaco, percebendo pela
primeira vez meu estado emotivo, que era completamente descabido e
descontrolado. Eu correra para ela como... como uma filha corre para
uma mãe ferida. A noção disso me chocou e me acalmou antes de eu me
trair ainda mais.
Gunnar debruçou-se sobre o esqui de Laura, para ver o que causara
sua queda. Quando levantou os olhos, estava sério.
— A correia que prende a bota aos esquis foi danificada — disse
ele. — Só num dos esquis. De qualquer forma, você não poderia ter
esquiado muito tempo. Felizmente, aconteceu o mínimo — Você ter
caído.
Laura olhou para ele, de olhos assustados.
— Agora você quer acreditar no que está acontecendo? —
perguntou-lhe ela. — Não vai acreditar que isso foi propositado?
Pensei no retrato mutilado e na voz sussurrante, o papel escrito. Não
havia um perigo real em qualquer daquelas coisas — apenas uma tortura
mental. Um tormento que poderia no fim levar uma mulher desesperada a
algum ato alucinado? Mas Laura não estava mais desesperada. Ou
estaria? Quando Gunnar tirou seu outro esqui, vi que toda alegria e
entusiasmo anteriores de Laura tinham desaparecido. Voltara o medo —
um medo ainda maior do que antes.
— Não compreende? — disse eu a Gunnar. — Alguém deseja que
ela fique assustada e indefesa. Não sei por que, mas é verdade. É como se
ela estivesse sendo preparada para alguma coisa.
Gunnar não refutou minhas palavras, tampouco negou o estado
obviamente assustado de Laura, mas senti que essa espécie de maldade
estava fora de seu conhecimento e experiência. Ele era um homem que
vivia num mundo bem equilibrado, um mundo puro e sadio, em que essas
coisas não aconteciam.
Laura agarrou-se ao braço dele, experimentando o pé com cuidado.
— Quero voltar para sua cabana e tirar a bota, por favor. Miles há
de saber o que se deve fazer. Mas, Gunnar, meu bem, faça programas
para mim nos próximos dias, como você disse que faria. Ajude-me a
suportar esse período até eu poder ir para os Estados Unidos.
Gunnar pôs o braço em volta de Laura e olhou para mim
indagadoramente, por cima da cabeça dela. Ele não tinha armas com que
lutar contra um mal tão nebuloso. Parecia estar pedindo uma ajuda que eu
não sabia como prestar.
— Já estou fazendo planos — disse ele. — Consegui arranjar um
camarote no teatro para a noite de quarta-feira. E na segunda-feira vou
levar as duas para visitarem minha mãe. Vou tirar um dia de folga. Mas,
Laura, seria melhor nos contar o que lhe está acontecendo, não acha?
Certamente as coisas podem ser arranjadas, se soubermos quem a está
atormentando.
Laura sacudiu a cabeça, quase com violência.
— Não, não! Em breve partirei para Hollywood. O passado está
liquidado. Não deve tornar a nos envolver a todos. As consequências
seriam terríveis demais para suportar. Miles não quer voltar, e não lhe
pedirei para ir, mas eu irei sozinha, se for preciso.
— Miles estava no estúdio naquela noite em que Cass Alroy
morreu? — perguntei-lhe francamente.
Até aquele momento, ela me tinha tratado com simpatia, quase com
afeição, mas agora ela me olhou como se eu fosse a estranha que eu me
convencera a ser.
— Claro que ele não estava no estúdio. Isso é ridículo. Estava no
teatro com a irmã naquela noite. Todo mundo sabe disso. O que é que
você está querendo fazer? Que encrencas está querendo armar agora?
Eu me sentia muito mais cômoda diante da irritação dela comigo do
que quando tinha corrido para ela tão loucamente. Era assim que eu
queria que as coisas fossem.
— Seu marido acabou de tentar subornar-me para eu ir embora —
disse eu. — Por que ele tem tanto medo de mim?
— Se eu pensasse que conseguisse, também a subornaria para ir
embora! — disse Gunnar. — Você já causou mal demais.
Ele e Laura começaram a andar pela neve, Gunnar carregando os
esquis e o bastão num dos ombros, e sustentando Laura com o braço
livre, deixando-me a pensar no choque que suas palavras causaram. Eu
seguia com dificuldade no rastro deles. Laura mancava e eles
caminhavam devagar.
O ar puro naquele lugar alto, a beleza da neve limpa e das cadeias
de montanha vizinhas não me animavam mais. Eu me disse
repetidamente que agora me sentiria muito melhor. Não estava mais
querendo agradar a ninguém, só a mim mesma. Era essa a causa a que eu
devia ter servido desde o princípio.
Laura cansou-se antes de chegarmos à cabana e, quando alcançamos
uma saliência rochosa, Gunnar ajudou-a até lá e ela sentou no com
cuidado numa pedra, para descansar o pé. Gunnar sentou-se ao seu lado,
olhando para ela preocupado, enquanto eu ficava ali ao lado, na neve,
como se não fizesse parte do grupo.
— Quer que eu solte sua bota? — perguntou Gunnar.
— Não. É melhor conter a inchação até encontrarmos o Miles. Não
dói muito quando posso descansar.
Outro carro tinha chegado com esquiadores, moças e rapazes
passaram voando por nós pela neve. Se um dia eu tornasse a ir à
Noruega, havia de aprender a esquiar, pensei, ao acaso. Mas claro que eu
nunca voltaria ali, e certamente nunca pediria a Gunnar para me ensinar.
Essa ideia me deprimiu ainda mais — sem motivo.
Laura virou a cabeça e olhou para mim.
— Sente-se, Leigh. Você me está dando dor no pescoço. E há um
assunto sobre o qual lhe quero falar.
— Prefiro ficar de pé — disse-lhe.
Por um momento, seus olhos claros e brilhantes me examinaram.
Depois, ela virou a cabeça e, sem olhar para mim, falou numa voz tão
baixa que eu mal podia ouvir.
— Quer me contar como foi que seu pai morreu, Leigh? Eu gostaria
de saber.
O fluxo de sangue que a raiva fez subir à minha cabeça me deixou
meio tonta. A última coisa no mundo sobre a qual eu queria conversar
com Laura era a morte de meu pai. Ela não tinha direito algum de saber a
respeito disso. Em especial, não tinha direito de saber que ele
pronunciara o nome dela bem no fim, magoando Ruth cruelmente.
— É melhor contar a ela — disse Gunnar, com severidade.
Então eu contei aos dois. Mas omiti o que era essencial. Disse
brevemente que ele tivera um ataque cardíaco quando trabalhava num
romance que, segundo ele esperava, lhe restituiria a preferência do
público. Eu tinha lido os capítulos que já estavam escritos. Era um
romance muito bom, uma pena que ele não o tivesse terminado. Minha
mãe e eu o levamos para a cama e chamamos o médico. Mas já era tarde.
Ele morreu nos braços de minha mãe.
Quando eu era pequena, tinha chamado Ruth de “mãe”. Mas depois
de crescida, chamava-a de Ruth. Depois de saber a respeito de Laura
Worth, nunca mais consegui chamar Ruth de minha mãe. Mas agora eu a
chamei assim, e o repeti.
— Sei. — Laura tinha encolhido os joelhos e pousou a testa sobre
eles. Ela tirara o boné, e sua cabeça com o coque grosso de cabelos
castanhos na nuca parecia, de certo modo, vulnerável e comovente —
para qualquer pessoa, menos para mim. Eu desconfiava até da atitude
dela. Estava pedindo compaixão, piedade. Mas agora eu estava
prevenida, e nada disso lhe dei.
Depois de um momento, ela falou.
— Obrigada por me contar, Leigh. Eu sempre ficaria pensando.
Estou contente de que tenha sido uma morte rápida, que ele não tenha
sofrido e que a família dele tenha estado lá.
Gunnar pôs a mão de leve no ombro dela e eu vi que ela tinha
conseguido a compaixão que queria — pelo menos, da parte dele.
Em meu estado de espírito amargo e perverso, procurei um meio de
ferir, de penetrar sua própria vulnerabilidade. Eu tinha de feri-la por
causa de minha própria dor.
— E já que estamos falando a respeito de maridos e esposas —
disse eu —, quer contar-me o que aconteceu com a primeira mulher de
Miles?
Gunnar fez um barulhinho de impaciência. Laura não levantou a
cabeça, mas respondeu-me.
— Morreu.
Não sei por que fiz a pergunta seguinte. Talvez simplesmente
quisesse obrigá-la a falar sobre o que lhe era desagradável.
— Como foi que ela morreu? — perguntei.
Só aí é que ela olhou para mim, os olhos límpidos e um tanto
indagadores.
— Suicidou-se. Caiu de uma sacada alta da casa deles em
Hollywood. Foi Donia Jaffe quem a encontrou. — Laura estendeu a mão
para Gunnar. — Ajude-me a levantar-me, por favor. Estou pronta para
continuar.
Novamente eles seguiram à minha frente, e novamente eu caminhei
atrás, pensando, um tanto espantada, sobre o que acabara de saber. Não
podia deixar de imaginar o que teria levado a primeira Sra. Fletcher a se
atirar de uma sacada para se matar. E o que é que Donia Jaffe estava
fazendo no local, em casa do irmão?
10
Embora mancando muito, Laura conseguiu chegar à cabana. Antes
de entrarmos, ela me pediu para nada dizer a Miles sobre a correia
danificada.
— Depois eu conto — disse ela. — Por ora, deixe que pareça que
pensamos que foi um acidente.
Miles e Donia estavam sentados juntos, diante da lareira,
aparentemente absortos em alguma discussão de família, interrompida
quando entramos. Era óbvio que eles não estavam dando-se bem,
intimamente.
Miles viu logo que Laura estava mancando e a levou para sentar-se
numa cadeira, enquanto ele lhe tirava a bota. Nós todos ficamos olhando
enquanto ele examinava o tornozelo ligeiramente inchado, apertando para
sentir se havia alguma anormalidade no osso, comparando o tornozelo
machucado com o são. Depois, mandou que Gunnar fosse quebrar alguns
pingentes do telhado baixo fora da Cabana. Com estes, fez compressa de
gelo, embrulhando numa toalha, apoiou o pé dela em outra cadeira e
disse que, achava, não se tratava de coisa grave. Era provável que não
houvesse fratura.
Várias vezes, enquanto ele tratava de Laura, eu me pilhei
examinando Donia. Como sempre, ela não parava quieta. Olhava para o
irmão por alguns momentos, e depois se agitava pela sala. Por fim,
Gunnar, talvez por estar impaciente com nós duas, sugeriu que Donia e
eu abríssemos a cesta do almoço — e isso nos deu o que fazer.
Laura comportava-se animadamente, com coragem — é claro que
ela agiria assim. O primeiro choque de fraqueza tinha passado e, se o fato
daquela correia danificada propositadamente a estava preocupando, ela o
escondeu bem. Disse a Miles alegremente que íamos todos ver a peça do
Teatret, o Teatro Nacional, na noite de quarta feira. Depois de começar o
festival, o teatro seria reservado para os espetáculos musicais, mas, por
enquanto, estavam levando Arsenlkk og Gamle Kniplinger — a versão
norueguesa de Arsenie and Old Lace —, e isso seria divertido. Miles não
se mostrou muito entusiasmado.
— Vamos ver se você poderá andar até lá — disse ele.
Depois de pôr a compressa de gelo sobre o tornozelo de Laura por
uns 10 ou 15 minutos, Miles amarrou-o bem com o seu próprio lenço e
insistiu para ela ficar com o pé para cima até que voltássemos para casa.
Estranhamente, a despeito dos acidentes e emoções aflitivas,
estávamos todos com apetite e comemos o almoço, que Irene preparara,
com muito gosto. Não obstante, nossas outras atividades estavam
canceladas. Se Miles esperava passear pelo cume da montanha com
Laura, isso agora estava fora de cogitação. E se eu esperava que eu e
Gunnar pudéssemos fazer o mesmo, essa oportunidade também estava
perdida. A barreira entre nós erguia-se mais alta que nunca, e eu
suspeitava de que ele não havia de querer ficar sozinho comigo. Agora,
nosso único propósito era levar Laura com segurança para casa, com um
mínimo de desconforto para ela.
Donia e eu arrumamos os restos do almoço na cesta, enquanto Miles
calçava a bota de Laura, prendendo-a frouxamente.
Pouco antes de sairmos da cabana, lembrei-me de uma coisa e
comecei a procurar o bilhete que eu deixara em cima da mesa. Miles me
viu procurando.
— Joguei-o no fogo — disse ele, com sarcasmo.
Ninguém pareceu notar essa troca de palavras. Eu devia ter tido
mais cuidado com aquele papel. Certamente não devia tê-lo deixado com
Miles.
Quando nos aprontamos, partimos todos pela neve para a estação do
funicular. Donia ia na frente, deixando-nos para trás, em sua pressa
nervosa, e Laura, apoiando-se fortemente sobre Miles, atrás dela. Eu
esperei com Gunnar, enquanto ele apagava o fogo e trancava a cabana.
Depois, partimos atrás dos outros. Gunnar novamente carregando os
esquis.
Quando saímos da cabana, ele parou a meu lado um momento e,
inesperadamente, o olhar dele não era tão frio e crítico quanto antes.
— Você está passando por um mau bocado — disse ele, com
delicadeza. — Às vezes, dói a gente crescer.
— Não sei o que você quer dizer — disse eu, virando-me para
acompanhar os outros.
— Sabe, sim. — Ele emparelhou-se comigo. — Você está
atormentada entre dois caminhos e não sabe qual seguir.
Dessa vez eu lhe respondi com veemência.
— Sei muito bem que caminho devo tomar.
— Acho que não tem certeza. Mas tenho impressão de que no fim
você há de vencer.
— Sim — disse eu. — No fim, eu hei de vencer. — Mas eu não
queria dizer a mesma coisa que Gunnar Thoresen, e não tornamos a nos
falar até a estação. Depois daquele momento de brandura, ele novamente
se voltara contra mim e eu não podia evitar isso. Era verdade que eu tinha
crescido. Eu não era a mesma pessoa que subira no carro. Alguma coisa
dentro de mim se endurecera contra Laura. O próprio fato de eu ter
estado tão perto de me entregar a ela fortaleceu meu propósito. No
entanto, eu me sentia deprimida, por algum motivo, e com muito frio,
naquele cimo de montanha.
Nosso grupo desceu sozinho no carro, onde foram colocados vários
blocos de cimento para fazer peso e impedir que ele balançasse na
descida. Dessa vez, Laura sentou-se num banco, aliviada, e Miles sentou-
se a seu lado. Ela parecia agradecida pelos cuidados e ajuda dele, e fiquei
pensando naquela afeição tardia e mal dirigida, da parte dela. Donia
ocupou uma janela, e eu, outra. Gunnar ficou à parte e eu me sentia
estranhamente só, bastante infeliz e rebelde.
A encosta íngreme da montanha passava por baixo de nós. O carro
que subia passou ao lado. O telhado vermelho inclinado do Ulriksbanen
se erguia em nossa direção, lá embaixo. O sol da tarde tocava os telhados
de Bergen, fazendo as Sete Montanhas reluzirem de luz. Aquela era uma
das cidades mais belas da Europa, segundo eu já ouvira Laura dizer, e eu
bem podia acreditar. Mas não era lugar para mim. Eu não tinha mais
certeza de poder escrever um capítulo sobre Laura Worth, quanto mais
um livro. Estava começando a conhecê-la bem demais e não conseguia
mais separar a atriz da mulher.
Acho que a mesma sensação de depressão nos envolvia a todos, na
volta de carro a Kalfaret, pois não conversamos, e nossos agradecimentos
a Gunnar pelo passeio foram meio forçados, embora Laura tentasse
mostrar um pouco de entusiasmo.
Irene recebeu-nos à porta e viu logo o machucado de Laura. Ela
quase empurrou Miles para o lado para ajudá-la a subir as escadas. Miles
acompanhou as duas e Donia correu atrás deles. Gunnar e eu ficamos
sozinhos no hall escuro e ele me estendeu a mão.
— Vamos subir o Ulriken uma outra vez — disse ele. — Aí será
melhor. Enquanto isso, vigie-a.
Tudo mudara e eu não podia apertar a mão dele num trato daqueles.
Sacudi a cabeça.
— Não sou responsável por ela. Vou para casa assim que puder.
— Então vai fugir?
Comecei a responder, mas lá de cima veio um som que me gelou o
sangue. Laura estava gritando como eu nunca a ouvira gritar. Gunnar
subiu a escada, correndo, e eu o acompanhei.
No quarto, Miles segurava Laura nos braços, procurando acalmar
seus soluços convulsos. Irene pairava por perto, juntando seus pedidos de
calma, tentando também aquietar Laura. Donia estava afastada e um
rápido olhar em sua direção mostrou-me que sua expressão era de uma
inocência estudada.
O que aconteceu? — perguntou Gunnar a Irene.
Ela sacudiu a cabeça.
— A Srta. Worth entrou nesse quarto e começou a gritar. — Irene
olhou em volta, sem saber o que fazer. — Nada vejo que pudesse
perturbá-la desse jeito.
Eu também olhei — não no nível dos olhos, como eles estavam
fazendo, mas pelo chão. Vi logo o gato de porcelana. Estava colocado ali
como prendedor de porta, na porta aberta do quarto de Laura — um gato
grande e pesado de uma porcelana cor-de-rosa, com um nariz rosa-forte e
olhos azuis com pestanas espessas. Não era feito de ferro, como aquele
outro — o gato supostamente usado para matar Cass Alroy —, mas era
um prendedor de porta em formato de gato.
— Lá está — disse eu para os outros, e toquei-o com o pé. — Acho
que foi isso que deve tê-la assustado. Nunca vi isso aqui.
Os outros olharam e tentei rapidamente estudar as fisionomias deles.
Todos, a não ser Donia, pareciam estar chocados e perturbados. Ela tinha
um ar de malícia.
— Tire isso daqui.— ordenou Miles. E depois, para Laura: —
Pronto. Não há nada para se perturbar. Com certeza é alguma brincadeira
de Donia. — Ele olhou zangado para a irmã, por cima do ombro de
Laura.
Ela tinha começado a se esgueirar para a porta, mas Gunnar
interpôs-se, calmamente barrando-lhe o caminho.
— É melhor você nos dizer — disse ele.
Ela perdeu seu ar ardiloso e pareceu estar um pouco assustada,
como se fosse romper em prantos.
— Foi só uma surpresa para Laura que comprei numa loja em
Torgalmenning — gemeu ela, num protesto de inocência. — Era um gato
cor-de-rosa tão engraçado, e achei que ela iria gostar. Ultimamente ela
anda aborrecida comigo e eu... queria compensar pelo caso da mala e...
Laura levantou a cabeça do ombro de Miles, soltando-se de seus
braços.
— Desculpem — disse ela, debilmente. — Ainda estou muito
nervosa. Donia provavelmente nem pensou...
— Ela pensou, sim — interrompeu Miles, mas ele estava
observando a esposa meio fria e objetivamente, como qualquer médico
poderia observar um paciente.
Gunnar tinha se afastado da porta e Donia deu um ganido curioso—
como um animalzinho fugindo do caçador — e lançou-se para fora do
quarto.
Laura mancou para a espreguiçadeira e sentou-se, erguendo o pé,
ainda calçado, para suas almofadas.
— Por favor, vão embora — disse ela. — Por favor, todos menos
Leigh. Ela agora pode ajudar-me, se quiser. Não quero mais ninguém.
Miles começou a se opor, mas ela lhe virou o rosto. Acho que Irene
também queria ficar, mas Laura não queria ninguém, a não ser a mim. E
eu não queria ficar, em absoluto.
Gunnar me falou com calma, antes de sair.
— Eu gostaria de saber como ela passou. Quer telefonar-me amanhã
para a minha casa, por favor? E na segunda-feira, se Laura puder, virei
apanhar as duas para visitar minha mãe.
Eu concordei com a cabeça e eles todos foram embora. Depois que
Irene levou o gato cor-de-rosa e fechou a porta, fui postar-me ao lado da
espreguiçadeira, olhando para Laura.
— Por que você quis que eu ficasse? Já basta de fingimento entre
nós.
Ela tirou o boné branco e deixou-o cair no chão. Seus cabelos
castanhos formavam ondas suaves, partindo da testa, e seus olhos
estavam arregalados. Achei que ela ainda estava sofrendo do choque de
encontrar aquele prendedor de porta.
— Você me detesta mesmo, não é? — perguntou ela.
— Vamos dizer que encontro pouca coisa de que gostar em você —
concordei. — A não ser como atriz.
Ela balançou a cabeça, como se estivesse satisfeita.
— Você me despreza e detesta, mas nunca faria mal algum. Não
propositadamente. Posso confiar em você.
Isso era espantoso e não era o que eu queria.
— Se quer dizer que eu nunca a agrediria fisicamente, tem razão.
Mas é melhor não confiar em mim em mais nada.
— Combinado, Leigh Hollins. — Ela me estendeu a mão num gesto
infantil, franco.
Eu queria rejeitar aquela mão aberta. Queria rejeitar qualquer
confiança que ela depositasse em mim. Mas, em vez disso, dei-lhe a mão
com relutância e senti o aperto quente de seus dedos nos meus, selando
algum trato que eu não queria fazer e nem compreendia.
— Agora, se quer me ajudar a tirar as botas e me trazer meus
chinelos... — disse ela.
Como ela estava acostumada a ser servida! — Ajudei-a a tirar o
casaco, trouxe os chinelos do quarto de vestir ao lado, entre o quarto dela
e o de Miles, e afrouxei a bota junto de seu tornozelo inchado.
— Irene é quem devia estar fazendo essas coisas para você — disse
eu, bruscamente.
— Irene é contra minha ida a Hollywood. Vai passar-me sermões e
não quero ouvi-los. Você quer que eu vá. Acha que vou seguir meu novo
sonho para chegar a um desastre total, como pensam Miles e Gunnar.
Mas, por esse mesmo motivo, você me encorajará a ir.
Fui mais bruta com a outra bota. Puxei-a e larguei-a no chão com
barulho. Ela estava sempre dez passos à minha frente, fosse qual fosse a
direção que eu tomasse.
Miles bateu à porta e entrou. Ela olhou para ele com desconfiança.
Acho que ela começava a desconfiar de todos.
— Vamos fazer uma atadura decente nesse tornozelo — disse-lhe
ele, e começou a trabalhar com calma e eficiência.
Eu tirei o casaco quente que ela me emprestara para subir a
montanha e fui até o quarto de vestir, para pegar o robe de caftan dela.
Fingi que estava ocupada com os cabides, mas pela porta observei Miles
que trabalhava. Se é que ele tinha alguma afeição pela mulher, não o
demonstrava, naquele momento. Depois que a atadura elástica estava
bem colocada, ele se levantou ao lado dela.
— Não pise nesse pé — recomendou. — Fique com ele para cima, o
tempo todo.
— Claro — disse ela, obediente. — Obrigada por seus cuidados,
querido.
Ele me lançou seu costumeiro olhar de desagrado e saiu do quarto
sem lhe dar resposta. Depois que ele se retirou, ela se sentou, pôs os pés
no chão e levantou-se lépida.
— Ah, assim está melhor! A atadura ajuda. Não há nada de muito
grave com meu tornozelo. Mas vamos deixar que eles se preocupem um
pouco.
Ela foi para o centro do quarto, quase sem mancar, e tirou o suéter
branco pela cabeça. Depois tirou as calças de esqui pretas, inteiramente
natural ao se despir, e vestiu o caftan que eu segurava para ela. Suas
dobras cor de areia envolviam seu corpo com muita graça.
— Então — disse ela —, vamos começar.
— Começar?
Ela não prestou atenção à palavra que eu repeti, e atravessou o
quarto até uma estante, pegou dois livros e levou-os à espreguiçadeira,
onde se sentou. Depois de folhear um deles, entregou-me o livro aberto.
— Aí está Hedda Gabler. Sempre quis representar esse papel num
filme. Não que não me deixassem fazê-lo. Ibsen não é considerado
popular, hoje em dia, a não ser no teatro. Mas ele representa a Noruega, e
é sempre bom para mim começar com Hedda quando eu quero ter a
sensação de tornar a representar um papel. Eu a adoro. Um papel
maravilhoso. Uma mulher completamente sem escrúpulos.
Fiquei olhando para ela, segurando o livro na mão, enquanto ela
abria o segundo livro na mesma peça.
— Vamos ler a cena no Ato IV, em que Hedda diz a Tessman que
queimou o manuscrito de Lovborg. Depois até o fim, quando ela
compreende que a história se vai repetir e não lhe resta mais nada.
— Mas não posso — comecei. — Não posso mesmo...
— Claro que pode. Vamos ler juntas. Não faz mal que você não seja
profissional. Eu só quero que me dê as deixas. Ainda me lembro da maior
parte das palavras. Ibsen escrevia para os atores. O efeito nunca é o
mesmo quando o lemos sozinhos. Ele sabia o que um ator pode fazer com
uma pausa, com o silêncio entre as falas. Representar é mais que
simplesmente ler palavras. Deixe mostrar-lhe. Comece. Essa linha de
Tessman...
Fechei o livro com um estalo.
— Não vou fazer nada disso. Não vou ser sua plateia. Que espécie
de mulher você é? Há minutos atrás estava gritando com o maior
realismo porque tinha encontrado aquele gato de porcelana na sua porta.
E agora...
— Aquilo foi bem feito, não foi? Fiz vocês todos virem correndo.
— Acho que você está mentindo — disse eu. — Seus gritos eram
verdadeiros. O que não posso entender é que você os pudesse esquecer
tão depressa.
Suas mãos cheias de veias alisaram a página do livro que estava em
seu colo.
— Foram verdadeiros, sim. Mas não entende que tenho de tentar
esquecer? De alguma maneira, tenho de passar pelos próximos dias,
talvez semanas, sem ser destruída. Ajude-me com Hedda Gabler.
— Primeiro conte-me por que o prendedor de porta a fez gritar.
Você me está forçando a lembrar-me. — O tom dela era quase
insolente. — Foi o choque, claro. Você sabe que foi um prendedor de
porta de ferro, em forma de um gato, a arma que matou Cass Alroy?
— Sei — disse eu. — Já vi aquele prendedor de porta de ferro.
Ela arregalou os olhos.
— Já o viu? O que quer dizer?
— Ele está lá, para sempre, no filme Sussurros. Nas primeiras
cenas. Mas não no fim.
— Não, não no fim. — As mãos dela estavam cruzadas, apertadas,
sobre as páginas do livro e ela não olhou para mim. Eu sentia a tensão a
crescer dentro dela, tornando a crescer para explodir. A essa altura, eu já
conhecia os sintomas.
— Por que gritou? — perguntei.
Ela se levantou de um salto e o livro de peças voou pelo ar.
— Porque eu o matei! Porque eu matei Cass com aquele prendedor
de ferro e isso ficará para sempre em minha consciência!
O histerismo estava aumentando, e chegava o momento em que ela
haveria de atirar alguma coisa loucamente, ou recomeçar a gritar. Pus as
mãos nos ombros dela e a sacudi com força.
— Pare! Pare já com isso. Está dizendo bobagens. Não podia tê-lo
matado. Aquele prendedor de porta era pesado demais para uma mulher
usar como arma. Eu li as notícias.
Sentindo minhas mãos, ela se acalmou, tremendo, lutando para
controlar-se.
— Eu o matei — repetiu ela. — Durante 20 anos, fiquei pensando se
eu conseguiria dizer essas palavras em voz alta. E hoje eu o consegui.
Para você, a única pessoa que nunca me trairá.
— Mas não pode ter feito isso! — repeti. — Não era possível — e aí
pensei no castiçal, diante do qual ela desmaiara, na véspera. — Foi com o
castiçal, então? Podia ter levantado aquilo? Golpeou-o como castiçal?
Ela sacudiu a cabeça violentamente.
— Não! Não, não usei o castiçal. Eu só o levei embora para não ser
encontrado ali. Isso e a arma. Escondi a arma também e nunca ninguém a
procurou. Ainda a tenho aqui nesse quarto.
— Arma? — eu estava repetindo outra vez.
— É. Ele pretendia matar-me, eu acho. Eu passei a detestá-lo, antes
de terminar o filme. Nunca fomos amantes, como disseram os jornais.
Eu... eu caçoava dele, provocava-o. Ele era quase um psicopata, embora
eu não o tivesse percebido, na época. Já tinha tido um escândalo alguns
anos antes e fora processado num caso de divórcio. Não ligava muito
para nada e tinha a ideia de que... eu estava interessada em Miles
Fletcher. Quando vi a arma, soube o que ele pretendia fazer.
— Então, se você realmente... o matou — disse eu, ainda descrente
—, foi em legítima defesa.
— Não! — Ela estava sacudindo a cabeça outra vez. — Se eu o
matei, foi a sangue-frio e premeditadamente. Há 20 anos, eu venho
tentando me convencer de que isso não é verdade. Tenho fugido sem
cessar. Não podia mais encarar a ideia do cinema, nem de representar. Eu
sabia que ia desmoronar. Era melhor deixar meus sucessos como
estavam. Mas agora confessei a verdade. Agora, posso descansar.
— Não estou entendendo nada disso — protestei. — Por que é que
diz se o matou, como se não tivesse certeza?
— Isso não importa. Você é minha confessora. Sinto um alívio em
falar disso. Mas não faremos mais nada a respeito. Nenhuma de nós duas.
Você tem de entender isso. Não podemos.
— Porque você tem medo do que a lei ainda lhe pudesse fazer?
— Haveria uma pena a cumprir. Então eu estaria realmente
liquidada. Mas não é só isso.
— Miles sabe disso? — perguntei-lhe.
A expressão dela me disse que eu tinha tocado num ponto sensível.
— Ele não pode saber, mas talvez suspeite. Ele já me amou, e
salvou-me quando eu estava desesperadamente necessitada. Mas o que
ele suspeita se interpõe entre nós, e há nele uma maldade crescente que
me apavora. Às vezes, acho que ele acredita que eu estraguei, a vida dele.
Há uma maldade ainda pior na irmã dele. Com certeza, ele já conversou
sobre tudo isso com ela, no passado. Foi por isso que ela trouxe o
prendedor de porta para meu quarto. Sabia quanto isso me chocaria.
Ela se calou, perdida em algum pensamento sombrio que não queria
revelar, nem mesmo a mim. Havia mais alguma coisa — uma coisa em
que ela não queria tocar, talvez porque ela sentisse que era perigoso. Não
era inteiramente o passado que a atormentava. Era o presente.
— Irene insinuou que Miles podia ter estado no estúdio na noite do
assassinato — disse eu — e acho que Donia sabe disso. Talvez até ela
suspeite do irmão. É provável que ela nem suspeite de você, mas saiba
que tudo que se relacione com o que ocorreu naquela noite a assusta e
perturba. É bem do feitio dela utilizar-se disso.
— Sim — disse Laura. — É verdade. Eu passei a me assustar muito
facilmente e tenho de vencer tudo isso. Tenho de começar hoje. Só vou
voltar a Hollywood, tenho de aprender a controlar minhas emoções. Os
jornais vão me fazer perguntas. Vão revolver tudo outra vez, sei disso.
Portanto, tenho de aprender a ser forte e nunca me abalar.
— Primeiro, é melhor você sair dessa casa — disse eu. — Gunnar
tem razão. Deixe-me falar com ele. Sei que ele virá para levá-la para a
casa de mãe dele.
— Não, Leigh. De agora em diante, estarei segura aqui, porque você
vai ficar comigo. Você vai trazer suas coisas cá para cima e hoje vai
dormir em minha cama. A espreguiçadeira serve muito bem para mim.
Agora, você é meu anjo da guarda.
— Você está maluca — disse eu. — Se soubesse o que eu realmente
sinto a seu respeito...
— Pobre Leigh. Ter tanto ódio assim. Sei muito bem o que você
sente. Mas você é filha de Victor e não me fará mal. Queira você ou não,
você é o meu muro de proteção. Portanto, ajude-me a começar o que
tenho de fazer. Vá lá embaixo e traga a roupa que usei quando representei
o papel de Helen Bradley em Sussurros. Irene me disse que você se
interessou por ela. Eu a encontrei passando o vestido a ferro. Ela diz que
você queria experimentá-lo. Mas agora sou eu quem vai vesti-lo. E se a
idiota da Donia ainda está com o prendedor de porta de porcelana, pode
trazê-lo de volta e pô-lo na minha porta. Também quero que encontre o
castiçal e o traga para cá. Chegou a hora de eu encarar tudo, desfazer-me
de todos meus medos. Todas essas coisas deviam ter perdido seu poder
sobre mim há muitos anos. Agora você me ajudará a vê-los como eles
são, nada mais que objetos inanimados, sem nada para assustar-me. Aí
então estarei livre... e segura. Ninguém pode me tocar se não puder
alcançar minha mente. Depressa, Leigh. Vá buscar tudo isso e traga tudo
para mim.
Eu não estava disposta a me apressar nem aceitar.
— Primeiro. vou tirar essas roupas quentes de esquiar — disse-lhe.
— E depois quero pensar um pouco. Ainda não resolvi o que tenho de
fazer.
O rosto dela estava parcialmente na sombra, e tinha aquela
expressão solene e profundamente interessada que eu conhecia tão bem.
Quando ela ficava assim, era impressionante, mas não realmente bela. E
aí ela repetiu a mesma coisa que eu já vira tantas vezes. Sem aviso, a
expressão meditativa desapareceu e ela fez brilhar seu sorriso, rápido,
inesperadamente radiante — e a beleza estava estampada em seu rosto.
— Você não tem escolha, Leigh — disse ela. — Você fará o que
Victor gostaria que você fizesse. Volte depressa para junto de mim.
Eu me virei, saí do quarto, e desci as escadas. No hall do andar de
baixo, havia uma cesta de lixo, onde alguém tinha jogado o gato de
porcelana. Tive um escrúpulo momentâneo antes de apanhá-lo. Eu ainda
não conseguia acreditar na alegação de Laura, de que Cass Alroy morrera
por sua mão, mas o prendedor de porta me deixava nervosa. Não
obstante, peguei-o e levei-o para meu quarto. Irene estava de pé junto à
porta da sala de jantar, observando-me, e veio logo atrás de mim.
— Posso entrar? — pediu. Olhava para o gato, e estava cheia de
perguntas que não lhe dei tempo para formular.
— Laura o quer no quarto dela — disse-lhe, despreocupadamente.
— E quer que lhe leve o vestido de Sussurros. Ela vai experimentá-lo. E
também quer o castiçal, por favor. Imagino que esteja na mala.
Irene pronunciou palavras de espanto em sua língua, e depois
desistiu e foi ajudar-me a encontrar o que eu queria. Depois que o
castiçal, o gato de porcelana e o vestido estavam empilhados no meu
sofá-cama, Irene foi até o retrato, que eu deixava de frente para o quarto.
Quanto ela começou a virá-lo, eu a mandei parar.
— Deixe-o como está. Deixe o jogo à vista.
Os olhos dela examinaram o retrato e ouvi sua exclamação baixinha.
— Alguém marcou um O!
— Sim; para atrapalhar o jogo.
— Foi você quem fez isso? — perguntou Irene.
— Claro. Agora X não poderá ganhar.
— Eu gostaria de acreditar nisso. Mas os atos reais não são um jogo.
— Laura sabe quem é X, e acho que você também já deve ter
adivinhado.
Ela olhou para mim e, por um momento, achei que ela poderia falar.
Aí ela se dirigiu para a porta.
— Não tenho certeza — disse ela. — Não seria nada bom errar.
Depois que ela saiu, fiquei um pouco olhando para a porta. Tinha
dito a Laura que queria tempo para pensar, mas eu não parecia estar
pensando. Nem mesmo sobre aquele jogo de zeros e cruzes. Eu estava
procedendo como se Laura me tivesse hipnotizado, e estava incapacitada
de fazer qualquer coisa que não fosse o pedido por ela.
Onde estava a Leigh Hollins que eu conhecia? Como e onde tinha
minha própria identidade conseguido perder-se, diante do impacto
entontecedor de Laura Worth? Eu não me tinha dado conta das mudanças
que me varriam como numa tempestade que eu não conseguira enfrentar.
Depois de vestir minha saia e suéter, fui até a estante onde se
guardavam os álbuns de Laura e peguei aquele referente ao tempo da
morte de Cass e o período logo após. Puxei uma cadeira para junto da
janela e sentei-me para folhear o livro. Eu não sabia o que estava
procurando, mas as palavras de Laura me haviam intrigado. Talvez que as
declarações diretas de jornais velhos endireitassem as coisas em meu
espírito. Ela me dissera para voltar depressa, mas eu a faria esperar.
Deixaria que ela ficasse pensando no que eu realmente poderia fazer.
O relato era meu conhecido, quando o li, mas mais coisas haviam
sido registradas naquelas páginas do que nas que meu pai colara em seu
álbum, em minha casa. Li mais detalhes a respeito da investigação e, à
medida que eu virava as páginas, uma coisa espantosa veio à luz. Outras
mãos tinham andado trabalhando ali. Alguém tinha examinado as páginas
com cuidado e cortado pedacinhos, aqui e ali. A tesoura tinha funcionado,
várias vezes. Na maior parte, os cortes eram pequenos. Mas eram
suficientes para eu não poder saber a que se referiam os parágrafos
cortados. Depois de um momento de folhear, fui até a porta e chamei
Irene.
Quando ela entrou, mostrei-lhe as páginas mutiladas e ela pegou o
livro de minhas mãos, sem nenhuma surpresa aparente, para examinar
com cuidado o resto dos impressos.
— Se você já viu esses recortes, talvez se lembre do que está
faltando — disse eu.
Depois de alguns momentos, ela me devolveu o livro.
— Não me lembro. Mas se é importante para seus escritos, talvez
possa perguntar à Srta. Worth. Ela com certeza sabe. Embora talvez não
lhe conte.
— Mas quem podia ter feito isso? — insisti. — Tem alguma ideia?
Por um momento, pensei que ela podia não me responder. Depois
ela pensou melhor.
— Talvez seja melhor que você saiba. Foi a Srta. Worth quem
cortou isso.
— Tem certeza? — perguntei.
— Encontrei-a a cortar essas páginas uma vez em que você estava
fora do quarto.
— Então isso foi feito depois que eu vim para cá?
Irene inclinou a cabeça, séria.
— Mas por quê? Ela começou a me contar muita coisa. Por que
haveria de querer esconder algo sobre aquela época em Hollywood, se é
uma coisa que apareceu impressa?
— Ela não lhe conta tudo, pode pensar o que quiser — disse Irene,
calmamente. — Nem me conta tudo, tampouco. Há alguma coisa que ela
quer esconder.
Eu sabia que isso era verdade. Laura podia dizer o que quisesse, e
fazer as confidências loucas que fizesse, mas havia sempre alguma coisa
faltando que impedia que as peças se casassem. Era isso, eu sabia, que
tinha levado Irene a confiar em mim. Ela também queria saber. Suas
palavras seguintes confirmaram essa ideia:
— Em todos esses anos, não houve meio de ajudá-la, porque ela
nunca quer falar daquilo que realmente a preocupa. Talvez ela agora
esteja mais próxima de querer auxílio do que em qualquer momento
antes. Talvez seja para você, filha dela, que ela se vire.
Mais uma vez Irene mostrava um abrandamento de sua maneira para
comigo. Eu não era mais o inimigo que poderia fazer mal a Laura. Ela
começava a me olhar como aliada.
— Na segunda-feira, de manhã cedo — continuou ela —, vou fazer
compras no mercado no cais. Talvez você queira vir comigo? Não pode
ver muita coisa de Bergen, se ficar trancada nessa casa.
— Eu gostaria muito de ir — disse eu, prontamente.
— Então vamos convencer a. Srta. Worth a deixá-la ir.
Fechei o álbum, que nada me dizia, e levei-o de volta à mesa. Eu
não queria dar-lhe uma resposta muito brusca nem apressada, mas, queria
esclarecer minha posição.
— Não tenho de pedir licença. Acredito que o Sr. Thoresen venha
buscar-nos para visitar a mãe dele mais tarde. Mas de manhã cedo, estarei
livre.
Minhas mãos passavam à-toa sobre outros álbuns na prateleira.
Irene ficou a me olhar um pouco e depois saiu do quarto. Puxei outro
volume e abri-o sobre a mesa, começando a folheá-lo a esmo. De todas as
páginas o rosto de Laura me olhava. Havia uma festa de caridade que ela
comparecera, um assalto a sua casa em que joias foram roubadas, o relato
de uma festa que ela dera em sua casa espaçosa nos morros sobre
Hollywood.
Nomes famosos me saltavam aos olhos, daquelas páginas. Naquele
tempo, ela conhecia todo mundo. Não só os de sua profissão, mas
também os grandes personagens mundiais lhe rendiam homenagem e
eram seus amigos. Eu sabia de tudo isso, claro, mas ver aqueles relatos
impressos fazia com que parecessem verdadeiros, pela primeira vez.
Laura Worth tinha se movimentado em círculos que nunca se abriam para
o cidadão comum. Ela sem dúvida tinha recordações fabulosas das
pessoas ilustres do mundo. Meu pai também conhecera alguns deles, mas
ele era mais introvertido e não gostava de grandes reuniões em sua casa.
Havia tanta coisa que Laura, a atriz, ainda tinha para me dar, se eu ao
menos pudesse recuperar meu antigo interesse por ela do ponto de vista
de escritora. Ultimamente, minhas emoções penetravam todas as
barreiras, transbordando num misto de raiva e ressentimento e compaixão
e... mas eu não tinha um nome para todas as coisas que sentia em relação
a ela.
Percorri várias páginas mais, e estava para fechar o livro quando um
nome impresso me chamou a atenção — o de Cass Alroy. Comecei a ler
com novo interesse. Nada daquele relato parecia dizer respeito a Laura, e
era datado de vários anos antes, de Cass ser diretor de Sussurros. Parece
que ele tinha sido autuado como o outro num processo de divórcio que
tivera um aspecto meio sórdido. O homem que o processara era um ator
de nome Arnold Jaffe. A mulher acusada de infidelidade era sua mulher,
Donia. Curvei-me sobre o livro, lendo com uma atenção concentrada.
Jaffe ganhara o processo e o divórcio, e o relato não levava o
assunto adiante. Não se revelou o que aconteceu com o caso amoroso de
Donia com Cass Alroy. Mas uma outra coisa apareceu no processo. O
irmão de Donia, o ilustre Dr. Miles Fletcher, apoiara a irmã durante todo
o desenrolar do processo, e houve uma ocasião em que ele ameaçara dar
uma surra em Alroy. Não havia como saber se isso resultara em alguma
coisa.
Fechei o álbum, pensativa, e recoloquei-o em seu lugar. Eu não
tinha certeza se Laura conhecia Miles e Donia na ocasião do divórcio.
Mas as ramificações eram interessantes. A briga de Miles com Cass Alroy
era antiga e Miles devia ter ficado muito aborrecido ao encontrar o
sujeito dirigindo o filme de Laura e perturbando-a de tal modo que ela
ficara doente no set, durante a filmagem, no dia em que Cass Alroy
morrera.
A essa altura, eu tinha várias coisas a perguntar a Laura, e já a fizera
esperar bastante.
Joguei o vestido vermelho sobre o braço e peguei o castiçal e o gato
de porcelana. Levei tudo para o quarto de Laura lá em cima, contente por
não encontrar ninguém no caminho.
Laura estivera ocupada, enquanto eu permaneci lá embaixo. Se o
tornozelo estava doendo, ela o ignorava. Afastara todos os móveis,
deixando um grande espaço livre no centro do quarto. Suas faces estavam
coradas, com o esforço, e os olhos, brilhantes. Larguei as coisas que
carregava e olhei em volta, surpreendida. Sobre a mesinha baixa, que
tinha sido relegada a um canto, estava um objeto reluzente — a estatueta
dourada de um homem segurando uma espada, e vi logo o que era.
— O seu Oscar! — exclamei, e fui ajoelhar no chão ao lado da
mesa, onde eu podia examinar o símbolo precioso sem marcar sua
superfície lustrosa com os dedos.
Laura riu-se ao me ver.
— Você se está ajoelhando diante de uma imagem! Não tenho
certeza de que signifique assim tanta coisa.
— Em seu caso, significa. Reconhece sua atuação em Maggie
Thornton.
Ela foi postar-se junto de mim, olhando meio triste para a estatueta.
— Naturalmente, é agradável ganhar um prêmio. Ainda me lembro
de como estava entusiasmada naquela noite. E como me esqueci das
poucas palavras que eu tentara preparar de antemão, no caso de eu
ganhar. Quando chegou o momento e fui levada àquele palco, só
consegui murmurar.
— Você agradeceu a Victor Hollins — disse eu. — Eu li isso.
— Sim. Ele já tinha saído de minha vida, a essa altura, mas grande
parte do crédito sempre seria dele.
— E eu já tinha nascido. — Como eu sabia bem aquelas datas!
Ela nada disse, e pegou a figurinha brilhante.
— Sabe que eu quase mandei isso para seu pai, quando o trouxe
para casa? Mas eu sabia muito bem que ele o teria devolvido.
— Devia ter havido um gêmeo — disse eu. — Você merecia o
segundo Oscar, também, por Sussurros.
Ela não o negou.
— Talvez eu possa endireitar isso.
Olhei para ela bruscamente. O ligeiro ar de tristeza continuava a
envolvê-la, enquanto olhava para a figura dourada.
— O problema com um prêmio é que a ocasião e o motivo para
recebê-lo passam muito depressa. É como a pessoa tirar um retrato.
Envelhecemos bem mais depressa que os retratos. Quando se ganha um
prêmio, ou se tira um retrato, já se está mudando, passando para outras
coisas. É natural que se queira que o mais novo seja também o melhor.
Nunca se para, passa-se para maiores alturas, ou então se retrocede. E
sempre há uma desilusão quando a nova realização não corresponde à
visão que tivemos. Senti frustração ao olhar para trás e ver Maggie
Thornton como meu melhor papel. Eu queria papéis novos que fossem
igualmente bons. Queria uma realização melhor.
— E você o conseguiu, em Sussurros. O simples fato de que as
circunstâncias a impediram de ganhar o prêmio não desmerece o que
todos sabem ter sido um desempenho espetacular.
— Há 20 anos! O que isso pode significar hoje? É por isso que
quero voltar. É por isso que dou valor ao seu dom de me fazer voltar à
vida e à ambição.
Havia nela um brilho externo que a embelezava, e um anseio íntimo
se espelhava em seus olhos. Levantei-me e afastei-me dela, indo para o
outro lado do quarto. Quando olhei para trás, ela continuava com o Oscar
nas mãos.
— Pode ser que você não fique sozinho para sempre — disse-lhe
ela, estranhamente, e colocou a figura na mesa. Depois, virou-se para
mim. — Estou vendo que trouxe o que eu pedi. Podemos começar.
Lá íamos nós de novo! Não adiantava opor-me a ela.
— Com Hedda Gabler?
— Não! Tive uma ideia melhor. E encontrei os livros.
Ela correu para uma estante de livros e pegou dois volumes
idênticos. Reconheci, com desânimo, a capa do livro de meu pai.
— Eis aqui! — disse ela, estendendo-me um deles. — Marquei os
trechos. Às vezes, Victor escrevia os diálogos como se fossem para ser
representados no palco. O script de Sussurros utilizou páginas inteiras do
livro, palavra por palavra. Serei Helen, naturalmente, e você pode ler os
outros papéis. Estou certa de que você se sentirá mais à vontade com
essas palavras que com as de Ibsen.
Eu nada queria daquilo, nem gostava daquilo. Mas nada havia a
fazer senão sua vontade. Enquanto ela andava pelo quarto, como Helen
Bradley, eu ficava sentada numa cadeira, lendo as linhas entre as falas
dela. Sua primeira deixa vinha de uma empregadinha desajeitada que era
nova na casa dos Bradley, e muito nervosa diante do patrão. Helen, que já
estava assustada por sua vez, tinha a tarefa de tranquilizar uma mocinha
apavorada. Na cena, a empregada estava ajoelhada no chão, polindo um
prendedor de porta de ferro, em forma de gato.
Laura terminou a fala, andando pelo quarto em seu caftan elegante,
com algo ainda da aura de Helen. Sua maneira de andar tinha mudado,
seu modo de postar a cabeça e os ombros a tornavam uma pessoa
diferente.
— Hoje à noite vamos usar o gato de porcelana — disse ela,
interrompendo o desempenho. — Você pode ficar polindo-o enquanto eu
leio as linhas.
— Hoje à noite? — virei o livro para baixo, em meu colo, e a fitei.
— Laura, o que é que você quer fazer? O que pretende fazer hoje à noite?
Havia apenas um ligeiro nervosismo em seu riso que a traía.
— Hoje vou provar a vocês todos que ainda sou Laura Worth. Todos
vocês, descrentes, vão subir aqui para esse quarto, Donia e Miles e Irene,
e vou mostrar-lhes o que posso fazer. Talvez eu telefone a Gunnar e lhe
peça para vir também. Enquanto isso, quero ler a cena com Robert
Bradley, em que Helen percebe o perigo. Quase posso lembrar-me das
palavras. Dê-me o fim da fala dele, Leigh.
Eu sabia a que trecho ela se referia e encontrei a página. Li as
palavras enganadoras de Robert e ouvi o som forçado de minha própria
voz. Ela pegou a deixa facilmente, mas consolei-me um pouco com o fato
de ela balbuciar e da profundidade de paixão não estar ali presente, como
no filme.
— Isso não foi muito bom — disse-lhe francamente, quando ela
parou.
Seu sorriso brilhante apagou a expressão sombria de Helen Bradley.
— Claro que não. Só estou tateando, lembrando-me das palavras.
Sempre me retraio alguma coisa nos ensaios. Senão eu gastaria a própria
essência de um papel onde não conta, realmente.
Eu escutava, desconfiada, todas minhas suspeitas em estado de
alerta. Era verdade que ela estava sendo dominada por esse desejo súbito
de se provar uma atriz, mas eu sentia que havia algo mais. Havia algum
motivo oculto no que ela planejava, e a grande agitação que a movia
tinha raízes em algo mais que o desejo de representar. Não obstante, fui
fazendo-lhe a vontade. Li as linhas que davam as deixas para as falas de
Helen Bradley com o mínimo de expressão possível, e de vez em quando
vacilava propositadamente nas palavras. Isso era uma medida de
segurança para mim. Eu não queria que ela me apanhasse nas emoções
que ela era capaz de provocar nos que a rodeavam. Não queria contribuir
em nada para o desempenho dela. Seria melhor para ela se ficasse bem
longe de seu propósito. Eu não ia interferir com ela, mas também não
ajudaria. Ficaria neutra.
Acho que trabalhamos durante uma hora e meia e, no fim, ela sabia
tudo de cor e não precisava mais do livro. Tínhamos ensaiado a cena
curta com a empregada e mais duas cenas em que Helen e Robert Bradley
se enfrentavam antes da morte dele. Quando ela quis passar para outra
cena, eu fechei o livro de repente. Era melhor abalar sua confiança em si
naquele momento, antes de ela levar aquilo a cabo.
— Basta. Isso é completamente inútil. Você nada tem para apoiá-la,
nem atores, nem vitoriana, nem escada, nada! Vai se tornar ridícula e vai
acabar chorando, até dormir.
— Nesse caso, vou mantê-la acordada a noite toda, já que vai ficar
aqui em meu quarto. Mas agora vou deixá-la repousar. Pelo menos, eu lhe
dei uma cena maravilhosa para seu livro. Agora você viu Laura Worth
ensaiando.
Eu dei um grunhido muito desagradável, e ela sorriu para mim,
dirigindo-se para o telefone e ligando para Gunnar. Ele tinha saído, mas
ela teve uma conversa animada com a mãe dele e parece que lhe
garantiram que Gunnar gostaria de ir à casa de Laura naquela noite.
Fiquei ali emburrada, enquanto ela falava, e lancei-lhe o meu olhar mais
sombrio quando ela desligou.
— Eu a compreendo muito bem — disse ela, ainda animada e
movendo-se pelo quarto em seu robe cor de areia. — Você gostaria que
eu voltasse a Hollywood e fosse um fracasso. Claro que isso é óbvio. Ah,
eu sei que não era essa sua primeira intenção, quando me disse que eu
devia voltar. Aí você estava sendo sincera. A outra ideia veio depois. E
agora é predominante. Que maneira maravilhosa de se desforrar de mim
por tudo o que lhe fiz... fiz a Victor! É essa a ideia, não é?
Eu fiz uma cara bem feia. Ela que pensasse o que quisesse.
— E vou provar que você está errada — disse-me ela. — Vou provar
que todos vocês que duvidam estão errados.
Já bastava, para mim. Atacar por uma via secundária, que já me
servira antes, foi meu único recurso.
— Por que a mulher de Miles se suicidou? — perguntei.
Ela pareceu parar de repente, cessando seu desempenho como Laura
Worth, a estrela, despindo-o como uma roupa que largasse. Atravessou o
quarto e esticou-se na espreguiçadeira.
— Então você quer conversar? É isso? Quer fazer mais perguntas.
— Eu gostaria de algumas respostas — retruquei.
— Muito bem! Kate Fletcher era uma neurótica incurável. Havia
anos que Miles a levava aos melhores psiquiatras, sem adiantar nada. Ela
imaginava que tinha uma doença grave, embora nada tivesse de mais
sério. Matou-se porque não podia enfrentar a ideia de morrer de uma
doença que ela não tinha.
— Foi isso o que Miles lhe contou? — perguntei.
— Claro que foi o que ele me contou. Aliás, todo mundo sabia
disso. Ele suportou um casamento horrível durante anos.
— E parece que Donia também foi imposta à primeira mulher?
Desde que ela estava na casa e foi quem encontrou o corpo da Sra.
Fletcher no pátio de pedras.
— Duvido de que Donia tenha contribuído para o bem-estar mental
de Kate — concordou Laura. — Mas Miles já me prometeu que Donia
será mandada embora de Bergen dentro de pouco tempo. Não que ela
possa levar-me ao suicídio.
Pensei naquilo.
— Você disse que alguns dias atrás tinha desistido, que não queria
mais viver.
— Eu estava com medo de uma porção de coisas. Tinha perdido a
coragem. Agora eu a recuperei. Sei que só posso confiar em mim mesma,
para me salvar.
Estávamos de volta ao velho problema.
— Salvá-la de que?
— De alguém que quer vingar-se de mim, que quer me castigar pelo
que aconteceu no passado. Mas agora não será possível. Você vai ficar
comigo. E vou para Hollywood sozinha.
— E seu marido?
— Já que ele não quer que eu faça isso, é melhor eu ir sozinha para
me provar. Depois que eu fizer isso... — Ela ergueu as mãos num gesto
expressivo e deixou-as cair.
Meu ataque não levara a lugar algum e escolhi outro caminho.
— Estive lendo alguns dos seus álbuns lá embaixo. Fiquei
surpreendida ao ver a relação entre Cass Alroy e Donia Jaffe.
Laura não pareceu muito espantada.
— É meio surpreendente, não é? Mas, naturalmente, você não a
conheceu quando ela era moça. Aquele ar vivo, de menininha, então era
mais adequado e bem atraente. O rosto dela não era tão fino e enrugado.
Na verdade, ela era até gorduchinha, muito bonitinha, mesmo. Mas
dependente demais do irmão, dedicada demais, mesmo então. E sem juízo
algum. Qualquer mulher de juízo se teria afastado de Cass Alroy. Eu
mesma nunca devia ter-me aproximado dele, como diretor. Toda minha
vida teria sido diferente se não me tivessem convencido a chamá-lo para
Sussurros. — Ela se calou, relembrando.
Eu a provoquei mais delicadamente.
— Nas circunstâncias, foi bom a irmã de Miles estar no teatro
naquela noite. Senão, ela, ou ele, podia ter sido um dos principais
suspeitos.
— É mesmo, não é? — Laura inflamou-se. — Mas ela estava
mesmo no teatro. Mais inquisição?
— Só mais uma coisa — disse eu. — Em um de seus álbuns, há
páginas inteiras em que houve pequenos cortes. Irene diz que foi você
quem os cortou, há pouco tempo. O que significa que há alguma coisa
nas consequências da morte de Cass Alroy que você não quer que eu
saiba.
Ela ficou muito quieta em sua espreguiçadeira, e nada mudou, em
sua expressão nem sua maneira. Não obstante, eu sabia instintivamente
que ela estava novamente alerta e que eu chegara perto da chave para
aquilo que ela continuava a esconder.
— Que curiosidade insistente você tem! — disse ela, descuidada. —
Todos os personagens públicos têm passagens em suas vidas que não
desejam revelar aos jornalistas. Naturalmente, há certos assuntos sobre os
quais não quero que você escreva. Eu lhe disse desde o princípio que
você não podia abrir a caixa de segredos.
— Foi você mesma quem a abriu — lembrei-lhe. — Contou-me que
matou Cass Alroy.
Ela teve um ligeiro estremecimento.
— Eu não me permiti esquecer, e agora você não me permitirá
esquecer. Mas não contará a ninguém. Certamente não escreverá isso.
— Você confia demais em mim — disse eu.
Com uma rapidez que me tomou de surpresa, ela saiu da
espreguiçadeira e foi para junto de mim. Quando estava bem perto,
pousou as mãos de leve nos meus ombros e olhou diretamente no meu
rosto. Havia uma súplica inesperada em seus olhos escuros, e seus lábios
tremiam.
— Em quem mais poderia eu confiar? — Ela agora estava
suplicando, como eu nunca a vira suplicar. — Você é minha filha.
Era a primeira vez que ela me chamava de filha diretamente, e
fiquei chocada pelo fluxo de emoção que me invadiu. Chocada — e
salva. Porque me lembrei de uma coisa. Lembrei-me de um filme dela
que tinha saído completamente de minha cabeça, havia anos que eu
esquecera porque era preciso esquecer. Agora, a recordação voltou numa
onda.
Eu era meninota quando vi o filme. Chamava-se Long Year’s
Turning, e nele Laura Worth representava o papel de uma jovem mãe. A
criança que era filha dela tinha seus oito anos. Acontecera o divórcio e a
menininha ia ser separada da mãe. Eu me lembrava claramente de que a
criança tinha se empoleirado na beira do sofá, resistindo à mãe, enquanto
Laura se ajoelhava diante dela, as mãos apoiadas sobre seus ombros,
olhando para aquele rostinho que a repelia. Ela falara de maneira
enternecedora de seu amor por sua filha e seu desejo de que ela se criasse
no amor e segurança da casa do pai — mesmo que isso significasse nunca
mais vê-la.
Eu tinha chorado amargamente o filme todo, embora já tivesse idade
suficiente para saber que era tudo representação, e nada tinha a ver
comigo. Agora, Laura estava com os dedos nos meus ombros naquele
mesmo gesto, com a mesma expressão no rosto. Uma raiva doentia e
amarga apertou minha garganta de modo que eu mal podia falar.
Com uma brutalidade que deve tê-la machucado, tirei as mãos dela
dos meus ombros e me afastei.
— Não venha com isso! — consegui pronunciar, meio sufocada.
— Pensa que não vi aquele filme que você fez em que representava
de mãe, pela única vez em sua vida? Pensa que não posso reconhecer
uma cena velha quando você a representa de novo?
O rosto dela começou a se enrugar — como o de uma criança que
tenha sido brutalmente magoada. Ela levou uma das mãos à garganta e
ficou de olhos arregalados, como se estivesse contendo as lágrimas.
Corri em direção à porta. Mas antes de sair, virei-me por um
minuto.
— Fiz uma coisa por você, pelo menos. Marquei o O naquele jogo
lá embaixo. Barrei o jogo para X — disse-lhe e lancei-me para fora do
quarto, descendo a escada e saindo da casa.
O jardim da frente estava vazio e eu fui sentar-me numa cadeira de
madeira ao ar livre. Abracei meu corpo e fiquei a balançar-me para diante
e para trás, para diante e para trás, embora aquilo fosse uma coisa que eu
não fizesse havia muito tempo, quando era menina e sentia tanta falta de
minha mãe de verdade.
11
Não consegui jantar naquela noite, embora Irene me tivesse levado
uma bandeja para meu quarto, para me tentar. Sei que ela estava curiosa
sobre o que tinha acontecido, mas nada perguntou. Contou que Laura
fizera planos para aquela noite e que tanto o Dr. Fletcher como a Sra.
Jaffe pareciam estar aborrecidos com o que a Srta. Worth pretendia fazer.
Irene nada disse sobre o papel que eu devia representar, e pensei se não
devia estragar tudo, recusando-me simplesmente a participar.
Lá pelas oito horas, Laura mandou Irene me chamar para ir lá para
cima e eu fui, com relutância. Eu me armara completamente contra ela,
mas também tinha recuperado meu equilíbrio até certo ponto — como
Laura devia ter recuperado o seu. A essa altura, ela já devia ter entendido
que o único papel que ela nunca poderia usar para me comover era o de
mãe. Ela tivera razão no princípio, ao dizer que não havia necessidade de
um relacionamento sentimental de mãe-filha entre nós. À sua maneira
tortuosa, ela afinal tinha tentado usar aquele mesmo relacionamento para
conseguir o que queria. Minha reação lhe mostrara nitidamente a tolice
de uma pose dessas. Eu não achava que ela tentasse aquilo novamente.
O quarto dela estava vazio quando entrei. Vi que a mobília tinha
sido novamente arrumada. Numa extremidade, tinham sido colocadas
cadeiras para a plateia de quatro pessoas que Laura esperava. A outra
extremidade estava destinada a dar o efeito de um palco vazio — para
que Laura pudesse utilizá-lo para representar qualquer cena que quisesse.
Os únicos objetos eram o castiçal de dragão, sobre uma mesinha, e o gato
de porcelana, onde supostamente estaria prendendo uma porta aberta.
Não se tentara conseguir qualquer efeito de luzes; na verdade, as luzes
estavam baixas, sem dúvida para obter um efeito lisonjeiro.
Quando eu estava ali olhando, Laura entrou, vinha do quarto de
vestir vizinho, e, embora eu estivesse preparada, prendi a respiração. O
vestido vermelho-veneziano lhe assentava perfeitamente. Seus cabelos
estavam penteados no estilo vitoriano que Helen Bradley tinha usado,
presos num coque macio no alto da cabeça. Ela até cortara uma franja
suave na testa, para a ocasião. Suas faces estavam pálidas, como eram as
de Helen, mas ela tinha se empoado com esmero e passado batom e
maquilagem nos olhos para conseguir o efeito desejado. Sua própria
beleza fora sufocada em função da personagem que ela queria
representar.
Quando me viu esperando junto da porta, não fingiu — como eu
mais ou menos esperava que ela fizesse — que nada acontecera entre nós.
Apenas ficou ali onde estava, examinando-me friamente, com um olhar
crítico.
— Gosto dessa lã bege. Fica bem em você. Você podia engordar um
pouco, mas a ossatura é boa. Como a minha. O vestido precisa de mais
um toque. Deixe ver.
Ela foi até sua penteadeira no quartinho e abriu a caixa de joias.
Num instante voltou com os dois broches de prata que usara naquele dia
em Ulriken — as mascarazinhas da tragédia e da comédia. Ela as pregou,
com um gesto impessoal, em meu vestido, e recuou para ver o efeito.
— Victor me comprou isso em Stroget, em Copenhague. Eu ainda os
uso, para dar sorte. Foram o prêmio dele para mim por Maggie Thornton.
Eu não quis olhar para os brochezinhos. Preferia não usá-los, mas
não me opus. Não importava, realmente.
— Você vai poder fazer isso, hoje à noite? — desafiou-me ela.
Se ela podia, eu também podia, e disse-lhe isso.
Ela moveu a cabeça, com uma serenidade segura.
— Sim, você tem força quando é necessário. Ambas vamos poder
fingir que não quisemos nos digladiar esta tarde.
Mantive um silêncio de pedra, seguindo-a pelo quarto, escutando
suas instruções. Ela me indicou uma cadeira reta, onde eu devia ficar
sentada, a um lado do palco, para o centro ficar livre para ela se mover.
Somente no princípio eu devia tomar parte na ação — ajoelhada junto da
porta imaginária, polindo o prendedor de porta que devia ser de ferro.
Depois, eu ficaria sentada em minha cadeira a dar-lhe as falas dos dois
outros personagens — a empregada e Robert Bradley.
— Irene os trará cá para cima quando Gunnar chegar — disse-me
Laura. — Eu não estarei aqui, para poder fazer uma entrada direito. Você
apresenta a cena conforme eu sugeri e aí começamos.
— Por que você está fazendo isso? — perguntei...
Ela olhou para o gato de porcelana.
— Já lhe disse. Vou provar uma coisa.
— Sobre você como atriz?
— Talvez mais ainda. — Ela foi até junto do prendedor de porta de
porcelana rosa e curvou-se para tocá-lo com uma mão que estava bem
firme. — Talvez eu também prove que não posso mais ser assustada nem
intimidada.
A campainha da porta soou — o que significava que Gunnar tinha
chegado. Laura olhou para mim num pânico súbito, que desmentia suas
palavras. Depois, riu de si mesma.
— Medo do palco! Até uma atriz de cinema pode sentir isso, sabe?
E isso é bom. Significa que estou tensa, pronta.
Ela foi para o quarto de vestir e eu esperei, inquieta, enquanto Irene
conduzia os outros para cima.
Donia foi a primeira a entrar, dando risadinhas nervosas, como
sempre — mas ficou bem quieta quando viu o gato de porcelana cor-de-
rosa. Miles estava obviamente de um mau humor terrível. Acho que ele
teria impedido Laura, se pudesse, mas ela escapara a seu domínio, e ele
sabia que não valia a pena tentar. Gunnar cumprimentou-me muito sério
do outro lado do quarto, e não parecia estar satisfeito. Por uma vez, seus
olhos encontraram os meus com uma reprovação que não pude enfrentar.
Eu queria poder fazê-lo compreender que aquilo que estava acontecendo
não era mais minha culpa, nem obra minha.
Depois que os outros três se sentaram, Irene acomodou-se numa
cadeira um pouco afastada, e todos olharam para mim com um misto de
expectativa e desaprovação.
Disse-lhes o que me haviam instruído para dizer — que Laura
pretendia fazer uma experiência, naquela noite, que ela queria descobrir
ali, em sua própria casa, se ainda possuía alguma habilidade para
representar. Como tínhamos todos visto o filme Sussurros, em alguma
ocasião, ela escolhera algumas cenas desse filme. Ela esperava que eles a
aturassem e fossem tolerantes.
Donia aplaudiu minhas palavras com um entusiasmo malicioso e
depois parou de repente, quando me fui ajoelhar ao lado do gato de
porcelana. Debrucei-me sobre ele com minha flanela de polir, sentindo-
me bastante ridícula, e cônscia da presença incômoda de minha plateia.
Eram adultos, convidados para participarem de um fantástico enigma
figurado, e eu não sabia se alguém poderia conseguir sua boa vontade,
nas circunstâncias.
Laura entrou no quarto e olhei para ela, como me havia mandado
fazer. Numa das mãos, ela trazia o alto castiçal de dragão, com uma vela
branca ardendo no bocal. A luz bruxuleante dava calor ao vermelho de
seu vestido e iluminava seu rosto de maneira misteriosa. Se ela tinha
alguma tendência para mancar, controlou-a, e o vestido comprido
escondia o tornozelo atado. Um dos quatro que a olhavam soltou uma
exclamação baixinha. Eu não sabia qual deles. Comecei a ler minhas
linhas — só algumas palavras desajeitadas para dizer a ela como eu tinha
medo do patrão. O som de minha voz rompeu o silêncio, constrangida, e
alguém remexeu-se na cadeira, perturbado.
Aí Helen Bradley começou a falar — e ninguém se mexeu, nem
exclamou nem fez ranger as cadeiras. Ela ainda conservava o poder.
Talvez fosse ainda mais magnífica no palco do que fora no cinema. As
palavras de Victor Hollins nos lábios de Laura Worth formavam
novamente sua antiga combinação mágica. Ela representou a cena até o
final com muito pouca ajuda de minha parte. Quando terminou e ela
colocou o castiçal na mesa, larguei o gato de porcelana e fui para minha
cadeira.
Não havia problema de fazer o cenário ou apresentar os
personagens. Com sua própria habilidade e mágica, Laura fazia o cenário
e ainda colocava lá os personagens. Embora fosse eu quem lesse as
palavras de Robert Bradley, eu podia jurar que ela se dirigia a um outro
ator — que a cena estava completa. Ela falava para o ar, e nossas
imaginações convocavam a figura necessária como se ele realmente
estivesse ali.
Helen Bradley era, talvez, uns 30 anos mais moça do que Laura
Worth, mas a voz que pronunciava as palavras era a voz de uma jovem —
uma determinada jovem — e a gente esquecia o rosto enrugado, a pele
flácida.
Lembrei-me de que eu tinha visto exatamente esse tipo de mágica
evocado em programas falados de televisão, quando algum grande ator
pegava um livro, a instâncias do animador, e criava um estado de espírito
e uma pessoa por meio de sua leitura das palavras de um dramaturgo.
Não era tão estranho assim, afinal, quando existia o dom.
Durante uma fala comprida, olhei de relance para a nossa plateia de
cinco membros. Gunnar estava olhando, num misto de assombro e
inquietação. Eu tinha certeza de que ele não queria que ela fosse boa
como estava sendo, de medo que mais tarde ela se magoasse. O olhar
cinzento e pálido de Miles estava embevecido nela, e achei que talvez ele
estivesse vendo outra Laura, mais moça, que ele conhecera havia muito
tempo. Donia parecia pálida e tensa. Inesperadamente, havia lágrimas nos
olhos de Irene. Ela não tinha conhecido Laura em seus tempos de estrela,
e no entanto também ela reagia a um grande desempenho — embora se
lembrasse bem de para onde estava conduzindo essa experiência.
A programação de Laura para as cenas era perfeita. Não havia
esforço para dar demais. Só se tentou uma ou duas cenas mais calmas,
apenas uma longa cena dramática. E aí terminou. Laura saiu para o
quarto de vestir, e eu fui até a mesinha e tranquilamente apaguei a vela.
Não houve aplauso. Vi que Donia erguia as mãos para bater palmas, mas
depois desistiu, e baixou-as. Nenhum deles vira o que esperava ver — o
fracasso e humilhação de Laura. Tinham presenciado o desempenho de
uma estrela e sabiam disso e não gostaram.
Fui eu quem rompeu o silêncio.
— Ela está melhor ainda do que era — disse eu, ouvindo minhas
próprias palavras com uma ligeira surpresa.
Miles começou a resmungar.
— Aqui não há nenhuma pressão. Nenhuma das circunstâncias
extenuantes da filmagem de uma película. Nenhuma das tensões de um
estúdio de Hollywood. Até mesmo a Srta. Hollins pode ler suas linhas
aceitavelmente nesta atmosfera.
Donia encarregou-se de contradizê-lo.
— Acho que Laura foi esplêndida, em qualquer circunstância. Por
que não deixá-la voltar a Hollywood e ver o que acontece?
Gunnar sacudiu a cabeça tristemente.
— Ela nada perdeu de seu talento, com os anos. Mas lá ela ainda
tem tudo a perder e muito pouco a ganhar. Sua reputação está no auge.
Não há motivo para rebaixá-la, como as circunstâncias poderiam fazer.
Irene nada disse. Tinha-se refeito de seu momento de emoção.
Talvez ela, entre nós todos, fosse quem melhor conhecesse a
extraordinária força de vontade que Laura Worth poderia ter, se quisesse.
Talvez ela, entre nós todos, soubesse que nada do que qualquer de nós
dissesse ou fizesse realmente importava. Laura faria o que bem lhe
aprouvesse. Pelo esforço daquela noite, ela tinha procurado convencer,
talvez conquistar-nos para seu lado. Mas, se ninguém a apoiasse, ainda
assim ela faria o que pretendia.
Depois de alguns momentos, Irene levantou-se e foi para a porta.
— Se quiserem descer daqui a pouco, servirei café e bolo na sala de
jantar.
Enquanto os outros começavam a conversar um pouco forçadamente
entre si, eu os deixei e fui para o quarto de vestir. Laura, com esforço,
despira o vestido vermelho e tornara a vestir o caftan. Ela ainda estava
vibrando de entusiasmo — uma agitação inteiramente controlada, durante
a representação — e logo me pegou,
— Como foi, Leigh? O que estão dizendo lá fora?
— Não estão dizendo coisa alguma — disse-lhe. — Acho que estão
perplexos.
— Então eu consegui? Provei realmente o que eu queria provar?
— Para um desempenho de bolso, acho que você esteve assombrosa.
Talvez melhor do que jamais foi. — Quisesse eu ou não, eu tinha de lhe
conceder isso.
Seus olhos se iluminaram com o triunfo e ela estava completamente
confiante.
— Eu sei! Uma atriz sabe mesmo quando está dando o que tem de
melhor. A gente sente o que se emana dos que estão assistindo. Às vezes,
no estúdio, toda a equipe me aplaudia depois de uma cena. Não é preciso
ter uma plateia de teatro para saber quando se é bom. Mas sempre gosto
de ouvir. Nunca há louvores que cheguem. Somos as pessoas mais
inseguras do mundo. E sei que você, entre todos eles, me diria a verdade.
Talvez você até quisesse que eu fracassasse, como Miles e Gunnar
queriam. Mas confessaria a verdade.
Falei sem emoção!
— Sim, tenho de confessar a verdade.
— Agora eu mostrei a eles — continuou ela. — Eles viram que não
estou mais assustada. Entendem que nenhuma ameaça me vai abalar.
Podem fazer o pior, e não importará. Isso é ainda mais importante que o
desempenho.
— Eles? — repeti.
Ela não quis me responder. Inclinou-se para o espelho, ajeitando a
franja, endireitando um cacho de cabelo. A esmo, peguei o vestido
vermelho da cadeira onde ela o jogara e vi que ela me observava pelo
espelho.
— Vista-o — disse ela. — A roupa de Sussurros, vista-a. Você
queria vesti-lo.
Sacudi a cabeça.
— Não quero mais. Não depois de vê-la usá-lo de novo.
Ela se aproximou de mim e tirou as mascarazinhas de prata que me
emprestara, colocando-as na caixa de joias.
— Por favor. Eu gostaria de vê-la com ele.
Porque ela gostaria de me ridicularizar, pensei. Eu agora não tinha
vontade alguma de vestir aquele vestido — o contraste entre nós seria
grande demais. Mas ela já estava mexendo no fecho-éclair de meu
vestido de lã e eu cedi, com relutância. Ela pôs o vestido vermelho-
veneziano por cima de minha cabeça e eu introduzi os braços nas mangas
apertadas. Sem dificuldade, ela puxou o fecho, pois o vestido não estava
tão justo para mim como para ela. Estava um pouco apertado para ela —
um pouco largo para mim, mas a diferença de tamanho entre nós era
muito pequena.
Ela me virou diante de seu espelho grande, olhando por cima de
meu ombro enquanto eu me examinava, duvidosa.
— O vestido pede uma morena, como você — disse eu. — Cabelos
louros vão mal. Helen Bradley nunca teria este aspecto.
Ela pegou depressa uns grampos de cima da penteadeira e começou
a torcer meus cabelos, prendendo-os no alto da cabeça. Estava tão absorta
na brincadeira, que podia ter cortado uma franja em minha testa, se eu
deixasse.
— Você está brincando de boneca — disse eu. — E eu não sou
boneca. Lembre-se disso.
Ela se riu e meteu o último grampo.
— Pronto! Você se parece um pouco comigo, afinal. Corra lá para
baixo e mostre a eles. Depressa, corra!
Eu me livrei das mãos dela.
— Deixe de ser ridícula. Essa ideia é sua, não minha. Não quero me
parecer com você. Quero ser eu mesma!
— Você está ficando agitada, Leigh. Olhe, vou vestir seu vestido e
você usa o meu e vamos descer para tomar café. Você está linda, de
verdade. Devia usar cores ricas e fortes. Desça e mostre-se a Gunnar. Ele
nunca mais terá oportunidade de ver como você fica espetacular de
vermelho.
Ela era a mulher mais impossível que eu já conhecera. Até o dia em
que chegara ali, eu me considerava como tendo uma vontade forte, mas
Laura Worth sabia avançar sobre a pessoa como uma torrente, com toda a
força avassaladora de um elemento da natureza por trás dela. Era mais
fácil consentir a seus desejos absurdos do que opor-se a ela.
— Se você parar de me empurrar, vou direitinho — disse eu. — Mas
você vai descer logo e contar a eles o que se passa. Ou pelo menos o que
você acha que se passa.
— Estarei lá em alguns segundos — prometeu ela, e eu saí pela
porta, com relutância.
O hall estava escuro e não havia ninguém ali. Sentindo-me
incrivelmente tola, peguei a saia do vestido vermelho com ambas as mãos
e comecei a descer a escada estreita e sinuosa. Alguém saiu de um quarto
lá em cima e atravessou o hall atrás de mim, mas não me virei. Eu estava
ocupada, descendo a escada, esforçando-me para não tropeçar na saia
comprida do vestido.
Só houve um instante em que senti uma presença atrás de mim. Não
houve tempo para me virar, para me salvar — só aquele instante de
consciência, e uma voz sussurrando.
O empurrão por trás veio com força e diretamente no meio de
minhas costas. Eu caí pela escada íngreme. Devo ter batido na parede da
curva estreita com meu ombro, e depois deslizei o resto do caminho até o
hall embaixo.
Eu não podia ter ficado ali deitada, atordoada, por mais de uns dez
segundos, antes de voltar a mim e tentar levantar-me. O quadro que se
formara naqueles segundos estava rígido em volta de mim. Gunnar, à
porta da sala. Miles tinha saído da sala de jantar. Irene encontrava-se nos
fundos, na porta da cozinha, enquanto Donia e Laura estavam acima de
mim, na escada. O quadro desfez-se logo e Gunnar foi o primeiro a me
alcançar.
Laura falou para ele lá de cima.
— Ela deve ter tropeçado nessa saia comprida. Teve uma queda
horrível. Traga-a para minha cama.
Eu estava tonta do choque, e não podia falar, muito menos pensar.
Gunnar pegou-me em seus braços e só tive consciência da sua força e da
deliciosa segurança de ser carregada por ele. Enquanto ele subia as
escadas, me carregando, Laura correu na frente, dobrando a colcha da
cama. Delicadamente, ele me baixou sobre o edredon, e puxou um
travesseiro para minha cabeça. Olhei para o rosto dele e desejei que
continuasse assim — cuidadoso, não zangado comigo, delicado.
— Por que ela está usando esse vestido em que pode tropeçar? —
perguntou Gunnar a Laura.
— Foi um capricho meu. Uma tolice. Eu devia saber que ela não
está acostumada com uma saia que vai até o chão.
Meu tremor se acalmara um pouco e consegui ficar quieta. A não ser
Irene, os outros nos haviam seguido para dentro do quarto e meus olhos
procuraram o rosto de Donia. Encontrando-a junto do irmão, olhando
para mim com um interesse vivo, sem compaixão, afinal consegui falar:
— Não tropecei no vestido — disse. — Alguém me empurrou por
trás.
Fez-se um silêncio intenso no quarto. Aí Irene entrou, trazendo-me
uma xícara de chá quente e, quando eu me sentei para tomá-lo, Miles
resmungou baixinho algo a respeito de mulheres com imaginações
neuróticas. Donia me olhou alarmada e inquieta, e esgueirou-se para trás
de Laura.
— Além de Laura, que não me teria empurrado, só havia uma
pessoa na escada — disse eu.
Os outros quatro olharam para Donia, com expressões diversas.
— Isso é uma tolice — começou Miles, mas Laura interrompeu-o.
— Não é tolice. Faz parte do plano que nos vem atormentando. Se
Leigh diz que foi empurrada, tenho certeza de que foi mesmo.
Donia parecia estar bastante assustada.
— Mas eu estava em meu quarto! Só saí correndo quando ouvi um
baque.
— Você estava lá na escada quando eu saí de meu quarto —
comentou Laura. — Eu estava vestindo a roupa de Leigh, de modo que
me demorei. Mas você estava lá, Donia, quando saí para ver o que tinha
acontecido.
— Mas por que eu a empurraria? Por que eu...
— Porque viu o vestido e na luz mortiça pensou que fosse eu. —
Disse Laura, em tom de pergunta.
Donia fez um barulhinho de ganido e Gunnar falou com ela, com
delicadeza.
— Será que você ouviu alguma coisa quando chegou à escada? Se
alguém empurrou Leigh e depois correu, passando por ela, para o andar
térreo, você podia ter ouvido a corrida.
Donia agarrou essa esperança.
— Sim... sim, acho que realmente ouvi alguma coisa. Mas eu estava
olhando para Leigh e... e não notei se alguém atravessou o hall de baixo.
Estaria ela inventando ou não, pensei. Ou teria visto e não queria
contar?
Miles olhava para a irmã, duvidando.
— Não podemos nos dar ao luxo de errar nisso, nem adivinhar
loucamente. Estamos diante de uma situação muito grave.
— É isso que venho dizendo há muito tempo — concordou Laura
amargamente.
Irene estava mais preocupada comigo.
— Está esfregando o ombro. Machucou-se?
— Não muito — disse eu. Eu o batera na queda, mas era um
machucado à toa.
Ela olhou em volta para os outros calmamente.
— Estamos lidando com um assassino — disse ela.
Donia soltou uma exclamação, e Miles segurou Laura quando ela
cambaleou contra a cama.
— Basta — disse ele a Irene, secamente.
Ela não lhe deu atenção.
— Já é tempo de alguém falar e dizer a verdade. Nesses últimos dois
meses essas tristes peças têm sido pregadas à Srta. Worth repetidamente.
Alguém está querendo fazer-lhe mal. Alguém que traz a recordação de
um crime terrível.
— Não, Irene, não! — exclamou Laura. — Não diga mais nada.
Deixe para lá. Por favor, por mim!
Irene continuou, implacável.
— Agora, as coisas estão piorando. A Srta. Hollins teve sorte. Podia
se ter machucado mais gravemente. Há quem tenha morrido, por quedas
assim. Mas como a Srta. Worth não deseja que eu fale mais, eu me
calarei.
Ela se virou duramente e saiu do quarto. Suas palavras de acusação
pareciam pesar no ar. Laura começou a chorar baixinho, as mãos
cobrindo o rosto. Vi o estranho olhar trocado entre Donia e Miles. Talvez
fosse a desconfiança e a suspeita crescendo entre eles. Talvez fosse outra
coisa. Um deles sabia a respeito do outro e, no entanto, por algum
motivo, nenhum dos dois falava. Eu tinha certeza de que não havia mais
afeto entre eles — só uma desconfiança profunda e crescente.
Gunnar estava um pouco afastado dos outros, e ele, pelo menos,
estava preocupado comigo. Quando Miles se curvou para tranquilizar
Laura, ele se encaminhou para o lado da cama, onde podia me falar
baixinho.
— Talvez seja melhor você voltar para Nova York assim que puder,
Leigh. Enquanto isso, nosso convite estende-se a você, além de Laura. Se
quiser vir para nossa casa hoje à noite, e deixar esta casa...
— Não — disse eu. — Mas obrigada, Gunnar. Hoje eu fico com
Laura. Ficaremos juntas neste quarto.
— Isso será bom — disse ele, muito sério. — Bom para ambas.
Estão tornando-se amigas, eu creio.
Eu o contradisse imediatamente.
— Amigas não. Apenas aliadas relutantes. Pois pretendo ajudá-la a
ir para Hollywood, se é para lá que ela quer ir.
Senti que ele se enrijecia contra mim. Eu tinha acabado de tomar o
chá e me recostei no travesseiro, para não ter de olhar para ele, vendo a
acusação surgir em seus olhos. Não havia, absolutamente algo que eu
pudesse fazer a respeito de Gunnar e isso me dava uma sensação de vazio
e de estar perdida. Dentro de um momento, tinha medo de estar chorando
como Laura.
Ele tornou a curvar-se para mim, sua voz baixando a um murmúrio.
— Cuidado, Leigh. Há loucura nessa casa. Você e Laura têm de sair
daqui logo. Você estará bem para vir para nossa casa amanhã com Laura?
— Tentarei ir — disse eu, conservando o rosto virado para outro
lado.
Espantosamente, ele se inclinou e beijou-me no rosto. Virei-me para
ele, surpreendida, e ele riu baixinho diante de minha expressão.
— Está vendo, o pessoal de Bergen não é tão reservado quanto você
pensa! Mas, naturalmente, você é minha pupila, entregue em minhas
mãos por Victor Hollins. E é permitido beijar a pupila.
Ele estava rindo-se de mim delicadamente, embora não se tivesse
esquecido da gravidade da situação naquela casa, nem o encorajamento
que eu dava a Laura, o que ele desaprovava. Tive de sorrir de volta, e
senti meus lábios tremerem.
— Isso — disse ele —, assim está melhor. Até amanhã, Leigh.
Cuide-se bem hoje à noite. E de Laura. Amanhã, faremos planos. Isso não
pode continuar.
Ele deu boa noite a Laura e Miles e vi que Donia tinha escapulido
do quarto. Depois que Gunnar saiu, Miles voltou para examinar-me
pessoalmente, como médico. Pareceu achar que eu tinha sofrido muito
pouco com o que ocorrera. Eu não confiava nada nele e fiquei contente
quando ele se retirou.
Depois que todos saíram, Laura sentou-se numa cadeira e ficou me
olhando. Meu vestido de lã bege, em que ela lutara para se meter, não lhe
assentava muito, assim como eu achava que o vermelho-veneziano não
me ia bem.
— Acho melhor voltarmos a ser nós mesmas — disse-me ela. —
Vou tirar esse vestido e depois ajudá-la a tirar essa roupa. Agora,
arrependo-me de ter pedido que o vestisse.
— Qual deles me empurrou?
Ela estava lutando com o fecho-éclair das costas de seu vestido
emprestado, o rosto vermelho do esforço.
— Você não sabe?
— Claro que não sei! Se soubesse, eu diria. Não ia ficar por aí
calada, deixando que isso continue.
— É disso que tenho medo — disse ela, desaparecendo na direção
do quarto de vestir.
Fiquei ali deitada, olhando pelo quarto que há pouco servira de
teatro. A vela, queimada pela metade continuava no castiçal de dragão. O
prendedor de porta de porcelana rosa ainda prendia uma porta imaginária.
E o vestido que Laura usara em Sussurros me envolvia, deitada ali na
cama. Mas tudo mudara. Eu ainda podia sentir aquele empurrão raivoso
de duas mãos no meio de minhas costas. Sentia-me caindo no vazio.
Ela voltou do quarto de vestir com seu caftan.
— Você consegue virar-se para eu abrir o fecho?
Fiquei deitada quieta, olhando para ela.
— Você sabe mesmo qual deles foi?
— Claro que sei. Sempre soube onde estava a ameaça a mim.
— Então por que não me pode contar, para que possamos tomar
providências.
Ela tocou na franja em sua testa e vi o gesto hesitante, meio
assustado que era pura Helen Bradley.
— Porque não sou tão corajosa assim. Ainda não. Mas estou
procurando ser. Estou procurando encarar o que tiver de ser encarado. Há
uma ligeira possibilidade de que tudo se arranje, se eu não falar. Se eu
puder partir para Hollywood sozinha. Não que estar sozinha signifique
uma segurança real, ou alguma fuga. Tudo pode desmoronar em volta de
mim, a qualquer momento. Mas tenho de correr esse risco. Irene tinha
razão, estamos lidando com um assassino. Alguém que tem o coração
cheio de ódio. Agora, você também está em perigo, além de mim. Porque
resolveu ficar a meu lado.
— Como é que você sabe que vou ficar a seu lado? Não se esqueça
do que disse hoje sobre nós nos digladiarmos.
Ela me sacudiu a cabeça.
— Isso é uma guerra particular. Como mãe e filha, certamente
havemos de nos confrontar. Nenhuma de nós aceita esse laço infeliz. Mas
você não pode evitar a outra coisa, sua admiração por Laura Worth, a
atriz. Não sei como foi que isso aconteceu, mas o fato é que você cresceu
com isso. E hoje à noite isso foi confirmado para mim. Eu o vi em seu
rosto. Você não quer que eu volte aos filmes por achar que vou fracassar.
Agora, você acha que posso ter êxito, e quer isso para mim. Como eu o
quero para mim.
Como ela me entendia melhor que Gunnar. Talvez até melhor que eu
mesma. Mas eu nada disse e ela continuou:
— Como você agora vai me ajudar e apoiar, também está em perigo.
Lembrei-me daquelas mãos em minhas costas, e sabia que o que ela
dizia podia bem ser verdade. Mas naquela noite, ficaríamos juntas.
Sentei-me e baixei os pés para o chão. Quando me levantei, fiquei tonta
por um momento. Depois de firmar-me virei as costas e Laura baixou o
fecho.
— Estou certa de que Helen Bradley nunca teve essas facilidades —
disse eu. — No tempo dela, havia dúzias de colchetes para abrir.
Vesti o négligé que Laura me entregava e ela tocou a campainha,
chamando Irene. Quando esta chegou, Laura pediu-lhe que trouxesse
minhas coisas de dormir do quarto de baixo e depois ajudasse a arrumar o
sofá onde ela dormiria naquela noite.
Eu quis protestar, dizendo que podia dormir no sofá, mas Laura não
quis saber.
— O Dr. Fletcher não vai gostar disso — disse Irene, secamente,
mas Laura limitou-se a sorrir, com um ar enigmático.
O próprio Miles tornou a entrar, quando Irene se retirou de vez.
Olhou muito sério para nossos preparativos para a noite.
— Dormitório das moças, estou vendo.
Laura explicou descuidadamente.
— Leigh não está se sentindo bem, desde aquela queda horrível.
Quero que ela fique junto de mim, hoje. — Ela não disse que aquilo fora
planejado muito antes da queda.
Miles deu um beijo de boa noite na esposa, um tanto distante, e por
um momento ela se agarrou a ele. Depois, ele passou pelo quarto de
vestir para seu próprio quarto de dormir, fechando a segunda porta.
Eu tinha observado tudo atentamente e, quando ele se foi, fiz a
pergunta que há muito me intrigava.
— Você o ama, Laura?
Ela sorriu para mim, com um ar triste.
— O inimigo dentro do recinto! É isso que você é, em certo sentido,
não é? Mas inimiga só num plano. É por isso que posso confiar em você.
Numa vida, Leigh, há diferentes tipos de amor. Eu conheci vários.
Preciso de Miles em minha vida. Não importa o que acontecer no futuro,
creio que sempre voltarei para ele. Sabe, não me importo realmente mais
com o que ele seja. Só sei que preciso dele. Talvez um dia possamos ser
amigos. Como já fomos.
— Antes de Cass Alroy morrer? — perguntei.
— Talvez — disse ela. — Talvez seja esse um dos motivos por que
quero voltar aqueles tempos. Miles achava que eu era uma maravilha,
naquela época. Ele gostava da ideia de estar ligado à uma pessoa de
sucesso e de fama mundial. Agora não sou nada, ninguém. Mas pretendo
modificar isso.
— Embora ele não o queira?
— Ele acha que serei humilhada e magoada. Prevê dificuldades para
mim. Hoje, eu pretendia fazê-lo mudar de ideia, mas não consegui.
Portanto, agora tenho de ir em frente sozinha e fazer o que tenho de fazer.
— Ele tentará impedi-la?
— Ele já está tentando impedir-me. Mas não permitirei que o
consiga.
— Será que ele tem medo de alguma coisa mais, além do seu
possível fracasso?
— Sim, ele tem medo da verdade. Como eu tenho tido. Agora,
aconteça o que acontecer, ela terá de ser enfrentada. Você me está
ajudando a enfrentá-la.
Eu não estava bem certa disso, nem certa de nada. Nem mesmo de
qual verdade a que ela se referia — a não ser que tinha algo a ver com a
morte de Cass Alroy.
Peguei a camisola e o roupão que Irene trouxera para cima e fui até
a porta.
— Você pode ficar sozinha um pouquinho?
— Ninguém me tocará — disse ela. — Hoje não.
Atravessei o hall e fui ao banheiro. Todas as outras portas estavam
fechadas e eu andei depressa, afastando-me da escada. Quando me
aprontei para ir para a cama, voltei ao quarto de Laura.
Ela estava junto à porta da sacada, olhando para as luzes de Bergen,
e fui ficar perto dela.
— Essa noite foi um sucesso, não foi? — perguntou ela.
Toquei no meu ombro.
— Sucesso é uma palavra um tanto estranha.
— Não, não! Quero dizer, a minha representação. Foi só um
desempenho de bolso, como você diz, mas...
Eu lhe dei os louvores que ela desejava, porque entendia sua fome
insaciável por aplauso. Era assim que ela era feita. Não podia agir de
outro modo e, como aquela fome estava novamente desperta dentro dela,
ela provavelmente teria êxito em alimentá-la.
— Eu estava falando sério, aquela hora — disse-lhe. — você hoje
esteve melhor que nunca.
Ela balançou a cabeça, concordando sem falsa modéstia.
— Isso foi porque eu tive esses anos para crescer e amadurecer.
Tenho uma coisa a dar ao meu trabalho que me faltava antes.
Ela voltou para o quarto e apagou as luzes, uma a uma. Depois,
instalou-se no sofá e acho que adormeceu logo. Estiquei-me em sua cama
grande, onde o colchão tinha justo a resistência certa para meu corpo, e
tentei pensar em tudo o que tinha acontecido, tentando em vão encontrar
as respostas. Mas a aspirina que eu tomara me estava deixando sonolenta
e relaxada, e adormeci lembrando-me dos braços de Gunnar quando ele
me levou para cima, seu beijo no meu rosto. Tudo tinha sido feito ao
acaso — nada significava. Portanto, sonhei muito com ele.
Às vezes, um sonho pode nos despertar para a realidade. Aquilo que
é sentido fortemente durante o sono pode parecer confortador, satisfatório
e emocionante, e, embora nem sempre possa ser lembrado e
compreendido quando despertamos, pode, não obstante, nos tornar
conscientes de alguma verdade que antes não era compreendida ou aceita.
Acordei aquecida pela felicidade de meu sonho e, mesmo quando ele me
fugiu, eu soube e aceitei o que estava começando a sentir por Gunnar, o
que eu sempre tinha afastado para não ter de encarar. Nesses poucos dias,
me acontecera uma coisa que nunca me ocorrera antes. Agora eu não
tentava lutar contra essa ideia, como poderia fazer no dia seguinte,
quando estivesse plenamente desperta, mas entreguei-me totalmente a
uma nova consciência de mim, como uma mulher, que, afinal, podia se
apaixonar, e adormeci esperando que o sonho voltasse.
Mas não voltou. Em vez disso, sonhei com alguma coisa cheia de
ansiedade e perturbadora, embora também isso desaparecesse quando um
som exterior penetrou em meu sono pesado. Já passava muito da meia-
noite. Abri os olhos, vendo uma luz pálida além das janelas, e fiquei
muito quieta. Havia alguém no quarto. Um vulto se destacava contra a
luz do janelão — um vulto que se dirigia para minha cama. No maior
silêncio possível, rolei para o outro lado e agarrei-me à borda da cama,
rígida, à espera. Mãos se estenderam para mim por cima do travesseiro,
braços nebulosos esticaram-se para mim, procurando, procurando.
E de repente a voz sussurrou pelo quarto: “Escute...” E mais uma
vez: “Escute...”
Saltei para fora da cama e procurei a lâmpada mais próxima. A luz
inundou o quarto e virei-me para olhar para a cama.
Lá estava ela, em sua camisola rendada de mangas compridas, as
mãos dando tapinhas inúteis nos travesseiros, como se estivesse
procurando alguma coisa. Era Laura quem estava ali, e estava dormindo
profundamente. No entanto, devia ter sido outra pessoa que sussurrou —
alguém do outro lado do quarto. Fosse quem fosse, já tinha sumido. A
porta para o hall estava fechada, como a havíamos deixado, e, embora a
porta do quarto de vestir estivesse aberta desse lado, a outra porta, que
dava para o quarto de Miles, continuava fechada. Laura não tinha ouvido
a voz. Seu rosto adormecido não denotava qualquer alarma, nenhuma
emoção. Ela não fez ruído algum.
Dei a volta à cama e peguei-a delicadamente pelo braço. Ela não
acordou, quando a levei de volta a seu sofá-cama. Estava tranquila em
minhas mãos e permitiu que eu a cobrisse, sem despertar. Depois que a
cobri com o edredon, fui até a porta do hall e abri-a devagar.
Como eu previa, não havia ninguém ali. As outras portas estavam
fechadas e indiferentes à minha indagação. No entanto, eu sabia que atrás
de uma delas a pessoa que sussurrava esperava, escutando, como avisara
os outros para escutarem.
Voltei para minha cama e fiquei acordada muito tempo. Aquilo fazia
tão pouco sentido. Maldade, maldade. Mas tornando-se cada vez mais
forte e perigosa. Fiquei contente com a ideia de irmos visitar Gunnar e a
mãe dele, naquele dia. De nos livrarmos daquela casa. E... eu poria à
prova meu sonho anterior.
Os passarinhos já estavam cantando no jardim quando adormeci.
12
Quando tornei a acordar, vi que Laura já estava de pé e vestida. Ela
chegou junto da cama.
— Como se está sentindo?
Sentei-me e espreguicei-me. Meu corpo estava duro e dolorido da
queda, e eu imaginava que deviam estar aparecendo manchas. Mas eu
sabia que ia melhorar depois de me mexer. Estava bem.
— Estou bem — disse. — E como está você?
— Meu tornozelo só está doendo um pouquinho. Vou descer para
tomar café, hoje. Estou farta de ser mimada. Gunnar só vem às 11 horas.
Você tem planos para agora?
— Eu disse a Irene que talvez fosse fazer compras com ela. Mas
talvez seja melhor não deixar você sozinha.
Ela pensou nisso por um instante apenas.
— Vou com vocês — resolveu. — É verdade que você devia visitar
o mercado do peixe de Bergen, e eu também gostaria disso. É um
mercado de flores também, sabe, de frutas e verduras e... de mexericos da
cidade.
Saltei da cama e vesti o roupão.
— Como você dormiu? — perguntei, descuidada.
O sorriso dela era alegre e sem nuvens.
— Muito bem. Eu me sentia segura, com você aqui no quarto. Nada
de sonambulismo, nem vozes, nem pesadelos.
— Que bom — disse eu, e fui para o banheiro.
Irene saiu do quarto dela, detendo-me junto da porta. Levou um
dedo aos lábios e olhou para as outras portas fechadas. Seu rosto magro
tinha a expressão costumeira de solenidade.
— Venha até meu quarto por um momento, Srta. Hollins.
Eu queria lavar-me e vestir-me, antes de encarar problemas velhos
ou novos, mas o jeito dela era urgente e furtivo, de modo que
acompanhei-a com relutância.
O quarto dela era pequeno, confortavelmente mobiliado com belos
objetos antigos, que deviam estar naquela casa desde os tempos da mãe
de Laura. As cortinas e colcha eram meio austeras — de um azul de
ardósia fosco, e três fotos de Laura Worth sorriam de molduras
arrumadas, penduradas numa parede, todas autografadas. Irene não me
convidou para sentar. Depois de fechar a porta, virou-se para mim, muito
ansiosa.
— Houve algum problema ontem à noite?
— Ela andou dormindo — disse eu. — Mas não se lembra.
Consegui levá-la para a cama tranquilamente. — Hesitei, pensando se
devia contar mais alguma coisa.
— A que horas foi isso?
— Não tenho ideia. Depois de meia-noite, tenho certeza.
— Ela podia ter saído do quarto, quero dizer, antes de você vê-la?
— Não sei dizer. Eu estava dormindo profundamente.
— Alguém abriu minha porta ontem à noite.
Eu esperei, sabendo o que se seguiria.
Irene continuou:
— Alguém que sussurrou uma palavra... escute.
— A mesma pessoa foi a nosso quarto, também — disse-lhe eu. —
Ouvi a voz quando encontrei Laura perto de minha cama.
— Nunca acreditei nessa voz — disse Irene. — Mas agora eu
também a ouvi.
— Acha que Laura podia sussurrar assim? — perguntei.
— É possível. Mas ela diz que também a ouve.
— E você nunca a ouviu antes?
— Nunca. Pensei que era imaginação e nervosismo da Srta. Worth.
— Ontem você se manifestou um tanto violentamente — disse eu.
— Declarou que estávamos tratando com um assassino. Talvez agora
alguém lhe esteja dando um aviso.
— Eu sei me cuidar. Não tenho medo, a não ser por ela. O que eu
disse é verdade. A pessoa que matou aquele homem em Hollywood está
aqui nesta casa. Tenho certeza disso.
— Então é a mesma pessoa que me empurrou na escada.
— Imagino que sim — concordou Irene. Mas ela não estava
pensando em minha queda. Só se preocupava com Laura.
— Qual deles será? — insisti. — Posso imaginar Donia fazendo
essas coisas, mas não o Dr. Fletcher. No entanto, nenhum dos dois
estavam no estúdio em Hollywood, naquela noite. Nenhum teria algo a
temer do passado.
Ela me olhou sombriamente por um momento e depois mudou de
assunto.
— Vai ao mercado comigo hoje?
— Sim, eu gostaria de ir. Laura vai conosco. Para não ter de ficar
aqui sozinha enquanto saímos.
Irene recebeu a mudança dos planos com aprovação.
— Muito bem. Não foi à senhorita que empurraram na escada
ontem, Srta. Hollins. O vestido fazia parecer que era a Srta. Worth. Mas
talvez tenha sido uma sorte ter acontecido assim. Ela não é tão jovem
quanto a senhorita. A queda podia ter sido mais grave para ela.
— De qualquer forma, não devemos deixá-la sozinha — disse eu, e
fui para o banheiro.
Enquanto me aprontava para enfrentar o dia, procurei não pensar em
nada. Especialmente não nos sonhos, nem em Gunnar Thoresen. Eu não
queria que aquele calor que relaxava minha vontade me envolvesse de
novo. Gunnar nunca poderia significar alguma coisa para mim. Ele não
gostava realmente de mim, e muito breve eu iria para casa e nunca mais
tornaria a vê-lo.
Depois que me vesti, Laura e eu descemos para tomar café. Ela
levou consigo o castiçal de dragão que usara na véspera e colocou-o
numa mesa junto das portas do jardim, na sala de jantar. Eu sabia por
que. Ela não queria conservá-lo no quarto, mas queria deixá-lo bem à
vista, para provar que não tinha mais medo dele.
Donia e Miles já estavam sentados à mesa. Miles levantou-se para
nos fazer sentar e perguntou como eu estava me sentindo e como Laura
tinha dormido, como estava o tornozelo dela. Deixei passar a afirmação
de Laura, de que tinha dormido bem, e nada disse sobre o que tinha visto
e ouvido. Falamos em nossos planos de ir ao mercado do peixe com
Irene, mas eu não poderia dizer se ele e Donia ficaram satisfeitos ou não.
Nossa conversa era propositadamente ligeira e despreocupada, e no
entanto eu sentia a tensão por baixo das palavras. Ninguém se esquecera
da véspera.
Fiquei contente quando acabou a refeição e eu e Laura fomos vestir
calças e suéteres. Quando entramos no carro, Irene pegou a direção e
deixamos Kalfaret, passando pelo velho portão de pedágio e indo para o
centro da cidade. Descemos a larga Torgalmenning, passando por suas
lojas em arcadas, sua alameda central e o grande Monumento aos
Marinheiros, em homenagem àqueles que tinham servido Bergen no mar.
Irene disse que assim que ficasse mais quente, Bergen se tornaria uma
cidade de flores, e grandes vasos floridos seriam colocados na alameda,
com grandes guarda-sóis e mesas.
Encontramos um lugar para estacionar perto do mercado; deixamos
o carro e passeamos entre as bancas de flores, onde eram exibidas as
mercadorias perfumadas, em carrinhos de lados de vidro, cheios de
flores. Em todo o mercado havia toldos coloridos, balcões e bancas
cobertas onde se vendia peixe. Tudo era muito limpo e arrumado, sem um
sinal de sujeira em lugar algum. As bandeiras norueguesas esvoaçavam
de altos mastros e a bandeira do Jubileu, com suas torres de castelo num
escudo, flutuava ao vento, comemorando os 900 anos de Bergen. Na área
aberta do mercado havia blocos de granito com leões de bronze.
Laura comprou uma braçada de rododendros de um vendedor, que
trocou o dinheiro dela com moedas de uma sacola imensa, dependurada
de seu ombro como uma bolsa de mulher. O mercado era construído no
fim de Vogen, o braço de mar que penetrava profundamente em Bergen.
Barquinhos de pesca pulavam na água, às vezes em filas de três, junto à
praia, enquanto pelo cais os poucos armazéns com frontões, da velha
Bryggen, que tinham conseguido sobreviver aos incêndios destruidores,
davam um sabor medieval à cena. Antigamente, a Liga Hanseática tinha
florescido ali, e aquele cais era conhecido como o Cais Alemão. Em volta
da animada cena central, erguiam-se as Sete Montanhas, e eu via o
funicular subindo até os prédios baixos em cima de Flöyen, e a alta torre
de comunicações erguendo-se na neve de Ulriken.
Laura insistiu em levar suas flores para o carro, ela mesma, e eu e
Irene continuamos em direção aos peixeiros. Depois que Laura se
afastou, Irene virou-se para mim bruscamente.
— Resolvi contar-lhe — disse ela. — É melhor que você saiba. É
mais seguro. Para poder estar alerta. Ambos estavam no estúdio naquela
noite, há 20 anos.
Fiquei olhando para ela, com a expressão vazia, e ela continuou.
— A Sra. Jaffe tinha entradas para o teatro naquela noite, mas a
mulher com quem ela pretendia ir não pode e, à última hora, ela pediu ao
irmão que a acompanhasse. Em vez disso, ele a convenceu a levá-lo até o
estúdio. Se ela entrou ou não pelo portão, eu não sei. Ele foi para o palco
de som em que a Srta. Worth estava passando a noite, em seu camarim.
Ele deve ter seguido o Sr. Alroy até o set. O que aconteceu depois disso,
ignoro.
— Mas não há guardas nos portões do estúdio? Como é que ele
podia entrar e sair, sem ser visto? O jornal dizia que Cass Alroy passou
abertamente pelo portão, mas nada há sobre a entrada do Dr. Fletcher. O
álibi dele nunca foi contestado.
Irene deu de ombros.
— Nunca ouvi falar dessa parte.
— Como é que você sabe de alguma coisa a respeito?
— Eu os ouvi conversando um dia, pouco depois de eles se
mudarem para a casa da Srta. Worth. Eles não sabiam que eu estava em
casa. Estavam brigando, como acontece frequentemente. Há alguma coisa
que a Sra. Jaffe sabe que ameaça o Dr. Fletcher. Talvez seja o que ela
sabe a respeito daquela noite.
Eu vi Laura se aproximando no meio da multidão que se achava no
mercado.
— Nada disso importa agora — cochichei para Irene. — Mas
obrigada por me ter contado.
— Não acha que um assassinato ainda importa? — perguntou Irene.
— Acha que pode haver sossego através dos anos, quando um crime
desses foi cometido?
Não houve tempo para responder-lhe. Acho que eu só queria era
enfiar a cabeça na areia e esquecer tudo o que pertencia ao passado, que a
própria Laura queria esquecer.
Ela se aproximou de nós com aquele andar imponente e atraente e
meu coração contorceu-se, estranhamente. Tive um rápido
pressentimento de alguma coisa horrível que lhe estava reservada, e não
pude suportá-lo. Ela logo me pegou pelo braço e fui mais branda com ela
do que jamais havia sido.
— Vamos — disse ela. — Temos de visitar os peixes!
Deixamos os carrinhos de flores e passamos por balcões em que
homens de avental cortavam e limpavam peixes em tábuas avermelhadas.
Na beira da água, havia tanques em que nadavam peixes vivos. Por onde
caminhávamos, o chão estava molhado de água dos baldes que era atirada
sobre os balcões de peixe. Facas compridas e reluzentes erguiam-se e
caíam, de modo que o ruído de peixes sendo cortados estava por toda
parte, junto com aquela babel de vozes numa língua estranha, mais baixas
apenas do que os gritos das gaivotas. Estranhamente, o cheiro de peixe
era suave e não de todo desagradável. Laura disse que isso era porque os
peixes tinham acabado de sair do mar e tudo era muito limpo.
Dessa vez foi Irene quem fez compras. Salmão cor-de-rosa
embrulhado em jornal e colocado num saco plástico para ela levar. Ali
perto, vários menininhos estavam sentados à beira da água comendo
camarão cozido e jogando as caudas na água, onde as gaivotas
mergulhavam para comê-las. Havia uma barraquinha de jogos com uma
roda iluminada para ser girada e prendas a ganhar. Havia uma banca de
jornais, com livros em quadrinhos, de bangue-bangue, em norueguês.
Quando passamos para a seção de frutas e legumes, Laura encontrou
uma mulher conhecida, com uma menininha. A criança fez a reverência
que tinha aprendido para cumprimentar os mais velhos e, enquanto Laura
e a mãe dela conversavam, ela falou comigo, encabulada, no inglês
vacilante que estava aprendendo no colégio. O mercado de peixe sempre
fora um lugar de intercâmbio social e encontro de amigos.
Quando a conhecida de Laura seguiu, ficamos a observar Irene que
estava comprando tomates pequenos e redondos e pepinos empipocados,
alface verde e fresca, bananas, laranjas e limões. Laura e eu fomos postas
a trabalhar, ajudando-a a carregar as compras, e Laura parecia bem viva e
se divertindo muito com tudo o que estava fazendo. Vi que Irene lhe
lançava um olhar, de vez em quando, como se estivesse desconfiada
dessa animação e não soubesse o que viria depois. Eu queria ter tido
tempo para indagar se Laura sabia a respeito do que me contara Irene,
que tanto Donia quanto Miles tinham estado no estúdio naquela noite
antes de terem o cuidado de serem vistos à saída do teatro.
A voz de Laura interrompeu meus pensamentos.
— Para ser realmente feliz — disse ela, tocando num tomate
gorducho — a gente deve poder saborear as coisinhas de todo dia.
Quando vivemos com uma tragédia, essa capacidade é apagada. Adoro
poder apreciar novamente este mercado.
Tentei compartilhar do estado de espírito dela. Mais uma vez tentei
tirar da cabeça tudo o que era sinistro, dizendo a mim mesma que não
importava. O dia de sol e o céu azul, a água brilhante e o povo alegre,
tudo isso servia para negar que a vida encerrasse uma camada inferior
que prenunciava tempestades e desgraças.
O tempo todo, enquanto nos movimentávamos, a ideia de Gunnar
me acompanhava. Não enfrentada e aceita como de noite, depois de meu
sonho, mas perturbadoramente presente. Eu não podia deixar que ela
aparecesse inteiramente. Tinha medo de olhar para ela demais, porque era
um problema sem solução, no qual eu estava me traindo e a todas as
minhas convicções arraigadas. No entanto, lá estava ela comigo,
constantemente.
Quando estávamos carregadas com tudo o que podíamos levar,
voltamos ao carro e nele empilhamos nossos embrulhos e nós.
Novamente Irene dirigiu e voltamos para Kalfaret. A meu lado, no
assento, Laura parecia eternamente jovem e cheia do próprio entusiasmo
da juventude. Eu só podia rezar para tudo dar certo para ela, e que ela
não estivesse voando para um desastre — assim como eu também podia
estar, de modo diverso.
Passamos pelo parque e ela se riu diante de Grieg, inclinado sobre
sua bengala em seu pedestal, com um pombo empoleirado em sua cabeça.
Ela apontou os canteiros de flores, e em certo momento fez Irene
encostar no meio-fio para podermos ver uma banda de garotos que
passava. Nada havia que indicasse que aquela mulher vivia atormentada,
e maravilhei-me diante de sua capacidade de se absorver na alegria das
pequeninas coisas.
De volta à casa, durante a hora que faltava para que Gunnar nos
fosse buscar, passamos algum tempo — por insistência de Laura — a
falar sobre meu livro, minhas entrevistas. Não que eu precisasse
entrevistá-la mais. Ela parecia saber o que é que eu acharia útil, e era
óbvio que gostava de me contar histórias do passado. Nem tudo era
triunfo. Ela era realista sobre sua vida em Hollywood e não procurava
embelezá-la.
De muitos modos, aquela vida fora dura e árdua. As estrelas eram
consideradas propriedade do estúdio e muitas vezes como tal eram
tratadas. Havia a necessidade de acordar cedo e dormir tarde, o que
muitas vezes a deixava exausta, sem tempo para nada a não ser o
trabalho. Às vezes havia viagens incômodas, para filmagens externas.
Além do fato de ela ter sido obrigada a suportar a companhia de homens
e mulheres que por vezes eram inclementes em sua determinação de
manter sua posição e subir a todo custo. A concorrência às vezes era
desleal. E havia as fofocas dos colunistas sociais, e revistas, cujas goelas
tinham sempre de ser enchidas de histórias, verdadeiras ou não. Mas
também existira a afeição terna e sincera. Houve lealdades inesperadas. E
admiração. Uma equipe de câmara, um técnico de maquilagem,
encarregada de script, cabelereiro, que reconheciam Laura como uma
profissional que chegava à hora certa e não fazia ninguém esperar,
disposta a trabalhar duro como qualquer outro no estúdio, estrela ou não,
e que controlava seu temperamento a um mínimo, quando estava
trabalhando. O brilho, que o público via, se dissipava muito depressa,
quando a pessoa trabalhava no set. Lá, os outros sabiam da verdade sobre
um ator, coisa que nunca se podia esconder.
Eu a deixei falar, escutando absorta. Nada disse sobre o que Irene
me contara. Talvez Laura já o soubesse. Eu estava pisando em ovos e
tomava cuidado para não quebrá-los.
Quando Gunnar chegou, achei difícil olhar diretamente para os
olhos dele. De noite, meu sonho parecera real. Agora, o sonho tinha de
ser aniquilado. O desejo de tocá-lo e estar perto dele — esses novos
desejos que haviam surgido de repente — tinha de ser refreado.
Ele perguntou logo como eu estava passando e pareceu satisfeito ao
ver Laura e a mim tão bem dispostas uma com a outra, e fisicamente
bem. Mas eu não queria ser aprovada apenas porque estava sendo
inesperadamente gentil com Laura.
No carro, Laura e eu nos sentamos ao lado dele no banco da frente,
eu no meio, e procurei concentrar-me no aspecto agradável do passeio.
Por um tempinho, tudo o mais podia ser deixado para trás.
A casa de Gunnar, onde ele tinha morado com a mulher, situava-se
sobre a água, num bairro ao Norte de Bergen. Era uma casa moderna,
baixa, com janelões de vidro que davam para o fiorde da cidade. Um
living elegante, com madeiras em tons suaves e tapetes bege, tinha a vista
de rochedos negros empilhados num muro contra a água. Lá fora, um
caminho levava a uma praiazinha, onde a água do mar ia e vinha sobre a
areia.
A Sra. Thoresen acolheu-nos amavelmente e logo me fez sentir à
vontade. Era uma mulher alta, não bonita, mas com um ar de confiança
que, a seu jeito, era igual ao de Laura. As mulheres norueguesas eram
bem emancipadas, e muitas vezes companheiras dos maridos na
responsabilidade de ganhar a vida. Gunnar dissera que ela se interessava
em trabalhar para a cidade, e eu a imaginava a dirigir comissões,
resolvendo problemas difíceis com juízo e capacidade. O inglês dela era
excelente e ela falava com o mesmo sotaque britânico de Gunnar. Eu via
como ela se orgulhava do filho, e como seus olhos o seguiam quando ele
andava pela sala — e no entanto nada havia de tolo nem de dominador
em sua afeição. Ela lhe dava o direito de ser ele mesmo, assim como ela
era independentemente ela mesma.
Quando nos sentamos no agradável living que antes pertencera a
Gunnar e sua mulher, meus olhos foram atraídos para um retrato numa
moldura de prata, sobre o piano. Sem perguntar, eu sabia que a moça
loura e sorridente que olhava do retrato fora a mulher de Gunnar. Astrid.
Eu não queria ver o rosto dela, saber como ela era e, depois do primeiro
olhar, não tornei a olhar para o piano.
— Faz tempo demais que você não nos vem visitar dizia a Sra.
Thoresen a Laura. — Estou contente por vê-la bem e satisfeita. E estou
contente por ter trazido a Srta. Hollins para nos visitar. Gunnar me falou
tanto a respeito de seu pai, Srta. Hollins.
Eu fiquei imaginando o que ele podia ter-lhe contado sobre mim,
mas, se as palavras dele foram menos que aprovadoras, ela não o
demonstrou. Depois de conversarmos um pouco, ela nos levou para a
área de jantar da sala comprida e serviu-nos um simpático e ligeiro
almoço de canapés, dispostos de maneira ornamental.
Laura encheu a Sra. Thoresen de perguntas e a fez falar sobre seu
trabalho de auxílio ao Centro da Juventude na cidade, onde garotos e
meninas adolescentes podiam ter um lugar seu para frequentar, em
qualquer noite da semana. Eles iam lá para jogar, dançar, aprender
alguma coisa sobre as artes sociais — e talvez para fugir de casa, como
os jovens tantas vezes gostam de fazer.
— Geralmente, não permitimos visitantes adultos — disse a Sra.
Thoresen. — Somente o casal que dirige o centro está presente. Os pais
ficam afastados, porque aquele é um lugar para os jovens em si. Tem
dado certo. Há menos quebras de lâmpadas de rua, menos vandalismo e
estragos aos carros, entre esses garotos. A maior parte desses jovens não
chegará à universidade, mas poderá frequentar escolas de sua escolha —
uma escola de institutos de beleza, escola de garçons, escola de
mecânico.
Parece que Laura fora ao Centro uma vez, não como visitante, mas
para contar aos jovens como é que era ser uma atriz de cinema nos
Estados Unidos. Como o inglês era ensinado, em todas as escolas, depois,
os meninos e meninas o tinham praticado com entusiasmo, conversando
com Laura.
A hora do almoço passou bastante serenamente. Pelo menos, eu
esperava estar externamente serena. Minha nova consciência de Gunnar
me acompanhava sempre. Eu ficava olhando para ele quando ele não
sabia que eu o observava. Estudei seu rosto comprido e bonito e como
seus cabelos castanhos saíam de sua testa. Escutei os tons profundos de
sua voz, e tive consciência de suas mãos, compridas como seu rosto, com
dedos esguios e hábeis que eu sabia poderem ser delicados, mas fortes.
Depois do almoço, Laura disse a Gunnar que me levasse lá fora para
me mostrar a praia — ela queria falar com a mãe dele. Dispensado assim
imperiosamente, ele me sorriu e me levou para fora, pelas portas de
vidro. Havia crocos roxos e amarelos no jardinzinho, e a forsítia estava
pesada de brotos amarelos. A neve nas montanhas já parecia mais fina,
mais espaçada. Os dias de tempo bom e ensolarado estavam levando a
primavera à Noruega.
O efeito de meu sonho estava comigo de novo — a sensação de que
eu não queria pensar e pesar, mas que por aquele momento só queria estar
com aquele homem de quem meu pai gostava, e por quem eu me sentira
atraída desde o princípio.
Descemos por entre pedras e ele pegou minha mão para ajudar-me a
ultrapassar uma pedra grande que impedia nossa passagem para a praia.
Eu pulei da pedra e por um momento fiquei junto dele, quase dentro do
círculo de seus braços. Ele se afastou de mim propositadamente e eu
fiquei ali na areia ao lado dele, sem querer olhar para ele, depois daquele
momento de repulsa involuntária, e olhando para o barquinho puxado na
praia, para a água que roçava transparente a nossos pés. Gunnar começou
a me falar com calma, e mais uma vez eu sabia, numa revolta muda, que
ele só falaria de Laura.
— Depois do desempenho dela ontem à noite, o que você pensa? —
perguntou ele.
Levantei a cabeça, desafiando-o, e olhei por sobre a água as ilhas
mais próximas.
— Acho que ela provou o que queria provar.
— E o que não precisava propriamente provar, que ainda é uma atriz
— disse ele.
— Ela provou mais que isso. Agora, Miles tem de reconhecer o fato
de que ela tem de ter sua oportunidade. Ela não permitirá que coisa
alguma a detenha.
— E como você se sente, com relação a isso?
Aí eu olhei diretamente para ele, desafiando-o. Seria melhor para
mim se ele tornasse a me enfurecer.
— Acho que ela devia fazer o que deseja.
— Mesmo que venha a fracassar?
— Ela tem também o direito de fracassar — respondi-lhe.
— Acho que você ainda gostaria de ver isso acontecer. Acho que
você a encorajaria nesse caminho.
— Não faz muita diferença o que você acha — disse eu, duramente.
— Sei disso, Leigh. Você deixa isso bem claro.
Ele se afastou de mim pela areia e pôs um dos pés sobre o barco
virado. Eu me sentia curiosamente só e abandonada. Embora eu quisesse
desafiá-lo e enraivecê-lo, havia dentro de mim uma dor que era a soma de
todas as ocasiões em minha vida em que eu me sentira incrivelmente
sozinha. Nem Ruth, nem meu pai, nem nenhuma amiga que eu tivesse
tido podia combater aquela solidão vazia. E tudo por causa de Laura! Era
isso que eu sempre me dissera. Aquelas sensações de perda e solidão
tinham se apossado de mim e delas brotavam minhas raivas inúteis,
minha desconfiança de quem quer que tentasse alcançar-me, penetrar o
escudo que eu usava para me proteger contra mais sofrimento e rejeição.
Mas agora alguma coisa acontecera ao escudo. Sem aviso, ele estava
espatifado a meus pés e eu me encontrava exposta a emoções que nunca
sentira antes. Com essas sensações vinha uma percepção viva — a
percepção de mim mesma. Eu não estava só, porque Laura me largara e
esquecera, e portanto ninguém me podia amar. Eu estava só, porque
nunca fora capaz de amar. Nem mesmo meu pai. Nem mesmo Ruth. Eu
estava sozinha, não porque eu fora rejeitada, mas porque sempre fora eu
quem rejeitara. Eu não tinha nem mesmo amado a mim mesma.
Havia uma clareza ardente nessa nova concepção. Era assustadora e
acabrunhante. Tive um impulso louco de correr para os braços de Gunnar.
Eu queria pedir “segure-me, proteja-me — não deixe que nada me
toque!” Mas um gesto tão tolo só o alarmaria e em nada me ajudaria. Não
era de proteção que eu precisava, e sim da força de ser vulnerável. A
força de amar onde era perigoso amar— tanto Laura como Gunnar.
Falei com ele com calma, e senti o tremor desconhecido em minha
voz:
— Não é verdade que não me importa o que você ache. Importa e
muito. Você era amigo de meu pai e eu gostaria que fosse meu amigo
também. Alguma coisa me... está acontecendo. Algo dentro de mim...
desde que cheguei em Bergen. É novo... e assustador. Preciso de tempo
para compreender.
A expressão reservada dele não se alterou, mas ele me falou com
mais brandura.
— Talvez aquilo que o seu pai esperava lhe está acontecendo, Leigh.
Tentei exprimir meus sentimentos em voz alta.
— Não me importa mais que eu nada signifique para ela como filha.
Compreendo isso muito bem. O que importa é que estou começando a
conhecê-la e posso sentir afeto por ela. Não apenas porque ela é Laura
Worth, mas porque ela é tanto minha mãe como uma mulher em seu
próprio direito.
De repente, as lágrimas corriam por minhas faces e eu sabia que
eram lágrimas de alívio, brotando de uma fonte que estivera gelada a
maior parte de minha vida. Gunnar veio pela areia e pôs os braços em
volta de mim, como eu desejava que ele fizesse.
— Seria bom se seu pai estivesse aqui agora, se ele pudesse abraçá-
la assim.
Eu não queria que ele me abraçasse como meu pai o faria. Mas isso
também não importava. Onde não havia ninguém e nada, agora existiam
duas pessoas de quem eu podia gostar. Ambos podiam magoar-me,
humilhar-me, largar-me. E isso também não importava. O degelo já tinha,
progredido demais para ser detido, e chorei no ombro de Gunnar,
enquanto ele alisava meus cabelos e me segurava até eu me acalmar. Aí,
eu me afastei dele por minha vontade e enxuguei os olhos com o lenço
grande que ele me ofereceu.
— Dói muito amar — disse eu, assombrada. Eu nunca soube que
podia doer tanto.
O sorriso dele era sério.
— É. Amar é uma coisa que dói — disse, e eu sabia que ele se
estava lembrando de Astrid.
— Assim mesmo, é melhor estar viva e ser capaz de sofrer. — Eu
sentia meu próprio espanto de poder dizer tais palavras e acreditar nelas.
E agora, como você tem esse novo sentimento por Laura —
continuou Gunnar —, deve ajudar-nos a desencorajá-la dessa loucura que
ela pretende fazer.
Por um momento, fiquei olhando para ele, desamparada. Eu estava
descobrindo mais alguma coisa sobre meus sentimentos. Havia lealdade,
além do amor.
Sacudi a cabeça violentamente.
— Não! Estou do lado dela. Se é isso que ela deseja, tem de voltar e
enfrentar o mundo que ela abandonou, e tornar-se aquilo para o que está
preparada, como nunca esteve antes. Acho que ela poderá ser a maior
atriz dos Estados Unidos hoje, se fizer o que quer.
Ele ficou realmente zangado diante disso. Vi a tempestuosidade de
seu próprio país rude em seus olhos. Vi o que ele acreditava e sabia que
ele não mudaria. Tudo o que eu dissera sobre o amor tinha sido apagado,
porque ele ainda pensava que eu pretendia castigar Laura, que eu queria
vê-la provocar a sua própria destruição.
Eu pretendia contar a ele o que acontecera na noite anterior, e o que
Irene me confiara naquele dia. Agora, nada lhe contaria. Virei-me, tão
zangada quanto ele — e desesperadamente magoada. Voltei para casa e
ele foi atrás de mim pelo caminho, com seus passos compridos, à tempo
de abrir as portas para mim, geladamente cortês.
Encontramos Laura e a mãe de Gunnar conversando calmamente no
living, onde as havíamos deixado. De sua moldura no piano, o rosto de
Astrid me sorriu, como me reconhecendo. Agora, eu teria gostado de
saber a respeito dela. Queria saber o que ela fazia quando Gunnar se
congelava numa imitação de seu inverno norueguês. Ou será que ele
nunca se congelara contra ela? Ela tinha um rosto suave e sorridente. O
que significara ela para ele? Quanto o amara? Tudo isso eu queria saber
— e nunca saberia.
Olhei pela sala para Laura, e a vi, não como a atriz que eu admirara,
mas como mulher. Tempestuosa, imprevisível, muitas vezes absorta em si
e complacente consigo mesma — e no entanto tendo em sua natureza
complexa tanta coisa mais do que eu tinha querido admitir. Ela realmente
tivera a força de ser ajuizada nos momentos mais difíceis de sua vida; a
força de reconhecer que, para ela, o trabalho tinha de vir primeiro, e que
ela destruiria todos os que se aproximassem demais. Pela primeira vez
compreendi que essas decisões não eram tomadas impiedosamente, nem
sem dor e sacrifício — mas devido a seu conhecimento de si. Outras
mulheres, que tinham a mesma compulsão para se tornarem estrelas,
tinham tentado o caminho oposto, e muitas vezes suas vidas eram cheias
de casamentos desfeitos, e filhos ainda mais amargamente feridos do que
eu fora. Laura, pelo menos, não tentara o casamento até estar livre de
Hollywood.
Ela deve ter sentido minha atenção sobre ela, pois me lançou um
olhar do outro lado da sala — e me deu seu famoso sorriso. Era o sorriso
de Maggie Thornton, mas agora eu sabia mais alguma coisa a respeito
dele. Antes de tudo, era o sorriso de Laura. Meus próprios lábios
moveram-se numa estranheza, uma expressão que não me era costumeira,
e eu sabia que lhe estava sorrindo de uma maneira nova. Ela reconheceu
a diferença, e a interpretou melhor que eu.
— Está vendo! — disse ela a Gunnar com um ligeiro triunfo na voz.
— Nós agora somos amigas, eu e Leigh.
Eu sabia muito bem que ela se orgulhava de me subjugar. Mas, uma
vez na vida, não me irritei. Eu havia de aprender a aceitar o que ela podia
dar, sem pedir-lhe mais. E, embora desajeitadamente, eu lhe daria em
troca uma coisa que ela nunca conhecera — e talvez não prezasse — o
afeto de uma filha.
— Não tenho muita certeza de que são amigas — disse Gunnar,
sombriamente. — Talvez você confie muito facilmente, Laura.
Ela o ouvira, sem dar atenção a suas palavras, embora eu agora
soubesse que ele não confiava em mim e que me intrigaria com ela a toda
oportunidade.
— Gunnar, toque seu violino para nós, para Leigh — pediu Laura.
— Estou certa de que ela nunca ouviu um violino Hardanger.
Ele foi até um armário e pegou o instrumento. Depois, trouxe-o para
mostrar-me com uma polidez fria, explicando que o violino camponês era
conhecido na Noruega desde 1600. Tinha oito cordas, sendo quatro
inferiores. Era chato, lindamente incrustado com madrepérola e encimado
por uma cabeça de leão coroado. Foi na cidade de Hardanger que se
começou a fazer esses violinos, e por isso eles tinham esse nome.
— Um amigo do campo me ensinou a tocar, quando eu era menino
— disse Gunnar. — O volume é alto. É melhor tocado lá fora.
Ele abriu as portas que davam para o muro rochoso que nos
separava do mar e passou por elas. Nós ficamos dentro de casa, ouvindo-
o. A música era estranha e animada, as melodias campestres parecendo
um pouco com o som de canções escocesas, tocadas em gaita de foles.
Era esse o som que eu ouvira naquela noite, em Kalfaret. Era uma música
de dança, mas também tinha um tema louco, quase triste, que pertencia às
montanhas, vales e fiordes da Noruega. Embora a gaita de foles fosse um
instrumento de sopro e o violino Hardanger de cordas, a música era
polifônica e muito semelhante.
Fiquei olhando para Gunnar, enquanto ele tocava, e senti a dor de
uma nova tomada de consciência. Era uma dor contra a qual eu não me
rebelava, como outrora podia ter feito. A novidade de estar inteiramente
viva — de me tornar vulnerável — era uma coisa que eu não rejeitaria.
Laura batia o pé ao compasso das melodias e sorria, com prazer.
— Você devia ver as danças — disse-me ela. — As roupas de
camponeses são diferentes para cada região, e são incrivelmente belas.
Os homens também se fantasiam, e é tudo muito empolgante. Se você
fosse ficar aqui mais tempo, nós iríamos a Fanaseter quando começasse a
temporada, para vê-los a executar as velhas danças lá na fazenda.
Havíamos de comer queijo de leite de cabra e aqueles waffles pequeninos
e deliciosos, em forma de coração, servidos frios. Mas não há tempo, não
há mesmo.
Gunnar ouviu-a e parou de tocar, entrando na casa.
— Por que não há tempo?
— Já escrevi várias cartas — disse-lhe ela. — Já comecei a tomar
providências. Não vou esperar. Vou acompanhar minhas cartas em
pessoa. E Leigh vai voltar para Nova York.
— Tendo feito aqui todo o mal que pode — disse Gunnar, não se
dando mais ao trabalho de ser educado.
Laura levantou-se do sofá e dirigiu-se diretamente a ele.
— Ah, não! Você não compreende. Leigh me fez voltar à vida. Ela
me desafiou, me desaprovou, me sacudiu, fazendo-me viver. Ela me fez
ver que eu estava tendo pena de mim mesma e bancando a covarde.
Agora, estou disposta a correr os riscos que forem necessários. Ela me
restituiu a vontade de querer encarar a vida outra vez.
— E todas essas coisas seu casamento não fez por você? —
perguntou Gunnar.
A mãe dele remexeu-se no sofá e falou-lhe com firmeza.
— Vamos! Vamos! Não deve dizer essas coisas à nossa convidada.
— Já passou a hora de ser educado — retrucou Gunnar, igualmente
firme. — Você não sabe tudo o que tem acontecido, Mamãe.
Laura se aproximou de mim e tocou em meu braço.
— Está na hora de irmos, Leigh. Gunnar está num de seus estados
sombrios de norueguês. — Ela foi até junto da Sra. Thoresen e beijou-a
levemente no rosto. — Eu a verei de novo antes de partir, e
conversaremos bastante. Gunnar, onde estão nossos casacos, por favor?
Ela saiu com dignidade e, se as palavras dele sobre seu casamento
tinham penetrado sua reserva, ou a tinham ferido, ela não o demonstrou
em absoluto. Ele nos conduziu calado, na volta a Kalfaret. Quando ele
saltou do carro ao pé da escada, Laura puxou-lhe a cabeça para baixo e
beijou-o no rosto, como tinha beijado a mãe dele.
— Daqui a pouco, você não mais estará zangado conosco. Estou
antecipando uma noite deliciosa no teatro, quarta-feira. Vamos no nosso
carro e o encontramos lá?
Seus modos bonitos eram sempre cativantes, e ele lhe deu um
sorriso forçado, concordando. Mal me dirigiu um olhar, quando me
despedi e acompanhei Laura pela escada.
Acima de nós, esperava a casa, e a conhecida sensação de
pressentimento me dominou, enquanto seguíamos o comprido passeio
pelo lado e esperávamos que Irene nos abrisse a porta da frente.
13
Naquela noite começou a chover, e eu descobri como era a chuva
em Bergen. Choveu todo o dia seguinte e as águas da baía e dos lagos
tornaram-se cinza. As nuvens fervilhavam pelas montanhas e o Ulriken
ficou perdido num dossel negro. A chuva batia nos crocos do jardim, nos
telhados íngremes, e a água corria pelas sarjetas. O tráfego não diminuiu,
nem os habitantes da cidade ficavam dentro de casa por causa do tempo.
A chuva era um estado normal e não desviava ninguém de seus afazeres.
Laura não ficou deprimida com o mau tempo, mas eu comecei a me
sentir encurralada e inquieta. Agora, eu tinha tempo demais para pensar,
coisa demais para pesar e indagar, emoções desconhecidas para controlar.
Eu quase não deixava Laura sozinha e, se seu novo marido gostava disso
ou não, o fato é que eu dormia no quarto dela de noite. Ela me queria lá e
eu não fiz qualquer esforço para me opor a sua vontade.
Nada tinha realmente mudado entre nós, a não ser dentro de mim.
Talvez eu fosse um pouco mais delicada com ela, mas ela continuava
mordaz e dominadora comigo. Ela sabia que alguma coisa cedera dentro
de mim, mas não se aproveitou do fato. Se possível, mantinha-se ainda
mais a distância, tornando bem claro que para ela eu era uma jornalista, e
nada mais.
Parece que a chuva afetou também os outros membros da casa.
Miles e Donia andavam aos trancos, Irene os vigiava com desconfiança e
tinha dificuldade em se controlar e não ser mal-educada com Donia. Acho
que nós todos nos vigiávamos. Todos, isto é, a não ser Laura. Como ela
sabia onde estava o perigo, descansava em minha companhia e conseguia
rir-se do que quer que a ameaçasse.
O problema de passaporte, reservas de avião, tudo isso ela estava
providenciando ativamente, sem pedir ajuda de ninguém, sabedora de que
os outros poderiam impedir e atrasar seu propósito. O dia de sua partida
ainda não estava marcado, mas seria dentro de uma ou duas semanas, ela
tinha certeza.
Não fiz planos para mim. Não tinha planos. Quando Laura partisse,
eu supunha que voltaria para Nova York. Não sabia se a veria de novo,
embora fosse sentir falta dela. Agora, eu aceitava isso. Gunnar eu
provavelmente nunca mais veria, e isso me deixaria com um vazio
dolorido por muito tempo. De volta a Nova York, eu só podia esperar que
minha velha vida me envolvesse de novo. Não seria mais a mesma pessoa
que era quando parti, mas não sabia ainda como se processaria a mudança
em mim. Só o que eu pensava era que se adiantava eu começar a viver, a
aprender a sentir essas novas emoções, quando ambas as pessoas por
quem eu podia sentir mais fortemente em breve desapareceriam de minha
vida!

Era de tardinha na quarta-feira, o dia do teatro. Nós não nos íamos


encontrar no teatro, afinal. Miles pretendia levar-nos para jantar cedo, e
convidou Gunnar também. Eu tinha descido para colocar um vestido de
seda azul-anil, que era o único mais de festa que eu trouxera. Laura disse
que em Bergen não se usava traje rigor no teatro, mas parece que ela ia
tornar-se uma exceção para a regra, pois eu vira o vestido de organza
marrom e branco que ela pusera sobre a cama. Era um modelo da alta
costura, de um feitio que não tinha idade. Irene iria ajudá-la a vestir-se e
eu estava em meu quarto do andar de baixo, pondo brincos de marfim
entalhado e escutando a chuva.
Laura bateu na porta e entrou correndo, ofegante, com um négligé
meio solto em volta do corpo.
— Você viu Irene? Ela ia me ajudar a vestir-me.
— Não a vi — disse eu. — Mas eu a ajudo, se quiser. Estou bem
para a noitada?
— Ela mal olhou para mim, e atravessou o quarto diretamente para
o retrato, pendurado na parede, virado para fora, como eu o deixava.
— Olhe! — exclamou ela, a voz embargada.
Fui para junto dela e vi que uma coisa nova tinha sido acrescentada
ao jogo fantástico. Onde eu rabiscara um O para impedir X de ganhar o
jogo, agora havia um grande X por cima do O.
Laura agarrou meu braço e seus dedos pareciam gelo, e seus dentes
tinham começado a bater.
— Não fique assim — disse eu. — Isso nada significa. Não deve
ficar perturbada com esse tipo de bobagem. Eu fico com você. Nada vai
acontecer. Alguém quer assustá-la, e você não deve permitir que o
consiga.
Ela ficou olhando para sua figura mais jovem no retrato — aquela
linda moça, pronta para o amor.
— É o começo do fim — disse ela. — O aviso final. O tempo está
passando.
Comecei a protestar, a acalmá-la, mas ela se virou para o outro lado.
— Tenho de encontrar Irene. Ajude-me a procurá-la, Leigh.
Eu não via por que ela achava tão urgente encontrar Irene, mas fiz-
lhe a vontade. Enquanto ela procurava numa parte do andar térreo, eu
procurava em outra. Não encontramos ninguém.
— Ela não está lá em cima, tampouco — disse Laura. — O quarto
dela está vazio, e Miles e Donia dizem que não a viram. Temos de
encontrá-la, Leigh. É preciso!
— Talvez ela tenha saído para fazer alguma compra — sugeri. —
Por que não me deixa ajudá-la a vestir-se, e esperamos que ela volte?
Mas ela não queria esperar.
— Não. Tenho a impressão de que há alguma coisa errada. Leigh,
ponha sua capa de chuva e procure no jardim, procure em volta da casa,
lá fora.
A ansiedade dela era contagiosa, e comecei a ficar aflita, enquanto
vestia a capa de chuva e calçava botas e amarrava um lenço no cabelo.
Ela me abriu a porta da frente, onde eu podia espiar pelo caminho que
dava para a escada da rua. O quintal do lado estava vazio. Um vento
violento começara a soprar e a chuva batia em meu rosto, açoitava os
galhos das árvores e enchia a tarde cinzenta com uma confusão de sons.
Dei a volta pelos fundos da casa, chapinhando pela lama, e ali só um
espaço pequenino se interpunha até o morro íngreme. Ninguém poderia
ter subido por ali e apressei-me a ir para o lado da sala de jantar, onde
havia um jardinzinho, com canteiros que estavam começando a esverdear.
Eu a vi logo. Estava de cara virada para baixo, numa poça escura,
enquanto a chuva lhe batia nas costas. Estava sem casaco, como se não
pretendesse sair de casa, e seu vestido cinzento já estava ensopado. O seu
coque de cabelos escuros tinha se soltado e estava espalhado, molhado
sobre seus ombros. Ajoelhei-me e toquei nela, chamando seu nome.
Quando ela gemeu baixinho e se moveu a meu toque, corri para as portas
da sala de jantar, onde Laura me estava esperando.
— Encontrei-a. Temos de chamar alguém para ajudar a levá-la para
dentro — disse eu. — Está deitada lá fora perto do canteiro.
Laura levou a mão à boca e recuou para dentro da sala, quando
passei por ela.
— Miles — disse eu. — Vou chamar o Miles.
Por um momento, ela fez um movimento como que para me deter.
Depois caiu numa poltrona de couro e ficou ali sentada, tremendo. Não
parei para tirar minhas roupas molhadas, mas corri para cima, chamando
o Miles. Tanto ele como Donia apareceram nas portas de seus quartos e
ficaram olhando para mim.
— É Irene! — gritei. — Está deitada no jardim perto das portas da
sala de jantar. Acho que está ferida.
Miles desceu a escada, correndo, e Donia acompanhou-o. Laura
continuava sentada na cadeira, enquanto Donia e eu ficamos olhando
Miles sair na chuva e pegar o corpo inerte de Irene nos braços. Abrimos
as portas enquanto ele a levava para dentro da sala, a água escorrendo —
como Gunnar me carregara dois dias atrás. Donia correu para pôr uma
manta de lã sobre o sofá do living, e Miles deitou Irene com cuidado. Ela
se mexeu e levou uma mão aos cabelos molhados.
— Minha cabeça — gemeu. — Está doendo.
Miles curvou-se para examiná-la e encontrou o machucado do lado
da cabeça. Fiquei olhando para ele, sentindo-me tão fria quanto Laura, e
vendo que meus dentes também queriam bater. Só havia terra macia, no
jardim, no lugar em que Irene caíra — nada havia lá, que eu visse, que
pudesse fazer aquele machucado na cabeça dela, ao cair.
Voltei à sala de jantar, onde Laura estava sentada, encolhida na
cadeira. Ela levantou os olhos, cheios de terror.
— Então já começou — disse ela. — É o começo do fim. Aquela
cruz na tela e agora Irene...
— Não se descontrole — disse-lhe eu, bruscamente. — Vou lá fora
procurar uma coisa.
Ela ficou onde estava, agarrada aos braços da cadeira com mãos
tensas, enquanto eu ia para o jardim chuvoso. Encontrei o que procurava
imediatamente, mas senti um momento de fraqueza, antes de conseguir
abaixar-me para apanhar o comprido castiçal de bronze, caído na grama
marrom. Da última vez que eu o vira, estava numa mesa junto das portas
da sala de jantar, onde Laura o deixara quando o levara para baixo.
A chuva teria lavado qualquer impressão digital — não fazia mal
apanhá-lo. O corpo curvo do dragão enroscado na haste estava frio
quando o peguei, e as escamazinhas davam uma sensação desagradável
ao tato. Levei-o para onde se encontrava Laura.
Ela cobriu o rosto quando o viu, e eu levei o castiçal para a sala
onde estava Irene. Ela olhou em minha direção quando entrei e viu o que
eu estava levando. Vi o choque em seus olhos quando ela os fixou no
bronze. Entreguei o castiçal a Miles, embora ele parecesse relutar em
pegá-lo, e fiquei observando-o, a ele e a Donia.
— Alguém deve tê-la derrubado com isso — disse eu. — Como foi
que aconteceu, Irene? Você estava sem casaco, por que estava no jardim?
Ela ia dizendo alguma coisa, e aí olhou para a porta. Virei-me e vi
Laura entrando na sala, devagar. Irene fechou os olhos e nada disse.
Eu insisti, a despeito da desaprovação de Miles.
— Quem a derrubou, Irene?
Laura aproximou-se do sofá e ficou olhando para ela, de modo que,
quando Irene abriu os olhos, viu Laura ali, junto dela.
— Não sei — murmurou ela. — Não me lembro do que aconteceu.
Laura a havia calado. Era Laura quem não permitia que se
pronunciasse aquele nome.
— Você já vai melhorar — disse Miles a Irene. — Uma ligeira dor
de cabeça, talvez. Vou dar-lhe uma coisa para tomar.
Suas palavras pareciam forçadas, despreocupadas demais, nas
circunstâncias. Eu não podia suportar o que estava acontecendo.
— Escutem! — exclamei. — Temos de fazer alguma coisa! O
retrato de Laura foi mutilado. A correia do esqui dela foi danificada. Eu
fui empurrada pela escada. E agora isso. No entanto, ninguém faz
perguntas, nem aponta um dedo. O que é que vocês todos sabem que os
leva a calar-se? Estão esperando que alguém seja assassinado?
Irene fechou os olhos, como se a estridência de minha voz lhe
incomodasse. Os três outros ficaram olhando para mim, mas não uns para
os outros.
— Ninguém foi gravemente ferido — disse Laura. — Deixe isso
para lá, Leigh.
Miles inclinou-se para Irene, ignorando-me.
— Quer subir para seu quarto?
Se Irene sentia alguma dor ou tontura, ao se endireitar, escondeu o
fato.
— Sim, por favor; vou subir.
— Segure no meu braço — disse Miles.
Enquanto ele esperava que Irene se firmasse, olhou para Donia pela
primeira vez, e a irmã lhe devolveu o olhar. Pareceu-me que lançavam
um desafio entre si — um tinha desafiado, e outro apanhara a luva
imaginária. Mas eu não sabia quem era quem.
— Você está bem? — perguntei a Laura.
Ela parecia ter-se recuperado, sacudiu a cabeça, quase com
ferocidade.
— Estou. Se quiser subir para me ajudar a vestir-me
— Ainda pretende sair? — perguntei, espantada. — Depois do que
aconteceu...
— Claro que vamos sair. Irene vai ficar contente de poder ficar
sozinha. Ela sabe que está perfeitamente segura, numa casa vazia. Mais
segura do que se algum de nós ficasse em casa.
— Como é que você pode... — comecei, mas ela me sacudiu a
cabeça, a expressão tensa.
— É preciso. Preciso — disse ela. — Por mais alguns dias, é
preciso.
Miles ajudou Irene a ir para o quarto dela e Laura os seguiu, eu indo
bem atrás. Depois de certificar-se de que tudo fora feito como Miles
queria, levou-me para seu quarto e tirou o négligé.
Ajudei-a, contra a vontade, a vestir o vestido marrom e branco de
organza. Era um vestido espetacular, com uma barra comprida e
esvoaçante e um decote cavado, debruado de branco. Ela o realçou com
joias de ouro — um colar e brincos delicados.
Eu olhava para ela num assombro incessante. Queria fazer-lhe
perguntas, mas sabia que era inútil. Ela tinha suas suspeitas do que
acontecera no jardim, mas não tinha intenção de me revelar o que era.
Parecia cheia de uma energia nervosa, quase com uma animação que eu
não entendia. Era como se sua coragem aumentasse quando havia provas
de perigo por toda parte. Irene falara em assassinato, e Irene tinha sido
derrubada. No entanto, quando puxei o fecho do vestido de Laura, ela
estava olhando para sua imagem bela e pálida no espelho comprido,
como se aquela fosse uma noite comum e nada de mais tivesse
acontecido.
— O aviso de X não deu em nada — disse ela. — Eu poderia estar
morta a essa hora, mas não estou. Estou viva.
Concordei com ela, secamente.
— Há dois dias, houve outro ataque. Daquela vez, fui eu a vítima.
Agora, foi Irene. Em ambos os casos, podia ter sido você. Não acha que é
melhor salvar-se, e a nós, falando a verdade?
Ela prendeu uma pulseira de filigrana no pulso, sem olhar para mim.
— Não. Ainda não. Tenho minha reserva no avião para sábado.
Restam apenas alguns dias para passar. Aí estarei livre, segura.
— Miles sabe quando você vai partir? Ou Donia?
— Nenhum dos dois sabe. Você me levará ao avião, de táxi. Depois,
vai partir de Bergen.
— Deixando Irene à mercê deles?
— Ninguém será prejudicado, depois que eu partir. Sou eu o
elemento marcado. Eles se separarão. Não ficarão na casa.
— Espero que você saiba o que está fazendo — disse eu, duvidando.
— Quer que eu vá com você?
A imagem dela no espelho lançou-me um olhar espantado.
— Até Hollywood? Mas, naturalmente, isso seria muito bom para
seu artigo, não é? Um relato em primeira mão da volta de Laura Worth!
— Sim, seria muito bom — concordei, calmamente.
Ela se virou do espelho, uma visão em organza marrom, a palidez de
seu rosto combinando muito melhor com o vestido do que uma tez
corada. Só seus lábios estavam vermelhos. Suas pestanas compridas
estavam pintadas de negro, as pálpebras levemente de azul.
— Não tente cuidar de mim — disse ela. — A não ser durante algum
tempo, pois nunca fui do tipo de me encostar. Não quero uma filha em
minha vida. Nunca quis. Volte para Nova York e esqueça-se de mim,
Leigh Hollins.
— Farei isso — respondi com cuidado, sem nada revelar. Era isso
que eu merecia, por me ter entregue demais, daquele dia, na casa de
Gunnar.
— Vamos sair daqui a pouco — continuou ela. — Uma pena estar
chovendo, mas tenho uma capa que posso pôr por cima do vestido. E
você está pronta, de capa e botas. Está quase na hora de sair. Vou dar uma
espiada em Irene e depois chamamos os outros.
Ela estava controlando tudo — ela mesma e a situação. Podia ser
dura — sem sentimentos, sem empatia. Uma vez ela me dissera que tinha
de viver de dia a dia — e era exatamente isso que estava fazendo. Talvez
de hora a hora. Eu desejava, para minha própria salvação, poder voltar a
detestá-la. Mas agora, embora me pudesse ferir como nunca pudera, eu
não estava mais zangada com ela — apenas assombrada. Ela tinha uma
força que me fazia achar que eu era barro mole, em comparação. Eu tinha
deixado de conhecer minha própria forma e feitio.
Ultimamente, era muito frequente eu sentir uma sensação de
lágrimas ardendo por trás dos olhos, uma sensação de desejos, embora
não tivesse certeza do que desejasse. Talvez o que realmente me faltava
era o alívio de minha antiga raiva protetora. Eu queria meu escudo de
volta — aquele escudo que por tanto tempo me protegera de males
externos. Só que ele agora desaparecera, talvez para sempre. Fiquei
observando Laura, e vi que, por mais desorientada que ela fosse, era bela
e corajosa e invencível. Eu queria vê-la escapar do que quer que fosse
que a atormentava, e sabia que me entregaria a ajudá-la nisso — quer ela
me agradecesse ou não. Pelo menos ela se utilizaria de mim, e por mais
algum tempo eu poderia ficar junto dela, poderia aquecer-me diante de
sua chama ardente. Era um desejo que eu nutrira toda minha vida, e que
eu negara. Sempre fizera parte de minha admiração pela atriz, Laura
Worth, embora eu me tivesse convencido de que era só a atriz que eu
admirava.
Ela me olhava de maneira estranha, indagadora, e virei-me para o
lado, não querendo que ela visse demais.
— Está pronta? — perguntei.
A capa que ela jogou sobre os ombros era de gabardina vermelha,
espetacular, com um capuz de veludo negro para proteger o cabelo. Ela
nada pôs sobre seus sapatinhos frágeis e pensei que talvez se
estragassem, a caminho do carro.
N o hall, ela foi diretamente ao quarto de Irene, pedindo-me que
chamasse Miles e Donia. Parei junto da porta de Miles, mas antes de
poder bater, ouvi vozes. Eu sabia que ele estava falando com a irmã, e
escutei atentamente, esperando alguma revelação.
— Vou arrumar sua reserva no avião para voltar para casa assim que
puder — dizia ele, zangado. — Já suportei bastante, não quero mais saber
disso.
A resposta de Donia veio numa voz tão sufocada que eu não
consegui distinguir as palavras.
— Vamos indo — disse Miles, brevemente. — Pegue suas coisas, já
vamos sair para o teatro.
Dessa vez, ouvi sua resposta estridente:
— Não vou! Prefiro ficar em casa a...
— Você vai, sim — disse Miles, e eu a ouvi soltar uma exclamação,
como se ele a tivesse tocado com brutalidade.
Recuei da porta e, quando Laura saiu do quarto de Irene, Miles e
Donia saíram do dele. A cabeça de Donia estava abaixada, enquanto ela
punha um capuz de plástico. Laura lançou-lhe um rápido olhar e depois
desviou os olhos, e nós todos descemos.
Fomos de carro pela chuva para a cidade e só Laura parecia estar
propositadamente alegre e descuidada. Esta era a defesa dela, eu sabia —
sua defesa corajosa contra fosse o que fosse que a ameaçava. Quando
Gunnar nos encontrou no simpático restaurante do Hotel Orion, sua
insistência sobre um estado de espírito festivo surtiu efeito sobre nós
todos. Quando comecei a contar a Gunnar sobre o que acontecera em
casa, Laura me interrompeu logo, seu olhar um pouco vivo demais, seus
modos imperiosos.
— Hoje, não vamos falar de nada desagradável — disse ela, com
insistência. — Esta noite vai ser maravilhosa. Uma noite para se recordar.
— E dedicou-se a torná-la isso, a despeito das tensões que podiam estar
sob a superfície, para todos nós.
Só quando se tratava de Miles é que ela às vezes se mostrava
insegura, como se estivesse dividida entre cativá-lo ou desafiá-lo. A
reação dele era cuidadamente polida, mas eu sabia que ele a vigiava
como se esperasse alguma coisa que sabia estar prestes a acontecer.
Alguma quebra da proteção dela? Eu fiquei cismada.
Eu estava sentada ao lado de Gunnar e ele conversou comigo
amavelmente, embora estivesse observando os modos elétricos de Laura
com desânimo. Era como se também ele estivesse esperando um colapso.
Não me lembro do que eu comi naquela noite, embora a comida
fosse boa, todos se diziam isso. Depois fomos para o teatro em dois
carros. Laura insistiu para irmos, ela e eu, com Gunnar, deixando Miles
para levar a irmã. Ela parecia estar inquieta por causa de Miles, e pensei
se ele estaria pressionando-a para não ir à Califórnia. Pensei também em
como os irmãos iam discutir a caminho do teatro. Mas não havia como
saber, quando chegamos e saltamos dos carros, apressando-nos pela
chuva para o saguão do imponente prédio de pedra cinza do Teatro
Nacional. Donia não parecia nem mais nem menos antipática que o
normal.
No saguão de mármore, esperamos que os homens estacionassem os
carros, e Laura era uma figura espetacular, com sua longa capa vermelha.
Ela tirou o capuz e seus cabelos brilhavam escuros e sedosos à luz dos
candelabros. Em volta de nós, as pessoas entravam, vindas da chuva —
um público tranquilo, bem educado, de idades variadas, embora talvez
com poucos jovens para essa peça nostálgica. As pessoas olhavam para
Laura, e talvez houvesse quem a reconhecesse, mas a boa educação
imperava e não fomos perturbadas.
Quando os homens voltaram para junto de nós, passamos pelas
portas de vidro e subimos a escadaria de mármore coberta de tapetes
vermelhos, onde bustos de homens famosos olhavam para nós de seus
nichos na parede. Aquela escadaria fora feita para gente vestida
esplendidamente para a noite, como estava Laura. Ela subiu ao lado de
Miles, a capa esvoaçando, a cabeça erguida. Vi o olhar de ressentimento
de Donia, enquanto ela e eu subíamos a escada ao lado de Gunnar.
O hall superior ficava num semicírculo e havia quadros nas paredes.
Nosso camarote tinha seu próprio vestiário e um porteiro vendeu
programas a Miles, e nos conduziu a nossos lugares. Laura, Donia e eu
ocupamos as cadeiras vermelhas junto ao parapeito, com os homens logo
atrás. Laura escolheu a cadeira mais perto do público e olhou para o
teatro, que se enchia, com uma certa arrogância majestosa que só podia
ser adotada por uma mulher que conhecesse sua própria importância. Ela
era tão evidente quanto o palco de cortina azul, e as pessoas se viravam
para ela, enquanto o público se instalava nas cadeiras estofadas de
vermelho. Até as pessoas dos balcões olhavam para ela, e não havia
dúvida sobre qual de nós era o centro de interesse do teatro. As pessoas
fingiam não olhar, mas olhavam, e adivinhei que ela fora reconhecida.
Atrás de mim, Gunnar ria-se baixinho, satisfeito com o
reconhecimento. Ele se inclinou para mim.
— Foi para isso que ela nasceu. Está com quase 60 anos, e não há
uma mulher na sala que se compare a ela.
Eu concordei plenamente.
— Acho que ela é fabulosa — cochichei de volta.
Atrás de Laura, Miles observava, com uma desaprovação sombria,
não gostando de nada daquilo. Ele ouviu minhas palavras e me franziu a
cara, e depois curvou-se para a esposa.
Antes que ele pudesse falar, eu o impedi.
— Deixe que ela tenha seu momento de popularidade. Talvez ela
precise mais disso que nós, pessoas comuns, possamos imaginar.
As luzes começaram a se apagar. Aproximava-se o velho momento
da mágica do teatro. No camarote diante de nós, duas mulheres que
tinham se mantido nas sombras se adiantaram para sentar-se ao lado do
homem, junto ao parapeito. Que diferença de Laura! A cortina externa
levantou-se para ceder lugar à interna e vimos que a cabeça de um tapete
de urso aparecia impudentemente por baixo das dobras da cortina. As
conversas diminuíram, cessou o ruído de os programas sendo folheados,
a cortina abriu-se, revelando a cena de uma casa em Brooklyn, no
princípio do século.
Talvez fosse uma casa de Brooklyn com um sotaque norueguês,
quando elas surgiram no palco, pareceu espantoso ouvir as duas irmãs
conspiradoras falando norueguês. Não obstante, embora eu não
compreendesse uma palavra, a comédia me empolgou. Por algum tempo
consegui esquecer-me de Kalfaret, esquecer aquele castiçal de bronze e
Irene deitada de bruços na chuva. Teddy Brewster fez sua famosa corrida
pela escada, gritando “avançar!” em inglês, ao assaltar seu próprio monte
de San Juan, e a plateia deu gargalhadas. A garrafa de vidro representou
seu papel mortífero e o romance começou a se desenrolar. Durante as
longas falas que eu não entendia, as vezes eu olhava para Laura, e vi que
ela parecia estar tão absorta quanto uma criança. O brilho de uma luz
quente, rosa-amarelada do palco tocou suas faces, seus lábios
entreabertos, refletindo-se luminosamente em seus olhos. Ela estava se
deleitando naquele mundo do faz-de-conta que ela tão bem conhecia, e
fiquei contente de que ela pudesse ser transportada para fora de si por
algum tempo, libertada do terror que dominava sua vida.
Nas sombras atrás dela, Miles permanecia sentado, imóvel,
parecendo não se mexer. Ele nem ria nem aplaudia. A meu lado, Donia
era a mais irrequieta do camarote. Não conseguia ficar sentada na cadeira
sem se remexer, olhava para Laura, para mim e às vezes para o irmão, no
fundo do camarote. Acho que ela mal tomou conhecimento do que se
passava no palco.
Quando a cortina se fechou no final do Primeiro Ato, e as luzes se
acenderam, Gunnar inclinou-se para mim.
— Quer dar uma volta? Há uma sala onde se pode tomar alguma
coisa e, se você quiser...
Foi Donia quem o fez parar, com um de seus gritinhos estranhos.
— Olhei — exclamou ela, sem fôlego.
Ela estava olhando para Laura, eu e Gunnar fizemos o mesmo.
Laura não se mexera desde que a cortina fechara. Não tomava
conhecimento do movimento no teatro, nos outros camarotes. Seus olhos
estavam fitos sem piscar sobre a cortina, e ela não estava mais encantada.
Miles reparou e, levantando-se no camarote, colocou a mão em seu
ombro, curvando-se para ela. Ela recuou da mão dele, com uma careta.
— Estavam falando em assassinato ali — disse ela baixinho. — Esta
peça brinca com assassinato.
— Claro — disse Miles, mas ele olhava para ela com desconfiança.
— Você conhece bem essa peça antiga.
— Laura saiu da cadeira e levantou-se.
— Quero ir para casa. Não quero ver o resto.
Ficamos olhando para ela, admirados diante de tão súbita
reviravolta. Acho que Miles ia mostrar-se firme e insistir para que ela
ficasse até o fim, mas Gunnar foi mais rápido que todos nós.
— Claro, Laura — disse ele. — Se a peça não lhe agrada, sinto
muito. Claro que não deve ficar, se a contraria.
Ela olhou para ele com gratidão.
— Obrigada por compreender, Gunnar. É uma coisa que não posso
evitar. Mas agora sei o que tenho de fazer. Você deve voltar conosco para
casa. Você sabe manejar o projetor e...
Miles interrompeu-a.
— Projetor! Laura, de que é que você está falando?
— Tenho de vê-lo! Miles, por favor, não tente me impedir. Agora é a
hora! Tenho cópia do filme Sussurros. Gunnar nos ajudará. Agora, hoje.
Quero passá-lo. Preciso, preciso!
Foi Gunnar quem a acalmou.
— Irei, se seu marido permitir. Se, de algum modo possa ajudá-la o
fato de assistir a esse filme, então talvez seja isso que você tenha de
fazer.
Miles ia protestar, mas ela não o quis ouvir.
— Quero que Leigh veja o filme — disse ela.
— Eu já o vi várias vezes — disse-lhe, mas ela não prestou atenção.
Já estava subindo os poucos degraus que davam para o camarote. Nada
havia a fazer senão acompanhá-la. Miles estava claramente furioso, mas
não podia impedi-la.
Nós vestimos nossos casacos e Laura foi a primeira a sair, em sua
capa escarlate. Os espectadores se afastavam diante dela. Seu próprio
modo de andar, rápida e segura de si, abria caminho.
Enquanto esperávamos na escadaria que os homens trouxessem os
carros, Donia afastou-se um pouquinho, como se não gostasse de ficar
perto daquela figura vestida espetacularmente de escarlate. Consegui
falar com Laura sozinha.
— Por que você está fazendo isso?
Seus olhos tinham uma expressão fixa e viva, e ela não me
respondeu.
— Não é perigoso? — insisti.
— Se for assim — seus lábios mal formavam as palavras — então é
assim que tem de ser.
Lá fora, a chuva tinha cessado e, enquanto o saguão atrás de nós
continuava cheio de pessoas a movimentar-se durante o intervalo, o
caminho diante do teatro estava vazio. Os dois homens voltaram logo
com os carros. As ruas de Bergen reluziam molhadas à luz das lâmpadas,
quando os acompanhamos. Na montanha, o funicular subia como uma
grande lagarta acesa, e no meio de agrupamentos de luzes brilhantes, nas
encostas dos morros, o Kalfaret aguardava.
Kalfaret e Sussurros.
14
Havia muito tempo, Laura comprara um equipamento caro para
exibir seus filmes em casa a certos amigos escolhidos. Antes de partir
para os Estados Unidos, ela reunira cópias de vários filmes seus,
passando-os para fitas mais duráveis. Por muito tempo, ela não assistira,
a nenhum daqueles filmes, mas agora Gunnar instalou a tela em uma das
extremidades da sala e Miles, resmungando e relutante, ajudou a arrumar
os móveis.
Irene já tinha se levantado, quando chegamos a casa. Ela não era do
tipo de se mimar, e desceu para ver por que tínhamos voltado cedo.
Parecia estar bem recuperada do golpe na cabeça, embora, como Miles,
estivesse obviamente perturbada com os planos de Laura.
Enquanto ela e eu arrumávamos as cadeiras para a plateia, ela me
falou em voz baixa.
— Sabe o que isso significa, Srta. Hollins? Hoje, vamos ter
histerismo. Ela vai ficar bem doente.
— Para que ela quer fazer isso? — perguntei.
— Acho que espera obrigar alguém a sair da toca. Isso pode ser um
motivo. Talvez fosse isso que ela pretendesse quando fez aquela
representaçãozinha na outra noite. Só que fracassou.
— Não compreendo — retruquei. — Se ela sabe perfeitamente
quem está por trás do que está acontecendo, por que há necessidade de
tirar alguém da toca? Ela só tem de apontar o dedo.
— Talvez ela não tenha tanta certeza quanto pensa — disse Irene. —
Ou talvez pretenda, um desgaste, um enfraquecimento, uma reviravolta.
Não creio que dê resultado.
— Irene — disse eu — quem foi que a derrubou no jardim hoje?
Ela não enfrentou meus olhos, mas tinha escolhido seu rumo.
— Ninguém me derrubou. Eu tropecei e bati a cabeça.
— E o castiçal?
— Eu estava carregando o castiçal.
— No jardim, na chuva?
— Por acaso você tem uma teoria melhor?
Eu não tinha e, quando Laura se sentou, pus-me a seu lado, mais
inquieta que nunca. Miles estava do outro lado, e Donia junto dele. Irene,
perto de mim. Quando Gunnar, cujo posto era atrás do equipamento, às
nossas costas, apagou as luzes, houve um ligeiro movimento. Donia
saltou da cadeira, exclamando que não conseguia assistir àquele filme
nojento, e correu para o hall. Miles foi atrás dela e a trouxe de volta à
sala, bem sério. Depois disso, ela gemia baixinho de vez em quando e,
logo que o filme começou a rodar, vi que ela tinha baixado a cabeça e
não estava olhando para a tela.
Era uma fita que eu vira muitas vezes, mas nunca naquelas
circunstâncias, e fiquei fascinada e comovida com o que se passava
diante de meus olhos. A jovem Laura caminhava pela tela, linda, apesar
de sua maquilagem leve, e senti uma dor por toda a beleza jovem que se
tem de perder tão cedo. O ator que representava o marido de Helen
Bradley era jovem, na ocasião, mas agora estava morto, e isso aumentava
a impressão de uma outra época, outros tempos, uma sensação de uma
presença de fantasmas.
A empregadinha — aquela atriz de pontas, que nunca conseguiu
papéis maiores — apareceu de joelhos, polindo o fatal prendedor de
porta. Tinha cabelos crespos e um rosto redondo que exprimia um medo
constante.
A meu lado, Laura enfiou a mão pelo meu braço, e senti seus dedos
apertando minha carne. Cobri a mão dela com a minha, procurando
acalmar a emoção que eu sabia estar aumentando nela. Irene tinha razão.
Era provável que fosse Laura Worth a pessoa mais afetada pela exibição
do filme. Na outra noite, ela tinha conseguido falar as linhas de Helen
Bradley, quando tínhamos passado aquelas cenas. Mas isso era muito
diferente.
A fotografia tinha sido notável, no filme, e a despeito de nossa tela
pequena o estado de espírito provocado pelo jogo de luz e sombra
acentuava a intensidade da emoção interpretada pelos atores. Eu sabia o
momento em que o primeiro sussurro apareceria do vazio e senti os dedos
de Laura me apertarem o braço.
“Escute...” disse a voz na tela, e depois, mais vagamente, “escute...”
Na escada, Helen Bradley agarrava o corrimão e parecia que ia cair e
rolar pela escada. Ela se agarrou ao corrimão, apoiou-se e conseguiu
descer para o hall escuro, embaixo.
O som daquela voz pareceu ecoar pela sala real em que estávamos,
mas ninguém, na pequena plateia, se moveu nem fez o menor ruído. Nem
mesmo Laura. Só seus dedos frios em meu braço me contavam o que ela
estava suportando e sofrendo.
O quarto personagem da peça agora estava em cena — o primo
distante de Robert Bradley, que era hóspede da casa e estava apaixonado
por Helen. Ele fora representado por um ator secundário, que, como a
empregada, tinha desaparecido do cinema. Era o vilão da peça, é claro.
Eu estudei sua aparência jovem e atraente, um tanto sinistra, mas ela
nada me dizia. Eu nunca o vira em outro filme.
Representava-se a cena em que a empregadinha nervosa deixava
cair a bandeja carregada na presença de Robert Bradley. Seu rosto
redondo e lúgubre contorceu-se de medo e ela rompeu em prantos,
jogando o avental por cima da própria cabeça.
A algumas cadeiras de distância, Donia remexia-se, como se
remexera no teatro, e o ranger de sua cadeira fazia um contraponto para a
trilha sonora fantástica que acompanhava as cenas sem diálogo. Agora até
Donia olhava para a tela.
Era estranho que uma história tão conhecida pudesse nos empolgar a
todos novamente, como fizera da primeira vez que a vimos. Assim, como
podemos ler um livro pela segunda vez e nos absorver em seu drama,
mesmo quando já sabemos o fim, assim se dava com aquele filme. Uma
vez, virei a cabeça para olhar para Gunnar e vi o rosto dele banhado na
luz fantasmagórica refletida da tela. Ele me viu e balançou a cabeça,
como para tranquilizar-me.
Mas nada aconteceu. Nada aconteceu, realmente. Quem quer que
soubesse do segredo de outra voz sussurrante ficou sentado
completamente imóvel, entre nós, sem nada revelar. Tudo estava quieto
na cena em que Helen Bradley tornava a descer a escada naquela tomada
longa e lenta, em que a víamos, quase agoniados, a entrar naquela sala
vitoriana em que o marido estava morto no chão — aquela cena em que o
prendedor de porta estava ausente, por ter sido usado para uma finalidade
mais mortífera na vida real antes de essa cena ser filmada.
A câmara movia-se pela sala, e Laura soltou uma exclamação
baixinha a meu lado. Passava de uma concha do mar numa prateleira de
bibelôs, das mãos entrelaçadas de um peso de papel sobre uma mesa, ao
tapete e dois pés inertes de ponta para cima. Lentamente, começou a
mover-se por aquele corpo estendido e, de repente, aquele baralho
horrível na sala. Um ruído que não estava na tela.
A mão de Laura não estava mais em meu braço. Ela tinha se
levantado, exclamando as palavras terríveis.
— Eu o matei! Eu o matei! Foi por minha causa que ele morreu! Eu
o matei!
Gunnar desligou o projetor e deu um salto para acender as luzes.
Miles pegou-a pelos ombros e sacudiu-a rudemente, até ela começar a
soluçar convulsivamente.
— Eu sabia que isso ia acontecer — disse Irene, com amargura.
Miles segurou-a e ela chorou, mas nos olhos dele não havia
compreensão, só condenação.
— Eu sempre soube disso — disse ele, num tom sombrio,
segurando-a afastada dele, obrigando-a a ouvir. — Desde o princípio, eu
o adivinhei. Você podia ter-me contado. Eu a teria protegido. Eu estava lá
no estúdio naquela noite, sabe? Foram minhas pegadas que eles
encontraram. Segui Cass até o estúdio, porque tinha medo do que ele
pretendia fazer. Entrei, enquanto ele discutia com o vigia. Esperei do lado
de dentro dos portões até ele ir para o palco de som do outro lado do
terreno. Aí fui atrás dele e entrei. Houve uma demora, porque eu o perdi,
entre os prédios. Quando cheguei lá, já era tarde. Encontrei-o deitado no
set, e tive consciência de meu próprio perigo. Saí pela porta de incêndio
nos fundos e, quando você gritou e o vigia entrou correndo para ver o que
tinha acontecido, afastei-me do estúdio. Donia me estava esperando no
carro e nós voltamos para o teatro a tempo de misturarmo-nos com o
pessoal que saía.
— Você podia ter ido para junto de mim — gemeu Laura. — Podia
ter-me ajudado naquela hora.
— Eu nada lhe adiantaria. Se a polícia pudesse provar que eu estava
no estúdio naquela noite, você bem sabe o que me teriam feito. Eu tinha
de escapar. Depois, você me disse que era inocente. Disse-me que nada
tivera a ver com aquilo. E você se livrou. Não precisava de minha ajuda.
Mas podia ter-me contado a verdade. Podia ter confiado em mim.
Ela chorava no ombro dele, amargamente, sem palavras.
Do outro lado da sala, Donia tinha se enroscado numa cadeira, como
se quisesse manter-se fora do caminho, e tornar-se pequenina e invisível.
Mas olhava para tudo com seus olhos vivos — como um macaco
assustado. Nenhum de nós lhe deu muita atenção. Como sempre, Laura
era o centro do palco.
— Deixe-me levá-la para cima — disse Irene.
Miles sacudiu a cabeça.
— Hoje, ela precisa de meus cuidados. Você vai para meu quarto
comigo, Laura. Hoje, você vai ficar comigo.
Pela primeira vez, ela tentou controlar-se.
— Não... não, Miles. Tenho de ficar com Leigh. Leigh não deve
ficar sozinha. — Ela me estendeu uma mão.
Acho que ela não queria encará-lo mais naquela noite, mas não
houve como impedi-lo de fazer o que planejara. Ele estava sombriamente
determinado.
— Fico em seu quarto esta noite. Estarei bem ao lado, e nós duas
estaremos a salvo. Não se preocupe comigo.
Ela parecia saber quando tinha perdido, ou talvez não tivesse mais
forças para se opor a qualquer de nós. Deixou que ele a levasse da sala.
Donia tinha desaparecido, e só restávamos Irene, Gunnar e eu. Irene
andava, zangada e indignada.
— Que loucura — exclamou ela. — Que coisa ridícula e louca!
— Ela não está louca — disse eu, abruptamente.
Irene deu-me um olhar de desprezo.
— Claro que não. Só tola, fazer esse jogo. Colocar-se nas mãos das
pessoas. Espero que ela esteja viva, quando raiar o dia.
Ela saiu da sala atrás dos outros e eu cai debilmente numa cadeira.
Gunnar falou, numa voz triste.
— Que coisa horrível, ela ter guardado esse segredo em sua
consciência todos esses anos.
Eu o contradisse um tanto alucinada.
— Não é verdade! Não é verdade que ela o tenha matado. Não
acredito nisso nem por um instante. Nem mesmo que ela o diga.
— O que quer dizer? Como sabe?
— Não sei. Só sinto que há alguma coisa terrivelmente errada em
tudo isso. Uma coisa que não compreendemos. Acho que ela está num
perigo horrível, agora. Vou passar a noite no quarto de vestir junto do
quarto de Miles. Vou ficar acordada, escutando, para que ela não esteja
sozinha quando precisar de ajuda.
Eu agora estava andando pela sala, como Irene o fizera, e Gunnar
chegou-se para junto de mim.
— Leigh, meu bem — disse ele, e me envolveu em seus braços,
segurando-me, forte e sólido. Encostei a cabeça no ombro dele e deixei
que toda a antiga Leigh, de quem eu nunca realmente gostara, escapulisse
de mim.
Por um momento ele me abraçou, e depois me beijou na boca. Não
inteiramente com delicadeza. E eu correspondi.
— Victor ficaria satisfeito com você — disse ele, quando me
afastou, e eu sabia que ele estava caçoando de mim, com brandura e
amor. Toda a raiva contra mim tinha desaparecido.
— Há muita coisa a se resolver — continuou ele. — Você não pode
ir embora depressa de Bergen. Primeiro, temos de encontrar um meio de
ajudar Laura. E depois, temos de conversar sobre nós dois.
Eu não estava com vontade de conversar nem de resolver coisa
alguma. Não tinha a menor vontade de ser sensata. Só queria que ele me
abraçasse, me beijasse, fizesse derreter o gelo. Mas acho que a essa altura
ele estava com um pouco de medo de mim — de si também.
— Vamos — disse ele. — Leve-me até a porta. De manhã cedo eu
lhe telefono. Enquanto isso, farei planos.
Fossem quais fossem os planos que ele pudesse fazer, seriam
inúteis, mas eu não sabia disso então. A corrente já nos pegara em seu
poder e nos carregava para o mar rebelde e a costa rochosa. Estávamos
todos a bordo daquele navio do quadro de Gunnar.
Ele me beijou de novo à porta e pediu que eu cuidasse de mim, bem
como de Laura.
Depois que ele saiu, voltei à sala e fiquei a olhar para a tela branca e
vazia na parede. Que estranho que uma coisa que não tinha realidade, que
podia desaparecer ao apertar de um botão, tivesse uma vida própria tão
vital que depois continuava a viver na imaginação. Eu quase podia tornar
a ouvir a voz sussurrante, embora a casa estivesse no mais completo
silêncio. Só o barulho do carro de Gunnar me chegava lá de fora. Eu me
sentia inteiramente e assustadoramente só. A não ser Laura, eu não tinha
um amigo ali.
Subi para o quarto dela e vi que ela devia ter entrado ali para pegar
suas roupas de dormir. A porta para o quarto de vestir estava fechada. Eu
a abri, passando pelas roupas perfumadas de Laura, e fiquei escutando à
porta do quarto de Miles. Ouvi um murmúrio de vozes. Nada de
perturbador. O resto da casa estava tranquilo. Donia e Irene deviam ter
ido para seus quartos. Aprontei-me para deitar-me e depois saí para a
sacada de Laura.
A cidade tinha ainda o aspecto molhado e reluzente que fica depois
da chuva e as luzes das pontes luziam por cima de seus reflexos na água.
Havia luzes nas casas pelo Flöyen e nos morros ocupados por Kalfaret.
Só a área perto da casa permanecia escura e quieta. No quarto de Miles,
acendeu-se uma lâmpada perto da janela, formando uma mancha de luz
repentina no jardim, onde um momento antes só havia escuridão. Alguém
se achava sentado na parede de pedra ali, e um rosto branco estava
voltado para cima, observando a janela do quarto de Miles.
Aproximei-me da balaustrada da sacada, espiando para baixo. Atrás
de mim, eu tinha deixado o quarto de Laura no escuro, de modo que
dificilmente seria vista. Uma mulher estava sentada no muro, e vi que era
Donia Jaffe. Devo ter feito algum barulho, pois a atenção dela passou do
quarto de Miles para meu vulto na sacada. Houve um momento de
quietude, enquanto nós nos olhávamos, e só se ouvia o som das folhas
gotejantes ali perto. Depois, ela se esgueirou pelo jardim e passou pelas
portas, embaixo da sacada. Fui para dentro e fiquei bem quieta,
escutando. Ouvi quando ela subiu e foi para seu quarto.
Quando me aprontava para ir para a cama, procurei tirar todos da
minha cabeça e só pensar em Gunnar, e do gelo que se dissolvera em
mim tão completamente que eu me sentia quente só ao pensarem como
ele me tocara. Mas eu não estava livre para pensar nele com minha
atenção total. Todos os acontecimentos da noite me voltavam à cabeça e
lembrei-me de Laura no teatro — uma figura linda e dramática em sua
capa escarlate. Laura exclamando que era uma peça sobre assassinatos, e
que não ficaria para assistir a ela. Laura gritando de modo tão horrível
enquanto Sussurros era levado na tela.
Num esforço para me distrair, peguei o volume de peças de Ibsen de
Laura e sentei-me com ele junto de uma lâmpada, para ler. Quando Ibsen
era rapazinho, tinha sido nomeado diretor do teatro que nós tínhamos
visitado naquela noite. Trabalhara lá alguns anos, e escrevera várias
peças que foram representadas no Teatro Nacional, antes de ir para Oslo.
O Pato Selvagem, porém, não foi uma escolha inteiramente feliz,
como leitura, pois tratava de uma moça que se matava ao saber que era
filha ilegítima. Felizmente, os tempos haviam mudado. Teriam mudado
mesmo? Eu não tinha sofrido durante anos porque Laura Worth era minha
mãe? No entanto agora eu estava ali sentada no quarto dela, preocupada
com ela, escutando para ver se notava algo estranho no quarto de Miles.
Mas eles só conversavam e conversavam, baixinho e intensamente.
A despeito de minha vontade de ficar acordada, meus olhos estavam
pesados de sono e cochilei em cima do livro. Ibsen sabia ser sombrio
como seu país rodeado de rochedos. Eu precisava de alguma coisa leve e
engraçada para me divertir e me manter acordada. Havia um volume de
Noel Coward, que me servia melhor. Puxei a espreguiçadeira para a porta
do quarto de vestir e estiquei-me nela.
Mas não consegui ficar acordada. Apesar de deixar a luz acesa e me
forçar constantemente a escutar o que se tornara silêncio no quarto ao
lado, fiquei tonta de sono. Pensei em todas as noites em que tivera
dificuldade em dormir — e no entanto, agora que eu queria ficar
acordada, aquela sonolência, me envolvia. Pensei em descer para tomar
café. Mas não queria abandonar meu posto. Não me podia arriscar. O que
me restava era mandar que meu subconsciente ficasse alerta e escutasse.
Se eu dormisse, devia estar pronta para acordar ao som mais ligeiro.
E assim, adormeci. Profundamente. E meu subconsciente também.
Quando acordei, bocejando, já era de manhã. A luz forte da
primavera entrava pelas janelas e desliguei a lâmpada. Aí corri pelo
quarto para olhar meu relógio. Nove horas, e nem um som do outro
quarto.
Vesti depressa uma saia e um suéter e passei a escova ligeiramente
pelos cabelos. Depois, corri para baixo, para a sala de jantar. Donia
estava sentada à mesa, taciturna. Quando entrei na sala, Irene trouxe café
da cozinha.
— Onde está Laura? — perguntei.
Donia resmungou.
— Foi-se. Ele a levou em sua companhia. Os passarinhos fugiram.
Caí sentada na cadeira diante dela, sentindo um frio repentino.
— Fugiram para onde?
— E como é que vou saber? Nem tomaram café. Partiram juntos,
simplesmente. Ela parecia feliz como uma criança, e meu irmão a estava
tratando com carinho.
Senti o veneno por baixo de suas palavras e Irene bateu com a
xícara de café na mesa, derramando um pouco do líquido.
— Quer tomar café? — perguntou-me ela.
Eu não sentia fome alguma, mas deixei que ela me servisse torradas
e café. Por trás das costas de Donia, Irene me fez sinal para ficar ali
depois que ela se levantasse. Bebi o café devagar, pus manteiga em fatias
de torrada e não tive muito que esperar. O apetite de Donia estava igual
ao meu e ela logo se levantou da sua cadeira e foi embora depressa. No
instante em que ela se retirou Irene se sentou ao meu lado.
Pela primeira vez, vi como ela estava pálida e as olheiras embaixo
de seus olhos. Era ela quem tinha passado a noite sem dormir, e podia ter
sido melhor se ela tivesse ocupado meu posto de escuta junto à porta do
quarto de vestir.
— Você os ouviu sair? — perguntei. — Você os viu?
Ela afirmou com a cabeça, mal-humorada.
— Eles tomaram o carro dele e se dirigiram para o Sul. Ande com
seu café. Temos de segui-los.
Eu logo me senti mais esperançosa.
— Sabe para aonde foram?
— Para a casinha de verão, é provável. Lá perto de Fantoft.
Era perto da igreja antiga, onde eu a encontrara da primeira vez.
— O que está pensando, Irene? — perguntei.
Ela se levantou para recolher a louça do café.
— O mesmo que você. Que ela não deve ficar sozinha com ele.
Hoje, ela está inteiramente confiante. A Sra. Jaffe tem razão. De repente,
ela virou uma mulher apaixonada, e agora ele a tem onde quer. Mas você
o viu ontem à noite, quando ele disse a ela a respeito de ter estado no
estúdio. Naquele momento é que ele demonstrou seu verdadeiro
sentimento para com ela. De qualquer forma, o carro continua na
garagem e tenho a chave. Quer vir comigo?
— Claro — disse eu. Nem parei para acabar o café, e saí correndo
para me aprontar. Quando voltei, Irene estava a minha espera. Não nos
demos ao trabalho de dizer a Donia aonde íamos. Só quando chegamos à
rua é que, olhando para cima, eu a vi no balcão do quarto de Laura, a nos
observar. Eu não estava mais preocupada com ela. Agora era Miles quem
me interessava.
Saímos para um mundo milagrosamente modificado, depois da
chuva. A primavera tinha explodido em Bergen. Os botões que na véspera
estavam fechados brotavam nas árvores, a grama de repente estava verde
e os passarinhos cantavam nos jardins. Nos cumes das montanhas, as
manchas de neve diminuíam e os lagos e fiordes mostravam-se azul-
brilhantes debaixo do céu mais azul do mundo.
Mas meu espírito não era de primavera, naquele momento. Não
conseguia reagir à beleza em volta de mim. A meio-caminho de Fantoft,
ocorreu-me que eu não esperara o telefonema de Gunnar, e que eu devia
ter-lhe telefonado e dito para onde Miles e Laura tinham ido, e para onde
eu ia. Mas agora não havia tempo. Talvez eu telefonasse quando
chegássemos à cabana.
Em sua aflição, Irene dirigiu pior do que quando fôramos com ela
ao mercado de peixe. Passávamos depressa por outros carros nos
cruzamentos e ela se apressava a aproveitar ao máximo a velocidade.
Estava tão preocupada quanto eu, e isso não ajudava a dirigir bem.
A cabana ficava num laguinho e, para alcançá-la, seguimos por uma
estradinha secundária, que passava por trás de uma sebe. O portão
encontrava-se aberto e nós entramos. O carro de Miles não estava à vista.
Irene tinha uma chave e abriu a porta da casinha rústica. A cabana estava
vazia. Ninguém respondeu a nossos chamados.
Enquanto Irene dava uma busca nos outros quartos para se
certificar, fiquei na sala principal, com sua lareira aberta e alegres tapetes
pelo chão. Os painéis de pinho na parede davam calor e elegância à sala e
a mobília era sólida e cômoda. Muitas vezes, no passado, aquele devia ter
sido um retiro ao qual Laura teria ido com prazer. Mas ela não estava ali,
agora.
Irene saiu dos quartos, passando por mim em direção à cozinha.
— Estiveram aqui, mas já se foram. Talvez ele a tenha levado à
igreja. Ela sempre vai lá. Quando está feliz e quando está triste. Sempre.
Ele sabe disso. Seria um lugar isolado aonde ir.
Sim, pensei, isolado — e lembrei-me de minha primeira reação de
pressentimento com relação àquele lugar em que estava a igreja negra.
— Há um telefone aqui? — disse eu. — Acho melhor telefonar para
o Gunnar.
— É, deve. Mas aqui não há telefone. E agora não há tempo de ir à
cidade. Temos de encontrá-los imediatamente.
— Eu a acompanhei até o carro.
— Você acha que ele lhe faria algum mal? Certamente ele nada
tentará contra ela em pleno dia, quando sabemos que ela está com ele.
— Tudo já foi longe demais — disse Irene. — Não há mais lugar
para cautelas.
Novamente ela dirigia depressa, mas dessa vez a distância era
pequena. Irene parou no estacionamento na base do morro e saltou do
carro. O carro de Miles não estava lá, mas ela não ligou para isso.
— Ele podia tê-la trazido para cá e ido embora — disse ela. — Pode
ser que já seja tarde.
Correu na minha frente pelo caminho íngreme que se dirigia para a
igreja, ainda fora de nossas vistas, lá em cima, e mais uma vez eu a segui.
Eu não tinha o senso de realidade do que estava acontecendo. Não podia
acreditar que Miles tinha levado Laura ali para fazer-lhe mal, e que a
qualquer momento podíamos encontrá-la, ferida e abandonada. Eu não
podia acreditar, e no entanto alguma coisa dentro de mim reagia mais
uma vez à influência do lugar e o terror começou a apoderar-se de mim.
Tudo parecia diferente da última vez que eu ali estivera. Enquanto
todas as árvores, menos os pinheiros, estavam despidos, da última vez,
agora todos os galhos tinham uma a tonalidade verde em seus traços. A
grama de ambos os lados do caminho não estava mais marrom e morta,
mas brotava numa nova vida de primavera. E os passarinhos cantavam
alegres. Mas quando surgiu a igreja alta, acima de nós, com toda sua
madeira negra, antiga, e eu tornei a ver as cabeças dos dragões, as
serpentes, meu pressentimento sinistro acentuou-se mais ainda. Um dia,
Laura Worth tinha passeado por ali com Victor Hollins, e eles tinham se
amado. Mas tudo o que era bom e esperançoso fora dissipado, e o mal
aguardava, pronto para atacar. Tinha-se juntado, acumulando-se do lado
de fora da igreja. Se ao menos ela tivesse entrado, onde era claro e seguro
— mas a porta estava fechada por cima de nós.
Não havia ninguém ali. Nem mesmo algum trabalhador ocupado, ao
ar livre, no local. Os bosques de árvores mostravam-se vazios e quietos.
Nenhuma brisa agitava as folhas de pinheiros. Nada se movia no morro
defronte da igreja. Subimos para o recinto e vimos a cruz de pedra negra
em seu montinho, mas ninguém andava por ali, nem a tocava pedindo
proteção. Nenhum rosto nos olhava do muro baixo em volta da igreja.
— Chame por ela! — disse Irene. — Grite!
Repeti o nome de Laura várias vezes, aos gritos, mas embora os
ecos me respondessem, não tive resposta da própria Laura.
— Ela não está aqui — disse eu —, senão certamente nos
responderia. Isso é uma busca de loucos.
— Pode ser que ela não esteja em estado de responder — falou
Irene, sombriamente. — Procure em volta da igreja, e eu vou subir o
morro para ver se a vejo de lá.
O medo dela, suas emoções funestas eram contagiosos. A sensação
de pavor crescia dentro de mim quando entrei no recinto e atravessei as
pedras do calçamento. Contornei a igreja, sem encontrar ninguém. Meus
olhos procuravam na área vizinha abaixo, sem nada ver que me atraísse a
atenção. Quando me dirigia para os fundos da igreja, alguma coisa
reluziu no caminho a minha frente. Abaixei-me e apanhei-a. O objeto era
uma mascarazinha de tragédia, de prata — um daqueles broches que
Laura gostava de usar, que Victor Hollins lhe dera havia muito tempo.
Ela estivera ali. Isso era certo. Mas aquele broche teria caído por
acaso ou de propósito? Teria ela jogado aquilo para ser encontrado por
quem a seguisse?
Recomecei a chamar o nome dela.
— Laura, Laura!
O cochicho que me respondeu foi baixinho, pronunciando meu
nome.
— Leigh! Estou aqui. Venha depressa.
A princípio, eu não sabia de onde tinha vindo a voz. Os passeios de
colunas negras que ocupavam os lados da igreja estavam vazios, assim
como a pequena elevação da cruz — tudo.
— Aqui! — murmurou a voz mais uma vez. — Aqui, atrás da igreja!
Passei pelas duas colunas pretas nos fundos e vi que, além do bojo
redondo de uma coluna interna, tinha lugar uma passagem estreita através
da parede interna. Depois do sol intenso, estava completamente escura
para mim, mas Laura falou comigo e eu sabia que ela estava ali.
— Você está bem? — perguntei. — Ele não lhe fez mal?
— Estou perfeitamente bem. Ninguém me fez mal. Venha cá de
pressa.
Só parei para dizer a Irene que tinha encontrado Laura. Aí entrei no
corredor escuro, tateando para encontrá-la.
Ela me pegou logo pelo braço.
— Oh, não, não! Por que foi chamá-la? Agora ela nos vai encontrar
logo. Oh, Leigh, agora...
— Mas é Irene — disse eu. — Ela me trouxe aqui para procurar
você.
As mãos de Laura estavam frias nas minhas.
— Claro! Ela nos queria juntas. Ela nos odeia a ambas. Agora, não
sei o que fará. É de Irene que eu tenho medo, Leigh. Sempre foi Irene.
Pronto, ela está chegando?
Nós duas a ouvíamos, correndo pelos passeios, e em volta da igreja.
Não havia tempo para raciocinar, para me adaptar. Eu só sabia afinal, e
sem dúvida, onde estava o perigo. Laura encostou-se a mim e ficamos
muito quietas.
Irene tinha parado diante de uma das entradas do corredor.
— Agora sei onde vocês estão. Sei que as duas estão aí, saiam já,
senão eu entro atrás de vocês.
Laura cochichou em meu ouvido:
— Ela está com uma arma. Pegou-a de meu quarto. A arma de Cass
Alroy. Dei por falta dela há dois dias. Ela deve tê-la trazido consigo.
Eu tinha de pensar, fazer planos — e não havia tempo. O corredor
escuro em que nos encontrávamos agachadas tinha duas aberturas — uma
do lado da igreja perto de Irene, a outra no lado oposto. Comecei a
empurrar Laura para a saída livre.
— Saia, corra! — disse-lhe. — Fuja e chame socorro. Eu a seguro
aqui. Ela está atrás é de você.
Laura não discutiu. Abraçou-me rapidamente e depois correu para a
mancha de luz em volta da parede curva. Eu ouvia Irene entrando pelo
outro lado e, no escuro, enrijeci-me contra o que acontecesse. Agora, o
importante era Laura escapar. Se tivesse de lutar contra Irene, eu lutaria.
Havia algo especialmente naquela figura preta que tapava a luz
naquela extremidade e avançava contra mim, inexoravelmente. Ocorreu-
me de repente a ideia de que eu talvez nunca mais visse Gunnar.
Irene avançava mais devagar. Eu sabia que ela devia estar ofuscada,
como eu ficara, e postei-me diante dela, barrando-lhe a passagem até
Laura. Ela correu e esbarrou bem em mim, agarrando meu braço com sua
mão magra.
— Você é qual das duas? — cochichou ela, rouca.
Reconheci aquele som. Ouvira aquela voz de noite, mandando que
e u escutasse, escutasse... Enrijeci-me onde estava, num silêncio total.
Uma coisa fria e metálica comprimiu-se em minha testa, significando a
morte, enquanto sua outra mão procurava identificar-me, tocando em
meus cabelos, meu rosto, o tecido de meu casaco.
— Então é apenas a Srta. Hollins! — cochichou a voz mortal. — Se
a deixou escapar, terá de pagar por isso, sabe. Venha para a luz. Venha
comigo imediatamente!
Ela me arrastou pelo braço com uma das mãos, enquanto a outra
segurava aquele cano frio contra minha testa. Tropeçamos juntas ao
impacto da claridade forte, e por cima de nós os dragões e serpentes
pareciam silvar em triunfo porque o mal estava dominando. Agora, a
santidade interna da igreja não podia ajudar-me.
Por um momento, Irene desviou sua atenção de mim e olhou em
volta do pátio vazio. Laura devia ter conseguido fugir. Mas agora a
loucura nos olhos da mulher aumentou de intensidade. Ela recuou um
pouco e ergueu a automática.
— Por que não tenta fugir? — disse ela. — Por que não tenta
escapar, criança burra?
Se eu me movesse para correr, ela me mataria com um tiro. Era isso
que ela me estava dizendo. Ela ultrapassara os limites da sanidade. Só me
restava ficar ali onde estava na tentativa de retardar a perseguição a
Laura.
— Naturalmente, no fim, vocês duas hão de pagar — disse-me ela.
— O assassinato tem de ser pago, e castigado. E ela é assassina. Ela lhes
disse a verdade ontem à noite, que matou Cass Alroy. Ela tem sangue nas
mãos e o sangue tem de ser lavado com sangue.
Eu notava a obsessão na voz dela. De algum modo, ela sabia o que
acreditava ser verdade e, através dos anos, aquela morte antiga começara
a possui-la e conturbar sua mente, exigindo vingança.
— Não há lugar em que ela possa esconder-se de mim — continuou
ela. — E você anda se metendo desde que chegou. Por isso você vai
pagar. Como ela há de pagar, muitas vezes. Foi ela que me derrubou no
jardim. Ela me enraiveceu de tal modo que eu podia ter acabado com ela
naquele momento. Eu a tinha arrastado lá para fora, mas, sem eu saber,
ela pegara aquele castiçal perto da porta, e me derrubou com ele. Só que
lhe faltava coragem de bater para matar, como fez da outra vez.
Controlou a força do golpe. E depois foi fraca demais para me deixar
ficar ali deitada na chuva. Não há fibra nela. Ela teve de chamar o
pessoal da casa para me procurar e assim certificar-se de que me matara.
Mas agora o fim está próximo. E vai começar com você.
Os olhos dela estavam selvagem, parados, completamente loucos.
Ela era muito mais perigosa que uma mulher em seu juízo perfeito. Aí,
horrorizada, vi que Laura vinha da frente da igreja. Foi preciso todo meu
controle para que meu olhar não se desviasse em sua direção. Tentei
manter Irene falando, para evitar que ela se virasse.
— Foi você quem mutilou o retrato, não foi? Não foi Laura! Foi
você quem marcou aquele jogo na tela, e deixou o recado para mim.
Ela não mais apontava a arma diretamente para mim, pois estava
certa de que eu não poderia escapar. Assim mostrava-se disposta a falar
— com um orgulho de louco.
— Claro! E coloquei aquela tesoura na mão dela. Isso a assustou,
pois sabia o que poderia acontecer quando o jogo terminasse. Porque eu
era X. Só que teria sido mais simples, e teria acontecido mais cedo, se
você não tivesse aparecido. Eu não queria que ela se casasse com o Dr.
Fletcher, mas depois do casamento eu tinha de começar a agir. Ela tinha
um medo terrível de que eu contasse a ele que ela matara Cass Alroy.
Medo de perdê-lo, se ele soubesse. Era isso que a fazia calar-se a meu
respeito.
— E foi você quem danificou o esqui dela, você quem me empurrou
pela escada?
Seu sorriso de triunfo me respondeu. Irene fizera tudo aquilo. Ela
me mentira em todas as ocasiões, para desviar minhas suspeitas, me
enganara à vontade. Havia uma astúcia na loucura que eu nunca vira
antes.
Meus olhos estavam arregalados e fixos — fixos na cara de Irene,
para não se desviarem para Laura, que agora estava perto — mas sem
arma, desamparada. Eu pisquei e fiquei olhando para aquela pistola
vacilante.
— Se você me fizer mal, estará liquidada — disse-lhe eu. — Não
poderá escapar de um crime desses.
— Pensa que eu me importo? O que acontecer depois não importa,
desde que eu consiga deter vocês duas. Ah, a princípio, achei, que você
seria útil. Era óbvio que você queria vingar-se dela, fazer-lhe mal. As
vezes, eu quase chegava a gostar de você, porque achava que você estava
do meu lado, contra ela. Às vezes, eu...
O braço de Laura passou pelo pescoço de Irene, por trás. Aquilo a
sufocou momentaneamente, tirando-lhe o equilíbrio. Eu me afastei,
enquanto a arma disparava com um estrondo, fazendo saltar lascas de
pedra do muro do recinto. Laura agarrou-se a ela e caíram juntas, rolando
pelo chão. Eu pisei na mão de Irene e ela largou a pistola. Depois disso,
precisava de ambas as mãos para conter a fúria combativa de Laura
Worth.
Gunnar e Donia as encontraram, quando subiram o morro correndo,
com Miles um pouco atrás. Gunnar puxou Irene para cima e ela voltou
sua atenção para lutar selvagemente com ele. Miles ajudou Laura a
levantar-se e abraçou-a fortemente. Ela estava ofegante e muito
vermelha, seus olhos faiscando com a luz inconfundível da luta. Ela
chegara a gostar de se ter defrontado fisicamente com quem a
atormentava há tanto tempo. Era uma mulher primitiva.
Foi quando Irene escapuliu de Gunnar e fugiu de nós, saindo do
recinto e se afastando da igreja.
— Deixe que vá — disse Miles. — Não faz mal. A polícia a pegará.
Ela não tem onde esconder-se.
Laura aproximou-se de mim, ansiosa.
— Leigh, querida, você está bem?
— Você não devia ter voltado — disse eu. — Ela podia tê-la
matado. Queria matar a nós duas.
— Você pensa que eu iria fugir e deixá-la entregue a ela? Pensou
que eu a deixaria fazer mal a minha filha? Querida, como você me
conhece pouco!
De repente, ela me abraçou e nós duas estávamos chorando. Nossas
lágrimas se misturaram, enquanto sua face se apertava contra a minha.
Foi um momento maravilhosamente desinibido e emocional. Sobre
nossas cabeças, as serpentes silvavam em desespero — o mal fora
vencido, afinal.
Gunnar pegou a pistola e entregou-a a Miles. Laura voltou a cabeça
e olhou para ela, nas mãos dele.
— Eu a guardei todos esses anos — disse ela. — Cass a levou com
ele para o estúdio naquela noite, quando pretendia matar-me. Foi tudo
como lhe contei ontem à noite, Miles.
— Eu sei — disse ele. — Agora, compreendo. Estou contente por
ter podido livrá-la do que você acreditou, todos esses anos. Mas agora
voltemos para a cabana, você precisa de repouso. Temos de chamar a
polícia e tomar outras providências.
Gunnar aproximou-se para passar o braço em volta de mim, e aí eu
vi que estava tremendo, com o choque.
— Agora você estará bem, Leigh — disse ele. — Já passou. Vocês
duas estão seguras.
Eu me segurei a ele.
— Mas por que... por que? O que levou Irene, logo quem, a detestar
Laura desse jeito?
— Não sei. Cabe a Laura contar-nos. Se ela quiser.
Todo esse tempo, Donia tinha ficado por perto, sem participar, os
olhos dançando de agitação — mas agora sem maldade. Gunnar deu-lhe
um sorriso.
— Foi bom que a Sra. Jaffe se preocupasse quando viu Leigh
partindo de carro com Irene. Telefonou-me imediatamente. Quando
cheguei a Kalfaret, Miles já tinha voltado de Fantoft. Deixara Laura no
que ele achava fosse um lugar seguro e voltara para casa para dizer a
Irene que ela fizesse as malas e partisse de Bergen imediatamente, e que
não mais poderia ver Laura. Quando Donia lhe disse que Irene tinha
levado Leigh para Fantoft, nós todos viemos em nossos carros.
Laura escutou suas palavras e seu sorriso foi lindo.
— Minha filha tentou salvar-me, Gunnar. Leigh tentou segurar Irene
para que eu pudesse fugir. Mas não podíamos nos separar, uma da outra.
Eu nunca teria fugido, deixando-a nas mãos de Irene. Agora, tenho de
lhes contar tudo. Vamos voltar para a cabana e eu lhes contarei a história
daquela noite em Hollywood, há tantos anos. Contarei como foi que Irene
veio a ter sentimentos tão fortes a respeito de uma coisa que não devia ter
nada a ver com ela.
No caminho, paramos para telefonar. Gunnar alertou a polícia para
procurar uma mulher desequilibrada e perigosa, dizendo-lhes que
esperaríamos notícias na cabana de Laura Worth.
Ao chegarmos, Gunnar acendeu o fogo e nós ficamos sentados ali
em volta, com mais frio e abaladas do que seria normal, num dia como
aquele. Rompendo o silêncio que caíra entre nós, a voz de Laura contou
uma história muito velha.
O tempo parecia vacilar, hesitar, parar — e, depois, lentamente,
começar a rolar para trás, para um outro dia, outro lugar. Era como se
estivéssemos lá, como se tudo estivesse acontecendo de novo.
15
Na Califórnia, o luar banhava a noite tranquilamente. A aldeia de
casinhas de estuque, réplica de uma rua de cidade, a cidade do Oeste
falsificada, o grande palco de som, tudo estava quieto e vazio. Algumas
luzes brilhavam nos terrenos do estúdio e o vigia do portão estava dentro
de seu abrigo, esperando que nada acontecesse — como nunca acontecia.
É verdade que o diretor, Sr. Alroy, tinha entrado ali, naquela noite.
Mas ele tinha direito de estar lá, bem como o tinha a Srta. Worth, que
estava passando a noite em seu camarim no Palco n° 5. Era para lá que o
Sr. Alroy se dirigia e, se havia alguma coisa entre aqueles dois, não era
da conta de um vigia.
Um palco de som não era propriamente um palco. O palco de som n
° 5 era uma cabana Quonset (pré-fabricada de metal, com teto circular)
convertida em um prédio imenso, com o exterior pintado de rosa-pastel e
um interior vasto como uma quadra de basquete. Laura Worth estava
perdida e pequenina, lá dentro, mas ela não se importava, nem tinha
medo daquele lugar imenso, cheio de ecos, de noite. Aquele era seu
mundo, e às vezes quando ela queria ficar completamente absorta no
estado de espírito de uma cena a ser filmada, ficava em seu camarim,
dormia ali e se preparava para a tomada do dia seguinte. Afinal, nada
havia que a atraísse para sua casa nos morros de Hollywood. O trabalho
era sua vida, seu próprio alento. Ela detestava todas as distrações que a
pressionavam de fora, ou faziam exigências sobre sua mente e suas
emoções.
Por exemplo, a carta que chegara na véspera de Victor Hollins, tinha
sido tristemente dispersiva. Ela tinha de esquecer-se dela, agora. Tudo
aquilo estava acabado, sufocado, enterrado no passado. No entanto, era
difícil conservá-lo completamente enterrado enquanto ela trabalhava num
romance de Victor Hollins. E ele anexara um retrato da menininha, Leigh.
Ela lhe pedira para não mandar retratos, não escrever sobre ela — para
deixar que tudo aquilo pertencesse a uma outra vida, pois aquelas coisas
a deixavam arrasada, por uns tempos. Mas Victor escrevera que ela não
poderia pertencer totalmente à sua vida presente, enquanto Leigh
estivesse crescendo. Um dia, ela tinha de conhecer a filha.
Assim, a carta a tinha desviado, e a filmagem correra mal. Tudo
teria de ser refeito no dia seguinte, dissera Cass. E isso era outra coisa,
embora mais intimamente ligada a seu trabalho. Cass mostrara-se
insuportável durante toda a filmagem. Naquele dia, ele tinha berrado com
ela, a atormentara e menosprezara sua reputação e capacidade. Alguns
diretores conseguiam o que queriam das atrizes agindo dessa maneira,
mas ela não era desse tipo. Ela ficara impenetrável e a cena se tornara
impossível de representar. Era uma cena de importância vital, e tinha de
sair certa. Sabia que Cass passara a odiá-la. Ela rejeitara suas atenções
pessoais, e isso ele não podia perdoar. Ela suspeitava de que ele fosse
desequilibrado, perigosamente vingativo.
Naquele dia, ele acabara por deixá-la fisicamente doente. Ela tivera
um desmaio no set e tinham mandado buscar o Dr. Fletcher. Outra
distração. Miles queria casar-se com ela, e era muito mais insistente que
Victor. Não se importaria de vê-la perder sua carreira, muito embora
tivesse sido atraído por ela devido a sua beleza e seu talento. Ela gostava
dele, mas sabia que não podia dar-lhe muita intimidade.
Quando ele chegou ao estúdio naquela tarde, tinha havido uma
discussão extremamente desagradável entre ele e o diretor. Já existia um
profundo antagonismo entre os dois, porque Cass estava envolvido no
processo de divórcio de Donia Jaffe. Naquela ocasião, houvera ameaças
entre ambos, e agora a chama se reavivara.
Laura ficara perturbada com a fúria oculta que tinha sentido em
Cass Alroy. Os dois eram extremamente desconfiados e tinham ciúmes
um do outro, e às vezes ela sentia algo de quase patológico em Cass.
Quando ela não estava zangada com ele, às vezes tinha um pouco de
medo. Mas a filmagem acabaria logo e o filme estaria pronto. Quanto
antes melhor. Ela estava com os nervos à flor da pele e precisava
urgentemente descansar.
Por tudo isso, ela resolvera usar o processo que já empregara várias
vezes, quando uma cena não queria sair direito. Passava a noite no
camarim e se entregava totalmente ao script e ao papel que representava.
Gostava do papel de Helen Bradley. Apesar de todos os receios do
personagem — e eram justificados — ela possuía uma força interior e
uma coragem que a tornavam simpática, até admirável. Qualquer pessoa
podia sofrer com o terror, mas Helen Bradley enfrentava o que tinha de
ser enfrentado, mesmo com o risco de sua vida. Era uma das criações
mais bem pensadas de Victor.
Portanto, naquela noite, ela estava lá, movendo-se no meio da
confusão cheia de ecos, de equipamento de câmaras e de som, isolada do
mundo exterior tão completamente que nada além dessas paredes sem
janelas podia ser ouvido lá dentro, e nada passado ali podia ser ouvido lá
fora. Ela podia gritar suas linhas, se quisesse, sem que alguém a julgasse
louca.
Duas ou três lâmpadas nuas brilhavam nas profundezas cavernosas,
mas a ilha de luz que era o set durante o dia estava escura e vazia. Laura
aproximou-se cautelosamente, passando por cima de cabos enroscados,
ligações elétricas, câmaras móveis em seus carrinhos, por baixo das
hastes que moviam os microfones. Lá em cima, as grandes luzes nos
caibros estavam apagadas, os passadiços vazios, o imenso equipamento
imóvel e quieto.
Era um mundo estranho, tão diferente da confusão louca e do
barulho que invadiam o lugar durante o dia, até o momento em que um
diretor-assistente gritava que estava na hora da tomada. Aí tudo se calava
e toda a atenção se concentrava na cena a ser filmada. Laura não se
importava com o silêncio e o vazio daquela hora. Ali, não havia conflitos,
nenhuma exigência humana sendo feita sobre ela. Ela podia tornar-se
Helen Bradley e viver apenas nos limites daquele pedacinho que era o
set. Sabia onde ficavam algumas das luzes e foi ligá-las.
Imediatamente a escada, o hall e a sala da residência dos Bradley
surgiram vividamente. Em contraste, os passadiços ficaram ainda mais
escuros, as câmaras e hastes perdidos nas sombras. Só o set brilhava,
iluminado em cada detalhe real. Ela via as marcas de giz que permitiriam
aos atores tomarem exatamente as mesmas posições que ocupavam na
última tomada.
Banhada no calor das luzes, Laura entrou, no set. Ficou imóvel por
um momento, querendo absorver-se naquele mundo de faz-de-conta para
que ele se impusesse sobre a outra realidade e tornasse o presente
imediato.
À distância, no grande palco de som, alguma coisa rangeu — e
passou. Laura ficou à escuta por um momento e, depois, não deu mais
importância ao ruído. Todo aquele equipamento de metal tinha uma vida
própria. Assim como as paredes do prédio viviam a seu modo. Alguns
rangidos e gemidos eram naturais, à medida que o metal se esfriava,
relaxando da tensão do dia. Não era nada. Tolice ter aquela sensação
súbita de que havia alguém no prédio, além dela.
Depressa, subiu a escada que era um traço tão importante no filme.
Escada que terminava numa plataforma que levava a nada. A câmara
nunca a focalizava além de certo ponto. Da plataforma ela olhou para
baixo, para o hall estreito e a porta que dava para a sala, fechada, como
estaria no filme. Daquele ponto, ela podia ver, por cima da parede do set,
parte da sala, mas desceu alguns degraus e afastou de si essa irrealidade.
Uma vez que pousou a mão no corrimão, ela se tornou Helen
Bradley. Sentia o papel de novo — fazia parte dela. Facilmente,
comodamente, ela viveu a cena toda. A emoção estava certa. Sabia o que
Helen Bradley estava sentindo, e no entanto tinha um controle completo
sobre suas feições e movimentos, para que essa emoção fosse transmitida
ao público como um ator diante de uma câmara deve transmiti-la. Não
sentia realmente o horror do momento em que Helen descobriu o corpo
do marido e viu que o perigo estava à solta na casa, mas compreendia-o e
o representaria.
Agora que o estado de espírito estava de acordo, ela voltaria a seu
camarim e dormiria, como não teria dormido em casa, pensando no
fracasso daquele dia. Saiu do set e apagou as luzes, deixando apenas
aquelas duas lâmpadas nuas na extremidade do grande palco.
Havia três camarins pequenos dentro do palco, perto dali, o dela
ligeiramente mais luxuoso que os dois outros, e ela se dirigiu para ele sob
a luz fraca. Num outro local no estúdio, havia o seu camarim num trailer
— quase um bangalô sobre rodas, com chuveiro e pequena cozinha. Ela
sempre o usava, nas filmagens fora. Mas aquele quartinho menor era
mais próximo do set e mais cômodo para os maquiladores, sua costureira
e cabelereiro. Ela gostava de ficar ali, onde o trabalho era feito.
Mais uma vez, ao chegar à porta do camarim, ela ouviu um barulho.
Um barulho quase como de passos. Ficou quieta um momento, prendendo
a respiração. Mas nada mais houve e ela achou que se tratava apenas dos
ruídos habituais. Entrou no quarto, onde a luz acolhedora da lâmpada e
um interior confortável a aguardavam. Ainda com as imagens da cena
passando-lhe pela cabeça, ela se aprontou para dormir. O palco de som
ficava frio, de noite, e ela levara uma camisola comprida e quente e mais
um cobertor para a cama.
Repassar seu papel a acalmara e tirara de sua cabeça tudo o que era
irritante e que a distraía. Adormeceu fácil e profundamente.
Quando o barulho ressoou em seus sonhos, levou-a flutuando à
superfície, sem ter certeza de que o som fosse real. Ela se sentou na cama
e por alguns minutos houve um silêncio relativo. Mas não era um silêncio
total. Alguém parecia estar-se movimentando lá fora e Laura não sabia se
devia ir para ver o que estava acontecendo, ou ficar ali e trancar a porta.
Foi quando ouviu passos apressados e uma voz que chamava seu
nome. Uma voz de mocinha.
— Srta. Worth! Srta. Worth!
Ela saltou da cama e abriu a porta do camarim. Rita Bond, a atriz
que fazia o papel de empregada, quase caiu para dentro do quarto. Seu
rosto jovem e gorducho estava lívido, seus olhos arregalados de choque e
terror sob os cabelos frisados que lhe haviam destinado para o papel. Por
um momento, ela não conseguiu falar, e Laura pegou-a pelos ombros e
sacudiu-a até que ela se recuperasse um pouco.
— É... é o Sr. Alroy! — gaguejou a moça. — Foi ferido. Havia um
outro homem, um homem grande. Eu o vi quando ele corria para a saída
de incêndio. Eu... eu acho que foi aquele Dr. Fletcher que estava aqui
hoje à tarde.
Laura nada perguntou sobre a presença de Rita ali, mas vestiu o
roupão, calçou chinelos e voltou com a moça para o set. Embora
estivesse pouco iluminado, ela via uma sombra esparramada no chão da
cena da sala. Ela empurrou Rita um pouco.
— Vá acender aquela lâmpada ali — disse ela e, quando a lâmpada
se acendeu, entrou no set.
No lugar em que Helen Bradley teria encontrado o corpo do marido,
estava Cass Alroy, com uma mancha vermelha se espalhando sobre o
tapete. Laura ajoelhou-se ao lado dele e sentiu seu pulso. Nada
encontrou. Nem respiração, nem batida do coração, ao que ela pudesse
notar. Se fosse Miles quem o fizera, teria sido por causa dela e o
escândalo seria tremendo. Sua mente rápida já estava procurando uma
solução, procurando uma saída.
Rita estava junto de uma câmara imensa, fixada a um carrinho, e o
olho da câmara parecia vigiar o set. A pequena estava tremendo, seus
dentes batiam, e Laura ficou a olhar para ela, imaginando. Será que
poderia utilizar aquela pequena, confiar nela? Involuntariamente, seu
olhar foi atraído para as duas cadeiras com as placas com nomes diante
do cenário da casa dos Bradley. Naquela tarde, ela se sentara ali, ao lado
de Cass, enquanto brigavam violentamente. Há mil anos.
Ela andou pelo set, pensando. A pistola estava ali, perto da mão
estendida de Cass, e pertinho estava o castiçal de bronze, uma de suas
extremidades úmidas e brilhante. Laura sentiu frio, estava gelada, mas
estava pensando, pensando. Não sentia pena alguma de Cass. Ele fora lá
para lhe fazer mal. A arma lhe dizia isso. Ela cada vez tinha mais medo
dele, durante as filmagens.
Falou com Rita, ali entre as câmaras.
— Você viu o que aconteceu?
— Não! — A moça conseguiu que os dentes parassem de bater. —
Ouvi o barulho e, quando vim para o set para ver o que tinha acontecido,
vi aquele homem grande fugindo.
— Você não vai mencioná-lo a ninguém — disse Laura, sem
expressão. — Temos de pensar no que vamos fazer. Por que você está
aqui? Como foi que você entrou?
Rita emitiu um som engasgado e lutou para responder.
— Eu... eu queria estar perto da senhora, Srta. Worth. Sabia que a
senhora pretendia passar a noite aqui. Disse que ia ensaiar sua parte. E eu
queria assistir. Talvez falar com a senhora. A senhora nunca me notou
muito, a não ser quando está representando uma cena. E pensei...
— Então você se escondeu no prédio? Assistiu a meu ensaio?
— Sim! Por favor, não se zangue. Se soubesse o quanto eu...
Laura silenciou-a com um gesto.
— Não há tempo para isso agora. Vão dizer que fui eu quem o
matou, sabe? Durante toda essa filmagem, houve atritos, e Cass me tem
maltratado.
— Eu sei — murmurou Rita. — Sei muito bem. Ele a teria matado,
esta noite.
Laura movia-se pelo set, os olhos à procura de algo.
— Sim. Ele mereceu o que lhe aconteceu. Mas temos de salvar a
pessoa que o fez. E temos de nos salvar a nós mesmas.
Seus olhos encontraram o prendedor que mantinha aberta aporta
para a sala de jantar aos fundos. Ela se abaixou e puxou o gato de ferro.
Era muito pesado. Ela nunca o poderia ter usado para golpear ninguém,
mas conseguiu levantá-lo com as duas mãos. Sentia-se mais forte que
nunca, inteiramente lúcida e em controle de seus próprios atos e de tudo
em volta. Não precisava pensar freneticamente, nem tentar raciocinar.
Simplesmente sabia sem sombra de dúvida o que precisava ser feito, e
sabia que era suficientemente forte para executá-lo.
Ela levou o prendedor de porta para onde Cass estava deitado e
segurou-o a uma boa distância acima da cabeça dele. Depois, deixou-o
cair.
Rita gritou com estridência, completamente abalada.
— Você o matou! — gritou ela. — Se ele ainda não estava morto,
você o matou!
Laura mal a ouviu. Havia muita coisa a fazer. O pior foi limpar as
impressões digitais do prendedor. Ela usou a barra do roupão, mas teve
de ter cuidado, por causa do sangue. Quando acabou, pegou a arma e o
castiçal e levou-os de volta a seu camarim. Colocou a arma numa bolsa.
Estaria segura ali, até ela poder escondê-la, mais tarde. Não tinha sido
disparada, e ninguém estaria procurando uma arma. O castiçal ela
colocou abertamente em sua penteadeira. Havia velas numa gaveta e ela
colocou uma delas no bocal. Diria ao responsável pelo cenário que levara
o castiçal por aquela noite. Ele não daria importância àquilo. Limpou a
base com cuidado, com um lenço de papel que ela queimou na chama da
vela. Todas essas coisas ela fez depressa e com eficiência, enquanto Rita
olhava, de olhos arregalados, enjoada e apavorada.
Laura olhou para ela friamente.
— Você nada pode dizer sobre o que fiz. Quando encontramos Cass,
você só viu o prendedor de porta ali. Está entendendo? E não viu
ninguém, nem ouviu passos que se afastavam.
A pequena moveu a cabeça, alucinada,
— Sim... sim! Nada direi.
— Se você disser alguma coisa que seja, eu direi a eles que foi você
quem o matou. Direi que o matou para salvar minha vida.
Os olhos de Rita estavam loucos de medo.
— Mas foi por isso mesmo que eu o matei! Para salvá-la! Eu o vi
quando se esgueirava pelo set com aquela arma na mão. Eu tinha andado
pelo set depois que a senhora saiu, fingindo que estava representando
suas cenas, fingindo que era a senhora. Quando o vi chegar, eu me
escondi. Sabia que ele ia para seu camarim. Parecia que ele ia matar a
mim! Assim, eu o derrubei. Eu tinha de fazê-lo parar... tinha!
Laura ficou olhando para ela. Todas as emoções estavam congeladas
dentro dela. Ela podia olhar para a pequena sem nada sentir — nem
gratidão nem uma condenação zangada. Nada.
— Vamos contar a mesma história — disse ela, naquela voz isenta
de toda emoção. — Eu estava dormindo e você se achava deitada perto de
meu camarim. Quando ouvimos o barulho, eu corri para o set, e você foi
atrás de mim. Não vimos ninguém, nem ouvimos barulho de passos. Mas
obviamente, nenhuma de nós duas podia ter brandido aquele prendedor
de porta enquanto Cass estava de pé. Entende tudo isso?
A pequena estava tremendo, mas disse que sim com a cabeça.
— Acabamos de encontrá-lo — disse Laura. — Não havia nenhum
castiçal, nenhuma pistola. Agora, vou pedir socorro. Venha comigo.
Juntas, fizeram caminho sobre os cabos e em volta de peças de
equipamento extra e sets velhos. Havia um fecho duplo na porta do palco
de som. Isso significava que havia duas portas para serem abertas. Portas
pesadas. Laura as abriu para as duas passarem com as últimas forças de
que dispunha.
Lá fora a noite estava fria, o luar muito claro. A aldeia adormecida,
que era o estúdio, se estendia por todos os lados. Laura armou-se de
coragem e pegou Rita com firmeza pelo braço, e começou a gritar.
Era o mesmo grito que ela daria mais tarde, quando finalmente
filmassem a cena em que Helen descobria o corpo do marido. E enquanto
ela gritava, as palavras que Rita tinha dito antes lhe voltaram vivamente à
memória.
“Se ele ainda não estava morto, você o matou!”
Dentro da cabana norueguesa reinava o silêncio, interrompido
apenas pelo crepitar da lenha no fogo que Miles acendera na lareira.
Laura era quem estava mais perto do fogo, buscando seu calor, ao contar
sua história. Donia se enroscara de pernas cruzadas no chão, do outro
lado da lareira, enquanto Miles ficava bem para trás, nas sombras.
Gunnar estava a meu lado.
Quando a voz de Laura, com tanto impacto emocional, se calou,
Miles retomou a história.
— Se Laura me tivesse contado a verdade, tanta coisa lhe teria sido
poupada. Eu tive dificuldade em encontrar o Palco 5, e entrei justo a
tempo de ouvir Cass cair ao chão. Ouvi alguém correndo e fui até o set.
Vi a arma e o castiçal, e pensei que Laura o tivesse matado. Minha
presença não a ajudaria, teria tornado tudo pior. Saí dali o mais depressa
possível, e depois mantive silêncio. Nada contei a minha irmã e, durante
todos esses anos, Donia acreditou que eu fosse culpado da morte de Cass.
Por vezes ela me tem até ameaçado com isso, e eu a deixei. Por causa
disso, ela detestava Laura, detestava meu casamento com ela, culpando-a
de tudo.
Donia remexeu-se.
— Mesmo que eu tivesse certeza de que era Laura, e não você,
nunca teria dito coisa alguma. Eu amei Cass, um dia. Sabia como ele era.
Não podia lamentar a morte dele.
Laura continuou com calma.
— O pior de tudo era não saber ao certo se eu o matara ou não. Era
tão fácil Rita ter razão. Talvez ela me quisesse culpar, e assim se salvar.
Eu continuava a ser o ídolo dela, mas ela também pensava em sua auto
conservação. Ela tinha força, mesmo então, e começou a cultivá-la, de
modo que passou pela investigação. Seu tremor e susto eram bastante
naturais, mas ela nunca deixou algo do verdadeiro segredo lhe escapar.
— Sabe o que foi feito dela? — perguntei.
— Desapareceu da minha vida. Fiquei doente e Miles e Donia
tomaram conta de mim. Quando me restabeleci, fui viajar sozinha. Ela foi
a meu encontro em Dubrovnik, pois minha viagem foi muito comentada.
Rita Bond era o nome que ela usava no cinema. Quando voltou para a
terra dela, retomou seu nome verdadeiro, Irene Varos.
Fiquei olhando para ela, espantada.
— Irene! Mas... acabei de vê-la no filme, e não havia semelhança
alguma.
— Não podia haver — disse Laura, tristemente. — Ela só tinha 17
anos, na ocasião do filme, e ela mudou muito, quando amadureceu. Todo
aquele cabelo crespo que ela usava no filme, o rosto gorducho e redondo,
o ar apavorado, tudo isso não era a Irene Varos em que ela se
transformou, magra e puxada, com todas as emoções reprimidas.
Naturalmente, as investigações revelaram seu verdadeiro nome, e isso
saiu em algumas das notícias posteriores. Publicou-se que ela foi para os
Estados Unidos com os pais, em criança, e que se criou lá. Por causa
dessas notícias, eu tive de cortar trechos daqueles álbuns quando você foi
para minha casa, Leigh. Eu não queria que uma jornalista descobrisse
quem ela era e tentasse explorar o passado. Miles e Donia sabiam da
identidade dela, mas não sabiam do verdadeiro papel que ela
desempenhou. Miles pensava que era a irmã dele quem pregou todas
essas peças, ultimamente.
— Quando encontrei Irene em Dubrovnik, ela queria voltar aos
Estados Unidos. Disse-me que continuava a me ser dedicada e queria
acompanhar-me para onde eu fosse. Nada havia que a prendesse em sua
terra. O homem com quem ela tinha querido casar-se não morrera, como
ela diz. Depois eu soube que ela lhe contara a verdadeira história do que
acontecera em Hollywood, e ele não podia suportar a ideia de casar-se
com uma mulher que já matara alguém. Com o correr dos anos, ela
começou a me culpar por tê-lo perdido, também. E o que lhe acontecera,
reforçado por minha própria relutância, levou-me, quando tornei a me
encontrar com Miles, a não deixá-lo saber da possível verdade sobre
mim. Trouxe Irene comigo, quando vim para Noruega. De certo modo,
estávamos ligadas. Uma de nós o matara. E, ultimamente, ela nunca me
deixava esquecer que podia ter sido eu. Detestou a ideia de meu
casamento com Miles é opôs-se a ele, por ele ter relação com aquela
época. Não sei o que pode ter fermentado em sua cabeça todos esses
anos, mas, depois que me casei com Miles, tudo começou a aparecer. Ela
começou a me fazer crer que eu realmente assassinara Cass Alroy, e disse
que pretendia vingar-se de mim por ter estragado toda sua vida. De certo
modo — Laura fez uma pausa e lançou um rápido olhar de carinho para
Miles — eu me casei com Miles para me proteger contra Irene. Mas isso
foi inútil. Ela me fez crer que era só questão de tempo para ela lhe contar
a verdade a meu respeito, fazendo-me perdê-lo, como ela perdera o
homem que amava. Acho que eu desisti. Retraí-me da realidade, deixei de
querer viver. Ela começou a me pregar peças torturantes, tentando levar-
me a algum ato de desespero. Talvez ela ficasse satisfeita com meu
suicídio. No fim, ela queria que eu morresse.
Mudamente, Laura olhou para Miles, do outro lado da sala,
pedindo-lhe perdão. Ele sorriu para ela, e toda a aspereza tinha
desaparecido do rosto dele.
— E todo esse tempo eu podia ter-lhe dito a única coisa que a
poderia ter livrado — disse ele. — Sou médico, de modo que
naturalmente, quando vi Alroy deitado ali na sala daquele set, eu o
examinei. Certifiquei-me de que estava morto, antes de sair. O que
apareceu na investigação a respeito do prendedor de porta de ferro me fez
saber que a segunda arma fora posta ali. Mas ele estava morto antes
disso.
— E agora estou realmente livre — disse Laura. — Comecei a crer
que podia escapar de Irene quando minha filha apareceu em minha vida.
Leigh me deu coragem e a fé na mulher que eu era antes. Mesmo quando
me demonstrava sua desconfiança e ressentimento, ela me desafiava. Ela
me fez querer provar-me a ela. Consegui isso, Leigh?
— Fez muito mais que isso — disse eu, e notei a emoção em minha
voz.
Ela atravessou a sala e pôs uma mão leve sobre meu ombro, olhando
dentro de meus olhos.
— Desde que você chegou, tenho tido medo de você. Medo porque
você tinha todo o direito de odiar e o poder de me ferir. Eu tentava
reprimi-la a toda hora para você nada esperar de mim, como eu nada
esperava de você. Mas depois de hoje, não se pode mais fingir.
— Não se finge mais — disse eu. — E agora você vai voltar para
Hollywood e provar o que Laura Worth pode fazer. Vai mostrar ao mundo
quem você é, e...
Ela estava olhando para mim, com um espanto afetuoso.
— Ah, não! Agora não. Não quando tenho tudo que é real, pela
primeira vez na vida. Não quero mais a outra vida. Aquilo era só uma
fuga de Irene. Não que eu ache que não tivesse sucesso se resolvesse
voltar... — ela nos deu um sorriso de uma confiança orgulhosa — mas
não quero mais tentar. Há uma coisa mais importante. Portanto, que
Laura Worth permaneça uma lenda, enquanto Laura Fletcher começa a
viver.
Ela se virou para Miles. Gunnar pegou minha mão e fez um sinal
para Donia. Ela foi conosco lá para fora, e depois se afastou sozinha,
dando-nos as costas. Eu sentia um pouco de pena dela, porque ela estava
sozinha, e porque a maldade fazia parte de sua natureza e não mais da
minha.
Quando estávamos ali de pé, lado a lado, olhando Donia afastar-se,
um carro aproximou-se do portão e um policial saltou. Ele se aproximou
de nós e falou em inglês.
— A mulher foi encontrada. Está completamente louca e não sabe
quem é. Acha que é uma criança que quebrou sua boneca predileta.
Eu estremeci e Gunnar dirigiu o policial para a casa. Depois, nós
nos afastamos juntos.
Havia um caminho íngreme que levava até a água, que descia das
rochas em que a casinha era construída. Descemos o caminho sinuoso, de
mãos dadas.
— O que vai acontecer com Irene? — perguntei.
— Ela será examinada. Obviamente, não será solta para ser
submetida a julgamento. A semente do desequilíbrio existe nela desde a
infância. Já deu frutos terríveis.
— Então não vai dar em nada? — perguntei. — O passado pode
ficar em paz? Laura pode ficar em paz?
Gunnar concordou com a cabeça.
— Acho que podemos ter certeza disso. Todos já sofreram bastante.
Até mesmo Irene.
Ficamos calados o resto do caminho. Este terminava num banco de
areia estreito, rochoso, e nós nos sentamos nas pedras, com a água
embaixo, a nossos pés. Então nos olhamos.
— Temos de fazer planos — disse Gunnar. — Você vai escrever a
respeito de Laura Worth?
— Claro. Agora eu quero fazer isso mais que nunca. Mas apenas um
capítulo. Um capítulo a respeito de Laura Worth, a atriz. Eu não poderia
escrever um livro, porque há muita coisa sobre que não se pode escrever.
Eu nunca poderia fazer-lhe justiça. Primeiro, vou voltar para Nova York.
Escreverei lá, onde posso ter um pouco de perspectiva.
— Mas você vai voltar — disse Gunnar. Era uma declaração, não
uma pergunta. Depois ele continuou, como se achasse suas próprias
palavras inadequadas. — Será necessário que você volte.
Ele estava falando muito sério e solenemente, e eu ri dele, com um
riso um pouco sufocado.
— Sim, eu voltarei — disse eu.
Ele não agiria depressa demais, o meu norueguês, mas ele sabia
perfeitamente aonde ia, mesmo que não estivesse pronto para me contar,
ainda. Eu esperaria até ele estar pronto.
— Você está sentada muito longe de mim — disse ele, e eu me
aproximei devidamente. — Mesmo no inverno você há de gostar da
Noruega, Leigh.
— Mesmo no inverno, eu a adorarei — concordei.
E, por algum tempo, não pensamos absolutamente em Laura Worth.
Ela não precisava mais de que se pensasse nela, nem que nos
preocupássemos com ela. Eu tinha a impressão de que Victor Hollins, se
soubesse, ficaria muito feliz.
Este livro foi composto e impresso nas oficinas
da Empresa Gráfica O CRUZEIRO SA,
Rua do Livramento, 189/203 — ZC-14 —
FRR1 104.823/01 — CGE 33.529.124 — Rio GB

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