Você está na página 1de 402

Ficha Técnica

Título original: SWING TIME


Autor: Zadie Smith
Tradução de
Francisco Agarez
Edição: Cecília Andrade
Revisão: Clara Boléo
Design de capa: gray318
Fotografia da autora: © Pedro Loureiro
ISBN: 9789722062633

Publicações Dom Quixote


uma editora do grupo Leya
Rua Cidade de Córdova, n.º 2
2610-038 Alfragide – Portugal
Tel. (+351) 21 427 22 00
Fax. (+351) 21 427 22 01

© Zadie Smith, 2016


© Publicações Dom Quixote, 2017
Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor
www.dquixote.leya.com
www.leya.pt

Este livro segue o Novo Acordo Ortográfico de 1990.


Para a minha mãe, Yvonne
Quando muda a música, muda a dança.
– Provérbio haúça
PRÓLOGO

Foi o primeiro dia da minha humilhação. Metida num avião, recambiada


para o meu país, a Inglaterra, instalada temporariamente em St. John’s
Wood. O apartamento era no oitavo andar, as janelas davam para o estádio
de críquete. Tinha sido escolhido, penso, por causa do porteiro, que barrava
todas as perguntas. Não saía de casa. O telefone de parede da cozinha
tocava sem parar, mas eu estava avisada de que não devia atender e nem ter
o meu telemóvel ligado. Assistia ao críquete, jogo que não compreendo,
não me distraía verdadeiramente, mas sempre era melhor do que olhar para
o interior daquele apartamento, num condomínio de luxo, em que tudo
havia sido concebido para ser perfeitamente neutro, com todos os cantos
significativos boleados, como um iPhone. Quando o críquete acabava
olhava absorta para a lustrosa máquina de café encastrada na parede, e para
duas fotografias do Buda – um Buda de latão, o outro de madeira – e para
uma fotografia de um elefante ajoelhado diante de um rapazinho indiano,
também ele ajoelhado. Os compartimentos eram elegantes e cinzentos,
ligados por um impecável corredor de veludo canelado creme. Olhava
absorta para os sulcos do veludo.
Assim se passaram dois dias. Ao terceiro dia, o porteiro ligou-me pelo
intercomunicador a dizer que o átrio estava livre. Olhei para o meu
telemóvel, pousado em cima do balcão em modo de avião. Estivera setenta
e duas horas desligado e lembro-me de ter sentido que isto devia ter lugar
entre os grandes exemplos de estoicismo pessoal e resistência moral do
nosso tempo. Vesti o casaco e desci. No átrio encontrei o porteiro. Ele
aproveitou a oportunidade para se queixar amargamente («Não faz ideia do
que isto foi nos últimos dias – parecia o maldito Piccadilly Circus!»)
embora fosse evidente que ao mesmo tempo estava confuso, para não dizer
desiludido: para ele era uma pena que a confusão se tivesse desvanecido –
durante quarenta e oito horas sentira-se muito importante. Contou-me
orgulhoso que havia dito a este e àquele que «tivessem juízo», e avisado
alguns de que se pensavam que iam conseguir passar por ele «nem sabiam
em que se iam meter». Eu estava encostada à secretária dele a ouvi-lo falar.
Tinha passado tanto tempo fora de Inglaterra que agora havia muitas
expressões britânicas coloquiais e simples que me soavam exóticas, quase
absurdas. Perguntei-lhe se achava que à noite ia aparecer mais gente e ele
disse que achava que não, que desde o dia anterior não aparecia ninguém.
Perguntei depois se era seguro receber uma visita noturna. «Não vejo
problema nenhum», disse ele, num tom que me fez sentir que tinha feito
uma pergunta ridícula. «Há sempre a porta de serviço.» Suspirou, e nesse
preciso momento parou uma mulher para lhe perguntar se podia receber a
roupa da lavandaria na sua ausência. Tinha uns modos bruscos e
impacientes, e em vez de olhar para ele enquanto falava tinha os olhos fixos
num calendário que ele tinha em cima da secretária, um bloco cinzento com
um ecrã digital, que informava quem o tinha em frente do momento exato
em que estava, ao segundo. Era o dia vinte e cinco de outubro, do ano dois
mil e oito, e era meio dia, trinta e cinco minutos e vinte e três segundos. Eu
virei-me para sair; o porteiro despachou a mulher e contornou
apressadamente a secretária para me abrir a porta da rua. Perguntou-me
aonde ia; respondi que não sabia. Saí a pé para o centro da cidade. Estava
uma tarde outonal perfeita em Londres, fria mas luminosa, debaixo de
certas árvores havia folhas douradas caídas. Passei pelo estádio de críquete
e pela mesquita, pelo Madame Tussauds, subi Goodge Street e desci
Tottenham Court Road, atravessei Trafalgar Square e cheguei finalmente a
Embankment, onde atravessei a ponte. Pensei – como penso muitas vezes
quando atravesso aquela ponte – em dois jovens, estudantes, que uma noite
iam a passar por ali, a altas horas, quando foram atacados e atirados por
cima do parapeito ao Tamisa. Um viveu e o outro morreu. Nunca percebi
como um deles conseguiu sobreviver, na escuridão, num frio absoluto, com
o choque terrível e os sapatos calçados. Pensando nele, fui sempre pelo lado
direito da ponte, junto à linha de comboio, e evitei olhar para a água.
Quando cheguei a South Bank, a primeira coisa que vi foi um cartaz a
anunciar uma sessão de «conversa» com um realizador de cinema austríaco,
que começava daí a vinte minutos no Royal Festival Hall. Resolvi por
impulso tentar arranjar um bilhete. Fui até lá e consegui um lugar na
galeria, na última fila de todas. Não ia com grandes expectativas, só queria
distrair-me por algum tempo dos meus problemas, sentar-me no escuro e
ouvir uma conversa sobre filmes que nunca tinha visto, mas a meio do
programa o realizador pediu à pessoa que estava a entrevistá-lo que
passasse um clipe da fita Swing Time, filme que eu conhecia muito bem,
vira-o vezes sem conta quando era pequena. Endireitei-me na cadeira. No
ecrã enorme que tinha diante de mim, Fred Astaire dançava com três figuras
em silhueta. Estas não conseguem acompanhá-lo, começam a perder o
ritmo. Acabam por deitar a toalha ao chão, fazendo aquele gesto muito
americano de «que se dane» com as três mãos esquerdas e saindo de cena.
Astaire continua a dançar, sozinho. Percebi que as três sombras também
eram Fred Astaire. Já teria percebido isso quando era pequena? Mais
ninguém esgravata o ar como ele, nenhum outro bailarino flete os joelhos
daquela maneira. Entretanto o realizador falou de uma teoria que tinha
sobre o «cinema puro», que começou por definir como a «interação entre a
luz e a escuridão, expressa como uma espécie de ritmo, ao longo do
tempo», mas eu achei o raciocínio enfadonho e difícil de acompanhar. Nas
costas dele voltou a passar, por qualquer razão, o mesmo clipe, e os meus
pés, em sintonia com a música, sapatearam nas costas da cadeira à minha
frente. Sentia no corpo uma leveza extraordinária, uma felicidade absurda,
que pareciam vindas de lado nenhum. Tinha perdido o emprego, uma certa
versão da vida, a privacidade, e no entanto tudo isso me parecia
insignificante e mesquinho ao pé do júbilo que sentia ao ver a dança e ao
acompanhar no meu corpo os seus ritmos precisos. Tinha a sensação de que
estava a perder o contacto com a minha localização física, a evolar-me do
meu corpo, vendo a minha vida de um ponto muito distante, flutuando
sobre ela. Fazia-me lembrar a descrição que as pessoas faziam das
experiências com drogas alucinogénias. Vi todos os meus anos de uma só
vez, mas não empilhados uns nos outros, experiência sobre experiência,
aglomerados em algo de substancial – pelo contrário. Estava a ter a
revelação de uma verdade: que sempre me havia ligado à luz de outras
pessoas, que nunca tivera luz própria. Sentia-me uma espécie de sombra.
Quando o evento acabou regressei ao apartamento a pé, telefonei a
Lamin, que estava à espera num café próximo, e disse-lhe que a costa
estava livre. Também ele tinha sido despedido, mas eu, em vez de o deixar
regressar ao seu Senegal, seu país de origem, tinha-o trazido para Londres.
Apareceu às onze horas, com um blusão de capuz, não fosse encontrar
fotógrafos. O átrio estava vazio. De capuz ainda parecia mais novo e mais
belo, e para mim era uma espécie de escândalo não sentir nada por ele.
Depois, deitámo-nos lado a lado na cama com os nossos portáteis e eu, para
não ver as mensagens, pus-me a fazer pesquisas no Google, primeiro à toa,
depois com um objetivo: encontrar aquele clipe do Swing Time. Queria
mostrá-lo a Lamin, tinha curiosidade em saber o que ele achava, agora que
também era dançarino, mas ele disse que nunca tinha visto Astaire nem
ouvido falar dele, e enquanto o clipe passava soergueu-se na cama e franziu
o cenho. Não percebi bem o que estávamos a ver: Fred Astaire com a cara
pintada de preto. No Royal Festival Hall tinha estado sentada na galeria,
sem óculos, e a cena abre com Fred Astaire em plano afastado. Mas nada
disto explicava verdadeiramente como havia conseguido suprimir da minha
memória a imagem de infância: o revirar dos olhos, as luvas brancas, o
sorriso aberto de Bojangles. Senti-me muito estúpida, fechei o portátil e
esperei pelo sono. Na manhã seguinte acordei cedo, deixando Lamin na
cama, corri para a cozinha e liguei o telemóvel. Esperava ter centenas de
mensagens. Milhares. Tinha à volta de trinta. Era Aimee que antigamente
me enviava centenas de mensagens por dia, e agora percebia finalmente que
Aimee nunca mais me enviaria nenhuma. Não sei por que razão demorei
tanto a perceber uma coisa tão óbvia. Percorri uma lista deprimente – uma
prima afastada, alguns amigos, vários jornalistas. Chamou-me a atenção um
título: PUTA. Tinha um endereço absurdo de algarismos e letras e um vídeo
anexo que se recusava a abrir. O corpo da mensagem era só uma frase:
Agora toda a gente sabe quem tu és realmente. Era o tipo de recado que se
podia esperar de uma rapariga de sete anos despeitada com uma ideia fixa
de justiça. E era exatamente disso que se tratava – se conseguirmos abstrair
da passagem do tempo.
Primeira parte

PRIMEIROS TEMPOS
1

Se é possível pensar em todos os sábados de 1982 como um só dia,


conheci Tracey às dez da manhã desse sábado, quando atravessávamos o
areão de um adro de igreja, cada qual pela mão da sua mãe. Estavam
presentes muitas outras raparigas, mas por razões óbvias reparámos uma na
outra, nas semelhanças e nas diferenças, como fazem as raparigas. O nosso
tom de castanho era exatamente o mesmo – como se tivessem cortado da
mesma peça de tecido cor de canela para nos fazerem a ambas – e as nossas
sardas concentravam-se nos mesmos sítios, éramos da mesma altura. Mas a
minha cara era inexpressiva e melancólica, com um nariz comprido e sério,
e os olhos descaídos, tal como os cantos da boca. Tracey tinha uma cara
alegre e redonda, parecia uma Shirley Temple mais escura, só que o nariz
era tão problemático quanto o meu, percebi isso imediatamente, um nariz
ridículo – empinado como o de um leitãozinho. Gira, mas também obscena:
tinha as narinas permanentemente à vista. Em narizes podia dizer-se que
estávamos empatadas. Em cabelo ela ganhava por larga margem. Tinha
caracóis em espiral, que lhe chegavam às costas e eram apanhados em duas
tranças compridas, a que um óleo qualquer dava brilho, atadas nas pontas
por laços amarelos de cetim. Laços amarelos de cetim eram um fenómeno
que a minha mãe desconhecia. Apanhava-me a grande gaforina atrás numa
única nuvem, presa por um elástico preto. A minha mãe era feminista.
Usava o cabelo num corte afro de meia polegada, tinha um crânio de forma
perfeita, nunca se maquilhava e vestia-se, e a mim, do modo mais simples
possível. O cabelo não é essencial em quem se parece com Nefertiti. Não
precisava de maquilhagem nem de produtos nem de joias nem de roupas
caras, e por isso a sua situação financeira, a sua política e a sua estética
harmonizavam-se na perfeição – e com vantagem. Os acessórios só lhe
atrapalhavam o estilo, incluindo neles, ou pelo menos era a sensação que eu
tinha na altura, a miúda com sete anos e cara de cavalo que tinha ao lado.
Olhando para Tracey, diagnostiquei o problema oposto: a mãe dela era
branca, obesa, causticada pela acne. Usava o cabelo louro e fino firmemente
apanhado atrás naquilo que eu sabia que a minha mãe designaria por uma
«plástica de Kilburn». Mas o encanto pessoal de Tracey era a solução: era
ela o acessório mais espetacular da mãe. O visual de família, que não fazia
o género da minha mãe, para mim era cativante: logótipos, pulseiras e
brincos de fantasia, tudo muito reluzente, ténis caros daqueles que a minha
mãe se recusava a aceitar como uma realidade no mundo em que vivemos –
«Aquilo não são sapatos.» Ainda assim, e apesar das aparências, não havia
muitas diferenças entre as nossas duas famílias. Ambas vivíamos em bairros
sociais, nenhuma recebia subsídios. (Motivo de orgulho para a minha mãe,
de escândalo para a de Tracey: muitas vezes já havia tentado, sem êxito,
«conseguir o de incapacidade».) Na perspetiva da minha mãe eram
exatamente estas semelhanças superficiais que conferiam tanto peso às
questões do gosto. Vestia-se para um futuro que ainda era só isso, mas que
esperava que chegasse. Era isso que queriam dizer as calças lisas de linho
branco, a T-shirt «bretã» às riscas azuis e brancas, as alpercatas esfiapadas,
a severa e bela cabeça africana – tudo tão simples, tão despretensioso,
completamente contrastante com o espírito do tempo, e com o lugar. Um
dia havíamos de «nos ir embora dali», ela completaria os estudos, adotaria
um estilo chique verdadeiramente radical, talvez até falassem dela a par de
Angela Davis e Gloria Steinem... Os sapatos de corda faziam parte
integrante desta visão ousada, apontavam subtilmente para conceitos mais
altos. Eu só era um acessório na medida em que na minha simplicidade
exemplificava a admirável contenção materna, sendo que era considerado
de mau gosto – nos círculos a que a minha mãe aspirava – vestir a filha
como uma putazinha.
Mas Tracey era desassombradamente a aspiração e o avatar da mãe, a sua
única alegria, naqueles fascinantes laços amarelos, saia rumorejante de
muitas pregas e top exíguo que deixava à mostra polegadas de barriga
infantil castanho-escura, e quando chocámos com elas neste engarrafamento
de mães e filhas que entravam na igreja observei com interesse o modo
como a mãe de Tracey a empurrava à sua frente – e à nossa frente – usando
o seu próprio corpo como meio de obstrução, balouçando a gordura dos
braços enquanto nos ultrapassava, até chegar à aula de dança de Miss
Isabel, com uma expressão de grande orgulho e impaciência no rosto,
pronta a deixar a sua carga preciosa ao cuidado temporário de terceiros. A
atitude da minha mãe, pelo contrário, era de sujeição enfastiada, meio
irónica, achava ridícula a aula de dança, tinha coisas melhores para fazer, e
ao fim de mais alguns sábados – em que se afundava numa das cadeiras de
plástico alinhadas na parede da esquerda, contendo com dificuldade o
desprezo que sentia por todo aquele exercício – houve uma alteração e
passou a ir o meu pai no lugar dela. Fiquei à espera de que o pai de Tracey
tomasse o lugar da mãe, mas isso nunca aconteceu. Pelos vistos – tal como
a minha mãe tinha adivinhado imediatamente – não havia nenhum «pai de
Tracey», pelo menos no sentido convencional, conjugal. Era mais um
exemplo de mau gosto.
2

Quero agora descrever a igreja, e Miss Isabel. Um edifício despretensioso


do século XIX com grandes pedras de arenito na fachada, a lembrar o
revestimento barato que se via nas casas mais reles, embora não pudesse ter
sido uma delas – e um agradável campanário pontiagudo a coroar um
interior simples, que lembrava um celeiro. Chamava-se Igreja de São
Cristóvão. Parecia mesmo a igreja que desenhávamos com os dedos
enquanto cantávamos:

Isto é a igreja
Isto é a torre
Abrem-se as portas
E o povo acorre.

O vitral contava a história de São Cristóvão a atravessar um rio com o


Menino Jesus aos ombros. Era mal feito: o santo parecia mutilado, maneta.
As janelas originais tinham-se estilhaçado durante a guerra. Em frente da
igreja de São Cristóvão erguia-se uma torre de habitação social de má fama,
e era aí que Tracey vivia. (Eu vivia num complexo de edifícios mais
bonitos, horizontais, na rua a seguir.) Construído nos anos sessenta, veio
substituir uma fiada de casas vitorianas destruídas pelo mesmo
bombardeamento que havia danificado a igreja, mas acabava aqui a relação
entre os dois edifícios. Incapaz de atrair para Deus os residentes do outro
lado da estrada, a igreja tinha tomado a decisão pragmática de se abrir a
novas áreas de atuação: um jardim de infância, inglês para estrangeiros,
escola de condução. Eram áreas populares e consolidadas, mas as aulas de
dança aos sábados de manhã eram uma iniciativa recente e ninguém sabia
ao certo o que pensar delas. A aula propriamente dita custava duas libras e
meia, mas corria entre as mães um rumor sobre o preço das sapatilhas de
balé, uma tinha ouvido dizer três libras, outra sete, fulana de tal jurava que
o único sítio onde era possível comprá-las era a Freed, em Covent Garden,
onde em menos de um fósforo sacavam dez libras a uma pessoa – então os
de «sapateado», e os de «moderna»? As sapatilhas de balé davam para a
moderna? O que era a moderna? Não havia ninguém a quem se pudesse
perguntar, ninguém que já a tivesse praticado, era o impasse. Raras eram as
mães com curiosidade suficiente para telefonarem para o número escrito
nos folhetos artesanais agrafados às árvores do bairro. Muitas raparigas que
talvez tivessem dado excelentes dançarinas nunca chegaram a atravessar a
estrada, com medo de um folheto artesanal.
A minha mãe era uma raridade: os folhetos artesanais não lhe metiam
medo. Tinha um instinto apuradíssimo para as convenções da classe média.
Sabia, por exemplo, que era numa venda de bagageira – pese embora o
nome pouco promissor – que se encontravam as pessoas de melhor
qualidade, com os seus velhos livros Penguin de capa mole, às vezes de
Orwell, as suas caixas antigas de porcelana para comprimidos, as suas peças
estaladas de cerâmica da Cornualha, as suas rodas de oleiro caídas em
desuso. A nossa casa estava cheia de coisas destas. Para nós não havia
flores de plástico, refulgentes de falso orvalho, nem estatuetas de cristal.
Tudo isto fazia parte do plano. Até as coisas que eu detestava – como as
alpercatas da minha mãe – costumavam acabar por ser atraentes aos olhos
das pessoas que estávamos a tentar atrair, e aprendi a não contestar os
métodos dela, mesmo quando me cobriam de vergonha. Uma semana antes
da data em que as aulas deviam começar, ouvi-lhe a entoação afetada na
cozinha estreita, mas quando desligou o telefone tinha todas as respostas:
cinco libras pelas sapatilhas de balé – se fossem ao centro comercial em vez
de irem ao centro da cidade – e os sapatos de sapateado podiam esperar
para depois. As sapatilhas de balé serviam para a moderna. O que era a
moderna? Não tinha perguntado. Para o papel de progenitora zelosa estava
disponível, mas nunca, jamais, para o de ignorante.
O meu pai foi encarregado de ir comprar as sapatilhas. O tom rosa da
carneira saiu mais claro do que eu estava à espera, parecia a barriga de um
gatinho, e a sola era de um tom cinzento-sujo como a língua de um gato, e
não tinha as compridas fitas de cetim cor-de-rosa para entrelaçar sobre os
tornozelos, não, apenas uma triste tira de elástico que o meu pai tinha
cosido pessoalmente. Fiquei extremamente zangada. Mas talvez, como as
alpercatas, as sapatilhas fossem intencionalmente «simples», de bom gosto.
Consegui agarrar-me a esta ideia até ao momento em que, já dentro da sala,
nos mandaram vestir o fato de dança junto às cadeiras de plástico e ir para a
outra parede, onde ficava a barra. Quase todas tinham os sapatos de carneira
cor-de-rosa, não de carneira rosa-pálido, cor de pele de leitão, a que eu
estava condenada, e algumas – raparigas que, segundo sabia, viviam de
subsídios, ou não tinham pai, ou as duas coisas – tinham os sapatos com
fitas de cetim compridas entrelaçadas em volta dos tornozelos. Tracey, que
estava de pé perto de mim, com o pé esquerdo na mão da mãe, tinha as duas
coisas – o cetim rosa-escuro e o entrelaçado – e também um tutu completo,
que não tinha passado pela cabeça de mais ninguém, como não passaria
pela cabeça de ninguém aparecer numa primeira aula de natação em fato de
mergulho. Miss Isabel, entretanto, tinha uma cara simpática e era afável,
mas velha, qualquer coisa como quarenta e cinco anos. Era dececionante.
De constituição robusta, mais parecia a mulher de um agricultor do que uma
bailarina e era toda ela cor-de-rosa e amarelo, cor-de-rosa e amarelo. O
cabelo era amarelo, não loiro, amarelo como um canário. A pele era muito
rosada, de um rosa-vivo, agora que penso nisso talvez sofresse de rosácea.
O fato de dança era cor-de-rosa, as calças do fato de treino eram cor-de-
rosa, o casaco de malha por cima do fato de balé era angorá e cor-de-rosa –
mas as sapatilhas eram de seda e amarelas, no tom do cabelo. Foi outra
coisa que me deixou zangada. Ninguém tinha falado no amarelo! Ao pé
dela, no canto, estava um homem branco muito velho, de chapéu de feltro
na cabeça, sentado a um piano vertical a tocar «Night and Day», canção que
eu adorava e me orgulhava de reconhecer. Aprendi as canções antigas com
o meu pai, por sua vez filho de um competente cantor de bares, o tipo de
homem – ou assim pensava o meu pai – cuja pequena criminalidade
representava, pelo menos em parte, um certo instinto criativo coartado. O
pianista chamava-se Senhor Booth. Cantarolei em voz alta enquanto ele
tocava, na esperança de me fazer ouvir, pondo muito vibrato no meu
cantarolar. Era melhor cantora do que dançarina – dançar não era comigo –
se bem que me orgulhasse exageradamente dos meus dotes de cantora, de
uma forma que sabia que a minha mãe achava censurável. Cantar era
natural em mim, mas as coisas que eram naturais nas mulheres não
impressionavam a minha mãe, de maneira nenhuma. Na opinião dela, era o
mesmo que nos orgulharmos de respirar ou dar à luz.
As nossas mães serviam-nos de equilíbrio, de estribos. Pousávamos uma
das mãos num dos ombros delas, pousávamos um pé nos joelhos fletidos
delas. O meu corpo ficava aliás nas mãos da minha mãe – que me içava do
chão e me cingia, me apertava e endireitava, me escovava – mas a minha
mente estava em Tracey, e nas solas das suas sapatilhas de balé, em que
agora lia a marca «Freed» claramente estampada na pele. Os seus arcos
naturais eram dois colibris em voo, curvados sobre si mesmos. Os meus
pés, pelo contrário, eram quadrados e chatos, parecia que rangiam nas
mudanças de posição. Sentia-me como um bebé titubeante a colocar blocos
de madeira formando uma série de ângulos retos. Esvoaça, esvoaça,
esvoaça, dizia Isabel, isso mesmo, essa é a adorável Tracey. Os elogios
faziam Tracey atirar a cabeça para trás e distender horrivelmente o nariz de
leitão. Tirando isso, era perfeita, eu ficava enfeitiçada. A mãe dela parecia
igualmente deslumbrada, com um empenhamento naquelas aulas que era o
único sinal consistente daquilo a que hoje chamaríamos «a sua
parentalidade». Comparecia nas aulas com maior assiduidade que qualquer
outra mãe, e enquanto lá estava raramente a sua atenção se desviava dos pés
da filha. Já a atenção da minha mãe estava sempre fora dali. Não era capaz
de ficar simplesmente sentada à espera de que o tempo passasse, tinha de
estar a aprender alguma coisa. Era capaz de chegar no princípio da aula
com, por exemplo, The Black Jacobins na mão, e quando eu ia ter com ela
para trocar as sapatilhas de balé pelos sapatos de sapateado já tinha lido
cem páginas. Mais tarde, quando passou a ir no lugar dela, o meu pai
dormia ou «ia dar um passeio», eufemismo parental que significava ir
fumar para o adro.
Nesta fase inicial eu e Tracey não éramos amigas nem inimigas, nem
sequer conhecidas: praticamente não nos falávamos. Mas sempre existiu
esta consciência mútua, um elástico invisível estendido entre nós, a ligar-
nos e a impedir-nos de nos relacionarmos muito profundamente com outras.
Tecnicamente, eu falava mais com Lily Bingham – que andava na minha
escola – e a segunda opção de Tracey era a pobre Danika Babic, com os
seus colãs rotos e o seu sotaque cerrado, que vivia no mesmo corredor que
Tracey. Mas embora durante as aulas trocássemos risadinhas e piadas com
estas raparigas brancas, e embora elas tivessem todo o direito de supor que
eram os alvos da nossa atenção, da nossa preocupação – que éramos, para
elas, as boas amigas que aparentávamos ser –, mal chegava o intervalo e o
sumo e as bolachas eu e Tracey púnhamo-nos lado a lado, sempre, era
quase inconsciente, dois arquivadores metálicos atraídos por um íman.
Dava-se o caso de Tracey ter tanta curiosidade acerca da minha família
como eu acerca da família dela, afirmando, com uma certa autoridade, que
tínhamos as coisas «ao contrário». Ouvi a teoria dela um dia durante o
intervalo, enquanto molhava ansiosamente uma bolacha no meu sumo de
laranja. «No caso de todas as outras é o pai», disse ela, e como eu sabia que
esta afirmação era mais ou menos exata não me ocorreu acrescentar nada.
«Quando o teu pai é branco significa…», continuou, mas nesse momento
Lily Bingham aproximou-se e parou ao pé de nós e eu fiquei sem saber o
que significava quando se tinha um pai branco. Lily era desengonçada,
tinha mais um palmo de altura do que todas as outras. Tinha o cabelo loiro,
perfeitamente liso, maçãs do rosto rosadas e um feitio aberto e feliz que nos
parecia, tanto a Tracey como a mim, ser a consequência direta do n.º 29 da
Exeter Road, uma vivenda, para onde eu tinha sido recentemente
convidada, fazendo depois o relato entusiasmado a Tracey – que nunca lá
tinha estado –, um jardim privativo, um enorme frasco de compota cheio de
«trocos» e um relógio Swatch do tamanho de um homem pendurado na
parede de um quarto. Por isso havia coisas de que não podíamos falar diante
de Lily Bingham, e nessa altura Tracey calou-se, empinou o nariz e
atravessou a sala para ir pedir à mãe as sapatilhas de balé.
3

Que queremos das nossas mães quando somos crianças? Completa


submissão.
Oh, é muito bonito e racional e respeitável dizer que uma mulher tem
todo o direito à sua vida, às suas ambições, às suas necessidades, e por aí
fora – é aquilo que eu sempre exigi – mas em criança, não, a verdade é que
é uma guerra de atrito, a racionalidade não entra nas contas, nem um
bocadinho, tudo o que queremos da nossa mãe é que reconheça de uma vez
por todas que é nossa mãe e só nossa mãe, e que a sua batalha com o resto
da vida acabou. Tem de depor as armas e dedicar-se a nós. E se não o fizer,
então sim, é uma guerra de verdade, e entre a minha mãe e eu foi uma
guerra. Só na idade adulta aprendi a admirá-la realmente – em especial nos
últimos e dolorosos anos da sua vida – por tudo o que tinha feito para
conquistar algum espaço para si neste mundo. Quando eu era jovem, a
recusa dela em submeter-se a mim deixava-me confusa e magoada,
principalmente porque achava que nenhuma das habituais razões de recusa
se aplicava ao meu caso. Era a sua única filha e ela não tinha emprego – na
altura – e praticamente não falava com ninguém da família. Na minha
perspetiva, a única coisa que ela tinha era tempo. E nem assim conseguia
que se submetesse completamente a mim! A imagem mais antiga que tive
dela foi a de uma mulher que congemina uma fuga, de mim, do próprio
papel de mãe. Tinha pena do meu pai. Ainda era um homem bastante
jovem, amava-a, queria mais filhos – era tema de discussão diária entre eles
– mas nesta questão, como em todas, a minha mãe recusava-se a ceder um
milímetro que fosse. A mãe dela tinha dado à luz sete filhos, a avó onze.
Não ia seguir-lhes o exemplo. Estava convencida de que o meu pai queria
mais filhos para a armadilhar e no fundo tinha razão, se bem que neste caso
armadilha fosse apenas mais uma palavra para dizer amor. Amava-a muito!
Mais do que ela sabia ou queria saber, era uma mulher que vivia no seu
mundo imaginário, que presumia que toda a gente à sua volta estava sempre
a sentir o mesmo que ela. E por isso quando começou, primeiro lentamente
e depois a uma velocidade cada vez maior, a ultrapassar o meu pai,
intelectual e pessoalmente, a sua expectativa natural era que ele passasse
pelo mesmo processo ao mesmo tempo. Mas ele continuava igual ao que
sempre fora. Tomando conta de mim, amando-me, tentando manter-se
atualizado, lendo o Manifesto Comunista ao seu ritmo lento e diligente. «Há
quem ande com a bíblia. A minha bíblia é esta.» Era uma afirmação que
impressionava – a ideia era impressionar a minha mãe – mas eu já tinha
reparado que ele parecia estar sempre a ler este livro e pouco mais, levava-o
para todas as aulas de dança, mas nem assim conseguia passar das primeiras
vinte páginas. No contexto do casamento era um gesto romântico: tinham-
se conhecido numa reunião do SWP1, em Dollis Hill. Mas até isso foi uma
espécie de mal-entendido, porque o meu pai tinha ido para conhecer
raparigas de esquerda bonitas, de saia curta e sem religião, ao passo que a
minha mãe estava lá por causa de Karl Marx. A minha infância passou-se
durante o aprofundar do fosso. Vi a minha mãe autodidata ultrapassar
rápida e facilmente o meu pai. As estantes da nossa sala de estar – que ele
construiu – encheram-se de livros em segunda mão, livros de estudo da
Universidade Aberta, livros políticos, livros de história, livros sobre raça,
livros sobre género, «todos os “ismos”», como o meu pai costumava
chamar-lhes, sempre que algum vizinho ia lá a casa e reparava na estranha
acumulação.
Sábado era o «dia de folga» dela. Dia de folga de quê? De nós. Precisava
de estudar os seus ismos. Depois da aula de dança, aonde o meu pai me
levava, tínhamos de nos entreter de qualquer maneira, arranjar qualquer
coisa para fazer, para não voltarmos para casa antes da hora de jantar.
Passou a ser um ritual tomarmos uma série de autocarros que iam para sul,
muito para sul do rio, para visitar o meu tio Lambert, irmão da minha mãe e
confidente do meu pai. Era o irmão mais velho da minha mãe e a única
pessoa desse lado da família que conheci. Tinha criado a minha mãe e os
outros irmãos e irmãs, na ilha onde viviam, quando a mãe veio para
Inglaterra trabalhar na limpeza de um lar de idosos. Sabia o que o meu pai
tinha de aturar.
«Dou um passo para me aproximar dela», ouvi o meu pai queixar-se um
dia, em pleno verão, «e ela dá um passo atrás!»
«Com aquela não há nada a fazer. Sempre foi assim.»
Eu andava no quintal, no meio dos tomateiros. Na verdade, era uma horta,
nada era decorativo nem para ser simplesmente admirado, tudo era para
comer e crescia em fiadas direitas e compridas, atado a varas de bambu. No
fim havia um barracão, aliás o último que vi em Inglaterra. O tio Lambert e
o meu pai sentavam-se em espreguiçadeiras junto à porta das traseiras, a
fumar marijuana. Eram amigos de longa data – Lambert era a única pessoa,
além dos noivos, na fotografia do casamento dos meus pais – e colegas de
trabalho: Lambert era carteiro e o meu pai diretor de uma central de
distribuição do Royal Mail. Tinham em comum o sentido de humor cortante
e a falta de ambição, que a minha mãe reprovava, em ambos os casos.
Enquanto fumavam e se queixavam das coisas que não se podiam fazer com
a minha mãe, eu passava os braços por entre os tomateiros, deixando que as
gavinhas se me enleassem em volta dos pulsos. Achava ameaçadoras quase
todas as plantas de Lambert, tinham o dobro da minha altura e tudo quanto
ele plantava crescia desordenadamente: um matagal de trepadeiras e erva
alta e abóboras-cabaças obscenamente intumescidas. No Sul de Londres a
terra é de melhor qualidade – no Norte de Londres é muito barrenta – mas
na altura eu não sabia isso e as minhas ideias baralhavam-se: pensava que
quando visitava Lambert estava a visitar a Jamaica, para mim o quintal de
Lambert era a Jamaica, cheirava à Jamaica, e comia-se gelo de coco, e
ainda hoje, na minha memória, está sempre calor no quintal de Lambert, e
tenho sede e medo dos insetos. O quintal era comprido e estreito e estava
virado a sul, o barracão estava encostado à vedação do lado direito e por
isso via-se descer o Sol por trás dele, encrespando o ar no seu caminho. Eu
tinha muita vontade de ir ao quarto de banho, mas decidia apertar-me até
voltarmos ao Norte de Londres – aquele barracão metia-me medo. O chão
era de tábuas e cresciam coisas pelo meio delas, ervas, cardos e dentes-de-
leão que me empoeiravam os joelhos quando me empoleirava no assento.
Havia teias de aranha estendidas de canto a canto. Era um quintal de
abundância e decadência: os tomates eram demasiado maduros, a marijuana
demasiado forte, debaixo de tudo escondiam-se bichos-de-conta. Lambert
vivia lá sozinho, e aquilo a mim parecia-me um lugar para morrer. Já
naquela idade achava estranho que o meu pai fizesse uma viagem de oito
milhas para ir a casa de Lambert em busca de conforto, quando Lambert
dava a impressão de já ter sofrido o tipo de abandono que o meu pai tanto
receava.
Cansada de percorrer as fiadas de plantas comestíveis, voltava para trás e
via os dois homens esconderem os cigarros, desajeitadamente, na mão
fechada.
«Estás chateada?», perguntava Lambert. Eu confessava que sim.
«Antigamente isto aqui estava cheio de catraiada», disse Lambert, «mas
agora os filhos já têm filhos.»
A imagem que eu tinha na cabeça era de crianças da minha idade com
bebés ao colo: era um destino que identificava com o Sul de Londres. Sabia
que a minha mãe tinha saído de casa para escapar a tudo aquilo, para que
nenhuma filha sua fosse jamais uma criança com uma criança, porque filha
sua tinha de fazer mais do que sobreviver – como a minha mãe tinha feito –,
tinha de vencer na vida, aprendendo coisas desnecessárias, tais como
sapateado. O meu pai estendia-me os braços e eu trepava-lhe para o colo,
cobrindo-lhe com a mão a calva cada vez maior e tateando os fios finos de
cabelo molhado que ele penteava a atravessá-la.
«Ela é acanhada, não é? Não te acanhas com o tio Lambert, pois não?»
Lambert tinha os olhos injetados e sardas como as minhas, mas em
relevo; a cara era redonda e afável, com uns olhos castanho-claros que
supostamente confirmavam a existência de sangue chinês na árvore
genealógica. Mas eu acanhava-me na presença dele. A minha mãe – que
nunca visitava Lambert a não ser no Natal – insistia estranhamente com o
meu pai para que o visitasse e me levasse, mas sempre com a condição de
nos mantermos atentos e não nos deixarmos «arrastar». Arrastar para quê?
Eu dava a volta ao corpo do meu pai até ficar atrás dele e ver o tufo de
cabelo que ele deixava crescer na nuca e estava decidido a manter. Apesar
de ainda estar na casa dos trinta, nunca o tinha visto com uma cabeleira
farta, nunca o havia conhecido loiro, e nunca iria vê-lo grisalho. Só
conhecia aquele castanho-escuro falso, que ficava agarrado aos dedos de
quem lhe tocasse, e que tinha visto na sua verdadeira origem, uma lata
redonda e baixa que estava pousada, aberta, na borda da banheira, com um
círculo oleoso de cor castanha à volta do rebordo, já com uma clareira no
meio, como a cabeça do meu pai.
«Ela precisa de companhia», resmungou ele. «Um livro não é suficiente,
pois não? Um filme não é suficiente. Uma pessoa precisa da coisa
concreta.»
«Com aquela não há nada a fazer. Percebi isso quando ela era pequena.
Tem uma vontade de ferro.»
Era verdade. Não havia nada a fazer com ela. Quando chegámos a casa,
ela estava a assistir a uma aula da Universidade Aberta, de bloco e lápis na
mão, linda, serena, enroscada no sofá com os pés debaixo do rabo, mas
quando se virou percebi que estava zangada, tínhamos voltado para casa
cedo de mais, queria ter mais tempo, mais paz, mais sossego, para poder
estudar. Nós éramos os vândalos que invadiam o templo. Estudava
Sociologia e Política. Não sabíamos porquê.
1 Socialist Workers Party (Partido dos Trabalhadores Socialistas). (N. do T.)
4

Se o Fred Astaire representava a aristocracia, eu representava o


proletariado, dizia Gene Kelly, e por esta lógica Bill «Bojangles» Robinson
devia de facto ter sido o meu dançarino, porque Bojangles dançava para o
janota de Harlem, para o miúdo dos guetos, para o rendeiro – para todos os
descendentes de escravos. Mas para mim um dançarino era um homem de
nenhures, sem pais nem irmãos, sem pátria nem povo, sem obrigações de
nenhuma espécie, e esta era exatamente a qualidade que eu adorava. O
resto, o pormenor, era secundário. Ignorava os guiões ridículos daqueles
filmes: as entradas e saídas operáticas, as reviravoltas da sorte, os
insuportáveis encontros românticos e as coincidências, os menestréis,
criadas e mordomos. Para mim não passavam de caminhos que conduziam
à dança. A história era o preço a pagar pelo ritmo. «Pardon me, boy, is that
the Chattanooga choo choo?»2 A cada sílaba correspondia um movimento
das pernas, da barriga, das costas, dos pés. Na aula de balé, pelo contrário,
dançávamos ao som de gravações clássicas – «música branca» como Tracey
lhe chamava sem rodeios – que Miss Isabel gravava da rádio para uma série
de cassetes. Mas a mim custava-me considerar aquilo música, não tinha
nenhum compasso que eu identificasse, e apesar de Miss Isabel tentar
ajudar-nos, berrando as cadências de cada batida, não conseguia de maneira
nenhuma relacionar estes números com o mar de melodia que brotava dos
violinos ou com o caudal avassalador de um naipe de metais. Ainda assim,
sabia mais do que Tracey: sabia que havia qualquer coisa de errado nas suas
ideias inflexíveis – música negra, música branca – que tinha de existir
algures um mundo onde as duas se conjugavam. Em filmes e fotografias
tinha visto homens brancos sentados ao piano com raparigas negras de pé
ao seu lado, a cantar. Oh, como eu queria ser como aquelas raparigas!
Às onze e um quarto, depois da aula de balé, a meio do nosso primeiro
intervalo, entrava o Senhor Booth na sala com uma grande mala preta,
daquelas que os médicos usavam antigamente, e nessa mala trazia as pautas
para a aula. Se eu estava livre – ou seja, se conseguia ver-me livre de
Tracey – corria ao encontro dele, seguindo-o enquanto se aproximava
lentamente do piano, e então punha-me na posição em que vira as raparigas
nos filmes, pedia-lhe que tocasse «All of Me» ou «Autumn in New York»
ou «42nd Street». Na aula de sapateado ele tinha de tocar vezes sem conta a
mesma meia dúzia de canções e eu tinha de dançar ao som delas, mas antes
da aula – enquanto o resto das pessoas que estavam na sala conversava,
comia e bebida – tínhamos este tempo só para nós e eu convencia-o a
ensaiar comigo uma canção, que eu cantava mais baixo do que o piano se
me sentia acanhada, mais alto se não sentia. Às vezes, quando cantava, os
pais que estavam lá fora a fumar debaixo das cerejeiras entravam para me
ouvir, e as raparigas que estavam ocupadas com os preparativos para as suas
danças – puxando colãs para cima, apertando atacadores – interrompiam
estas ações e viravam-se para me ver cantar. Comecei a tomar consciência
de que a minha voz – desde que não cantasse deliberadamente abaixo do
volume do piano – tinha um certo carisma, que atraía as pessoas. Não era
um dom técnico: a minha extensão vocal era diminuta. Era do foro da
emoção. Tudo aquilo que sentia conseguia exprimi-lo com muita clareza,
«transmiti-lo». Tornava as canções tristes muito tristes, as alegres jubilosas.
Quando chegou a altura dos nossos «exames de aptidão» aprendi a usar a
voz como uma forma de distração, da mesma forma que os ilusionistas nos
obrigam a olhar-lhes para a boca quando devíamos estar com atenção às
mãos. Mas não conseguia enganar Tracey. Via-a descer do palco e ficar de
pé nos bastidores, braços cruzados sobre o peito e nariz no ar. Apesar de
levar sempre a melhor sobre toda a gente e o quadro de cortiça da cozinha
da mãe transbordar de medalhas de ouro, nunca ficava satisfeita, queria
ouro também na «minha» categoria – canto e dança – apesar de mal
conseguir cantar uma nota. Custava-me a compreender. Pela minha parte,
sentia que, se soubesse dançar como Tracey, não queria mais nada neste
mundo. Havia outras raparigas que tinham ritmo nos membros, algumas
tinham-no nas ancas ou nos traseiros pequenos, mas ela tinha ritmo em
todos os ligamentos, provavelmente em todas as células. Cada movimento
era tão rigoroso e preciso quanto seria de esperar de uma criança, o seu
corpo era capaz de se sintonizar com qualquer andamento, por muito
intricado que fosse. Talvez se pudesse dizer que por vezes era
excessivamente precisa, não especialmente criativa, ou vazia de sentimento.
Mas ninguém no seu perfeito juízo podia pôr em causa a sua técnica. Eu era
– sou – uma admiradora incondicional da técnica de Tracey. Sabia qual era
o tempo certo para fazer cada coisa.
2 «Desculpa, rapaz, é aquele o comboio para Chattanooga?» (N. do T.)
5

Um domingo de fim de verão. Eu estava na varanda, a ver um grupo de


raparigas do nosso andar que saltavam à corda lá em baixo, ao pé dos
contentores do lixo. Ouvi a minha mãe chamar-me. Olhei e vi-a entrar no
complexo, de mão dada com Miss Isabel. Acenei-lhe e ela olhou para cima,
sorriu e exclamou: «Não saias daí!» Nunca tinha visto a minha mãe e Miss
Isabel juntas fora da aula, e apesar da distância percebi que ela vinha a
impingir alguma coisa a Miss Isabel. Tentei conferenciar com o meu pai,
que estava a pintar uma parede da sala, mas sabia que a minha mãe, tão
amável com estranhos, tinha mau feitio para a família, e aquele «Não saias
daí!» significava exatamente isso. Fiquei a ver aquele par insólito atravessar
o complexo e entrar na caixa da escada, refratado pelos tijolos de vidro
como um polvilhado de amarelo e rosa e castanho-mogno. Entretanto as
raparigas ao pé dos contentores mudavam de posição nas cordas de saltar,
uma nova saltadora corria afoitamente para dentro do impiedoso lacete
balouçante e encetava uma nova cantilena, aquela do macaco que se
engasgou.
Por fim a minha mãe chegou ao pé de mim, mirou-me de alto a baixo –
tinha uma expressão contrita no rosto – e a primeira coisa que me disse foi:
«Descalça os sapatos.»
«Bem, não é preciso fazer isto já», murmurou Miss Isabel, mas a minha
mãe disse «É melhor saber agora do que mais tarde» e desapareceu no
interior do apartamento, reaparecendo um minuto depois com um grande
saco de farinha para bolos, com que se pôs a polvilhar a varanda toda até
ficar um tapete fino como o de um primeiro nevão. Mandou-me caminhar
descalça em cima dele. Pensei em Tracey. Não sabia se Miss Isabel ia a casa
de todas as miúdas. Que grande desperdício de farinha! Miss Isabel pôs-se
de cócoras para observar. A minha mãe encostou-se à varanda com os
cotovelos apoiados no parapeito, fumando um cigarro. Estava de lado em
relação à varanda, e tinha o cigarro de lado na boca, e trazia uma boina,
como se usar boina fosse a coisa mais natural do mundo. Estava de lado
para mim, numa diagonal irónica. Eu cheguei à outra ponta da varanda e
virei-me a olhar para as minhas pegadas.
«Pois é, cá está», disse Miss Isabel. Mas lá estava o quê? A terra dos pés
chatos. A minha professora descalçou um sapato e pisou a farinha para
comparação: na pegada dela só se viam os dedos, o antepé e o calcanhar, na
minha o contorno completo e plano de uma pisada humana. Este resultado
interessava muito à minha mãe, mas Miss Isabel, ao ver a minha cara, disse
uma coisa simpática: «É verdade que uma dançarina de balé precisa de ter
um arco, mas podes fazer sapateado com os pés chatos, é claro que podes.»
Eu não acreditava, mas a ideia agradava-me e agarrei-me a ela para
continuar a frequentar a aula, e assim continuar a conviver com Tracey, o
que era, concluí mais tarde, exatamente aquilo a que a minha mãe tentara
pôr cobro. Pensava que, dado que Tracey e eu frequentávamos escolas
diferentes, em bairros diferentes, só nos encontrávamos na aula de dança,
mas quando começou o verão e acabaram as aulas de dança não fez
diferença nenhuma, ainda nos tornámos mais íntimas, e em agosto
encontrámo-nos quase todos os dias. Da minha varanda via-se o complexo
onde ela vivia, e vice-versa, não precisávamos de nos telefonar, nem de
combinar nada, e embora as nossas mães quase não trocassem um aceno de
cabeça na rua as entradas e saídas do edifício uma da outra passaram a ser
para nós uma coisa natural.
6

Tínhamos modos diferentes de estar numa casa e na outra. Na de Tracey


brincávamos e experimentávamos brinquedos novos, que ela tinha em
quantidades aparentemente inesgotáveis. O catálogo Argos, de cujas
páginas eu estava autorizada a escolher três artigos baratos pelo Natal, e um
pelos meus anos, era para Tracey uma bíblia de consulta diária, lia-a
religiosamente, traçando um círculo a vermelho em volta das suas escolhas,
muitas vezes na minha presença, com uma esferográfica pequena que tinha
para o efeito. O quarto dela era uma revelação. Deitava por terra a minha
ilusão de que estávamos as duas na mesma situação. A cama tinha a forma
de um carro desportivo cor-de-rosa da Barbie, as cortinas eram frisadas, os
armários eram todos brancos e brilhantes, e no centro do quarto parecia que
alguém tinha pura e simplesmente despejado o trenó do Pai Natal na
alcatifa. Tínhamos de abrir caminho pelo meio dos brinquedos. Os
estragados formavam uma espécie de alicerce, sobre o qual era
descarregada cada nova carrada de compras, em camadas arqueológicas,
correspondendo aproximadamente aos anúncios a brinquedos que na altura
estavam a passar na televisão. Aquele verão era o verão da boneca mijona.
Dava-se-lhe água e ela mijava-se toda. Tracey tinha várias versões desta
maravilha da tecnologia, das quais conseguia extrair toda a espécie de
efeitos dramáticos. Umas vezes batia-lhe por ter mijado, outras vezes
sentava-a a um canto, envergonhada e nua, com as pernas de plástico
fletidas em ângulo reto com o rabinho gorducho. Nós as duas fazíamos de
pai e mãe da pobre criança incontinente, e nas falas que Tracey me atribuía
eu ouvia às vezes ecos estranhos e inquietantes da sua vida familiar, ou
talvez das muitas telenovelas que via.
«É a tua vez. Diz: “Sua galdéria – ela nem sequer é minha filha! Que
culpa tenho eu se ela se mija?” Vai lá tu, é a tua vez.»
«Sua galdéria – ela nem sequer é minha filha! Que culpa tenho eu se ela
se mija?»
«“Ouve lá, meu, pega nela ao colo! Pega nela e deixa-te de lérias!” Agora
tu dizes: “Tá-se mesmo a ver, princesa.”»
Um domingo, muito a medo, falei à minha mãe na existência das bonecas
mijonas, tendo o cuidado de dizer que «faziam chichi» em vez de
«mijavam». Ela estava a estudar. Levantou os olhos do livro com um misto
de incredulidade e nojo.
«A Tracey tem uma dessas?»
«A Tracey tem quatro.»
«Vem cá.»
Abriu os braços e eu senti a minha cara encostada à pele do peito dela,
lisa e tépida, absolutamente viva, como se houvesse dentro da minha mãe
uma segunda mulher, jovem e requintada, ansiosa por saltar cá para fora.
Andava a deixar crescer o cabelo, que tinha sido recentemente «arranjado»,
apanhado atrás numa imponente trança enrolada em concha, como uma
escultura.
«Sabes o que estou a ler neste preciso momento?»
«Não.»
«Um texto sobre o sankofa. Sabes o que é?»
«Não.»
«É um pássaro que vira a cabeça toda para trás, assim.» Rodou a bela
cabeça o máximo que podia. «É africano. Olha para trás, para o passado, e
aprende com o que se passou antes. Há pessoas que nunca aprendem.»
O meu pai estava na minúscula cozinha do corredor, cozinhando em
silêncio – era o cozinheiro lá de casa – e esta conversa era-lhe na verdade
dirigida, era ele que devia ouvi-la. Tinham começado a discutir tanto que
normalmente eu era o único canal por onde passava a comunicação, umas
vezes agressiva – «Explica à tua mãe», ou «Podes dizer ao teu pai da minha
parte», outras vezes com uma ironia delicada, quase bela.
«Ah», disse eu. Não via a relação com as bonecas mijonas. Sabia que a
minha mãe estava em vias de se tornar, ou de tentar tornar-se, «uma
intelectual», porque era frequente o meu pai atirar-lhe este termo à cara,
como forma de insulto, durante as discussões entre os dois. Mas não sabia
bem o que isso queria dizer, só sabia que um intelectual era alguém que
estudava na Universidade Aberta, gostava de andar de boina, usava muitas
vezes a frase «O Anjo da História», suspirava quando o resto da família
queria ver televisão ao domingo à noite e na Kilburn High Road parava para
discutir com os trotskistas quando toda a gente atravessava a rua para os
evitar. Mas a principal consequência da sua transformação, para mim, era
este novo e desconcertante recurso a indiretas nas conversas. Parecia que
estava sempre a dizer piadas para adultos na minha presença, para se
divertir ou para irritar o meu pai.
«Quando estás com aquela rapariga», explicou a minha mãe, «é simpático
que brinques com ela, mas ela foi criada de uma certa maneira, e para ela só
existe o presente. Tu foste criada de outra maneira – não te esqueças disso.
Para ela, aquela estúpida aula de dança é o mundo inteiro. A culpa não é
dela – foi educada assim. Mas tu és inteligente. Não importa que tenhas os
pés chatos, não importa, porque és inteligente e sabes de onde vens e para
onde vais.»
Eu fiz que sim com a cabeça. Ouvia o meu pai chocalhar os tachos com
exuberância.
«Não te esqueces do que eu te disse, pois não?»
Prometi que não me esqueceria.
Em minha casa não havia bonecas absolutamente nenhumas e por isso,
quando cá vinha, Tracey tinha de se adaptar a hábitos diferentes. Aqui
escrevíamos, um tanto freneticamente, numa série de blocos A4 pautados,
amarelos, que o meu pai trazia do emprego. Era um projeto em colaboração.
Tracey, que tinha dislexia – embora na altura não soubéssemos que nome
dar àquilo – preferia ditar, enquanto eu fazia os possíveis por acompanhar
os seus ziguezagues mentais, naturalmente melodramáticos. Quase todas as
nossas histórias giravam em volta de uma elegante e cruel prima ballerina
de «Oxford Street» que à última hora partia uma perna, o que dava à nossa
destemida heroína – muitas vezes uma modesta costureira ou uma humilde
mulher da limpeza dos sanitários do teatro – a oportunidade de entrar em
cena e resolver o problema. Reparei que estas corajosas raparigas eram
sempre loiras, de cabelos «como seda» e olhos azuis. Uma vez tentei
escrever «olhos castanhos» e Tracey tirou-me a esferográfica da mão e
riscou. Escrevíamos deitadas de barriga no chão do meu quarto, e se por
acaso a minha mãe passava e nos via assim era o único momento em que
olhava para Tracey com uma expressão vagamente parecida com afeto. Eu
aproveitava esses momentos para tentar obter mais concessões para a minha
amiga – A Tracey pode ficar para o lanche? A Tracey pode dormir cá? – se
bem que, se a minha mãe parasse mesmo e lesse aquilo que escrevíamos
nos blocos amarelos, Tracey nunca mais teria autorização para entrar em
nossa casa. Em várias histórias havia homens «acoitados nas sombras» com
barras de ferro para partir os joelhos de dançarinas inocentes; numa delas, a
prima tinha um segredo terrível: era «de casta mista», expressão que me fez
tremer quando a escrevi, pois sabia por experiência própria que ela punha a
minha mãe completamente em fúria. Mas se sentia algum desconforto com
estes pormenores, era uma sensação pouco importante em comparação com
o prazer da nossa colaboração. Ficava completamente fascinada com as
histórias de Tracey, enfeitiçada com o prolongado efeito de prazer narrativo
que proporcionavam, o que talvez fosse, mais uma vez, fruto das
telenovelas que via ou das duras lições que a vida lhe ensinava. Porque,
quando se poderia pensar que tinha chegado
o final feliz, Tracey descobria outra forma nova e maravilhosa de o destruir
ou desviar do caminho, pelo que o momento da consumação – que para
ambas, penso, significava simplesmente uma plateia, de pé, a aplaudir –
parecia nunca mais chegar. Tenho pena de não ter guardado aqueles blocos.
Dos milhares de palavras que escrevemos sobre bailarinas em várias formas
de perigo físico, só retive na memória uma frase: Tiffany saltou para beijar
o seu príncipe e ficou em pontas, oh, tinha um ar tão sensual, mas foi então
que a bala lhe perfurou a coxa.
7

No outono, Tracey foi para a escola feminina de Neasden, onde quase


todas as raparigas eram indianas ou paquistanesas: eu costumava ver as
mais velhas na paragem do autocarro, de uniforme alterado – blusa
desapertada e saia arregaçada – berrando obscenidades aos rapazes que
passavam. Uma escola complicada, com muita violência. A minha, em
Willesden, era mais pacífica, mais misturada: metade eram negras, um
quarto brancas, um quarto sul-asiáticas. Da metade negra, pelo menos um
terço eram «de casta mista», uma nação minoritária dentro de uma nação,
mas a verdade é que me irritava reparar nelas. Queria acreditar que Tracey e
eu éramos irmãs e almas gémeas, sozinhas no mundo e a necessitar
especialmente uma da outra, mas agora não podia deixar de ver diante de
mim todos os muitos tipos de raparigas com quem a minha mãe tinha
passado o verão a tentar incentivar-me a que me relacionasse, raparigas com
passados semelhantes, mas com aquilo a que a minha mãe chamava
«horizontes mais largos». Havia uma chamada Tasha, metade guianesa,
metade tâmil, filha de um tigre tâmil a sério, coisa que impressionava
fortemente a minha mãe e por isso mesmo cimentava em mim o desejo de
nunca ter absolutamente nada que ver com ela. Havia uma com uma grande
dentuça, chamada Irie, sempre a melhor da turma, filha de pais como os
meus, mas ao contrário, mas tinha-se mudado do bairro social e agora vivia
em Willesden Green numa casinha catita. Havia uma chamada Anoushka,
filha de pai de Santa Lucia e mãe russa, e sobrinha do «mais importante
poeta revolucionário das Caraíbas», segundo a minha mãe, mas
praticamente todas as palavras desse título de recomendação escapavam ao
meu entendimento. No recreio eu espetava pioneses nas solas dos sapatos e
chegava a passar a meia hora de intervalo inteira a dançar, sem amigas, mas
conformada com isso. E quando chegávamos a casa – antes da minha mãe,
portanto fora da jurisdição dela – eu largava a mochila, deixava o meu pai a
fazer o jantar e disparava para casa de Tracey, para fazermos o sapateado
juntas na varanda, seguido de uma tigela de uma taça para cada uma de
Angel Delight, que para a minha mãe «não era comida», mas para mim
continuava a ser uma delícia. Quando chegava a casa estava em pleno curso
uma discussão, as duas partes já não chegavam a acordo. A preocupação do
meu pai era uma questão qualquer do foro doméstico: quem tinha aspirado
o quê e quando, quem tinha ido, quem devia ter ido, à lavandaria
automática. Enquanto a minha mãe, em resposta, divagava para assuntos
completamente diferentes: a importância de se ter consciência
revolucionária, ou a insignificância relativa do amor sexual em comparação
com as lutas do povo, ou a herança da escravatura nos corações e nas
mentes dos jovens, e por aí adiante. Tinha entretanto feito o exame de
aptidão, estava matriculada no Middlesex Poly, em Hendon, e nós, mais do
que nunca, éramos incapazes de a acompanhar, éramos uma desilusão, tinha
de estar sempre a explicar os termos que usava.
Em casa de Tracey, as únicas vozes mais altas vinham da televisão. Eu
sabia que se esperava de mim que tivesse pena de Tracey por não ter pai –
fatalidade que batia a porta sim, porta não das casas do nosso corredor – e
me sentisse grata por ter dois progenitores casados, mas quando me sentava
no seu grande sofá branco de pele a comer o seu Angel Delight e a ver
Desfile de Páscoa ou Os Sapatos Vermelhos – a mãe de Tracey só suportava
musicais em tecnicolor – era impossível não reparar na placidez de uma
pequena família só de mulheres. Em casa de Tracey, o desencanto com o
homem pertencia ao passado: na verdade nunca haviam depositado
nenhuma esperança nele, já que quase nunca estava em casa. Ninguém
ficava surpreendido com a incapacidade do pai de Tracey para fomentar a
revolução ou fazer qualquer outra coisa. Mesmo assim, Tracey era firme na
sua lealdade à memória do pai ausente, muito mais suscetível de o defender
do que eu de falar com simpatia do meu, inexcedivelmente carinhoso.
Sempre que a mãe falava mal dele, Tracey tratava de me levar para o
quarto, ou para outro sítio privado, e rapidamente integrar o que a mãe tinha
dito na sua própria história oficial, segundo a qual o pai não a tinha
abandonado, não, nada disso, só que andava muito ocupado porque fazia
parte do corpo de dançarinos de apoio de Michael Jackson. Poucas pessoas
conseguiam acompanhar Michael Jackson a dançar – aliás, quase ninguém
conseguia, talvez só houvesse vinte no mundo inteiro que estavam à altura.
O pai de Tracey era uma dessas pessoas. Nem tinha precisado de chegar ao
fim da sua audição – era tão bom que eles tinham percebido logo. Era por
isso que quase nunca estava em casa: andava numa interminável digressão
mundial. A próxima vez que estaria na cidade era provavelmente no Natal,
quando Michael ia atuar em Wembley. Num dia limpo víamos este estádio
da varanda de Tracey. Agora é-me difícil dizer que grau de credibilidade
atribuía a esta história – havia certamente uma parte de mim que sabia que
Michael Jackson, finalmente livre da família, dançava agora sozinho – mas,
tal como Tracey, nunca aventei o assunto na presença da mãe dela. Como
facto, aquilo era, na minha ideia, ao mesmíssimo tempo absolutamente
verdadeiro e absolutamente falso, e talvez só as crianças sejam capazes de
absorver factos de dupla face como estes.
8

Estava em casa de Tracey, a ver o Top of the Pops, quando passou o vídeo
Thriller, era a primeira vez que qualquer de nós o via. A mãe de Tracey
ficou muito excitada: sem se pôr propriamente de pé, dançou
freneticamente, saltando para cima e para baixo nas dobras do cadeirão
reclinável. «Vamos lá, meninas, quero vê-las a dançar! Toca a mexer –
vamos!» Nós levantámo-nos do sofá e começámos a deslizar de um lado
para o outro da carpete, eu desajeitadamente, Tracey com uma boa dose de
perícia. Rodopiávamos, levantávamos a perna direita, deixando o pé a
balançar como se fosse de uma marioneta, sacudíamos o corpo como
zombies. Havia tanta informação nova: as calças vermelhas de cabedal, o
casaco vermelho de cabedal, o que em tempos fora um cabelo afro estava
agora transformado em algo ainda mais espetacular do que os caracóis de
Tracey! E, claro, aquela bonita rapariga negra vestida de azul, a potencial
vítima. Também seria «de casta mista»?
Devido às minhas fortes convicções pessoais, quero salientar que este
filme não apoia de maneira nenhuma a crença no oculto.
Assim se lia no ecrã, no princípio, eram palavras do próprio Michael, mas
que queriam dizer? Só percebíamos a gravidade desta palavra «filme». O
que estávamos a ver não era um vídeo musical, nada disso, era uma obra de
arte que merecia ser vista num cinema, era de facto um acontecimento
mundial, um toque a rebate. Éramos modernas! Aquilo era a vida moderna!
Geralmente eu sentia-me distante da vida moderna e da música que a
acompanhava – a minha mãe tinha feito de mim um pássaro sankofa – mas
acontecia que o meu pai me tinha contado uma história segundo a qual, um
dia, Fred Astaire tinha ido a casa de Michael Jackson como uma espécie de
discípulo e implorado a Michael que o ensinasse o moonwalk, e isto para
mim faz sentido, ainda hoje, porque um grande bailarino é intemporal, não
pertence a uma geração, move-se eternamente pelo mundo, pelo que
qualquer dançarino de qualquer época pode reconhecê-lo. Picasso seria
incompreensível para Rembrandt, mas Nijinski compreenderia Michael
Jackson. «Não parem agora, meninas – levantem-se», berrou a mãe de
Tracey quando fizemos uma pausa momentânea para descansar, encostadas
ao sofá dela. «Só param quando tiverem aprendido! Mexam-se!» A canção
parecia muito comprida. Mais comprida que a vida. Parecia-me que nunca
mais ia acabar, que estávamos aprisionadas num laço temporal, e que íamos
ter de dançar para sempre naquele registo demoníaco, como a pobre Moira
Shearer em Os Sapatos Vermelhos: «O tempo passa a correr, o amor passa a
correr, a vida passa a correr, mas os sapatos vermelhos continuam a
dançar.» Mas acabou mesmo. «Foi um espetáculo do caraças», suspirou a
mãe de Tracey, perdendo a compostura, e nós fizemos uma vénia e
corremos para o quarto de Tracey.
«Adora vê-lo na televisão», confessou Tracey quando estávamos
sozinhas. «Reforça o amor que há entre eles. Vê-o e sabe que ele ainda a
ama.»
«Qual deles era?», perguntei.
«Segunda fila, o da ponta direita», respondeu Tracey, sem se
desmanchar.

Não tentei – era impossível – articular estes «factos» sobre o pai de


Tracey com as poucas vezes em que o vi realmente, a primeira das quais foi
a mais terrível, foi no princípio de novembro, pouco depois de termos visto
Thriller. Estávamos as três na cozinha, a tentar fazer batatas recheadas com
queijo e toucinho fumado, íamos embrulhá-las em papel de alumínio e levá-
las para o Roundwood Park, onde assistiríamos ao fogo de artifício. As
cozinhas dos apartamentos do complexo onde Tracey vivia ainda eram mais
pequenas do que as do nosso; quando se abria, a porta do forno quase
roçava na parede em frente. Para caberem três pessoas ao mesmo tempo,
uma delas – neste caso Tracey – tinha de se sentar no balcão. Cabia-lhe a
tarefa de raspar a batata da casca, após o que eu, de pé ao seu lado,
misturava a batata com queijo ralado e tirinhas de toucinho fumado cortadas
com uma tesoura, e depois a mãe de Tracey voltava a pôr tudo dentro da
casca e a metê-la no forno para aloirar. Apesar de a minha mãe estar sempre
a insinuar que a mãe de Tracey era desleixada, que atraía o caos, achei a
cozinha dela muito mais limpa e arrumada que a nossa. A comida nunca era
saudável, mas nem por isso deixava de ser preparada com seriedade e
cuidado, ao passo que a minha mãe, que tinha a aspiração da comida
saudável, não era capaz de passar quinze minutos numa cozinha sem ficar
reduzida a uma espécie de autocomiseração maníaca, e muitas vezes toda a
equívoca experiência (fazer lasanha vegetariana, fazer «qualquer coisa»
com quiabo) resultava tão tortuosa para toda a gente que ela armava uma
discussão e saía porta fora aos berros. Acabávamos a comer outra vez
Findus Crispy Pancakes. Em casa de Tracey as coisas eram mais simples:
começava-se com a firme intenção de fazer Findus Crispy Pancakes ou piza
(do congelador) ou salsichas e batatas fritas e era tudo delicioso e ninguém
desatava aos berros. Estas batatas eram uma iguaria especial, uma tradição
da Noite dos Fogos de Artifício. Lá fora estava escuro, apesar de só serem
cinco da tarde, e em todo o complexo sentia-se o cheiro a pólvora. Cada
apartamento tinha o seu arsenal particular, e os rebentamentos esparsos e as
pequenas conflagrações localizadas haviam começado duas semanas antes,
quando as confeitarias começaram a vender foguetes. Ninguém esperava
por acontecimentos especiais. Os gatos eram as vítimas mais frequentes
desta piromania generalizada, mas de vez em quando havia um miúdo que
ia parar às urgências. No meio de tantos estrondos – e apesar de estarmos
habituadas a eles – a princípio ninguém se apercebeu de que estavam a
bater à porta da casa de Tracey, mas depois ouvimos alguém ora a berrar ora
a sussurrar, e reconhecemos o pânico e a cautela em confronto. Era uma voz
de homem, que dizia: «Deixa-me entrar. Deixa-me entrar! Ouve, mulher,
abre a porta!»
Tracey e eu olhámos para a mãe dela, que ficou parada a olhar para nós,
com um tabuleiro de cremosas batatas perfeitamente recheadas na mão.
Sem reparar no que estava a fazer, tentou pousá-lo em cima do balcão,
calculou mal, deixou-o cair.
«Louie?», disse.
Agarrou-nos, desceu Tracey do balcão, pisámos batatas. Arrastou-nos
pelo corredor e empurrou-nos para dentro do quarto de Tracey.
Recomendou-nos que não mexêssemos um músculo. Fechou a porta e
deixou-nos sozinhas. Tracey foi direita para a cama, meteu-se nela e pôs-se
a jogar Pac-Man. Não queria olhar para mim. Era evidente que não podia
perguntar-lhe nada, nem sequer se Louie era o nome do pai. Fiquei quieta
onde a mãe dela me tinha deixado e esperei. Nunca tinha assistido a
tamanha agitação em casa de Tracey. Quem quer que Louie fosse, já lhe
tinham aberto a porta – ou tinha forçado a entrada – e uma em cada duas
palavras era foda-se, e ouviram-se grandes estrondos e colisões enquanto
ele derrubava a mobília, e um lancinante choro feminino, parecia uma
raposa a uivar. Eu estava de pé junto à porta e olhava para Tracey, que
continuava encolhida na cama da Barbie, mas não me parecia que estivesse
a ouvir-me ou sequer se lembrasse de que eu estava ali: não tirava os olhos
do Pac-Man. Dez minutos depois tudo tinha acabado: ouvimos bater a porta
da rua. Tracey deixou-se ficar na cama e eu no sítio onde me tinham posto,
incapaz de fazer o mais pequeno movimento. Ao fim de algum tempo
ouvimos bater ao de leve na porta do quarto e a mãe de Tracey entrou,
ruborizada pelo choro, com um tabuleiro de Angel Delight, da cor da sua
cara. Sentámo-nos a comer em silêncio e, mais tarde, fomos ver o fogo de
artifício.
9

Uma espécie de negligência caracterizava as mães que conhecíamos, ou


era isso que parecia aos estranhos, mas nós conhecíamo-la por outro nome.
Aos professores da escola é provável que desse a impressão de que nem
sequer se davam ao trabalho de aparecer na reunião de pais, onde, em mesa
atrás de mesa, os professores se sentavam, a olhar para o vazio, esperando
pacientemente por estas mães que nunca vinham. E eu percebo que as
nossas mães parecessem um pouco negligentes quando, informadas por um
professor de algum ato de indisciplina no recreio, desatavam a berrar com o
professor, em vez de repreenderem a filha ou o filho. Mas compreendíamos
um pouco melhor as nossas mães. Sabíamos que, quando tinham a nossa
idade, haviam temido a escola, como nós a temíamos agora, temiam as
regras arbitrárias, sentiam-se envergonhadas por causa delas, por causa dos
uniformes novos que não podiam comprar, da incompreensível obsessão
com o silêncio, da constante correção do seu patoá ou cockney de origem,
da sensação de que, de qualquer maneira, nunca seriam capazes de fazer
nada direito. Uma angústia profunda perante a possibilidade de serem
repreendidas – por serem quem eram, por aquilo que haviam ou não haviam
feito, e agora pelos atos dos seus filhos –, este temor nunca deixou
verdadeiramente em paz as nossas mães, muitas das quais se tinham
tornado nossas mães quando elas próprias eram pouco mais do que
crianças. Por isso «reunião de pais» não andava, na ideia delas, muito longe
de «castigo». Continuava a ser um lugar onde corriam o risco de ser
humilhadas. A diferença era que agora eram crescidas e ninguém podia
obrigá-las a comparecer.
Digo «as nossas mães», mas é claro que a minha era diferente: tinha a
revolta, mas não a vergonha. Ia sempre à reunião de pais. Naquele ano, não
se sabe porquê, calhou no Dia de São Valentim: a sala estava toscamente
decorada com corações de papel cor-de-rosa agrafados às paredes, e cada
mesa exibia uma rosa murcha de papel absorvente amarrotado na ponta de
um limpador de cachimbo verde. Eu ia atrás, agarrada às saias dela,
enquanto ela andava pela sala, invetivando os professores, ignorando todas
as tentativas de discutir o meu aproveitamento, dando em vez disso uma
série de lições improvisadas sobre a incompetência da administração da
escola, a cegueira e estupidez da autarquia local, a urgente necessidade de
«professores de cor» – a primeira vez, que me lembre, que ouvi o novo
eufemismo «de cor». Aqueles pobres professores agarravam-se
desesperadamente aos rebordos das mesas. A certa altura, para reforçar uma
afirmação, deu um murro numa mesa, espalhando pelo chão uma rosa de
papel e muitos lápis: «Estas crianças merecem mais!» Não eu em particular
– «estas crianças». Que bem me lembro de ela ter feito aquilo, e que bonita
que ela estava, parecia uma rainha! Senti orgulho em ser sua filha, a filha da
única mulher do bairro que não tinha vergonha. De rompante saímos as
duas da sala, a minha mãe triunfante, eu em êxtase, nenhuma de nós mais
esclarecida quanto ao meu aproveitamento escolar.
Lembro-me, porém, de uma ocasião de vergonha, dias antes do Natal,
num fim de tarde de sábado, depois da aula de dança, depois da visita ao tio
Lambert, estava eu a ver um número de Fred e Ginger, «Pick Yourself Up»,
na minha casa, com Tracey, vezes sem conta. Tracey tinha a ambição de,
um dia, recriar aquele número completo – o que hoje me parece mais ou
menos o mesmo que alguém olhar para a Capela Sistina e ter a esperança de
a recriar no teto do quarto – apesar de até então só ter treinado a parte
masculina, nunca passou pela cabeça de nenhuma de nós aprender a parte
de Ginger em coisa nenhuma. Tracey estava de pé na soleira da porta que
dava para a sala de estar, a sapatear – na minha casa não havia tapetes – e
eu estava de joelhos ao pé do VHS, rebobinando e fazendo pausa conforme
necessário. A minha mãe estava na cozinha sentada num banco alto, a
estudar. O meu pai – coisa rara – tinha «saído», sem explicações,
simplesmente «saído», por volta das quatro da tarde, sem propósito
declarado nem missão que fosse do meu conhecimento. A dada altura
arrisquei entrar na cozinha para ir buscar dois copos de Ribena. Em vez de
ir encontrar a minha mãe debruçada sobre os livros, de tampões enfiados
nas orelhas, dei com ela a olhar fixamente para a janela, com a cara coberta
de lágrimas. Quando me viu teve um ligeiro sobressalto, como se eu fosse
um fantasma.
«Estão a chegar», disse, quase para dentro. Olhei para onde ela estava a
olhar e vi o meu pai atravessar o complexo com dois jovens brancos atrás,
um rapaz dos seus vinte anos e uma rapariga que devia ter quinze ou
dezasseis.
«Quem é que está a chegar?»
«Umas pessoas que o teu pai quer que tu conheças.»
E a vergonha que sentia, suponho eu, era a vergonha da impotência: não
podia dominar esta situação nem proteger-me dela porque, por uma vez,
não tinha grande coisa que ver com ela. O que fez foi ir a correr para a sala
de estar e mandar Tracey embora, mas Tracey demorou propositadamente a
recolher as suas coisas: queria vê-los bem. Eram dignos de se ver. Ao perto,
o rapaz tinha cabelo loiro desgrenhado e barba, vestia roupas sujas, feias e
antiquadas, os jeans eram remendados e tinha montes de emblemas de
bandas de rock presas por alfinetes à mochila de lona esfiapada: parecia
propalar desassombradamente a sua pobreza. A rapariga era igualmente
exótica, mas mais limpa, verdadeiramente «branca como a neve», como
num conto de fadas, com uma severa cabeleira preta cortada a direito na
testa e em diagonal por cima das orelhas. Vestia toda de preto, calçava um
par de grandes Dr. Martens pretas e era franzina, de feições delicadas –
tirando um busto grande e indecente que parecia tentar disfarçar com todo
aquele preto. Tracey e eu olhámos fixamente para eles. «Está na hora de ires
para casa», disse o meu pai para Tracey, e eu, ao vê-la afastar-se, percebi até
que ponto era minha aliada, apesar de tudo, porque sem ela, naquele
momento, sentia-me completamente indefesa. Os adolescentes brancos
entraram para a nossa sala de estar. O meu pai disse-lhes que se sentassem,
mas só a rapariga se sentou. Assustou-me ver a minha mãe, que me
habituara a ver como uma pessoa absolutamente não-neurótica, numa
grande agitação, a tropeçar nas palavras. O rapaz – chamava-se John – não
queria sentar-se. Quando a minha mãe insistiu com ele para que se sentasse,
ele não olhou para ela nem lhe respondeu, e nessa altura o meu pai disse
qualquer coisa surpreendentemente ríspida e ficámos todos a ver John sair
de casa a toque de caixa. Eu corri para a varanda e vi-o lá em baixo no
relvado comum, sem sair do sítio – tinha de esperar pela rapariga – dando
passos num pequeno círculo, calcando a geada debaixo dos pés. Restava a
rapariga. Chamava-se Emma. Quando voltei para dentro a minha mãe quis
que eu fosse sentar-me ao pé dela. «Apresento-te a tua irmã», disse o meu
pai, e foi fazer chá. A minha mãe estava de pé junto à árvore de Natal,
fingindo fazer qualquer coisa de útil com a iluminação. A rapariga virou-se
para mim e olhámo-nos francamente nos olhos. Tanto quanto me era dado
ver não éramos nada parecidas, tudo aquilo era ridículo, e percebi que
aquela criatura chamada Emma pensava exatamente o mesmo de mim.
Além do facto evidentemente cómico de eu ser negra e ela branca, eu tinha
os ossos largos e ela estreitos, eu era alta para a minha idade e ela era baixa
para a sua, os meus olhos eram grandes e castanhos e os dela eram estreitos
e verdes. Mas então, no mesmo momento, senti que ambas tínhamos
identificado os pontos comuns: a boca descaída nos cantos, os olhos tristes.
Não me lembro de ter pensado com lógica, não me perguntei, por exemplo,
quem era a mãe de Emma e quando teria conhecido o meu pai. A minha
cabeça não ia tão longe. Só pensei: ele fez uma como eu e uma como ela.
Como podem duas criaturas tão diferentes brotar da mesma fonte? O meu
pai regressou à sala com uma bandeja de chá.
«Bom, isto é tudo uma surpresa e tanto, não é?», disse, passando uma
caneca a Emma. «Para todos. Há muito tempo que não vejo... Mas sabes, a
tua mãe resolveu de repente... Mas ela é uma mulher de repentes, não é
verdade?» A minha irmã olhou para o meu pai com indiferença, e ele
desistiu logo do que estava a querer dizer e passou à conversa de
circunstância. «Parece que a Emma faz balé. Aí está uma coisa que as duas
têm em comum. Esteve uns tempos no Royal Ballet – com uma bolsa de
estudos integral – mas teve de desistir.»
Dançar no palco, queria ele dizer? Em Covent Garden? No corpo
principal? Ou no «cadáver», como Tracey lhe chamava? Mas não – «bolsa
de estudos» soava a coisa de escola. Haveria então uma «Escola do Royal
Ballet»? Mas, se tal coisa existia, porque é que não me mandaram para lá?
E se tinham mandado para lá esta Emma, quem pagava? Porque é que teve
de desistir? Por ter o peito assim grande? Ou será que uma bala lhe perfurou
a coxa?
«Pode ser que um dia dancem juntas!», disse a minha mãe para quebrar o
silêncio, género de inanidade maternal em que muito raramente caía. Emma
olhou para a minha mãe a medo – era a primeira vez que ousava olhá-la nos
olhos – e o que quer que tenha visto neles teve o condão de a horrorizar
inesperadamente: rompeu em lágrimas. A minha mãe saiu da sala. O meu
pai disse-me: «Vai um bocadinho até lá fora. Vai. Veste o casaco.»
Levantei-me do sofá, tirei o anoraque do cabide e saí. Percorri o
passadiço a tentar juntar o pouco que sabia do passado do meu pai com esta
nova realidade. Era de Whitechapel, de uma família numerosa de East End,
não tão numerosa como a da minha mãe mas andava lá perto, e o pai dele
tinha-se dedicado à pequena criminalidade, não sei de que tipo, sempre
dentro e fora da prisão, e era por isso, explicou-me a minha mãe um dia,
que o meu pai se esforçava tanto pela minha infância: cozinhando, levando-
me à escola e às aulas de dança, preparando-me a lancheira e outras coisas
mais, tudo atividades invulgares para um pai, naquela época. Eu era a
compensação – a desforra – pela infância dele. Também sabia que ele, a
certa altura, «não prestava». Um dia estávamos a ver televisão quando veio
à baila qualquer coisa sobre os gémeos Kray e o meu pai disse
tranquilamente: «Ora, ora, toda a gente os conhecia, era impossível não os
conhecer, naquela época.» Os muitos irmãos dele «não prestavam», o East
End em geral «não prestava», e tudo isto contribuiu para consolidar a ideia
que eu tinha do nosso canto de Londres como um pequeno pico de ar puro
que se erguia acima do pântano geral, para o qual podíamos ser arrastados
de várias direções, de regresso à verdadeira pobreza e ao crime. Mas nunca
ninguém tinha falado de um filho nem de uma filha.
Desci as escadas para o pátio comum e encostei-me a um pilar de betão, a
ver o meu «irmão» pontapear pequenos torrões de relva semigelada. Com o
cabelo comprido, a barba e a cara comprida, parecia-me o Jesus adulto, que
só conhecia de uma cruz que havia na parede da sala de aulas de dança de
Miss Isabel. Ao contrário da minha reação à rapariga – de que estava
simplesmente em presença de algum tipo de fraude –, ao olhar para o rapaz
achei inegável que tinha uma autenticidade essencial. Era autêntico que era
filho do meu pai, quem olhasse para ele via que isso fazia todo o sentido.
Quem não fazia sentido era eu. Senti-me invadida por uma sensação de fria
objetividade: o mesmo instinto que me permitia separar a voz da garganta
como objeto de análise, de estudo, vinha agora ao de cima, levando-me a
olhar para o rapaz e pensar: sim, ele está certo e eu estou errada, não é
interessante? Talvez pudesse ter pensado que eu era a filha verdadeira e o
rapaz a falsificação, mas não pensei.
Ele virou-se e deu pela minha presença. Houve alguma coisa na
expressão dele que me disse que estava com pena de mim, e fiquei
sensibilizada quando, com uma amabilidade natural, iniciou um jogo das
escondidas à volta dos pilares de betão. De cada vez que a cabeça loira
desgrenhada saía de trás de um bloco, eu tinha aquela sensação
extracorpórea: aqui está o filho do meu pai, parecendo exatamente o filho
do meu pai, não é interessante? Enquanto brincávamos ouvimos vozes
exaltadas que vinham lá de cima. Eu tentei ignorá-las, mas o meu novo
parceiro de brincadeiras parou e pôs-se debaixo da varanda à escuta. A certa
altura a raiva voltou a chispar-lhe nos olhos e disse-me: «Vou-te dizer uma
coisa: ele não quer saber de ninguém. Não é o que parece. É marado da
cabeça. Casar com aquela maldita preta!»
E nessa altura vinha a rapariga a descer as escadas. Não vinha ninguém a
correr atrás dela, nem o meu pai nem a minha mãe. Ainda vinha a chorar e
correu para o rapaz e abraçaram-se e, ainda abraçados, atravessaram o
relvado e abandonaram o complexo. Nevava levemente. Fiquei a vê-los
partir. Não voltei a vê-los até o meu pai morrer e nunca se falou deles
durante a minha infância. Durante muito tempo pensei que tudo não
passava de uma alucinação, ou de alguma coisa que tinha retido de um mau
filme. Quando Tracey me fez perguntas sobre o assunto contei-lhe a
verdade, embora com alguns acrescentos: garanti que um edifício por onde
passávamos todos os dias, em Willesden Lane, aquele que tinha o toldo azul
desbotado, era a Escola do Royal Ballet, e que a minha rica e cruel irmã
branca andava naquela escola, e era bailarina, mas recusava-se a fazer-me o
mais pequeno aceno da janela, acreditas numa coisa destas? Ela escutava e
eu via-lhe na cara que estava a fazer um grande esforço para acreditar, o que
se notava principalmente nas narinas. O mais provável, naturalmente, era
que a própria Tracey já tivesse estado naquele edifício, e soubesse
perfeitamente o que ele era: um degradado salão de festas onde se
realizavam muitos casamentos modestos de gente local, e às vezes se
jogava o bingo. Semanas depois, estava eu sentada no banco de trás do
ridículo carro da minha mãe – um pequeno 2CV branco, ostensivamente
francês, com um autocolante da CND3 ao lado do selo do imposto de
circulação – quando vi uma noiva de rosto fechado, meio submersa em tule
e caracóis, à porta do meu Royal Ballet, fumando uma passa, mas não
permiti que esta visão invadisse a minha fantasia. Na altura tinha
conseguido comungar da insusceptibilidade da minha amiga à realidade. E
agora, como se estivéssemos a tentar subir as duas ao mesmo tempo para
um baloiço sobe-e-desce – nenhuma de nós fazia demasiada força e
conseguíamos manter um equilíbrio instável. Eu podia continuar a ter a
minha bailarina má se ela pudesse continuar a ter o seu dançarino de apoio.
Talvez nunca tenha perdido este hábito de colaboração. Passados vinte anos
revisitei a história dos meus irmãos fantasmagóricos num almoço difícil
com a minha mãe, que suspirou, acendeu um cigarro e disse: «Lá estás tu
com as tuas fantasias melodramáticas.»
3 Campaign for Nuclear Disarmament – Campanha pelo Desarmamento Nuclear. (N. do T.)
10

Muito antes de fazer disso carreira, a minha mãe já tinha um espírito


político: estava-lhe na massa do sangue pensar nas pessoas coletivamente.
Mesmo na infância isso era evidente para mim, e sentia que havia qualquer
coisa de gélido e insensível na sua capacidade de analisar com grande
precisão quem a rodeava: os amigos, a comunidade, até a família. Éramos
todos pessoas que ela conhecia e amava e ao mesmo tempo objetos de
estudo, representações vivas de tudo aquilo que aparentemente andava a
aprender no Middlesex Poly. Mantinha-se à parte, sempre. Nunca se
submetia, por exemplo, ao culto da «impecabilidade» reinante no bairro – a
paixão dos fatos de treino reluzentes, das coruscantes joias falsas, dos dias
inteiros passados no cabeleireiro, dos filhos com ténis de cinquenta libras,
dos sofás pagos a prestações ao longo de vários anos – se bem que também
não condenasse completamente nenhuma destas coisas. As pessoas não são
pobres por terem tomado opções erradas, gostava de dizer a minha mãe,
tomam opções erradas porque são pobres. Mas apesar de tratar estes
assuntos de forma serena e antropológica nos seus trabalhos da faculdade –
ou nas preleções que nos dava, ao meu pai e a mim, à mesa de jantar – eu
sabia que na vida real se exasperava muitas vezes. Já não ia buscar-me à
escola – agora era o meu pai que ia – porque isso a irritava imenso, em
particular a forma como, todas as tardes, o tempo se comprimia e todas
aquelas mães voltavam a ser crianças, crianças que iam buscar as suas
crianças, e todas aquelas crianças viravam costas à escola com alívio,
finalmente livres de falarem à vontade umas com as outras, e rirem e
dizerem piadas e comerem gelado da carrinha dos gelados que as esperava,
e de fazerem a quantidade de barulho que para elas era natural.
De vez em quando era apanhada na armadilha, normalmente por algum
erro de cálculo, e via-se enredada numa conversa com uma das mães, quase
sempre a de Tracey, em Willesden Lane. Nessas alturas chegava a ser
sobranceira, fazendo questão de referir todas as minhas novas façanhas
escolares – ou inventando umas quantas – apesar de saber que a mãe de
Tracey só tinha para a troca mais elogios de Miss Isabel, o que para a minha
mãe era mercadoria de nenhum valor. A minha mãe orgulhava-se de se
esforçar mais do que a mãe de Tracey, mais do que todas as mães, de ter
conseguido que eu frequentasse uma escola pública razoavelmente decente
em vez de uma das várias escolas péssimas. Estava numa competição de
amor maternal, mas as suas adversárias, como a mãe de Tracey, estavam tão
mal preparadas em comparação com ela que a batalha era fatalmente
desigual. Muitas vezes me perguntava: será alguma espécie de troca? As
outras terão de perder para nós podermos ganhar?

Certa manhã, no início da primavera, o meu pai e eu encontrámos Tracey


no pátio do nosso complexo, junto às garagens. Parecia nervosa, e, apesar
de ter dito que só estava a atalhar caminho pelo nosso complexo para
chegar ao seu, tive a certeza de que estava à minha espera. Parecia ter frio:
duvidei de que tivesse sequer ido à escola. Sabia que às vezes fazia gazeta,
com o beneplácito da mãe. (A minha mãe tinha ficado escandalizada ao vê-
las, numa tarde de aulas, sair da What She Wants, na rua das lojas, rindo e
transportando um monte de sacos de compras.) Reparei que o meu pai
cumprimentou Tracey calorosamente. Ao contrário da minha mãe, não tinha
nada contra ela, achava a firme dedicação dela à dança enternecedora e
também, penso eu, digna de admiração – calava fundo na sua própria ética
de trabalho – e era visível que Tracey adorava o meu pai, estava mesmo um
pouco apaixonada por ele. Sentia-se dolorosamente grata por ele falar com
ela como um pai, se bem que houvesse alturas em que ele exagerava, sem
perceber que aquilo que vinha depois de ter um pai emprestado durante
alguns minutos era a dor de ter de o devolver.
«Os exames estão à porta, não estão?», perguntou-lhe ele. «E como estão
a correr as coisas?»
A Tracey empinou orgulhosamente o nariz no ar: «Vou concorrer às seis
categorias.»
«Claro que vais.»
«Mas na moderna tenho um par, não vou sozinha. O balé é o meu forte,
depois o sapateado, depois a moderna, depois o canto e dança. Vou tentar
conquistar três medalhas de ouro, pelo menos, mas se fossem duas de ouro
e quatro de prata já me dava por satisfeita.»
«E com razão.»
Pôs as mãozinhas nas ancas. «Vai assistir, ou quê?»
«Claro que vou! Com muito gosto! Para apoiar as minhas meninas.»
Tracey adorava gabar-se ao meu pai, desabrochava na presença dele, às
vezes até corava, e as respostas monossilábicas de sim e não que por norma
dava a todos os outros adultos, incluindo a minha mãe, desapareciam, sendo
substituídas por esta algaraviada ininterrupta, como se receasse que
qualquer pausa na torrente a fizesse correr o risco de perder definitivamente
a atenção do meu pai.
«Tenho novidades», deixou cair, virando-se para mim, e então percebi por
que razão a tínhamos encontrado inesperadamente. «A minha mãe resolveu
o assunto.»
«Qual assunto?»
«Vou deixar a minha escola», disse ela. «Vou para a tua.»
Mais tarde, em casa, dei a notícia à minha mãe, que também ficou
surpreendida e, tal como eu suspeitava, um tanto desagradada, com esta
prova de empenhamento da mãe de Tracey para bem da filha, mais do que
com qualquer outra coisa. Sibilou entre dentes: «Não a julgava capaz
disto.»
11

Foi preciso Tracey vir para a minha turma para eu perceber o que a minha
turma era realmente. Até aí pensava que era uma sala cheia de crianças.
Afinal era uma experiência sociológica. A filha da funcionária da cantina
partilhava uma carteira com o filho de um crítico de arte, um rapaz que
tinha o pai na prisão partilhava uma carteira com o filho de um polícia. A
filha de um funcionário dos correios partilhava uma carteira com a filha de
um dançarino do grupo de apoio de Michael Jackson. Um dos primeiros
atos de Tracey como minha companheira de carteira foi articular estas
diferenças subtis com base numa analogia simples, mas convincente: os
Cabbage Patch Kids4 e os Garbage Pail Kids5. Cada criança era classificada
numa das categorias, e Tracey deixava bem claro que quaisquer amizades
que eu tivesse feito antes de ela chegar eram agora – por muito que se
tivessem esforçado por saltar a vala – nulas e de nenhum efeito, inválidas,
porque a verdade era que nunca tinham sequer existido. Não podia haver
verdadeira amizade entre Cabbage Patch e Garbage Pail, pelo menos agora,
pelo menos em Inglaterra. Esvaziou a nossa carteira comum da minha
querida coleção de cromos dos Cabbage Patch Kids e substituiu-os pelos
seus cromos dos Garbage Pail Kids, os quais – como quase tudo aquilo que
Tracey fez na escola – se transformaram imediatamente na nova moda. Até
crianças que eram, aos olhos de Tracey, do tipo Cabbage Patch os
colecionavam, a própria Lily Bingham colecionava-os, e todos
competíamos uns com os outros pela posse dos cromos mais repelentes: o
Garbage Pail Kid com ranhos a correr-lhe pela cara, ou aquele sentado na
sanita. Outra inovação notável que Tracey trouxe consigo foi a recusa em
sentar-se. Só aceitava ficar de pé diante da carteira, curvando-se para
trabalhar. O nosso professor – um sujeito enérgico chamado Sherman – deu-
lhe luta durante uma semana, mas a vontade de Tracey, tal como a da mãe,
era de ferro, e acabou por ficar de pé, como queria. Não creio que Tracey
tivesse uma predileção especial por estar de pé, era uma questão de
princípio. O princípio, para dizer a verdade, podia ser um qualquer, mas a
questão era que tinha de sair vencedora. Era evidente que o Senhor
Sherman, uma vez perdida a disputa, tinha de ser impiedoso noutro aspeto
qualquer e certa manhã, quando estávamos todos em grande excitação a
trocar Garbage Pail Kids em vez de ouvirmos o que ele estava a dizer, de
repente perdeu completamente as estribeiras, desatou
a berrar como um louco, andando de carteira em carteira a recolher os
cromos, umas vezes de debaixo dos tampos das carteiras e outras das nossas
mãos, até que ficou com um enorme monte deles em cima da secretária que
depois juntou numa pilha e empurrou para dentro de uma gaveta, que
fechou ostensivamente com uma chavinha. Tracey não disse nada, mas as
suas narinas de leitão enfunaram-se e eu pensei: ai, ai, será que o Senhor
Sherman não percebe que ela nunca mais lhe perdoa?

Nessa mesma tarde, depois das aulas, regressámos a casa juntas. Ela não
me falava, continuava furiosa, mas quando eu fiz menção de virar para o
meu complexo agarrou-me pelo pulso, e fez-me atravessar a estrada para o
dela. Subimos no elevador em silêncio. Parecia que algo de grave estava
para acontecer. Sentia-lhe a raiva como se fosse uma aura à sua volta, quase
vibrava. Quando chegámos à porta da casa dela reparei que o batente – um
leão de Judá de latão com a boca aberta, comprado na rua principal numa
das tendas que vendiam objetos africanos – estava danificado e pendia
agora de um único prego, e perguntei-me se o pai dela não teria voltado a
aparecer. Segui Tracey até ao quarto. Depois de fechar a porta ela virou-se
para mim, de olhos arregalados, como se eu fosse o Senhor Sherman, e
perguntou-me em tom agressivo o que queria fazer, agora que ali
estávamos. Eu não tinha ideia nenhuma: nunca me tinha dado a escolher o
que queria fazer, era ela que tinha as ideias todas, nunca até hoje eu tinha
feito planos.
«Então para que é que vieste comigo, se não fazes porra de ideia?»
Atirou-se para cima da cama, pegou no Pac-Man e pôs-se a jogar. Eu
senti um rubor na cara. Humildemente, sugeri que treinássemos os passos
ternários, mas Tracey rosnou-me.
«Não preciso. Agora ando a treinar wings.»
«Mas eu ainda não sei fazer wings!»
«Escuta», disse ela, sem levantar os olhos do ecrã, «ninguém chega à
prata sem fazer wings, muito menos ao ouro. Então para que é que o teu pai
há de ir assistir se vais fazer merda? Não vale a pena, pois não?»
Olhei para os meus estúpidos pés, que não sabiam fazer wings. Sentei-me
e comecei a chorar baixinho. Não serviu de nada, e passado um minuto dei
comigo infeliz e bloqueada. Resolvi entreter-me a organizar o guarda-roupa
da Barbie. Todas as indumentárias dela tinham sido atafulhadas no
descapotável do Ken. A minha ideia era tirá-las dali, alisá-las, pendurá-las
nos cabides pequeninos e voltar a metê-las no guarda-vestidos, que era o
tipo de brincadeira que nunca me era permitido em casa devido aos seus
ecos de repressão doméstica. Estava a meio desta minuciosa operação
quando, misteriosamente, Tracey se compadeceu de mim: deslizou da cama
e veio sentar-se ao meu lado no chão, de pernas cruzadas. Juntas, pusemos
em ordem a vida daquela minúscula mulher branca.
4 Coleção de bonecos simpáticos e bonzinhos, feitos de material maleável. (N. do T.)

5 Coleção de cromos que parodiam os Cabbage Patch Kids. (N. do T.)


12

Tínhamos um vídeo preferido, estava etiquetado «Desenhos Animados de


Sábado e Chapéu Alto» e passava semanalmente da minha casa para a de
Tracey e vice-versa, tantas vezes tocado que agora a busca comia a imagem,
em cima e em baixo. Por causa disso não podíamos correr o risco de o
acelerar enquanto passava – ainda piorava mais a busca – e portanto
avançávamos «às cegas», tentando calcular a duração pela quantidade de
fita preta que passava de uma bobina para a outra. Tracey era perita em
avançar a fita, parecia saber por instinto quando tínhamos deixado para trás
os desenhos animados sem interesse e quando devia carregar no stop para
chegar, por exemplo, à canção «Cheek to Cheek». Espanta-me como hoje,
quando quero ver este mesmo vídeo – como fiz há minutos, antes de
escrever isto – não preciso de nenhum esforço, tudo é feito num momento,
digito o meu pedido na janela e ele aparece. Naquele tempo era preciso ter
habilidade. Fomos a primeira geração a ter em casa os meios com que se
podia fazer a realidade andar para trás e para a frente: até as crianças mais
pequenas conseguiam carregar com os dedos naqueles botões rechonchudos
e viam aquilo que foi transformar-se no que é ou no que será. Quando
Tracey se entregava a esta tarefa entrava em concentração absoluta, não
premia o botão play enquanto não tivesse posto Fred e Ginger exatamente
onde os queria, na varanda, entre a buganvília e as colunas dóricas. Nessa
altura começava a ler a dança, como eu nunca fui capaz de fazer, via tudo,
as penas de avestruz que roçavam pelo chão, os músculos fracos das costas
de Ginger, o que Fred tinha de fazer para a levantar de qualquer posição
supina, quebrando o ritmo, estragando o número. Reparava na coisa mais
importante de todas, que é a aula de dança contida na execução. Com Fred e
Ginger podemos ver sempre a aula de dança. Em certo sentido a aula de
dança é a execução. Ele não está a olhar para ela com amor, nem sequer
amor fingido de cinema. Está a olhar para ela como Miss Isabel olhava para
nós: não te esqueças de x, por favor tem atenção a y, levanta o braço agora,
baixa a perna, gira, flete, vénia.
«Olha para ela», dizia Tracey com um sorriso estranho, pondo um dedo
em cima da cara de Ginger no ecrã. «Está borrada de medo.»
Foi durante um destes visionamentos que fiquei a saber uma coisa nova e
importante acerca de Louie. Na altura não estava mais ninguém em casa, e
como a mãe de Tracey se chateava quando víamos o mesmo clipe muitas
vezes seguidas, nessa tarde tirámos a barriga de misérias. No momento em
que acabou de dançar e se encostou à balaustrada, Tracey foi de gatas e
carregou outra vez no botão, e lá fomos nós de volta ao que já foi. Devemos
ter visto o mesmo clipe uma dúzia de vezes. Até que de repente achámos
que já bastava: Tracey pôs-se de pé e disse-me que a acompanhasse. Cá fora
estava escuro. Eu não sabia quando a mãe dela chegaria a casa. Passámos
pela cozinha e entrámos no quarto de banho. Era exatamente igual ao meu.
O mesmo chão de cortiça, as mesmas louças cor de abacate. Ela pôs-se de
joelhos e empurrou o painel lateral da banheira: caiu facilmente. Numa
caixa de sapatos Clarks, mesmo ao pé dos canos, estava uma pequena
pistola. Tracey pegou na caixa e mostrou-ma. Disse-me que era do pai, que
ele a tinha deixado ali, e quando Michael viesse a Wembley pelo Natal
Louie seria seu segurança além de um dos seus dançarinos, tinha de ser
assim para despistar as pessoas, era tudo supersecreto. Se contas a alguém,
disse-me, morres. Voltou a pôr o painel no sítio e foi para a cozinha fazer
chá. Eu fui para casa. Lembro-me de ter sentido grande inveja da
sofisticação da vida familiar de Tracey em comparação com a minha, do
segredo e emoção que a rodeavam, e no caminho para casa tentei pensar
nalguma revelação equivalente para oferecer a Tracey na próxima vez em
que estivesse com ela, uma doença terrível ou um novo bebé, mas não tinha
nada, nada, nada!
13

Estávamos as duas de pé na varanda. Tracey empunhava um cigarro,


roubado ao meu pai, e eu preparava-me para lho acender. Não cheguei a
acendê-lo, porque ela cuspiu-o da boca e atirou-o para trás das costas ao
mesmo tempo que apontava para a minha mãe que, afinal, estava mesmo
por baixo de nós no relvado do complexo, a sorrir cá para cima. Era uma
quente e luminosa manhã de domingo, em meados de maio. A minha mãe
brandia uma pá enorme, parecia um agricultor soviético, e vestia uma roupa
fantástica: calças de peitilho de sarja azul, top curto castanho-claro, em
combinação perfeita com o tom da pele, sandálias Birkenstock e lenço
quadrado amarelo dobrado em triângulo a prender-lhe o cabelo. O lenço
estava atado na nuca com um nó elegante. Estava a tratar, explicou, de
escavar o relvado comunitário, um retângulo de doze palmos por quatro,
com a ideia de fazer uma horta para usufruto de toda a gente. Tracey e eu
ficámos a observá-la. Cavou durante algum tempo, parando a espaços para
pousar o pé no rebordo da pá e berrar cá para cima informações sobre
alfaces, as várias qualidades de alface, a altura certa para as plantar,
informações que não nos interessavam nem um bocadinho, mas tudo quanto
ela dizia parecia mais persuasivo por força daquela indumentária. Vimos
várias pessoas que saíam dos seus apartamentos para manifestarem a sua
apreensão ou questionarem o direito que ela tinha de fazer o que estava a
fazer, mas não tinham argumentos para ela, e nós registámos e admirámos a
forma como ela despachava os pais em poucos minutos – basicamente
olhando-os nos olhos – ao passo que das mães enfrentava resistência, sim,
com as mães tinha de se esforçar um pouco mais, afogando-as em
linguagem até compreenderem que estavam a pisar terreno movediço e com
uma corrente franzina de objeções que era completamente engolida pelas
correntes torrenciais da conversa da minha mãe. Tudo quanto dizia soava
extremamente convincente, impossível de contraditar. Quem não gostava de
rosas? Quem era tão tacanho que negasse a uma criança do interior da
cidade o prazer de plantar uma semente? Não éramos todos de origem
africana? Não éramos gente da terra?
Começou a chover. A minha mãe, que não estava vestida para a chuva,
voltou para dentro de casa. Na manhã seguinte, antes de irmos para a
escola, foi com entusiasmo que presenciámos o seguinte espetáculo: a
minha mãe, com ar de Pam Grier, abrindo uma cova grande, ilegal, sem
autorização da câmara. Mas a pá jazia no sítio exato onde ela a tinha
deixado e a cova estava cheia de água e a cova parecia uma sepultura
semiaberta. No dia seguinte voltou a chover e a escavação não avançou. Ao
terceiro dia começou a jorrar uma lama cinzenta que se espalhou pela
relva.
«É barro», disse o meu pai, espetando um dedo naquilo. «Agora é que ela
tem um problema.»
Mas estava enganado: quem tinha o problema era ele. Alguém tinha dito à
minha mãe que o barro é apenas uma camada da Terra e bastava escavar o
suficiente para o atravessar, e nessa altura bastava ir ao horto comprar um
bocado de adubo e deitá-lo para dentro do buraco grande, ilegal...
Espreitámos para dentro do buraco que o meu pai estava agora a escavar:
por baixo do barro havia mais barro. A minha mãe veio cá abaixo e
espreitou também lá para dentro, e declarou-se «muito entusiasmada» por
ter aparecido barro. Nunca mais falou nas hortaliças, e se mais alguém as
referia adotava sem hesitação a nova posição oficial, segundo a qual o
buraco nunca fora pensado para hortaliças, o buraco sempre tivera a
finalidade de procurar barro. Coisa que finalmente havia acontecido. Aliás,
tinha duas rodas de oleiro à espera lá em casa. Que material maravilhoso
para as crianças trabalharem!
As rodas eram pequenas e muito pesadas, tinha-as comprado porque
«gostava do aspeto delas», numa gélida manhã de fevereiro em que as
portas do elevador estavam avariadas: o meu pai fez força nos joelhos,
firmou os braços e carregou as malditas rodas por três lanços de escadas
acima. Eram muito rudimentares, de certo modo brutais, ferramentas de
camponês, e nunca lhes tinha sido dado outro uso no nosso apartamento que
não fosse o de manter a porta da sala aberta. Agora íamos usá-las, tínhamos
de as usar: se não as usássemos, a minha mãe teria aberto um buraco
enorme no jardim comunitário sem razão nenhuma. Tracey e eu fomos
encarregadas de reunir crianças. Só conseguimos convencer três miúdos do
complexo: para fazer número acrescentámos Lily Bingham. À pazada, o
meu pai encheu de barro uns sacos de supermercado e acartou-os para o
apartamento. A minha mãe pôs uma mesa de cavalete na varanda e
despejou um grande pedaço de barro diante de cada um de nós. Era um
processo sujo, provavelmente teria sido melhor fazer aquilo no quarto de
banho ou na cozinha, mas a varanda acrescentava um elemento de
exposição: ali toda a gente podia ver o novo conceito de parentalidade da
minha mãe. No fundo, estava a fazer uma pergunta a todo o complexo. E se
não plantássemos todos os dias os nossos filhos diante da televisão, a ver os
desenhos animados e as telenovelas? E se em vez disso lhes déssemos um
pedaço de barro, e lhe deitássemos água por cima, e os ensinássemos a
andar com ele à volta até adquirir uma forma entre as mãos? Que espécie de
sociedade seria a nossa? Presenciámos o barro a girar entre as palmas das
mãos dela. Parecia um pénis – um pénis castanho, comprido – mas só
quando Tracey me soprou a ideia ao ouvido é que me permiti admitir o
pensamento que já estava a ter. «É uma jarra», declarou a minha mãe, e
depois acrescentou, à laia de esclarecimento: «Para uma flor só.» Eu estava
impressionada. Olhei em volta para as outras crianças. Alguma vez as mães
delas teriam pensado em tirar da terra uma jarra? Ou em cultivar uma flor
só, para lá pôr dentro? Mas Tracey não estava a levar nada daquilo a sério,
ainda estava embalada na ideia de um pénis de barro, e agora estava a
contagiar-me, e a minha mãe fez-nos cara feia e, voltando a atenção para
Lily Bingham, perguntou-lhe o que gostava de fazer, uma jarra ou uma
caneca. Entre dentes, Tracey sugeriu, outra vez, a obscena terceira opção.
Estava a rir-se da minha mãe – era libertador. Nunca me tinha passado
pela cabeça que a minha mãe pudesse ou devesse ser objeto de troça, mas
Tracey achava que tudo nela era ridículo: a forma como nos falava com
respeito, como se fôssemos adultas, dando-nos hipóteses de escolha em
coisas que Tracey achava que não tínhamos nada que escolher, e a liberdade
que nos concedia em geral, permitindo-nos fazer toda esta porcaria
desnecessária na varanda – quando toda a gente sabia que uma verdadeira
mãe detestava porcaria – e ainda por cima tinha a lata de lhe chamar «arte»,
a lata de lhe chamar «artesanato». Quando chegou a vez de Tracey e a
minha mãe lhe perguntou o que gostava de fazer na roda, uma jarra ou uma
caneca, Tracey parou de rir e fez uma careta.
«Estou a ver», disse a minha mãe. «Então o que é que gostavas de
fazer?»
Tracey encolheu os ombros.
«Não tem de ser útil», insistiu a minha mãe. «Arte significa não ter de ser
útil! Na África Ocidental, por exemplo, há cem anos, havia umas aldeãs,
estavam a fazer uns vasos muito estranhos, e os antropólogos não
percebiam o que elas estavam a fazer, mas isso era porque eles, os
cientistas, estavam à espera de que um povo «primitivo», entre aspas, só
fizesse coisas úteis, quando afinal estavam a fazer os vasos só pela beleza
deles – exatamente como um escultor – não para irem à água, não para
guardarem cereais, só porque eram belos, e para dizerem: estivemos aqui,
neste momento específico, e isto é o que fizemos. Portanto, tu podes fazer a
mesma coisa, não podes? Podes fazer uma peça ornamental. É a tua
liberdade! Agarra-a! Quem sabe? Talvez sejas a próxima Augusta
Savage!»
Eu já estava habituada aos discursos da minha mãe – normalmente
desligava sempre que ela os fazia – e também estava familiarizada com a
forma como ela intercalava numa conversa normal aquilo que por acaso
estivesse a estudar nessa semana, mas tenho a certeza de que Tracey nunca
na vida tinha ouvido uma coisa assim. Não sabia o que era um antropólogo,
nem o que fazia um escultor, nem quem era Augusta Savage, nem tão-
pouco o que queria dizer a palavra «ornamental». Pensava que a minha mãe
estava a gozar com ela. Como podia saber que a minha mãe achava
impossível falar naturalmente com as crianças?
14

Diariamente, quando Tracey chegava a casa depois das aulas, o


apartamento estava quase sempre vazio. Quem sabia onde estava a mãe?
«Na rua das lojas», dizia a minha mãe – o que queria dizer «a beber» – mas
eu passava todos os dias em frente do Sir Colin Campbell e nunca a vi lá.
Quando a via estava normalmente na rua a azucrinar o ouvido de alguém,
muitas vezes a chorar ou a limpar os olhos com um lenço, ou então sentada
na paragem de autocarro do lado oposto ao muro do complexo, a fumar, a
olhar para o vazio. Tudo menos ficar sentada naquele apartamento
minúsculo – e eu não a censurava. Tracey, pelo contrário, gostava muito de
estar em casa, nunca queria ir para o parque infantil nem passear na rua.
Tinha uma chave na caixa dos lápis, entrava, ia direita ao sofá e punha-se a
ver as novelas australianas até começarem as britânicas, processo que
começava às quatro da tarde e acabava quando passava o genérico final de
Coronation Street. Algures pelo meio ia fazer o lanche, ou a mãe chegava
com lanche comprado e sentava-se ao pé dela no sofá. Eu sonhava com uma
liberdade como a dela. Quando chegava a casa, a minha mãe ou o meu pai
queriam saber «o que aconteceu hoje na escola», faziam muita questão
disso, não me deixavam em paz enquanto não dissesse alguma coisa e por
isso, naturalmente, comecei a mentir-lhes. Naquela altura pensava neles
como duas crianças, mais inocentes do que eu, que era minha
responsabilidade proteger do género de factos desconfortáveis que os
deixariam a pensar excessivamente (a minha mãe) ou a sentir
excessivamente (o meu pai). Naquele verão o problema agudizou-se porque
a resposta verdadeira ao «Como foi hoje a escola?» era «No recreio anda a
mania de apertar vaginas.» Três rapazes do prédio de Tracey tinham
iniciado o jogo, mas agora toda a gente participava, os miúdos irlandeses,
os miúdos gregos, até o Paul Barron, filho completamente anglo-saxónico
de um polícia. Era parecido com a apanhada, mas as raparigas nunca
chegavam ao «coito», só os rapazes chegavam ao «coito», nós, as raparigas,
simplesmente corríamos e corríamos até nos vermos acuadas num recanto
sossegado, longe dos olhares das empregadas da cantina e dos monitores do
recreio, altura em que as nossas cuecas eram afastadas para o lado e uma
mão pequena se enfiava na nossa vagina, éramos tosca e freneticamente
esfregadas e então o rapaz fugia, e repetia-se tudo desde o princípio. Media-
se a popularidade de uma rapariga pelo tempo e esforço postos na sua
perseguição. Tracey, com as suas risadinhas histéricas – e a intencional
lentidão da fuga – era, como sempre, a primeira. Eu, querendo ser popular,
às vezes também corria devagar, e a verdade embaraçosa é que queria ser
apanhada – gostava da eletricidade que me percorria da vagina ao ouvido
quando ainda esperava pela mãozinha quente – mas também é verdade que,
quando a mão aparecia realmente, havia em mim um reflexo, uma ideia
arreigada de autopreservação que herdei da minha mãe, apertava sempre as
pernas e tentava repelir a mão, o que acabava sempre por ser impossível. A
única coisa que conseguia era tornar-me ainda mais popular por dar aqueles
primeiros momentos de luta.
Quanto a querermos que este ou aquele rapaz nos perseguisse, não,
ninguém se preocupava com isso. Não existia nenhuma hierarquia de desejo
porque o desejo era um elemento muito fraco, praticamente inexistente, do
jogo. O importante era que nos achassem o tipo de rapariga que valia a pena
perseguir. Não era um jogo de sexo, mas sim de estatuto – de poder. Não
desejávamos ou temíamos os rapazes em si mesmos, só desejávamos ou
temíamos que eles nos quisessem ou não quisessem. Uma exceção à regra
era o rapaz com um eczema horrível, que todas nós verdadeira e
sinceramente temíamos, Tracey tanto como as outras, porque nos deixava
nas cuecas pequenas partículas de pele cinzenta morta. Quando o nosso
jogo sofreu a mutação de brincadeira de recreio para risco de sala de aula, o
rapaz do eczema tornou-se o meu pesadelo diário. Agora o jogo passava-se
assim: um rapaz deixava cair um lápis ao chão, sempre num momento em
que o Senhor Sherman estava de costas para nós e olhos no quadro. O rapaz
gatinhava para debaixo da carteira para apanhar o lápis, aproximava-se da
genitália de uma rapariga, puxava-lhe as cuecas para o lado e enfiava os
dedos, deixando-os lá dentro durante tanto tempo quanto pensasse que não
ia ser apanhado. Tinha desaparecido o elemento aleatório: só os três rapazes
iniciais jogavam e só visitavam as raparigas que não só estavam perto da
carteira deles, mas também que se supunha que não iam queixar-se. Tracey
era uma dessas raparigas, eu era outra, e outra era uma vizinha minha no
complexo chamada Sasha Richards. As raparigas brancas – que geralmente
tinham sido incluídas na nova moda do recreio – agora, misteriosamente, já
não eram incluídas: era como se nunca tivessem chegado a entrar no jogo.
O rapaz do eczema estava a uma carteira de distância de mim. Eu detestava
aqueles dedos escamudos, metiam-me nojo e horrorizavam-me, mas, ao
mesmo tempo, não conseguia deixar de ter prazer naquela eletricidade
deliciosa e incontrolável que me percorria das cuecas ao ouvido. Como é
evidente, não podia descrever estas coisas aos meus pais. Aliás, esta é a
primeira vez que as apresento de alguma forma a alguém – incluindo a mim
própria.
É estranho pensar agora que na altura todos nós tínhamos só nove anos.
Mas ainda recordo aquele período com uma certa dose de gratidão por
aquilo que viria a considerar a minha relativa sorte. Foi a época do sexo,
sim, mas decorreu, em todos os aspetos vitais, sem o sexo propriamente dito
– não é uma definição útil de uma infância feliz? Só aprendi a dar valor a
esta faceta da minha sorte quando já era adulta e comecei a descobrir, com
maior frequência do que imaginaria, que entre as minhas amigas,
independentemente do respetivo contexto, as suas épocas de sexo infantil
tinham sido exploradas e destruídas pelas maldades de tios e pais, primos,
amigos, estranhos. Penso em Aimee: maltratada aos sete anos, violada aos
dezassete. E além da sorte pessoal há a sorte geográfica e histórica. Que
aconteceu às raparigas nas plantações – ou nos asilos vitorianos? O mais
perto que estive de uma coisa parecida foi na arrecadação do material de
música e não foi nada que se parecesse, e tenho a agradecer isso a uma sorte
monumental, sem dúvida, mas também a Tracey, pois foi ela que me salvou,
ao seu jeito peculiar. Era uma sexta-feira ao fim da tarde, pouco antes de
terminar o ano escolar tinha ido à arrecadação do material de música buscar
uma partitura, era a da canção «We All Laughed», que Astaire cantava com
tanta simplicidade e tão bem, e a minha intenção era dá-la ao Senhor Booth
no sábado de manhã, para nos ajudar a cantá-la em dueto. Outra fatia da
minha sorte foi que o Senhor Sherman, meu professor, era também
professor de música da escola, e gostava tanto das canções antigas quanto
eu: tinha um arquivador cheio de partituras de Gershwin, e de partituras de
Porter, e outros assim, guardado na arrecadação de música, e estava
autorizada a tirar de lá o que quisesse às sextas-feiras, desde que devolvesse
tudo na segunda-feira. O espaço era típico daquelas escolas naquela época:
caótico, exíguo, sem janelas, com falta de vários painéis no teto. Havia
estojos velhos de violino e violoncelo empilhados contra uma parede, e
bacias de plástico com flautas, cheias de saliva e com as embocaduras
mordidas como brinquedos de cão. Havia dois pianos, um deles partido e
coberto com um pano, o outro muito desafinado, e muitos conjuntos de
percussão africanos, porque eram muito baratos e qualquer pessoa sabia
tocá-los. A luz do teto não acendia. Tínhamos de localizar o que
procurávamos enquanto a porta ainda estava aberta, fixar o sítio e depois, se
aquilo que queríamos não estava ao alcance do braço, deixar que a porta se
fechasse e continuar na escuridão. O Senhor Sherman havia-me dito que
tinha deixado a pasta de que eu precisava em cima do arquivador cinzento
no canto esquerdo mais afastado, e eu vi o arquivador e retive a porta para
que fechasse devagar. A escuridão era total. Peguei na pasta, de costas para
a porta. Uma estreita nesga de luz rasgou o compartimento por breves
momentos e desapareceu. Virei-me – senti mãos em cima de mim. Um par
de mãos reconheci-o imediatamente – do rapaz do eczema –, o outro,
depressa percebi que pertencia ao melhor amigo dele, um miúdo magricela
e desajeitado que se chamava Jordan e era atrasado mental, influenciável e
por vezes perigosamente impulsivo, um conjunto de sintomas para os quais
não havia diagnóstico na altura, ou, se havia, nunca ele nem a mãe
souberam qual era. Jordan era da minha turma, mas eu nunca o tratava por
Jordan, tratava-o por Spaz, toda a gente o tratava assim, mas, se a intenção
era insultá-lo, havia muito que ele tinha neutralizado o insulto respondendo
alegremente como se fosse esse o seu nome. Tinha um estatuto muito
particular na nossa turma: apesar da doença, qualquer que ela fosse, era alto
e bonito. Enquanto nós tínhamos ar de crianças, ele parecia um adolescente,
tinha músculos nos braços e um cabelo forte, fazia a barba numa barbearia a
sério. Não era bom aluno, não tinha amigos sinceros, mas era um parceiro
útil para rapazes com planos perversos, e era frequentemente alvo da
atenção dos professores, a menor interrupção da sua parte tinha um efeito
desproporcionado, e isso era interessante para o resto da turma. Tracey
podia – e fazia-o – mandar «foder» um professor sem que sequer a
despachassem de plantão para o corredor, mas Jordan passava a maior parte
do tempo no dito corredor, por aquilo que, aos olhos dos colegas, não
passava de pequenas infrações – repontar, ou não tirar um boné de basebol
da cabeça – e ao fim de algum tempo começámos a perceber que os
professores, em particular as mulheres brancas, tinham medo dele. Nós
respeitávamos isso: parecia-nos uma coisa especial, uma façanha, fazer uma
mulher adulta ter medo dele, apesar de só ter nove anos e ser atrasado
mental. Eu, pessoalmente, dava-me bem com ele; tinha-me enfiado algumas
vezes os dedos nas cuecas, mas estava convencida de que ele não sabia por
que razão fazia aquilo, e no caminho de regresso a casa, se calhava sairmos
ao mesmo tempo, às vezes cantava para ele – o tema do «Manda-chuva»,
série de desenhos animados que ele adorava – e isso acalmava-o e deixava-
o feliz. Caminhava ao meu lado, cabeça inclinada para mim, emitindo um
som baixo e gorgolejado como o de um bebé feliz. Eu não via nele um
agressor, porém ali estava ele na arrecadação da música, apalpando-me
toda, dando risadinhas de excitação, acompanhando e imitando as
gargalhadas mais cínicas do rapaz do eczema, e era evidente que não se
tratava do jogo do recreio nem do jogo da sala de aula, tratava-se de uma
escalada nova e porventura perigosa. O rapaz do eczema ria-se e queria que
eu também me risse, como se tudo fosse uma espécie de piada, mas de cada
vez que eu tentava puxar uma peça de roupa para cima eles puxavam-na
para baixo e queriam que eu me risse também daquilo. Até que as
gargalhadas pararam e deram lugar a uma ação urgente, eles agiram em
silêncio e eu também me calei. Foi então que a estreita nesga de luz
reapareceu. Era Tracey que estava na soleira da porta: vi-a em silhueta,
emoldurada pela luz. Entrou e fechou a porta. A princípio não disse nada.
Juntou-se simplesmente a nós na escuridão, calada, sem fazer nada. As
mãos dos rapazes afrouxaram: era a versão infantil do absurdo sexual – que
os adultos tão bem conhecem – quando uma coisa que momentos antes
parecia tão urgente e monopolizadora de repente se torna (normalmente em
conjugação com uma lâmpada que se acende) pequena e insignificante, para
não dizer trágica. Olhei na direção de Tracey, ainda recortada a fogo na
minha retina, em relevo: vi a silhueta, o nariz arrebitado, as tranças
perfeitamente simétricas com os seus laços de cetim. Por fim ela deu um
passo atrás, escancarou a porta e manteve-a aberta.
«O Paul Barron está à tua espera no portão», disse. Eu olhei para ela
incrédula e ela repetiu, desta vez em tom irritado, como se eu estivesse a
fazê-la perder tempo. Puxei a saia para baixo e passei por ela a correr.
Ambas sabíamos que era impossível que Paul Barron estivesse à minha
espera no portão, a mãe vinha buscá-lo todos os dias num Volkswagen, o
pai era polícia, tinha o lábio superior sempre a tremer e uns olhos azuis
grandes e húmidos como um cachorro. Não tinha trocado duas palavras
com Paul Barron em toda a minha vida. Tracey garantia que ele lhe tinha
metido os dedos nas cuecas, mas eu tinha-o visto correr sem destino à volta
do recreio, à procura de uma árvore para se esconder. Tinha fortes suspeitas
de que ele não queria apanhar ninguém. Mas era o nome certo no momento
certo. Comigo podiam meter-se porque era vista como pertencente àquela
parte da escola que não esperava nem merecia melhor sorte, mas Paul
Barron fazia parte do outro mundo, com ele ninguém podia meter-se, e esta
associação imaginária a ele, ainda que momentânea, funcionava como uma
espécie de proteção. Desci a encosta a correr em direção ao portão e
encontrei o meu pai à minha espera. Comprámos gelados na carrinha e
fomos juntos para casa. Nos semáforos ouvi muito barulho e olhei para o
outro lado da rua e vi Tracey e o rapaz do eczema e o outro que se chamava
Spaz a rir e a bulhar e a meterem-se uns com os outros, dizendo palavrões e
parecendo gostar das manifestações públicas de desagrado e censura que,
entretanto, se tinha erguido e os envolvia como uma nuvem de melgas,
vinda da fila de gente à espera do autocarro, dos comerciantes à porta das
respetivas lojas, de mães, de pais. Até o meu pai, míope, olhou para o outro
lado da rua, na direção do alvoroço: «Aquela não é a Tracey, pois não?»
Segunda parte

CEDO E TARDE
1

Era ainda criança quando o meu caminho se cruzou pela primeira vez
com o de Aimee – mas como posso chamar-lhe destino? Os caminhos de
toda a gente cruzaram-se com o dela no mesmo instante, quando apareceu
não havia espaço nem tempo que a contivessem, não tinha um caminho só
com que se cruzar, mas todos os caminhos – todos lhe pertenciam, qual
rainha em Alice no País das Maravilhas, todos os caminhos eram o seu
caminho – e, naturalmente, milhões de pessoas sentiam o mesmo que eu.
Sempre que escutavam os seus discos sentiam que estavam a encontrar-se
com ela – continuam a sentir. O seu primeiro single saiu na semana em que
eu fiz dez anos. Ela tinha então vinte e dois. Por altura do fim desse mesmo
ano, contou-me uma vez, já não podia andar na rua, fosse em Melbourne,
Paris, Nova Iorque, Londres ou Tóquio. Um dia, quando as duas
sobrevoávamos Londres a caminho de Roma, conversando
despreocupadamente sobre Londres como cidade, suas virtudes e defeitos,
admitiu que nunca tinha andado no metro, nem uma vez, e não conseguia
imaginar o que isso seria como experiência. Eu sugeri que os sistemas de
metropolitano são basicamente iguais em todo o mundo, mas ela disse que a
última vez que havia entrado em algum tipo de comboio fora quando tinha
deixado a Austrália a caminho de Nova Iorque, vinte anos antes. Na altura
tinha abandonado a sua modorrenta terra natal havia apenas seis meses,
muito rapidamente ganhou o estatuto de estrela underground em Melbourne
e só precisou de mais seis meses em Nova Iorque para deixar cair o
qualificativo. Estrela incontestável desde então, facto que para ela não
acarreta nenhum resquício de neurose ou autocomiseração, e esta é uma das
facetas extraordinárias de Aimee: não tem um lado trágico. Aceita como
destino tudo aquilo que lhe aconteceu, tão pouco surpreendida ou perplexa
por ser quem é como imagino que Cleópatra fosse por ser Cleópatra.
Comprei aquele single de estreia como presente para Lily Bingham, para
a festa do seu décimo aniversário, que por acaso teve lugar uns dias antes
do meu. Tracey e eu fomos convidadas para a festa, foi Lily quem nos
entregou pessoalmente os pequenos convites de papel feitos em casa, um
sábado de manhã na aula de dança, bastante inesperadamente. Eu fiquei
muito contente, mas Tracey, talvez por desconfiar que tinha sido convidada
por uma questão de educação, recebeu o convite com uma expressão
trombuda e passou-o imediatamente à mãe, que ficou tão ansiosa que, dias
depois, interpelou a minha mãe na rua e crivou-a de perguntas. Era o tipo de
coisa onde se pudesse deixar uma filha à porta? Ou seria de esperar que a
mãe fosse convidada a entrar? O convite falava numa ida ao cinema – mas
quem pagava o bilhete? A convidada ou a convidante? Tinham de levar
prenda? Que tipo de prenda íamos nós levar? A minha mãe fazia o favor de
nos levar às duas? Até parecia que a festa ia realizar-se num lugar estranho
e difícil de encontrar, e não a três minutos de caminho a pé, numa casa do
outro lado do parque. Com a maior bonomia, a minha mãe disse que levava
as duas e ficava à nossa espera, se fosse preciso. Quanto à prenda, sugeriu
um disco, um single de música pop, podia ser presente das duas, barato mas
de agrado certo: levar-nos-ia à rua das lojas para procurarmos no
Woolworths um disco que correspondesse ao desejado. Mas nós já
estávamos preparadas. Sabíamos exatamente que disco queríamos comprar,
o nome da canção e da cantora, e sabíamos que a minha mãe – que nunca
lia tabloides e só ouvia estações de rádio reggae – ignoraria a fama de
Aimee. A nossa única preocupação era a capa: ainda não a tínhamos visto,
não sabíamos que esperar. Atendendo à letra – e à interpretação a que
tínhamos assistido, boquiabertas, no Top of the Pops – achávamos que tudo
era possível. Ela podia aparecer completamente nua na capa do single,
podia estar em cima de um homem – ou de uma mulher – fazendo sexo,
podia estar com o dedo médio espetado, como ainda no fim de semana
anterior fizera, por momentos, num programa infantil de TV transmitido em
direto. Podia ser uma foto de Aimee a executar um dos seus espantosos e
provocadores movimentos de dança, por amor dos quais tínhamos
abandonado Fred Astaire, agora só queríamos dançar como Aimee, e
imitávamo-la sempre que tínhamos privacidade e oportunidade, treinando o
suave balançar do seu abdómen – como uma onda de desejo que
atravessava o corpo – e a forma como meneava as estreitas ancas de rapaz e
projetava do tronco os seios pequenos, uma subtil manipulação de músculos
que nós ainda não tínhamos, por baixo de seios que ainda não nos tinham
crescido. Quando chegámos ao Woolworth corremos à frente da minha mãe
e fomos direitas às prateleiras dos discos. Onde estava ela? Procurámos o
cabelo louro-platinado de corte à rapaz, os olhos espantosos, de um azul tão
claro que parecem cinzentos, e o rosto pequeno, andrógino, com o seu
queixinho arrebitado, entre Peter Pan e Alice. Mas não encontrámos
nenhuma imagem de Aimee, nua ou vestida: só o nome e o título de uma
canção ao alto no lado esquerdo da capa, enquanto o resto do espaço era
ocupado pela enigmática – para nós – ilustração de uma pirâmide com um
olho a flutuar, olho esse que era contido pelo vértice do triângulo. A capa
era de cor verde-sujo, e escritas por cima e por baixo da pirâmide estavam
algumas palavras numa língua que não sabíamos ler. Confusas, aliviadas,
levámos o disco à minha mãe, que o aproximou da cara – também era
ligeiramente míope, mas demasiado vaidosa para usar óculos –, franziu a
testa e perguntou se era «uma canção sobre o dinheiro». Eu fui muito
cautelosa na resposta. Sabia que a minha mãe era muito mais puritana em
questões de dinheiro do que em questões de sexo.
«Não é sobre nada. É só uma canção.»
«Achas que a tua amiga vai gostar?»
«Vai gostar, vai», disse Tracey. «Toda a gente adora. Podemos comprar
um para nós?»
Ainda de testa franzida, a minha mãe suspirou, foi buscar à prateleira
mais um exemplar, dirigiu-se à caixa e pagou os dois.

A festa era daquelas em que os pais se vinham embora – a minha mãe,


sempre desejosa de espreitar os interiores da classe média, ficou desiludida
– mas não me pareceu que fosse organizada como as festas que
conhecíamos, não se dançava nem havia jogos, e a mãe de Lily não estava
minimamente arranjada, quase parecia uma sem-abrigo, com o cabelo mal
penteado. Deixámos a minha mãe à porta depois de uma receção
embaraçosa – «Mas que elegantes que vocês vêm!», exclamou a mãe de
Lily ao ver-nos chegar –, após o que fomos acrescentadas ao monte de
crianças que já estavam na sala, todas raparigas, nenhuma no estilo frufru
rosa-e-lantejoulas em que Tracey ia vestida, mas também nenhuma de
vestidinho em estilo falso-vitoriano, de veludo preto com a gola branca,
como aquele que a minha mãe tinha «descoberto» para mim na loja social
do bairro. As outras raparigas estavam de calças de peitilho e ténis janotas,
ou saia de alças em cores alegres, e quando entrámos na sala todas
suspenderam o que estavam a fazer e viraram-se a olhar para nós. «Não
estão lindas?», repetiu a mãe de Lily e passou adiante, deixando-nos
entregues a nós mesmas. Éramos as únicas raparigas negras e, tirando Lily,
não conhecíamos ali ninguém. Tracey ficou logo abespinhada. No caminho
tínhamos discutido qual de nós ia entregar a Lily o presente que era de
ambas – obviamente Tracey tinha levado a melhor – mas agora largou o
single embrulhado para oferta em cima do sofá sem dizer nada, e quando
soube que filme íamos ver – O Livro da Selva – denunciou-o como «pueril»
e «um simples desenho animado» cheio de «animaizinhos estúpidos», num
tom de voz que de repente me pareceu muito alto, muito característico, com
muitas letras comidas. A mãe de Lily reapareceu. Encafuou-nos num carro
azul comprido, com várias fiadas de assentos, como um pequeno autocarro,
e, uma vez preenchidos estes lugares, a Tracey, a mim e a mais duas
raparigas mandou-nos sentar lá atrás, no porta-bagagens, que estava forrado
com uma manta aos quadrados imunda e cheia de pelos de cão. A minha
mãe dera-me uma nota de cinco libras para o caso de termos de pagar
alguma coisa, e eu tinha muito medo de a perder: estava constantemente a
tirá-la do bolso do casaco, alisava-a sobre o joelho e voltava a dobrá-la em
quatro. Enquanto isto, Tracey entretinha as outras duas mostrando-lhes o
que costumávamos fazer quando nos sentávamos nos últimos lugares do
autocarro que, uma vez por semana, nos levava ao parque de Paddington
para a aula de educação física: punha-se de joelhos – tanto quanto o espaço
permitia – encostava dois dedos em V a cada canto da boca e deitava a
língua de fora ao escandalizado condutor do carro que vinha atrás. Quando
parámos, cinco minutos depois, em Willesden Lane, fiquei aliviada por a
viagem ter chegado ao fim, mas desalentada com o destino. Pensava que
íamos a um daqueles cinemas bonitos do centro, mas estacionámos à porta
do pequeno Odeon do bairro, perto da estação de Kilburn High Road.
Tracey gostou: estava no seu território. Enquanto a mãe de Lily estava
distraída na bilheteira, ensinou as outras a roubar gomas sortidas sem pagar,
e depois, já dentro da sala às escuras, a sentar-se encavalitadas numa
cadeira com o assento dobrado para que quem estava atrás não visse o ecrã,
a dar pontapés na cadeira da frente até obrigar o ocupante a virar-se para
trás. «Já chega», dizia a mãe de Lily a cada passo, mas não conseguia fazer
valer a sua autoridade, de tão envergonhada que estava. Não queria que
fizéssemos barulho, mas ao mesmo tempo não era capaz de fazer o barulho
necessário para nos mandar parar de fazer barulho, e mal Tracey se
apercebeu disto – e se apercebeu, também, de que a mãe de Lily não tinha a
menor intenção de lhe bater ou de ralhar com ela ou de lhe pegar por uma
orelha e arrastá-la para fora do cinema, como as nossas mães teriam feito –
bem, nessa altura sentiu-se livre de fazer tudo. Continuou com os
comentários ao filme, ridicularizando o enredo e as canções e descrevendo
os muitos aspetos em que a narrativa se afastaria violentamente da visão de
Kipling e de Disney se estivesse no lugar de uma ou todas as personagens.
«Se eu fosse aquela serpente abria as mandíbulas e comia aquele palerma
de uma vez só!» ou «Se eu fosse aquele macaco matava aquele rapaz mal
ele me aparecesse à frente!» As outras participantes na festa estavam
delirantes com estas intervenções, e eu era quem dava as gargalhadas mais
altas.
Depois, já no carro, a mãe de Lily tentou encetar uma conversa civilizada
acerca dos méritos do filme. Algumas raparigas disseram coisas simpáticas,
até que Tracey, outra vez sentada lá atrás – eu tinha-a atraiçoado e mudado
para a segunda fila – tomou a palavra.
«Aquele... como era o nome dele? Mowgli? É parecido com o Kurshed,
não é? Da nossa turma. Não é?»
«Pois é», disse eu. «Parece mesmo aquele rapaz Kurshed da nossa
turma.»
A mãe de Lily mostrou um interesse exagerado, virou-se para trás no
momento em que parávamos num semáforo.
«Talvez os pais sejam indianos.»
«Nãã», disse Tracey tranquilamente, olhando lá para fora pela janela. «O
Kurshed é paqui.»
Regressámos a casa em silêncio.
Havia bolo, apesar de ser toscamente decorado e caseiro, e cantámos os
«Parabéns a você», mas ainda ficámos com meia hora até os pais nos irem
buscar e a mãe de Lily, que não estava a contar com isto, pareceu
preocupada e perguntou o que gostávamos de fazer. Pelas portas da cozinha
eu vi um espaço verde comprido, coberto de vinha virgem e arbustos, e
apetecia-me ir para lá, mas não era possível: estava muito frio. «Porque não
vão todas lá para cima explorar – ter uma aventura?» Reparei na surpresa de
Tracey perante a sugestão. Os adultos costumavam dizer-nos que «não nos
metêssemos em sarilhos» e «procurássemos alguma coisa para fazer» ou
«fizéssemos alguma coisa de útil», mas não estávamos habituadas a que nos
sugerissem – mandassem! – que fôssemos ter uma aventura. Era uma frase
de um mundo diferente. Lily – sempre graciosa, sempre afável, sempre
simpática – levou-nos a todas para o seu quarto e mostrou-nos os seus
brinquedos, velhos e novos, o que nós quiséssemos, sem sinal de
contrariedade ou possessividade. Até eu, que só tinha ido uma vez lá a casa,
conseguia sentir-me mais possessiva em relação às coisas de Lily do que a
própria Lily. Andei a mostrar a Tracey os muitos motivos de interesse do
quarto de Lily como se fossem meus, determinando quanto tempo ela podia
pegar neste ou naquele objeto, explicando-lhe a proveniência das coisas que
havia nas paredes. Mostrei-lhe o relógio Swatch gigante – e disse-lhe que
não devia tocar nele – e chamei-lhe a atenção para um cartaz de publicidade
a uma tourada, comprado durante umas férias recentes dos Binghams em
Espanha; por baixo do retrato do toureiro, em vez do nome dele, estava
impresso, em enormes e rebuscadas letras vermelhas, Lily Bingham. Queria
que Tracey ficasse tão espantada com isto como eu havia ficado na primeira
vez que o vi, mas ela limitou-se a encolher os ombros, virou-me as costas e
disse a Lily: «Tens um gravador? Vamos montar um espetáculo.»
Tracey era excelente em brincadeiras criativas, melhor do que eu, e a
brincadeira que preferia a todas as outras era «Montar um espetáculo».
Fazíamo-la muitas vezes, sempre só nós as duas, mas agora ela preparava-
se para recrutar aquela meia dúzia de raparigas para a «nossa» brincadeira:
mandou uma ao rés do chão buscar o single embrulhado para oferta que
seria a nossa banda sonora, pôs outras a fazer bilhetes para o espetáculo que
aí vinha, e a seguir um cartaz a anunciá-lo, outras a juntar travesseiros e
almofadas dos vários quartos para servirem de assentos, e Tracey indicou-
lhes onde haviam de deixar um espaço para o «palco». O espetáculo teria
lugar no quarto do irmão adolescente de Lily, onde estava o gravador. Ele
não estava em casa e nós servimo-nos do quarto como se tivéssemos um
direito natural sobre ele. Mas quando estava quase tudo preparado Tracey
informou abruptamente as colaboradoras de que afinal o espetáculo seria
feito apenas por ela e por mim – todas as outras fariam parte do público.
Quando algumas ousaram questionar esta política, Tracey, por sua vez,
questionou-as com agressividade. Tinham aulas de dança? Tinham
medalhas de ouro? Tantas como ela? Algumas desataram a chorar. Tracey
mudou ligeiramente de registo: fulana de tal podia tratar da «iluminação»,
sicrana do guarda-roupa e adereços ou apresentar o espetáculo, e Lily
Bingham podia filmar tudo com a máquina do pai. Tracey falou-lhes como
se fossem bebés e eu fiquei espantada com a rapidez com que elas
amoleceram. Assumiram as suas tolas funções fictícias e pareceram felizes.
Depois foi toda a gente enxotada para o quarto da Lily enquanto nós
«ensaiávamos». Foi então que ela me mostrou os «fatos» – duas
combinações de renda saídas da gaveta da roupa interior da Senhora
Bingham. Quando tentei abrir a boca já Tracey estava a tirar-me o vestido
pela cabeça.
«Tu ficas com a vermelha», disse.
Ligámos o gravador e ensaiámos. Eu sabia que havia alguma coisa que
não batia certo, que aquilo era diferente de todas as danças que havíamos
executado até então, mas percebi que não podia fazer nada. Tracey era,
como sempre, a coreógrafa: a minha única função era dançar o melhor que
sabia. Quando ela decidiu que estávamos prontas, o público foi convidado a
regressar ao quarto do irmão de Lily e sentar-se no chão. Lily ficou atrás, de
pé, com a pesada máquina sobre o ombro rosado e estreito, os olhos azul-
claros cheios de confusão – mesmo antes de começarmos a dançar – ao ver
duas raparigas vestidas com aquelas provocantes peças de roupa da mãe,
que provavelmente nunca na vida tinha visto. Premiu o botão que dizia
«Gravar» e com isso pôs em movimento uma cadeia de causa e efeito que,
mais de um quarto de século depois, acabou por assumir a forma de destino,
seria praticamente impossível não considerar que era o destino, mas que –
independentemente do que se pense do destino – se pode dizer com
segurança e de modo racional que teve uma consequência prática: agora não
preciso de descrever a dança propriamente dita. Mas nem tudo ficou
registado pela máquina de filmar. Quando chegámos ao coro final – o
momento em que eu estou escarranchada em cima de Tracey, naquela
cadeira – foi também o momento em que a mãe de Lily, que tinha subido
para nos dizer que a mãe de fulana tinha chegado, abriu a porta do quarto
do filho e viu-nos. É por isso que a filmagem acaba tão abruptamente. Ficou
especada na soleira da porta, imóvel como a mulher de Lot. Depois
explodiu. Zurziu-nos, despiu-nos as indumentárias, mandou o público voltar
para o quarto de Lily e ficou a vigiar-nos em silêncio enquanto voltávamos
a vestir os nossos estúpidos vestidos. Eu não parava de pedir desculpa.
Tracey, que normalmente respondia com remoques aos adultos em fúria,
não disse uma palavra, mas destilava desprezo em cada gesto, até os colãs
conseguiu vestir com sarcasmo. A campainha da porta voltou a tocar. A
mãe de Lily foi ver quem era. Nós não sabíamos se havíamos de ir atrás
dela ou não. Durante os quinze minutos seguintes, enquanto a campainha
tocava diversas vezes, ficámos quietas. Eu não fiz nada, limitei-me a ficar
ali, mas Tracey, com a imaginação que a caracterizava, fez três coisas. Tirou
a fita VHS da máquina de filmar, voltou a meter o single na capa e guardou
as duas coisas na bolsa de seda cor-de-rosa com atilho que a mãe achara
apropriada para lhe pendurar ao ombro.

A minha mãe, sempre atrasada, para tudo, foi a última a chegar. Foi
conduzida à nossa presença no primeiro andar, qual advogada que vem
conferenciar com as suas clientes através das grades de uma cela prisional,
enquanto a mãe de Lily fazia um relato muito circunstanciado das nossas
atividades, no qual se incluía a pergunta retórica: «Não lhe faz espécie onde
é que crianças desta idade vão buscar semelhantes ideias?» A minha mãe
passou à defesa: disse um impropério e as duas tiveram uma breve
discussão. Eu fiquei espantada. Naquele momento, a minha mãe
comportou-se como qualquer mãe que se vê confrontada com o mau
comportamento de um filho na escola – até voltou a usar algumas palavras
do patoá – e eu não estava habituada a vê-la perder a compostura. Agarrou-
nos pelas costas dos vestidos e voámos as três pela escada abaixo, mas a
mãe de Lily veio atrás de nós e no corredor repetiu aquilo que Tracey havia
dito sobre o Kurshed. Era o seu ás de trunfo. Tudo o resto a minha mãe
podia menosprezar como «típica moralidade burguesa», mas não podia
ignorar o «paqui». Naquela altura nós éramos «negros e asiáticos»,
assinalávamos o quadrado Negro e Asiático nos formulários médicos,
aderíamos aos grupos de apoio às famílias negras e asiáticas e
confinávamo-nos à secção para negros e asiáticos da biblioteca:
considerava-se que era uma questão de solidariedade. Mesmo assim, a
minha mãe defendeu Tracey, dizendo «É uma criança, só está a repetir
aquilo que ouviu», ao que a mãe de Lily respondeu, em voz baixa, «Não há
dúvida.» A minha mãe abriu a porta da rua e puxou-nos para o exterior
batendo a porta com estrondo. Uma vez cá fora, porém, toda a sua fúria se
virou contra nós, só contra nós, levou-nos como se fôssemos dois sacos de
lixo pela rua fora, aos berros. «Pensam que são iguais a elas? É isso que
pensam?» Lembro-me exatamente da sensação de ser arrastada, deixando a
marca dos calcanhares no chão, e de como fiquei totalmente perplexa com
as lágrimas nos olhos da minha mãe, a distorção que lhe desfeava a cara
bonita. Lembro-me de tudo o que se passou na festa do décimo aniversário
da Lily e não tenho memória absolutamente nenhuma do que se passou no
meu.
Quando chegámos à rua que passa entre o nosso complexo e o de Tracey,
a minha mãe largou a mão dela e deu-nos um sermão curto, mas devastador,
sobre a história dos epítetos raciais. Eu deixei tombar a cabeça e chorei em
plena rua. Tracey ficou impassível. Empinou o queixo e o narizinho de
leitão, esperou que o sermão acabasse e fitou a minha mãe.
«É só uma palavra», disse.
2

No dia em que soubemos que Aimee viria brevemente aos nossos


escritórios de Camden, em Hawley Lane, toda a gente foi afetada pela
notícia, ninguém ficou imune. Um pequeno grito de entusiasmo perpassou
pela sala de reuniões, e até os colaboradores mais experientes da YTV
levaram os copos de café aos lábios, lançaram o olhar pelo canal fétido e
sorriram ao lembrarem-se de uma versão anterior de si mesmos, dançando
ao som dos primeiros temas brejeiros de música disco de Aimee – em
crianças, nas suas salas de estar – ou rompendo com uma namorada de
faculdade ao som de uma das suas baladas sentimentais dos anos noventa.
Naqueles escritórios respeitava-se uma verdadeira estrela pop,
independentemente das preferências musicais de cada um, e por Aimee
havia um respeito especial: o seu destino e o da estação estavam ligados
desde o início. Era uma artista do vídeo até à medula. Era possível ouvir as
canções de Michael Jackson sem recordar as imagens que as
acompanhavam (o que talvez signifique apenas que a música dele tinha uma
vida real), mas a música de Aimee estava contida nos seus vídeos e às vezes
parecia só existir nesse mundo, e quando ouvíamos aquelas canções – numa
loja, num táxi, mesmo que fossem apenas as batidas reverberadas através
dos auriculares de um miúdo que passava – éramos remetidos acima de
tudo para uma memória visual, para o movimento da sua mão ou pernas ou
caixa torácica ou genitália, a cor de cabelo da altura, as roupas, aqueles
olhos frios. Por esta razão, Aimee – e todos os seus imitadores – eram, para
o bem e para o mal, os alicerces do nosso modelo de negócio. Sabíamos que
a YTV americana tinha sido construída, em parte, em torno da lenda de
Aimee, como um sacrário erigido para uma divindade mítica, e o facto de
ela se dignar entrar no nosso local de culto, britânico e muito mais modesto,
foi considerado um golpe de génio e fez-nos entrar a todos na nossa versão
de alerta máximo. A minha chefe de secção, Zoe, convocou uma reunião
separada só para a nossa equipa, porque em certo sentido Aimee vinha ter
connosco, Departamento de Relações com Talentos e Artistas, para gravar o
discurso de aceitação de um prémio que não ia poder receber pessoalmente
em Zurique no mês seguinte. E haveria certamente muitas mensagens a
gravar para vários mercados emergentes («Eu sou a Aimee e você está a ver
a YTV Japão!») e talvez, se conseguíssemos convencê-la, uma entrevista
para a ITV News, ou até uma atuação ao vivo, gravada na cave, para os
Dance Time Charts. A minha função era reunir todos os pedidos à medida
que iam chegando – dos nossos escritórios europeus em Espanha, França e
Alemanha e nos países nórdicos, da Austrália, de todos os outros pontos do
mundo – e apresentá-los num único documento a ser enviado por fax para a
equipa de Aimee em Nova Iorque, antes da vinda dela, que só aconteceria
daí a quatro semanas. E então, no decorrer da reunião, aconteceu uma coisa
maravilhosa: Zoe deixou-se deslizar da mesa em que estava sentada, de
calças de cabedal e top sem alças – por baixo do qual se tinha um vislumbre
de um abdómen escuro e musculado e de um piercing com um brilhante no
umbigo –, sacudiu a juba de leão de caracóis semicaribenhos, virou-se para
mim descontraidamente como se nada tivesse acontecido e disse: «Nesse
dia vais ter de a receber à porta e levá-la para o estúdio B12, andar com ela,
tratar de tudo o que ela precisar.»
Saí da sala de reuniões como a Audrey Hepburn a flutuar pelas escadas
acima em My Fair Lady, no meio de uma nuvem de música em crescendo,
pronta para percorrer todo o espaço aberto do nosso escritório a dançar,
rodopiar, rodopiar, rodopiar pela porta fora e todo o caminho até casa. Tinha
vinte e dois anos. Mas nem por isso fiquei particularmente surpreendida:
era como se tudo quanto tinha visto e experimentado no último ano
apontasse nesse sentido. Respirava-se um entusiasmo desmedido na YTV
naqueles dias finais dos anos noventa, um ambiente de sucesso imparável
construído sobre alicerces instáveis, de certo modo simbolizado pelo
edifício que ocupávamos: três andares e a cave dos antigos estúdios do
programa «WAKE UP BRITAIN» em Camden (ainda tínhamos um enorme
sol nascente, amarelo-ovo e agora completamente anacrónico, incrustado na
fachada). A VH1 estava acantonada no andar por cima de nós. As condutas
exteriores do nosso sistema de aquecimento, pintadas de cores primárias,
faziam lembrar um Pompidou dos pobres. Por dentro era tudo elegante e
moderno, iluminação suave e mobiliário escuro, antro de uma némesis de
James Bond. Naquele sítio começara por existir um salão de vendas de
automóveis em segunda mão – antes mesmo da TV de música ou da TV de
pequeno-almoço – e a escuridão interior parecia calculada para disfarçar a
construção tosca. As condutas de ventilação eram tão mal-acabadas que as
ratazanas subiam do Regent’s Canal e vinham fazer ninho dentro delas,
deixando lá as fezes. No verão – quando a ventilação estava ligada –
andares inteiros apanhavam gripes de verão. Quando rodávamos os
sofisticados reguladores de luminosidade, era frequente ficarmos com o
botão na mão.
Era uma empresa que apostava muito nas aparências. Vinte e tal
rececionistas passaram a assistentes de produção, simplesmente porque
pareciam «divertidos» ou «à altura». A minha chefe de trinta e um anos
tinha passado de estagiária de produção a Chefe do Departamento de
Talentos em apenas quatro anos e meio. Eu própria, nos oito meses que lá
trabalhei, fui promovida duas vezes. Às vezes pergunto a mim mesma o que
teria acontecido se lá tivesse ficado – se o digital não tivesse matado as
estrelas de vídeo. Na altura senti-me com sorte: não tinha grandes planos de
carreira, mas mesmo assim a minha carreira avançava. A bebida contribuiu
para isso. Em Hawley Lane era obrigatório beber: sair para ir beber uns
copos, aguentar bem o álcool, beber mais do que os outros, nunca recusar
uma bebida, mesmo que estivesse a antibióticos, mesmo que estivesse
doente. Desejosa, naquela fase da minha vida, de evitar serões a sós com o
meu pai, ia a todos os encontros de copos e festas da empresa, e aguentava
bem o álcool, vinha aperfeiçoando esse talento muito britânico desde os
treze anos de idade. A grande diferença na YTV era que as bebidas eram de
graça. O dinheiro corria a jorros pela empresa. «Brindes» e «bar aberto»:
dois dos substantivos que mais se ouviam no escritório. Em comparação
com os empregos que tivera antes – até em comparação com a faculdade – a
sensação era de um prolongado período de recreio, em que estávamos
sempre à espera de que chegassem os adultos, que nunca apareciam.
Uma das minhas primeiras tarefas foi organizar as listas de convidados
para as festas do departamento, aproximadamente uma por mês.
Realizavam-se normalmente em sítios caros do centro da cidade, e havia
sempre montanhas de brindes: T-shirts, sapatos de ténis, leitores MiniDisc,
pilhas de CD. Oficialmente patrocinadas por uma ou outra marca de vodca
e extraoficialmente pelos cartéis de droga colombianos. Passávamos a noite
a correr em magotes para os quartos de banho. Na manhã seguinte,
expressões de embaraço, narizes a sangrar, sapatos altos na mão. Também
me competia registar os recibos de mini-cabs da empresa. As pessoas
chamavam mini-cabs para regressar de encontros noturnos ou para os
aeroportos quando iam de férias. Eu chamei uma vez um mini-cab para ir a
casa do tio Lambert. Houve um executivo que ficou famoso em toda a
empresa por ter ido de mini-cab para Manchester, porque acordou tarde e
perdeu o comboio. Já depois de ter saído da empresa, ouvi dizer que tinham
adotado medidas de restrição, mas naquele ano a despesa com transportes
ultrapassou as cem mil libras. Um dia perguntei a Zoe qual era a explicação
para tudo aquilo e ela disse-me que a fita VHS – que os empregados
transportavam frequentemente consigo – podia ficar «corrompida» se
fossem de metro. Mas quase nenhum dos nossos colaboradores sabia que
esse era o seu álibi oficial, viajar de graça era para eles um dado adquirido,
uma espécie de direito de quem trabalhava «nos media», e que
consideravam mais do que merecido. Certamente em comparação com
aquilo que antigos colegas de faculdade – que tinham enveredado pela
banca ou pela advocacia – encontravam todos os anos pelo Natal nos
envelopes dos seus prémios.
Ao menos os quadros bancários e os advogados trabalhavam horas a fio.
A nós sobrava-nos tempo. No meu caso, as chamadas ficavam despachadas
por volta das onze e meia – considerando que chegava ao meu posto de
trabalho por volta das dez. Como o tempo era diferente! Quando tirava a
minha hora e meia para almoço era só isso que fazia com ela: almoçar. No
escritório não havia emails, ainda, e eu não tinha telemóvel. Saía pelo cais
de carga, diretamente para o canal, e caminhava pela margem, de sanduíche
tipicamente britânica, embrulhada em plástico, na mão, absorvendo o dia,
as transações de droga a céu aberto e os gordos patos-bravos que grasnavam
a pedir as migalhas dos turistas, as casas-barco decoradas, e os jovens e
tristes góticos sentados na ponte com as pernas penduradas em vez de
estarem na escola, sombras daquilo que eu fora dez anos antes. Havia dias
em que ia até ao jardim zoológico. Aí sentava-me na margem relvada e
olhava para o aviário de Snowdon, à volta do qual voava um bando de aves
africanas, brancas com bicos vermelho-sangue. Só viria a saber como se
chamavam quando os vi no seu continente, onde, de resto, tinham um nome
diferente. Depois do almoço regressava descontraidamente a pé, às vezes
com um livro, sem pressa nenhuma, e o que hoje me espanta é que não
achava que nada disto fosse invulgar ou um privilégio especial. Também eu
considerava que o tempo livre era um direito divino. Sim, em comparação
com os excessos dos meus colegas considerava-me trabalhadora, séria, com
um sentido das proporções que eles não tinham, fruto da forma como fora
educada. Demasiado recente para participar em qualquer das suas múltiplas
viagens de «reforço das relações interpessoais» – era eu que lhes reservava
os voos – para Viena, para Budapeste, para Nova Iorque – e entre mim e
mim espantava-me com o preço de um lugar em classe executiva, com a
própria existência de uma classe executiva, sempre incapaz de decidir,
quando registava estas «despesas», se este tipo de coisa sempre havia
acontecido, à minha volta, durante a minha infância (mas sempre invisível
aos meus olhos, a um nível acima da minha consciência), ou se tinha
chegado à idade adulta num momento especialmente exaltante da história
de Inglaterra, um período em que o dinheiro tinha um novo significado e
novos usos e o «brinde» se tinha transformado numa forma de princípio
social, desconhecido no meu bairro mas normal fora dele. «Brindismo»: a
prática de oferecer coisas gratuitas às pessoas que não precisam delas para
nada. Pensei em todos os miúdos da escola que podiam facilmente ter feito
aquilo que eu fazia agora – que sabiam muito mais de música do que eu,
que eram genuinamente cool, verdadeiramente «street», como as pessoas
pensavam que eu era, mas não era – mas para quem era tão natural
aparecerem nestes escritórios como irem à Lua. E perguntava-me: porquê
eu?
Nas grandes pilhas de revistas lustrosas, também elas brindes, espalhadas
por todo o escritório, líamos agora que a Britânia era cool – ou alguma
versão daquela que até a mim me parecia tudo menos cool – e ao fim de
algum tempo começámos a perceber que devia ser precisamente esta onda
de otimismo que a empresa estava a cavalgar. Otimismo matizado de
nostalgia: os rapazes do nosso escritório pareciam mods recauchutados –
com cortes de cabelo a imitar os Kinks, de trinta anos antes – e as raparigas
eram loiras artificiais tipo Julie Christie, de saia curta e olhos negros
esborratados. Toda a gente ia para o escritório de Vespa, todos os cubículos
pareciam ter uma foto de Michael Caine em Como Conquistar as Mulheres
ou Um Golpe à Italiana. Acontece que era a nostalgia de um tempo e de
uma cultura que para mim não tinham nenhum significado, e talvez por isso
os meus colegas me achassem cool, por virtude de não ser como eles. Em
cima da minha secretária apareciam novidades do hip-hop americano que
eram lá postas por executivos de meia-idade que partiam do princípio de
que eu devia ter opiniões informadas sobre ele e, na verdade, o pouco que
sabia parecia muito naquele contexto. A própria missão de ciceronear
Aimee naquele dia foi-me atribuída, tenho a certeza, porque me
consideravam demasiado cool para me importar com isso. A minha opinião
negativa sobre a maioria das questões já era dada como garantida: «Oh,
não, nem vale a pena perguntar-lhe, não ia gostar.» Dito de forma irónica,
como tudo naquele tempo, mas com um laivo frio de orgulho defensivo.
O meu trunfo mais inesperado era a minha chefe, Zoe. Também ela tinha
começado como estagiária, mas sem bens de fortuna pessoal nem pais
endinheirados, como todos os colegas, nem sequer a poupança que era viver
em casa dos pais, como eu. Tinha vivido num tugúrio imundo da zona de
Chalk Farm, tinha trabalhado mais de um ano sem receber ordenado, e
mesmo assim comparecia todas as manhãs às nove – na YTV a
pontualidade era considerada uma virtude quase inconcebível – onde «se
matava a trabalhar». Inicialmente entregue a famílias de acolhimento,
saltando de casa em casa em Westminster, já tinha ouvido falar dela a outros
miúdos que conhecia e haviam passado pelo mesmo. Tinha a mesma avidez
desenfreada por tudo a que pudesse deitar a mão, e uma personalidade
distante, profundamente maníaca – traços que às vezes se encontram em
repórteres de guerra, ou nos próprios combatentes. Teria todas as razões
para ter medo da vida. Mas era temerariamente audaciosa. O oposto de
mim. Apesar disso, no escritório, Zoe e eu éramos vistas como
intermutáveis. As suas opções políticas, tal como as minhas, não
levantavam dúvidas a ninguém, se bem que no caso dela o escritório
estivesse muito enganado: era uma thatcheriana acérrima, daquelas que
achavam que, por ela ter subido na vida a pulso, o melhor que toda a gente
podia fazer era seguir-lhe o exemplo. Por qualquer razão estranha, «revia-se
em mim». Eu admirava-lhe a tenacidade, mas não me revia nela. Afinal de
contas, tinha andado na universidade e ela não; ela era viciada em cocaína,
eu não era; ela vestia-se como a Spice Girl com quem se parecia, e não
como a executiva que de facto era; contava anedotas de sexo que não
tinham piada, dormia com os estagiários mais novos, mais janotas, de
cabelos mais soltos, mais brancos e mais independentes; eu era
pudicamente crítica. Apesar de tudo, ela gostava de mim. Quando estava
embriagada ou pedrada, fazia questão de me lembrar que éramos irmãs,
duas raparigas mestiças em dívida uma para com a outra. Perto do Natal
enviou-me aos nossos European Music Awards, em Salzburgo, onde uma
das minhas missões era acompanhar Whitney Houston a um teste de som.
Não me lembro da canção que ela cantou – nunca, de resto, gostei das
canções dela – mas naquela sala de concerto vazia, ouvindo-a cantar sem
acompanhamento, sem nenhum tipo de apoio, descobri que a extrema
beleza da voz, a monumental dose de soul que continha, a dor nela
implícita, desmentia todas as minhas opiniões conscientes, ou o que quer
que as pessoas queiram dizer quando falam do seu próprio «bom gosto», e
entrava-me diretamente na medula, onde percutia um músculo e me
desarmava. Lá atrás, junto ao sinal de SAÍDA, rompi em lágrimas. Quando
voltei a Hawley Lane já a história lá tinha chegado, mas isso não me
prejudicou em nada, antes pelo contrário – foi interpretado como um sinal
de que eu era uma verdadeira crente.
3

Agora parece divertido, quase patético – e talvez só a tecnologia consiga


operar esta vingança cómica sobre as nossas memórias – mas, quando
estávamos para receber um artista e tínhamos de elaborar um dossiê sobre
ele, para dar aos entrevistadores e aos publicitários e a outras pessoas,
íamos para uma pequena biblioteca que havia na cave e tirávamos da
prateleira uma enciclopédia em quatro volumes intitulada The Biography of
Rock. Todos os dados da entrada sobre Aimee, mais e menos importantes, já
eram do meu conhecimento – nascida em Bendigo, alérgica a nozes –
exceto num pormenor: a sua cor preferida era o verde. Tomei as minhas
notas, à mão, reuni todos os pedidos relevantes, fui para a sala de cópias,
pus-me ao pé de uma ruidosa máquina de fax e fui enfiando lentamente os
documentos lá para dentro, a pensar na pessoa que em Nova Iorque – para
mim uma cidade de sonho – estaria junto a uma máquina parecida à espera
de que o documento chegasse, exatamente ao mesmo tempo que eu o
enviava, o que tornava a operação profundamente moderna, uma vitória
sobre a distância e o tempo. E depois, é claro, para recebê-la ia precisar de
roupas novas, talvez um penteado novo, uma forma diferente de falar e
andar, uma atitude perante a vida completamente nova. Que vestir? O único
sítio onde então fazia compras era o Mercado de Camden, com grande
satisfação descobri no meio daquele labirinto de Doc Martens e xailes
hippies um enorme par de calças militares feitas de um tecido sedoso de
paraquedas, um top verde sem alças, justinho – que tinha como bónus a
capa do álbum The Low End Theory6 em reluzente relevo preto, verde e
vermelho – e um par de Air Jordans espaciais, também verdes. Rematei
com uma falsa argola de nariz. Nostálgica e futurista, hip-hop e indie, riot
girl e violent femme. As mulheres costumam convencer-se de que a roupa
resolve um problema, de uma forma ou de outra, mas na terça-feira anterior
à chegada de Aimee eu apercebi-me de que nada daquilo que vestia iria
ajudar-me. Sentei-me diante do meu gigantesco monitor cinzento a ouvir a
vibração do modem, a pensar em quinta-feira e, distraidamente, a digitar o
nome completo de Tracey na pequena caixa branca, vezes sem conta. Era o
que fazia no trabalho quando estava aborrecida ou tensa, embora de facto
nunca me aliviasse uma coisa nem outra. Já tinha feito aquilo muitas vezes,
quando abria o Netscape, esperava que se estabelecesse a ligação
interminavelmente lenta e encontrava sempre as mesmas três pequenas ilhas
de informação: o currículo profissional de Tracey, a sua página pessoal na
Internet e uma sala de conversação que ela frequentava, sob o pseudónimo
Truthteller_LeGon. O currículo era estático, nunca mudava. Referia a sua
participação como corista no musical Garotos e Garotas no ano anterior,
mas nunca eram acrescentados novos espetáculos, não apareciam
novidades. A página pessoal estava sempre a mudar. Havia dias em que a
visitava duas vezes e descobria que a canção era diferente ou que o
grafismo com girândolas de fogo de artifício tinha sido substituído por
arcos-íris em forma de coração, que acendiam e apagavam. Era nesta página
que, um mês antes, ela havia feito referência à sala de conversação, com
uma nota em hiperligação – Às vezes a verdade custa a ouvir!!! – e esta
simples referência foi quanto me bastou: a porta estava aberta e comecei a
passar por lá várias vezes por semana. Não creio que ninguém que seguisse
aquela ligação – a não ser eu – tivesse descoberto que quem «dizia a
verdade» naquela conversa bizarra era Tracey em pessoa. Mas também
ninguém lia a página, que eu soubesse. Havia nisto uma pureza austera e
triste: ninguém ouvia as canções que ela escolhia, nunca ninguém, a não ser
eu, lia as palavras que escrevia – quase sempre aforismos banais («O Arco
do Universo Moral é Comprido, mas Curva-se na Direção da Justiça»). Só
naquela sala de conversação parecia estar no mundo, embora fosse um
mundo bizarro, cheio de vozes ecoantes de pessoas que aparentemente já se
tinham posto de acordo. Pelo que me era dado perceber, Tracey passava
uma assustadora quantidade de tempo naquela sala, principalmente a altas
horas da noite, e entretanto eu já tinha pesquisado todos os seus
comentários, atuais e arquivados, até conseguir descobrir a lógica de tudo
aquilo – talvez seja melhor dizer que deixei de ficar escandalizada – e
identificar e apreciar a lógica de argumentação subjacente. Passei a ter
menos vontade de contar histórias aos meus colegas sobre a minha ex-
amiga maluca, Tracey, as suas aventuras surreais na sala de conversação, as
suas obsessões apocalíticas. Não lhe tinha perdoado – nem a tinha
esquecido – mas tornou-se desagradável usá-la daquela maneira.
Um dos aspetos mais estranhos da situação era que o homem sob cuja
influência ela parecia estar, o seu guru, fora em tempos jornalista num
programa de televisão matinal, trabalhara no edifício onde eu agora
trabalhava, e lembro-me de, quando éramos pequenas, o termos visto
muitas vezes na televisão, as duas sentadas com as tigelas de cereais nos
joelhos, à espera de que o seu enfadonho programa para adultos terminasse
e começassem os nossos desenhos animados de sábado de manhã. Uma vez,
durante as minhas primeiras férias de inverno da faculdade, fui comprar uns
manuais a uma livraria de Finchley Road, que fazia parte de uma cadeia, e,
enquanto deambulava pela secção de filmes, vi-o em carne e osso, a
apresentar um dos seus livros num canto recuado da gigantesca livraria.
Estava sentado a uma mesa branca e simples, todo vestido de branco, com o
cabelo prematuramente embranquecido, diante de uma plateia razoável.
Duas empregadas da livraria pararam ao pé de mim e de trás das estantes
ficaram a observar aquele ajuntamento peculiar. Estavam a rir-se dele. Mas
a mim, mais do que aquilo que ele estava a dizer, impressionava-me a
estranha composição da plateia. Havia algumas mulheres brancas de meia-
idade, nos seus confortáveis fatos de treino decorados com motivos
natalícios, que em nada diferiam das donas de casa que dez anos antes
teriam gostado dele, mas a maior parte da multidão ouvinte era, de longe,
constituída por homens negros e jovens, mais ou menos da minha idade,
com exemplares muito usados dos livros dele em cima dos joelhos e
escutando com uma absoluta concentração e determinação uma rebuscada
teoria da conspiração. Que o mundo era governado por lagartos com a
forma de homens: os Rockefellers eram lagartos, e os Kennedys, e quase
toda a gente da Goldman Sachs, e William Hearst tinha sido um lagarto, e
Ronald Reagan e Napoleão – era uma conspiração universal de lagartos. As
empregadas acabaram por se cansar da galhofa e afastaram-se. Eu fiquei até
ao fim, profundamente perturbada com aquilo a que tinha assistido, sem
saber o que pensar. Só mais tarde, quando comecei a ler os comentários de
Tracey – que eram, se conseguíssemos abstrair da disparatada premissa
inicial, notáveis no pormenor e na erudição perversa, estabelecendo
ligações entre muitos e diferentes períodos e ideias e factos históricos,
conjugando-os a todos numa espécie de teoria de tudo que, mesmo sendo
comicamente errada, pressupunha uma certa profundidade de estudo e uma
atenção persistente – sim, só então senti que compreendia melhor a razão
pela qual todos aqueles jovens de ar compenetrado se tinham reunido na
livraria naquele dia. Passei a ser capaz de ler nas entrelinhas. Afinal de
contas, não era tudo uma forma de explicar o poder? O poder que sem
dúvida existe no mundo? Que está na mão de poucos e do qual a maioria
nunca se aproxima? Um poder de que a minha ex-amiga deve ter sentido,
naquela altura da sua vida, imensa falta?
«Ei, que raio é isso?»
Virei-me na cadeira giratória e vi que tinha Zoe atrás de mim, a olhar
atentamente para uma imagem intermitente de um lagarto que tinha, no alto
da sua cabeça de lagarto, as Joias da Coroa. Minimizei a página.
«Maquetas de álbuns. Más.»
«Escuta, na quinta-feira de manhã – entras em ação, já está confirmado.
Estás preparada? Tens tudo o que precisas?»
«Não te preocupes. Vai correr bem.»
«Eu sei que vai. Mas se precisares de um empurrãozinho», disse Zoe,
batendo na asa do nariz, «é só dizeres.»

Não chegou a esse ponto. É difícil recordar exatamente a que ponto


chegou. A memória que guardo disso e aquela que guardo de Aimee nunca
se sobrepuseram muito. Ouvia-a dizer que me tinha contratado porque
naquele dia sentira que «havia entre nós uma comunicação imediata» ou,
outras vezes, porque as minhas capacidades a tinham impressionado. Eu
acho que foi por ter sido involuntariamente indelicada com ela, coisa que
poucas pessoas eram naquela fase da sua vida, e na minha indelicadeza
devo ter-me alojado no seu cérebro. Quinze dias depois, quando de repente
se viu na necessidade de uma nova assistente, jovem, lá estava eu, alojada
na sua cabeça. Saiu de um automóvel com os vidros escurecidos a meio de
uma discussão com a sua assistente de então, Melanie Wu. Dois passos
atrás de ambas vinha a empresária, Judy Ryan, aos berros para dentro de um
telemóvel. A primeira coisa de todas as que ouvi Aimee dizer foi um
raspanete: «Tudo quanto neste momento sai da tua boca é-me
completamente inútil.» Reparei que já não tinha sotaque australiano, mas
também não era bem americano nem bem britânico, era global: era Nova
Iorque e Paris e Moscovo e LA e Londres, tudo junto. É claro que hoje em
dia há muita gente a falar assim, mas a versão de Aimee foi a primeira que
ouvi. «És o contrário de útil», disse então, ao que Melanie respondeu: «Não
tenho dúvida nenhuma.» Momentos depois a pobre rapariga estava diante
de mim, baixando os olhos para o meu peito à procura de uma placa de
identificação, e quando voltou a levantá-los vi que estava destroçada,
fazendo um esforço para não chorar. «Portanto estamos dentro do horário»,
disse, com a firmeza possível, «e era ótimo se assim pudéssemos continuar,
não era?»
Íamos as quatro no elevador, em silêncio. Eu estava decidida a falar, mas
antes que conseguisse fazê-lo Aimee virou-se para mim e fez beicinho ao
reparar no meu top, como um adolescente bonito que faz uma birra.
«Escolha interessante», disse, para Judy. «Usar a camisa de outro artista
quando vem receber uma artista? Profissional.»
Eu baixei os olhos e corei.
«Não! De maneira nenhuma, Miss – quer dizer, Senhora – Aimee. Não
quis fazer nenhuma...»
Judy soltou uma gargalhada sonora e única, como um balido de foca. Eu
tentei dizer mais qualquer coisa, mas as portas do elevador abriram-se e
Aimee saiu.
Para chegarmos aos locais dos nossos vários compromissos tivemos de
percorrer os corredores, e nestes havia filas de pessoas, parecia o Mall no
dia do funeral de Diana. Pelos vistos, ninguém estava a trabalhar. Sempre
que parávamos num estúdio, toda a gente perdia imediatamente a
serenidade, independentemente da respetiva posição na hierarquia. Vi um
diretor-geral contar a Aimee que uma das baladas dela tinha sido a primeira
dança no seu casamento. Ouvi, cheia de vergonha, Zoe lançar-se num longo
relato da ressonância pessoal que «Move with Me» teve nela, de como a
tinha ajudado a fazer-se mulher, e a compreender o poder das mulheres, e a
não ter medo de ser mulher, e por aí fora. Quando finalmente nos fomos
embora dali, por outro corredor e outro elevador, a caminho da cave – onde
Aimee tinha, para gáudio de Zoe, acedido a gravar uma curta entrevista –
ganhei coragem para dizer, no jeito enfastiado com a vida próprio de uma
rapariga de vinte anos, quão aborrecido imaginava que fosse para ela ouvir
as pessoas dizerem-lhe aquele género de coisas, dia e noite, noite e dia.
«Fique sabendo, Pequena Miss Deusa Verde, que adoro isso.»
«Ah sim? Bem, eu só pensei que...»
«A menina só pensou que eu desprezava a minha gente.»
«Não! Só que... eu...»
«Sabe, lá porque não faz parte da minha gente não quer dizer que não seja
gente boa. Cada qual tem a sua tribo. Afinal a que tribo pertence a
menina?» Mirou-me de alto a baixo uma segunda vez, lentamente. «Pronto,
está bem. Já sabemos.»
«Quer dizer – musicalmente?», perguntei, e cometi o erro de olhar de
relance para Melanie Wu, por cuja expressão percebi que a conversa devia
ter terminado muitos minutos antes, nem sequer devia ter começado.
Aimee suspirou: «É claro.»
«Bem... muitas coisas... Acho que gosto muito da música mais antiga,
tipo Billie Holiday. Ou Sarah Vaughan. Bessie Smith. Nina. Cantoras a
sério. Quer dizer... não aquela... quer dizer, sinto que...»
«Mm, corrijam-me se eu estiver errada», disse Judy, com um forte
sotaque australiano que as décadas entretanto decorridas haviam deixado
intacto. «A entrevista não vai decorrer neste elevador, pois não?
Obrigada.»
Saímos na cave. Eu sentia-me envergonhada e tentei sair antes de toda a
gente, mas Aimee passou à frente de Judy e enfiou-me o braço. Senti o
coração subir-me à garganta, como as canções antigas dizem que pode
acontecer. Baixei os olhos – ela só mede um metro e cinquenta e cinco – e
pela primeira vez vi aquela cara de perto, dir-se-ia que ao mesmo tempo
masculina e feminina, os olhos de uma beleza gélida, cinzenta, felina,
deixados assim para o resto do mundo os colorir. A australiana mais pálida
que jamais vi. Às vezes, sem maquilhagem, até parecia que não tinha
nascido num planeta quente, e tomava precauções para se manter assim,
protegendo-se constantemente do sol. Tinha qualquer coisa de exótico, de
alguém que pertence a uma tribo de uma pessoa só. Quase sem dar por isso,
sorri. Ela retribuiu o sorriso.
«Estava a dizer que?», disse ela.
«Oh! Eu... sinto que as vozes são como... são assim como...»
Ela voltou a suspirar, fingindo olhar para um relógio inexistente.
«Penso que as vozes são como as roupas», disse eu com convicção, como
se fosse uma ideia em que andava a pensar há anos e não uma coisa que me
tinha ocorrido de repente. «Portanto, se virmos uma foto de 1968 sabemos
que é 68 pela forma como as pessoas estão vestidas, se ouvirmos a Janis
cantar sabemos que é 68. A voz dela é um sinal dos tempos. É assim como
a história ou... coisa parecida.»
Aimee levantou uma sobrancelha devastadora. «Estou a ver.» Largou-me
o braço. «Mas a minha voz», disse, com igual convicção, «a minha voz é o
tempo presente. Se a si lhe soa como um computador, bem, lamento, mas
isso é porque está no tempo certo. Pode não gostar, pode estar a viver no
passado, mas eu estou a cantar a porra deste tempo, neste momento
exato.»
«Mas eu gosto da sua música!»
Ela voltou a fazer o engraçado beicinho de adolescente.
«Mas não tanto como gosta dos Tribe. Ou da merda dos Lady Day.»
Judy veio a correr atrás de nós: «Desculpem, sabem para que estúdio
vamos, ou querem que eu...»
«Hey, Jude! Estou a conversar com esta jovem!»
Tínhamos chegado ao estúdio. Abri a porta para elas entrarem.
«Ouça, só queria dizer que entrei de facto com o pé... de facto, Miss...
quer dizer... Aimee... eu tinha dez anos quando saiu o seu primeiro single –
comprei-o. Para mim é uma loucura estar aqui consigo. Faço parte da sua
gente!»
Ela voltou a sorrir-me: havia uma espécie de sedução na forma como
falava comigo, na forma como falava com toda a gente. Pegou-me
suavemente no queixo.
«Não acredito», disse, tirou-me a argola falsa do nariz com um
movimento rápido e entregou-ma.
6 Álbum da banda A Tribe Called Quest. (N. do T.)
4

Agora ali está Aimee, na parede de Tracey – evidentemente. Dividiu o


espaço com Michael e Janet Jackson, Prince, Madonna, James Brown. Ao
longo do verão transformou o quarto numa espécie de santuário dedicado a
estas pessoas, os seus dançarinos favoritos, decorado com muitos e
lustrosos cartazes deles, todos captados em pleno movimento, pelo que as
paredes tinham o aspeto de hieróglifos, para mim indecifráveis, mas nem
por isso deixavam de ser alguma forma de mensagem, feita de gestos,
cotovelos e pernas fletidos, dedos estendidos, projeções pélvicas. Como não
gostava de poses publicitárias, escolhia fotogramas de concertos a que não
tínhamos hipótese de assistir, daqueles em que até se via o suor no rosto de
um dançarino. Estes, alegava, eram «autênticos». O meu quarto também era
um santuário, mas eu era refém da fantasia, ia à biblioteca e trazia de lá
velhas biografias dos anos setenta dos grandes ídolos da MGM e da RKO,
arrancava os seus retratos melodramáticos e colava-os na parede com fita
adesiva. Foi assim que descobri os Nicholas Brothers, Fayard e Harold:
uma foto deles no ar, fazendo espargatas, assinalava a entrada no meu
quarto, saltando por cima do aro da porta. Fiquei a saber que eram
autodidatas, e apesar de dançarem divinalmente não tinham nenhuma
espécie de educação formal. Sentia por eles uma espécie de orgulho
possessivo, como se fossem meus irmãos, como se fossem da família.
Tentava de todas as maneiras interessar Tracey – com qual dos irmãos
gostava de se casar? qual deles gostava de beijar? – mas ela já não
aguentava nem o mais pequeno clipe de filme a preto e branco, tudo o que
fosse a preto e branco aborrecia-a. Não era «autêntico» – faltavam ali
muitas coisas, havia ali muitas partes artificiais. Queria ver um dançarino
em palco, a transpirar, autêntico, não aperaltado, de cartola e asas de grilo.
Mas a mim a elegância seduzia-me. Gostava da forma como ela escondia a
dor.
Uma noite sonhei com o Cotton Club: Cab Calloway estava lá, e Harold e
Fayard, e eu estava num pódio com um lírio atrás da orelha. No meu sonho
éramos todos elegantes e ninguém sentia dor, nunca tínhamos ilustrado as
páginas tristes dos livros de história que a minha mãe me comprava, nunca
ninguém nos tinha chamado feios ou estúpidos, nunca tínhamos entrado nos
teatros pela porta dos fundos, bebido por bebedouros separados ou tomado
assento nos bancos de trás de nenhum autocarro. Nenhum dos nossos tinha
alguma vez sido pendurado pelo pescoço numa árvore, nem atirado de
repente borda fora, algemado, para a água escura – não, no meu sonho
éramos de ouro! Não havia ninguém mais belo e elegante do que nós,
éramos um povo abençoado, onde quer que nos encontrassem, em Nairobi,
Paris, Berlim, Londres ou, esta noite, no Harlem. Mas quando a orquestra
começava a tocar, e o meu público se sentava às mesinhas com bebidas nas
mãos, felizes consigo mesmos, à espera de que eu, sua irmã, cantasse, abria
a boca e não saía nenhum som. Acordei e descobri que tinha urinado na
cama. Tinha onze anos.
A minha mãe tentou ajudar, à sua maneira. Olha bem para o Cotton Club,
disse, está aí a Renascença do Harlem. Repara: estão lá o Langston Hughes
e o Paul Robeson. Olha bem para E Tudo o Vento Levou: está lá a NAACP7.
Mas na altura as ideias políticas e literárias da minha mãe interessavam-me
menos do que os braços e as pernas, o ritmo e a canção, a seda vermelha do
saiote de Mammy ou o timbre indomável da voz de Prissy. O tipo de
informação que procurava, que achava que me era necessária para me
escorar, fui antes buscá-la a um livro antigo, roubado na biblioteca – The
History of Dance. Fiquei a conhecer passos que foram transmitidos de
século em século, ao longo de gerações. Uma história diferente daquela que
a minha mãe me contava, a história que quase não está escrita – que é
sentida. E parecia-me muito importante, naquela altura, que Tracey sentisse
tudo aquilo que eu estava a sentir, e ao mesmo tempo que eu o sentia,
mesmo que tivesse deixado de lhe interessar. Fui a correr até casa dela,
irrompi-lhe pelo quarto e disse, sabes, quando fazes a espargata (era a única
aluna de dança de Miss Isabel que sabia fazê-la), sabes que a espargata que
fazes e dizias que o teu pai também sabe fazê-la, e recebeste isso dele, e ele
recebeu-o do Michael Jackson, e o Jackson do Prince e talvez do James
Brown, pois bem, todos o receberam dos Nicholas Brothers, os Nicholas
Brothers são os originais, são os primeiros dos primeiros, e portanto,
mesmo que não saibas ou digas que não queres saber, continuas a receber
isso deles. Ela estava a fumar um cigarro da mãe à janela do quarto. Ao
fazê-lo parecia muito mais velha do que eu, mais parecia ter quarenta e
cinco anos do que onze, até expelia o fumo por aquelas narinas enfunadas, e
enquanto eu proclamava esta coisa supostamente importantíssima que tinha
ido dizer-lhe sentia as palavras desfazerem-se em cinza na boca. Aliás, nem
sequer sabia o que estava a dizer ou o que queria dizer com aquilo. Para
evitar que o fumo invadisse o quarto, ela mantinha-se de costas para mim,
mas quando acabei de marcar a minha posição, se era disso que se tratava,
virou-se para mim e disse, com grande frieza, como se fôssemos duas
completas desconhecidas, «Nunca mais voltes a falar do meu pai.»
7 National Association for the Advancement of Colored People (Associação Nacional para o
Progresso das Pessoas de Cor). (N. do T.)
5

«Isto não está a resultar.»


Ainda só tinha passado cerca de um mês desde que eu começara a
trabalhar com ela – com Aimee – e mal ouvi isto dito em voz alta percebi
que ela tinha razão, não estava a resultar, e o problema era eu. Era jovem e
inexperiente, e não parecia capaz de encontrar o caminho de regresso
àquela impressão que tivera, no dia em que nos conhecemos, de que talvez
ela fosse um ser humano como qualquer outro. Mas à minha reação
instintiva tinham-se sobreposto as reações de outras pessoas – ex-colegas,
antigos companheiros de escola, os meus pais – e cada uma tinha o seu
efeito, cada manifestação de espanto ou gargalhada de incredulidade, de tal
maneira que agora, todas as manhãs, quando chegava à casa de Aimee em
Knightsbridge ou ao seu escritório em Chelsea, tinha de me debater com
uma fortíssima sensação de surrealidade. Que estava ali a fazer? Com
frequência gaguejava ao falar, ou esquecia coisas importantes que ela me
tinha dito. Perdia o fio à meada durante teleconferências, demasiado
distraída por uma voz interior que não parava de dizer: isto não é real, nada
disto é real, é tudo fruto da tua imaginação pueril. Era para mim uma
surpresa ao fim de um dia fechar a pesada porta daquela casa georgiana e
verificar que afinal não estava numa cidade imaginária, mas sim em
Londres e a poucos passos do metro de Piccadilly. Sentava-me ao lado das
outras pessoas que regressavam a casa e liam o jornal gratuito, de que às
vezes também pegava num exemplar, mas que davam a sensação de que já
vinham a viajar de mais longe: não só do centro para os subúrbios, mas de
regresso de outro mundo ao seu, o mundo que a mim, que tinha vinte e dois
anos, me parecia existir no centro do centro – aquele sobre o qual iam a ler
com tanta atenção.
«Não está a resultar porque tu não te sentes confortável», informou-me
Aimee, sentada num grande sofá cinzento, de frente para outro igual onde
eu estava sentada. «Precisas de te sentir confortável contigo mesma para
poderes trabalhar comigo. E isso não está a acontecer.»
Eu fechei o bloco no colo, baixei a cabeça e senti-me quase aliviada:
podia voltar para o meu verdadeiro emprego – se ainda me aceitassem – e
para a realidade. Mas, em vez de me despedir, Aimee atirou-me
prazenteiramente uma almofada à cabeça: «E então, que fazemos?»
Tentei rir-me e confessei que não sabia. Ela rodou a cabeça para a janela.
Vi-lhe no rosto aquela expressão de constante insatisfação, de impaciência,
a que mais tarde iria habituar-me, os avanços e recuos da sua impaciência
passaram a moldar os meus dias de trabalho. Mas naqueles primeiros
tempos tudo era ainda novo para mim, e interpretava aquilo apenas como
tédio, concretamente tédio e desilusão com a minha pessoa, e, sem saber o
que havia de fazer, percorria com os olhos todas as jarras que havia no
grande salão – ela enchia todos os espaços de flores – e a beleza lá de fora,
o Sol a refletir-se nos telhados de ardósia de Knightsbridge, e tentava
pensar nalguma coisa interessante para dizer. Ainda não percebia que a
beleza fazia parte do tédio. Nas paredes ela tinha muitos óleos vitorianos
escuros, retratos da aristocracia diante das suas casas imponentes, mas nada
do seu século, e nada que fosse reconhecivelmente australiano, nada que
fosse pessoal. Aquela devia ser a casa de Aimee em Londres, mas não tinha
nada a condizer com ela. Os móveis eram em geral luxuosos e de bom
gosto, como os de qualquer hotel europeu de categoria superior. O único
verdadeiro sinal de que Aimee ali vivia era um bronze junto ao peitoril da
janela, mais ou menos do tamanho de um prato e com a mesma forma, no
centro do qual se viam as pétalas e folhas de qualquer coisa que à primeira
vista parecia um nenúfar sobre a sua folha, mas era afinal a reprodução
perfeita de uma vagina: vulva, lábios, clítoris – tudo. Não me atrevi a
perguntar de quem.
«Mas onde é que te sentes mais confortável?», perguntou ela, voltando-se
de novo para mim. Vi que tinha uma ideia nova pintada na cara, como
batom acabado de aplicar.
«Referes-te a um lugar?»
«Nesta cidade. Um lugar.»
«Nunca pensei nisso.»
Ela pôs-se de pé: «Pois então pensa e vamos lá as duas.»
O primeiro lugar que me veio à cabeça foi o Heath. Mas a Londres de
Aimee, como aqueles mapas pequenos que recolhemos no aeroporto, era
uma cidade centrada em volta de St James’s, limitada a norte pelo Regent’s
Park, estendendo-se para oeste até Kensington – com uma ou outra surtida
às paragens inóspitas de Ladbroke Grove – e para leste só até à zona do
Barbican. Sabia tão pouco sobre o que podia existir no extremo sul da ponte
de Hungerford como na ponta de um arco-íris.
«É um parque grande», expliquei. «Perto do sítio onde cresci.»
«OK! Então vamos lá.»
Atravessámos a cidade de bicicleta, contornando autocarros e competindo
com um ou outro estafeta, numa fila de três: o segurança dela à frente –
chamava-se Granger –, depois Aimee, depois eu. A ideia de ter Aimee a
andar de bicicleta pela cidade enfurecia Judy, mas Aimee adorava,
chamava-lhe a sua liberdade na cidade, e talvez num semáforo em cada
vinte o condutor ao nosso lado se debruçasse sobre o volante, baixasse o
vidro, por ter pensado que aqueles olhos felinos, cinzento-azulados, aquele
pequeno queixo triangular, lhe diziam alguma coisa... Mas entretanto o
semáforo mudava de cor e nós desaparecíamos. De qualquer forma, quando
andava de bicicleta, ia camuflada – sutiã de desporto preto, colete preto e
calções de ciclismo velhos, gastos entre as pernas – e só Granger parecia
poder atrair a atenção de alguém: um negro com um metro e noventa de
altura e cento e treze quilos de peso, bamboleando-se em cima de uma
bicicleta de competição com quadro de titânio, que de vez em quando
parava para tirar do bolso um guia A-Z e estudava-o furiosamente. Era
originário do Harlem – «onde as ruas são em quadrícula» – e a incapacidade
que os londrinos mostravam de também numerarem as suas ruas era coisa
que não podia perdoar. Por causa disso tinha riscado a cidade do seu mapa.
Para ele, Londres era um labirinto de má comida e mau tempo onde a sua
única missão – garantir a segurança de Aimee – era dificultada sem
necessidade. Ao passar em Swiss Cottage fez-nos um sinal encaminhando-
nos para uma ilha de trânsito, onde despiu o blusão revelando um par de
bíceps possantes.
«É altura de dizer que não faço ideia de onde estamos», disse, batendo
com o mapa no guiador. «Vou a meio de uma ruazinha de merda –
Christchurch Close, Hingleberry Corner – e esta porra diz-me: ir para a
página 53. Eu vou em cima de uma bicicleta, filho da puta.»
«Coragem, Granger», disse Aimee, num péssimo sotaque britânico, e
puxou-lhe por momentos a cabeçorra para o seu ombro, apertando-a
carinhosamente. Granger soltou-se e olhou furioso para o Sol: «Desde
quando está este calor?»
«Bem, estamos no verão. Às vezes em Inglaterra o verão é quente. Devias
ter trazido calções.»
«Eu não uso calções.»
«Não creio que esta conversa nos leve a lado nenhum. Estamos numa ilha
de trânsito.»
«Para mim chega. Vamos voltar para trás», disse Granger, parecia
irredutível, e eu fiquei espantada por ver alguém falar com Aimee daquela
maneira.
«Não vamos voltar para trás coisa nenhuma.»
«Então é melhor ficares tu com isto», disse Granger, lançando o A-Z para
o cesto do guiador da bicicleta de Aimee, «porque eu não sei usá-lo.»
«Eu sei o caminho daqui para a frente», disse eu, envergonhada por ser a
causa do problema. «Estamos quase a chegar.»
«Precisamos de um veículo», insistiu Granger, sem olhar para mim.
Quase nunca olhávamos um para o outro. Às vezes eu pensava em nós
como dois agentes adormecidos, designados por engano para vigiar o
mesmo alvo, que evitam o contacto visual, não vá um denunciar o disfarce
do outro.
«Ouvi dizer que há lá uns rapazes giros», disse Aimee com uma entoação
cantada – a ideia era imitar Granger – «estão es-con-di-dos nas ár-vo-res.»
Pôs o pé no pedal, arrancou e guinou para o meio do trânsito.
«Não misturo prazer com trabalho», disse Granger com sobranceria,
voltando a montar com aprumo na sofisticada bicicleta. «Sou um
profissional.»
Arrancámos encosta acima, monstruosamente íngreme, resfolegando
penosamente atrás das gargalhadas de Aimee.
Consigo sempre ir dar ao Heath – toda a vida segui caminhos que me
levavam, quer quisesse quer não, de regresso ao Heath – mas nunca
procurei e encontrei Kenwood de forma consciente. Só vou lá ter por acaso.
Assim aconteceu desta vez: ia à frente de Aimee e Granger subindo as
veredas, passando os lagos, vencendo uma encosta, pensando onde seria o
sítio mais bonito, mais calmo e ao mesmo tempo mais interessante para
parar com uma superstar que se entediava com facilidade, quando vi o
pequeno portão de ferro forjado e, atrás das árvores, as chaminés brancas.
«Proibidas bicicletas», disse Aimee, lendo uma placa, e Granger,
adivinhando o que lá vinha, recomeçou a protestar, mas foi desarmado.
«Vamos demorar, tipo, uma hora», disse ela, desmontando da bicicleta e
passando-lha para as mãos. «Talvez duas. Eu ligo-te. Tens aquela coisa?»
Granger cruzou os braços sobre o peito imponente.
«Tenho, mas não ta vou dar. Se não for contigo. Nem pensar. Esquece.»
Quando desmontei da bicicleta, porém, vi Aimee estender a mãozinha
insistente para receber uma coisa pequena embrulhada em papel celofane e
fechá-la à volta dela, coisa essa que era afinal um charro – para mim. De
formato longo e americano, sem tabaco nenhum. Instalámo-nos debaixo de
uma magnólia, mesmo em frente de Kenwood House, e eu encostei-me ao
tronco a fumar enquanto Aimee se estendia na relva com o boné de basebol
preto puxado para cima dos olhos, a cara virada para mim.
«Sentes-te melhor?»
«Mas... tu não vais fumar?»
«Eu não fumo. Como é evidente.»
Estava a transpirar como transpirava no palco, e agora agarrava o blusão e
abanava-o para criar um túnel de ar, dando-me a oportunidade de
vislumbrar aquela pálida faixa de diafragma que em tempos tanto
hipnotizou o mundo.
«Queres uma Coca-Cola fresca que tenho no saco?»
«Não bebo essa merda e tu também não devias beber.»
Soergueu-se apoiada nos cotovelos para me observar melhor.
«Não pareces lá muito confortável.»
Suspirou e virou-se de barriga para baixo a observar as multidões de
veraneantes que desciam em direção às antigas cavalariças em busca de
scones e chá ou ao interior da casa grande em busca de arte e história.
«Tenho uma pergunta», disse eu, sabendo que estava pedrada e ela não,
mas sentindo dificuldade em não me esquecer da segunda parte da
proposição. «Fazes isto com todas as tuas assistentes?»
Ficou a pensar: «Não, não faço exatamente isto. As pessoas são
diferentes. Faço sempre alguma coisa. Não posso ter na minha frente vinte e
quatro horas por dia, sete dias por semana, uma pessoa que se sente
desconfortável comigo. Não tenho tempo para isso. E não posso dar-me ao
luxo de conhecer cada uma de forma lenta, delicada, ser educadamente
inglesa, dizendo por favor e obrigada sempre que quero que alguém faça
alguma coisa – se trabalhas comigo, tens simplesmente de ser rápida. Já
faço isto há algum tempo, e cheguei à conclusão de que meia dúzia de horas
intensas ao princípio poupam uma data de tempo e mal-entendidos e
parvoíces mais tarde. Tu estás a entrar facilmente na coisa, fica sabendo.
Com a Melanie tomei um banho de imersão.»
Ensaiei uma piada idiota e comprida, na esperança de a pôr a rir outra
vez, mas em vez disso ela olhou-me de viés.
«Outra coisa que tens de compreender é que não se trata de eu não
perceber a tua ironia britânica, mas sim de não gostar dela. Acho-a
adolescente. Noventa e nove por cento do tempo que passo com pessoas
britânicas que não conhecia, a sensação que tenho é: cresce!» Regressou a
Melanie naquele banho. «Queria saber se tinha os mamilos compridos de
mais. Paranoica.»
«Tinha?»
«Tinha o quê, quem?»
«Os mamilos. Compridos.»
«Compridos? Os estupores pareciam dedos.»
Cuspi parte da minha Coca-Cola para a relva.
«Tens graça.»
«Pertenço a uma longa linhagem de pessoas com graça. Só Deus sabe por
que razão os britânicos pensam que são os únicos autorizados a ter graça
neste mundo.»
«Eu não sou assim tão britânica.»
«Ora, menina, mais britânica não podias ser.»
Tirou o telemóvel do bolso e pôs-se a ver as mensagens. Muito antes de
se ter tornado um hábito generalizado já Aimee vivia no telemóvel. Foi
pioneira nisso, como em tantas outras coisas.
«Granger, Granger, Granger, Granger. Não sabe o que há de fazer quando
não tem nada para fazer. É como eu. Temos a mesma mania. Lembra-me até
que ponto posso ser cansativa. Para os outros.» Hesitava-lhe o polegar sobre
o teclado do BlackBerry novinho em folha. «De ti espero: frieza, calma,
autodomínio. Faz-me falta por estas bandas. Santo Deus, já me enviou
algumas quinze mensagens. Tudo o que tem a fazer é tomar conta das
bicicletas. Diz que está ao pé do – que raio é o “lago dos homens”?»
Expliquei-lhe, em pormenor. Fez uma cara cética.
«Se bem conheço o Granger, não há a mínima hipótese de ele nadar em
água em estado natural, nem em Miami nada. Tem uma grande fé no cloro.
Não. Ele que se limite a tomar conta das bicicletas.» Espetou-me um dedo
na barriga. «Estamos prontas? Fuma outro, se precisares. É uma vez sem
exemplo. Aproveita. Uma vez por assistente. No resto do tempo tu trabalhas
e eu trabalho. E isso quer dizer sempre.»
«Neste momento sinto-me completamente relaxada.»
«Ótimo! Mas há mais alguma coisa para se fazer neste sítio?»
Foi assim que acabámos a deambular pelo interior de Kenwood House,
seguidas, durante algum tempo, por uma rapariguinha de seis anos e olhar
arguto, cuja mãe distraída se recusava a dar ouvidos ao seu palpite certeiro.
De olhos injetados, eu arrastava os pés atrás da minha nova patroa,
reparando pela primeira vez no modo muito especial como ela olhava para
os quadros, como, por exemplo, ignorava todos os homens, não os pintores,
mas os temas, passando sem parar diante de um autorretrato de Rembrandt,
ignorando todos os condes e duques, e menosprezando, com uma simples
frase – «Vai cortar o cabelo!» – um marinheiro mercante que tinha os olhos
risonhos do meu pai. As paisagens também não lhe diziam nada. Adorava
cães, animais, fruta, tecidos, e em particular flores. Com o passar dos anos
aprendi a esperar que o ramo de anémonas que acabávamos de ver no Prado
ou as peónias da National Gallery reaparecessem, mais ou menos uma
semana depois, em jarras espalhadas por toda a casa ou hotel onde por
acaso estivéssemos na altura. Havia também muitos cães pequenos,
pintados, que saltavam das telas para a vida dela. Kenwood era a origem de
Colette, uma spaniel incontinente de Joshua Reynolds que comprou em
Paris meses depois, e que durante um ano eu tive de levar a passear duas
vezes por dia. Mas ainda mais do que destes gostava dos retratos de
mulheres: os seus rostos, os seus adornos, os seus penteados, os seus
espartilhos, os seus sapatinhos bicudos.
«Oh, meu Deus, é a Judy!»
Aimee estava no outro extremo da sala de damasco vermelho, diante de
um retrato, em tamanho real, e ria-se. Eu aproximei-me por trás e observei
atentamente o Van Dyck em questão. Não havia dúvida: ali estava Judy
Ryan, em toda a sua horrível pompa, mas há cem anos, vestindo um
balandrau preto e branco de renda e cetim que não a favorecia, e com a mão
direita – entre o maternal e o ameaçador – pousada no ombro de um jovem
pajem, anónimo. Os olhos de sabujo, a franja horrível, a cara comprida e
sem queixo – estava lá tudo. Rimo-nos tanto que eu tive a sensação de que
alguma coisa havia mudado entre nós, alguma cerimónia ou receio havia
desaparecido, de tal maneira que, minutos depois, quando Aimee se
declarou encantada com um quadro intitulado The Infant Academy, senti-
me livre de, pelo menos, discordar.
«É um bocadinho sentimental, não achas? E estranho...»
«Eu gosto. Gosto da estranheza. Criancinhas nuas retratando-se umas às
outras. Ultimamente fico toda derretida quando vejo um bebé.» Olhou
enlevada para um rapazinho de sorriso tímido num rosto de querubim.
«Faz-me lembrar o meu filhinho. De certeza que não gostas?»
Naquela altura não sabia que Aimee estava grávida pela segunda vez, de
Kara. Provavelmente nem ela sabia. Para mim era evidente que o quadro
era todo ele ridículo, e as criancinhas de cara rosada particularmente
repulsivas, mas quando olhei para a cara dela vi que estava a falar a sério. E
que são as crianças, lembro-me de ter pensado, para fazerem isto às
mulheres? Têm o poder de reprogramar as mães? De fazer das mães o tipo
de mulheres que elas próprias, quando mais jovens, nem sequer
reconheceriam? A ideia apavorou-me. Limitei-me a elogiar-lhe a beleza do
filho Jay em comparação com aqueles querubins, em termos não muito
convincentes ou coerentes, efeito do charro, e Aimee olhou para mim de
cenho franzido.
«Não queres ter filhos, é isso? Ou pensas que não queres.»
«Não, sei que não quero.»
Ela deu-me uma palmadinha no alto da cabeça, como se não houvesse
doze anos a separar-nos, mas sim quarenta.
«Que idade tens? Vinte e três? As coisas mudam. Eu era exatamente igual
a ti.»
«Não, eu sempre soube. Desde pequena. Não sou do tipo maternal. Nunca
os quis, nunca os quererei. Vi o que isso fez à minha mãe.»
«Que foi que isso lhe fez?»
A pergunta, de tão direta, obrigou-me a ponderar a resposta.
«Foi mãe muito jovem, e mãe solteira. Havia coisas que queria ser e não
podia, pelo menos na altura – estava manietada. Tinha de lutar para ter
algum tempo para si.»
Aimee pôs as mãos nas ancas e assumiu um ar pedante.
«Pois bem, eu sou mãe solteira. E posso garantir-te que o meu filho não
me impede de fazer o que quer que seja. Neste momento é a minha grande
inspiração, se queres mesmo saber. Não tenhas dúvidas de que é um fator de
equilíbrio, mas é preciso querê-lo muito.»
Pensei na ama jamaicana, Estelle, que todas as manhãs me abria a porta e
desaparecia no quarto das crianças. Não devia ocorrer a Aimee que talvez
houvesse uma divergência prática entre a situação da minha mãe e a sua, e
foi essa uma das primeiras lições que aprendi sobre a forma como ela via as
diferenças entre as pessoas, que nunca eram estruturais ou económicas, mas
sempre, no essencial, diferenças de personalidade. Olhei para o rubor nas
faces dela e para a posição em que eu tinha as mãos – estendidas à minha
frente, como um político a defender um ponto de vista – e tomei
consciência de que a nossa discussão se tinha tornado rápida e
estranhamente acalorada, sem que nenhuma de nós o desejasse, como se a
palavra «bebé» tivesse uma espécie de efeito acelerador. Recolhi as mãos
para os lados do corpo e sorri.
«Não é para mim, pronto.»
Percorremos as galerias à procura da saída, acertando o passo com o de
um guia turístico, que estava a contar uma história que eu conhecia desde a
infância, de uma menina mestiça – filha de um escravo caribenho e da sua
patroa britânica – que foi trazida para Inglaterra e criada nesta grande casa
por parentes abastados, um dos quais era, por acaso, o Presidente do
Supremo Tribunal de Justiça. Uma das histórias preferidas da minha mãe.
Só que a minha mãe não a contava como o guia turístico, não acreditava
que a compaixão de um tio-avô pela sua sobrinha-neta mestiça tivesse o
poder de acabar com a escravatura em Inglaterra. Peguei num folheto de
uma pilha que havia numa mesa de apoio e li que o pai e a mãe da menina
se tinham conhecido «nas Caraíbas», como se andassem os dois a passear
numa estância balnear à hora dos aperitivos. Divertida, virei-me para
mostrar o folheto a Aimee, mas ela já estava na sala seguinte, a ouvir
atentamente o guia, deambulando pelas bordas do grupo como se fizesse
parte dele. Comovia-se sempre com histórias que provassem «o poder do
amor» – e que diferença é que isso me fazia? Mas não resisti, comecei a
imitar a minha mãe, fazendo comentários irónicos ao que o homem dizia,
até que ele se irritou e encaminhou o seu grupo para o exterior. Quando as
duas saímos, assumi o papel de guia de Aimee, conduzindo-a por um túnel
baixo de hera que formava uma latada e descrevendo o Zong como se o
grande navio estivesse fundeado ali mesmo, no lago, diante dos nossos
olhos. Era uma imagem que rememorava com facilidade, conhecia-a
intimamente, tinha perpassado muitas vezes pelos meus pesadelos de
infância. A caminho da Jamaica, mas muito afastado da rota devido a um
erro de navegação, com pouca água potável, carregado de escravos
sequiosos («Sim?», disse Aimee, arrancando um botão de rosa de um
arbusto) e capitaneado por um homem que, receando que os escravos não
sobrevivessem ao que faltava de caminho – mas não querendo ter prejuízo
logo na sua viagem inaugural – reuniu cento e trinta e três homens,
mulheres e crianças e atirou-os pela borda fora, acorrentados uns aos
outros: carga perdida pela qual podia mais tarde reclamar o seguro. O tio-
avô famoso pela sua compaixão presidiu ao julgamento do recurso do caso
– contei a Aimee, como a minha mãe me havia contado – e condenou o
capitão, mas só com base em que o capitão tinha cometido um erro. Ele, e
não a seguradora, tinha de arcar com o prejuízo. Aqueles que dilaceravam
corpos também eram carga, podia continuar a alijar carga para proteger o
resto da carga. Só que não seria reembolsado por ela. Aimee fez que sim
com a cabeça, entalou a rosa entre a orelha esquerda e o boné de basebol e
de repente pôs-se de joelhos para fazer festas a uma matilha de cachorros
que iam a passar, arrastando atrás de si uma única pessoa.
«O que não mata engorda», ouvi-a dizer a um cachorro salsicha, enquanto
se endireitava e voltava a olhar para mim. «Se o meu pai não tivesse
morrido novo? Eu não estava aqui de maneira nenhuma. É a dor. Judeus,
gays, mulheres, negros – os malditos irlandeses. É esse o segredo da nossa
força, porra.» Eu pensei na minha mãe
– que não tinha paciência para leituras românticas da história – e encolhi-
me toda. Deixámos os cães e seguimos adiante. O céu estava limpo, o
Heath cheio de flores e folhagem, os lagos eram charcos de luz dourada,
mas eu não conseguia libertar-me desta sensação de desconforto e
desequilíbrio, e quando procurei localizar-lhe a origem dei comigo diante
daquele pajem anónimo da galeria, com um pequeno brinco de ouro na
orelha, que erguia uns olhos súplices para a sósia de Judy enquanto nós nos
ríamos dela. Ela não lhe retribuía o olhar, não podia, tinha sido pintada de
uma forma que tornava isso impossível. Mas não tinha também eu evitado o
olhar dele? Agora via aquele pequeno mouro com toda a clareza. Era como
se estivesse parado no caminho, diante de mim.

Aimee quis a toda a força que acabássemos aquela tarde especial com um
banho no lago das mulheres. Granger ficou outra vez à espera no portão,
com três bicicletas aos pés, virando furiosamente as páginas do seu
Maquiavel de bolso, em edição da Penguin. Uma neblina de pólen pairava
sobre a água, parecia aprisionada no ar denso, sonolento, apesar de a água
estar gelada. Entrei encolhida, em cuecas e T-shirt, descendo a escada
lentamente, enquanto duas inglesas de sorriso largo, Speedos robustos e
toucas vinham à superfície ali perto, oferecendo espontaneamente
encorajamento a todas quantas estavam em vias de se lhes juntar. («Depois
de se entrar está muito agradável.» «Bata as pernas até começar a senti-las.»
«Se a Woolf nadou aqui, você também pode nadar!») Mulheres à minha
direita e à minha esquerda, talvez com o triplo da minha idade, deslizavam
da plataforma para a água, mas eu não consegui entrar até mais do que a
cintura e, para ganhar tempo, virei-me de costas e fingi que estava a admirar
a cena: senhoras de cabelos brancos que se moviam num círculo majestoso
por entre os limos malcheirosos. Uma bonita libelinha vestida no tom de
verde favorito de Aimee rodopiava ali perto. Vi-a pousar na plataforma,
mesmo ao lado da minha mão, e fechar as asas iridescentes. Onde estava
Aimee. Tive um momento de paranoia paralisante, infligida pela erva: teria
entrado na água antes de mim, enquanto eu me preocupava com a minha
roupa interior? Já se teria afogado? Daria comigo amanhã numa
investigação, a explicar ao mundo por que razão tinha deixado uma
australiana universalmente amada, além de coberta por um seguro
elevadíssimo, nadar sozinha num lago gelado do Norte de Londres? Um
grito de banshee rasgou a cena civilizada: virei-me e vi Aimee, nua, saindo
do balneário em direção a mim, formando um mergulho por cima da minha
cabeça e da escada, braços estendidos, costas desenhando um arco perfeito,
como se sustentada no ar por um primeiro-bailarino invisível, antes de fazer
uma entrada perfeita na água.
6

Não sabia que o pai de Tracey tinha sido preso. Foi a minha mãe que me
disse, meses depois da ocorrência: «Pelos vistos, foi preso outra vez.» Não
precisou de mais palavras, nem de me dizer que passasse menos tempo com
Tracey, isso já estava a acontecer naturalmente. Um arrefecimento: uma
daquelas coisas que acontecem entre raparigas. A princípio fiquei
desesperada, pensando que era para sempre, mas afinal era só um hiato, um
de muitos que iríamos ter, com a duração de dois ou três meses, às vezes
mais, mas que acabavam sempre – não por coincidência – quando o pai dela
voltava a sair, ou então regressava da Jamaica – para onde tinha de fugir
com frequência quando as coisas no bairro aqueciam para o seu lado. Era
como se, quando o pai estava «dentro» ou longe, Tracey entrasse em modo
de espera, pondo-se em pausa como um leitor de vídeo. Embora na aula já
não partilhássemos a mesma carteira (tinham-nos separado depois da festa
de Lily, a minha mãe foi à escola exigir que o fizessem), todos os dias a via
perfeitamente, e quando havia «problemas em casa» detetava isso
imediatamente, revelava-se em tudo o que fazia, ou não fazia. Tornava a
vida do nosso professor tão difícil quanto podia, não com mau
comportamento explícito como nós, não com palavrões ou brigas, mas com
um absoluto apagamento da sua presença. O corpo estava presente, nada
mais. Não respondia a perguntas nem as fazia, não participava em nenhuma
atividade nem tomava apontamentos de nada, nem sequer abria o caderno
de exercícios, e nessas alturas eu percebia que para Tracey o tempo havia
parado. Se o Senhor Sherman desatava aos berros, ficava impassivelmente
sentada na carteira, de olhos fixos num ponto acima da cabeça dele, nariz
empinado, e nada que ele dissesse – nenhuma ameaça ou aumento de
volume – produzia o mínimo efeito. Tal como eu previra, nunca tinha
esquecido os cromos dos Garbage Pail Kids. E ser mandada ao gabinete da
diretora não lhe metia medo nenhum. Levantava-se, com o casaco que de
resto não chegara a despir, e saía da sala como se lhe fosse indiferente
aonde ia ou o que lhe acontecia. Quando se encontrava neste estado de
espírito eu aproveitava a oportunidade para fazer aquilo que, quando estava
com Tracey, me sentia inibida de fazer. Passava mais tempo com Lily
Bingham, por exemplo, deliciando-me com o seu bom-humor e feitio
amável: Lily ainda brincava com bonecas, não sabia nada de sexo, adorava
desenhar e fazer coisas com cartolina e cola. Por outras palavras, ainda era
uma criança, como eu às vezes desejava poder ser. Nas suas brincadeiras
ninguém morria nem tinha medo de ser descoberto por fraude, e não havia
absolutamente nenhum negro nem branco, porque, como um dia me
explicou solenemente enquanto brincávamos, era «daltónica» e só via o que
se passava no coração de uma pessoa. Tinha um teatrinho de cartão do Balé
Russo, comprado em Covent Garden, e para ela uma tarde perfeita era
passada a manobrar o príncipe de cartão pelo palco, para se encontrar com
uma princesa de cartão e apaixonar-se por ela, enquanto um disco riscado
do Lago dos Cisnes, do pai, tocava em fundo. Adorava balé, embora
dançasse mal, tinha as pernas demasiado arqueadas para poder alimentar
verdadeiras esperanças, e sabia as palavras francesas para tudo, além das
histórias trágicas de Diaghilev e Pavlova. O sapateado não lhe interessava.
Quando lhe mostrei a minha cópia muito gasta de Stormy Weather8 reagiu
de uma forma que eu não previa, ficou ofendida – para não dizer magoada.
Porque é que toda a gente era negra. Era indelicado, disse, fazer um filme
só com pessoas negras, não era justo. Talvez na América se pudesse fazer
isso, mas não aqui, em Inglaterra, onde aliás todos eram iguais e não havia
necessidade de «repisar a tecla». E nós não íamos gostar, dizia, que nos
dissessem que só os negros podiam frequentar as aulas de dança de Miss
Isabel, não era justo para nós, pois não? Ficávamos tristes. Ou que só os
negros podiam andar na nossa escola. Nós não íamos gostar disso, pois
não? Eu fiquei calada. Meti o Stormy Weather na mochila e fui para casa,
com um pôr do sol de Willesden, de cores de petróleo e nuvens rápidas,
dando voltas na minha cabeça àquela curiosa lição, perguntando-me o que
ela quereria dizer com a palavra «nós».
8 Canção de 1933, da autoria de Harold Arlen e Ted Koehler, mais tarde celebrizada pela
interpretação de Etta James. (N. do T.)
7

Quando as coisas entre mim e Tracey estavam geladas, achava os sábados


difíceis de passar e recorria ao Senhor Booth para conversar e pedir
conselhos. Levava-lhe informações novas – que recolhia na biblioteca – e
ele acrescentava elementos àquilo que eu levava, ou explicava as coisas que
eu não compreendia. O Senhor Booth não sabia, por exemplo, que não era
«Fred Astaire», mas sim «Frederick Austerlitz», mas sabia o significado de
«Austerlitz», explicou-me que era um nome que não devia ser de origem
americana, mas sim europeia, provavelmente da Alemanha ou da Áustria»,
possivelmente judeu. Para mim, Astaire era a América – não teria ficado
espantada se o visse figurar na bandeira – mas agora ficava a saber que
afinal tinha passado muito tempo em Londres e que tinha ficado famoso
aqui, a dançar com a irmã, e se eu tivesse nascido sessenta anos antes podia
ter ido vê-lo em pessoa ao Shaftesbury Theatre. E havia outra coisa, disse o
Senhor Booth, a irmã era muito melhor bailarina do que ele, toda a gente o
dizia, era a estrela e ele a figura secundária, não sabe cantar, não sabe
representar, está a ficar careca, sabe dançar, um bocadinho, ha ha ha, mas
ele mostrou-lhe quem sabia, não mostrou? Ao ouvir o Senhor Booth,
perguntei-me se também eu poderia ser uma daquelas pessoas que se
revelavam mais tarde na vida, muito mais tarde, para que um dia – daqui a
muito tempo – fosse Tracey a sentar-se na primeira fila do Shaftesbury
Theatre a ver-me dançar, as nossas posições completamente invertidas, a
minha superioridade finalmente reconhecida pelo mundo. E passados tantos
anos, disse o Senhor Booth, tirando-me das mãos o livro da biblioteca e
lendo-o, passados tantos anos a sua rotina diária pouco tinha mudado em
relação à vida que sempre levara. Acordava às cinco da manhã e tomava o
pequeno-almoço, um simples ovo cozido que lhe mantinha um peso
constante, sessenta quilos e setecentos. Viciado em séries de televisão como
The Guiding Light e As the World Turns, telefonava à empregada se não
podia ver as telenovelas, para saber o que tinha acontecido. O Senhor Booth
fechou o livro, sorriu e disse: «Que tipo tão estranho!»
Quando me queixei ao Senhor Booth da única imperfeição de Astaire –
na minha opinião não sabia cantar – fui apanhada de surpresa pela
veemência da sua discordância, normalmente estávamos de acordo em tudo,
e era uma risada constante quando estávamos juntos, mas desta vez ele
dedilhou as notas de «All of Me» de forma um tanto minimalista ao piano e
disse: «Mas cantar não é só deitar cá para fora, pois não? Não é só ver quem
aguenta mais tempo sem respirar ou quem dá a nota mais alta, não, é uma
questão de fraseado, e de delicadeza, e de tirar o sentimento certo de uma
canção, a alma que existe dentro dela, de modo que aconteça uma coisa real
quando uma pessoa abre a boca para cantar, e não queres sentir uma coisa
real em vez de ficares com os pobres ouvidos a zunir?»
Calou-se e tocou «All of Me» até ao fim, e eu cantei com ele, fazendo um
esforço deliberado para recortar as frases como Astaire faz em Meias de
Seda – abreviando alguns versos, mais ou menos recitando outros – ainda
que aquilo não me saísse com naturalidade. Ambos pensámos em como
seria amar o leste, oeste, norte e sul de uma pessoa, ter um domínio
completo sobre ela, mesmo que ela, em contrapartida, só amasse uma
pequena percentagem de nós. Normalmente eu cantava com uma das mãos
apoiada no piano, a olhar lá para fora, porque era o que faziam as atrizes
nos filmes, e dessa forma podia estar de olho no relógio por cima da porta
da igreja e saber quando acabava de entrar a fila de crianças e, portanto,
quando era altura de parar, mas dessa vez o desejo de tentar cantar em
harmonia com aquela delicada melodia – de estar à altura da forma como o
Senhor Booth a tocava, não simplesmente «deitar cá para fora» mas criar
um sentimento verdadeiro – fez com que instintivamente me virasse para
dentro, a meio do verso, e quando o fiz reparei que o Senhor Booth estava a
chorar, muito baixinho, mas sem dúvida a chorar. Parei de cantar. «E ele
está a tentar fazê-la dançar», disse ele. «Fred quer que Cyd dance, mas ela
não quer, pois não? É aquilo a que se chamaria uma intelectual, nascida na
Rússia, e não quer dançar, e diz-lhe: “O problema da dança é que Uma
pessoa anda, anda, anda, mas não chega a lado nenhum!” E Fred responde:
“A quem o dizes!” Lindo! Lindo! Mas agora, minha querida, está na hora da
aula. É melhor ires calçar os sapatos.»
Enquanto apertávamos os sapatos para voltar à fila, Tracey disse à mãe,
de modo que eu ouvisse: «Vês, ela adora todas aquelas canções antigas e
esquisitas.» A frase tinha o tom de uma acusação. Eu sabia que Tracey
adorava a música pop, mas achava que as melodias não eram tão bonitas, e
tentei dizer-lho. Tracey encolheu os ombros, frustrando-me os intentos. Os
seus encolheres de ombros tinham poder sobre mim. Punham termo a
qualquer assunto. Voltou-se para a mãe e disse: «E gosta de homens
velhos.»
A reação da mãe revoltou-me: olhou em frente e fez um sorrisinho cínico.
Nesse momento o meu pai estava lá fora, no adro da igreja, no sítio do
costume, debaixo das cerejeiras; via-o com a bolsa do tabaco numa das
mãos e o livro de mortalhas na outra, já nem se dava ao incómodo de
esconder estas coisas de mim. Mas estava fora de questão que eu pudesse
fazer um comentário cruel sobre outra criança e visse o meu pai – ou mãe –
sorrir cinicamente, ou de algum modo pôr-se do meu lado. Espantava-me
que Tracey e a mãe estivessem do mesmo lado, e achava que havia nisso
qualquer coisa que não era natural e que elas deviam sabê-lo, porque em
certos contextos escondiam-no. Tinha a certeza de que, se o meu pai
estivesse presente, a mãe de Tracey não teria ousado sorrir cinicamente.
«O melhor é ficar longe dos velhos estranhos», disse ela, apontando para
mim. Mas quando eu ripostei que o Senhor Booth não era um estranho para
nós, era o nosso querido pianista há muito tempo e nós gostávamos muito
dele, a mãe de Tracey mostrou-se entediada enquanto eu falava, cruzou os
braços sobre o peito enorme e olhou fixamente em frente.
«A minha mãe acha que ele é pedófilo», explicou Tracey.

Saí daquela aula agarrada à mão do meu pai, mas não lhe contei o que
tinha acontecido. Não pensava em pedir ajuda em nada a nenhum dos meus
pais, quando muito pensava em protegê-los. Ia buscar orientação a outro
sítio. Os livros tinham começado a entrar na minha vida. Não livros bons,
isso ainda não, só aquelas velhas biografias de gente do espetáculo que lia
na falta de textos sagrados, como se elas fossem textos sagrados, colhendo
delas alguma espécie de conforto, mesmo sabendo que se tratava de obras
de encomenda, escritas para ganhar dinheiro fácil, em que certamente os
autores nunca mais pensavam, mas que para mim eram importantes.
Dobrava os cantos de certas páginas e lia algumas linhas vezes sem conta,
como uma senhora vitoriana lendo os seus salmos. Ele não está a fazer
aquilo bem – era uma das mais importantes. Era o que Fred Astaire dizia
pensar quando se via no ecrã, e chamou-me a atenção aquele pronome na
terceira pessoa. Era isto que eu achava que ele queria dizer: que para
Astaire a pessoa do filme não estava especialmente ligada a ele. E tomava
isto a peito, ou melhor, dava voz a uma sensação que já tinha, a de que era
importante a pessoa tratar-se como uma espécie de estranha, para manter a
distância e a objetividade em relação a si mesma. Pensava que era
necessário pensar assim para alcançar alguma coisa neste mundo. Sim, eu
achava que era uma atitude muito elegante. E também fiquei fascinada com
a famosa teoria de Katharine Hepburn sobre Fred e Ginger: Ele dá-lhe
classe, ela dá-lhe sexo. Seria uma regra geral? Todas as amizades – todas as
relações – implicavam esta discreta e misteriosa transação de qualidades?
Era extensiva a povos e nações, ou era uma coisa que só acontecia entre
pessoas individuais? O que é que o meu pai dava à minha mãe – e vice-
versa? O que é que eu e o Senhor Booth dávamos um ao outro? O que é que
eu dava a Tracey? O que é que Tracey me dava?
Terceira parte

INTERVALO
1

Os governos são inúteis, não se pode confiar neles, explicou-me Aimee, e


as organizações humanitárias têm agendas próprias, as igrejas preocupam-
se mais com as almas do que com os corpos.
E, portanto, se quisermos que este mundo mude realmente, prosseguiu,
enquanto ajustava a inclinação da sua passadeira até eu, que caminhava
noutra ao lado, ter a sensação de estar a vê-la galgar a encosta do
Kilimanjaro, bem, teremos de ser nós a fazê-la, sim, teremos de ser nós a
mudança que queremos ver acontecer. Por «eu» entendia pessoas como ela,
com meios financeiros e notoriedade global, que por acaso amam a
liberdade e a igualdade, querem a justiça, sentem a obrigação de fazer algo
de bom com a sua boa sorte pessoal. Era uma categoria moral, mas também
económica. E, se seguíssemos esta lógica até ao fim do tapete rolante, ao
fim de poucas milhas chegávamos a uma nova ideia, a de que riqueza e
moralidade são essencialmente a mesma coisa, porque quanto mais dinheiro
uma pessoa tinha mais bondade – ou potencial de bondade – possuía.
Limpei o suor ao colete e olhei de relance para os ecrãs que tínhamos diante
de nós: sete milhas para Aimee, uma e meia para mim. Finalmente ela tinha
acabado, desligámos as máquinas, passei-lhe uma toalha, fomos juntas para
a sala de montagem. Ela queria ver uma primeira montagem de uma
promoção que estávamos a filmar para potenciais doadores, ainda sem
música nem som. Sentámo-nos atrás do realizador e editor e vimos uma
versão de Aimee, uma versão muda, começar a cavar o terreno do projeto
escolar, de grande pá na mão, e lançava a primeira pedra com a ajuda de um
ancião da aldeia. Vimo-la dançar com a filha de seis anos, Kara, e um grupo
de alunas lindas, nos seus uniformes verdes e cinzentos, ao som de música
que não ouvíamos, cada batida dos seus pés levantando grandes nuvens de
poeira vermelha. Lembrei-me de que tinha visto acontecer todas estas
coisas meses antes, na realidade, no preciso momento em que aconteceram,
e pensei em como agora eram diferentes, neste formato, enquanto o editor
mudava planos de sítio com a facilidade que a informática lhe permitia,
intercalando Aimee na América com Aimee na Europa e Aimee em África,
dando nova ordem a acontecimentos conhecidos. E é assim que se fazem as
coisas, anunciou, passados quinze minutos, satisfeita, levantando-se,
despenteando o cabelo do jovem realizador e saindo para ir tomar duche. Eu
fiquei a ajudar a acabar a montagem. Tinha sido instalada uma câmara
ultralenta no estaleiro, em fevereiro, e por isso agora era possível ver a
escola erguer-se em poucos minutos, enquanto operários como formigas,
em movimentos tão rápidos que era impossível distingui-los, a cobriam
como um enxame, numa demonstração surrealista daquilo que era possível
quando pessoas de boa vontade e meios de fortuna decidiam fazer acontecer
coisas. Pessoas capazes de construir uma escola feminina, numa aldeia rural
da África Ocidental, em poucos meses, simplesmente porque foi isso que
decidiram fazer.

Uma coisa que dava prazer à minha mãe era chamar «ingénua» à forma
como Aimee fazia as coisas. Mas Aimee sentia que já tinha tentado a via da
minha mãe, a via política. Tinha apoiado candidatos presidenciais, nos anos
oitenta e noventa, organizando jantares, dando contribuições para as
campanhas, arengando para multidões do alto dos palcos montados em
estádios. Quando eu entrei em cena já ela tinha acabado com isso, como a
geração que outrora tentara empurrar para a cabine de voto, a minha
geração, também acabara. Agora estava empenhada em «fazer acontecer a
mudança no terreno», só queria «trabalhar com comunidades a nível
comunitário», e eu respeitava sinceramente o seu empenhamento, e só
esporadicamente – quando alguma das pessoas de meios como ela vinha à
casa de Hudson Valley, para almoçar ou nadar na piscina, e para falar desta
ou daquela iniciativa – se tornava muito difícil evitar ver as coisas que a
minha mãe via. Nessas alturas sentia verdadeiramente a minha mãe por
cima do ombro, uma consciência invisível, ou um comentário irónico,
destilando-me veneno no ouvido de uma distância de milhares de milhas,
enquanto tentava ouvir todas aquelas pessoas bondosas e de meios –
famosas por tocarem guitarra ou cantarem ou desenharem roupas ou
fingindo serem outras pessoas – tagarelando de copo na mão sobre os seus
planos de erradicar a malária do Senegal ou abrir poços de água potável no
Sudão, e coisas assim. Mas sabia que Aimee, pessoalmente, não tinha
nenhum interesse abstrato no poder. Era motivada por outra coisa –
impaciência. Para Aimee, a pobreza era um dos erros negligentes do
mundo, um entre muitos, que podia ser facilmente corrigido se as pessoas
dessem ao problema a atenção que davam a tudo. Detestava reuniões e
longas discussões, não gostava de abordar uma questão de muitos ângulos
diferentes. Nada a maçava mais do que o «por outro lado isto» ou «por
outro lado aquilo». Antes depositava toda a sua fé no poder das suas
próprias decisões, e estas tomava-as com o «coração». Muitas vezes estas
decisões eram súbitas, e uma vez tomadas nunca eram alteradas ou
revogadas, porque acreditava no seu sentido do tempo certo, no tempo
propriamente dito, como uma força mística, uma forma de destino, que
opera tanto a nível global e cósmico quanto a nível pessoal. Aliás, na
cabeça de Aimee estes três níveis estavam interligados. Foi o tempo certo
do destino, tal como ela o via, que fez arder por completo a sede britânica
da YTV no dia 20 de Junho de 1998, seis dias depois de ela nos ter visitado,
com uma avaria elétrica qualquer que aconteceu a meio da noite e
desencadeou um incêndio que engoliu todo o edifício, destruindo as milhas
e milhas de VHS que até então haviam sido preservadas da influência
deletéria do metro de Londres. Disseram-nos que daí a nove meses os
escritórios voltariam a estar habitáveis. Entretanto fomos todos transferidos
para um edifício de escritórios, feio e incaracterístico, em King’s Cross.
Para mim tudo aquilo acabou no momento em que Zoe pôs um fax em cima
da minha secretária, dirigido a mim, com um número de telefone para onde
devia ligar, sem mais explicações. Da outra ponta da linha chegou a voz de
Judy Ryan, empresária de Aimee. Disse-me que Aimee em pessoa tinha
requerido a presença da rapariga negra vestida de verde no seu escritório de
Chelsea para ser entrevistada com vista a um possível emprego. Fiquei
siderada. Andei meia hora de um lado para o outro antes de entrar, a tremer
enquanto subia no elevador e percorria o corredor, mas quando entrei na
sala vi a decisão já tomada, ali mesmo, na cara dela. Para Aimee não havia
nenhuma apreensão, nem nenhuma dúvida: nada disto, na sua maneira de
ver, era coincidência ou sorte ou mesmo feliz acaso. Era «Destino». «O
Grande Incêndio» – como os empregados o batizaram – era apenas parte de
um esforço consciente, em nome do universo, para nos juntar às duas,
Aimee e eu, um universo que no mesmo momento se recusava a intervir em
tantas outras questões.
2

Aimee tinha uma atitude invulgar em relação ao tempo, mas a forma


como o abordava era muito pura e eu habituei-me a admirá-la por isso. Não
era como o resto da tribo a que pertencia. Não precisava de cirurgiões, não
vivia no passado, não fugia às datas nem recorria a nenhuma das formas
habituais de distração ou distorção. Com ela era realmente uma questão de
vontade. Ao longo de dez anos vi até que ponto essa vontade era indomável,
o que conseguia fazer acontecer. E todo o esforço que punha nisso – todo o
exercício físico, toda a cegueira deliberada, a inocência cultivada, as
epifanias espirituais que, sem se saber como, era capaz de experimentar
espontaneamente, as mil e uma formas de se apaixonar e desapaixonar, qual
adolescente – tudo isto acabou efetivamente por se apresentar aos meus
olhos como uma forma de energia em si mesma, uma força capaz de criar
uma dilação no tempo, como se de facto se deslocasse à velocidade da luz,
longe de todos nós – amarrados à Terra e a envelhecer mais depressa do que
ela – enquanto olhava cá para baixo e se perguntava porquê.
O efeito foi ainda mais flagrante quando recebia a visita de uma das suas
irmãs de Bendigo, ou quando estava com Judy, que conhecia desde a escola
secundária. O que é que estas pessoas de meia-idade ou mais, com as suas
famílias destroçadas e rugas e desilusões e casamentos difíceis e
padecimentos físicos – o que é que qualquer delas tinha que ver com
Aimee? Como podia alguma destas pessoas ter crescido com ela, ou
dormido um dia com os mesmos rapazes ou sido capazes de correr de igual
maneira à mesma velocidade pela mesma rua abaixo no mesmo ano? Não
era só porque Aimee parecia muito nova – embora de facto parecesse – mas
porque uma jovialidade quase inacreditável lhe percorria o corpo todo.
Chegava-lhe aos ossos, influenciando a forma como se sentava, se mexia,
pensava, falava, tudo. Havia quem, como Marco, o seu temperamental
cozinheiro italiano, fosse cínico e agressivo em relação a isso, diziam que
era fruto do dinheiro, que era tudo um efeito secundário do dinheiro e não
do trabalho, nunca de trabalho digno desse nome. Mas nas nossas viagens
com Aimee conhecíamos imensas pessoas com muito dinheiro que não
faziam nada, muito menos do que Aimee – que, à sua maneira, trabalhava
duramente – e muitas delas pareciam velhas como Matusalém. E, portanto,
era razoável supor, como tanta gente supunha, que eram os amantes jovens
que mantinham Aimee jovem, argumento que afinal de contas foi o seu
durante anos – isso e o facto de não ter filhos. Mas esta teoria não
sobreviveu ao ano em que cancelou as digressões sul-americana e europeia,
e ao nascimento do filho, Jay, e, dois anos depois, da pequena Kara, e à
rápida dispensa de um pai e namorado de meia-idade, e à conquista e
subsequente dispensa, ainda mais expedita que a anterior, de um segundo
pai e marido, que era, verdade seja dita, pouco mais do que um rapazinho.
Certamente, pensavam as pessoas, certamente que toda esta experiência,
acumulada em tão poucos anos, vai deixar marcas, ou não deixará? Mas
enquanto os elementos da equipa saíam daquele turbilhão exaustos,
completamente espremidos, prontos para dez anos de sono, Aimee, essa,
continuava praticamente intacta, mais ou menos a mesma que sempre tinha
sido, carregada de uma energia assustadora. Depois do nascimento de Kara
voltou diretamente para o estúdio, para o ginásio, para a estrada,
contratavam-se mais amas, apareciam os tutores, e ela emergia de tudo
aquilo, escassos meses depois, com o ar de uma mulher madura de vinte e
seis anos de idade. Estava quase a fazer quarenta e dois. Eu ainda estava
quase a fazer trinta, era um daqueles factos a meu respeito que Aimee tinha
decidido obcecadamente não esquecer, e durante as duas semanas anteriores
insistiu constantemente em que havíamos de fazer uma «noite de
mulheres», só nós as duas, telefones desligados, concentração total,
atenção, coquetéis, tudo coisas que eu não esperava nem tinha pedido, mas
ela não desistia, e depois, claro, chegou o dia e nem uma palavra sobre o
meu aniversário, passámos o dia a falar com jornalistas noruegueses, após o
que ela jantou com os filhos, enquanto eu, sozinha no meu quarto, tentava
ler. Às dez da noite ela ainda estava no estúdio de dança e eu fui
interrompida por Judy, que enfiou a cabeça na porta, sempre com o mesmo
cabelo espigado, resquícios da sua juventude em Bendigo, para me dizer,
sem tirar os olhos do telefone, que tinha de lembrar a Aimee que íamos voar
para Berlim na manhã seguinte. Passou-se isto em Nova Iorque. O estúdio
de dança de Aimee era maior do que um salão de baile, uma caixa de
espelhos com uma barra de nogueira a toda a volta. Tinha sido escavado na
cave da moradia. Quando entrei, ela estava sentada em posição de
espargata, completamente imóvel, como se estivesse morta, a cabeça atirada
para a frente, uma franja comprida – ruiva na altura – a cobrir-lhe a cara.
Ouvia-se música. Esperei a ver se ela se virava para mim. Em vez disso
levantou-se de um salto e começou a executar um número, sempre de frente
para os espelhos que a refletiam. Havia algum tempo que não a via dançar.
Já era raro integrar-me na multidão para assistir aos concertos: esse aspeto
da vida dela era-me muito distante, a atuação artificial de uma pessoa que
agora conhecia muito bem, a um nível mais profundo, granular. Uma pessoa
para quem agendava abortos, contratava pessoas para lhe passear os cães,
encomendava flores, escrevia cartões do Dia da Mãe, a quem aplicava
cremes, administrava injeções, espremia pontos negros, limpava muito raros
acessos de choro, e assim por diante. Na maior parte dos dias nem diria que
trabalhava para uma artista de palco. O meu trabalho com e para Aimee
acontecia essencialmente em carros, ou em sofás, em aviões e escritórios,
em muitos tipos de ecrãs e em milhares de emails.
Mas ali estava ela, a dançar. Ao som de uma canção que não reconheci –
agora até ao estúdio era raro ir – mas os passos propriamente ditos eram-me
familiares, não tinham mudado muito ao longo dos anos. A maior parte do
número sempre consistiu principalmente numa forma de caminhada
estridente: uma passada vigorosa que marca os limites do espaço em que se
encontra, como um grande felino que ronda metodicamente o perímetro da
sua jaula. O que agora me surpreendia era a força erótica que aquele
número mantinha intacta. Normalmente, quando elogiamos uma bailarina
dizemos: até parece fácil. Não é o caso com Aimee. Parte do seu segredo,
senti enquanto a observava, é a forma como consegue extrair alegria do
esforço, porque nenhum dos seus movimentos fluía instintiva ou
naturalmente do anterior, cada «passo» era nitidamente visível,
coreografado, e no entanto, enquanto se desfazia em suor na execução, o
próprio esforço transmitia erotismo, era como ver uma mulher cortar a meta
no fim de uma maratona, ou aplicar-se na obtenção de um orgasmo. A
mesma revelação extasiante da força de vontade de uma mulher.
«Deixa-me acabar» bradou, para a sua imagem no espelho.
Eu fui para o canto mais distante, deixei-me deslizar pela parede
espelhada, sentei-me no chão e reabri o livro que levava. Tinha decidido
instituir uma nova regra para mim própria: ler meia hora por noite,
acontecesse o que acontecesse. O livro que tinha escolhido não era grande,
mas ainda não tinha avançado muito nele. Ler era praticamente impossível
para quem trabalhava com Aimee, a restante equipa achava que era
profundamente impraticável e penso que em certo sentido essencialmente
desleal. Mesmo em voos de longo curso – mesmo que estivéssemos a
regressar à Austrália – ou estávamos a responder a emails relacionados com
Aimee ou a folhear um monte de revistas, coisa que sempre podia passar
por trabalho, porque Aimee vinha na revista que tínhamos na mão ou viria
muito em breve. Aimee também lia livros, às vezes livros decentes,
recomendados por mim, com mais frequência disparates de autoajuda ou
dietas que Judy ou Granger lhe punham à frente, mas as leituras eram uma
coisa à parte, afinal de contas era Aimee e podia fazer o que quisesse. Às
vezes aproveitava ideias dos livros que eu lhe dava – uma época ou uma
personagem ou uma ideia política – que mais tarde acabariam, em versão
deformada e vulgar, num ou noutro vídeo ou canção. Mas isto não alterava
a opinião de Judy sobre a leitura em geral, para ela era uma espécie de vício
porque nos roubava tempo valioso que de outra forma podíamos passar a
trabalhar para Aimee. Ainda assim, às vezes era necessário, até para Judy,
ler um livro – porque estava em vias de dar origem a um filme com a
participação de Aimee, ou era de alguma forma necessário para um projeto
– e nestas situações aproveitava os voos de longo curso para ler um terço do
livro, de pés levantados e ar enjoado. Nunca lia mais do que um terço –
«apanho o essencial da ideia» – e quando acabava proferia uma de quatro
sentenças possíveis. «Vivo» – o que era bom; «Importante», o que era
muito bom; «Controverso» – o que podia ser bom ou mau, nunca se sabia;
ou «Liderário», o que era pronunciado com um suspiro e um revirar de
olhos e era muito mau. Se eu tentava contestar o que quer que fosse, Judy
encolhia os ombros e dizia: «Que sei eu? Não passo de uma rapariguinha
ignorante de Bendigo», e isto, dito ao alcance do ouvido de Aimee, matava
qualquer projeto sem apelo nem agravo. Aimee nunca subestimava a
importância da terra natal. Apesar de, para ela, Bendigo pertencer ao
passado – já não se parecia com os seus conterrâneos, sempre cantara com
um sotaque a imitar o americano e referia-se muitas vezes à sua infância
como uma forma de morte em vida – continuava a considerar a sua terra
natal um símbolo poderoso, quase uma espécie de ascendente. A sua teoria
era que uma estrela tem Nova Iorque e LA no bolso, uma estrela pode
conquistar Paris e Londres e Tóquio – mas só uma superestrela conquista
Cleveland e Hyderabad e Bendigo. Uma superestrela conquista toda a gente
em toda a parte.
«Que estás a ler?»
Eu mostrei-lhe o livro. Ela voltou a juntar as pernas – da posição em que
tinham aterrado com a espargata – e torceu o nariz à capa.
«Nunca ouvi falar.»
«Cabaret? Basicamente é isso.»
«Um livro sobre o filme?»
«Um livro que é anterior ao filme. Pensei que podia ser útil, já que vamos
para Berlim. A Judy mandou-me cá para te meter na ordem.»
Aimee fez uma careta ao espelho.
«Eu quero que a Judy se lixe. Ultimamente anda a dar-me cabo do juízo.
Achas que será a menopausa?»
«Acho que é por tu seres uma chata.»
«Ha ha.»
Estendeu-se no chão e levantou a perna direita na vertical e esperou. Eu
aproximei-me e ajoelhei-me junto dela e dobrei-lhe o joelho até tocar no
peito. Era fisicamente muito mais forte do que ela – mais larga, mais alta,
mais pesada – e, por isso, quando lhe fazia estes alongamentos, sentia que
precisava de ter cuidado, que ela era muito frágil e podia parti-la, apesar de
ter músculos que eu nem sequer imaginava ter, e de já a ter visto levantar
jovens dançarinos quase à altura da cabeça.
«Os noruegueses eram uns chatos, não eram?», disse entre dentes, e então
teve uma ideia, como se nenhuma das nossas conversas das últimas três
semanas tivesse existido. «Porque é que não vamos sair? Tipo agora
mesmo. A Judy não precisa de saber. Saímos pelas traseiras. ’Bora beber
uns copos? Apetece-me. Não precisamos de nenhum pretexto.»
Eu sorri-lhe, pensei no que deve ser a vida neste mundo de factos
inconstantes, que mudam ou desaparecem, dependendo do estado de
espírito da pessoa.
«Qual é a graça?»
«Nenhuma. Vamos a isso.»
Ela tomou um duche e vestiu-se à civil: calças de ganga pretas, colete
preto e boné de basebol enterrado na cabeça, o que tinha como resultado
que as orelhas lhe despontavam por entre o cabelo, dando-lhe um ar
inesperadamente ridículo. As pessoas não acreditam em mim quando lhes
digo que ela gosta de sair para dançar, e é verdade que não fazíamos isso
muitas vezes, mas acontecia e nunca levantava grandes ondas,
provavelmente porque íamos tarde e a sítios gays, e quando os rapazes a
identificavam já estavam pedrados e felizes e imbuídos de um tipo
expansivo de boa vontade: queriam protegê-la. Anos antes tinha sido deles,
antes de ser de mais ninguém, e tomar conta dela agora era uma forma de
demonstrarem que ainda lhes pertencia. Ninguém pedia autógrafos, nem a
obrigava a posar para fotografias, ninguém avisava a imprensa –
dançávamos, simplesmente. O meu único papel era demonstrar que não
tinha pedalada para ela, e nem precisava de fingir, porque não tinha mesmo.
Quando eu começava a sentir ardor na barriga das pernas e a ficar
encharcada em suor como se estivesse debaixo de uma mangueira, ela
continuava a dançar e eu tinha de me sentar à espera dela. Estava a fazer
exatamente isso, na zona circunscrita por cordas, quando senti uma grande
pancada num ombro e uma coisa molhada na cara. Levantei os olhos.
Aimee estava de pé, debruçada sobre mim, a rir-se e a olhar para baixo,
com o suor a pingar da sua cara para a minha.
«De pé, soldado. Vamos zarpar.»
Era uma da manhã. Não propriamente muito tarde, mas eu queria ir para
casa. Em vez disso, quando nos aproximávamos da Village, ela baixou o
separador e disse a Errol que não parasse em casa e seguisse pela Sétima e
pela Grove, e quando Errol tentou protestar pôs a língua de fora e subiu o
separador. Parámos à porta de um piano-bar minúsculo e de mau aspeto. Eu
já ouvia uma voz masculina a cantar num arranhado vibrato da Broadway
um número do musical Chorus Line. Errol baixou o vidro e olhou alarmado
para a porta aberta. Depois olhou para mim suplicante, em solidariedade
comigo, como duas pessoas que estão no mesmo barco – aos olhos de Judy
seríamos os dois responsabilizados na manhã seguinte – mas quando Aimee
tomava uma decisão eu não conseguia fazer nada. Abriu a porta e puxou-me
para fora do carro. Estávamos ambas embriagadas: Aimee superexcitada,
com as baterias perigosamente recarregadas, eu exausta, piegas. Sentámo-
nos num canto escuro – tudo ali eram cantos escuros – cada uma com o seu
vodca martini, trazidos por um empregado com a idade de Aimee, tão
emocionado por estar a servi-la que não era claro como ia levar a cabo a
tarefa prática de pôr as bebidas à nossa frente antes de desmaiar. Eu tirei-lhe
os copos das mãos trémulas e tive de ouvir Aimee contar a história de
Stonewall, tintim por tintim, Stonewall isto, Stonewall aquilo, como se
nunca tivesse estado em Nova Iorque e não soubesse nada daquilo. Ao
piano, um grupo de mulheres brancas que participavam numa despedida de
solteira cantava um excerto qualquer de O Rei Leão; tinham umas vozes
horríveis, esganiçadas, e estavam constantemente a esquecer-se da letra.
Apesar de saber que era uma infantilidade, eu estava absolutamente furiosa
por causa do meu aniversário, a fúria era a única coisa que me mantinha
acordada, alimentava-me dela daquela forma moralista a que só podemos
recorrer se nunca revelarmos o mal de que somos vítimas. Engoli o martini
e ouvi sem comentários, enquanto Aimee mudava de assunto, de Stonewall
para os seus primeiros tempos como bailarina eventual, em Alphabet City,
em finais dos anos setenta, quando todos os seus amigos eram «aqueles
rapazes negros loucos, homossexuais, divas; já morreram todos», histórias
que tinha ouvido tantas vezes que quase conseguia repeti-las, e tentava a
todo o custo descobrir uma forma de a fazer calar quando ela anunciou que
«ia à casinha», com uma entoação que só usava quando estava muito
embriagada. Sabia que a experiência dela com sanitários públicos era
limitada, mas quando consegui pôr-me de pé já ela ia alguns vinte metros à
minha frente. Quando tentava passar pelas convidadas bêbedas da
despedida de solteira o pianista levantou os olhos para mim e, cheio de
esperança, agarrou-me por um pulso: «Ei, miúda. Cantas?» Nesse momento
Aimee descia rapidamente as escadas para a cave e desaparecia-me da
vista.
«Que tal esta?» Apontou com a cabeça para a partitura e passou uma mão
cansada pela lustrosa careca cor de ébano. «Já não posso ouvir estas tipas.
Conheces? Do Gipsy?»
Tinha os dedos elegantes no teclado, e eu cantava os acordes de abertura,
o famoso preâmbulo, em que só os mortos ficam em casa, enquanto pessoas
como Mama, oh, essas são diferentes, não ficam de braços cruzados, têm
sonhos e ganas, não vão ficar a apodrecer, lutam sempre para se levantarem
– e se libertarem!
Pousei a mão no piano, virei-me para ele, fechei os olhos, e lembro-me de
ter pensado que ao menos estava a começar baixinho, era isso que
conscientemente tencionava fazer – começar baixinho e assim me manter –
cantando mais baixo do que a música para não dar nas vistas, ou não dar
demasiado nas vistas, por causa da timidez de sempre. Mas também por
deferência para com Aimee, que não era uma cantora nata, embora entre
nós esse assunto fosse tabu. Que era uma cantora tão pouco natural como as
raparigas da festa que estavam diante de mim a beber mai tais por palhinhas
nos bancos altos do bar. Mas eu era uma cantora nata, não era? Apesar de
tudo era, não era? Mas agora estava a descobrir que não podia continuar
baixinho, os meus olhos continuavam fechados, mas a minha voz crescia, e
continuava a crescer, cantava cada vez mais alto, sentia que não dependia
propriamente da minha vontade, era uma coisa que tinha soltado e agora
subia, subia e escapava do meu alcance. As minhas mãos estavam no ar, os
meus saltos batiam no chão. Sentia que tinha na mão toda a gente que
estava na sala. Cheguei a ter uma visão sentimental de mim como elemento
de uma longa linhagem de extrovertidos irmãos e irmãs, compositores,
cantores, músicos, dançarinos, pois não tinha eu também o dom tantas
vezes atribuído ao meu povo? Sabia transformar tempo em frases musicais,
em ritmos e notas, atrasando-o e acelerando-o, gerindo o tempo da minha
vida, por fim, até que enfim, aqui, em cima de um palco, ainda que só aqui.
Pensei em Nina Simone, na forma como separava cada nota da seguinte,
com o rigor, a precisão, que Bach, o seu herói, lhe tinha ensinado a fazer, e
pensei no nome que ela lhe dava «Música Clássica Negra» – detestava a
palavra jazz, que considerava uma palavra de brancos para os negros,
rejeitava-a totalmente – e pensei na voz dela, em como era capaz de
prolongar uma nota para lá do ponto de tolerabilidade e obrigava o público
a obedecer-lhe, à sua forma de ver a canção, em como tinha uma completa
falta de compaixão para com o público e era absolutamente implacável na
busca da sua liberdade! Mas estava tão absorta nestes pensamentos acerca
de Nina que não me apercebi de que estava a chegar ao fim, pensava que
ainda faltava um verso, cantei para além do acorde final, quando este
chegou, e continuei por mais algum tempo até que percebi, sim, sim, tens de
parar, já acabou. Se tinha havido alguma explosão de palmas não as ouvia,
já deviam ter acabado. Só senti o pianista a dar-me duas palmadinhas nas
costas, que estavam peganhentas e frias com o suor seco do clube anterior.
Abri os olhos. Sim, a excitação no bar tinha acabado, ou talvez nunca
tivesse começado, tudo parecia como dantes, o pianista já conversava com a
cantora seguinte, as raparigas da festa bebiam e conversavam
animadamente como se absolutamente nada tivesse acontecido. Eram duas
e meia da manhã. Aimee não estava no seu lugar. Também não estava no
bar. Percorri por duas vezes, aos tropeções, aquele espaço acanhado e
superlotado, abri a pontapé todas as cabines dos sanitários sórdidos, de
telemóvel encostado ao ouvido, ligando e voltando a ligar e indo parar ao
atendedor. Atravessei o bar aos empurrões, subi as escadas e saí para a rua.
Produzia ganidos de pânico. Estava a chover, e o meu cabelo, que tinha
alisado com o secador, começou outra vez a encaracolar-se, a uma
velocidade impressionante, cada pingo de chuva que me caía em cima
disparava um caracol, e eu meti-lhe os dedos e parecia lã de cordeiro,
molhado e elástico, espesso e vivo. Um carro buzinou. Levantei os olhos e
vi Errol estacionado no sítio onde o tínhamos deixado. O vidro da janela de
trás desceu e Aimee debruçou-se para fora dela, batendo palmas lentas.
«Oh, bravo.»
Corri para ela, pedindo desculpa. Ela abriu a porta. «Entra.»
Sentei-me ao lado dela, ainda a pedir desculpa. Ela inclinou-se para a
frente para falar com Errol.
«Vai até à baixa e volta.»
Errol tirou os óculos e apertou a cana do nariz.
«São quase três horas», disse eu, mas o separador subiu e arrancámos.
Durante uns bons dez quarteirões, Aimee não disse absolutamente nada e eu
também não. Quando íamos a passar por Union Square, virou-se para mim:
«És feliz?»
«O quê?»
«Responde à pergunta.»
«Não percebo a razão da pergunta.»
Ela humedeceu o polegar com saliva e limpou um fio de máscara que lhe
escorria pela cara e em que eu não tinha reparado.
«Estás comigo há quanto tempo? Cinco anos?»
«Quase sete.»
«OK. Portanto já tens obrigação de saber que não quero que as pessoas
que trabalham comigo», explicou pausadamente, como se estivesse a falar
com uma idiota, «sejam infelizes a trabalhar comigo. Acho que não faz
sentido.»
«Mas eu não sou infeliz.»
«Então és o quê?»
«Feliz!»
Ela tirou o boné da cabeça e pô-lo na minha.
«Nesta vida», disse, recostando-se no estofo de pele, «tens de saber o que
queres. Tens de o visualizar, e depois tens de o agarrar. Mas já conversámos
sobre isto muitas vezes. Muitas vezes.»
Eu anuí com a cabeça e sorri, tão bêbeda que pouco mais conseguia fazer.
Tinha a cara entalada entre a moldura de nogueira e o vidro, e daqui tinha
uma perspetiva nova da cidade, de cima para baixo. Tinha visto o jardim da
cobertura de um recuado antes de ver as pessoas, poucas e dispersas, que
ainda andavam na rua àquela hora, chapinhando pelos passeios
encharcados, e desta perspetiva continuava a descobrir alinhamentos
paranoicos, impensáveis. Uma chinesa idosa, apanhadora de latas, com um
antiquado chapéu cónico, arrastando a carga – centenas, talvez milhares de
latas, reunidas num enorme lençol de plástico – debaixo das janelas de um
edifício onde eu sabia que morava um multimilionário chinês, amigo de
Aimee, com quem um dia discutira a possibilidade de abrirem uma cadeia
de hotéis.
«E nesta cidade tens mesmo de saber o que queres», dizia Aimee, «mas
parece-me que ainda não sabes. OK, és esperta, isso já sabemos. Pensas que
aquilo que estou a dizer não se aplica a ti, mas aplica-se. O cérebro está
ligado ao coração e aos olhos – é tudo visualização, tudo. Queres, vês,
agarras. Sem desculpas. Eu nunca peço desculpa por aquilo que quero! Mas
vejo-te – e vejo que passas a vida a pedir desculpa! É como se sofresses da
culpa do sobrevivente, ou coisa parecida! Mas já não estamos em Bendigo.
Deixaste Bendigo – verdade? Como Baldwin deixou Harlem. Como Dylan
deixou... A porra do lugar onde nasceu! Há alturas em que tens de virar as
costas a Bendigo! Graças a deus, nós as duas virámo-las. Há muito tempo.
Bendigo pertence ao passado. Percebes o que eu estou a dizer, não
percebes?»
Acenei sucessivas vezes que sim, apesar de não fazer ideia nenhuma do
que ela estava a dizer, tirando a forte sensação que normalmente tinha com
Aimee de que ela achava a sua história pessoal aplicável universalmente,
mais ainda quando estava embriagada, de que nesses momentos todos nós
vínhamos de Bendigo, e todos nós tínhamos pais que haviam morrido
quando éramos novos, e todos tínhamos visualizado a nossa sorte e a
tínhamos agarrado. A fronteira entre Aimee e todas as outras pessoas
tornava-se obscura, difícil de definir com exatidão.
Sentia-me agoniada. Deixei cair a cabeça, como um cão, em plena noite
de Nova Iorque.
«Ouve, tu não vais passar a vida inteira a fazer isto», ouvi-a dizer, pouco
depois, quando íamos a entrar em Times Square, passando por um modelo
somali com vinte e quatro metros de altura e sessenta centímetros de cabelo
afro que dançava animadamente na parede lateral de um edifício vestindo
umas normalíssimas calças Gap. «Isso não podia ser mais óbvio. Portanto, a
questão passa a ser: que vais fazer, depois disto? Que vais fazer da tua
vida?»
Eu sabia que a resposta certa a esta pergunta devia ser «ter um negócio
meu» disto ou daquilo, ou algo difusamente criativo como «escrever um
livro» ou «abrir um retiro de ioga», porque Aimee achava que para fazer
este género de coisas uma pessoa só tinha de, digamos, entrar nos
escritórios de uma editora e anunciar a sua intenção. Tinha sido essa a sua
experiência. Que podia saber das vagas de tempo que simplesmente
atingem uma pessoa, uma a seguir à outra? Que podia saber da vida como
sobrevivência temporária, sempre parcial, desse processo? Fixei o olhar no
modelo somali dançante.
«Eu estou bem! Sou feliz!»
«Pois eu acho que tens demasiadas coisas dentro da cabeça», disse,
batendo na sua. «Talvez precises de foder mais... É que a impressão que dás
é que não fodes nada. Será culpa minha? Eu tento ajudar, não tento? Estou
sempre a tentar. Nunca me dizes como corre.»
O carro encheu-se de luz. Vinha de um gigantesco anúncio digital a uma
coisa qualquer, mas dentro do carro parecia uma luz delicada e natural,
como o nascer do dia. Aimee esfregou os olhos.
«Bem, tenho projetos para ti», disse, «se queres projetos. Toda a gente
sabe que tens capacidades para fazer mais do que aquilo que estás a fazer.
Por outro lado, se queres saltar do barco, agora é capaz de ser boa altura. Eu
estou a levar muito a sério este projeto em África – não, não me revires os
olhos; precisamos de limar algumas arestas, é claro que sei isso, não sou
louca – mas vai acontecer. A Judy tem andado a conversar com a tua mãe.
Sei que também não queres ouvir falar disso, mas tem, e a tua mãe não é tão
desmiolada como tu pensas. A Judy acha que a zona... Bem, neste momento
estou com uma touca tão grande que nem me lembro bem onde é, um país
muito pequeno... na costa ocidental? Mas ela acha que para nós pode ser
uma escolha muito interessante, tem potencial. É o que diz a Judy. E
acontece que a tua mãe, ilustre deputada, sabe muito sobre isso. É o que diz
a Judy. A questão é que vou precisar da colaboração de toda a gente, e gente
que queira estar aqui», disse, apontando para o coração. «Não gente que
continua a perguntar-se por que razão cá está.»
«Eu quero estar aí», disse eu, olhando para o ponto, embora sob a
influência da vodca os seios pequenos dela se duplicassem, depois se
cruzassem, depois se fundissem.
«Inverto a marcha agora?», perguntou Errol cheio de esperança, através
de um microfone.
Aimee suspirou. «Inverte agora. Bem», disse, virando-se de novo para
mim, «nos últimos meses tens andado esquisita. Desde que viemos de
Londres. É muita energia negativa. É o tipo de energia negativa que tem
mesmo de ser enterrada, caso contrário percorre o circuito inteiro e afeta
toda a gente.»
Então fez uma série de gestos com as mãos que sugeriam uma qualquer
lei da física até aí desconhecida.
«Passou-se alguma coisa em Londres?»
3

Quando acabei de lhe responder tínhamos invertido a marcha e estávamos


a chegar a Union Square, onde levantei os olhos e vi o número naquele
enorme painel pulsante avançar velozmente, expelindo fumo pelo dantesco
furo vermelho que tem no meio. Deu-me uma sensação de asfixia. Muitas
coisas que aconteceram durante aqueles meses em Londres tinham-me
deixado sem fôlego: desistira finalmente do meu apartamento, por não lhe
dar uso, e passara a noite de pé num palanque cheio de gente para ver um
homem de gravata azul subir ao palco e reconhecer a vitória da minha mãe
vestida de vermelho. Tinha visto um panfleto a anunciar uma noite de hip-
hop dos anos noventa, no Jazz Café, e desejado desesperadamente ir, mas
não consegui lembrar-me de um único amigo que pudesse convidar, apenas
porque nos últimos anos tinha viajado de mais, não aparecia nos sítios
habituais, não acompanhava a pedalada das mensagens no email pessoal,
por um lado por falta de tempo e por outro porque Aimee torcia o nariz a
que «socializássemos» na Net, com medo das conversas descuidadas e das
fugas de informação. Sem sequer dar por isso, tinha negligenciado as
minhas amizades. Por isso fui sozinha, embebedei-me e acabei na cama
com um dos porteiros, um americano enorme, de Filadélfia, que garantia ter
sido em tempos basquetebolista profissional. Como quase todos os seus
colegas de profissão – caso de Granger – tinha sido contratado pela altura e
pela cor da pele, pela ameaça que se considerava implícita na conjugação
das duas coisas. Dois minutos a fumar um cigarro com ele haviam revelado
um tipo amável, de bem com o universo, desajustado no papel que
desempenhava. Eu levava um saquinho de cocaína, que o cozinheiro de
Aimee me tinha dado, e quando chegou o intervalo do meu porteiro fomos
para as cabines dos sanitários e consumimos uma grande quantidade, de
uma prateleira brilhante atrás das sanitas que parecia concebida
expressamente para aquele fim. Ele contou-me que odiava aquele emprego,
a agressividade, tinha pavor de deitar as mãos a quem quer que fosse.
Quando acabou o turno dele saímos juntos, às risadinhas no táxi, com ele a
massajar-me os pés. Quando chegámos ao meu apartamento, onde tinha
tudo empacotado em caixas, prontas para irem para os enormes armazéns
de Aimee em Marylebone, ele agarrou-se à barra de elevações que eu, cheia
de boas intenções, tinha mandado pôr por cima da cama e nunca tinha
utilizado, tentou fazer uma elevação e arrancou aquela porcaria da parede, e
com ela parte do estuque. Na cama, porém, quase não o senti dentro de mim
– talvez ressequida pela cocaína. Não me pareceu que ele se importasse.
Adormeceu alegremente em cima de mim como um grande urso e depois,
com igual alegria, por volta das cinco da manhã, despediu-se de mim e foi-
se embora. Eu acordei de manhã com o nariz a sangrar e com a sensação
nítida de que a minha juventude, ou pelo menos esta versão dela, havia
chegado ao fim. Seis semanas depois, num domingo de manhã, enquanto
Judy e Aimee me enviavam frenéticas mensagens de texto sobre o
arquivamento, em Milão, de uma parte do guarda-roupa de palco de Aimee,
anos 92-98, estava, sem elas saberem, sentada no centro de colheitas do
Royal Free Hospital, à espera dos resultados de um teste de DST e SIDA,
ouvindo várias pessoas, muito menos afortunadas do que eu viria a verificar
que era, serem levadas para pequenos gabinetes onde pudessem chorar. Mas
não falei em nada disto com Aimee. Falei-lhe, isso sim, de Tracey. De
Tracey, imagine-se. Toda a nossa história, minha e dela, cuja cronologia
oscilava confusamente para trás e para a frente no tempo e na vodca, todos
os ressentimentos empolados, os prazeres diminuídos ou destruídos, e
quanto mais falava mais nitidamente via e compreendia – como se a
verdade fosse uma coisa enterrada que brotasse de um poço de vodca para
vir ao meu encontro – que em Londres só tinha acontecido realmente uma
coisa: tinha visto Tracey. Depois de tantos anos sem ver Tracey, tinha-a
visto. Nada mais tinha importância. Era como se nada, no período entre a
última vez que a vi e esta, tivesse acontecido.
«Espera, espera», disse Aimee, também ela demasiado embriagada para
disfarçar a impaciência com o monólogo de outra pessoa. «Essa é a tua
amiga mais antiga, não é? É, sim, eu sei que é. Eu conheço-a?»
«Não.»
«E é dançarina?»
«É.»
«São as melhores pessoas que há! O corpo diz-lhes o que devem fazer!»
Eu ia sentada na borda do assento, mas entretanto tinha-me deixado cair
para trás e encostado a cabeça à fria almofada de canto feita de vidro
escuro, nogueira e cabedal.
«Pois é, não podemos fazer velhos amigos»9, proclamou Aimee, de uma
forma que se poderia pensar que a frase era de sua autoria. «Que faria eu
sem a minha querida e velha Jude? Desde os nossos quinze anos! Foi para a
cama com o tipo que eu levei ao baile do liceu. Mas mete-me nos eixos, oh
se mete. Mais ninguém faz isso...»
Eu já estava habituada a que Aimee transformasse histórias a meu
respeito em histórias a seu respeito, mas o álcool dava-me a ousadia de
acreditar que, naquele momento, as nossas vidas eram realmente de igual
importância, igualmente dignas de se falar delas, igualmente merecedoras
de tempo para isso.
«Foi depois daquele almoço com a minha mãe», expliquei, devagar. «Na
noite em que saí com aquele tipo Daniel? Em Londres. O encontro do
desastre.»
Aimee franziu a testa: «O Daniel Kramer? Fui eu que arranjei esse
encontro. O financeiro? Estás a ver, não me contaste nada disso!»
«Bem, foi um desastre – fomos a um espetáculo. E ela entrava na merda
do espetáculo.»
«Falaste-lhe.»
«Não! Já não falo com ela há oito anos. Acabei de te dizer isso. Não estás
a ouvir o que eu te digo?»
Aimee pousou os dedos nas fontes.
«A cronologia é confusa», murmurou. «Ainda por cima dói-me a cabeça.
Ouve... Quer dizer, não sei... talvez devesses telefonar-lhe! Parece que é
isso que queres. Telefona-lhe agora – foda-se, eu falo com ela.
«Não!»
Ela arrancou-me o telefone da mão – a rir-se, percorreu a minha lista de
contactos, e quando tentei tirar-lho pô-lo fora da janela do seu lado.
«Dá cá isso!»
«Ora, vá lá – ela vai adorar.»
Consegui trepar por cima dela, agarrar o telefone e entalá-lo entre as
coxas.
«Tu não percebes. Ela fez-me uma coisa horrível. Tínhamos vinte e dois
anos. Uma coisa horrível.»
Aimee levantou uma das suas famosas sobrancelhas geométricas e subiu
o separador que Errol – que queria saber para qual das entradas da casa
íamos – tinha acabado de descer.
«Bom, agora estou sinceramente interessada...»
Virámos para Washington Square Park. As casas à volta da praça
erguiam-se vermelhas e nobres, as fachadas banhadas por uma luz quente,
mas dentro do parque tudo era escuro e gotejante, vazio de gente, tirando
meia dúzia de sem-abrigo negros, no canto direito mais distante, sentados
nas mesas de xadrez, os corpos embrulhados em sacos de lixo com buracos
para os braços e as pernas. Encostei a cara ao vidro, fechei os olhos, senti as
pingas da chuva e contei a história como me lembrava dela, a ficção e a
realidade, numa pressa dolorosa, sincopada, como se corresse em cima de
estilhaços de vidro, mas quando abri os olhos foi ao som de Aimee outra
vez a rir-se.
«Não tem porra de graça nenhuma!»
«Espera – estás a falar a sério?»
Tentou puxar o lábio superior para dentro da boca e mordê-lo.
«Será que estou enganada», perguntou, «ou tu estás a fazer uma
tempestade num copo de água?»
«O quê?»
«Para ser franca, a única pessoa de quem tenho pena nesse cenário – se
for verdadeiro – é do teu pai. Pobre homem! Completamente só, a tentar
bater uma…»
«Para com isso!»
«Não é nenhum Jeffrey Dahmer.»
«Mas não é normal. Achas que é normal o que ele fez?»
«Normal? Não percebes que todos os homens deste mundo com acesso a
um computador, incluindo o Presidente, está neste preciso momento a olhar
para vaginas ou acabou de olhar para vaginas…»
«Não é a mesma coisa…»
«É exatamente a mesma coisa. Com a diferença de que o teu pai nem
computador tinha. Achas que se o George W. Bush vir «Dez Ratinhas
Asiáticas»… é o quê? Um perigoso assassino em série?
«Bem...»
«Bom argumento – mau exemplo.»
Eu ri-me, contra a minha vontade.
«Desculpa. Se calhar estou a ser estúpida. Não percebo. Porque é que
estás zangada, exatamente? Por ela te ter contado? Acabaste de dizer que
achavas que era uma parvoíce!»
Era desconcertante, depois de tantos anos da minha lógica retorcida, ouvir
o problema reduzido à linha reta que Aimee preferia. A clareza perturbou-
me.
«Ela estava sempre a mentir. Tinha a mania de que o meu pai era perfeito,
e queria destruir a imagem que eu tinha dele, queria que detestasse o meu
pai como ela odeia o seu. A partir daí nunca mais consegui olhá-lo nos
olhos. E foi assim até ele morrer.»
Aimee suspirou: «É a coisa mais estúpida que ouvi na puta da vida.
Transformaste-te numa pessoa triste sem razão absolutamente nenhuma.»
Fez menção de me tocar no ombro, mas eu virei-lhe as costas e limpei do
olho uma lágrima traiçoeira.
«Sou mesmo estúpida.»
«Não. Todas nós temos as nossas merdas. Mas devias telefonar à tua
amiga.»
Fez uma pequena almofada com o casaco e encostou a cabeça à janela, e
quando atravessámos a Sexta Avenida já ia a dormir. Era a rainha das sestas
curtas e revigorantes, tinha de ser, para viver como vivia.
9 «You can’t make old friends» é um verso de uma canção de Kenny Rogers. (N. do T.)
4

Meses antes, em Londres – poucos dias antes das eleições – tinha


almoçado com a minha mãe. Estava um dia cinzento e húmido, as pessoas
atravessavam a ponte sem alegria, fustigadas pela chuva miúda, e até os
monumentos mais imponentes, até o Parlamento, me pareciam soturnos
tristes e deprimentes. Tudo me fazia desejar que já estivéssemos em Nova
Iorque. Queria toda aquela altura e vidro batido pelo sol, e depois de Nova
Iorque Miami, e depois cinco paragens na América do Sul e finalmente a
digressão europeia, podia passar-se um ano inteiro. Era o que eu gostava.
As outras pessoas tinham de atravessar as estações, tinham de se arrastar ao
longo de cada ano. No mundo de Aimee não vivíamos assim. Nem
podíamos, ainda que quiséssemos: nunca estávamos o tempo suficiente em
nenhum lugar. Se não gostávamos do inverno voávamos para o verão.
Quando estávamos cansados das cidades íamos para a praia – e vice-versa.
Estou a exagerar ligeiramente, não muito. Os meus últimos anos antes dos
trinta tinham passado num estranho estado de intemporalidade, e agora
penso que nem toda a gente podia ter-se encaixado numa vida assim, que de
alguma forma devia estar preparada para ela. Mais tarde dei comigo a
pensar se não seríamos escolhidos exatamente por esta razão, exatamente
porque de um modo geral éramos pessoas com poucas ligações ao mundo
exterior, sem consortes nem filhos, com o mínimo possível de família. A
forma como vivíamos contribuía sem dúvida para que assim
continuássemos. Das quatro assistentes de Aimee, só uma teve um filho, e
só quando ia a meio da casa dos quarenta, muito depois de se ter demitido.
Para se subir a bordo daquele Learjet era preciso ser-se livre de todas as
peias. De outra maneira não resultava. Eu, agora, só tinha uma corda – a
minha mãe – e estava, à semelhança de Aimee, no seu apogeu, se bem que,
ao contrário de Aimee, a minha mãe precisasse muito pouco de mim.
Estava eufórica, a poucos dias de se tornar Membro do Parlamento pelo
círculo de Brent West, e quando virei à esquerda, a caminho da Oxo Tower,
deixando para trás o Parlamento, senti, como de costume, a minha pequenez
em comparação com ela, com o nível que havia atingido, a trivialidade
daquilo que fazia em comparação com o que ela fazia, apesar de todas as
suas tentativas de me orientar para outro caminho. Parecia-me mais digna
de admiração do que nunca. Atravessei a ponte sempre agarrada à vedação,
até me ver do outro lado.
Estava muito húmido para ficar na esplanada. Levei alguns minutos até
dar com o restaurante, mas depois localizei a minha mãe, que afinal estava
cá fora, debaixo de um guarda-sol, protegida da morrinha, e com Miriam,
embora na nossa conversa telefónica não se tivesse falado de Miriam. Eu
não desgostava de Miriam. Ou melhor, não sentia nada por ela, era difícil
sentir alguma coisa por ela: era demasiado pequena e calada e séria. Todas
as suas feições desinteressantes estavam concentradas no meio da cara
miúda, e tinha o cabelo natural apanhado em rastas finas, que começavam a
embranquecer elegantemente nas pontas. Tinha uns óculos pequenos, de
lentes redondas com armação dourada, que nunca tirava e lhe faziam os
olhos ainda mais pequenos do que eram. Vestia blusa de malha castanha,
simples, e calças pretas lisas, independentemente da ocasião. Uma moldura
fotográfica humana, com o único objetivo de realçar a minha mãe. Tudo o
que a minha mãe dizia sempre de Miriam era: «A Miriam faz-me muito
feliz.» Miriam nunca falava de si – só falava da minha mãe. Tive de a
pesquisar no Google para descobrir que era afro-cubana, nascida em
Lewisham, que em tempos tinha trabalhado em ajuda internacional mas
agora lecionava na Queen Mary – numa posição de adjunta muito
subalterna – e andava a escrever um livro «sobre a diáspora» desde antes de
eu a conhecer, o que significava quatro anos. Foi apresentada aos eleitores
da minha mãe com o mínimo de alarido num acontecimento qualquer numa
escola local, fotografada, encostada à minha mãe, um tímido ratinho ao lado
da sua leoa, e os jornalistas do Willesden and Brent Times ouviram
exatamente o mesmo que eu: «A Miriam faz-me muito feliz.» Ninguém
parecia particularmente interessado, nem mesmo os jamaicanos idosos e os
evangélicos africanos. Fiquei com a sensação de que os eleitores da minha
mãe não viam realmente a minha mãe e Miriam como namoradas, eram
simplesmente aquelas duas senhoras simpáticas de Willesden, que tinham
salvado a velha sala de cinema e lutado pela ampliação do centro de lazer e
instituído o Mês de História dos Negros em todas as bibliotecas locais. Em
campanha, formavam um par eficaz: quem achava a minha mãe demasiado
afirmativa podia procurar conforto na discreta passividade de Miriam,
enquanto as pessoas que achavam Miriam uma chata apreciavam a
animação que a minha mãe criava onde quer que fosse. Ao ver agora
Miriam acenar rapidamente, recetivamente, enquanto a minha mãe
perorava, percebi que também eu estava feliz com a sua existência: era um
bom amortecedor. Avancei e pousei a mão no ombro da minha mãe. Ela não
levantou os olhos nem interrompeu o que estava a dizer, mas acusou o meu
toque e levantou uma das mãos para pousá-la sobre a minha, recebendo de
bom grado o beijo que lhe dei na face. Puxei uma cadeira e sentei-me.
«Como estás, mamã?»
«Nervosa!»
«A tua mãe está muito nervosa», confirmou Miriam, e começou a
enunciar em voz baixa as muitas causas da tensão da minha mãe: os
sobrescritos que ainda era preciso encher com os panfletos e enviar pelo
correio, a margem estreita da última sondagem, as táticas desonestas da
oposição, e a alegada duplicidade da única outra mulher negra no
Parlamento, deputada há vinte anos, que a minha mãe considerava, sem
razão plausível, sua rival acérrima. Eu anuí nos momentos certos e passei os
olhos pela ementa e consegui pedir vinho a um empregado que ia a passar,
tudo isto sem interromper o curso da conversa de Miriam, os seus números
e percentagens, a minuciosa regurgitação das várias coisas «brilhantes» que
tinha dito a determinada pessoa neste ou naquele momento decisivo e como
a referida pessoa tinha respondido, deficientemente, à coisa brilhante que a
minha mãe tinha dito.
«Mas tu vais ganhar», disse eu, com uma entoação que percebi,
demasiado tarde, que ficava desajeitadamente entre a afirmação e a
pergunta.
A minha mãe fez um ar severo, desdobrou o guardanapo e pousou-o no
regaço, como uma rainha a quem alguém tivesse perguntado,
impertinentemente, se o seu povo ainda a amava.
«Se houver justiça», disse.
A nossa refeição chegou, a minha mãe tinha escolhido por mim. Miriam
tratou de comer a sua – fez-me lembrar um pequeno mamífero que espera
hibernar em breve – mas a minha mãe deixou ficar a faca e o garfo no sítio
e em vez de comer debruçou-se para a cadeira vazia ao seu lado e tirou de
lá um exemplar do Evening Standard, já aberto numa grande foto de Aimee,
em palco, justaposta com uma foto de arquivo de um grupo de crianças
africanas pobres, não percebi exatamente de onde. Não tinha visto a peça e
estava demasiado longe para ler o texto, mas adivinhei a fonte: um
comunicado de imprensa recente, a anunciar o empenhamento de Aimee na
«redução da fome à escala mundial». A minha mãe tamborilou com um
dedo no abdómen de Aimee.
«Está mesmo empenhada nisso?»
Eu pensei na pergunta: «Está apaixonadamente empenhada nisso.»
A minha mãe franziu a testa e pegou no talher.
«“Combate à pobreza”. Pois, muito bem, mas com que medidas políticas,
concretamente?»
«Ela não é política, mamã. Não tem medidas políticas. Tem uma
fundação.»
«Está bem, mas o que é que ela quer fazer?»
Eu servi a minha mãe de vinho e obriguei-a a fazer uma pausa e brindar
comigo.
«Acho que quer construir uma escola. Uma escola feminina.»
«Porque se está mesmo empenhada», disse a minha mãe, sobrepondo-se à
minha resposta, «devias aconselhá-la a falar connosco, trabalhar em
parceria com o governo, de uma forma ou de outra... É certo que tem os
meios financeiros e a atenção do público – isso é tudo muito bom – mas se
não compreender a mecânica é um monte de boas intenções que não dão em
nada. Precisa de se reunir com as autoridades competentes.»
Eu sorri ao ouvir a minha mãe já falar de si como «governo».
O que disse a seguir irritou-a tanto que se virou e deu a resposta a
Miriam, e não a mim.
«Ora, por favor – gostava muito de que não te comportasses como se eu
estivesse a pedir um grande favor. Não tenho NENHUM interesse em
encontrar-me com essa mulher, absolutamente nenhum. Nunca tive. Estava
a oferecer alguns conselhos. Pensava que seriam…»
«E são bem recebidos, mamã, muito obrigada. Eu só…»
«É que, francamente, seria de esperar que essa mulher quisesse falar
connosco. Afinal de contas, demos-lhe um passaporte britânico. Mas
pronto, deixa lá. O que acontece é que, a avaliar por isto» – voltou a acenar
com o jornal – «parecia que as intenções dela eram sérias, mas talvez não
seja assim, talvez só queira passar por uma vergonha. Isso não sei. «Mulher
branca salva África.» É essa a ideia? Já é muito velha. Bem, é o vosso
mundo, não o meu, graças a Deus. Mas ela devia ao menos falar com a
Miriam, que tem uma série de contactos úteis, contactos rurais, contactos
educacionais – não te diz porque é muito modesta. Tem dez anos de Oxfam,
caramba. A pobreza não é um simples título de jornal, meu amor, é uma
realidade vivida, no terreno – e a educação está no cerne dessa realidade.»
«Eu sei o que é a pobreza, mamã.»
A minha mãe fez um sorriso triste e meteu uma garfada à boca.
«Não, querida, não sabes.»

O meu telemóvel, para o qual estava a tentar, com todas as forças de que
dispunha, não olhar, voltou a vibrar – já tinha vibrado uma dúzia de vezes
desde que me tinha sentado – e desta vez tirei-o da carteira e tentei ver
rapidamente as mensagens, comendo com ele numa das mãos. Miriam falou
à minha mãe numa questão administrativa qualquer, o que fazia muitas
vezes quando se via apanhada numa das nossas discussões, mas a meio da
conversa a minha mãe perdeu visivelmente o interesse.
«Estás viciada nesse telefone, sabias?»
Eu não parei de digitar, mas fiz a expressão mais calma possível.
«É trabalho, mamã. Agora as pessoas trabalham assim.»
«Como escravas, queres tu dizer?»
Partiu uma fatia de pão e deu a parte mais pequena a Miriam, coisa que já
antes lhe vira fazer, era a sua ideia de dieta.
«Não, como escravas não. Eu tenho uma boa vida, mamã!»
Ela pensou nisto com a boca cheia. Abanou a cabeça.
«Não, isso não é verdade – tu não tens uma vida. Ela sim, tem uma vida.
Tem os seus homens, os seus filhos, a sua carreira – ela tem a vida. Vem
nos jornais. Tu dás assistência à vida dela. É uma gigantesca sugadora,
suga-te a juventude, rouba-te toda a tua…»
Para a obrigar a calar-se empurrei a cadeira para trás e fui aos lavabos,
demorando-me ao espelho mais tempo do que precisava, enviando mais
emails, mas quando voltei a conversa prosseguia sem interrupção, como se
não tivesse passado tempo nenhum. A minha mãe continuava a queixar-se,
mas para Miriam: «… o tempo todo. Distorce tudo. É por causa dela que
não vou ter netos.»
«Mamã, a minha situação reprodutiva não tem nada…»
«Tu estás muito perto, não vês. Ela tornou-te desconfiada de toda a
gente.»
Eu neguei, mas a seta atingiu o alvo. Não era desconfiada – sempre de pé
atrás? Atenta a qualquer sinal daquilo que Aimee e eu designávamos, entre
nós, por «clientes»? Cliente: alguém que pensávamos que estava a servir-se
de mim na esperança de se aproximar dela. Às vezes, nos primeiros anos, se
um dos meus relacionamentos conseguia – apesar de todos os obstáculos de
tempo e geografia – arrastar-se por alguns meses, ganhava um bocadinho de
confiança e coragem, e apresentava a pessoa em questão a Aimee, isso era
normalmente uma má ideia. Mal ele ia aos lavabos ou saía para fumar um
cigarro, eu fazia a pergunta a Aimee: cliente? E a resposta era: Oh, querida,
lamento, sem dúvida um cliente.
«Repara na maneira como tratas velhas amigas. A Tracey. Eram
praticamente irmãs, cresceram juntas – agora nem sequer lhe falas!»
«Mamã, tu sempre odiaste a Tracey.»
«A questão não é essa. As pessoas vêm de algures, têm raízes – tu
permitiste que esta mulher arrancasse as tuas. Não vives em sítio nenhum,
não tens nada teu, passas o tempo num avião. Quanto tempo vais conseguir
viver assim? Não me parece que ela queira que sejas feliz. Porque nessa
altura eras capaz de a deixar. E então que seria dela?
Eu ri-me, mas o som que emiti era feio, mesmo para mim.
«Não lhe acontecia nada! É Aimee! Eu sou apenas a primeira assistente,
sabes – há mais três!»
«Estou a perceber. Portanto ela pode ter quantas pessoas quiser na sua
vida, mas tu só podes tê-la a ela.»
«Não, não estás a perceber.» Levantei os olhos do telefone. «A verdade é
que hoje à noite vou sair com uma pessoa. Que a Aimee me apresentou,
portanto...»
«Ah, isso é bom», disse Miriam. Nada lhe agradava mais na vida do que
ver um conflito resolvido, qualquer conflito, e a minha mãe dava-lhe muitas
oportunidades para isso: aonde quer que fosse arranjava um conflito, que
Miriam tinha de resolver.
A minha mãe arrebitou a orelha: «Quem é ele?»
«Não o conheces. É de Nova Iorque.»
«Não posso saber como se chama? É segredo de Estado?»
«Daniel Kramer. Chama-se Daniel Kramer.»
«Ah», disse a minha mãe, sorrindo enigmaticamente para Miriam.
Trocaram um irritante olhar de cumplicidade. «Mais um judeu simpático.»

Na altura em que o empregado veio levantar os nossos pratos surgiu o Sol


no céu de chumbo. Arcos-íris atravessavam os copos do vinho e passavam
pelos talheres molhados, pelas costas das cadeiras de acrílico, irradiando do
anel de noivado de Miriam para um guardanapo de linho estendido entre
nós as três. Eu não quis sobremesa, disse que tinha de ir andando, mas
quando fiz menção de levantar a gabardina das costas da cadeira a minha
mãe fez um sinal a Miriam e Miriam entregou-me uma pasta de cartolina,
de aspeto oficial, presa por elásticos, com capítulos e fotografias, listas de
contactos, sugestões de arquitetura, uma breve história da educação na
região, uma análise do previsível «impacto nos media», planos de parcerias
com o governo, etc.: um «estudo de viabilidade». O Sol atravessava o
cinzento, uma neblina mental dissipou-se, percebi que todo aquele almoço
tivera este propósito, e só este, e eu era apenas um canal através do qual se
pretendia fazer chegar a informação a Aimee. Também a minha mãe era
uma cliente.
Agradeci-lhe a pasta e fiquei a olhar-lhe para a capa, fechada em cima
dos joelhos.
«E como é que te sentes», perguntou Miriam, piscando ansiosamente por
trás dos óculos, «em relação ao teu pai? O aniversário é na terça-feira, não
é?»
Era tão invulgar ouvir uma pergunta pessoal durante um almoço com a
minha mãe – e mais ainda que me lembrassem uma data importante para
mim – que a princípio não tive a certeza de que me fosse dirigida. A minha
mãe também pareceu alarmada. Era doloroso para ambas lembrarem-nos
que a última vez que nos víramos tinha sido num funeral, já lá ia um ano.
Tarde bizarra: o caixão ia ao encontro das chamas, eu estava sentada ao lado
dos filhos do meu pai – agora adultos, com trinta e muitos e quarenta e
muitos anos – e experimentei uma repetição da única outra vez em que
tinha estado com eles; a filha a chorar, o filho recostado na cadeira com os
braços cruzados sobre o peito, cético em relação à morte. E eu, que não
conseguia chorar, voltei a achar que ambos eram filhos do meu pai muito
mais convincentes do que eu alguma vez fora. E no entanto, na nossa
família, nunca quiséramos admitir esta improbabilidade, sempre
rechaçáramos aquilo que considerávamos ser a curiosidade banal e lúbrica
dos estranhos – «Mas isso não a confundirá no seu crescimento?», «Como é
que ela escolherá entre as vossas culturas?» –
a ponto de haver alturas em que sentia que o objetivo único da minha
infância era demonstrar aos menos esclarecidos que não estava confusa e
não tinha nenhuma dificuldade em escolher. «A vida é confusa!» – era o
remoque definitivo da minha mãe. Mas não existe também uma expectativa
arreigada de semelhança entre pais e filhos? Eu era estranha para a minha
mãe e para o meu pai, uma criança trocada à nascença que não pertencia a
nenhum deles, e embora isto acabe por ser verdade em relação a todos os
filhos – não somos os nossos pais nem eles são nós – os filhos do meu pai
iriam descobrir isto com uma certa lentidão, ao longo de anos, talvez só
estivessem a descobri-lo totalmente neste momento, enquanto as chamas
consumiam a madeira de pinho, enquanto o sabia desde que nasci, sempre o
soube, é uma verdade estampada a toda a largura da minha cara. Mas esse
era o meu drama pessoal: depois, na receção, apercebi-me de que alguma
coisa maior do que o meu desgosto tinha acontecido durante toda a
cerimónia, para onde me deslocasse naquele crematório ouvia-o, um
murmúrio ambiente, Aimee, Aimee, Aimee, mais alto do que o nome do
meu pai e mais frequente, enquanto as pessoas tentavam perceber se ela
estava de facto presente, e então, mais tarde – quando decidiram que já
devia ter entrado e saído – ouviu-se outra vez, num eco lamentoso, Aimee,
Aimee, Aimee... Até ouvi a minha irmã perguntar ao meu irmão se a tinha
visto. Sempre ali esteve, escondida à vista de todos. Uma mulher discreta,
surpreendentemente pequena, sem maquilhagem, de uma palidez quase
translúcida, vestindo um discreto fato de tweed com veias azuis que lhe
corriam pelas pernas acima, e com o seu cabelo natural, castanho e liso.
«Acho que vou pôr umas flores», disse eu, apontando vagamente para a
outra margem do rio, na direção do Norte de Londres. «Obrigada por teres
perguntado.»
«Um dia de dispensa!», disse a minha mãe, virando-se para trás,
apanhando o trem da conversa numa paragem anterior. «O dia do funeral
dele. Um dia!»
«Mamã, eu só pedi um dia.»
A minha mãe afivelou uma expressão de mãe ferida.
«Eras tão chegada ao teu pai! Eu sei que sempre encorajei isso em ti. Não
consigo perceber o que aconteceu.»
Por um momento tive vontade de lhe dizer. Em vez disso fiquei a ver um
barco de recreio a subir o Tamisa. Levava algumas pessoas a pontuar as
filas de assentos vazios, olhando para as águas cinzentas. Voltei ao meu
email.
«Aqueles pobres rapazes», ouvi a minha mãe dizer, e quando levantei a
cabeça do telefone vi-a apontar para a ponte de Hungerford quando o barco
ia a passar por baixo dela. De imediato a imagem que sabia que ela tinha na
cabeça pairou na minha: dois jovens, atirados à água por cima do parapeito.
O que sobreviveu e o que morreu. Tive um arrepio e cobri melhor o peito
com o casaco de malha.
«E também havia uma rapariga», acrescentou a minha mãe, deitando um
quarto cubo de açúcar num cappuccino espumoso. Acho que nem dezasseis
anos tinha. Praticamente crianças, todos eles. Uma tragédia. Ainda devem
estar presos.»
«É claro que ainda estão presos – mataram um homem.» Tirei um
gressino de uma taça de porcelana fina e parti-o em quatro. «Ele também
ainda está morto. Também é uma tragédia.»
«Isso sei eu», retorquiu a minha mãe. «Não sei se te lembras, mas passei
os dias quase todos na galeria do público a assistir ao julgamento.»
Lembrava-me. Tinha saído de casa pouco tempo antes e a minha mãe
tinha o hábito de me telefonar todas as noites quando regressava do High
Court a contar-me as histórias – embora eu não lhe pedisse – cada qual com
a sua tristeza grotesca, mas todas basicamente iguais: filhos abandonados
por mães ou pais ou ambos, criados por avós, ou não criados por ninguém,
infâncias inteiras passadas a cuidar de familiares doentes, em complexos de
habitação social como prisões, a cair de podres, todos na margem sul do rio,
adolescentes expulsos da escola, ou de casa, ou de ambas,
toxicodependência, abusos sexuais, furtos, dormindo ao relento – as mil e
uma formas de uma vida mergulhar no infortúnio antes mesmo de ter
começado. Lembro-me de que um deles tinha abandonado a faculdade,
outro tinha uma filha de cinco anos, morta no dia anterior num acidente de
automóvel. Já todos eram pequenos criminosos. E a minha mãe estava
fascinada com eles, tinha uma vaga ideia de escrever sobre o caso, para o
que era, na altura, o seu doutoramento. Nunca chegou a escrever.
«Aborreci-te?», perguntou, pondo a mão sobre a minha.
«Dois rapazes inocentes a atravessar a merda de uma ponte!»
Enquanto falava bati com o punho livre no tampo da mesa, sem intenção
– um velho hábito da minha mãe. Ela olhou para mim com ar preocupado e
endireitou o saleiro tombado.
«Mas, querida, quem está a pôr isso em causa?»
«Não podemos ser todos inocentes.» Pelo canto do olho vi um empregado
de mesa, que tinha vindo cá fora trazer a conta, retirar-se discretamente.
«Alguém tem de ser culpado!»
«De acordo», murmurou Miriam, torcendo nervosamente um guardanapo
nas mãos. «Acho que ninguém discorda, pois não?»
«Não tiveram uma oportunidade», disse a minha mãe com calma, mas
também com firmeza, e só mais tarde, ao atravessar a ponte para a outra
margem, quando o mau-humor me tinha passado, vi que era uma frase que
apontava em duas direções.
Quarta parte

RITUAL DE PASSAGEM
1

O maior dançarino que vi na minha vida foi o kankurang. Mas na altura


não sabia quem era, ou o quê: uma forma alaranjada que se agitava
freneticamente, da altura de um homem, mas sem cara de homem, coberta
com muitas folhas sobrepostas, sibilantes. Como uma árvore ao sol
brilhante de um outono nova-iorquino que se arranca sozinha do chão e
agora dança pela rua abaixo. Um numeroso bando de rapazes corria atrás
dele pela terra vermelha, e uma falange de mulheres, empunhando folhas de
palma – as mães dos rapazes, presumi. As mulheres cantavam e batucavam
fortemente com os pés, brandindo o ar com as palmas, andando e dançando.
Eu ia espremida dentro de um táxi, um Mercedes todo amolgado, amarelo
com uma faixa verde ao meio. Lamin ia ao meu lado, no banco traseiro,
juntamente com o avô de alguém, uma mulher que amamentava uma
criança estridente, duas adolescentes em uniforme escolar, e um dos
professores corânicos da escola. Era uma cena de caos que Lamin
enfrentava calmamente, sempre consciente do seu estatuto de professor
estagiário, as mãos dobradas sobre os joelhos como um padre, com o
mesmo ar de sempre – com o seu nariz comprido e achatado, narinas largas
e olhos tristes, ligeiramente amarelecidos – como um grande felino em
repouso. O rádio do carro tocava reggae da ilha da minha mãe, em altos
berros. Mas o que vinha na nossa direção era uma dança marcada por
ritmos de que o reggae nem sequer se aproxima. Cadências tão rápidas, tão
complexas, que tínhamos de pensar nelas – ou vê-las interpretadas pelo
corpo de um dançarino – para compreendermos o que estávamos a ouvir.
Caso contrário, podíamos pensar que se tratava do troar de uma nota grave.
Podíamos pensar que era o som de um trovão no céu.
Quem estava a tocar tambor? Olhei pela janela do meu lado e descortinei
três homens, com os instrumentos entalados entre os joelhos, caminhando
como caranguejos, e quando estacaram à frente do nosso carro todo o
cortejo dançante suspendeu o seu avanço e estacou também, no meio da
estrada, obrigando-nos a parar. Era uma variante em relação aos postos de
controlo, aos soldados façanhudos com cara de menino, de metralhadora
negligentemente apoiada na anca. Quando parávamos por ordem dos
soldados – chegava a acontecer doze vezes no mesmo dia – remetíamo-nos
ao silêncio. Mas desta vez o táxi explodiu em conversas e assobios e
gargalhadas e as estudantes penduraram-se das janelas e forçaram o
puxador avariado até que a porta se abriu e toda a gente menos a mulher
amamentadora saiu em tropel.
«Que é isto? O que é que está a acontecer?»
A minha pergunta era para Lamin, que supostamente era o meu guia, mas
ele deu a impressão de quase não se lembrar da minha existência, e muito
menos de que o objetivo era irmos apanhar o ferry e atravessar o rio para a
cidade, e daí para o aeroporto, a receber Aimee. Agora nada disso
interessava. Só o momento presente existia, só a dança. E Lamin, afinal, era
dançarino. Percebi isso nesse dia, antes mesmo de Aimee o conhecer, muito
antes de ela detetar o dançarino que havia dentro dele. Percebi pelos
movimentos das ancas, pelos meneios da cabeça. Mas tinha deixado de ver
a aparição cor de laranja, a multidão entre mim e ela era tão grande que só
conseguia ouvi-la: o que devia ser o bater dos seus pés no chão, e o
chocalhar áspero de metal contra metal, e um guincho penetrante,
sobrenatural, a que as mulheres respondiam cantando enquanto também
elas dançavam. Até eu estava a dançar sem querer, empurrada contra tantos
corpos em movimento. Continuava a perguntar: «Que é isto? O que é que
está a acontecer?» – mas o inglês, a «língua oficial», aquele casaco formal e
pesado que as pessoas só vestiam na minha presença, e mesmo nessa altura
com evidente contrariedade e dificuldade, tinha sido atirado ao chão, toda a
gente dançava em cima dele, e eu pensei, e não a primeira vez naquela
primeira semana, na adaptação que Aimee ia ter de fazer quando finalmente
chegasse e descobrisse, como eu já havia descoberto, o fosso que existia
entre o «estudo de viabilidade» e a vida tal como se apresenta diante de nós
na estrada e no ferry, na aldeia e na cidade, entre o povo e em meia dúzia de
línguas, na comida e nas caras e no mar e na Lua e nas estrelas.
Havia gente que trepava para cima do carro para ver melhor. Procurei
Lamin e descobri-o a tentar subir também para o capô. A multidão estava a
dispersar-se – rindo, gritando, correndo – e eu cheguei a pensar que tinha
rebentado algum petardo. Um grupo de mulheres fugia para o lado
esquerdo, e agora percebia porquê: o kankurang brandia duas catanas,
compridas como braços. «Vem para aqui!», gritou Lamin, estendendo-me
um braço, e eu icei-me para junto dele, agarrando-me à sua camisa branca
enquanto ele dançava, tentando não perder o equilíbrio. Olhei para o frenesi
que reinava lá em baixo. Pensei: cá está a alegria que toda a vida procurei.
Mesmo por cima da minha cabeça estava uma mulher idosa
decorosamente sentada no tejadilho a comer amendoins de um saco,
parecendo uma senhora jamaicana no Lord’s, depois de um dia de críquete.
Viu-me e acenou-me: «Bom dia, como está a ser o seu dia?» O mesmo
cumprimento automático, delicado que me seguia por toda a aldeia –
independentemente de como fosse vestida, independentemente de quem me
acompanhasse – e que entretanto aprendera a identificar como uma forma
de assinalar a minha condição de estrangeira, que era óbvia para qualquer
pessoa em qualquer lugar. A mulher sorria amavelmente para as manobras
das catanas, para os rapazes que não paravam de se espicaçar mutuamente
para se aproximarem da árvore dançante e lhe acompanharem os
movimentos frenéticos – mantendo-se fora do alcance dos círculos que ela
fazia com as facas – imitando nos seus corpos franzinos as convulsivas
batidas no chão e guinadas e agachamentos e pontapés no ar e a euforia
rítmica generalizada que irradiava da figura para todos os pontos do
horizonte, através das mulheres, através de Lamin, através de mim, através
de toda a gente ao alcance da minha vista, enquanto debaixo de nós o carro
tremia e balançava. Apontou para o kankurang. «É um dançarino»,
explicou.
Um dançarino que vem buscar os rapazes. Levando-os para o mato, onde
são circuncidados, iniciados na sua cultura, informados sobre as regras e
limites, as tradições sagradas do mundo em que irão viver, os nomes das
plantas que os ajudarão nesta ou naquela doença e o modo de as usar. Que
desempenha o papel de limiar, entre a juventude e a maturidade, afasta os
maus espíritos e é o garante da ordem e da justiça e da continuidade entre as
gerações do seu povo e dentro delas. É um guia que conduz os jovens pelo
seu difícil ritual de passagem, da infância para a adolescência, e é também,
simplesmente, um jovem, anónimo, escolhido em grande segredo pelos
anciãos, coberto com folhas de árvore pata-de-camelo e pintado com
pigmentos vegetais. Mas aprendi tudo isto ao telefone, de regresso a Nova
Iorque. Bem tentei fazer perguntas sobre aquilo ao meu guia, qual o
significado, em que medida se enquadrava na prática islâmica local ou dela
divergia, mas ele não conseguia ouvir-me por causa da música. Ou então
não queria ouvir-me. Voltei a tentar, um pouco mais tarde, depois de o
kankurang se ter transferido para outro sítio e quando todos tínhamos
voltado a ensardinhar-nos no banco traseiro do carro, agora com dois dos
rapazes dançarinos, estendidos ao comprido em cima dos nossos joelhos,
pegajosos de suor do esforço despendido. Mas percebi que as minhas
perguntas estavam a incomodar toda a gente e entretanto a euforia já tinha
passado. A deprimente formalidade de Lamin, que punha em todos os
contactos comigo, havia regressado. «Uma tradição mandinga», disse e
virou-se outra vez para o condutor e os outros passageiros, para rir e
discutir e conversar sobre coisas de que eu não fazia ideia, numa língua que
desconhecia. Seguimos viagem. Pensei nas raparigas. Quem vem buscar as
raparigas? Se não o kankurang, quem? As mães? As avós? Alguma
amiga?
2

Quando chegou a altura de Tracey não houve ninguém que a guiasse na


travessia do limiar, que a aconselhasse ou pelo menos lhe dissesse que
estava a transpor um limiar. Mas o seu corpo estava a desenvolver-se mais
depressa do que o de qualquer outra e por isso teve de improvisar, de tratar
de tudo sozinha. A primeira ideia que teve foi vestir-se espalhafatosamente.
As culpas eram atribuídas à mãe – as mães já estão habituadas – mas tenho
a certeza de que a mãe não via nem sabia metade. Ainda estava a dormir
quando Tracey saía para a escola e não estava em casa quando ela voltava.
Tinha finalmente arranjado trabalho, penso que fazia a limpeza algures num
edifício de escritórios, mas a minha mãe e as outras mães criticavam-na por
ter emprego, quase tanto quanto a tinham criticado por estar desempregada.
Antes fora uma «má influência», agora «nunca estava em casa». A sua
presença e a sua ausência eram igualmente más, e a maneira como
começaram a falar de Tracey assumiu uma dimensão trágica, pois não é
verdade que só os heróis de tragédia não têm hipóteses de escolha,
caminhos alternativos, apenas destinos inevitáveis? Dentro de poucos anos
Tracey engravidaria, na opinião da minha mãe, e por isso abandonaria a
escola, e o «ciclo de pobreza» completar-se-ia, terminando, com toda a
probabilidade, na prisão. A prisão era recorrente na família dela. Claro que
a prisão também era recorrente na minha, mas, por qualquer razão, eu
estava ligada a uma estrela diferente. Não seria nem faria nenhuma destas
coisas. A certeza da minha mãe sobre tudo isto preocupava-me. Se tivesse
razão, isso significava que o seu domínio sobre as vidas das outras pessoas
ultrapassava tudo quanto eu até agora havia imaginado. E no entanto, se
havia alguém que podia desafiar o destino – apresentado sob a forma da
minha mãe – esse alguém seria Tracey, não?
Mas os sinais eram maus. Agora, quando na aula lhe mandavam despir o
casaco, já não se recusava, antes o fazia com enorme prazer, correndo o
fecho devagar e de modo que os seus seios se apresentassem aos olhos de
todos com o maior impacto possível, dificilmente contidos por um top que
revelava abundância onde nós ainda só tínhamos mamilos e ossos. Toda a
gente «sabia» que «tocar nas mamas da Tracey» custava meia libra. Eu não
fazia ideia se era verdade ou não, mas todas nós, negras, brancas e mestiças,
éramos unânimes em evitá-la. Éramos boas meninas. Não permitíamos que
nos tocassem nas mamas inexistentes, já não éramos as estouvadas que
tínhamos sido no terceiro ano. Agora tínhamos «namorados», que outras
escolhiam por nós, em bilhetinhos passados de carteira em carteira, ou em
longas e tortuosas conversas telefónicas («Queres saber quem gosta de ti e
disse a toda a gente que gostava de ti?»), e uma vez nomeados oficialmente
estes namorados passávamos a estar solenemente com eles no recreio, ao
ténue sol de inverno, de mãos dadas – muitas vezes um bom palmo mais
altas do que eles – até chegar o momento inevitável em que nos
zangávamos (momento que também era decidido pelas nossas amigas) e a
ronda de bilhetinhos e telefonemas recomeçava. Não podia participar neste
processo quem não pertencesse a um grupinho de raparigas recetivas à ideia
e Tracey já não tinha nenhuma amiga, só eu, e mesmo assim só quando se
dispunha a ser amigável. Adquiriu o hábito de passar os intervalos das aulas
no recinto vedado onde os rapazes jogavam futebol, por vezes insultando-
os, indo ao ponto de pegar na bola e parar o jogo, mas mais frequentemente
portando-se como cúmplice deles, rindo-se com eles quando nos
provocavam, sem nunca se prender a nenhum em particular, o que não
impedia que, na imaginação da escola, todos fizessem dela o que queriam.
Se me via através das grades, a brincar com Lily ou a saltar à corda com as
outras raparigas negras e mestiças, virava-me ostensivamente as costas e
conversava com o seu círculo de rapazes amigos, cochichando com eles,
rindo, como se também ela tivesse opinião sobre se sim ou não usávamos
sutiã ou estávamos no período. Um dia em que eu ia a passar pelo recinto
de futebol muito compenetrada, de mão dada com o meu novo «namorado»
– Paul Barron, filho do polícia – ela interrompeu o que estava a fazer,
agarrou-se às grades da vedação e sorriu-me. Não um sorriso simpático,
mas um sorriso profundamente sarcástico, como quem diz: então é isso que
agora finges ser?
3

Quando finalmente conseguimos escapar ao kankurang e passar por todos


os postos de controlo espalhados pelo caminho, e depois de o nosso táxi ter
conseguido furar pelas ruas engarrafadas e esburacadas da povoação para
chegar ao cais do ferry, já era tarde, estávamos sem tempo, descemos a
prancha a correr, mas ficámos em terra com mais cem pessoas, pelo menos,
a ver a proa enorme e ferrugenta fazer-se à água. O rio dividia aquela faixa
de terra ao meio a todo o comprimento, e o aeroporto ficava do outro lado.
Olhei para os três níveis de carga caótica: mães com filhos de colo, crianças
de escola, agricultores e operários, animais, automóveis, camionetas, sacos
de cereais, bugigangas para turistas, tambores de óleo, malas, móveis. As
crianças acenavam-me. Ninguém parecia saber ao certo se aquele era o
último ferry. Esperámos. O tempo passou, o céu fez-se rosado. Pensei em
Aimee, no aeroporto, a ter de falar de banalidades com o ministro da
Educação – e em Judy, furiosa, agarrada ao telemóvel, a tentar vezes
seguidas ligar para mim, sem resultado –, mas estes pensamentos não
produziram o efeito desejado. Sentia-me perfeitamente calma enquanto
esperava, resignada, na companhia de todas estas outras pessoas que
também pareciam não deixar transparecer nenhuma impaciência, ou pelo
menos não exprimiam impaciência de nenhum modo que eu identificasse.
Não tinha rede, não podia fazer nada. Estava completamente incontactável,
pela primeira vez em vários anos. Dava-me uma sensação inesperada mas
não desagradável de quietude, de estar fora do tempo; não sei porquê,
trazia-me à memória a infância. Esperei, encostada ao capô do carro. Outras
pessoas sentavam-se na bagagem, trepavam para as tampas dos tambores de
óleo. Um velho descansava encostado a metade de uma enorme cabeceira
de cama. Duas rapariguinhas sentavam-se em cima de uma gaiola de
frangos. Periodicamente, camiões articulados desciam lentamente o
passadiço, obrigando toda a gente a engolir fumo negro de gasóleo,
buzinando para alertar quem pudesse estar sentado ou deitado no seu
caminho, mas, como não tinham para onde ir nem o que fazer, depressa se
juntavam a nós nesta espera que não parecia ter princípio nem fim: sempre
estivéramos de olhos na outra margem à procura do ferry e sempre
estaríamos. Ao pôr do sol, o nosso condutor desistiu: inverteu a marcha do
táxi, furou por entre a multidão e desapareceu. Para evitar que uma mulher
determinada me vendesse um relógio, eu fui para a beira da água e sentei-
me. Mas Lamin estava preocupado comigo, estava sempre preocupado
comigo, uma pessoa como eu devia estar na sala de espera, que custava
duas daquelas notas sebentas e amarrotadas que tinha enfiado no bolso, e
por essa razão ele não me acompanharia, mas mesmo assim insistia para
que eu fosse, sim, a sala de espera era sem dúvida o lugar para uma pessoa
como eu.
«Mas porque é que não havemos de esperar aqui?»
Ele fez-me um sorriso preocupado, o único que tinha.
«Para mim está bem, mas para ti?»
Ainda estavam quarenta graus cá fora: a ideia de estar metida numa sala
era nauseante. Em vez disso obriguei-o a sentar-se ao meu lado, com os pés
a balançar sobre a água, os calcanhares a bater contra a camada de ostras
mortas agarradas às escoras do cais. Todos os outros rapazes da aldeia
tinham música nos telemóveis, precisamente para ouvir em alturas como
esta, mas Lamin, um jovem introvertido, preferia o World Service, e foi
assim que, cada um com o seu auricular, ouvimos uma peça sobre as
propinas universitárias no Gana. Abaixo de nós, na praia, em tronco nu,
rapazes corpulentos transportavam aos ombros viajantes destemidos,
atravessando a ondulação dos baixios, até umas chatas de aspeto perigoso e
cores garridas. Apontei para uma mulher muito gorda com um bebé
enfaixado às costas que era içada para os ombros de um deles. As coxas
dela esmagavam a cabeça suada do rapaz.
«E se fizéssemos o mesmo? Em vinte minutos estávamos na outra
margem.»
«Para mim está bem», sussurrou Lamin. Era como se todas as conversas
que tínhamos lhe causassem alguma vergonha e não devessem ser ouvidas
por mais ninguém – «para ti não. Devias ir para a sala de espera. Vamos ter
de esperar muito tempo.»
Fiquei a observar o rapaz na praia, agora com água por altura das coxas, a
arriar a passageira no seu lugar. Parecia transportar esta carga mais
facilmente do que Lamin tinha uma simples conversa comigo.

Quando começou a escurecer, Lamin embrenhou-se na multidão para


fazer perguntas, transformando-se num Lamin completamente diferente,
não o emissor de monossílabos sussurrados que era comigo, mas aquele que
devia ser o verdadeiro Lamin, sério e respeitado por todos, divertido e
loquaz, dando a impressão de conhecer toda a gente, saudado com afeto
fraternal e caloroso por gente jovem e bela aonde quer que fosse. «Gente da
minha idade», como lhes chamava, o que podia significar que tinha crescido
na aldeia com eles, ou que tinham sido companheiros de turma na escola
primária, ou então que tinham sido do seu curso no instituto de formação de
professores. Era um país pequeno: gente do tempo dele em todo o lado. A
rapariga que nos vendeu cajus no mercado era do tempo dele, um segurança
do aeroporto também. Às vezes acontecia que um dos jovens polícias ou
cadetes do exército que nos mandavam parar nos postos de controlo era da
idade dele, e era uma sorte, a tensão dissipava-se, tirava as mãos da arma,
debruçava-se na janela do passageiro e entregava-se descontraidamente a
uma troca de recordações nostálgicas. As pessoas do tempo dele faziam-nos
descontos, emitiam os bilhetes mais depressa, mandavam-nos avançar. E
agora aqui estava mais uma, uma rapariga de peito volumoso no escritório
dos ferries, que usava uma confusa combinação de peças de roupa que eu já
tinha visto em muitas raparigas locais e estava desejosa de mostrar a Aimee,
com o conhecimento superior de quem tinha chegado uma semana antes.
Calças de ganga justas, de cintura baixa e aplicações, colete exíguo – a
revelar os rebordos fluorescentes de um sutiã de renda – e hijab vermelho-
escarlate, envolvendo-lhe pudicamente o rosto e preso com um alfinete cor-
de-rosa. Vi Lamin e esta rapariga em longa conversa, numa das várias
línguas locais que ele falava, e tentei imaginar como era que as respostas
simples que procurávamos para as perguntas «Há mais algum ferry?
Quando chega?» podiam transformar-se numa conversa tão absorvente
quanto aquela que os dois estavam a ter. Ouvi um som de buzina vindo do
outro lado da baía e vi uma forma grande e difusa sulcar a água na nossa
direção. Corri para Lamin e agarrei-o pelo cotovelo.
«É ele? Lamin, é ele?»
A rapariga interrompeu a tagarelice, virou-se e olhou para mim. Percebeu
que não era ninguém da sua idade. Mirou a roupa utilitária e simples que eu
tinha comprado para usar no seu país: calças de caqui cor de azeitona,
camisa de linho engelhada e de manga comprida, sapatos Converse, velhos
e gastos, de um antigo namorado, e um lenço preto com o qual me sentia
ridícula e tímida e por isso me tinha deslizado da cabeça e agora usava ao
pescoço.
«Aquilo é um cargueiro», disse ela, com mal disfarçada pena. «Perderam
o último ferry.»
Pagámos uma quantia que Lamin achou exorbitante por uma passagem de
chata, apesar de ferozes negociações, e no momento em que o meu gigante
me pousou no meu lugar apareceu, não se sabe de onde, uma dúzia de
outros rapazes que embarcaram também, sentaram-se em todos os pedaços
possíveis da estrutura da chata e transformaram-nos de táxi privado em
navio púbico. Mas na outra margem voltei a ter rede e ficámos a saber que
Aimee tinha resolvido pernoitar num dos hotéis da praia e viajar para a
aldeia de manhã. O gigante ficou encantado: pagámos-lhe outra vez e assim
subsidiámos mais uma viagem a alguns rapazes locais, regressando pelo
mesmo caminho. Chegados à praia, voltámos finalmente à cidade num
miniautocarro em muito mau estado. A ideia de dois barcos e dois táxis no
mesmo dia era insuportável para Lamin, apesar de eu ter pagado a segunda
viagem, apesar de o preço pedido – que o fez torcer-se todo – não chegar
sequer para uma garrafa de água na Broadway. Sentou-se no tejadilho da
viatura, com outro rapaz que não coube no interior, e enquanto os meus
companheiros de viagem dormiam e rezavam e comiam e alimentavam os
filhos e berravam ao condutor que os deixasse em sítios que me pareciam
cruzamentos completamente desertos, ouvi as batidas ritmadas de Lamin no
tejadilho, por cima da minha cabeça, e durante duas horas aquela foi a única
língua que percebi. Passava das dez horas quando chegámos à aldeia. Eu
estava hospedada em casa de uma família indígena, e nunca tinha estado
fora da morança10 deles àquela hora, nem me tinha apercebido da escuridão
total que a rodeava e que agora atravessava com toda a confiança na
companhia de Lamin, como se ela estivesse banhada de luz. Corri atrás dele
pelos muitos trilhos estreitos, arenosos, cobertos de lixo que não via,
passando pelas chapas de zinco que separavam os conjuntos de casas térreas
feitas de adobes, até chegarmos à morança do Al Kalo11, que não era maior
nem mais alta do que as outras, mas tinha um grande terreiro à frente, no
qual cem crianças, pelo menos, vestindo o uniforme da escola velha –
aquela que nos propúnhamos substituir –, acocoradas debaixo da copa de
uma única mangueira. Tinham esperado seis horas para executarem a sua
dança para uma mulher chamada Aimee: agora cabia a Lamin a missão de
explicar por que razão esta senhora não vinha hoje. Mas quando Lamin
tinha acabado de falar chegou o chefe, que quis ouvir outra vez a explicação
toda. Eu fiquei à espera de que os dois homens discutissem o assunto, com
animados movimentos das mãos, enquanto as crianças iam ficando cada vez
mais aborrecidas e irrequietas, até que as mulheres puseram de lado os
tambores que não iam tocar agora e permitiram que as crianças se
levantassem e despacharam-nas em pequenos grupos a correr para as
respetivas casas. Eu levantei o braço com o telemóvel. Derramou uma luz
artificial sobre o Al Kalo. Não era, pensei para comigo, o grande chefe
africano que Aimee imaginava. Baixo, macilento, enrugado e desdentado,
com uma camisola do Man U esfiapada, calças de treino e chinelos de
plástico Nike presos por fita isoladora. E que surpresa ia ter o Al Kalo
quando soubesse a importância que tinha assumido para todos nós, em
Nova Iorque! Tudo havia começado com um email de Miriam – assunto:
Protocolo – que enumerava aquilo que, no seu entender, qualquer pessoa
que visitasse a aldeia devia oferecer ao seu Al Kalo à chegada, em sinal de
respeito. Correndo os olhos pela lista, Judy soltou o seu balido de foca e
espetou-me o telemóvel na cara: «Isto é alguma brincadeira?»
Li a lista:

Óculos graduados
Paracetamol
Aspirina
Pilhas
Gel de banho
Pasta de dentes
Creme antissético

«Não me parece... A Miriam não brinca.»


Judy sorriu enternecidamente para o ecrã: «Bem, acho que se consegue
arranjar.»
Não havia muitas coisas que encantassem Judy, mas esta encantou.
Encantou Aimee ainda mais, e durante várias semanas, sempre que alguma
pessoa de boa vontade e meios de fortuna nos visitava, na casa de Hudson
Valley ou em Washington Square, Aimee repetia a lista em tom de fingida
solenidade e no fim perguntava a todos os presentes se conseguiam
imaginar uma coisa daquelas e todos confessavam que tinham dificuldade
em imaginar e pareciam muito comovidos e confortados por esta
dificuldade de imaginar, que interpretavam como um sinal de candura, tanto
da parte do Al Kalo como delas próprias.
«Mas é tão arriscado fazer essa transposição», comentou um jovem de
Silicon Valley numa destas noites – estava inclinado sobre a mesa de jantar
para um centro de mesa feito de velas e a cara parecia iluminada de baixo
pela sua própria observação –, «quer dizer, entre uma realidade e a outra. É
como transpor a matriz.» Todas as pessoas à mesa acenaram com a cabeça e
concordaram que era, e mais tarde apanhei Aimee a acrescentar
tranquilamente esta tirada de banquete às recitações que fazia da lista do Al
Kalo, que entretanto ficara famosa, como se fosse da sua autoria.
«Que está ele a dizer?», sussurrei ao ouvido de Lamin. Estava cansada de
esperar. Baixei o telemóvel.
Lamin pousou suavemente a mão no ombro do chefe, mas o ancião
continuou a fazer o seu discurso agitado e interminável, agora dirigido à
escuridão.
«O Al Kalo está a dizer», sussurrou Lamin de volta, «que aqui as coisas
são muito difíceis.»

Na manhã seguinte fui com Lamin à escola e carreguei o telemóvel no


gabinete do diretor, na única tomada que existia na aldeia, alimentada por
um gerador de energia solar pago por uma organização humanitária italiana
alguns anos antes. Por volta do meio-dia a rede reapareceu misteriosamente.
Li as cinquenta mensagens que me esperavam e concluí que tinha mais dois
dias sozinha aqui antes de ter de voltar ao ferry para buscar Aimee: estava a
«descansar» num hotel da cidade. A princípio fiquei entusiasmada com esta
solidão inesperada, e dei comigo a fazer toda a espécie de planos. Disse a
Lamin que queria ir à famosa morança do escravo rebelde, a duas horas de
distância, e queria ver finalmente, com os meus próprios olhos, a praia de
onde o navio havia partido, transportando a sua carga de seres humanos,
com destino à ilha da minha mãe, e daí para as Américas e a Grã-Bretanha,
transportando o açúcar e o algodão, antes de encetar a viagem de regresso –
um triângulo que havia produzido, entre as suas inúmeras consequências, a
minha existência. E no entanto, duas semanas antes, na presença da minha
mãe e de Miriam, eu tinha chamado a tudo isto, em tom de desprezo,
«turismo da diáspora». Agora estava a dizer a Lamin que ia sozinha num
miniautocarro visitar os antigos fortes de escravos onde os meus
antepassados tinham estado encarcerados. Lamin sorria e parecia estar de
acordo, mas na prática interpunha-se entre mim e todos os planos deste tipo.
Entre mim e todas as tentativas de interação, pessoais e económicas, entre
mim e a aldeia incompreensível, entre mim e os velhos e entre mim e as
crianças, respondendo a todas as perguntas e pedidos com o seu sorriso
preocupado e a sua explicação preferida, e sussurrada: «Aqui as coisas são
difíceis.» Não queria que eu entrasse no mato, que apanhasse os meus cajus,
que ajudasse a cozinhar as refeições ou lavasse a minha roupa. Percebi que
ele me via como uma espécie de criança, alguém que devia ser tratado com
todos os cuidados e a quem a realidade devia ser apresentada em pequenas
doses. Depois percebi que toda a aldeia me via dessa maneira. Enquanto as
avós se acocoravam para comer da tigela comunitária, assentes nas suas
ancas possantes, juntando com os dedos arroz e pedaços de peixe ou de
beringela, para mim iam buscar uma cadeira de plástico, um garfo e uma
faca, porque partiam do princípio, e bem, que não ia ter forças para me
aguentar naquela posição. Enquanto eu despejava um litro de água pela
latrina para enxotar uma barata que me afligia, nenhuma das doze raparigas
com quem vivia me dizia exatamente que distância tinha percorrido naquele
dia para trazer aquele litro de água. Quando, sem ninguém saber, fui
sozinha ao mercado comprar um penteador vermelho e roxo para a minha
mãe, Lamin fez o seu sorriso preocupado, mas poupou-me ao conhecimento
da percentagem do seu vencimento anual que eu tinha acabado de gastar
num simples pedaço de pano.
Ao fim daquela primeira semana já tinha percebido que os preparativos
para o meu jantar começavam momentos depois de me terem servido o
pequeno-almoço. Mas quando tentava aproximar-me do canto do pátio onde
todas aquelas mulheres e raparigas se acocoravam na poeira a descascar e
cortar e esmagar e salgar, riam-se de mim e mandavam-me de volta ao meu
entretém, sentar-me numa cadeira de plástico no meu quarto escuro a ler os
jornais americanos que trouxera comigo – entretanto amarrotados e
comicamente irrelevantes – pelo que nunca cheguei a descobrir como,
exatamente, sem forno nem eletricidade preparavam os cozinhados que eu
não queria, ou as grandes tigelas de arroz mais apetitoso que faziam para
elas. Cozinhar não era para mim, nem lavar roupa, nem ir à água ou
arrancar cebolas ou mesmo dar de comer às cabras e às galinhas. Era, no
mais estrito sentido do termo, uma inútil. Até os bebés me entregavam com
ironia, e riam-se quando me viam pegar num. Sim, havia uma preocupação
constante de me protegerem da realidade. Já tinham conhecido pessoas
como eu. Sabiam que não conseguimos absorver muita realidade.

Na madrugada do dia em que tínhamos de ir buscar Aimee fui acordada


muito cedo, pelo chamamento à oração e pelos galos histéricos, e vendo que
ainda não estava insuportavelmente quente vesti-me às escuras e saí da
morança, sozinha, sem ninguém do pequeno exército de mulheres e
crianças com quem vivia – coisa que Lamin tinha insistido comigo para
nunca fazer – e fui à procura de Lamin. Queria dizer-lhe que ia hoje ao
antigo forte dos escravos, quer ele gostasse quer não. À medida que se fazia
dia, fui sendo seguida por muitas crianças curiosas, descalças – «Bom dia,
como está a ser o teu dia?» –, como sombras, enquanto parava aqui e ali
para dizer o nome de Lamin às dúzias de mulheres com quem me cruzava,
já a caminho do trabalho na fazenda comunitária. Acenavam e apontavam-
me uma direção, pelo meio do mato, por este caminho e por aquele, do
outro lado da mesquita de betão verde-claro meio comida de cada lado por
montes alaranjados de térmitas com mais de três metros de altura, passando
todos aqueles pátios poeirentos que eram varridos, àquela hora, por
taciturnas raparigas adolescentes, parcialmente vestidas, que se apoiavam
nas vassouras para me verem passar. Para onde quer que olhasse havia
mulheres a trabalhar: tratando dos filhos, cavando, carregando,
amamentando, limpando, arrastando, esfregando, construindo, reparando.
Só vi um homem quando finalmente encontrei a morança de Lamin, nos
arredores da aldeia, antes de chegar aos campos de cultivo. Era muito
escura e húmida, mesmo pelos padrões locais: sem porta, só com um lençol
na cama, nenhum cadeirão de madeira, apenas uma cadeira de plástico,
nada a cobrir o chão, só terra, e um balde de folha com água, em que devia
ter acabado de se lavar, porque estava de joelhos ao pé dele, escorrendo
água, em calções de futebol. Na parede de adobe atrás dele descortinei o
emblema do Man United toscamente desenhado, esborratado de tinta
vermelha. Em tronco nu, esguio, todo ele músculo, pele incandescente de
juventude – perfeito. Como eu parecia pálida, quase incolor, ao pé dele!
Fez-me pensar em Tracey, nas muitas vezes em que, quando éramos
crianças, ela tinha posto o braço ao lado do meu, para confirmar mais uma
vez que continuava a ser um pouco mais clara que eu – como
orgulhosamente afirmava ser – não fosse o verão ou o inverno ter alterado
este estado de coisas desde a última verificação. Eu não me atrevia a contar-
lhe que me estendia na varanda sempre que o dia estava quente, tentando
conseguir exatamente a qualidade que ela parecia temer: mais cor, mais
escura, para todas as sardas se juntarem e coalescerem e me deixarem do
mesmo tom castanho-escuro da minha mãe. Mas Lamin, como quase todos
os habitantes da aldeia, era tantas vezes mais escuro em comparação
comigo quanto a minha mãe, e olhando agora para ele achava que o
contraste entre a sua beleza e o ambiente que o rodeava era, entre muitas
outras coisas, surreal. Virou-se e viu-me de pé sobranceira a ele. Encheu-se-
lhe o rosto de dor – eu tinha quebrado algum acordo implícito. Pediu
desculpa. Escondeu-se atrás de uma cortina de trapos que teoricamente
separava as duas partes do espaço sombrio. Mas eu continuava a vê-lo,
vestindo a sua Calvin Klein imaculadamente branca, com monograma, as
calças de sarja brancas e sandálias brancas, tudo de uma brancura mantida
por um método que eu, todos os dias coberta de pó vermelho, não conseguia
imaginar. Os seus pais e tios usavam quase todos jilaba, os seus muitos
primos e irmãos pequenos corriam por todo o lado com as omnipresentes e
andrajosas camisolas de futebol, calças de ganga, descalços, mas Lamin
envergava as suas indumentárias ocidentais brancas, quase sempre que o
via, e um grande relógio de pulso prateado, incrustado de pedras e com os
ponteiros permanentemente parados nas 10:04. No domingo, quando toda a
aldeia se juntou para uma reunião, estava de fato bege com cabeção de
bispo e sentou-se ao meu lado sussurrando-me ao ouvido como um
delegado à ONU, traduzindo apenas o que queria traduzir daquilo que
estava a ser discutido. Todos os jovens professores da aldeia estavam assim
vestidos, de tradicionais cabeções de bispo ou de calças e camisas bem
passadas, com grandes relógios e esguias carteiras pretas, telemóveis com
tampa e androides de grandes ecrãs sempre na mão, mesmo que não
funcionassem. Era uma atitude que eu recordava do meu antigo bairro, uma
forma de representação, que na aldeia significava vestir-se para representar
um certo papel. Sou um dos rapazes modernos e sérios. Sou o futuro do meu
país. Senti-me absurda ao pé deles. Em comparação com este sentimento de
destino pessoal, era como se estivesse neste mundo por mero acaso, nunca
tivesse pensado minimamente naquilo que representava, com as minhas
calças de caqui enrugadas e os meus Converse encardidos, sempre a arrastar
comigo uma mochila amachucada.
Lamin voltou a ajoelhar-se e retomou em voz baixa a sua primeira oração
do dia – também isso eu tinha interrompido. Ouvindo o seu árabe
sussurrado, perguntei-me que forma tomaria exatamente aquela oração.
Esperei. Olhei em volta a pobreza que Aimee tinha a esperança de
«reduzir». Não via mais nada, e as perguntas do tipo das que as crianças
fazem eram as únicas que me ocorriam. Que é isto? Que está a acontecer?
A mesma atitude havia-me levado, logo no dia em que cheguei, ao gabinete
do diretor da escola, onde me sentei a transpirar debaixo do telhado de
chapa ondulada, tentando freneticamente apanhar rede, se bem que pudesse,
evidentemente, ter pesquisado no Google o que queria saber em Nova
Iorque, muito mais depressa, com infinitamente maior facilidade, em
qualquer momento dos seis meses anteriores. Aqui, o processo era
laborioso. Uma página descarregava até meio, depois parava, a energia do
painel solar subia e descia e às vezes ia abaixo por completo. Levou mais de
uma hora. E quando os dois montantes apareceram nas duas janelas
adjacentes limitei-me a olhar fixamente para elas durante muito tempo. Na
comparação, como se via, Aimee ia ligeiramente à frente. E assim, sem
mais nem menos, o PIB de um país inteiro cabia numa única pessoa, como
uma boneca russa dentro de outra.
10 Conjunto murado de habitações dos membros de uma família. (N. do T.)
11 Chefe da aldeia. (N. do T.)
4

No último junho de escola primária o pai de Tracey foi libertado e


encontrámo-nos pela primeira vez. Estava no relvado comunitário, a olhar
para a varanda onde nós estávamos, sorridente. Delicado, moderno,
carregado de uma espécie de alegria cinética, mas ao mesmo tempo
clássico, elegante, Bojangles em pessoa. Estava na posição número cinco, e
vestia um colete almofadado azul-elétrico com um dragão chinês nas costas
e umas calças de ganga brancas e justas. Um bigode farto e bem aparado, e
um penteado afro à moda antiga, sem zonas desbastadas ou linhas abertas à
navalha, nem tufo no alto da cabeça. A felicidade de Tracey era intensa,
debruçou-se do parapeito, como se quisesse puxar o pai para cima, pedindo-
lhe aos berros que subisse, vem cá acima, papá, vem, mas ele piscou-nos o
olho e disse: «Tenho uma ideia melhor, vamos até à rua principal.»
Descemos as duas a correr e demos-lhe a mão, uma de cada lado.
A primeira coisa em que reparei foi que tinha corpo de dançarino, e
caminhava como um dançarino, ritmadamente, com força mas também com
leveza, pelo que não nos limitámos a percorrer os três a rua principal,
flanámos. Toda a gente olhava para nós, pavoneávamo-nos ao sol, e várias
pessoas interrompiam o que estavam a fazer para nos saudarem – para
saudarem Louie – do outro lado da rua, de uma janela modesta por cima de
um salão de cabeleireiro, das entradas dos pubs. Quando nos
aproximávamos da loja de apostas, um velho cavalheiro caribenho, de boné
de fazenda e colete de lã grossa apesar do calor, parou diante de nós,
barrando-nos a passagem, e perguntou: «São tuas filhas?» Louie ergueu-nos
os braços como se fôssemos dois pugilistas. «Não», respondeu, largando a
minha mão, «só esta.» Tracey iluminou-se com a glória daquele momento.
«Ouvi dizer que só estiveste dentro treze meses», disse o velho, com uma
gargalhada curta. «Que sortudo, Louie.» Espetou-lhe um dedo na cintura
bem desenhada, estava cingida por um estreito cinto dourado, como um
super-herói. Mas Louie sentiu-se ofendido, deu um passo atrás para se
afastar do homem – um pronunciado plié deslizante – e sorveu
ruidosamente o ar entre os dentes. Corrigiu a informação: nem sete meses
cumpriu.
O velho puxou de um jornal que trazia debaixo do braço, desenrolou-o e
mostrou uma determinada página a Louie, que a leu antes de se curvar para
no-la mostrar. Mandou-nos fechar os olhos e espetar um dedo onde nos
apetecesse, e quando abrimos os olhos cada uma de nós tinha um cavalo
debaixo do dedo, ainda me lembro do nome do meu, Theory Test, porque
passados cinco minutos Louie saiu a correr pelas portas da loja de apostas,
pegou em mim e atirou-me ao ar. Cento e cinquenta libras ganhas com uma
aposta de cinco. Levou-nos ao Woolworths e mandou-nos escolher o que
quiséssemos. Deixei Tracey nos vídeos para a nossa idade – comédias
suburbanas, filmes de ação, aventuras espaciais – e continuei, até ao «cesto
das pechinchas», escolhidas para quem tinha pouco dinheiro ou poucas
alternativas. Aí havia sempre uma grande quantidade de musicais, ninguém
os queria, nem mesmo as senhoras de idade, e eu estava a revirar o cesto
todo, com grande felicidade, quando ouvi Tracey, que não tinha arredado pé
da secção dos vídeos modernos, perguntar a Louie: «Quantos é que
podemos levar?» A resposta foi quatro, mas tínhamos de nos despachar,
estava com fome. Num pânico feliz, peguei em quatro musicais:

Ali Baba Goes to Town


Melodia da Broadway de 1936
Ritmo Louco (Swing Time)
Dançando nas Nuvens

A única escolha de Tracey de que me lembro é Regresso ao Futuro, mais


caro do que os meus quatro juntos. Apertou-o contra o peito e só o largou
por um momento na caixa e voltou a agarrá-lo, como um animal abocanha a
comida.
Quando chegámos ao restaurante sentámo-nos na melhor mesa, mesmo
junto à janela. Louie ensinou-nos uma forma engraçada de comer um Big
Mac, desmontando as camadas e pondo batatas fritas por cima e por baixo
de cada hamburger e depois voltando a empilhar tudo.
«Então vens viver connosco?», perguntou Tracey.
«Hmmm, isso não sei. O que é que ela diz?»
Tracey espetou o nariz de leitão no ar: «Não quero saber o que ela diz.»
Tinha ambas as mãozinhas cerradas em punhos.
«Não desrespeites a tua mamã. A tua mamã também tem os seus
problemas.»
Foi ao balcão buscar batidos. Quando voltou parecia nervoso, e sem
introduzir formalmente o tema pôs-se a contar-nos coisas da prisão, como
se descobria, quando se estava dentro, que aquilo não era como o bairro,
não, de maneira nenhuma, era muito diferente, porque quando se estava
dentro toda a gente compreendia que o melhor era cada um dar-se com os
da sua laia, e assim era, «cada qual com seu igual», não havia misturas, não
era como nos apartamentos do complexo, e não eram os guardas nem
ninguém que diziam que devia ser assim, era assim e pronto, as tribos
sempre juntas, e até vai pelo tom da pele, explicou, arregaçando a manga e
apontando para o braço, portanto todos os que são escuros como eu ficam
deste lado, uns com os outros, sempre – traçou uma linha no tampo de
fórmica da mesa –, e os mestiços como tu ficam daquele lado, e os paquis
noutro sítio, e os indianos noutro. Os brancos também estão separados:
irlandeses, escoceses, ingleses. E dos ingleses uns são do BNP12 e outros
são fixes. A questão é que cada um ande com os seus, o que é natural. Faz-
nos pensar.
Sentámo-nos a sorver os nossos batidos, e a pensar.
E aprendemos toda a espécie de coisas, continuou, aprendemos quem é o
verdadeiro Deus do homem negro! Não esse tal Jesus de olhos azuis e
cabelos compridos – não! E agora pergunto: como é que nunca ouvi sequer
falar dele nem do nome dele antes de ter estado dentro? Pensem nisso.
Aprende-se lá muita coisa que não nos ensinam na escola, porque estas
pessoas não nos dizem nada, nada sobre os reis africanos, nada sobre as
rainhas egípcias, nada sobre Maomé, escondem tudo, escondem toda a
nossa história para nos sentirmos como se não fôssemos nada, como se
fôssemos a base da pirâmide, o objetivo é esse, mas a verdade é que fomos
nós que construímos as malditas Pirâmides! Oh, são diabólicos, mas um
dia, um dia, se Deus quiser, este dia branco vai chegar ao fim. Louie sentou
Tracey no colo e fez-lhe cócegas como se ela fosse muito mais pequena, e
depois fê-la mexer os braços como se fosse uma marioneta, pelo que
parecia estar a dançar ao som da música que saía dos altifalantes escondidos
atrás da câmara de segurança. Continuas a dançar? Perguntava por
perguntar, percebi que não estava muito interessado na resposta, mas Tracey
aproveitava sempre todas as oportunidades, por pequenas que fossem, e
agora estava a contar ao pai, numa grande e feliz torrente de pormenores, as
medalhas de dança que tinha conquistado naquele ano, e no ano anterior, e o
que Miss Isabel tinha dito sobre o seu trabalho em pontas, o que toda a
gente dizia sobre o seu talento, e sobre a sua próxima audição na escola de
artes de palco, tema sobre o qual eu já tinha mais do que a minha conta. A
minha mãe não me deixava ir para a escola de artes de palco, nem que
ganhasse uma bolsa completa, daquelas em que Tracey depositava grandes
esperanças. Tínhamos grandes discussões sobre o assunto, a minha mãe e
eu, desde que ouvira dizer que Tracey ia poder prestar provas. Pensar que
tinha de ir para uma escola normal enquanto Tracey passava os dias a
dançar!
Agora repara, disse Louie, cansando-se de repente da conversa da filha,
comigo não foi precisa a escola de dança, aliás eu dominava a pista de
dança! Esta menina herdou tudo do papá. Acredita: sei fazer todos os
passos! Pergunta à tua mãe! Até ganhava algum dinheiro a dançar, naquele
tempo. Parece que tens dúvidas!
Para provar o que dizia, para dissipar as nossas dúvidas, deslizou do
banco alto e levantou a perna, abanou a cabeça, mudou o alinhamento dos
ombros, rodopiou, parou de repente e terminou em bicos de pés. Umas
raparigas que estavam sentadas num reservado em frente de nós assobiaram
e aplaudiram, e ao vê-lo achei que finalmente compreendia o que Tracey
quisera dizer ao englobar o pai e Michael Jackson na mesma realidade, e
achei que não era propriamente um mentiroso, ou pelo menos que dentro da
mentira havia uma verdade mais profunda. Foram os dois bafejados pela
mesma herança. E se por acaso a dança de Louie não era tão famosa quanto
a de Michael, bem, para Tracey isso era apenas uma espécie de pormenor
técnico – um acaso do tempo e do lugar – e agora, que penso nele a dançar,
que passo tudo a escrito, convenço-me de que ela tinha toda a razão.
No fim resolvemos subir a rua com os nossos enormes batidos, voltando a
parar para falar a alguns amigos de Louie – ou talvez fossem simplesmente
pessoas que sabiam dele o suficiente para o temerem – incluindo um jovem
operário irlandês pendurado por uma mão do andaime da fachada do
Tricycle Theatre, de cara crestada pelo muito trabalho ao sol. Esticou-se
para apertar a mão de Louie: «Vejam só, se não é o Playboy das Índias
Ocidentais!» Estava a reconstruir o telhado do Tricycle, e Louie ficou muito
impressionado, era a primeira vez que ouvia falar do terrível incêndio
acontecido alguns meses antes. Perguntou ao rapaz quanto ia custar a
reconstrução, quanto era que ele e os outros homens de Moran estavam a
ganhar à hora, que cimento estavam a usar e quem eram os fornecedores, e
eu olhei para Tracey que se enchia de orgulho com este vislumbre de outro
Louie possível: jovem empresário respeitável, rápido nas contas, bom com
o pessoal, que levava a filha a visitar o seu local de trabalho, segurando-lhe
a mão com tanta firmeza. O meu desejo era que fosse sempre assim para
ela.

Não me passou pela cabeça que o nosso pequeno passeio tivesse


consequências, mas mesmo antes de ter regressado a Willesden Lane já
alguém tinha dito à minha mãe onde eu tinha estado e com quem. Agarrou-
me logo que transpus a porta e com uma palmada tirou-me o batido da mão,
foi esparramar-se na parede oposta, muito rosado e espesso –
inesperadamente dramático –, e enquanto habitámos aquela casa
coexistimos com uma ténue nódoa de morango. Desatou aos berros. O que
é que eu pensava que estava a fazer? Com quem pensava que tinha estado?
Ignorei todas as perguntas retóricas dela e voltei a perguntar por que razão
não podia ir a uma audição como Tracey. «Só uma tola renuncia a uma
educação superior», disse a minha mãe, e eu disse: «Pois então talvez eu
seja tola.» Tentei passar por ela, meter-me no quarto, com o meu
carregamento de vídeos atrás das costas, mas ela barrou-me o caminho e
então eu disse-lhe que não era ela, que não queria nunca ser ela, que não
queria saber dos livros dela, nem das roupas, nem das ideias, nem de nada,
queria dançar e viver a minha vida. O meu pai surgiu de onde quer que
estivesse escondido. Acenando-lhe, tentei argumentar que, se dependesse
do meu pai, seria autorizada a ir prestar provas, porque o meu pai era um
homem que acreditava em mim, como o pai de Tracey acreditava nela. A
minha mãe suspirou. «Claro que ele te autorizava», disse. «Não está
preocupado – sabe que nunca serás admitida.»
«Pelo amor de Deus», disse o meu pai entre dentes, mas não foi capaz de
olhar para mim e eu percebi com uma punhalada de dor que o que a minha
mãe estava a dizer devia ser verdade.
«A única conta que conta neste mundo», explicou ela, «é aquilo que está
escrito. Mas o que acontece com isso» – apontou para o meu corpo –
«nunca contará, pelo menos nesta cultura, para esta gente, e por isso
limitas-te a jogar o jogo deles de acordo com as regras deles, e se entrares
nesse jogo, garanto-te, acabas sendo uma sombra de ti própria. Tens uma
carrada de filhos, nunca abandonas estas ruas, e tornas-te mais uma dessas
mulheres que é como se não existissem.»
«Tu é que não existes», disse eu.
Agarrei-me a esta tirada como uma criança se agarra à primeira coisa que
tem à mão. O efeito que produziu na minha mãe ultrapassou tudo aquilo
que eu podia esperar. A boca murchou-lhe, e toda a sua segurança e beleza
se esvaíram dela. Começou a chorar. Estávamos à entrada do meu quarto, a
minha mãe de cabeça caída. O meu pai tinha-se retirado, ficámos só as
duas. Passou um minuto até recuperar a voz. Disse-me – num sussurro
hostil – que não desse nem mais um passo. Mas ainda não tinha acabado de
o dizer quando se apercebeu do erro que havia cometido: era uma admissão,
aquele era o momento exato da minha vida em que podia finalmente dar um
passo para me afastar dela, muitos passos, tinha quase doze anos, já estava
da altura dela – podia usar a dança para sair da sua vida – e por isso era
inevitável uma alteração da sua autoridade, estava a acontecer naquele
preciso momento. Não disse nada, contornei-a, entrei no quarto e bati com a
porta.
12 British National Party – Partido Nacionalista Britânico. (N. do T.)
5

Ali Baba Goes to Town é um filme estranho. É uma variação de A


Connecticut Yankee in King Arthur’s Court13 em que Eddie Cantor faz o
papel de Al Babson, um idiota chapado que dá consigo a fazer de figurante
num filme tipo 1001 Noites, em Hollywood. Adormece durante as
filmagens e sonha que está na Arábia do século IX. Havia uma cena que me
tinha impressionado muito, quis mostrá-la a Tracey, mas tinha-se tornado
difícil encontrá-la, não telefonava, e quando eu tentava ligar-lhe para casa
havia sempre uma pausa na linha antes de a mãe me dizer que tinha saído.
Sabia que tinha razões legítimas, estava a preparar-se afanosamente para as
provas na escola de artes de palco – no que o Sr. Booth acedera
amavelmente a ajudá-la –, ensaiava praticamente todas as tardes da semana
no salão da igreja. Mas eu não estava preparada para a deixar seguir a sua
nova vida. Fiz muitas tentativas de lhe montar emboscadas: as portas da
igreja estavam abertas, o sol entrava pelos vitrais, o Sr. Booth acompanhava
ao piano, e se ela me apanhava a espiá-la acenava-me – o cumprimento
distraído e adulto de uma mulher ocupada – mas nem uma única vez veio cá
fora falar comigo. Por qualquer lógica obscura de pré-adolescente, decidi
que a culpa era do meu corpo. Era ainda uma criança escanzelada, de peito
liso, que espreitava à porta, ao passo que Tracey, dançando em plena luz, já
era uma mulherzinha. Como podia interessar-se, por pouco que fosse, pelas
coisas que ainda me interessavam a mim?

«Ná, não conheço. Diz lá o nome outra vez!»


«Ainda agora te disse. Ali Baba Goes to Town.»
Tinha-me enchido de coragem e entrado na igreja no fim de um dos
ensaios dela. Estava sentada numa cadeira de plástico a descalçar os sapatos
de sapateado, enquanto o Sr. Booth continuava no seu canto, às voltas com
o número «Can’t Help Loving That Man of Mine»14 – acelerando-o e
desacelerando-o, tocando-o ora como jazz, ora como ragtime.
«Estou ocupada.»
«Podias vir agora.»
«Agora estou ocupada.»
O Sr. Booth meteu as partituras na pasta e passou por nós. Tracey
empinou o nariz, farejando elogio.
«Foi um espanto», disse ele.
«Foi bom, a sério?»
«Um espanto. É um sonho ver-te dançar.»
Sorriu e deu-lhe uma palmadinha no ombro, e um rubor de felicidade
inundou a cara de Tracey. Era o tipo de elogio que eu recebia diariamente
do meu pai, a propósito de tudo, mas no caso dela devia ser muito raro,
porque ouvi-lo pareceu mudar tudo, incluindo aquilo que sentia por mim,
naquele momento. Enquanto o Sr. Booth saía lentamente da igreja, sorriu,
atirou o saco de dança por cima do ombro e disse: «Vamos então.»

A cena aparece no princípio do filme. Um grupo de homens sentados no


chão de areia, parecem apáticos, deprimidos. Estes, diz o sultão a Al, são os
músicos, os africanos, que ninguém percebe, porque falam uma língua
desconhecida. Mas Al quer falar com eles e experimenta tudo: inglês,
francês, espanhol, italiano, até iídiche. Nada feito. Até que tem uma ideia.
Hai di hai di hai di hai! O grito de Cab Calloway, e os africanos,
reconhecendo-o, levantam-se de um salto e gritam a resposta: Ho di ho di
ho di ho! Entusiasmado, Cantor começa a enegrecer-se, ali mesmo,
pintando a cara com um pedaço de cortiça queimada, só deixando aqueles
olhos irrequietos, a boca elástica.
«Mas o que é isto? Eu não quero ver isto!»
«Não é esta parte. Espera um bocadinho, Trace, por favor. Espera.»
Tirei-lhe o comando da mão e pedi-lhe que se sentasse no sofá. Agora Al
estava a cantar para os africanos, uma letra que parecia mudar o próprio
tempo, avançando muito, até um momento em que aqueles africanos
deixariam de ser como eram agora, um tempo dali a mil anos em que seriam
eles a marcar o ritmo a que o mundo quer dançar, num lugar chamado
Harlem. Ao ouvirem esta notícia, os músicos, encantados, punham-se de pé
e começavam a dançar e a cantar, numa estrado erguido na praça da cidade.
A sultana e seus conselheiros olham de uma varanda para baixo, os árabes
olham da rua para cima. Os árabes são árabes de Hollywood, brancos, com
vestes de Aladino. Os africanos são negros americanos vestidos a rigor, de
tanga e penas, cocares fantasiosos na cabeça – e tocam instrumentos
musicais primitivos, numa paródia às suas futuras encarnações no Cotton
Club: trombones feitos de osso verdadeiro, clarinetes de canas sem miolo,
coisas assim. E Cantor, fiel às origens do seu nome, é o maestro, com um
apito ao pescoço, que toca para pôr termo a um solo ou para mandar retirar
do palco um executante. A canção chegava à parte do coro, ele dizia-lhes
que o swing tinha vindo para ficar, que era inevitável, e portanto tinham de
escolher um parceiro – e dançar. Então Cantor tocava o apito e o momento
maravilhoso acontecia. Era uma rapariga – uma rapariga que chegava. Pedi
a Tracey que se aproximasse o mais possível do ecrã, não queria que
restasse a mínima dúvida. Olhei-a de soslaio: vi-a abrir a boca de surpresa,
como a minha se havia aberto na primeira vez que vi aquilo, e então tive a
certeza de que ela via o mesmo que eu. Oh, o nariz era diferente – o desta
rapariga era normal e achatado – e não havia nos seus olhos nenhum sinal
da crueldade característica de Tracey. Mas a cara em forma de coração, as
adoráveis maçãs do rosto salientes, o corpo compacto mas os membros
compridos, tudo isto era Tracey. A semelhança física era muito forte, mas
esta não dançava como Tracey. Esbracejava, balançava as pernas para trás e
para a frente, era uma dançarina de sapateado, não uma perfecionista
obcecada. E tinha graça: andando em pontas ou parando por um segundo
numa absurda atitude cómica, numa perna só, braços no ar, como o
ornamento do capô de um automóvel caro. Vestia como as outras – saia de
ráfia, penas – mas nada conseguia diminuí-la.
Para o grande final a rapariga voltava a entrar em cena e juntava-se a
todos aqueles americanos vestidos de africanos, e ao próprio Cantor, e todos
se imobilizavam numa fila e faziam uma vénia de quarenta e cinco graus
com o chão. Era uma antecipação do futuro: um ano depois estávamos todas
a experimentar aquilo no recreio, depois de termos visto Michael Jackson
fazer exatamente o mesmo num vídeo musical. E durante semanas depois
da passagem daquele vídeo na televisão Tracey e eu e muitas outras miúdas
tentámos no recreio imitar aquele passo o melhor que sabíamos, mas era
impossível, ninguém conseguia, caíamos todas de cara no chão. Na altura
eu não sabia como aquilo se fazia. Agora sei. No vídeo, Michael usava
arames e, alguns anos depois – quando quis produzir aquele efeito ao vivo
em palco – usou um par de sapatos «antigravidade», com uma ranhura no
tacão que encaixava num espigão que havia no palco, e ele foi um dos
inventores, a patente está em seu nome.
Os africanos do Ali Baba pregavam os próprios sapatos ao chão.
13 Livro de Mark Twain, publicado em 1889. (N. do T.)

14 Canção do musical O Barco das Ilusões. (N. do T.)


6

À porta do hotel de Aimee entrámos numa série de SUV. O circo


completo participava naquela primeira viagem: os filhos de Aimee estavam
connosco, e a ama, Estelle, e Judy, evidentemente, mais as três outras
assistentes pessoais, uma rapariga das relações públicas, Granger, um
arquiteto francês que eu nunca tinha visto, uma mulher deslumbrada do
DfID15, um jornalista e um fotógrafo da Rolling Stone, e um tipo chamado
Fernando Carrapichano, nosso diretor de projetos. Observei os transpirados
bagageiros nos seus uniformes de linho branco que carregavam as malas
nos porta-bagagens e ajudavam toda a gente a instalar-se, e perguntei-me de
que aldeia seriam. Estava à espera de ir no carro de Aimee para lhe relatar –
se é que isso servia de alguma coisa – o reconhecimento que fizera durante
a semana, mas quando Aimee viu Lamin arregalou os olhos e a primeira
coisa que lhe disse depois de «Olá» foi «Tu tens de vir comigo.» Eu fui
mandada para o segundo carro, com Carrapichano. Ele e eu íamos passar o
tempo juntos, disse-nos, «a limar as arestas».
O regresso à aldeia foi surpreendente. Todas as dificuldades que me
habituara a esperar daquela viagem desapareceram, como quando num
sonho o sonhador está lúcido e capaz de manipular tudo o que o rodeia.
Nem postos de controlo nem estradas esburacadas que nos obrigassem a
parar, e em vez do calor asfixiante, enervante, uma temperatura ambiente de
vinte e um graus perfeitamente regulada pelo ar condicionado e uma garrafa
de água gelada na mão. A nossa comitiva, que incluía dois jipes cheios de
altos funcionários do governo e uma escolta de motos da polícia, percorreu
a grande velocidade ruas que umas vezes davam a impressão de ter sido
artificialmente despovoadas e outras vezes artificialmente povoadas –
orladas de crianças que agitavam bandeirinhas, como uma encenação – e
seguiu um itinerário estranhamente longo, serpenteando pela zona turística
eletrificada e depois por uma série de enclaves suburbanos de cuja
existência não me tinha apercebido, onde casas enormes e inacabadas, com
a ferrugem da verguinha de ferro à vista, tentavam romper por trás das suas
muralhas de proteção. Sob a influência deste estado de irrealidade, via
versões da cara da minha mãe por todo o lado, em rapariguinhas que
corriam pela rua abaixo, em velhas que vendiam peixe nos mercados, e uma
vez num rapaz pendurado do lado de fora de um miniautocarro. Quando
chegámos ao ferry íamos só nós e os nossos carros. Perguntei-me que
pensaria Lamin daquilo.

Quanto a Carrapichano, não o conhecia muito bem e a única vez que


tínhamos falado fizera figura de parva. Ia no avião para o Togo, seis meses
antes, quando o Togo ainda estava na lista dos finalistas, mas Aimee tinha
ofendido o minúsculo país ao sugerir, numa entrevista, que o governo «não
fazia nada pelo povo». «Como é aquilo?», perguntara, debruçando-me sobre
ele para olhar pela janela de vigia, e querendo dizer, devo admitir, «a
África.»
«Nunca lá fui», disse ele friamente, sem se virar.
«Mas praticamente vives cá – li o teu currículo.»
«Não. Senegal, Libéria, Costa do Marfim, Sudão, Etiópia, sim – Togo,
nunca.»
«Ora, ora, tu sabes o que eu quero dizer.»
Ele tinha-se virado para mim, vermelho, e perguntado: «Se estivéssemos
a voar para a Europa e quisesses saber como era a França, adiantava alguma
coisa se eu te descrevesse a Alemanha?»
Agora estava a tentar apagar a má impressão com conversa de
circunstância, mas ele estava ocupado com uma grande pilha de papéis,
onde vi que havia gráficos que não compreendia, coleções de estatísticas do
FMI. Senti uma certa pena dele, preso a nós e à nossa ignorância,
completamente fora do seu ambiente natural. Sabia que tinha quarenta e
seis anos, era doutorado, economista de formação, com experiência em
desenvolvimento internacional, e que, tal como Miriam, tinha trabalhado
muitos anos para a Oxfam. Aliás, tinha sido ela quem no-lo havia
recomendado. Tinha passado quase toda a década de noventa a gerir
projetos de ajuda na África Oriental e Ocidental, em aldeias remotas sem
televisão, e uma consequência interessante disto – pelo menos para mim –
era que de facto não tinha uma ideia muito clara de quem era Aimee, além
de lhe ter fixado o nome, vagamente, como fenómeno da sua juventude.
Agora tinha de passar este tempo todo com ela, e consequentemente com
pessoas como Mary-Beth, a excêntrica segunda assistente de Aimee, cuja
função consistia exclusivamente em enviar emails que Aimee ditava a
outras pessoas e depois ler-lhe as respostas. Ou a sorumbática Laura,
assistente número três, que pontificava sobre as dores musculares, artigos
de toilette e alimentação de Aimee, e por acaso acreditava que as alunagens
tinham sido encenadas. Todas as manhãs tinha de ouvir Judy ler os sinais
nas estrelas e planear o seu dia em conformidade. No meio da insanidade do
mundo de Aimee, eu devia ser para ele a coisa mais parecida com uma
aliada, mas todas as conversas que tentávamos entabular acabavam mal por
uma razão ou por outra, tinha uma visão do mundo tão estruturalmente
diferente da minha que devia sentir-se como se ocupasse uma realidade
paralela, que eu não tinha dúvida de que era a real, mas com a qual não
conseguia «comunicar», como ele costumava dizer. Aimee, que perante um
gráfico ficava tão desasada quanto eu, gostava dele porque era brasileiro e
bonito, com um cabelo negro, farto e encaracolado e uns encantadores
óculos de aros dourados que lhe davam o ar de um ator que desempenhava
o papel de economista num filme. Mas desde o princípio foi evidente que
iam ter problemas no futuro. A forma como Aimee comunicava as suas
ideias pressupunha uma base de entendimento – da própria Aimee, da sua
«lenda» – e «Fern», como ela lhe chamava, carecia de contexto para esse
entendimento. Era excelente a limar as arestas: planos de arquitetura,
negociações com os governos, contratos imobiliários – considerações
práticas de toda a ordem. Mas quando chegava a altura de falar diretamente
com Aimee sobre o projeto propriamente dito – que para ela era acima de
tudo um assunto pessoal e emocional – perdia completamente o pé.
«Mas o que é que significa quando ela me diz: “Vamos fazer disto uma
espécie de ética iluminada”?»
Empurrou os óculos pelo elegante nariz acima e examinou as suas muitas
notas, resultado, presumi, de ter transcrito escrupulosamente todos os
pequenos disparates que haviam caído da boca de Aimee durante as oito
horas de voo conjunto. Levantou o papel no ar como se aquilo pudesse
ganhar sentido se olhasse muito tempo para ele.
«Terei percebido mal? Como é que uma escola pode ser “iluminada”?»
«Não, não, é uma referência a um dos álbuns dela: Illuminated. De 97,
conheces? Considera-o um dos seus álbuns mais «positivos», e a letra é,
bem, é uma coisa tipo: «Ei, meninas, corram atrás dos vossos sonhos,
blablá, sejam fortes, blablá, nunca desistam. Estás a ver o estilo? Portanto o
que está basicamente a dizer é: quero que esta escola dê poder às
raparigas.»
Ele ficou confuso.
«Então porque é que não diz simplesmente isso?»
Eu dei-lhe uma palmadinha no ombro: «Fernando, não te preocupes – vai
correr tudo bem.»
«Achas que devia ouvir o álbum?»
«Sinceramente, acho que não ia adiantar nada.»

No carro que ia à nossa frente via Aimee pendurada na janela do


passageiro, com o braço de fora, absorvendo com satisfação todas as ondas
ou assobiadelas ou exclamações de contentamento que lhe vinham da rua e,
cá para mim, não eram reações à presença de Aimee, mas sim àquela
cavalgada reluzente de SUV por zonas rurais onde nem uma em duzentas
pessoas tinha automóvel. Na aldeia, por curiosidade, costumava pedir os
telemóveis aos professores, ligar-lhes os meus auriculares e ouvir as cerca
de trinta canções que eles tinham por hábito ouvir rotativamente, algumas
das quais recebiam gratuitamente com os carregamentos, e outras – as de
sua especial predileção – tinham gastado crédito precioso a descarregá-las.
Hip-hop, R&B, soca, reggae, ragga, grime, dub-step, hi-life – podiam
ouvir-se fragmentos de toques de toda a gloriosa diáspora musical, mas
raramente um artista branco, e nunca Aimee. Agora via-a sorrir e piscar o
olho aos muitos soldados, que, desobrigados da sua atividade habitual,
paravam ociosos pelas bermas da estrada, de arma à ilharga, a ver-nos
passar. E onde quer que houvesse música, onde quer que houvesse jovens a
dançar, Aimee batia as palmas para lhes captar a atenção e imitava-lhes os
movimentos o melhor que podia, mas sempre sentada. Este elemento de
caos rolante de beira de estrada que tanto me incomodava e perturbava,
como um zootrópio planificado e preenchido por todas as formas de drama
humano – mulheres a amamentar filhos, a transportá-los, a falar com eles, a
beijá-los, a bater-lhes, homens a conversar, a discutir, a comer, a trabalhar, a
rezar, animais vivos e mortos, cambaleando pela rua a sangrar do pescoço,
rapazes a correr, a caminhar, a dançar, a mijar, a cagar, raparigas a
cochichar, a rir, a torcer o nariz, sentadas, a dormir –, tudo isto fazia as
delícias de Aimee, pendurava-se tanto da janela que cheguei a recear vê-la
cair pela sua amada matriz e não voltar. Mas era sempre com multidões
ingovernáveis que a sua felicidade era maior. Até a companhia de seguros a
proibir era frequente sujeitar-se ao crowd surfing, e nunca a assustava, ao
contrário de mim, ver-se de repente cercada por um monte de gente num
aeroporto ou no átrio de um hotel. Entretanto, a única coisa que eu
conseguia ver através do vidro escurecido da minha janela não parecia
surpreendê-la nem alarmá-la, e quando lhe falei nisso nos poucos minutos
em que estivemos juntas, de pé no prancha de acesso, a ver os nossos carros
entrarem no fantasmagórico ferry vazio e os filhos dela subirem deliciados
os degraus de ferro forjado para o convés superior, virou-se para mim e
disparou: «Bolas, se vais ficar chocada com toda a porra de sinais de
pobreza que vês por aqui, vai ser uma viagem muito comprida. Estás em
África!»
Foi como se tivesse perguntado por que razão havia luz lá fora e me
tivessem respondido: «Porque é de dia!»
15 Department for International Development. (N. do T.)
7

A única coisa que sabíamos era o nome dela, descobrimo-lo no genérico.


Jeni LeGon. Não fazíamos ideia do que era feito dela, se estava viva ou
morta, se tinha feito mais filmes além daquele, só tínhamos aqueles quatro
minutos dela no Ali Baba – ou melhor, tinha-os eu. Se Tracey queria vê-los
tinha de vir a minha casa, coisa que começou a fazer de vez em quando,
como Narciso debruçando-se sobre um lago. Percebi que não lhe ia ser
preciso muito tempo para aprender o número completo – tirando a
inclinação impossível – mas não ia deixá-la levar o vídeo para casa, não
caía daí abaixo, sabia quando tinha um trunfo na mão. E tinha começado a
descobrir LeGon aqui e ali, pequenos papéis em filmes que vira muitas
vezes. Lá estava ela como criada de Ann Miller, a debater-se com um
cachorro, e no papel trágico de uma mulata que morre nos braços de Cab
Calloway, e outra vez como criada, ajudando Betty Hutton a vestir-se. Estas
descobertas, muito espaçadas, às vezes com muitos meses de permeio,
transformaram-se em razões para telefonar a Tracey, e mesmo quando era a
mãe a atender ela aparecia imediatamente, sem hesitações nem desculpas.
Sentava-se a escassas polegadas do ecrã de televisão, pronta para apontar
este ou aquele momento de ação ou expressão, uma emoção que perpassava
pela cara de Jeni, uma variação num ou noutro passo, e interpretando tudo
quanto via com aquela perspicácia que eu sentia que me faltava, que na
altura considerava ser propriedade exclusiva de Tracey. Um dom para ver
que parecia só ter escape ou expressão aqui, na minha sala de estar, diante
da minha televisão, e que nunca nenhum professor viu, nenhum exame pôde
alguma vez avaliar ou sequer notar, e do qual estas memórias são talvez o
único verdadeiro testemunho e registo.
Uma coisa em que ela não reparou e eu não queria dizer-lhe: os meus pais
tinham-se separado. Eu própria só soube porque a minha mãe me disse.
Continuavam a viver na mesma casa e a dormir no mesmo quarto. Para
onde haviam de ir? Os divórcios a sério eram para quem tinha advogado e
outro sítio para viver. Havia também a questão das competências da minha
mãe. Sabíamos os três que nos divórcios era o pai que saía de casa, mas o
meu pai não podia sair, estava fora de causa. Quem, na ausência dele, ia
pôr-me um penso no joelho quando eu caísse, ou lembrar-se de quando
tinha de me dar o remédio, ou escovar-me pacientemente o cabelo para tirar
as lêndeas? Quem ia acorrer quando tivesse os meus terrores noturnos?
Quem ia lavar os lençóis amarelos e malcheirosos na manhã seguinte? Não
quero dizer com isto que a minha mãe não me amava, mas não era uma
pessoa caseira: a vida dela passava-se toda na cabeça. A competência
fundamental de todas as mães – a gestão do tempo – ultrapassava-a. Media
o tempo em páginas. Meia hora, para ela, significava dez páginas lidas, ou
catorze, dependendo do corpo de letra, e quando se pensa no tempo nestes
termos não sobra tempo para mais nada, não há tempo para ir ao parque ou
para ir comer um gelado, nem tempo para deitar os filhos, nem tempo para
ouvir o relato lacrimoso de um pesadelo. Não, o meu pai não podia sair.
Certa manhã, estava eu a lavar os dentes, a minha mãe entrou no quarto
de banho, sentou-se na borda da banheira verde-abacate e descreveu
eufemisticamente as novas regras. A princípio quase não a compreendi,
parecia-me que estava a levar muito tempo até chegar àquilo que queria
efetivamente dizer, falando de teorias de psicologia infantil, e «sítios na
África» onde as crianças eram criadas «por uma aldeia» e não pelos pais, e
de outros assuntos que eu não entendia ou não me interessavam, mas por
fim puxou-me para si, abraçou-me com força e disse: «O teu pai e eu –
vamos viver como irmão e irmã.» Lembro-me de ter pensado que esta era a
coisa mais perversa que alguma vez tinha ouvido: ia continuar a ser filha
única, enquanto os meus pais se tornavam irmãos. A reação inicial do meu
pai deve ter sido parecida, porque durante vários dias o ambiente lá em casa
foi de guerra, guerra aberta, e eu tinha de dormir com duas almofadas a
tapar as orelhas. Mas quando finalmente percebeu que ela não estava a
brincar, que não ia mudar de opinião, caiu em depressão. Começou a passar
fins de semana inteiros no sofá, a ver televisão, enquanto a mãe não saía da
cozinha e do seu banco alto, ocupada com os trabalhos de casa para a sua
licenciatura. Eu ia sozinha para a aula de dança. Lanchava com um ou com
o outro, nunca com os dois.
Pouco depois do anúncio da minha mãe, o meu pai tomou uma decisão
inesperada: voltou à distribuição de correio. Tinha demorado dez anos a
chegar a diretor de central da distribuição, mas no meio da sua tristeza leu
Coming Up for Air, de George Orwell, e este romance convenceu-o de que
era melhor para ele fazer um «trabalho honesto», como ele dizia – e ter o
resto dos dias livres para «conseguir a educação que nunca teve» – do que
ter um enfadonho emprego de secretária que lhe consumia o tempo todo.
Era o tipo de ação impraticável e de princípios elevados que a minha mãe
costumava apreciar, e a escolha do momento para o anúncio não me pareceu
acidental. Mas, se o plano era reconquistá-la, não resultou: levantava-se
todas as manhãs às três e voltava para casa à uma da tarde, muitas vezes lia
ostensivamente um manual de sociologia que surripiava das estantes da
minha mãe, mas embora lhe perguntasse respeitosamente pela sua manhã de
trabalho e às vezes pela sua leitura, a minha mãe não voltou a apaixonar-se
por ele. Ao fim de algum tempo deixaram pura e simplesmente de se falar.
O clima em casa mudou. No passado eu tivera sempre de esperar por uma
brecha nas intermináveis discussões entre os meus pais para poder encaixar-
me nela. Agora podia falar sem interrupção, se quisesse, com qualquer
deles, mas já era tarde. No estilo de avanço acelerado próprio das infâncias
urbanas, já tinham deixado de ser as pessoas mais importantes da minha
vida. Não, de facto já não queria saber o que os meus pais pensavam de
mim. Só a opinião da minha amiga a meu respeito contava, agora mais do
que nunca, e palpitava-me que ela, sentindo isso, optava por não a dar.
8

Alguém diria mais tarde que eu era uma má amiga para Aimee, sempre
havia sido, só estava à espera do momento oportuno para a magoar, ou
mesmo para a destruir. Talvez ela acredite nisso. Mas só uma boa amiga
acorda uma amiga do seu sonho. A princípio pensei que não teria de ser eu
a acordá-la, que a aldeia se encarregaria disso, porque não parecia possível
continuar a sonhar naquele lugar ou pensar em si mesma como uma
exceção, fosse a que título fosse. Enganei-me. Nos arredores a norte da
aldeia, à beira da estrada que ia para o Senegal, havia uma grande casa cor-
de-rosa de tijolo, com dois andares – a única do seu género num raio de
várias milhas – abandonada, mas praticamente concluída, a que só faltavam
as janelas e as portas. Tinha sido construída, contou-me Lamin, com
remessas enviadas por um rapaz da terra que tinha ganhado bom dinheiro
como taxista em Amesterdão, até que a sua sorte virou e o dinheiro parou
de repente. Agora a casa, vazia há um ano, teria nova vida como nossa
«base de operações». Quando lá chegámos o Sol estava a esconder-se, e foi
com satisfação que o ministro do Turismo nos mostrou as lâmpadas nuas
acesas no teto de todos os compartimentos. «E de cada vez que cá vierem»,
disse-nos, «estará melhor.» A aldeia esperava a luz elétrica havia muito
tempo – desde o golpe, mais de vinte anos antes – mas em dois ou três dias
Aimee tinha logrado convencer as autoridades competentes a ligarem um
gerador a esta carcaça de casa, e havia tomadas para carregar todos os
nossos telemóveis e uma equipa de operários tinha instalado janelas de
acrílico e portas de contraplacado que funcionavam, camas para toda a
gente e até um fogão. Os filhos de Aimee ficaram encantados – era como
acampar – e para ela as duas noites que tinha programado passar ali
assumiam a forma de uma aventura ética. Ouvi-a dizer ao jornalista da
Rolling Stone como é importante estar «no mundo real, no meio do povo», e
na manhã seguinte, além dos momentos formais fotografados – lançamento
da primeira pedra, dança dos alunos da escola – foram tiradas muitas fotos
de Aimee neste mundo real, comendo das tigelas comunitárias, acocorando-
se com à-vontade ao lado das mulheres – dando uso aos músculos
desenvolvidos na bicicleta estática – ou exibindo a sua agilidade, trepando
aos cajueiros com um grupo de rapazes. Depois do almoço, vestiu as calças
de caqui cor de azeitona e fomos as duas dar uma volta pela aldeia com a
mulher do FfID, cuja missão era indicar-nos «áreas de particular
necessidade». Vimos latrinas infestadas de parasitas intestinais, uma clínica
abandonada, semiconstruída, muitos compartimentos abafados, com
cobertura de chapa de zinco, onde as crianças dormiam às dez por cama.
Depois visitámos as hortas comunitárias – para testemunharmos os «limites
da agricultura de subsistência» – mas na altura em que entrávamos no
campo aconteceu que o Sol estava a projetar sombras compridas e
cativantes e as ramas das batatas estavam frondosas e verdes e a vinha
virgem trepava pelas árvores, formando um todo luxuriante que criava um
efeito de extraordinária beleza. As mulheres, novas e velhas, tinham um
aspeto utópico, nos seus panos coloridos, arrancando ervas daninhas da
terra, conversando umas com as outras enquanto trabalhavam, berrando ao
longo das fiadas de ervilhas ou malaguetas, rindo-se das piadas umas das
outras. Quando viram que nos aproximávamos, endireitaram-se e limparam
o suor da cara, com os lenços de cabeça, se os usavam, ou, caso contrário,
com as mãos.
«Bom dia. Como está a ser o seu dia?»
«Oh, já percebi o que está a acontecer aqui», disse Aimee a uma anciã
que tivera a ousadia de a abraçar pela cintura fina. «As meninas podem
conversar à vontade. Não há homens por perto. Pois, faço ideia do que aqui
vai.»
A mulher do DfID riu-se exageradamente. Eu apercebia-me da pouca
ideia que fazia do que estava a acontecer ali. Nem mesmo as ideias mais
simples que trouxera comigo pareciam funcionar aqui quando tentava
aplicá-las. Por exemplo, não estava neste momento num campo com a
minha tribo alargada, com as mulheres negras como eu. Aqui não existia
semelhante categoria. Só havia as mulheres seres, as uolofes e as
mandingas, as seraulis, as fulas e as jolas, e, segundo me disseram uma vez
a medo, eu era parecida com estas últimas, pelo menos na estrutura facial
básica: o mesmo nariz comprido, as maçãs do rosto também. Do sítio onde
agora estava ouvia o chamamento à oração vindo do minarete quadrado de
betão da mesquita verde, que se erguia acima das árvores e dominava esta
aldeia onde as mulheres de cabeça coberta e descoberta eram irmãs e
primas e amigas umas das outras, eram mães e filhas umas das outras, ou
cobriam-se de manhã e descobriam-se à tarde, simplesmente porque alguns
amigos da sua idade, rapazes e raparigas, tinham vindo visitá-las, e uma
delas tinha-se oferecido para lhes fazer tranças. Neste lugar onde o Natal
era celebrado com um fervor surpreendente, e todas as personagens do livro
eram consideradas «irmãs, irmãos», enquanto eu, que representava o
ateísmo absoluto, não era inimiga de ninguém, não, apenas alguém que
devia receber compaixão e proteção – assim me explicou uma das raparigas
com quem compartilhava um quarto – como se faria a uma vitela cuja mãe
tivesse morrido a pari-la.
Agora observava as raparigas fazendo fila para o poço, enchendo de água
os seus enormes alguidares de plástico e pondo estes alguidares à cabeça e
iniciando o trajeto de regresso à aldeia. Reconheci algumas da morança
onde havia vivido nesta última semana. As primas gémeas da minha
anfitriã, Hawa, bem como três das suas irmãs. Disse adeus a todas, sorrindo.
Elas responderam com um aceno.
«Sim, ficamos sempre espantadas com o muito que as mulheres e
raparigas daqui trabalham», disse a mulher do DfID, em voz baixa,
acompanhando o meu olhar. «Fazem o trabalho doméstico, como veem,
mas também o trabalho agrícola, e como irão ver são predominantemente as
mulheres que gerem a escola e o mercado. Verdadeiro Poder Feminino.»
Curvou-se para apalpar o caule de uma beringela e Aimee aproveitou a
oportunidade e virou-se para mim, entortou os olhos e deitou a língua de
fora. A mulher do DfID levantou-se e passou os olhos pela fila cada vez
mais longa de raparigas.
«É claro que muitas destas raparigas deviam estar na escola, mas
infelizmente as mães precisam delas aqui. E agora pensem naqueles rapazes
que vimos há pouco, a preguiçar numa rede entre os cajus...»
«A educação é a resposta para o desenvolvimento das nossas raparigas e
mulheres», interveio Lamin, com o ar ligeiramente magoado e cansado,
pensei, de quem já tinha suportado muitas preleções de representantes do
DfID. «Educação, educação, educação.»
Aimee fez-lhe um sorriso radioso.
«É para isso que aqui estamos», disse.

Durante todas as atividades do dia Aimee manteve Lamin por perto,


confundindo a tendência que ele tinha para sussurrar com uma intimidade
especial entre os dois, e ao fim de algum tempo começou também a
sussurrar-lhe, derretendo-se como uma colegial. Perigoso, pensei, diante do
omnipresente jornalista, mas não houve um único momento em que
estivéssemos as duas a sós para lho poder dizer com firmeza. Pelo
contrário, via o esforço que ela fazia para conter a impaciência sempre que
o pobre Carrapichano não tinha outra hipótese senão afastá-la de Lamin
para a levar a cumprir todos os compromissos públicos do dia: assinar
papéis, encontrar-se com ministros, discutir propinas, sustentabilidade,
programas, salários dos professores. Meia dúzia de vezes obrigou Aimee e
comitiva a suspender a marcha para ouvirmos mais um funcionário
governamental proferir mais um discurso – sobre parceria e respeito mútuo,
e em particular o respeito que o Presidente Vitalício queria que fosse
transmitido a Aimee na sua ausência, respeito esse que era apenas a
resposta correta devida pelo que Aimee «claramente tem pelo nosso amado
Presidente» – enquanto sofríamos todos ao sol. Cada discurso era quase
igual ao anterior, como se existisse na capital um texto matricial do qual
todos estes ministros tivessem de fazer citações. Enquanto nos dirigíamos à
escola, devagar, para não ultrapassarmos o fotógrafo – que ia à nossa frente
às arrecuas –, um destes ministros agarrou mais uma vez a mão de
Carrapichano, e quando ele tentou, discretamente e sem Aimee ver,
dissuadir o ministro, este recusou-se a ser dissuadido, mantendo-se firme
junto do portão da escola, barrando a entrada e dando início ao seu discurso,
perante o que Aimee virou ostensivamente as costas.
«Escuta, Fern, não quero ser chata, mas estou a fazer um verdadeiro
esforço para estar presente neste momento. E tu estás a tornar-me isso
muito difícil. Está calor, estamos todos com calor, e tenho consciência de
que não temos muito tempo. Por isso acho que o melhor é acabarmos com
os discursos. Acho que já todos sabemos o que eles pensam, todos nos
sentimos bem-vindos, todos nos sentimos mutuamente respeitados ou lá o
que é. Neste momento estou aqui para marcar presença. Acabaram os
discursos por hoje – OK?»
Carrapichano olhou meio vencido para o bloco que tinha na mão e por um
momento pensei que ele ia perder as estribeiras. Ao seu lado, o ministro
continuava impávido, sem ter percebido o que Aimee havia dito,
simplesmente à espera da deixa para recomeçar.
«Está na altura de visitar a escola», disse Carrapichano sem levantar os
olhos, contornando o ministro e empurrando o portão.
A ama, Estelle, estava lá à nossa espera, com os filhos de Aimee, que
corriam pelo gigantesco recreio de terra batida – despido, excetuando duas
balizas tortas e sem rede – e trocavam gestos de dá cá mais cinco com as
crianças que se aproximavam deles, encantados por andarem à solta entre
tanta gente da sua idade. Jay tinha na altura oito anos, e Kara seis, e desde
sempre eram educados em casa. Enquanto passávamos revista acelerada a
seis salas de aula grandes e pintadas de cores alegres, as muitas perguntas
infantis deles saíam-lhes em catadupas, perguntas pouco diferentes das
minhas, mas naquele caso espontâneas e livremente expressas, e que a ama
ia tentando, sem êxito, abafar e silenciar. A minha vontade era acrescentar
algumas. Porque é que o diretor tem duas mulheres, porque é que umas
raparigas usam lenço na cabeça e outras não, porque é que os livros estão
todos rasgados e sujos, porque é que lhes ensinam as matérias em inglês se
não falam inglês em casa, porque é que os professores escrevem as palavras
no quadro com erros de ortografia, o que é que vai acontecer aos rapazes se
a nova escola é para raparigas?
9

Quase todos os sábados, à medida que se aproximava o meu ritual de


passagem, acompanhava a minha mãe numa marcha de protesto contra isto
ou aquilo, contra a África do Sul, contra o governo, contra as bombas
nucleares, contra o racismo, contra os cortes, contra a desregulação dos
bancos ou a favor do sindicato dos professores, do GLC16 ou do IRA. Era-
me difícil compreender o propósito de tudo isto, dada a natureza da nossa
inimiga. Via-a quase todos os dias na televisão – carteira rígida, penteado
rígido, impávida, inabalável – e sempre indiferente ao número de pessoas,
grande ou pequeno, que a minha mãe e suas apaniguadas tinham
conseguido reunir para a marcha, na manhã do sábado anterior, passando
por Trafalgar Square para terminar em frente da sua reluzente porta preta.
Lembro-me de ter marchado a favor da manutenção do GLC um ano antes,
caminhando durante horas que me pareceram dias, meia milha atrás da
minha mãe, que ia na primeira linha, numa grande conversa com Red Ken17
– empunhando um cartaz acima da cabeça, e depois, quando aquilo se
tornou muito pesado, transportando-o ao ombro, como Jesus no Calvário,
arrastando-o por Whitehall abaixo, até que finalmente apanhámos o
autocarro para casa, caímos espapaçadas no sofá da sala, ligámos a TV e
ficámos a saber que o GLC tinha sido extinto horas antes. Ainda assim, foi-
me dito que não havia «tempo para a dança», ou, numa variação, «o tempo
não ia para danças», como se o momento histórico o proibisse. Que eu tinha
«responsabilidades», que estas eram decorrentes da minha «inteligência», a
qual tinha sido recentemente confirmada na escola por uma jovem
professora de substituição que tivera a ideia de nos pedir que levássemos
para a aula «o que estivéssemos a ler em casa». Era um daqueles momentos
– houve muitos – em que nós, os alunos, tomávamos consciência da
profunda inocência dos nossos professores. Davam-nos sementes na
primavera para «plantarmos nos nossos jardins», ou pediam-nos, depois das
férias grandes, que escrevêssemos uma página sobre «onde passou as
férias». Não era coisa que me afetasse: já tinha ido a Brighton, muitas
vezes, e uma vez num cruzeiro de copos a França, e era uma entusiástica
jardineira de floreiras. Mas a cigana que cheirava mal, tinha gretas de cieiro
à volta da boca de tanto chorar e todas as semanas aparecia com um olho
negro? Ou as gémeas, demasiado crescidas para a adoção, aos baldões pelas
casas de acolhimento? E o rapaz do eczema, que numa noite de verão eu e
Tracey tínhamos visto através das grades do Queen’s Park, sozinho,
dormindo profundamente num banco? Os professores de substituição eram
os mais inocentes de todos. Lembro-me da surpresa desta perante o número
nada pequeno de crianças que levaram de casa a Radio ou a TV Times.
Eu levei as minhas biografias de dançarinos, livros volumosos com
retratos desfocados dos anos setenta na capa, das grandes estrelas na velhice
– de robe e lenço de seda, de capa de penas de avestruz cor-de-rosa – e só
com base no número de páginas foi decidido que o meu futuro tinha de ser
«discutido». A minha mãe foi chamada a uma reunião, cedo, antes das
aulas, onde lhe foi dito que os livros por causa de cuja leitura às vezes me
censurava eram indicativos da minha inteligência, e que existia uma prova
que se podia fazer às crianças «talentosas» como eu e que, se passassem,
lhes permitiriam frequentar aquelas escolas boas que concedem bolsas de
estudo – não, não, não – propinas não, não se preocupe, referia-me a escolas
secundárias, o que é completamente diferente, não se paga nada, não, não,
por favor não se preocupe. Eu olhei de lado para a minha mãe, cuja cara não
deixava transparecer nada. É por causa da idade de leitura, explicou a
professora, passando por cima do nosso silêncio, porque, sabe, em matéria
de leitura ela está muito avançada para a idade. A professora olhou
fixamente para a minha mãe – de blusa sem sutiã e calças, turbante de
tecido kente, brincos enormes com a forma de África – e perguntou se o pai
também ia participar na reunião. O pai está a trabalhar, disse a minha mãe.
Ah, disse a professora, virando-se para mim, e que faz o teu pai, querida, é
ele o leitor lá em casa, ou...? O pai é carteiro, disse a minha mãe. A leitora é
a mãe. Bem, normalmente, disse a professora, corando, consultando os seus
apontamentos, normalmente não sugerimos de facto o exame de admissão
às escolas particulares. Quer dizer, existem algumas bolsas de estudo, mas
não faz sentido obrigarmos estas crianças a sofrerem desilusões. Mas a
jovem Miss Bradwell que esteve cá recentemente achou que talvez, quer
dizer, achou que, na situação da sua filha, talvez houvesse hipótese de...
Percorremos o caminho até casa em silêncio, não havia mais nada a dizer.
Já tínhamos ido visitar a secundária enorme e barulhenta que iria frequentar
no outono, havia-me sido vendida com a promessa de que tinha um
«estúdio de dança» algures no labirinto de corredores desgastados, salas de
aulas pré-fabricadas e sanitários provisórios. Todas as minhas conhecidas –
excetuando Tracey – iam para lá, o que era uma consolação: a segurança
dos números. Mas a minha mãe surpreendeu-me. Quando chegámos ao
nosso prédio parou ao fundo das escadas e disse-me que eu ia fazer a tal
prova, e trabalhar muito para passar. Nada de dança ao fim de semana, nem
distrações de espécie nenhuma, ia dar-me uma oportunidade, disse, como
ela nunca tivera, antes tendo sido aconselhada, na idade que eu tinha agora
– e pelas suas professoras –, a trabalhar para dominar quarenta palavras por
minuto, como todas as outras raparigas negras.

Senti-me como se fosse num comboio, com destino ao sítio para onde as
pessoas como eu costumavam ir na adolescência, só que agora, de repente,
havia alguma coisa diferente. Era informada de que desceria numa paragem
inesperada, mais adiante. Pensei no meu pai, arrancado do comboio quando
ainda mal tinha saído da estação. E em Tracey, tão expedita a saltar em
andamento, exatamente porque antes queria caminhar do que lhe dissessem
qual era a sua paragem ou até onde podia ir. Bem, não havia nisso uma certa
nobreza? Não havia nisso uma certa luta, pelo menos – um certo desafio? E
depois havia todos os revoltantes casos históricos que ouvi contar sentada
nos joelhos da minha mãe, histórias das mulheres furiosamente talentosas –
e eram sempre mulheres, na versão da minha mãe –, mulheres que talvez
tivessem corrido mais do que um comboio a alta velocidade, se tivessem
tido liberdade para isso, mas para as quais, nascidas no tempo errado, no
lugar errado, todas as paragens estavam fechadas, nem sequer eram
autorizadas a entrar na estação. E não era eu muito mais livre do que
qualquer delas – nascida em Inglaterra, nos tempos modernos – além de
muito mais leve, de nariz muito mais levantado, muito menos suscetível de
ser tomada como a essência da própria Negritude? Que poderia impedir-me
de continuar a viagem? Mas quando me sentei na sala da minha escola, num
dia de julho de calor abrasador, fora do horário normal das aulas – altura
estranha para estar na escola – e abri aqueles enunciados da prova, para ler
de ponta a ponta a oportunidade que a minha mãe desejava que agarrasse
com ambas as mãos, invadiu-me uma fúria grande e súbita, descobri que
não queria viajar naquele comboio, escrevi meia dúzia de palavras aqui e
ali, ignorei as páginas de matemática e ciências, reprovei clamorosamente.
16 Great London Council (Conselho da Grande Londres), órgão coordenador do poder local, extinto
em 1986 pelo governo de Margaret Thatcher. (N. do T.)

17 Alcunha de Ken Livingstone, à época prefeito da Grande Londres. (N. do T.)


10

Semanas depois, Tracey entrou para a sua escola de artes de palco. A mãe
não teve outro remédio senão tocar à nossa porta, entrar em nossa casa e
contar-nos tudo. Empurrando Tracey à sua frente como um escudo entrou
para o corredor a arrastar os pés, não quis sentar-se nem tomar chá. Nunca
até então tinha transposto a soleira daquela porta. «O júri disse que nunca
tinha visto nada tão original como a...» – a mãe de Tracey embatucou e
olhou furiosa para a filha, que então proferiu a palavra estranha –
«coreografia dela, nem nada que se parecesse. Uma completa novidade.
Nunca! Eu sempre lhe disse que tinha de ser duas vezes melhor do que
qualquer outra para chegar a algum lado», continuou, apertando a sua
Tracey contra o peito gigantesco, «e agora chegou.» Trazia um vídeo da
prova para nos dar, e a minha mãe recebeu-a com bastante delicadeza. Uma
noite fui descobri-lo no quarto dela debaixo de uma pilha de livros e vi-o
sozinha. A canção era «Swing is Here to Stay»18 e todos os movimentos,
todas as piscadelas de olho, todos os meneios de cabeça eram de Jeni
LeGon.
Nesse outono, no meu primeiro período na nova escola, descobri aquilo
que era sem a minha amiga: um corpo sem contorno definido. O tipo de
rapariga que andava de grupo em grupo, nem bem-vinda nem desprezada,
tolerada, e sempre desejosa de evitar confrontos. Sentia que não causava
nenhuma impressão. Durante algum tempo houve duas ou três raparigas do
ano à frente do meu que achavam que eu me orgulhava da minha cor forte,
do meu nariz comprido, das minhas sardas, e provocavam-me, roubavam-
me dinheiro, assediavam-me no autocarro, mas os provocadores alimentam-
se de alguma espécie de resistência, mesmo que sejam só lágrimas, e eu não
lhes ofereci nenhuma e depressa se cansaram e deixaram-me em paz. Não
me lembro da maioria dos anos que passei naquela escola. Apesar de os ter
vivido, uma obstinada parte de mim nunca a aceitou como mais do que um
lugar ao qual tinha de sobreviver todos os dias até voltar a ser livre.
Concentrava-me mais naquilo que imaginava ser a vida de Tracey na sua
escola do que na realidade da minha. Lembro-me, por exemplo, de ela me
ter contado pouco depois de lá ter chegado que quando Fred Astaire morreu
a escola organizou uma sessão evocativa, e alguns alunos foram convidados
a dançar em homenagem à memória dele. Tracey, vestida de Bojangles, de
chapéu alto e fraque brancos, arrasou. Sei que nunca a vi fazer aquilo, mas
ainda hoje sinto que tenho uma recordação daquele momento.
Treze anos, catorze, quinze, o difícil ritual de passagem – naqueles anos,
de facto, não nos vimos muito. A nova vida dela absorvia-a por completo.
Não esteve presente quando finalmente o meu pai saiu de casa ou quando
eu tive o período pela primeira vez. Não sei quando perdeu a virgindade
nem se a perdeu, nem quem lhe provocou o primeiro desgosto de amor.
Quando a via na rua, parecia-me que estava bem. Ia abraçada a um homem
muito bonito e maduro, quase sempre alto e com o cabelo muito curto dos
lados, e recordo-a nessas ocasiões mais a saltitar do que a andar – cara
fresca, cabelo apanhado num coque de bailarina, de colãs fluorescentes e
top reduzido – mas também de olhos injetados, claramente pedrada.
Elétrica, carismática, extremamente sensual, sempre carregada de energia
estival, mesmo no gélido fevereiro. E encontrá-la assim, como realmente
era – isto é, abstraindo das ideias invejosas que tinha em relação a ela – era
sempre uma forma de choque existencial, como ver uma personagem de um
livro de histórias na vida real, e fazia tudo para que o encontro fosse o mais
breve possível, chegando a atravessar a rua antes de ela chegar ao pé de
mim, ou saltar para um autocarro, ou alegar que ia a caminho de um
compromisso urgente. Mesmo quando algum tempo depois sabia, pela
minha mãe e por outras pessoas do bairro, que ela estava a passar por
dificuldades, cada vez mais metida em sarilhos, não conseguia imaginar
uma razão para isso, para mim tinha uma vida perfeita, o que talvez seja um
efeito indireto da inveja, esta incapacidade de imaginar. Na minha ideia, as
lutas dela pertenciam ao passado. Era dançarina: tinha encontrado a sua
tribo. Eu, pelo contrário, havia sido apanhada completamente desprevenida
pela adolescência, continuando a trautear canções de Gershwin no fundo da
sala de aula enquanto à minha volta os círculos de amizade começavam a
formar-se e a consolidar-se, definidos pela cor, classe, dinheiro, código
postal, nacionalidade, música, droga, política, desporto, aspiração, língua,
sexualidade... um dia dei a volta naquele enorme jogo de cadeiras musicais
e verifiquei que não havia lugar para mim. Sem saber o que fazer, fiz-me
gótica – era onde acabava quem não tinha mais para onde ir. Os góticos já
de si eram uma minoria, e eu aderi à fação mais estranha, um grupinho de
cinco miúdos apenas. Um era romeno e tinha um pé boto, outro era japonês.
Os góticos negros eram raros, mas havia precedentes: tinha visto alguns na
zona de Camden e agora copiava-os o melhor que podia, maquilhando a
cara de branco-fantasma e pintando os lábios de vermelho-sangue, deixando
o cabelo em parte dread e pintando outras partes de roxo. Comprei um par
de Dr. Martens e cobri-as de símbolos anarquistas pintados com verniz
corretor. Tinha catorze anos: o mundo era uma seca. Estava apaixonada pelo
meu amigo japonês, que estava apaixonado pela loira frágil do nosso grupo
que tinha os braços cobertos de cicatrizes e parecia um gato doente
abandonado à chuva – não era capaz de amar ninguém. Durante quase dois
anos passámos todo o nosso tempo juntos. Eu odiava a música e não era
permitido dançar, só balançar para cima e para baixo sem sair do sítio, ou
então chocar ebriamente uns contra os outros – mas agradava-me que a
apatia política desagradasse à minha mãe e que a brutalidade da minha nova
aparência trouxesse ao de cima o lado profundamente maternal do meu pai,
que agora andava constantemente preocupado comigo e tentava alimentar-
me porque eu, goticamente, estava a emagrecer. Faltava às aulas quase
todos os dias da semana: o autocarro que ia para a escola também ia para a
eclusa de Camden. Sentávamo-nos nos caminhos de sirga, a beber cidra e a
fumar, as DMs a balançar sobre o canal, a falar da falsidade de todos os
nossos conhecidos, conversas sem rumo que chegavam a consumir dias
inteiros. Eu denunciava violentamente a minha mãe, o antigo bairro, tudo
desde a infância, principalmente Tracey. Os meus novos amigos eram
obrigados a escutar todos os pormenores da nossa história mútua, toda ela
recapitulada com um espírito azedo, recuando até ao dia em que nos
conhecemos, quando íamos a atravessar o adro de uma igreja. Ao cabo de
uma tarde daquilo voltava de autocarro, passava pela escola onde não tinha
posto os pés e descia numa paragem em frente – mas exatamente em frente
– do novo apartamento de solteiro do meu pai, onde podia recuar
alegremente no tempo, matar saudades da comida que ele fazia, entregar-me
aos velhos prazeres secretos. Judy Garland a fingir de zulu, dançando o
cakewalk em Agora Seremos Felizes.
18 Do filme Ali Baba Goes to Hollywood. (N. do T.)
11

A nossa segunda visita teve lugar quatro meses depois, na estação das
chuvas. Aterrámos de noite, depois de um voo atrasado, e quando chegámos
à casa cor-de-rosa eu não consegui suportar a estranheza daquele lugar, a
sua tristeza e vazio, a sensação de que estava a invadir a ambição perdida de
outra pessoa. A chuva metralhava o tejadilho do táxi. Perguntei a Fernando
se não se importava que eu voltasse para casa de Hawa.
«Para mim é ótimo. Tenho montes de trabalho para fazer.»
«E ficas bem? Quer dizer, sozinho?»
Ele riu-se: «Já estive sozinho em sítios bem piores.»
Separámo-nos junto do enorme painel com a tinta a descascar que
assinalava o princípio da aldeia. Vinte metros de caminhada foram
suficientes para me encharcar, empurrei a porta de alumínio da morança da
família de Hawa, travada por uma lata de óleo cheia de areia até meio, mas
aberta no trinco, como sempre. Quase não reconheci o interior. No pátio,
onde quatro meses antes havia terra vermelha cuidadosamente varrida e
avós, primas e primos, sobrinhas e sobrinhos, irmãs e muitas crianças de
colo, sentados em círculo, a altas horas da noite, agora não havia ninguém,
apenas um lamaçal revolto onde imediatamente me atolei e perdi um
sapato. Quando me baixei para o procurar ouvi gargalhadas. Olhei para
cima e vi que estava a ser observada do alpendre de betão. Hawa e algumas
amigas, levando os pratos de lata do jantar para o sítio onde os guardavam.
«Oh, oh», exclamou Hawa, rindo-se ao ver-me, coberta de lama, e agora
transportando nos braços uma grande mala de rodas que se recusavam a
rolar pelo chão barrento. «Olhem só quem a chuva nos trouxe!»
Não tinha previsto voltar a ficar em casa de Hawa, não a tinha avisado,
mas nem ela nem mais ninguém na morança mostraram grande surpresa
pela minha chegada, e apesar de na primeira vez não ter sido uma hóspede
particularmente bem-sucedida ou bem-amada, fui recebida como família.
Apertei a mão das várias avós, e eu e Hawa abraçámo-nos, e dissemo-nos
que tínhamos sentido muito a falta uma da outra. Expliquei que desta vez
vínhamos só Fernando e eu – Aimee estava a gravar em Nova Iorque – e
que estávamos cá para observar em mais pormenor como funcionava a
escola antiga e o que podia ser aperfeiçoado na nova. Fui convidada a
sentar-me com Hawa e as suas visitas na pequena sala de estar, debilmente
iluminada por painéis solares brancos, mais intensamente iluminada pelos
ecrãs dos telemóveis de todas as raparigas. Sorrimos umas às outras, as
raparigas, Hawa, eu. Perguntaram-me delicadamente pela saúde da minha
mãe e do meu pai – mais uma vez foi motivo de admiração eu não ter
irmãos nem irmãs – e depois pela saúde de Aimee e dos filhos, e de
Carrapichano e de Judy, mas pela de ninguém com tanta ansiedade como
pela de Granger. Era na saúde de Granger que estavam verdadeiramente
interessadas, porque Granger havia sido a verdadeira estrela da primeira
visita, muito mais do que Aimee ou qualquer outro membro da comitiva.
Nós éramos curiosidades – ele era amado. Granger conhecia todos os temas
sentimentalões de R&B que Hawa adorava, Aimee desprezava e eu nem
sabia o que eram, usava o tipo de sapatos que Hawa mais admirava, e
durante uma roda de percussão comemorativa, organizada pelas mães na
escola, sem hesitação tinha entrado na roda, sacudido os ombros, meneado
o corpo, vogado e executado o moonwalk, enquanto eu me encolhia no meu
lugar, entretida a tirar fotografias. «Aquele Granger!», dizia agora Hawa,
abanando animadamente a cabeça com a extasiante recordação de Granger,
comparada com a desinteressante realidade da minha presença. «Um
dançarino fantástico! Os rapazes só perguntavam: “São os passos novos?” E
lembro-me de a tua Aimee dizer: “Não, estes são os velhos!” Lembras-te?
Mas desta vez não veio? É pena. Oh, o Granger é um rapaz tão simpático!»
As mulheres jovens presentes na sala riram-se e abanaram a cabeça e
suspiraram, e depois voltou a fazer-se silêncio, e comecei a pensar que
devia ter vindo interromper uma reunião, um bom pedaço de má-língua, que
agora, passado um minuto de silêncio embaraçado, era retomado em uolof.
Sem vontade de ir para a escuridão absoluta do quarto de dormir, recostei-
me no sofá, deixando que a conversa resvalasse em mim e as roupas me
secassem no corpo. Ao meu lado, Hawa era o centro das atenções, duas
horas de histórias que – tanto quanto eu percebia – iam do hilariante ao
pesaroso e ao moralmente ofendido, mas sem nunca chegarem ao furioso.
As risadas e os suspiros serviam-me de guia, e também as fotos do
telemóvel que ela mostrava no meio de certos episódios e explicava
laboriosamente em inglês quando eu fazia questão de perguntar. Percebi que
ela tinha um problema amoroso – um jovem polícia de Banjul que
raramente via – e um grande plano, que antevia com ansiedade, de ir à praia
quando acabassem as chuvas e fazer uma reunião de família, para a qual o
polícia seria convidado. Mostrou-me a fotografia daquela que tivera lugar
no ano anterior: uma panorâmica em que se viam pelo menos cem pessoas.
Identifiquei-a na primeira fila e estranhei a ausência do lenço, substituído
por um penteado sedoso, de risco ao meio, que lhe chegava aos ombros.
«Cabelo diferente», disse, e Hawa riu-se, pôs as mãos no hijab e tirou-o,
revelando dez centímetros de cabelo em pequenas rastas.
«Mas cresce tão vagar, ai!»

Levei algum tempo a perceber que Hawa era essa coisa relativamente rara
na aldeia, uma rapariga de classe média. Filha de dois professores
universitários, nenhum dos quais cheguei a conhecer, o pai trabalhava agora
em Milão como polícia de trânsito e a mãe vivia na cidade e continuava a
trabalhar na universidade. O pai tinha saído por aquilo que a população da
aldeia designava por «dar o salto», na companhia do irmão mais velho de
Hawa, atravessando o Sara para chegar à Líbia e aí fazendo a perigosa
travessia para Lampedusa. Dois anos depois, já casado com uma italiana,
mandou ir o outro irmão, mas isso foi há seis anos, e se Hawa estava à
espera de ser chamada era demasiado orgulhosa para mo dizer. O dinheiro
que o pai mandava havia proporcionado alguns luxos à morança, raros na
aldeia: um trator, um grande lote de terreno particular, uma retrete, embora
não estivesse ligada a coisa nenhuma, e uma televisão, embora não
funcionasse. A morança propriamente dita albergava as quatro mulheres do
falecido avô de Hawa e muitos dos filhos, netos e bisnetos que as suas
uniões tinham produzido, em combinações que estavam sempre a variar.
Nunca era possível localizar todos os progenitores destas proles: só as avós
se mantinham constantes, passando crianças de colo ou pouco mais velhas
de umas para as outras e para Hawa, que, apesar de muito jovem, muitas
vezes me dava a impressão de ser a chefe da família, ou pelo menos o seu
coração. Era uma daquelas pessoas que atraem toda a gente. Extremamente
graciosa, de rosto perfeitamente redondo, tez de um negro azulado, pestanas
muito bonitas, compridas, e um adorável ar de pata no lábio superior, cheio
e saliente. Quem procurasse descontração, frivolidade, ou tão-só ser
alegremente provocada durante uma ou duas horas sabia que devia ir ter
com Hawa, que dava igual atenção a toda a gente, queria saber todas as
novidades, por muito quotidianas ou banais que parecessem («Vens do
mercado? Oh, então conta! Quem estava lá? E o peixeiro, estava lá?») Teria
sido a joia da coroa de qualquer aldeia em qualquer lugar. Ao contrário de
mim, não tinha o mínimo desprezo pela vida de aldeia: adorava a pequenez,
o mexerico, a rotina e a união da família. Gostava que os assuntos de toda a
gente fossem os seus assuntos e vice-versa. Uma vizinha, que tinha um
problema amoroso mais difícil do que o dela, visitava-nos todos os dias –
tinha-se apaixonado por um rapaz com quem os pais não a deixavam casar-
se – e pegava nas mãos de Hawa enquanto falava e chorava, muitas vezes
ficando até à uma da manhã, mas eu reparava que saía sempre a sorrir.
Tentava imaginar-me a prestar algum dia um serviço parecido a uma amiga.
Queria saber mais sobre aquele problema de amor, mas Hawa não gostava
de traduzir, e na sua versão impaciente duas horas de conversa eram
facilmente reduzidas a duas ou três frases («Bem, está a dizer que ele é
muito bonito e bondoso e que nunca irão casar-se. Estou tão triste! Digo-te
que esta noite nem vou dormir! Mas então: ainda não aprendeste nem um
bocadinho de uolof?) Às vezes, quando as visitas de Hawa chegavam e me
encontravam sentada no meu canto escuro, retraíam-se e viravam costas,
porque da mesma forma que Hawa era conhecida em toda a parte como
portadora de leveza, alguém cuja simples presença aliviava os desgostos,
muito depressa se tornou claro que a visitante de Inglaterra só trouxera
consigo peso e tristeza. Todas as perguntas mórbidas que eu tinha de fazer
de esferográfica em punho, sobre o combate à pobreza, ou a falta de
material na escola, ou as dificuldades visíveis da vida da própria Hawa – a
que agora se somavam as dificuldades próprias da estação das chuvas, os
mosquitos, a ameaça da malária sem tratamento –, tudo isto repelia as
nossas visitantes e punha à prova a paciência de Hawa. As conversas sobre
política não lhe interessavam – a menos que fossem de teor conspirativo,
intensamente local, e dissessem diretamente respeito a pessoas suas
conhecidas – e também lhe desagradavam as discussões muito acaloradas
sobre temas de religião ou cultura. Como toda a gente, rezava e ia à
mesquita, mas não me parecia que tivesse um interesse sério pela religião.
Era daquelas raparigas que só querem uma coisa desta vida: divertir-se.
Lembrava-me muito bem do tipo, dos meus tempos de escola, raparigas que
sempre me haviam desconcertado – e continuam a desconcertar – e sentia
que também eu desconcertava Hawa. Todas as noites me deitava no chão ao
pé dela, nos nossos colchões contíguos, grata pela aura azul que emanava
do Samsung enquanto ela via as mensagens e as fotos, às vezes até altas
horas, rindo-se ou suspirando com fotografias que a divertiam, rompendo a
escuridão e aliviando a necessidade de conversar. Mas nunca havia nada
que parecesse enfurecê-la ou deprimi-la seriamente, e talvez porque eu via
tantas coisas que provocavam em mim estas emoções, diariamente, sentia-
me dominada por um desejo perverso de despertar nela os mesmos
sentimentos. Certa noite, estávamos as duas deitadas lado a lado e ela a
pensar outra vez em como Granger era divertido, era fixe e divertido,
perguntei-lhe o que achava da promessa do Presidente de decapitar
pessoalmente qualquer homossexual que encontrasse no país. Ela sorveu o
ar entre os dentes e continuou a correr as mensagens: «Esse homem está
sempre a dizer um disparate qualquer. De qualquer maneira, não temos cá
gente dessa.» Não relacionou a minha pergunta com Granger, mas nessa
noite eu adormeci a arder de vergonha por ter tão levianamente tentado
destruir a possibilidade de Granger voltar ao país, e em nome de quê? Do
princípio? Sabia quanto Granger tinha gostado de cá estar, mais ainda do
que em Paris – e muito mais do que em Londres – e que sentia isso apesar
da ameaça existencial que seguramente a visita representava para ele.
Tínhamos falado disso muitas vezes, o assunto surgia no meio do tédio das
sessões de gravação – sentados os dois na cabine, sorrindo para Aimee
através do vidro, nunca prestando atenção ao que ela estava a cantar – e
eram estas as conversas mais substanciais que alguma vez tivera com
Granger, como se a aldeia tivesse revelado em nós uma relação que não
sabíamos que tínhamos. O que não quer dizer que estivéssemos de acordo
ou estabelecêssemos os mesmos paralelos. Onde eu via privação, injustiça,
pobreza, Granger via simplicidade, ausência de materialismo, beleza
comunitária – o oposto da América em que tinha sido criado. Onde eu via
poligamia, misoginia, crianças sem mãe (a infância da minha mãe na ilha,
só que ampliada, protegida pela tradição), ele lembrava-se de um quinto
andar sem elevador, um minúsculo apartamento tipo estúdio com uma mãe
deprimida, a solidão, as senhas de racionamento, a ausência de sentido, a
ameaça das ruas logo à saída da porta, e falava-me, com lágrimas sinceras
nos olhos, de como podia ter sido mais feliz se tivesse sido criado não por
uma mulher, mas por quinze.
Um dia em que se dava o caso de estarmos só as duas, Hawa e eu, no
pátio, e ela estava a fazer-me tranças no cabelo, tentei mais uma vez falar de
assuntos difíceis, aproveitando a intimidade do momento para lhe fazer
perguntas sobre um rumor que tinha ouvido, a propósito de uma mulher da
aldeia desaparecida, aparentemente levada pela polícia, mãe de um rapaz
que tinha participado recentemente numa tentativa de golpe. Ninguém sabia
onde ela estava, nem o que lhe tinha acontecido. «No ano passado esteve cá
uma rapariga, chamava-se Lindsay», disse Hawa, como se eu não tivesse
dito nada. Foi antes de ter vindo a Aimee e vocês todos, pertencia ao Corpo
da Paz e era muito divertida! Jogávamos o Vinte e Um e o Blackjack. Tu
jogas cartas? Estou-te a dizer, era muito divertida, pá!» Suspirou, riu-se e
esticou-me o cabelo. Desisti. O assunto preferido de Hawa era Chris
Brown, estrela do R&B, mas eu não tinha praticamente nada a dizer sobre
Chris Brown e só tinha uma canção dele no meu telemóvel («Essa canção é
muito, muito, muito antiga», informou-me) ao passo que ela sabia tudo o
que havia a saber sobre o homem, incluindo todos os seus passos de dança.
Certa manhã, antes de ela sair para a escola, vi-a no pátio, a dançar com os
auscultadores nas orelhas. Vestia o seu uniforme de professora estagiária,
tecnicamente modesto mas ainda assim intensamente sensual: blusa branca,
saia comprida de licra preta, hijab amarelo, sandálias amarelas, relógio
amarelo, e colete às riscas, muito justo, que tinha o cuidado de cingir
especialmente bem nas costas de modo a realçar a cintura fina e o traseiro
espetacular. Levantou os olhos de onde estava a admirar os passos rápidos
dos seus próprios pés, viu-me e riu-se: «Ai de ti se dizes aos meus
alunos!»
Todos os dias dessa visita, eu e Carrapichano íamos à escola e
visitávamos as salas de aula de Hawa e Lamin, tomando notas.
Carrapichano concentrava-se em todos os aspetos do funcionamento da
escola, enquanto o meu âmbito era mais limitado: ia primeiro à sala de
Lamin e depois à de Hawa, à procura das «melhores e mais brilhantes»,
seguindo instruções de Aimee. Na aula de Lamin, que era de matemática,
era fácil: só tinha de tomar nota dos nomes das raparigas que davam as
respostas certas. Porque tudo o que fosse além das somas e subtrações
ultrapassava de facto as minhas capacidades, e via os alunos de dez anos de
Lamin multiplicarem mais depressa do que eu e chegarem a resultados de
divisões compridas quando eu ainda mal começara a tentar. Pegava na
esferográfica e sentia as mãos suadas. Era como viajar no tempo. Via-me de
volta à minha aula de matemática, tinha os mesmos sentimentos de
vergonha e conservava, como vim a verificar, o hábito infantil de me
enganar a mim própria, tapando as contas com a mão quando Lamin
passava e conseguindo sempre convencer-me, pelo menos em parte, depois
de a resposta aparecer no quadro, de que tinha ficado muito perto de lá
chegar, mas por este ou aquele pequeno erro, o insuportável calor da sala, a
minha atrapalhação irracional na presença de números...
Era com alívio que deixava Lamin e avançava para a aula de Hawa, sobre
assuntos gerais. Nesta tinha decidido procurar as Traceys, ou seja, as mais
brilhantes, as mais rápidas, as mais voluntariosas, as que se chateavam de
morte, as conflituosas, as raparigas cujos olhos dardejavam como lasers ao
lerem as frases em inglês impostas pelo governo – frases mortas, frases
destituídas de conteúdo e significado – que Hawa estava a transcrever
laboriosamente a giz para o quadro antes de as traduzir de forma igualmente
laboriosa para uolof e as explicar nesta língua. A minha expectativa era
encontrar apenas algumas Traceys em cada aula, mas depressa se tornou
evidente que naquelas salas quentes havia mais raparigas da tribo de Tracey
do que de qualquer outra. Os uniformes de algumas destas raparigas
estavam tão usados que já pouco passavam de trapos, outras tinham feridas
abertas nos pés ou olhos a supurar, e quando, todas as manhãs, depositavam
as propinas em moedas nas mãos dos professores, muitas não tinham
moedas para entregar. Mas nem por isso tinham desistido, estas muitas
Traceys. Não se contentavam em cantar as suas respostas a Hawa, que por
sua vez, escassos anos antes, se terá sentado nestas mesmas carteiras,
cantando estas mesmas respostas, então como agora agarrada ao manual.
Ver todo aquele fogo arder com tão pouca lenha era naturalmente motivo de
desespero. Mas sempre que a conversa se libertava das absurdas algemas
inglesas e regressava às línguas nativas eu voltava a vê-las, as chispas
brilhantes de inteligência – quais chamas que lambem uma grelha que
pretende refreá-las – assumirem a mesma forma que a inteligência natural
assume em salas de aula por esse mundo fora: respostas tortas, humor,
discussão. Cabia a Hawa a desditosa missão de silenciar tudo isto, as
naturais manifestações de curiosidade, e obrigar a turma a regressar ao
manual governamental que tinha nas mãos, escrever no quadro, The pot is
on the fire e The spoon is in the bowl19 com um coto de giz e mandar os
alunos repetirem, e depois escreverem, copiando tudo exatamente,
incluindo os erros frequentes da própria Hawa. Depois de assistir ao
doloroso processo durante alguns dias, verifiquei que ela nem uma única
vez punha os alunos à prova sobre estas frases escritas sem que já tivessem
a resposta diante dos olhos, ou tivessem acabado de a repetir, e numa tarde
particularmente quente senti que tinha de ser eu a resolver a questão. Pedi a
Hawa que se sentasse no meu lugar, num banco partido, fui pôr-me de
frente para os alunos e mandei-os escrever nos seus cadernos: The pot is on
the fire. Elas olharam para o quadro vazio e depois, expectantes, para Hawa,
à espera da tradução. Eu não a deixei falar. Seguiram-se dois longos
minutos em que as crianças olharam perplexas para os seus cadernos de
exercícios parcialmente rasgados, com várias camadas de remendos feitos
com velho papel de embrulho. Depois percorri a sala a recolher os cadernos
para os mostrar a Hawa. Uma parte de mim gostou de fazer aquilo. Três
raparigas em quarenta tinham escrito a frase corretamente em inglês. As
outras tinham escrito uma palavra ou duas, quase todos os rapazes não
tinham escrito uma única letra, apenas uns vagos resquícios de vogais e
consoantes inglesas, sombras de letras, mas não as próprias letras. Hawa
acenou com a cabeça perante cada caderno, sem deixar transparecer a
mínima emoção, e então, quando eu acabei, levantou-se e continuou a
aula.
Quando tocou a sineta para o almoço atravessei o recreio a correr à
procura de Carrapichano, que estava sentado debaixo da mangueira,
tomando notas num bloco, e contei-lhe com uma pressa incontida todas as
ocorrências da manhã, e as implicações que previa que elas tivessem,
imaginando como os meus progressos teriam sido lentos se os meus
professores tivessem ensinado as matérias do programa em mandarim, por
exemplo, apesar de eu não falar mandarim em mais nenhum sítio, os meus
pais não falarem mandarim...
Carrapichano pousou a esferográfica e olhou para mim muito sério.
«Estou a ver. E o que é que achas que conseguiste?»
A princípio pensei que ele não me tinha percebido e repeti tudo desde o
início, mas ele interrompeu-me, batendo um pé no chão de terra.
«Pura e simplesmente humilhaste uma professora, em frente dos seus
alunos.»
A voz dele era calma, mas a cara estava muito vermelha. Tirou os óculos
e olhou-me fixamente, com um ar tão gravemente atraente que conferiu um
certo peso à sua posição, como se as pessoas que têm razão fossem sempre
mais belas.
«Mas – é que – ou seja, não estou a dizer que seja uma questão de
competência, é um “problema estrutural” – é o que tu estás sempre a dizer –
e eu só estou a dizer que talvez pudéssemos ter uma aula de inglês, OK,
claro, mas devíamos ensiná-los na língua deles na terra deles, e depois
podem – podiam, quer dizer, tu sabes, levar testes de inglês para fazerem
em casa, como trabalhos de casa ou coisa assim.»
Fernando soltou uma gargalhada amarga e praguejou em português.
«Trabalhos de casa! Já foste a casa deles? Vês livros nas prateleiras? Ou
mesmo prateleiras? Ou mesas?» Pôs-se de pé e desatou aos berros: «Que é
que pensas que estas crianças fazem quando chegam a casa? Estudam?
Pensas que têm tempo para estudar?»
Não se tinha aproximado de mim, mas eu, instintivamente, recuei até
ficar encostada ao tronco da mangueira.
«Que estás aqui a fazer? Que experiência tens deste tipo de trabalho?
Comportas-te como uma adolescente. Mas já não és nenhuma adolescente,
pois não? Não será altura de cresceres?»
Rompi em lágrimas. Tocou algures uma sineta. Ouvi Fernando suspirar
com o que me pareceu ser compaixão, e por momentos tive uma esperança
descontrolada de que ele estava prestes a pôr o braço em volta de mim.
Com a cabeça apertada entre as mãos ouvi centenas de crianças irromperem
das suas salas de aula e atravessarem o pátio a correr, entre gargalhadas e
berros, a caminho das aulas seguintes, ou saindo pelos portões para irem
ajudar as mães no amanho dos campos, e depois ouvi Carrapichano dar um
pontapé na perna da cadeira, derrubando-a e regressando à sala de aula pelo
meio do pátio.
19 A panela está ao lume e A colher está na tigela. (N. do T.)
12

O fim do meu ritual de passagem chegou em pleno inverno, altura


perfeita para se ser gótico: estamos em sintonia com a desolação que nos
rodeia, como aquele relógio que está certo duas vezes por dia. Ia a caminho
da casa do meu pai, as portas do autocarro não abriam por causa da altura
de neve que já tinham pela frente, tive de as abrir à força com as minhas
luvas pretas de pele e apear-me em cima de um monte dela, protegida do
frio intenso por umas DMs pretas com biqueira de aço e por camadas de
roupa de malha preta e ganga preta, pelo calor do cabelo afro em ninho de
pássaro, com o fedor de raramente ser lavado. Tinha-me tornado um animal
perfeitamente adaptado ao seu ambiente. Toquei à campainha do meu pai:
veio uma jovem abrir. Devia ter vinte anos. Tinha o cabelo penteado em
caracóis muito simples, uma cara amorosa em forma de lágrima e uma pele
mimosa que brilhava como a pele de uma beringela. Parecia assustada,
sorriu nervosamente, virou costas e chamou pelo nome do meu pai, mas
com um sotaque tão cerrado que nem parecia o nome dele. Desapareceu e
no seu lugar apareceu o meu pai, e não voltou a sair do quarto dele
enquanto eu lá estive. Enquanto percorríamos o delapidado corredor
comum, passando pelo papel de parede encaracolado, as caixas de correio
enferrujadas, a alcatifa imunda, ele foi-me explicando, como se fosse um
missionário e estivesse vagamente renitente em revelar a verdadeira
extensão da sua caridade, que tinha encontrado a rapariga na estação de
King’s Cross. «Estava descalça! Não tinha para onde ir, nenhum sítio para
viver. É do Senegal, percebes? Chama-se Mercy. Devias ter telefonado a
avisar que vinhas.»
Jantei, como de costume, vi um filme antigo – The Green Pastures – e
quando chegou a altura de me ir embora, e nem ele nem eu tínhamos dito
mais uma palavra sobre Mercy, reparei que ele olhava por cima do ombro
para a porta do quarto, mas Mercy não voltou a aparecer, e pouco depois
fui-me embora. Não contei à minha mãe nem a ninguém na escola. A única
pessoa que achava que compreenderia era Tracey, e havia meses que não a
via.

Já tinha reparado que havia mais gente com este dom adolescente de
«entrar em espiral descontrolada», de «sair dos carris», mas, se os outros
tinham dentro de si algum mecanismo que libertavam em tempos de tristeza
ou trauma, eu não encontrei nenhum dentro de mim. Pelo contrário,
conscientemente, como um atleta que se decide por um novo regime de
treino, decidi sair dos carris. Mas ninguém me levou a sério, muito menos a
minha mãe, porque me considerava uma adolescente fiável. Quando outras
mães do bairro lhe saíam ao caminho na rua, o que acontecia muitas vezes,
a pedir-lhe conselho sobre os seus filhos e filhas transviados, escutava-as
amavelmente, mas sem nenhum interesse, e havia alturas em que abreviava
a conversa pousando a mão no meu ombro e dizendo qualquer coisa como:
«Pois olhe, nós temos muita sorte. Não temos problemas desses, pelo
menos por enquanto.» Tinha esta narrativa de tal modo cimentada na cabeça
que qualquer tentativa que eu fizesse para a contradizer era como se não
existisse para ela: estava agarrada a uma sombra de mim e seguia essa
sombra. E não tinha razão? De facto, eu não era como os meus novos
amigos, não era particularmente autodestrutiva ou despassarada. Andava
sempre com montes de preservativos (desnecessários), tinha pavor de
agulhas, demasiado medo de sangue em geral para admitir mutilar-me,
parava sempre de beber antes de ficar verdadeiramente incapacitada, tinha
um apetite muito saudável, e quando ia fazer a ronda dos bares desenfiava-
me do meu grupo – ou perdia-me dele de propósito – por volta da meia-
noite e um quarto para ir ter com a minha mãe, que tinha a regra de, todas
as noites de sexta-feira, ir esperar-me exatamente à meia-noite e meia em
frente da porta dos artistas do Camden Palace. Entrava no carro dela a
barafustar espalhafatosamente contra este sistema, ao mesmo tempo que,
secretamente, me sentia grata pela sua existência. Assim foi na noite em
que salvámos Tracey, uma noite de Camden Palace. Normalmente, o meu
grupinho ia lá a uma noite indie, o que eu mais ou menos tolerava, mas
dessa vez tínhamos ido a um concerto da pesada, de guitarras desenfreadas
que distorciam os enormes altifalantes, um barulho infernal, e a certa altura
percebi que não ia aguentar até à meia-noite – apesar de ter batalhado com a
minha mãe para obter exatamente esta concessão. Por volta das onze e meia
disse que ia ao quarto de banho e rompi aos tropeções pela velha sala, em
tempos um teatro de variedades, descobri um canto num dos reservados
vazios do balcão e tratei de me embebedar com a garrafinha de vodca barata
que trazia sempre no bolso da gabardina preta. Ajoelhei-me no veludo
rapado de onde as cadeiras tinham sido arrancadas e olhei lá para baixo,
para o mosh pit20. Senti uma espécie de satisfação triste ao pensar que
naquele momento era muito provavelmente a única pessoa naquele lugar
que sabia que Chaplin tinha atuado ali, e Gracie Fields, para não falar dos
há muito esquecidos números de cães, de famílias, de dançarinas de
sapateado, de acrobatas, de menestréis. Olhava para todos aqueles miúdos
brancos, suburbanos rebeldes, vestidos de preto, que se atiravam uns contra
os outros, e imaginava no lugar deles G. H. Elliott, «O Preto Cor de
Chocolate», vestido de branco da cabeça aos pés, cantando loas à Lua
argêntea. Ouvi correr a cortina atrás de mim: entrou um rapaz no meu
camarote. Era branco, muito magro, talvez da minha idade, nitidamente
pedrado, com marcas profundas de acne e cabelo pintado de preto caído
sobre a testa cheia de crateras. Mas tinha uns belos olhos azuis. E
pertencíamos os dois à mesma tribo de imitação: usávamos o mesmo
uniforme, a ganga preta, algodão preto, malha preta, cabedal preto. Julgo
que nem sequer nos falámos. Ele avançou e eu encarei-o, já de joelhos, e
deitei-lhe a mão à braguilha. Despimo-nos o mínimo possível, deitámo-nos
na alcatifa que mais parecia um cinzeiro e ficámos presos pela genitália
durante um minuto, mais ou menos, enquanto o resto dos nossos corpos
continuava separado, cada qual enfaixado nas suas camadas de preto. Foi a
primeira vez na minha vida que o sexo aconteceu sem a respetiva sombra,
sem a sombra das ideias acerca do sexo ou das fantasias a ele associadas
que só com o passar do tempo podem acumular-se. Naquela tribuna tudo foi
ainda exploratório, experimental, e técnico no sentido de imaginar
exatamente o que estava a acontecer onde. Na altura, isso ainda era
possível.
Parecia mal os góticos beijarem-se, pelo que nos mordemos suavemente
no pescoço como vampiros. Depois ele soergueu-se e disse numa voz muito
mais afetada do que eu esperava: «Mas não usámos nada.» Para ele também
seria a primeira vez? Eu disse-lhe que não fazia mal, numa voz que
provavelmente também o surpreendeu, e pedi-lhe um cigarro, que ele me
deu sob a forma de uma pitada de tabaco, uma Rizla e um quadrado de
cartão. Combinámos descer e beber uma snakebite21 juntos, mas a descer as
escadas perdi-me dele numa avalancha que ia a subir, e de súbito
desesperadamente necessitada de ar e espaço optei por sair e ir para
Camden à hora das bruxas. Toda a gente andava na rua meio embriagada,
saindo dos bares, nas suas gangas coçadas e o resto aos quadrados ou em
tons de preto, uns sentados no chão em círculos, cantando, tocando guitarra,
outros seguindo a indicação de um homem que os mandava para outro
homem que estava mais abaixo e tinha a droga que o primeiro devia ter,
mas não tinha. Sentia-me ao mesmo tempo brutalmente sóbria, sozinha, e
ansiosa por que a minha mãe aparecesse. Integrei-me num círculo de
desconhecidos, com ar de serem da minha tribo, e enrolei o tal cigarro.
Do sítio onde me tinha sentado via a travessa que ia dar ao Jazz Café e
espantou-me verificar como era diferente a multidão que se acumulava à
porta dele, não a sair mas a entrar, e nem todos bêbedos, porque eram gente
que gostava de dançar, que não precisava de se embriagar para convencer o
corpo a mexer-se. Nada do que vestiam era coçado, nem roto, nem
desfigurado com verniz corretor, tudo absolutamente impecável, as
mulheres brilhavam e encandeavam, e não havia ninguém sentado no chão,
pelo contrário, tinham sido feitos todos os esforços no sentido de separar a
clientela do chão: os sapatos dos homens tinham almofadas de duas
polegadas de ar, e os sapatos das mulheres tinham saltos com o dobro desta
altura. Perguntei a mim mesma para que seria a fila. Talvez alguma mulher
negra com uma flor no cabelo fosse cantar para eles. Ainda estive para ir até
lá e ver com os meus próprios olhos, mas nessa altura apercebi-me de um
alvoroço, à entrada da estação de metro de Mornington Crescent, um
problema qualquer entre um homem e uma mulher, gritavam um com o
outro, e o homem empurrava a mulher contra a parede, berrava-lhe e
mantinha-a presa pela garganta. Os rapazes com quem eu estava sentada
não se mexeram nem se mostraram muito preocupados, continuaram a tocar
guitarra ou então a enrolar os seus charros. Foram duas raparigas quem
decidiu agir – uma careca abrutalhada e a outra talvez a namorada dela – e
eu levantei-me ao mesmo tempo, não aos berros como elas, mas seguindo-
lhes rapidamente os passos. Quando nos aproximávamos, porém, a situação
tornou-se confusa, deixou de ser claro se a «vítima» estava a ser agredida
ou ajudada – reparámos que tinha as pernas bambas e que o homem estava
de certo modo a mantê-la de pé – e todas refreámos um pouco a nossa
aproximação. A rapariga careca ficou menos agressiva, mais solícita, e no
mesmo instante percebi que a mulher não era uma mulher, mas sim uma
rapariga, e que a conhecia: era Tracey. Corri para ela. Ela reconheceu-me,
mas não conseguia falar, limitou-se a estender a mão e sorrir com tristeza.
Estava a sangrar do nariz, por ambas as narinas. Senti um cheiro horrível e
olhei para baixo e vi vomitado, por toda ela e numa poça no chão. O
homem largou-a e recuou. Eu avancei, segurei-a e chamei-a pelo nome –
Tracey, Tracey, Tracey – mas ela revirou os olhos para dentro da cabeça e
senti-lhe o peso em cheio nos braços. Tratando-se de Camden, cada bêbedo
e pedrado que passava tinha uma teoria: ecstasy adulterado, desidratação,
excesso de álcool, provavelmente uma speedball22. O que era preciso era
mantê-la direita, ou deitá-la, ou dar-lhe água, ou abrir espaço e deixá-la
respirar, e eu começava a entrar em pânico quando, rasgando aquele
barulho, do outro lado da rua, vinha uma voz muito mais possante, uma voz
de verdadeira autoridade, que chamava por Tracey e por mim. A minha
mãe, parando à porta do Palace conforme combinado, à meia-noite e trinta,
no seu pequeno 2CV. Eu acenei-lhe e ela voltou a arrancar e parou ao pé de
nós. Confrontada com uma adulta de ar tão decidido e capaz, toda a gente
debandou, e a minha mãe nem sequer perdeu tempo a fazer as perguntas
que me pareciam necessárias. Separou-nos, deitou Tracey no banco de trás,
pôs-lhe a cabeça mais alta com dois dos muitos livros sérios que sempre a
acompanhavam, mesmo a meio da noite, e levou-nos diretas para o St.
Mary’s. Eu queria muito contar a Tracey a minha aventura no balcão do
teatro, dizer-lhe como, por uma vez, tinha sido verdadeiramente temerária.
Entrámos na Edgware Road: ela recuperou os sentidos e endireitou-se no
assento. Mas, quando a minha mãe tentou com jeito explicar o que tinha
acontecido e para onde íamos, Tracey acusou-nos de a raptarmos, de
tentarmos controlá-la, nós que desde sempre tentávamos controlá-la, desde
criança, que sempre pensámos que sabíamos o que era melhor para ela, o
que era melhor para toda a gente, tínhamos inclusivamente tentado roubá-la
à própria mãe, ao próprio pai! A sua raiva crescia na proporção da calma
impassível da minha mãe, até que, quando chegámos ao parque de
estacionamento da urgência, ela já ia inclinada para a frente no seu lugar,
cuspindo-nos no pescoço com a fúria. A minha mãe não se deixou demover
nem distrair. Mandou-me pegar na minha amiga pelo lado esquerdo
enquanto ela lhe pegava pelo direito e levámos Tracey, meio arrastada e
meio obrigada, para a sala de espera, onde, para nossa surpresa, se tornou
completamente colaborante, sussurrando «speedball» ao ouvido da
enfermeira, e depois esperando com um punhado de compressas contra as
narinas até ser vista por um médico. A minha mãe entrou com ela. Mais ou
menos um quarto de hora depois saiu – a minha mãe, quero eu dizer – e
disse que Tracey ia ficar a passar a noite, que tinham de lhe fazer uma
lavagem ao estômago, e que tinha dito – Tracey tinha dito – uma série de
coisas sexualmente explícitas, no meio do delírio, a um stressado médico
indiano que fazia o turno da noite. Ainda só tinha quinze anos. «Alguma
coisa de grave aconteceu àquela rapariga!», murmurou a minha mãe, sorveu
o ar entre os dentes e curvou-se sobre a secretária para assinar uns papéis in
loco parentis.
Neste contexto, a minha ligeira embriaguez não era motivo de
preocupação. Vendo a garrafa de vodca no meu casaco, a minha mãe tirou-
ma, sem discussão, e deitou-a num contentor hospitalar. À saída vi-me
refletida no espelho comprido da parede de um quarto de banho para
deficientes que por acaso tinha a porta escancarada naquele momento. Vi o
meu desbotado uniforme preto e a minha cara absurdamente coberta de pó-
de-arroz – é claro que já a tinha visto antes, mas não sob a crua iluminação
hospitalar, e agora já não era a cara de uma rapariga, era uma mulher que
me devolvia o olhar. O efeito foi muito diferente de tudo quanto vira até
então à luz fraca da lâmpada roxa, no meu quarto de paredes pretas.
Transpus o limiar: renunciei à vida gótica.
20 Área de público junto ao palco. (N. do T.)

21 Bebida de sidra e cerveja. (N. do T.)


22 Injeção intravenosa de cocaína misturada com heroína ou uma anfetamina. (N. do T.)
Quinta parte

NOITE E DIA
1

Estavam sentados frente a frente, num ambiente de grande intimidade, se


fosse possível abstrair dos milhões de pessoas que estavam a assistir. Antes
tinham vagueado juntos pela peculiar casa dele, apreciando os seus
tesouros, a sua arte berrante, a sua horrível mobília dourada, falando disto e
daquilo, e a certa altura ele cantou para ela e executou alguns dos seus
passos emblemáticos. Mas nós só queríamos saber uma coisa e finalmente
ela parecia preparar-se para lha perguntar, e até a minha mãe, que andava
atarefada pela casa e dizia que não estava interessada, fez uma pausa e
sentou-se ao meu lado em frente da televisão e ficou à espera de ver o que
acontecia. Peguei no comando e aumentei o som. OK, Michael, disse ela,
passemos então ao assunto que mais se discute a teu respeito, acho eu, que é
o facto de a cor da tua pele ser obviamente diferente da que tinhas quando
eras mais novo, e portanto penso que isso tem causado muita especulação e
controvérsia a propósito daquilo que fizeste ou fazes...
Ele baixou os olhos, iniciando a sua defesa. A minha mãe não acreditava
numa única palavra, e nos minutos que se seguiram não consegui ouvir
nada do que qualquer deles dizia, só a minha mãe, a discutir com a
televisão. Portanto sou um escravo do ritmo, disse ele, e sorriu, apesar de
parecer confuso, ansioso por mudar de assunto, e Oprah deixou-o mudar de
assunto e a conversa continuou. A minha mãe abandonou a sala. Pouco
depois eu fartei-me e desliguei a televisão.

Tinha dezoito anos. Desde então não voltara a viver com a minha mãe, e
já começávamos a não saber bem como havíamos de nos relacionar nas
nossas novas encarnações: duas mulheres adultas que, de momento,
ocupavam o mesmo espaço. Ainda éramos mãe e filha? Amigas? Irmãs?
Companheiras de casa? Tínhamos horários diferentes, não nos víamos
muito, mas preocupava-me a possibilidade de estar a abusar da
hospitalidade dela, como um musical que se prolonga demasiado tempo em
cartaz. Quase todos os dias ia à biblioteca, tentava estudar para os exames,
enquanto ela trabalhava como voluntária, de manhã num centro para jovens
problemáticos e à noite num refúgio para mulheres negras e asiáticas. Não
digo que não fizesse este trabalho por convicção, e não fosse boa no que
fazia, mas a verdade é que ambas estas experiências ficam lindamente no
CV de uma pessoa que por acaso é candidata a vereadora nas eleições
municipais. Nunca a tinha visto tão ocupada. Parecia estar em todos os
pontos do bairro ao mesmo tempo, envolvia-se em tudo, e toda a gente
concordava que o divórcio lhe tinha feito bem, parecia mais nova do que
nunca: cheguei a recear que a dada altura, dentro de poucos anos,
convergíssemos as duas exatamente na mesma idade. Raramente saía à rua
no círculo eleitoral dela sem que viesse alguém ter comigo para agradecer
«tudo quanto a tua mãe está a fazer por nós», ou pedindo-me que lhe
perguntasse se tinha alguma ideia para a criação de um centro de ocupação
de tempos livres para as crianças acabadas de chegar da Somália, ou que
espaço local achava apropriado para uma aula de condução de bicicleta.
Não tinha sido eleita para nada, por enquanto, mas as pessoas que nos
rodeavam já a tinham coroado.
Um aspeto importante da campanha dela era a ideia de transformar a
antiga arrecadação das bicicletas do bairro num «espaço de encontro da
comunidade», o que a fez entrar em conflito com Louie e o seu bando, que
usavam a arrecadação para as suas atividades. A minha mãe contou-me
mais tarde que Louie mandou dois rapazes lá a casa para a intimidar, mas
ela «conhecia as mães deles» e não teve medo, e eles foram-se embora sem
levarem a sua avante. Não me custa a acreditar. Ajudei-a a pintar o barracão
de amarelo-vivo e fui com ela dar uma volta pelas empresas locais, à
procura de cadeiras empilháveis que já não usassem. O preço da entrada foi
fixado em uma libra, com direito a alguns refrescos simples, a Kilburn
Books vendia literatura apropriada numa mesa de cavalete a um canto.
Abriu em abril. Todas as sextas-feiras às seis da tarde apareciam oradores,
convidados pela minha mãe, toda a espécie de pessoas excêntricas do
bairro: poetas declamadores, ativistas políticos, conselheiros em
toxicodependência, um académico sem diploma que publicava livros em
edições de autor sobre conspirações históricas abortadas; um presunçoso
homem de negócios nigeriano que nos fez uma preleção sobre «as
aspirações dos negros»; uma angelical enfermeira guianesa que nos
evangelizou sobre a manteiga de carité. Foram também convidados muitos
oradores irlandeses – em sinal de respeito por essa população original, em
rápido desaparecimento – mas a minha mãe fazia orelhas moucas às lutas
de outras tribos e não hesitava em fazer apresentações pomposas («Onde
quer que se lute pela liberdade, a luta é a mesma!») de uns bandidos com
mau aspeto que espetavam bandeiras tricolores na parede do fundo e no fim
dos seus discursos faziam circular pela assistência baldes de recolha de
donativos para o IRA. Os temas que me pareciam obscuros e distantes da
nossa situação – as doze tribos de Israel, a história de Kunta Kinte, tudo o
que dissesse respeito ao Antigo Egito – eram os mais populares, e muitas
vezes, nessas ocasiões, mandavam-me à igreja pedir cadeiras emprestadas
ao diácono. Mas quando os oradores falavam dos aspetos mais prosaicos da
nossa vida quotidiana – crime no bairro, droga, gravidez adolescente,
insucesso escolar – podiam contar apenas com umas quantas jamaicanas
idosas que apareciam qualquer que fosse o tema, na verdade apareciam pelo
chá e bolachas. Mas eu é que não podia faltar a uma sessão, tinha de as
ouvir a todas, mesmo à do esquizofrénico que entrou na sala com uns
grossos maços de notas – presas por elásticos e organizadas segundo um
sistema qualquer que só ele conhecia – e nos falou com grande paixão sobre
a falácia racista da evolução que ousava associar o Sagrado Homem
Africano ao básico e rasteiro macaco, quando a verdade era que o Sagrado
Homem Africano descendia da luz pura, isto é, dos anjos, cuja existência
era provada não sei bem como – já me esqueci – pelas pirâmides. De vez
em quando falava a minha mãe: nesses dias a sala enchia. O seu tema era o
orgulho, sob todas as suas formas. Queria que nos lembrássemos de que
éramos belos, inteligentes, competentes, reis e rainhas, senhores de nós
mesmos, e, no entanto, quanto mais ela enchia a sala com esta luz
persistente, mais clara era a noção que eu tinha da forma e proporções da
enorme sombra que, afinal, deve pairar sobre nós.
Um dia sugeriu que eu falasse. Talvez uma jovem chegasse mais
facilmente aos jovens. Penso que andava sinceramente confusa por ver que
os seus discursos, apesar de populares, ainda não tinham evitado que as
raparigas engravidassem ou que os rapazes fumassem erva ou desistissem
da escola ou fossem roubar. Deu-me uma série de tópicos possíveis, sobre
nenhum dos quais eu sabia nada, e quando lhe disse isto mesmo ficou
furiosa comigo: «O teu problema é que nunca soubeste o que é lutar!»
Entrámos numa longa discussão. Ela atacou as matérias «fáceis» que eu
escolhera estudar, as faculdades «inferiores» a que me candidatara, a «falta
de ambição» que, na opinião dela, herdara do outro lado da família. Virei-
lhe as costas. Durante um bocado calcorreei a rua principal para cima e para
baixo, fumando cigarros, antes de reconhecer o inevitável e ir para casa do
meu pai. Mercy já se tinha ido embora havia muito tempo, desde então não
houvera outra, estava a viver outra vez sozinho e parecia-me em baixo,
triste como nunca o havia conhecido. O horário de trabalho – que ainda
começava todas as manhãs antes do nascer do Sol – era um novo tipo de
problema para ele: não sabia o que havia de fazer das tardes. Homem de
família por instinto, sem família sentia-se completamente perdido, e eu
perguntava-me se os outros filhos, os brancos, alguma vez vinham visitá-lo.
Não lhe perguntava – acanhava-me. O meu medo já não era a autoridade
dos meus pais sobre mim, mas sim que eles deitassem cá para fora os seus
próprios receios íntimos, a sua melancolia e os seus remorsos. No meu pai
já via isso acontecer muito. Tinha-se transformado numa daquelas pessoas
sobre as quais em tempos gostara de me falar, com quem se cruzava e de
quem sempre tivera pena, velhos de pantufas que viam os programas da
tarde até começarem os da noite, não se davam praticamente com ninguém,
não faziam nada. Um dia estava em casa dele quando apareceu Lambert,
mas depois de uma breve manifestação de alegria mútua mergulharam no
humor sombrio e paranoico de homens de meia-idade abandonados pelas
respetivas mulheres, agravado pelo facto de Lambert não ter trazido consigo
nenhum alívio sob a forma de erva. A televisão continuava ligada e eles
passaram a tarde sentados diante dela em silêncio, como dois náufragos
agarrados à mesma tábua, enquanto eu dava uma arrumadela à casa.
Por vezes lembrava-me que talvez fazer queixas da minha mãe ao meu
pai fosse uma forma de distração para os dois, uma coisa que podíamos
partilhar, mas nunca corria bem, porque subestimava seriamente o muito
que ele continuava a amá-la e a admirá-la. Quando lhe contei do espaço
comunitário, e de ela me obrigar a falar lá, disse: «Ah, sim, deve ser um
projeto muito interessante. Uma coisa para toda a comunidade.» Pareceu-
me melancólico. Como ficaria feliz, mesmo agora, a arrastar cadeiras pela
rua, a afinar o microfone, a mandar calar a assistência preparando a entrada
da minha mãe em cena!
2

Um monte de cartazes, não fotocopiados mas desenhados à mão, um por


um, anunciando uma palestra sobre «A história da dança», foram
espalhados pelos prédios do bairro, onde, como tudo o que era informação
ao público, rapidamente foram desvirtuados de formas criativas e obscenas,
com um primeiro grafito a provocar uma reação, e depois uma reação à
reação. Estava eu a afixar um deles num dos acessos ao prédio de Tracey
quando senti duas mãos nos ombros – uma pressão curta e firme –, virei-me
e era ela. Olhou para o cartaz, mas não disse nada sobre ele. Tirou-me os
óculos novos, experimentou-os e riu-se da imagem refletida num pedaço
distorcido de chapa espelhada que havia ao lado do painel de informações.
Riu-se outra vez quando me ofereceu um cigarro e eu o deixei cair, e ainda
outra vez dos sapatos de corda que eu calçava, roubados do guarda-vestidos
da minha mãe. Senti-me como uma espécie de diário que ela tivesse
descoberto numa gaveta: uma recordação de uma época mais inocente e
inconsciente da sua vida. Atravessámos o pátio e fomos sentar-nos na faixa
de relva das traseiras do prédio dela, de frente para a igreja de S. Cristóvão.
Ela apontou com a cabeça para a porta e disse: «Mas aquelas não eram
danças a sério. Agora estou num nível completamente diferente.» Não
duvidei. Perguntei-lhe como ia o estudo para os exames e fiquei a saber que
nas escolas como a que ela frequentava não havia exames, tudo isso tinha
acabado aos quinze anos. Enquanto eu estava acorrentada, ela estava livre!
Agora tudo dependia de uma «récita de finalistas» a que «assistem quase
todos os grandes empresários», e para a qual também fui renitentemente
convidada («Posso tentar pedir que te deixem entrar»), e era nessa altura
que os melhores dançarinos eram escolhidos, arranjavam empresário e
começavam a ir a audições para a época de outono dos musicais do West
End ou para as companhias itinerantes regionais. Gabou-se disso. Achei-a
mais vaidosa em geral, no tocante ao pai em particular. Estava a construir
uma grande casa de família para ela, disse, em Kingston, e em breve iria
para lá viver com ele, e de lá era um saltinho até Nova Iorque, onde teria a
oportunidade de atuar na Broadway, onde apreciavam realmente os
dançarinos, não era como cá. Sim, trabalharia em Nova Iorque, mas viveria
na Jamaica, ao sol com Louie, e finalmente ver-se-ia livre daquilo que me
lembrava de a ter ouvido designar por «este desgraçado país de merda» –
como se fosse por mero acaso que sempre cá tinha vivido.
Mas passados uns dias vi Louie, num contexto completamente diferente,
em Kentish Town. Ia de autocarro, no primeiro andar, vi-o na rua, com um
braço em volta de uma mulher muito grávida, daquelas a que
costumávamos chamar «uma rapariga popular», com uns grandes brincos
dourados em forma de pirâmide, montes de colares e o cabelo imobilizado
com fixador num penteado de caracóis e espigões. Riam-se e trocavam
piadas, e a cada passo beijavam-se. Ela empurrava um carrinho com uma
criança dos seus dois anos, e levava pela mão outra, de sete ou oito. O meu
primeiro pensamento não foi «Quem são estas crianças?» Foi: «Que está o
Louie a fazer em Kentish Town? Porque é que anda a passear em Kentish
Town como se cá vivesse?» O meu pensamento não conseguia ir além de
uma milha de raio. Só quando deixei de os ver é que pensei em todas as
ocasiões em que Tracey me tinha mentido ou feito bluff a propósito da
ausência dele – deixou de chorar por causa disso quando era ainda muito
pequena – sem nunca imaginar que ele estivesse sempre tão perto. Não
estava no concerto da escola nem no aniversário nem na récita nem no dia
do desporto, ou simplesmente em casa para jantar, porque estava,
supostamente, a tratar de uma mãe eternamente doente na zona sul de
Kilburn, ou a dançar com Michael Jackson ou a milhares de milhas de
distância, na Jamaica, a construir a casa dos sonhos da filha. Mas a
conversa unilateral na faixa relvada tinha-me confirmado que não podíamos
continuar a falar de coisas íntimas. Em vez disso, quando voltei para casa
contei à minha mãe o que tinha visto. Ela estava em plena tentativa de fazer
o jantar, sempre um momento stressante do dia, e zangou-se comigo, com
uma rapidez e uma intensidade completamente desproporcionadas. Não
percebi porquê, sabia que ela detestava Louie, porquê então defendê-lo?
Chocalhando panelas a esmo, falando apaixonadamente da Jamaica, e não
da Jamaica dos nossos dias, antes da Jamaica dos anos de 1800, 1700 e
anteriores – Kentish Town da atualidade era posta de parte como uma
irrelevância –, falando-me de reprodutores e bodes, de filhos arrancados aos
braços das mães, de repetição e regresso, ao longo dos séculos, e dos muitos
homens ausentes da sua ascendência, entre os quais o pai, todos eles
fantasmas, nunca vistos ao perto ou com clareza. Afastei-me às arrecuas
enquanto ela arengava, até ficar encostada ao calor da porta do forno.
Fiquei sem saber o que fazer com tanta tristeza. Cento e cinquenta anos!
Fazes ideia do que são cento e cinquenta anos na família de um homem?
Estalou os dedos e eu pensei em Miss Isabel, a tentar que as crianças
entrassem nos ritmos de uma dança. Esse tempo todo, disse.

Uma semana depois, na véspera do dia em que eu ia falar, deitaram fogo à


arrecadação das bicicletas, reduzindo-a a uma caixa preta de carvão. Demos
a volta com os bombeiros. Cheirava horrivelmente a todas as cadeiras de
plástico que estavam empilhadas contra as paredes, agora derretidas e
amalgamadas. Fiquei aliviada, foi como um ato divino, se bem que todos os
indícios apontassem para mais perto de casa, e os rapazes de Louie não
perderam tempo a tomar posse do seu espaço. No dia seguinte ao incêndio,
quando eu e a minha mãe saímos juntas, umas quantas pessoas bem-
intencionadas atravessaram a rua para lhe manifestarem solidariedade ou
tentarem pô-la a falar do assunto, mas ela espremia os lábios e olhava para
elas como se tivessem dito alguma coisa desagradável ou pessoal. Penso
que a força bruta a exasperava, porque não tinha lugar no seu amado reino
da linguagem, e não tinha nada a dizer em resposta a ela. Apesar das suas
tiradas revolucionárias, não creio que a minha mãe tivesse sido muito útil
numa revolução a sério, quando acabassem as conversas e as reuniões para
começar a violência concreta. Em certo sentido não acreditava na violência,
como se esta fosse, na sua perspetiva, demasiado estúpida para ser real. Eu
sabia – apenas por Lambert – que na infância dela houvera muita violência,
emocional e física, mas ela raramente se lhe referia a não ser para lhe
chamar «aquele disparate», ou às vezes «aquelas pessoas ridículas», porque
quando ascendeu ao mundo do espírito tudo aquilo que não era a vida do
espírito deixou de existir para ela. Louie como fenómeno sociológico ou
sintoma político ou exemplo histórico ou simplesmente uma pessoa criada
na mesma pobreza rural opressiva que ela tinha conhecido – uma pessoa
que reconhecia, e eu penso que no seu íntimo compreendia –, com esse
Louie, sim, a minha mãe conseguia lidar. Mas da expressão de profundo
desalento no seu rosto quando os bombeiros a levaram a um canto da
arrecadação para lhe mostrar onde tinha sido ateado o fogo, por alguém que
conhecia pessoalmente, com quem tinha tentado argumentar, mas que,
mesmo assim, tinha optado por destruir violentamente aquilo que ela havia
criado com tanto amor – dessa expressão nunca mais me esqueci. Louie
nem sequer teve de fazer aquilo pessoalmente, e também não precisou de
esconder que o tinha mandado fazer. Pelo contrário, fez questão de que se
soubesse: era uma demonstração de poder. A princípio pensei que o
incêndio tinha destruído algo de essencial dentro da minha mãe. Mas
poucas semanas depois tinha-se recomposto e convencido o vigário a deixá-
la transferir os seus encontros comunitários para a sacristia da igreja. Até
certo ponto, o incidente acabou por se revelar útil para a campanha: foi a
confirmação literal, visual, do «niilismo urbano» de que tantas vezes ela
tinha falado e à volta do qual construiu parte da sua campanha. Pouco
depois foi eleita vereadora municipal. E começou assim o segundo ato da
sua vida, o ato político – que, estou certa, considerava o verdadeiro ato da
sua vida.
3

A construção terminou ao mesmo tempo que a estação das chuvas, em


outubro. Para comemorar, foi planeado um evento no novo recreio, meio
campo de futebol de terreno desimpedido. Nós não participámos no
planeamento – o comité de ação da aldeia tratou disso – e Aimee só chegou
na manhã do próprio dia. Mas eu estava no terreno havia duas semanas, e
cada vez mais preocupada com a logística, o sistema de som, o tamanho da
multidão, e a convicção, partilhada por toda a gente – crianças e adultos, o
Al Kalo, Lamin, Hawa, todas as amigas dela – de que o Presidente em
pessoa ia comparecer. A origem deste boato não era fácil de localizar. Toda
a gente o tinha ouvido da boca de outra pessoa, não era possível obter mais
informações, só piscadelas de olho e sorrisos, já que se supunha que, de
uma forma ou de outra, éramos nós, «os americanos», que estávamos por
trás da visita. «Perguntas-me a mim se ele vem?», disse Hawa, a rir-se,
«mas então tu não sabes?» O boato e a escala do evento depressa passaram
a alimentar-se mutuamente: primeiro iam participar no desfile três jardins
infantis da região, depois cinco, depois quinze. Primeiro era o Presidente
que ia estar presente, depois também os do Senegal, Togo e Benim, e por
isso à roda de percussão das mães foram acrescentados meia dúzia de griôs
que iriam tocar os seus corás de cabo comprido, e uma banda marcial da
polícia. Começámos a ouvir dizer que viriam autocarros cheios de
comunidades de várias outras aldeias, e que um famoso DJ senegalês
atuaria depois dos atos formais. Correndo por baixo destes ruidosos planos
havia outra coisa, um rumor surdo de suspeita e ressentimento, de que a
princípio não me apercebi, mas que Fernando detetou imediatamente. É que
ninguém sabia exatamente quanto dinheiro o pessoal de Aimee tinha
transferido para o banco de Serrekunda, e portanto ninguém podia ter a
certeza de quanto Lamin tinha recebido pessoalmente, como ninguém sabia
ao certo que parte desse dinheiro ele tinha metido no envelope que mais
tarde chegou a casa do Al Kalo, nem quanto tinha deixado naquela casa
com Fatu, a nossa ministra das finanças, antes de o sobrante ir finalmente
parar aos cofres do comité da aldeia. Ninguém acusava ninguém, pelo
menos diretamente. Mas todas as conversas, independentemente da forma
como começavam, pareciam acabar à volta da questão, normalmente
enroscadas em construções de tipo proverbial como «A viagem de
Serrekunda até aqui é longa» ou «Este par de mãos, depois este, depois
outro. Tantas mãos! Quem pode manter limpo aquilo em que tantas mãos
tocaram?» Fern – como eu agora também o tratava – andava revoltado com
a inépcia generalizada: nunca tinha trabalhado com idiotas tão idiotas como
estes de Nova Iorque, só arranjavam problemas e não tinham a mínima
noção dos procedimentos nem das realidades locais. Também ele estava
transformado numa máquina de produção de provérbios: «Numa cheia a
água chega a todo o lado, não temos de nos preocupar com ela. Numa seca,
se quisermos água, temos de a guiar cuidadosamente por cada polegada do
seu percurso.» Mas a sua preocupação obsessiva, que designava por
«orientação para os pormenores», já não me incomodava. Todos os dias
cometia tantos erros que já não duvidava de que a razão estava do lado dele.
Não era possível continuar a ignorar a verdadeira diferença entre nós, que ia
muito para além da educação superior dele, do seu doutoramento, ou
mesmo da sua experiência profissional. Tinha que ver com uma qualidade
de atenção. Ele escutava e registava. Era mais aberto. Sempre que o via no
meu passeio diário pela aldeia – que fazia simplesmente pelo exercício e
para escapar à claustrofobia da morança de Hawa – Fern estava
embrenhado em conversas intensas com homens e mulheres de todas as
idades e condições, acocorando-se ao pé deles enquanto comiam,
acompanhando em passada larga carroças puxadas por burros, sentado a
beber ataya23 com os velhos junto às bancas do mercado, e sempre ouvindo
com atenção e pedindo mais pormenores, não presumindo nada enquanto
não lhe contassem. Eu comparava tudo isto com a minha maneira de ser.
Enfiada sempre que possível no meu quarto húmido, sem falar com
ninguém se pudesse evitá-lo, a ler livros sobre a região à luz de uma
lanterna de cabeça e invadida por uma fúria homicida, própria de uma
adolescente, contra o FMI e o Banco Mundial, os holandeses que tinham
comprado os escravos, os chefes locais que os tinham vendido, e muitas
outras abstrações mentais e remotas contra as quais nada podia fazer.
A minha parte preferida de cada dia passou a ser o princípio da noite,
quando ia ter com Fern à casa cor-de-rosa e jantávamos uma refeição
simples, preparada para nós pelas mesmas senhoras que cozinhavam para a
escola. Uma única tigela de lata, cheia de arroz, umas vezes só com um
tomate verde ou uma beringela lá dentro, outras com uma variedade de
legumes e um peixe com muito pouca carne mas delicioso em cima, que
Fern delicadamente me deixava atacar primeiro. «Agora somos parentes»,
disse-me, na primeira vez que comemos assim, duas mãos na mesma tigela.
«Devem ter concluído que somos da mesma família.» Desde a nossa visita
anterior o gerador estava avariado, mas como éramos os únicos a usá-lo
Fern considerava isso uma «prioridade baixa» – pela mesma razão que eu o
considerava uma prioridade alta – e recusava-se a perder um dia inteiro para
ir à cidade procurar um substituto. Por isso agora, quando o sol se punha,
atávamos as pequenas lanternas à cabeça, tendo o cuidado de as usar
obliquamente para não nos encandearmos mutuamente, e conversávamos
até altas horas. Fern era boa companhia. Tinha um espírito complexo,
subtil, compassivo. Tal como Hawa, não entrava em depressão, mas
conseguia isto não afastando o olhar, mas antes olhando de perto, atento a
cada passo lógico de cada problema específico, de modo que o problema
em si ocupava todo o espaço mental disponível. Algumas noites antes da
festa, enquanto pensávamos na chegada iminente de Granger e Judy e dos
outros – e no fim de uma certa versão pacífica da nossa vida aqui – falou-
me de um problema novo que havia na escola: seis crianças que nas últimas
duas semanas tinham deixado de ir às aulas. Não havia nenhuma relação
entre elas. Mas a ausência de todas tinha começado, segundo lhe dissera o
diretor, no dia em que Fern e eu tínhamos regressado à aldeia.
«Desde que nós chegámos?»
«Sim! E eu pensei: mas isso é estranho, porque será? Primeiro faço
perguntas por aí. Toda a gente diz: “Oh, não sabemos. Não deve ser nada.
Às vezes as crianças têm de ficar em casa a trabalhar.” Volto ao diretor e
peço-lhe a lista dos nomes. Depois percorro a aldeia e vou a casa delas, uma
a uma. Não é fácil. Não há endereços, é preciso seguir o faro. Mas descubro
as casas todas. “Oh, está doente”, ou “Oh, foi à cidade visitar o primo.”
Fico com a sensação de que ninguém me diz a verdade. Até que hoje estou
a olhar para a lista e penso: lembro-me destes nomes. Vou procurar nos
meus papéis e encontro esta lista de microcrédito – lembras-te? – esta coisa
que o Granger fez, por iniciativa própria. É um tipo muito bom, lê um livro
sobre microcrédito... Mas adiante, olho para a lista e verifico que são
exatamente as mesmas seis famílias. Todas as mães são as mulheres a quem
o Granger deu os tais financiamentos de trinta dólares, para as suas bancas
no mercado. Exatamente as mesmas. Aí penso: qual é a relação entre os
trinta dólares de financiamento e as crianças desaparecidas? E a relação é
óbvia: as mães, que não podiam pagar a dívida no prazo que o Granger
tinha acordado com elas, pensam que o dinheiro vai ser tirado, moeda a
moeda, das propinas dos filhos, e as crianças vão ficar envergonhadas!
Veem-nos de volta à aldeia, “os americanos”, e pensam: o melhor é as
crianças ficarem em casa! É inteligente, faz sentido.»
«Pobre Granger. Vai ficar desiludido. A intenção era boa.»
«Calma, calma... O problema resolve-se facilmente. Só que para mim é
um exemplo interessante de acompanhamento. Ou de falta de
acompanhamento. O financiamento é uma boa ideia, acho eu, ou não é uma
má ideia. Mas podemos ter de alterar o prazo do reembolso.»
Por uma das janelas sem vidros vi um táxi rural passar ruidosamente na
única estrada boa, banhada pelo luar. Trazia miúdos pendurados, apesar da
hora tardia, e três rapazes deitados de barriga no tejadilho, segurando um
colchão com o peso do corpo. Senti aquela onda de absurdo, de
incongruência, que normalmente me invadia de madrugada, deitada sem
conseguir dormir ao lado de uma Hawa que dormia profundamente,
enquanto os galos entravam em parafuso no muro em frente.
«Não sei... Trinta dólares aqui, trinta dólares ali...»
«Sim?», disse Fern animadamente – muitas vezes não escolhia o tom
certo – e quando levantei os olhos vi-lhe na cara tanto otimismo e interesse
neste problema novo e pequeno que fiquei irritada. E quis arrumar o
assunto.
«Não, quer dizer – repara, vais à cidade, às aldeias aqui em volta, vês
esses jovens do Corpo da Paz, os missionários, as ONG, todos esses
brancos cheios de boas intenções, preocupados com meia dúzia de árvores –
como se ninguém visse a floresta!»
«Agora és tu que estás a falar por provérbios.»
Levantei-me e pus-me a remexer ansiosamente nas provisões empilhadas
a um canto, à procura do fogareiro a gás Calor e da chaleira.
«Vocês não aceitariam essas... soluções microscópicas nas vossas casas,
nos vossos países – porque é que nós havíamos de as aceitar aqui?»
«“Nós”?» estranhou Fern, e depois sorriu. «Espera, espera.» Aproximou-
se do sítio onde eu estava às voltas com a botija de gás e curvou-se para me
ajudar a ligá-la ao disco que eu, com a irritação, estava a ligar mal. As
nossas caras ficaram muito próximas. «“Esses brancos cheios de boas
intenções.” Pensas demasiado na raça – nunca te disseram? Mas espera aí:
para ti eu sou branco?» Fiquei tão espantada com a pergunta que desatei a
rir. Fern afastou-se: «Bem, acho interessante. No Brasil não nos vemos
como brancos, percebes? Pelo menos a minha família não se vê assim. Mas
estás a rir-te – isso quer dizer que sim, que pensas que eu sou branco?»
«Oh, Fern...» Quem tínhamos, aqui tão longe, a não ser um ao outro?
Desviei a lanterna do sítio onde tinha iluminado a suave preocupação no
rosto dele, que afinal não era muito mais claro do que o meu. «Não creio
que aquilo que eu penso seja importante, ou será?»
«É, é», disse ele, voltando à sua cadeira, e apesar da lâmpada sem luz que
tínhamos por cima da cabeça pareceu-me vê-lo corar. Concentrei-me em
procurar um pequeno e exótico par de copos de vidro marroquinos com
uma pinta verde. Ele disse-me um dia que os levava sempre consigo nas
suas viagens, e esta confissão foi uma das poucas concessões ao prazer
pessoal, ao conforto, que alguma vez ouvi da boca de Fern.
«Mas não fico chateado, não, acho tudo isto muito interessante», disse,
recostando-se na cadeira e esticando as pernas como um professor
universitário no seu gabinete. «Que estamos a fazer aqui, que resultado
obtemos, que legado vamos deixar, etc. Tudo isto tem de ser pensado,
evidentemente. Passo a passo. Esta casa é um bom exemplo.» Estendeu o
braço esquerdo e deu uma palmada num feixe de fios à vista na parede.
«Talvez tenham pagado ao dono, ou talvez ele não faça ideia de que
estamos cá dentro. Quem sabe? Mas agora estamos nós cá dentro e toda a
aldeia vê, e por isso toda a gente sabe que, no fundo, a casa não pertence a
ninguém, ou pertence a quem o Estado, num impulso, resolver dá-la.
Portanto, que irá acontecer quando nos formos embora e a escola nova
estiver em pleno funcionamento e passarmos a vir cá menos vezes – ou
nunca mais? Talvez venham para cá viver várias famílias, talvez se
transforme num espaço comunitário. Talvez. O meu palpite é que vai ser
desmantelada, tijolo a tijolo.» Tirou os óculos e massajou-os com a bainha
da T-shirt. «Sim, primeiro alguém leva os fios, depois o revestimento,
depois as telhas, mas no fim não haverá nenhuma pedra que não seja
reutilizada. É o meu palpite... posso estar enganado, vamos ter de esperar
para ver. Não sou mais engenhoso do que esta gente. Não há ninguém mais
engenhoso do que os pobres, onde quer que os encontremos. Quem é pobre
tem de pensar bem em todos os passos. A riqueza é ao contrário. Com a
riqueza, as pessoas habituam-se a ser imprudentes.»
«Não vejo nenhum engenho numa pobreza como esta. Não vejo nenhum
engenho em ter dez filhos quando nem um se pode sustentar.»
Fern voltou a pôr os óculos e sorriu-me com tristeza.
«Os filhos podem ser uma espécie de riqueza», disse.
Ficámos algum tempo em silêncio. Eu pensei – embora de facto não
quisesse – num reluzente carro telecomandado que tinha mandado vir de
Nova Iorque para um rapazinho do aglomerado de quem gostava
particularmente, mas o carro viera com o problema imprevisto das pilhas –
imprevisto por mim – para as quais às vezes havia dinheiro, a maior parte
das vezes não havia, e por isso o destino do carro foi uma prateleira em que
tinha reparado na sala de Hawa, cheia de objetos decorativos mas
basicamente inúteis, oferecidos por visitantes inconscientes, fazendo
companhia a vários rádios sem préstimo, uma bíblia de uma biblioteca do
Wisconsin e a fotografia do Presidente numa moldura partida.
«Vejo a minha função desta maneira», disse Fern com firmeza, enquanto
a chaleira começava a apitar. «Não faço parte do mundo dela, isso é
evidente. Mas estou aqui para, se ela se fartar…»
«Quando ela se fartar…»
«A minha função é garantir que alguma coisa de útil cá fique, no terreno,
aconteça o que acontecer, vá-se ela embora quando for.»
«Não sei como consegues.»
«Consigo o quê?»
«Tratar das gotas de água quando vês o oceano.»
«Mais um provérbio! Dizias que os detestavas, mas estou a ver que
apanhaste o hábito local!»
«Tomamos chá ou não?»
«De facto é mais fácil», disse ele, enchendo o meu copo com o líquido
escuro. «Respeito quem consegue pensar no oceano. A minha cabeça já não
funciona assim. Quando era jovem como tu, talvez, agora não.»
Eu já não sabia se estávamos a falar do mundo inteiro, do continente em
geral, da aldeia em particular ou simplesmente de Aimee, em quem, por
muito boas intenções que tivéssemos, por muitos provérbios, nenhum de
nós parecia capaz de pensar com muita clareza.

Acordada quase todos os dias às cinco da manhã pelos galos e pelo


chamamento à oração, habituei-me a voltar a adormecer até às dez horas ou
mais, chegando à escola a tempo da segunda aula, ou da terceira. Mas, na
manhã em que Aimee chegava, senti em mim uma determinação nova de
aproveitar o tempo que me restava. Surpreendi-me a mim própria – e a
Hawa, Lamin e Fern – aparecendo às oito horas, à porta da mesquita, onde
sabia que todas as manhãs eles se reuniam sem mim e iam juntos a pé para
a escola. A beleza da manhã foi outra surpresa: trouxe-me à memória
experiências anteriores na América. Nova Iorque foi a minha iniciação nas
possibilidades da luz, entrando por frestas nas cortinas, transformando
pessoas e passeios e edifícios em ícones dourados, ou em sombras negras,
dependendo da sua posição em relação à luz. Mas a luz em frente da
mesquita – a luz que me envolveu enquanto era saudada como uma heroína
local, pela simples razão de me levantar da cama três horas depois da
maioria das mulheres e crianças com quem vivia –, essa luz era
completamente diferente. Zumbia e abraçava-nos no seu calor, era espessa,
estuante de pólen e insetos e pássaros, e, como não havia nada com mais de
um piso de altura a barrar-lhe o caminho, distribuía todas as suas dádivas de
uma vez só, abençoando tudo por igual, uma explosão de iluminação
simultânea.
«Como se chamam aqueles pássaros?», perguntei a Lamin. «Os brancos
pequeninos com o bico vermelho-sangue? São lindos.»
Lamin empinou a cabeça e franziu a testa.
«Aqueles ali? São só pássaros, não são nada de especial. Acha-los
bonitos? No Senegal temos pássaros muito mais bonitos do que estes.»
Hawa riu-se: «Ó Lamin, começas a parecer um nigeriano! “Gostas
daquele rio? Em Lagos temos um muito mais bonito.”»
A cara de Lamin franziu-se num irresistível sorriso envergonhado – «Só
estou a dizer a verdade quando digo que temos um pássaro parecido, mas
maior. É mais imponente» – e Hawa pôs as mãos à cintura estreita e lançou
um olhar sedutor a Lamin: vi bem quanto isso o encheu de prazer. Já devia
ter percebido. Era claro que Lamin estava apaixonado por ela. Quem não
estaria? Agradou-me a ideia, e senti-me vingada. Fiquei ansiosa por dizer a
Aimee que ela andava a bater à porta errada.
«Bem, agora pareces um americano», exclamou Hawa. Lançou o olhar
pela sua aldeia. «Acho que cada lugar tem a sua quota-parte de beleza,
graças a Deus. E este lugar é tão belo como qualquer outro.» Pouco depois,
porém, uma nova emoção perpassou-lhe pela cara bonita, e quando olhei
para onde me parecia que ela estava a olhar vi um rapaz junto do novo
projeto de captação de água da ONU, lavando os braços até ao cotovelo, e
lançando-nos um olhar igualmente pensativo. Era evidente que aqueles dois
representavam uma espécie de provocação mútua. Quando nos
aproximámos percebi que já tinha visto outros como ele por aqui e por ali,
no ferry, caminhando pelas estradas, muitas vezes na cidade, mas raramente
na aldeia. Tinha uma barba densa e um turbante molemente posto à volta da
cabeça, transportava um feixe de ráfia às costas e as calças tinham um corte
estranho, um palmo acima do tornozelo. Hawa correu à nossa frente a
cumprimentá-lo e eu perguntei a Lamin quem era.
«É o primo dela, o Musa», disse Lamin, retomando o seu habitual tom
sussurrado, desta vez associado a uma censura ácida. «É azar encontrarmo-
lo aqui. Não lhe ligues. Era um vadio e agora é mashala24, um problema
para a família, e não deves ligar-lhe.» Mas, quando alcançámos Hawa e o
primo, Lamin cumprimentou-o com respeito e mesmo com um certo
acanhamento, e reparei que a própria Hawa se sentia inibida na presença
dele – como se fosse um ancião e não pouco mais do que um rapaz – e,
lembrando-se de que o lenço lhe tinha escorregado para o pescoço, puxou-o
para cima até cobrir o cabelo por completo. Hawa apresentou-me Musa
delicadamente em inglês. Trocámos um aceno de cabeça. Ele dava a
impressão de estar a tentar estabilizar uma certa expressão no rosto, de
serenidade benigna, como um rei de um país mais esclarecido em visita.
«Como estás, Hawa?», murmurou, e ela, que em resposta àquela pergunta
tinha sempre muito a dizer, excedeu-se numa descrição atropelada e
nervosa: estava bem, as avós estavam bem, vários sobrinhos e sobrinhas
estavam bem, os americanos estavam cá, e estavam bem, porque a escola ia
abrir amanhã à tarde, e ia haver uma grande celebração, o DJ Khali ia atuar
– Musa lembrava-se daquele dia na praia a dançar ao som de Khali? Oh, pá,
aquilo é que foi divertido! – e vinha gente do lado nascente do rio, do
Senegal, de toda a parte, porque aquilo que estava a acontecer era uma coisa
maravilhosa, uma escola nova para as raparigas, porque a educação é uma
coisa muito importante, especialmente para as raparigas. Esta parte era para
mim, e eu sorri em concordância. Musa anuiu com a cabeça, pareceu-me
um pouco nervoso com tudo aquilo, mas, agora que finalmente Hawa se
tinha calado, virou-se ligeiramente, mais para mim do que para a prima, e
disse em inglês: «Infelizmente não vou estar presente. Tocar e dançar é
Satã. Como tantas outras coisas por estes lados, é aadoo, tradição, não é
religião. Neste país passamos a vida a dançar. Tudo serve de pretexto para
dançar. De qualquer maneira, parto hoje em khuruj para o Senegal.» Baixou
os olhos para as sandálias simples de cabedal que tinha calçadas, como se
quisesse verificar se estavam prontas para a caminhada que as esperava.
«Vou lá por Da’wah, para convidar e chamar.»
Perante isto Lamin riu-se, com grande sarcasmo, e o primo de Hawa
respondeu-lhe rispidamente em uolof – ou talvez fosse em mandinga – e
Lamin retorquiu a Musa, e este àquele, enquanto eu, ali parada, fazia o
sorriso idiota de quem não compreende uma palavra.
«Sentimos muito a tua falta, Musa!», exclamou Hawa de repente em
inglês, com verdadeira sinceridade, abraçando o magro braço esquerdo do
primo como se fosse o máximo que podia abraçar nele, e ele acenou várias
vezes, mas não respondeu. Pensei que ia separar-se de nós nesta altura – a
discussão com Lamin parecera-me uma daquelas que impunham a
separação imediata – mas afinal seguimos juntos até à escola. Musa pôs as
mãos atrás das costas e começou a falar, numa toada baixa, calma e
agradável que me pareceu um sermão, que Hawa escutava respeitosamente
mas Lamin estava sempre a interromper, com cada vez maior energia e
volume, num estilo que nem parecia dele. Comigo esperava que acabasse
cada frase, e deixava passar longos intervalos de silêncio antes de
responder, silêncios em que me habituei a pensar como cemitérios de
comunicação, onde qualquer coisa embaraçosa ou desagradável que
pudesse ter dito era sepultada. Este Lamin zangado, conflituoso, era-me tão
estranho que me dava a sensação de não querer que o visse em ação.
Acelerei ligeiramente o passo, e quando já levava alguns metros de avanço
deles todos virei-me a ver o que estava a acontecer e verifiquei que também
eles tinham parado. Musa segurava Lamin pelo pulso: estava a apontar-lhe
para o grande relógio parado e a dizer qualquer coisa muito solene. Lamin
retirou o braço, com cara de quem protestava, e Musa sorriu como se tudo
aquilo tivesse sido agradável, ou pelo menos necessário, apertou a mão de
Lamin apesar da aparente discussão, deixou que Hawa lhe abraçasse outra
vez o braço, fez-me um aceno de cabeça do outro lado da estrada e voltou
para trás pelo mesmo caminho.
«Musa, Musa, Musa...», disse Hawa, abanando a cabeça enquanto se
juntava a mim. «Agora com o Musa é tudo nafs – é tudo uma tentação – nós
somos uma tentação. É muito estranho, somos da mesma idade, brincámos
sempre juntos, era como um irmão. Lá em casa gostávamos muito dele, ele
gostava muito de nós, mas não podia ficar. Somos muito antiquados para
ele. Quer ser moderno. Quer viver na cidade: só ele, uma mulher, dois filhos
e Deus. E tem razão: quando se é rapaz e se vive alegremente com a
família, é difícil ser-se puro. Eu gosto de viver alegremente – oh, não
consigo viver de outra maneira, mas talvez quando for mais velha», disse,
olhando para o corpo como o primo tinha olhado para as sandálias, com
curiosidade, como se pertencessem a outra pessoa: «Talvez quando for mais
velha seja mais ajuizada. Veremos.»
Parecia relativamente divertida, a pensar na Hawa que era agora e na
Hawa que podia vir a ser, mas Lamin estava agitado.
«Aquele maluco anda a dizer a toda a gente “Não rezes assim, reza
assado, cruza os braços sobre o corpo, não os deixes cair!” Até às pessoas
de família chama Sila keeba25 – critica a própria avó! Mas que quer isso
dizer, “velho muçulmano”, “novo muçulmano”? Somos um só povo! Diz à
avó: “Não, não se deve fazer uma grande cerimónia de batizado, faz-se uma
cerimónia pequena, sem música, nem dança – mas ela é do Senegal –,
quando nasce uma criança, dançamos!”»
«No mês passado», começou Hawa, e eu preparei-me para o grande
discurso, «a minha prima Fatu teve o primeiro filho, Mamadu, e havias de
ver como isto estava nesse dia, tínhamos cinco músicos, tocando por todo o
lado, a comida era tanta – Oh! Não consegui comer tudo, fiquei com dores
de tanto comer, e de tanto dançar, e a minha prima Fatu estava a ver o irmão
dançar como…»
«E agora o Musa está casado», interrompeu Lamin. «E como foi que se
casou? Praticamente sem ninguém a assistir, sem comida – a tua avó
chorou, passou vários dias a chorar!»
«É verdade, as nossas avós adoram cozinhar.»
«“Não uses amuletos, não vás aos –”, chamamos-lhes marabus – e de
facto eu não vou», disse Lamin, mostrando-me, não sei porquê, a mão
direita e virando-a. «Provavelmente em certos aspetos sou diferente do meu
pai, do pai dele, mas vou dizer aos meus mais velhos o que devem fazer? E
o Musa disse à própria avó que não pode ir?!»
Lamin estava a falar comigo, e eu, embora não soubesse o que era um
marabu ou por que razão alguém iria a um, fingi-me indignada.
«Estão sempre a ir lá –», confidenciou-me Hawa, «as nossas avós. A
minha avó trouxe-me isto.» Levantou o pulso e eu admirei uma bela
pulseira de prata com um pequeno amuleto pendurado.
«Alguém é capaz de me mostrar onde é que está escrito que respeitar os
mais velhos é pecado?», exigiu Lamin. «Ninguém consegue mostrar-me.
Agora quer levar o segundo filho para o hospital “moderno” em vez de o
levar para o mato. A decisão é dele. Mas porque é que o rapaz não há de ter
uma cerimónia de iniciação? O Musa vai dar mais um grande desgosto à
avó, acreditem. Mas eu vou consentir que um rapaz do gueto que não fala
árabe me diga isto e mais aquilo? Aadoo, Satã – são as únicas palavras
árabes que sabe! Andou numa escola de missionários católicos! Eu sei de
cor todos os hadiths26, todos os hadiths. Não, não.»
Foi o discurso mais longo, mais consistente e mais acalorado de quantos
ouvi a Lamin, e até ele me pareceu surpreendido, parando por um segundo e
limpando o suor da testa a um lenço branco, dobrado, que guardava para o
efeito no bolso de trás.
«O que eu digo é que sempre haverá diferenças entre as pessoas» –
começou Hawa, mas Lamin voltou a interrompê-la: «E então disse-me» –
Lamin apontou para o relógio avariado –, «“Esta vida não é nada em
comparação com a eternidade, a vida que estás a viver é só o meio segundo
antes da meia-noite. Eu não vivo para esse meio segundo, mas sim para o
que vem a seguir.” Mas ele pensa que lá por rezar com os braços cruzados
sobre o peito é melhor do que eu? Não. E disse-lho: “Eu sei árabe, Musa, e
tu, também sabes?” Acreditem, o Musa é um homem em estado de
confusão.»
«Lamin...», disse Hawa, «penso que estás a ser um bocadinho injusto, o
Musa só quer praticar a jiade, e não há mal nenhum em…»
A minha cara deve ter feito um esgar estranho: Hawa apontou-me para o
nariz e desatou a rir.
«Olha para ela! Oh, pá! Pensa que o meu primo quer ir matar pessoas –
oh, pá, essa tem graça –, um mashala nem sequer uma escova de dentes
tem, quanto mais uma arma – ha ha ha!»
Lamin, menos divertido, apontou para o peito e retomou os sussurros:
«Acaba-se o reggae, acaba-se o convívio no gueto, acaba-se a marijuana. É
isso que ela quer dizer. Antigamente, o Musa usava rastas – sabes o que é
isso? OK, usava rastas compridas, até aqui! Mas agora está na tal jiade
interior. É isso que ela quer dizer.»
«Quem me dera ser pura como ele», declarou Hawa, suspirando
docemente. «Oh, oh... é bom ser puro – provavelmente!»
«Pois claro que é», disse Lamin, franzindo a testa. «Todos tentamos
praticar a jiade, todos os dias, à nossa maneira, o melhor que podemos. Mas
não é preciso cortar as calças e insultar a avó. O Musa veste-se como um
indiano. Não precisamos cá deste imã estrangeiro – temos os nossos!»
Tínhamos chegado ao portão da escola. Hawa endireitou a saia comprida,
deslocada pelo caminhar, até voltar a assentar-lhe direita nas ancas.
«Porque é que ele usa as calças assim?»
«Curtas, queres tu dizer?», disse Hawa enfadada, com aquele dom que
tinha para me fazer sempre sentir que havia feito a pergunta mais óbvia do
mundo. «Para não lhe arderem os pés no inferno!»

Nessa noite, debaixo de um céu estranhamente claro, ajudei Fern e uma


equipa de voluntários a instalar trezentas cadeiras e erguer toldos brancos
por cima delas, a içar bandeiras em postes e a pintar «BEM-VINDA
AIMEE» numa parede. Aimee, Judy, Granger e a rapariga das RP estavam a
dormir no hotel de Banjul, exaustos da viagem, ou por não quererem vir
para a casa cor-de-rosa, não se sabia. À nossa volta, o Presidente era o tema
de todas as conversas. Éramos metralhados vezes sem conta com as
mesmas piadas: até que ponto sabíamos, ou afirmávamos não saber, ou qual
de nós sabia mais. Ninguém falava de Aimee. O que eu não conseguia
perceber no meio deste frenesim de rumores e contrarrumores era se uma
visita do Presidente era esperada com ansiedade ou com terror. É a mesma
coisa quando ouvimos falar de uma tempestade que se aproxima da cidade,
explicou Fern, enquanto enterrávamos na areia as pernas metálicas das
cadeiras dobráveis. Mesmo que tenhamos medo temos curiosidade em vê-
la.
23 Chá verde. (N. do T.)

24 Seguidor do movimento islâmico Tablighi Jama’at, que preconiza a missionação itinerante feita
por leigos (khuruj). (N. do T.)

25 Antiquadas. (N. do T.)

26 Relatos dos episódios da vida de Maomé. (N. do T.)


4

Era manhã cedo e eu estava com o meu pai na estação de King’s Cross,
numa das nossas viagens de última hora para visitar uma universidade.
Acabáramos de perder o comboio, não porque tivéssemos chegado tarde
mas porque o preço do bilhete era o dobro do que eu dissera ao meu pai que
seria, e enquanto discutíamos o que fazer a seguir – vai agora um de nós, o
outro mais tarde, ou não vai nenhum, ou vamos os dois noutro dia, fora do
horário mais caro – o comboio tinha partido sem nós. Estávamos ainda a
discutir acesamente diante do painel de chegadas e partidas quando
avistámos Tracey, que subia a escada rolante do metro. Que visão! Calças
de ganga impecavelmente brancas e botinhas de salto alto pelo tornozelo e
casaco de cabedal cingido ao corpo e com o fecho subido até ao queixo:
parecia uma armadura de corpo inteiro. O humor do meu pai alterou-se.
Levantou os dois braços como um sinaleiro de aeroporto a orientar um
avião. Vi Tracey caminhar na nossa direção de uma forma estranhamente
formal, formalismo que escapou completamente ao meu pai, que a abraçou
como fazia antigamente, sem notar a rigidez do corpo dela junto ao seu ou a
imobilidade hirta dos braços. Soltou-a e perguntou-lhe pelos pais, e como
estava a correr-lhe o verão. Tracey deu uma série de respostas frias que, aos
meus ouvidos, não continham nenhuma informação. Vi que a cara dele se
ensombrava. Não propriamente por aquilo que ela estava a dizer, mas pela
forma como o dizia, um estilo totalmente novo que nada parecia ter que ver
com a rapariga rebelde e corajosa que ele julgava ter conhecido. Um estilo
que pertencia a uma rapariga completamente diferente, de um bairro
diferente, um mundo diferente. «Que é que te ensinam nessa escola
maluca», perguntou ele, «lições de elocução?» «Sim», disse Tracey com
sobranceria e empinou o nariz, e era evidente que queria que o assunto
ficasse por ali, mas o meu pai, que nunca foi muito bom a captar sinais, não
desistiu. Continuou a espicaçá-la, e Tracey, para se defender da troça dele,
pôs-se a enumerar as muitas aptidões que estava a desenvolver nas suas
aulas de verão de dança e esgrima, nas aulas de danças de salão e de teatro,
aptidões que não eram necessárias no bairro, mas indispensáveis para quem
queria atuar naquilo que então se chamava o «palco de West End». Eu tive
curiosidade de saber, mas não perguntei, de onde lhe vinha o dinheiro para
tudo. Enquanto ela se dirigia a mim, o meu pai ficou a olhá-la fixamente e
de repente interrompeu-a. «Mas estás a brincar, não estás, Trace? Deixa-te
disso – só aqui estamos nós! Não precisas de te armar em fina connosco.
Nós conhecemos-te, já te conhecemos desde que eras desta altura, connosco
não tens de fingir que és marquesa!» Mas Tracey ficou nervosa, pôs-se a
falar cada vez mais depressa, num tom de voz novo e estranho com que terá
pensado que ia impressionar o meu pai em vez de o irritar, um tom que não
era bem controlado e numa frase em cada duas resvalava artificialmente
para o nosso passado comum para depois avançar desajeitadamente para o
seu presente misterioso, até que o meu pai perdeu completamente a
compostura e desmanchou-se a rir na cara dela, em plena estação de King’s
Cross, diante de todos aqueles passageiros habituais da hora de ponta. Não
fez aquilo por mal – estava simplesmente divertido – mas eu percebi que ela
ficou magoada. Verdade se diga, porém, que desta vez Tracey não deu
largas ao seu mau feitio. Com dezoito anos já era perita na arte de deixar
fermentar a raiva que é própria das mulheres mais velhas, guardando-a para
usar mais tarde. Desculpou-se delicadamente com uma aula que ia ter.

Em julho, Miss Isabel telefonou à minha mãe para lhe perguntar se eu e


Tracey queríamos ser voluntárias na sua récita de fim de verão. Fiquei
vaidosa: quando éramos pequenas, as ex-alunas eram como deusas para
nós, com as suas pernas compridas e a sua independência, trocando
risadinhas e cochichos de adolescentes enquanto recebiam os nossos
bilhetes, faziam girar a tômbola, serviam snacks, entregavam prémios. Mas
aquela manhã dolorosa em King’s Cross ainda estava fresca na minha
memória. Sabia que a recordação que Miss Isabel tinha da nossa amizade
havia ficado paralisada no tempo, mas não suportava a ideia de destruir a
imagem que ela guardava. Disse que sim através da minha mãe e fiquei à
espera de saber a resposta de Tracey. No dia seguinte, Miss Isabel voltou a
telefonar: Tracey tinha aceitado. Mas nenhuma de nós telefonou à outra ou
fez qualquer tentativa de contacto. Só a vi na manhã da récita, quando
resolvi demonstrar a minha superioridade e ir a casa dela. Toquei duas
vezes à campainha. Depois de uma pausa estranhamente longa, foi Louie
quem veio abrir. Fiquei surpreendida: pelos vistos, surpreendemo-nos
mutuamente. Limpou um pouco de suor que tinha entre o bigode e o nariz e
perguntou-me bruscamente o que queria. Sem ter tempo de responder, ouvi
Tracey, numa vozinha esquisita – quase não a reconheci – gritar ao pai que
me mandasse entrar, e Louie acenou e deixou-me passar, mas foi para o
lado oposto, saindo de casa e seguindo pelo corredor exterior. Vi-o descer
as escadas a correr, atravessar o relvado e desaparecer. Virei-me para o
interior do apartamento, mas Tracey não estava no corredor, nem na sala de
estar, nem na cozinha: tive a sensação de que saía de cada compartimento
um momento antes de eu lá chegar. Fui encontrá-la no quarto de banho. Ia
jurar que tinha estado a chorar, mas não tinha a certeza. Disse olá. Ao
mesmo tempo ela baixou rapidamente os olhos, fixando-os no sítio do
corpo para onde eu estava a olhar, esticando o top até voltar a cobrir-lhe por
completo o sutiã. Saímos as duas do quarto de banho e descemos as
escadas. Eu não tinha palavras, mas Tracey nunca perdia o pio, nem mesmo
em situações extremas, e agora tagarelava num estilo vivo e cómico, sobre
as «cabras escanzeladas» que tinha de enfrentar nas audições, os novos
passos que tinha de aprender, o problema de projetar a voz para lá da
ribalta. Falava depressa e sem pausas, para não deixar nenhuma fresta por
onde eu pudesse meter uma pergunta, e com isso conseguiu que
percorrêssemos em segurança o caminho entre o bairro e a igreja, onde
Miss Isabel nos esperava. Deu um par de chaves a cada uma, mostrou-nos
como se fechava o cofre e onde se guardava, como se fechava e abria a
igreja antes e depois, e outras pequenas coisas práticas. Enquanto dávamos
a volta ao espaço, Miss Isabel fez uma série de perguntas sobre a nova vida
de Tracey, sobre os pequenos papéis que já estava a conseguir na escola e os
grandes papéis que esperava conseguir um dia. As perguntas tinham
qualquer coisa de belo e inocente. Percebia-se que Tracey queria ser a
rapariga de quem Miss Isabel se lembrava, com uma vida organizada e
simples, só com metas à sua frente, brilhantes e claras e sem nada a
atravessar-se no caminho. Assumindo o papel desta rapariga, atravessou o
espaço que conhecíamos da nossa infância, desfiando recordações, tendo o
cuidado de encurtar as vogais, de mãos atrás das costas, como uma turista
deambulando por um museu, observando os testemunhos de uma história
dolorosa, uma turista sem nenhum apego àquilo que está a ver. Quando
chegámos às traseiras da igreja, onde as crianças faziam fila para o sumo e
bolachas, todas levantaram os olhos para Tracey com indisfarçável
admiração. Tinha o cabelo apanhado num coque de dançarina e um saco dos
Pineapple Studios ao ombro, caminhava com os pés virados para fora, era o
sonho que ambas tivéramos, uma década antes, quando fazíamos fila para o
sumo neste mesmo sítio, miúdas como estas. A mim ninguém me prestou
grande atenção – até as crianças percebiam que já não era dançarina – e
Tracey parecia feliz por se ver rodeada de todas estas pequenas
admiradoras. Para elas era bela e crescida, invejavelmente talentosa, livre. E
ao olhar para ela assim até eu me convenci facilmente de que tinha andado
a imaginar coisas.
Atravessei a sala e recuei no tempo, até chegar junto do Sr. Booth.
Continuava sentado no seu coçado banco de piano, um pouco mais velho,
mas para mim não tinha mudado nada, e tocava um tema intemporal: «Have
Yourself a Merry Little Christmas.» E foi então que aconteceu aquela coisa
espontânea que, pela sua irrealidade, leva as pessoas a detestarem os
musicais, ou pelo menos é o que me dizem quando digo que gosto deles:
começámos a fazer música juntos, sem trocarmos impressões nem
ensaiarmos. Ele sabia a música, eu sabia a letra. Falava dos amigos fiéis.
Tracey virou-se para mim e sorriu, um sorriso melancólico mas afetuoso, ou
talvez só transportasse a memória do afeto. Vi a rapariga de sete, oito, nove,
dez anos, adolescente, mulherzinha. Todas estas versões de Tracey vieram
ter comigo através dos anos do salão da igreja para me fazerem uma
pergunta: Que vais fazer? Pergunta para a qual ambas já sabíamos a
resposta. Nada.
5

Mais parecia o anúncio do fim de um regime velho do que a inauguração


de uma escola. Um contingente de jovens soldados envergando uma farda
azul ocupava o centro do recinto, com os seus instrumentos de metal,
transpirando brutalmente. Não havia nenhuma sombra e já levavam uma
hora em posição. Eu estava sentada a cerca de cem metros deles, debaixo do
toldo, com a fina-flor de toda a região superior do rio, alguma imprensa
local e internacional, Granger e Judy, mas não o Presidente, e também não
Aimee, por enquanto. Chegaria com Fern, quando tudo estivesse pronto e as
pessoas nos seus lugares: um processo moroso. Lamin e Hawa, que não
pertenciam à fina-flor, haviam sido relegados para um sítio recuado, longe
de nós, porque a hierarquia dos lugares era rígida. Mais ou menos de quinze
em quinze minutos, Judy, ou às vezes Granger, ou às vezes eu, sugeríamos
que alguém tinha de dar água àqueles pobres soldados músicos, mas
nenhum de nós o fez, e mais ninguém o fez. Entretanto avançaram os
jardins infantis, cada um com o seu uniforme distintivo, bibes, camisas e
calções em inesperadas combinações de cores – laranja e cinzento, ou roxo
e amarelo – conduzidos por pequenos grupos de mulheres, as professoras,
que não se tinham poupado a esforços em matéria de elegância. As
professoras do jardim infantil de Kunkujang Keitaya vestiam T-shirts
vermelhas justas e calças de ganga pretas com bolsos debruados a
diamantes de imitação e cabelo penteado em laboriosas tranças. As
professoras do jardim infantil de Tujereng envergavam vestidos soltos e
lenços de cabeça de padrão vermelho-e-laranja a condizer e sandálias de
plataforma brancas, todas parecidas. Cada equipa adotava um esquema
diferente da equipa vizinha, mas, tal como as Supremes, mantinham uma
uniformidade perfeita dentro do seu grupo. Entravam pelo portão principal,
atravessavam o recreio bamboleantes, com as crianças atrás, de rosto
fechado – como se não ouvissem os nossos aplausos – e, quando chegavam
ao local que lhes estava destinado, duas mulheres, muito sérias,
desenrolavam uma faixa artesanal com o nome da escola escrito e ficavam a
segurá-la, mudando o peso do corpo de uma anca para a outra enquanto a
espera prosseguia. Acho que nunca vi tantas mulheres escandalosamente
bonitas num sítio só. Também eu me tinha esmerado na indumentária –
Hawa disse-me com firmeza que a roupa de caqui e linho amarrotado que
usava normalmente não era adequada – vestindo uma saia branca-e-amarela
e um top da minha anfitriã que, por me ficar demasiado pequeno, não
conseguia apertar atrás e tive de disfarçar o que faltava com um grande
lenço vermelho sobre os ombros, apesar de estarem trinta e nove graus, pelo
menos.
Finalmente, quase duas horas depois de nos termos sentado, toda a gente
que devia estar no recreio estava no recreio, e Aimee, rodeada de uma
multidão que se acotovelava para lhe dar as boas-vindas, foi conduzida por
Fern ao lugar de honra. Dispararam flashes. E a primeira coisa que
perguntou, virando-se para mim, foi: «Onde está o Lamin?» Não tive
hipótese de lhe responder: soaram as trompas, era a altura do acontecimento
principal e, recostando-me na cadeira, perguntei-me se não teria
compreendido mal tudo aquilo que tinha tanta certeza de haver
compreendido nas duas semanas anteriores. Entretanto tinha entrado em
cena um desfile de rapazinhos em trajes de fantasia, todos de sete ou oito
anos, vestidos de chefes de estados africanos. Vinham vestidos com panos
kente e túnicas e colares de Nehru e fatos de safari, cada um com o seu
séquito, constituído por outros rapazinhos que tinham sido fantasiados de
seguranças: fato escuro e óculos escuros, falando para walkie-talkies de
brincar. Muitos dos pequenos chefes tinham ao seu lado pequenas esposas,
que balançavam pequenas carteiras, se bem que Lady Libéria viesse sozinha
e o Presidente da África do Sul com três esposas, de braço dado atrás dele.
Pelas caras da multidão dir-se-ia que nunca na vida tinha visto nada mais
divertido, e Aimee, que também achava aquilo hilariante, limpou as
lágrimas dos olhos antes de estender os braços para abraçar o Presidente do
Senegal ou beliscar a bochecha do Presidente da Costa do Marfim. As altas
personalidades desfilaram diante dos infelizes e transpirados soldados, e
depois diante dos nossos lugares, onde acenaram e posaram para
fotografias, mas não sorriram nem falaram. Então a banda interrompeu os
toques de trombeta de boas-vindas e atacou uma estridente versão do hino
nacional para instrumentos de sopro. As nossas cadeiras vibraram. Virei-me
e vi entrar dois enormes veículos troantes pelo chão de terra do recreio: o
primeiro era um SUV como aquele em que tínhamos viajado quatro meses
antes, e o segundo um jipe de polícia a sério, tão fortemente armado que
parecia um tanque. Talvez uma centena de crianças e adolescentes corriam a
par destes veículos, atrás, por vezes à frente, mas sempre perigosamente
perto das rodas, vitoriando e gritando. No primeiro, de pé irrompendo pelo
teto de abrir, vinha uma versão de oito anos do Presidente, no seu
imponente bubu branco e cófio também branco, empunhando o seu bastão.
A semelhança tinha sido levada o mais longe possível: o rapazinho era
negro como o Presidente e tinha cara de sapo como ele. Ao seu lado ia uma
espampanante menina de oito anos, mais ou menos com o meu tom de pele,
de peruca e coleante vestido vermelho, que atirava punhados de notas de
Monopólio à multidão. Agarrados aos lados do carro iam mais seguranças
pequenos, com óculos de sol pequenos e armas pequenas, que apontavam às
crianças, algumas das quais abriam garbosamente os braços para exporem
os troncos pequenos à pontaria dos seus pares. Duas versões destes
seguranças em adulto, com o mesmo aspeto mas sem armas, pelo menos
que eu visse, corriam aos lados do carro, filmando tudo nas suas câmaras de
vídeo de último modelo. No jipe da polícia que vinha atrás, os pequenos
polícias com armas de brincar partilhavam o espaço com polícias de
verdade e Kalashnikovs de verdade. Tanto os polícias pequenos como os
grandes traziam as armas a apontar para o ar, para gáudio das crianças, que
corriam atrás do jipe e tentavam trepar-lhe para a traseira, para chegarem
aonde estava o poder. Os adultos no meio dos quais eu me sentava pareciam
divididos entre os vivas jubilosos – sempre que as câmaras rodavam e os
filmavam – e os gritos de terror perante a ameaça permanente de colisão
dos veículos com os seus filhos em corrida. «Afasta-te», ouvi um polícia a
sério gritar a um rapaz persistente ao lado da roda direita, pedinchando
guloseimas. «Ou passamos-te por cima!»
Finalmente, os veículos estacionaram, o Presidente em miniatura apeou-
se e dirigiu-se ao pódio e pronunciou um breve discurso de que não
consegui ouvir uma palavra, por causa do eco dos altifalantes. Mais
ninguém ouviu, mas toda a gente se riu e aplaudiu no fim. Ocorreu-me que,
se o Presidente em pessoa tivesse vindo, o efeito não teria sido muito
diferente. Uma demonstração de poder é uma demonstração de poder.
Depois subiu Aimee ao pódio, disse umas palavras, deu um beijo no
homenzinho, tirou-lhe o bastão das mãos e brandiu-o no ar, no meio de
grandes aplausos. Estava inaugurada a escola.

Mais do que passarmos desta cerimónia formal para uma festa separada,
foi a cerimónia formal que se dissolveu instantaneamente para dar lugar a
uma festa. Todos quantos não haviam sido convidados para a cerimónia
invadiram o recreio, o perfeito alinhamento colonial das cadeiras desfez-se,
cada um tratou de se instalar onde podia. As vistosas professoras
encaminharam as suas turmas para zonas com sombra e distribuíram-lhes o
almoço, que tiraram, quente e bem fechado em grandes panelas, daqueles
enormes sacos de compras aos quadrados que também se vendem no
mercado de Kilburn, símbolo internacional das pessoas poupadas e
viajadas. No canto mais setentrional das instalações, a prometida instalação
sonora começou a tocar. Estavam lá todas as crianças que conseguiam
escapar aos adultos ou não tinham nenhum adulto a olhar por elas, a dançar.
Achei aquilo jamaicano, uma espécie de sala de baile, e como, pelos vistos,
me tinha perdido de toda a gente na transição súbita, deixei-me ficar por ali
a assistir ao baile. Havia dois modelos. O dominante era uma imitação
irónica das mães: dobradas sobre os joelhos, acocoradas, o traseiro
espetado, atentas aos pés com que marcavam o ritmo no chão. Mas de vez
em quando – principalmente se viam que eu estava a observá-las – a dança
saltava para outros tempos e lugares que me eram mais familiares, até ao
hip-hop e à ragga, até Atlanta e Kingston, e então via as crianças
espernearem, sacudirem o corpo, arrastarem os pés, rodopiarem. Um rapaz
bonito e de sorriso travesso, que não tinha mais de dez anos, sabia uns
passos particularmente obscenos e executava-os em movimentos curtos e
rápidos, de modo que a cada passo as raparigas que o rodeavam
escandalizavam-se, gritavam, corriam a esconder-se atrás de uma árvore,
para logo voltarem para o verem dançar mais um pouco. O rapaz estava de
olho em mim. Apontava constantemente na minha direção, berrando
qualquer coisa por cima da música, que eu não percebia bem: «Danças? É
pena! Danças? Dança! É pena!» Aproximei-me um pouco mais, sorri e
disse que não com a cabeça, embora ele soubesse que eu estava a considerar
essa possibilidade. «Ah, estás aqui», disse Hawa, por trás de mim, enfiou-
me o braço e levou-me de volta ao nosso grupo.
Debaixo de uma árvore reuniam-se Lamin, Granger, Judy, os nossos
professores e algumas crianças, todos chupando pequenas pirâmides,
envoltas em papel aderente, de sumo de laranja ou água gelada. Comprei
uma de água à rapariguinha que estava a vendê-las e Hawa ensinou-me a
rasgar um canto com os dentes e chupar o líquido. Quando acabei olhei para
o invólucro espremido que tinha na mão, como um preservativo vazio, e vi
que não havia sítio para o pôr a não ser no chão, e percebi que estas bebidas
em forma de pirâmide deviam ser a origem de todos aqueles plásticos
retorcidos que pejavam as ruas, os ramos das árvores, infestando bairros,
acumulando-se em todos os arbustos como se fossem flores. Meti a minha
ao bolso para adiar o inevitável e fui sentar-me entre Granger e Judy, que
estavam a meio de uma discussão.
«Eu não disse isso», sibilou Judy. «O que disse foi: “Nunca vi nada
assim.”» Fez uma pausa para chupar ruidosamente a bebida gelada. «E raios
me partam se não é verdade!»
«Pronto, está bem, talvez eles também nunca tenham visto algumas das
palermices que nós fazemos. O Dia de São Patrício. Mas que porra é essa
do Dia de São Patrício?»
«Ó Granger, eu sou australiana – e basicamente budista. Não podes atirar-
me com o Dia de São Patrício.»
«O que eu quero dizer é isto: nós amamos o nosso Presidente...»
«Alto aí! Fala por ti!»
«… porque é que estas pessoas não haviam de respeitar e amar a porra
dos seus líderes? Que se passa contigo? Não podes chegar aqui sem
conhecer o contexto e pores-te a fazer juízos…»
«Ninguém gosta dele», disse uma jovem de olhar vivo que estava sentada
em frente de Granger com um vestido puxado para baixo até à cintura e um
filho ao seio direito que entretanto mudou, dando-lhe o esquerdo. Tinha
uma cara bonita e inteligente e era pelo menos dez anos mais nova do que
eu, mas os seus olhos tinham a mesma expressão de experiência que eu
começara por ver em antigas colegas de escola durante tardes longas e
desconfortáveis em que as visitava e aos seus filhos desinteressantes, e aos
maridos ainda mais desinteressantes. Era uma camada de ilusão juvenil que
desaparecia.
«Tantas mulheres jovens», disse ela, baixando a voz, tirando uma das
mãos de debaixo da cabeça do filho e abarcando a multidão com um gesto
de indiferença. «Mas onde estão os homens? Rapazes, sim – mas homens
feitos? Não. Ninguém aqui gosta dele, nem do que tem feito. Quem pode
vai-se embora. Dai o salto, dai o salto, dai o salto, dai o salto.» Enquanto
falava apontava para alguns rapazes que dançavam perto de nós como se
tivesse o poder de os fazer desaparecer. Sorveu o ar entre os dentes, como a
minha mãe costumava fazer. «Acreditem, se eu pudesse também dava o
salto!»
Granger, que de certeza, tal como eu, estava convencido de que esta
mulher não falava inglês – ou pelo menos não conseguia acompanhar as
variações dele e de Judy sobre a língua –, acenava agora a cada palavra que
ela dizia, quase antes de a dizer. Toda a gente que estava perto – Lamin,
Hawa, alguns jovens professores, outras pessoas que eu não conhecia –
murmuravam e assobiavam, mas sem acrescentarem mais nada. A jovem
bonita endireitou-se na cadeira, reconhecendo-se como alguém que de
repente era investida com o poder do grupo.
«Se gostassem dele», disse, agora sem sussurrar, mas também, segundo
reparei, sem nunca o nomear, «não estariam aqui, connosco, em vez de se
atirarem à água ao encontro da morte?» Baixou os olhos e compôs o
mamilo, e eu fiquei a pensar que «eles», naquele caso, talvez não fosse uma
abstração, mas sim alguém com um nome, uma voz, uma relação com o
bebé que tinha nos braços.
«Dar o salto é loucura», sussurrou Hawa.
«Cada país tem a sua luta», disse Granger – ouvi um eco invertido
daquilo que Hawa me havia dito de manhã. «Lutas sérias na América. Para
nós, negros. Por isso nos faz bem à alma estarmos aqui, convosco.» Falava
devagar, refletidamente, do fundo da alma, que afinal tinha bem no meio
dos peitorais. Deu a impressão de que ia chorar. Por instinto, virei-me de
costas, para lhe dar privacidade, mas Hawa olhou-o nos olhos e, pegando-
lhe na mão, disse: «Vejam como o Granger nos sente verdadeiramente» –
ele apertou-lhe a mão com força – «não só com o cérebro, mas também com
o coração!» Um remoque pouco subtil dirigido a mim. A mulher jovem e
determinada assentiu com a cabeça, ficámos todos à espera de mais, parecia
que só ela podia dar um significado final ao episódio, mas o filho tinha
acabado de mamar e o discurso dela tinha terminado. Puxou o vestido
amarelo para o sítio e levantou-se para pôr o filho a arrotar.
«É fantástico termos a nossa irmã Aimee connosco», disse uma das
amigas de Hawa, uma mulher jovem e expressiva chamada Esther que,
como eu já tinha notado, detestava o silêncio. «O nome dela é conhecido no
mundo inteiro! Mas agora é uma de nós. Vamos ter de lhe dar um nome da
aldeia.»
«Sim», disse eu. Estava a observar a mulher do vestido amarelo que tinha
falado. Encaminhava-se agora para o baile, de costas muito direitas. Tive
vontade de ir atrás dela e conversar mais um pouco.
«Ela está aqui agora? A nossa irmã Aimee?»
«O quê? Oh, não... acho que teve de ir dar entrevistas, ou coisa assim.»
«Oh, é espantoso. Conhece o Jay-Z, conhece a Rihanna e a Beyoncé.»
«Pois conhece.»
«E conhece o Michael Jackson?»
«Conhece.»
«Achas que ela também é dos Illuminati? Ou só tem conhecidos
Illuminati?»
Eu ainda via a mulher de amarelo, que se distinguia no meio de tantas
outras, até que passou por trás de uma árvore e das retretes e não voltei a
vê-la.
«Eu não... Sinceramente, Esther, não me parece que nada disso exista.»
«Está bem», disse Esther, imperturbável, como se tivesse dito que gostava
de chocolate e eu que não gostava. «Aqui, para nós, existe, porque não há
dúvida de que tem muito poder. Por cá ouvimos falar muito disso.»
«Existe», confirmou Hawa, «mas nesta Internet, acreditem, não se pode
confiar em tudo. Por exemplo, o meu primo mostrou-me fotografias de um
branco, na América, que é do tamanho de quatro, tão gordo ele é! Eu disse:
“És muito parvo, isto não é uma fotografia de verdade, pá! Não é possível,
não pode existir ninguém assim.” Estes miúdos são tolos. Acreditam em
tudo o que veem.»

Quando regressámos à morança já era noite, iluminada pelas estrelas. Dei


o braço a Lamin e Hawa e tentei espicaçá-los um bocadinho.
«Não, não, apesar de eu lhe chamar Pequena Esposa», protestou Lamin,
«e ela me chamar Senhor Marido, a verdade é que somos apenas da mesma
idade.»
«Flirt, flirt, flirt», disse Hawa, flirtando, «e mais nada!»
«E mais nada?», perguntei, abrindo a porta com um pontapé. «De
certeza?»
«De certeza», disse Lamin.
Na morança ainda havia muitas crianças pequenas acordadas que
correram para Hawa, radiantes, tal como ela ficou radiante por as receber.
Eu apertei a mão às quatro avós, o que tinha de se fazer sempre como se
fosse a primeira vez, e cada uma inclinou-se para mim para tentar dizer-me
qualquer coisa importante – ou, para ser mais exata, diziam-me mesmo
coisas importantes, que eu, no entanto, não compreendia – e então, quando
as palavras falhavam, como sempre acontecia, puxavam-me ligeiramente
pelo vestido para o extremo do alpendre.
«Oh!», disse Hawa, avançando com um sobrinho nos braços, «mas está
cá o meu irmão!»
Na verdade, era meio-irmão e não o achei muito parecido com Hawa, não
era bonito como ela e não tinha nenhum dos seus encantos. Tinha uma cara
séria e amável, redonda como a dela mas com duplo queixo, uns óculos
elegantes e uma forma de vestir perfeitamente neutra que me dizia, antes de
ser ele a dizer-mo, que devia ter vivido na América. Estava de pé na
varanda, bebendo uma grande caneca de Lipton, com um cotovelo apoiado
no parapeito da parede de cimento. Contornei o pilar para ir cumprimentá-
lo. Apertou-me a mão calorosamente, mas com a cabeça atirada para trás e
um meio-sorriso, como se quisesse dar ao gesto um tom de ironia. Fez-me
lembrar alguém – a minha mãe.
«E pelo que vejo estás a viver cá na morança», disse, e acenou para a
azáfama tranquila que nos rodeava, para o sobrinho chorão nos braços de
Hawa, que agora voltava a soltá-lo no pátio. «Mas como é que a vida da
aldeia te está a tratar? Penso que para poderes apreciá-la devidamente tens
primeiro de te habituar às circunstâncias.»
Em vez de lhe responder, perguntei-lhe onde tinha aprendido aquele
inglês perfeito. Ele sorriu formalmente, mas o olhar endureceu-lhe
brevemente por trás das lentes.
«Aqui. Somos um país anglófono.»
Hawa, sem saber o que fazer nesta situação embaraçosa, abafou uma
risadinha com a mão.
«Estou a gostar muito», disse eu, corando. «A Hawa tem sido muito
amável.»
«Gostas da comida?»
«É verdadeiramente deliciosa.»
«É uma comida simples.» Bateu na barriga bojuda e entregou a caneca
vazia a uma rapariga que ia a passar. «Mas às vezes o que é simples é mais
saboroso do que o complicado.»
«É isso mesmo.»
«Portanto, em conclusão, é tudo bom?»
«É tudo bom.»
«Uma pessoa demora algum tempo a aclimatar-se a esta vida rural de
aldeia, como disse. Até para mim, e nasci cá.»
Alguém me deu para a mão uma tigela de comida, apesar de já ter
comido, mas, como tinha a sensação de que tudo o que fazia diante do
irmão de Hawa estava a ser apresentado como uma espécie de teste, aceitei-
a.
«Mas não podes comer assim», protestou ele, e quando fiz menção de
pousar a tigela no muro disse: «Vamos sentar-nos.»
Lamin e Hawa deixaram-se ficar encostados ao muro, enquanto nós nos
sentávamos em dois bancos artesanais ligeiramente instáveis. Livre dos
olhares de todos os presentes no pátio, o irmão de Hawa descontraiu-se.
Contou-me que tinha frequentado uma boa escola na cidade, perto da
universidade onde o pai ensinava, e dessa escola tinha concorrido a um
lugar numa universidade privada quacre no Kansas que concedia dez bolsas
por ano a estudantes africanos, e tinha conseguido uma delas. Concorrem
milhares de candidatos, mas ele entrou, gostaram do trabalho que
apresentou, embora tivesse sido há tanto tempo que já quase não se
lembrava do tema. Licenciou-se e trabalhou como economista em Boston,
mais tarde viveu em Mineápolis, Rochester e Boulder, tudo cidades que
numa altura ou noutra eu tinha visitado com Aimee, e nenhuma tinha
alguma vez significado alguma coisa para mim, mas agora descobria que
queria ouvir falar sobre elas, talvez porque um dia passado na aldeia me
parecia um ano – ali, o tempo desacelerava drasticamente – de tal maneira
que até as calças creme e a T-shirt de golfe vermelha do irmão de Hawa
pareciam capazes de inspirar em mim uma ternura melancólica de exilada.
Fiz-lhe uma quantidade de perguntas específicas sobre o tempo que passou
naquele que não era bem o meu país, enquanto Lamin e Hawa continuavam
de pé ali perto, excluídos da conversa.
«Mas porque é que tiveste de te vir embora?», perguntei-lhe, num tom
mais lamentoso do que desejaria. Ele lançou-me um olhar sagaz.
«Nada me obrigou. Podia ter lá ficado. Regressei para servir o meu país.
Regressei porque quis. Trabalho no Tesouro.»
«Ah, no governo.»
«Sim. Mas para ele o Tesouro é uma espécie de mealheiro pessoal... És
uma rapariga inteligente. De certeza que já ouviste falar disso.» Tirou do
bolso uma tira de pastilha elástica e esteve muito tempo a desembrulhá-la.
«Compreendes, quando digo “servir o meu país” quero dizer todo o povo,
não apenas um homem. Compreenderás também que, de momento, estamos
de mãos atadas. Mas não vão ficar assim para sempre. Amo o meu país. E,
quando as coisas mudarem, ao menos estarei cá para ver.»
«Agora só cá estás um dia, babu!», protestou Hawa, lançando os braços
em volta do pescoço do irmão. «E eu quero falar contigo sobre o drama que
se passa neste pátio – deixa lá a cidade!»
Irmão e irmã encostaram afetuosamente as cabeças.
«Ó mana, não tenho dúvida de que a situação aqui é mais complicada –
espera, gostava de terminar o que estava a dizer à nossa hóspede
preocupada. Sabes, a minha última paragem foi Nova Iorque. És de Nova
Iorque, não és?»
Eu disse que sim: era mais fácil.
«Então sabes como é, como funciona o sistema de classes na América.
Francamente, aquilo era demasiado para mim. Quando cheguei a Nova
Iorque já levava a minha dose. É claro que cá também temos um sistema de
classes – mas não temos o desprezo.»
«O desprezo?»
«Vejamos – esta morança em que estás, por exemplo. Aqui vive a nossa
família. Bem, para dizer a verdade, uma parcela muito pequena dela, mas
serve para exemplificar. Talvez aches que eles vivem muito simplesmente,
vivem numa povoação rural. Mas nós somos foros, de origem nobre, pelo
lado da minha avó. Algumas pessoas que vais conhecer – o diretor da
escola, por exemplo, é um nyamalos, o que significa que pertence a um
povo de artesãos – dedicam-se a diversas profissões, ferreiros, peleiros, etc.
Outras... Lamin, a tua família é jali, não é?»
Uma expressão extremamente tensa perpassou pela cara de Lamin.
Confirmou com um aceno mínimo e olhou para cima e para longe, para a
enorme Lua cheia que ameaçava enfiar-se pelos ramos da mangueira.
«Músicos, contadores de histórias, griôs», disse o irmão de Hawa,
imitando o dedilhar de um instrumento. «Ao passo que outros são jongos.
Na nossa aldeia há muitos descendentes de jongos.»
«Não sei o que isso é.»
«Descendentes de escravos.» Sorriu enquanto me olhava de cima a baixo.
«Mas a minha ideia é que aqui as pessoas ainda podem dizer: “É claro que
um jongo é diferente de mim, mas eu não o desprezo.” Aos olhos de Deus
temos a nossa diferença, mas também a nossa igualdade essencial. Em
Nova Iorque vi gente da classe baixa ser tratada como nunca imaginei que
fosse possível. Com total desprezo. Servem à mesa e as pessoas nem sequer
estabelecem contacto visual com eles. Acredita ou não, eu próprio era às
vezes tratado assim.»
«Existem muitas formas diferentes de pobreza», murmurou Hawa, num
súbito assomo de inspiração. Estava a meio da tarefa de apanhar do chão
um monte de espinhas de peixe.
«E de riqueza», disse eu, e o irmão de Hawa, com um ténue sorriso,
concordou.
6

Na manhã a seguir à récita a campainha tocou, muito cedo, mais cedo que
um carteiro. Era Miss Isabel, em lágrimas. Os cofres tinham desaparecido,
com quase trezentas libras lá dentro, e não havia sinais de arrombamento.
Alguém tinha lá entrado durante a noite. A minha mãe, em robe, sentou-se
na borda do sofá, a esfregar os olhos contra a luz da manhã. Eu fiquei a
ouvir no corredor, presumida inocente desde o primeiro momento. A
conversa era sobre o que fazer com Tracey. Pouco depois mandaram-me
entrar e interrogaram-me e eu contei a verdade: fechámos as portas às onze
e meia, empilhámos as cadeiras todas, e no fim eu e Tracey fomos cada uma
para seu lado. Pensei que ela tinha enfiado a chave por baixo da porta, mas
é claro que pode tê-la metido ao bolso. A minha mãe e Miss Isabel viraram-
se para mim enquanto eu falava, mas ouviram sem grande interesse,
impassíveis, e quando acabei viraram-se outra vez uma para a outra e
retomaram a conversa. Quanto mais ouvia, mais alarmada ia ficando. Para
mim, havia na certeza delas qualquer coisa de obscenamente complacente,
tanto quanto à culpa de Tracey como quanto à minha inocência, apesar de
compreender, racionalmente, que Tracey devia estar envolvida, de uma
forma ou de outra. Ouvi as teorias delas. Miss Isabel achava que Louie
devia ter roubado a chave. A minha mãe tinha igual certeza de que Tracey
lha tinha dado. Não achei estranho, na altura, que nenhuma delas
considerasse a possibilidade de chamar a polícia. «Com aquela família...»,
disse Miss Isabel, e aceitou um lenço de papel para limpar os olhos.
«Quando ela aparecer no centro», prometeu-lhe a minha mãe, «vou ter uma
conversa com ela.» Foi a primeira vez que ouvi dizer que Tracey
frequentava o centro de juventude, aquele em que a minha mãe fazia
voluntariado, e ela olhou para mim, embaraçada. Levou uns instantes a
recuperar o sangue-frio, mas sem me olhar nos olhos começou a explicar
com cuidado que, «depois do incidente com a droga», tinha naturalmente
tratado de conseguir aconselhamento gratuito para Tracey, e não me tinha
dito nada por razões de «confidencialidade». Nem à mãe de Tracey tinha
dito. Agora percebo que nada disto era particularmente irrazoável, mas na
altura imaginei conspirações maternas por todo o lado, manipulações,
tentativas de controlar a minha vida e a vida das minhas amigas. Fiz um
escarcéu e fui enfiar-me no quarto.
Depois disso, tudo aconteceu rapidamente. Miss Isabel, na sua inocência,
foi falar com a mãe de Tracey e foi mais ou menos expulsa do apartamento,
regressando ao nosso com ar abalado, a cara mais corada que nunca. A
minha mãe voltou a mandá-la sentar e foi fazer chá, mas momentos depois
ouvimos o barulho da porta da rua a bater no caixilho: a mãe de Tracey,
impelida pela sua fúria indomada a atravessar a estrada, subiu as escadas e
irrompeu pela sala, onde permaneceu o tempo suficiente para proferir uma
contra-acusação, terrível, visando o Sr. Booth. Falava tão alto que eu ouvi-a
através do teto. Desci as escadas a correr e fui direita a ela, que enchia a
soleira da porta, desafiadora, transpirando desprezo – por mim. «Tu e a
merda da tua mãe», disse. «Sempre pensaram que eram melhores do que
nós, sempre acharam que tu eras a porra de uma menina de ouro, mas afinal
não és nada disso, pois não? A minha Tracey é que é, e o que vocês as duas
têm é inveja, e eu antes quero morrer do que permitir que se atravessem no
caminho dela, tem uma vida inteira pela frente e vocês não vão travá-la com
mentiras, nenhuma de vocês vai conseguir isso.»
Nunca nenhum adulto me tinha falado daquela maneira, como se me
desprezasse. Segundo ela, eu estava a tentar destruir a vida de Tracey, e a
minha mãe a mesma coisa, e o mesmo estavam a fazer Miss Isabel e o Sr.
Booth, e várias outras pessoas do bairro, e todas as mães ciumentas da aula
de dança. A chorar, corri pelas escadas acima e ela berrou: «Chora à
vontade, minha menina!» Já do andar de cima ouvi bater a porta da rua e
durante várias horas tudo ficou calmo. Antes do jantar, a minha mãe foi ao
meu quarto e fez-me uma série de perguntas delicadas – a única vez em que
o assunto do sexo foi explicitamente levantado entre nós – e eu deixei tão
claro quanto possível que o Sr. Booth nunca tinha posto um dedo em mim
ou em Tracey, nem ele nem ninguém, tanto quanto sabia.
Não serviu de nada: ao fim da semana foi proibido de continuar a tocar
piano na aula de dança de Miss Isabel. Não sei o que lhe aconteceu depois
disso, se continuou a viver no bairro, ou mudou de casa, ou morreu, ou
ficou simplesmente destruído pelos boatos. Pensei na intuição da minha
mãe – «Alguma coisa de grave aconteceu àquela rapariga!» – e senti que,
como de costume, tinha razão, e que, se tivéssemos feito as perguntas certas
a Tracey, no momento certo e com maior delicadeza, talvez ela nos tivesse
contado a verdade. Mas não, escolhemos mal o momento, encostámo-las à
parede, a ela e à mãe, e elas reagiram como seria de prever, com uma fúria
que levou à frente tudo o que encontrou pelo caminho – neste caso o pobre
Sr. Booth. E nós conseguimos uma coisa parecida com a verdade, muito
parecida, mas não exatamente a verdade.
Sexta parte

DIA E NOITE
1

Nesse outono, feitos os exames finais do secundário, entrei na


universidade que era a minha segunda escolha para estudar comunicação
social, a meia milha do calmo e cinzento Canal da Mancha, numa paisagem
que recordava das minhas férias de infância. O mar era orlado por uma
praia de seixos feita de muitas pedras castanhas e tristes, aqui e ali uma
grande, azul-clara, pedaços de conchas brancas, osso de coral, fragmentos
brilhantes fáceis de confundir com coisas de valor que afinal eram apenas
cacos de vidro ou de louça. Levei comigo a minha atitude provinciana,
juntamente com uma planta num vaso e vários pares de sapatos desportivos,
convicta de que todas as pessoas que se cruzassem comigo na rua ficariam
de boca aberta ao verem alguém como eu. Mas alguém como eu não era
afinal uma visão tão rara quanto isso. De Londres e Manchester, de
Liverpool e Bristol, nas nossas calças largas e blusões de ganga, com os
nossos caracolinhos ou cabeças rapadas ou coques bem apertados e a brilhar
de fixador, com a nossa orgulhosa coleção de bonés. Naquelas primeiras
semanas gravitávamos em torno uns dos outros, passeando juntos pela
marginal num grupo defensivo, preparados para os insultos, mas os
habitantes locais nunca se mostravam tão interessados em nós como nós
próprios. O ar salgado gretava-nos os lábios, não havia onde ir arranjar o
cabelo, mas «Andas na faculdade?» era uma pergunta delicada e sincera,
nunca um ataque ao nosso direito de estar ali. E havia outras vantagens,
inesperadas. Aqui tinha uma «bolsa de subsistência», que dava para pagar a
alimentação e a renda, e os fins de semana saíam baratos –
não havia para onde ir nem nada para fazer. Passávamos o tempo livre
juntos, no quarto uns dos outros, fazendo perguntas sobre os nossos
passados, com uma delicadeza que achávamos adequada a pessoas em cujas
árvores genealógicas só se podia recuar um ramo ou dois antes de se
mergulhar na obscuridade. Havia uma exceção, um rapaz, ganês: era
descendente de uma longa linhagem de médicos e advogados e sofria
diariamente por não estar em Oxford. Mas todos os outros, que estávamos
apenas a um passo, no máximo dois, de pais mecânicos e mães mulheres da
limpeza, de avós domésticas e avôs condutores de autocarro,
continuávamos a achar que tínhamos operado o milagre, que éramos os
«primeiros na família a ir», e isso já nos bastava. Se a instituição era quase
tão recente como nós, era mais uma vantagem. Não havia um passado
académico ilustre, não tínhamos de nos desbarretar diante de toda a gente.
As matérias eram relativamente novas – Estudos de Comunicação Social,
Estudos de Género – como novos eram os nossos quartos, e o corpo docente
jovem. Cabia-nos inventar o lugar. Eu pensava em como Tracey se
refugiara cedo naquela comunidade de dançarinos, nos ciúmes que sentira,
mas agora, pelo contrário, sentia alguma pena dela, o seu mundo parecia-
me infantil, uma simples forma de representar com o corpo, ao passo que eu
só tinha de ir até ao fundo do corredor para assistir a uma aula com um
título do género «Pensar o corpo negro: uma dialética», ou dançar
alegremente nos quartos dos meus amigos, até altas horas da noite, e não ao
som dos velhos números musicais, antes ao som da nova música, Gang
Starr ou Nas. Agora, quando dançava, não tinha de obedecer a regras
antigas de posição ou estilo: mexia-me como me apetecia, como os ritmos
queriam que me mexesse. Pobre Tracey: os ensaios madrugadores, a
angústia na balança, as dores no peito dos pés, a submissão do corpo jovem
ao juízo dos outros! Comparada com ela, eu era muito livre. Aqui
ficávamos acordados até tarde, comíamos quanto queríamos, fumávamos
erva. Ouvíamos a idade de ouro do hip-hop, sem nos apercebermos na
altura de que estávamos a viver uma idade de ouro. Aprendia as letras com
quem sabia mais do que eu e levava tanto a sério estas lições informais
quanto aquilo que ouvia nas salas de aula. Era o espírito do tempo:
aplicávamos alta teoria a anúncios de champô, filosofia a vídeos dos
NWA27. No nosso círculo restrito, o importante era sermos «conscientes», e
depois de vários anos a alisar o cabelo à força com o pente aquecido
deixava-o agora frisar e encaracolar livremente, e passei a trazer ao pescoço
um pequeno mapa de África em que os países maiores eram feitos com
retalhos de pele preta e vermelha, verde e dourada. Escrevia trabalhos
longos e emocionados sobre o fenómeno do «Pai Tomás».
Quando, perto do fim daquele primeiro período, a minha mãe veio passar
quatro dias comigo pensei que ela ia ficar muito impressionada com tudo
isto. Mas tinha-me esquecido de que não era bem como os outros, não era
de facto a «primeira da família a ir». Nesta corrida de obstáculos a minha
mãe levava-me um de avanço, e tinha-me esquecido de que aquilo que para
os outros era suficiente para ela nunca era. Passeando juntas pela praia na
derradeira manhã da sua estada, começou uma frase que até eu percebi que
de certo modo lhe escapara, ultrapassando em muito aquela que fora a sua
intenção, mas mesmo assim disse-a, comparou o curso que acabava de
completar com aquele que eu estava a iniciar, disse que a minha faculdade
era um «hotel disfarçado», não era nenhuma universidade, era apenas uma
ratoeira com crédito para estudos destinada a jovens incautos, filhos de pais
que não estudaram, e eu fiquei furiosa, tivemos uma discussão horrível.
Disse-lhe que não se incomodasse a voltar a visitar-me, e ela não voltou.

Pensava que ia ficar inconsolável – como se tivesse cortado cerce o único


cordão que me ligava ao mundo – mas essa sensação nunca chegou. Tinha,
pela primeira vez na minha vida, um namorado, e andava tão
completamente ocupada com ele que achava que podia suportar a perda de
tudo o resto. Era um jovem ponderado, chamado Rakim – tinha adotado o
nome do rapper – e a sua cara, comprida como a minha, tinha um tom de
pele mais escuro, com dois olhos muito penetrantes, muito negros,
incrustados nela, um nariz proeminente e um lábio superior inesperado,
delicadamente feminino, que fazia lembrar Huey P. Newton. Usava rastas
escorridas até aos ombros, Converse All Stars fizesse chuva ou sol, óculos
redondos pequenos à Lennon. Eu achava-o o homem mais belo do mundo.
Ele também se achava. Considerava-se um «cinco por cento», isto é, um
verdadeiro Deus – como Deuses eram todos os filhos varões de África – e a
primeira vez que me explicou o conceito o meu pensamento inicial foi que
devia ser muito agradável uma pessoa considerar-se um Deus vivo, muito
relaxante! Mas não, pelos vistos era um fardo pesado: não era fácil carregar
a verdade enquanto tanta gente vivia na ignorância, oitenta e cinco por
cento das pessoas, para sermos exatos. Mas piores do que os ignorantes
eram os maliciosos, os dez por cento que sabiam tudo quanto Rakim
afirmava saber mas trabalhavam ativamente para denegrir e subverter a
verdade e com isso mais facilmente manterem na ignorância os oitenta e
cinco por cento e terem ascendente sobre eles. (Neste grupo de impostores
perversos Rakim incluía todas as igrejas, a própria Nação do Islão, a
comunicação social, o «sistema».) Tinha na parede um belo cartaz antigo
dos Panthers, em que o grande felino parecia prestes a saltar sobre quem
olhava para ele, e falava frequentemente da vida violenta nas grandes
cidades americanas, do sofrimento do nosso povo em Nova Iorque e
Chicago, em Baltimore e LA, sítios aonde eu nunca havia ido e tinha
dificuldade em imaginar como seriam. Às vezes tinha a impressão de que
esta vida de gueto – apesar de ficar a três mil milhas de distância – era mais
real para ele do que a calma e agradável paisagem marítima em que de facto
vivíamos.
Havia alturas em que a angústia de ser um Poor Righteous Teacher28
chegava a ser esmagadora. Corria as persianas do quarto, fumava erva logo
ao acordar, faltava às aulas, pedia-me encarecidamente que não o deixasse
sozinho, passava horas a estudar o Alfabeto Supremo e a Matemática
Suprema, que aos meus olhos eram apenas cadernos e cadernos de
apontamentos cheios de letras e números em combinações
incompreensíveis. Noutras alturas parecia a pessoa certa para a tarefa de
iluminação global. Sereno e sabedor, sentado no chão com as pernas
cruzadas, distribuindo chá de hibisco pelo nosso pequeno círculo,
«espalhando ciência», meneando suavemente a cabeça ao som do seu
homónimo que se ouvia na aparelhagem. Nunca tinha conhecido um rapaz
como ele. Os rapazes que havia conhecido não tinham paixões, paixões de
verdade, não podiam dar-se a esse luxo: o importante para eles era o ato de
não quererem saber. Estavam numa competição interminável uns com os
outros – e com o mundo – exatamente para demonstrar quem se estava mais
nas tintas, quem entre eles se estava borrifando mais. Era uma forma de
defesa contra a perda, que para eles parecia, de qualquer maneira,
inevitável. Rakim era diferente: tinha todas as paixões à flor da pele, não
conseguia escondê-las, nem sequer tentava – era isso que me seduzia nele.
A princípio não percebi que lhe era muito difícil rir-se. O riso não parecia
apropriado num Deus em forma humana – muito menos na namorada de um
Deus – e provavelmente eu devia ter interpretado isso como um alerta. Em
vez disso, seguia-o devotamente, até aos lugares mais estranhos.
Numerologia! Era apaixonado por numerologia. Ensinava-me a escrever o
meu nome em números, e depois a manipular esses números de uma
determinada forma, de acordo com a Matemática Suprema, até
significarem: «A luta para vencer a divisão interior.» Não compreendia tudo
o que ele dizia – estávamos quase sempre pedrados quando tínhamos estas
conversas – mas compreendia muito bem a divisão que dizia ver no meu
interior, para mim não havia nada mais fácil do que apreender a ideia de que
tinha nascido metade certa e metade errada, sim, desde que não pensasse no
meu pai verdadeiro e no amor que lhe tinha detetava muito facilmente esta
sensação dentro de mim.
Ideias como estas não tinham nada que ver com o trabalho académico de
Rakim, nem tinham cabimento nele: era licenciado em Estudos
Empresariais e Hospitalidade. Mas dominavam o tempo que passávamos
juntos e a pouco e pouco fui-me sentindo debaixo de uma nuvem de
correção permanente. Nada que eu dissesse estava certo. Repugnava-lhe a
comunicação social que eu supostamente estava a estudar – os menestréis e
as matronas dançantes, os artistas do sapateado e as coristas –, não via
utilidade em nada disso, mesmo que a minha perspetiva fosse crítica, tudo
isso era para ele uma coisa oca, um produto da «Hollywood judia», que
incluía, por grosso, naqueles dez por cento de embusteiros. Se tentava
trocar impressões com ele sobre qualquer coisa que estava a escrever – em
especial na presença dos nossos amigos – fazia questão de menosprezar ou
ridicularizar tudo o que eu dizia. Um dia em que estava demasiado pedrada
e havia outras pessoas presentes, cometi o erro de tentar explicar o que
achava que o sapateado tinha de belo – a tripulação irlandesa e os escravos,
marcando a cadência com os pés nos deques de madeira daqueles navios,
intercambiando passos, criando uma forma híbrida –, mas Rakim, também
pedrado e com um humor cruel, levantou-se, revirou os olhos, projetou os
lábios, agitou as mãos como um menestrel e disse: Oh, massa, I’s so happy
in this here slave ship I be dancing for joy29. Olhou-me de lado com os
olhos semicerrados e voltou a sentar-se. Os nossos amigos olharam para o
chão. A humilhação foi intensa: durante meses, a simples lembrança
daquele momento fez-me ruborizar. Mas na altura não o censurei por aquele
comportamento, nem senti que o amava menos por isso: o meu instinto era
sempre assumir a culpa. O meu maior defeito naquele tempo, na perspetiva
dele e na minha, era a minha feminilidade, que não era aquela que devia ser.
A mulher, no sistema de Rakim, estava destinada a ser a «terra», suportava
o homem, que por sua vez era a pura ideia, «espalhava ciência», e eu, no
entender dele, estava longe do lugar onde devia estar, na raiz das coisas.
Não cultivava nem cozinhava, nunca falava em filhos nem em assuntos
domésticos, e competia com Rakim quando e onde devia apoiá-lo. O
romance estava fora do meu alcance: pressupunha uma forma de mistério
pessoal que não era capaz de produzir e me desagradava nos outros. Não
sabia fingir que não me crescem pelos nas pernas e que o meu corpo não
excreta uma grande variedade de substâncias malcheirosas, ou que não
tenho os pés chatos como panquecas. Não sabia fazer jogos de sedução nem
achava que fizessem algum sentido. Não me importava de me vestir bem
para estranhos – quando ia a festas da faculdade ou a clubes em Londres –
mas nos nossos quartos, na nossa intimidade, não sabia ser uma rapariga,
nem a querida de ninguém, apenas uma fêmea humana, e o sexo que
compreendia era aquele que acontece entre amigos e iguais, servindo de
parênteses a uma conversa, como uma prateleira de livros entre dois
suportes. Rakim atribuía estas falhas profundas ao sangue do meu pai, que
me percorria como um veneno. Mas eram também obra minha, da minha
mente, demasiado ocupada consigo mesma. Uma mente citadina, como ele
lhe chamava, que não poderá nunca conhecer a paz, porque não tem nada de
natural em que meditar, apenas cimento e imagens, e imagens de imagens –
«simulacros», como dizíamos na altura. As cidades haviam-me corrompido,
tornando-me máscula. Não sabia eu que as cidades tinham sido construídas
pelos dez por cento? Que eram um instrumento deliberado de opressão? Um
habitat antinatural para a alma africana? A sua fundamentação para esta
teoria era por vezes complexa – conspirações governamentais silenciadas,
diagramas gatafunhados de projetos arquitetónicos, citações obscuras
atribuídas a presidentes e responsáveis políticos em que me faziam acreditar
– e outras vezes simples e acusadora. Sabia os nomes das árvores? Os
nomes das flores? Não? Mas como podia uma africana viver assim? Ele,
pelo contrário, sabia tudo, embora isso se devesse à circunstância – que
preferia omitir – de ser filho da Inglaterra rural, criado primeiro em
Yorkshire e depois em Dorset, em aldeias recônditas, e sempre o único da
sua espécie na rua onde vivia, o único da sua espécie na escola, facto que eu
achava mais exótico do que todo o seu radicalismo, todo o seu misticismo.
Adorava que ele soubesse os nomes dos países e como se ligavam entre si,
os nomes dos rios e o sítio exato onde desaguavam no mar, que soubesse
distinguir uma framboesa de uma amora, um bosque de uma mata. Nunca
na minha vida tinha feito caminhadas sem objetivo, mas agora fazia-as,
acompanhava-o nos seus passeios a pé, pela agreste frente marítima,
descendo até ancoradouros abandonados, e às vezes pelo interior da cidade,
percorrendo as vielas empedradas, atravessando parques, serpenteando pelo
interior de cemitérios e andando ao longo de estradas principais, até tão
longe que acabávamos por chegar a campos de cultivo e deitávamo-nos
neles. Nem nestes longos passeios ele esquecia as suas preocupações.
Usava-as para enquadrar aquilo que víamos, de formas que chegavam a
surpreender-me. A grandiosidade georgiana de um crescente de casas de
frente para o mar, de fachadas brancas como açúcar – casas que tinham
sido, explicava, pagas pelo açúcar, construídas pelo proprietário de uma
plantação da nossa ilha natal, a ilha que nenhum de nós alguma vez havia
visitado. E o pequeno adro onde às vezes nos juntávamos à noite, a fumar e
a beber estendidos na erva, era onde Sarah Forbes Bonetta se tinha casado,
história que contava sempre com tanto entusiasmo que até parecia que tinha
sido ele a casar-se com ela. Eu deitava-me ao seu lado na erva cheia de
gravetos do cemitério e escutava-o. Uma menina africana de sete anos, de
sangue nobre, mas apanhada numa guerra intertribal, raptada por
salteadores do Daomé. Presenciou o assassínio da família, mas mais tarde
foi «resgatada» – palavra que Rakim punha entre aspas desenhadas com os
dedos – por um capitão inglês que convenceu o rei do Daomé a oferecê-la
de presente à rainha Vitória. «Um presente do Rei dos Negros à Rainha dos
Brancos.» Este capitão deu-lhe o sobrenome Bonetta, que era o nome do
seu navio, e quando chegaram a Inglaterra já se tinha apercebido de que se
tratava de uma menina muito esperta, invulgarmente rápida e atenta, tão
inteligente como qualquer rapariga branca, e quando a rainha a conheceu
percebeu exatamente o mesmo, decidindo criar Sarah como sua afilhada,
casando-a, muitos anos depois, quando chegou à idade, com um rico
comerciante ioruba. Foi nesta igreja, dizia Rakim, o casamento aconteceu
exatamente aqui, nesta igreja. Eu soergui-me na relva apoiada nos cotovelos
e olhei para a igreja, tão despretensiosa, com as suas ameias simples e a sua
sólida porta vermelha. «E iam oito damas de honor negras em procissão»,
disse ele, traçando-lhes o trajeto até à porta da igreja com a ponta acesa de
um charro. «Imagina só! Oito negras e oito brancas, e os homens africanos
iam com as raparigas brancas, e os brancos com as raparigas africanas.»
Apesar da escuridão, eu conseguia ver tudo aquilo. Os doze cavalos
cinzentos que puxavam a carruagem, e a magnífica renda cor de marfim do
vestido, e a grande multidão que se juntara para assistir ao espetáculo e
transbordava para o exterior da igreja, invadindo o relvado e todo o espaço
até ao portão alpendrado, de pé em cima dos muros baixos de pedra e
pendurados nas árvores, só para terem um vislumbre dela.

Penso em Rakim a reunir a sua informação naquela altura: nas bibliotecas


públicas, nos arquivos da universidade, lendo aplicadamente jornais
antigos, examinando microfichas, seguindo notas de rodapé. E penso nele
agora, na era da Internet, e em como deve estar perfeitamente feliz, ou
então exausto, à beira da loucura delirante. Agora também eu posso
descobrir num momento o nome daquele capitão, e com o mesmo clique
ficar a saber o que ele pensava da rapariga que ofereceu de presente a uma
rainha. Desde que chegou ao país, tem feito progressos consideráveis no
estudo da língua inglesa e manifesta grande talento musical e uma
inteligência invulgar. Tem o cabelo curto, preto e encaracolado, fortemente
indicativo da sua origem africana; enquanto as suas feições são agradáveis
e bonitas, e os seus modos e comportamento são cordatos e afáveis para
todas as pessoas que a rodeiam. Sei agora que o seu nome ioruba é Aina, o
que significa «parto difícil», sendo o nome que é dado a uma criança que
nasce com o cordão umbilical enrolado no pescoço. Estou a imaginar uma
foto de Aina num espartilho vitoriano de pescoço alto, rosto fechado e
corpo perfeitamente imóvel. Lembro-me de que Rakim tinha um refrão,
sempre orgulhosamente declamado, com o lábio superior a descobrir os
dentes: «Nós também temos os nossos reis! Nós também temos as nossas
rainhas!» Eu anuía com a cabeça para preservar a paz, mas a verdade é que
havia uma parte de mim que se insurgia sempre. Porque é que ele achava
tão importante que eu soubesse que Beethoven dedicou uma sonata a um
violinista mulato, ou que a dama negra de Shakespeare era mesmo negra,
ou que a rainha Vitória se havia dignado criar uma criança de África, «tão
inteligente como qualquer rapariga branca»? Não queria depender de cada
facto europeu que tivesse a sua sombra africana, como se sem os andaimes
do facto europeu tudo quanto era africano pudesse desfazer-se em pó nas
minhas mãos. Não me dava prazer nenhum ver aquela rapariga de feições
doces vestida como um dos filhos de Vitória, imobilizada numa fotografia
formal, com um novo tipo de cordão em volta do pescoço. Sempre preferi a
vida – o movimento.

Num domingo modorrento, Rakim exalou uma baforada de fumo e pôs-se


a falar em ir ver um «filme a sério». Era francês, passava nesse dia no
cineclube da faculdade e durante toda a manhã tínhamos feito em pedaços
um panfleto que o anunciava, usando a cartolina brilhante para fazer muitas
boquilhas pequenas para os nossos cigarros de erva. Mas ainda dava para
ver a cara de uma rapariga escura de lenço azul na cabeça que, afirmava
agora Rakim, era parecida comigo, ou eu com ela. Olhava diretamente para
mim com o que lhe restava do olho direito. Atravessámos penosamente o
campus em direção à sala multimédia e sentámo-nos nas desconfortáveis
cadeiras de dobrar. Começou o filme. Mas com o nevoeiro que me toldava a
cabeça era-me muito difícil perceber o que estava a ver, parecia feito de
muitos pedaços pequenos, como um vitral, e não sabia quais eram as partes
importantes ou em que cenas Rakim achava que devia concentrar-me, se
bem que talvez todos os presentes sentissem o mesmo, talvez faça parte do
efeito daquele filme que cada espectador veja nele uma coisa diferente. Não
sei o que Rakim via. Eu via tribos. Muitas tribos diferentes, de todos os
cantos do mundo, agindo de acordo com as regras internas dos seus grupos
e depois reunidas num mosaico complexo que na altura parecia ter uma
lógica muito própria. Via raparigas japonesas em traje tradicional, dançando
em formação, fazendo movimentos estranhamente hip-hop em cima dos
seus altos geta. Cabo-verdianos à espera, com uma paciência intemporal e
perfeita, de um barco que podia vir ou não vir. Via crianças de cabelo loiro
muito claro descendo uma estrada deserta na Islândia, numa terra pintada de
preto por cinzas vulcânicas. Ouvia uma voz feminina, dobrada e sem corpo,
falar sobre estas imagens, estava a comparar o tempo africano com o tempo
na Europa e o tempo tal como é vivido na Ásia. Dizia que há cem anos a
espécie humana foi confrontada com a questão do espaço, mas que o
problema do século XX era a existência simultânea de diferentes noções de
tempo. Olhei para Rakim. Estava a tomar notas no escuro,
irremediavelmente pedrado. Chegou um ponto em que as simples imagens
eram de mais para ele, só conseguia ouvir a voz da mulher e tomar notas,
cada vez mais depressa à medida que o filme avançava, até ter escrito no
bloco metade do guião.
Para mim o filme não tinha princípio nem fim, o que não era uma
sensação desagradável, apenas misteriosa, como se o próprio tempo se
tivesse expandido para acolher este desfile infinito de tribos. Ia por ali fora,
recusando-se a chegar ao fim, houve partes em que confesso que dormi,
acordando num solavanco quando o queixo me batia no peito, altura em que
levantava os olhos e deparava com uma imagem bizarra – um templo
consagrado aos gatos, Jimmy Stewart a correr atrás de Kim Novak por uma
escada de caracol acima –, imagens que eram ainda mais estranhas por não
ter acompanhado o que se passava antes e não ir ver o que vinha depois. E
num destes intervalos de lucidez entre acordar e adormecer ouvi mais uma
vez aquela voz sem corpo falar da indestrutibilidade essencial das mulheres,
e da relação dos homens com essa indestrutibilidade. Porque a missão dos
homens, dizia, é impedir as mulheres de tomarem consciência da sua
indestrutibilidade, e durante tanto tempo quanto possível. Sempre que
acordava com um sobressalto sentia a impaciência de Rakim comigo, a sua
necessidade de me corrigir, e começava a recear o genérico final, imaginava
a exata intensidade e extensão da discussão que se seguiria ao filme,
naquele momento perigoso em que estivéssemos fora do cinema, de
regresso ao quarto dele e sem testemunhas por perto. Desejava que aquele
filme nunca acabasse.

Passados uns dias cortei com Rakim, cobardemente, sob a forma de uma
carta que lhe meti por baixo da porta. Nela assumia a culpa e dizia que
esperava que pudéssemos ser amigos, mas ele respondeu-me com outra,
escrita a tinta vermelha lívida, dizendo-me que sabia que eu fazia parte dos
dez por cento, e que daí em diante iria estar de atalaia contra mim. E
cumpriu a palavra. Durante o resto da minha vida na faculdade dava meia-
volta se me via aproximar-me, atravessava a rua se me avistava na cidade,
saía de qualquer sala de aula em que eu entrasse. Dois anos depois, na
cerimónia de entrega dos diplomas, uma mulher branca atravessou o salão
em passo acelerado e agarrou a minha mãe por um braço e disse: «Bem me
parecia que era a senhora – a senhora é uma inspiração para os nossos
jovens, é mesmo – mas tenho tanto prazer em conhecê-la! E este é o meu
filho.» A minha mãe virou-se com o rosto já marcado por uma expressão
que eu conhecia bastante bem – condescendência amável misturada com
orgulho, a mesma expressão que agora punha muitas vezes quando aparecia
na televisão, sempre que era chamada para «falar por quem não tem voz».
Estendeu a mão para cumprimentar o filho da mulher branca, que a
princípio não queria sair de trás da mãe e quando saiu fê-lo de olhos no
chão, com as rastas finas a encobrir-lhe a cara, mas mesmo assim eu
reconheci-o imediatamente, pelas Converse All Stars que espreitavam por
baixo do traje académico.
27 Niggaz Wit Attitudes. (N. do T.)

28 Poor Righteous Teachers: Grupo de hip-hop que promove a consciencialização dos negros. (N. do
T.)

29 «Oh, patrão, sou tão feliz neste navio de escravos que estou a dançar de alegria.» (N. do T.)
2

Na minha quinta visita fui sozinha. Atravessei o aeroporto em passo


decidido, saí para o calor, com uma exaltante sensação de competência. À
minha esquerda, à minha direita, estavam os perdidos e os temerosos:
turistas a caminho da praia, evangelistas com enormes T-shirts e todos os
compenetrados antropólogos alemães. Não havia nenhum representante
para me conduzir ao meu veículo. Não estava à espera do «resto do meu
grupo». Tinha as moedas preparadas para os deficientes do parque de
estacionamento, o dinheiro para o táxi já no bolso de trás das calças, a
minha meia dúzia de frases. Nakam! Jamun gam? Jama rek! Os tempos do
caqui e do linho amarrotado já pertenciam a um passado distante. Calças
pretas de ganga, blusa preta de seda e grandes argolas douradas a balançar
nas orelhas. Estava convencida de que já dominava o tempo local. Agora
sabia quanto tempo levava a chegar ao ferry conforme a hora do dia, para
que quando o meu táxi parasse no cais já centenas de pessoas tivessem feito
a espera por mim e só precisasse de sair do carro e embarcar. O navio
afastou-se da costa. No convés superior o balanço atirou-me para a frente,
através de três camadas de pessoas encostadas à amurada, feliz por estar ali,
como alguém que é lançado para os braços de quem ama. Olhei lá para
baixo a apreciar a vida e o movimento: gente aos encontrões, frangos
esganiçados, golfinhos saltando na espuma, chatas balouçando na nossa
esteira, cães famintos correndo pela praia. Aqui e ali avistei aquilo que
agora sabia serem tablighi, de calças curtas a adejar em volta dos
tornozelos, porque se fossem mais compridas sujavam-se, e as orações de
quem anda sujo não são atendidas, e por isso acabam por lhes arder os pés
no inferno. Mas além da indumentária era de facto a calma que os
distinguia. No meio de toda aquela azáfama tinham um ar tranquilo, lendo
os seus livros de orações ou sentados em silêncio, muitas vezes com os
olhos debruados a kohl fechados e um sorriso beatífico aninhado nas barbas
manchadas de hena, tão pacíficos em comparação com todos os outros.
Talvez estivessem a sonhar com a sua iman30 pura e moderna: pequenas
famílias nucleares rezando a Alá em apartamentos discretos, louvores sem
magia, acesso direto a Deus sem intermediários locais, circuncisões
esterilizadas em hospitais, bebés nascidos sem danças celebrativas,
mulheres que não pensavam em combinar um hijab rosa-forte com uma
minissaia de licra verde-lima. Pensei em como devia ser difícil manter este
sonho, neste momento, neste ferry, rodeados pela fé descontrolada no dia a
dia.
Sentei-me num banco. À minha esquerda estava um daqueles jovens
espirituais, de olhos fechados, apertando contra o peito um tapete de oração
dobrado. Do outro lado, uma rapariga muito produzida, com dois pares de
sobrancelhas – um par estranhamente pintado por cima do outro – que
remexia entre as mãos um saquinho de cajus. Passei em revista todos os
meses decorridos entre a minha primeira viagem de ferry e esta. A
Illuminated Academy for Girls31 – que por conveniência, e para poupar
toda a gente à vergonha de o pronunciar, abreviámos, sem Aimee saber,
para IAG – tinha sobrevivido ao seu primeiro ano. Tinha singrado, se
medíssemos o êxito em colunas de jornal. Para nós tinha sido uma provação
periódica, intensa sempre que as visitas aconteciam ou uma crise trazia o
contestado diretor da escola às nossas salas de reuniões em Londres ou
Nova Iorque através de atribulada videoconferência. Estranhamente distante
no resto do tempo. Tive muitas razões para recordar Granger, em Heathrow,
na noite do nosso primeiro regresso, passando-me um braço pelos ombros
na fila para a alfândega: «Agora nada disto me parece real! Alguma coisa
mudou. Não podemos ser os mesmos depois de termos visto o que vimos!»
Passados uns dias, porém, era exatamente a mesma pessoa, todos nós
éramos: deixávamos torneiras abertas, abandonávamos garrafas de plástico
ao fim de alguns goles, comprávamos um par de calças de ganga pelo valor
de um ano de salário de um professor estagiário. Se Londres era irreal, se
Nova Iorque era irreal, eram poderosas realizações cénicas: mal voltávamos
a integrar-nos nelas não só nos pareciam reais como a única realidade
possível, e as decisões relativas à aldeia tomadas nestas cidades tinham
sempre uma certa aparência de plausibilidade enquanto estávamos a tomá-
las, e só mais tarde, quando regressávamos ao local, e atravessávamos o rio,
é que se tornava evidente o absurdo da decisão, fosse ela qual fosse. Há
quatro meses, por exemplo, havia parecido importante, em Nova Iorque,
ensinar a teoria da evolução a estas crianças – e respetivos professores –
que na sua maioria nunca tinham ouvido sequer o nome de Darwin. Na
aldeia isso parecia muito menos prioritário, quando chegávamos em plena
estação das chuvas e deparávamos com um terço das crianças com malária,
metade do teto de uma sala de aula caído, o contrato de instalação de
sanitários por cumprir e os circuitos da eletricidade produzida pelos painéis
solares enferrujados e danificados. Mas o nosso maior problema, tal como
Fern previra, não eram propriamente as nossas ilusões pedagógicas, mas
sim a inconstância da atenção de Aimee. A sua nova fixação era a
tecnologia. Tinha começado a passar grande parte do seu tempo livre com a
gente brilhante de Silicon Valley, e fazia questão de considerar que fazia
parte dessa tribo, «basicamente uma nerd». Havia-se tornado muito recetiva
à visão que eles tinham de um mundo transformado – salvo – pela
tecnologia. No primeiro assomo desta nova fixação não abandonou a IAG
nem o combate à pobreza, mas enxertou a nova preocupação nas antigas,
por vezes com resultados alarmantes («Vamos dar um computador portátil a
cada uma destas pobres raparigas: isso vai ser o seu caderno de exercícios,
isso é a sua biblioteca, o seu professor, o seu tudo!»). Ideia a que Fern teve
de dar um simulacro de realismo. Passou «no terreno» não apenas algumas
semanas, mas temporadas inteiras, em parte por afeição à aldeia e por
empenhamento em cumprir bem o seu papel, mas também, sabia eu, para
evitar trabalhar de perto com Aimee, preferindo fazê-lo a quatro mil milhas
de distância. Viu o que mais ninguém via. Apercebeu-se do crescente
ressentimento dos rapazes, que tinham sido deixados a estiolar na escola
velha, que – apesar de algum dinheiro que esporadicamente Aimee lhe
deitava para cima – agora era pouco mais do que uma vila fantasma, onde
as crianças se sentavam em círculos à espera de professores há tanto tempo
sem salário que tinham deixado de ir trabalhar. Parecia que o governo
também tinha abandonado a aldeia: muitos outros serviços que até então
funcionavam bem, ou pelo menos razoavelmente, definhavam agora
cruelmente. A clínica não tinha sido reaberta, um enorme buraco na estrada
mesmo à entrada da aldeia tinha-se transformado numa cratera funda.
Relatórios de uma equipa de cientistas ambientais italianos sobre níveis
perigosos de pesticidas na água dos poços eram ignorados apesar dos
constantes alertas de Fern junto dos ministérios competentes. Talvez estas e
outras coisas tivessem acontecido de qualquer maneira. Mas era difícil não
suspeitar que a aldeia tinha sido castigada pela sua ligação a Aimee, ou
deliberadamente deixada ao abandono na esperança de que o dinheiro de
Aimee preenchesse as lacunas.
Havia um problema que não estava escrito em nenhum dos relatórios,
mas de que tanto Fern como eu tínhamos perfeita consciência, embora o
sentíssemos de posições opostas. Já nenhum de nós perdia tempo a discuti-
lo com Aimee. («Então e se eu o amar?» foi a única resposta dela quando os
dois juntámos esforços, por teleconferência, numa tentativa de intervenção.)
O que fazíamos era evitá-la, fazendo intercâmbio de informações como dois
detetives privados a trabalhar no mesmo caso. Provavelmente fui eu a
primeira a detetá-lo, em Londres. Estava constantemente a interromper
trocas de meiguices, ao computador, ao telemóvel, sempre fechado ou
desligado no momento em que eu entrava em qualquer sala. Depois perdeu
o acanhamento. Quando ele fez o teste da SIDA que ela o mandara fazer,
ficou tão contente que me falou no assunto. Habituei-me a ver a cabeça sem
corpo de Lamin num canto do ecrã, sorrindo-me, falando-nos em direto,
presumia eu, do único café com Internet que havia em Barra. De manhã
falava com os filhos dela enquanto tomavam o pequeno-almoço e despedia-
se deles quando chegavam os tutores. Aparecia ao jantar, como se fosse
mais um convidado à mesa. Começou a ser incluído em reuniões, naquelas
ridiculamente «criativas» («Que achas deste corpete, Lam?»), mas também
nas sérias com os contabilistas, o diretor comercial, o pessoal das RP. Do
lado de Fern a situação era menos desconfortavelmente romântica, mais
concreta: a casa de Lamin recebeu uma porta nova, depois uma retrete,
depois divisórias interiores, por fim um telhado novo. Nada disto passava
despercebido. Um televisor de ecrã plano havia sido o mais recente motivo
de celeuma. «O Al Kalo convocou uma reunião na terça-feira para discutir
o assunto», informou-me Fern, quando lhe telefonei a dizer que o avião ia
levantar. «O Lamin estava em Dacar, de visita à família. Compareceram
principalmente os jovens. Estava toda a gente muito indignada. Resumiu-se
tudo a uma longa conversa sobre como e quando o Lamin tinha aderido aos
Illuminati...»
Estava a enviar uma mensagem a Fern, para lhe dar a minha localização
mais recente, quando ouvi um burburinho do outro lado da casa das
máquinas, olhei para cima e vi corpos em debandada, dirigindo-se às
escadas, para fugirem a um homem magro e esvoaçante que agora era
visível, aos gritos, agitando os braços escanzelados, num estado de grande
agitação. Virei-me para o homem à minha esquerda: mantinha-se impávido,
de olhos fechados. A mulher à minha direita levantou os dois pares de
sobrancelhas e disse: «Ai, um bêbedo.» Apareceram dois soldados que
rapidamente lhe caíram em cima, agarraram-no pelos braços frenéticos e
tentaram obrigá-lo a sentar-se num banco um pouco afastado do nosso, mas
de cada vez que as suas nádegas estreitas tocavam no assento dava um salto
como se a madeira estivesse a arder, e por isso o plano foi alterado, desta
vez arrastaram-no até à entrada da casa das máquinas, mesmo na minha
frente, e tentaram forçá-lo a entrar pela porta estreita e descer os degraus
escuros para onde mais ninguém o visse. Percebi então que era epilético, vi
a espuma acumular-se-lhe aos cantos da boca – e a princípio pensei que era
isso que eles não compreendiam. Enquanto lhe despiam a T-shirt à força
não parei de berrar «Epilético! Ele é epilético!» Até que quatro
sobrancelhas me explicaram: «Eles sabem, mana.» Sabiam, mas do seu
arsenal não faziam parte movimentos delicados. Eram soldados que só
tinham recebido instrução em brutalidade. Quanto mais convulsões o
homem tinha, quanto mais espumava, mais furiosos eles ficavam, e ao cabo
de uma luta breve na soleira da porta, em que de repente o homem teve uma
convulsão tão forte que ficou com os membros inteiriçados como um bebé
que recusa que o mudem de sítio, empurraram-no a pontapé pelas escadas
abaixo, entraram e fecharam a porta. Ouvimos ruídos de luta, e gritos
horríveis, séries de murros com um som cavo. Depois, silêncio. «Que é que
estão a fazer ao pobre homem?», clamou a mulher das quatro sobrancelhas
ao meu lado, mas quando a porta voltou a abrir-se baixou os olhos e voltou
aos seus cajus, e eu não disse nenhuma das coisas que pensei que ia dizer, e
a multidão dispersou e os soldados desceram as escadas exteriores sem
problemas. Nós éramos os fracos e eles os fortes, e se existe alguma força
capaz de mediar entre os fracos e os fortes ela não estava presente, nem no
ferry nem no país. Só quando os soldados estavam fora do nosso campo
visual é que o tablighi que ia sentado ao meu lado – acompanhado por
outros dois homens – entrou na casa das máquinas e trouxe o epilético de
regresso à luz. O tablighi deitou-o com cuidado em cima das suas pernas:
parecia a pietà. Sangrava pelas gretas dos olhos, mas estava vivo e calmo.
Libertaram uma parte do banco para ele, e durante o resto da travessia foi
ali deitado, sem camisa, gemendo baixinho, até atracarmos, altura em que
se pôs de pé como qualquer outro passageiro, desceu as escadas e
desapareceu no meio da multidão que ia para Barra.

Como fiquei contente por ver Hawa, sinceramente contente! Era hora de
almoço quando abri a porta com um pontapé, e também era a época do caju.
Estava toda a gente disposta em círculos de cinco ou seis, acocorados em
volta de grandes alguidares de castanhas enegrecidas pelo fogo que agora
era preciso retirar das cascas queimadas e deitar para uma série de baldes
estampados de cores garridas. Até as crianças muito pequenas sabiam fazer
aquilo, pelo que toda a gente participava, mesmo quem fosse incompetente,
como Fern, que estava a ser alvo da chacota de Hawa por ter um monte de
cascas muito pequeno.
«Olha só para ti! Pareces a Beyoncé! Bem, espero que não tragas as
unhas muito arranjadas, minha menina, porque vais ter de mostrar aqui ao
pobre Fern como se faz. Até o Mohammed tem um monte maior do que ele
– e tem três anos!» Abandonei à porta a única mochila que trazia – também
já tinha aprendido a fazer uma mala – e fui envolver num abraço as costas
estreitas e fortes de Hawa. «Ainda nada de bebés?», sussurrou-me ela ao
ouvido, e eu sussurrei de volta a mesma pergunta, e abraçámo-nos ainda
com mais força e rimo-nos para o pescoço uma da outra. Para mim era
muito surpreendente que se tivesse gerado entre nós as duas uma ligação
tão forte, que atravessava continentes e culturas, mas era assim mesmo.
Porque da mesma forma que, em Londres e Nova Iorque, o mundo de
Aimee – e portanto o meu – havia eclodido em filhos, os dela e os das
amigas dela, tratando deles e conversando sobre eles, a ponto de mais nada
parecer existir além dos partos, e não apenas no domínio privado, mas
também todos os jornais, a televisão, canções esparsas numa ou noutra
rádio, me pareciam obcecadas com o tema da fertilidade em geral e da
fertilidade de mulheres como eu em particular, também Hawa estava sob
pressão na aldeia, à medida que o tempo passava e as pessoas se
convenciam de que o polícia de Banjul era uma simples manobra de
diversão, e de que Hawa era um novo tipo de rapariga, talvez não
circuncidada, sem dúvida solteira, sem filhos nem planos imediatos para os
ter. «Ainda nada de bebés?» tinha-se transformado no nosso código e refrão
para tudo isto, a nossa situação mútua, e sempre que trocávamos a frase
entre nós parecia a coisa mais divertida do mundo, ríamos e rosnávamos por
causa dela, e só de vez em quando me ocorria – e só quando estava de
regresso ao meu mundo – que tinha trinta e dois anos e Hawa era dez anos
mais nova.
Fern levantou-se do seu fracasso com os cajus e limpou a cinza das mãos
às calças: «Ela voltou!»
Trouxeram-nos imediatamente o almoço. Comemos a um canto do pátio,
com os pratos em cima dos joelhos, ambos com tanta fome que nem
reparámos que mais ninguém ia fazer um intervalo no descasque do caju
para almoçar.
«Estás com muito bom aspeto», disse Fern, com um grande sorriso.
«Muito feliz.»
A porta de zinco das traseiras da morança estava escancarada,
proporcionando uma vista das terras da família de Hawa. Vários acres de
cajueiros em tons púrpura, mato amarelo-claro e montes de cinza negra que
marcavam o sítio onde Hawa e as avós queimavam, uma vez por mês,
enormes piras de lixo doméstico e plásticos. Era, por assim dizer,
simultaneamente luxuriante e árido, e eu via beleza nesta mistura. Concluí
que Fern tinha razão: neste sítio era feliz. Com trinta e dois anos e três
meses, estava finalmente a ter o meu ano de folga.
«Mas o que é um “ano de folga”?»
«Olha, é quando somos jovens e vamos passar um ano a um país distante,
para aprender os seus costumes, comungar com a... comunidade. Nós nunca
pudemos dar-nos a esse luxo.»
«Quem? A tua família?»
«Sim, também, mas... estava a referir-me especificamente a mim e à
minha amiga Tracey. Costumávamos vê-los partir e quando regressavam
moíamos-lhes o juízo.»
Ri-me sozinha com esta recordação.
«“Moer o juízo”? Que é isso?»
«Olha, chamávamos-lhes “turistas da pobreza”... Sabes aqueles
estudantes que voltavam do ano de folga com aquelas estúpidas calças
étnicas e estatuetas africanas “esculpidas à mão”, caríssimas, feitas numa
fábrica qualquer do Quénia... Achávamo-los uns perfeitos idiotas.»
Mas talvez Fern tivesse sido um desses jovens viajantes hippies e
otimistas. Suspirou e levantou a tigela do chão para assim a poupar à
curiosidade de uma cabra.
«Que cínicas vocês eram... tu e a tua amiga Tracey.»
O descasque do caju ia continuar pela noite fora. Para não ter de ajudar,
sugeri uma caminhada até ao poço, com a desculpa esfarrapada de ir buscar
água para um duche matinal, e Fern, por norma tão consciencioso,
surpreendeu-me dizendo que me acompanhava. Pelo caminho contou-me a
história de uma visita a Musa, primo de Hawa, para se inteirar da saúde de
mais um filho. Quando lá chegou, a uma casa pequena, muito rudimentar,
que o próprio Musa havia construído no limite da aldeia, encontrou Musa
sozinho. A mulher e os filhos tinham ido visitar a mãe dela.
«Convidou-me a entrar, acho que se sentia um pouco sozinho. Reparei
que tinha uma pequena TV antiga com VHS incorporado. Fiquei admirado,
ele é sempre tão frugal, como todos os mashala, mas disse-me que uma
mulher do Corpo da Paz que ia regressar aos Estados Unidos lha tinha
deixado. Fez questão de me dizer que nunca via filmes de Nollywood nem
nenhuma das telenovelas nem nada desse tipo, isso era dantes. Agora só
“filmes puros”. Queria ver um? Eu disse que sim. Sentamo-nos, e basta-me
um minuto para perceber que é um daqueles vídeos de treino que vinham do
Afeganistão, rapazes todos vestidos de preto dando saltos mortais à
retaguarda com Kalashnikovs... E disse-lhe: “Ó Musa, tu percebes o que
dizem neste vídeo?” Porque havia uma lengalenga incessante em árabe –
como podes imaginar – e via-se mesmo que ele não entendia uma palavra.
E ele responde, com ar sonhador: “Gosto muito de os ver saltar!” Penso que
para ele aquilo era como um belo vídeo de dança. Um vídeo de dança
radical islâmica! Disse-me: “A forma como se movimentam dá-me vontade
de ser mais puro por dentro.” Pobre Musa. Mas pronto, achei que ias achar
graça. Porque sei que te interessas por dança», acrescentou, quando viu que
eu não me ria.
30 Crença nos seis artigos de fé do islamismo. (N. do T.)
31 Academia Iluminada para Raparigas. (N. do T.)
3

O primeiro email que recebi na minha vida veio da minha mãe. Enviou-
mo de um laboratório de informática na cave do University College de
Londres, onde acabava de participar num debate público, e eu recebi-o na
biblioteca da minha universidade. O conteúdo era um único poema de
Langston Hughes: obrigou-me a recitá-lo todo quando lhe telefonei nessa
mesma noite, para provar que tinha recebido o email. When night comes on
gently, Dark like me32 – O nosso curso foi o primeiro a receber endereços
eletrónicos, e a minha mãe, sempre atenta às inovações, comprou um
Compaq velho e maltratado, a que ligou um modem intermitente. Entrámos
juntas neste espaço novo que agora se abria às pessoas, uma ligação sem
princípio nem fim definidos, que estava sempre potencialmente aberta, e a
minha mãe foi uma das primeiras pessoas que conheci que compreenderam
isto e aproveitarem-no em pleno. A maioria dos emails enviados em
meados dos anos noventa eram tendencialmente longos e parecidos com
cartas: começavam e terminavam com fórmulas de saudação tradicionais –
as mesmas que antes se usavam em papel – e faziam questão de descrever o
cenário envolvente, como se o novo meio de comunicação tivesse feito de
cada pessoa um escritor. («Estou a escrever isto junto à janela, olhando o
mar cinzento-azulado, onde três gaivotas estão a mergulhar na água.») Mas
a minha mãe não escrevia emails assim, apanhou-lhes imediatamente o
jeito, e quando eu já tinha deixado a universidade havia algumas semanas,
mas continuava à beira do mar cinzento-azulado, começou a enviar-me
múltiplas mensagens de duas ou três linhas por dia, quase sem pontuação, e
sempre dando a sensação de uma coisa escrita a grande velocidade. Eram
todas sobre o mesmo: quando estava a pensar voltar? Não queria dizer ao
velho bairro social, tinha-se mudado de lá no ano anterior. Agora vivia num
bonito apartamento de rés do chão em Hampstead, com o homem a quem o
meu pai e eu nos habituáramos a chamar «o Destacado Ativista», glosando
um parêntese habitual da minha mãe («Estou a escrever um trabalho com
ele, é um destacado ativista, provavelmente já ouviste falar dele, não?», «É
um homem absolutamente maravilhoso, somos muito próximos, e, claro, é
um destacado ativista»). O Destacado Ativista era um bonito tobaguiano, de
ascendência indiana, com uma barbicha prussiana e uma abundante
cabeleira preta penteada para trás de modo a realçar uma única madeixa
branca. A minha mãe tinha-o conhecido dois anos antes numa conferência
antinuclear. Tinha participado em marchas de protesto com ele, escrito
trabalhos académicos sobre ele – e depois com ele – antes de passar a beber
com ele, jantar com ele, dormir com ele e agora ir viver com ele. Eram
frequentemente fotografados, de pé entre os leões de Trafalgar Square,
discursando um a seguir ao outro – como Sartre e Beauvoir, só que muito
mais bonitos – e agora, quando o Destacado Ativista era chamado a falar
por quem não tem voz, em manifestações ou em conferências, a minha mãe
estava quase sempre ao lado dele, no seu novo papel de «autarca e ativista
de base». Havia um ano que estavam juntos. Durante esse tempo a minha
mãe tinha-se tornado razoavelmente conhecida. Uma das pessoas a quem o
produtor de um programa de rádio podia telefonar pedindo-lhe que
participasse num debate de pendor esquerdista a realizar nesse dia. Talvez
não fosse o primeiro nome da lista, mas, se o presidente da União de
Estudantes, o diretor da New Left Review e o porta-voz da Aliança
Antirracista estivessem todos ocupados, podiam contar com a quase
permanente disponibilidade da minha mãe e do Destacado Ativista.
Tentei sinceramente ficar feliz por ela. Sabia que era aquilo que sempre
tinha desejado. Mas é difícil, a uma pessoa que está sem perspetivas, sentir-
se feliz por outra, e além disso sentia-me infeliz pelo meu pai, e mais ainda
por mim mesma. A perspetiva de voltar a viver com a minha mãe parecia
anular o pouco que tinha conseguido em três anos. Mas não podia
sobreviver por muito mais tempo com o meu crédito para estudos.
Deprimida, enquanto desocupava o quarto, folheando os meus inúteis
trabalhos escolares, olhei para o mar e senti que estava a acordar de um
sonho, que isso era tudo o que a faculdade havia sido para mim, um sonho,
situado a uma distância demasiado grande da realidade, ou pelo menos da
minha realidade. Mal tinha acabado de devolver o traje académico alugado
e já colegas que não pareciam muito diferentes de mim estavam de partida
para Londres, imediatamente, alguns para o meu bairro, ou outros
parecidos, de que falavam em termos arrebatados, como se fossem
fronteiras bravias a conquistar. Partiam de depósito na mão, para darem
como caução por andares ou mesmo moradias, aceitavam estágios não
remunerados ou concorriam a empregos em que por acaso o entrevistador
era um antigo colega do pai na universidade. Eu não tinha planos, nem
depósito, nem ninguém que pudesse morrer e deixar-me dinheiro: os poucos
parentes que tínhamos eram todos mais pobres do que nós. Não tínhamos
nós sido os de classe média, em matéria de aspirações e na prática? E talvez
para a minha mãe este sonho fosse a verdade, e pelo simples facto de o
sonhar sentisse que o tinha concretizado. Mas agora eu estava acordada, e
via com clareza: havia factos que eram imutáveis, inevitáveis. Por exemplo:
olhasse para elas por que ângulo olhasse, as oitenta e nove libras que tinha
no banco eram todo o meu dinheiro. Fazia refeições de feijão cozido sobre
pão torrado, enviava duas dúzias de cartas de candidatura, esperava.
Sozinha numa terra de onde toda a gente já se tinha ido embora, sobrava-
me tempo para matutar. Comecei a ver a minha mãe de um ângulo novo,
ácido. Uma feminista que sempre tinha sido apoiada por homens – primeiro
o meu pai e agora o Destacado Ativista – e que, apesar de estar sempre a
dar-me sermões sobre a «nobreza do trabalho», nunca, que eu soubesse,
havia tido um emprego que a sustentasse. Trabalhava «para o povo» – não
tinha salário. O meu receio era que o mesmo se pudesse dizer, mais ou
menos, do Destacado Ativista, que aparentemente tinha escrito muitos
panfletos, mas nenhum livro, e não tinha nenhum cargo oficial na
universidade. Pôr todos os ovos no mesmo cesto, abrir mão do nosso
apartamento – a única segurança que alguma vez conhecêramos – para ir
viver com ele em Hampstead, exatamente no tipo de fantasia burguesa que
sempre censurara, era para mim um sinal de má-fé e ao mesmo tempo de
irresponsabilidade extrema da parte dela. Todas as noites ia à marginal, a
uma cabine telefónica degradada que pensava que as moedas de dois pence
eram de dez, e tinha muitas conversas mal-humoradas com ela sobre o
assunto. Mas a única mal-humorada era eu, a minha mãe estava apaixonada
e feliz, cheia de afeto por mim, o que ainda lhe tornava mais difícil fixar-se
em pormenores práticos. Qualquer tentativa de discutir a situação financeira
exata do Destacado Ativista, por exemplo, valia-me respostas evasivas ou a
mudança de assunto. A única coisa sobre a qual estava sempre pronta a
falar era o apartamento de três quartos dele, aquele para onde queria que eu
fosse viver, comprado por vinte mil libras em 1969 com o dinheiro da
herança de um tio falecido e que agora valia «muito mais de um milhão».
Era um facto que, não obstante as suas tendências marxistas, nitidamente
lhe dava uma enorme sensação de prazer e bem-estar.
«Ó mãe, mas ele não vai vendê-lo, pois não? Portanto, isso é irrelevante.
Com os dois pombinhos lá dentro não vale nada.»
«Ouve. Porque é que não te metes no comboio e vens cá jantar? Quando o
conheceres vais adorá-lo – toda a gente adora este homem. Vão ter muito
que conversar, vocês os dois. Conheceu o Malcolm X! É um destacado
ativista...»
Mas ele, como tanta gente cuja vocação é mudar o mundo, pessoalmente
revelou-se terrivelmente mesquinho. O nosso primeiro encontro não foi
dominado por nenhuma conversa política ou filosófica, mas sim por uma
longa diatribe contra o vizinho do lado, também ele caribenho, que, ao
contrário do nosso anfitrião, era rico, tinha muitas obras publicadas, um
lugar numa universidade americana, era dono do resto do prédio e estava a
construir «uma porra de uma espécie de pérgula» no extremo do jardim.
Isto iria tapar ligeiramente a vista do Destacado Ativista para o Heath, e
depois do jantar, enquanto o sol de junho se punha finalmente, pegámos
numa garrafa de Wray & Nephew e, num ato de solidariedade, fomos para o
jardim olhar para a coisa semiconstruída. A minha mãe e o Destacado
Ativista sentaram-se à mesinha de ferro forjado, e lentamente enrolaram e
fumaram um cigarro de erva mal-amanhado. Eu exagerei no rum. A certa
altura o ambiente tornou-se melancólico e todos olhámos para os lagos, e
para além dos lagos, para o Heath propriamente dito, enquanto os
candeeiros vitorianos se acendiam e o panorama se esvaziava de tudo
menos dos patos e dos homens aventureiros. A luz dos candeeiros dava à
relva um tom laranja de purgatório.
«Imagina dois miúdos da ilha como nós, dois pés-descalços vindos do
nada, acabarem aqui...», murmurou a minha mãe, e deram-se as mãos e
encostaram as testas e eu, olhando para eles, senti que, se eles eram
absurdos, muito mais absurda era eu, uma mulher adulta, indignada com
outra mulher adulta que, bem vistas as coisas, havia feito tanto por mim,
por si própria e sim, pelo seu povo, e tudo, como bem dizia, vinda do nada
absoluto. Estaria com pena de mim própria por não ter nenhum dote? E
quando levantei os olhos do charro que estava a enrolar tive a sensação de
que a minha mãe me tinha lido os pensamentos. Mas não percebes a sorte
incrível que tens, disse, em estares viva, neste momento? As pessoas como
nós não podem entregar-se à nostalgia. Não temos guarida no passado. A
nostalgia é um luxo. Para o nosso povo, o tempo é agora!
Acendi o charro, servi-me de mais um dedo de rum e fiquei a ouvir de
cabeça baixa o grasnar dos patos e o discurso da minha mãe, até que ficou
tarde e o namorado fez-lhe uma festa na cara e eu vi que estava na hora de
ir apanhar o último comboio.

Em finais de julho mudei-me outra vez para Londres, não para a casa da
minha mãe, mas para a do meu pai. Propus-me dormir na sala de estar, mas
ele nem quis ouvir falar nisso, disse-me que se dormisse aí ia acordar com o
barulho das suas andanças matinais, e eu aceitei rapidamente esta lógica e
deixei que fosse ele a dormir dobrado no sofá. Em compensação, achei que
tinha mesmo de procurar emprego: o meu pai acreditava sinceramente na
nobreza do trabalho, tinha apostado a vida nisso, e fazia-me sentir
envergonhada com a minha preguiça. Às vezes não conseguindo voltar a
adormecer depois de o ouvir sair em bicos de pés, recostava-me na cama e
pensava em todo este trabalho, tanto do meu pai como da sua gente, que
remontava a muitas gerações. Mão de obra sem instrução, mão de obra
normalmente sem formação nem qualificação, uma parte honesta e outra
desonesta, mas toda ela desembocando de uma forma ou de outra no meu
atual estado de ociosidade. Quando era muito nova, oito ou nove anos, o
meu pai tinha-me mostrado a certidão de nascimento do pai dele, da qual
constavam as profissões dos seus avós – lavador de trapo e cortadora de
trapo – e isto, queria ele fazer-me compreender, era a prova de que a sua
tribo sempre fora definida pelo trabalho a que se dedicava, quisesse ou não.
A importância do trabalho era um ponto em que insistia tanto quanto a
minha mãe insistia na convicção de que os aspetos verdadeiramente
definidores eram a cultura e a cor. O nosso povo, o nosso povo. Pensei na
facilidade com que todos tínhamos usado a frase, semanas antes, naquela
bonita noite de junho em casa do Destacado Ativista, sentados a beber rum,
a admirar famílias de patos gordos, de cabeças viradas para dentro, bicos
recolhidos nas penas dos seus próprios corpos, amodorrados ao longo da
margem da lagoa. O nosso povo! O nosso povo! E agora, deitada no bafio
da cama do meu pai, dando voltas à frase na cabeça – à falta de coisa
melhor para fazer – ela fazia-me lembrar a sobreposição de grasnados e
balbuciados que saíam dos bicos daquelas aves e entravam diretamente nas
suas penas: «Eu sou um pato! Eu sou um pato!»
32 «Quando a noite chega de mansinho, / Negra como eu». (N. do T.)
4

Ao apear-me de um táxi rural – depois de vários meses de ausência – vi


Fern de pé à beira da estrada, aparentemente à minha espera, com grande
pontualidade, como se existisse uma paragem de autocarro e um horário.
Fiquei feliz por vê-lo. Mas ele mostrou que não estava para saudações e
cortesias, pois acertou o passo pelo meu e lançou-se imediatamente num
relatório em voz baixa, pelo que, mesmo antes de chegar à porta da casa de
Hawa, também eu já sentia o peso do boato que rapidamente tomara conta
da aldeia: que Aimee estava a tratar de arranjar um visto, que em breve
Lamin se mudaria definitivamente para Nova Iorque. «E então, é verdade?»
Disse-lhe a verdade: não sabia nem queria saber. Tinha passado uma
temporada esgotante em Londres, ajudando Aimee a atravessar um inverno
difícil, pessoal e profissionalmente, e por isso estava a sentir-me
particularmente reativa ao estilo de drama pessoal dela. O álbum que tinha
gravado ao longo dos soturnos meses de janeiro e fevereiro tipicamente
britânicos – e que devia estar a ser lançado por aquela altura – tinha sido
abandonado, consequência de um caso breve e feio com o jovem produtor,
que no fim levou as canções consigo. Se fosse alguns anos antes, uma zanga
como esta não teria passado de um pequeno revés para Aimee, que nem
sequer justificaria meio dia na cama a ver episódios antigos de telenovelas
australianas há muito esquecidas – The Flying Doctors, The Sullivans –,
coisa que fazia em momentos de vulnerabilidade extrema. Mas eu tinha
notado uma alteração nela, a sua armadura pessoal já não era o que em
tempos havia sido. Abandonar e ser abandonada eram agora operações que
a afetavam muito mais profundamente, já não eram para ela coisas de
somenos, ficou sinceramente magoada, e durante quase um mês não quis
ver ninguém, a não ser Judy, praticamente não saiu de casa e pediu-me
várias vezes para dormir no seu quarto, ao lado da sua cama, no chão,
porque não queria ficar sozinha. Durante este período de reclusão tinha-me
convencido, para o bem e para o mal, de que não havia ninguém mais
próximo dela do que eu. Ao ouvir Fern, o meu primeiro sentimento foi que
tinha sido traída, mas, quanto mais pensava naquilo, melhor percebia que
não era bem isso: não era traição, mas sim uma forma de separação mental.
Servi-lhe de conforto e companhia num determinado momento, enquanto
noutro compartimento do seu coração ela preparava afanosamente o futuro,
com Lamin – e com a cumplicidade de Judy. Em vez de ficar zangada com
Aimee sentia-me frustrada com Fern: estava a tentar envolver-me, mas eu
não queria ter nada que ver com o assunto, era inconveniente para mim, já
tinha a minha viagem toda planeada, e quanto mais Fern falava mais eu via
escapar-me entre os dedos o itinerário congeminado na minha cabeça. Uma
visita à ilha de Kunta Kinte, algumas tardes de praia, duas noites num dos
hotéis elegantes da cidade. Aimee não me dava férias anuais, tinha de usar a
imaginação, tirando dias de férias onde podia.
«Tudo bem, mas porque é que não levas o Lamin contigo? Contigo ele
abre-se. Comigo fecha-se como uma concha.»
«Para o hotel? Fern – não. Péssima ideia.»
«Então na excursão. De qualquer maneira não podes ir sozinha, nunca
mais encontras o sítio.»
Cedi. Quando disse a Lamin ele ficou contente, não tanto por ir visitar a
ilha, pareceu-me, como pela oportunidade de fugir à sala de aula e passar
uma tarde a negociar com o seu amigo Lolu, taxista, o preço da viagem de
ida e volta. Lolu tinha cortado o cabelo afro em estilo moicano, pintado de
cor de laranja, e usava um cinto largo com uma grande fivela prateada que
dizia BOY TOY. Fiquei com a impressão de que foram o caminho todo a
negociar, uma viagem de duas horas recheada de gargalhadas e discussões
no banco da frente, a ensurdecedora música reggae de Lolu, muitos
telefonemas. Eu ia no banco traseiro, com pouco mais conhecimentos da
língua uolof do que tinha antes, vendo passar a mata, vislumbrando um ou
outro macaco prateado e ainda mais esparsas comunidades de pessoas, nem
aldeias se lhes podia chamar, duas ou três cubatas juntas, e depois nada
durante mais dez milhas. Lembro-me especialmente de duas crianças
descalças que caminhavam à beira da estrada, de mãos dadas, pareciam
grandes amigas. Acenaram-me e eu respondi. Não havia nada nem ninguém
em volta delas, estavam no limiar do mundo, ou do mundo que eu conhecia,
e ao vê-las apercebi-me de que me era muito difícil, quase impossível,
imaginar o que era para elas o tempo, naquele lugar. É claro que me
lembrava de quando tinha a idade delas, de mão dada com Tracey, e de
como nos havíamos considerado «miúdas dos anos oitenta», mais espertas
do que os nossos pais, muito mais modernas. Considerávamo-nos produtos
de um momento particular, porque além dos nossos musicais gostávamos de
coisas como Os Caça-Fantasmas e Dallas e chupa-chupas em forma de
flauta. Sentíamos que tínhamos o nosso lugar no tempo. Há alguém neste
mundo que não sinta o mesmo? Mas quando acenei àquelas duas crianças
reparei que não conseguia livrar-me da ideia de que eram símbolos de
juventude, ou de amizade infantil. Sabia que podia não ser o caso, mas não
tinha outra forma de pensar nelas.
A estrada terminava finalmente no rio. Saímos do carro e subimos até
uma estátua de betão com mais de nove metros de altura representando um
homem estilizado de pé, de frente para o rio. Tinha por cabeça um planeta
Terra e com os braços estilizados libertava-se dos grilhões da escravatura.
Um canhão solitário do século XIX, a carcaça de tijolo de um entreposto
original, um pequeno «museu da escravatura construído em 1992» e um
café vazio completavam aquilo que um guia desesperado e desdentado
descrevia como «o Centro de Acolhimento». Nas nossas costas, uma aldeia
de barracas decrépitas, muito pior do que aquela de onde vínhamos,
encarava teimosamente o velho entreposto, como se tivesse esperança de
que ele reabrisse. Um bando de crianças assistiam sentadas à nossa
chegada, mas quando lhes acenei o guia repreendeu-me: «Não estão
autorizados a aproximar-se mais. Pedem dinheiro. Incomodam os turistas. O
governo escolheu-nos como guias oficiais para que eles não os
incomodem.» A cerca de uma milha, no outro lado do rio, avistei a ilha
propriamente dita, um pequeno afloramento rochoso com as ruínas
pitorescas de um forte militar em cima. Só queria um minuto de silêncio
para pensar no sítio onde estava e naquilo que significava, se é que
significava alguma coisa. Aqui e ali, dentro do triângulo formado pelo café,
o monumento aos escravos e as crianças atentas, via e ouvia grupos de
turistas – uma solene família de britânicos negros, alguns entusiásticos
adolescentes afro-americanos, duas mulheres brancas holandesas, as duas já
em pranto abundante – todos tentando fazer a mesma coisa que eu, e como
eu suportando uma palestra papagueada pelos guias oficiais nomeados pelo
governo, de T-shirts azuis esfarrapadas, e assediados pelo dono do café que
lhes enfiava ementas nas mãos, ou a regatear com barqueiros desejosos de
os levarem à ilha para verem as celas prisionais dos seus antepassados.
Percebi que a minha sorte era ter Lamin comigo: enquanto ele se entregava
à sua atividade preferida – negociações financeiras, intensas e sussurradas,
com vários interlocutores ao mesmo tempo – senti-me livre de ir até ao
canhão, encavalitar-me nele e contemplar a água. Tentei adotar uma atitude
meditativa. Para imaginar os navios na água, a mercadoria humana subindo
pelas pranchas de embarque, os poucos corajosos que arriscavam atirando-
se à água, numa tentativa condenada ao fracasso de nadar para terra. Mas
cada imagem tinha a pouca espessura de um cartão, e parecia tão pouco
próxima da realidade quanto o mural da parede lateral do museu que
representava uma pobre família mandinga acorrentada pelo pescoço sendo
enxotada do interior do mato por um holandês malévolo, como se tivesse
sido apanhada numa armadilha por um caçador em vez de ser vendida pelo
chefe dele como se fosse cereal. Todos os caminhos voltam ao ponto de
partida, como a minha mãe sempre me havia dito, mas agora que estava
aqui, neste canto do continente carregado de história, senti-o não como um
lugar excecional, mas como um exemplo de uma regra geral. Aqui, o poder
tinha cravado as garras na fraqueza: todos os tipos de poder – local, racial,
tribal, real, nacional, global, económico – em todos os tipos de fraqueza,
não se detendo diante de nada, nem mesmo da menina mais pequena. Mas o
poder faz o mesmo em toda a parte. O mundo está saturado de sangue.
Todas as tribos têm a sua herança empapada em sangue: a minha estava
aqui. Esperei pela sensação de catarse que temos esperança de experimentar
em lugares como este, mas não consegui convencer-me de que o sofrimento
da minha tribo estava concentrado apenas aqui, neste lugar, o sofrimento
estava obviamente em toda a parte, só que era aqui que lhe tinham erguido
o monumento. Desisti e fui à procura de Lamin. Estava encostado à estátua,
a falar ao telemóvel novo, um moderno BlackBerry, com uma expressão
ensonada no rosto, um sorriso largo e apatetado, e quando viu que eu me
aproximava desligou sem se despedir.
«Quem era?»
«Então, se estás pronta», sussurrou Lamin, enfiando o grande aparelho no
bolso de trás, «este homem leva-nos ao outro lado.»
Partilhámos uma chata com a família britânica negra. Tentaram encetar
uma conversa com o guia sobre qual era a distância entre a ilha e o
continente, e se havia alguma possibilidade de um homem, mesmo sem as
grilhetas, atravessar a nado estas correntes rápidas. O guia ouviu-os, mas
estava com um ar muito cansado, o branco dos olhos toldados pelo grande
número de vasos sanguíneos lacerados, e não parecia grandemente
interessado em situações hipotéticas. Repetiu o seu mantra: «Se um homem
alcançasse a costa, era-lhe concedida a liberdade.» Na ilha demos a volta à
ruína e depois pusemo-nos na fila para entrar no «último recurso», um
pequeno compartimento subterrâneo, quinze palmos por seis, onde «os
homens mais rebeldes de todos, como Kunta, eram encarcerados». Imagina!
As pessoas diziam constantemente isto umas às outras, e eu tentei de facto
imaginar-me a ser trazida para aqui, mas sabia instintivamente que não era
uma pessoa rebelde, não era provável que pertencesse à tribo de Kunta.
Poucas pessoas o são. A minha mãe sim, imaginava-a aqui, e Tracey
também. E Aimee – era, à sua maneira, da mesma estirpe. Mas eu não. Sem
saber o que fazer, estendi um braço para chegar a uma argola de ferro na
parede, à qual estes homens «mais rebeldes de todos» eram acorrentados
pelo pescoço. «Dá vontade de chorar, não dá?», disse a mãe da família
britânica, e eu senti que dava mesmo, mas quando desviei os olhos para me
preparar, levantando-os para a janela minúscula, vi o guia oficial deitado de
barriga, com a boca de três dentes tapando praticamente toda a luz
disponível.
«Agora vão sentir a dor», explicou através das grades, «e vão precisar de
uns momentos sozinhos. Encontramo-nos lá fora depois de terem sentido a
dor.»

De regresso, já no barco, perguntei a Lamin o que é que tinha tanto para


conversar com Aimee. Ele ia sentado no banco do remador e endireitou-se,
empinando o queixo.
«Ela acha que eu sou um bom dançarino.»
«Ai sim?»
«Tenho-lhe ensinado muitos passos que ela não sabia. Pelo computador.
Demonstro os nossos passos locais. Diz que os vai usar nas atuações
dela.»
«Estou a ver. E alguma vez te falou em ires para a América? Ou para a
Inglaterra?
«Está tudo nas mãos de Deus», disse ele, lançando um olhar ansioso pelos
outros passageiros.
«Pois está. E do Ministério dos Negócios Estrangeiros.»

Lolu, que nos esperara pacientemente no seu táxi, avançou com ele para a
beira-rio enquanto nós nos aproximávamos e abriu a porta do carro,
aparentemente com a intenção de me levar diretamente da água para o
carro, mais uma viagem de duas horas, sem almoço.
«Mas Lamin, eu tenho de comer!»
Reparei que durante toda a nossa visita à ilha ele não tinha largado a
ementa plastificada do café e agora mostrava-ma, a prova essencial,
irrefutável, num julgamento.
«É muito dinheiro por um almoço! A Hawa faz-nos o almoço quando
chegarmos.»
«Eu pago o almoço. Dá quanto, umas três libras por cabeça? Garanto-te,
Lamin, que para mim não é muito dinheiro.»
Seguiu-se uma discussão entre Lamin e Lolu que, para minha satisfação,
Lamin parecia estar a perder. Lolu enfiou as mãos no cinto como um
cowboy vitorioso, fechou a porta do carro e avançou a pé pela encosta.
«É muito», repetiu Lamin, com um grande suspiro, mas eu fui atrás de
Lolu e Lamin foi atrás de mim.
Sentámo-nos a uma das mesas de piquenique e comemos peixe assado em
folha de alumínio e arroz. Pus-me à escuta das conversas nas mesas
vizinhas, conversas estranhas, desiguais, que não conseguia decidir o que
eram: as pesadas reflexões de visitantes a um trauma histórico ou o
tagarelar desprendido de pessoas em férias de praia à hora dos aperitivos.
Uma mulher branca, alta e com a pele estragada pelo sol, de setenta anos
pelo menos, estava sentada ao fundo, sozinha numa mesa, rodeada por
montes de panos estampados e dobrados, tambores e estatuetas, T-shirts a
dizer NEVER AGAIN33, outros produtos locais. Ninguém se aproximava
da banca nem dava ares de querer comprar nada, e ao fim de algum tempo
ela levantou-se e foi de mesa em mesa, cumprimentando os clientes,
perguntando-lhes onde estavam instalados, de onde eram. A minha
esperança era que acabássemos de comer antes de ela chegar à nossa mesa,
mas Lamin comia penosamente devagar e a mulher apanhou-nos, e quando
ouviu dizer que eu não era de nenhum hotel, e que não era cooperante nem
missionária, ficou especialmente interessada e sentou-se à nossa mesa,
demasiado perto de Lolu, que estava curvado sobre o prato e não queria
olhar para ela.
«De que aldeia disse que era?», perguntou, embora eu não tivesse dito,
mas desta vez Lamin disse-lhe sem me dar a oportunidade de uma resposta
vaga. Fez-se luz.
«Oh, mas está ligada à escola! É claro. Bem, eu sei que há quem diga
cobras e lagartos daquela mulher, mas eu gosto muito dela, admiro-a,
sinceramente. Aliás, também sou de origem americana», disse, e eu
perguntei-me como é que ela podia pensar que alguém tivesse dúvidas a
esse respeito. «Normalmente não gosto dos americanos, em geral, mas ela é
daquelas que têm passaporte, não sei se me faço entender. Acho-a de facto
muito curiosa e apaixonada, e isso é muito bom para o país, toda a
publicidade que lhe dá. Ah, é australiana? Pois bem, seja como for, é das
minhas! Aventureira! Se bem que eu tenha vindo para cá por amor, não por
caridade. No meu caso, a caridade veio depois.»
Levou a mão ao coração, que estava meio exposto, um vestido estampado
multicolor com um decote assustadoramente cavado. Tinha uns seios
compridos, vermelhos e engelhados. Eu estava absolutamente decidida a
não perguntar por amor de quem ela tinha vindo aqui parar, nem a que boas
ações esta decisão acabara por levar, mas ela, intuindo a minha resistência,
decidiu usar uma prerrogativa de mulher idosa e contar-me na mesma.
«Era como estas pessoas, estava cá em férias. Não tencionava apaixonar-
me! Por um rapaz que tinha metade da minha idade.» Piscou-me o olho. «E
isso passou-se há vinte anos! Mas foi muito, muito mais do que um
romance de férias, como vê: juntos construímos tudo isto.» Olhou em volta
com orgulho para aquele monumento ao amor: um café com cobertura de
zinco, quatro mesas e três pratos na ementa. «Não sou rica, aliás era uma
humilde professora de ioga. Mas aquele pessoal de Berkeley, só é preciso
dizer-lhes: “Ouçam, a situação é esta, esta gente é desesperadamente
carente”, e digo-lhe, talvez fique surpreendida, aquele pessoal deita mãos à
obra, é que deita mesmo. Praticamente toda a gente quer colaborar. E
quando se lhes explica quanto um dólar vale aqui? Quando se lhes explica o
muito que se pode fazer com esse dólar? Oh, nem acreditam! Ao contrário,
lamentavelmente, dos meus filhos, do meu primeiro casamento, que não me
deram o mesmo apoio. Sim, às vezes são os estranhos que nos apoiam. Mas
eu digo sempre às pessoas daqui: “Não acreditem em tudo o que ouvem,
por favor! Porque nem todos os americanos são maus, de maneira
nenhuma.” Há uma grande diferença entre as pessoas de Berkeley e as de
Fort Worth, não sei se está a perceber. Eu nasci no Texas, numa família
cristã, e quando era nova a América era um lugar muito duro para mim,
porque era um espírito livre e não conseguia integrar-me. Mas parece-me
que agora está um bocadinho melhor.»
«Mas vive aqui, com o seu marido?», perguntou Lamin.
Ela sorriu, mas não pareceu particularmente agradada com a pergunta.
«No verão. Passo os invernos em Berkeley.»
«E ele vai consigo?», perguntou Lamin. Tive a impressão de que estava a
fazer uma inquirição subtil.
«Não, não. Fica cá. Tem muito que fazer cá, durante todo o ano. Ele é o
grande homem aqui e penso que se pode dizer que eu sou a grande mulher
lá! Portanto funciona muito bem. Para nós.»
Pensei naquela camada de ilusão juvenil que todas as amigas de Aimee
que eram mães recentes tinham aparentemente perdido, uma espécie de luz
nos olhos que tinha desaparecido, apesar de se tratar de pessoas célebres e
ricas, e depois olhei bem no fundo dos olhos grandes, azuis, meio loucos,
desta mulher, e o que vi foi uma escavação total. Custava a acreditar que
houvesse alguém capaz de representar o seu papel apesar de lhe terem
arrancado tantas camadas.
33 Nunca mais. (N. do T.)
5

Uma vez concluído o curso, da base que era a casa do meu pai,
candidatei-me a todos os possíveis empregos de entrada numa empresa de
comunicação social de que me lembrei, deixando todas as noites as cartas
de pedincha no balcão da cozinha para ele as pôr no correio de manhã, mas
passou-se um mês e nada. Sabia que o meu pai tinha uma relação difícil
com estas cartas – boas notícias para mim eram más notícias para ele,
significavam que eu ia sair de casa – e às vezes passava-me pela cabeça a
ideia paranoica de que ele nunca as tinha enviado, simplesmente as tinha
deitado no contentor do lixo ao fundo da nossa rua. Pensei no que a minha
mãe sempre me havia dito sobre a falta de ambição dele – acusação de que,
indignada, sempre o havia defendido – e tive de reconhecer que percebia
agora aonde ela queria chegar. Nada o fazia mais feliz do que as
esporádicas visitas dominicais do meu tio Lambert, em que nos estendíamos
os três em espreguiçadeiras no terraço coberto de trepadeiras do vizinho de
baixo do meu pai e fumávamos erva, comíamos os bolinhos de peixe
caseiros que eram a desculpa de Lambert para chegar duas ou três horas
atrasado, ouvíamos o World Service e víamos as composições da Jubilee
Line irromperem, a intervalos de oito ou dez minutos, das entranhas da
Terra.
«Isto é que é vida, não achas, querida? Acabou-se o faz isto, não faças
aquilo. Só nós, os amigos, juntos – iguais. É ou não é, Lambert? Quando é
que vais ser assim amigo do teu filho? Isto é que é vida, não achas?»
Seria? Não me lembrava de alguma vez o ter visto assumir a dinâmica de
poder parental que agora afirmava estar em perda, nunca o tinha ouvido
dizer «Faz isto, não faças aquilo». Amor e liberdade – foi o que me
ofereceu sempre, e só isso. E qual era o resultado? Deixar de trabalhar e
passar os dias pedrada como Lambert? Sem saber que outra coisa fazer,
voltei para um emprego péssimo, que tivera nas primeiras férias de verão da
faculdade, numa pizaria de Kensal Rise. Pertencia a um iraniano ridículo
chamado Bahram, muito alto e magro, que, apesar do ambiente que o
rodeava, se considerava um homem de qualidade. Chovesse ou fizesse sol,
gostava de usar um sobretudo comprido e elegante, cor de camelo, que
muitas vezes punha pelos ombros como um barão italiano, e chamava à sua
espelunca «restaurante», apesar de as instalações serem do tamanho do
quarto de banho de uma família pequena, num terreno de gaveto entalado
entre o terminal dos autocarros e a linha férrea. Nunca entrava ninguém
para comer, encomendavam por telefone ou compravam e levavam para
casa. Eu costumava estar ao balcão a ver os ratinhos em correria pelo
linóleo. Havia uma única mesa à qual um cliente podia sentar-se, mas a
verdade é que Bahram a ocupava o dia inteiro e metade da noite: tinha
problemas em casa, mulher e três filhas solteiras e difíceis, e o nosso palpite
era que preferia a nossa companhia a uma família assim, ou pelo menos
preferia gritar connosco a discutir com elas. No trabalho não tinha um dia
cansativo. Passava-o a comentar tudo quanto ia vendo na televisão do canto
superior esquerdo da loja, ou então a agredir-nos a todos verbalmente, da
sua posição sentada. Estava sempre furioso com tudo. Uma fúria cómica,
ostensiva, que se exteriorizava numa provocação constante e obscena de
quantos o rodeavam – provocação racial, sexual, política, religiosa – e que
quase todos os dias se saldava pela perda de um cliente ou empregado ou
amigo, e por isso acabava por me parecer mais pungentemente nociva para
ele próprio do que ofensiva para os outros. Mas pronto, era o único
entretenimento que tinha. Todavia, a primeira vez que lá entrei, tinha então
dezanove anos, não fui ofendida, não, fui saudada numa língua que mais
tarde compreendi que era parse, e de forma tão efusiva que tive mesmo a
sensação de que percebia o que ele estava a dizer. Que jovem, e bonita, e
claramente inteligente eu era! Era verdade que frequentava a universidade?
Mas como a minha mãe devia estar orgulhosa! Levantou-se e pegou-me no
queixo, virando-me a cara para um lado e para o outro, sorridente. Mas
quando lhe respondi em inglês franziu o cenho e observou atentamente,
criticamente, o lenço vermelho que me cobria o cabelo – tinha-me parecido
que seria adequado num sítio onde se produzia comida – e momentos
depois, uma vez estabelecido que apesar do meu nariz persa não era persa,
nem um bocadinho, nem egípcia, nem marroquina, nem árabe de nenhuma
espécie, cometi o erro de pronunciar o nome da ilha da minha mãe e toda a
cordialidade se dissipou: fui mandada para o balcão, onde a minha função
era atender o telefone, transmitir as encomendas à cozinha e coordenar os
entregadores. A minha tarefa mais importante era cuidar de um projeto que
lhe era muito querido: a Lista dos Clientes Proscritos. Tinha-se dado ao
cuidado de escrever esta lista num comprido rolo de papel que pregou na
parede atrás do meu balcão, nalguns casos com polaroides afixadas ao lado.
«Quase todos gente como tu», referiu-me de passagem, ao meu segundo dia
de trabalho.
«Não pagam, ou armam zaragata, ou passadores de droga. Não me faças
essa cara! Porquê ofendida? Tu sabes! É verdade!» Eu não suportava que
me ofendessem. Estava decidida a aguentar aqueles três meses de verão, o
tempo suficiente para acrescentar alguma coisa ao depósito para poder
começar a pagar uma renda logo que acabasse o curso. Mas estava a dar o
ténis, e isso deitou tudo por terra. Um entregador somali e eu
acompanhávamos avidamente as transmissões, e Bahram, que em condições
normais também as acompanharia – considerava o desporto a mais pura
manifestação das suas teorias sociológicas –, naquele ano estava furioso
com o ténis, e furioso connosco por gostarmos de ver, e sempre que nos
apanhava a vê-lo ficava ainda mais furioso, tudo porque o seu sentido da
ordem tinha sido profundamente subvertido pelo facto de Bryan Shelton
não ter sido eliminado à primeira.
«Porquê vocês veem isto? Hein? Hein? Porque é um dos vossos?»
Tinha o dedo espetado no peito estreito do entregador somali, Anwar,
senhor de uma grande luminosidade de espírito, uma notável capacidade de
alegria – apesar de nada na sua vida parecer constituir justa causa para isso
– e cuja reação foi bater as palmas e fazer um sorriso de orelha a orelha.
«Iá, meu! Nós por Bryan!»
«Tu idiota, isso nós já saber», e virou-se para mim, que estava atrás do
balcão. «Mas tu esperta, e isto faz-te mais idiota.» Como eu não reagi, veio
direito a mim e deu um murro no balcão: «Este Shelton – não vai ganhar.
Não pode.»
«Ele ganhar! Ele ganhar!», berrou Anwar.
Bahram pegou no comando e desligou a televisão para se fazer ouvir até
ao fundo da loja, e chegar mesmo à congolesa que esfregava as paredes do
forno das pizas.
«Ténis não é desporto para negros. Ter de compreender: cada povo tem o
seu desporto.»
«Qual é o seu desporto?», perguntei eu, sinceramente curiosa, e Bahram
pôs-se muito direito e garboso na cadeira. «Polo.» A cozinha explodiu em
gargalhadas.
«Vão-se todos foder filhos da puta!» Histeria.
A verdade é que eu não via os jogos de Shelton, nunca tinha ouvido falar
nele antes de Anwar me dizer quem ele era, mas a partir daí passei a vê-lo,
juntamente com Anwar era a sua fã número um. Comprei bandeirinhas
americanas para levar para o trabalho nos dias em que ele jogava, e nesses
dias tinha o cuidado de mandar para a rua todos os entregadores menos
Anwar. Juntos vitoriávamos Shelton, dançávamos pela loja sempre que ele
marcava um ponto, e quando vimos que ele estava a ganhar uns jogos a
seguir aos outros começámos a convencer-nos de que éramos nós que, com
as nossas danças e incitamentos, estávamos a empurrá-lo, e sem nós estaria
tramado. Havia alturas em que Bahram agia como se também acreditasse
nisto, como se nós estivéssemos a executar algum ritual antigo de vudu
africano. Sim, sem sabermos como enfeitiçávamos Bahram da mesma
forma que enfeitiçávamos Shelton, e à medida que os dias do torneio
passavam e Shelton se recusava a ser eliminado, eu reparava que as muitas
outras preocupações prementes de Bahram – o negócio, a mulher difícil, a
busca desgastante de pretendentes para as filhas –, tudo desaparecia para
ficar só a preocupação de garantir que não apoiássemos Bryan Shelton, e
que Shelton não chegasse à final de Wimbledon.
Certa manhã, ia o torneio a meio, eu estava ao balcão, chateada, quando
vi Anwar na sua bicicleta, subir o passeio a grande velocidade, travar de
qualquer maneira, desmontar e correr para o meu canto com a mão na boca
e um sorriso que não conseguia refrear. Bateu um exemplar do Daily Mirror
na minha frente, apontou para uma coluna nas páginas de desporto e disse:
«Árabe!» Nem queríamos acreditar. Chamava-se Karim Alami. Era
marroquino e ainda tinha uma classificação pior do que Shelton. O jogo
começava às duas. Bahram chegou à uma. Pairava no ar uma sensação de
grande ansiedade e expectativa, entregadores que só tinham de entrar às
cinco chegaram cedo, e a mulher da limpeza congolesa desatou a trabalhar
nos fundos da cozinha a uma velocidade nunca vista, na esperança de
chegar à parte da frente – e portanto à televisão – antes de o jogo começar.
A partida tinha cinco jogos. Shelton entrou forte e em várias alturas do
primeiro jogo Bahram limitou-se a pôr-se de pé em cima da cadeira e gritar.
Quando o jogo terminou com seis a três para Shelton, Bahram saltou da
cadeira para o chão e saiu disparado porta fora. Nós olhámos um para o
outro: era a vitória? Minutos depois voltou a entrar com um maço de
Gauloises na mão, que fora buscar ao carro, e começou a fumar cigarros
atrás de cigarros, cabisbaixo. Mas no segundo jogo as coisas pareciam
apresentar-se mais favoráveis para Karim, e Bahram sentou-se muito
direito, a seguir levantou-se e pôs-se a andar em círculos no espaço exíguo,
fazendo comentários, que tanto versavam a eugenia como as pancadas de
esquerda e os lobs e as duplas faltas, e quando chegámos a um desempate o
seu discurso ganhou fluência, fazendo círculos com o cigarro aceso, cada
vez mais confiante no seu inglês. O homem negro, informou-nos, é instinto,
é corpo em movimento, e é música, sim, claro, e é ritmo, toda a gente sabe
isso, e é velocidade, e é bonito, sim, talvez, mas fiquem sabendo que o ténis
é um jogo da mente – da mente! O homem negro pode ser boa força, bom
músculo, pode bater a bola com força, mas o Karim é como eu: pensa um,
dois passos à frente. Tem espírito árabe. Espírito árabe é máquina
complicada, delicada. Nós inventou matemática. Nós inventou astronomia.
Gente subtil. Dois passos à frente. O vosso Bryan está perdido.
Mas não estava: ganhou o jogo por sete a cinco, e Anwar tirou a vassoura
das mãos da mulher da limpeza congolesa – cujo nome eu desconhecia,
cujo nome nunca ninguém se lembrou de perguntar – e obrigou-a a dançar
com ele, ao som de uma música hi-life do transístor que levava consigo para
todo o lado. No jogo seguinte Shelton baqueou, um a seis. Bahram exultou.
Em qualquer parte do mundo, disse a Anwar, vocês em últimos! Umas
vezes em primeiro homem branco, judeu, árabe, chinês, Japão – depende.
Mas os teus perdem sempre. Quando começou o quarto jogo já nem sequer
fingíamos que éramos um restaurante de pizas. O telefone tocava e ninguém
atendia, o forno estava vazio, e estava toda a gente apinhada no espaço da
entrada. Eu estava sentada no balcão com Anwar, as pernas batendo
nervosamente no contraplacado barato dos painéis da frente até os fazerem
abanar. Vimos aqueles dois jogadores – na verdade quase perfeitamente
equilibrados – baterem-se num desempate prolongado e extenuante que
Shelton acabou por perder, seis a sete. Anwar rompeu em lágrimas
amargas.
«Mas Anwar, amiguinho: ainda falta um jogo», explicou o amável
cozinheiro bósnio, e Anwar sentiu a gratidão do homem sentado na cadeira
elétrica que acabou de vislumbrar o governador a correr pelo corredor, do
outro lado do vidro sintético. O último jogo foi rápido: seis a dois. Jogo,
partida, eliminatória – Shelton. Anwar abriu as goelas do rádio e de dentro
de mim jorrou todo o tipo de dança e esperneei, sapateei, deslizei – até fiz o
shim-sham. Bahram acusou-nos a todos de termos relações sexuais com as
nossas mães e saiu de rompante. Voltou cerca de uma hora depois. Era a
hora de maior movimento ao fim do dia, quando as mães decidem que não
conseguem encarar a ideia de fazer o jantar e o pessoal que passou o dia na
passa percebe de repente que não come nada desde o pequeno-almoço. Eu
estava agarrada ao telefone, tentando como de costume decifrar muitos
tipos de inglês macarrónico, das pessoas que telefonavam e da equipa de
entregadores, quando Bahram avançou para mim e me pôs o vespertino
diante da cara. Apontou para uma fotografia de Shelton, de braço levantado
em preparação para um dos seus potentes serviços, bola no ar diante de si,
parada no momento do contacto. Tapei o auscultador com uma das mãos.
«Que é? Estou a trabalhar.»
«Repara bem. Não negro. Mestiço. Como tu.»
«Estou a trabalhar.»
«Provavelmente é metade-metade, como tu. Portanto, está explicado.»
Em vez de Shelton olhei para Bahram, fixamente. Ele sorriu.
«Meio vencedor», disse.
Eu pousei o telefone, tirei o avental e vim-me embora.

Não sei como Tracey descobriu que eu estava outra vez a trabalhar na loja
de Bahram. Não queria que ninguém soubesse, eu própria tinha dificuldade
em encarar a verdade. Provavelmente viu-me através do vidro. Quando
entrou, numa tarde abafada de finais de agosto, causou sensação, com os
seus colãs justos e top a roçar o umbigo. Reparei que a indumentária dela
não tinha mudado com o tempo, não tinha necessidade de mudar. Não
labutava, como eu – como a maioria das mulheres que conhecia – para
encontrar formas de cobrir o corpo com os símbolos, formas e signos do
tempo. Era como se estivesse acima disso tudo, como se fosse intemporal.
Estava sempre vestida para um ensaio de dança e ficava sempre lindamente
assim. Anwar e os outros rapazes, à espera cá fora em cima das bicicletas,
tiraram-lhe um longo retrato frontal com os olhos e depois mudaram de
posição para apanharem aquilo a que os italianos chamam o lado B. Quando
ela se debruçou sobre o balcão para falar comigo, vi um deles tapar os olhos
com a mão, como se estivesse a sentir uma dor física.
«É bom ver-te. Como estava a beira-mar?»
Fez um sorriso trocista, confirmando a suspeita que eu já tinha de que a
minha vida universitária havia sido uma espécie de piada local, uma
tentativa débil de desempenhar um papel fora da classe a que pertencia,
tentativa falhada.
«Tenho visto a tua mãe. Agora está em todo o lado.»
«Pois está. Estou contente por voltar, acho. Tu estás com ótimo aspeto.
Estás a trabalhar?»
«Oh, faço várias coisas. Tenho grandes notícias. A que horas sais?»
«Acabei de entrar.»
«E que tal amanhã?»
Bahram aproximou-se e, com a maior cortesia de que era capaz,
perguntou a Tracey se por acaso era persa.

Encontrámo-nos ao fim do dia seguinte, num pub local que sempre


tínhamos conhecido como irlandês, mas que agora não era irlandês nem
coisa nenhuma. Os reservados tinham desaparecido para dar lugar a uma
quantidade de sofás e cadeirões de orelhas, de diferentes épocas históricas,
forrados com padrões contrastantes e espalhados pelo espaço, como um
cenário de teatro recentemente desmontado. Papel de parede lavrado de cor
roxa cobria a parede por cima da lareira e havia animais empalhados,
fixados no momento de formarem o salto ou de se agacharem, encerrados
em campânulas de vidro e colocados em prateleiras altas, assistindo com os
seus desalinhados olhos de vidro ao reencontro entre mim e Tracey.
Interrompi a contemplação de um esquilo petrificado para falar a Tracey,
que regressava do balcão com dois copos de vinho branco nas mãos e uma
expressão de forte desagrado na cara.
«Sete libras? Que merda de roubalheira é esta?»
«Podíamos ir a outro sítio.»
Ela torceu o nariz. «Não. Isso era o que eles queriam. Nascemos aqui.
Bebe devagar.»
Beber devagar não era connosco. Continuámos a beber, com o cartão de
crédito de Tracey, desfiando recordações e rindo – rindo com vontade,
como não me tinha rido nos três anos de faculdade – com as recordações
dos sapatos amarelos de Miss Isabel, do poço de barro da minha mãe, da
História da Dança, de tudo, mesmo de coisas de que nunca pensei que
seríamos capazes de nos rirmos juntas. De Louie a dançar com Michael
Jackson, da minha ilusão com o Royal Ballet. Sentindo-me ousada,
perguntei-lhe pelo pai.
Ela parou de rir.
«Ainda lá está. Arranjou uma carrada de filhos “por fora”, segundo ouvi
dizer...»
A sua cara sempre expressiva fez-se pensativa para logo assumir um olhar
de extrema frieza de que me lembrava muito bem, da nossa infância. Ainda
pensei em contar-lhe o que tinha visto, anos antes, em Kentish Town, mas
aquela frieza travou-me a frase na boca.
«E o teu velho? Já não o vejo há muito tempo.»
«Podes não acreditar, mas acho que continua apaixonado pela minha
mãe.»
«Que bom», disse ela, mas mantinha aquele olhar no rosto. Estava a olhar
para trás de mim, para o esquilo. «Que bom», repetiu.
Percebi que tínhamos chegado ao fim das recordações, que talvez fosse
altura de entrarmos na atualidade. Não tinha dúvidas de que as novidades de
Tracey excederiam facilmente aquilo que eu tinha para oferecer. E assim
foi: tinha um papel num teatro de West End. Era na reposição de um dos
nossos musicais preferidos, Garotos e Garotas, e fazia o papel de «Hot Box
Girl Number One», que eu me lembrava de não ser um papel importante –
no filme nem sequer tinha nome e só dizia quatro ou cinco frases – mas
mesmo assim estava muito presente em palco, cantando e dançando no
clube Hot Box, ou andando atrás de Adelaide, de quem era supostamente a
melhor amiga. Tracey ia cantar «Take Back Your Mink» – uma canção que
representávamos em crianças, brandindo um par de boás de penas com um
ar raquítico – e vestir corpetes de renda e capas de cetim verdadeiro e ter o
cabelo arranjado e encaracolado. «Estamos agora em ensaio geral a sério.
Penteiam-me todos os dias com alisadores, é um martírio.» Levou os dedos
à orla do couro cabeludo e por baixo da cera que tinham usado para o
manter liso vi que de facto já estava frágil e ralo.
Tinha esgotado a fanfarronice. Sem ela, porém, pareceu-me vulnerável e
defensiva, e tive a sensação de que a minha reação não fora exatamente
aquela que ela esperava. Talvez tivesse realmente imaginado que uma
rapariga de vinte e um anos com um curso universitário ia ouvir as suas
boas notícias e cair redonda no chão a chorar. Pegou no copo de vinho e
esvaziou-o. Só então quis saber da minha vida. Eu respirei fundo e repeti o
tipo de coisas que dizia à minha mãe: apenas uma solução de recurso, à
espera de que aparecessem outras oportunidades, a viver temporariamente
em casa do meu pai, as rendas eram altas, nenhuma relação, mas também as
relações eram tão complicadas, não era disso que precisava nesta altura, e
queria ter tempo para trabalhar na minha…
«Certo, certo, certo, mas não podes continuar a trabalhar para o ranhoso
das pizas, pois não? Precisas de ter um plano.»
Eu anuí e esperei. Senti-me invadida por um alívio que, apesar de
familiar, já não sentia havia muito tempo, e que atribuí ao facto de Tracey
me levar pela mão, de deixar de tomar decisões e seguir antes a vontade
dela, as suas intenções. Não é verdade que Tracey sempre tinha sabido que
jogos jogar, que histórias contar, que ritmo escolher, que passo fazer para o
acompanhar?
«Ouve, eu sei que agora és uma mulher crescida», disse, em tom de
confidência, recostando-se na cadeira, com os pés a apontar para o chão,
criando uma bela linha vertical desde os joelhos aos dedos. «Não é da
minha conta. Mas se precisares de alguma coisa, andam à procura de
assistentes de palco. Podias tentar. Eu podia recomendar-te. São só quatro
meses, mas sempre é melhor do que nada.»
«Eu não percebo nada de teatro. Não tenho experiência.»
«Ora adeus», disse Tracey, abanando a cabeça e levantando-se para ir
buscar mais uma rodada. «Mentes!»
6

Calculei que o meu interrogatório a Lamin tivesse chegado aos ouvidos


de Aimee, porque no dia da minha partida do hotel Coco Ocean
telefonaram-me da receção para o quarto a dizer que tinham uma mensagem
para mim, e quando abri o envelope branco encontrei este recado: Jato
indisponível. Terás de vir em voo comercial. Guarda os recibos. Judy.
Estava a ser castigada. A princípio achei engraçado que o conceito de
castigo de Aimee fosse voar em avião comercial, mas quando cheguei ao
aeroporto fui surpreendida pelos muitos pormenores de que afinal me tinha
esquecido: a espera, as filas, a sujeição a instruções irracionais. Todos os
aspetos da situação, a presença de tanta gente, a brusquidão dos
funcionários, até o imutável horário do voo nos ecrãs da sala de espera –
tudo me parecia uma afronta. Deram-me um lugar ao lado de dois
camionistas de Huddersfield. Tinham sessenta e tal anos e viajavam juntos.
Adoravam este país, viriam «todos os anos, se pudessem». Depois do
almoço desataram a beber garrafinhas de Baileys e a falar das respetivas
«miúdas». Ambos usavam aliança, parcialmente afundada nos dedos gordos
e peludos. Nessa altura eu já tinha posto os meus auriculares: deviam pensar
que não os ouvia. «A minha disse-me que tinha vinte anos, mas o primo –
que também é empregado de mesa no mesmo restaurante – disse-me que
tinha dezassete. Mas sabe muito para a idade que tem.» Tinha gema de ovo
ressequida pela T-shirt abaixo. O amigo tinha os dentes amarelos e sangrava
das gengivas. Tinham sete dias de férias por ano de calendário. O dos
dentes amarelos fizera duplos durante três meses para se poder dar ao luxo
deste fim de semana prolongado com a miúda em Banjul. Vieram-me à
cabeça fantasias assassinas – pegar na faca de plástico serrilhada e espetar-
lha nas gargantas – mas quanto mais ouvia mais triste aquilo me parecia.
«Eu disse-lhe, não queres vir para Inglaterra? E basicamente ela responde-
me: “Nem pensar, querido.” Quer uma casa em Wassu, onde quer que essa
merda fique. Estas miúdas não são nada parvas. Realistas. A libra vale
muito mais aqui do que lá na nossa terra. É como a patroa a chingar porque
quer ir a Espanha. Eu disse-lhe: “Estás a viver no passado, amor. Sabes
quanto custa ir a Espanha atualmente?”» Um tipo de fraqueza a alimentar-
se de outro.

Uns dias depois regressei ao trabalho. Continuava à espera de uma


reunião formal ou de que me pedissem um relatório, mas foi como se pura e
simplesmente não tivesse feito a visita. Ninguém falava da minha viagem, o
que em si mesmo não era muito estranho, havia muitas outras coisas a
acontecer na mesma altura – um álbum, uma nova digressão – mas, ao
estilo subtil dos melhores torturadores, Judy e Aimee faziam tudo para me
deixarem de fora de todas as decisões importantes, tendo o cuidado de
evitar que tudo aquilo que diziam ou faziam pudesse ser explicitamente
interpretado como castigo ou retaliação. Estávamos a preparar a nossa
transição de outono para Nova Iorque – período em que Aimee e eu
costumávamos andar grudadas uma à outra – mas agora mal a via, e durante
duas semanas foi-me atribuído o tipo de trabalho indiferenciado mais
próprio do pessoal doméstico. Fazia telefonemas para as empresas de
mudanças. Catalogava sapatos. Acompanhava as crianças à aula de ioga.
Num sábado de manhã interpelei Judy a este respeito. Aimee estava na cave
a fazer exercício, as crianças estavam a ver a sua hora semanal de televisão.
Percorri todos os cantos da casa e fui encontrar Judy sentada na biblioteca
com os pés em cima da secretária de tampo verde, a pintar as unhas dos pés
numa horrível cor de fúcsia, com uma cunha de esponja branca entre os
dedos compridos. Não levantou os olhos enquanto eu não acabei de falar.
«Pois é, lamento dizer-te, querida, mas a Aimee está-se perfeitamente nas
tintas para aquilo que tu pensas da sua vida privada.»
«Só estou a tentar zelar pelos interesses dela. É essa a minha função como
amiga.»
«Não, querida, não é exato. A tua função é: assistente pessoal.»
«Já cá estou há nove anos.»
«E eu há vinte e nove.» Rodou os pés e pousou-os numa caixa negra que
estava no chão e irradiava uma luz roxa. «Já vi chegar e partir muitas
assistentes pessoais. Mas, santo Deus, nenhuma tão convencida como tu.»
«Não é verdade? Não está a tentar arranjar-lhe um visto?»
«Não vou discutir isso contigo.»
«Judy, eu passei a maior parte do dia a trabalhar para o cão. Tenho um
curso superior. Não me digas que não estou a ser castigada.»
Judy puxou a franja para trás com as duas mãos.
«Em primeiro lugar, não precisas de ser tão melodramática. O que estás a
fazer é trabalho. Ao contrário do que possas pensar, minha menina, a tua
função não é nem nunca foi a de «melhor amiga». És assistente dela.
Sempre foste. Mas parece que nos últimos tempos te esqueceste disso – e
está na altura de alguém te lembrar. Portanto, essa é a primeira questão.
Segunda: se ela quer trazê-lo para cá, se quer casar com ele, ou dançar com
ele no alto da porra do Big Ben, tu não tens nada com isso. Estás muito fora
da tua área de competência.» Judy suspirou e olhou para os dedos dos pés.
«E o mais engraçado é que ela nem sequer está chateada contigo por causa
do rapaz. Nem sequer é por causa do rapaz.»
«Então é porquê?»
«Falaste recentemente com a tua mãe?»
Esta pergunta fez-me corar violentamente. Quão recentemente? Um mês?
Dois? O Parlamento estava em sessão, ela estava ocupada, se quisesse falar
comigo sabia onde me encontrar. Passei longamente em revista na minha
cabeça estas justificações até perceber de onde vinha o interesse de Judy.
«Pois talvez devesses falar. Anda a complicar-nos a vida e não sei porquê.
Era bom que tentasses descobrir.»
«A minha mãe?»
«Quer dizer, há um milhão de problemas nesta ilha de merda a que vocês
chamam país – literalmente um milhão. E ela quer falar sobre “Ditaduras na
África Ocidental”?», disse Judy fazendo aspas com os dedos.
«Cumplicidade britânica com as ditaduras oeste-africanas. Vai à TV,
escreve artigos de opinião, levanta-se nas Perguntas ao Primeiro-ministro à
Hora do Chá, ou lá que raio chamam àquilo. Não fala de outra coisa. Tudo
bem. O problema não é meu – o que faz o DfID, o que faz o FMI –, isso
não é da minha conta. Mas a Aimee sim, é da minha conta – e da tua.
Estamos a trabalhar em parceria com aquele maldito Presidente louco, e se
fores perguntar ao teu adorado Fern ele dir-te-á que nesta matéria estamos a
caminhar no arame. Acredita em mim, querida, sabes o que vai acontecer se
sua alteza vitalícia o todo-poderoso rei dos reis não nos quiser no seu país?
Põe-nos de lá para fora enquanto o diabo esfrega um olho. Fode-se a escola,
fode-se toda a gente. Outra coisa, eu sei que tens um curso superior. Tu
própria mo disseste, vezes sem conta. O curso superior é de
Desenvolvimento Internacional? Não, acho que não. E tenho a certeza de
que a tua mãe desbocada, lá nas últimas filas do parlamento, é capaz de
pensar que está a ajudar, só Deus sabe, mas sabes o que é que está de facto a
fazer? A prejudicar as pessoas que diz querer ajudar, e a denegrir quem,
como nós, está a tentar fazer alguma diferença no terreno. A morder a mão.
Deve ser de família.»
Eu sentei-me na chaise longue.
«Caramba, não lês ao menos os jornais?», perguntou Judy.

Três dias depois desta conversa voámos para Nova Iorque. Deixei recados
no gravador da minha mãe, escrevi-lhe mensagens, enviei-lhe emails, mas
ela só me ligou no fim da semana seguinte e, com o extraordinário sentido
de oportunidade que é próprio das mães, escolheu as duas e meia da tarde
de um domingo, no preciso momento em que o bolo de Jay saía das
cozinhas e caíam serpentinas do teto do Rainbow Room, e duzentos
convidados cantavam os «Parabéns a Você» acompanhados por violinistas
do naipe de cordas da Filarmónica de Nova Iorque.
«Que barulheira é essa? Onde estás?»
Abri as portas de correr para o terraço, saí e voltei a fechá-las.
«É o aniversário do Jay. Faz hoje nove anos. Estou no último andar do
Rockefeller.»
«Ouve, não quero ter uma discussão contigo pelo telefone», disse a minha
mãe, num tom de quem queria muito ter uma discussão pelo telefone. «Li
os teus emails, compreendo a tua posição. Mas espero que compreendas que
eu não trabalho para essa mulher – nem sequer para ti. Trabalho para o
povo britânico, e se comecei a interessar-me por aquela região, se tenho
vindo a ficar cada vez mais preocupada…»
«Sim, mamã, mas não podes ficar cada vez mais preocupada com outra
coisa qualquer?»
«Não te interessa quem são os vossos parceiros neste projeto? Eu
conheço-te, querida, e sei que não és nenhuma mercenária, sei que tens
ideais – fui eu que te criei, bolas, portanto sei. Estudei o problema a fundo,
a Miriam também, e chegámos à conclusão de que nesta altura a questão
dos direitos humanos está a ficar verdadeiramente insustentável – oxalá não
estivesse, para vosso bem, mas está. Querida, não queres saber…»
«Mamã, desculpa – ligo-te mais tarde – tenho de desligar.»
Fern, num fato que lhe caía mal, claramente alugado, um pouco curto nos
tornozelos, vinha na minha direção, acenando desajeitadamente, e acho que
só nesse momento me apercebi do ponto a que tinha chegado o meu
isolamento. Para mim ele era uma figura recortada e colada na fotografia
errada, no momento errado. Sorriu, abriu as portas de correr, com a cabeça
tombada para um lado como um terrier: «Ah, mas estás lindíssima.»
«Porque é que ninguém me disse que vinhas? Porque é que tu não me
disseste?»
Ele passou os dedos por dentro de uns caracóis meio domados por um gel
barato e fez um ar de cordeirinho, qual rapazinho de escola apanhado numa
falta de pouca importância.
«Bem, vim tratar de um assunto confidencial. É ridículo, mas a verdade é
que não podia dizer-te, desculpa. Quiseram manter a coisa em sigilo.»
Olhei para onde ele estava a apontar e vi Lamin. Estava sentado na mesa
principal, de fato branco, como o noivo num casamento, com Judy de um
lado e Aimee do outro.
«Jesus Cristo.»
«Não, não, penso que não foi ele. A não ser que trabalhe para o
Departamento de Estado.» Deu um passo em frente e pousou as mãos no
muro de proteção. «Mas que vista!»
Tínhamos a cidade inteira aos pés. Eu encostei-me ao muro, preferindo
observar Fern, confirmar que era real, e depois ver Lamin receber uma fatia
de bolo de um empregado que passava. Tentei encontrar uma explicação
para o pânico que sentia. Era mais do que o simples facto de ser mantida na
ignorância, era uma rejeição da forma como ordenava a minha realidade
pessoal. Porque na minha cabeça, naquela altura – como talvez aconteça
com a maioria dos jovens – eu era o centro das coisas, a única pessoa no
mundo com verdadeira liberdade. Andava daqui para ali, a apreciar a vida
tal como ela se me apresentava, mas todas as outras pessoas que faziam
parte destes cenários, todas as figuras secundárias, só tinham lugar nos
compartimentos em que eu as havia colocado. Fern eternamente na casa
cor-de-rosa, Lamin confinado aos caminhos de terra da aldeia. Que estavam
a fazer aqui, agora, na minha Nova Iorque? Não sabia como conversar com
nenhum deles no Rainbow Room, não sabia ao certo qual devia ser a
relação entre nós, ou de que é que, neste contexto, era devedora ou credora.
Tentei imaginar o que Lamin estava a sentir neste preciso momento,
finalmente do outro lado da matriz, e se tinha alguém que o guiasse por este
desconcertante mundo novo, alguém que lhe explicasse as obscenas
quantidades de dinheiro que tinham sido esbanjadas aqui em coisas como
balões de hélio e pãezinhos com tinta de choco e quatrocentas peónias. Mas
quem estava ao lado dele era Aimee e não eu, e ela não tinha esse tipo de
preocupações, isso via eu daqui, este era o seu mundo e Lamin tinha apenas
sido convidado para entrar nele como podia ter sido qualquer outra pessoa,
como um privilégio e uma dádiva, da mesma forma que antigamente as
rainhas ofereciam a sua proteção com toda a naturalidade. Na cabeça dela
tudo era destino, sempre fora, e, portanto, essencialmente simples. Era
exatamente para isso que eu e Judy e Fern e todos os outros éramos pagos:
para mantermos a vida simples – para ela. Caminhávamos por entre os
limos emaranhados do fundo para que ela pudesse flutuar à superfície.
«Mas pronto, ainda bem que vim. Queria ver-te.» Fern estendeu o braço e
afagou-me ao de leve o ombro direito, e na altura pensei que estava
simplesmente a sacudir algum bocadinho de pó, tinha a cabeça noutro lado,
fixada nesta imagem de mim presa nos limos e Aimee flutuando
serenamente por cima da minha cabeça. Depois a outra mão dele pousou no
meu outro ombro: continuei sem compreender. Tal como todos os outros
convidados para a festa, com a possível exceção de Fern, não conseguia
tirar os olhos de Lamin e Aimee.
«Meu Deus, olha para aquilo!»
Fern olhou rapidamente de relance para onde o meu dedo apontava e
apanhou Lamin e Aimee no momento de trocarem um beijo breve. Acenou
com a cabeça: «Ah, quer dizer que já nem escondem!»
«Jesus Cristo. Vai casar com ele? Vai adotá-lo?
«Que interessa isso? Não quero falar dela.»
De repente, Fern prendeu as minhas mãos nas suas, e quando me virei
descobri que estava a fitar-me com uma intensidade cómica.
«Que estás a fazer, Fern?»
«Estás a fingir que és cínica» – continuava a procurar os meus olhos com
a mesma força com que eu procurava evitar os dele – «mas o que eu acho é
que estás com medo.»
No sotaque dele, isto parecia uma fala de uma das telenovelas mexicanas
a que costumávamos assistir com metade da aldeia, às sextas-feiras à tarde,
na sala de televisão da escola. Não consegui conter-me – ri-me. As
sobrancelhas dele juntaram-se numa linha triste.
«Por favor não te rias de mim.» Olhou-se, e eu também o olhei: penso
que era a primeira vez que o via sem ser em calções de lona. «A verdade é
que não sei como hei de andar vestido em Nova Iorque.»
Eu libertei as minhas mãos das mãos dele.
«Fern, não sei o que pensas que isto é. A verdade é que não me
conheces.»
«De facto não é fácil conhecer-te bem. Mas quero conhecer-te. Estar
apaixonado é isso mesmo. Querer conhecer melhor alguém.»
Pareceu-me que a situação era tão constrangedora que ele tinha
simplesmente de desaparecer naquele momento – da mesma forma que
cenas deste tipo nas telenovelas são cortadas para entrar um anúncio –
porque se assim não fosse não via como íamos atravessar os dois minutos
seguintes. Ele não se mexeu do sítio. Pegou em duas flutes de champanhe
da bandeja de um empregado que ia a passar e bebeu a sua de um gole só.
«Não tens nada para me dizer? Estou a oferecer-te o meu coração!»
«Oh meu Deus – Fern – por favor! Não digas essas coisas! Eu não quero
o teu coração! Não quero ser responsável pelo coração de mais ninguém.
Por nada de mais ninguém!»
Ele pareceu confuso: «Uma ideia estranha. Enquanto estás viva neste
mundo és responsável.»
«Por mim mesma.» Desta vez fui eu que bebi a flute inteira. «Só quero
ser responsável por mim mesma.»
«Há alturas nesta vida em que temos de correr riscos por outras pessoas.
Repara na Aimee.»
«Reparo na Aimee?»
«Não podes deixar de a admirar. Não se envergonha. Ama este rapaz.
Provavelmente isto vai criar-lhe uma data de problemas.»
«Criar-nos, queres tu dizer. Vai criar-nos uma data de problemas.»
«Mas não se importa com o que os outros pensam.»
«Isso é porque, como de costume, não faz ideia daquilo em que se está a
meter. É tudo um absurdo.»
Estavam encostados um ao outro, a ver o ilusionista, um cavalheiro
elegante com um fato de Savile Row e laço, que já tinha estado no oitavo
aniversário de Jay. Estava a fazer o truque das argolas chinesas. A luz
entrava a jorros no Rainbow Room e as argolas encaixavam-se e
desencaixavam-se, apesar da sua aparente solidez. Lamin estava fascinado –
toda a gente estava. Eu ouvi, muito baixo, música de oração chinesa e
compreendi, no abstrato, que devia fazer parte do efeito pretendido.
Percebia o que toda a gente estava a sentir, mas não conseguia acompanhá-
los e não sentia o mesmo.
«Estás com ciúmes?»
«Gostava de conseguir iludir-me como ela. Tenho ciúmes de todas as
pessoas inconscientes como ela. Um pouco de ignorância nunca a deteve.
Nada a detém.»
Fern esvaziou o copo e pousou-o desajeitadamente no chão.
«Não devia ter falado. Penso que interpretei mal a situação.»
A linguagem amorosa dele tinha sido muito pateta, mas agora, que
regressava à mais habitual linguagem administrativa, tive pena. Virou
costas e voltou para dentro. O ilusionista terminou a atuação. Vi Aimee
levantar-se e aproximar-se do palco pequeno e arredondado. Jay foi
chamado, ou pelo menos juntou-se a ela, depois Kara, depois Lamin. Foram
rodeados por todos os presentes, que formavam um crescente de adoração.
Pelos vistos, eu era a única pessoa que continuava cá fora, a olhar lá para
dentro. Com um braço Aimee envolvia Jay e Kara, com o outro erguia a
mão esquerda de Lamin em pose de triunfo. Toda a gente bateu palmas e
deu vivas, num rumor abafado pelo vidro duplo. Aimee manteve aquela
posição, uma sala cheia de máquinas fotográficas disparou os flashes. Do
sítio em que eu estava, era uma pose que fundia muitos períodos da vida
dela num só: mãe e amante, irmã mais velha, melhor amiga, superstar e
mulher de posses. Mas porque é que havia de apoderar-se de tudo, ter tudo,
fazer tudo, ser toda a gente, em todos os lugares, em todos os momentos?
7

Aquilo de que guardo a memória mais viva é do calor do corpo dela


quando saía a correr do palco para os meus braços, na coxia, onde eu já a
esperava com uma saia travada para substituir o vestido de cetim, ou uma
cauda preta de gato para lhe pregar no fundo das costas – depois de se ter
libertado da saia travada com um meneio do corpo – e lenços de papel
novos para limpar o suor que sempre lhe brotava da cana do nariz sardento.
É claro que havia muito mais garotos e garotas a quem tinha de entregar
pistolas ou bengalas, ou compor um alfinete de gravata, endireitar uma
costura ou pôr com cuidado um alfinete de dama, mas é de Tracey que me
lembro, apoiada no meu cotovelo para se equilibrar com uma das mãos e
entrar agilmente numas calças de meia perna verde-claras a que eu depois
corria o fecho lateral, tendo o cuidado de não lhe arrepanhar a pele, antes de
me ajoelhar para lhe apertar os atacadores dos sapatos de sapateado brancos
com tacão laminado. Durante estas mudanças rápidas estava sempre séria e
calada. Nunca dava risadinhas nem sinais de agitação como as outras Hot
Box Girls, nem se mostrava insegura ou a necessitar de conforto, como
depressa aprendi que era típico das coristas, mas estranho à natureza de
Tracey. Enquanto eu a vestia ou despia mantinha-se atenta ao que se
passava no palco. Se podia ver o espetáculo, via. Se estava presa num
camarim dos bastidores e o acompanhava pela instalação sonora,
concentrava-se de tal maneira naquilo que estava a ouvir que era impossível
conversar com ela. Não importava quantas vezes via o espetáculo, nunca se
cansava de o ver, estava sempre ansiosa por voltar a entrar em cena. Tudo o
que se passava nos bastidores a aborrecia. A sua verdadeira vida era lá
dentro, naquela ficção, debaixo das luzes, e isso deixava-me confusa porque
sabia, melhor do que ninguém do elenco, que ela tinha uma relação secreta
com uma das estrelas, um homem casado. Fazia o papel de Irmão Arvide
Abernathy, o bondoso cavalheiro mais velho que toca tambor baixo na
banda do Exército de Salvação. Não era necessário porem-lhe spray
cinzento no cabelo, era quase do triplo da idade de Tracey e já tinha muitos,
um afro sal-e-pimenta que contribuía para aquilo a que os críticos de teatro
gostam de chamar «distinção». Na vida real era nascido e criado no Quénia,
seguido de uma passagem pela RADA34, seguida de outra pela Royal
Shakespeare Company: tinha uma rica dicção shakespeariana, da qual quase
toda a gente se ria nas suas costas, mas que eu gostava de ouvir,
principalmente em palco, era luxuriante, um autêntico veludo verbal. O
caso amoroso entre os dois era vivido em pequenas bolsas de tempo, sem
liberdade para se expandir. Em palco quase não contracenavam – as suas
personagens eram oriundas de dois mundos diferentes, uma casa de oração
e um antro de pecado – e fora dele tudo era clandestino e atribulado. Mas eu
desempenhava de bom grado o papel de intermediária, procurando camarins
vazios, ficando de guarda, mentindo por eles quando era preciso – dava-me
alguma coisa de concreto para fazer do meu tempo, em vez de me
perguntar, como fazia quase todas as noites, que diabo estava a fazer ali.
Observar a relação deles também era interessante para mim, dada a forma
curiosa como se construía. Sempre que o pobre homem via Tracey parecia
que ia morrer de amor por ela, mas ela nunca era muito gentil com ele, pelo
menos era o que me parecia, e muitas vezes ouvi-a chamar-lhe velho
maluco, ou provocá-lo por ser casado com uma mulher branca, ou dizer
piadas cruéis sobre a sua líbido envelhecida. Uma vez interrompi-os por
engano, entrando num camarim onde não sabia que eles estavam, e deparei-
me com uma cena singular: ele estava de joelhos no chão, completamente
vestido, mas de cabeça baixa e claramente a chorar, e ela estava sentada
num banco, de costas para ele, ao espelho, a pôr batom. «Por favor não
faças isso», ouvi-a dizer enquanto fechava a porta. «E levanta-te. Levanta a
merda dos joelhos...» Mais tarde contou-me que ele se propunha deixar a
mulher. Para mim, o mais estranho de tudo na ambivalência dela era que
subvertia gravemente as hierarquias do mundo teatral em que vivia, onde
cada elo da produção tinha um valor exato e o correspondente poder, e
todas as relações obedeciam rigorosamente a um determinado sistema. Em
termos sociais, práticos, sexuais, uma estrela feminina valia tanto quanto as
vinte coristas juntas, por exemplo, e a Hot Box Girl Number One valia
cerca de três coristas e todas as substitutas, enquanto um papel masculino
falado, de qualquer tipo, era igual a todas as mulheres em cena juntas –
exceto talvez a atriz principal – e uma estrela masculina até podia cunhar
moeda, quando entrava numa sala esta reordenava-se à volta dele, quando
escolhia uma corista esta submetia-se imediatamente a ele, quando sugeria
uma alteração o diretor endireitava-se na cadeira e escutava-o. Este sistema
era tão sólido que resistia a revoluções exteriores. Por exemplo, os diretores
tinham começado a formar elencos que cruzavam e contrariavam as velhas
separações de classe e de cor – havia Reis Henriques negros e Ricardos III
cockneys e Arvides Abernathys quenianos que falavam exatamente como
Larry Olivier – mas as velhas hierarquias das categorias em cena
continuavam firmes como sempre. Na minha primeira semana, perdida nos
bastidores e baralhada com o sítio do armário dos adereços, intercetei uma
linda rapariga indiana em corpete que passava por mim a correr e tentei
pedir-lhe ajuda. «Não me perguntes a mim», disse sem abrandar, «eu não
sou ninguém...» O caso de Tracey era para mim uma forma de vingança
sobre tudo aquilo: era como ver um gato doméstico apanhar um leão,
domesticá-lo, tratá-lo como um cão.

Eu era a única pessoa com quem os dois amantes podiam conviver fora de
horas. Não podiam ir ao Coach and Horses com o resto do elenco, mas
sentiam a mesma necessidade de um suplemento de adrenalina com alto
teor de álcool no fim do espetáculo, pelo que iam ao Colony Room, onde
não ia mais ninguém da companhia, mas do qual ele era um membro antigo.
Muitas vezes convidavam-me para ir com eles. Aqui todos o tratavam por
«Chalky», e sabiam o que ele bebia – uísque e ginger ale – e havia sempre
um à sua espera quando entrava, às dez e quarenta e cinco em ponto. Ele
adorava aquilo, e a alcunha estúpida, porque era um hábito antigo e
elegante atribuir alcunhas, e tudo quanto fosse elegante e inglês era objeto
da sua devoção. Reparei que raramente falava do Quénia ou de África. Uma
noite tentei fazer-lhe perguntas sobre a sua terra, mas ele irritou-se: «Oiçam,
meninas, vocês, que cresceram aqui, pensam que o meu país é só crianças
com fome e Live Aid ou lá o que pensam que é. Pois bem, o meu pai era
professor universitário de economia, a minha mãe fazia parte do governo,
eu cresci num condomínio muito bonito, fiquem sabendo, com criados,
cozinheira, jardineiro...» Continuou mais algum tempo neste tom e depois
voltou ao seu tema preferido, os dias de glória do Soho. Eu senti-me
envergonhada, mas também achei que ele me tinha interpretado mal de
propósito: claro que sabia que o mundo dele existia – mundos como aquele
existem em todo o lado. Não era isso que queria saber.
A sua verdadeira lealdade ia para o bar propriamente dito, afeição que se
esforçava por traduzir para duas raparigas que mal sabiam quem era Francis
Bacon e a única coisa que viam era uma sala estreita, manchada de fumo, as
pálidas paredes verdes e a anarquia infrene – «merda artística», como lhe
chamava Tracey – que tomava conta de todas as superfícies. Para irritar o
amante, Tracey gostava de alardear a sua ignorância, mas, embora fingisse
o contrário, dava-me a sensação de que muitas vezes estava interessada nas
histórias compridas, digestivas e embriagadas que ele contava, sobre
artistas, atores e escritores que conhecera, suas vidas e obras, com quem
tinham dormido e o que tinham bebido ou tomado e como tinham morrido.
Quando Chalky ia ao quarto de banho ou saía para comprar cigarros de
erva, muitas vezes a surpreendi em contemplação de um ou outro quadro
próximo, acompanhando o movimento do pincel, pensava eu, olhando
concentradamente, com a acutilância que punha em tudo. E quando ele
voltava cambaleante e retomava o assunto, ela revirava os olhos, mas estava
a ouvir, tenho a certeza. Chalky tinha conhecido Bacon superficialmente, o
suficiente para beberem um copo juntos, e haviam tido um bom amigo
comum, um jovem ator chamado Paul, homem de «grande beleza, grande
encanto pessoal», filho de pais ganeses, que durante algum tempo vivera em
Battersea com o namorado e com Bacon num triângulo amoroso. «E o que
têm de compreender», disse Chalky (depois de um certo número de uísques
havia sempre coisas que tínhamos de compreender), «o que têm de
compreender é que aqui no Soho, naquele tempo, não havia negros, não
havia brancos. Nada de tão banal. Não era como em Brixton, não, aqui
éramos todos irmãos, na arte, no amor» – apertou o braço de Tracey – «em
tudo. Depois o Paul conseguiu aquele papel em Um Gosto de Mel – viemos
cá comemorar – e toda a gente falava nisso, e sentíamo-nos o centro de
tudo, da Londres dançante, da Londres boémia, da Londres literária, da
Londres teatral, e este tinha passado a ser também o nosso país. Era lindo!
Podem crer, se Londres começasse e acabasse em Dean Street tudo seria...
felicidade.»
Tracey deslizou do colo dele para o banco alto. «És um bêbedo nojento»,
resmungou, e o barman, que ouviu o que ela tinha dito, riu-se e disse-lhe:
«Receio bem que essa seja uma condição para se ser sócio disto, linda...»
Chalky virou-se para Tracey e beijou-a desajeitadamente: «Come, come,
you wasp; i’ faith, you are too angry...»35 «Vejam só o que eu tenho de
aturar!» exclamou Tracey, repelindo-o. Chalky tinha uma predileção por
baladas shakespearianas de pendor elegíaco, que faziam Tracey trepar pelas
paredes verdes, em parte porque tinha inveja da bela voz dele mas também
porque quando Chalky começava a cantar coisas que metiam salgueiros e
bruxas infiéis era sinal seguro de que teriam de o levar quase ao colo pela
escada íngreme e bamba, enfiá-lo num táxi e reenviá-lo para junto da
mulher branca, com a corrida paga com dinheiro que Tracey lhe havia
surripiado da carteira, tirando normalmente um pouco mais do que o
estritamente necessário. Mas era uma mulher pragmática, só acabava a
noite quando tivesse aprendido alguma coisa. Estou convencida de que
estava a tentar recuperar o que tinha perdido nos últimos três anos e eu
tinha ganhado: uma educação gratuita.

O espetáculo teve críticas muito boas e em Novembro, nos bastidores,


cinco minutos antes de subir o pano, os produtores reuniram-nos e
comunicaram-nos que a temporada ia ser prolongada para além do prazo do
Natal e entrar pela primavera. Os artistas ficaram encantados e nessa noite
levaram o encantamento consigo para o palco. Eu fiquei na coxia, feliz por
eles, mas com a minha novidade secreta guardada cá dentro, ainda não a
tinha dado à direção nem a Tracey. Uma das minhas candidaturas tinha
finalmente dado frutos: um lugar de assistente de produção, um estágio
remunerado, na recém-lançada versão britânica da YTV. Tinha ido a uma
entrevista na semana anterior, o entrevistador tinha engraçado comigo e
tinha-me dito, na minha opinião com alguma falta de profissionalismo,
atendendo à fila de raparigas que esperavam lá fora, que o lugar era meu,
com entrada imediata. Eram só treze mil libras, mas se continuasse a viver
em casa do meu pai era mais do que suficiente. Estava feliz, mas hesitava
em contar a Tracey, sem propriamente me perguntar qual era a origem da
minha hesitação. As Hot Box Girls passaram por mim a correr, vindas
diretamente da caracterização e entrando em cena vestidas de gatas, com
Adelaide no centro da primeira fila e a Hot Box Girl Number One à sua
esquerda. Encheram o peito de ar provocadoramente, lamberam as patas,
agarraram a cauda – uma das quais eu tinha prendido em Tracey dez
minutos antes –, acocoraram-se como gatinhas prontas a atacar, e
começaram a cantar, sobre «papás» malvados que nos apertam com muita
força e nos dão vontade de vadiar, e outros, desconhecidos mas atenciosos,
que nos fazem sentir em casa... Era sempre um número exuberante, mas
naquela noite foi uma verdadeira sensação. Do lugar onde eu estava, com
vista desimpedida para a primeira fila de público, via o desejo indisfarçado
nos olhos dos homens, e que muitos desses olhos eram especificamente
dirigidos a Tracey quando por direito deviam ser dirigidos à mulher que
fazia o papel de Adelaide. Todas as outras eram ofuscadas pela agilidade
das pernas de Tracey naqueles colãs, pela vitalidade pura dos seus
movimentos, verdadeiramente felinos, extraordinariamente femininos, que
eu invejava e não podia ter esperanças de criar no meu corpo, por muitas
caudas que me pregassem. Aquele número era feito por treze dançarinas,
mas só os movimentos de Tracey interessavam verdadeiramente, e quando
ela saiu de cena a correr com as outras e eu lhe disse que tinha dançado
maravilhosamente, não duvidou nem me pediu, ao contrário das outras, que
repetisse o elogio, disse simplesmente «Sim, eu sei», curvou-se, despiu os
colãs e entregou-mos, feitos numa bola.
Nessa noite o elenco comemorou no Coach and Horses. Tracey e Chalky
foram com os outros e eu também, mas estávamos habituados à intensidade
alcoolizada e íntima do Colony Room – e também aos nossos lugares, e a
ouvir-nos falar – e ao fim de uns dez minutos em pé, guinchando a plenos
pulmões sem que nos servissem, Tracey quis vir-se embora. Pensei que se
referia a voltarmos para o Colony Room, com Chalky, e fazermos o que
fazíamos habitualmente, ela e o amante beberem de mais e discutirem a sua
situação impossível: o desejo dele de contar à mulher, a determinação dela
em que ele não fizesse isso, a complicação dos filhos dele – que tinham
mais ou menos a nossa idade – e a possibilidade, temida por Chalky mas
quanto a mim inverosímil, de os jornais descobrirem e contarem a história,
mas quando ele foi ao quarto de banho Tracey puxou-me para fora e disse
«Hoje não quero fazê-lo» – lembro-me daquele «fazê-lo». «Vamos antes
para tua casa e apanhamos uma cadela.»
Eram perto de onze e meia quando chegámos a Kilburn. Tracey tinha
enrolado um no comboio e descemos a rua a fumá-lo, lembrando-nos dos
tempos em que fazíamos a mesma coisa pela mesma rua com vinte anos,
quinze, treze, doze...
No caminho contei-lhe a minha novidade. Parecia fascinante, YTV, três
letras vindas de um mundo que nos tinha obcecado na adolescência, e quase
senti vergonha de abordar o assunto, obscenamente feliz, como se estivesse
prestes a aparecer no canal em vez de dar entrada ao correio britânico e
fazer o chá britânico. Tracey estacou e tirou-me o charro da mão.
«Não me digas que te vais despedir agora. A meio de uma temporada?»
Eu encolhi os ombros e confessei: «Na terça-feira. Ficaste muito
chateada?»
Ela não respondeu. Caminhámos um bocado em silêncio e depois disse:
«Também estás a pensar mudar de casa?»
Não estava. Tinha descoberto que gostava de viver com o meu pai, e de
estar perto da minha mãe – mas não no mesmo espaço que ela. Para minha
própria surpresa, não tinha pressa de me ir embora. E lembro-me de o ter
dito muitas vezes a Tracey que «amava» o velho bairro, querendo
impressioná-la, suponho, provar-lhe que os meus pés continuavam muito
firmes no chão local, que independentemente das mudanças que a minha
sorte sofresse continuava a viver com o meu pai, da mesma forma que ela
vivia com a sua mãe. Ouviu, fez um sorriso um tanto fechado, empinou o
nariz e não deu opinião. Passados uns minutos chegámos a casa do meu pai
e verifiquei que não tinha a chave. Esquecia-me dela com frequência, mas
não gostava de tocar à campainha – não fosse ele já estar a dormir, sabendo
que tinha de se levantar cedo – e por isso dava a volta e entrava pela
cozinha, que normalmente estava aberta. Mas naquele momento estava a
acabar de fumar o charro e não queria arriscar-me a que o meu pai me visse
– tínhamo-nos prometido recentemente que íamos deixar de fumar. Por isso
mandei Tracey. Passado um minuto ela voltou e disse que a cozinha estava
fechada e o melhor era irmos para casa dela.
O dia seguinte era sábado. Tracey saiu cedo para a matiné, mas eu não
trabalhava ao sábado. Voltei para casa do meu pai e passei a tarde com ele.
Não vi a carta nesse dia, embora talvez já estivesse em cima do tapete.
Encontrei-a no domingo de manhã. Tinha sido metida por baixo da porta e
era-me endereçada, escrita à mão, com uma pequena nódoa de comida ao
canto de uma página, e penso nela como a última carta verdadeiramente
pessoal que recebi, porque apesar de Tracey não ter computador, por
enquanto, a revolução estava a acontecer à nossa volta e em breve o único
papel endereçado a mim viria de bancos, serviços públicos e governo, com
uma janela de plástico a avisar-me do que vinha lá dentro. Esta carta não
trazia nenhum aviso – havia anos que não via a caligrafia de Tracey – e
abri-a sentada à mesa do meu pai com ele sentado na minha frente. «De
quem é?», perguntou, e nas primeiras linhas eu também não sabia. Dois
minutos depois, a única dúvida que me restava era se era realidade ou
ficção. Tinha de ser ficção: acreditar noutra coisa era tornar impossível toda
a minha vida atual, além de destruir grande parte da vida que havia levado
até agora. Era permitir que Tracey pusesse uma bomba por baixo de mim e
me fizesse explodir em estilhaços. Reli-a, para ter a certeza de que tinha
compreendido. Começava por falar do seu dever, dizendo tratar-se de um
dever horrível, e de como se tinha perguntado várias vezes («perguntado»
mal escrito) o que havia de fazer e tinha concluído que não tinha alternativa
(«alternativa» mal escrito). Descrevia a noite de sexta-feira como eu
também me lembrava dela: subindo a rua a caminho de casa do meu pai,
fumando um charro, até ao ponto em que ela foi pelas traseiras para entrar
pela cozinha, sem êxito. Mas aqui a cronologia dividia-se em duas, a
realidade dela e a minha, ou a ficção dela – do meu ponto de vista – e o meu
facto. Na sua versão, deu a volta à casa do meu pai, parou no pequeno pátio
de gravilha, e então, como lhe parecesse que a cozinha estava fechada à
chave, deu dois passos à esquerda e encostou o nariz à janela das traseiras, a
janela do quarto do meu pai, aquele onde eu dormia, pôs as mãos em
concha encostadas ao vidro e espreitou. Viu o meu pai, nu, em cima de
qualquer coisa, fazendo movimentos para cima e para baixo, e a princípio
tinha naturalmente pensado que era uma mulher, e se fosse uma mulher,
garantia-me, nunca teria falado no assunto, não lhe dizia respeito nem a
mim, mas a verdade é que não era mulher nenhuma, era uma boneca, de
tamanho natural, mas insuflada, e de cor muito escura – «como um
espantalho», dizia –, com uma meia-lua de cabelo de lã sintética e um
grande par de lábios vermelho-vivo, cor de sangue. «Estás bem, querida?»,
perguntou o meu pai, do outro lado da mesa, enquanto eu segurava aquela
carta cómica, trágica, absurda, penosa, repugnante, na mão tremente.
Respondi que estava bem, levei a carta de Tracey para o pátio das traseiras,
peguei num isqueiro e queimei-a.
34 Royal Academy of Dramatic Art. (N. do T.)

35 «Então, então, vespa minha, pois que tanto te abespinhas...» William Shakespeare, O Amansar da
Fera, II Ato, Cena 1. (N. do T.)
Sétima parte

ÚLTIMOS DIAS
1

Durante oito anos não voltei a ver Tracey. Era uma noite de maio
anormalmente quente, aquela em que saí pela primeira vez com Daniel
Kramer. Vinha à cidade de três em três meses e era um dos favoritos de
Aimee, no sentido em que, por ser bonito, não se confundia completamente
com todos os outros contabilistas e consultores financeiros e advogados de
direitos de autor que ela consultava regularmente, e por isso na mente dela
tivera direito a coisas como um nome, qualidades como uma «boa aura» e
um «sentido de humor nova-iorquino» e alguns pormenores biográficos que
conseguira fixar. Nasceu em Queens. Frequentou Stuyvesant. Joga ténis.
Tentando manter as opções tão abertas quanto possível, eu tinha sugerido
que fôssemos ao Soho e «improvisássemos», mas Aimee quis que
passássemos primeiro lá por casa a tomar uma bebida. Não era de modo
nenhum frequente, este tipo de convite íntimo, informal, mas Kramer não
me pareceu surpreendido ou alarmado quando o recebeu. Os vinte minutos
a que tivemos direito passaram-se sem que desse sinais de um
comportamento de cliente. Admirou a arte – sem exagerar – ouvindo
delicadamente Aimee repetir tudo aquilo que o negociante que lhe vendia a
arte lhe tinha dito sobre a arte quando a comprou, e rapidamente nos vimos
livres de Aimee, da imponência opressiva da casa, esgueirando-nos pelas
escadas abaixo, ambos ligeiramente tontos do champanhe de qualidade,
saindo para a Brompton Road e mergulhando numa noite quente, abafada,
húmida, a ameaçar trovoada. Ele quis atravessar a cidade a pé – tínhamos
uns vagos planos de ir ver que filmes estavam a passar no Curzon – mas eu
não era nenhuma turista e aqueles eram os meus tempos de encantamento
com os saltos altos. Propunha-me procurar um táxi quando ele, por
brincadeira, desceu o passeio e fez sinal a um triciclo que ia a passar.
«Tem uma grande coleção de arte africana», disse, enquanto nos
instalávamos nos assentos de leopardo – disse aquilo por dizer, mas eu,
precavida contra qualquer sinal de presença de um cliente, interrompi-o:
«Bem, não sei ao certo o que queres dizer com “arte africana”.»
Ele pareceu surpreendido pelo meu tom, mas conseguiu esboçar um
sorriso neutro. Dependia do negócio de Aimee e eu era uma extensão de
Aimee.
«Quase tudo aquilo que viste», comecei eu num tom mais próprio de uma
sala de aula, «é na verdade Augusta Savage. Logo, Harlem. Foi onde ela
viveu quando veio para Nova Iorque – a Aimee, quero eu dizer. É claro que
é uma grande apoiante das artes em geral.»
Agora Kramer parecia chateado. Eu fui chata. Não voltámos a falar até o
triciclo parar à esquina da Shaftesbury Avenue com a Greek Street. Quando
encostámos ao passeio fomos surpreendidos pela existência de um rapaz do
Bangladesh, cuja realidade independente havíamos esquecido por completo
até àquele momento, mas que inegavelmente nos tinha transportado até ali e
agora se virava no assento do triciclo, a cara encharcada em suor, com
dificuldade em explicar, por entre uma respiração ofegante, quanto custava
por minuto aquela forma de labuta humana. No cinema não havia nada que
quiséssemos ver. Com uma disposição ligeiramente tensa, a roupa colada ao
corpo por causa do calor, continuámos até Piccadilly Circus, sem sabermos
a que bar havíamos de ir, ou se em vez disso devíamos comer, mas já a
considerar a noite um fracasso, olhando sempre em frente e confrontados, a
cada passo, com os gigantescos cartazes luminosos dos teatros. Foi em
frente de um deles, um pouco mais adiante, que parei de repente. Uma
reposição do musical O Barco das Ilusões, uma foto do «Coro dos negros»:
lenços na cabeça, calças arregaçadas, aventais e saias de trabalho, mas tudo
feito com gosto, com cuidado, com «autenticidade», sem traços de Mammy
nem de Uncle Ben. E a rapariga mais próxima da objetiva, de boca bem
aberta a cantar, com um braço esticado bem acima da cabeça, empunhando
uma vassoura – a imagem perfeita de alegria cinética – era Tracey. Kramer
aproximou-se e espreitou por cima do meu ombro. Eu apontei com um dedo
para o nariz empinado de Tracey, como Tracey costumava apontar para a
cara de um dançarino que passava nos ecrãs dos nossos televisores.
«Eu conheço-a!»
«Ah sim?»
«Conheço-a muito bem.»
Com um piparote ele tirou um cigarro do maço, acendeu-o e mirou o
teatro de cima a baixo.
«Bem... queres ir ver?»
«Mas tu não gostas de musicais, pois não? As pessoas sérias não
gostam.»
Ele encolheu os ombros. «Estou em Londres, é um musical. É isso que se
faz em Londres, não é verdade? Ir ver um musical?»
Confiou-me o cigarro, empurrou as portas pesadas e dirigiu-se à
bilheteira. De repente tudo me parecia muito romântico e convergente e
oportuno e vi correr-me pela cabeça uma ridícula narrativa juvenil, de um
momento futuro em que explicaria a Tracey – nos bastidores de um triste
teatro de província, enquanto ela calçava um par de meias de rede velhas e
cansadas – que o preciso momento em que percebi que havia encontrado o
meu amor, o momento em que imergi na minha verdadeira felicidade, foi o
mesmo em que a descobri, por simples acaso, naquele pequeníssimo papel
que ela tivera, naquele tempo, no coro de O Barco das Ilusões, tantos anos
atrás...
Kramer voltou com dois bilhetes, excelentes lugares na segunda fila. Em
vez de jantar comprei um enorme saco de chocolates, daqueles que
raramente tinha oportunidade de comer, porque Aimee considerava essas
coisas não só nutricionalmente fatais mas também um sinal evidente de
debilidade moral. Kramer comprou dois grandes copos de plástico de mau
vinho tinto e o programa. Eu li-o e reli-o, mas não encontrei Tracey. Não
estava onde devia estar na lista alfabética do elenco, e comecei a ter receio
de estar a sofrer alguma espécie de delírio, ou de ter cometido um erro
embaraçoso. Folheei as páginas para a frente e para trás, com o suor a
brotar-me da testa – devia estar com um ar enlouquecido. «Estás bem?»,
perguntou Kramer. Estava quase a chegar ao fim de mais uma leitura do
programa quando Kramer espetou um dedo numa página para me impedir
de continuar.
«Mas não é essa a tua amiga?»
Vi outra vez: era. Tinha trocado o apelido bárbaro, vulgar – aquele pela
qual eu sempre a havia conhecido, pelo afrancesado e para mim absurdo Le
Roy. O primeiro nome também tinha sido adaptado: agora era Tracee. E na
fotografia tinha o cabelo esticado e brilhante. Soltei uma gargalhada
sonora.
Kramer olhou para mim intrigado.
«E são grandes amigas?»
«Conheço-a muito bem. Quer dizer, já não a vejo há perto de oito anos.»
Kramer franziu a testa: «Estás a ver, no mundo dos homens chamaríamos
a isso “ex-amigo”, ou, melhor ainda: “um estranho”.»
A orquestra começou a tocar. Eu estava a ler a biografia de Tracey,
analisando-a furiosamente, numa corrida contra o tempo antes que
reduzissem as luzes da sala, como se as palavras visíveis escondessem outro
conjunto, com um significado muito mais profundo que exigisse
descodificação e revelasse alguma coisa essencial sobre Tracey e a sua vida
atual:

TRACEEE LE ROY
CORISTA/DANÇARINA DO DAOMÉ
Participações teatrais:
Garotos e Garotas (Wellington Theatre); Desfile de Páscoa
(Digressão pelo Reino Unido); Grease (Digressão pelo Reino Unido);
Fame! (Scottish National Theatre); Anita, West Side Story (workshop)

Se era esta a história da vida dela, era uma desilusão. Faltavam os êxitos
ubíquos de todas as suas outras facetas artísticas: nem TV, nem cinema,
nem referência aos sítios onde se tinha «formado», o que interpretei como
significando que não tinha acabado o curso. Tirando Garotos e Garotas, não
havia mais nenhum trabalho no West End, só aquelas obscuras
«digressões». Imaginei pequenos salões paroquiais e escolas barulhentas,
matinés às moscas nos palcos de cinemas abandonados, festivais dramáticos
de segunda ordem em pequenas cidades. Mas se uma parte de mim ficou
agradada com isto, outra, não menor, ficou exasperada com a ideia de que
esta biografia de Tracee Le Roy podia ser justamente comparada – por
todos os presentes na sala que naquele momento o liam, ou por qualquer
dos atores do elenco – com qualquer das outras. Com a desta rapariga
mesmo ao lado dela no programa, a rapariga da biografia interminável,
Emily Wolff-Platt, que tinha estudado na RADA e não podia conhecer,
como eu conhecia, a enorme improbabilidade estatística de a minha amiga
estar neste palco, ou em qualquer outro – em qualquer lugar, em qualquer
contexto – e que talvez tivesse a temeridade de pensar que ela, Emily
Wolff-Platt, era uma verdadeira amiga de Tracey pelo simples facto de estar
com ela todas as noites, pelo simples facto de dançarem juntas, quando
afinal não tinha a mínima ideia de quem era Tracey ou de onde tinha vindo,
ou quanto lhe havia custado chegar até aqui. Voltei a minha atenção para a
foto da cabeça de Tracey. Bem, tinha de admitir: tinha feito bastantes
progressos. O nariz já não parecia uma atrocidade, estava mais integrado no
conjunto, e a crueldade que eu sempre lhe havia detetado na expressão era
disfarçado pelo radioso sorriso da Broadway que tinha em comum com
todos os outros atores da página. A surpresa não era ser bonita, ou sexy –
sempre fora senhora de tais atributos desde o princípio da adolescência. A
surpresa era ter-se feito tão elegante. As covinhas à Shirley Temple tinham
desaparecido, e com elas qualquer vestígio da carnalidade provocante que a
caracterizava em criança. Era-me quase impossível imaginar a sua voz, tal
como a havia conhecido, tal como a recordava, a sair desta criatura de nariz
bem feito, cabelo liso, sardas delicadas. Baixei os olhos e sorri-lhe. Tracee
Le Roy, quem andas a fingir que és agora?
«Cá vamos nós», disse Kramer, enquanto o pano subia. Pôs os cotovelos
em cima dos joelhos, as mãos em punhos infantis debaixo do queixo e fez
uma cara zombeteira: mal posso esperar.
À esquerda do palco, um carvalho do Sul, coberto de barba de velho,
primorosamente executado. À direita do palco, a sugestão de uma
cidadezinha do Mississípi. Ao centro, um barco-teatro ancorado, o Cotton
Blossom. Tracey – com mais quatro mulheres – foi a primeira a entrar em
cena, surgindo de trás do carvalho, de vassoura na mão, seguidas pelos
homens com as suas várias enxadas e pás. A orquestra tocou os acordes
iniciais de uma canção. Reconheci-a mal a ouvi, o grande número coral, e
de imediato tive uma sensação de pânico, sem saber porquê, durou um
momento, até que a própria música estimulou a memória. Vi a canção
inteira distribuída pela velha pauta, e lembrei-me também do que havia
sentido na primeira vez que a vira. E agora a letra, que em criança me
comovera, formava-se na minha boca, em consonância perfeita com o
preâmbulo da orquestra, lembrei-me do Mississípi, onde todos os «pretos»
trabalham, onde os brancos não, e agarrei o braço da cadeira e senti um
impulso de me pôr de pé – parecia a cena de um sonho – com a ideia de
obrigar Tracey a parar mesmo antes de começar, mas quando tive a ideia já
era tarde, e na letra que pensava conhecer havia palavras que tinham sido
substituídas, mas é claro que tinham – havia anos e anos que ninguém
cantava as palavras originais: «Aqui todos trabalhamos... Aqui todos
trabalhamos...»
Voltei a afundar-me na cadeira. Fiquei a ver Tracey manobrar habilmente
a vassoura para um lado e para o outro, dando-lhe vida, de tal maneira que
quase parecia mais uma presença humana em cena, como o número que
Astaire faz, com aquela chapeleira, em Núpcias Reais. A determinada altura
ficou perfeitamente alinhada com a imagem do cartaz, vassoura no ar, braço
esticado, alegria cinética. A minha vontade era retê-la para sempre naquela
posição.
Entraram em cena as verdadeiras estrelas, para iniciar a ação. Em
segundo plano, Tracey varria o degrau da entrada de uns grandes armazéns.
Estava à esquerda do palco em relação aos protagonistas, Julie LaVerne e
seu marido fiel, Steve, dois atores de cabaré que trabalham juntos no Cotton
Blossom e estão apaixonados. Mas depressa se revela, ainda antes do
intervalo, que Julie LaVerne é Julie Dozier, ou seja, não é branca, como
sempre fingiu ser, mas na verdade uma mulata trágica, que «passa», que
convence toda a gente, incluindo o próprio marido, até ao dia em que é
descoberta. Nessa altura o casal é ameaçado de prisão, porque o seu
casamento é ilegal à luz das leis de miscigenação. Steve faz um corte na
palma da mão de Julie e bebe um pouco do seu sangue: a «lei de uma gota»
– agora são ambos negros. Sob a luz difusa, no meio deste melodrama
ridículo, fui ver a biografia da atriz que fazia de Julie. Tinha um apelido
grego e não era mais escura do que Kramer.
Durante o intervalo bebi muito, e muito depressa, e falei
ininterruptamente com Kramer. Estava encostada ao balcão do bar, barrando
o acesso das outras pessoas aos empregados, esbracejando e vociferando
contra a injustiça da escolha do elenco, criticando a escassez de papéis para
atrizes como eu e o facto de mesmo quando esses papéis existiam não
estarem ao nosso alcance, havia sempre alguém que dava o papel a uma
branca, porque pelos vistos nem uma mulata trágica era competente para o
papel de mulata trágica, mesmo nos dias que correm e…
«Atrizes como tu?»
«O quê?»
«Disseste atrizes como eu.»
«Não disse, não.»
«Disseste, sim.»
«O que eu quero dizer é que o papel devia ser da Tracey.»
«Acabaste de dizer que ela não sabe cantar. Pelo que vi, é essencialmente
um papel cantado.»
«Ela canta muito bem!»
«Espera aí, porque é que estás a gritar comigo?»
Passámos a segunda parte tão calados como tínhamos estado durante a
primeira, mas desta vez o silêncio tinha uma textura diferente, deprimido
pela frieza gélida do desprezo mútuo. Só me apetecia ir-me embora dali.
Decorreram longas passagens do espetáculo sem sinais de Tracey e portanto
sem nenhum interesse para mim. O coro só reapareceu perto do fim, desta
vez sob a forma de «Dançarinos do Daomé», ou seja, africanos, do Reino
do Daomé, supostamente a atuar na Feira Mundial de Chicago de 1893. Vi
Tracey no círculo das mulheres – os homens dançavam do outro lado, num
círculo à parte – agitando os braços, agachando-se e cantando numa língua
africana inventada, enquanto os homens, em resposta, batucavam com os
pés e batiam com as lanças no chão: gunga, hungo, bunga, guba! Não pude
deixar de pensar na minha mãe, e na série de histórias do Daomé que
contava: a orgulhosa história dos reis; a forma e o toque das conchas de
cauri, usadas como dinheiro, o batalhão das amazonas, formado
exclusivamente por mulheres, tomando prisioneiros de guerra como
escravos para o reino, ou simplesmente decapitando os inimigos e erguendo
as suas cabeças nas mãos. Da mesma forma que as outras crianças ouvem
contar as histórias do Capuchinho Vermelho e da Menina das Tranças de
Ouro, eu ouvia as desta «Esparta Negra», o nobre reino do Daomé, que
lutou até ao fim para resistir aos franceses. Mas era praticamente impossível
conciliar estas memórias com a farsa a que agora assistia, no palco e fora
dele, porque a maioria das pessoas à minha volta não sabiam o que vinha a
seguir no espetáculo e por isso, compreendi, sentiam que estavam a assistir
a uma espécie de vergonhoso número de menestréis e desejavam que aquilo
acabasse. Também no palco o «público» presente na feira mundial se
afastava dos Dançarinos do Daomé, embora não por vergonha mas sim por
medo, medo de que estes dançarinos talvez fossem maus, como o resto da
tribo a que pertenciam, com lanças que eram armas de verdade e não
adereços. Olhei para Kramer; estava a remexer-se na cadeira. Voltei a olhar
para o palco e para Tracey. Estava a divertir-se com o desconforto geral,
exatamente como em criança sempre apreciara momentos como aquele.
Brandia a lança e rugia, marchando com os restantes, sobre os receosos
visitantes da feira, e depois ria-se com os restantes enquanto o público saía
de cena a correr. Livres de fazerem o que quisessem, os Dançarinos de
Daomé davam largas à imaginação: cantavam a sua alegria e cansaço,
alegria por verem os brancos pelas costas e cansaço, muito cansaço, de
estarem num «espetáculo do Daomé».
E agora o público – o verdadeiro público – compreendia. Compreendia
que aquilo a que estava a assistir pretendia ser divertido, irónico, que
aqueles dançarinos eram americanos, não africanos – sim, finalmente
percebia que lhe tinham pregado uma partida. Aquela gente não era do
Daomé coisa nenhuma! Afinal eram simplesmente negros, vindos
diretamente da Avenida A, na cidade de Nova Iorque! Kramer deu uma
risadinha, a música mudou para ragtime e eu senti os meus pés agitarem-se,
tentando reproduzir na espessa alcatifa vermelha o difícil sapateado
silencioso que Tracey estava a executar mesmo por cima de mim, no palco
de madeira. Os passos eram-me familiares – sê-lo-iam, certamente, para
qualquer dançarino – e a minha vontade era estar lá em cima com ela. Eu
estava presa em Londres, no ano de 2005, mas Tracey estava em Chicago
em 1893, e o Daomé cem anos antes disso, e em todos os lugares e tempos
aquele povo mexia os pés da mesma maneira. Tive tantos ciúmes que
chorei.

Terminado o espetáculo, saí da longa fila para os sanitários das senhoras e


localizei Kramer antes de ele me ver: estava de pé no átrio, enfadado e
zangado, com o meu casaco no braço. Lá fora tinha começado a chover
torrencialmente.
«Então vou andando», disse, passando-me o casaco, com dificuldade em
olhar-me nos olhos. «Certamente queres ir cumprimentar a tua “amiga”.»
Levantou a gola e saiu para aquela noite horrível, sem guarda-chuva,
ainda zangado. Nada magoa mais um homem do que ser ignorado. Mas
fiquei impressionada: a aversão que sentia por mim era claramente mais
forte do que qualquer receio da minha influência sobre a sua patroa. Mal ele
saiu da minha vista dobrei a esquina do teatro e descobri que era
exatamente como se via nos filmes antigos: a porta dizia «Porta dos
artistas» e havia um razoável ajuntamento de pessoas à espera de que o
elenco saísse, apesar da chuva, agarradas aos caderninhos e às
esferográficas.
Sem guarda-chuva, encostei-me à parede, virada para a rua, protegida
apenas por um toldo estreito. Não sabia o que ia dizer nem como ia dirigir-
me a ela, mas estava a começar a pensar nisso quando parou um carro na
travessa, conduzido pela mãe de Tracey. Não tinha mudado quase nada.
Pelo para-brisas raiado de chuva vi-lhe as mesmas argolas de fantasia nas
orelhas, o triplo queixo, o cabelo esticado para trás, um cigarro pendente da
boca. Virei-me imediatamente para a parede e, enquanto ela estacionava,
fugi dali. Desci a Shaftesbury Avenue a correr, cada vez mais encharcada, a
pensar no que tinha visto no banco traseiro daquele carro: duas crianças
pequenas a dormir, presas às cadeirinhas. Perguntei-me se aquilo, e mais
nada, seria a verdadeira razão para a biografia de Tracey levar tão pouco
tempo a ler.
2

Uma pessoa quer acreditar que há limites para aquilo que o dinheiro pode
fazer acontecer, linhas que não pode transpor. Lamin naquele fato branco no
Rainbow Room parecia um exemplo da lição contrária. Mas a verdade era
que ainda não tinha o visto, pelo menos por enquanto. Tinha um passaporte
novo e uma data de regresso. E quando chegasse a altura de se ir embora eu
acompanhá-lo-ia de regresso à aldeia, juntamente com Fern, e ficaria lá uma
semana para concluir o relatório anual para a administração da fundação.
Depois Fern ficaria e eu voaria para Londres, para estar com as crianças e
coordenar a sua visita trimestral aos respetivos pais. Foi o que nos
comunicou Judy. Até lá, um mês juntos em Nova Iorque.
Na última década, sempre que estávamos na cidade, a minha base tinha
sido o quarto da criada, no rés do chão, ao pé da cozinha, se bem que de vez
em quando houvesse uma conversa pouco convicta sobre a possibilidade de
um espaço separado – um hotel, um apartamento arrendado – que nunca
levava a lado nenhum e depressa caía no esquecimento. Mas desta vez
tinham-me arrendado um espaço mesmo antes de eu chegar, um
apartamento de dois quartos na West 10th Street, tetos altos, fogões de sala,
o primeiro andar inteiro de um belo edifício de grés vermelho. Emma
Lazarus tinha em tempos vivido ali: uma placa azul por baixo da minha
janela evocava as suas massas amontoadas, ciosas de liberdade. A minha
vista era um abrunheiro-bravo rosa-vivo em plena floração. Erradamente,
interpretei tudo isto como uma promoção. Lamin apareceu e eu percebi que
tinha saído para ele poder entrar.
«Afinal que se passa contigo?», perguntou-me Judy, na manhã seguinte
ao aniversário de Jay. Sem rodeios, apenas aquele grito estridente
chegando-me ao ouvido através do telefone enquanto tentava dizer ao rapaz
do bar caribenho que não queria maçã na salada verde. «Tiveste alguma
discussão com o Fernando? É que nesta altura não podemos hospedá-lo cá
em casa – não há quarto para ele na hospedaria. A hospedaria está cheia,
como deves ter reparado. Os nossos pombinhos querem privacidade. A
nossa ideia era que ele passasse umas semanas contigo, no apartamento,
estava tudo combinado – agora, de repente, está renitente.»
«Bem, não sei nada disso. Porque ninguém me disse nada. Judy, tu nem
sequer me disseste que o Fern vinha a Nova Iorque!»
Judy fez um ruído de impaciência: «Ouve, foi a Aimee que quis que eu
tratasse do assunto. Ele tinha de vir acompanhar o Lamin, a Aimee não
queria que caísse nas bocas do mundo... Era delicado, e eu tratei do
assunto.»
«Agora também tratas de quem vive comigo?»
«Oh, querida, desculpa – és tu que pagas a renda?»
Consegui desligar e telefonei a Fern. Ia de táxi, algures na West Side
Highway. Ouvia-se a sirene de um paquete a atracar.
«É melhor eu arranjar outro sítio. Sim, é melhor. Esta tarde procuro um
sítio em...» Ouvi um triste restolhar de papéis. «Bom, não interessa. Algures
em Midtown.»
«Mas Fern, tu não conheces a cidade – e não vais querer pagar uma
renda, acredita em mim. Fica com o quarto. Vou ficar a sentir-me
pessimamente se não ficares. Eu vou estar dia e noite em casa da Aimee –
tem o espetáculo daqui a duas semanas, vamos ter trabalho até às orelhas.
Garanto que quase não vais pôr-me a vista em cima.»
Fechou uma janela, os ventos do rio deixaram de invadir a sala. O
silêncio era irremediavelmente íntimo.
«Gosto de te ver.»
«Oh, Fern... Por favor fica com o quarto e pronto!»
Nessa noite, o único sinal dele era a chávena de café vazia na cozinha e
uma grande mochila de lona – daquelas que um estudante leva para passar
um ano fora – encostada à ombreira da porta do quarto vazio. Ao vê-lo
subir a escada para o ferry com esta única peça de bagagem às costas, a
simplicidade de Fern, a sua frugalidade tinham-me parecido revestidas de
uma certa nobreza, tinha-o invejado por isso, mas aqui em Greenwich
Village a ideia de um homem de quarenta e cinco anos com uma única
mochila de seu parecia-me simplesmente triste e excêntrica. Sabia que ele
tinha atravessado a Libéria, sozinho e a pé, quando tinha apenas vinte e
quatro – uma espécie de homenagem a Graham Greene – mas agora só
conseguia pensar numa coisa: Irmão, esta cidade vai devorar-te vivo.
Escrevi uma mensagem de boas-vindas simpática e neutra, enfiei-a no
cordão da mochila e fui-me deitar.

Eu tinha razão quanto a raramente nos vermos: todas as manhãs tinha de


estar em casa de Aimee às oito (ela acordava diariamente às cinco, para
fazer exercício durante duas horas na cave, seguido de uma hora de
meditação) e Fern estava sempre a dormir – ou fingia que estava. Na
mansão de Aimee tudo era planeamento frenético, ensaio, ansiedade: o
novo espetáculo realizava-se num recinto de média dimensão, ia cantar ao
vivo, com uma banda ao vivo, havia anos que isso não acontecia. Para me
manter fora da linha de fogo, dos ataques de fúria, das discussões, passava o
máximo de tempo que podia no escritório e evitava os ensaios sempre que
possível. Mas percebia que estava em marcha algum tipo de tema oeste-
africano. Foi entregue na casa um conjunto de tambores atumpan e um corá
de cabo comprido, rolos de kente e – numa bela manhã de terça-feira – uma
trupe de dança de doze elementos, africanos-via-Brooklyn, que foram
levados para o estúdio da cave e só de lá saíram depois do jantar. Eram
jovens, quase todos senegaleses de segunda geração, e Lamin andava
fascinado com eles: queria saber os seus apelidos e as aldeias dos pais, à
cata de uma possível ligação de família ou naturalidade. E Aimee andava
grudada a Lamin: tinha deixado de ser possível falar com ela a sós, ele
estava sempre presente. Mas de que Lamin se tratava? Aimee achava muito
provocador e divertido contar-me que ele ainda rezava cinco vezes por dia,
no quarto-roupeiro dela, que pelos vistos estava virado para Meca. Eu,
pessoalmente, queria acreditar nesta continuidade, nesta parte ainda fora do
alcance dela, mas havia dias em que quase não o reconhecia. Uma tarde fui
levar uma bandeja de águas de coco ao estúdio e dei com ele, de camisa
branca e calças brancas, a demonstrar uma sequência que reconheci do
kankurang, uma combinação de batimento de pés, passo deslizado e flexão
de joelhos. Aimee e as outras observavam-no com atenção e repetiam os
passos. Transpiravam, vestidas de top curto e colãs rasgados, e estavam tão
coladas a ele e umas às outras que cada movimento que ele fazia parecia
uma onda única que atravessava cinco corpos. Mas o gesto verdadeiramente
irreconhecível foi aquele de tirar uma garrafa de água de coco da minha
bandeja, sem dizer obrigado, sem o menor reconhecimento da minha
presença – até parecia que toda a vida tinha tirado bebidas das bandejas
balouçantes de serviçais. Talvez o luxo seja a matriz mais fácil de
atravessar. Talvez não haja hábito mais fácil de adquirir do que o dinheiro.
Se bem que houvesse alturas em que detetava nele traços de um homem
acossado, como se alguma coisa o atormentasse. Entrando na sala de jantar
num dos últimos dias da sua visita, encontrei-o ainda à mesa do pequeno-
almoço, a conversar com Granger, que estava com um ar muito enfadado,
como se ali estivesse há muito tempo. Sentei-me com eles. Os olhos de
Lamin estavam imobilizados algures entre a cabeça rapada de Granger e a
parede em frente. Estava outra vez a murmurar, um discurso monocórdico,
desconcertante, que fluía como um esconjuro: «... e neste preciso momento
as nossas mulheres estão a plantar cebolas nos canteiros da direita e ervilhas
nos canteiros da esquerda, e se as ervilhas não forem regadas da forma
correta quando elas vierem sachar a terra, daqui a mais ou menos duas
semanas, vão ter um problema, a folha vai nascer como um caracol
alaranjado, e se estiverem assim é porque tem ferrugem e nessa altura vão
voltar a arrancar o que plantaram e replantar os canteiros, tendo o cuidado,
espero, de porem uma camada da terra fértil que há na nascente do rio,
quando nós, os homens, subirmos o rio, daqui a uma semana, quando
formos lá buscar a terra fértil...»
«A-hã», dizia Granger a cada passo. «A-hã, A-hã.»

Fern fazia aparições esporádicas nas nossas vidas, em reuniões de


administração ou quando Aimee requeria a sua presença para tratar de
problemas práticos relacionados com a escola. Parecia sempre abatido –
fisicamente retraía-se quando estabelecíamos contacto visual – e patenteava
a sua infelicidade onde quer que estivesse, como um homem numa banda
desenhada com uma nuvem negra por cima da cabeça. Na presença de
Aimee e dos restantes administradores fazia um ponto de situação
pessimista, centrado em recentes afirmações agressivas do Presidente sobre
a presença estrangeira no país. Eu nunca o tinha ouvido falar daquela
maneira, em termos tão fatalistas, não estava realmente na sua maneira de
ser, e sabia que eu era o verdadeiro alvo, ainda que oblíquo, da sua crítica.
Nessa tarde, no apartamento, em vez de me esconder no meu quarto como
de costume, confrontei-o no corredor. Acabava de chegar de uma corrida,
transpirado, curvado, com as mãos nos joelhos, respiração ofegante,
olhando-me de baixo das sobrancelhas espessas. Fui muito razoável. Ele
não falou, mas deu-me a impressão de encaixar tudo. Sem os óculos os
olhos pareciam enormes, como um bebé dos desenhos animados. Quando
acabei, endireitou-se e curvou-se para trás, empurrando as ilhargas para a
frente com as mãos.
«Bem, peço desculpa se te envergonhei. Tens razão: não foi nada
profissional.»
«Ouve, Fern, não podemos ser amigos?»
«Claro que sim. Mas também queres que diga: “Fico feliz por sermos
amigos”?»
«Não quero que estejas infeliz.»
«Mas isto não é um dos teus musicais. A verdade é que estou triste.
Queria uma coisa – queria-te – e não tive o que queria ou esperava ter e
agora estou triste. Acho que vou ultrapassar isto, mas para já estou triste.
Posso estar triste? Posso? Bem. Agora vou tomar um duche.»
Para mim era muito difícil, naquela altura, compreender uma pessoa que
falava assim. Era-me completamente estranho, como ideia – não tinha sido
criada dessa maneira. Que reação podia um homem como ele – um homem
que renuncia a todo e qualquer poder – esperar de uma mulher como eu?

Não fui ao concerto, não me senti capaz. Não queria ver-me nas bancadas
com Fern, observando o seu ressentimento enquanto assistíamos a versões
burlescas de danças que ambos havíamos visto na sua origem. Disse a
Aimee que ia e tinha intenção de ir, mas quando chegaram as oito horas
ainda estava em fato de treino, recostada na cama com o portátil pousado
nas virilhas, e depois eram nove, e depois eram dez. Tinha absolutamente
de ir – a mente repetia-me este facto e eu estava de acordo com ele – mas o
corpo não me obedecia, estava pesado e imóvel. Sim, tinha mesmo de ir,
isso era evidente, e não menos evidente era que não ia a lado nenhum.
Entrei no YouTube e fui passando de dançarino em dançarino: Bojangles
pela escada acima, Harold e Fayard em cima de um piano, Jenny LeGon no
ruge-ruge da sua saia de ráfia, Michael Jackson em Motown 25. Costumava
parar neste clip de Jackson, se bem que desta vez, ao vê-lo percorrer o palco
em passos de moonwalk, aquilo que verdadeiramente me chamou a atenção
não foram os gritos extasiados da multidão nem tão pouco a fluidez dos
movimentos dele, mas sim a curteza das calças. Ainda assim, a opção de ir
só me pareceu comprometida ou completamente excluída quando levantei
os olhos do meu navegar sem rumo e vi que tinham chegado as onze e
quarenta e cinco, o que significava que estávamos agora no inegável
pretérito: não tinha ido. Pesquisar Aimee, pesquisar local, pesquisar trupe
de dança de Brooklyn, pesquisar imagens, pesquisar despachos da AP,
pesquisar blogues. A princípio por um simples sentimento de culpa, mas
logo depois com a consciência de que podia reconstituir – 140 carateres de
cada vez, imagem a imagem, entrada de blogue a entrada de blogue – a
experiência de ter lá estado, até que, por volta da uma da manhã, não havia
ninguém que pudesse ter lá estado mais do que eu. Estava muito mais lá do
que qualquer das pessoas que lá haviam estado efetivamente, essas estavam
circunscritas a um único lugar e uma única perspetiva – a um único fluxo de
tempo – ao passo que eu estava ao mesmo tempo em todos os pontos
daquele espaço, vendo tudo de todos os ângulos, num poderoso ato de
fusão. Podia ter ficado por ali – tinha matéria mais do que suficiente para,
de manhã, fazer a Aimee um relato circunstanciado da noite anterior – mas
não fiquei. O processo forçou-me a continuar. Observar, em tempo real, as
discussões à medida que tomam corpo e coalescem, observar os consensos
que se desenvolvem, os destaques ou constrangimentos que são
identificados, os significados e subtextos que são aceites ou recusados. Os
insultos e as piadas, os mexericos e os boatos, os memes, o Photoshop, os
filtros, e as muitas variedades de crítica a que é dada rédea solta, longe do
alcance ou do controlo de Aimee. No princípio da semana, enquanto assistia
a uma prova de guarda-roupa – na qual Aimee, Jay e Kara estavam a ser
fantasiados de forma a parecerem nobres ashanti – levantara a medo a
questão da apropriação. Judy rosnou, Aimee olhou para mim e a seguir para
a sua figura espectralmente pálida enfaixada em tanto tecido de cores
vibrantes, e disse-me que era uma artista, e os artistas têm de ter direito a
amar as coisas, tocá-las e usá-las, porque arte não é apropriação, não era
esse o propósito da arte – o propósito da arte era o amor. E quando lhe
perguntei se era possível amar uma coisa e ao mesmo tempo deixá-la em
paz olhou-me de uma forma estranha, puxou para si os dois filhos e
perguntou: Alguma vez estiveste apaixonada?
Mas agora sentia-me defendida, virtualmente cercada. Não, não me
apetecia parar. Continuei a fazer atualizações, à espera de que mais países
acordassem e vissem as imagens e formassem opiniões ou partilhassem
opiniões já emitidas. De madrugada ouvi ranger a porta da entrada e Fern
entrar aos tropeções no apartamento, certamente vindo diretamente da festa
depois do concerto. Não me mexi. E deve ter sido por volta das quatro da
manhã, enquanto fazia correr no ecrã as opiniões mais recentes e ouvia o
chilrear dos pássaros no abrunheiro-bravo, que vi o título «Tracey LeGon»
e o subtítulo «Conta a verdade». Tinha as lentes de contacto ressequidas,
doía-me pestanejar, mas não estava a imaginar coisas. Cliquei. Tinha
publicado a mesma foto que eu já vira centenas de vezes – Aimee, os
dançarinos, Lamin, as crianças – todos alinhados à boca de cena,
envergando os panos adinkra que eu os vira provar: um rico azul-cerúleo
estampado com um padrão de triângulos pretos, e em cada um dos
triângulos havia um olho. Tracey tinha pegado na imagem, tinha-a ampliado
muitas vezes, aparado até só o triângulo e o olho ficarem visíveis, e por
baixo desta imagem fazia a pergunta: LEMBRAS-TE DISTO?
3

Voltando a Lamin, fomos no jato, mas sem Aimee – que estava em Paris,
para receber uma condecoração do governo francês – e por isso tivemos de
atravessar o aeroporto principal, como toda a gente, até a um átrio de
chegadas apinhado de filhos e filhas que regressavam. Os homens vestiam
jeans modernos de ganga grossa, vincada, camisas estampadas com
colarinho branco, camisolas de marca com capuz, blusões de cabedal,
sapatos de último modelo. E as mulheres também faziam questão de vestir
tudo o que tinham de melhor ao mesmo tempo. Muito bem penteadas,
unhas acabadas de pintar. Ao contrário de nós, todos conheciam bem este
átrio, e rapidamente asseguraram os serviços dos bagageiros, a quem
entregaram as suas malas gigantescas, com a recomendação de que
tivessem cuidado – apesar de todas as peças de bagagem estarem
envolvidas em camadas de plástico – antes de avançarem à frente desses
jovens bagageiros acalorados e atormentados por entre a multidão, em
direção à saída, olhando frequentemente para trás para lhes berrarem
instruções como alpinistas aos seus sherpas. Por aqui, por aqui! De
smartphones acima da cabeça, apontando o caminho. Ao olhar para Lamin
neste contexto, percebi que a sua indumentária de viagem devia ser uma
escolha deliberada: apesar de todas as roupas e anéis e cordões e sapatos
que Aimee lhe tinha dado no último mês, estava vestido exatamente como
quando tinha partido. A mesma camisa branca, calças de sarja e um simples
par de sandálias de cabedal, pretas e gastas no salto. Fiquei a pensar que
havia coisas nele que não tinha compreendido – muitas, porventura.
Apanhámos um táxi e eu sentei-me com Lamin no banco de trás. O carro
tinha três janelas partidas e um buraco no chassis através do qual se via
passar a estrada por baixo dos nossos pés. Fern sentou-se à frente, ao lado
do condutor: tinha uma nova política, que era guardar uma fria distância de
mim em todas as circunstâncias. No avião leu os seus livros e diários, no
aeroporto limitou-se a assuntos práticos, ir buscar aquele carro de bagagens,
pôr-se naquela fila. Não foi maldoso, não disse crueldades, mas o efeito era
de isolamento.
«Queres parar para comer?», perguntou-me, pelo retrovisor. «Ou podes
esperar?»
Eu bem gostaria de ser uma daquelas pessoas que não se importavam de
passar sem almoço, que conseguiam aguentar-se, como Fern, imitando a
prática das famílias mais pobres da aldeia, que só comiam uma vez por dia,
ao fim da tarde. Mas não era esse tipo de pessoa: se saltasse uma refeição
ficava furiosa. Andámos quarenta minutos e parámos num café de estrada
fronteiro a uma coisa chamada American College Academy. Tinha grades
nas janelas e faltava-lhe metade das letras da tabuleta. Lá dentro, a ementa
exibia lustrosos pratos à americana «com batatas fritas», cujos preços
Lamin leu em voz alta, abanando gravemente a cabeça, como se achasse
aquilo profundamente sacrílego e ofensivo, e ao fim de uma longa conversa
com a empregada de mesa vieram três pratos de yassa de frango por um
preço «local» negociado.
Estávamos curvados sobre os pratos, comendo em silêncio, quando
ouvimos uma voz estentórea vinda dos fundos do café: «Meu irmão Lamin!
Irmãozinho! Sou o Bachir! Aqui!»
Fern acenou. Lamin não se mexeu: já tinha reparado no tal Bachir e
rezava para que ele não o visse. Eu virei-me e vi um homem sozinho à
última mesa junto ao balcão, na penumbra, o único cliente no restaurante
além de nós. Era largo e musculado como um jogador de râguebi e vestia
fato azul-escuro às riscas brancas, gravata, alfinete de gravata, mocassins
sem meias e grossa pulseira dourada no braço. Os músculos retesavam-lhe
o fato e escorria-lhe suor pela cara.
«Não é meu irmão. É da minha idade. É lá da aldeia.»
«Mas não vais…»
Bachir já estava ao pé de nós. Ao perto, vi que trazia na cabeça uns
auriculares com microfone, parecidos com os que Aimee usava em palco, e
nos braços um portátil, um tablet e um telemóvel muito grande.
«Preciso de um sítio para pousar isto tudo!» Mas sentou-se à nossa mesa
com tudo abraçado contra o peito. «Lamin! Irmãozinho! Há quanto
tempo!»
Lamin acenou para o prato. Fern e eu apresentámo-nos e recebemos
apertos de mão suados, firmes, dolorosos.
«Eu e ele crescemos juntos, pá! Vida de aldeia!» Bachir agarrou a cabeça
de Lamin e fez-lhe uma gravata com o braço transpirado. «Mas depois eu
tive de ir para a cidade, querida, estás a perceber? Fui atrás do dinheiro,
querida! Trabalhei nos grandes bancos. Passa para cá o dinheiro! Uma
Babilónia a valer! Mas no fundo continuo a ser um rapaz da aldeia.» Deu
um beijo em Lamin e largou-o.
«Você parece americano», disse eu, mas esse era apenas um fio da rica
tapeçaria da voz dele. Havia nela inúmeros filmes e anúncios, e muito hip-
hop, Esmeralda e As the World Turns, BBC News, CNN, Al Jazeera e um
pouco do reggae que se ouvia por toda a cidade, em todos os táxis, bancas
de mercado, cabeleireiros. Naquele preciso momento ouvia-se uma música
antiga de Yellowman, vinda dos pequenos altifalantes por cima das nossas
cabeças.
«A valer, a valer...» Pousou a cabeça grande e quadrada no punho, em
pose de pensador. «Bem, de facto ainda não fui aos Estados Unidos, ainda
não. Muito que fazer. Está tudo a acontecer. Falar, falar, é preciso estar a par
da tecnologia, é preciso não perder relevância. Repara nesta rapariga:
telefona-me noite e dia, querida, dia e noite!» Mostrou-me uma imagem no
tablet, de uma mulher lindíssima com um penteado lustroso e uns lábios
exuberantes pintados de roxo. Pareceu-me uma imagem comercial. «Estas
raparigas da cidade grande são muito malucas! Oh, irmãozinho, eu preciso
de uma rapariga da nascente do rio, quero constituir uma bela família. Mas
estas raparigas já nem querem constituir família! São malucas! Mas com
que idade estás tu?»
Eu disse-lhe.
«E não tens filhos? Nem sequer és casada? Não? OK! OK, OK... Já
percebi, mana, já percebi: Miss Independente, não é verdade? É isso que
queres, OK. Mas, para nós, uma mulher sem filhos é como uma árvore sem
frutos. Como uma árvore» – soergueu da cadeira as costas musculadas,
fincou os pés no chão com os joelhos fletidos, estendeu os braços como
ramos e os dedos como galhos – «sem frutos.» Voltou a sentar-se e fechou
as mãos em punhos. «Sem frutos», repetiu.
Pela primeira vez em muitas semanas, Fern dirigiu-me um esboço de
sorriso.
«Acho que ele está a dizer que és como uma árvore…»
«Sim, Fern, eu percebi, obrigada.»
Bachir reparou no meu telemóvel com tampa, o meu telefone pessoal.
Pegou nele e revirou-o na mão com espanto exagerado. Tinha umas mãos
tão grandes que o telefone parecia um brinquedo de criança.
«Não me digas que isto é teu. A sério? É teu?! É isto que se usa em
Londres? HA HA HA. Oh pá, nós cá estamos mais atualizados. Oh, pá! Que
engraçado, que engraçado. Por esta é que eu não esperava. É a globalização,
não é? Tempos estranhos, tempos estranhos!»
«Para que banco disse que trabalhava?», perguntou Fern.
«Oh, trabalho em muitas coisas, pá. Imobiliário, imobiliário. Terreno
aqui, terreno ali. Construção. Mas cá trabalho para o banco, negócios,
negócios. Passa para cá o dinheiro, não é verdade? Gostas da Rihanna?
Conhece-la? Vale muito! Illuminati, não é verdade? Viver o sonho,
querida.»
«Temos de ir apanhar o ferry», sussurrou Lamin.
«Iá, acho que nos tempos que correm tenho muitos negócios em mãos –
coisas complicadas – é preciso fazer movimentos, movimentos,
movimentos.» Fez a demonstração movimentando os dedos pelos três
aparelhos como quem está preparado para usar qualquer deles a qualquer
momento para uma operação extremamente urgente. Reparei que o ecrã do
portátil estava negro e estalado em vários sítios. «Repara, uns têm de se
dedicar todos os dias à agricultura, descascar ervilhas, não é verdade? Mas
eu tenho de fazer os meus movimentos. Esse é o novo equilíbrio do trabalho
por aqui. Sabias? Pois é, pá! É a última novidade! Mas neste país temos
uma mentalidade atrasada, não é verdade? Há muita gente atrasada em
relação ao raio dos tempos. Vai demorar um bocado, OK? A entrar na
cabeça dessa gente.» Com os dedos desenhou um retângulo no ar: «O
futuro. É preciso meter isto na cabeça. Mas ouve: para ti? Quando quiseres!
Gosto da tua cara, pá, é linda, tão clara e luminosa. E podia ir para Londres,
podíamos falar de negócios a sério. Ai não estás nos negócios?
Cooperação? ONG? Missionária. Gosto dos missionários, pá. Tive um
grande amigo, era de South Bend, Indiana – o Mikey. Passámos uma data
de tempo juntos. O Mickey era fixe, pá, muito fixe, era adventista do sétimo
dia, mas todos somos filhos de Deus, disso não há dúvida...»
«Estão cá a fazer trabalho educativo, com as nossas raparigas», disse
Lamin, virando-se de costas para nós, tentando atrair a atenção da
empregada.
«Ah, pois claro, já ouvi falar das mudanças que está a haver. Grandes
tempos. Grandes tempos. Bom para a cidade, não é verdade? Progresso.»
«Esperamos que sim», disse Fern.
«Mas, irmãozinho, estás a ganhar alguma coisa com isso? Vocês sabiam
que aqui o irmãozinho não quer saber do dinheiro? Só pensa na próxima
vida. Eu cá não, quero esta vida! HA HA HA HA. Dinheiro, dinheiro a
rolar. Não é verdade? Oh pá, oh pá...»
Lamin pôs-se de pé: «Adeus, Bachir.»
«Tão sério, este rapaz. Mas gosta muito de mim. Vocês também haviam
de gostar muito de mim. Ai, ai, tu vais fazer trinta e três anos, menina!
Precisamos de conversar! O tempo voa. Temos de viver a nossa vida, não é
verdade? À próxima, em Londres, na Babilónia – vamos conversar!»
No regresso ao carro, ouvi Fern rir-se para dentro, animado pelo
episódio.
«Isto é o que se chama “uma personagem”», disse, e quando chegámos ao
táxi que nos esperava e lhe demos a volta para entrar vimos a personagem
Bachir de pé na soleira da porta, com os auriculares postos, segurando todas
as suas tecnologias num braçado e acenando-nos. Visto assim, de pé, o fato
parecia especialmente peculiar, as calças muito curtas nos tornozelos, como
um mashala de fato às riscas.
«O Bachir perdeu o emprego há três meses», disse Lamin calmamente,
enquanto entrávamos para o carro. «Passa os dias naquele café.»

Sim, tudo quanto dizia respeito àquela viagem me pareceu errado desde o
primeiro momento. Em vez da minha anterior competência triunfante, não
conseguia libertar-me de uma persistente sensação de erro, de ter percebido
tudo mal, a começar por Hawa, que abriu a porta de casa com um novo
lenço, preto, que lhe cobria a cabeça e lhe chegava a meio do tronco, e uma
saia comprida, informe, como aquelas que sempre ridicularizara quando as
víamos no mercado. Abraçou-me calorosamente como sempre, a Fern
apenas fez um aceno de cabeça, e pareceu contrariada com a presença dele.
Ficámos todos algum tempo de pé no pátio, com Hawa, mal-humorada, a
fazer conversa de ocasião – em todo o caso nunca dirigida a Fern – e eu
esperançada em ouvir falar em jantar, coisa que, como entretanto
compreendi, não aconteceria enquanto Fern não se fosse embora. Por fim
ele percebeu a mensagem: estava cansado e ia para a casa cor-de-rosa. E
mal ele saiu e a porta se fechou a Hawa de antigamente voltou, pegou-me
na mão, beijou-me na face e chorou: «Oh, irmã, boas notícias – vou-me
casar!» Eu abracei-a, mas senti o sorriso habitual aflorar-me à cara, o
mesmo que fazia em Londres e Nova Iorque perante aquele tipo de notícia,
e experimentei o mesmo sentimento agudo de traição. Tinha vergonha de
me sentir assim, mas nada podia fazer, uma parte do meu coração tinha-se
fechado para ela. Levou-me pela mão para dentro de casa.
Tanto para contar. Chamava-se Bakary, era tablighi, amigo de Musa, e
não ia mentir e dizer que era bonito, porque na verdade era exatamente o
contrário, queria que eu compreendesse isso desde já, puxando do
telemóvel como prova.
«Estás a ver? Parece um sapo! Para dizer a verdade, quem me dera que
não usasse esta coisa preta à volta dos olhos nem pintasse a barba com
hena... E às vezes até anda de sarongue! As minhas avós acham que ele
parece uma mulher maquilhada! Mas não devem ter razão porque até o
Profeta pintava os olhos, é bom para as infeções, e a verdade é que há
muitas coisas que eu não sei e tenho de aprender. Oh, as minhas avós
choram dia e noite, noite e dia! Mas o Bakary é bondoso e paciente. Diz que
ninguém chora para sempre – e não achas que é verdade?»
As sobrinhas gémeas de Hawa trouxeram-nos o jantar: arroz para Hawa,
batatas assadas no forno para mim. Escutei numa espécie de bruma as
histórias engraçadas que Hawa me contou sobre a sua recente masturat36 à
Mauritânia, o mais longe que alguma vez havia ido, onde muitas vezes
havia adormecido nas pregações («Não vemos o homem que está a pregar,
porque não está autorizado a olhar para nós, por isso fala de trás de uma
cortina, e todas nós, mulheres, estamos sentadas no chão e o sermão é muito
comprido, e às vezes só nos dá vontade de dormir) e tivera a ideia de coser
um bolso no interior do colete para esconder o telemóvel e sub-
repticiamente enviar mensagens ao seu Bakary durante os recitativos mais
aborrecidos. Mas concluía sempre estas histórias com alguma frase de teor
piedoso: «O importante é o amor que tenho às minhas novas irmãs.» «Não
me cabe a mim perguntar.» «Está nas mãos de Deus.»
«No fim», disse, enquanto duas raparigas mais novas nos traziam duas
canecas de lata cheias de Lipton, fortemente açucarado, «o que interessa é
dar louvores a Deus e esquecer as coisas dunya37. Digo-te que nesta casa só
se ouve falar em coisas dunya. Quem foi ao mercado, quem tem um relógio
novo, quem «vai dar o salto», quem tem dinheiro, quem não tem, quero
isto, quero aquilo! Mas quando andamos em viagem, levando a palavra do
Profeta às pessoas, não sobra tempo nenhum para estas coisas dunya.»
Perguntei-me por que razão ela continuava a viver na morança se a vida
neste lugar lhe desagradava tanto.
«Bem, o Bakary é bom homem, mas é muito pobre. Logo que pudermos,
casamos e vamos embora, mas até lá ele dorme na markaz38, perto de Deus,
enquanto eu estou aqui, perto das galinhas e das cabras. Mas vamos poupar
muito dinheiro porque o nosso casamento vai ser muito, muito pequeno,
como o casamento de um rato, e só vão assistir o Musa e a mulher, e não vai
haver música nem dança nem banquete e nem sequer vou precisar de um
vestido novo», disse com uma vivacidade ensaiada, e de repente eu senti-
me muito triste, pois se alguma coisa sabia de Hawa era que adorava
casamentos e vestidos de noiva e banquetes e festas de casamento.
«Portanto já vês, assim poupa-se muito dinheiro, de certeza», disse, e
pousou as mãos dobradas no regaço para assinalar formalmente o fim do
seu pensamento, e eu não a contestei. Mas percebia que ela queria
conversar, que as suas frases feitas eram como testos a dançar em cima de
panelas a ferver, e só precisei de ficar pacientemente sentada à espera de
que ela transbordasse. Sem que tivesse de lhe perguntar nada começou a
falar, primeiro a medo e a seguir com uma energia cada vez maior, sobre o
noivo. Aquilo que parecia impressioná-la mais no tal Bakary era a sua
sensibilidade. Era chato e feio, mas era sensível.
«Chato como?»
«Oh, não devia dizer “chato”, mas havias de os ver juntos, ele e o Musa,
passam o dia inteiro a ouvir gravações sagradas, são gravações muito
sagradas, agora o Musa anda a ver se aprende mais árabe, e eu também
ando a aprender a apreciá-las completamente, por enquanto acho-as muito
aborrecidas – mas o Bakary chora quando as ouve! Chora e abraça-se ao
Musa! Às vezes vou ao mercado e volto e eles continuam abraçados e a
chorar! Nunca vi um vadio chorar. A menos que lhe tenham roubado a
droga! Não, não, o Bakary é muito sensível. É de facto uma questão de
coração. A princípio pensei: a minha mãe é uma mulher com estudos,
ensinou-me muito árabe, vou andar à frente do Bakary na minha iman, mas
isso não está nada bem! Porque o que interessa não é o que lemos, é o que
sentimos. E eu tenho muito caminho para andar até o meu coração ficar tão
cheio de iman como o do Bakary. Um homem sensível deve dar um bom
marido, não achas? E os nossos mashala – não devia chamar-lhes assim, a
palavra correta é tablighi – são tão bondosos com as suas mulheres! Não
fazia ideia. A minha avó dizia sempre: “São infantis, são malucos, não fales
com esses efeminados, nem sequer têm emprego.” Só te digo, chora todos
os dias. Mas é porque não compreende, é muito antiquada. O Bakary está
sempre a dizer: “Há um hadith que reza que ‘o melhor homem é aquele que
ajuda a mulher e os filhos e é caridoso com eles’.” E assim é. Por isso, se
vamos nessas viagens, em masturat, então, para evitar que outros homens
nos vejam no mercado, os nossos homens vão e fazem as compras por nós,
compram eles a hortaliça. Eu ria-me quando ouvia contar isto, pensava: não
pode ser verdade – mas é verdade! O meu avô nem sequer sabia onde
ficava o mercado! É isto que tento explicar às minhas avós, mas elas são
antiquadas. Choram todos os dias por ele ser um mashala – ou melhor,
tablighi. Cá para mim, lá no fundo o que elas têm é ciúmes. Oh, a minha
vontade era ir-me embora daqui agora mesmo. Quando fui visitar as minhas
irmãs senti-me tão feliz. Rezámos juntas. Passeámos juntas. Depois do
almoço, uma de nós tinha de conduzir a oração, sabes, e uma das irmãs
disse-me: “Vais ser tu!” E por isso naquele dia fui o imã, percebes? Mas não
me acanhei. Muitas das minhas irmãs acanham-se, dizem “Não sou eu que
devo falar”, mas de facto eu percebi nesta viagem que não sou nada
acanhada. E toda a gente me escutou – oh! No fim até me fizeram
perguntas. Acreditas?»
«Não me surpreende nada.»
«Escolhi o tema dos seis artigos de fé. Também se aplicam à forma como
uma pessoa deve comer. É certo que neste momento não estou a observá-
los, porque tu estás cá, mas estão sem dúvida na minha cabeça para a
próxima vez.»
Este pensamento culposo conduziu a outro: inclinou-se para me sussurrar
qualquer coisa, com o rosto irresistível imobilizado num meio sorriso.
«Ontem fui à sala de TV da escola e vimos a Esmeralda. Não devia
sorrir», disse, e parou abruptamente, «mas tu, mais do que ninguém, sabes
como eu adoro a Esmeralda, e de certeza concordas que ninguém se pode
libertar de todas as coisas dunya de uma assentada.» Baixou os olhos para a
saia informe. «As minhas roupas também vão ter de acabar por mudar, não
só a saia, tudo, da cabeça aos pés. Mas todas as minhas irmãs dizem que a
princípio é difícil porque temos muito calor e as pessoas ficam a olhar,
chamam-nos ninja ou Osama na rua. Mas lembrei-me de uma coisa que me
disseste na primeira vez que cá estiveste: «Que interessa o que os outros
pensam?» E esse é um pensamento forte que guardo comigo, porque a
minha recompensa será no Céu, onde ninguém me chamará ninja porque
certamente essas pessoas estarão em chamas. Continuo a gostar muito do
Chris Brown, é superior às minhas forças, e até o Bakary continua a gostar
muito das canções do Marley, sei porque no outro dia ouvi-o cantar uma.
Mas vamos aprender juntos, somos novos. Como já te disse, quando
andávamos em viagem o Bakary fazia todos os recados por mim, ia ao
mercado por mim, mesmo que se rissem dele. Já disse às minhas avós:
alguma vez o meu avô lavou uma meia que fosse por alguma de vocês em
quarenta anos?»
«Mas Hawa, porque é que os homens não podem ver-te no mercado?»
Ela fez um ar aborrecido: tinha-lhe feito outra vez a pergunta mais
estúpida.
«Quando os homens olham para mulheres que não são as suas esposas é
esse o momento de que Satã está à espera para se meter neles, para os
encher de pecado. Satã está em toda a parte! Mas tu nem sequer isso
sabes?»
Não consegui ouvir mais e inventei uma desculpa para sair dali. Mas o
único sítio para onde podia ou sabia ir na escuridão era a casa cor-de-rosa.
Da estrada, ainda a uma certa distância, vi que todas as luzes estavam
apagadas, e quando cheguei à porta vi que estava pendurada de uma
dobradiça partida.
«Estás aí? Posso entrar?»
«A minha porta está sempre aberta», respondeu Fern do meio das
sombras, numa voz sonora, e rimo-nos os dois ao mesmo tempo. Entrei, ele
fez-me chá e regurgitei todas as novidades que Hawa me havia dado.
Fern ouviu-me arengar, com a cabeça cada vez mais inclinada para trás
até a lanterna de cabeça iluminar o teto.
«Devo confessar que não acho isso nada estranho», disse quando eu
acabei. «Trabalha como um cão naquela morança. Praticamente não sai de
lá. Deve estar desesperada, como qualquer jovem inteligente, por ter uma
vida própria. Tu não quiseste sair de casa dos teus pais quando tinhas a
idade dela?»
«Quando tinha a idade dela queria liberdade!»
«E dirias que ela tem menos liberdade a viajar pela Mauritânia em
pregação do que tem agora, trancada em casa?» Arrastou a sandália pela
camada de poeira vermelha que se havia acumulado no chão de plástico. «É
interessante. É um ponto de vista interessante.»
«Ora, estás só a querer provocar-me.»
«Não, nunca foi essa a minha intenção.» Olhou para o desenho que tinha
feito no chão. «Às vezes pergunto-me se as pessoas não procuram mais
significado que liberdade», disse, falando lentamente. «É isso que quero
dizer. Pelo menos, tem sido essa a minha experiência.»
Se tivéssemos continuado teríamos discutido, por isso mudei de assunto e
ofereci-lhe uma das bolachas que tinha surripiado do quarto de Hawa.
Lembrei-me de que tinha descarregado alguns podcasts para o meu iPod e,
com um auricular cada um, sentámo-nos tranquilamente lado a lado,
mordiscando as bolachas e ouvindo relatos de vidas americanas, seus
pequenos dramas e satisfações, seus prazeres e irritações e epifanias
tragicómicas, até chegar a hora de me ir embora.

Na manhã seguinte, ao acordar, o meu primeiro pensamento foi para


Hawa, a Hawa que em breve se casaria, os filhos que seguramente se
seguiriam, e senti vontade de falar com alguém que tivesse a mesma
sensação de desilusão que eu. Vesti-me e fui à procura de Lamin. Fui
encontrá-lo no átrio da escola, preparando uma aula debaixo da mangueira.
Mas a reação dele às notícias de Hawa não foi de desilusão, pelo menos não
foi essa a primeira reação – foi de desgosto profundo. Ainda não eram nove
horas e eu já tinha conseguido partir o coração de alguém.
«Mas quem te disse?»
«A Hawa!»
Ele fez um esforço para não trair sentimentos.
«Às vezes as raparigas dizem que vão casar com alguém e não casam. É
frequente. Já houve um polícia...» Não continuou.
«Lamento, Lamin. Sei o que sentes por ela.»
Lamin riu-se secamente e voltou à preparação da aula.
«Oh, não, estás enganada, somos irmão e irmã. Sempre fomos. Disse-o à
nossa amiga Aimee: apresento-te a minha irmã mais nova. Ela deve
lembrar-se de eu lho ter dito, se lhe perguntares. Não, só lamento pela
família da Hawa. Devem estar muito tristes.»
Tocou a sineta da escola. Passei a manhã a visitar salas de aula e pela
primeira vez apercebi-me daquilo que Fern tinha conseguido aqui, na nossa
ausência, apesar da interferência de Aimee, e, de certo modo, contornando-
a. A secretaria da escola tinha todos os computadores novos que ela havia
enviado, e Internet mais fiável, que, pelo historial das pesquisas, verifiquei
que até agora tinha sido exclusivamente usada pelos professores com dois
objetivos: seguir o Facebook e pesquisar no Google o nome do Presidente.
Todas as salas estavam equipadas com misteriosos – para mim – quebra-
cabeças de lógica em três dimensões e pequenos aparelhos portáteis em que
se podia jogar xadrez. Mas não foram estas inovações que me
impressionaram. Mesmo por trás do edifício principal, Fern tinha usado o
dinheiro de Aimee para criar uma horta no recreio, que não me lembro de
ele alguma vez ter mencionado nas nossas reuniões de administração, e nela
era cultivada toda a espécie de hortaliças, que pertenciam, segundo
explicou, coletivamente aos pais, o que – a par de muitas outras
consequências – significava que quando acabava a primeira aula não
desaparecia metade da escola para ir ajudar as mães na agricultura, ficando
antes a tratar das suas novidades. Fiquei a saber que Fern, por sugestão das
mães da associação de pais e professores, tinha convidado vários
professores da madraça para a nossa escola, onde lhes foi dada uma sala
para ensinarem árabe e estudos corânicos, a troco de uma pequena quantia
paga diretamente, e com isso se obstou a que mais um grande contingente
de população escolar desaparecesse ao meio-dia ou passasse uma parte de
todas as tardes a fazer pequenas tarefas domésticas para estes professores,
como até então acontecia, como pagamento das lições. Passei uma hora na
nova sala de artes, onde as raparigas mais pequenas se sentavam às mesas
misturando cores e fazendo impressões das mãos – brincando – enquanto os
computadores portáteis que Aimee havia pensado para elas tinham
desaparecido todos na viagem para a aldeia, segundo confessava agora
Fern, o que não era surpresa, considerando que cada um deles valia o dobro
do salário anual de um professor. Bem vistas as coisas, nem tudo na
Academia Iluminada era a incubadora-do-futuro inovadora, brilhante,
radicalmente nova, de que tanto ouvira falar em jantares em casa de Aimee
em Nova Iorque e Londres. Era a «Academia Luminosa», como as pessoas
da terra lhe chamavam, onde estavam a acontecer muitas coisas pequenas
mas interessantes, todos os dias, que eram depois discutidas e debatidas ao
fim de cada semana, nas reuniões de aldeia, que por sua vez davam origem
a mais adaptações e mudanças, de poucas das quais me palpita que Aimee
alguma vez houvesse tido conhecimento ou ouvido falar, mas que Fern
acompanhava de perto, ouvindo toda a gente com aquele espírito aberto que
o caracterizava, tomando as suas pilhas de apontamentos. Era uma escola
que funcionava, construída com o dinheiro de Aimee mas não limitada por
ele, e, por muito pequeno que fosse o papel por mim desempenhado na sua
criação, sentia agora, tal como qualquer membro menor da aldeia, a minha
quota-parte de orgulho nela. Ia a saborear este cálido sentimento de
realização, regressando da horta escolar ao gabinete do diretor, quando vi
Lamin e Hawa debaixo da mangueira, demasiado juntos, a discutir.
«Não recebo lições tuas», ouvi-a dizer quando me aproximava, e quando
me viu virou-se e repetiu: «Não aceito lições dele. Quer que eu seja a última
pessoa a ficar nesta terra. Não.»
Perto do gabinete do diretor, a cerca de trinta metros de nós, uma roda de
professores curiosos que tinham acabado de almoçar estava à sombra da
entrada, lavando as mãos com água de uma chaleira cheia de água e
assistindo à discussão.
«Não vamos falar agora», sussurrou Lamin, consciente deste público, mas
quando Hawa estava lançada era difícil travá-la.
«Tu estiveste fora um mês, não foi? Sabes quantas pessoas se foram
embora durante esse mês? Procura o Abdulaye. Não vais encontrá-lo. O
Ahmed e o Hakim? O meu sobrinho Joseph? Tem dezassete anos. Foi-se
embora! O meu tio Godfrey – ninguém o viu. Agora sou eu que tomo conta
dos filhos dele. Foi-se embora! Não quis ficar cá a apodrecer. Deram o salto
– todos eles.»
«Dar o salto é loucura», murmurou Lamin, mas logo teve um assomo de
coragem: «Os mashala também são loucos.»
Hawa deu um passo na direção dele. Ele retraiu-se. Se por um lado está
apaixonado por ela, pensei, por outro lado tem um certo medo dela. E
compreendia-se – eu própria tinha um certo medo dela.
«E quando for para a escola de professores em setembro», disse ela,
espetando-lhe um dedo no peito, «ainda cá estarás, Lamin? Ou tens mais
para onde ir? Ainda cá estarás?» Lamin olhou na minha direção, um olhar
comprometido, assustado, que Hawa interpretou como confirmação: «Não,
bem me parecia que não.»
Um tom de adulação entrou no sussurro de Lamin.
«Porque é que não vais ter com o teu pai? Ele arranjou o visto para o teu
irmão. Também podia arranjar um para ti, se lhe pedisses. Não é
impossível.»
Eu própria tivera a mesma ideia, muitas vezes, mas nunca tinha
perguntado diretamente a Hawa – nunca me parecia que ela quisesse falar
do pai – e agora, ao ver-lhe a cara iluminar-se de fúria moralista, sentia-me
contente por nunca ter perguntado. A roda de professores desatou a
tagarelar como o público de um combate de boxe quando alguém desfere
um soco certeiro.
«Quero que saibas que não existe amor entre mim e ele. Tem a sua nova
esposa, a sua nova vida. Certas pessoas vendem-se, conseguem sorrir a
alguém que não amam, só para ganharem alguma vantagem. Mas eu não
sou como vocês», disse ela, indo o pronome cair entre mim e Lamin,
enquanto virava costas e se afastava dos dois, com a saia comprida a roçar
pelo chão.

Nessa tarde pedi a Lamin que fosse comigo a Barra. Ele disse que sim,
mas pareceu-me arrasado pela humilhação. Fizemos a viagem de táxi em
silêncio, e a de ferry também. Eu precisava de cambiar dinheiro, mas
quando chegámos aos pequenos buracos na parede – onde os homens
sentados em bancos altos atrás de postigos contavam enormes pilhas de
notas ensebadas presas por elásticos – ele deixou-me sozinha. Lamin nunca
me tinha deixado sozinha em lado nenhum, nem mesmo quando eu mais
quisera que o fizesse, e agora percebia o pânico que a ideia provocava em
mim.
«Mas onde é que nos encontramos? Aonde vais?»
«Tenho umas voltas a dar, mas estarei por perto, nas proximidades do
ferry. Não há problema. Basta telefonares-me. Demoro quarenta minutos.»
Sem me dar tempo a argumentar, desapareceu. Não acreditei que tivesse
voltas a dar: só queria ver-se livre de mim por algum tempo. Mas cambiar
dinheiro não demorou mais de dois minutos. Deambulei pelo mercado e
depois, para evitar que as pessoas metessem conversa comigo, passei pelo
ferry e fui até um antigo forte militar, em tempos um museu, agora
abandonado, mas ainda se podia subir às ameias e ver o rio e o modo
revoltante como toda a cidade tinha sido construída de costas para a água,
ignorando o rio, defensivamente acocorada contra ele, como se a bela vista
da outra margem, do mar e dos golfinhos saltantes, fosse de algum modo
ofensiva ou desnecessária, ou simplesmente transportasse consigo a
memória de uma dor insuportável. Desci e deixei-me ficar perto do ferry,
mas ainda tinha vinte minutos e por isso fui ao café com Internet. A cena
era a do costume: rapazes em fila, de auscultadores na cabeça, dizendo
«Amo-te» ou «Sim, meu amorzinho», enquanto nos ecrãs mulheres brancas
de certa idade acenavam e sopravam beijos, quase sempre mulheres
britânicas – a julgar pelos interiores das casas – e enquanto estava ao
balcão, a pagar os meus vinte e cinco dalasi por quinze minutos, via-as
todas ao mesmo tempo a sair do duche de tijolo de vidro, ou a tomar o
pequeno-almoço ao balcão da cozinha, ou a andar pelo jardim de pedras, ou
estendidas numa cadeira de baloiço no alpendre envidraçado, ou
simplesmente sentadas num sofá, a ver televisão, de telemóvel ou
computador portátil na mão. Nada disto tinha nada de anormal, já o havia
visto muitas vezes, mas nessa tarde em particular, no momento em que
punha o dinheiro em cima do balcão, um homem tresloucado, a espumar
pela boca, entrou a correr e foi pelos computadores brandindo uma bengala
comprida e entalhada, e o dono do café abandonou a nossa transação para ir
atrás dele à volta dos terminais. O louco era incrivelmente belo e alto, como
um masai, descalço, envergando um dashiki tradicional bordado a fio
dourado, apesar de estar roto e sujo, e com um boné de um campo de golfe
do Minnesota empoleirado no alto da cabeleira assustadora. Bateu com a
bengala nos ombros dos rapazes, uma vez em cada ombro, como um rei a
armar muitos cavaleiros, até que o dono conseguiu arrancar-lhe a bengala
das mãos e desatou a espancá-lo com ela. E enquanto era espancado ele
continuava a falar, com um sotaque inglês comicamente requintado, fez-me
lembrar o de Chalky, já lá iam tantos anos. «Estimado cavalheiro, sabe
quem eu sou? Algum dos palermas presentes sabe quem eu sou? Algum dos
pobres palermas? Nem sequer me reconhecem?»
Deixei o dinheiro em cima do balcão e voltei cá para fora, para esperar ao
sol.
36 Viagem de missionação islâmica, conforme preconizado pelo movimento Tablighi Jama’at. (N. do
T.)

37 Mundanas. (N. do T.)

38 Sede local do movimento. (N. do T.)


4

De volta a Londres jantei com a minha mãe, ela tinha reservado uma
mesa no Andrew Edmunds, na sala da cave – «pago eu» – mas sentia-me
oprimida pelas paredes verde-escuras e perturbada pelos olhares sub-
reptícios dos outros comensais, e então ela aliviou o punho em que a minha
mão direita apertava um telemóvel e disse: «Olha para isto. Olha o que ela
te está a fazer. Unhas roídas e dedos a sangrar.» Perguntei-me desde quando
a minha mãe comia no Soho, e por que razão estava tão magra, e onde
estava Miriam. Talvez tivesse pensado um pouco mais profundamente em
todas estas perguntas se tivesse havido espaço para refletir seriamente sobre
elas, mas nessa noite a minha mãe estava numa espiral faladora e quase
toda a refeição foi passada num monólogo sobre a gentrificação de Londres
– dirigido tanto às mesas vizinhas quanto a mim – começando pelas
habituais queixas contemporâneas e recuando nos anos até se transformar
numa aula de história improvisada. Quando chegou o prato principal já
estávamos nos princípios do século XVIII. O próprio renque de casas em que
agora estávamos sentadas – uma deputada sem funções governativas e uma
assistente pessoal de uma estrela pop – albergara em tempos marceneiros e
vidraceiros, trolhas e carpinteiros, e todos eles haviam pagado uma renda
mensal que, mesmo ajustada à inflação, hoje não daria para pagar a ostra
que eu estava a meter à boca. «Operários», explicou, enquanto empurrava
uma Loch Ryan pela boca abaixo. «E também radicais, indianos, judeus,
caribenhos fugidos à escravatura, panfletários e agitadores. Robert
Wedderburn! Os “Blackbirds”39. Este também era o seu poiso, mesmo
debaixo do nariz de Westminster... Hoje nada disso acontece por estes lados
– às vezes gostava que acontecesse. Dava-nos alguma coisa com que
trabalhar! Ou pela qual trabalhar! Ou mesmo contra a qual...» Estendeu o
braço para a parede forrada a madeira com trezentos anos que tinha atrás da
cabeça e fez-lhe um afago melancólico. «A verdade é que a maioria dos
meus colegas já nem se lembra do que é a verdadeira Esquerda nem,
acredita no que te digo, querem lembrar-se. Oh, mas em tempos que já lá
vão isto aqui era um autêntico viveiro...» Continuou a cavalgar esta onda,
prolongando-a de modo um pouco excessivo, como de costume, mas numa
torrente arrebatadora – os ocupantes das mesas vizinhas inclinavam-se para
apanhar migalhas dela – e nada daquilo era crispado ou dirigido a mim,
tinha esquecido todos os ressentimentos. As conchas vazias das ostras
foram levantadas da mesa. Por hábito, eu pus-me a morder a pele à volta
das unhas. Ao menos enquanto está a falar do passado, pensei, não me faz
perguntas sobre o presente ou o futuro, quando vou deixar de trabalhar com
Aimee ou ter um filho, e evitar este ataque em duas frentes tinha passado a
ser a minha prioridade sempre que estava com ela. Mas não me fez
perguntas sobre Aimee, não me fez perguntas sobre nada. Pensei:
finalmente chegou ao centro, está «no poder». Sim, apesar de gostar de se
caracterizar como um «espinho no flanco do partido», a verdade é que está
no centro das coisas, finalmente, e a diferença deve ser essa. Agora tinha
aquilo que toda a vida desejara e de que mais sentira a falta: respeito.
Talvez já nem sequer lhe interessasse saber o que eu fazia da minha vida. Já
não precisava de a encarar como um juízo sobre a sua pessoa, ou sobre a
forma como me criou. E embora tivesse reparado que agora não bebia, levei
também isso a crédito da nova imagem que formava da minha mãe: madura,
sóbria, segura de si, já não de pé atrás, um sucesso à sua maneira.
Foi esta linha de pensamento que me deixou desprevenida para o que
vinha a seguir. Parou de conversar, pousou a cabeça numa das mãos e disse:
«Querida, tenho de pedir a tua ajuda num assunto.»
Franziu-se ao dizer isto. Eu preparei-me para alguma forma de
dramatização. É horrível olhar agora para trás e perceber que este esgar era
mais provavelmente uma reação involuntária e sincera a uma verdadeira dor
física.
«E tentei resolvê-lo sozinha», disse, «não te envolver, sei que tens uma
vida muito ocupada, mas não sei a quem recorrer nesta altura.»
«Sim – bem, de que se trata?»
Estava muito concentrada a aparar as gorduras de uma costeleta de porco.
Quando finalmente levantei os olhos para a cara da minha mãe ela parecia
cansada como nunca a tinha visto.
«Trata-se da tua amiga – a Tracey.»
Eu pousei o talher.
«Oh, é ridículo, de facto, mas recebi um email, amigável... recebi-o no
consultório. Não a via há anos... mas pensei: Oh, Tracey! Era sobre um dos
filhos, o rapaz mais velho – tinha sido expulso da escola, injustamente na
opinião dela, e pedia-me ajuda, percebes, e por isso lhe respondi, e a
princípio não me pareceu muito estranho, estou sempre a receber cartas
daquelas. Mas agora não sei, dou comigo a pensar: e se tudo não passasse
de uma artimanha?»
«De que é que estás a falar, mamã?»
«Achei que era um bocado estranho, a quantidade de emails que ela
estava a enviar, mas... bem, sabes, não trabalha, isso é evidente, e não sei se
alguma vez trabalhou. E continua a viver naquele maldito apartamento. Só
isso já era suficiente para dar com uma pessoa em doida. Deve ter tempo de
sobra – e de repente desata a enviar emails, dois ou três por dia. A opinião
dela era que a escola expulsava injustamente os rapazes negros. Fiz
algumas pesquisas, mas parece que neste caso, bem... A escola achava que
tinha argumentos sólidos e eu não pude fazer mais nada. Escrevi-lhe e ela
ficou muito zangada, e enviou uns emails muito zangados, e eu pensava que
aquilo ia ficar por ali, mas – era só o princípio.»
Coçou nervosamente a nuca abaixo do lenço de cabeça e eu reparei que
tinha a pele do pescoço irritada.
«Mas, mamã, porque é que havias de responder a uma coisa vinda da
Tracey?» – disse eu, agarrada aos lados da mesa – «eu podia ter-te dito que
ela não é mentalmente estável. Conheço-a há muitos anos!»
«Bem, em primeiro lugar é minha eleitora, e eu respondo sempre aos
meus eleitores. E quando percebi que era a tua Tracey – não sei se sabes
que mudou de nome – mas os emails eram muito... esquisitos, muito
estranhos.»
«Há quanto tempo é que isso dura?»
«Há perto de seis meses.»
«Porque é que não me contaste antes!»
«Querida», disse ela, e encolheu os ombros: «Quando é que teria tido
oportunidade?»
Tinha emagrecido tanto que a sua cabeça magnífica parecia vulnerável
em cima do pescoço de cisne, e esta nova delicadeza, esta sugestão de
tempo mortal a consumi-la como consome toda a gente, falaram-me mais
alto do que qualquer das velhas acusações de abandono filial alguma vez
havia falado. Pousei a minha mão sobre a dela.
«Esquisitos em que sentido?»
«Não quero falar sobre isso aqui. Depois mando-te alguns exemplos.»
«Não sejas assim dramática, mamã. Dá-me só uma ideia.»
«São muito ofensivos», disse ela, de lágrimas nos olhos, «e eu não tenho
andado a sentir-me muito bem, e tenho recebido muitos, chegam a ser doze
num dia, e sei que é estúpido, mas aquilo perturba-me.»
«Porque é que não deixas a Miriam encarregar-se disso? É ela que se
encarrega das tuas comunicações, não é?»
Ela retirou a mão e assumiu a expressão de deputada sem funções
governativas, um sorriso breve e triste, adequado para enfrentar perguntas
sobre o serviço de saúde, mas deslocado a uma mesa de jantar.
«Bom, mais cedo ou mais tarde vais saber: separámo-nos. Eu continuo a
viver no apartamento de Sidmouth Road. Tenho de continuar no mesmo
bairro, evidentemente, e não encontro outra solução como aquela, pelo
menos para já, por isso pedi-lhe que se mudasse. Claro que, tecnicamente, o
apartamento é dela, mas foi muito compreensiva. Sabes como é a Miriam.
Mas, pronto, não é o fim do mundo, não há ressentimentos, e conseguimos
que não chegasse aos jornais. Portanto acabou.»
«Oh, mamã... lamento. A sério.»
«Não lamentes, não lamentes. Há pessoas que não suportam ver uma
mulher com uma certa dose de poder, e é só isso. Já passei por isso antes e
vou voltar a passar, tenho a certeza. Vê o caso do Raj!», disse, e havia tanto
tempo que não pensava no Destacado Ativista pelo seu verdadeiro nome
que cheguei à conclusão de que o havia esquecido. «Fugir com aquela
desmiolada mal eu acabei o meu livro! É culpa minha que ele nunca tenha
acabado um livro?»
Não, tranquilizei-a, não era culpa dela que Raj nunca tivesse acabado o
livro dele, sobre a mão de obra «cule» nas Índias Ocidentais – apesar de
andar há duas décadas a trabalhar nele – enquanto a minha mãe começou e
acabou o seu, sobre Mary Seacole, em um ano e meio. Sim, o único culpado
era o Destacado Ativista.
«Os homens são tão ridículos! Mas afinal as mulheres também são. Mas
adiante, de certo modo até é bom... A certa altura achei mesmo que ela
estava a interferir em termos que... Bem, a obsessão dela com as «nossas»
práticas empresariais na África Ocidental, as violações dos direitos
humanos, e por aí fora – quer dizer, andava a estimular-me a fazer
perguntas na Câmara –, em áreas sobre as quais não estou propriamente
habilitada a falar – e bem vistas as coisas penso que do que
verdadeiramente se tratava, de um modo cómico, era de tentar criar uma
quezília entre mim e ti...» Não me passava pela cabeça que Miriam tivesse
uma motivação tão inverosímil quanto esta, mas fiquei calada. «... E eu
estou a envelhecer e já não tenho a energia que tinha, e a verdade é que
quero concentrar-me nas minhas preocupações locais, no meu eleitorado.
Sou uma representante local e é isso que quero fazer. Não tenho ambições
para além dessas. Não sorrias, querida, não tenho mesmo. Já tive. A certa
altura disse à Miriam: “Ouve, todos os dias me entra pelo consultório gente
da Libéria, do Senegal, da Gâmbia, da Costa do Marfim! O meu trabalho é
global. O meu trabalho é aqui. Estas pessoas vêm de todo o mundo para o
meu círculo eleitoral, naqueles barquinhos horríveis, chegam traumatizadas,
viram morrer outras pessoas mesmo na sua frente, e vêm para aqui. Isto é o
universo a tentar dizer-me alguma coisa, sinto verdadeiramente que nasci
para fazer este trabalho.” Pobre Miriam... É muito bem-intencionada, e só
Deus sabe como é organizada, mas às vezes falta-lhe a perspetiva das
coisas. Quer salvar toda a gente. E uma pessoa assim não é a melhor das
parceiras de vida, podes crer, se bem que sempre vá considerá-la uma
administradora muito eficiente.» Foi impressionante – e um pouco triste.
Perguntei-me se não haveria uma epígrafe igualmente gélida para mim: Não
era a melhor das filhas, mas era uma companhia perfeitamente adequada
para um jantar.
«Tu achas», perguntou a minha mãe, «achas que ela está
destrambelhada... mentalmente doente ou...»
«A Miriam é uma das pessoas mais ajuizadas que alguma vez conheci.»
«Não – a tua amiga Tracey.»
«Preferia que deixasses de lhe chamar isso!»
Mas a minha mãe não estava a ouvir-me, estava no seu próprio sonho:
«Sabes, de certo modo... bem, pesa-me na consciência. A Miriam achava
que eu devia simplesmente ter ido à polícia por causa dos emails, mas... não
sei... quando envelhecemos, sem sabermos como, há coisas do passado...
que podem pesar sobre nós. Lembro-me de quando ela ia ao centro em
busca de aconselhamento... É claro que não vi as notas sobre ela, mas fiquei
com a sensação, ao falar com a equipa, de que havia problemas, questões de
saúde mental, já nessa altura. Talvez o meu primeiro erro tenha sido proibi-
la de continuar a frequentar o centro, mas a verdade é que não foi fácil
arranjar vaga para ela, e lamento mas na altura achei real e sinceramente
que ela tinha abusado da minha confiança, da tua confiança, da confiança
de toda a gente... É verdade que ainda era uma criança, mas de qualquer
forma foi um crime – e foi uma data de dinheiro –, tenho a certeza de que
foi todo para o pai – mas se te acusassem a ti, como ia ser? Na altura achei
que o melhor era cortar todas as ligações. Bem, calculo que tenhas muitas
opiniões críticas sobre aquilo que se passou – tens sempre muitas opiniões
críticas – mas só gostava que compreendesses que não foi fácil criar-te, a
minha situação não era fácil, e ainda por cima estava concentrada em tirar
um curso, adquirir qualificações, talvez demasiadamente concentrada, na
tua opinião... mas tinha de garantir uma vida melhor para ti e para mim.
Sabia que o teu pai não podia fazê-lo. Não era suficientemente forte para
isso. Ninguém mais ia fazê-lo. Tinha uma quantidade de bolas no ar ao
mesmo tempo, era assim que me sentia, e…» estendeu o braço sobre a mesa
e agarrou-me o cotovelo: «Devíamos ter feito mais – para a proteger!»
Eu senti o aperto dos seus dedos ossudos.
«Tu tiveste a sorte de ter um pai maravilhoso. Ela não. Não sabes o que
isso é porque tens sorte, a verdade é que nasceste com sorte – mas eu sei. E
ela fazia parte da nossa família, praticamente!»
Estava a implorar-me. As lágrimas que se haviam acumulado corriam-lhe
agora pela cara.
«Não, mamã... não, não era. Não estás a lembrar-te bem: nunca gostaste
dela. Quem sabe o que se passava naquela família ou de que é que ela
precisava de ser protegida, se é que precisava de ser protegida de alguma
coisa? Nunca ninguém nos disse – ela, pelo menos, nunca nos disse. Todas
as famílias daquela correnteza tinham segredos.» Olhei para ela e pensei:
queres saber qual era o nosso?
«Tu própria acabaste de o dizer, mamã: não se pode salvar toda a gente.»
Ela acenou várias vezes com a cabeça e levou um guardanapo às faces
molhadas.
«Isso é verdade», disse. «Uma grande verdade. Mas ao mesmo tempo,
não é verdade que podemos fazer sempre melhor?»
39 Nome pelo qual ficou conhecida esta comunidade heterogénea que no século XIX vivia no bairro
do Soho. (N. do T.)
5

Na manhã seguinte tocou o meu telefone britânico, era um número que


não reconheci. Não era a minha mãe, nem Aimee, nem nenhum dos pais
dos filhos dela, nem nenhuma das minhas três colegas de faculdade que
uma ou duas vezes por ano ainda acalentavam a esperança de me tentarem a
ir beber um copo com elas antes da partida do meu avião. A princípio
também não reconheci a voz: nunca tinha ouvido Miriam falar num tom de
voz tão seco ou impessoal.
«Mas percebes», perguntou-me, depois de umas graças desajeitadas, «que
a tua mãe está realmente doente?»
Eu estava deitada no sofá cinzento felpudo de Aimee, a olhar para os
jardins de Kensington – lajes cinzentas, céu azul, carvalhos verdes – e
reparei, enquanto Miriam explicava a situação, que esta vista se fundia com
outra anterior: cimento cinzento, céu azul, por cima da copa dos
castanheiros-da-índia, por trás de Willesden, a caminho da linha férrea.
Ouvia na sala ao lado a ama, Estelle, tentando disciplinar os filhos de
Aimee, naquele sotaque cantante que relacionei com os meus primeiros
momentos, com canções de embalar e banhos e histórias para adormecer,
pancadas com uma colher de pau. Faróis de automóveis que passavam de
noite, lambendo o teto.
«Alô? Ainda aí estás?»
Fase três: tinha começado na coluna. Cirurgia parcialmente bem-
sucedida, em fevereiro (onde é que eu estava em fevereiro?). Agora estava
em remissão, mas o último ciclo de químio tinha deixado marcas. Devia ter
ficado a descansar, para se recompor. Era uma loucura continuar a ir ao
Parlamento, uma loucura sair para jantar, uma loucura eu ter concordado.
«Como é que eu podia saber? Ela não me disse nada.»
Miriam reagiu sorvendo o ar entre os dentes.
«Uma pessoa com um mínimo de senso só tem de olhar para a mulher
para perceber que alguma coisa se passa com ela!»
Chorei. Miriam esperou pacientemente. O meu instinto foi desligar e
telefonar para a minha mãe, mas, quando tentei, Miriam implorou-me que
não o fizesse.
«Ela não quer que saibas. Sabe que tens de viajar, e tudo isso – não quer
complicar os teus planos. Ia ficar a saber que fui eu que te disse. Ninguém
sabe a não ser eu.»
Não suportava esta visão de mim própria como uma pessoa cuja mãe
preferia morrer a complicar-lhe os planos. Para evitar isso, pus-me à
procura de gestos dramáticos, e, mesmo sem saber se era possível ou não,
ofereci os serviços dos muitos médicos particulares de Aimee em Harley
Street. Miriam deu uma risadinha triste.
«Particulares? Ainda não conheces a tua mãe? Não, se queres fazer
alguma coisa por ela, eu digo-te o que seria mais importante neste
momento. Sabes da tresloucada que não para de a infernizar? Não percebo
porque é que isso a obceca tanto, mas tem de parar, não pensa noutra coisa.
Disse-me que te tinha contado. É verdade?»
«É. Ficou de me reenviar os emails mas ainda não reenviou.»
«Eu tenho-os. Vou-tos mandar.»
«Oh, OK... pensava – quer dizer, ela disse-me ao jantar que vocês as
duas...»
«Sim, sim, há muitos meses. Mas a tua mãe ficará para sempre na minha
vida. Não é pessoa que saia da nossa vida depois de ter entrado nela. Além
disso, quando alguém de quem gostamos adoece, tudo o resto...
desaparece.»

Minutos depois de ter pousado o telefone começaram a chegar os emails,


vários de cada vez, até que já tinha cinquenta ou mais. Sentei-me a lê-los no
sítio onde estava, espantada com tanta raiva. A força daquilo deu-me uma
sensação de impotência – como se Tracey tivesse mais sentimentos pela
minha mãe do que eu – mesmo que neste caso não se tratasse de uma
expressão de amor, mas sim de ódio. Espantada também por ver como ela
escrevia bem, nunca enfadonha, nem por um momento, a dislexia e os
muitos erros de ortografia não eram obstáculos para ela: tinha o dom de ser
interessante. Era impossível começar a ler um e não querer lê-lo até ao fim.
A sua acusação central contra a minha mãe era negligência: em relação aos
problemas do filho na escola, aos seus problemas e emails pessoais, ao seu
– da minha mãe, entenda-se – dever de defender os interesses dos seus
eleitores. Para ser sincera, achei que, quanto aos primeiros, não deixava de
ter razão, mas depois Tracey alargava o âmbito. Negligência em relação ao
estado das escolas municipais, às crianças negras dessas escolas, aos negros
de Inglaterra, aos trabalhadores negros de Inglaterra, às mães solteiras, aos
filhos de mães solteiras, e a Tracey, filha única de mãe solteira, em tempos
recuados. Achei curioso ela escrever «mãe solteira», como se o pai nunca
tivesse existido. O tom tornava-se grosseiro e ofensivo. Nalguns emails
parecia embriagada ou drogada. Depressa aquilo se transformou numa
comunicação de via única, numa dissecação sistemática das inúmeras
formas pelas quais, no entender de Tracey, a minha mãe a tinha desiludido.
Nunca gostou de mim, nunca me quis por perto, sempre tentou humilhar-
me, para si nunca fui suficientemente boa, tinha pavor de se ver relacionada
comigo, sempre se manteve à parte, fingia-se a favor da comunidade mas só
defendia os seus interesses, disse a toda a gente que eu tinha roubado aquele
dinheiro mas não tinha provas e nunca me defendeu. Havia uma fatia inteira
de cartas que se referiam exclusivamente ao complexo onde vivia. Que
nada estava a ser feito para melhorar as condições de habitação dos
moradores, as casas estavam a ser deixadas ao abandono – quase todas,
agora, na torre de Tracey. Não haviam sofrido nenhuma intervenção desde o
princípio dos anos oitenta. Entretanto, o complexo do outro lado da estrada
– o nosso, que o município estava agora afanosamente a vender ao
desbarato – tinha-se enchido de jovens casais brancos e respetivos filhos e
parecia «a porra de uma estância hoteleira». E que tencionava a minha mãe
fazer em relação aos rapazes que vendiam crack à esquina da Torbay Road?
Ao encerramento da piscina? Aos bordéis de Willesden Lane?
Era isto: uma mistura surrealista de vingança pessoal, memória dolorosa,
astuto protesto político e queixas de uma residente. Reparei que as cartas se
iam tornando mais longas com o passar das semanas, começando por um ou
dois parágrafos e chegando a ter milhares e milhares de palavras. Na mais
recente ressurgiam algumas das invenções e teorias da conspiração das
quais me lembrava de a ter ouvido falar dez anos antes, se não na letra pelo
menos no espírito. Não apareciam os lagartos: agora era uma seita secreta
bávara do século XVIII que tinha sobrevivido à sua própria supressão e
estava ativa em todo o mundo, contando entre os seus membros muitos
negros poderosos e famosos – em aliança com as elites brancas e os judeus
– e Tracey estava a investigar tudo isto com grande profundidade e cada vez
mais convencida de que talvez a minha mãe fosse um instrumento nas mãos
dessas pessoas, secundário mas perigoso, que havia conseguido escavar um
túnel para chegar ao coração do governo britânico.

Pouco depois do meio-dia li o último email, vesti o casaco, desci a rua e


esperei pelo autocarro 52. Desci na paragem de Brondesbury Park, percorri
a pé a Christchurch Avenue, cheguei ao prédio de Tracey, subi as escadas e
toquei à campainha. Já devia estar no corredor porque abriu a porta
imediatamente, com um filho pequeno de quatro ou cinco meses na anca, de
cara virada para o outro lado. Atrás dela ouviam-se mais crianças, a discutir,
e um televisor aos berros. Não sei o que ia à espera de encontrar, mas o que
tinha diante de mim era uma mulher de meia-idade, pesada e tensa, em
calças de pijama de turco, chinelos de andar por casa e T-shirt preta com
uma só palavra estampada: OBEDECE. Eu parecia muito mais nova.
«És tu», disse. Pôs a mão protetora na nuca do bebé.
«Precisamos de falar, Tracey.»
«MAMÃ!», gritou uma voz vinda do interior. «QUEM É?»
«Iá, bem, estou a fazer o almoço.»
«A minha mãe está a morrer», disse eu, recuperando espontaneamente o
velho hábito de exagerar, «e tu tens de acabar com o que andas…»
Nessa altura os dois filhos mais velhos enfiaram a cabeça na porta
entreaberta para verem quem era. A menina parecia branca, de cabelo
castanho ondulado e olhos verde-mar. O menino tinha a cor de Tracey e um
cabelo afro encaracolado, mas não se parecia especialmente com ela: devia
sair ao pai. O bebé era muito mais escuro do que todos nós, e quando se
virou para mim vi que era uma menina, uma cópia de Tracey e
extraordinariamente bonita. Mas todos eram bonitos.
«Posso entrar?»
Ela não respondeu. Suspirou, acabou de abrir a porta com um pé e eu
segui-a.
«Quem és tu, quem és tu, quem és tu?», perguntou-me a rapariga, e antes
que eu lhe respondesse enfiou a mão na minha. Verifiquei, ao passar pela
sala, que vinha interromper um visionamento de Ao Sul do Pacífico. Este
pormenor comoveu-me, e dificultou-me a tarefa de não esquecer a Tracey
odiosa dos emails ou a Tracey que dez anos antes me tinha enfiado aquela
carta por baixo da porta. Conhecia a Tracey que perdia uma tarde a ver Ao
Sul do Pacífico e adorava essa rapariga.
«Gostas?», perguntou-me a filha, e quando eu disse que sim puxou-me
pelo braço até me fazer sentar no sofá entre ela e o irmão mais velho, que
estava a jogar num telemóvel. Tinha atravessado Brondesbury Park cheia de
fúria justiceira, mas agora achava perfeitamente possível sentar-me neste
sofá e passar a tarde a ver Ao Sul do Pacífico com a mão de uma criança
aninhada na minha. Perguntei-lhe como se chamava.
«Mariah Mimi Alicia Chantelle!»
«O nome dela é Jeni», disse o rapaz, sem levantar os olhos. Pareceu-me
que devia ter oito anos, e Jeni cinco ou seis.
«E tu, como te chamas?», perguntei, encolhendo-me ao ouvir a voz da
minha mãe dentro de mim, falando com todas as crianças,
independentemente da idade, como se fossem quase amorfas.
«Chamo-me Bo!», disse ele, imitando a minha entoação, o que o fez rir –
um riso igual ao de Tracey. «E qual é a tua história, Miss Mulher? És
assistente social?»
«Não, sou... amiga da tua mamã. Crescemos juntas.»
«Mmm, pode ser», disse ele, como se o passado fosse uma coisa
hipotética que pudesse pegar ou largar. Voltou a embrenhar-se no jogo que
estava a jogar. «Mas nunca te tinha visto, por isso tenho cá as minhas
SUSPEITAS.»
«Esta é a parte da “Happy Talk!”», disse Jeni, encantada, apontando para
o ecrã, e eu disse, «Pois é, mas eu preciso de conversar com a tua mamã»,
embora a minha vontade fosse ficar no sofá, segurando-lhe a mãozinha
quente, sentindo o joelho de Bo involuntariamente encostado ao meu.
«Está bem, mas no fim da conversa voltas!»
Ela estava atarefada na cozinha, com a filha mais pequena pousada na
anca, e não interrompeu o que estava a fazer quando eu entrei.
«Miúdos fantásticos», dei comigo a dizer, enquanto ela empilhava pratos
e reunia talheres. «Amorosos – e espertos.»
Ela abriu o forno; por pouco não raspava a parede em frente.
«Que estás a fazer?»
Ela voltou a fechar o forno com força e de costas para mim mudou a filha
para o outro lado. Estava tudo mal: eu era a solícita, a arrependida, ela
numa posição de superioridade moral. O próprio apartamento parecia
suscitar em mim este papel de submissão. No palco da vida de Tracey era o
único papel que podia desempenhar.
«Preciso mesmo de falar contigo», voltei a dizer.
Ela virou-se. Pôs uma cara séria, como costumávamos dizer, mas quando
os nossos olhares se encontraram sorrimos, foi involuntário, um mútuo
sorriso involuntário.
«Mas olha que nem sequer me estou a rir», disse ela, retomando a cara
séria, «e se vieste cá para armar uma discussão comigo o melhor é ires-te
embora porque eu não estou para aí virada.»
«Vim cá para te pedir que pares de atormentar a minha mãe.»
«Foi isso que ela te disse?»
«Eu li os teus emails, Tracey.»
Ela deitou a bebé no ombro e pôs-se a abaná-la e a dar-lhe pancadinhas
nas costas.
«Ouve, eu vivo neste bairro», disse, «e tu não. Vejo o que se passa.
Podem apregoar o que quiserem lá no Parlamento, mas eu estou aqui, no
terreno, e supostamente a tua mãe representa estas ruas. Aparece na
televisão noite sim, noite não, mas notas alguma diferença por aqui? O meu
filho tem um QI de 130 – ouviste? Fez testes. Tem DDAH40, tem o cérebro
acelerado, e chateia-se de morte todos os dias na merda da escola. Claro
que se mete em sarilhos. Porque está chateado. E a única coisa que aqueles
professores todos sabem fazer é expulsá-lo!»
«Não sei nada disso, Tracey – mas tu não podes simplesmente…»
«Ora, para de stressar. Faz alguma coisa de útil. Ajuda-me a levar estes
pratos.»
Depositou-mos nas mãos, pôs os talheres em cima e despachou-me para a
sala de estar, onde dei comigo a pôr a mesa redonda e pequena para a
família dela, como noutros tempos pusera a mesa para o chá das suas
bonecas.
«Vamos para a mesa!», disse ela, naquilo que parecia ser uma imitação da
minha voz. Bem-disposta, deu uma palmadinha na nuca dos mais velhos.
«Se é outra vez lasanha vou começar a chorar de joelhos», disse Bo, e
Tracey disse «É lasanha», e Bo assumiu a posição e, comicamente, pôs-se a
dar murros no chão.
«Levanta-te, palhaço», disse Tracey, e riram-se todos, e eu não sabia
como havia de prosseguir a minha missão.
Sentei-me à mesa em silêncio enquanto eles discutiam e riam por tudo e
por nada, dando a impressão de que todos falavam o mais alto que podiam,
praguejando abundantemente, e a bebé no joelho de Tracey, a ser balançada
para cima e para baixo enquanto ela comia com uma das mãos e gracejava
com os outros dois, e talvez os almoços deles fossem todos assim, mas eu
não conseguia afastar a suspeita de que que aquilo também era, da parte de
Tracey, uma espécie de representação, uma forma de dizer: Olha como eu
tenho uma vida cheia. Olha como a tua é vazia.
«Continuas a dançar?», perguntei de repente, interrompendo-os a todos.
«Quer dizer, profissionalmente?»
Fez-se silêncio à volta da mesa e Tracey virou-se para mim.
«Tenho ar de quem continua a dançar?» Olhou para si e em volta da mesa
e riu-se amargamente. «Eu sei que era a mais elegante, mas... tenta
adivinhar, porra.»
«Eu – eu nunca te disse, mas vi-te em O Barco das Ilusões.»
Ela não se mostrou minimamente surpreendida. Levou-me a pensar que
talvez me tivesse visto na altura.
«Sim, bem, isso já foi há muito tempo. A minha mãe adoeceu, não tinha
quem ficasse com as crianças... tornou-se muito difícil. Também tive uns
problemas de saúde. Não foi porque quisesse.»
«E o pai deles?»
«Que é que tem o pai deles?»
«Porque é que não pode tomar conta deles?» Estava a falar
propositadamente no singular, mas Tracey – sempre alerta para os
eufemismos e a hipocrisia – não se deixou enganar.
«Bem, como vês, experimentei a baunilha, o leite e o chocolate, e sabes o
que descobri? Por dentro, os cabrões são todos iguais: homens.»
A linguagem dela chocou-me, mas os filhos – com as cadeiras viradas
para Ao Sul do Pacífico – não davam sinais de terem notado ou
estranhado.
«Talvez o problema seja o tipo de homens que escolhes.»
Tracey revirou os olhos: «Obrigada, Dr. Freud! Não tinha pensado nisso!
Mais algumas pérolas de sabedoria para me dar?»
Eu calei-me e comi a minha lasanha, ainda parcialmente congelada por
dentro, mas deliciosa. Trouxe-me à memória a mãe dela e perguntei-lhe
como estava.
«Morreu, há dois meses. Não foi, princesa? Morreu.»
«A vovó morreu. Foi para os anjinhos!»
«Pois é, agora somos só nós. Mas estamos bem. As putas das assistentes
sociais passam a vida a moer-nos o juízo, mas estamos bem. Os quatro
mosqueteiros.»
«Queimámos a vovó num grande forno!»
Bo virou-se para trás: «És mesmo idiota – não foi só queimá-la, pois não?
Como se a puséssemos em cima de uma fogueira ou coisa assim! Foi cre-
ma-da. É melhor do que estar encafuada no chão, numa caixa fechada,
porque odiava espaços fechados. Tinha claus-tro-fobia. Por isso é que subia
e descia sempre pelas escadas.»
Tracey sorriu ternamente a Bo e tentou fazer-lhe um afago, a que ele se
esquivou.
«Mas ainda viu as crianças», murmurou, quase para si própria. «Até a
pequenina Bella. Portanto fiquei feliz por esse lado.»
Levou Bella aos lábios e beijou-a repetidamente no nariz. Depois olhou
para mim e apontou-me para a barriga. «E tu, de que estás à espera?»
Eu espetei o nariz no ar, apercebendo-me demasiado tarde de que era um
gesto imitado – um gesto que nos últimos anos usava em momentos de
orgulho ou teimosia – e que pertencia por direito à mulher que estava
sentada na minha frente.
«Da situação certa», disse. «Do momento certo.»
Ela sorriu, tendo no rosto a crueldade de sempre: «Oh, OK. Desejo-te boa
sorte. É giro, n’é», disse, exagerando o sotaque para acentuar o efeito, e
virando-se para a televisão, não para mim: «Gajas ricas sem filhos, gajas
pobres com muitos. De certeza que a tua mãe havia de ter muito a dizer
sobre isso.»
As crianças acabaram de comer. Levantei os pratos e levei-os para a
cozinha, onde me sentei durante um minuto no banco alto, inspirando e
expirando concentradamente – como o professor de ioga de Aimee nos
havia ensinado a todos – e olhando pela janela estreita para o parque de
estacionamento. Havia perguntas para as quais queria respostas dela, e que
remontavam a um passado distante. Tentei pensar em como havia de
regressar à sala de uma forma que reconduzisse a tarde a um caminho que
me fosse favorável, mas antes de o descobrir entrou Tracey e disse: «A
questão é esta: o que se passa entre mim e a tua mãe é entre mim e a tua
mãe. Para ser franca, nem sequer sei o que vieste cá fazer.»
«Só estou a tentar compreender porque é que tu…»
«Sim, mas a questão é mesmo essa! Entre ti e mim já não pode haver
nenhuma compreensão! Tu agora fazes parte de um sistema diferente. As
pessoas como tu pensam que podem controlar tudo. Mas a mim não podes
controlar-me!»
«As pessoas como eu? De que é que estás a falar? Ó Trace, tu agora és
uma mulher adulta, tens três filhos lindos, precisas mesmo de aprender a
dominar essa paranoia…»
«Podes dar-lhe os nomes difíceis que quiseres, querida: existe um
sistema, e tu e a merdosa da tua mãe fazem parte dele.»
Levantei-me.
«Para de perseguir a minha família, Tracey», disse, e saí da cozinha em
passo decidido, perseguida por Tracey, atravessei a sala de estar e dirigi-me
à porta da rua. «Se isso continuar, participamos à polícia.»
«Está bem, está bem, vai andando, vai andando», disse ela, batendo com a
porta quando eu saí.
40 Distúrbio de Défice de Atenção com Hiperatividade. (N. do T.)
6

No princípio de dezembro Aimee voltou para verificar os progressos da


sua academia, viajando com um grupo mais reduzido, Granger, Judy, a
excêntrica procuradora desta para as comunicações por email, Mary-Beth,
Fern e eu – sem imprensa e sem agenda específica: queria propor uma
clínica de saúde sexual nos terrenos da escola. Ninguém discordava em
princípio, mas também era muito difícil imaginar como seria possível falar
publicamente da proposta como clínica de saúde sexual ou como podiam
ser levados ao conhecimento da aldeia os discretos relatórios de Fern sobre
a vulnerabilidade sexual das raparigas locais – elaborados com base em
informações colhidas laboriosamente, e com uma grande dose de confiança,
junto de algumas professoras, que também haviam corrido grandes riscos
falando com ele – sem provocar o caos e os melindres interpessoais e
porventura o fim de todo o nosso projeto. Discutimos o assunto durante o
voo. A medo, eu tentei falar com Aimee sobre a necessidade de cautela e
sobre o que conhecia do contexto local, pensando, cá para mim, em Hawa,
enquanto Fern, com maior eloquência, falava das intervenções anteriores de
uma ONG de médicos alemães numa aldeia mandinga da região, onde a
circuncisão feminina era prática generalizada, e as enfermeiras tinham
descoberto que as abordagens indiretas resultavam onde as condenações
diretas fracassavam. Aimee torceu o nariz a estas comparações e retomou a
palavra: «Oiçam, isso aconteceu-me em Bendigo, aconteceu-me em Nova
Iorque, acontece em todo o lado. Não tem nada que ver com o vosso
“contexto local” – acontece em todo o lado. Eu tinha uma grande família,
primos e tios que entravam e saíam – sei bem como são as coisas. E aposto
um milhão de dólares que, se entrarem numa sala de aula em qualquer canto
do mundo, encontram pelo menos uma rapariga que tem um segredo que
não pode contar. Eu lembro-me. Não tinha a quem recorrer. Quero que estas
raparigas tenham a quem recorrer!»
Em comparação com a paixão e o empenhamento pessoal dela, as nossas
objeções e preocupações pareciam mesquinhas e tacanhas, mas
convencemo-la a ceder quanto à palavra clínica e enfatizar – pelo menos
nas conversas com as mães locais sobre a clínica – a saúde menstrual, que
também era uma complicação para muitas raparigas sem meios para pagar
pensos higiénicos. Mas eu, pessoalmente, achava que Aimee tinha razão:
lembrava-me das minhas salas de aula, aulas de dança, recreios, grupos de
jovens, festas de aniversário, despedidas de solteira, onde havia sempre uma
rapariga que tinha um segredo, algo de inconfessável ou doloroso dentro de
si, e ao percorrer a aldeia com Aimee, entrando em casa das pessoas,
apertando-lhes a mão, aceitando delas comida e bebida, sendo abraçada
pelos filhos, muitas vezes julguei vê-la outra vez, àquela rapariga que vive
em toda a parte e em todas as épocas da história, que varre o pátio ou serve
chá ou transporta na anca o filho de outra pessoa e olha para nós com um
segredo que não pode contar.
Foi um primeiro dia difícil. Estávamos felizes por termos voltado e era
um prazer inesperado passear por uma aldeia que tinha deixado de ser para
nós tão estranha ou inóspita, vendo caras conhecidas – no caso de Fern,
pessoas que se tinham tornado suas amigas íntimas – e ao mesmo tempo
sentíamos os nervos em franja porque sabíamos que Aimee, apesar de
comparecer aos seus compromissos, e sorrir para as fotografias que Granger
estava encarregado de tirar, tinha a cabeça cheia de Lamin. A intervalos de
poucos minutos olhava para Mary-Beth, que tentava ligar mais uma vez,
mas ia sempre parar ao gravador. Em algumas casas ligadas a Lamin por
laços de sangue ou de amizade, perguntávamos por ele mas ninguém
parecia saber onde estava, tinham-no visto ontem ou hoje de manhã, talvez
tivesse ido a Barra ou a Banjul, talvez ao Senegal visitar a família. Ao final
da tarde já Aimee fazia um grande esforço para disfarçar a irritação.
Estávamos ali para perguntar às pessoas o que achavam das mudanças na
aldeia, e que mais queriam ver mudado, mas Aimee olhava em alvo se as
pessoas falavam com ela, por pouco que fosse, e começámos a entrar e sair
das moranças com excessiva rapidez, melindrando quem lá vivia. Eu queria
demorar mais tempo: pensava que talvez esta fosse a nossa última visita e
sentia uma certa ânsia de fixar tudo quanto via, gravar a aldeia na memória,
a sua luz constante, os verdes e os amarelos, aqueles pássaros brancos de
bico vermelho-vivo, e as pessoas, as minhas pessoas. Mas algures nestas
ruas havia um rapaz que se escondia de Aimee, uma sensação humilhante e
nova para ela, que sempre fora a pessoa para quem toda a gente corria.
Percebi que ela, para evitar pensar nisto, estava decidida a continuar sempre
em frente, e, apesar de os seus propósitos frustrarem os meus, senti pena
dela. Era doze anos mais nova do que ela, mas também sentia a idade que
tinha no meio daquelas raparigas escandalosamente jovens que
encontrávamos em todas as moranças, demasiado belas, confrontando-nos a
ambas, naquela tarde quente, com a única coisa que nenhuma quantidade de
poder ou de dinheiro pode devolver-nos depois de a perdermos.
Mesmo antes do pôr do sol chegámos ao extremo mais oriental da aldeia,
no limite onde deixava de ser aldeia e voltava a ser mato. Aí não havia
moranças, apenas cabanas de chapa ondulada, e foi numa dessas que
encontrámos o bebé. Todos muito cansados, cheios de calor, a princípio não
nos pareceu que estivesse mais alguém no espaço exíguo além da mulher
cuja mão Aimee estava a apertar naquele momento, mas quando me desviei
para permitir que Granger entrasse e se abrigasse do sol vi um bebé deitado
num pano estendido no chão, com uma rapariguinha dos seus nove anos ao
lado, a afagar-lhe a cara. Já tínhamos visto muitos bebés, evidentemente,
mas nenhum tão pequenino como este: tinha três dias e era uma menina. A
mulher embrulhou-a e passou o embrulhinho a Aimee, que a recebeu nos
braços e ficou a olhar fixamente para ela, sem fazer nenhum dos
comentários habituais que as pessoas se sentem na obrigação de fazer
quando pegam num recém-nascido. Granger e eu, sentindo-nos
embaraçados, aproximámo-nos e fizemos os comentários por ela: menino
ou menina, que lindo, tão pequenino, os olhos, que bonitos tufos de cabelo
preto. Estas coisas estavam a sair-me automaticamente – já as tinha dito
muitas vezes – até que olhei para ela. Tinha uns olhos enormes, preto-
arroxeados, desfocados, com umas pestanas belíssimas. Por muito que
tentasse que ela olhasse para mim não consegui. Era um pequeno Deus que
me recusava a graça, apesar de estar de joelhos. Aimee cingiu mais a bebé,
virou-me as costas e pousou o nariz nos lábios carnudos da criança. Granger
saiu para apanhar ar. Eu voltei a aproximar-me de Aimee e pus-me em bicos
de pés para espreitar a bebé por cima do ombro dela. O tempo passava. Nós
as duas, lado a lado, desagradavelmente próximas, transpirando uma para
cima da outra, mas nenhuma querendo correr o risco de sair do campo de
visão da bebé. A mãe estava a falar, mas não creio que nenhuma de nós
estivesse de facto a ouvi-la. Até que Aimee, muito relutantemente, se virou
e me pôs a bebé nos braços. É uma coisa química, talvez, como a dopamina
que inunda os apaixonados. Para mim foi um afogamento. Nunca
experimentei nada parecido, nem antes nem depois.
«Gostas dela? Gostas dela?», disse um homem jovial, que tinha aparecido
não se sabe de onde. «Leva-a para Londres! Ha ha! Gostas dela?»
Não sei como, devolvi-a à mãe. Ao mesmo tempo, num qualquer lugar de
futuros alternativos, saí dali a correr com a bebé nos braços, apanhei um
táxi para o aeroporto e voei para casa.

Quando o Sol se pôs e não havia mais nada a fazer em matéria de visitas,
resolvemos dar o dia por terminado e reunir na manhã seguinte para a visita
à escola e uma reunião da aldeia. Aimee e o resto do grupo seguiram Fern
para a casa cor-de-rosa. Eu, curiosa em saber o que tinha acontecido desde a
minha última visita, fui para casa de Hawa. Na escuridão absoluta
encaminhei-me muito lentamente para aquilo que julgava ser o cruzamento
principal, tateando troncos de árvore como uma cega, e espantada a cada
passo com a quantidade de adultos e crianças que sentia cruzarem-se
comigo, caminhando rápida e eficientemente, sem lanternas, a caminho do
seu destino. Consegui chegar ao cruzamento e estava a poucos passos da
porta de Hawa quando Lamin apareceu ao meu lado. Abracei-o e disse-lhe
que Aimee o tinha procurado por toda a parte e esperava vê-lo no dia
seguinte.
«Estou aqui. Não fui para lado nenhum.»
«Bem, vou visitar a Hawa – vens comigo?»
«Não vais encontrá-la. Partiu há dois dias para se casar. Amanhã volta cá
em visita, ia gostar de te ver.»
Eu quis exprimir compaixão, mas não encontrei a frase certa.
«Amanhã tens de vir connosco na visita à escola. A Aimee procurou-te o
dia inteiro.»
Ele deu um pontapé numa pedra do chão.
«A Aimee é uma senhora muito simpática, está a ajudar-me e eu estou-lhe
grato, mas…» Travou de repente, como alguém que desiste de um salto
comprido, mas de repente resolveu saltar mesmo: «Ela é velha! Eu sou
novo. E um homem novo quer ter filhos!»
Parámos à porta de Hawa, olhando um para o outro. Estávamos tão
próximos que lhe senti o bafo no pescoço. Devo ter sabido nesse momento
o que ia acontecer entre nós, nessa noite ou na seguinte, e que seria uma
espécie de solidariedade oferecida com o corpo, na ausência de uma
solução mais clara ou mais eloquente. Não nos beijámos, naquele momento,
ele nem sequer me pegou na mão. Não era preciso. Ambos compreendemos
que já estava decidido.
«Bem, entra», disse ele por fim, abrindo a porta de Hawa como se fosse
da sua própria casa. «Estás aqui. É tarde. Comes cá.»
De pé no alpendre a olhar lá para fora, praticamete no mesmo sítio onde o
tinha visto da última vez, estava Babu, irmão de Hawa. Cumprimentámo-
nos muito calorosamente: como toda a gente que eu encontrava, ele
considerava o facto de ter decidido voltar mais uma vez uma espécie de
virtude, ou pelo menos fingia considerar. A Lamin limitou-se a fazer um
aceno de cabeça, não percebi se em sinal de familiaridade ou de frieza. Mas
quando lhe perguntei por Hawa ficou inequivocamente triste.
«Fui lá ontem ao casamento, fui a única testemunha. Por mim, não quero
saber se há cantores ou vestidos ou bandejas de comida – nada disso me
interessa. Mas as minhas avós! Oh, desencadeou uma guerra nesta aldeia.
Vou ter de ouvir queixumes das mulheres até ao fim dos meus dias!»
«Achas que ela está feliz?»
Ele sorriu como se eu tivesse dito algum disparate.
«Ah, sim – para os americanos essa é sempre a pergunta mais
importante!»
Trouxeram-nos o jantar, um verdadeiro banquete, e jantámos cá fora, com
as avós formando um círculo conversador na outra ponta do alpendre,
olhando para nós de vez em quando, mas demasiado ocupadas com a
conversa para nos prestarem grande atenção. Tínhamos um candeeiro solar
no chão que nos iluminava de baixo para cima: via a minha comida e a
parte inferior da cara de Lamin e do irmão de Hawa, e em fundo ouviam-se
os habituais ruídos da azáfama doméstica e de crianças que riam, choravam,
gritavam, e de pessoas das várias dependências que atravessavam o pátio
em todas as direções. O que não se ouvia eram vozes de homem, mas de
repente ouviram-se algumas ali muito perto, e Lamin levantou-se de um
salto e apontou para o muro da morança, onde, dos dois lados da entrada,
havia agora meia dúzia de homens sentados, de pernas voltadas para a
estrada. Lamin deu um passo na direção deles, mas o irmão de Hawa
agarrou-o pelo ombro e obrigou-o a sentar-se, avançando ele, ladeado por
duas das avós. Reparei que um dos rapazes estava a fumar e atirou a beata
com um piparote para o nosso pátio, mas quando o irmão de Hawa se
abeirou deles a conversa foi rápida: disse qualquer coisa, um dos rapazes
riu-se, uma das avós disse qualquer coisa, ele voltou a falar, com mais
firmeza, e meia dúzia de traseiros desapareceram da nossa vista. A avó que
havia falado abriu a porta e ficou a vê-los afastarem-se, pela estrada fora. A
Lua rompeu por entre um manto de nuvens e do sítio onde eu estava vi que
pelo menos um deles tinha uma arma às costas.
«Não são de cá, são do outro extremo do país», disse o irmão de Hawa,
de novo junto de mim. Continuava com o seu sorriso estudadamente
impassível, mas por trás dos óculos de marca vi-lhe nos olhos que estava
muito agitado. «Acontece cada vez mais. Ouvem dizer que o Presidente
quer estar no poder um bilião de anos. Estão a perder a paciência. Começam
a dar ouvidos a outras vozes. Vozes estrangeiras. Ou à voz de Deus, para
quem acredita que pode comprá-la numa cassete Casio por vinte e cinco
dalasi no mercado. Sim, estão a perder a paciência e eu não os censuro. Até
o nosso calmo Lamin, o nosso paciente Lamin esgotou a paciência.»
Lamin serviu-se de uma fatia de pão branco mas não disse nada.
«E quando é que te vais embora?», perguntou Babu a Lamin, num tom de
tal modo carregado de autoridade, de censura, que me fez pensar que estava
a referir-se a dar o salto, mas ambos se riram perante o pânico que deve ter-
me perpassado pelo rosto. «Não, não, não, vai ter papéis oficiais. Está tudo
a ser tratado, graças a vocês, que estão cá. Já estamos a perder os nossos
melhores jovens, e agora levam mais um. É triste, mas as coisas são como
são.»
«Tu também foste», disse Lamin com má cara. Tirou da boca uma
espinha de peixe.
«Os tempos eram diferentes. Não fazia cá falta.»
«Eu não faço cá falta.»
Babu não respondeu e a irmã não estava presente para preencher com
tagarelice os espaços das nossas conversas. Quando acabámos a nossa
refeição silenciosa, antecipei-me às muitas criadas-meninas, reuni os pratos
e encaminhei-me com eles para onde as tinha visto irem, para o último
compartimento da casa, que afinal era um quarto de dormir. Estava parada
no meio da luz ténue, sem saber o que fazer, quando uma das seis crianças
que lá dormiam levantou a cabeça da cama única, viu o que eu tinha nos
braços e apontou para uma cortina. Dei comigo no exterior, outra vez no
pátio, mas desta vez no pátio das traseiras, onde estavam as avós e algumas
raparigas mais velhas, acocoradas em volta de vários alguidares de água em
que lavavam roupa com grandes barras de sabão cinzento. Um círculo de
lâmpadas solares iluminava o cenário. Quando cheguei ao pé delas o
trabalho parou para assistirem a uma cena de teatro animal: um galo jovem
que corria atrás de uma galinha, subjugando-a, fincando-lhe as unhas no
pescoço, enterrando-lhe a cabeça na poeira, por fim montando-a. Esta
operação só levou um minuto, durante o qual a galinha se mostrou
contrariada, impaciente por ir à sua vida, pelo que a brutal sensação de
poder do galo sobre ela tinha um certo ar cómico. «Grande homem! Grande
homem!», clamou uma das avós quando me viu, apontando para o galo. As
mulheres riram-se, a galinha foi libertada, andou às voltas num passo
cambaleante, uma vez, duas, três vezes, aparentemente mareada, antes de
regressar à capoeira e à companhia das irmãs e dos filhotes. Eu pousei os
pratos onde me mandaram, no chão, e quando voltei verifiquei que Lamin
já se tinha ido embora. Percebi que era um sinal. Anunciei que também
tinha de ir para a cama, mas em vez disso deitei-me vestida no meu quarto,
à espera de que desaparecessem os últimos sons de atividade humana.
Pouco antes da meia-noite peguei na lanterna de cabeça, atravessei o pátio
sem fazer barulho, saí da morança e fui até à aldeia.

Aimee tinha pensado nesta visita como uma «viagem de recolha de


informação», mas o comité de aldeia entendia que tudo era razão para
comemorar, e no dia seguinte, quando terminávamos a visita à escola e
regressávamos ao recreio, encontrámos uma roda de percussão à nossa
espera debaixo da mangueira, doze mulheres a passar da meia-idade com
tambores entre as coxas. Nem Fern tinha sido avisado, e Aimee ficou
nervosa com mais este atraso no programa, mas era impossível evitá-lo:
tinha caído numa emboscada. As crianças entraram em fila e formaram uma
segunda roda, enorme, em volta das percussionistas, e nós, os
«americanos», fomos convidados a sentar-nos na roda interior, em
cadeirinhas das salas de aula. Os professores foram buscá-las, e entre eles,
vindos do outro extremo da escola, onde ficava a aula de matemática de
Lamin, vi-os, a ele e a Hawa, avançarem juntos, cada um transportando
quatro cadeirinhas. Mas quando o vi não me senti de maneira nenhuma
desconfortável, nem envergonhada: aquilo que tinha acontecido na noite
anterior era de tal modo estranho à minha vida diurna que me parecia ter
acontecido a outra pessoa, a um corpo-sombra que prosseguisse objetivos
diferentes dos meus e não pudesse ser obrigado a vir à luz. Acenei-lhes –
não deram sinais de me terem visto. Começou o toque dos tambores. A
minha voz não podia sobrepor-se a eles. Virei-me outra vez para o círculo e
sentei-me no lugar que me indicaram, ao lado de Aimee. As mulheres
começaram a revezar-se na roda, pousando o tambor para dançarem em
vibrantes explosões de três minutos, uma espécie de anti-representação,
porque apesar do brilhantismo da movimentação dos pés, do génio que
brotava das ancas, não se viravam de frente para o seu público, antes
ficando sempre viradas para as suas irmãs percussionistas, de costas para
nós. Quando a segunda mulher começou a dançar, Hawa entrou na roda e
sentou-se na cadeira que eu estava a guardar para ela ao meu lado, mas
Lamin limitou-se a fazer um aceno de cabeça a Aimee antes de ir sentar-se
no lado oposto da roda, tão longe de Aimee, e presumo que de mim, quanto
lhe era possível. Apertei a mão de Hawa e dei-lhe os parabéns.
«Estou muito feliz. Não foi fácil para mim vir cá hoje, mas queria estar
contigo.»
«O Bakary também veio?»
«Não! Pensa que estou em Barra a comprar peixe! Não gosta de dançar
assim», disse ela, e mexeu ligeiramente os pés ao ritmo da mulher que
dançava a poucos metros de nós. «Mas é claro que eu não vou dançar,
portanto não faz mal.»
Voltei a apertar-lhe a mão. Era maravilhoso estar ao pé dela, ela recortava
cada situação à sua dimensão pessoal, achava que podia adaptar tudo até
ficar ao tamanho, mesmo quando a flexibilidade tinha passado de moda. Ao
mesmo tempo, invadia-me um impulso paternalista – ou talvez devesse
dizer «maternalista»: mantive-lhe a mão agarrada, com muita força, na
esperança, na esperança irracional, de que isso, como se fosse um amuleto
barato comprado a um marabu, lhe desse proteção, a mantivesse a salvo dos
espíritos malignos, cuja existência no mundo já não me oferecia dúvidas.
Mas, quando ela se virou e viu os sulcos na minha testa, riu-se de mim e
libertou-se, batendo as palmas para assinalar a entrada de Granger na nossa
roda, à qual deu a volta como se fosse uma roda de break-dancers, exibindo
os seus passos pesados, para gáudio das mães percussionistas. Ao cabo de
um conveniente minuto de hesitação, Aimee entrou na dança com ele. Para
evitar olhar para ela, eu observei em volta da roda todo o amor obstinado,
inabalável, lamentavelmente dirigido ao alvo errado. Senti o olhar de Fern,
que estava à minha direita, pregado em mim. Vi Lamin levantar os olhos de
vez em quando, sempre e só para Hawa, que tinha a cara perfeita
embrulhada como um presente. Mas acabei por não conseguir evitar a
imagem de Aimee, dançando por Lamin, perante Lamin, para Lamin. Como
alguém que dança a pedir uma chuva que não irá cair.
Oito mulheres percussionistas depois, até Mary-Beth havia
experimentado uma dança e agora era a minha vez. Duas mães levantaram-
me, puxando-me cada uma por um braço. Aimee tinha improvisado,
Granger tinha recapitulado – o moonwalk, o robô, o homem em corrida –
mas eu ainda não tinha nenhumas noções de dança, apenas instintos.
Observei-as durante um minuto, às duas mulheres que dançavam para mim,
que me desafiavam, e escutei cuidadosamente as múltiplas batidas, e
percebi que também podia fazer o mesmo que elas. Tomei posição entre
elas e acompanhei-as, passo por passo. A miudagem delirou. Eram tantas as
vozes a berrar por mim que deixei de ouvir os tambores e a única forma de
conseguir continuar era responder aos movimentos das mulheres, que nunca
perdiam o ritmo, que o ouviam apesar de todos os obstáculos. Cinco
minutos depois parei, mais cansada do que se tivesse corrido seis milhas.
Deixei-me cair na cadeira ao lado de Hawa, que de uma qualquer prega
do hijab novo tirou um paninho e deu-mo para limpar uma parte do suor
que me corria pela cara.
«Porque é que estão a dizer “too bad”? Dancei assim tão mal?»
«Não! Dançaste lindamente! Estão a dizer Toobab, que quer dizer…»
Afagou-me com a mão a pele da cara. «Portanto o que estão a dizer é:
“Apesar de seres branca, danças como se fosses negra!” Eu confirmo: tu e a
Aimee, as duas – dançam de facto como se fossem negras. É um grande
elogio, devo dizer. Nunca imaginaria isso de ti! Caramba, ainda danças
melhor do que o Granger!»
Aimee ouviu e soltou uma gargalhada.
7

Uns dias antes do Natal, estava eu na casa de Londres, sentada à


secretária no escritório pessoal de Aimee, a terminar a lista para a festa de
Ano Novo, quando ouvi Estelle, algures no andar de cima, dizer: «Pronto,
pronto.» Era domingo, o escritório do primeiro andar estava fechado. As
crianças ainda não tinham voltado do seu novo colégio interno e Judy e
Aimee estavam na Islândia, por duas noites, a fazer promoção. Não via nem
ouvia Estelle desde que as crianças se tinham ido embora e partia do
princípio – se é que alguma vez pensava nela – de que os seus serviços já
não eram necessários. Agora ouvia aquela toada que tão bem conhecia:
«Pronto, pronto.» Subi a correr ao andar de cima e fui encontrá-la no antigo
quarto de Kara, a que chamávamos o berçário. Estava em pé junto às
janelas de guilhotina, a olhar para o parque, de crocs confortáveis nos pés e
camisola preta bordada a fio dourado, parecendo ouropel, e umas discretas
calças azuis plissadas. Estava de costas para mim, mas quando ouviu os
meus passos deu meia-volta, tendo nos braços um bebé enfaixado. O bebé
estava tão embrulhado que parecia irreal, um adereço. Aproximei-me
apressadamente, de braços estendidos. «Não podes chegar aqui de repente e
tocar no bebé! Tens de lavar as mãos!» – e foi-me necessária uma grande
dose de autodomínio para me afastar um passo dela e do bebé, com as mãos
atrás das costas.
«De quem é o bebé, Estelle?»
O bebé bocejou. Estelle olhou para ele enternecida.
«Adotada há três semanas, acho eu. Não sabias? Parece-me que toda a
gente sabe! Mas só cá chega ontem à noite. Chama-se Sankofa – não me
pregunta que nome é esse porque não sei dizer. Como pode alguém dar um
nome como este a um bebé linda como esta, devo dizer que não sei. Eu vou
chamar-lhe Sandra até que alguém me manda parar.»
O mesmo olhar arroxeado, escuro, desfocado, derrapando em mim,
fascinado consigo mesmo. Percebi na voz de Estelle o prazer que a criança
já lhe dava – muito maior, pareceu-me, do que alguma vez tivera com Jay e
Kara, que praticamente tinha criado – e tentei concentrar-me no conto de
fadas desta «menina afortunada» que ela tinha nos braços, resgatada dos
«confins do mundo», depositada «no colo do luxo». O melhor era não
querer saber como aquilo havia sido possível: uma adoção internacional em
menos de um mês. Voltei a estender os braços. Tremiam-me as mãos.
«Se queres tanto pegar ela, vou agora dar-lhe banho: vem comigo lá
acima, podes lavar as mãos.» Fomos para o quarto de banho da enorme
suite de Aimee, que entretanto tinha sido discretamente preparado para
receber um bebé: um jogo de toalhas com orelhas de coelho, pós e óleos de
bebé, esponjas de bebé e sabonetes de bebé, e meia dúzia de patinhos de
plástico, cada um de sua cor, alinhados no rebordo da banheira.
«Este disparate todo!» Estelle agachou-se para observar um ridículo
objeto de turco com moldura metálica, preso à parede da banheira, que
parecia uma cadeirinha de jardim para um velho minúsculo. «Esta tralha
toda! A única forma de lavar um bebé deste tamanho é no lavatório.»
Ajoelhei-me ao lado de Estelle e ajudei a desembrulhar a embalagem
minúscula. Perninhas de rã espernearam, estupefactas.
«É o choque», explicou Estelle, enquanto a bebé chorava. «Estava quente
e amparada, agora está fria e solta.»
Fiquei a vê-la mergulhar Sankofa, furiosa e aos gritos, num pedaço de
porcelana vitoriana que me lembrava de ter encomendado, pelo preço de
sete mil libras.
«Pronto, pronto», disse Estelle, passando um pano pelos muitos refegos
da criança. Um ou dois minutos depois pegou no rabinho de Sankofa com a
palma da mão, beijou-a na cara ainda chorosa e mandou-me dobrar a
mantinha em triângulo no chão aquecido. Eu sentei-me nos calcanhares e
fiquei a ver Estelle cobrir a bebé toda com óleo de coco.
«Tem filhos, Estelle?»
Dezoito, dezasseis e quinze anos – mas tinha as mãos engorduradas e por
isso apontou-me o bolso de trás para eu tirar de lá o telemóvel. Passei com
o dedo para a direita. Vi, por um momento, a imagem impecável de um
rapaz alto em traje de finalista do liceu, ladeado pelas sorridentes irmãs
mais novas. Ela disse-me como se chamavam e quais eram os talentos
especiais de cada um, alturas e temperamentos, e com que frequência cada
um deles lhe telefonava, ou não, por Skype ou lhe respondia no Facebook.
Não com a frequência desejada. Nos cerca de dez anos que trabalhámos
com Aimee, esta foi a conversa mais longa e mais íntima que tivemos.
«A minha mãe toma conta deles. Andam no melhor liceu de Kingston.
Agora ele vai para a Universidade das Índias Ocidentais estudar engenharia.
É um rapaz fantástico. As irmãs tomam-no como modelo. É a estrela.
Admiram-no muito.»
«Eu sou jamaicana», disse eu, e Estelle acenou com a cabeça e sorriu
serenamente para a bebé. Já a tinha visto fazer isto muitas vezes, quando
humildemente fazia as vontades das crianças, ou da própria Aimee.
Corando, corrigi o que tinha dito.
«Ou melhor, a família da minha mãe é de St. Catherine.»
«Ah, sim. Percebo. Já lá foste alguma vez?»
«Não, ainda não.»
«Bem, ainda és nova.» Voltou a embrulhar a bebé no seu casulo e
encostou-a ao peito. «Tens o tempo a teu favor.»

Chegou o Natal. A bebé foi-nos apresentada, a mim e a todos, como um


facto consumado, uma adoção legal, sugerida pelos pais e acordada com
eles, e ninguém pôs isso em causa, pelo menos abertamente. Ninguém
perguntou que significado podia ter a palavra «acordo» numa situação tão
profundamente desigual. Aimee estava carente do amor de um bebé, toda a
gente ficou feliz por ela – era o seu milagre de Natal. Quanto a mim, só
tinha suspeitas e o facto de todo o processo ter sido escondido de mim até
estar concluído.
Alguns meses depois voltei à aldeia pela última vez, informando-me o
melhor que podia. Ninguém queria falar comigo sobre o assunto, ou dizer
mais do que banalidades felizes. Os pais naturais já não viviam na aldeia,
ninguém parecia saber ao certo para onde tinham ido viver. Se Fernando
sabia alguma coisa a este respeito não ia dizer-me, Hawa tinha-se mudado
para Serrekunda com o seu Bakary. Lamin arrastava-se pela aldeia, estava
de luto por Hawa – talvez eu também estivesse. Sem ela, os serões na
morança eram compridos, escuros, solitários e passados integralmente em
línguas que eu não falava. Mas por muito que dissesse a mim própria, a
caminho da casa de Lamin – cinco ou seis vezes ao todo, e sempre a altas
horas da noite – que estávamos os dois a agir movidos por um desejo físico
incontrolável, penso que ambos sabíamos perfeitamente que a paixão que
pudesse existir entre nós era dirigida por intermédio do outro a uma coisa
diferente, a Hawa, ou à ideia de se ser amado, ou simplesmente destinava-se
a provar a nós mesmos que ambos éramos independentes de Aimee. Era de
facto ela a pessoa que queríamos atingir com toda a nossa fornicação sem
amor, ela participava tanto no processo como se estivesse presente no
quarto.
Regressando furtivamente da morança de Lamin à de Hawa, um dia de
manhã muito cedo, antes das cinco, estava o Sol a nascer, ouvi o
chamamento à oração e percebi que já era tarde para passar despercebida –
uma mulher que puxava um burro recalcitrante, um grupo de crianças que
me acenavam de uma porta – e por isso mudei de direção, para dar a ideia
de que tinha saído para dar um passeio sem destino, como toda a gente
sabia que os americanos faziam às vezes. Contornando as traseiras da
mesquita, deparei com Fern mesmo na minha frente, encostado à árvore
mais próxima, a fumar. Era a primeira vez que o via fumar. Tentei saudá-lo
com um sorriso natural, mas ele pôs-se ao meu lado e pegou-me
energicamente por um braço. O seu bafo cheirava a cerveja. Estava com ar
de quem não tinha pregado olho.
«Que andas a fazer? Porque é que fazes isto?»
«Andas a seguir-me, Fern?»
Só me respondeu quando chegámos ao outro lado da mesquita, junto do
enorme monte de térmitas, onde parámos, protegidos da curiosidade por
três lados. Largou-me o braço e pôs-se a falar como se estivéssemos a meio
de uma longa conversa.
«E tenho uma boa notícia para te dar: graças a mim, ele vai estar muito
em breve convosco, com caráter definitivo, sim, graças a mim. Aliás, vou
hoje mesmo à embaixada. Tenho trabalhado muito nos bastidores para unir
os amantes jovens e não tão jovens. Os três.»
Esbocei uma negativa, mas era inútil. Era sempre muito difícil mentir a
Fern.
«Deve ser um sentimento muito forte esse que tens por ele, para te
arriscares tanto. Tanto. Da última vez que cá estiveste, sabes, desconfiei, e
da vez anterior – mas mesmo assim é um choque ter a confirmação.»
«Mas eu não sinto nada por ele!»
Desapareceu-lhe da cara toda a combatividade.
«Pensas que com isso me sinto melhor?»
Finalmente, a vergonha. Uma emoção suspeita, tão antiga. Estávamos
sempre a aconselhar as raparigas da academia a que não a tivessem, porque
era antiquada e inútil e conduzia a práticas que reprovávamos. Mas
finalmente senti-a.
«Por favor não digas nada. Por favor. Parto amanhã e acabou. Ainda
agora começou e já acabou. Por favor, Fern – tens de me ajudar.»
«Eu tentei», disse ele, e afastou-se, na direção da escola.

O resto do dia foi uma tortura, e o seguinte também, e o voo foi uma
tortura, a travessia do aeroporto, o telemóvel uma granada no meu bolso.
Não deflagrou. Quando entrei na casa de Londres estava tudo como antes,
só que mais feliz. As crianças estavam todas em sossego – pelo menos não
se ouviam –, o último álbum foi bem-recebido. Fotografias de Aimee e
Lamin juntos, ambos lindos – no dia do aniversário de Jay, no regresso do
concerto – apareciam em todos os pasquins de mexericos e tinham mais
sucesso, à sua maneira, do que o álbum propriamente dito. E a bebé teve o
seu debute. O mundo, como veio a verificar-se, não estava particularmente
curioso acerca dos pormenores logísticos, e a imprensa achava-a um
encanto. Parecia lógico para toda a gente que Aimee pudesse adquirir um
bebé com a mesma facilidade com que podia mandar vir do Japão uma
carteira de série limitada. Sentada um dia na caravana de Aimee durante a
gravação de um vídeo, a almoçar com Mary-Beth, a segunda assistente
pessoal, aflorei o assunto na esperança de que ela se descaísse com algumas
informações, mas não precisava de me ter dado a tantas cautelas: Mary-
Beth deu-mas com todo o gosto, fiquei a saber a história toda, tinha havido
um contrato elaborado por um dos advogados de espetáculos, dias depois
Aimee conheceu a bebé, e Mary-Beth tinha ido assistir à assinatura. Estava
encantada com esta prova da sua própria importância e com o que ela dava
a entender acerca da minha posição na hierarquia. Pegou no telemóvel e
mostrou-me as fotografias de Sankofa, os pais e Aimee sorridentes, e no
meio delas, reparei, estava uma reprodução do contrato. Quando ela foi ao
quarto de banho e deixou o telefone à minha frente, enviei a imagem do
contrato para o meu email. Um documento de duas páginas. Uma quantia
astronómica, em termos locais. Gastávamos praticamente o mesmo em
flores para a casa durante um ano inteiro. Quando abordei o assunto com
Granger, o meu último aliado, ele surpreendeu-me ao considerar que se
tratava de um caso nobre de «passagem das palavras aos atos», e falou tão
enternecidamente da bebé que tudo aquilo que eu tinha a dizer iria parecer
monstruoso e insensível. Concluí que não era possível ter uma conversa
racional. A bebé enfeitiçava-os. Granger estava tão apaixonado por Kofi,
como lhe chamávamos, como toda a gente que se aproximava dela, e não há
dúvida de que era fácil amá-la, ninguém lhe ficava imune, nem mesmo eu.
Aimee estava enfeitiçada: era capaz de passar uma hora ou duas sentada
com a criança ao colo, a olhar embevecida para ela, sem fazer mais nada e,
conhecendo a relação de Aimee com o tempo, o valor e escassez que tinha
para ela, todos compreendíamos a grande demonstração de amor que isto
representava. A bebé compensava toda a espécie de situações enfadonhas –
reuniões com os contabilistas, monótonas provas de guarda-roupa, sessões
de geração de ideias para estratégias de RP –, mudava a tonalidade de um
dia com a sua simples presença a um canto de qualquer sala, ao colo de
Estelle ou embalada numa alcofa em cima de um suporte, a rir, a chilrear, a
chorar, impoluta, fresca e nova. À primeira oportunidade acotovelávamo-
nos todos em volta dela. Homens e mulheres, de todas as idades e raças,
mas todos com uma certa quantidade de tempo acumulada ao serviço de
Aimee, desde velhos e cansados cavalos de batalha como Judy, passando
por gente do meio da tabela como eu, até jovenzinhos acabados de sair da
universidade. Todos oficiávamos no altar da bebé. A bebé estava a começar
do zero, a bebé não tinha compromissos, a bebé não estava a abrir caminho
à força, a bebé não precisava de imitar a assinatura de Aimee em quatro mil
retratos promocionais com destino à Coreia do Sul, a bebé não tinha de
gerar sentido a partir de cacos disto e daquilo, a bebé não tinha recordações
nem remorsos, não precisava de uma limpeza química da pele, não tinha
telemóvel, não tinha a quem enviar emails, ela sim, tinha o tempo a seu
favor. O que quer que acontecesse depois não era por falta de amor à bebé.
A bebé estava rodeada de amor. A questão é saber o que o amor nos dá
direito a fazer.
8

Naquele último mês de trabalho com Aimee – antes de ela me despedir,


entenda-se – fizemos uma minidigressão europeia, começando por uma
exposição em Berlim, não um concerto, uma exposição de fotografias que
lhe pertenciam. Eram fotografias de fotografias, imagens usurpadas e
refotografadas; tinha aproveitado a ideia de Richard Prince – um velho
amigo dos velhos tempos – sem lhe acrescentar nada a não ser o facto de ser
ela, Aimee, a pô-la em prática. Mesmo assim, uma das galerias mais
respeitadas de Berlim não hesitou em acolher a sua «obra». Todas as fotos
eram de dançarinos – considerava-se acima de tudo uma dançarina e
identificava-se profundamente com eles – mas quem fez toda a pesquisa fui
eu, e Judy tinha tirado a maior parte das fotos, porque quando chegava a
altura de ir para o estúdio refotografar as fotografias havia sempre outra
coisa para fazer: receções em Tóquio, o «design» de um novo perfume, por
vezes até a gravação de uma canção. Refotografámos Barishnikov e
Nureiev, Pavlova, Fred Astaire, Isadora Duncan, Gregory Hines, Martha
Graham, Savion Glover, Michael Jackson. Fui eu que defendi a inclusão de
Jackson. Aimee não o queria, não correspondia à sua ideia de artista, mas
consegui convencê-la apanhando-a num momento de muita azáfama,
enquanto Judy se batia por «uma mulher de cor». Judy estava preocupada
com a sub-representação, acontecia com frequência, o que significava que
na verdade estava preocupada com o que os outros pudessem interpretar
como sub-representação, e sempre que tínhamos estas conversas eu ficava
com a estranha sensação de que ela me via como sendo de facto uma coisa,
não uma pessoa, de todo, mas uma espécie de objeto – sem o qual uma série
matemática de outros objetos não fica completa – ou nem sequer um objeto
mas uma espécie de véu conceptual, uma folha de figueira moral, que
protege uma determinada pessoa de uma determinada crítica, e em que
raramente se pensa a não ser enquanto desempenha este papel. Isso não me
magoava particularmente: interessava-me a experiência, era como se fosse
ficção. Pensei em Jeni LeGon.
Tive a minha oportunidade durante uma viagem de automóvel entre o
Luxemburgo – onde Aimee tinha ido fazer contactos com a imprensa – e a
Alemanha. Peguei no telemóvel, pesquisei no Google LeGon e Aimee
olhou distraidamente para as imagens – ao mesmo tempo estava a trocar
mensagens no seu próprio telemóvel – enquanto eu falava o mais depressa
que podia sobre LeGon como pessoa, atriz, dançarina, símbolo, tentando
captar-lhe a atenção irrequieta, e de repente ela acenou resolutamente a uma
foto de LeGon e Bojangles juntos, LeGon de pé, a dançar, numa pose de
alegria cinética, e Bojangles ajoelhado a seus pés, apontando para ela, e
disse: «Sim, essa, gosto dessa, sim, gosto da inversão, homem de joelhos,
mulher em posição de domínio.» Com aquele «sim» podia pelo menos
começar a pesquisa do texto para o catálogo, e uns dias depois Judy tirou a
foto, ligeiramente oblíqua, deixando de fora partes do enquadramento,
porque Aimee tinha dito que queria que todos fossem refotografados assim,
como se «a própria fotógrafa estivesse a dançar». O mais curioso é que esta
foi a peça mais apreciada da exposição. E eu senti-me feliz por ter tido a
oportunidade de redescobrir LeGon. Enquanto a pesquisava, muitas vezes
sozinha, muitas vezes de madrugada, numa série de quartos de hotel
europeus, apercebi-me de quanto em criança havia fantasiado acerca dela,
quão profundamente ingénua havia sido em relação a quase todos os
aspetos da sua vida. Havia imaginado, por exemplo, uma narrativa completa
de amizade e respeito entre LeGon e as pessoas com quem trabalhava, os
dançarinos e os realizadores, ou quisera acreditar que a amizade e o respeito
podiam ter existido, no mesmo espírito de otimismo infantil que leva uma
menina a querer acreditar que os seus pais estão profundamente
apaixonados. Mas Astaire nunca dirigiu a palavra a LeGon em cena, na sua
cabeça ela não era simplesmente alguém que fazia o papel de criada, na
realidade pouco diferia de uma doméstica, e o mesmo se passava com quase
todos os realizadores, que na prática não a viam e raramente a contratavam
a não ser para papéis de criada, e ao fim de pouco tempo até estes papéis
começaram a escassear, e só quando foi para França começou a «sentir-se
uma pessoa». Quando eu soube disto estava em Paris, sentada a apanhar sol,
em frente do teatro Odéon, tentando ler a informação no ecrã do telemóvel
esbranquiçado pelo sol, bebendo um campari, vendo compulsivamente as
horas. Via desaparecer as doze horas que Aimee tinha destinado a Paris,
minuto a minuto, quase mais depressa do que conseguia gozá-las, e em
breve chegaria o táxi, e depois uma pista de descolagem desapareceria
debaixo dos meus pés, e seguiríamos para mais doze horas numa cidade
bela e indecifrável – Madrid. Pensei em todos os cantores e dançarinos e
trompetistas e escultores e escrevinhadores que haviam afirmado sentir-se
finalmente pessoas aqui, em Paris, já não sombras mas pessoas de pleno
direito, um efeito que possivelmente não se produzia em apenas doze horas,
e perguntei a mim mesma como é que essas pessoas conseguiam saber, com
tanta precisão, o momento em que começavam a sentir-se pessoas. O
guarda-sol debaixo do qual estava sentada não dava sombra nenhuma, o
gelo da minha bebida tinha-se derretido. A minha sombra debaixo da mesa
era comprida e em forma de faca. Parecia estender-se por meia praça e
apontar para a imponente casa branca de esquina, que ocupava quase todo o
quarteirão, e diante da qual, naquele momento, um guia empunhava uma
bandeirinha e começava a anunciar uma série de nomes, alguns que eu
conhecia, outros não: Thomas Paine, E. M. Cioran, Camille Desmoulins,
Sylvia Beach...
Um pequeno círculo de turistas americanos idosos rodeava o guia,
acenando com a cabeça, transpirando. Eu olhei mais uma vez para o
telemóvel. E portanto foi em Paris – digitei esta frase com o polegar – que
LeGon começou a sentir-se pessoa. O que significava – não escrevi esta
parte – que a pessoa que Tracey tinha imitado tão perfeitamente durante
tantos anos, a rapariga que tínhamos visto dançar com Eddie Cantor,
projetando as pernas, abanando a cabeça – não era afinal uma pessoa, era
apenas uma sombra. Até o seu nome adorável, que ambas havíamos
invejado, até isso era irreal, na realidade era filha de Hector e Harriet Ligon,
imigrados da Geórgia, descendentes de rendeiros, ao passo que a outra
LeGon, aquela que julgávamos conhecer – aquela dançarina de sapateado
sempre-em-festa –, era uma personagem fictícia, nascida de uma gralha
tipográfica, que Louella Parsons inventou um dia quando escreveu mal
«Ligon» na sua coluna de mexericos que o LA Examiner publicava.
9

A granada deflagrou finalmente no Dia do Trabalho. Estávamos em Nova


Iorque, a poucos dias de partirmos para Londres, com o plano de nos
encontrarmos lá com Lamin, para quem já tinham conseguido um visto
britânico. Estava um calor insuportável: o ar que saía dos esgotos era tão
fétido que podia provocar um sorriso entre dois estranhos que se cruzassem
na rua: acredita que vivemos aqui? Parecia bílis, e nessa tarde era esse o
cheiro da Mulberry Street. Eu levava a mão na boca enquanto caminhava,
um gesto profético: quando cheguei à esquina com a Broome já estava
despedida. Foi Judy quem enviou a mensagem – e a dúzia de outras que se
seguiram – todas recheadas de invetivas pessoais como teriam sido se
houvesse sido Aimee a escrevê-las. Eu era uma puta e uma traidora, uma
isto de merda e uma aquilo de merda. Até a fúria pessoal de Aimee podia
ser transmitida por procuração.
Ligeiramente tonta, confusa, continuei até à Crosby e sentei-me no
degrau de entrada da Housing Works, do lado das roupas em segunda mão.
Cada pergunta suscitava mais perguntas: onde vou viver e que vou fazer e
onde estão os meus livros e onde está a minha roupa e em que pé está o meu
visto? Mais do que zangada com Fern, estava irritada comigo mesma por
não ter previsto melhor o curso dos acontecimentos. Já devia estar à espera
disto: não sabia exatamente o que ele estava a sentir? Era capaz de
reconstituir a sua experiência. Tratar da burocracia para o visto de Lamin,
comprar o bilhete de avião para Lamin, organizar a partida e a chegada de
Lamin, ir buscá-lo e levá-lo, suportar o vaivém de emails entre ele e Judy
em todas as fases deste planeamento, dedicar todo o tempo e energia à
existência de outra pessoa, aos desejos e necessidades e exigências de outra
pessoa. É uma vida fantasma, e acaba por nos afetar. Amas, assistentes,
empresárias, secretárias, mães – as mulheres já estão habituadas. Os
homens têm menos tolerância. Fern deve ter enviado uma centena de emails
sobre Lamin durante as últimas semanas. Como podia resistir a enviar
aquele que ia dar cabo da minha vida?
O meu telemóvel vibrou tantas vezes que até parecia que tinha vida
própria. Desisti de olhar para ele e concentrei-me antes num tipo muito alto
que estava dentro da montra da Housing Works, tinha umas hirsutas
sobrancelhas arqueadas e cingia uma série de vestidos contra o tronco
maciço, enquanto calçava uns espaçosos sapatos de salto alto. Quando me
viu sorriu, encolheu a barriga, deu uma ligeira volta e fez uma vénia. Não
sei porquê nem como, mas aquela visão galvanizou-me. Levantei-me do
degrau e mandei parar um táxi. Algumas perguntas tinham resposta rápida.
Tudo o que tinha em Nova Iorque estava encafuado em caixas no passeio
em frente do apartamento da West 10th Street e os cadeados já tinham sido
mudados. A validade do meu visto dependia da minha entidade patronal:
tinha trinta dias para abandonar o país. Quanto a onde ficar, a resposta não
era tão rápida. Na realidade, nunca tivera de pagar nada em Nova Iorque:
vivia por conta de Aimee, comia com Aimee, saía com Aimee, e as notícias
que o telemóvel me trazia sobre o preço de uma noite num hotel de
Manhattan faziam com que me sentisse como Rip Van Winkle ao acordar
do seu sono de cem anos. Sentada nos degraus da entrada da West 10th,
tentei pensar em alternativas, amigos, conhecidos, contactos. Todos os elos
eram fracos e, de uma forma ou de outra, iam dar a Aimee. Considerei uma
impossibilidade: caminhar por esta rua em direção a leste até ir dar, numa
espécie de sonho sentimental, ao extremo oeste da Sidmouth Road, onde a
minha mãe me abriria a porta e me conduziria ao seu quarto interior
devoluto, meio atulhado de livros. Qual era a alternativa? Que fazer a
seguir? Não tinha coordenadas. Passavam por mim táxis livres, uns atrás
dos outros, e senhoras janotas com os seus cãezinhos. Tratando-se de
Manhattan, ninguém abrandava o passo para observar aquilo que devia
parecer uma encenação: uma mulher a chorar, sentada nuns degraus, por
baixo daquela placa evocativa de Lazarus, rodeada de caixas, longe de
casa.
Lembrei-me de James e Darryl. Tinha-os conhecido em Março, numa
noite de domingo – a minha noite de folga – em que tinha ido sozinha à alta
ver os dançarinos de Alvin Ailey, e no teatro tinha metido conversa com os
meus vizinhos do lado, dois cavalheiros nova-iorquinos, com perto de
sessenta anos, um casal, um branco e um negro. James era inglês, alto e
careca, com uma voz cava e uma risada muito jovial, ainda vestido para um
agradável almoço num pub de alguma aldeola de Oxfordshire – apesar de já
viver cá há muitos anos –, e Darryl era americano, cabelo afro grisalho em
cima, olhinhos de toupeira atrás de uns óculos, e calças de bainhas
esfiapadas e com manchas de tinta, como um estudante de artes. Sabia tanto
sobre o que estava a acontecer em palco, a história de cada peça, da dança
de Nova Iorque em geral e de Alvin Ailey em particular, que a princípio
pensei que era coreógrafo ou tinha sido dançarino. Afinal eram os dois
escritores, divertidos e inteligentes, era agradável ouvir as opiniões que
sussurravam sobre os usos e limites do «nacionalismo cultural» na dança, e
eu, que não tinha opiniões sobre a dança, apenas deslumbramento, também
os divertia, batendo as palmas a cada mudança na iluminação e pondo-me
de pé mal caía o pano. «É bom ver Revelations com alguém que não viu o
espetáculo cinquenta vezes», comentou Darryl, e no fim convidaram-me
para beber um copo no bar do hotel ao lado, e contaram uma história
comprida e dramática de uma casa que tinham comprado, em Harlem, uma
ruína do tempo de Edith Wharton, que estavam a reconstruir com as
economias das suas vidas. Daí a tinta. Para mim era obviamente um esforço
heroico, mas um dos vizinhos, uma mulher na casa dos oitenta anos, era
crítica, tanto de James e Darryl como da acelerada gentrificação do bairro:
costumava berrar com eles na rua e enfiar-lhes panfletos religiosos na caixa
do correio. James fez uma excelente descrição física da mulher, e eu ri-me
exageradamente e bebi um segundo martini. Era um alívio muito grande
sair com pessoas que não queriam saber de Aimee para nada e não queriam
nada de mim. «E uma tarde», contou Darryl, «ia eu sozinho, o James tinha
ido não sei aonde, e ela salta das sombras, agarra-me por um braço e diz:
Mas eu posso ajudá-lo a livrar-se dele. Não precisa de ter dono, pode ser
livre – deixe-me ajudá-lo! Podia andar de porta em porta, a fazer campanha
pelo Barack, mas não: o problema dela era que o James me escravizava.
Estava a oferecer-me uma rota pessoal subterrânea de fuga. Introduzir-me
clandestinamente no Spanish Harlem!» Desde então tinha-os encontrado
algumas vezes, nas noites livres de domingo que passava na cidade. Vi-os
descascar gesso para revelar cornijas originais, imitar pórfiro salpicando de
tinta uma parede rosa-escuro. Sempre que os visitava comovia-me: como
eram felizes juntos, ao fim de tantos anos! Não conhecia muito mais
exemplos daquela ideia. Duas pessoas que criam o tempo das suas próprias
vidas, de algum modo protegidas pelo amor, não ignorantes da história, mas
também não deformadas por ela. Gostava muito dos dois, embora na
verdade não pudesse considerá-los mais do que conhecidos. Mas pensei
neles naquele momento. E quando, dos degraus do prédio da West 10th,
lhes enviei uma tímida mensagem, a resposta foi imediata, generosa como
seria de esperar: à hora de jantar estava sentada à mesa deles, comendo
melhor do que alguma vez comera com Aimee. Coisas saborosas,
gordurosas, cozinhadas na frigideira. Tinham-me feito a cama num dos
vários quartos vagos e comportaram-se como pais adoravelmente
tendenciosos: independentemente da forma como lhes contasse a história do
meu infortúnio, recusavam-se a aceitar que alguma parte dele fosse
responsabilidade minha. Na opinião deles eu é que devia estar furiosa, a
culpa era toda de Aimee, de mim não era nenhuma, e fui para o meu belo
quarto revestido de madeira com esta visão cor-de-rosa.
Só fiquei furiosa quando Judy me enviou o contrato de confidencialidade,
na manhã seguinte. Olhei para o pdf de uma folha que terei assinado
quando tinha vinte e três anos, embora não me lembrasse de alguma vez o
haver feito. Nos seus termos inflexíveis, as coisas que saíam da minha boca
deixavam de me pertencer, assim como as minhas ideias e pensamentos e
sentimentos, e até as minhas recordações. Era tudo dela. Tudo aquilo que
havia acontecido na minha vida na última década pertencia-lhe. Senti-me
invadida pela raiva imediatamente: a minha vontade era pegar-lhe fogo à
casa. Mas nos dias que correm tudo o que nos é preciso para pegar fogo à
casa de uma pessoa já está na nossa mão. Estava tudo na minha mão. Nem
precisava de sair da cama. Criei uma conta anónima, escolhi o sítio de
mexericos que ela mais odiava, escrevi um email com tudo o que sabia
sobre a pequena Sankofa, anexei a foto do «certificado de adoção», premi a
tecla enviar. Satisfeita, desci para o pequeno-almoço, à espera, suponho, de
ser recebida como uma heroína. Mas quando contei aos meus amigos o que
tinha feito – e o que pensava que isso significava – a expressão do rosto de
James fez-se tão grave quanto a escultura medieval de S. Maurício do átrio,
e Darryl tirou os óculos, sentou-se e piscou os olhos para a mesa de pinho.
Disse-me que esperava que compreendesse quanto, em tão pouco tempo,
ele e James se tinham afeiçoado a mim – era em nome dessa afeição que
podiam dizer-me a verdade – e que a única coisa que o meu email
significava era que ainda era muito jovem.
10

Acamparam à porta da casa de Aimee. Dois dias depois – para minha


vergonha – estavam a bater à porta de James e Darryl. Mas esta parte foi
obra de Judy, uma denúncia anónima: ato ilícito, «ex-funcionária
vingativa»… Judy era de um tempo diferente, em que as denúncias
anónimas se mantinham anónimas e se podia abafar a história. Em poucas
horas conseguiram o meu nome, e logo a seguir a minha morada, sabe Deus
como. Talvez Tracey tenha razão: talvez sejamos permanentemente
vigiados através dos nossos telemóveis. Fiquei na cama, enquanto James
me levava chávenas de chá ao quarto e abria e fechava a porta a algum
jornalista persistente e Darryl e eu assistíamos no meu portátil às mudanças
da maré em tempo real, à medida que iam acontecendo. Sem fazer nada de
diferente, sem tomar nenhuma ação, passei de maldosa e ciumenta moça de
recados de Judy a ousada informadora da The People, tudo em poucas
horas. Atualizar, atualizar. Viciante. A minha mãe telefonou e sem sequer
me dar tempo para lhe perguntar como estava disse: «O Alan mostrou-me
no computador, e acho que foi um ato verdadeiramente heroico. Sabes,
sempre foste um bocadinho cobarde, cobarde não – um bocadinho tímida. A
culpa é minha, protegi-te excessivamente, provavelmente, apapariquei-te. É
a primeira coisa realmente corajosa que te vejo fazer e estou muito
orgulhosa!» Quem era o Alan? Achei-a com uma voz empastada que nem
parecia dela, mais afetada do que nunca. Perguntei-lhe ao de leve pela
saúde. Não se descoseu – tinha estado ligeiramente constipada, mas já tinha
passado – e apesar de eu saber que estava a mentir foi tão perentória que até
parecia verdade. Prometi-lhe que iria visitá-la mal regressasse a Inglaterra e
ela disse «Sim, sim, claro que me vens visitar» com muito menos convicção
do que havia dito tudo o resto.
A chamada seguinte foi de Judy. Perguntou-me se queria ir-me embora.
Já tinha um bilhete para mim, no voo da noite. No destino haveria um
apartamento que podia usar durante algumas noites, perto do estádio de
críquete do Lord’s, até acalmar o alarido. Tentei agradecer-lhe. Ela riu-se
com o seu balido de foca.
«Pensas que estou a fazer isto por ti? Onde é que tens a cabeça?»
«OK, Judy, já disse que aceitava o bilhete.»
«É muito amável da tua parte, querida. Depois do monte de merda que me
arranjaste.»
«E o Lamin?»
«Que é que tem o Lamin?»
«Estava à espera de vir para Inglaterra. Não podes só…»
«Não sejas ridícula.»
O telefone calou-se.

Depois de o Sol se pôr, e de o último homem se ir embora da entrada,


deixei as minhas caixas com James e Darryl e apanhei um táxi na Lennox.
O motorista tinha uma pele escuríssima, como a de Hawa, e um nome
parecido, e eu estava com tendência para ver sinais e símbolos em toda a
parte. Inclinei-me para a frente com o entusiasmo de quem vinha de um ano
de folga e trazia consigo um saco de factos locais e perguntei-lhe de onde
era. Era senegalês, mas isso não me dissuadiu muito. Falei
ininterruptamente enquanto atravessávamos o túnel e saíamos na Jamaica
Avenue. De vez em quando ele batia no volante com o cutelo da mão direita
e suspirava e ria-se.
«Então sabe como são as coisas por lá! Aquela vida de aldeia! Não é
fácil, mas é dessa vida que tenho saudades! Mas, irmã, devia ter ido visitar-
nos. Até podia ir a pé pela estrada!»
«Por acaso, o amigo de que lhe falei», disse eu, levantando por momentos
os olhos do ecrã do telemóvel, «aquele que é do Senegal, lembra-se?
Acabamos de combinar um encontro em Londres. Estava mesmo agora a
enviar-lhe uma mensagem.» Contive a vontade de dizer àquele estranho que
tinha sido eu quem, na minha generosidade, tinha pagado o bilhete de
Lamin.
«Oh, ótimo, ótimo. Londres é melhor? Mais bonito do que aqui?»
«Diferente.»
«Já cá estou há vinte e oito anos. Isto aqui é tudo muito stressado, uma
pessoa tem de ter muita raiva para sobreviver, alimentamo-nos da raiva... É
de mais.»
Tínhamos chegado a JFK, e quando eu quis dar-lhe uma gorjeta
devolveu-ma.
«Obrigado por ter ido ao meu país», disse, esquecendo-se de que não era
verdade.
11

Agora toda a gente sabe quem tu és realmente.


Na altura em que aterrei, a velha dança da nossa infância andava nas
bocas do mundo. Acho interessante que Tracey tenha optado por só ma
enviar dois dias depois. Na sua maneira de ver as coisas, os outros tinham
de ficar a saber antes de mim quem eu era realmente – mas se calhar é
sempre assim. Lembrei-me do que ela fazia aos nossos primeiros contos
sobre bailarinas em perigo, como me corrigia e editava o que eu escrevia:
«Não: essa parte aqui.» «Ficava melhor se a bailarina morresse na segunda
página.» Mudar as coisas de lugar e remodelá-las para conseguir o máximo
impacto. Agora tinha conseguido o mesmo efeito com a minha vida,
situando o início da história num ponto anterior para que tudo o que viesse
depois parecesse a consequência distorcida de uma obsessão muito antiga.
Era mais convincente do que a minha versão. Suscitou as mais estranhas
reações. Toda a gente queria ver as imagens, mas ninguém as viu: foram
retiradas por quem as publicou logo depois de terem sido publicadas. Para
algumas pessoas – talvez para si – estavam na fronteira da pornografia
infantil, se não na intenção pelo menos no efeito. Outras achavam-nas uma
exploração pura e simples, se bem que seja difícil dizer quem está a
explorar quem. Podem as crianças explorar-se a si próprias? É mais do que
duas meninas na brincadeira, simplesmente duas meninas a dançar – duas
meninas mestiças a dançar como adultas – copiando inocentemente, mas
habilmente, os movimentos das adultas, como tantas meninas mestiças
sabem fazer? E se pensas que é mais do que isso, então de quem é o
problema, exatamente, das meninas do filme – ou teu? Tudo o que se disser
ou pensar sobre o filme parece transformar em cúmplice quem o vê: o
melhor é não o ver, pura e simplesmente. É a única atitude possível. Ou isso
ou esta nuvem de culpa, que não se sabe exatamente onde está, mas que se
sente. Até eu, quando vi o vídeo, tive este pensamento perturbador: bem, se
uma rapariga se comporta desta maneira aos dez anos, alguma vez se pode
considerá-la inocente? Que coisas não fará aos quinze, aos vinte e dois –
aos trinta e três? O desejo de estar do lado da inocência é muito forte.
Brotava do meu telemóvel em vagas pulsantes, em todas aquelas mensagens
e ataques e comentários. A bebé, essa sim, era isenta de mácula. Aimee
amava a bebé, os pais naturais da criança amavam Aimee, queriam que ela
lhes criasse a filha. Judy espalhou esta mensagem aos quatro ventos. Quem
era qualquer um para julgar? Quem era eu?
Agora toda a gente sabe quem tu és realmente.
A maré voltou a virar, ferozmente e com grande compaixão, para o lado
de Aimee. Mas continuava a haver gente à porta do apartamento arrendado
de Judy, apesar de todas as precauções por ela tomadas e das promessas do
porteiro, e ao terceiro dia eu parti com Lamin para o apartamento da minha
mãe na Sidmouth Road, que sabia, por todos os dados disponíveis, que
estaria registado em nome de Miriam. Não estava ninguém à entrada.
Toquei à campainha e ninguém respondeu, e o telefone da minha mãe foi
parar ao atendedor. Por fim uma vizinha abriu-nos a porta da rua. Pareceu
confusa – chocada – quando lhe perguntei onde estava a minha mãe. Era
mais uma que ia ficar a saber quem eu era realmente: o tipo de filha que
ainda não sabia que a própria mãe estava internada numa clínica de
cuidados paliativos.
O apartamento tinha o aspeto de todos os espaços em que a minha mãe
tinha vivido, livros e papéis por todo o lado, exatamente como eu me
lembrava, mas mais ainda: o espaço vital tinha-se reduzido. As cadeiras
serviam de estantes de livros, e também todas as mesas disponíveis, quase
todo o chão, os balcões da cozinha. Mas não era o caos, aquilo tinha uma
lógica. Na cozinha dominava a ficção e poesia da diáspora e o quarto de
banho era principalmente ocupado por livros de história das Caraíbas.
Havia uma parede de narrativas de escravos e comentários sobre elas que ia
do quarto dela, atravessava o corredor e chegava à caldeira. Encontrei o
endereço da clínica na porta do frigorífico, estava escrito pelo punho de
outra pessoa. Senti-me triste e culpada. A quem pediu que lha escrevesse?
Quem a levou até lá? Tentei dar uma arrumadela. Lamin deu-me uma ajuda,
relutante – estava habituado a que as mulheres fizessem tudo por ele e não
tardou a sentar-se no sofá da minha mãe a ver televisão no aparelho velho e
pesado da minha infância, meio escondido por um cadeirão, para deixar
claro que nunca era utilizado. Andei com pilhas de livros de um lado para o
outro, sem grandes progressos, e ao fim de algum tempo desisti. Sentei-me
à mesa da minha mãe de costas para Lamin, abri o portátil e regressei àquilo
que passara todo o dia anterior a fazer, pesquisar-me, ler coisas sobre mim,
e também procurar Tracey nas entrelinhas. Não era difícil encontrá-la.
Geralmente era o quarto ou quinto comentário, e entrava sistematicamente
com os pés, sempre, sem contemplações, agressiva, conspirativa. Tinha
vários pseudónimos. Alguns eram bastante subtis: pequeníssimas
referências a momentos da nossa história comum, canções de que havíamos
gostado, brinquedos que havíamos tido, ou recombinações numéricas do
ano em que nos conhecemos ou das nossas datas de nascimento. Reparei
que gostava de usar as palavras «sórdido» e «vergonhoso», e a frase «Onde
estavam as mães delas?» Sempre que via esta frase, ou uma variante dela,
sabia quem era a autora. Encontrava-a por todo o lado, nos sítios mais
inverosímeis. Em entradas de outras pessoas, por baixo de notícias de
jornal, em murais do Facebook, insultando quem não concordava com os
seus argumentos. Enquanto lhe seguia o rasto, os imbecis programas
diurnos vinham e iam nas minhas costas. Se me virava para ver se Lamin
estava bem, via-o sempre quieto como uma estátua, a olhar para o
televisor.
«Podes pôr um bocadinho mais baixo?»
Ele tinha aumentado o som de repente, num programa sobre remodelação
de casas, daqueles que em tempos o meu pai também gostara de ver.
«O homem está a falar de Edgware. Eu tenho um tio em Edgware. E um
primo.»
«Ai tens?», disse eu, procurando não me mostrar muito esperançada.
Esperei um pouco, mas ele voltou ao programa que estava a ver. O Sol
escondeu-se. O meu estômago começou a resmungar. Não me mexi de onde
estava, demasiado concentrada na minha caça a Tracey, tentando fazê-la
sair da toca, e indo espreitar uma janela secundária de quinze em quinze
minutos, mais ou menos, para ver se ela tinha invadido a minha caixa do
correio. Mas os métodos que usava comigo eram claramente diferentes dos
que usava com a minha mãe. Aquele email de uma linha só foi tudo quanto
alguma vez me enviou.

Às seis começou o telejornal. Lamin ficou muito perturbado com a


revelação de que os islandeses tinham ficado subitamente,
catastroficamente pobres. Como podia uma coisa daquelas acontecer? Uma
colheita perdida? Um Presidente corrupto? Mas para mim também era
novidade, e, como não percebia tudo o que o apresentador dizia, não podia
propor uma interpretação. Talvez também tenhamos notícias da Sankofa,
sugeriu Lamin, e eu ri-me, levantei-me da mesa e disse a Lamin que não
davam esse tipo de disparates no telejornal da noite. Passados vinte
minutos, estava a observar o interior do frigorífico cheio de produtos em
putrefação quando Lamin me chamou. Era a peça de fecho do verdadeiro
noticiário, o noticiário da British Broadcasting como ele lhe chamava, e lá
estava uma foto de arquivo de Aimee no canto superior direito. Sentámo-
nos na borda do sofá. Corte para um espaço de escritório com iluminação
fluorescente em local indefinido, com um retrato do presidente vitalício
com cara de sapo de viés numa parede, diante do qual estavam sentados os
pais naturais, nas indumentárias do seu país, com um ar de calor e
desconforto. Uma mulher de uma agência de adoção estava sentada à
esquerda deles e traduzia. Tentei lembrar-me se a mãe era a mesma pessoa
que tinha visto naquele dia na cabana de chapa de zinco, mas não tinha a
certeza. Ouvi a mulher da agência explicar a situação ao correspondente
estrangeiro que estava sentado diante deles todos, vestindo uma versão do
meu antigo uniforme enrugado de linho e caqui. Tudo tinha sido feito em
conformidade com as leis, aquilo que tinha sido indevidamente publicado
não era de todo o certificado de adoção, era apenas um documento
intercalar, evidentemente não destinado a divulgação, os pais estavam
satisfeitos com a adoção e compreendiam aquilo que haviam assinado.
«Não temos nenhum problema», disse a mãe, num inglês hesitante,
sorrindo para a câmara.
Lamin pôs as duas mãos na nuca, recostou-se no sofá e propôs-me um
provérbio: «O dinheiro faz desaparecer os problemas.»
Desliguei a televisão. O silêncio espalhou-se pela casa, não tínhamos
absolutamente nada a dizer um ao outro, o terceiro vértice do nosso
triângulo havia desaparecido. Dois dias antes sentira-me satisfeita com o
meu gesto espetacular – cumprindo um dever de cautela que Aimee havia
menosprezado – mas o gesto em si tinha feito passar para segundo plano a
realidade de Lamin: Lamin na minha cama, Lamin nesta sala de estar,
Lamin na minha vida sem fim à vista. Não tinha emprego nem dinheiro.
Nenhuma das habilitações que tanto lhe haviam custado a adquirir lhe
servia de nada aqui. Sempre que saía da sala – para ir fazer chá, para ir ao
quarto de banho – o meu primeiro pensamento ao revê-lo era: que estás a
fazer na minha casa?
Às oito encomendei comida etíope. Enquanto comíamos mostrei-lhe o
Google Maps e a zona de Londres onde estávamos em relação ao resto da
cidade. Mostrei-lhe Edgware. As várias formas de chegar a Edgware.
«Amanhã vou visitar a minha mãe, mas tu podes ficar aqui,
evidentemente. Ou então sais e vais explorar a zona.»
Quem nos observasse naquela noite iria pensar que nos tínhamos
conhecido poucas horas antes. Senti-me mais uma vez constrangida na
presença dele, da sua orgulhosa contenção e capacidade de guardar silêncio.
Não fazia a mínima ideia de quem ele era. Quando se tornou evidente que
eu tinha esgotado a minha conversa geográfica, levantou-se e, sem
discussão, foi para o quarto interior. Eu fui para a cama da minha mãe.
Fechámos as respetivas portas.

A clínica era em Hampstead, numa tranquila rua sem saída bordejada de


árvores, muito perto do hospital onde eu nasci e a poucas ruas da casa do
Destacado Ativista. O outono aproximava-se a passos largos, castanho-
avermelhado e dourado sobre o fundo de toda aquela valiosa propriedade
vitoriana de tijolo, e ocorreram-me fortes memórias associativas da minha
mãe a atravessá-la a pé em manhãs frescas como esta, de braço dado com o
Destacado Ativista, verberando os aristocratas italianos e os banqueiros
americanos, os oligarcas russos e as lojas de roupas para crianças da classe
alta, as caves escavadas na terra. O fim de uma certa ideia boémia, há muito
perdida, daquele lugar que lhe dizia muito. Tinha então quarenta e sete
anos. Agora só tinha cinquenta e sete. De todos os futuros que havia
imaginado para ela nestas ruas, a realidade presente era, não sei porquê, a
mais improvável. Quando era criança, ela para mim era imortal. Não
conseguia imaginá-la a abandonar este mundo sem fazer um rasgão no
tecido de que ele é feito. Em vez disso, esta rua sossegada, estes ginkgos
que largam as suas folhas douradas.
Na receção disse o meu nome e depois de uma curta espera veio um
jovem enfermeiro buscar-me. Antes de me conduzir ao quarto da minha
mãe avisou-me de que ela estava a tomar morfina e às vezes ficava confusa.
Não notei nada de especial neste enfermeiro, achei-o completamente
desinteressante, mas quando cheguei ao quarto e ele abriu a porta a minha
mãe endireitou-se na cama e exclamou: «Alan Pennington! Com que então
já conheces o famoso Alan Pennington!»
«Sou eu, mamã.»
«Oh, eu sou o Alan», disse o enfermeiro, e eu virei-me para olhar outra
vez para o jovem a quem a minha mãe sorria de forma tão radiosa. Era
baixo, de cabelo claro, olhos pequenos e azuis, uma cara ligeiramente
rechonchuda e um nariz incaracterístico com umas quantas sardas
espalhadas pela cana. A única coisa que o tornava invulgar aos meus olhos,
no contexto de todos os enfermeiros nigerianos, polacos e paquistaneses
que ouvia conversar nos corredores, era o seu aspeto tão inglês.
«O Alan Pennington é famoso por estas bandas», disse a minha mãe,
acenando-lhe. «Tem uma bondade lendária.»
Alan Pennington sorriu-me, revelando dois incisivos afiados, como os de
um cãozinho.
«Vou deixá-las a sós», disse.

«Como estás, mamã? Tens muitas dores?»


«O Alan Pennington», disse-me ela, depois de ele sair e fechar a porta,
«só trabalha para os outros. Sabias? Ouves falar destas pessoas, mas
conhecê-las pessoalmente é outra coisa. É certo que eu também trabalhei
para os outros, toda a vida – mas não assim. Aqui são todos assim. Primeiro
tive uma rapariga de Angola, a Fátima, amorosa, era igual à... infelizmente
teve de se ir embora. Depois veio o Alan Pennington. Estás a ver: é um
cuidador. Nunca tinha pensado muito a fundo nesta palavra. O Alan
Pennington cuida.»
«Mamã, porque é que continuas a chamar-lhe Alan Pennington dessa
maneira?»
A minha mãe olhou-me como seu eu fosse idiota.
«Porque é o nome dele. O Alan Pennington é um cuidador que cuida.»
«Sim, mamã, os cuidadores são pagos para cuidar.»
«Não, não, não, não estás a perceber: ele cuida. O que ele faz por mim!
Ninguém devia precisar de fazer essas coisas por outro ser humano – mas
ele fá-las por mim!»
Cansada do assunto de Alan Pennington, convenci-a a deixar-me ler-lhe
passagens de uma pequena edição de Sonny’s Blues, e entretanto chegou o
almoço na bandeja de Alan Pennington.
«Mas eu não consigo comer isso», disse a minha mãe com tristeza
enquanto Alan lhe pousava a bandeja no colo.
«Está bem, então e se eu deixasse isto aqui durante vinte minutos e se
tivesse a certeza absoluta de que não consegue comer tocasse a campainha
para eu vir e levar tudo de volta? Que acha? Parece-lhe bem?»
Fiquei à espera de ouvir a minha mãe dar uma descasca em Alan
Pennington – toda a vida tinha detestado e receado que a tratassem com
paternalismo ou lhe falassem como se fosse uma criança – mas desta vez
acenou compenetradamente como se a sugestão fosse muito sensata e
generosa, tomou as mãos de Alan nas suas mãos trémulas e espectrais e
disse: «Obrigada, Alan. Por favor não se esqueça de voltar cá.»
«E esquecer a mulher mais bela desta casa?», disse Alan, embora
claramente gay, e a minha mãe, feminista desde sempre, rompeu em
risadinhas juvenis. E assim ficaram, de mãos dadas, até Alan sorrir e a
largar, para ir cuidar de outra pessoa, abandonando a minha mãe a mim e
vice-versa. Ocorreu-me um pensamento perverso, que detestei: desejei que
Aimee estivesse ali comigo. Tinha estado com ela à cabeceira de
moribundos, em quatro ocasiões, e em todas tinha ficado impressionada e
subjugada pela sua maneira de estar com eles, a sua honestidade, afeto e
simplicidade, que mais ninguém presente na sala parecia capaz de
conseguir, nem mesmo a família. A morte não lhe metia medo. Olhava-a
nos olhos, solidária com a pessoa moribunda na sua situação, por muito
desesperada que fosse, sem nostalgia nem falso otimismo, aceita o teu medo
quando estiveres com medo, e a tua dor se estiveres a senti-la. Quantas
pessoas conseguem fazer estas coisas aparentemente simples? Lembro-me
de uma amiga dela, uma pintora que havia perdido décadas de vida para
uma anorexia grave que acabou por matá-la, dizer a Aimee, naquele que
seria o seu leito de morte: «Meu Deus, Aim – tanto tempo que eu perdi!»
Ao que Aimee respondeu: «Nem imaginas quanto.» Lembro-me daquela
figura esguia entre os lençóis, de boca escancarada, tão chocada que
desatou às gargalhadas. Mas era a verdade, ninguém mais se atrevera a
dizê-la, e os moribundos, descobri, anseiam pela verdade. Não disse
nenhuma verdade à minha mãe, limitei-me à costumeira conversa de
ocasião, li-lhe mais umas passagens do seu adorado Baldwin, ouvi as
histórias sobre Alan Pennington, e levantei-lhe o copo de sumo para que
pudesse sorvê-lo por uma palhinha. Ela sabia que eu sabia que ela estava a
morrer, mas, por qualquer razão – coragem, negação ou falsa ilusão – não
fez nenhuma alusão a isso na minha presença a não ser para dizer, quando
lhe perguntei onde tinha o telemóvel e por que razão não tinha atendido:
«Ouve, não quero passar o tempo que me resta com aquela coisa horrível.»
Descobri-o na gaveta da mesa de apoio, dentro de um saco de roupa do
hospital, juntamente com um saia-e-casaco, uma pasta com papéis, um guia
de conduta parlamentar e o portátil.
«Não precisas de o usar», disse, ligando-o e pousando-o em cima da
mesa. «Mas ao menos deixa-o ligado para eu ter uma forma de contactar
contigo.»
O avisador de mensagem disparou – o telemóvel vibrou e dançou pela
mesa fora – e a minha mãe olhou para ele com uma expressão de horror.
«Não, não, não, não quero cá isso! Não o quero ligado! Porque é que
fizeste isso?»
Peguei nele. Vi emails por abrir, dezenas e dezenas deles, enchendo o
ecrã, ofensivos logo no assunto, todos enviados pela mesma pessoa.
Comecei a lê-los, tentando resistir ao catálogo de sofrimento: queixas
contra o apoio infantil, rendas em atraso, desentendimentos com assistentes
sociais. Os mais recentes eram os mais desesperados: receava que lhe
retirassem os filhos muito em breve.
«Mamã, soubeste recentemente da Tracey?»
«Onde está o Alan Pennington? Eu não vou comer isto.»
«Meu Deus, estás tão doente – não devias ter de suportar isto!»
«Nem parece do Alan não ter cá vindo...»
«Mamã, soubeste recentemente da Tracey?»
«NÃO! Já te disse que não olho para isso!»
«Não falaste com ela?»
Ela suspirou profundamente.
«Tenho poucas visitas, querida. A Miriam vem cá. O Lambert veio uma
vez. Os meus colegas do Parlamento não vêm. Estás cá tu. Como disse o
Alan Pennington: «Ficamos a saber quem são os nossos amigos.» Passo a
maior parte do tempo a dormir. Sonho muito. Sonho com a Jamaica, sonho
com a minha avó. Recuo no tempo...» Fechou os olhos. «Sonhei uma vez
com a tua amiga, quando cá cheguei, estava com uma dose alta disto» –
deitou a mão a um cateter que tinha no braço. – «Sim, a tua amiga veio
visitar-me. Eu estava a dormir e acordei e vi-a de pé junto da porta, calada.
Depois voltei a adormecer e ela foi-se embora.»

Quando voltei ao apartamento, emocionalmente debilitada, ainda a sentir


o jet lag, rezei para que Lamin se tivesse ido embora e tinha mesmo.
Quando vi que não voltava para jantar, fiquei aliviada. Só na manhã
seguinte, quando fui bater-lhe à porta, a empurrei e vi que o saco dele tinha
desaparecido é que percebi que se tinha ido embora. Quando lhe telefonava
ia parar ao atendedor. Durante quatro dias telefonei com intervalos de
poucas horas e foi a mesma coisa. Tinha andado tão concentrada na forma
de lhe dar a notícia de que tinha de se ir embora, de que não tínhamos
futuro juntos, que não tinha imaginado, nem por um segundo, que todo
aquele tempo ele andasse a arquitetar a forma de se ver livre de mim.
Sem ele, sem a televisão ligada, o apartamento estava num silêncio
sepulcral. Éramos só eu e o computador, e o rádio, pelo qual me chegou por
várias vezes a voz do Destacado Ativista, ainda forte, opinativa. Mas a
minha história estava a esvair-se, online e em todos os outros meios, todo
aquele comentário brilhantemente iluminado já consumido, reduzido a
negrume e cinzas. Sem saber o que fazer, passei um dia a escrever emails a
Tracey. A princípio dignos e serenos, a seguir sarcásticos, depois
indignados, depois histéricos, até que percebi que ela estava a afetar-me
mais com o silêncio do que eu estava a conseguir afetá-la com todas aquelas
palavras. O poder que ela tem sobre mim é o mesmo que sempre teve, o
juízo moral, que ultrapassa as palavras. Não posso negar que era a sua única
testemunha, a única pessoa que sabe tudo o que ela tem dentro de si, e tudo
o que tem sido subestimado e desperdiçado, e mesmo assim deixei-a ali, nas
fileiras do anonimato, onde uma pessoa tem de gritar para se fazer ouvir.
Descobri mais tarde que Tracey tinha um longo historial de envio de emails
deploráveis. A um encenador do Tricycle que não a escolheu para o elenco,
achava ela que por causa da cor. Aos professores da escola do filho. A uma
enfermeira do consultório do seu médico. Mas nada disto altera a atitude de
condenação. Se andava a atormentar a minha mãe quando ela estava à beira
da morte, se andava a tentar dar cabo da minha vida, se estava sentada
naquele apartamentozinho claustrofóbico a ver os meus emails que não
paravam de lhe entrar pelo telemóvel e simplesmente decidia não os ler –
independentemente do que estivesse a fazer, eu sabia que era uma forma de
me julgar. Era irmã dela. Tinha um dever sagrado para com ela. Mesmo que
só eu e ela o soubéssemos e reconhecêssemos, continuava a ser verdade.
Saía algumas vezes de casa para ir à loja da esquina, comprar cigarros e
embalagens de pasta, mas fora isso não via ninguém nem sabia de ninguém.
À noite pegava ao acaso em livros da pilha da minha mãe, tentava ler umas
páginas, perdia o interesse e passava a outro. Achei que estava deprimida e
precisava de falar com outro ser humano. Sentei-me com o meu novo
telemóvel pré-pago na mão, percorrendo a curta lista de nomes e números
pessoais que tinha copiado do antigo telefone de serviço, sumariamente
desligado, e tentei imaginar a forma que cada interação tomaria, se e como
ia conseguir ligar à pessoa, mas todas as conversas potenciais me pareciam
uma cena de uma peça de teatro, em que eu representaria o papel da pessoa
que durante tanto tempo havia sido, que parece que está a almoçar connosco
mas afinal está virada para Aimee, a trabalhar para Aimee, a pensar em
Aimee, dia e noite, noite e dia. Telefonei a Fern. Ouvi um toque estranho,
longo e sem interrupções, e ele respondeu com um “Hola”. Estava em
Madrid.
«Em trabalho?»
«Em viagem. É o meu ano de folga. Não sabias que me demiti? Mas
sinto-me tão bem por ser livre!»
Perguntei-lhe porquê, à espera de ouvir um ataque pessoal dirigido a
Aimee, mas a resposta dele não teve nada de pessoal, estava preocupado
com o efeito «desvirtuador» do dinheiro dela sobre a aldeia, com o colapso
dos serviços públicos na região e com as relações cúmplices e ingénuas da
fundação com o governo. Enquanto o ouvia tomei consciência e
envergonhei-me de uma diferença profunda entre nós. Eu sempre me
precipitara a interpretar tudo como pessoal, onde Fernando vira os
problemas estruturais, mais vastos.
«Bem, é bom saber de ti, Fern.»
«Não, tu não soubeste de mim. Eu é que soube de ti.»
Deixou prolongar o silêncio. Quanto mais se prolongava, mais difícil era
pensar no que dizer.
«Porque é que estás a telefonar-me?»
Fiquei sentada a ouvi-lo respirar durante mais alguns segundos até que o
crédito do meu telefone se esgotou.

Perto de uma semana depois enviou-me um email a dizer que estava em


Londres para uma curta permanência. Havia vários dias que eu não falava
com ninguém a não ser com a minha mãe. Encontrámo-nos no South Bank,
à janela do Film Café, sentados lado a lado, de frente para a água, e
trocámos algumas recordações, mas foi embaraçoso, eu amargurava-me
com grande facilidade, todos os pensamentos me puxavam para a escuridão,
para alguma coisa dolorosa. Passei o tempo todo a queixar-me, e apesar de
perceber que estava a irritá-lo parecia que não conseguia parar.
«Bom, podemos dizer que a Aimee vive dentro da sua bolha», disse ele,
interrompendo-me, «e a tua amiga faz o mesmo, e tu também, já agora.
Talvez aconteça o mesmo com toda a gente. Só muda o tamanho da bolha,
mais nada. E talvez a espessura da – como se diz em inglês – casca,
membrana. A camada fina de uma bolha.»
Veio o empregado, demos-lhe uma atenção ávida. Quando ele se foi
embora ficámos a ver um barco turístico descer o Tamisa.
«Ah, já sei o que te quero dizer», disse ele de repente, dando uma
palmada no balcão e fazendo tilintar um pires. «Tenho notícias do Lamin!
Está ótimo – está em Birmingham. Pediu-me uma carta de recomendação.
Espera estudar lá. Trocámos uns quantos emails. Fiquei a saber que o
Lamin é um fatalista. Escreveu-me isto: “Estava destinado que eu viesse
para Birmingham. Por isso foi sempre para aqui que estive para vir”. Não é
engraçado? Não? Bem, talvez essa não seja a palavra certa em inglês. O que
quero dizer é que para o Lamin o futuro é tão certo quanto o passado. É
uma teoria da filosofia.»
«Eu acho isso um pesadelo.»
Fern pareceu outra vez confuso: «Talvez não me tenha exprimido bem.
Não sou filósofo. Para mim o significado é simples, é como dizer que o
futuro já aí está, à nossa espera. Porque não esperar, ver o que ele nos
traz?»
Tinha um ar tão esperançoso que me deu vontade de rir. Recuperámos
algum do velho ritmo da nossa amizade e ficámos muito tempo a conversar,
e eu pensei que não era impossível haver um futuro em que pudesse
interessar-me por ele. Começava a interiorizar a ideia de que não ia a lado
nenhum, já não tinha pressa, não ia apanhar o próximo avião. Tinha o
tempo a meu favor, tanto quanto está a favor de qualquer pessoa. Tudo
naquela tarde me pareceu em aberto, uma espécie de choque, não sabia o
que ia acontecer nos próximos dias, ou mesmo nas próximas horas – uma
sensação nova. Fiquei surpreendida quando levantei os olhos do meu
segundo café e vi que o dia estava a desvanecer-se e a noite não tardaria a
chegar.
No fim, ele quis apanhar o metro, em Waterloo, para mim também era a
melhor estação, mas em vez disso separei-me dele e fui pela ponte.
Ignorando as duas barreiras, caminhando pelo meio, por cima do rio, até
chegar à outra margem.
EPÍLOGO

Na última vez que vi a minha mãe com vida conversámos sobre Tracey.
Dito de modo mais forte: Tracey era de facto o único tema que nos fazia
falar. A minha mãe estava quase sempre tão cansada que não podia falar ou
ouvir falar, e pela primeira vez na sua vida os livros não a seduziam
minimamente. Em vez de ler, eu cantava-lhe, e ela parecia gostar – desde
que não saísse dos velhos clássicos da Motown. Víamos televisão juntas,
coisa que nunca antes havíamos feito, e eu conversava sobre banalidades
com Alan Pennington, que aparecia com frequência para ver como estavam
os violentos soluços da minha mãe e as suas fezes e a progressão das suas
alucinações. Trazia o almoço, para o qual ela já não podia olhar, e muito
menos podia comê-lo, mas nesse último dia que passámos juntas, quando
Alan saiu do quarto, abriu os olhos e disse-me numa voz calma e
autoritária, como se estivesse a comentar uma coisa que era um facto
simples e objetivo – como o tempo que fazia lá fora ou o que tinha no prato
– que era altura de «fazer alguma coisa» em relação à família de Tracey. A
princípio pensei que estivesse perdida no passado, era muito frequente nos
últimos dias, mas rapidamente percebi que estava a falar das crianças, dos
filhos de Tracey, embora ao falar deles divagasse entre a realidade deles, tal
como a imaginava, a história da nossa pequena família e uma história mais
profunda: era o seu último discurso. Trabalha tanto, disse a minha mãe, e os
filhos não a veem, e agora querem tirar-me os meus filhos, mas o teu pai era
muito bom, muito bom, e muitas vezes penso: fui uma boa mãe? Fui? E
agora querem tirar-me os meus filhos... Mas eu era só uma estudante, ando
a estudar, porque temos de aprender para sobreviver, e eu era mãe e tenho
de aprender, porque sabíamos que qualquer de nós que eles apanhassem a
ler ou a escrever podia ir parar à cadeia ou apanhar chicotadas ou coisa pior,
e quem nos ensinasse a ler ou a escrever tinha a mesma sorte, cadeia ou
chicotadas, era a lei naquele tempo, era muito rigorosa, e nesse sentido
fomos arrancadas ao nosso tempo e lugar, e depois deixámos de saber
sequer qual era o nosso tempo e lugar – e isso é o pior que se pode fazer a
uma pessoa. Mas não sei se a Tracey era uma boa mãe, embora eu tenha a
certeza de que fiz o melhor que podia para os criar a todos, mas não tenho
dúvida nenhuma de que o teu pai era muito bom, muito bom...
Eu disse-lhe que ela era boa. Que o resto não interessava. Disse-lhe que
toda a gente tinha feito o melhor que podia dentro das limitações que tinha.
Não sei se me ouviu.
Estava a reunir as minhas coisas quando ouvi Alan Pennington no
corredor, a cantar à sua maneira monocórdica, desafinada, uma das faixas
de Otis que a minha mãe preferia, sobre nascer junto ao rio e nunca mais
parar de correr. «Ouvi-a cantá-la ontem», disse-me, assomando à porta,
animado como sempre. «Tem uma linda voz. A sua mãe tem muito orgulho
em si, sabe, está sempre a falar de si.»
Sorriu para a minha mãe, mas ela já não estava a pensar em Alan
Pennington.
«É claro como água», murmurou, fechando os olhos enquanto eu me
levantava para me ir embora. «Deviam estar contigo. O melhor lugar
possível para aquelas crianças é contigo.»

Durante o resto da tarde alimentei a fantasia, não convicta, acho que não,
foi apenas uma canção de sonho em Techicolor que passou na minha
cabeça: uma família pronta a usar, feita de repente aqui e agora, para me
preencher a vida. No dia seguinte, dei um passeio matinal à volta do
perímetro inóspito de Tiverton Rec, com o vento a soprar pela vedação de
rede, levando para longe paus lançados para os cães apanharem, e dei
comigo a continuar a andar, na direção oposta à de casa e passando a
estação que me teria levado à clínica. A minha mãe morreu às dez horas e
doze minutos, na altura em que eu virava para Willesden Lane.
Surgiu-me diante dos olhos a torre de Tracey, por cima dos castanheiros-
da-índia, e com ela a realidade. Aqueles não eram meus filhos, nunca
seriam meus filhos. Estive quase a dar meia-volta, como alguém que acorda
de um passeio sonâmbulo, não fora uma ideia, nova para mim, de que
talvez tivesse mais alguma coisa para oferecer, alguma coisa mais simples,
mais honesta, entre a ideia de salvação da minha mãe e o nada absoluto.
Impaciente, saí do caminho e atravessei o relvado em diagonal, em direção
à passagem coberta. Ia mesmo a entrar na caixa da escada quando ouvi
música, parei e olhei para cima. Ela estava mesmo por cima de mim, na sua
varanda, em robe e chinelos, mãos no ar, girando, girando, os filhos à sua
volta, todos a dançar.
AGRADECIMENTOS

Agradeço aos meus primeiros leitores: Josh Appignanesi, Daniel


Kehlmann, Tamsin Shaw, Michael Shavit, Rachel Kaadzi Ghansah, Gemma
Seiff, Darryl Pinckney, Ben Bailey-Smith, Yvonne Bailey-Smith e, em
particular, Devorah Baum, pelo estímulo quando ele era mais necessário.
Um agradecimento especial a Nick Laird, que fez a primeira leitura e viu
o que era necessário fazer com o tempo, mesmo a tempo.
Agradeço aos meus editores e agente: Simon Prosser, Ann Godoff e
Georgia Garrett.
Agradeço a Nick Parnes, Hannah Parnes e Brandy Jolliff, por me terem
lembrado como era o trabalho nos anos noventa.
Agradeço a Eleanor Wachtel, por me dar a conhecer a incomparável Jeni
LeGon.
Agradeço a Steven Barclay, pelo pequeno espaço em Paris quando mais
necessitava dele.
Estou profundamente grata à Doutora Marloes Janson, autora do
apaixonante, profundo e inspirador estudo antropológico Islam, Youth and
Modernity in the Gambia: The Tablighi Jama‘at, que foi para mim
precioso, dando contexto às minhas impressões, respostas possíveis às
minhas perguntas e fornecendo muitos dos alicerces culturais desta história,
além de me ajudar a criar o clima e a textura de certas cenas do romance.
Uma nota sobre geografia: o Norte de Londres, nestas páginas, é um estado
de espírito. Algumas ruas podem não ser bem como se veem no Google
Maps.

Nick, Kit, Hal – amor e gratidão.

Você também pode gostar