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PRIMEIROS TEMPOS
1
Isto é a igreja
Isto é a torre
Abrem-se as portas
E o povo acorre.
Estava em casa de Tracey, a ver o Top of the Pops, quando passou o vídeo
Thriller, era a primeira vez que qualquer de nós o via. A mãe de Tracey
ficou muito excitada: sem se pôr propriamente de pé, dançou
freneticamente, saltando para cima e para baixo nas dobras do cadeirão
reclinável. «Vamos lá, meninas, quero vê-las a dançar! Toca a mexer –
vamos!» Nós levantámo-nos do sofá e começámos a deslizar de um lado
para o outro da carpete, eu desajeitadamente, Tracey com uma boa dose de
perícia. Rodopiávamos, levantávamos a perna direita, deixando o pé a
balançar como se fosse de uma marioneta, sacudíamos o corpo como
zombies. Havia tanta informação nova: as calças vermelhas de cabedal, o
casaco vermelho de cabedal, o que em tempos fora um cabelo afro estava
agora transformado em algo ainda mais espetacular do que os caracóis de
Tracey! E, claro, aquela bonita rapariga negra vestida de azul, a potencial
vítima. Também seria «de casta mista»?
Devido às minhas fortes convicções pessoais, quero salientar que este
filme não apoia de maneira nenhuma a crença no oculto.
Assim se lia no ecrã, no princípio, eram palavras do próprio Michael, mas
que queriam dizer? Só percebíamos a gravidade desta palavra «filme». O
que estávamos a ver não era um vídeo musical, nada disso, era uma obra de
arte que merecia ser vista num cinema, era de facto um acontecimento
mundial, um toque a rebate. Éramos modernas! Aquilo era a vida moderna!
Geralmente eu sentia-me distante da vida moderna e da música que a
acompanhava – a minha mãe tinha feito de mim um pássaro sankofa – mas
acontecia que o meu pai me tinha contado uma história segundo a qual, um
dia, Fred Astaire tinha ido a casa de Michael Jackson como uma espécie de
discípulo e implorado a Michael que o ensinasse o moonwalk, e isto para
mim faz sentido, ainda hoje, porque um grande bailarino é intemporal, não
pertence a uma geração, move-se eternamente pelo mundo, pelo que
qualquer dançarino de qualquer época pode reconhecê-lo. Picasso seria
incompreensível para Rembrandt, mas Nijinski compreenderia Michael
Jackson. «Não parem agora, meninas – levantem-se», berrou a mãe de
Tracey quando fizemos uma pausa momentânea para descansar, encostadas
ao sofá dela. «Só param quando tiverem aprendido! Mexam-se!» A canção
parecia muito comprida. Mais comprida que a vida. Parecia-me que nunca
mais ia acabar, que estávamos aprisionadas num laço temporal, e que íamos
ter de dançar para sempre naquele registo demoníaco, como a pobre Moira
Shearer em Os Sapatos Vermelhos: «O tempo passa a correr, o amor passa a
correr, a vida passa a correr, mas os sapatos vermelhos continuam a
dançar.» Mas acabou mesmo. «Foi um espetáculo do caraças», suspirou a
mãe de Tracey, perdendo a compostura, e nós fizemos uma vénia e
corremos para o quarto de Tracey.
«Adora vê-lo na televisão», confessou Tracey quando estávamos
sozinhas. «Reforça o amor que há entre eles. Vê-o e sabe que ele ainda a
ama.»
«Qual deles era?», perguntei.
«Segunda fila, o da ponta direita», respondeu Tracey, sem se
desmanchar.
Foi preciso Tracey vir para a minha turma para eu perceber o que a minha
turma era realmente. Até aí pensava que era uma sala cheia de crianças.
Afinal era uma experiência sociológica. A filha da funcionária da cantina
partilhava uma carteira com o filho de um crítico de arte, um rapaz que
tinha o pai na prisão partilhava uma carteira com o filho de um polícia. A
filha de um funcionário dos correios partilhava uma carteira com a filha de
um dançarino do grupo de apoio de Michael Jackson. Um dos primeiros
atos de Tracey como minha companheira de carteira foi articular estas
diferenças subtis com base numa analogia simples, mas convincente: os
Cabbage Patch Kids4 e os Garbage Pail Kids5. Cada criança era classificada
numa das categorias, e Tracey deixava bem claro que quaisquer amizades
que eu tivesse feito antes de ela chegar eram agora – por muito que se
tivessem esforçado por saltar a vala – nulas e de nenhum efeito, inválidas,
porque a verdade era que nunca tinham sequer existido. Não podia haver
verdadeira amizade entre Cabbage Patch e Garbage Pail, pelo menos agora,
pelo menos em Inglaterra. Esvaziou a nossa carteira comum da minha
querida coleção de cromos dos Cabbage Patch Kids e substituiu-os pelos
seus cromos dos Garbage Pail Kids, os quais – como quase tudo aquilo que
Tracey fez na escola – se transformaram imediatamente na nova moda. Até
crianças que eram, aos olhos de Tracey, do tipo Cabbage Patch os
colecionavam, a própria Lily Bingham colecionava-os, e todos
competíamos uns com os outros pela posse dos cromos mais repelentes: o
Garbage Pail Kid com ranhos a correr-lhe pela cara, ou aquele sentado na
sanita. Outra inovação notável que Tracey trouxe consigo foi a recusa em
sentar-se. Só aceitava ficar de pé diante da carteira, curvando-se para
trabalhar. O nosso professor – um sujeito enérgico chamado Sherman – deu-
lhe luta durante uma semana, mas a vontade de Tracey, tal como a da mãe,
era de ferro, e acabou por ficar de pé, como queria. Não creio que Tracey
tivesse uma predileção especial por estar de pé, era uma questão de
princípio. O princípio, para dizer a verdade, podia ser um qualquer, mas a
questão era que tinha de sair vencedora. Era evidente que o Senhor
Sherman, uma vez perdida a disputa, tinha de ser impiedoso noutro aspeto
qualquer e certa manhã, quando estávamos todos em grande excitação a
trocar Garbage Pail Kids em vez de ouvirmos o que ele estava a dizer, de
repente perdeu completamente as estribeiras, desatou
a berrar como um louco, andando de carteira em carteira a recolher os
cromos, umas vezes de debaixo dos tampos das carteiras e outras das nossas
mãos, até que ficou com um enorme monte deles em cima da secretária que
depois juntou numa pilha e empurrou para dentro de uma gaveta, que
fechou ostensivamente com uma chavinha. Tracey não disse nada, mas as
suas narinas de leitão enfunaram-se e eu pensei: ai, ai, será que o Senhor
Sherman não percebe que ela nunca mais lhe perdoa?
Nessa mesma tarde, depois das aulas, regressámos a casa juntas. Ela não
me falava, continuava furiosa, mas quando eu fiz menção de virar para o
meu complexo agarrou-me pelo pulso, e fez-me atravessar a estrada para o
dela. Subimos no elevador em silêncio. Parecia que algo de grave estava
para acontecer. Sentia-lhe a raiva como se fosse uma aura à sua volta, quase
vibrava. Quando chegámos à porta da casa dela reparei que o batente – um
leão de Judá de latão com a boca aberta, comprado na rua principal numa
das tendas que vendiam objetos africanos – estava danificado e pendia
agora de um único prego, e perguntei-me se o pai dela não teria voltado a
aparecer. Segui Tracey até ao quarto. Depois de fechar a porta ela virou-se
para mim, de olhos arregalados, como se eu fosse o Senhor Sherman, e
perguntou-me em tom agressivo o que queria fazer, agora que ali
estávamos. Eu não tinha ideia nenhuma: nunca me tinha dado a escolher o
que queria fazer, era ela que tinha as ideias todas, nunca até hoje eu tinha
feito planos.
«Então para que é que vieste comigo, se não fazes porra de ideia?»
Atirou-se para cima da cama, pegou no Pac-Man e pôs-se a jogar. Eu
senti um rubor na cara. Humildemente, sugeri que treinássemos os passos
ternários, mas Tracey rosnou-me.
«Não preciso. Agora ando a treinar wings.»
«Mas eu ainda não sei fazer wings!»
«Escuta», disse ela, sem levantar os olhos do ecrã, «ninguém chega à
prata sem fazer wings, muito menos ao ouro. Então para que é que o teu pai
há de ir assistir se vais fazer merda? Não vale a pena, pois não?»
Olhei para os meus estúpidos pés, que não sabiam fazer wings. Sentei-me
e comecei a chorar baixinho. Não serviu de nada, e passado um minuto dei
comigo infeliz e bloqueada. Resolvi entreter-me a organizar o guarda-roupa
da Barbie. Todas as indumentárias dela tinham sido atafulhadas no
descapotável do Ken. A minha ideia era tirá-las dali, alisá-las, pendurá-las
nos cabides pequeninos e voltar a metê-las no guarda-vestidos, que era o
tipo de brincadeira que nunca me era permitido em casa devido aos seus
ecos de repressão doméstica. Estava a meio desta minuciosa operação
quando, misteriosamente, Tracey se compadeceu de mim: deslizou da cama
e veio sentar-se ao meu lado no chão, de pernas cruzadas. Juntas, pusemos
em ordem a vida daquela minúscula mulher branca.
4 Coleção de bonecos simpáticos e bonzinhos, feitos de material maleável. (N. do T.)
CEDO E TARDE
1
Era ainda criança quando o meu caminho se cruzou pela primeira vez
com o de Aimee – mas como posso chamar-lhe destino? Os caminhos de
toda a gente cruzaram-se com o dela no mesmo instante, quando apareceu
não havia espaço nem tempo que a contivessem, não tinha um caminho só
com que se cruzar, mas todos os caminhos – todos lhe pertenciam, qual
rainha em Alice no País das Maravilhas, todos os caminhos eram o seu
caminho – e, naturalmente, milhões de pessoas sentiam o mesmo que eu.
Sempre que escutavam os seus discos sentiam que estavam a encontrar-se
com ela – continuam a sentir. O seu primeiro single saiu na semana em que
eu fiz dez anos. Ela tinha então vinte e dois. Por altura do fim desse mesmo
ano, contou-me uma vez, já não podia andar na rua, fosse em Melbourne,
Paris, Nova Iorque, Londres ou Tóquio. Um dia, quando as duas
sobrevoávamos Londres a caminho de Roma, conversando
despreocupadamente sobre Londres como cidade, suas virtudes e defeitos,
admitiu que nunca tinha andado no metro, nem uma vez, e não conseguia
imaginar o que isso seria como experiência. Eu sugeri que os sistemas de
metropolitano são basicamente iguais em todo o mundo, mas ela disse que a
última vez que havia entrado em algum tipo de comboio fora quando tinha
deixado a Austrália a caminho de Nova Iorque, vinte anos antes. Na altura
tinha abandonado a sua modorrenta terra natal havia apenas seis meses,
muito rapidamente ganhou o estatuto de estrela underground em Melbourne
e só precisou de mais seis meses em Nova Iorque para deixar cair o
qualificativo. Estrela incontestável desde então, facto que para ela não
acarreta nenhum resquício de neurose ou autocomiseração, e esta é uma das
facetas extraordinárias de Aimee: não tem um lado trágico. Aceita como
destino tudo aquilo que lhe aconteceu, tão pouco surpreendida ou perplexa
por ser quem é como imagino que Cleópatra fosse por ser Cleópatra.
Comprei aquele single de estreia como presente para Lily Bingham, para
a festa do seu décimo aniversário, que por acaso teve lugar uns dias antes
do meu. Tracey e eu fomos convidadas para a festa, foi Lily quem nos
entregou pessoalmente os pequenos convites de papel feitos em casa, um
sábado de manhã na aula de dança, bastante inesperadamente. Eu fiquei
muito contente, mas Tracey, talvez por desconfiar que tinha sido convidada
por uma questão de educação, recebeu o convite com uma expressão
trombuda e passou-o imediatamente à mãe, que ficou tão ansiosa que, dias
depois, interpelou a minha mãe na rua e crivou-a de perguntas. Era o tipo de
coisa onde se pudesse deixar uma filha à porta? Ou seria de esperar que a
mãe fosse convidada a entrar? O convite falava numa ida ao cinema – mas
quem pagava o bilhete? A convidada ou a convidante? Tinham de levar
prenda? Que tipo de prenda íamos nós levar? A minha mãe fazia o favor de
nos levar às duas? Até parecia que a festa ia realizar-se num lugar estranho
e difícil de encontrar, e não a três minutos de caminho a pé, numa casa do
outro lado do parque. Com a maior bonomia, a minha mãe disse que levava
as duas e ficava à nossa espera, se fosse preciso. Quanto à prenda, sugeriu
um disco, um single de música pop, podia ser presente das duas, barato mas
de agrado certo: levar-nos-ia à rua das lojas para procurarmos no
Woolworths um disco que correspondesse ao desejado. Mas nós já
estávamos preparadas. Sabíamos exatamente que disco queríamos comprar,
o nome da canção e da cantora, e sabíamos que a minha mãe – que nunca
lia tabloides e só ouvia estações de rádio reggae – ignoraria a fama de
Aimee. A nossa única preocupação era a capa: ainda não a tínhamos visto,
não sabíamos que esperar. Atendendo à letra – e à interpretação a que
tínhamos assistido, boquiabertas, no Top of the Pops – achávamos que tudo
era possível. Ela podia aparecer completamente nua na capa do single,
podia estar em cima de um homem – ou de uma mulher – fazendo sexo,
podia estar com o dedo médio espetado, como ainda no fim de semana
anterior fizera, por momentos, num programa infantil de TV transmitido em
direto. Podia ser uma foto de Aimee a executar um dos seus espantosos e
provocadores movimentos de dança, por amor dos quais tínhamos
abandonado Fred Astaire, agora só queríamos dançar como Aimee, e
imitávamo-la sempre que tínhamos privacidade e oportunidade, treinando o
suave balançar do seu abdómen – como uma onda de desejo que
atravessava o corpo – e a forma como meneava as estreitas ancas de rapaz e
projetava do tronco os seios pequenos, uma subtil manipulação de músculos
que nós ainda não tínhamos, por baixo de seios que ainda não nos tinham
crescido. Quando chegámos ao Woolworth corremos à frente da minha mãe
e fomos direitas às prateleiras dos discos. Onde estava ela? Procurámos o
cabelo louro-platinado de corte à rapaz, os olhos espantosos, de um azul tão
claro que parecem cinzentos, e o rosto pequeno, andrógino, com o seu
queixinho arrebitado, entre Peter Pan e Alice. Mas não encontrámos
nenhuma imagem de Aimee, nua ou vestida: só o nome e o título de uma
canção ao alto no lado esquerdo da capa, enquanto o resto do espaço era
ocupado pela enigmática – para nós – ilustração de uma pirâmide com um
olho a flutuar, olho esse que era contido pelo vértice do triângulo. A capa
era de cor verde-sujo, e escritas por cima e por baixo da pirâmide estavam
algumas palavras numa língua que não sabíamos ler. Confusas, aliviadas,
levámos o disco à minha mãe, que o aproximou da cara – também era
ligeiramente míope, mas demasiado vaidosa para usar óculos –, franziu a
testa e perguntou se era «uma canção sobre o dinheiro». Eu fui muito
cautelosa na resposta. Sabia que a minha mãe era muito mais puritana em
questões de dinheiro do que em questões de sexo.
«Não é sobre nada. É só uma canção.»
«Achas que a tua amiga vai gostar?»
«Vai gostar, vai», disse Tracey. «Toda a gente adora. Podemos comprar
um para nós?»
Ainda de testa franzida, a minha mãe suspirou, foi buscar à prateleira
mais um exemplar, dirigiu-se à caixa e pagou os dois.
A minha mãe, sempre atrasada, para tudo, foi a última a chegar. Foi
conduzida à nossa presença no primeiro andar, qual advogada que vem
conferenciar com as suas clientes através das grades de uma cela prisional,
enquanto a mãe de Lily fazia um relato muito circunstanciado das nossas
atividades, no qual se incluía a pergunta retórica: «Não lhe faz espécie onde
é que crianças desta idade vão buscar semelhantes ideias?» A minha mãe
passou à defesa: disse um impropério e as duas tiveram uma breve
discussão. Eu fiquei espantada. Naquele momento, a minha mãe
comportou-se como qualquer mãe que se vê confrontada com o mau
comportamento de um filho na escola – até voltou a usar algumas palavras
do patoá – e eu não estava habituada a vê-la perder a compostura. Agarrou-
nos pelas costas dos vestidos e voámos as três pela escada abaixo, mas a
mãe de Lily veio atrás de nós e no corredor repetiu aquilo que Tracey havia
dito sobre o Kurshed. Era o seu ás de trunfo. Tudo o resto a minha mãe
podia menosprezar como «típica moralidade burguesa», mas não podia
ignorar o «paqui». Naquela altura nós éramos «negros e asiáticos»,
assinalávamos o quadrado Negro e Asiático nos formulários médicos,
aderíamos aos grupos de apoio às famílias negras e asiáticas e
confinávamo-nos à secção para negros e asiáticos da biblioteca:
considerava-se que era uma questão de solidariedade. Mesmo assim, a
minha mãe defendeu Tracey, dizendo «É uma criança, só está a repetir
aquilo que ouviu», ao que a mãe de Lily respondeu, em voz baixa, «Não há
dúvida.» A minha mãe abriu a porta da rua e puxou-nos para o exterior
batendo a porta com estrondo. Uma vez cá fora, porém, toda a sua fúria se
virou contra nós, só contra nós, levou-nos como se fôssemos dois sacos de
lixo pela rua fora, aos berros. «Pensam que são iguais a elas? É isso que
pensam?» Lembro-me exatamente da sensação de ser arrastada, deixando a
marca dos calcanhares no chão, e de como fiquei totalmente perplexa com
as lágrimas nos olhos da minha mãe, a distorção que lhe desfeava a cara
bonita. Lembro-me de tudo o que se passou na festa do décimo aniversário
da Lily e não tenho memória absolutamente nenhuma do que se passou no
meu.
Quando chegámos à rua que passa entre o nosso complexo e o de Tracey,
a minha mãe largou a mão dela e deu-nos um sermão curto, mas devastador,
sobre a história dos epítetos raciais. Eu deixei tombar a cabeça e chorei em
plena rua. Tracey ficou impassível. Empinou o queixo e o narizinho de
leitão, esperou que o sermão acabasse e fitou a minha mãe.
«É só uma palavra», disse.
2
Aimee quis a toda a força que acabássemos aquela tarde especial com um
banho no lago das mulheres. Granger ficou outra vez à espera no portão,
com três bicicletas aos pés, virando furiosamente as páginas do seu
Maquiavel de bolso, em edição da Penguin. Uma neblina de pólen pairava
sobre a água, parecia aprisionada no ar denso, sonolento, apesar de a água
estar gelada. Entrei encolhida, em cuecas e T-shirt, descendo a escada
lentamente, enquanto duas inglesas de sorriso largo, Speedos robustos e
toucas vinham à superfície ali perto, oferecendo espontaneamente
encorajamento a todas quantas estavam em vias de se lhes juntar. («Depois
de se entrar está muito agradável.» «Bata as pernas até começar a senti-las.»
«Se a Woolf nadou aqui, você também pode nadar!») Mulheres à minha
direita e à minha esquerda, talvez com o triplo da minha idade, deslizavam
da plataforma para a água, mas eu não consegui entrar até mais do que a
cintura e, para ganhar tempo, virei-me de costas e fingi que estava a admirar
a cena: senhoras de cabelos brancos que se moviam num círculo majestoso
por entre os limos malcheirosos. Uma bonita libelinha vestida no tom de
verde favorito de Aimee rodopiava ali perto. Vi-a pousar na plataforma,
mesmo ao lado da minha mão, e fechar as asas iridescentes. Onde estava
Aimee. Tive um momento de paranoia paralisante, infligida pela erva: teria
entrado na água antes de mim, enquanto eu me preocupava com a minha
roupa interior? Já se teria afogado? Daria comigo amanhã numa
investigação, a explicar ao mundo por que razão tinha deixado uma
australiana universalmente amada, além de coberta por um seguro
elevadíssimo, nadar sozinha num lago gelado do Norte de Londres? Um
grito de banshee rasgou a cena civilizada: virei-me e vi Aimee, nua, saindo
do balneário em direção a mim, formando um mergulho por cima da minha
cabeça e da escada, braços estendidos, costas desenhando um arco perfeito,
como se sustentada no ar por um primeiro-bailarino invisível, antes de fazer
uma entrada perfeita na água.
6
Não sabia que o pai de Tracey tinha sido preso. Foi a minha mãe que me
disse, meses depois da ocorrência: «Pelos vistos, foi preso outra vez.» Não
precisou de mais palavras, nem de me dizer que passasse menos tempo com
Tracey, isso já estava a acontecer naturalmente. Um arrefecimento: uma
daquelas coisas que acontecem entre raparigas. A princípio fiquei
desesperada, pensando que era para sempre, mas afinal era só um hiato, um
de muitos que iríamos ter, com a duração de dois ou três meses, às vezes
mais, mas que acabavam sempre – não por coincidência – quando o pai dela
voltava a sair, ou então regressava da Jamaica – para onde tinha de fugir
com frequência quando as coisas no bairro aqueciam para o seu lado. Era
como se, quando o pai estava «dentro» ou longe, Tracey entrasse em modo
de espera, pondo-se em pausa como um leitor de vídeo. Embora na aula já
não partilhássemos a mesma carteira (tinham-nos separado depois da festa
de Lily, a minha mãe foi à escola exigir que o fizessem), todos os dias a via
perfeitamente, e quando havia «problemas em casa» detetava isso
imediatamente, revelava-se em tudo o que fazia, ou não fazia. Tornava a
vida do nosso professor tão difícil quanto podia, não com mau
comportamento explícito como nós, não com palavrões ou brigas, mas com
um absoluto apagamento da sua presença. O corpo estava presente, nada
mais. Não respondia a perguntas nem as fazia, não participava em nenhuma
atividade nem tomava apontamentos de nada, nem sequer abria o caderno
de exercícios, e nessas alturas eu percebia que para Tracey o tempo havia
parado. Se o Senhor Sherman desatava aos berros, ficava impassivelmente
sentada na carteira, de olhos fixos num ponto acima da cabeça dele, nariz
empinado, e nada que ele dissesse – nenhuma ameaça ou aumento de
volume – produzia o mínimo efeito. Tal como eu previra, nunca tinha
esquecido os cromos dos Garbage Pail Kids. E ser mandada ao gabinete da
diretora não lhe metia medo nenhum. Levantava-se, com o casaco que de
resto não chegara a despir, e saía da sala como se lhe fosse indiferente
aonde ia ou o que lhe acontecia. Quando se encontrava neste estado de
espírito eu aproveitava a oportunidade para fazer aquilo que, quando estava
com Tracey, me sentia inibida de fazer. Passava mais tempo com Lily
Bingham, por exemplo, deliciando-me com o seu bom-humor e feitio
amável: Lily ainda brincava com bonecas, não sabia nada de sexo, adorava
desenhar e fazer coisas com cartolina e cola. Por outras palavras, ainda era
uma criança, como eu às vezes desejava poder ser. Nas suas brincadeiras
ninguém morria nem tinha medo de ser descoberto por fraude, e não havia
absolutamente nenhum negro nem branco, porque, como um dia me
explicou solenemente enquanto brincávamos, era «daltónica» e só via o que
se passava no coração de uma pessoa. Tinha um teatrinho de cartão do Balé
Russo, comprado em Covent Garden, e para ela uma tarde perfeita era
passada a manobrar o príncipe de cartão pelo palco, para se encontrar com
uma princesa de cartão e apaixonar-se por ela, enquanto um disco riscado
do Lago dos Cisnes, do pai, tocava em fundo. Adorava balé, embora
dançasse mal, tinha as pernas demasiado arqueadas para poder alimentar
verdadeiras esperanças, e sabia as palavras francesas para tudo, além das
histórias trágicas de Diaghilev e Pavlova. O sapateado não lhe interessava.
Quando lhe mostrei a minha cópia muito gasta de Stormy Weather8 reagiu
de uma forma que eu não previa, ficou ofendida – para não dizer magoada.
Porque é que toda a gente era negra. Era indelicado, disse, fazer um filme
só com pessoas negras, não era justo. Talvez na América se pudesse fazer
isso, mas não aqui, em Inglaterra, onde aliás todos eram iguais e não havia
necessidade de «repisar a tecla». E nós não íamos gostar, dizia, que nos
dissessem que só os negros podiam frequentar as aulas de dança de Miss
Isabel, não era justo para nós, pois não? Ficávamos tristes. Ou que só os
negros podiam andar na nossa escola. Nós não íamos gostar disso, pois
não? Eu fiquei calada. Meti o Stormy Weather na mochila e fui para casa,
com um pôr do sol de Willesden, de cores de petróleo e nuvens rápidas,
dando voltas na minha cabeça àquela curiosa lição, perguntando-me o que
ela quereria dizer com a palavra «nós».
8 Canção de 1933, da autoria de Harold Arlen e Ted Koehler, mais tarde celebrizada pela
interpretação de Etta James. (N. do T.)
7
Saí daquela aula agarrada à mão do meu pai, mas não lhe contei o que
tinha acontecido. Não pensava em pedir ajuda em nada a nenhum dos meus
pais, quando muito pensava em protegê-los. Ia buscar orientação a outro
sítio. Os livros tinham começado a entrar na minha vida. Não livros bons,
isso ainda não, só aquelas velhas biografias de gente do espetáculo que lia
na falta de textos sagrados, como se elas fossem textos sagrados, colhendo
delas alguma espécie de conforto, mesmo sabendo que se tratava de obras
de encomenda, escritas para ganhar dinheiro fácil, em que certamente os
autores nunca mais pensavam, mas que para mim eram importantes.
Dobrava os cantos de certas páginas e lia algumas linhas vezes sem conta,
como uma senhora vitoriana lendo os seus salmos. Ele não está a fazer
aquilo bem – era uma das mais importantes. Era o que Fred Astaire dizia
pensar quando se via no ecrã, e chamou-me a atenção aquele pronome na
terceira pessoa. Era isto que eu achava que ele queria dizer: que para
Astaire a pessoa do filme não estava especialmente ligada a ele. E tomava
isto a peito, ou melhor, dava voz a uma sensação que já tinha, a de que era
importante a pessoa tratar-se como uma espécie de estranha, para manter a
distância e a objetividade em relação a si mesma. Pensava que era
necessário pensar assim para alcançar alguma coisa neste mundo. Sim, eu
achava que era uma atitude muito elegante. E também fiquei fascinada com
a famosa teoria de Katharine Hepburn sobre Fred e Ginger: Ele dá-lhe
classe, ela dá-lhe sexo. Seria uma regra geral? Todas as amizades – todas as
relações – implicavam esta discreta e misteriosa transação de qualidades?
Era extensiva a povos e nações, ou era uma coisa que só acontecia entre
pessoas individuais? O que é que o meu pai dava à minha mãe – e vice-
versa? O que é que eu e o Senhor Booth dávamos um ao outro? O que é que
eu dava a Tracey? O que é que Tracey me dava?
Terceira parte
INTERVALO
1
Uma coisa que dava prazer à minha mãe era chamar «ingénua» à forma
como Aimee fazia as coisas. Mas Aimee sentia que já tinha tentado a via da
minha mãe, a via política. Tinha apoiado candidatos presidenciais, nos anos
oitenta e noventa, organizando jantares, dando contribuições para as
campanhas, arengando para multidões do alto dos palcos montados em
estádios. Quando eu entrei em cena já ela tinha acabado com isso, como a
geração que outrora tentara empurrar para a cabine de voto, a minha
geração, também acabara. Agora estava empenhada em «fazer acontecer a
mudança no terreno», só queria «trabalhar com comunidades a nível
comunitário», e eu respeitava sinceramente o seu empenhamento, e só
esporadicamente – quando alguma das pessoas de meios como ela vinha à
casa de Hudson Valley, para almoçar ou nadar na piscina, e para falar desta
ou daquela iniciativa – se tornava muito difícil evitar ver as coisas que a
minha mãe via. Nessas alturas sentia verdadeiramente a minha mãe por
cima do ombro, uma consciência invisível, ou um comentário irónico,
destilando-me veneno no ouvido de uma distância de milhares de milhas,
enquanto tentava ouvir todas aquelas pessoas bondosas e de meios –
famosas por tocarem guitarra ou cantarem ou desenharem roupas ou
fingindo serem outras pessoas – tagarelando de copo na mão sobre os seus
planos de erradicar a malária do Senegal ou abrir poços de água potável no
Sudão, e coisas assim. Mas sabia que Aimee, pessoalmente, não tinha
nenhum interesse abstrato no poder. Era motivada por outra coisa –
impaciência. Para Aimee, a pobreza era um dos erros negligentes do
mundo, um entre muitos, que podia ser facilmente corrigido se as pessoas
dessem ao problema a atenção que davam a tudo. Detestava reuniões e
longas discussões, não gostava de abordar uma questão de muitos ângulos
diferentes. Nada a maçava mais do que o «por outro lado isto» ou «por
outro lado aquilo». Antes depositava toda a sua fé no poder das suas
próprias decisões, e estas tomava-as com o «coração». Muitas vezes estas
decisões eram súbitas, e uma vez tomadas nunca eram alteradas ou
revogadas, porque acreditava no seu sentido do tempo certo, no tempo
propriamente dito, como uma força mística, uma forma de destino, que
opera tanto a nível global e cósmico quanto a nível pessoal. Aliás, na
cabeça de Aimee estes três níveis estavam interligados. Foi o tempo certo
do destino, tal como ela o via, que fez arder por completo a sede britânica
da YTV no dia 20 de Junho de 1998, seis dias depois de ela nos ter visitado,
com uma avaria elétrica qualquer que aconteceu a meio da noite e
desencadeou um incêndio que engoliu todo o edifício, destruindo as milhas
e milhas de VHS que até então haviam sido preservadas da influência
deletéria do metro de Londres. Disseram-nos que daí a nove meses os
escritórios voltariam a estar habitáveis. Entretanto fomos todos transferidos
para um edifício de escritórios, feio e incaracterístico, em King’s Cross.
Para mim tudo aquilo acabou no momento em que Zoe pôs um fax em cima
da minha secretária, dirigido a mim, com um número de telefone para onde
devia ligar, sem mais explicações. Da outra ponta da linha chegou a voz de
Judy Ryan, empresária de Aimee. Disse-me que Aimee em pessoa tinha
requerido a presença da rapariga negra vestida de verde no seu escritório de
Chelsea para ser entrevistada com vista a um possível emprego. Fiquei
siderada. Andei meia hora de um lado para o outro antes de entrar, a tremer
enquanto subia no elevador e percorria o corredor, mas quando entrei na
sala vi a decisão já tomada, ali mesmo, na cara dela. Para Aimee não havia
nenhuma apreensão, nem nenhuma dúvida: nada disto, na sua maneira de
ver, era coincidência ou sorte ou mesmo feliz acaso. Era «Destino». «O
Grande Incêndio» – como os empregados o batizaram – era apenas parte de
um esforço consciente, em nome do universo, para nos juntar às duas,
Aimee e eu, um universo que no mesmo momento se recusava a intervir em
tantas outras questões.
2
O meu telemóvel, para o qual estava a tentar, com todas as forças de que
dispunha, não olhar, voltou a vibrar – já tinha vibrado uma dúzia de vezes
desde que me tinha sentado – e desta vez tirei-o da carteira e tentei ver
rapidamente as mensagens, comendo com ele numa das mãos. Miriam falou
à minha mãe numa questão administrativa qualquer, o que fazia muitas
vezes quando se via apanhada numa das nossas discussões, mas a meio da
conversa a minha mãe perdeu visivelmente o interesse.
«Estás viciada nesse telefone, sabias?»
Eu não parei de digitar, mas fiz a expressão mais calma possível.
«É trabalho, mamã. Agora as pessoas trabalham assim.»
«Como escravas, queres tu dizer?»
Partiu uma fatia de pão e deu a parte mais pequena a Miriam, coisa que já
antes lhe vira fazer, era a sua ideia de dieta.
«Não, como escravas não. Eu tenho uma boa vida, mamã!»
Ela pensou nisto com a boca cheia. Abanou a cabeça.
«Não, isso não é verdade – tu não tens uma vida. Ela sim, tem uma vida.
Tem os seus homens, os seus filhos, a sua carreira – ela tem a vida. Vem
nos jornais. Tu dás assistência à vida dela. É uma gigantesca sugadora,
suga-te a juventude, rouba-te toda a tua…»
Para a obrigar a calar-se empurrei a cadeira para trás e fui aos lavabos,
demorando-me ao espelho mais tempo do que precisava, enviando mais
emails, mas quando voltei a conversa prosseguia sem interrupção, como se
não tivesse passado tempo nenhum. A minha mãe continuava a queixar-se,
mas para Miriam: «… o tempo todo. Distorce tudo. É por causa dela que
não vou ter netos.»
«Mamã, a minha situação reprodutiva não tem nada…»
«Tu estás muito perto, não vês. Ela tornou-te desconfiada de toda a
gente.»
Eu neguei, mas a seta atingiu o alvo. Não era desconfiada – sempre de pé
atrás? Atenta a qualquer sinal daquilo que Aimee e eu designávamos, entre
nós, por «clientes»? Cliente: alguém que pensávamos que estava a servir-se
de mim na esperança de se aproximar dela. Às vezes, nos primeiros anos, se
um dos meus relacionamentos conseguia – apesar de todos os obstáculos de
tempo e geografia – arrastar-se por alguns meses, ganhava um bocadinho de
confiança e coragem, e apresentava a pessoa em questão a Aimee, isso era
normalmente uma má ideia. Mal ele ia aos lavabos ou saía para fumar um
cigarro, eu fazia a pergunta a Aimee: cliente? E a resposta era: Oh, querida,
lamento, sem dúvida um cliente.
«Repara na maneira como tratas velhas amigas. A Tracey. Eram
praticamente irmãs, cresceram juntas – agora nem sequer lhe falas!»
«Mamã, tu sempre odiaste a Tracey.»
«A questão não é essa. As pessoas vêm de algures, têm raízes – tu
permitiste que esta mulher arrancasse as tuas. Não vives em sítio nenhum,
não tens nada teu, passas o tempo num avião. Quanto tempo vais conseguir
viver assim? Não me parece que ela queira que sejas feliz. Porque nessa
altura eras capaz de a deixar. E então que seria dela?
Eu ri-me, mas o som que emiti era feio, mesmo para mim.
«Não lhe acontecia nada! É Aimee! Eu sou apenas a primeira assistente,
sabes – há mais três!»
«Estou a perceber. Portanto ela pode ter quantas pessoas quiser na sua
vida, mas tu só podes tê-la a ela.»
«Não, não estás a perceber.» Levantei os olhos do telefone. «A verdade é
que hoje à noite vou sair com uma pessoa. Que a Aimee me apresentou,
portanto...»
«Ah, isso é bom», disse Miriam. Nada lhe agradava mais na vida do que
ver um conflito resolvido, qualquer conflito, e a minha mãe dava-lhe muitas
oportunidades para isso: aonde quer que fosse arranjava um conflito, que
Miriam tinha de resolver.
A minha mãe arrebitou a orelha: «Quem é ele?»
«Não o conheces. É de Nova Iorque.»
«Não posso saber como se chama? É segredo de Estado?»
«Daniel Kramer. Chama-se Daniel Kramer.»
«Ah», disse a minha mãe, sorrindo enigmaticamente para Miriam.
Trocaram um irritante olhar de cumplicidade. «Mais um judeu simpático.»
RITUAL DE PASSAGEM
1
Óculos graduados
Paracetamol
Aspirina
Pilhas
Gel de banho
Pasta de dentes
Creme antissético
Alguém diria mais tarde que eu era uma má amiga para Aimee, sempre
havia sido, só estava à espera do momento oportuno para a magoar, ou
mesmo para a destruir. Talvez ela acredite nisso. Mas só uma boa amiga
acorda uma amiga do seu sonho. A princípio pensei que não teria de ser eu
a acordá-la, que a aldeia se encarregaria disso, porque não parecia possível
continuar a sonhar naquele lugar ou pensar em si mesma como uma
exceção, fosse a que título fosse. Enganei-me. Nos arredores a norte da
aldeia, à beira da estrada que ia para o Senegal, havia uma grande casa cor-
de-rosa de tijolo, com dois andares – a única do seu género num raio de
várias milhas – abandonada, mas praticamente concluída, a que só faltavam
as janelas e as portas. Tinha sido construída, contou-me Lamin, com
remessas enviadas por um rapaz da terra que tinha ganhado bom dinheiro
como taxista em Amesterdão, até que a sua sorte virou e o dinheiro parou
de repente. Agora a casa, vazia há um ano, teria nova vida como nossa
«base de operações». Quando lá chegámos o Sol estava a esconder-se, e foi
com satisfação que o ministro do Turismo nos mostrou as lâmpadas nuas
acesas no teto de todos os compartimentos. «E de cada vez que cá vierem»,
disse-nos, «estará melhor.» A aldeia esperava a luz elétrica havia muito
tempo – desde o golpe, mais de vinte anos antes – mas em dois ou três dias
Aimee tinha logrado convencer as autoridades competentes a ligarem um
gerador a esta carcaça de casa, e havia tomadas para carregar todos os
nossos telemóveis e uma equipa de operários tinha instalado janelas de
acrílico e portas de contraplacado que funcionavam, camas para toda a
gente e até um fogão. Os filhos de Aimee ficaram encantados – era como
acampar – e para ela as duas noites que tinha programado passar ali
assumiam a forma de uma aventura ética. Ouvi-a dizer ao jornalista da
Rolling Stone como é importante estar «no mundo real, no meio do povo», e
na manhã seguinte, além dos momentos formais fotografados – lançamento
da primeira pedra, dança dos alunos da escola – foram tiradas muitas fotos
de Aimee neste mundo real, comendo das tigelas comunitárias, acocorando-
se com à-vontade ao lado das mulheres – dando uso aos músculos
desenvolvidos na bicicleta estática – ou exibindo a sua agilidade, trepando
aos cajueiros com um grupo de rapazes. Depois do almoço, vestiu as calças
de caqui cor de azeitona e fomos as duas dar uma volta pela aldeia com a
mulher do FfID, cuja missão era indicar-nos «áreas de particular
necessidade». Vimos latrinas infestadas de parasitas intestinais, uma clínica
abandonada, semiconstruída, muitos compartimentos abafados, com
cobertura de chapa de zinco, onde as crianças dormiam às dez por cama.
Depois visitámos as hortas comunitárias – para testemunharmos os «limites
da agricultura de subsistência» – mas na altura em que entrávamos no
campo aconteceu que o Sol estava a projetar sombras compridas e
cativantes e as ramas das batatas estavam frondosas e verdes e a vinha
virgem trepava pelas árvores, formando um todo luxuriante que criava um
efeito de extraordinária beleza. As mulheres, novas e velhas, tinham um
aspeto utópico, nos seus panos coloridos, arrancando ervas daninhas da
terra, conversando umas com as outras enquanto trabalhavam, berrando ao
longo das fiadas de ervilhas ou malaguetas, rindo-se das piadas umas das
outras. Quando viram que nos aproximávamos, endireitaram-se e limparam
o suor da cara, com os lenços de cabeça, se os usavam, ou, caso contrário,
com as mãos.
«Bom dia. Como está a ser o seu dia?»
«Oh, já percebi o que está a acontecer aqui», disse Aimee a uma anciã
que tivera a ousadia de a abraçar pela cintura fina. «As meninas podem
conversar à vontade. Não há homens por perto. Pois, faço ideia do que aqui
vai.»
A mulher do DfID riu-se exageradamente. Eu apercebia-me da pouca
ideia que fazia do que estava a acontecer ali. Nem mesmo as ideias mais
simples que trouxera comigo pareciam funcionar aqui quando tentava
aplicá-las. Por exemplo, não estava neste momento num campo com a
minha tribo alargada, com as mulheres negras como eu. Aqui não existia
semelhante categoria. Só havia as mulheres seres, as uolofes e as
mandingas, as seraulis, as fulas e as jolas, e, segundo me disseram uma vez
a medo, eu era parecida com estas últimas, pelo menos na estrutura facial
básica: o mesmo nariz comprido, as maçãs do rosto também. Do sítio onde
agora estava ouvia o chamamento à oração vindo do minarete quadrado de
betão da mesquita verde, que se erguia acima das árvores e dominava esta
aldeia onde as mulheres de cabeça coberta e descoberta eram irmãs e
primas e amigas umas das outras, eram mães e filhas umas das outras, ou
cobriam-se de manhã e descobriam-se à tarde, simplesmente porque alguns
amigos da sua idade, rapazes e raparigas, tinham vindo visitá-las, e uma
delas tinha-se oferecido para lhes fazer tranças. Neste lugar onde o Natal
era celebrado com um fervor surpreendente, e todas as personagens do livro
eram consideradas «irmãs, irmãos», enquanto eu, que representava o
ateísmo absoluto, não era inimiga de ninguém, não, apenas alguém que
devia receber compaixão e proteção – assim me explicou uma das raparigas
com quem compartilhava um quarto – como se faria a uma vitela cuja mãe
tivesse morrido a pari-la.
Agora observava as raparigas fazendo fila para o poço, enchendo de água
os seus enormes alguidares de plástico e pondo estes alguidares à cabeça e
iniciando o trajeto de regresso à aldeia. Reconheci algumas da morança
onde havia vivido nesta última semana. As primas gémeas da minha
anfitriã, Hawa, bem como três das suas irmãs. Disse adeus a todas, sorrindo.
Elas responderam com um aceno.
«Sim, ficamos sempre espantadas com o muito que as mulheres e
raparigas daqui trabalham», disse a mulher do DfID, em voz baixa,
acompanhando o meu olhar. «Fazem o trabalho doméstico, como veem,
mas também o trabalho agrícola, e como irão ver são predominantemente as
mulheres que gerem a escola e o mercado. Verdadeiro Poder Feminino.»
Curvou-se para apalpar o caule de uma beringela e Aimee aproveitou a
oportunidade e virou-se para mim, entortou os olhos e deitou a língua de
fora. A mulher do DfID levantou-se e passou os olhos pela fila cada vez
mais longa de raparigas.
«É claro que muitas destas raparigas deviam estar na escola, mas
infelizmente as mães precisam delas aqui. E agora pensem naqueles rapazes
que vimos há pouco, a preguiçar numa rede entre os cajus...»
«A educação é a resposta para o desenvolvimento das nossas raparigas e
mulheres», interveio Lamin, com o ar ligeiramente magoado e cansado,
pensei, de quem já tinha suportado muitas preleções de representantes do
DfID. «Educação, educação, educação.»
Aimee fez-lhe um sorriso radioso.
«É para isso que aqui estamos», disse.
Senti-me como se fosse num comboio, com destino ao sítio para onde as
pessoas como eu costumavam ir na adolescência, só que agora, de repente,
havia alguma coisa diferente. Era informada de que desceria numa paragem
inesperada, mais adiante. Pensei no meu pai, arrancado do comboio quando
ainda mal tinha saído da estação. E em Tracey, tão expedita a saltar em
andamento, exatamente porque antes queria caminhar do que lhe dissessem
qual era a sua paragem ou até onde podia ir. Bem, não havia nisso uma certa
nobreza? Não havia nisso uma certa luta, pelo menos – um certo desafio? E
depois havia todos os revoltantes casos históricos que ouvi contar sentada
nos joelhos da minha mãe, histórias das mulheres furiosamente talentosas –
e eram sempre mulheres, na versão da minha mãe –, mulheres que talvez
tivessem corrido mais do que um comboio a alta velocidade, se tivessem
tido liberdade para isso, mas para as quais, nascidas no tempo errado, no
lugar errado, todas as paragens estavam fechadas, nem sequer eram
autorizadas a entrar na estação. E não era eu muito mais livre do que
qualquer delas – nascida em Inglaterra, nos tempos modernos – além de
muito mais leve, de nariz muito mais levantado, muito menos suscetível de
ser tomada como a essência da própria Negritude? Que poderia impedir-me
de continuar a viagem? Mas quando me sentei na sala da minha escola, num
dia de julho de calor abrasador, fora do horário normal das aulas – altura
estranha para estar na escola – e abri aqueles enunciados da prova, para ler
de ponta a ponta a oportunidade que a minha mãe desejava que agarrasse
com ambas as mãos, invadiu-me uma fúria grande e súbita, descobri que
não queria viajar naquele comboio, escrevi meia dúzia de palavras aqui e
ali, ignorei as páginas de matemática e ciências, reprovei clamorosamente.
16 Great London Council (Conselho da Grande Londres), órgão coordenador do poder local, extinto
em 1986 pelo governo de Margaret Thatcher. (N. do T.)
Semanas depois, Tracey entrou para a sua escola de artes de palco. A mãe
não teve outro remédio senão tocar à nossa porta, entrar em nossa casa e
contar-nos tudo. Empurrando Tracey à sua frente como um escudo entrou
para o corredor a arrastar os pés, não quis sentar-se nem tomar chá. Nunca
até então tinha transposto a soleira daquela porta. «O júri disse que nunca
tinha visto nada tão original como a...» – a mãe de Tracey embatucou e
olhou furiosa para a filha, que então proferiu a palavra estranha –
«coreografia dela, nem nada que se parecesse. Uma completa novidade.
Nunca! Eu sempre lhe disse que tinha de ser duas vezes melhor do que
qualquer outra para chegar a algum lado», continuou, apertando a sua
Tracey contra o peito gigantesco, «e agora chegou.» Trazia um vídeo da
prova para nos dar, e a minha mãe recebeu-a com bastante delicadeza. Uma
noite fui descobri-lo no quarto dela debaixo de uma pilha de livros e vi-o
sozinha. A canção era «Swing is Here to Stay»18 e todos os movimentos,
todas as piscadelas de olho, todos os meneios de cabeça eram de Jeni
LeGon.
Nesse outono, no meu primeiro período na nova escola, descobri aquilo
que era sem a minha amiga: um corpo sem contorno definido. O tipo de
rapariga que andava de grupo em grupo, nem bem-vinda nem desprezada,
tolerada, e sempre desejosa de evitar confrontos. Sentia que não causava
nenhuma impressão. Durante algum tempo houve duas ou três raparigas do
ano à frente do meu que achavam que eu me orgulhava da minha cor forte,
do meu nariz comprido, das minhas sardas, e provocavam-me, roubavam-
me dinheiro, assediavam-me no autocarro, mas os provocadores alimentam-
se de alguma espécie de resistência, mesmo que sejam só lágrimas, e eu não
lhes ofereci nenhuma e depressa se cansaram e deixaram-me em paz. Não
me lembro da maioria dos anos que passei naquela escola. Apesar de os ter
vivido, uma obstinada parte de mim nunca a aceitou como mais do que um
lugar ao qual tinha de sobreviver todos os dias até voltar a ser livre.
Concentrava-me mais naquilo que imaginava ser a vida de Tracey na sua
escola do que na realidade da minha. Lembro-me, por exemplo, de ela me
ter contado pouco depois de lá ter chegado que quando Fred Astaire morreu
a escola organizou uma sessão evocativa, e alguns alunos foram convidados
a dançar em homenagem à memória dele. Tracey, vestida de Bojangles, de
chapéu alto e fraque brancos, arrasou. Sei que nunca a vi fazer aquilo, mas
ainda hoje sinto que tenho uma recordação daquele momento.
Treze anos, catorze, quinze, o difícil ritual de passagem – naqueles anos,
de facto, não nos vimos muito. A nova vida dela absorvia-a por completo.
Não esteve presente quando finalmente o meu pai saiu de casa ou quando
eu tive o período pela primeira vez. Não sei quando perdeu a virgindade
nem se a perdeu, nem quem lhe provocou o primeiro desgosto de amor.
Quando a via na rua, parecia-me que estava bem. Ia abraçada a um homem
muito bonito e maduro, quase sempre alto e com o cabelo muito curto dos
lados, e recordo-a nessas ocasiões mais a saltitar do que a andar – cara
fresca, cabelo apanhado num coque de bailarina, de colãs fluorescentes e
top reduzido – mas também de olhos injetados, claramente pedrada.
Elétrica, carismática, extremamente sensual, sempre carregada de energia
estival, mesmo no gélido fevereiro. E encontrá-la assim, como realmente
era – isto é, abstraindo das ideias invejosas que tinha em relação a ela – era
sempre uma forma de choque existencial, como ver uma personagem de um
livro de histórias na vida real, e fazia tudo para que o encontro fosse o mais
breve possível, chegando a atravessar a rua antes de ela chegar ao pé de
mim, ou saltar para um autocarro, ou alegar que ia a caminho de um
compromisso urgente. Mesmo quando algum tempo depois sabia, pela
minha mãe e por outras pessoas do bairro, que ela estava a passar por
dificuldades, cada vez mais metida em sarilhos, não conseguia imaginar
uma razão para isso, para mim tinha uma vida perfeita, o que talvez seja um
efeito indireto da inveja, esta incapacidade de imaginar. Na minha ideia, as
lutas dela pertenciam ao passado. Era dançarina: tinha encontrado a sua
tribo. Eu, pelo contrário, havia sido apanhada completamente desprevenida
pela adolescência, continuando a trautear canções de Gershwin no fundo da
sala de aula enquanto à minha volta os círculos de amizade começavam a
formar-se e a consolidar-se, definidos pela cor, classe, dinheiro, código
postal, nacionalidade, música, droga, política, desporto, aspiração, língua,
sexualidade... um dia dei a volta naquele enorme jogo de cadeiras musicais
e verifiquei que não havia lugar para mim. Sem saber o que fazer, fiz-me
gótica – era onde acabava quem não tinha mais para onde ir. Os góticos já
de si eram uma minoria, e eu aderi à fação mais estranha, um grupinho de
cinco miúdos apenas. Um era romeno e tinha um pé boto, outro era japonês.
Os góticos negros eram raros, mas havia precedentes: tinha visto alguns na
zona de Camden e agora copiava-os o melhor que podia, maquilhando a
cara de branco-fantasma e pintando os lábios de vermelho-sangue, deixando
o cabelo em parte dread e pintando outras partes de roxo. Comprei um par
de Dr. Martens e cobri-as de símbolos anarquistas pintados com verniz
corretor. Tinha catorze anos: o mundo era uma seca. Estava apaixonada pelo
meu amigo japonês, que estava apaixonado pela loira frágil do nosso grupo
que tinha os braços cobertos de cicatrizes e parecia um gato doente
abandonado à chuva – não era capaz de amar ninguém. Durante quase dois
anos passámos todo o nosso tempo juntos. Eu odiava a música e não era
permitido dançar, só balançar para cima e para baixo sem sair do sítio, ou
então chocar ebriamente uns contra os outros – mas agradava-me que a
apatia política desagradasse à minha mãe e que a brutalidade da minha nova
aparência trouxesse ao de cima o lado profundamente maternal do meu pai,
que agora andava constantemente preocupado comigo e tentava alimentar-
me porque eu, goticamente, estava a emagrecer. Faltava às aulas quase
todos os dias da semana: o autocarro que ia para a escola também ia para a
eclusa de Camden. Sentávamo-nos nos caminhos de sirga, a beber cidra e a
fumar, as DMs a balançar sobre o canal, a falar da falsidade de todos os
nossos conhecidos, conversas sem rumo que chegavam a consumir dias
inteiros. Eu denunciava violentamente a minha mãe, o antigo bairro, tudo
desde a infância, principalmente Tracey. Os meus novos amigos eram
obrigados a escutar todos os pormenores da nossa história mútua, toda ela
recapitulada com um espírito azedo, recuando até ao dia em que nos
conhecemos, quando íamos a atravessar o adro de uma igreja. Ao cabo de
uma tarde daquilo voltava de autocarro, passava pela escola onde não tinha
posto os pés e descia numa paragem em frente – mas exatamente em frente
– do novo apartamento de solteiro do meu pai, onde podia recuar
alegremente no tempo, matar saudades da comida que ele fazia, entregar-me
aos velhos prazeres secretos. Judy Garland a fingir de zulu, dançando o
cakewalk em Agora Seremos Felizes.
18 Do filme Ali Baba Goes to Hollywood. (N. do T.)
11
A nossa segunda visita teve lugar quatro meses depois, na estação das
chuvas. Aterrámos de noite, depois de um voo atrasado, e quando chegámos
à casa cor-de-rosa eu não consegui suportar a estranheza daquele lugar, a
sua tristeza e vazio, a sensação de que estava a invadir a ambição perdida de
outra pessoa. A chuva metralhava o tejadilho do táxi. Perguntei a Fernando
se não se importava que eu voltasse para casa de Hawa.
«Para mim é ótimo. Tenho montes de trabalho para fazer.»
«E ficas bem? Quer dizer, sozinho?»
Ele riu-se: «Já estive sozinho em sítios bem piores.»
Separámo-nos junto do enorme painel com a tinta a descascar que
assinalava o princípio da aldeia. Vinte metros de caminhada foram
suficientes para me encharcar, empurrei a porta de alumínio da morança da
família de Hawa, travada por uma lata de óleo cheia de areia até meio, mas
aberta no trinco, como sempre. Quase não reconheci o interior. No pátio,
onde quatro meses antes havia terra vermelha cuidadosamente varrida e
avós, primas e primos, sobrinhas e sobrinhos, irmãs e muitas crianças de
colo, sentados em círculo, a altas horas da noite, agora não havia ninguém,
apenas um lamaçal revolto onde imediatamente me atolei e perdi um
sapato. Quando me baixei para o procurar ouvi gargalhadas. Olhei para
cima e vi que estava a ser observada do alpendre de betão. Hawa e algumas
amigas, levando os pratos de lata do jantar para o sítio onde os guardavam.
«Oh, oh», exclamou Hawa, rindo-se ao ver-me, coberta de lama, e agora
transportando nos braços uma grande mala de rodas que se recusavam a
rolar pelo chão barrento. «Olhem só quem a chuva nos trouxe!»
Não tinha previsto voltar a ficar em casa de Hawa, não a tinha avisado,
mas nem ela nem mais ninguém na morança mostraram grande surpresa
pela minha chegada, e apesar de na primeira vez não ter sido uma hóspede
particularmente bem-sucedida ou bem-amada, fui recebida como família.
Apertei a mão das várias avós, e eu e Hawa abraçámo-nos, e dissemo-nos
que tínhamos sentido muito a falta uma da outra. Expliquei que desta vez
vínhamos só Fernando e eu – Aimee estava a gravar em Nova Iorque – e
que estávamos cá para observar em mais pormenor como funcionava a
escola antiga e o que podia ser aperfeiçoado na nova. Fui convidada a
sentar-me com Hawa e as suas visitas na pequena sala de estar, debilmente
iluminada por painéis solares brancos, mais intensamente iluminada pelos
ecrãs dos telemóveis de todas as raparigas. Sorrimos umas às outras, as
raparigas, Hawa, eu. Perguntaram-me delicadamente pela saúde da minha
mãe e do meu pai – mais uma vez foi motivo de admiração eu não ter
irmãos nem irmãs – e depois pela saúde de Aimee e dos filhos, e de
Carrapichano e de Judy, mas pela de ninguém com tanta ansiedade como
pela de Granger. Era na saúde de Granger que estavam verdadeiramente
interessadas, porque Granger havia sido a verdadeira estrela da primeira
visita, muito mais do que Aimee ou qualquer outro membro da comitiva.
Nós éramos curiosidades – ele era amado. Granger conhecia todos os temas
sentimentalões de R&B que Hawa adorava, Aimee desprezava e eu nem
sabia o que eram, usava o tipo de sapatos que Hawa mais admirava, e
durante uma roda de percussão comemorativa, organizada pelas mães na
escola, sem hesitação tinha entrado na roda, sacudido os ombros, meneado
o corpo, vogado e executado o moonwalk, enquanto eu me encolhia no meu
lugar, entretida a tirar fotografias. «Aquele Granger!», dizia agora Hawa,
abanando animadamente a cabeça com a extasiante recordação de Granger,
comparada com a desinteressante realidade da minha presença. «Um
dançarino fantástico! Os rapazes só perguntavam: “São os passos novos?” E
lembro-me de a tua Aimee dizer: “Não, estes são os velhos!” Lembras-te?
Mas desta vez não veio? É pena. Oh, o Granger é um rapaz tão simpático!»
As mulheres jovens presentes na sala riram-se e abanaram a cabeça e
suspiraram, e depois voltou a fazer-se silêncio, e comecei a pensar que
devia ter vindo interromper uma reunião, um bom pedaço de má-língua, que
agora, passado um minuto de silêncio embaraçado, era retomado em uolof.
Sem vontade de ir para a escuridão absoluta do quarto de dormir, recostei-
me no sofá, deixando que a conversa resvalasse em mim e as roupas me
secassem no corpo. Ao meu lado, Hawa era o centro das atenções, duas
horas de histórias que – tanto quanto eu percebia – iam do hilariante ao
pesaroso e ao moralmente ofendido, mas sem nunca chegarem ao furioso.
As risadas e os suspiros serviam-me de guia, e também as fotos do
telemóvel que ela mostrava no meio de certos episódios e explicava
laboriosamente em inglês quando eu fazia questão de perguntar. Percebi que
ela tinha um problema amoroso – um jovem polícia de Banjul que
raramente via – e um grande plano, que antevia com ansiedade, de ir à praia
quando acabassem as chuvas e fazer uma reunião de família, para a qual o
polícia seria convidado. Mostrou-me a fotografia daquela que tivera lugar
no ano anterior: uma panorâmica em que se viam pelo menos cem pessoas.
Identifiquei-a na primeira fila e estranhei a ausência do lenço, substituído
por um penteado sedoso, de risco ao meio, que lhe chegava aos ombros.
«Cabelo diferente», disse, e Hawa riu-se, pôs as mãos no hijab e tirou-o,
revelando dez centímetros de cabelo em pequenas rastas.
«Mas cresce tão vagar, ai!»
Levei algum tempo a perceber que Hawa era essa coisa relativamente rara
na aldeia, uma rapariga de classe média. Filha de dois professores
universitários, nenhum dos quais cheguei a conhecer, o pai trabalhava agora
em Milão como polícia de trânsito e a mãe vivia na cidade e continuava a
trabalhar na universidade. O pai tinha saído por aquilo que a população da
aldeia designava por «dar o salto», na companhia do irmão mais velho de
Hawa, atravessando o Sara para chegar à Líbia e aí fazendo a perigosa
travessia para Lampedusa. Dois anos depois, já casado com uma italiana,
mandou ir o outro irmão, mas isso foi há seis anos, e se Hawa estava à
espera de ser chamada era demasiado orgulhosa para mo dizer. O dinheiro
que o pai mandava havia proporcionado alguns luxos à morança, raros na
aldeia: um trator, um grande lote de terreno particular, uma retrete, embora
não estivesse ligada a coisa nenhuma, e uma televisão, embora não
funcionasse. A morança propriamente dita albergava as quatro mulheres do
falecido avô de Hawa e muitos dos filhos, netos e bisnetos que as suas
uniões tinham produzido, em combinações que estavam sempre a variar.
Nunca era possível localizar todos os progenitores destas proles: só as avós
se mantinham constantes, passando crianças de colo ou pouco mais velhas
de umas para as outras e para Hawa, que, apesar de muito jovem, muitas
vezes me dava a impressão de ser a chefe da família, ou pelo menos o seu
coração. Era uma daquelas pessoas que atraem toda a gente. Extremamente
graciosa, de rosto perfeitamente redondo, tez de um negro azulado, pestanas
muito bonitas, compridas, e um adorável ar de pata no lábio superior, cheio
e saliente. Quem procurasse descontração, frivolidade, ou tão-só ser
alegremente provocada durante uma ou duas horas sabia que devia ir ter
com Hawa, que dava igual atenção a toda a gente, queria saber todas as
novidades, por muito quotidianas ou banais que parecessem («Vens do
mercado? Oh, então conta! Quem estava lá? E o peixeiro, estava lá?») Teria
sido a joia da coroa de qualquer aldeia em qualquer lugar. Ao contrário de
mim, não tinha o mínimo desprezo pela vida de aldeia: adorava a pequenez,
o mexerico, a rotina e a união da família. Gostava que os assuntos de toda a
gente fossem os seus assuntos e vice-versa. Uma vizinha, que tinha um
problema amoroso mais difícil do que o dela, visitava-nos todos os dias –
tinha-se apaixonado por um rapaz com quem os pais não a deixavam casar-
se – e pegava nas mãos de Hawa enquanto falava e chorava, muitas vezes
ficando até à uma da manhã, mas eu reparava que saía sempre a sorrir.
Tentava imaginar-me a prestar algum dia um serviço parecido a uma amiga.
Queria saber mais sobre aquele problema de amor, mas Hawa não gostava
de traduzir, e na sua versão impaciente duas horas de conversa eram
facilmente reduzidas a duas ou três frases («Bem, está a dizer que ele é
muito bonito e bondoso e que nunca irão casar-se. Estou tão triste! Digo-te
que esta noite nem vou dormir! Mas então: ainda não aprendeste nem um
bocadinho de uolof?) Às vezes, quando as visitas de Hawa chegavam e me
encontravam sentada no meu canto escuro, retraíam-se e viravam costas,
porque da mesma forma que Hawa era conhecida em toda a parte como
portadora de leveza, alguém cuja simples presença aliviava os desgostos,
muito depressa se tornou claro que a visitante de Inglaterra só trouxera
consigo peso e tristeza. Todas as perguntas mórbidas que eu tinha de fazer
de esferográfica em punho, sobre o combate à pobreza, ou a falta de
material na escola, ou as dificuldades visíveis da vida da própria Hawa – a
que agora se somavam as dificuldades próprias da estação das chuvas, os
mosquitos, a ameaça da malária sem tratamento –, tudo isto repelia as
nossas visitantes e punha à prova a paciência de Hawa. As conversas sobre
política não lhe interessavam – a menos que fossem de teor conspirativo,
intensamente local, e dissessem diretamente respeito a pessoas suas
conhecidas – e também lhe desagradavam as discussões muito acaloradas
sobre temas de religião ou cultura. Como toda a gente, rezava e ia à
mesquita, mas não me parecia que tivesse um interesse sério pela religião.
Era daquelas raparigas que só querem uma coisa desta vida: divertir-se.
Lembrava-me muito bem do tipo, dos meus tempos de escola, raparigas que
sempre me haviam desconcertado – e continuam a desconcertar – e sentia
que também eu desconcertava Hawa. Todas as noites me deitava no chão ao
pé dela, nos nossos colchões contíguos, grata pela aura azul que emanava
do Samsung enquanto ela via as mensagens e as fotos, às vezes até altas
horas, rindo-se ou suspirando com fotografias que a divertiam, rompendo a
escuridão e aliviando a necessidade de conversar. Mas nunca havia nada
que parecesse enfurecê-la ou deprimi-la seriamente, e talvez porque eu via
tantas coisas que provocavam em mim estas emoções, diariamente, sentia-
me dominada por um desejo perverso de despertar nela os mesmos
sentimentos. Certa noite, estávamos as duas deitadas lado a lado e ela a
pensar outra vez em como Granger era divertido, era fixe e divertido,
perguntei-lhe o que achava da promessa do Presidente de decapitar
pessoalmente qualquer homossexual que encontrasse no país. Ela sorveu o
ar entre os dentes e continuou a correr as mensagens: «Esse homem está
sempre a dizer um disparate qualquer. De qualquer maneira, não temos cá
gente dessa.» Não relacionou a minha pergunta com Granger, mas nessa
noite eu adormeci a arder de vergonha por ter tão levianamente tentado
destruir a possibilidade de Granger voltar ao país, e em nome de quê? Do
princípio? Sabia quanto Granger tinha gostado de cá estar, mais ainda do
que em Paris – e muito mais do que em Londres – e que sentia isso apesar
da ameaça existencial que seguramente a visita representava para ele.
Tínhamos falado disso muitas vezes, o assunto surgia no meio do tédio das
sessões de gravação – sentados os dois na cabine, sorrindo para Aimee
através do vidro, nunca prestando atenção ao que ela estava a cantar – e
eram estas as conversas mais substanciais que alguma vez tivera com
Granger, como se a aldeia tivesse revelado em nós uma relação que não
sabíamos que tínhamos. O que não quer dizer que estivéssemos de acordo
ou estabelecêssemos os mesmos paralelos. Onde eu via privação, injustiça,
pobreza, Granger via simplicidade, ausência de materialismo, beleza
comunitária – o oposto da América em que tinha sido criado. Onde eu via
poligamia, misoginia, crianças sem mãe (a infância da minha mãe na ilha,
só que ampliada, protegida pela tradição), ele lembrava-se de um quinto
andar sem elevador, um minúsculo apartamento tipo estúdio com uma mãe
deprimida, a solidão, as senhas de racionamento, a ausência de sentido, a
ameaça das ruas logo à saída da porta, e falava-me, com lágrimas sinceras
nos olhos, de como podia ter sido mais feliz se tivesse sido criado não por
uma mulher, mas por quinze.
Um dia em que se dava o caso de estarmos só as duas, Hawa e eu, no
pátio, e ela estava a fazer-me tranças no cabelo, tentei mais uma vez falar de
assuntos difíceis, aproveitando a intimidade do momento para lhe fazer
perguntas sobre um rumor que tinha ouvido, a propósito de uma mulher da
aldeia desaparecida, aparentemente levada pela polícia, mãe de um rapaz
que tinha participado recentemente numa tentativa de golpe. Ninguém sabia
onde ela estava, nem o que lhe tinha acontecido. «No ano passado esteve cá
uma rapariga, chamava-se Lindsay», disse Hawa, como se eu não tivesse
dito nada. Foi antes de ter vindo a Aimee e vocês todos, pertencia ao Corpo
da Paz e era muito divertida! Jogávamos o Vinte e Um e o Blackjack. Tu
jogas cartas? Estou-te a dizer, era muito divertida, pá!» Suspirou, riu-se e
esticou-me o cabelo. Desisti. O assunto preferido de Hawa era Chris
Brown, estrela do R&B, mas eu não tinha praticamente nada a dizer sobre
Chris Brown e só tinha uma canção dele no meu telemóvel («Essa canção é
muito, muito, muito antiga», informou-me) ao passo que ela sabia tudo o
que havia a saber sobre o homem, incluindo todos os seus passos de dança.
Certa manhã, antes de ela sair para a escola, vi-a no pátio, a dançar com os
auscultadores nas orelhas. Vestia o seu uniforme de professora estagiária,
tecnicamente modesto mas ainda assim intensamente sensual: blusa branca,
saia comprida de licra preta, hijab amarelo, sandálias amarelas, relógio
amarelo, e colete às riscas, muito justo, que tinha o cuidado de cingir
especialmente bem nas costas de modo a realçar a cintura fina e o traseiro
espetacular. Levantou os olhos de onde estava a admirar os passos rápidos
dos seus próprios pés, viu-me e riu-se: «Ai de ti se dizes aos meus
alunos!»
Todos os dias dessa visita, eu e Carrapichano íamos à escola e
visitávamos as salas de aula de Hawa e Lamin, tomando notas.
Carrapichano concentrava-se em todos os aspetos do funcionamento da
escola, enquanto o meu âmbito era mais limitado: ia primeiro à sala de
Lamin e depois à de Hawa, à procura das «melhores e mais brilhantes»,
seguindo instruções de Aimee. Na aula de Lamin, que era de matemática,
era fácil: só tinha de tomar nota dos nomes das raparigas que davam as
respostas certas. Porque tudo o que fosse além das somas e subtrações
ultrapassava de facto as minhas capacidades, e via os alunos de dez anos de
Lamin multiplicarem mais depressa do que eu e chegarem a resultados de
divisões compridas quando eu ainda mal começara a tentar. Pegava na
esferográfica e sentia as mãos suadas. Era como viajar no tempo. Via-me de
volta à minha aula de matemática, tinha os mesmos sentimentos de
vergonha e conservava, como vim a verificar, o hábito infantil de me
enganar a mim própria, tapando as contas com a mão quando Lamin
passava e conseguindo sempre convencer-me, pelo menos em parte, depois
de a resposta aparecer no quadro, de que tinha ficado muito perto de lá
chegar, mas por este ou aquele pequeno erro, o insuportável calor da sala, a
minha atrapalhação irracional na presença de números...
Era com alívio que deixava Lamin e avançava para a aula de Hawa, sobre
assuntos gerais. Nesta tinha decidido procurar as Traceys, ou seja, as mais
brilhantes, as mais rápidas, as mais voluntariosas, as que se chateavam de
morte, as conflituosas, as raparigas cujos olhos dardejavam como lasers ao
lerem as frases em inglês impostas pelo governo – frases mortas, frases
destituídas de conteúdo e significado – que Hawa estava a transcrever
laboriosamente a giz para o quadro antes de as traduzir de forma igualmente
laboriosa para uolof e as explicar nesta língua. A minha expectativa era
encontrar apenas algumas Traceys em cada aula, mas depressa se tornou
evidente que naquelas salas quentes havia mais raparigas da tribo de Tracey
do que de qualquer outra. Os uniformes de algumas destas raparigas
estavam tão usados que já pouco passavam de trapos, outras tinham feridas
abertas nos pés ou olhos a supurar, e quando, todas as manhãs, depositavam
as propinas em moedas nas mãos dos professores, muitas não tinham
moedas para entregar. Mas nem por isso tinham desistido, estas muitas
Traceys. Não se contentavam em cantar as suas respostas a Hawa, que por
sua vez, escassos anos antes, se terá sentado nestas mesmas carteiras,
cantando estas mesmas respostas, então como agora agarrada ao manual.
Ver todo aquele fogo arder com tão pouca lenha era naturalmente motivo de
desespero. Mas sempre que a conversa se libertava das absurdas algemas
inglesas e regressava às línguas nativas eu voltava a vê-las, as chispas
brilhantes de inteligência – quais chamas que lambem uma grelha que
pretende refreá-las – assumirem a mesma forma que a inteligência natural
assume em salas de aula por esse mundo fora: respostas tortas, humor,
discussão. Cabia a Hawa a desditosa missão de silenciar tudo isto, as
naturais manifestações de curiosidade, e obrigar a turma a regressar ao
manual governamental que tinha nas mãos, escrever no quadro, The pot is
on the fire e The spoon is in the bowl19 com um coto de giz e mandar os
alunos repetirem, e depois escreverem, copiando tudo exatamente,
incluindo os erros frequentes da própria Hawa. Depois de assistir ao
doloroso processo durante alguns dias, verifiquei que ela nem uma única
vez punha os alunos à prova sobre estas frases escritas sem que já tivessem
a resposta diante dos olhos, ou tivessem acabado de a repetir, e numa tarde
particularmente quente senti que tinha de ser eu a resolver a questão. Pedi a
Hawa que se sentasse no meu lugar, num banco partido, fui pôr-me de
frente para os alunos e mandei-os escrever nos seus cadernos: The pot is on
the fire. Elas olharam para o quadro vazio e depois, expectantes, para Hawa,
à espera da tradução. Eu não a deixei falar. Seguiram-se dois longos
minutos em que as crianças olharam perplexas para os seus cadernos de
exercícios parcialmente rasgados, com várias camadas de remendos feitos
com velho papel de embrulho. Depois percorri a sala a recolher os cadernos
para os mostrar a Hawa. Uma parte de mim gostou de fazer aquilo. Três
raparigas em quarenta tinham escrito a frase corretamente em inglês. As
outras tinham escrito uma palavra ou duas, quase todos os rapazes não
tinham escrito uma única letra, apenas uns vagos resquícios de vogais e
consoantes inglesas, sombras de letras, mas não as próprias letras. Hawa
acenou com a cabeça perante cada caderno, sem deixar transparecer a
mínima emoção, e então, quando eu acabei, levantou-se e continuou a
aula.
Quando tocou a sineta para o almoço atravessei o recreio a correr à
procura de Carrapichano, que estava sentado debaixo da mangueira,
tomando notas num bloco, e contei-lhe com uma pressa incontida todas as
ocorrências da manhã, e as implicações que previa que elas tivessem,
imaginando como os meus progressos teriam sido lentos se os meus
professores tivessem ensinado as matérias do programa em mandarim, por
exemplo, apesar de eu não falar mandarim em mais nenhum sítio, os meus
pais não falarem mandarim...
Carrapichano pousou a esferográfica e olhou para mim muito sério.
«Estou a ver. E o que é que achas que conseguiste?»
A princípio pensei que ele não me tinha percebido e repeti tudo desde o
início, mas ele interrompeu-me, batendo um pé no chão de terra.
«Pura e simplesmente humilhaste uma professora, em frente dos seus
alunos.»
A voz dele era calma, mas a cara estava muito vermelha. Tirou os óculos
e olhou-me fixamente, com um ar tão gravemente atraente que conferiu um
certo peso à sua posição, como se as pessoas que têm razão fossem sempre
mais belas.
«Mas – é que – ou seja, não estou a dizer que seja uma questão de
competência, é um “problema estrutural” – é o que tu estás sempre a dizer –
e eu só estou a dizer que talvez pudéssemos ter uma aula de inglês, OK,
claro, mas devíamos ensiná-los na língua deles na terra deles, e depois
podem – podiam, quer dizer, tu sabes, levar testes de inglês para fazerem
em casa, como trabalhos de casa ou coisa assim.»
Fernando soltou uma gargalhada amarga e praguejou em português.
«Trabalhos de casa! Já foste a casa deles? Vês livros nas prateleiras? Ou
mesmo prateleiras? Ou mesas?» Pôs-se de pé e desatou aos berros: «Que é
que pensas que estas crianças fazem quando chegam a casa? Estudam?
Pensas que têm tempo para estudar?»
Não se tinha aproximado de mim, mas eu, instintivamente, recuei até
ficar encostada ao tronco da mangueira.
«Que estás aqui a fazer? Que experiência tens deste tipo de trabalho?
Comportas-te como uma adolescente. Mas já não és nenhuma adolescente,
pois não? Não será altura de cresceres?»
Rompi em lágrimas. Tocou algures uma sineta. Ouvi Fernando suspirar
com o que me pareceu ser compaixão, e por momentos tive uma esperança
descontrolada de que ele estava prestes a pôr o braço em volta de mim.
Com a cabeça apertada entre as mãos ouvi centenas de crianças irromperem
das suas salas de aula e atravessarem o pátio a correr, entre gargalhadas e
berros, a caminho das aulas seguintes, ou saindo pelos portões para irem
ajudar as mães no amanho dos campos, e depois ouvi Carrapichano dar um
pontapé na perna da cadeira, derrubando-a e regressando à sala de aula pelo
meio do pátio.
19 A panela está ao lume e A colher está na tigela. (N. do T.)
12
Já tinha reparado que havia mais gente com este dom adolescente de
«entrar em espiral descontrolada», de «sair dos carris», mas, se os outros
tinham dentro de si algum mecanismo que libertavam em tempos de tristeza
ou trauma, eu não encontrei nenhum dentro de mim. Pelo contrário,
conscientemente, como um atleta que se decide por um novo regime de
treino, decidi sair dos carris. Mas ninguém me levou a sério, muito menos a
minha mãe, porque me considerava uma adolescente fiável. Quando outras
mães do bairro lhe saíam ao caminho na rua, o que acontecia muitas vezes,
a pedir-lhe conselho sobre os seus filhos e filhas transviados, escutava-as
amavelmente, mas sem nenhum interesse, e havia alturas em que abreviava
a conversa pousando a mão no meu ombro e dizendo qualquer coisa como:
«Pois olhe, nós temos muita sorte. Não temos problemas desses, pelo
menos por enquanto.» Tinha esta narrativa de tal modo cimentada na cabeça
que qualquer tentativa que eu fizesse para a contradizer era como se não
existisse para ela: estava agarrada a uma sombra de mim e seguia essa
sombra. E não tinha razão? De facto, eu não era como os meus novos
amigos, não era particularmente autodestrutiva ou despassarada. Andava
sempre com montes de preservativos (desnecessários), tinha pavor de
agulhas, demasiado medo de sangue em geral para admitir mutilar-me,
parava sempre de beber antes de ficar verdadeiramente incapacitada, tinha
um apetite muito saudável, e quando ia fazer a ronda dos bares desenfiava-
me do meu grupo – ou perdia-me dele de propósito – por volta da meia-
noite e um quarto para ir ter com a minha mãe, que tinha a regra de, todas
as noites de sexta-feira, ir esperar-me exatamente à meia-noite e meia em
frente da porta dos artistas do Camden Palace. Entrava no carro dela a
barafustar espalhafatosamente contra este sistema, ao mesmo tempo que,
secretamente, me sentia grata pela sua existência. Assim foi na noite em
que salvámos Tracey, uma noite de Camden Palace. Normalmente, o meu
grupinho ia lá a uma noite indie, o que eu mais ou menos tolerava, mas
dessa vez tínhamos ido a um concerto da pesada, de guitarras desenfreadas
que distorciam os enormes altifalantes, um barulho infernal, e a certa altura
percebi que não ia aguentar até à meia-noite – apesar de ter batalhado com a
minha mãe para obter exatamente esta concessão. Por volta das onze e meia
disse que ia ao quarto de banho e rompi aos tropeções pela velha sala, em
tempos um teatro de variedades, descobri um canto num dos reservados
vazios do balcão e tratei de me embebedar com a garrafinha de vodca barata
que trazia sempre no bolso da gabardina preta. Ajoelhei-me no veludo
rapado de onde as cadeiras tinham sido arrancadas e olhei lá para baixo,
para o mosh pit20. Senti uma espécie de satisfação triste ao pensar que
naquele momento era muito provavelmente a única pessoa naquele lugar
que sabia que Chaplin tinha atuado ali, e Gracie Fields, para não falar dos
há muito esquecidos números de cães, de famílias, de dançarinas de
sapateado, de acrobatas, de menestréis. Olhava para todos aqueles miúdos
brancos, suburbanos rebeldes, vestidos de preto, que se atiravam uns contra
os outros, e imaginava no lugar deles G. H. Elliott, «O Preto Cor de
Chocolate», vestido de branco da cabeça aos pés, cantando loas à Lua
argêntea. Ouvi correr a cortina atrás de mim: entrou um rapaz no meu
camarote. Era branco, muito magro, talvez da minha idade, nitidamente
pedrado, com marcas profundas de acne e cabelo pintado de preto caído
sobre a testa cheia de crateras. Mas tinha uns belos olhos azuis. E
pertencíamos os dois à mesma tribo de imitação: usávamos o mesmo
uniforme, a ganga preta, algodão preto, malha preta, cabedal preto. Julgo
que nem sequer nos falámos. Ele avançou e eu encarei-o, já de joelhos, e
deitei-lhe a mão à braguilha. Despimo-nos o mínimo possível, deitámo-nos
na alcatifa que mais parecia um cinzeiro e ficámos presos pela genitália
durante um minuto, mais ou menos, enquanto o resto dos nossos corpos
continuava separado, cada qual enfaixado nas suas camadas de preto. Foi a
primeira vez na minha vida que o sexo aconteceu sem a respetiva sombra,
sem a sombra das ideias acerca do sexo ou das fantasias a ele associadas
que só com o passar do tempo podem acumular-se. Naquela tribuna tudo foi
ainda exploratório, experimental, e técnico no sentido de imaginar
exatamente o que estava a acontecer onde. Na altura, isso ainda era
possível.
Parecia mal os góticos beijarem-se, pelo que nos mordemos suavemente
no pescoço como vampiros. Depois ele soergueu-se e disse numa voz muito
mais afetada do que eu esperava: «Mas não usámos nada.» Para ele também
seria a primeira vez? Eu disse-lhe que não fazia mal, numa voz que
provavelmente também o surpreendeu, e pedi-lhe um cigarro, que ele me
deu sob a forma de uma pitada de tabaco, uma Rizla e um quadrado de
cartão. Combinámos descer e beber uma snakebite21 juntos, mas a descer as
escadas perdi-me dele numa avalancha que ia a subir, e de súbito
desesperadamente necessitada de ar e espaço optei por sair e ir para
Camden à hora das bruxas. Toda a gente andava na rua meio embriagada,
saindo dos bares, nas suas gangas coçadas e o resto aos quadrados ou em
tons de preto, uns sentados no chão em círculos, cantando, tocando guitarra,
outros seguindo a indicação de um homem que os mandava para outro
homem que estava mais abaixo e tinha a droga que o primeiro devia ter,
mas não tinha. Sentia-me ao mesmo tempo brutalmente sóbria, sozinha, e
ansiosa por que a minha mãe aparecesse. Integrei-me num círculo de
desconhecidos, com ar de serem da minha tribo, e enrolei o tal cigarro.
Do sítio onde me tinha sentado via a travessa que ia dar ao Jazz Café e
espantou-me verificar como era diferente a multidão que se acumulava à
porta dele, não a sair mas a entrar, e nem todos bêbedos, porque eram gente
que gostava de dançar, que não precisava de se embriagar para convencer o
corpo a mexer-se. Nada do que vestiam era coçado, nem roto, nem
desfigurado com verniz corretor, tudo absolutamente impecável, as
mulheres brilhavam e encandeavam, e não havia ninguém sentado no chão,
pelo contrário, tinham sido feitos todos os esforços no sentido de separar a
clientela do chão: os sapatos dos homens tinham almofadas de duas
polegadas de ar, e os sapatos das mulheres tinham saltos com o dobro desta
altura. Perguntei a mim mesma para que seria a fila. Talvez alguma mulher
negra com uma flor no cabelo fosse cantar para eles. Ainda estive para ir até
lá e ver com os meus próprios olhos, mas nessa altura apercebi-me de um
alvoroço, à entrada da estação de metro de Mornington Crescent, um
problema qualquer entre um homem e uma mulher, gritavam um com o
outro, e o homem empurrava a mulher contra a parede, berrava-lhe e
mantinha-a presa pela garganta. Os rapazes com quem eu estava sentada
não se mexeram nem se mostraram muito preocupados, continuaram a tocar
guitarra ou então a enrolar os seus charros. Foram duas raparigas quem
decidiu agir – uma careca abrutalhada e a outra talvez a namorada dela – e
eu levantei-me ao mesmo tempo, não aos berros como elas, mas seguindo-
lhes rapidamente os passos. Quando nos aproximávamos, porém, a situação
tornou-se confusa, deixou de ser claro se a «vítima» estava a ser agredida
ou ajudada – reparámos que tinha as pernas bambas e que o homem estava
de certo modo a mantê-la de pé – e todas refreámos um pouco a nossa
aproximação. A rapariga careca ficou menos agressiva, mais solícita, e no
mesmo instante percebi que a mulher não era uma mulher, mas sim uma
rapariga, e que a conhecia: era Tracey. Corri para ela. Ela reconheceu-me,
mas não conseguia falar, limitou-se a estender a mão e sorrir com tristeza.
Estava a sangrar do nariz, por ambas as narinas. Senti um cheiro horrível e
olhei para baixo e vi vomitado, por toda ela e numa poça no chão. O
homem largou-a e recuou. Eu avancei, segurei-a e chamei-a pelo nome –
Tracey, Tracey, Tracey – mas ela revirou os olhos para dentro da cabeça e
senti-lhe o peso em cheio nos braços. Tratando-se de Camden, cada bêbedo
e pedrado que passava tinha uma teoria: ecstasy adulterado, desidratação,
excesso de álcool, provavelmente uma speedball22. O que era preciso era
mantê-la direita, ou deitá-la, ou dar-lhe água, ou abrir espaço e deixá-la
respirar, e eu começava a entrar em pânico quando, rasgando aquele
barulho, do outro lado da rua, vinha uma voz muito mais possante, uma voz
de verdadeira autoridade, que chamava por Tracey e por mim. A minha
mãe, parando à porta do Palace conforme combinado, à meia-noite e trinta,
no seu pequeno 2CV. Eu acenei-lhe e ela voltou a arrancar e parou ao pé de
nós. Confrontada com uma adulta de ar tão decidido e capaz, toda a gente
debandou, e a minha mãe nem sequer perdeu tempo a fazer as perguntas
que me pareciam necessárias. Separou-nos, deitou Tracey no banco de trás,
pôs-lhe a cabeça mais alta com dois dos muitos livros sérios que sempre a
acompanhavam, mesmo a meio da noite, e levou-nos diretas para o St.
Mary’s. Eu queria muito contar a Tracey a minha aventura no balcão do
teatro, dizer-lhe como, por uma vez, tinha sido verdadeiramente temerária.
Entrámos na Edgware Road: ela recuperou os sentidos e endireitou-se no
assento. Mas, quando a minha mãe tentou com jeito explicar o que tinha
acontecido e para onde íamos, Tracey acusou-nos de a raptarmos, de
tentarmos controlá-la, nós que desde sempre tentávamos controlá-la, desde
criança, que sempre pensámos que sabíamos o que era melhor para ela, o
que era melhor para toda a gente, tínhamos inclusivamente tentado roubá-la
à própria mãe, ao próprio pai! A sua raiva crescia na proporção da calma
impassível da minha mãe, até que, quando chegámos ao parque de
estacionamento da urgência, ela já ia inclinada para a frente no seu lugar,
cuspindo-nos no pescoço com a fúria. A minha mãe não se deixou demover
nem distrair. Mandou-me pegar na minha amiga pelo lado esquerdo
enquanto ela lhe pegava pelo direito e levámos Tracey, meio arrastada e
meio obrigada, para a sala de espera, onde, para nossa surpresa, se tornou
completamente colaborante, sussurrando «speedball» ao ouvido da
enfermeira, e depois esperando com um punhado de compressas contra as
narinas até ser vista por um médico. A minha mãe entrou com ela. Mais ou
menos um quarto de hora depois saiu – a minha mãe, quero eu dizer – e
disse que Tracey ia ficar a passar a noite, que tinham de lhe fazer uma
lavagem ao estômago, e que tinha dito – Tracey tinha dito – uma série de
coisas sexualmente explícitas, no meio do delírio, a um stressado médico
indiano que fazia o turno da noite. Ainda só tinha quinze anos. «Alguma
coisa de grave aconteceu àquela rapariga!», murmurou a minha mãe, sorveu
o ar entre os dentes e curvou-se sobre a secretária para assinar uns papéis in
loco parentis.
Neste contexto, a minha ligeira embriaguez não era motivo de
preocupação. Vendo a garrafa de vodca no meu casaco, a minha mãe tirou-
ma, sem discussão, e deitou-a num contentor hospitalar. À saída vi-me
refletida no espelho comprido da parede de um quarto de banho para
deficientes que por acaso tinha a porta escancarada naquele momento. Vi o
meu desbotado uniforme preto e a minha cara absurdamente coberta de pó-
de-arroz – é claro que já a tinha visto antes, mas não sob a crua iluminação
hospitalar, e agora já não era a cara de uma rapariga, era uma mulher que
me devolvia o olhar. O efeito foi muito diferente de tudo quanto vira até
então à luz fraca da lâmpada roxa, no meu quarto de paredes pretas.
Transpus o limiar: renunciei à vida gótica.
20 Área de público junto ao palco. (N. do T.)
NOITE E DIA
1
Tinha dezoito anos. Desde então não voltara a viver com a minha mãe, e
já começávamos a não saber bem como havíamos de nos relacionar nas
nossas novas encarnações: duas mulheres adultas que, de momento,
ocupavam o mesmo espaço. Ainda éramos mãe e filha? Amigas? Irmãs?
Companheiras de casa? Tínhamos horários diferentes, não nos víamos
muito, mas preocupava-me a possibilidade de estar a abusar da
hospitalidade dela, como um musical que se prolonga demasiado tempo em
cartaz. Quase todos os dias ia à biblioteca, tentava estudar para os exames,
enquanto ela trabalhava como voluntária, de manhã num centro para jovens
problemáticos e à noite num refúgio para mulheres negras e asiáticas. Não
digo que não fizesse este trabalho por convicção, e não fosse boa no que
fazia, mas a verdade é que ambas estas experiências ficam lindamente no
CV de uma pessoa que por acaso é candidata a vereadora nas eleições
municipais. Nunca a tinha visto tão ocupada. Parecia estar em todos os
pontos do bairro ao mesmo tempo, envolvia-se em tudo, e toda a gente
concordava que o divórcio lhe tinha feito bem, parecia mais nova do que
nunca: cheguei a recear que a dada altura, dentro de poucos anos,
convergíssemos as duas exatamente na mesma idade. Raramente saía à rua
no círculo eleitoral dela sem que viesse alguém ter comigo para agradecer
«tudo quanto a tua mãe está a fazer por nós», ou pedindo-me que lhe
perguntasse se tinha alguma ideia para a criação de um centro de ocupação
de tempos livres para as crianças acabadas de chegar da Somália, ou que
espaço local achava apropriado para uma aula de condução de bicicleta.
Não tinha sido eleita para nada, por enquanto, mas as pessoas que nos
rodeavam já a tinham coroado.
Um aspeto importante da campanha dela era a ideia de transformar a
antiga arrecadação das bicicletas do bairro num «espaço de encontro da
comunidade», o que a fez entrar em conflito com Louie e o seu bando, que
usavam a arrecadação para as suas atividades. A minha mãe contou-me
mais tarde que Louie mandou dois rapazes lá a casa para a intimidar, mas
ela «conhecia as mães deles» e não teve medo, e eles foram-se embora sem
levarem a sua avante. Não me custa a acreditar. Ajudei-a a pintar o barracão
de amarelo-vivo e fui com ela dar uma volta pelas empresas locais, à
procura de cadeiras empilháveis que já não usassem. O preço da entrada foi
fixado em uma libra, com direito a alguns refrescos simples, a Kilburn
Books vendia literatura apropriada numa mesa de cavalete a um canto.
Abriu em abril. Todas as sextas-feiras às seis da tarde apareciam oradores,
convidados pela minha mãe, toda a espécie de pessoas excêntricas do
bairro: poetas declamadores, ativistas políticos, conselheiros em
toxicodependência, um académico sem diploma que publicava livros em
edições de autor sobre conspirações históricas abortadas; um presunçoso
homem de negócios nigeriano que nos fez uma preleção sobre «as
aspirações dos negros»; uma angelical enfermeira guianesa que nos
evangelizou sobre a manteiga de carité. Foram também convidados muitos
oradores irlandeses – em sinal de respeito por essa população original, em
rápido desaparecimento – mas a minha mãe fazia orelhas moucas às lutas
de outras tribos e não hesitava em fazer apresentações pomposas («Onde
quer que se lute pela liberdade, a luta é a mesma!») de uns bandidos com
mau aspeto que espetavam bandeiras tricolores na parede do fundo e no fim
dos seus discursos faziam circular pela assistência baldes de recolha de
donativos para o IRA. Os temas que me pareciam obscuros e distantes da
nossa situação – as doze tribos de Israel, a história de Kunta Kinte, tudo o
que dissesse respeito ao Antigo Egito – eram os mais populares, e muitas
vezes, nessas ocasiões, mandavam-me à igreja pedir cadeiras emprestadas
ao diácono. Mas quando os oradores falavam dos aspetos mais prosaicos da
nossa vida quotidiana – crime no bairro, droga, gravidez adolescente,
insucesso escolar – podiam contar apenas com umas quantas jamaicanas
idosas que apareciam qualquer que fosse o tema, na verdade apareciam pelo
chá e bolachas. Mas eu é que não podia faltar a uma sessão, tinha de as
ouvir a todas, mesmo à do esquizofrénico que entrou na sala com uns
grossos maços de notas – presas por elásticos e organizadas segundo um
sistema qualquer que só ele conhecia – e nos falou com grande paixão sobre
a falácia racista da evolução que ousava associar o Sagrado Homem
Africano ao básico e rasteiro macaco, quando a verdade era que o Sagrado
Homem Africano descendia da luz pura, isto é, dos anjos, cuja existência
era provada não sei bem como – já me esqueci – pelas pirâmides. De vez
em quando falava a minha mãe: nesses dias a sala enchia. O seu tema era o
orgulho, sob todas as suas formas. Queria que nos lembrássemos de que
éramos belos, inteligentes, competentes, reis e rainhas, senhores de nós
mesmos, e, no entanto, quanto mais ela enchia a sala com esta luz
persistente, mais clara era a noção que eu tinha da forma e proporções da
enorme sombra que, afinal, deve pairar sobre nós.
Um dia sugeriu que eu falasse. Talvez uma jovem chegasse mais
facilmente aos jovens. Penso que andava sinceramente confusa por ver que
os seus discursos, apesar de populares, ainda não tinham evitado que as
raparigas engravidassem ou que os rapazes fumassem erva ou desistissem
da escola ou fossem roubar. Deu-me uma série de tópicos possíveis, sobre
nenhum dos quais eu sabia nada, e quando lhe disse isto mesmo ficou
furiosa comigo: «O teu problema é que nunca soubeste o que é lutar!»
Entrámos numa longa discussão. Ela atacou as matérias «fáceis» que eu
escolhera estudar, as faculdades «inferiores» a que me candidatara, a «falta
de ambição» que, na opinião dela, herdara do outro lado da família. Virei-
lhe as costas. Durante um bocado calcorreei a rua principal para cima e para
baixo, fumando cigarros, antes de reconhecer o inevitável e ir para casa do
meu pai. Mercy já se tinha ido embora havia muito tempo, desde então não
houvera outra, estava a viver outra vez sozinho e parecia-me em baixo,
triste como nunca o havia conhecido. O horário de trabalho – que ainda
começava todas as manhãs antes do nascer do Sol – era um novo tipo de
problema para ele: não sabia o que havia de fazer das tardes. Homem de
família por instinto, sem família sentia-se completamente perdido, e eu
perguntava-me se os outros filhos, os brancos, alguma vez vinham visitá-lo.
Não lhe perguntava – acanhava-me. O meu medo já não era a autoridade
dos meus pais sobre mim, mas sim que eles deitassem cá para fora os seus
próprios receios íntimos, a sua melancolia e os seus remorsos. No meu pai
já via isso acontecer muito. Tinha-se transformado numa daquelas pessoas
sobre as quais em tempos gostara de me falar, com quem se cruzava e de
quem sempre tivera pena, velhos de pantufas que viam os programas da
tarde até começarem os da noite, não se davam praticamente com ninguém,
não faziam nada. Um dia estava em casa dele quando apareceu Lambert,
mas depois de uma breve manifestação de alegria mútua mergulharam no
humor sombrio e paranoico de homens de meia-idade abandonados pelas
respetivas mulheres, agravado pelo facto de Lambert não ter trazido consigo
nenhum alívio sob a forma de erva. A televisão continuava ligada e eles
passaram a tarde sentados diante dela em silêncio, como dois náufragos
agarrados à mesma tábua, enquanto eu dava uma arrumadela à casa.
Por vezes lembrava-me que talvez fazer queixas da minha mãe ao meu
pai fosse uma forma de distração para os dois, uma coisa que podíamos
partilhar, mas nunca corria bem, porque subestimava seriamente o muito
que ele continuava a amá-la e a admirá-la. Quando lhe contei do espaço
comunitário, e de ela me obrigar a falar lá, disse: «Ah, sim, deve ser um
projeto muito interessante. Uma coisa para toda a comunidade.» Pareceu-
me melancólico. Como ficaria feliz, mesmo agora, a arrastar cadeiras pela
rua, a afinar o microfone, a mandar calar a assistência preparando a entrada
da minha mãe em cena!
2
24 Seguidor do movimento islâmico Tablighi Jama’at, que preconiza a missionação itinerante feita
por leigos (khuruj). (N. do T.)
Era manhã cedo e eu estava com o meu pai na estação de King’s Cross,
numa das nossas viagens de última hora para visitar uma universidade.
Acabáramos de perder o comboio, não porque tivéssemos chegado tarde
mas porque o preço do bilhete era o dobro do que eu dissera ao meu pai que
seria, e enquanto discutíamos o que fazer a seguir – vai agora um de nós, o
outro mais tarde, ou não vai nenhum, ou vamos os dois noutro dia, fora do
horário mais caro – o comboio tinha partido sem nós. Estávamos ainda a
discutir acesamente diante do painel de chegadas e partidas quando
avistámos Tracey, que subia a escada rolante do metro. Que visão! Calças
de ganga impecavelmente brancas e botinhas de salto alto pelo tornozelo e
casaco de cabedal cingido ao corpo e com o fecho subido até ao queixo:
parecia uma armadura de corpo inteiro. O humor do meu pai alterou-se.
Levantou os dois braços como um sinaleiro de aeroporto a orientar um
avião. Vi Tracey caminhar na nossa direção de uma forma estranhamente
formal, formalismo que escapou completamente ao meu pai, que a abraçou
como fazia antigamente, sem notar a rigidez do corpo dela junto ao seu ou a
imobilidade hirta dos braços. Soltou-a e perguntou-lhe pelos pais, e como
estava a correr-lhe o verão. Tracey deu uma série de respostas frias que, aos
meus ouvidos, não continham nenhuma informação. Vi que a cara dele se
ensombrava. Não propriamente por aquilo que ela estava a dizer, mas pela
forma como o dizia, um estilo totalmente novo que nada parecia ter que ver
com a rapariga rebelde e corajosa que ele julgava ter conhecido. Um estilo
que pertencia a uma rapariga completamente diferente, de um bairro
diferente, um mundo diferente. «Que é que te ensinam nessa escola
maluca», perguntou ele, «lições de elocução?» «Sim», disse Tracey com
sobranceria e empinou o nariz, e era evidente que queria que o assunto
ficasse por ali, mas o meu pai, que nunca foi muito bom a captar sinais, não
desistiu. Continuou a espicaçá-la, e Tracey, para se defender da troça dele,
pôs-se a enumerar as muitas aptidões que estava a desenvolver nas suas
aulas de verão de dança e esgrima, nas aulas de danças de salão e de teatro,
aptidões que não eram necessárias no bairro, mas indispensáveis para quem
queria atuar naquilo que então se chamava o «palco de West End». Eu tive
curiosidade de saber, mas não perguntei, de onde lhe vinha o dinheiro para
tudo. Enquanto ela se dirigia a mim, o meu pai ficou a olhá-la fixamente e
de repente interrompeu-a. «Mas estás a brincar, não estás, Trace? Deixa-te
disso – só aqui estamos nós! Não precisas de te armar em fina connosco.
Nós conhecemos-te, já te conhecemos desde que eras desta altura, connosco
não tens de fingir que és marquesa!» Mas Tracey ficou nervosa, pôs-se a
falar cada vez mais depressa, num tom de voz novo e estranho com que terá
pensado que ia impressionar o meu pai em vez de o irritar, um tom que não
era bem controlado e numa frase em cada duas resvalava artificialmente
para o nosso passado comum para depois avançar desajeitadamente para o
seu presente misterioso, até que o meu pai perdeu completamente a
compostura e desmanchou-se a rir na cara dela, em plena estação de King’s
Cross, diante de todos aqueles passageiros habituais da hora de ponta. Não
fez aquilo por mal – estava simplesmente divertido – mas eu percebi que ela
ficou magoada. Verdade se diga, porém, que desta vez Tracey não deu
largas ao seu mau feitio. Com dezoito anos já era perita na arte de deixar
fermentar a raiva que é própria das mulheres mais velhas, guardando-a para
usar mais tarde. Desculpou-se delicadamente com uma aula que ia ter.
Mais do que passarmos desta cerimónia formal para uma festa separada,
foi a cerimónia formal que se dissolveu instantaneamente para dar lugar a
uma festa. Todos quantos não haviam sido convidados para a cerimónia
invadiram o recreio, o perfeito alinhamento colonial das cadeiras desfez-se,
cada um tratou de se instalar onde podia. As vistosas professoras
encaminharam as suas turmas para zonas com sombra e distribuíram-lhes o
almoço, que tiraram, quente e bem fechado em grandes panelas, daqueles
enormes sacos de compras aos quadrados que também se vendem no
mercado de Kilburn, símbolo internacional das pessoas poupadas e
viajadas. No canto mais setentrional das instalações, a prometida instalação
sonora começou a tocar. Estavam lá todas as crianças que conseguiam
escapar aos adultos ou não tinham nenhum adulto a olhar por elas, a dançar.
Achei aquilo jamaicano, uma espécie de sala de baile, e como, pelos vistos,
me tinha perdido de toda a gente na transição súbita, deixei-me ficar por ali
a assistir ao baile. Havia dois modelos. O dominante era uma imitação
irónica das mães: dobradas sobre os joelhos, acocoradas, o traseiro
espetado, atentas aos pés com que marcavam o ritmo no chão. Mas de vez
em quando – principalmente se viam que eu estava a observá-las – a dança
saltava para outros tempos e lugares que me eram mais familiares, até ao
hip-hop e à ragga, até Atlanta e Kingston, e então via as crianças
espernearem, sacudirem o corpo, arrastarem os pés, rodopiarem. Um rapaz
bonito e de sorriso travesso, que não tinha mais de dez anos, sabia uns
passos particularmente obscenos e executava-os em movimentos curtos e
rápidos, de modo que a cada passo as raparigas que o rodeavam
escandalizavam-se, gritavam, corriam a esconder-se atrás de uma árvore,
para logo voltarem para o verem dançar mais um pouco. O rapaz estava de
olho em mim. Apontava constantemente na minha direção, berrando
qualquer coisa por cima da música, que eu não percebia bem: «Danças? É
pena! Danças? Dança! É pena!» Aproximei-me um pouco mais, sorri e
disse que não com a cabeça, embora ele soubesse que eu estava a considerar
essa possibilidade. «Ah, estás aqui», disse Hawa, por trás de mim, enfiou-
me o braço e levou-me de volta ao nosso grupo.
Debaixo de uma árvore reuniam-se Lamin, Granger, Judy, os nossos
professores e algumas crianças, todos chupando pequenas pirâmides,
envoltas em papel aderente, de sumo de laranja ou água gelada. Comprei
uma de água à rapariguinha que estava a vendê-las e Hawa ensinou-me a
rasgar um canto com os dentes e chupar o líquido. Quando acabei olhei para
o invólucro espremido que tinha na mão, como um preservativo vazio, e vi
que não havia sítio para o pôr a não ser no chão, e percebi que estas bebidas
em forma de pirâmide deviam ser a origem de todos aqueles plásticos
retorcidos que pejavam as ruas, os ramos das árvores, infestando bairros,
acumulando-se em todos os arbustos como se fossem flores. Meti a minha
ao bolso para adiar o inevitável e fui sentar-me entre Granger e Judy, que
estavam a meio de uma discussão.
«Eu não disse isso», sibilou Judy. «O que disse foi: “Nunca vi nada
assim.”» Fez uma pausa para chupar ruidosamente a bebida gelada. «E raios
me partam se não é verdade!»
«Pronto, está bem, talvez eles também nunca tenham visto algumas das
palermices que nós fazemos. O Dia de São Patrício. Mas que porra é essa
do Dia de São Patrício?»
«Ó Granger, eu sou australiana – e basicamente budista. Não podes atirar-
me com o Dia de São Patrício.»
«O que eu quero dizer é isto: nós amamos o nosso Presidente...»
«Alto aí! Fala por ti!»
«… porque é que estas pessoas não haviam de respeitar e amar a porra
dos seus líderes? Que se passa contigo? Não podes chegar aqui sem
conhecer o contexto e pores-te a fazer juízos…»
«Ninguém gosta dele», disse uma jovem de olhar vivo que estava sentada
em frente de Granger com um vestido puxado para baixo até à cintura e um
filho ao seio direito que entretanto mudou, dando-lhe o esquerdo. Tinha
uma cara bonita e inteligente e era pelo menos dez anos mais nova do que
eu, mas os seus olhos tinham a mesma expressão de experiência que eu
começara por ver em antigas colegas de escola durante tardes longas e
desconfortáveis em que as visitava e aos seus filhos desinteressantes, e aos
maridos ainda mais desinteressantes. Era uma camada de ilusão juvenil que
desaparecia.
«Tantas mulheres jovens», disse ela, baixando a voz, tirando uma das
mãos de debaixo da cabeça do filho e abarcando a multidão com um gesto
de indiferença. «Mas onde estão os homens? Rapazes, sim – mas homens
feitos? Não. Ninguém aqui gosta dele, nem do que tem feito. Quem pode
vai-se embora. Dai o salto, dai o salto, dai o salto, dai o salto.» Enquanto
falava apontava para alguns rapazes que dançavam perto de nós como se
tivesse o poder de os fazer desaparecer. Sorveu o ar entre os dentes, como a
minha mãe costumava fazer. «Acreditem, se eu pudesse também dava o
salto!»
Granger, que de certeza, tal como eu, estava convencido de que esta
mulher não falava inglês – ou pelo menos não conseguia acompanhar as
variações dele e de Judy sobre a língua –, acenava agora a cada palavra que
ela dizia, quase antes de a dizer. Toda a gente que estava perto – Lamin,
Hawa, alguns jovens professores, outras pessoas que eu não conhecia –
murmuravam e assobiavam, mas sem acrescentarem mais nada. A jovem
bonita endireitou-se na cadeira, reconhecendo-se como alguém que de
repente era investida com o poder do grupo.
«Se gostassem dele», disse, agora sem sussurrar, mas também, segundo
reparei, sem nunca o nomear, «não estariam aqui, connosco, em vez de se
atirarem à água ao encontro da morte?» Baixou os olhos e compôs o
mamilo, e eu fiquei a pensar que «eles», naquele caso, talvez não fosse uma
abstração, mas sim alguém com um nome, uma voz, uma relação com o
bebé que tinha nos braços.
«Dar o salto é loucura», sussurrou Hawa.
«Cada país tem a sua luta», disse Granger – ouvi um eco invertido
daquilo que Hawa me havia dito de manhã. «Lutas sérias na América. Para
nós, negros. Por isso nos faz bem à alma estarmos aqui, convosco.» Falava
devagar, refletidamente, do fundo da alma, que afinal tinha bem no meio
dos peitorais. Deu a impressão de que ia chorar. Por instinto, virei-me de
costas, para lhe dar privacidade, mas Hawa olhou-o nos olhos e, pegando-
lhe na mão, disse: «Vejam como o Granger nos sente verdadeiramente» –
ele apertou-lhe a mão com força – «não só com o cérebro, mas também com
o coração!» Um remoque pouco subtil dirigido a mim. A mulher jovem e
determinada assentiu com a cabeça, ficámos todos à espera de mais, parecia
que só ela podia dar um significado final ao episódio, mas o filho tinha
acabado de mamar e o discurso dela tinha terminado. Puxou o vestido
amarelo para o sítio e levantou-se para pôr o filho a arrotar.
«É fantástico termos a nossa irmã Aimee connosco», disse uma das
amigas de Hawa, uma mulher jovem e expressiva chamada Esther que,
como eu já tinha notado, detestava o silêncio. «O nome dela é conhecido no
mundo inteiro! Mas agora é uma de nós. Vamos ter de lhe dar um nome da
aldeia.»
«Sim», disse eu. Estava a observar a mulher do vestido amarelo que tinha
falado. Encaminhava-se agora para o baile, de costas muito direitas. Tive
vontade de ir atrás dela e conversar mais um pouco.
«Ela está aqui agora? A nossa irmã Aimee?»
«O quê? Oh, não... acho que teve de ir dar entrevistas, ou coisa assim.»
«Oh, é espantoso. Conhece o Jay-Z, conhece a Rihanna e a Beyoncé.»
«Pois conhece.»
«E conhece o Michael Jackson?»
«Conhece.»
«Achas que ela também é dos Illuminati? Ou só tem conhecidos
Illuminati?»
Eu ainda via a mulher de amarelo, que se distinguia no meio de tantas
outras, até que passou por trás de uma árvore e das retretes e não voltei a
vê-la.
«Eu não... Sinceramente, Esther, não me parece que nada disso exista.»
«Está bem», disse Esther, imperturbável, como se tivesse dito que gostava
de chocolate e eu que não gostava. «Aqui, para nós, existe, porque não há
dúvida de que tem muito poder. Por cá ouvimos falar muito disso.»
«Existe», confirmou Hawa, «mas nesta Internet, acreditem, não se pode
confiar em tudo. Por exemplo, o meu primo mostrou-me fotografias de um
branco, na América, que é do tamanho de quatro, tão gordo ele é! Eu disse:
“És muito parvo, isto não é uma fotografia de verdade, pá! Não é possível,
não pode existir ninguém assim.” Estes miúdos são tolos. Acreditam em
tudo o que veem.»
Na manhã a seguir à récita a campainha tocou, muito cedo, mais cedo que
um carteiro. Era Miss Isabel, em lágrimas. Os cofres tinham desaparecido,
com quase trezentas libras lá dentro, e não havia sinais de arrombamento.
Alguém tinha lá entrado durante a noite. A minha mãe, em robe, sentou-se
na borda do sofá, a esfregar os olhos contra a luz da manhã. Eu fiquei a
ouvir no corredor, presumida inocente desde o primeiro momento. A
conversa era sobre o que fazer com Tracey. Pouco depois mandaram-me
entrar e interrogaram-me e eu contei a verdade: fechámos as portas às onze
e meia, empilhámos as cadeiras todas, e no fim eu e Tracey fomos cada uma
para seu lado. Pensei que ela tinha enfiado a chave por baixo da porta, mas
é claro que pode tê-la metido ao bolso. A minha mãe e Miss Isabel viraram-
se para mim enquanto eu falava, mas ouviram sem grande interesse,
impassíveis, e quando acabei viraram-se outra vez uma para a outra e
retomaram a conversa. Quanto mais ouvia, mais alarmada ia ficando. Para
mim, havia na certeza delas qualquer coisa de obscenamente complacente,
tanto quanto à culpa de Tracey como quanto à minha inocência, apesar de
compreender, racionalmente, que Tracey devia estar envolvida, de uma
forma ou de outra. Ouvi as teorias delas. Miss Isabel achava que Louie
devia ter roubado a chave. A minha mãe tinha igual certeza de que Tracey
lha tinha dado. Não achei estranho, na altura, que nenhuma delas
considerasse a possibilidade de chamar a polícia. «Com aquela família...»,
disse Miss Isabel, e aceitou um lenço de papel para limpar os olhos.
«Quando ela aparecer no centro», prometeu-lhe a minha mãe, «vou ter uma
conversa com ela.» Foi a primeira vez que ouvi dizer que Tracey
frequentava o centro de juventude, aquele em que a minha mãe fazia
voluntariado, e ela olhou para mim, embaraçada. Levou uns instantes a
recuperar o sangue-frio, mas sem me olhar nos olhos começou a explicar
com cuidado que, «depois do incidente com a droga», tinha naturalmente
tratado de conseguir aconselhamento gratuito para Tracey, e não me tinha
dito nada por razões de «confidencialidade». Nem à mãe de Tracey tinha
dito. Agora percebo que nada disto era particularmente irrazoável, mas na
altura imaginei conspirações maternas por todo o lado, manipulações,
tentativas de controlar a minha vida e a vida das minhas amigas. Fiz um
escarcéu e fui enfiar-me no quarto.
Depois disso, tudo aconteceu rapidamente. Miss Isabel, na sua inocência,
foi falar com a mãe de Tracey e foi mais ou menos expulsa do apartamento,
regressando ao nosso com ar abalado, a cara mais corada que nunca. A
minha mãe voltou a mandá-la sentar e foi fazer chá, mas momentos depois
ouvimos o barulho da porta da rua a bater no caixilho: a mãe de Tracey,
impelida pela sua fúria indomada a atravessar a estrada, subiu as escadas e
irrompeu pela sala, onde permaneceu o tempo suficiente para proferir uma
contra-acusação, terrível, visando o Sr. Booth. Falava tão alto que eu ouvi-a
através do teto. Desci as escadas a correr e fui direita a ela, que enchia a
soleira da porta, desafiadora, transpirando desprezo – por mim. «Tu e a
merda da tua mãe», disse. «Sempre pensaram que eram melhores do que
nós, sempre acharam que tu eras a porra de uma menina de ouro, mas afinal
não és nada disso, pois não? A minha Tracey é que é, e o que vocês as duas
têm é inveja, e eu antes quero morrer do que permitir que se atravessem no
caminho dela, tem uma vida inteira pela frente e vocês não vão travá-la com
mentiras, nenhuma de vocês vai conseguir isso.»
Nunca nenhum adulto me tinha falado daquela maneira, como se me
desprezasse. Segundo ela, eu estava a tentar destruir a vida de Tracey, e a
minha mãe a mesma coisa, e o mesmo estavam a fazer Miss Isabel e o Sr.
Booth, e várias outras pessoas do bairro, e todas as mães ciumentas da aula
de dança. A chorar, corri pelas escadas acima e ela berrou: «Chora à
vontade, minha menina!» Já do andar de cima ouvi bater a porta da rua e
durante várias horas tudo ficou calmo. Antes do jantar, a minha mãe foi ao
meu quarto e fez-me uma série de perguntas delicadas – a única vez em que
o assunto do sexo foi explicitamente levantado entre nós – e eu deixei tão
claro quanto possível que o Sr. Booth nunca tinha posto um dedo em mim
ou em Tracey, nem ele nem ninguém, tanto quanto sabia.
Não serviu de nada: ao fim da semana foi proibido de continuar a tocar
piano na aula de dança de Miss Isabel. Não sei o que lhe aconteceu depois
disso, se continuou a viver no bairro, ou mudou de casa, ou morreu, ou
ficou simplesmente destruído pelos boatos. Pensei na intuição da minha
mãe – «Alguma coisa de grave aconteceu àquela rapariga!» – e senti que,
como de costume, tinha razão, e que, se tivéssemos feito as perguntas certas
a Tracey, no momento certo e com maior delicadeza, talvez ela nos tivesse
contado a verdade. Mas não, escolhemos mal o momento, encostámo-las à
parede, a ela e à mãe, e elas reagiram como seria de prever, com uma fúria
que levou à frente tudo o que encontrou pelo caminho – neste caso o pobre
Sr. Booth. E nós conseguimos uma coisa parecida com a verdade, muito
parecida, mas não exatamente a verdade.
Sexta parte
DIA E NOITE
1
Passados uns dias cortei com Rakim, cobardemente, sob a forma de uma
carta que lhe meti por baixo da porta. Nela assumia a culpa e dizia que
esperava que pudéssemos ser amigos, mas ele respondeu-me com outra,
escrita a tinta vermelha lívida, dizendo-me que sabia que eu fazia parte dos
dez por cento, e que daí em diante iria estar de atalaia contra mim. E
cumpriu a palavra. Durante o resto da minha vida na faculdade dava meia-
volta se me via aproximar-me, atravessava a rua se me avistava na cidade,
saía de qualquer sala de aula em que eu entrasse. Dois anos depois, na
cerimónia de entrega dos diplomas, uma mulher branca atravessou o salão
em passo acelerado e agarrou a minha mãe por um braço e disse: «Bem me
parecia que era a senhora – a senhora é uma inspiração para os nossos
jovens, é mesmo – mas tenho tanto prazer em conhecê-la! E este é o meu
filho.» A minha mãe virou-se com o rosto já marcado por uma expressão
que eu conhecia bastante bem – condescendência amável misturada com
orgulho, a mesma expressão que agora punha muitas vezes quando aparecia
na televisão, sempre que era chamada para «falar por quem não tem voz».
Estendeu a mão para cumprimentar o filho da mulher branca, que a
princípio não queria sair de trás da mãe e quando saiu fê-lo de olhos no
chão, com as rastas finas a encobrir-lhe a cara, mas mesmo assim eu
reconheci-o imediatamente, pelas Converse All Stars que espreitavam por
baixo do traje académico.
27 Niggaz Wit Attitudes. (N. do T.)
28 Poor Righteous Teachers: Grupo de hip-hop que promove a consciencialização dos negros. (N. do
T.)
29 «Oh, patrão, sou tão feliz neste navio de escravos que estou a dançar de alegria.» (N. do T.)
2
Como fiquei contente por ver Hawa, sinceramente contente! Era hora de
almoço quando abri a porta com um pontapé, e também era a época do caju.
Estava toda a gente disposta em círculos de cinco ou seis, acocorados em
volta de grandes alguidares de castanhas enegrecidas pelo fogo que agora
era preciso retirar das cascas queimadas e deitar para uma série de baldes
estampados de cores garridas. Até as crianças muito pequenas sabiam fazer
aquilo, pelo que toda a gente participava, mesmo quem fosse incompetente,
como Fern, que estava a ser alvo da chacota de Hawa por ter um monte de
cascas muito pequeno.
«Olha só para ti! Pareces a Beyoncé! Bem, espero que não tragas as
unhas muito arranjadas, minha menina, porque vais ter de mostrar aqui ao
pobre Fern como se faz. Até o Mohammed tem um monte maior do que ele
– e tem três anos!» Abandonei à porta a única mochila que trazia – também
já tinha aprendido a fazer uma mala – e fui envolver num abraço as costas
estreitas e fortes de Hawa. «Ainda nada de bebés?», sussurrou-me ela ao
ouvido, e eu sussurrei de volta a mesma pergunta, e abraçámo-nos ainda
com mais força e rimo-nos para o pescoço uma da outra. Para mim era
muito surpreendente que se tivesse gerado entre nós as duas uma ligação
tão forte, que atravessava continentes e culturas, mas era assim mesmo.
Porque da mesma forma que, em Londres e Nova Iorque, o mundo de
Aimee – e portanto o meu – havia eclodido em filhos, os dela e os das
amigas dela, tratando deles e conversando sobre eles, a ponto de mais nada
parecer existir além dos partos, e não apenas no domínio privado, mas
também todos os jornais, a televisão, canções esparsas numa ou noutra
rádio, me pareciam obcecadas com o tema da fertilidade em geral e da
fertilidade de mulheres como eu em particular, também Hawa estava sob
pressão na aldeia, à medida que o tempo passava e as pessoas se
convenciam de que o polícia de Banjul era uma simples manobra de
diversão, e de que Hawa era um novo tipo de rapariga, talvez não
circuncidada, sem dúvida solteira, sem filhos nem planos imediatos para os
ter. «Ainda nada de bebés?» tinha-se transformado no nosso código e refrão
para tudo isto, a nossa situação mútua, e sempre que trocávamos a frase
entre nós parecia a coisa mais divertida do mundo, ríamos e rosnávamos por
causa dela, e só de vez em quando me ocorria – e só quando estava de
regresso ao meu mundo – que tinha trinta e dois anos e Hawa era dez anos
mais nova.
Fern levantou-se do seu fracasso com os cajus e limpou a cinza das mãos
às calças: «Ela voltou!»
Trouxeram-nos imediatamente o almoço. Comemos a um canto do pátio,
com os pratos em cima dos joelhos, ambos com tanta fome que nem
reparámos que mais ninguém ia fazer um intervalo no descasque do caju
para almoçar.
«Estás com muito bom aspeto», disse Fern, com um grande sorriso.
«Muito feliz.»
A porta de zinco das traseiras da morança estava escancarada,
proporcionando uma vista das terras da família de Hawa. Vários acres de
cajueiros em tons púrpura, mato amarelo-claro e montes de cinza negra que
marcavam o sítio onde Hawa e as avós queimavam, uma vez por mês,
enormes piras de lixo doméstico e plásticos. Era, por assim dizer,
simultaneamente luxuriante e árido, e eu via beleza nesta mistura. Concluí
que Fern tinha razão: neste sítio era feliz. Com trinta e dois anos e três
meses, estava finalmente a ter o meu ano de folga.
«Mas o que é um “ano de folga”?»
«Olha, é quando somos jovens e vamos passar um ano a um país distante,
para aprender os seus costumes, comungar com a... comunidade. Nós nunca
pudemos dar-nos a esse luxo.»
«Quem? A tua família?»
«Sim, também, mas... estava a referir-me especificamente a mim e à
minha amiga Tracey. Costumávamos vê-los partir e quando regressavam
moíamos-lhes o juízo.»
Ri-me sozinha com esta recordação.
«“Moer o juízo”? Que é isso?»
«Olha, chamávamos-lhes “turistas da pobreza”... Sabes aqueles
estudantes que voltavam do ano de folga com aquelas estúpidas calças
étnicas e estatuetas africanas “esculpidas à mão”, caríssimas, feitas numa
fábrica qualquer do Quénia... Achávamo-los uns perfeitos idiotas.»
Mas talvez Fern tivesse sido um desses jovens viajantes hippies e
otimistas. Suspirou e levantou a tigela do chão para assim a poupar à
curiosidade de uma cabra.
«Que cínicas vocês eram... tu e a tua amiga Tracey.»
O descasque do caju ia continuar pela noite fora. Para não ter de ajudar,
sugeri uma caminhada até ao poço, com a desculpa esfarrapada de ir buscar
água para um duche matinal, e Fern, por norma tão consciencioso,
surpreendeu-me dizendo que me acompanhava. Pelo caminho contou-me a
história de uma visita a Musa, primo de Hawa, para se inteirar da saúde de
mais um filho. Quando lá chegou, a uma casa pequena, muito rudimentar,
que o próprio Musa havia construído no limite da aldeia, encontrou Musa
sozinho. A mulher e os filhos tinham ido visitar a mãe dela.
«Convidou-me a entrar, acho que se sentia um pouco sozinho. Reparei
que tinha uma pequena TV antiga com VHS incorporado. Fiquei admirado,
ele é sempre tão frugal, como todos os mashala, mas disse-me que uma
mulher do Corpo da Paz que ia regressar aos Estados Unidos lha tinha
deixado. Fez questão de me dizer que nunca via filmes de Nollywood nem
nenhuma das telenovelas nem nada desse tipo, isso era dantes. Agora só
“filmes puros”. Queria ver um? Eu disse que sim. Sentamo-nos, e basta-me
um minuto para perceber que é um daqueles vídeos de treino que vinham do
Afeganistão, rapazes todos vestidos de preto dando saltos mortais à
retaguarda com Kalashnikovs... E disse-lhe: “Ó Musa, tu percebes o que
dizem neste vídeo?” Porque havia uma lengalenga incessante em árabe –
como podes imaginar – e via-se mesmo que ele não entendia uma palavra.
E ele responde, com ar sonhador: “Gosto muito de os ver saltar!” Penso que
para ele aquilo era como um belo vídeo de dança. Um vídeo de dança
radical islâmica! Disse-me: “A forma como se movimentam dá-me vontade
de ser mais puro por dentro.” Pobre Musa. Mas pronto, achei que ias achar
graça. Porque sei que te interessas por dança», acrescentou, quando viu que
eu não me ria.
30 Crença nos seis artigos de fé do islamismo. (N. do T.)
31 Academia Iluminada para Raparigas. (N. do T.)
3
O primeiro email que recebi na minha vida veio da minha mãe. Enviou-
mo de um laboratório de informática na cave do University College de
Londres, onde acabava de participar num debate público, e eu recebi-o na
biblioteca da minha universidade. O conteúdo era um único poema de
Langston Hughes: obrigou-me a recitá-lo todo quando lhe telefonei nessa
mesma noite, para provar que tinha recebido o email. When night comes on
gently, Dark like me32 – O nosso curso foi o primeiro a receber endereços
eletrónicos, e a minha mãe, sempre atenta às inovações, comprou um
Compaq velho e maltratado, a que ligou um modem intermitente. Entrámos
juntas neste espaço novo que agora se abria às pessoas, uma ligação sem
princípio nem fim definidos, que estava sempre potencialmente aberta, e a
minha mãe foi uma das primeiras pessoas que conheci que compreenderam
isto e aproveitarem-no em pleno. A maioria dos emails enviados em
meados dos anos noventa eram tendencialmente longos e parecidos com
cartas: começavam e terminavam com fórmulas de saudação tradicionais –
as mesmas que antes se usavam em papel – e faziam questão de descrever o
cenário envolvente, como se o novo meio de comunicação tivesse feito de
cada pessoa um escritor. («Estou a escrever isto junto à janela, olhando o
mar cinzento-azulado, onde três gaivotas estão a mergulhar na água.») Mas
a minha mãe não escrevia emails assim, apanhou-lhes imediatamente o
jeito, e quando eu já tinha deixado a universidade havia algumas semanas,
mas continuava à beira do mar cinzento-azulado, começou a enviar-me
múltiplas mensagens de duas ou três linhas por dia, quase sem pontuação, e
sempre dando a sensação de uma coisa escrita a grande velocidade. Eram
todas sobre o mesmo: quando estava a pensar voltar? Não queria dizer ao
velho bairro social, tinha-se mudado de lá no ano anterior. Agora vivia num
bonito apartamento de rés do chão em Hampstead, com o homem a quem o
meu pai e eu nos habituáramos a chamar «o Destacado Ativista», glosando
um parêntese habitual da minha mãe («Estou a escrever um trabalho com
ele, é um destacado ativista, provavelmente já ouviste falar dele, não?», «É
um homem absolutamente maravilhoso, somos muito próximos, e, claro, é
um destacado ativista»). O Destacado Ativista era um bonito tobaguiano, de
ascendência indiana, com uma barbicha prussiana e uma abundante
cabeleira preta penteada para trás de modo a realçar uma única madeixa
branca. A minha mãe tinha-o conhecido dois anos antes numa conferência
antinuclear. Tinha participado em marchas de protesto com ele, escrito
trabalhos académicos sobre ele – e depois com ele – antes de passar a beber
com ele, jantar com ele, dormir com ele e agora ir viver com ele. Eram
frequentemente fotografados, de pé entre os leões de Trafalgar Square,
discursando um a seguir ao outro – como Sartre e Beauvoir, só que muito
mais bonitos – e agora, quando o Destacado Ativista era chamado a falar
por quem não tem voz, em manifestações ou em conferências, a minha mãe
estava quase sempre ao lado dele, no seu novo papel de «autarca e ativista
de base». Havia um ano que estavam juntos. Durante esse tempo a minha
mãe tinha-se tornado razoavelmente conhecida. Uma das pessoas a quem o
produtor de um programa de rádio podia telefonar pedindo-lhe que
participasse num debate de pendor esquerdista a realizar nesse dia. Talvez
não fosse o primeiro nome da lista, mas, se o presidente da União de
Estudantes, o diretor da New Left Review e o porta-voz da Aliança
Antirracista estivessem todos ocupados, podiam contar com a quase
permanente disponibilidade da minha mãe e do Destacado Ativista.
Tentei sinceramente ficar feliz por ela. Sabia que era aquilo que sempre
tinha desejado. Mas é difícil, a uma pessoa que está sem perspetivas, sentir-
se feliz por outra, e além disso sentia-me infeliz pelo meu pai, e mais ainda
por mim mesma. A perspetiva de voltar a viver com a minha mãe parecia
anular o pouco que tinha conseguido em três anos. Mas não podia
sobreviver por muito mais tempo com o meu crédito para estudos.
Deprimida, enquanto desocupava o quarto, folheando os meus inúteis
trabalhos escolares, olhei para o mar e senti que estava a acordar de um
sonho, que isso era tudo o que a faculdade havia sido para mim, um sonho,
situado a uma distância demasiado grande da realidade, ou pelo menos da
minha realidade. Mal tinha acabado de devolver o traje académico alugado
e já colegas que não pareciam muito diferentes de mim estavam de partida
para Londres, imediatamente, alguns para o meu bairro, ou outros
parecidos, de que falavam em termos arrebatados, como se fossem
fronteiras bravias a conquistar. Partiam de depósito na mão, para darem
como caução por andares ou mesmo moradias, aceitavam estágios não
remunerados ou concorriam a empregos em que por acaso o entrevistador
era um antigo colega do pai na universidade. Eu não tinha planos, nem
depósito, nem ninguém que pudesse morrer e deixar-me dinheiro: os poucos
parentes que tínhamos eram todos mais pobres do que nós. Não tínhamos
nós sido os de classe média, em matéria de aspirações e na prática? E talvez
para a minha mãe este sonho fosse a verdade, e pelo simples facto de o
sonhar sentisse que o tinha concretizado. Mas agora eu estava acordada, e
via com clareza: havia factos que eram imutáveis, inevitáveis. Por exemplo:
olhasse para elas por que ângulo olhasse, as oitenta e nove libras que tinha
no banco eram todo o meu dinheiro. Fazia refeições de feijão cozido sobre
pão torrado, enviava duas dúzias de cartas de candidatura, esperava.
Sozinha numa terra de onde toda a gente já se tinha ido embora, sobrava-
me tempo para matutar. Comecei a ver a minha mãe de um ângulo novo,
ácido. Uma feminista que sempre tinha sido apoiada por homens – primeiro
o meu pai e agora o Destacado Ativista – e que, apesar de estar sempre a
dar-me sermões sobre a «nobreza do trabalho», nunca, que eu soubesse,
havia tido um emprego que a sustentasse. Trabalhava «para o povo» – não
tinha salário. O meu receio era que o mesmo se pudesse dizer, mais ou
menos, do Destacado Ativista, que aparentemente tinha escrito muitos
panfletos, mas nenhum livro, e não tinha nenhum cargo oficial na
universidade. Pôr todos os ovos no mesmo cesto, abrir mão do nosso
apartamento – a única segurança que alguma vez conhecêramos – para ir
viver com ele em Hampstead, exatamente no tipo de fantasia burguesa que
sempre censurara, era para mim um sinal de má-fé e ao mesmo tempo de
irresponsabilidade extrema da parte dela. Todas as noites ia à marginal, a
uma cabine telefónica degradada que pensava que as moedas de dois pence
eram de dez, e tinha muitas conversas mal-humoradas com ela sobre o
assunto. Mas a única mal-humorada era eu, a minha mãe estava apaixonada
e feliz, cheia de afeto por mim, o que ainda lhe tornava mais difícil fixar-se
em pormenores práticos. Qualquer tentativa de discutir a situação financeira
exata do Destacado Ativista, por exemplo, valia-me respostas evasivas ou a
mudança de assunto. A única coisa sobre a qual estava sempre pronta a
falar era o apartamento de três quartos dele, aquele para onde queria que eu
fosse viver, comprado por vinte mil libras em 1969 com o dinheiro da
herança de um tio falecido e que agora valia «muito mais de um milhão».
Era um facto que, não obstante as suas tendências marxistas, nitidamente
lhe dava uma enorme sensação de prazer e bem-estar.
«Ó mãe, mas ele não vai vendê-lo, pois não? Portanto, isso é irrelevante.
Com os dois pombinhos lá dentro não vale nada.»
«Ouve. Porque é que não te metes no comboio e vens cá jantar? Quando o
conheceres vais adorá-lo – toda a gente adora este homem. Vão ter muito
que conversar, vocês os dois. Conheceu o Malcolm X! É um destacado
ativista...»
Mas ele, como tanta gente cuja vocação é mudar o mundo, pessoalmente
revelou-se terrivelmente mesquinho. O nosso primeiro encontro não foi
dominado por nenhuma conversa política ou filosófica, mas sim por uma
longa diatribe contra o vizinho do lado, também ele caribenho, que, ao
contrário do nosso anfitrião, era rico, tinha muitas obras publicadas, um
lugar numa universidade americana, era dono do resto do prédio e estava a
construir «uma porra de uma espécie de pérgula» no extremo do jardim.
Isto iria tapar ligeiramente a vista do Destacado Ativista para o Heath, e
depois do jantar, enquanto o sol de junho se punha finalmente, pegámos
numa garrafa de Wray & Nephew e, num ato de solidariedade, fomos para o
jardim olhar para a coisa semiconstruída. A minha mãe e o Destacado
Ativista sentaram-se à mesinha de ferro forjado, e lentamente enrolaram e
fumaram um cigarro de erva mal-amanhado. Eu exagerei no rum. A certa
altura o ambiente tornou-se melancólico e todos olhámos para os lagos, e
para além dos lagos, para o Heath propriamente dito, enquanto os
candeeiros vitorianos se acendiam e o panorama se esvaziava de tudo
menos dos patos e dos homens aventureiros. A luz dos candeeiros dava à
relva um tom laranja de purgatório.
«Imagina dois miúdos da ilha como nós, dois pés-descalços vindos do
nada, acabarem aqui...», murmurou a minha mãe, e deram-se as mãos e
encostaram as testas e eu, olhando para eles, senti que, se eles eram
absurdos, muito mais absurda era eu, uma mulher adulta, indignada com
outra mulher adulta que, bem vistas as coisas, havia feito tanto por mim,
por si própria e sim, pelo seu povo, e tudo, como bem dizia, vinda do nada
absoluto. Estaria com pena de mim própria por não ter nenhum dote? E
quando levantei os olhos do charro que estava a enrolar tive a sensação de
que a minha mãe me tinha lido os pensamentos. Mas não percebes a sorte
incrível que tens, disse, em estares viva, neste momento? As pessoas como
nós não podem entregar-se à nostalgia. Não temos guarida no passado. A
nostalgia é um luxo. Para o nosso povo, o tempo é agora!
Acendi o charro, servi-me de mais um dedo de rum e fiquei a ouvir de
cabeça baixa o grasnar dos patos e o discurso da minha mãe, até que ficou
tarde e o namorado fez-lhe uma festa na cara e eu vi que estava na hora de
ir apanhar o último comboio.
Em finais de julho mudei-me outra vez para Londres, não para a casa da
minha mãe, mas para a do meu pai. Propus-me dormir na sala de estar, mas
ele nem quis ouvir falar nisso, disse-me que se dormisse aí ia acordar com o
barulho das suas andanças matinais, e eu aceitei rapidamente esta lógica e
deixei que fosse ele a dormir dobrado no sofá. Em compensação, achei que
tinha mesmo de procurar emprego: o meu pai acreditava sinceramente na
nobreza do trabalho, tinha apostado a vida nisso, e fazia-me sentir
envergonhada com a minha preguiça. Às vezes não conseguindo voltar a
adormecer depois de o ouvir sair em bicos de pés, recostava-me na cama e
pensava em todo este trabalho, tanto do meu pai como da sua gente, que
remontava a muitas gerações. Mão de obra sem instrução, mão de obra
normalmente sem formação nem qualificação, uma parte honesta e outra
desonesta, mas toda ela desembocando de uma forma ou de outra no meu
atual estado de ociosidade. Quando era muito nova, oito ou nove anos, o
meu pai tinha-me mostrado a certidão de nascimento do pai dele, da qual
constavam as profissões dos seus avós – lavador de trapo e cortadora de
trapo – e isto, queria ele fazer-me compreender, era a prova de que a sua
tribo sempre fora definida pelo trabalho a que se dedicava, quisesse ou não.
A importância do trabalho era um ponto em que insistia tanto quanto a
minha mãe insistia na convicção de que os aspetos verdadeiramente
definidores eram a cultura e a cor. O nosso povo, o nosso povo. Pensei na
facilidade com que todos tínhamos usado a frase, semanas antes, naquela
bonita noite de junho em casa do Destacado Ativista, sentados a beber rum,
a admirar famílias de patos gordos, de cabeças viradas para dentro, bicos
recolhidos nas penas dos seus próprios corpos, amodorrados ao longo da
margem da lagoa. O nosso povo! O nosso povo! E agora, deitada no bafio
da cama do meu pai, dando voltas à frase na cabeça – à falta de coisa
melhor para fazer – ela fazia-me lembrar a sobreposição de grasnados e
balbuciados que saíam dos bicos daquelas aves e entravam diretamente nas
suas penas: «Eu sou um pato! Eu sou um pato!»
32 «Quando a noite chega de mansinho, / Negra como eu». (N. do T.)
4
Lolu, que nos esperara pacientemente no seu táxi, avançou com ele para a
beira-rio enquanto nós nos aproximávamos e abriu a porta do carro,
aparentemente com a intenção de me levar diretamente da água para o
carro, mais uma viagem de duas horas, sem almoço.
«Mas Lamin, eu tenho de comer!»
Reparei que durante toda a nossa visita à ilha ele não tinha largado a
ementa plastificada do café e agora mostrava-ma, a prova essencial,
irrefutável, num julgamento.
«É muito dinheiro por um almoço! A Hawa faz-nos o almoço quando
chegarmos.»
«Eu pago o almoço. Dá quanto, umas três libras por cabeça? Garanto-te,
Lamin, que para mim não é muito dinheiro.»
Seguiu-se uma discussão entre Lamin e Lolu que, para minha satisfação,
Lamin parecia estar a perder. Lolu enfiou as mãos no cinto como um
cowboy vitorioso, fechou a porta do carro e avançou a pé pela encosta.
«É muito», repetiu Lamin, com um grande suspiro, mas eu fui atrás de
Lolu e Lamin foi atrás de mim.
Sentámo-nos a uma das mesas de piquenique e comemos peixe assado em
folha de alumínio e arroz. Pus-me à escuta das conversas nas mesas
vizinhas, conversas estranhas, desiguais, que não conseguia decidir o que
eram: as pesadas reflexões de visitantes a um trauma histórico ou o
tagarelar desprendido de pessoas em férias de praia à hora dos aperitivos.
Uma mulher branca, alta e com a pele estragada pelo sol, de setenta anos
pelo menos, estava sentada ao fundo, sozinha numa mesa, rodeada por
montes de panos estampados e dobrados, tambores e estatuetas, T-shirts a
dizer NEVER AGAIN33, outros produtos locais. Ninguém se aproximava
da banca nem dava ares de querer comprar nada, e ao fim de algum tempo
ela levantou-se e foi de mesa em mesa, cumprimentando os clientes,
perguntando-lhes onde estavam instalados, de onde eram. A minha
esperança era que acabássemos de comer antes de ela chegar à nossa mesa,
mas Lamin comia penosamente devagar e a mulher apanhou-nos, e quando
ouviu dizer que eu não era de nenhum hotel, e que não era cooperante nem
missionária, ficou especialmente interessada e sentou-se à nossa mesa,
demasiado perto de Lolu, que estava curvado sobre o prato e não queria
olhar para ela.
«De que aldeia disse que era?», perguntou, embora eu não tivesse dito,
mas desta vez Lamin disse-lhe sem me dar a oportunidade de uma resposta
vaga. Fez-se luz.
«Oh, mas está ligada à escola! É claro. Bem, eu sei que há quem diga
cobras e lagartos daquela mulher, mas eu gosto muito dela, admiro-a,
sinceramente. Aliás, também sou de origem americana», disse, e eu
perguntei-me como é que ela podia pensar que alguém tivesse dúvidas a
esse respeito. «Normalmente não gosto dos americanos, em geral, mas ela é
daquelas que têm passaporte, não sei se me faço entender. Acho-a de facto
muito curiosa e apaixonada, e isso é muito bom para o país, toda a
publicidade que lhe dá. Ah, é australiana? Pois bem, seja como for, é das
minhas! Aventureira! Se bem que eu tenha vindo para cá por amor, não por
caridade. No meu caso, a caridade veio depois.»
Levou a mão ao coração, que estava meio exposto, um vestido estampado
multicolor com um decote assustadoramente cavado. Tinha uns seios
compridos, vermelhos e engelhados. Eu estava absolutamente decidida a
não perguntar por amor de quem ela tinha vindo aqui parar, nem a que boas
ações esta decisão acabara por levar, mas ela, intuindo a minha resistência,
decidiu usar uma prerrogativa de mulher idosa e contar-me na mesma.
«Era como estas pessoas, estava cá em férias. Não tencionava apaixonar-
me! Por um rapaz que tinha metade da minha idade.» Piscou-me o olho. «E
isso passou-se há vinte anos! Mas foi muito, muito mais do que um
romance de férias, como vê: juntos construímos tudo isto.» Olhou em volta
com orgulho para aquele monumento ao amor: um café com cobertura de
zinco, quatro mesas e três pratos na ementa. «Não sou rica, aliás era uma
humilde professora de ioga. Mas aquele pessoal de Berkeley, só é preciso
dizer-lhes: “Ouçam, a situação é esta, esta gente é desesperadamente
carente”, e digo-lhe, talvez fique surpreendida, aquele pessoal deita mãos à
obra, é que deita mesmo. Praticamente toda a gente quer colaborar. E
quando se lhes explica quanto um dólar vale aqui? Quando se lhes explica o
muito que se pode fazer com esse dólar? Oh, nem acreditam! Ao contrário,
lamentavelmente, dos meus filhos, do meu primeiro casamento, que não me
deram o mesmo apoio. Sim, às vezes são os estranhos que nos apoiam. Mas
eu digo sempre às pessoas daqui: “Não acreditem em tudo o que ouvem,
por favor! Porque nem todos os americanos são maus, de maneira
nenhuma.” Há uma grande diferença entre as pessoas de Berkeley e as de
Fort Worth, não sei se está a perceber. Eu nasci no Texas, numa família
cristã, e quando era nova a América era um lugar muito duro para mim,
porque era um espírito livre e não conseguia integrar-me. Mas parece-me
que agora está um bocadinho melhor.»
«Mas vive aqui, com o seu marido?», perguntou Lamin.
Ela sorriu, mas não pareceu particularmente agradada com a pergunta.
«No verão. Passo os invernos em Berkeley.»
«E ele vai consigo?», perguntou Lamin. Tive a impressão de que estava a
fazer uma inquirição subtil.
«Não, não. Fica cá. Tem muito que fazer cá, durante todo o ano. Ele é o
grande homem aqui e penso que se pode dizer que eu sou a grande mulher
lá! Portanto funciona muito bem. Para nós.»
Pensei naquela camada de ilusão juvenil que todas as amigas de Aimee
que eram mães recentes tinham aparentemente perdido, uma espécie de luz
nos olhos que tinha desaparecido, apesar de se tratar de pessoas célebres e
ricas, e depois olhei bem no fundo dos olhos grandes, azuis, meio loucos,
desta mulher, e o que vi foi uma escavação total. Custava a acreditar que
houvesse alguém capaz de representar o seu papel apesar de lhe terem
arrancado tantas camadas.
33 Nunca mais. (N. do T.)
5
Uma vez concluído o curso, da base que era a casa do meu pai,
candidatei-me a todos os possíveis empregos de entrada numa empresa de
comunicação social de que me lembrei, deixando todas as noites as cartas
de pedincha no balcão da cozinha para ele as pôr no correio de manhã, mas
passou-se um mês e nada. Sabia que o meu pai tinha uma relação difícil
com estas cartas – boas notícias para mim eram más notícias para ele,
significavam que eu ia sair de casa – e às vezes passava-me pela cabeça a
ideia paranoica de que ele nunca as tinha enviado, simplesmente as tinha
deitado no contentor do lixo ao fundo da nossa rua. Pensei no que a minha
mãe sempre me havia dito sobre a falta de ambição dele – acusação de que,
indignada, sempre o havia defendido – e tive de reconhecer que percebia
agora aonde ela queria chegar. Nada o fazia mais feliz do que as
esporádicas visitas dominicais do meu tio Lambert, em que nos estendíamos
os três em espreguiçadeiras no terraço coberto de trepadeiras do vizinho de
baixo do meu pai e fumávamos erva, comíamos os bolinhos de peixe
caseiros que eram a desculpa de Lambert para chegar duas ou três horas
atrasado, ouvíamos o World Service e víamos as composições da Jubilee
Line irromperem, a intervalos de oito ou dez minutos, das entranhas da
Terra.
«Isto é que é vida, não achas, querida? Acabou-se o faz isto, não faças
aquilo. Só nós, os amigos, juntos – iguais. É ou não é, Lambert? Quando é
que vais ser assim amigo do teu filho? Isto é que é vida, não achas?»
Seria? Não me lembrava de alguma vez o ter visto assumir a dinâmica de
poder parental que agora afirmava estar em perda, nunca o tinha ouvido
dizer «Faz isto, não faças aquilo». Amor e liberdade – foi o que me
ofereceu sempre, e só isso. E qual era o resultado? Deixar de trabalhar e
passar os dias pedrada como Lambert? Sem saber que outra coisa fazer,
voltei para um emprego péssimo, que tivera nas primeiras férias de verão da
faculdade, numa pizaria de Kensal Rise. Pertencia a um iraniano ridículo
chamado Bahram, muito alto e magro, que, apesar do ambiente que o
rodeava, se considerava um homem de qualidade. Chovesse ou fizesse sol,
gostava de usar um sobretudo comprido e elegante, cor de camelo, que
muitas vezes punha pelos ombros como um barão italiano, e chamava à sua
espelunca «restaurante», apesar de as instalações serem do tamanho do
quarto de banho de uma família pequena, num terreno de gaveto entalado
entre o terminal dos autocarros e a linha férrea. Nunca entrava ninguém
para comer, encomendavam por telefone ou compravam e levavam para
casa. Eu costumava estar ao balcão a ver os ratinhos em correria pelo
linóleo. Havia uma única mesa à qual um cliente podia sentar-se, mas a
verdade é que Bahram a ocupava o dia inteiro e metade da noite: tinha
problemas em casa, mulher e três filhas solteiras e difíceis, e o nosso palpite
era que preferia a nossa companhia a uma família assim, ou pelo menos
preferia gritar connosco a discutir com elas. No trabalho não tinha um dia
cansativo. Passava-o a comentar tudo quanto ia vendo na televisão do canto
superior esquerdo da loja, ou então a agredir-nos a todos verbalmente, da
sua posição sentada. Estava sempre furioso com tudo. Uma fúria cómica,
ostensiva, que se exteriorizava numa provocação constante e obscena de
quantos o rodeavam – provocação racial, sexual, política, religiosa – e que
quase todos os dias se saldava pela perda de um cliente ou empregado ou
amigo, e por isso acabava por me parecer mais pungentemente nociva para
ele próprio do que ofensiva para os outros. Mas pronto, era o único
entretenimento que tinha. Todavia, a primeira vez que lá entrei, tinha então
dezanove anos, não fui ofendida, não, fui saudada numa língua que mais
tarde compreendi que era parse, e de forma tão efusiva que tive mesmo a
sensação de que percebia o que ele estava a dizer. Que jovem, e bonita, e
claramente inteligente eu era! Era verdade que frequentava a universidade?
Mas como a minha mãe devia estar orgulhosa! Levantou-se e pegou-me no
queixo, virando-me a cara para um lado e para o outro, sorridente. Mas
quando lhe respondi em inglês franziu o cenho e observou atentamente,
criticamente, o lenço vermelho que me cobria o cabelo – tinha-me parecido
que seria adequado num sítio onde se produzia comida – e momentos
depois, uma vez estabelecido que apesar do meu nariz persa não era persa,
nem um bocadinho, nem egípcia, nem marroquina, nem árabe de nenhuma
espécie, cometi o erro de pronunciar o nome da ilha da minha mãe e toda a
cordialidade se dissipou: fui mandada para o balcão, onde a minha função
era atender o telefone, transmitir as encomendas à cozinha e coordenar os
entregadores. A minha tarefa mais importante era cuidar de um projeto que
lhe era muito querido: a Lista dos Clientes Proscritos. Tinha-se dado ao
cuidado de escrever esta lista num comprido rolo de papel que pregou na
parede atrás do meu balcão, nalguns casos com polaroides afixadas ao lado.
«Quase todos gente como tu», referiu-me de passagem, ao meu segundo dia
de trabalho.
«Não pagam, ou armam zaragata, ou passadores de droga. Não me faças
essa cara! Porquê ofendida? Tu sabes! É verdade!» Eu não suportava que
me ofendessem. Estava decidida a aguentar aqueles três meses de verão, o
tempo suficiente para acrescentar alguma coisa ao depósito para poder
começar a pagar uma renda logo que acabasse o curso. Mas estava a dar o
ténis, e isso deitou tudo por terra. Um entregador somali e eu
acompanhávamos avidamente as transmissões, e Bahram, que em condições
normais também as acompanharia – considerava o desporto a mais pura
manifestação das suas teorias sociológicas –, naquele ano estava furioso
com o ténis, e furioso connosco por gostarmos de ver, e sempre que nos
apanhava a vê-lo ficava ainda mais furioso, tudo porque o seu sentido da
ordem tinha sido profundamente subvertido pelo facto de Bryan Shelton
não ter sido eliminado à primeira.
«Porquê vocês veem isto? Hein? Hein? Porque é um dos vossos?»
Tinha o dedo espetado no peito estreito do entregador somali, Anwar,
senhor de uma grande luminosidade de espírito, uma notável capacidade de
alegria – apesar de nada na sua vida parecer constituir justa causa para isso
– e cuja reação foi bater as palmas e fazer um sorriso de orelha a orelha.
«Iá, meu! Nós por Bryan!»
«Tu idiota, isso nós já saber», e virou-se para mim, que estava atrás do
balcão. «Mas tu esperta, e isto faz-te mais idiota.» Como eu não reagi, veio
direito a mim e deu um murro no balcão: «Este Shelton – não vai ganhar.
Não pode.»
«Ele ganhar! Ele ganhar!», berrou Anwar.
Bahram pegou no comando e desligou a televisão para se fazer ouvir até
ao fundo da loja, e chegar mesmo à congolesa que esfregava as paredes do
forno das pizas.
«Ténis não é desporto para negros. Ter de compreender: cada povo tem o
seu desporto.»
«Qual é o seu desporto?», perguntei eu, sinceramente curiosa, e Bahram
pôs-se muito direito e garboso na cadeira. «Polo.» A cozinha explodiu em
gargalhadas.
«Vão-se todos foder filhos da puta!» Histeria.
A verdade é que eu não via os jogos de Shelton, nunca tinha ouvido falar
nele antes de Anwar me dizer quem ele era, mas a partir daí passei a vê-lo,
juntamente com Anwar era a sua fã número um. Comprei bandeirinhas
americanas para levar para o trabalho nos dias em que ele jogava, e nesses
dias tinha o cuidado de mandar para a rua todos os entregadores menos
Anwar. Juntos vitoriávamos Shelton, dançávamos pela loja sempre que ele
marcava um ponto, e quando vimos que ele estava a ganhar uns jogos a
seguir aos outros começámos a convencer-nos de que éramos nós que, com
as nossas danças e incitamentos, estávamos a empurrá-lo, e sem nós estaria
tramado. Havia alturas em que Bahram agia como se também acreditasse
nisto, como se nós estivéssemos a executar algum ritual antigo de vudu
africano. Sim, sem sabermos como enfeitiçávamos Bahram da mesma
forma que enfeitiçávamos Shelton, e à medida que os dias do torneio
passavam e Shelton se recusava a ser eliminado, eu reparava que as muitas
outras preocupações prementes de Bahram – o negócio, a mulher difícil, a
busca desgastante de pretendentes para as filhas –, tudo desaparecia para
ficar só a preocupação de garantir que não apoiássemos Bryan Shelton, e
que Shelton não chegasse à final de Wimbledon.
Certa manhã, ia o torneio a meio, eu estava ao balcão, chateada, quando
vi Anwar na sua bicicleta, subir o passeio a grande velocidade, travar de
qualquer maneira, desmontar e correr para o meu canto com a mão na boca
e um sorriso que não conseguia refrear. Bateu um exemplar do Daily Mirror
na minha frente, apontou para uma coluna nas páginas de desporto e disse:
«Árabe!» Nem queríamos acreditar. Chamava-se Karim Alami. Era
marroquino e ainda tinha uma classificação pior do que Shelton. O jogo
começava às duas. Bahram chegou à uma. Pairava no ar uma sensação de
grande ansiedade e expectativa, entregadores que só tinham de entrar às
cinco chegaram cedo, e a mulher da limpeza congolesa desatou a trabalhar
nos fundos da cozinha a uma velocidade nunca vista, na esperança de
chegar à parte da frente – e portanto à televisão – antes de o jogo começar.
A partida tinha cinco jogos. Shelton entrou forte e em várias alturas do
primeiro jogo Bahram limitou-se a pôr-se de pé em cima da cadeira e gritar.
Quando o jogo terminou com seis a três para Shelton, Bahram saltou da
cadeira para o chão e saiu disparado porta fora. Nós olhámos um para o
outro: era a vitória? Minutos depois voltou a entrar com um maço de
Gauloises na mão, que fora buscar ao carro, e começou a fumar cigarros
atrás de cigarros, cabisbaixo. Mas no segundo jogo as coisas pareciam
apresentar-se mais favoráveis para Karim, e Bahram sentou-se muito
direito, a seguir levantou-se e pôs-se a andar em círculos no espaço exíguo,
fazendo comentários, que tanto versavam a eugenia como as pancadas de
esquerda e os lobs e as duplas faltas, e quando chegámos a um desempate o
seu discurso ganhou fluência, fazendo círculos com o cigarro aceso, cada
vez mais confiante no seu inglês. O homem negro, informou-nos, é instinto,
é corpo em movimento, e é música, sim, claro, e é ritmo, toda a gente sabe
isso, e é velocidade, e é bonito, sim, talvez, mas fiquem sabendo que o ténis
é um jogo da mente – da mente! O homem negro pode ser boa força, bom
músculo, pode bater a bola com força, mas o Karim é como eu: pensa um,
dois passos à frente. Tem espírito árabe. Espírito árabe é máquina
complicada, delicada. Nós inventou matemática. Nós inventou astronomia.
Gente subtil. Dois passos à frente. O vosso Bryan está perdido.
Mas não estava: ganhou o jogo por sete a cinco, e Anwar tirou a vassoura
das mãos da mulher da limpeza congolesa – cujo nome eu desconhecia,
cujo nome nunca ninguém se lembrou de perguntar – e obrigou-a a dançar
com ele, ao som de uma música hi-life do transístor que levava consigo para
todo o lado. No jogo seguinte Shelton baqueou, um a seis. Bahram exultou.
Em qualquer parte do mundo, disse a Anwar, vocês em últimos! Umas
vezes em primeiro homem branco, judeu, árabe, chinês, Japão – depende.
Mas os teus perdem sempre. Quando começou o quarto jogo já nem sequer
fingíamos que éramos um restaurante de pizas. O telefone tocava e ninguém
atendia, o forno estava vazio, e estava toda a gente apinhada no espaço da
entrada. Eu estava sentada no balcão com Anwar, as pernas batendo
nervosamente no contraplacado barato dos painéis da frente até os fazerem
abanar. Vimos aqueles dois jogadores – na verdade quase perfeitamente
equilibrados – baterem-se num desempate prolongado e extenuante que
Shelton acabou por perder, seis a sete. Anwar rompeu em lágrimas
amargas.
«Mas Anwar, amiguinho: ainda falta um jogo», explicou o amável
cozinheiro bósnio, e Anwar sentiu a gratidão do homem sentado na cadeira
elétrica que acabou de vislumbrar o governador a correr pelo corredor, do
outro lado do vidro sintético. O último jogo foi rápido: seis a dois. Jogo,
partida, eliminatória – Shelton. Anwar abriu as goelas do rádio e de dentro
de mim jorrou todo o tipo de dança e esperneei, sapateei, deslizei – até fiz o
shim-sham. Bahram acusou-nos a todos de termos relações sexuais com as
nossas mães e saiu de rompante. Voltou cerca de uma hora depois. Era a
hora de maior movimento ao fim do dia, quando as mães decidem que não
conseguem encarar a ideia de fazer o jantar e o pessoal que passou o dia na
passa percebe de repente que não come nada desde o pequeno-almoço. Eu
estava agarrada ao telefone, tentando como de costume decifrar muitos
tipos de inglês macarrónico, das pessoas que telefonavam e da equipa de
entregadores, quando Bahram avançou para mim e me pôs o vespertino
diante da cara. Apontou para uma fotografia de Shelton, de braço levantado
em preparação para um dos seus potentes serviços, bola no ar diante de si,
parada no momento do contacto. Tapei o auscultador com uma das mãos.
«Que é? Estou a trabalhar.»
«Repara bem. Não negro. Mestiço. Como tu.»
«Estou a trabalhar.»
«Provavelmente é metade-metade, como tu. Portanto, está explicado.»
Em vez de Shelton olhei para Bahram, fixamente. Ele sorriu.
«Meio vencedor», disse.
Eu pousei o telefone, tirei o avental e vim-me embora.
Não sei como Tracey descobriu que eu estava outra vez a trabalhar na loja
de Bahram. Não queria que ninguém soubesse, eu própria tinha dificuldade
em encarar a verdade. Provavelmente viu-me através do vidro. Quando
entrou, numa tarde abafada de finais de agosto, causou sensação, com os
seus colãs justos e top a roçar o umbigo. Reparei que a indumentária dela
não tinha mudado com o tempo, não tinha necessidade de mudar. Não
labutava, como eu – como a maioria das mulheres que conhecia – para
encontrar formas de cobrir o corpo com os símbolos, formas e signos do
tempo. Era como se estivesse acima disso tudo, como se fosse intemporal.
Estava sempre vestida para um ensaio de dança e ficava sempre lindamente
assim. Anwar e os outros rapazes, à espera cá fora em cima das bicicletas,
tiraram-lhe um longo retrato frontal com os olhos e depois mudaram de
posição para apanharem aquilo a que os italianos chamam o lado B. Quando
ela se debruçou sobre o balcão para falar comigo, vi um deles tapar os olhos
com a mão, como se estivesse a sentir uma dor física.
«É bom ver-te. Como estava a beira-mar?»
Fez um sorriso trocista, confirmando a suspeita que eu já tinha de que a
minha vida universitária havia sido uma espécie de piada local, uma
tentativa débil de desempenhar um papel fora da classe a que pertencia,
tentativa falhada.
«Tenho visto a tua mãe. Agora está em todo o lado.»
«Pois está. Estou contente por voltar, acho. Tu estás com ótimo aspeto.
Estás a trabalhar?»
«Oh, faço várias coisas. Tenho grandes notícias. A que horas sais?»
«Acabei de entrar.»
«E que tal amanhã?»
Bahram aproximou-se e, com a maior cortesia de que era capaz,
perguntou a Tracey se por acaso era persa.
Três dias depois desta conversa voámos para Nova Iorque. Deixei recados
no gravador da minha mãe, escrevi-lhe mensagens, enviei-lhe emails, mas
ela só me ligou no fim da semana seguinte e, com o extraordinário sentido
de oportunidade que é próprio das mães, escolheu as duas e meia da tarde
de um domingo, no preciso momento em que o bolo de Jay saía das
cozinhas e caíam serpentinas do teto do Rainbow Room, e duzentos
convidados cantavam os «Parabéns a Você» acompanhados por violinistas
do naipe de cordas da Filarmónica de Nova Iorque.
«Que barulheira é essa? Onde estás?»
Abri as portas de correr para o terraço, saí e voltei a fechá-las.
«É o aniversário do Jay. Faz hoje nove anos. Estou no último andar do
Rockefeller.»
«Ouve, não quero ter uma discussão contigo pelo telefone», disse a minha
mãe, num tom de quem queria muito ter uma discussão pelo telefone. «Li
os teus emails, compreendo a tua posição. Mas espero que compreendas que
eu não trabalho para essa mulher – nem sequer para ti. Trabalho para o
povo britânico, e se comecei a interessar-me por aquela região, se tenho
vindo a ficar cada vez mais preocupada…»
«Sim, mamã, mas não podes ficar cada vez mais preocupada com outra
coisa qualquer?»
«Não te interessa quem são os vossos parceiros neste projeto? Eu
conheço-te, querida, e sei que não és nenhuma mercenária, sei que tens
ideais – fui eu que te criei, bolas, portanto sei. Estudei o problema a fundo,
a Miriam também, e chegámos à conclusão de que nesta altura a questão
dos direitos humanos está a ficar verdadeiramente insustentável – oxalá não
estivesse, para vosso bem, mas está. Querida, não queres saber…»
«Mamã, desculpa – ligo-te mais tarde – tenho de desligar.»
Fern, num fato que lhe caía mal, claramente alugado, um pouco curto nos
tornozelos, vinha na minha direção, acenando desajeitadamente, e acho que
só nesse momento me apercebi do ponto a que tinha chegado o meu
isolamento. Para mim ele era uma figura recortada e colada na fotografia
errada, no momento errado. Sorriu, abriu as portas de correr, com a cabeça
tombada para um lado como um terrier: «Ah, mas estás lindíssima.»
«Porque é que ninguém me disse que vinhas? Porque é que tu não me
disseste?»
Ele passou os dedos por dentro de uns caracóis meio domados por um gel
barato e fez um ar de cordeirinho, qual rapazinho de escola apanhado numa
falta de pouca importância.
«Bem, vim tratar de um assunto confidencial. É ridículo, mas a verdade é
que não podia dizer-te, desculpa. Quiseram manter a coisa em sigilo.»
Olhei para onde ele estava a apontar e vi Lamin. Estava sentado na mesa
principal, de fato branco, como o noivo num casamento, com Judy de um
lado e Aimee do outro.
«Jesus Cristo.»
«Não, não, penso que não foi ele. A não ser que trabalhe para o
Departamento de Estado.» Deu um passo em frente e pousou as mãos no
muro de proteção. «Mas que vista!»
Tínhamos a cidade inteira aos pés. Eu encostei-me ao muro, preferindo
observar Fern, confirmar que era real, e depois ver Lamin receber uma fatia
de bolo de um empregado que passava. Tentei encontrar uma explicação
para o pânico que sentia. Era mais do que o simples facto de ser mantida na
ignorância, era uma rejeição da forma como ordenava a minha realidade
pessoal. Porque na minha cabeça, naquela altura – como talvez aconteça
com a maioria dos jovens – eu era o centro das coisas, a única pessoa no
mundo com verdadeira liberdade. Andava daqui para ali, a apreciar a vida
tal como ela se me apresentava, mas todas as outras pessoas que faziam
parte destes cenários, todas as figuras secundárias, só tinham lugar nos
compartimentos em que eu as havia colocado. Fern eternamente na casa
cor-de-rosa, Lamin confinado aos caminhos de terra da aldeia. Que estavam
a fazer aqui, agora, na minha Nova Iorque? Não sabia como conversar com
nenhum deles no Rainbow Room, não sabia ao certo qual devia ser a
relação entre nós, ou de que é que, neste contexto, era devedora ou credora.
Tentei imaginar o que Lamin estava a sentir neste preciso momento,
finalmente do outro lado da matriz, e se tinha alguém que o guiasse por este
desconcertante mundo novo, alguém que lhe explicasse as obscenas
quantidades de dinheiro que tinham sido esbanjadas aqui em coisas como
balões de hélio e pãezinhos com tinta de choco e quatrocentas peónias. Mas
quem estava ao lado dele era Aimee e não eu, e ela não tinha esse tipo de
preocupações, isso via eu daqui, este era o seu mundo e Lamin tinha apenas
sido convidado para entrar nele como podia ter sido qualquer outra pessoa,
como um privilégio e uma dádiva, da mesma forma que antigamente as
rainhas ofereciam a sua proteção com toda a naturalidade. Na cabeça dela
tudo era destino, sempre fora, e, portanto, essencialmente simples. Era
exatamente para isso que eu e Judy e Fern e todos os outros éramos pagos:
para mantermos a vida simples – para ela. Caminhávamos por entre os
limos emaranhados do fundo para que ela pudesse flutuar à superfície.
«Mas pronto, ainda bem que vim. Queria ver-te.» Fern estendeu o braço e
afagou-me ao de leve o ombro direito, e na altura pensei que estava
simplesmente a sacudir algum bocadinho de pó, tinha a cabeça noutro lado,
fixada nesta imagem de mim presa nos limos e Aimee flutuando
serenamente por cima da minha cabeça. Depois a outra mão dele pousou no
meu outro ombro: continuei sem compreender. Tal como todos os outros
convidados para a festa, com a possível exceção de Fern, não conseguia
tirar os olhos de Lamin e Aimee.
«Meu Deus, olha para aquilo!»
Fern olhou rapidamente de relance para onde o meu dedo apontava e
apanhou Lamin e Aimee no momento de trocarem um beijo breve. Acenou
com a cabeça: «Ah, quer dizer que já nem escondem!»
«Jesus Cristo. Vai casar com ele? Vai adotá-lo?
«Que interessa isso? Não quero falar dela.»
De repente, Fern prendeu as minhas mãos nas suas, e quando me virei
descobri que estava a fitar-me com uma intensidade cómica.
«Que estás a fazer, Fern?»
«Estás a fingir que és cínica» – continuava a procurar os meus olhos com
a mesma força com que eu procurava evitar os dele – «mas o que eu acho é
que estás com medo.»
No sotaque dele, isto parecia uma fala de uma das telenovelas mexicanas
a que costumávamos assistir com metade da aldeia, às sextas-feiras à tarde,
na sala de televisão da escola. Não consegui conter-me – ri-me. As
sobrancelhas dele juntaram-se numa linha triste.
«Por favor não te rias de mim.» Olhou-se, e eu também o olhei: penso
que era a primeira vez que o via sem ser em calções de lona. «A verdade é
que não sei como hei de andar vestido em Nova Iorque.»
Eu libertei as minhas mãos das mãos dele.
«Fern, não sei o que pensas que isto é. A verdade é que não me
conheces.»
«De facto não é fácil conhecer-te bem. Mas quero conhecer-te. Estar
apaixonado é isso mesmo. Querer conhecer melhor alguém.»
Pareceu-me que a situação era tão constrangedora que ele tinha
simplesmente de desaparecer naquele momento – da mesma forma que
cenas deste tipo nas telenovelas são cortadas para entrar um anúncio –
porque se assim não fosse não via como íamos atravessar os dois minutos
seguintes. Ele não se mexeu do sítio. Pegou em duas flutes de champanhe
da bandeja de um empregado que ia a passar e bebeu a sua de um gole só.
«Não tens nada para me dizer? Estou a oferecer-te o meu coração!»
«Oh meu Deus – Fern – por favor! Não digas essas coisas! Eu não quero
o teu coração! Não quero ser responsável pelo coração de mais ninguém.
Por nada de mais ninguém!»
Ele pareceu confuso: «Uma ideia estranha. Enquanto estás viva neste
mundo és responsável.»
«Por mim mesma.» Desta vez fui eu que bebi a flute inteira. «Só quero
ser responsável por mim mesma.»
«Há alturas nesta vida em que temos de correr riscos por outras pessoas.
Repara na Aimee.»
«Reparo na Aimee?»
«Não podes deixar de a admirar. Não se envergonha. Ama este rapaz.
Provavelmente isto vai criar-lhe uma data de problemas.»
«Criar-nos, queres tu dizer. Vai criar-nos uma data de problemas.»
«Mas não se importa com o que os outros pensam.»
«Isso é porque, como de costume, não faz ideia daquilo em que se está a
meter. É tudo um absurdo.»
Estavam encostados um ao outro, a ver o ilusionista, um cavalheiro
elegante com um fato de Savile Row e laço, que já tinha estado no oitavo
aniversário de Jay. Estava a fazer o truque das argolas chinesas. A luz
entrava a jorros no Rainbow Room e as argolas encaixavam-se e
desencaixavam-se, apesar da sua aparente solidez. Lamin estava fascinado –
toda a gente estava. Eu ouvi, muito baixo, música de oração chinesa e
compreendi, no abstrato, que devia fazer parte do efeito pretendido.
Percebia o que toda a gente estava a sentir, mas não conseguia acompanhá-
los e não sentia o mesmo.
«Estás com ciúmes?»
«Gostava de conseguir iludir-me como ela. Tenho ciúmes de todas as
pessoas inconscientes como ela. Um pouco de ignorância nunca a deteve.
Nada a detém.»
Fern esvaziou o copo e pousou-o desajeitadamente no chão.
«Não devia ter falado. Penso que interpretei mal a situação.»
A linguagem amorosa dele tinha sido muito pateta, mas agora, que
regressava à mais habitual linguagem administrativa, tive pena. Virou
costas e voltou para dentro. O ilusionista terminou a atuação. Vi Aimee
levantar-se e aproximar-se do palco pequeno e arredondado. Jay foi
chamado, ou pelo menos juntou-se a ela, depois Kara, depois Lamin. Foram
rodeados por todos os presentes, que formavam um crescente de adoração.
Pelos vistos, eu era a única pessoa que continuava cá fora, a olhar lá para
dentro. Com um braço Aimee envolvia Jay e Kara, com o outro erguia a
mão esquerda de Lamin em pose de triunfo. Toda a gente bateu palmas e
deu vivas, num rumor abafado pelo vidro duplo. Aimee manteve aquela
posição, uma sala cheia de máquinas fotográficas disparou os flashes. Do
sítio em que eu estava, era uma pose que fundia muitos períodos da vida
dela num só: mãe e amante, irmã mais velha, melhor amiga, superstar e
mulher de posses. Mas porque é que havia de apoderar-se de tudo, ter tudo,
fazer tudo, ser toda a gente, em todos os lugares, em todos os momentos?
7
Eu era a única pessoa com quem os dois amantes podiam conviver fora de
horas. Não podiam ir ao Coach and Horses com o resto do elenco, mas
sentiam a mesma necessidade de um suplemento de adrenalina com alto
teor de álcool no fim do espetáculo, pelo que iam ao Colony Room, onde
não ia mais ninguém da companhia, mas do qual ele era um membro antigo.
Muitas vezes convidavam-me para ir com eles. Aqui todos o tratavam por
«Chalky», e sabiam o que ele bebia – uísque e ginger ale – e havia sempre
um à sua espera quando entrava, às dez e quarenta e cinco em ponto. Ele
adorava aquilo, e a alcunha estúpida, porque era um hábito antigo e
elegante atribuir alcunhas, e tudo quanto fosse elegante e inglês era objeto
da sua devoção. Reparei que raramente falava do Quénia ou de África. Uma
noite tentei fazer-lhe perguntas sobre a sua terra, mas ele irritou-se: «Oiçam,
meninas, vocês, que cresceram aqui, pensam que o meu país é só crianças
com fome e Live Aid ou lá o que pensam que é. Pois bem, o meu pai era
professor universitário de economia, a minha mãe fazia parte do governo,
eu cresci num condomínio muito bonito, fiquem sabendo, com criados,
cozinheira, jardineiro...» Continuou mais algum tempo neste tom e depois
voltou ao seu tema preferido, os dias de glória do Soho. Eu senti-me
envergonhada, mas também achei que ele me tinha interpretado mal de
propósito: claro que sabia que o mundo dele existia – mundos como aquele
existem em todo o lado. Não era isso que queria saber.
A sua verdadeira lealdade ia para o bar propriamente dito, afeição que se
esforçava por traduzir para duas raparigas que mal sabiam quem era Francis
Bacon e a única coisa que viam era uma sala estreita, manchada de fumo, as
pálidas paredes verdes e a anarquia infrene – «merda artística», como lhe
chamava Tracey – que tomava conta de todas as superfícies. Para irritar o
amante, Tracey gostava de alardear a sua ignorância, mas, embora fingisse
o contrário, dava-me a sensação de que muitas vezes estava interessada nas
histórias compridas, digestivas e embriagadas que ele contava, sobre
artistas, atores e escritores que conhecera, suas vidas e obras, com quem
tinham dormido e o que tinham bebido ou tomado e como tinham morrido.
Quando Chalky ia ao quarto de banho ou saía para comprar cigarros de
erva, muitas vezes a surpreendi em contemplação de um ou outro quadro
próximo, acompanhando o movimento do pincel, pensava eu, olhando
concentradamente, com a acutilância que punha em tudo. E quando ele
voltava cambaleante e retomava o assunto, ela revirava os olhos, mas estava
a ouvir, tenho a certeza. Chalky tinha conhecido Bacon superficialmente, o
suficiente para beberem um copo juntos, e haviam tido um bom amigo
comum, um jovem ator chamado Paul, homem de «grande beleza, grande
encanto pessoal», filho de pais ganeses, que durante algum tempo vivera em
Battersea com o namorado e com Bacon num triângulo amoroso. «E o que
têm de compreender», disse Chalky (depois de um certo número de uísques
havia sempre coisas que tínhamos de compreender), «o que têm de
compreender é que aqui no Soho, naquele tempo, não havia negros, não
havia brancos. Nada de tão banal. Não era como em Brixton, não, aqui
éramos todos irmãos, na arte, no amor» – apertou o braço de Tracey – «em
tudo. Depois o Paul conseguiu aquele papel em Um Gosto de Mel – viemos
cá comemorar – e toda a gente falava nisso, e sentíamo-nos o centro de
tudo, da Londres dançante, da Londres boémia, da Londres literária, da
Londres teatral, e este tinha passado a ser também o nosso país. Era lindo!
Podem crer, se Londres começasse e acabasse em Dean Street tudo seria...
felicidade.»
Tracey deslizou do colo dele para o banco alto. «És um bêbedo nojento»,
resmungou, e o barman, que ouviu o que ela tinha dito, riu-se e disse-lhe:
«Receio bem que essa seja uma condição para se ser sócio disto, linda...»
Chalky virou-se para Tracey e beijou-a desajeitadamente: «Come, come,
you wasp; i’ faith, you are too angry...»35 «Vejam só o que eu tenho de
aturar!» exclamou Tracey, repelindo-o. Chalky tinha uma predileção por
baladas shakespearianas de pendor elegíaco, que faziam Tracey trepar pelas
paredes verdes, em parte porque tinha inveja da bela voz dele mas também
porque quando Chalky começava a cantar coisas que metiam salgueiros e
bruxas infiéis era sinal seguro de que teriam de o levar quase ao colo pela
escada íngreme e bamba, enfiá-lo num táxi e reenviá-lo para junto da
mulher branca, com a corrida paga com dinheiro que Tracey lhe havia
surripiado da carteira, tirando normalmente um pouco mais do que o
estritamente necessário. Mas era uma mulher pragmática, só acabava a
noite quando tivesse aprendido alguma coisa. Estou convencida de que
estava a tentar recuperar o que tinha perdido nos últimos três anos e eu
tinha ganhado: uma educação gratuita.
35 «Então, então, vespa minha, pois que tanto te abespinhas...» William Shakespeare, O Amansar da
Fera, II Ato, Cena 1. (N. do T.)
Sétima parte
ÚLTIMOS DIAS
1
Durante oito anos não voltei a ver Tracey. Era uma noite de maio
anormalmente quente, aquela em que saí pela primeira vez com Daniel
Kramer. Vinha à cidade de três em três meses e era um dos favoritos de
Aimee, no sentido em que, por ser bonito, não se confundia completamente
com todos os outros contabilistas e consultores financeiros e advogados de
direitos de autor que ela consultava regularmente, e por isso na mente dela
tivera direito a coisas como um nome, qualidades como uma «boa aura» e
um «sentido de humor nova-iorquino» e alguns pormenores biográficos que
conseguira fixar. Nasceu em Queens. Frequentou Stuyvesant. Joga ténis.
Tentando manter as opções tão abertas quanto possível, eu tinha sugerido
que fôssemos ao Soho e «improvisássemos», mas Aimee quis que
passássemos primeiro lá por casa a tomar uma bebida. Não era de modo
nenhum frequente, este tipo de convite íntimo, informal, mas Kramer não
me pareceu surpreendido ou alarmado quando o recebeu. Os vinte minutos
a que tivemos direito passaram-se sem que desse sinais de um
comportamento de cliente. Admirou a arte – sem exagerar – ouvindo
delicadamente Aimee repetir tudo aquilo que o negociante que lhe vendia a
arte lhe tinha dito sobre a arte quando a comprou, e rapidamente nos vimos
livres de Aimee, da imponência opressiva da casa, esgueirando-nos pelas
escadas abaixo, ambos ligeiramente tontos do champanhe de qualidade,
saindo para a Brompton Road e mergulhando numa noite quente, abafada,
húmida, a ameaçar trovoada. Ele quis atravessar a cidade a pé – tínhamos
uns vagos planos de ir ver que filmes estavam a passar no Curzon – mas eu
não era nenhuma turista e aqueles eram os meus tempos de encantamento
com os saltos altos. Propunha-me procurar um táxi quando ele, por
brincadeira, desceu o passeio e fez sinal a um triciclo que ia a passar.
«Tem uma grande coleção de arte africana», disse, enquanto nos
instalávamos nos assentos de leopardo – disse aquilo por dizer, mas eu,
precavida contra qualquer sinal de presença de um cliente, interrompi-o:
«Bem, não sei ao certo o que queres dizer com “arte africana”.»
Ele pareceu surpreendido pelo meu tom, mas conseguiu esboçar um
sorriso neutro. Dependia do negócio de Aimee e eu era uma extensão de
Aimee.
«Quase tudo aquilo que viste», comecei eu num tom mais próprio de uma
sala de aula, «é na verdade Augusta Savage. Logo, Harlem. Foi onde ela
viveu quando veio para Nova Iorque – a Aimee, quero eu dizer. É claro que
é uma grande apoiante das artes em geral.»
Agora Kramer parecia chateado. Eu fui chata. Não voltámos a falar até o
triciclo parar à esquina da Shaftesbury Avenue com a Greek Street. Quando
encostámos ao passeio fomos surpreendidos pela existência de um rapaz do
Bangladesh, cuja realidade independente havíamos esquecido por completo
até àquele momento, mas que inegavelmente nos tinha transportado até ali e
agora se virava no assento do triciclo, a cara encharcada em suor, com
dificuldade em explicar, por entre uma respiração ofegante, quanto custava
por minuto aquela forma de labuta humana. No cinema não havia nada que
quiséssemos ver. Com uma disposição ligeiramente tensa, a roupa colada ao
corpo por causa do calor, continuámos até Piccadilly Circus, sem sabermos
a que bar havíamos de ir, ou se em vez disso devíamos comer, mas já a
considerar a noite um fracasso, olhando sempre em frente e confrontados, a
cada passo, com os gigantescos cartazes luminosos dos teatros. Foi em
frente de um deles, um pouco mais adiante, que parei de repente. Uma
reposição do musical O Barco das Ilusões, uma foto do «Coro dos negros»:
lenços na cabeça, calças arregaçadas, aventais e saias de trabalho, mas tudo
feito com gosto, com cuidado, com «autenticidade», sem traços de Mammy
nem de Uncle Ben. E a rapariga mais próxima da objetiva, de boca bem
aberta a cantar, com um braço esticado bem acima da cabeça, empunhando
uma vassoura – a imagem perfeita de alegria cinética – era Tracey. Kramer
aproximou-se e espreitou por cima do meu ombro. Eu apontei com um dedo
para o nariz empinado de Tracey, como Tracey costumava apontar para a
cara de um dançarino que passava nos ecrãs dos nossos televisores.
«Eu conheço-a!»
«Ah sim?»
«Conheço-a muito bem.»
Com um piparote ele tirou um cigarro do maço, acendeu-o e mirou o
teatro de cima a baixo.
«Bem... queres ir ver?»
«Mas tu não gostas de musicais, pois não? As pessoas sérias não
gostam.»
Ele encolheu os ombros. «Estou em Londres, é um musical. É isso que se
faz em Londres, não é verdade? Ir ver um musical?»
Confiou-me o cigarro, empurrou as portas pesadas e dirigiu-se à
bilheteira. De repente tudo me parecia muito romântico e convergente e
oportuno e vi correr-me pela cabeça uma ridícula narrativa juvenil, de um
momento futuro em que explicaria a Tracey – nos bastidores de um triste
teatro de província, enquanto ela calçava um par de meias de rede velhas e
cansadas – que o preciso momento em que percebi que havia encontrado o
meu amor, o momento em que imergi na minha verdadeira felicidade, foi o
mesmo em que a descobri, por simples acaso, naquele pequeníssimo papel
que ela tivera, naquele tempo, no coro de O Barco das Ilusões, tantos anos
atrás...
Kramer voltou com dois bilhetes, excelentes lugares na segunda fila. Em
vez de jantar comprei um enorme saco de chocolates, daqueles que
raramente tinha oportunidade de comer, porque Aimee considerava essas
coisas não só nutricionalmente fatais mas também um sinal evidente de
debilidade moral. Kramer comprou dois grandes copos de plástico de mau
vinho tinto e o programa. Eu li-o e reli-o, mas não encontrei Tracey. Não
estava onde devia estar na lista alfabética do elenco, e comecei a ter receio
de estar a sofrer alguma espécie de delírio, ou de ter cometido um erro
embaraçoso. Folheei as páginas para a frente e para trás, com o suor a
brotar-me da testa – devia estar com um ar enlouquecido. «Estás bem?»,
perguntou Kramer. Estava quase a chegar ao fim de mais uma leitura do
programa quando Kramer espetou um dedo numa página para me impedir
de continuar.
«Mas não é essa a tua amiga?»
Vi outra vez: era. Tinha trocado o apelido bárbaro, vulgar – aquele pela
qual eu sempre a havia conhecido, pelo afrancesado e para mim absurdo Le
Roy. O primeiro nome também tinha sido adaptado: agora era Tracee. E na
fotografia tinha o cabelo esticado e brilhante. Soltei uma gargalhada
sonora.
Kramer olhou para mim intrigado.
«E são grandes amigas?»
«Conheço-a muito bem. Quer dizer, já não a vejo há perto de oito anos.»
Kramer franziu a testa: «Estás a ver, no mundo dos homens chamaríamos
a isso “ex-amigo”, ou, melhor ainda: “um estranho”.»
A orquestra começou a tocar. Eu estava a ler a biografia de Tracey,
analisando-a furiosamente, numa corrida contra o tempo antes que
reduzissem as luzes da sala, como se as palavras visíveis escondessem outro
conjunto, com um significado muito mais profundo que exigisse
descodificação e revelasse alguma coisa essencial sobre Tracey e a sua vida
atual:
TRACEEE LE ROY
CORISTA/DANÇARINA DO DAOMÉ
Participações teatrais:
Garotos e Garotas (Wellington Theatre); Desfile de Páscoa
(Digressão pelo Reino Unido); Grease (Digressão pelo Reino Unido);
Fame! (Scottish National Theatre); Anita, West Side Story (workshop)
Se era esta a história da vida dela, era uma desilusão. Faltavam os êxitos
ubíquos de todas as suas outras facetas artísticas: nem TV, nem cinema,
nem referência aos sítios onde se tinha «formado», o que interpretei como
significando que não tinha acabado o curso. Tirando Garotos e Garotas, não
havia mais nenhum trabalho no West End, só aquelas obscuras
«digressões». Imaginei pequenos salões paroquiais e escolas barulhentas,
matinés às moscas nos palcos de cinemas abandonados, festivais dramáticos
de segunda ordem em pequenas cidades. Mas se uma parte de mim ficou
agradada com isto, outra, não menor, ficou exasperada com a ideia de que
esta biografia de Tracee Le Roy podia ser justamente comparada – por
todos os presentes na sala que naquele momento o liam, ou por qualquer
dos atores do elenco – com qualquer das outras. Com a desta rapariga
mesmo ao lado dela no programa, a rapariga da biografia interminável,
Emily Wolff-Platt, que tinha estudado na RADA e não podia conhecer,
como eu conhecia, a enorme improbabilidade estatística de a minha amiga
estar neste palco, ou em qualquer outro – em qualquer lugar, em qualquer
contexto – e que talvez tivesse a temeridade de pensar que ela, Emily
Wolff-Platt, era uma verdadeira amiga de Tracey pelo simples facto de estar
com ela todas as noites, pelo simples facto de dançarem juntas, quando
afinal não tinha a mínima ideia de quem era Tracey ou de onde tinha vindo,
ou quanto lhe havia custado chegar até aqui. Voltei a minha atenção para a
foto da cabeça de Tracey. Bem, tinha de admitir: tinha feito bastantes
progressos. O nariz já não parecia uma atrocidade, estava mais integrado no
conjunto, e a crueldade que eu sempre lhe havia detetado na expressão era
disfarçado pelo radioso sorriso da Broadway que tinha em comum com
todos os outros atores da página. A surpresa não era ser bonita, ou sexy –
sempre fora senhora de tais atributos desde o princípio da adolescência. A
surpresa era ter-se feito tão elegante. As covinhas à Shirley Temple tinham
desaparecido, e com elas qualquer vestígio da carnalidade provocante que a
caracterizava em criança. Era-me quase impossível imaginar a sua voz, tal
como a havia conhecido, tal como a recordava, a sair desta criatura de nariz
bem feito, cabelo liso, sardas delicadas. Baixei os olhos e sorri-lhe. Tracee
Le Roy, quem andas a fingir que és agora?
«Cá vamos nós», disse Kramer, enquanto o pano subia. Pôs os cotovelos
em cima dos joelhos, as mãos em punhos infantis debaixo do queixo e fez
uma cara zombeteira: mal posso esperar.
À esquerda do palco, um carvalho do Sul, coberto de barba de velho,
primorosamente executado. À direita do palco, a sugestão de uma
cidadezinha do Mississípi. Ao centro, um barco-teatro ancorado, o Cotton
Blossom. Tracey – com mais quatro mulheres – foi a primeira a entrar em
cena, surgindo de trás do carvalho, de vassoura na mão, seguidas pelos
homens com as suas várias enxadas e pás. A orquestra tocou os acordes
iniciais de uma canção. Reconheci-a mal a ouvi, o grande número coral, e
de imediato tive uma sensação de pânico, sem saber porquê, durou um
momento, até que a própria música estimulou a memória. Vi a canção
inteira distribuída pela velha pauta, e lembrei-me também do que havia
sentido na primeira vez que a vira. E agora a letra, que em criança me
comovera, formava-se na minha boca, em consonância perfeita com o
preâmbulo da orquestra, lembrei-me do Mississípi, onde todos os «pretos»
trabalham, onde os brancos não, e agarrei o braço da cadeira e senti um
impulso de me pôr de pé – parecia a cena de um sonho – com a ideia de
obrigar Tracey a parar mesmo antes de começar, mas quando tive a ideia já
era tarde, e na letra que pensava conhecer havia palavras que tinham sido
substituídas, mas é claro que tinham – havia anos e anos que ninguém
cantava as palavras originais: «Aqui todos trabalhamos... Aqui todos
trabalhamos...»
Voltei a afundar-me na cadeira. Fiquei a ver Tracey manobrar habilmente
a vassoura para um lado e para o outro, dando-lhe vida, de tal maneira que
quase parecia mais uma presença humana em cena, como o número que
Astaire faz, com aquela chapeleira, em Núpcias Reais. A determinada altura
ficou perfeitamente alinhada com a imagem do cartaz, vassoura no ar, braço
esticado, alegria cinética. A minha vontade era retê-la para sempre naquela
posição.
Entraram em cena as verdadeiras estrelas, para iniciar a ação. Em
segundo plano, Tracey varria o degrau da entrada de uns grandes armazéns.
Estava à esquerda do palco em relação aos protagonistas, Julie LaVerne e
seu marido fiel, Steve, dois atores de cabaré que trabalham juntos no Cotton
Blossom e estão apaixonados. Mas depressa se revela, ainda antes do
intervalo, que Julie LaVerne é Julie Dozier, ou seja, não é branca, como
sempre fingiu ser, mas na verdade uma mulata trágica, que «passa», que
convence toda a gente, incluindo o próprio marido, até ao dia em que é
descoberta. Nessa altura o casal é ameaçado de prisão, porque o seu
casamento é ilegal à luz das leis de miscigenação. Steve faz um corte na
palma da mão de Julie e bebe um pouco do seu sangue: a «lei de uma gota»
– agora são ambos negros. Sob a luz difusa, no meio deste melodrama
ridículo, fui ver a biografia da atriz que fazia de Julie. Tinha um apelido
grego e não era mais escura do que Kramer.
Durante o intervalo bebi muito, e muito depressa, e falei
ininterruptamente com Kramer. Estava encostada ao balcão do bar, barrando
o acesso das outras pessoas aos empregados, esbracejando e vociferando
contra a injustiça da escolha do elenco, criticando a escassez de papéis para
atrizes como eu e o facto de mesmo quando esses papéis existiam não
estarem ao nosso alcance, havia sempre alguém que dava o papel a uma
branca, porque pelos vistos nem uma mulata trágica era competente para o
papel de mulata trágica, mesmo nos dias que correm e…
«Atrizes como tu?»
«O quê?»
«Disseste atrizes como eu.»
«Não disse, não.»
«Disseste, sim.»
«O que eu quero dizer é que o papel devia ser da Tracey.»
«Acabaste de dizer que ela não sabe cantar. Pelo que vi, é essencialmente
um papel cantado.»
«Ela canta muito bem!»
«Espera aí, porque é que estás a gritar comigo?»
Passámos a segunda parte tão calados como tínhamos estado durante a
primeira, mas desta vez o silêncio tinha uma textura diferente, deprimido
pela frieza gélida do desprezo mútuo. Só me apetecia ir-me embora dali.
Decorreram longas passagens do espetáculo sem sinais de Tracey e portanto
sem nenhum interesse para mim. O coro só reapareceu perto do fim, desta
vez sob a forma de «Dançarinos do Daomé», ou seja, africanos, do Reino
do Daomé, supostamente a atuar na Feira Mundial de Chicago de 1893. Vi
Tracey no círculo das mulheres – os homens dançavam do outro lado, num
círculo à parte – agitando os braços, agachando-se e cantando numa língua
africana inventada, enquanto os homens, em resposta, batucavam com os
pés e batiam com as lanças no chão: gunga, hungo, bunga, guba! Não pude
deixar de pensar na minha mãe, e na série de histórias do Daomé que
contava: a orgulhosa história dos reis; a forma e o toque das conchas de
cauri, usadas como dinheiro, o batalhão das amazonas, formado
exclusivamente por mulheres, tomando prisioneiros de guerra como
escravos para o reino, ou simplesmente decapitando os inimigos e erguendo
as suas cabeças nas mãos. Da mesma forma que as outras crianças ouvem
contar as histórias do Capuchinho Vermelho e da Menina das Tranças de
Ouro, eu ouvia as desta «Esparta Negra», o nobre reino do Daomé, que
lutou até ao fim para resistir aos franceses. Mas era praticamente impossível
conciliar estas memórias com a farsa a que agora assistia, no palco e fora
dele, porque a maioria das pessoas à minha volta não sabiam o que vinha a
seguir no espetáculo e por isso, compreendi, sentiam que estavam a assistir
a uma espécie de vergonhoso número de menestréis e desejavam que aquilo
acabasse. Também no palco o «público» presente na feira mundial se
afastava dos Dançarinos do Daomé, embora não por vergonha mas sim por
medo, medo de que estes dançarinos talvez fossem maus, como o resto da
tribo a que pertenciam, com lanças que eram armas de verdade e não
adereços. Olhei para Kramer; estava a remexer-se na cadeira. Voltei a olhar
para o palco e para Tracey. Estava a divertir-se com o desconforto geral,
exatamente como em criança sempre apreciara momentos como aquele.
Brandia a lança e rugia, marchando com os restantes, sobre os receosos
visitantes da feira, e depois ria-se com os restantes enquanto o público saía
de cena a correr. Livres de fazerem o que quisessem, os Dançarinos de
Daomé davam largas à imaginação: cantavam a sua alegria e cansaço,
alegria por verem os brancos pelas costas e cansaço, muito cansaço, de
estarem num «espetáculo do Daomé».
E agora o público – o verdadeiro público – compreendia. Compreendia
que aquilo a que estava a assistir pretendia ser divertido, irónico, que
aqueles dançarinos eram americanos, não africanos – sim, finalmente
percebia que lhe tinham pregado uma partida. Aquela gente não era do
Daomé coisa nenhuma! Afinal eram simplesmente negros, vindos
diretamente da Avenida A, na cidade de Nova Iorque! Kramer deu uma
risadinha, a música mudou para ragtime e eu senti os meus pés agitarem-se,
tentando reproduzir na espessa alcatifa vermelha o difícil sapateado
silencioso que Tracey estava a executar mesmo por cima de mim, no palco
de madeira. Os passos eram-me familiares – sê-lo-iam, certamente, para
qualquer dançarino – e a minha vontade era estar lá em cima com ela. Eu
estava presa em Londres, no ano de 2005, mas Tracey estava em Chicago
em 1893, e o Daomé cem anos antes disso, e em todos os lugares e tempos
aquele povo mexia os pés da mesma maneira. Tive tantos ciúmes que
chorei.
Uma pessoa quer acreditar que há limites para aquilo que o dinheiro pode
fazer acontecer, linhas que não pode transpor. Lamin naquele fato branco no
Rainbow Room parecia um exemplo da lição contrária. Mas a verdade era
que ainda não tinha o visto, pelo menos por enquanto. Tinha um passaporte
novo e uma data de regresso. E quando chegasse a altura de se ir embora eu
acompanhá-lo-ia de regresso à aldeia, juntamente com Fern, e ficaria lá uma
semana para concluir o relatório anual para a administração da fundação.
Depois Fern ficaria e eu voaria para Londres, para estar com as crianças e
coordenar a sua visita trimestral aos respetivos pais. Foi o que nos
comunicou Judy. Até lá, um mês juntos em Nova Iorque.
Na última década, sempre que estávamos na cidade, a minha base tinha
sido o quarto da criada, no rés do chão, ao pé da cozinha, se bem que de vez
em quando houvesse uma conversa pouco convicta sobre a possibilidade de
um espaço separado – um hotel, um apartamento arrendado – que nunca
levava a lado nenhum e depressa caía no esquecimento. Mas desta vez
tinham-me arrendado um espaço mesmo antes de eu chegar, um
apartamento de dois quartos na West 10th Street, tetos altos, fogões de sala,
o primeiro andar inteiro de um belo edifício de grés vermelho. Emma
Lazarus tinha em tempos vivido ali: uma placa azul por baixo da minha
janela evocava as suas massas amontoadas, ciosas de liberdade. A minha
vista era um abrunheiro-bravo rosa-vivo em plena floração. Erradamente,
interpretei tudo isto como uma promoção. Lamin apareceu e eu percebi que
tinha saído para ele poder entrar.
«Afinal que se passa contigo?», perguntou-me Judy, na manhã seguinte
ao aniversário de Jay. Sem rodeios, apenas aquele grito estridente
chegando-me ao ouvido através do telefone enquanto tentava dizer ao rapaz
do bar caribenho que não queria maçã na salada verde. «Tiveste alguma
discussão com o Fernando? É que nesta altura não podemos hospedá-lo cá
em casa – não há quarto para ele na hospedaria. A hospedaria está cheia,
como deves ter reparado. Os nossos pombinhos querem privacidade. A
nossa ideia era que ele passasse umas semanas contigo, no apartamento,
estava tudo combinado – agora, de repente, está renitente.»
«Bem, não sei nada disso. Porque ninguém me disse nada. Judy, tu nem
sequer me disseste que o Fern vinha a Nova Iorque!»
Judy fez um ruído de impaciência: «Ouve, foi a Aimee que quis que eu
tratasse do assunto. Ele tinha de vir acompanhar o Lamin, a Aimee não
queria que caísse nas bocas do mundo... Era delicado, e eu tratei do
assunto.»
«Agora também tratas de quem vive comigo?»
«Oh, querida, desculpa – és tu que pagas a renda?»
Consegui desligar e telefonei a Fern. Ia de táxi, algures na West Side
Highway. Ouvia-se a sirene de um paquete a atracar.
«É melhor eu arranjar outro sítio. Sim, é melhor. Esta tarde procuro um
sítio em...» Ouvi um triste restolhar de papéis. «Bom, não interessa. Algures
em Midtown.»
«Mas Fern, tu não conheces a cidade – e não vais querer pagar uma
renda, acredita em mim. Fica com o quarto. Vou ficar a sentir-me
pessimamente se não ficares. Eu vou estar dia e noite em casa da Aimee –
tem o espetáculo daqui a duas semanas, vamos ter trabalho até às orelhas.
Garanto que quase não vais pôr-me a vista em cima.»
Fechou uma janela, os ventos do rio deixaram de invadir a sala. O
silêncio era irremediavelmente íntimo.
«Gosto de te ver.»
«Oh, Fern... Por favor fica com o quarto e pronto!»
Nessa noite, o único sinal dele era a chávena de café vazia na cozinha e
uma grande mochila de lona – daquelas que um estudante leva para passar
um ano fora – encostada à ombreira da porta do quarto vazio. Ao vê-lo
subir a escada para o ferry com esta única peça de bagagem às costas, a
simplicidade de Fern, a sua frugalidade tinham-me parecido revestidas de
uma certa nobreza, tinha-o invejado por isso, mas aqui em Greenwich
Village a ideia de um homem de quarenta e cinco anos com uma única
mochila de seu parecia-me simplesmente triste e excêntrica. Sabia que ele
tinha atravessado a Libéria, sozinho e a pé, quando tinha apenas vinte e
quatro – uma espécie de homenagem a Graham Greene – mas agora só
conseguia pensar numa coisa: Irmão, esta cidade vai devorar-te vivo.
Escrevi uma mensagem de boas-vindas simpática e neutra, enfiei-a no
cordão da mochila e fui-me deitar.
Não fui ao concerto, não me senti capaz. Não queria ver-me nas bancadas
com Fern, observando o seu ressentimento enquanto assistíamos a versões
burlescas de danças que ambos havíamos visto na sua origem. Disse a
Aimee que ia e tinha intenção de ir, mas quando chegaram as oito horas
ainda estava em fato de treino, recostada na cama com o portátil pousado
nas virilhas, e depois eram nove, e depois eram dez. Tinha absolutamente
de ir – a mente repetia-me este facto e eu estava de acordo com ele – mas o
corpo não me obedecia, estava pesado e imóvel. Sim, tinha mesmo de ir,
isso era evidente, e não menos evidente era que não ia a lado nenhum.
Entrei no YouTube e fui passando de dançarino em dançarino: Bojangles
pela escada acima, Harold e Fayard em cima de um piano, Jenny LeGon no
ruge-ruge da sua saia de ráfia, Michael Jackson em Motown 25. Costumava
parar neste clip de Jackson, se bem que desta vez, ao vê-lo percorrer o palco
em passos de moonwalk, aquilo que verdadeiramente me chamou a atenção
não foram os gritos extasiados da multidão nem tão pouco a fluidez dos
movimentos dele, mas sim a curteza das calças. Ainda assim, a opção de ir
só me pareceu comprometida ou completamente excluída quando levantei
os olhos do meu navegar sem rumo e vi que tinham chegado as onze e
quarenta e cinco, o que significava que estávamos agora no inegável
pretérito: não tinha ido. Pesquisar Aimee, pesquisar local, pesquisar trupe
de dança de Brooklyn, pesquisar imagens, pesquisar despachos da AP,
pesquisar blogues. A princípio por um simples sentimento de culpa, mas
logo depois com a consciência de que podia reconstituir – 140 carateres de
cada vez, imagem a imagem, entrada de blogue a entrada de blogue – a
experiência de ter lá estado, até que, por volta da uma da manhã, não havia
ninguém que pudesse ter lá estado mais do que eu. Estava muito mais lá do
que qualquer das pessoas que lá haviam estado efetivamente, essas estavam
circunscritas a um único lugar e uma única perspetiva – a um único fluxo de
tempo – ao passo que eu estava ao mesmo tempo em todos os pontos
daquele espaço, vendo tudo de todos os ângulos, num poderoso ato de
fusão. Podia ter ficado por ali – tinha matéria mais do que suficiente para,
de manhã, fazer a Aimee um relato circunstanciado da noite anterior – mas
não fiquei. O processo forçou-me a continuar. Observar, em tempo real, as
discussões à medida que tomam corpo e coalescem, observar os consensos
que se desenvolvem, os destaques ou constrangimentos que são
identificados, os significados e subtextos que são aceites ou recusados. Os
insultos e as piadas, os mexericos e os boatos, os memes, o Photoshop, os
filtros, e as muitas variedades de crítica a que é dada rédea solta, longe do
alcance ou do controlo de Aimee. No princípio da semana, enquanto assistia
a uma prova de guarda-roupa – na qual Aimee, Jay e Kara estavam a ser
fantasiados de forma a parecerem nobres ashanti – levantara a medo a
questão da apropriação. Judy rosnou, Aimee olhou para mim e a seguir para
a sua figura espectralmente pálida enfaixada em tanto tecido de cores
vibrantes, e disse-me que era uma artista, e os artistas têm de ter direito a
amar as coisas, tocá-las e usá-las, porque arte não é apropriação, não era
esse o propósito da arte – o propósito da arte era o amor. E quando lhe
perguntei se era possível amar uma coisa e ao mesmo tempo deixá-la em
paz olhou-me de uma forma estranha, puxou para si os dois filhos e
perguntou: Alguma vez estiveste apaixonada?
Mas agora sentia-me defendida, virtualmente cercada. Não, não me
apetecia parar. Continuei a fazer atualizações, à espera de que mais países
acordassem e vissem as imagens e formassem opiniões ou partilhassem
opiniões já emitidas. De madrugada ouvi ranger a porta da entrada e Fern
entrar aos tropeções no apartamento, certamente vindo diretamente da festa
depois do concerto. Não me mexi. E deve ter sido por volta das quatro da
manhã, enquanto fazia correr no ecrã as opiniões mais recentes e ouvia o
chilrear dos pássaros no abrunheiro-bravo, que vi o título «Tracey LeGon»
e o subtítulo «Conta a verdade». Tinha as lentes de contacto ressequidas,
doía-me pestanejar, mas não estava a imaginar coisas. Cliquei. Tinha
publicado a mesma foto que eu já vira centenas de vezes – Aimee, os
dançarinos, Lamin, as crianças – todos alinhados à boca de cena,
envergando os panos adinkra que eu os vira provar: um rico azul-cerúleo
estampado com um padrão de triângulos pretos, e em cada um dos
triângulos havia um olho. Tracey tinha pegado na imagem, tinha-a ampliado
muitas vezes, aparado até só o triângulo e o olho ficarem visíveis, e por
baixo desta imagem fazia a pergunta: LEMBRAS-TE DISTO?
3
Voltando a Lamin, fomos no jato, mas sem Aimee – que estava em Paris,
para receber uma condecoração do governo francês – e por isso tivemos de
atravessar o aeroporto principal, como toda a gente, até a um átrio de
chegadas apinhado de filhos e filhas que regressavam. Os homens vestiam
jeans modernos de ganga grossa, vincada, camisas estampadas com
colarinho branco, camisolas de marca com capuz, blusões de cabedal,
sapatos de último modelo. E as mulheres também faziam questão de vestir
tudo o que tinham de melhor ao mesmo tempo. Muito bem penteadas,
unhas acabadas de pintar. Ao contrário de nós, todos conheciam bem este
átrio, e rapidamente asseguraram os serviços dos bagageiros, a quem
entregaram as suas malas gigantescas, com a recomendação de que
tivessem cuidado – apesar de todas as peças de bagagem estarem
envolvidas em camadas de plástico – antes de avançarem à frente desses
jovens bagageiros acalorados e atormentados por entre a multidão, em
direção à saída, olhando frequentemente para trás para lhes berrarem
instruções como alpinistas aos seus sherpas. Por aqui, por aqui! De
smartphones acima da cabeça, apontando o caminho. Ao olhar para Lamin
neste contexto, percebi que a sua indumentária de viagem devia ser uma
escolha deliberada: apesar de todas as roupas e anéis e cordões e sapatos
que Aimee lhe tinha dado no último mês, estava vestido exatamente como
quando tinha partido. A mesma camisa branca, calças de sarja e um simples
par de sandálias de cabedal, pretas e gastas no salto. Fiquei a pensar que
havia coisas nele que não tinha compreendido – muitas, porventura.
Apanhámos um táxi e eu sentei-me com Lamin no banco de trás. O carro
tinha três janelas partidas e um buraco no chassis através do qual se via
passar a estrada por baixo dos nossos pés. Fern sentou-se à frente, ao lado
do condutor: tinha uma nova política, que era guardar uma fria distância de
mim em todas as circunstâncias. No avião leu os seus livros e diários, no
aeroporto limitou-se a assuntos práticos, ir buscar aquele carro de bagagens,
pôr-se naquela fila. Não foi maldoso, não disse crueldades, mas o efeito era
de isolamento.
«Queres parar para comer?», perguntou-me, pelo retrovisor. «Ou podes
esperar?»
Eu bem gostaria de ser uma daquelas pessoas que não se importavam de
passar sem almoço, que conseguiam aguentar-se, como Fern, imitando a
prática das famílias mais pobres da aldeia, que só comiam uma vez por dia,
ao fim da tarde. Mas não era esse tipo de pessoa: se saltasse uma refeição
ficava furiosa. Andámos quarenta minutos e parámos num café de estrada
fronteiro a uma coisa chamada American College Academy. Tinha grades
nas janelas e faltava-lhe metade das letras da tabuleta. Lá dentro, a ementa
exibia lustrosos pratos à americana «com batatas fritas», cujos preços
Lamin leu em voz alta, abanando gravemente a cabeça, como se achasse
aquilo profundamente sacrílego e ofensivo, e ao fim de uma longa conversa
com a empregada de mesa vieram três pratos de yassa de frango por um
preço «local» negociado.
Estávamos curvados sobre os pratos, comendo em silêncio, quando
ouvimos uma voz estentórea vinda dos fundos do café: «Meu irmão Lamin!
Irmãozinho! Sou o Bachir! Aqui!»
Fern acenou. Lamin não se mexeu: já tinha reparado no tal Bachir e
rezava para que ele não o visse. Eu virei-me e vi um homem sozinho à
última mesa junto ao balcão, na penumbra, o único cliente no restaurante
além de nós. Era largo e musculado como um jogador de râguebi e vestia
fato azul-escuro às riscas brancas, gravata, alfinete de gravata, mocassins
sem meias e grossa pulseira dourada no braço. Os músculos retesavam-lhe
o fato e escorria-lhe suor pela cara.
«Não é meu irmão. É da minha idade. É lá da aldeia.»
«Mas não vais…»
Bachir já estava ao pé de nós. Ao perto, vi que trazia na cabeça uns
auriculares com microfone, parecidos com os que Aimee usava em palco, e
nos braços um portátil, um tablet e um telemóvel muito grande.
«Preciso de um sítio para pousar isto tudo!» Mas sentou-se à nossa mesa
com tudo abraçado contra o peito. «Lamin! Irmãozinho! Há quanto
tempo!»
Lamin acenou para o prato. Fern e eu apresentámo-nos e recebemos
apertos de mão suados, firmes, dolorosos.
«Eu e ele crescemos juntos, pá! Vida de aldeia!» Bachir agarrou a cabeça
de Lamin e fez-lhe uma gravata com o braço transpirado. «Mas depois eu
tive de ir para a cidade, querida, estás a perceber? Fui atrás do dinheiro,
querida! Trabalhei nos grandes bancos. Passa para cá o dinheiro! Uma
Babilónia a valer! Mas no fundo continuo a ser um rapaz da aldeia.» Deu
um beijo em Lamin e largou-o.
«Você parece americano», disse eu, mas esse era apenas um fio da rica
tapeçaria da voz dele. Havia nela inúmeros filmes e anúncios, e muito hip-
hop, Esmeralda e As the World Turns, BBC News, CNN, Al Jazeera e um
pouco do reggae que se ouvia por toda a cidade, em todos os táxis, bancas
de mercado, cabeleireiros. Naquele preciso momento ouvia-se uma música
antiga de Yellowman, vinda dos pequenos altifalantes por cima das nossas
cabeças.
«A valer, a valer...» Pousou a cabeça grande e quadrada no punho, em
pose de pensador. «Bem, de facto ainda não fui aos Estados Unidos, ainda
não. Muito que fazer. Está tudo a acontecer. Falar, falar, é preciso estar a par
da tecnologia, é preciso não perder relevância. Repara nesta rapariga:
telefona-me noite e dia, querida, dia e noite!» Mostrou-me uma imagem no
tablet, de uma mulher lindíssima com um penteado lustroso e uns lábios
exuberantes pintados de roxo. Pareceu-me uma imagem comercial. «Estas
raparigas da cidade grande são muito malucas! Oh, irmãozinho, eu preciso
de uma rapariga da nascente do rio, quero constituir uma bela família. Mas
estas raparigas já nem querem constituir família! São malucas! Mas com
que idade estás tu?»
Eu disse-lhe.
«E não tens filhos? Nem sequer és casada? Não? OK! OK, OK... Já
percebi, mana, já percebi: Miss Independente, não é verdade? É isso que
queres, OK. Mas, para nós, uma mulher sem filhos é como uma árvore sem
frutos. Como uma árvore» – soergueu da cadeira as costas musculadas,
fincou os pés no chão com os joelhos fletidos, estendeu os braços como
ramos e os dedos como galhos – «sem frutos.» Voltou a sentar-se e fechou
as mãos em punhos. «Sem frutos», repetiu.
Pela primeira vez em muitas semanas, Fern dirigiu-me um esboço de
sorriso.
«Acho que ele está a dizer que és como uma árvore…»
«Sim, Fern, eu percebi, obrigada.»
Bachir reparou no meu telemóvel com tampa, o meu telefone pessoal.
Pegou nele e revirou-o na mão com espanto exagerado. Tinha umas mãos
tão grandes que o telefone parecia um brinquedo de criança.
«Não me digas que isto é teu. A sério? É teu?! É isto que se usa em
Londres? HA HA HA. Oh pá, nós cá estamos mais atualizados. Oh, pá! Que
engraçado, que engraçado. Por esta é que eu não esperava. É a globalização,
não é? Tempos estranhos, tempos estranhos!»
«Para que banco disse que trabalhava?», perguntou Fern.
«Oh, trabalho em muitas coisas, pá. Imobiliário, imobiliário. Terreno
aqui, terreno ali. Construção. Mas cá trabalho para o banco, negócios,
negócios. Passa para cá o dinheiro, não é verdade? Gostas da Rihanna?
Conhece-la? Vale muito! Illuminati, não é verdade? Viver o sonho,
querida.»
«Temos de ir apanhar o ferry», sussurrou Lamin.
«Iá, acho que nos tempos que correm tenho muitos negócios em mãos –
coisas complicadas – é preciso fazer movimentos, movimentos,
movimentos.» Fez a demonstração movimentando os dedos pelos três
aparelhos como quem está preparado para usar qualquer deles a qualquer
momento para uma operação extremamente urgente. Reparei que o ecrã do
portátil estava negro e estalado em vários sítios. «Repara, uns têm de se
dedicar todos os dias à agricultura, descascar ervilhas, não é verdade? Mas
eu tenho de fazer os meus movimentos. Esse é o novo equilíbrio do trabalho
por aqui. Sabias? Pois é, pá! É a última novidade! Mas neste país temos
uma mentalidade atrasada, não é verdade? Há muita gente atrasada em
relação ao raio dos tempos. Vai demorar um bocado, OK? A entrar na
cabeça dessa gente.» Com os dedos desenhou um retângulo no ar: «O
futuro. É preciso meter isto na cabeça. Mas ouve: para ti? Quando quiseres!
Gosto da tua cara, pá, é linda, tão clara e luminosa. E podia ir para Londres,
podíamos falar de negócios a sério. Ai não estás nos negócios?
Cooperação? ONG? Missionária. Gosto dos missionários, pá. Tive um
grande amigo, era de South Bend, Indiana – o Mikey. Passámos uma data
de tempo juntos. O Mickey era fixe, pá, muito fixe, era adventista do sétimo
dia, mas todos somos filhos de Deus, disso não há dúvida...»
«Estão cá a fazer trabalho educativo, com as nossas raparigas», disse
Lamin, virando-se de costas para nós, tentando atrair a atenção da
empregada.
«Ah, pois claro, já ouvi falar das mudanças que está a haver. Grandes
tempos. Grandes tempos. Bom para a cidade, não é verdade? Progresso.»
«Esperamos que sim», disse Fern.
«Mas, irmãozinho, estás a ganhar alguma coisa com isso? Vocês sabiam
que aqui o irmãozinho não quer saber do dinheiro? Só pensa na próxima
vida. Eu cá não, quero esta vida! HA HA HA HA. Dinheiro, dinheiro a
rolar. Não é verdade? Oh pá, oh pá...»
Lamin pôs-se de pé: «Adeus, Bachir.»
«Tão sério, este rapaz. Mas gosta muito de mim. Vocês também haviam
de gostar muito de mim. Ai, ai, tu vais fazer trinta e três anos, menina!
Precisamos de conversar! O tempo voa. Temos de viver a nossa vida, não é
verdade? À próxima, em Londres, na Babilónia – vamos conversar!»
No regresso ao carro, ouvi Fern rir-se para dentro, animado pelo
episódio.
«Isto é o que se chama “uma personagem”», disse, e quando chegámos ao
táxi que nos esperava e lhe demos a volta para entrar vimos a personagem
Bachir de pé na soleira da porta, com os auriculares postos, segurando todas
as suas tecnologias num braçado e acenando-nos. Visto assim, de pé, o fato
parecia especialmente peculiar, as calças muito curtas nos tornozelos, como
um mashala de fato às riscas.
«O Bachir perdeu o emprego há três meses», disse Lamin calmamente,
enquanto entrávamos para o carro. «Passa os dias naquele café.»
Sim, tudo quanto dizia respeito àquela viagem me pareceu errado desde o
primeiro momento. Em vez da minha anterior competência triunfante, não
conseguia libertar-me de uma persistente sensação de erro, de ter percebido
tudo mal, a começar por Hawa, que abriu a porta de casa com um novo
lenço, preto, que lhe cobria a cabeça e lhe chegava a meio do tronco, e uma
saia comprida, informe, como aquelas que sempre ridicularizara quando as
víamos no mercado. Abraçou-me calorosamente como sempre, a Fern
apenas fez um aceno de cabeça, e pareceu contrariada com a presença dele.
Ficámos todos algum tempo de pé no pátio, com Hawa, mal-humorada, a
fazer conversa de ocasião – em todo o caso nunca dirigida a Fern – e eu
esperançada em ouvir falar em jantar, coisa que, como entretanto
compreendi, não aconteceria enquanto Fern não se fosse embora. Por fim
ele percebeu a mensagem: estava cansado e ia para a casa cor-de-rosa. E
mal ele saiu e a porta se fechou a Hawa de antigamente voltou, pegou-me
na mão, beijou-me na face e chorou: «Oh, irmã, boas notícias – vou-me
casar!» Eu abracei-a, mas senti o sorriso habitual aflorar-me à cara, o
mesmo que fazia em Londres e Nova Iorque perante aquele tipo de notícia,
e experimentei o mesmo sentimento agudo de traição. Tinha vergonha de
me sentir assim, mas nada podia fazer, uma parte do meu coração tinha-se
fechado para ela. Levou-me pela mão para dentro de casa.
Tanto para contar. Chamava-se Bakary, era tablighi, amigo de Musa, e
não ia mentir e dizer que era bonito, porque na verdade era exatamente o
contrário, queria que eu compreendesse isso desde já, puxando do
telemóvel como prova.
«Estás a ver? Parece um sapo! Para dizer a verdade, quem me dera que
não usasse esta coisa preta à volta dos olhos nem pintasse a barba com
hena... E às vezes até anda de sarongue! As minhas avós acham que ele
parece uma mulher maquilhada! Mas não devem ter razão porque até o
Profeta pintava os olhos, é bom para as infeções, e a verdade é que há
muitas coisas que eu não sei e tenho de aprender. Oh, as minhas avós
choram dia e noite, noite e dia! Mas o Bakary é bondoso e paciente. Diz que
ninguém chora para sempre – e não achas que é verdade?»
As sobrinhas gémeas de Hawa trouxeram-nos o jantar: arroz para Hawa,
batatas assadas no forno para mim. Escutei numa espécie de bruma as
histórias engraçadas que Hawa me contou sobre a sua recente masturat36 à
Mauritânia, o mais longe que alguma vez havia ido, onde muitas vezes
havia adormecido nas pregações («Não vemos o homem que está a pregar,
porque não está autorizado a olhar para nós, por isso fala de trás de uma
cortina, e todas nós, mulheres, estamos sentadas no chão e o sermão é muito
comprido, e às vezes só nos dá vontade de dormir) e tivera a ideia de coser
um bolso no interior do colete para esconder o telemóvel e sub-
repticiamente enviar mensagens ao seu Bakary durante os recitativos mais
aborrecidos. Mas concluía sempre estas histórias com alguma frase de teor
piedoso: «O importante é o amor que tenho às minhas novas irmãs.» «Não
me cabe a mim perguntar.» «Está nas mãos de Deus.»
«No fim», disse, enquanto duas raparigas mais novas nos traziam duas
canecas de lata cheias de Lipton, fortemente açucarado, «o que interessa é
dar louvores a Deus e esquecer as coisas dunya37. Digo-te que nesta casa só
se ouve falar em coisas dunya. Quem foi ao mercado, quem tem um relógio
novo, quem «vai dar o salto», quem tem dinheiro, quem não tem, quero
isto, quero aquilo! Mas quando andamos em viagem, levando a palavra do
Profeta às pessoas, não sobra tempo nenhum para estas coisas dunya.»
Perguntei-me por que razão ela continuava a viver na morança se a vida
neste lugar lhe desagradava tanto.
«Bem, o Bakary é bom homem, mas é muito pobre. Logo que pudermos,
casamos e vamos embora, mas até lá ele dorme na markaz38, perto de Deus,
enquanto eu estou aqui, perto das galinhas e das cabras. Mas vamos poupar
muito dinheiro porque o nosso casamento vai ser muito, muito pequeno,
como o casamento de um rato, e só vão assistir o Musa e a mulher, e não vai
haver música nem dança nem banquete e nem sequer vou precisar de um
vestido novo», disse com uma vivacidade ensaiada, e de repente eu senti-
me muito triste, pois se alguma coisa sabia de Hawa era que adorava
casamentos e vestidos de noiva e banquetes e festas de casamento.
«Portanto já vês, assim poupa-se muito dinheiro, de certeza», disse, e
pousou as mãos dobradas no regaço para assinalar formalmente o fim do
seu pensamento, e eu não a contestei. Mas percebia que ela queria
conversar, que as suas frases feitas eram como testos a dançar em cima de
panelas a ferver, e só precisei de ficar pacientemente sentada à espera de
que ela transbordasse. Sem que tivesse de lhe perguntar nada começou a
falar, primeiro a medo e a seguir com uma energia cada vez maior, sobre o
noivo. Aquilo que parecia impressioná-la mais no tal Bakary era a sua
sensibilidade. Era chato e feio, mas era sensível.
«Chato como?»
«Oh, não devia dizer “chato”, mas havias de os ver juntos, ele e o Musa,
passam o dia inteiro a ouvir gravações sagradas, são gravações muito
sagradas, agora o Musa anda a ver se aprende mais árabe, e eu também
ando a aprender a apreciá-las completamente, por enquanto acho-as muito
aborrecidas – mas o Bakary chora quando as ouve! Chora e abraça-se ao
Musa! Às vezes vou ao mercado e volto e eles continuam abraçados e a
chorar! Nunca vi um vadio chorar. A menos que lhe tenham roubado a
droga! Não, não, o Bakary é muito sensível. É de facto uma questão de
coração. A princípio pensei: a minha mãe é uma mulher com estudos,
ensinou-me muito árabe, vou andar à frente do Bakary na minha iman, mas
isso não está nada bem! Porque o que interessa não é o que lemos, é o que
sentimos. E eu tenho muito caminho para andar até o meu coração ficar tão
cheio de iman como o do Bakary. Um homem sensível deve dar um bom
marido, não achas? E os nossos mashala – não devia chamar-lhes assim, a
palavra correta é tablighi – são tão bondosos com as suas mulheres! Não
fazia ideia. A minha avó dizia sempre: “São infantis, são malucos, não fales
com esses efeminados, nem sequer têm emprego.” Só te digo, chora todos
os dias. Mas é porque não compreende, é muito antiquada. O Bakary está
sempre a dizer: “Há um hadith que reza que ‘o melhor homem é aquele que
ajuda a mulher e os filhos e é caridoso com eles’.” E assim é. Por isso, se
vamos nessas viagens, em masturat, então, para evitar que outros homens
nos vejam no mercado, os nossos homens vão e fazem as compras por nós,
compram eles a hortaliça. Eu ria-me quando ouvia contar isto, pensava: não
pode ser verdade – mas é verdade! O meu avô nem sequer sabia onde
ficava o mercado! É isto que tento explicar às minhas avós, mas elas são
antiquadas. Choram todos os dias por ele ser um mashala – ou melhor,
tablighi. Cá para mim, lá no fundo o que elas têm é ciúmes. Oh, a minha
vontade era ir-me embora daqui agora mesmo. Quando fui visitar as minhas
irmãs senti-me tão feliz. Rezámos juntas. Passeámos juntas. Depois do
almoço, uma de nós tinha de conduzir a oração, sabes, e uma das irmãs
disse-me: “Vais ser tu!” E por isso naquele dia fui o imã, percebes? Mas não
me acanhei. Muitas das minhas irmãs acanham-se, dizem “Não sou eu que
devo falar”, mas de facto eu percebi nesta viagem que não sou nada
acanhada. E toda a gente me escutou – oh! No fim até me fizeram
perguntas. Acreditas?»
«Não me surpreende nada.»
«Escolhi o tema dos seis artigos de fé. Também se aplicam à forma como
uma pessoa deve comer. É certo que neste momento não estou a observá-
los, porque tu estás cá, mas estão sem dúvida na minha cabeça para a
próxima vez.»
Este pensamento culposo conduziu a outro: inclinou-se para me sussurrar
qualquer coisa, com o rosto irresistível imobilizado num meio sorriso.
«Ontem fui à sala de TV da escola e vimos a Esmeralda. Não devia
sorrir», disse, e parou abruptamente, «mas tu, mais do que ninguém, sabes
como eu adoro a Esmeralda, e de certeza concordas que ninguém se pode
libertar de todas as coisas dunya de uma assentada.» Baixou os olhos para a
saia informe. «As minhas roupas também vão ter de acabar por mudar, não
só a saia, tudo, da cabeça aos pés. Mas todas as minhas irmãs dizem que a
princípio é difícil porque temos muito calor e as pessoas ficam a olhar,
chamam-nos ninja ou Osama na rua. Mas lembrei-me de uma coisa que me
disseste na primeira vez que cá estiveste: «Que interessa o que os outros
pensam?» E esse é um pensamento forte que guardo comigo, porque a
minha recompensa será no Céu, onde ninguém me chamará ninja porque
certamente essas pessoas estarão em chamas. Continuo a gostar muito do
Chris Brown, é superior às minhas forças, e até o Bakary continua a gostar
muito das canções do Marley, sei porque no outro dia ouvi-o cantar uma.
Mas vamos aprender juntos, somos novos. Como já te disse, quando
andávamos em viagem o Bakary fazia todos os recados por mim, ia ao
mercado por mim, mesmo que se rissem dele. Já disse às minhas avós:
alguma vez o meu avô lavou uma meia que fosse por alguma de vocês em
quarenta anos?»
«Mas Hawa, porque é que os homens não podem ver-te no mercado?»
Ela fez um ar aborrecido: tinha-lhe feito outra vez a pergunta mais
estúpida.
«Quando os homens olham para mulheres que não são as suas esposas é
esse o momento de que Satã está à espera para se meter neles, para os
encher de pecado. Satã está em toda a parte! Mas tu nem sequer isso
sabes?»
Não consegui ouvir mais e inventei uma desculpa para sair dali. Mas o
único sítio para onde podia ou sabia ir na escuridão era a casa cor-de-rosa.
Da estrada, ainda a uma certa distância, vi que todas as luzes estavam
apagadas, e quando cheguei à porta vi que estava pendurada de uma
dobradiça partida.
«Estás aí? Posso entrar?»
«A minha porta está sempre aberta», respondeu Fern do meio das
sombras, numa voz sonora, e rimo-nos os dois ao mesmo tempo. Entrei, ele
fez-me chá e regurgitei todas as novidades que Hawa me havia dado.
Fern ouviu-me arengar, com a cabeça cada vez mais inclinada para trás
até a lanterna de cabeça iluminar o teto.
«Devo confessar que não acho isso nada estranho», disse quando eu
acabei. «Trabalha como um cão naquela morança. Praticamente não sai de
lá. Deve estar desesperada, como qualquer jovem inteligente, por ter uma
vida própria. Tu não quiseste sair de casa dos teus pais quando tinhas a
idade dela?»
«Quando tinha a idade dela queria liberdade!»
«E dirias que ela tem menos liberdade a viajar pela Mauritânia em
pregação do que tem agora, trancada em casa?» Arrastou a sandália pela
camada de poeira vermelha que se havia acumulado no chão de plástico. «É
interessante. É um ponto de vista interessante.»
«Ora, estás só a querer provocar-me.»
«Não, nunca foi essa a minha intenção.» Olhou para o desenho que tinha
feito no chão. «Às vezes pergunto-me se as pessoas não procuram mais
significado que liberdade», disse, falando lentamente. «É isso que quero
dizer. Pelo menos, tem sido essa a minha experiência.»
Se tivéssemos continuado teríamos discutido, por isso mudei de assunto e
ofereci-lhe uma das bolachas que tinha surripiado do quarto de Hawa.
Lembrei-me de que tinha descarregado alguns podcasts para o meu iPod e,
com um auricular cada um, sentámo-nos tranquilamente lado a lado,
mordiscando as bolachas e ouvindo relatos de vidas americanas, seus
pequenos dramas e satisfações, seus prazeres e irritações e epifanias
tragicómicas, até chegar a hora de me ir embora.
Nessa tarde pedi a Lamin que fosse comigo a Barra. Ele disse que sim,
mas pareceu-me arrasado pela humilhação. Fizemos a viagem de táxi em
silêncio, e a de ferry também. Eu precisava de cambiar dinheiro, mas
quando chegámos aos pequenos buracos na parede – onde os homens
sentados em bancos altos atrás de postigos contavam enormes pilhas de
notas ensebadas presas por elásticos – ele deixou-me sozinha. Lamin nunca
me tinha deixado sozinha em lado nenhum, nem mesmo quando eu mais
quisera que o fizesse, e agora percebia o pânico que a ideia provocava em
mim.
«Mas onde é que nos encontramos? Aonde vais?»
«Tenho umas voltas a dar, mas estarei por perto, nas proximidades do
ferry. Não há problema. Basta telefonares-me. Demoro quarenta minutos.»
Sem me dar tempo a argumentar, desapareceu. Não acreditei que tivesse
voltas a dar: só queria ver-se livre de mim por algum tempo. Mas cambiar
dinheiro não demorou mais de dois minutos. Deambulei pelo mercado e
depois, para evitar que as pessoas metessem conversa comigo, passei pelo
ferry e fui até um antigo forte militar, em tempos um museu, agora
abandonado, mas ainda se podia subir às ameias e ver o rio e o modo
revoltante como toda a cidade tinha sido construída de costas para a água,
ignorando o rio, defensivamente acocorada contra ele, como se a bela vista
da outra margem, do mar e dos golfinhos saltantes, fosse de algum modo
ofensiva ou desnecessária, ou simplesmente transportasse consigo a
memória de uma dor insuportável. Desci e deixei-me ficar perto do ferry,
mas ainda tinha vinte minutos e por isso fui ao café com Internet. A cena
era a do costume: rapazes em fila, de auscultadores na cabeça, dizendo
«Amo-te» ou «Sim, meu amorzinho», enquanto nos ecrãs mulheres brancas
de certa idade acenavam e sopravam beijos, quase sempre mulheres
britânicas – a julgar pelos interiores das casas – e enquanto estava ao
balcão, a pagar os meus vinte e cinco dalasi por quinze minutos, via-as
todas ao mesmo tempo a sair do duche de tijolo de vidro, ou a tomar o
pequeno-almoço ao balcão da cozinha, ou a andar pelo jardim de pedras, ou
estendidas numa cadeira de baloiço no alpendre envidraçado, ou
simplesmente sentadas num sofá, a ver televisão, de telemóvel ou
computador portátil na mão. Nada disto tinha nada de anormal, já o havia
visto muitas vezes, mas nessa tarde em particular, no momento em que
punha o dinheiro em cima do balcão, um homem tresloucado, a espumar
pela boca, entrou a correr e foi pelos computadores brandindo uma bengala
comprida e entalhada, e o dono do café abandonou a nossa transação para ir
atrás dele à volta dos terminais. O louco era incrivelmente belo e alto, como
um masai, descalço, envergando um dashiki tradicional bordado a fio
dourado, apesar de estar roto e sujo, e com um boné de um campo de golfe
do Minnesota empoleirado no alto da cabeleira assustadora. Bateu com a
bengala nos ombros dos rapazes, uma vez em cada ombro, como um rei a
armar muitos cavaleiros, até que o dono conseguiu arrancar-lhe a bengala
das mãos e desatou a espancá-lo com ela. E enquanto era espancado ele
continuava a falar, com um sotaque inglês comicamente requintado, fez-me
lembrar o de Chalky, já lá iam tantos anos. «Estimado cavalheiro, sabe
quem eu sou? Algum dos palermas presentes sabe quem eu sou? Algum dos
pobres palermas? Nem sequer me reconhecem?»
Deixei o dinheiro em cima do balcão e voltei cá para fora, para esperar ao
sol.
36 Viagem de missionação islâmica, conforme preconizado pelo movimento Tablighi Jama’at. (N. do
T.)
De volta a Londres jantei com a minha mãe, ela tinha reservado uma
mesa no Andrew Edmunds, na sala da cave – «pago eu» – mas sentia-me
oprimida pelas paredes verde-escuras e perturbada pelos olhares sub-
reptícios dos outros comensais, e então ela aliviou o punho em que a minha
mão direita apertava um telemóvel e disse: «Olha para isto. Olha o que ela
te está a fazer. Unhas roídas e dedos a sangrar.» Perguntei-me desde quando
a minha mãe comia no Soho, e por que razão estava tão magra, e onde
estava Miriam. Talvez tivesse pensado um pouco mais profundamente em
todas estas perguntas se tivesse havido espaço para refletir seriamente sobre
elas, mas nessa noite a minha mãe estava numa espiral faladora e quase
toda a refeição foi passada num monólogo sobre a gentrificação de Londres
– dirigido tanto às mesas vizinhas quanto a mim – começando pelas
habituais queixas contemporâneas e recuando nos anos até se transformar
numa aula de história improvisada. Quando chegou o prato principal já
estávamos nos princípios do século XVIII. O próprio renque de casas em que
agora estávamos sentadas – uma deputada sem funções governativas e uma
assistente pessoal de uma estrela pop – albergara em tempos marceneiros e
vidraceiros, trolhas e carpinteiros, e todos eles haviam pagado uma renda
mensal que, mesmo ajustada à inflação, hoje não daria para pagar a ostra
que eu estava a meter à boca. «Operários», explicou, enquanto empurrava
uma Loch Ryan pela boca abaixo. «E também radicais, indianos, judeus,
caribenhos fugidos à escravatura, panfletários e agitadores. Robert
Wedderburn! Os “Blackbirds”39. Este também era o seu poiso, mesmo
debaixo do nariz de Westminster... Hoje nada disso acontece por estes lados
– às vezes gostava que acontecesse. Dava-nos alguma coisa com que
trabalhar! Ou pela qual trabalhar! Ou mesmo contra a qual...» Estendeu o
braço para a parede forrada a madeira com trezentos anos que tinha atrás da
cabeça e fez-lhe um afago melancólico. «A verdade é que a maioria dos
meus colegas já nem se lembra do que é a verdadeira Esquerda nem,
acredita no que te digo, querem lembrar-se. Oh, mas em tempos que já lá
vão isto aqui era um autêntico viveiro...» Continuou a cavalgar esta onda,
prolongando-a de modo um pouco excessivo, como de costume, mas numa
torrente arrebatadora – os ocupantes das mesas vizinhas inclinavam-se para
apanhar migalhas dela – e nada daquilo era crispado ou dirigido a mim,
tinha esquecido todos os ressentimentos. As conchas vazias das ostras
foram levantadas da mesa. Por hábito, eu pus-me a morder a pele à volta
das unhas. Ao menos enquanto está a falar do passado, pensei, não me faz
perguntas sobre o presente ou o futuro, quando vou deixar de trabalhar com
Aimee ou ter um filho, e evitar este ataque em duas frentes tinha passado a
ser a minha prioridade sempre que estava com ela. Mas não me fez
perguntas sobre Aimee, não me fez perguntas sobre nada. Pensei:
finalmente chegou ao centro, está «no poder». Sim, apesar de gostar de se
caracterizar como um «espinho no flanco do partido», a verdade é que está
no centro das coisas, finalmente, e a diferença deve ser essa. Agora tinha
aquilo que toda a vida desejara e de que mais sentira a falta: respeito.
Talvez já nem sequer lhe interessasse saber o que eu fazia da minha vida. Já
não precisava de a encarar como um juízo sobre a sua pessoa, ou sobre a
forma como me criou. E embora tivesse reparado que agora não bebia, levei
também isso a crédito da nova imagem que formava da minha mãe: madura,
sóbria, segura de si, já não de pé atrás, um sucesso à sua maneira.
Foi esta linha de pensamento que me deixou desprevenida para o que
vinha a seguir. Parou de conversar, pousou a cabeça numa das mãos e disse:
«Querida, tenho de pedir a tua ajuda num assunto.»
Franziu-se ao dizer isto. Eu preparei-me para alguma forma de
dramatização. É horrível olhar agora para trás e perceber que este esgar era
mais provavelmente uma reação involuntária e sincera a uma verdadeira dor
física.
«E tentei resolvê-lo sozinha», disse, «não te envolver, sei que tens uma
vida muito ocupada, mas não sei a quem recorrer nesta altura.»
«Sim – bem, de que se trata?»
Estava muito concentrada a aparar as gorduras de uma costeleta de porco.
Quando finalmente levantei os olhos para a cara da minha mãe ela parecia
cansada como nunca a tinha visto.
«Trata-se da tua amiga – a Tracey.»
Eu pousei o talher.
«Oh, é ridículo, de facto, mas recebi um email, amigável... recebi-o no
consultório. Não a via há anos... mas pensei: Oh, Tracey! Era sobre um dos
filhos, o rapaz mais velho – tinha sido expulso da escola, injustamente na
opinião dela, e pedia-me ajuda, percebes, e por isso lhe respondi, e a
princípio não me pareceu muito estranho, estou sempre a receber cartas
daquelas. Mas agora não sei, dou comigo a pensar: e se tudo não passasse
de uma artimanha?»
«De que é que estás a falar, mamã?»
«Achei que era um bocado estranho, a quantidade de emails que ela
estava a enviar, mas... bem, sabes, não trabalha, isso é evidente, e não sei se
alguma vez trabalhou. E continua a viver naquele maldito apartamento. Só
isso já era suficiente para dar com uma pessoa em doida. Deve ter tempo de
sobra – e de repente desata a enviar emails, dois ou três por dia. A opinião
dela era que a escola expulsava injustamente os rapazes negros. Fiz
algumas pesquisas, mas parece que neste caso, bem... A escola achava que
tinha argumentos sólidos e eu não pude fazer mais nada. Escrevi-lhe e ela
ficou muito zangada, e enviou uns emails muito zangados, e eu pensava que
aquilo ia ficar por ali, mas – era só o princípio.»
Coçou nervosamente a nuca abaixo do lenço de cabeça e eu reparei que
tinha a pele do pescoço irritada.
«Mas, mamã, porque é que havias de responder a uma coisa vinda da
Tracey?» – disse eu, agarrada aos lados da mesa – «eu podia ter-te dito que
ela não é mentalmente estável. Conheço-a há muitos anos!»
«Bem, em primeiro lugar é minha eleitora, e eu respondo sempre aos
meus eleitores. E quando percebi que era a tua Tracey – não sei se sabes
que mudou de nome – mas os emails eram muito... esquisitos, muito
estranhos.»
«Há quanto tempo é que isso dura?»
«Há perto de seis meses.»
«Porque é que não me contaste antes!»
«Querida», disse ela, e encolheu os ombros: «Quando é que teria tido
oportunidade?»
Tinha emagrecido tanto que a sua cabeça magnífica parecia vulnerável
em cima do pescoço de cisne, e esta nova delicadeza, esta sugestão de
tempo mortal a consumi-la como consome toda a gente, falaram-me mais
alto do que qualquer das velhas acusações de abandono filial alguma vez
havia falado. Pousei a minha mão sobre a dela.
«Esquisitos em que sentido?»
«Não quero falar sobre isso aqui. Depois mando-te alguns exemplos.»
«Não sejas assim dramática, mamã. Dá-me só uma ideia.»
«São muito ofensivos», disse ela, de lágrimas nos olhos, «e eu não tenho
andado a sentir-me muito bem, e tenho recebido muitos, chegam a ser doze
num dia, e sei que é estúpido, mas aquilo perturba-me.»
«Porque é que não deixas a Miriam encarregar-se disso? É ela que se
encarrega das tuas comunicações, não é?»
Ela retirou a mão e assumiu a expressão de deputada sem funções
governativas, um sorriso breve e triste, adequado para enfrentar perguntas
sobre o serviço de saúde, mas deslocado a uma mesa de jantar.
«Bom, mais cedo ou mais tarde vais saber: separámo-nos. Eu continuo a
viver no apartamento de Sidmouth Road. Tenho de continuar no mesmo
bairro, evidentemente, e não encontro outra solução como aquela, pelo
menos para já, por isso pedi-lhe que se mudasse. Claro que, tecnicamente, o
apartamento é dela, mas foi muito compreensiva. Sabes como é a Miriam.
Mas, pronto, não é o fim do mundo, não há ressentimentos, e conseguimos
que não chegasse aos jornais. Portanto acabou.»
«Oh, mamã... lamento. A sério.»
«Não lamentes, não lamentes. Há pessoas que não suportam ver uma
mulher com uma certa dose de poder, e é só isso. Já passei por isso antes e
vou voltar a passar, tenho a certeza. Vê o caso do Raj!», disse, e havia tanto
tempo que não pensava no Destacado Ativista pelo seu verdadeiro nome
que cheguei à conclusão de que o havia esquecido. «Fugir com aquela
desmiolada mal eu acabei o meu livro! É culpa minha que ele nunca tenha
acabado um livro?»
Não, tranquilizei-a, não era culpa dela que Raj nunca tivesse acabado o
livro dele, sobre a mão de obra «cule» nas Índias Ocidentais – apesar de
andar há duas décadas a trabalhar nele – enquanto a minha mãe começou e
acabou o seu, sobre Mary Seacole, em um ano e meio. Sim, o único culpado
era o Destacado Ativista.
«Os homens são tão ridículos! Mas afinal as mulheres também são. Mas
adiante, de certo modo até é bom... A certa altura achei mesmo que ela
estava a interferir em termos que... Bem, a obsessão dela com as «nossas»
práticas empresariais na África Ocidental, as violações dos direitos
humanos, e por aí fora – quer dizer, andava a estimular-me a fazer
perguntas na Câmara –, em áreas sobre as quais não estou propriamente
habilitada a falar – e bem vistas as coisas penso que do que
verdadeiramente se tratava, de um modo cómico, era de tentar criar uma
quezília entre mim e ti...» Não me passava pela cabeça que Miriam tivesse
uma motivação tão inverosímil quanto esta, mas fiquei calada. «... E eu
estou a envelhecer e já não tenho a energia que tinha, e a verdade é que
quero concentrar-me nas minhas preocupações locais, no meu eleitorado.
Sou uma representante local e é isso que quero fazer. Não tenho ambições
para além dessas. Não sorrias, querida, não tenho mesmo. Já tive. A certa
altura disse à Miriam: “Ouve, todos os dias me entra pelo consultório gente
da Libéria, do Senegal, da Gâmbia, da Costa do Marfim! O meu trabalho é
global. O meu trabalho é aqui. Estas pessoas vêm de todo o mundo para o
meu círculo eleitoral, naqueles barquinhos horríveis, chegam traumatizadas,
viram morrer outras pessoas mesmo na sua frente, e vêm para aqui. Isto é o
universo a tentar dizer-me alguma coisa, sinto verdadeiramente que nasci
para fazer este trabalho.” Pobre Miriam... É muito bem-intencionada, e só
Deus sabe como é organizada, mas às vezes falta-lhe a perspetiva das
coisas. Quer salvar toda a gente. E uma pessoa assim não é a melhor das
parceiras de vida, podes crer, se bem que sempre vá considerá-la uma
administradora muito eficiente.» Foi impressionante – e um pouco triste.
Perguntei-me se não haveria uma epígrafe igualmente gélida para mim: Não
era a melhor das filhas, mas era uma companhia perfeitamente adequada
para um jantar.
«Tu achas», perguntou a minha mãe, «achas que ela está
destrambelhada... mentalmente doente ou...»
«A Miriam é uma das pessoas mais ajuizadas que alguma vez conheci.»
«Não – a tua amiga Tracey.»
«Preferia que deixasses de lhe chamar isso!»
Mas a minha mãe não estava a ouvir-me, estava no seu próprio sonho:
«Sabes, de certo modo... bem, pesa-me na consciência. A Miriam achava
que eu devia simplesmente ter ido à polícia por causa dos emails, mas... não
sei... quando envelhecemos, sem sabermos como, há coisas do passado...
que podem pesar sobre nós. Lembro-me de quando ela ia ao centro em
busca de aconselhamento... É claro que não vi as notas sobre ela, mas fiquei
com a sensação, ao falar com a equipa, de que havia problemas, questões de
saúde mental, já nessa altura. Talvez o meu primeiro erro tenha sido proibi-
la de continuar a frequentar o centro, mas a verdade é que não foi fácil
arranjar vaga para ela, e lamento mas na altura achei real e sinceramente
que ela tinha abusado da minha confiança, da tua confiança, da confiança
de toda a gente... É verdade que ainda era uma criança, mas de qualquer
forma foi um crime – e foi uma data de dinheiro –, tenho a certeza de que
foi todo para o pai – mas se te acusassem a ti, como ia ser? Na altura achei
que o melhor era cortar todas as ligações. Bem, calculo que tenhas muitas
opiniões críticas sobre aquilo que se passou – tens sempre muitas opiniões
críticas – mas só gostava que compreendesses que não foi fácil criar-te, a
minha situação não era fácil, e ainda por cima estava concentrada em tirar
um curso, adquirir qualificações, talvez demasiadamente concentrada, na
tua opinião... mas tinha de garantir uma vida melhor para ti e para mim.
Sabia que o teu pai não podia fazê-lo. Não era suficientemente forte para
isso. Ninguém mais ia fazê-lo. Tinha uma quantidade de bolas no ar ao
mesmo tempo, era assim que me sentia, e…» estendeu o braço sobre a mesa
e agarrou-me o cotovelo: «Devíamos ter feito mais – para a proteger!»
Eu senti o aperto dos seus dedos ossudos.
«Tu tiveste a sorte de ter um pai maravilhoso. Ela não. Não sabes o que
isso é porque tens sorte, a verdade é que nasceste com sorte – mas eu sei. E
ela fazia parte da nossa família, praticamente!»
Estava a implorar-me. As lágrimas que se haviam acumulado corriam-lhe
agora pela cara.
«Não, mamã... não, não era. Não estás a lembrar-te bem: nunca gostaste
dela. Quem sabe o que se passava naquela família ou de que é que ela
precisava de ser protegida, se é que precisava de ser protegida de alguma
coisa? Nunca ninguém nos disse – ela, pelo menos, nunca nos disse. Todas
as famílias daquela correnteza tinham segredos.» Olhei para ela e pensei:
queres saber qual era o nosso?
«Tu própria acabaste de o dizer, mamã: não se pode salvar toda a gente.»
Ela acenou várias vezes com a cabeça e levou um guardanapo às faces
molhadas.
«Isso é verdade», disse. «Uma grande verdade. Mas ao mesmo tempo,
não é verdade que podemos fazer sempre melhor?»
39 Nome pelo qual ficou conhecida esta comunidade heterogénea que no século XIX vivia no bairro
do Soho. (N. do T.)
5
Quando o Sol se pôs e não havia mais nada a fazer em matéria de visitas,
resolvemos dar o dia por terminado e reunir na manhã seguinte para a visita
à escola e uma reunião da aldeia. Aimee e o resto do grupo seguiram Fern
para a casa cor-de-rosa. Eu, curiosa em saber o que tinha acontecido desde a
minha última visita, fui para casa de Hawa. Na escuridão absoluta
encaminhei-me muito lentamente para aquilo que julgava ser o cruzamento
principal, tateando troncos de árvore como uma cega, e espantada a cada
passo com a quantidade de adultos e crianças que sentia cruzarem-se
comigo, caminhando rápida e eficientemente, sem lanternas, a caminho do
seu destino. Consegui chegar ao cruzamento e estava a poucos passos da
porta de Hawa quando Lamin apareceu ao meu lado. Abracei-o e disse-lhe
que Aimee o tinha procurado por toda a parte e esperava vê-lo no dia
seguinte.
«Estou aqui. Não fui para lado nenhum.»
«Bem, vou visitar a Hawa – vens comigo?»
«Não vais encontrá-la. Partiu há dois dias para se casar. Amanhã volta cá
em visita, ia gostar de te ver.»
Eu quis exprimir compaixão, mas não encontrei a frase certa.
«Amanhã tens de vir connosco na visita à escola. A Aimee procurou-te o
dia inteiro.»
Ele deu um pontapé numa pedra do chão.
«A Aimee é uma senhora muito simpática, está a ajudar-me e eu estou-lhe
grato, mas…» Travou de repente, como alguém que desiste de um salto
comprido, mas de repente resolveu saltar mesmo: «Ela é velha! Eu sou
novo. E um homem novo quer ter filhos!»
Parámos à porta de Hawa, olhando um para o outro. Estávamos tão
próximos que lhe senti o bafo no pescoço. Devo ter sabido nesse momento
o que ia acontecer entre nós, nessa noite ou na seguinte, e que seria uma
espécie de solidariedade oferecida com o corpo, na ausência de uma
solução mais clara ou mais eloquente. Não nos beijámos, naquele momento,
ele nem sequer me pegou na mão. Não era preciso. Ambos compreendemos
que já estava decidido.
«Bem, entra», disse ele por fim, abrindo a porta de Hawa como se fosse
da sua própria casa. «Estás aqui. É tarde. Comes cá.»
De pé no alpendre a olhar lá para fora, praticamete no mesmo sítio onde o
tinha visto da última vez, estava Babu, irmão de Hawa. Cumprimentámo-
nos muito calorosamente: como toda a gente que eu encontrava, ele
considerava o facto de ter decidido voltar mais uma vez uma espécie de
virtude, ou pelo menos fingia considerar. A Lamin limitou-se a fazer um
aceno de cabeça, não percebi se em sinal de familiaridade ou de frieza. Mas
quando lhe perguntei por Hawa ficou inequivocamente triste.
«Fui lá ontem ao casamento, fui a única testemunha. Por mim, não quero
saber se há cantores ou vestidos ou bandejas de comida – nada disso me
interessa. Mas as minhas avós! Oh, desencadeou uma guerra nesta aldeia.
Vou ter de ouvir queixumes das mulheres até ao fim dos meus dias!»
«Achas que ela está feliz?»
Ele sorriu como se eu tivesse dito algum disparate.
«Ah, sim – para os americanos essa é sempre a pergunta mais
importante!»
Trouxeram-nos o jantar, um verdadeiro banquete, e jantámos cá fora, com
as avós formando um círculo conversador na outra ponta do alpendre,
olhando para nós de vez em quando, mas demasiado ocupadas com a
conversa para nos prestarem grande atenção. Tínhamos um candeeiro solar
no chão que nos iluminava de baixo para cima: via a minha comida e a
parte inferior da cara de Lamin e do irmão de Hawa, e em fundo ouviam-se
os habituais ruídos da azáfama doméstica e de crianças que riam, choravam,
gritavam, e de pessoas das várias dependências que atravessavam o pátio
em todas as direções. O que não se ouvia eram vozes de homem, mas de
repente ouviram-se algumas ali muito perto, e Lamin levantou-se de um
salto e apontou para o muro da morança, onde, dos dois lados da entrada,
havia agora meia dúzia de homens sentados, de pernas voltadas para a
estrada. Lamin deu um passo na direção deles, mas o irmão de Hawa
agarrou-o pelo ombro e obrigou-o a sentar-se, avançando ele, ladeado por
duas das avós. Reparei que um dos rapazes estava a fumar e atirou a beata
com um piparote para o nosso pátio, mas quando o irmão de Hawa se
abeirou deles a conversa foi rápida: disse qualquer coisa, um dos rapazes
riu-se, uma das avós disse qualquer coisa, ele voltou a falar, com mais
firmeza, e meia dúzia de traseiros desapareceram da nossa vista. A avó que
havia falado abriu a porta e ficou a vê-los afastarem-se, pela estrada fora. A
Lua rompeu por entre um manto de nuvens e do sítio onde eu estava vi que
pelo menos um deles tinha uma arma às costas.
«Não são de cá, são do outro extremo do país», disse o irmão de Hawa,
de novo junto de mim. Continuava com o seu sorriso estudadamente
impassível, mas por trás dos óculos de marca vi-lhe nos olhos que estava
muito agitado. «Acontece cada vez mais. Ouvem dizer que o Presidente
quer estar no poder um bilião de anos. Estão a perder a paciência. Começam
a dar ouvidos a outras vozes. Vozes estrangeiras. Ou à voz de Deus, para
quem acredita que pode comprá-la numa cassete Casio por vinte e cinco
dalasi no mercado. Sim, estão a perder a paciência e eu não os censuro. Até
o nosso calmo Lamin, o nosso paciente Lamin esgotou a paciência.»
Lamin serviu-se de uma fatia de pão branco mas não disse nada.
«E quando é que te vais embora?», perguntou Babu a Lamin, num tom de
tal modo carregado de autoridade, de censura, que me fez pensar que estava
a referir-se a dar o salto, mas ambos se riram perante o pânico que deve ter-
me perpassado pelo rosto. «Não, não, não, vai ter papéis oficiais. Está tudo
a ser tratado, graças a vocês, que estão cá. Já estamos a perder os nossos
melhores jovens, e agora levam mais um. É triste, mas as coisas são como
são.»
«Tu também foste», disse Lamin com má cara. Tirou da boca uma
espinha de peixe.
«Os tempos eram diferentes. Não fazia cá falta.»
«Eu não faço cá falta.»
Babu não respondeu e a irmã não estava presente para preencher com
tagarelice os espaços das nossas conversas. Quando acabámos a nossa
refeição silenciosa, antecipei-me às muitas criadas-meninas, reuni os pratos
e encaminhei-me com eles para onde as tinha visto irem, para o último
compartimento da casa, que afinal era um quarto de dormir. Estava parada
no meio da luz ténue, sem saber o que fazer, quando uma das seis crianças
que lá dormiam levantou a cabeça da cama única, viu o que eu tinha nos
braços e apontou para uma cortina. Dei comigo no exterior, outra vez no
pátio, mas desta vez no pátio das traseiras, onde estavam as avós e algumas
raparigas mais velhas, acocoradas em volta de vários alguidares de água em
que lavavam roupa com grandes barras de sabão cinzento. Um círculo de
lâmpadas solares iluminava o cenário. Quando cheguei ao pé delas o
trabalho parou para assistirem a uma cena de teatro animal: um galo jovem
que corria atrás de uma galinha, subjugando-a, fincando-lhe as unhas no
pescoço, enterrando-lhe a cabeça na poeira, por fim montando-a. Esta
operação só levou um minuto, durante o qual a galinha se mostrou
contrariada, impaciente por ir à sua vida, pelo que a brutal sensação de
poder do galo sobre ela tinha um certo ar cómico. «Grande homem! Grande
homem!», clamou uma das avós quando me viu, apontando para o galo. As
mulheres riram-se, a galinha foi libertada, andou às voltas num passo
cambaleante, uma vez, duas, três vezes, aparentemente mareada, antes de
regressar à capoeira e à companhia das irmãs e dos filhotes. Eu pousei os
pratos onde me mandaram, no chão, e quando voltei verifiquei que Lamin
já se tinha ido embora. Percebi que era um sinal. Anunciei que também
tinha de ir para a cama, mas em vez disso deitei-me vestida no meu quarto,
à espera de que desaparecessem os últimos sons de atividade humana.
Pouco antes da meia-noite peguei na lanterna de cabeça, atravessei o pátio
sem fazer barulho, saí da morança e fui até à aldeia.
O resto do dia foi uma tortura, e o seguinte também, e o voo foi uma
tortura, a travessia do aeroporto, o telemóvel uma granada no meu bolso.
Não deflagrou. Quando entrei na casa de Londres estava tudo como antes,
só que mais feliz. As crianças estavam todas em sossego – pelo menos não
se ouviam –, o último álbum foi bem-recebido. Fotografias de Aimee e
Lamin juntos, ambos lindos – no dia do aniversário de Jay, no regresso do
concerto – apareciam em todos os pasquins de mexericos e tinham mais
sucesso, à sua maneira, do que o álbum propriamente dito. E a bebé teve o
seu debute. O mundo, como veio a verificar-se, não estava particularmente
curioso acerca dos pormenores logísticos, e a imprensa achava-a um
encanto. Parecia lógico para toda a gente que Aimee pudesse adquirir um
bebé com a mesma facilidade com que podia mandar vir do Japão uma
carteira de série limitada. Sentada um dia na caravana de Aimee durante a
gravação de um vídeo, a almoçar com Mary-Beth, a segunda assistente
pessoal, aflorei o assunto na esperança de que ela se descaísse com algumas
informações, mas não precisava de me ter dado a tantas cautelas: Mary-
Beth deu-mas com todo o gosto, fiquei a saber a história toda, tinha havido
um contrato elaborado por um dos advogados de espetáculos, dias depois
Aimee conheceu a bebé, e Mary-Beth tinha ido assistir à assinatura. Estava
encantada com esta prova da sua própria importância e com o que ela dava
a entender acerca da minha posição na hierarquia. Pegou no telemóvel e
mostrou-me as fotografias de Sankofa, os pais e Aimee sorridentes, e no
meio delas, reparei, estava uma reprodução do contrato. Quando ela foi ao
quarto de banho e deixou o telefone à minha frente, enviei a imagem do
contrato para o meu email. Um documento de duas páginas. Uma quantia
astronómica, em termos locais. Gastávamos praticamente o mesmo em
flores para a casa durante um ano inteiro. Quando abordei o assunto com
Granger, o meu último aliado, ele surpreendeu-me ao considerar que se
tratava de um caso nobre de «passagem das palavras aos atos», e falou tão
enternecidamente da bebé que tudo aquilo que eu tinha a dizer iria parecer
monstruoso e insensível. Concluí que não era possível ter uma conversa
racional. A bebé enfeitiçava-os. Granger estava tão apaixonado por Kofi,
como lhe chamávamos, como toda a gente que se aproximava dela, e não há
dúvida de que era fácil amá-la, ninguém lhe ficava imune, nem mesmo eu.
Aimee estava enfeitiçada: era capaz de passar uma hora ou duas sentada
com a criança ao colo, a olhar embevecida para ela, sem fazer mais nada e,
conhecendo a relação de Aimee com o tempo, o valor e escassez que tinha
para ela, todos compreendíamos a grande demonstração de amor que isto
representava. A bebé compensava toda a espécie de situações enfadonhas –
reuniões com os contabilistas, monótonas provas de guarda-roupa, sessões
de geração de ideias para estratégias de RP –, mudava a tonalidade de um
dia com a sua simples presença a um canto de qualquer sala, ao colo de
Estelle ou embalada numa alcofa em cima de um suporte, a rir, a chilrear, a
chorar, impoluta, fresca e nova. À primeira oportunidade acotovelávamo-
nos todos em volta dela. Homens e mulheres, de todas as idades e raças,
mas todos com uma certa quantidade de tempo acumulada ao serviço de
Aimee, desde velhos e cansados cavalos de batalha como Judy, passando
por gente do meio da tabela como eu, até jovenzinhos acabados de sair da
universidade. Todos oficiávamos no altar da bebé. A bebé estava a começar
do zero, a bebé não tinha compromissos, a bebé não estava a abrir caminho
à força, a bebé não precisava de imitar a assinatura de Aimee em quatro mil
retratos promocionais com destino à Coreia do Sul, a bebé não tinha de
gerar sentido a partir de cacos disto e daquilo, a bebé não tinha recordações
nem remorsos, não precisava de uma limpeza química da pele, não tinha
telemóvel, não tinha a quem enviar emails, ela sim, tinha o tempo a seu
favor. O que quer que acontecesse depois não era por falta de amor à bebé.
A bebé estava rodeada de amor. A questão é saber o que o amor nos dá
direito a fazer.
8
Na última vez que vi a minha mãe com vida conversámos sobre Tracey.
Dito de modo mais forte: Tracey era de facto o único tema que nos fazia
falar. A minha mãe estava quase sempre tão cansada que não podia falar ou
ouvir falar, e pela primeira vez na sua vida os livros não a seduziam
minimamente. Em vez de ler, eu cantava-lhe, e ela parecia gostar – desde
que não saísse dos velhos clássicos da Motown. Víamos televisão juntas,
coisa que nunca antes havíamos feito, e eu conversava sobre banalidades
com Alan Pennington, que aparecia com frequência para ver como estavam
os violentos soluços da minha mãe e as suas fezes e a progressão das suas
alucinações. Trazia o almoço, para o qual ela já não podia olhar, e muito
menos podia comê-lo, mas nesse último dia que passámos juntas, quando
Alan saiu do quarto, abriu os olhos e disse-me numa voz calma e
autoritária, como se estivesse a comentar uma coisa que era um facto
simples e objetivo – como o tempo que fazia lá fora ou o que tinha no prato
– que era altura de «fazer alguma coisa» em relação à família de Tracey. A
princípio pensei que estivesse perdida no passado, era muito frequente nos
últimos dias, mas rapidamente percebi que estava a falar das crianças, dos
filhos de Tracey, embora ao falar deles divagasse entre a realidade deles, tal
como a imaginava, a história da nossa pequena família e uma história mais
profunda: era o seu último discurso. Trabalha tanto, disse a minha mãe, e os
filhos não a veem, e agora querem tirar-me os meus filhos, mas o teu pai era
muito bom, muito bom, e muitas vezes penso: fui uma boa mãe? Fui? E
agora querem tirar-me os meus filhos... Mas eu era só uma estudante, ando
a estudar, porque temos de aprender para sobreviver, e eu era mãe e tenho
de aprender, porque sabíamos que qualquer de nós que eles apanhassem a
ler ou a escrever podia ir parar à cadeia ou apanhar chicotadas ou coisa pior,
e quem nos ensinasse a ler ou a escrever tinha a mesma sorte, cadeia ou
chicotadas, era a lei naquele tempo, era muito rigorosa, e nesse sentido
fomos arrancadas ao nosso tempo e lugar, e depois deixámos de saber
sequer qual era o nosso tempo e lugar – e isso é o pior que se pode fazer a
uma pessoa. Mas não sei se a Tracey era uma boa mãe, embora eu tenha a
certeza de que fiz o melhor que podia para os criar a todos, mas não tenho
dúvida nenhuma de que o teu pai era muito bom, muito bom...
Eu disse-lhe que ela era boa. Que o resto não interessava. Disse-lhe que
toda a gente tinha feito o melhor que podia dentro das limitações que tinha.
Não sei se me ouviu.
Estava a reunir as minhas coisas quando ouvi Alan Pennington no
corredor, a cantar à sua maneira monocórdica, desafinada, uma das faixas
de Otis que a minha mãe preferia, sobre nascer junto ao rio e nunca mais
parar de correr. «Ouvi-a cantá-la ontem», disse-me, assomando à porta,
animado como sempre. «Tem uma linda voz. A sua mãe tem muito orgulho
em si, sabe, está sempre a falar de si.»
Sorriu para a minha mãe, mas ela já não estava a pensar em Alan
Pennington.
«É claro como água», murmurou, fechando os olhos enquanto eu me
levantava para me ir embora. «Deviam estar contigo. O melhor lugar
possível para aquelas crianças é contigo.»
Durante o resto da tarde alimentei a fantasia, não convicta, acho que não,
foi apenas uma canção de sonho em Techicolor que passou na minha
cabeça: uma família pronta a usar, feita de repente aqui e agora, para me
preencher a vida. No dia seguinte, dei um passeio matinal à volta do
perímetro inóspito de Tiverton Rec, com o vento a soprar pela vedação de
rede, levando para longe paus lançados para os cães apanharem, e dei
comigo a continuar a andar, na direção oposta à de casa e passando a
estação que me teria levado à clínica. A minha mãe morreu às dez horas e
doze minutos, na altura em que eu virava para Willesden Lane.
Surgiu-me diante dos olhos a torre de Tracey, por cima dos castanheiros-
da-índia, e com ela a realidade. Aqueles não eram meus filhos, nunca
seriam meus filhos. Estive quase a dar meia-volta, como alguém que acorda
de um passeio sonâmbulo, não fora uma ideia, nova para mim, de que
talvez tivesse mais alguma coisa para oferecer, alguma coisa mais simples,
mais honesta, entre a ideia de salvação da minha mãe e o nada absoluto.
Impaciente, saí do caminho e atravessei o relvado em diagonal, em direção
à passagem coberta. Ia mesmo a entrar na caixa da escada quando ouvi
música, parei e olhei para cima. Ela estava mesmo por cima de mim, na sua
varanda, em robe e chinelos, mãos no ar, girando, girando, os filhos à sua
volta, todos a dançar.
AGRADECIMENTOS