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Conrado Moltrini

Para nós, existia sabor em cada palavra que Conrado Moltrini pronunciava,
porque ali havia algo mais vivo do que ele ou algo necessário para que ele continuasse
vivo, e encarava a cada dia como uma vida nova, mesmo que as vivesse sempre mal. Um
herói construído por uma criança, nada mais. Vestia sempre camisas limpas e calças
claras de sarja tão largas e compridas que encobriam seus sapatos. Em diversas ocasiões
ele afirmava ser parente de um dragão e por isso conseguia soltar fumaça pelas narinas.
Alguns meninos tentavam estragar o prazer dizendo que era por causa do cigarro, que
de fato nunca abandonava, mas a maioria de nós não era habituada com gente soltando
a fumaça do cigarro pelo nariz, então as tentativas de desmascarar Moltrini se tornavam
descabidas.
Os adultos o viam com ambiguidade: primeiro, como um senhor generoso,
educado e ótimo contador de histórias, possivelmente o grande narrador que havia
colocado os pés em Caxias. E, logo depois, como uma ameaça reticente, porque
ninguém conseguia impedir a sua aparição e porque a cada dia sua batalha contra a
bebida era mais e mais indomável. Se a grandeza de um homem pudesse ser medida
pelo nível de sofrimento e de prazer que alguém conseguisse aguentar, Moltrini seria
uma espécie de deus, e talvez o fosse.
Em uma manhã, estávamos jogando futebol na frente da casa da minha mãe. Era
um paralelepípedo muito mal acabado e na esquina havia uma mercearia com mesas na
rua para que, nos dias quentes, as pessoas pudessem beber tranquilamente na calçada;
mas as noites se alongavam ali e normalmente havia confusão e com isso brotavam como
erva daninha píncaros de cacos de vidro no chão. Por isso, ninguém gostava de levar a
sua bola para jogar, mas dessa vez eu cedi. Eu jogava como zagueiro, éramos em oito e
eu só conhecia bem um vizinho. Meu principal objetivo era que o jogo terminasse
empatado. Apoiávamos chinelos nos capins mais duros que alvejavam das pedras para
servir de goleira.
Estávamos perdendo por 3x1 quando minha mãe me chamou. Precisava que eu
comprasse arroz e cebola na mercearia, porque era urgente, ela disse, já que
normalmente evitávamos aquele lugar porque tudo era muito mais caro. O filho do
alemão Ricardo, que era cliente do meu pai, disse que era pra eu deixar a bola e eu
deixei, a contragosto.
Quando voltei, só estava o João me esperando, sem a bola e com cara de bunda.
Eu sabia que não era pra ter deixado a bola, ele disse.
Um dia eles vão voltar.
Sem a bola.
Aí eu roubo a deles.
Duvido.

Era de noite, meu pai fazia churrasco. Comemoração do primeiro turno das
eleições, o partido da classe média havia ficado em primeiro, com larga vantagem. A
casa estava tomada de bandeirinhas e adesivos, as pessoas riam e se abraçavam, como se
a vida boa enfim chegasse. O filho do alemão Ricardo estava lá e me evitava. Nunca
peguei direito seu nome, era algo como Robealan ou Robenaldo, algo estranhíssimo.
João me deu uma cotovelada de leve, porque Moltrini estava no portão. Pela
primeira vez, não conseguia entrar. As pessoas o ignoravam descaradamente ou fingiam
que não o tinham visto. Apitos e fogos ecoavam na noite fria. Fui até lá e abri o portão.
Ele estava muito sujo, com uma camiseta da Sociedade Protetora dos Animais e calção
e chinelos.
Entrou sem cerimônia, pegou uma cerveja e ficou lá fora sentado, do lado da
gente.
Esperávamos que ele nos contasse alguma história ou pelo menos falasse algo,
mas ficou quieto, taciturno, olhando com muita calma um figo destroçado na grama.
Lembrei da história que Moltrini contava que se nós ficássemos olhando por uma hora
inteira nos olhos de um animal nós nos transformaríamos nele, independentemente de
qual bicho fosse, uma aranha ou um graxaim, desde que o olhar fosse recíproco e em
nenhum momento fosse rompido. Moltrini contava que já havia se transformado em um
gato, em uma tartaruga, em uma corça (quando esteve na Rússia), num elefante (o mais
fácil, segundo ele) e numa piranha (o mais difícil). Nesse momento, pensei que talvez
ele estivesse tentando aplicar sua técnica ao figo ou a algum animal minúsculo que havia
encontrado ali.
Mas Moltrini não disse nada. Ninguém vinha conversar com ele e ele não fazia
muita questão de ser notado. Só que havia ira no seu olhar, uma ira contra a indiferença,
me parecia. Ele não pertencia àquele grupo, era o que nos dizia, de certa forma. Então
se levantou, já muito trôpego, e mijou no meio do salão, que estava totalmente aberto.
Alguns murmúrios se ouviam nos cantos, mas fora isso o silêncio era geral. Perplexas e
impacientes as pessoas esperavam o término do espetáculo. Um homem ruivo de barba
muito rala – depois descobriu que havia sido candidato a vereador e que recebeu apenas
18 votos – ameaçou Moltrini com um espeto. Mas ninguém o tocou, ninguém mais se
dirigiu diretamente a ele.
Meu deus, como me odeiam e mesmo assim não podem fazer nada comigo –
disse, voltando ao nosso lado. Depois ficou pensativo, tentando seguir com o olhar uma
nuvem. Guri, – se dirigiu a mim, sem me encarar – ama aquilo que tu não tem. E foi
embora, como chegou.
Quando fui me deitar, minha bola estava intacta em cima da minha cama.

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