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Luís de Sttau Monteiro

Redacções da Guidinha

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O meu padrinho José Cardoso Pires é um safado que nunca me dá
amêndoas pela Páscoa nem presentes pelo Natal e que está em Londres com a
consciência tranquila enquanto a afilhada anda por cá a rapar fome por causa
da alta dos preços e a ficar azarzoada com os discursos dos políticos e a lixar-se
por dentro e por fora com isto tudo mas deixemos de parte o meu padrinho que
emigrou para poder comer bifes e para viver bem (...) o safado é tão esperto que
emigrou para o país do whisky
Depois veio outro salvador da Pátria chamado Salazar que não gramava a
malta da Graça por nada deste mundo e que resolveu salvá-la outra vez ena pai
ena pai ena pai que rica salvação! a primeira coisa que esse Salazar fez foi pôr
adesivo na boca da malta toda para ela não falar a segunda coisa foi chamar os
netos do tal D. Miguel e metê-los numa coisa que houve chamada píde que era
um grupo de caceteiros que usava pistolas e metralhadoras em vez de cacetes e
que metia a malta da Graça numa estância de Verão que esse Salazar tinha em
Caxias enfim mais desgraças de maneira que não espanta que a malta da Graça
agora ande com medo de ser salva outra vez sim porque se há coisas que a
malta da Graça não aguenta é outra salvação como as antigas.

Luís Sttau Monteiro

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Edição de Helena de Gubernatis

O Independente
Lisboa, 2004

Horas Extraordinárias

Concepção, direcção editorial e produção gráfica


Vasco Rosa

A Guidinha antes e depois,


de Luís Sttau Monteiro

Printer, Indústria Gráfica


B. 1977

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Índice

Antes e Depois, de Helena de Gubernatis


Quem sou eu?
Quem sou eu?
As minhas memórias de infância
Os meus primeiros passos na vida,
A verdade acima de tudo

A Graça é bestial.
Civilização na Graça
A Graça está chata
Já fui
Eleições no Rebenta Canelas
A Graça está uma desgraça em matéria de fé
Buff que estou farta
O meu pai anda com a mania que é marisco
As desgraças cá da Graça
Deus nos livre dos santos e dos iluminados que dos maus sabe a gente
safar-se
A Graça está cheia de bombas
Os demónios da Graça
O Pele não veio à Graça diabos o pintem
O que é um bife?
A Graça vai ser um país de turismo

Aldeias de Portugal.
Areeiro
Alfama
Campo de Ourique
O Bairro Alto
A Estrela
Benfica
Alcântara

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Vou ser designer
Tive uma bolsa para ir à exposição do design
Vou ser designer
Mais designs

Os meus primeiros namoros


Os meus primeiros namoros
Também tive um namoro a sério
O meu primeiro noivado

A Chatice das aulas


Vou-me licenciar por obra e graça do Espírito Santo
Que chatice começaram as aulas
Para os meninos do Liceu Pedro Nunes
O meu Pai foi preso
A linguagem é bestialmente importante
O ensino superior comprido e o ensino superior curto
A chuva (uma redacção no velho estilo da Guidinha)

Ora abóbora
O pó
As boas educações
Os empregos
Mexericos
As marchas populares
O Natal foi tão bom ai que bom que foi o Natal
Até que enfim
É preciso mais imaginação porque esta não chega
Deu a mania do cinema ao meu pai
A abóbora
Futebol e vinho tinto
Ando a poupar energia
Ena pai que festival de civismo
Contribuição para um dicionário de português contemporâneo
Precisamos dum cortejo histórico
É festa é festa
Então mas que é isto?

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Da arte de driblar a censura
O sapo queixinhas
Disto e daquilo, principalmente daquilo

6
Para a Clara
(1963-2003)
minha irmã gémea e minha melhor amiga

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Conhecemos a Guidinha num domingo à tarde em casa da avó Paula pela
mão do nosso Pai, aliás pela voz dele porque nessa altura em 1969 quando a
Guidinha começou a escrever ainda a Clara e eu não sabíamos ler Essa leitura
em voz alta saboreada vezes três tornou-se num ritual aguardado
semanalmente com curiosidade e entusiasmo Mais tarde aprendidas as letras
ganhámos desenvoltura e vocabulário da melhor maneira a sorrir!
Graças à Guidinha soube pela primeira vez que existia um bairro chamado
Graça onde fui parar em crescida e ainda moro radiante também por isso vai
para dez anos aprendi a descortinar sentidos na ausência deliberada de
pontuação cultivada com mestria pela língua afiada de Luís Sttau Monteiro
(1926-93) e generosamente posta ao serviço da sua lucidez crítica em tempos de
censura o ignóbil lápis azul pude aceitar trinta e tal anos mais tarde este
saboroso desafio duplo o do mergulho retrospectivo numa infância feliz vivida
em estereofonia e na atribulada história recente de Portugal que a minha
geração só pôde decifrar a posteriori.
A Graça da Guidinha como microcosmos do país no seu melhor e no seu
pior respectivamente asfixiado e alimentado pela tacanhez do Estado Novo
resistindo com orgulho bairrista a pertencer à mesma cidade... como se a Graça
não fizesse parte de Lisboa e simultaneamente fosse a sua última reserva moral
(ou mural?) a oposição possível ao Portugal dos Pequenitos em todo o seu
esplendor!
A Guidinha com graça em plena Ditadura no tempo das Conversas em
Família de Marcello Caetano do Se Bem Me Lembro de Vitorino Nemésio da
pasta medicinal Couto do restaurador Olex do creme desodorizante Bily do
Cartaz tv do TV Rural dos pastéis de bacalhau sem bacalhau do E a Vida
Continua do folclore popular e televisivo com ou sem Pedro Homem de Mello
do Museu de Cinema mudo com Lopes Ribeiro e António Melo à voz e ao
piano muitos artistas de variedades outras tantas metáforas do país
amordaçado já em Democracia no tempo das primeiras eleições da Gabriela e
seguinte invasão das telenovelas brasileiras dos concursos televisivos como A
Prata da Casa e A Cornélia da desvalorização da moeda da continuada ausência
do bacalhau das reformas de rabo na boca das excursões oficiais do ultimo
Tango em Paris chegado com jet lag das passagens administrativas expressões
de liberdades conquistadas mas nem sempre digeridas no país recuperado...

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Entre 1969 e 1980 primeiro no suplemento «A Mosca» do Diário de Lisboa
pela mão do «padrinho» Cardoso Pires depois em O jornal pela mão afável de
Afonso Praça graças ao talento de Luís Sttau Monteiro antes a Guidinha
emprestou a sua voz infantil aos que não tinham voz porque às crianças mais
facilmente se perdoa o não terem papas na língua... embora nessa altura nem
sequer fosse permitido festejar o Dia Mundial da Criança depois quando as
vozes se levantaram e por vezes se confundiram a Guidinha em trânsito
sobreviveu teimosamente mostrando que continuava atenta sem
condescendências...
Grata à Guidinha pois também porque pelo caminho encontrei outros
«grilos» desenhados que podiam ser primos dela o Astérix a Mafalda o Calvin
mas só pude reconhecê-los por a ter conhecido tão cedo...
Quase vinte e cinco anos depois da última «Redacção da Guidinha»
muitas idiossincrasias persistem mas o sentido de oportunidade da partilha
mantém-se para que a Guidinha nos lembre sempre que a amargura e a
decepção que os regimes mais ou menos musculados suscitam pode ser
transformada de maneira construtiva num sarcasmo metódico que aposta em
pôr-nos a nu através do ridículo tão temido quando muitos insistem em gabar-
nos os fatos.
Antes e depois como nas dietas fora e dentro como nas viagens... Abrir e
fechar os olhos e a boca... Resistir e acreditar sorrindo!

Helena de Gubernais
Antes e Depois

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Quem sou eu?

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Quem sou eu

Todos os dias recebo cartas a perguntar quem é que eu sou quem é que
escreve as minhas redacções onde é que eu moro o que é que faz o meu pai
quantos anos tenho porque é que não cresço e mais isto e mais aquilo até já
recebi umas cartitas com ofertas de caramelos e de chiclets que era melhor eu
não ter recebido sim porque eu não sou dessas meninas que andam para aí aos
caramelos e aos chiclets ora o que eu digo é que se as pessoas perguntam estas
coisas é porque não sabem ler porque eu assino Guidinha e que se eu me
chamasse Maria assinava Mariasinha não assinava Guidinha mas o melhor é eu
responder a todos duma só vez chamo-me Guidinha porque me baptisaram
Margarida do Rosário para passar manteiga à minha madrinha que também se
chamava Margarida do Rosário e que nessa altura ainda era solteira e tinha
umas quintitas lá na terra que o meu pai julgava que me vinham parar às mãos
mas se ele me pusesse o nome dela o que interessava muito porque essas
quintitas davam uma água-pé a puxar para o vinho que ele achava muito boa e
principalmente muito barata porque ela mandava-lhe uns garrafões da terra e
ele só pagava o frete o pior foi que lhe estalou a castanha no garrafão porque ela
casou com um lá da terra chamado Zé das Pingas que gostava tanto ou tão
pouco de água-pé que casou com ela sem se importar que ela tivesse o maior
bigode da região e agora nem água-pé há porque ele hipotecou-lhe as quintas as
quintas para comprar um Ford e anda nesse Ford a beber-lhe o resto do
dinheiro da hipoteca nas tascas o meu pai diz que ele até jogou no casino da
Póvoa enfim é por isso que eu me chamo Margarida do Rosário o meu segundo
nome é Guerreiro por via dum avô que eu tive do lado da minha Mãe chamado
Herrero que era de Vigo e parou lá na terra a caminho de Lisboa para onde
vinha trabalhar num vinhos e sandes qualquer mas ao saber que a minha bisavó
tinha três cordões de ouro um terreno onde hoje é o campo de futebol e uma
junta de bois que por acaso eram vacas ficou lá e casou com ela também para a
desgraçar porque a verdade é que ela ficou sem fios de ouro sem vacas e sem
terrenos e ele pirou-se para Vigo e nunca mais cá pôs os pés desse casal de
Herreros nasceu o meu Avô do lado da minha Mãe que se chamou Guerreiro
por patriotismo e que andou num convento a estudar para padre até conhecer a

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minha Avó que é aquela que vive cá em casa por ser mãe da minha Mãe e sogra
do meu pai e que tinha umas territas cheias de pedras e de cepa comidas pelos
anos e vai esse meu Avô Guerreiro quando a viu e soube disso também se
esqueceu de que ela tinha um bigode escurito e perdeu a fé completamente tão
completamente que largou a carreira de padre meteu umas cunhas ao regedor
da freguesia e entrou para a carreira de empregado da Câmara em que acabou
reformado antes de acabar de vez cá em casa quando escorregou num patim à
saída da casa de banho enfim coitado que descanse em paz o pior é que as
territas ficaram ao cuidado da minha Tia Amélia que vive lá na terra e nunca
mais deram nada nem um garrafão de azeite porque todos os anos ela escreve-
nos a dizer ora que foi a seca ora que foi a molha ora que foi a falta de amanho
ora que foi o não haver dinheiro para o estrume mas que tirássemos a ideia de
haver qualquer coisa a receber enfim como é que ela faz ninguém sabe mas a
verdade é que com a molha com a seca com a falta de estrume e com a falta de
mão-de-obra ela já tem um Fiat uma mercearia e um cabeleireiro coisas de
quem vive perto dos bens de raiz o meu terceiro nome é Antunes que vem do
lado do meu pai que é funcionário e que só não é bisneto dum funcionário
porque no tempo do meu bisavô os padres não podiam ser funcionários o que
até é justo sim porque tinha de haver qualquer coisa que eles não pudessem ser
enfim o meu pai é duma velha família de funcionários velhos e não se cansa de
dizer que enquanto os dele andavam a dirigir o país os da minha Mãe andavam
atrás das cabras nos montes mas a verdade é que quando de ano a ano nos
mandam um garrafão de água-pé só queria que vissem como ele e os primos
descendentes da velha família de funcionários se lambem com a água-pé dos
seguidores de cabras o meu primo Isequiel do lado da minha Mãe até diz que se
não tivesse havido tanto funcionário a mandar e a beber havia mais água-pé
mesmo muito mais água-pé mas desconfio que isso é política e por isso fico por
aqui enfim já sabem quem eu sou agora passo a outra coisa que é a minha idade
o que eu quero saber é o que as pessoas têm com isso sim o que é que as pessoas
têm com a idade dos escritores? já alguém se lembrou de escrever ao Jorge
Amado ou à Dona Odette de S. Moritz [sic] a perguntar-lhes a idade? aposto
que não e por isso não digo quantos anos tenho só digo que há para aí muita
gente que gostaria de ter a minha idade outra coisa que querem saber é porque
eu não cresço ora a quem me pergunta isto só respondo que vá engraxar
sapatos com cebo de girafa porque ninguém sabe se eu cresço ou não se calhar
até estou a minguar como está a minguar a minha paciência quando me fazem
perguntas destas de qualquer forma se eu não cresço é porque não sou da
natureza das que crescem e ninguém altera a natureza.

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In A Mosca, 25 Agosto 1973.

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As minhas memórias de infância

Não sei se sabem mas se não sabem ficam a saber que todas as semanas
recebo cartas a reclamar por eu ter doze anos há mais de dez anos o que eu
quero dizer é que desde que publiquei a minha primeira redacção em «A
Mosca» do Diário de Lisboa vai para dez anos que continuo com a mesma idade
e isso chateia as pessoas que me escrevem não sei porquê embora pense que é
por inveja sem porque como essas pessoas envelheceram dez anos nos últimos
dez anos têm uma inveja danada de mim por eu não ter envelhecido o que
mostra como as pessoas são más e rancorosas e não perdoam aos outros
conseguirem o que elas não conseguem sim porque não há ninguém senão eu
que deixe o tempo passar sem lhe ligar bóia e fique sempre com a mesma idade
e isso provoca raivas e invejas difamações e outros produtos nacionais da
mesma família de maneira que eu vou contar como é que nasci e vou relatar as
circunstâncias em que ocorreu o meu parto para começar nasci na Rua Luz
Soriano 100 num andar pequenino e desarrumado onde uns maduros então
chefiados por meu padrinho que se chama José Cardoso Pires preparavam um
suplemento chamado «A Mosca» que ia dando cabo da cabeça do meu pai e que
o teria levado rapidamente ao cemitério dos Prazeres se ele não tivesse
aproveitado uns restos de juízo para se safar já agora aproveito para dizer que o
meu padrinho José Cardoso Pires é um safado que nunca me dá amêndoas pela
Páscoa nem presentes pelo Natal e que está em Londres com a consciência
tranquila enquanto a afilhada anda por cá a rapar fome por causa da alta de
preços e a ficar azarzoada com os discursos dos políticos e a lixar-se por dentro
e por fora com tudo isto mas deixemos de parte o meu padrinho que emigrou
para poder comer bifes e para viver bem o safado que nem sequer emigrou para
os Brasis ou para as antigas colónias não senhor é tão esperto que emigrou para
o país do whisky que ele não é pessoa para ir em cocos nem para beber cachaça
enfim como eu ia dizendo nasci uma tarde em que era preciso lá nessa «A
Mosca» chatear a censura que era uma rolha que punham antigamente na boca
das pessoas para elas não dizerem o que pensavam e como era preciso chatear
essa censura o meu pai resolveu fazer uma página infantil na tal «A Mosca» na
esperança de que a censura fosse no bote e não olhasse para a página e isso
realmente aconteceu no primeiro número em que saiu a tal página que tinha

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um conto de uma série chamada «Contos da Tia Guidocha» escritos pelo meu
pai para chatear a censura o pior foi que nessa altura havia umas pessoas
chamadas denunciantes que ainda andam por aí mascaradas de outras coisas
sim porque eles não morreram nem se modificaram o que mudaram foi de
estilo antigamente acusavam as pessoas de quem não gostavam de serem
progressistas e agora acusam as pessoas de quem não gostam de serem
reaccionárias as palavras mudaram mas os pulhas são os mesmos pois como eu
ia dizendo uns denunciantes comunicaram logo à tal censura que tinham lido
um conto contra o Governo em «A Mosca» e vai caiu o Carmo e a Trindade em
cima dos maduros que estavam a fazer «A Mosca» e vai eles tiveram que mudar
de ideias e de projectos e vai o meu padrinho perguntou ao meu pai se ele não
tinha lá em casa uma outra pessoa de família que pudesse substituir a «Tia
Guidocha» e o meu pai disse que não mas ficou a pensar naquilo e resolveu
fazer-me isto parece esquisito e não diz lá muito bem dos hábitos do meu pai
que é danado para essas coisas mas a verdade é que eu fui feita na tarde do dia
seguinte na redacção da tal «A Mosca» e o pior não é só ele ter-me feito assim a
meio da tarde na redacção de um jornal não senhor o pior é que me fez à frente
de toda a gente em cima duma mesa com este passado o que é que querem que
eu seja? para a semana conto o resto.

In O Jornal, 1 Junho 1979.

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Os meus primeiros passos na vida

Depois do meu nascimento lá no 100 da Rua Luz Soriano nunca mais


deixei de trabalhar ainda eu era uma criança de mama e já era escrava porque
nessa altura não havia anos internacionais das crianças nem nada e como este
nada que não havia se aplicava à dispensa do meu Pai ele tratou de me explorar
o mais possível para começar atirou-me para as páginas da tal «Mosca» onde eu
descrevia tudo o que me passava pela cabeça desde as idas à Caparica aos
casamentos das minhas primas e às coisas que eu via as vizinhas fazer pus ali a
Graça toda a nu e toda a gente ficou a saber como é que as pessoas viviam só
não contei as aventuras da menina Fernanda porque tive vergonha mas
qualquer dia perco-a e conto tudo tudo tudo a minha grande desgraça nessa
altura era uns senhores duma coisa chamada Censura que passavam a vida a
cortar as minhas redacções e que me obrigavam a escrever duas três quatro e
cinco redacções por semana para se ter uma ideia do que era a minha vida basta
dizer que uma vez escrevi sete redacções em dois dias para eles me deixarem
passar uma se isto não é uma vergonha não sei o que é que o é já agora conto
que uma vez o meu Pai foi abordado por um senhor no meio da rua que lhe
perguntou se ele era o Pai da Guidinha e quando ele disse que sim o tal senhor
voltou-se para ele e disse-lhe que era da Censura e que mais dia menos dia o
metia na cadeia por ela andar a difamar as instituições como se isso fosse
verdade porque se há uma pessoa institucional essa pessoa sou eu mas a
história deste período da minha vida não fica por aqui não senhor isto tem
muito que se lhe diga olá se tem uma vez que essa tal censura cortou a minha
redacção o meu Pai resolveu deixar em branco o espaço em que ela devia ter
sido publicada na «Mosca» mas isso era proibido e não o deixaram fazer isso e
vai ele publicou nesse local uma fotografia pois querem saber o que aconteceu?
querem? nada mais nada menos do que um sermão dos tais senhores da
Censura que ficaram danados e que disseram que o lixavam se ele não
publicasse as minhas redacções todas as semanas naquele espaço estão a ver
como as coisas eram sim o meu Pai tinha de escrever as minhas redacções que
eles cortavam à vontade e se não escrevesse tramava-se esses anos da minha
infância foram muito difíceis, as crianças de agora nunca passaram pelo que eu
passei vou contar-lhes mais uma desse tempo um dia os senhores da Censura
cortaram uma redacção e o meu Pai mandou outra e vai eles cortaram a

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segunda e o meu Pai mandou mais uma e eles cortaram a terceira e o meu Pai
mandou a quarta e eles cortaram a quarta e o meu Pai mandou a quinta mas a
quinta também não lhes agradou e o meu Pai teve de lhes mandar a sexta mas a
sexta levou com riscos encarnados e o meu Pai mandou a sétima entretanto era
preciso fechar o jornal porque se ele não fechasse perdíamos os comboios e toda
a gente sabe que só ganhavam a vida sem grande trabalho os senhores da
Censura porque os outros tinham mesmo de dar tudo por tudo embora
tenhamos de ser verdadeiros e de dizer que nesse tempo era mais fácil ganhar a
vida do que agora pois como eu ia dizendo o meu Pai que já estava farto de
fazer redacções não teve outro remédio senão escrever uma que dizia assim
«quem disser que não se pode escrever em Portugal mente quem disser que não
se pode escrever em Portugal mente quem disser que não se pode escrever em
Portugal mente» e vai repetia isto mil vezes e eles cortaram-nas todas então o
meu Pai escreveu outra que dizia «Em Portugal pode-se escrever Em Portugal
pode-se escrever Em Portugal pode-se escrever» mil vezes e eles cortaram-nas
todas e o meu Pai não esteve com meias medidas rapou da caneta
e escreveu mil vezes «Em Portugal em Portugal em Portugal em Portugal
em Portugal» e mandou para a Censura para daí a bocado receber a prova toda
cortadinha enfim escrevo isto para verem como foram os primeiros dias da
minha vida que foi lixada hoje em dia as crianças não sabem como era difícil
viver nesse tempo ora abóbora boa tarde até para a semana.

In O Jornal, 8 Junho 1979.

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A verdade acima de tudo

Durante uma data de anos fui escrevendo redacções para a tal «A Mosca»
enquanto o meu Pai coitadinho se batia com a Censura e com este e com aquele
e vai um dia pediram-me para as redacções virem todas num livro chamado As
Redacções da Guidinha e eu disse que sim e vai foram lá a casa raparam das
minhas redacções todas e puseram-nas num livro e eu comecei a receber cartas
de toda a parte escritas por meninas e meninos a dizerem-me como eram a vida
deles e como é que os Pais lhes batiam e a perguntar o que é que haviam de
fazer para evitar levarem tanta pancada e como é que haviam de passar nos
exames sem saberem a tabuada e mais isto e mais aquilo e eu lia aquilo tudo
mas nunca respondia para não fomentar a desordem no país que não precisava
de mim para isso e o tempo foi passando sem ninguém dar por isso até que um
dia «A Mosca» acabou numa reforma qualquer para voltar uns tempos voltar
numa outra reforma e para acabar de vez numa terceira reforma para dizer a
verdade ainda esteve para voltar em mais sete ou oito reformas e para não
voltar em dez ou doze e eu calada que nem um rato porque em matéria de
reformas sou licenciada já assisti a reformas do ensino da linguagem da
administração do vocabulário dos costumes e sei lá que mais e só uma coisa é
certa essa coisa é que «atrás de reforma vem reforma» tão certo como dois e
dois serem quatro e que para reformar não há como os portugueses que
reformam rerreformam e rerrerreformam e está tudo sempre a pedir reforma
enfim como já percebi que a reforma é a vocação natural da Pátria é assim como
as touradas quando há reformas sento-me na minha cadeira e deixo-as passar
porque as reformas são como o vento passam sempre até vir outra e vem
sempre outra mais tarde ou mais cedo embora para dizer a verdade venham
quase sempre mais cedo pois como ia dizendo acabou a tal «Mosca» e eu fiquei
de férias vinha um vinha outro pedir para eu escrever mais redacções para aqui
e para ali mas eu não lhes dava ouvidos até que um dia veio um primo meu lá
de Trás-os-Montes chamado Afonso Praça que é um que gosta muito de paio e
de presunto e de boa pinga e que está sempre a dizer que um dia eu tenho de ir
comer isso tudo a casa dele mas que nunca se concretiza com uma data certa e
vai pediu-me para eu escrever redacções para uma coisa nova chamada O
Jornal eu pensei pensei e resolvi fingir que ainda tinha doze anos e que era a
mesma Guidinha da «Mosca» quando a verdade é que não era porque tinha

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crescido muito e aprendido muito e adquirido muita experiência nova em
muitos campos mas sempre na mira de ir comer presunto e paio a casa desse
meu primo calei-me e comecei a escrever agora porém rsolvi dizer a verdade e a
verdade é que não tenho doze há dez anos que tenho um namorão pingão e
ranhoso com um namorado chamado Odeceixe bem sei que o nome é esquisito
mas ele não é e que estou para casar com um noivo chamado Tô que já pagou as
sete primeiras prestações do frigorífico onde ele julga que eu vou guardar as
comidas coitado que tem tantas ilusões quem vai cozinhar lá em casa é ele e
além disso ainda tenho uns amores com o senhor Mesquita que são uns amores
assim assim porque o raio do homem não se descose com um pedido de
casamento só fala em passeios de automóvel e em idas ao Guincho como se eu
fosse dessas então não querem lá ver que um dia destes me perguntou se eu
queria ir beber um copo ao Sheraton o diabo do homem que julga que eu por
ser da Graça não sei muito bem o que as coisas querem dizer? é o que eu digo
julga que eu sou parva mas engana-se e um dia destes no automóvel quando
formos a chegar ao Guincho leva um pontapé no tornozelo que vai parar perto
enfim para a semana conto coisas do meu noivo chamado Tô.

In O Jornal, 22 Junho 1979.

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A Graça é bestial

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Civilização na Graça

Não há nada como a gente ler os jornais para andar à moda e crescer
depressa sim porque isto cá na Graça está velho como burro e quem manda é a
velharia que ainda vive como se vivia no tempo do rei D. Afonso Henriques
que era aquele que andava de espada na cintura para o caso de encontrar
mouros na rua mas é claro que não se pode viver assim e que isto não é vida
para ninguém e que se a gente não muda isto daqui a pouco os turistas deixam
de vir à Graça e lá se vai o pilim que a gente ganha com o turismo quem fica a
perder com isso é o sr. Lopes coitadinho que fuma cigarros feitos de beatas e
que anda sempre atrás de estrangeiros para apanhar as beatas deles porque diz
que elas têm um gostinho bestial que disfarça bestialmente o gosto dos cigarros
pois eu resolvi ler os jornais para modernizar a Graça e fazer com que ela fique
como Lisboa que é uma cidade grande e bestial tão boa como as que há lá fora
mas que é portuguesa para conseguir isso fui até à paragem dos eléctricos que
vão para a Baixa que é o sítio onde as pessoas deitam fora os jornais que
compram para ler na viagem mas não julguem que é fácil apanhar lá jornais não
é não senhor eu para arranjar alguns tive de andar à pancada com o filho da
mulher das castanhas que está lá de serviço todo o dia a arranjar papel para a
Mãe embrulhar as castanhas um jornal que dava muito gosto às castanhas era o
Diário de Lisboa mas agora têm uma maneira nova de o fazer que não dá gosto
nenhum palavra que é preciso não ter respeito nenhum pelos amadores de
castanhas enfim fui até lá e consegui dois ou três jornais para ver como era a
vida nos lugares mais bestiais de Lisboa a primeira notícia que vi foi uma duns
que queimaram uma rapariga com pontas de cigarros por ela ter dois
namorados ena pai que se esses dos cigarros vierem até à Graça queimar as
raparigas que têm dois namorados têm trabalho até ao fim da vida e nunca
mais têm de dar os nomes no desemprego eu conheço uma que até tem quatro
sim senhor quatro um que se chama António outro que se chama João outro
que se chama Manuel e outro que é careca mas não sei o nome dele enfim como
isso de queimar as pessoas que namoram muito fica bem às grandes cidades
resolvi queimar um que anda cá chamado Alberto que não namora ninguém
mas que é parvo esse Alberto é já a quarta vez que não me dá um rebuçado
apesar de andar sempre com os bolsos cheios e por isso merece umas
queimaduras e até merece ser afogado mas isso aqui na Graça é muito difícil

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porque o lago está à vista de toda a gente e se calhar é proibido afogar pessoas
digo isto porque nesta terra é tudo proibido de maneira que os proibidores
também são capazes de já ter proibido afogar pessoas enfim chamei a minha
amiga Crista que é muito boa para estas coisas porque diz sempre que sim a
tudo o que eu quero fazer expliquei-lhe o meu plano de queimar pessoas para
modernizar a Graça e fomos ambas à caça de beatas o pior foi que encontrámos
logo o sr. Lopes que começou aos berros a dizer que não tínhamos o direito de
andar às beatas porque ele é que fumava não éramos nós e que os cigarros
fazem cancros e mais isto e mais aquilo para o acalmar tivemos de lhe explicar
que não queríamos as beatas para fumar que só as queríamos para queimar o
Alberto e ele lá se calou a olhar para nós como se nunca tivesse visto ninguém e
depois fugiu pela rua acima o taradinho que quem o visse até era capaz de
julgar que éramos polícias mas isso é natural porque aqui a Graça anda muito
atrasada e as pessoas ainda não sabem a diferença entre ser moderna e ser
antiga enfim em menos de meia hora apanhámos uma data de beatas o sítio
melhor é à porta da igreja porque como é proibido fumar lá dentro os homens
que lá chegam a fumar têm de deitar os cigarros fora e alguns chegam a deitar
fora os cigarros muito aproveitáveis o que é pena é irem tão poucos homens à
igreja aqui na Graça é o que eu digo a Graça anda bestialmente atrasada em
tudo até mesmo nestas coisas de religião que tanta falta fazem a quem precisa
de beatas depois como o Alberto anda na escola primária sim porque apesar de
já ter doze anos o palerma ainda não conseguiu tirar a quarta classe fomos até lá
e escondemo-nos atrás do muro à espera de que acabassem as aulas e
escondemos os cigarros daí a um bocado apareceu o Alberto e eu chamei-o e
mostrei-lhe um rebuçado que tinha pedido emprestado à Crista a ver se ele
vinha e ele como é burro que nem uma porta veio logo a correr e a Crista disse-
lhe Abre a boca e fecha os olhos e o palerma obedeceu é claro que lhe meti logo
na boca um cigarrinho aceso que foi uma limpeza e ele fechou a boca queimou-
se mas é bem feito porque só um burro é que fecha a boca com um cigarro aceso
lá dentro e desatou aos berros que nem um doido começámos a fazer-lhe festas
e a perguntar o que é que ele tinha e se não tinha gostava dos rebuçados de fogo
sim porque se há rebuçados de licor porque é que não há-de haver rebuçados
de fogo? e dissemos-lhe que o melhor era ele sentar-se até aquilo lhe passar e
com isto e com aquilo levámo-lo até ao degrau duma porta eu pus-lhe outra
beata debaixo do sim senhor de maneira que quando ele se sentou deu outro
berro e outro salto sem razão nenhuma que essa beata até era americana e os
cigarros americanos são bestialmente chiques e levou a mão ao sim senhor a ver
o que é que tinha e enfiei-lhe outro cigarro na mão e ele sem saber o que era

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apertou-a e deu um berro tão grande que houve quem o ouvisse é claro que as
pessoas que o ouviram vieram logo a correr ver o que estava a acontecer sim
porque aqui na Graça as pessoas são bestialmente bisbilhoteiras e querem saber
tudo o que se passa nessa altura eu e a Crista resolvemos ir-nos embora por a
Graça já estar suficientemente civilizada para um dia e fomos mesmo no meio
disto tudo o Alberto sofreu um bocado lá isso é verdade mas para haver
civilização alguém tem de sofrer e antes ele que eu.

In A Mosca, 23 Janeiro 1972.

23
A Graça está chata

Cá na Graça tudo bem obrigado não está a acontecer nada de especial


senão boatos e mais boatos por todos os cantos primeiro foi o boato das casas
devolutas que eu ainda quis aproveitar mas logo por azar a única coisa
devoluta que encontrei no meu prédio foi a retrete e mesmo essa foi por pouco
tempo cá em casa temos pouca coisa devoluta sim porque com três assoalhadas
e meia não contando com o armário da cozinha para seis pessoas o único espaço
devoluto que temos como eu já disse é a retrete e mesmo isso é só às vezes
porque há por cá quem abuse sim há por cá quem abuse quando acabou esse
boato das casas devolutas começou a espalhar-se que ia recomeçar a guerra de
África mas nesse a gente para dizer a verdade não acreditou lá muito depois
veio o boato de que iam subir os transportes e a gente acreditou em todos que
foi uma limpeza depois veio o boato de que o peixe ia descer a gente não
acreditou cá na Graça a gente em matéria de boatos tem uma regra que nunca
falha e que é esta se vem o boato de que alguma coisa vai subir de preço não é
boato é verdade mas se vem o boato de que alguma coisa vai descer de preço
não é verdade é boato esta regra é bestial quem a seguir nunca se engana cá na
Graça a malta sabe muito destas coisas de preços enfim com esta arrumo a
questão dos preços para falar da carne que toda a gente sabe que subiu eu cá
antigamente gostava de carne acho que tinha um gosto bestial de que ainda me
lembro depois com a subida do preço conservou o mesmo gosto mas
desapareceu cá da minha casa se por acaso alguém souber dum bocado de
carne devoluto que me diga que vou logo a correr buscá-lo outra coisa que
chateia a gente cá na Graça é a lixívia não chegar às torneiras dos prédios altos
ao princípio quando começou a cólera ainda deitavam um bocado de água na
lixívia mas ultimamente talvez por causa da seca deitam lixívia pura para os
canos o meu pai coitadinho anda cada vez pior porque como é subdesenvolvido
não gosta do «gostinho da saúde» e só bebe vinho tinto estão a ver como anda a
vida cá em casa mas de qualquer forma a lixívia agora não chega aos andares
altos das casas a gente quando quer uma pinga de lixívia para cozer o arroz ou
para lavar a cara tem de ir pedi-la aos vizinhos do rés-do-chão ou do primeiro
andar ó vizinha dá-me licença de ir à sua torneira buscar uma pinga de lixívia
para o meu homem fazer a barba? e elas lá dão coitadas que não têm outro
remédio senão a gente diz no carvoeiro que elas são forretas e pronto ficam com

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pior fama que à que já têm e que é bem má enfim com esta da lixívia o que eu
posso dizer é que ando branquinha por dentro que até pareço uma parede
caiada outra notícia que houve cá na Graça foi a menina Odette andar à procura
dum emprego devoluto o que é bestialmente difícil de encontrar antigamente a
menina Odette vivia bem mas é que mesmo bem sem fazer nada mas é que
mesmo nada que se visse porque tinha um emprego nocturno digo isso porque
todas as noites vinha cá um Jaguar bestial buscá-la às nove e meia da noite e lá
para as cinco da manhã voltava a casa num Porsche ou num Lamborghini ou
num Mercedes conforme os dias que emprego é que ela tinha não sei o que sei é
que deve ter sido saneada porque já ninguém a vem buscar e trazer e porque
ela anda à procura dum emprego devoluto compatível agora lá com que o
emprego tem de ser compatível é que eu não sei antes de ontem perguntei-lhe o
que é que lhe tinha acontecido e ela disse-me que a vida nocturna andava uma
desgraça que era uma tristeza que o que estava a acontecer era muito mau para
o turismo e que já andava com saudades do passado coitadita que passa o dia à
janela a cantar o ó tempo volta para trás tenho ouvido dizer que não é só ela
que está em crise e que andam para aí muitas mulheres que trabalhavam no
turno da noite com pouco serviço está-se mesmo a ver que é obra da reacção
sim porque se elas trabalhavam e agora não trabalham quem é que tem a culpa
senão quem não lhes dá emprego? Disse-me a menina Odette que estava com
dificuldades porque o seu protector tinha ido a Espanha e ainda não tinha
voltado calculo que seja pessoa muito viajada e que se calhar não deixou a
menina Odette prevenida porque teve de sair de repente ouvi dizer que houve
umas pessoas que tiveram de sair de repente cá para mim é por isso que esta
gente anda a passar dificuldades enfim cá na Graça há de tudo o Zezinho que é
um de quem eu já tenho falado que trabalha na livraria-tabacaria-quinquilharia-
papelaria-artigos de ménage anda rico como tudo a vender revistas com
meninas nuas estendidas em sofás de cetim no outro dia o lambisgóio do
Vasquinho das vidraças que é um que tem menos um ano que eu chegou-se a
mim todo lambido e mostrou-me uma revista dessas a ver o que eu dizia e eu
não lhe disse nada vi a revista toda e no fim quando ele estava à espera do meu
comentário afinfei-lhe com o comentário na cara com tanta força que ele ficou
com a cara a arder uma data de dias para aprender mas lá que na Graça o
negócio é bom disso é que não há a menor dúvida porque não há miúdo que
não ande com uma revistinha dessas no bolso e não há graúdo que não compre
uma ou duas por semana isto se continua assim daqui a pouco deixamos de ser
subdesenvolvidos vai ser uma maravilha olá se vai e por hoje parece-me que

25
basta porque esta semana cá na Graça não aconteceu nada de especial de que
valha a pena falar vamos lá a ver se a semana que vem é melhor.

In A Mosca, 16 Novembro 1974.

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Já fui

Durante muitos anos bastava eu dizer que queria qualquer coisa para me
dizerem ainda não tens idade para isso ou então quando chegares à idade de ter
isso terás e outras coisas igualmente burras que os adultos inventam para
chatear a gente ou para não nos darem aquilo que a gente quer tinha eu dez
anos e vai uma vez apeteceu-me beber vinho do Porto num dia de festa como
toda a gente e vai começaram logo ainda não tens idade para beber vinho do
Porto como se houvesse uma idade especial para beber vinho do Porto doutra
vez quis ver uma fita portuguesa chamada O Leão da Estrela bestialmente
estúpida que ia na televisão e foi logo ainda não tens idade para ver o «Leão da
Estrela» que eu vi na leitaria sem eles saberem e que não tinha mesmo idade
para ver porque para gostar daquilo é preciso ter pelo menos a idade do Afonso
Henriques que já patinou mas toda a vida foi assim e quem se trama são sempre
eles porque quando há festas e eu desconfio que ainda não tenho idade para
beber vinho do Porto bebo-o lá dentro deito água na garrafa e quem bebe o
vinho aguado são eles só queria que as pessoas soubessem as coisas que eu
tenho feito sem ter idade para as fazer mas nisto de fazer coisas o melhor é uma
pessoa fazê-las pela calada e fechar a boca senão acaba como a minha Tia
Amélia que não tinha idade para casar quando tinha noivo e que não tinha
noivo quando chegou a idade para casar e que acabou sem casamento sem
noivo e sem nada senão manias e isso no tempo em que ainda havia noivos sim
porque agora os noivos emigram e quem fica são os velhos mas enfim isto são
outras histórias o que eu quero é contar que há cá na Graça um clube com
colóquios que é assim uma festa sem bolos nem laranjadas onde as pessoas vão
dizer coisas quando não têm mais nada que fazer e o assunto não interessa a
ninguém sim porque quando interessa não deixam e as pessoas têm de ir para o
café onde vão dizer as mesmas coisas que iam dizer ao colóquio e que lá diriam
se não houvesse colóquio nenhum mas isso é a vida pois este ano já houve um
colóquio sobre a bomba atómica e toda a gente foi contra mas como não havia lá
ninguém que tivesse uma bomba atómica ou que soubesse fazer uma não sei
bem para que é que aquilo serviu se fizessem um sobre bombas de Santo
António que sempre é uma coisa que se pode comprar nas capelistas ou fazer
em casa sempre valia a pena mas esta gente só gosta de coisas grandes outro
colóquio que lá houve muito importante foi um em que foi lá falar um que pinta

27
quadros e que explicou porque é que pinta assim e não assado e que disse
muito mal das coisas por não lhe comprarem os quadros todos e que acabou
por oferecer um ao clube que ninguém sabe onde é que há-de pôr mas eu a
esses colóquios não fui por não ter ainda idade para ir a colóquios sei o que se
passou porque me contou o Jorge da padaria que já tem idade para ir e que me
disse que não se passou nada mesmo nadinha senão as pessoas da Graça a
fugirem surrateiras e as de Lisboa a ficarem porque uma especialidade destes
colóquios que há lá na Graça é que meia hora antes de começarem começa a
chegar gente de Lisboa e acaba por não ir lá quase ninguém da Graça até me
disseram que esta gente que lá vai é sempre a mesma e vai a todos os colóquios
mesmo quando eles são longe para dizerem coisas e que tem dois partidos um é
o dos que sabem o que dizem e o outro é dos que dizem o que sabem e é pouco
enfim é uma maneira de passar o tempo e não é tão má como outras que há o
meu pai por exemplo se fosse mais a estes colóquios e menos aos da taberna
não perdia nada com isso mas enfim como não me deixavam ir a nenhum eu
resolvi ir às escondidas e fui mesmo a um sobre o papel da mulher na sociedade
contemporânea que é a de agora e gostei muito mesmo muito de ouvir falar
uma senhora que lá foi sobre o papel da mãe que é como o das que não são
mães mas que além disso são mães o que é bestial sim porque fiquei
bestialmente satisfeita por ouvir aquelas coisas que essa senhora disse e que eu
já tinha ouvido na televisão ditas de outra maneira porque a televisão também
tem muitos colóquios o que são é só com uma pessoa a falar e como a gente não
está lá não pode mandar essa pessoa bugiar ou fazer qualquer outra coisa o que
é uma pena de qualquer forma fui a um colóquio às escondidas e posso dizer a
toda a gente que não vale a pena ainda é mais chato que ficar em casa a ver o
quadradinho e isto é dizer muito mesmo muito olá se é.

In Mosca, 6 Janeiro 1973.

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Eleições no Rebenta Canelas

Ena pai o que para aqui vai por causa das eleições! ena pai! quem não
conhecesse o Rebenta Canelas cá da Graça e visse o que está a acontecer até era
capaz de pensar que valia a pena tomar conta dele e que os vencedores iam
ganhar muito com a vitória! é claro que as pessoas que sabem como as contas
andam o que querem é estar de fora ai não! enfim o melhor é eu começar do
princípio senão ninguém me entende pois os sócios do Rebenta Canelas da
Graça Futebol Clube vão votar uma gerência nova e há os que são do pró e os
que são do contra os que são do pró votam na gerência que está à frente do
clube e os que são do contra votam contra ela está-se mesmo a ver que não
podia deixar de ser assim os que são do pró findam a colar cartazes a dizer que
está tudo bem e como têm muito pilim andam a colar cartazes nas paredes nas
árvores em toda a parte só ainda não colaram cartazes nas costas da gente
porque os distribuidores não têm comissão nisso senão já estávamos cartizados
que era uma limpeza os que são do contra coitados não podem colar cartazes
porque se os colarem vão parar à chana por andarem a fazer propaganda contra
a moral da Graça que toda a gente sabe que é muito boa mas isto ainda não é
tudo não senhor o grande problema que há cá no clube é o do bufete que custa
os olhos da cara aos sócios de maneira que há uns que querem o bufete e há
outros que querem largá-lo esse é que é o grande problema mas não se pode
falar nele não senhor porque a direcção não deixa os do contra podem falar
disto e daquilo mas quem falar do bufete já sabe o que lhe acontece de maneira
que as eleições do nosso Rebenta Canelas Futebol Clube da Graça são assim
como um jogo de futebol em que seja proibido tocar com os pés na bola não sei
se me percebem se não perceberam venham até cá ver o que se está a passar que
eu prometo gargalhadas a todos mas de qualquer forma a Graça está a ser um
bom exemplo para todos nisso de correcção somos tão correctos que nem
sequer falamos das coisas que nos interessa não vá alguém ficar magoado em
matéria de correcção ninguém nos leva a palma não senhor e os outros clubes
podem pôr os olhos no que se está a passar na Graça porque se seguirem o
nosso exemplo ficam como nós e se todos ficarem como nós deixamos de ser
subdesenvolvidos porque como os outros começam a subdesenvolver-se
ficamos todos iguais e ninguém nota que a gente é diferente o que é preciso é
que os outros sigam o nosso exemplo palavra que o mundo vai ser bestial

29
quando os Rebenta Canelas Futebol Clube de Londres de Paris de Nova Iorque
e de Moscovo ficarem como o da Graça o que não se percebe é que eles não nos
imitem sim não se percebe como é que eles vendo como a gente é bestial e sabe
tudo não nos imitem às vezes penso que eles são parvos mas o meu pai diz que
há uma data de anos que lê nos jornais artigos escritos por senhores
bestialmente importantes a dizer que o mundo vai acabar por nos dar razão diz
ele que anda a ler artigos há mais de quarenta anos e que o mundo não há meio
de nos seguir o exemplo o que eu digo é que ou anda malandrice no caso ou
que os directores do Rebenta Canelas estrangeiros não lêem o nosso diário de
notícias da Graça quem sabe se eles falarão a nossa língua eu cá se fosse
importante traduzia os artigos cá do nosso diário de notícias e mandava-lhes as
traduções para ver se eles conseguem entender-nos é que se eles não seguirem o
nosso exemplo vão continuar a minguar a minguar enquanto a gente cresce
com as nossas boas ideias e daqui a uns anos somos uma grande potência e eles
coitaditos estão todos subdesenvolviditos e lá se vai o equilíbrio do mundo sim
porque quem sabe tudo somos nós e basta olhar para o diário de notícias cá da
Graça para se ficar espantado com o nosso saber e com a ignorância dos outros
mas além disso há outra razão para os outros seguirem o nosso exemplo que
tão bons resultados está a dar e esse motivo é que é uma pena que este nosso
exemplo que é tão bom e tão útil fique desperdiçado sem ninguém o aproveitar
quando penso nisto que se está a passar de termos tão bons exemplos para dar e
de ninguém os querer importar pergunto que fazer? É que podíamos exportar
exemplos já que não podemos exportar mais nada pronto sempre exportávamos
qualquer coisa cá por mim estou convencida de que a direcção ganha as eleições
e que mais tarde ou mais cedo o mundo vai seguir o seu exemplo para bem da
humanidade sim porque a Graça é um modelo.

In A Mosca, 6 Outubro 1973.

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A Graça está uma desgraça em matéria de fé

Eu cá nestas coisas sou como a padeira de Aljubarrota que Deus tem quem
não acreditar no que eu digo que vá para o Cabo da Roca meditar até ter uma
visão e digo isto porque sei muito bem que quem se sentar no Cabo da Roca a
meditar num dia de Verão sem chapéus na cabeça começa a ter visões passados
dois minutos ainda no outro dia quando foi do Portugal-Bulgária disse na
leitaria Portugal ganha por dez a zero e quem não acreditar que vá para o
campo do Benfica meditar numa vitória que lá houve há uns anos é verdade
que Portugal não ganhou mas isso que tem? sim isso que tem uma pessoa não
pode ter razão todos os dias em todas as coisas e eu sei muito bem que Portugal
não ganhou à Bulgária só e unicamente por causa da Bulgária sim porque se a
Bulgária não tivesse comparecido no campo Portugal ganhava por falta de
comparência do adversário ora como é que eu havia de adivinhar que a
Bulgária comparecia no campo o que eu fui foi mal informada e ninguém me
pode criticar de qualquer forma eu agora quando encontro uma pessoa que não
acredita no que eu digo mando-a logo para o Cabo da Roca meditar sim porque
enquanto está no Cabo da Roca a meditar não está a ver o que é que andou a
fazer ontem disse ao meu pai daqui a dez anos vamos estar bestialmente ricos
vamos ter dois automóveis uma vivenda no Estoril e um bacalhau para comer
com as batatas uma vez por mês e se não acreditar nisso vá para o Cabo da
Roca meditar e vai ele ficou a olhar para mim como se nunca me tivesse visto e
daí a bocado foi para a taberna dizer que eu não estava boa do juízo e que sofria
da pinha que se tivesse dinheiro me levava ao médico e que só não chamava o
médico da Caixa porque ele só viria depois de eu estar curada e de qualquer
forma não tinha as dez coroas que agora é preciso meter nas máquinas para elas
fazerem uma chamada de sete tostões enfim o que lhe falta é fé porque se ele
tivesse fé até ficava contente por saber que ia ser rico daqui a uns anos mas isto
aqui na Graça em matéria de fé está uma desgraça é que está mesmo uma
desgraça porque ninguém acredita em nada mais dia menos dia o meu Bairro
passa a chamar-se Desgraça não sei o que aconteceu às pessoas mas a verdade é
que a gente dá-lhes uma notícia boa e elas sorriem com o ar triste de quem não
acredita no que está a ouvir o que é engraçado é que se a gente lhes der uma
notícia má acreditam logo veio cá um senhor dizer que isto ia de bem para
melhor e que para o ano ainda ia estar melhor e toda a gente ouviu e mudou de

31
conversa é que não sei o que aconteceu à gente cá da Graça mas a verdade é que
isto é assim mesmo já ninguém acredita em nada e toda a gente anda triste triste
triste triste tão triste que a minha Graça está cada vez mais parecida com o
cemitério dos Prazeres em dia de Finados eu até vou mais longe: a minha Graça
está a transformar-se num Cabo da Roca gigantesco cheio de gente que não
acredita em nada nem mesmo nas virtudes da meditação o perigo é se o cabo
não aguenta com o peso e damos todos com os focinhos na água mas enfim
como somos todos filhos de navegadores ainda nos podíamos safar mas é que já
nem acreditamos em que sabemos nadar sim já não acreditam isto vai cada vez
pior e de qualquer forma esta minha ordem é estúpida sim porque a gente aqui
na Graça tem lá dinheiro para ir meditar para o Cabo da Roca não era para lá
que ia não senhor a não ser talvez em vacances quando viesse do sítio para
onde ia se tivesse dinheiro para ir a qualquer sítio e isso o que é triste é que nem
sequer já temos dinheiro para irmos até ao Cabo da Roca ou até outro cabo
qualquer meditar no dinheiro que não temos.

In A Mosca, 27 Outubro 1973.

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Buff que estou farta

Buff que estou mesmo a cair de cansaço logo de manhã a minha mãe
mandou-me para a bicha do leite e quando cheguei a casa e disse que tinha lá
estado mas que não tinha conseguido leite mandou-me para a bicha do
bacalhau ia a dar-me uma estalada mas o meu primo Manel do Mercedes não
deixou e disse que era verdade porque ele de manhã tinha estado na bicha da
gasolina e também não tinha conseguido gasolina estávamos nesta conversa e o
meu pai chegou a casa todo baforido a dizer que um bicha se tinha metido com
ele na rua enfim isto é um país de bichas e mais bichas e mais bichas qualquer
dia começamos a vender as nossas bichas para os jardins zoológicos e ficamos
ricos mas não é só em bichas que estamos com excessos não senhor agora
andamos com boatos por todos os cantos o meu pai assim que chegou a casa
disse que era preciso comprar arroz porque ia subir de preço e o meu primo
disse logo que o óleo e o azeite também iam subir e vai a minha mãe vestiu o
casaco para ir à rua comprar estas coisas e pediu dinheiro ao meu pai e ele
rapou da carteira e deu-lhe vinte escudos para as compras ora toda a gente sabe
que agora com vinte escudos não se compra nada de maneira que a minha mãe
teve de despir o casaco outra vez a choramingar muito triste por não poder
encher a despensa mas lá que ela é esperta isso é no meio da choraminguice
meteu os vinte escudos no bolso como quem não quer a coisa e se o meu pai
não a tivesse visto ainda a esta hora lá estavam mas ele é que não é parvo
nenhum de maneira que daí a dez minutos foi à cozinha perguntar pelos vinte
escudos e ela teve que lhes dizer adeus coitada cá em casa há uma contabilidade
bestial e ninguém vai em golpadas é o vais! Quem anda contente com a falta de
gasolina é o meu pai esse anda a dizer que vão ser obrigados a não deixar as
pessoas passear ao domingo e que o resultado disso vai ser as pessoas não
poderem ir ao futebol e eles não terem outro remédio senão porem os jogos na
televisão o que é bom para quem não tem carro nem pilim que é o caso dele o
meu primo Manel do Mercedes é que anda lixado porque gastou o pilim no
Mercedes para armar aos cágados e se não o deixarem passear ao domingo fica
sem nada na alma sim porque ele em casa não tem lá grandes coisas não senhor
senão uns móveisitos comprados na Rua dos Fanqueiros uma coisa que há
chamada «bronzes de arte» que é uns cavalos a pastar e um senhor vestido de
guerreiro com uma lança na mão em cima dum cavalo que está a pisar uma

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cobra e mais nada e mesmo isso só na sala porque lá para dentro não há nada
metade das pessoas que andam de Mercedes gastam tudo nele e vivem pior que
eu sei lá já tenho pensado que se a Mercedes sair com um modelo que tenha
casa de banho há uma data de pataratas que nunca mais vão a casa e que
acabam a vida a passear dum lado para o outro de Mercedes para fingir não se
sabe o quê enfim cada um arma com o que pode e com o que tem cá na Graça
há uma que arma a dizer que tem todo o bacalhau que quer porque conhece um
senhor que conhece um outro que é primo dum outro enfim uma bicha de
conhecimentos que nunca mais acaba para comprar de vez em quando um
rabito de bacalhau! cá na Graça as pessoas armam a dizer que têm o que falta às
outras é uma maneira bestialmente estúpida de armar mas as pessoas são assim
mesmo e não há nada a fazer senão aguentar adeus vou para a bicha do sabão
que anda para aí gente a dizer que vai subir.

In A Mosca, 27 Outubro 1973.

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O meu pai anda com a mania que é marisco

Os pais são bestialmente difíceis de entender e quem disser o contrário ou


é órfão ou precisa de fósforo porque há coisas que toda a gente sabe mesmo os
burros e uma dessas é esta dos pais serem bestialmente difíceis de entender o
meu por exemplo que se calhar nem é dos piores é tão difícil de entender tão
difícil de entender que às vezes até me pergunto se ele não terá caído no chão
em pequenino sem ninguém saber agora por exemplo anda com medo de ser
mexilhão e não fala noutra coisa na sexta-feira dei com ele a conversar com o
senhor Silva do talho que é um que tem dois matadouros clandestinos e que
vende uma carne tão esquisita que mesmo quando é vendida à peça parece
picada e pus-me à escuta para ouvir o que eles diziam palavra que ainda estou
gaga o tal Silva dizia assim: isto vai de mal a pior meu amigo sim que se não
metem o povo na ordem isto ainda acaba mal então não querem lá ver que no
outro dia veio aqui um pobre-diabo que nem para sabão ganha dinheiro e teve
a lata de me dizer que a minha carne não prestava? A minha carne! Pensei que o
meu pai ia concordar com tal pobre-diabo sem sabão porque lá em casa passa a
vida a chamar ladrão ao Silva mas não senhor voltou-se para ele e disse-lhe o
senhor Silva tem toda a razão olhe que eu ainda hoje disse lá no trabalho que se
não metem o povo na ordem isto acaba mal fiquei de boca aberta a olhar para
ele palavra que fiquei pois daí a bocadinho estávamos os dois sentados num
banco do jardim ao pé do lago para o meu pai ler o jornal por cima do ombro
dum senhor que o tinha acabado de comprar e vai chegou-se a nós o senhor
Carlos da capelista que é o homem mais lido da Graça e disse-lhe assim o
senhor sabe o que é que nos está a tramar a vida sabe? pois fique sabendo que é
não deixarem o povo fazer o que quer porque ninguém brinca com o povo, olhe
meu amigo se o povo cá da Graça mandasse o Silva do talho já tinha ido ao ar
porque esse bandido não vende senão carne podre preparei-me para ouvir o
meu pai discutir porque não ainda cinco minutos antes o tinha ouvido falar
com o Silva mas sabem o que ele disse sabem? pois se não sabem fiquem
sabendo que se voltou para o senhor Carlos da capelista e disse tem toda a
razão toda meu amigo olhe que ainda hoje lá no trabalho estive a dizer que o
mal disto tudo era o povo não poder fazer o que quer palavra que fiquei sem
fala mais caladinha que um mudo sem boca e vai daí a bocadinho quando o
senhor Carlos partiu para ir pregar a outra freguesia virei-me para o meu pai e

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perguntei-lhe oiça lá você é por o povo fazer o que quer ou é por o povo não
fazer o que quer? e vai ele virou-se para mim e disse esta coisa que ninguém
entende quando o mar bate na rocha quem se lixa é o mexilhão fiquei logo a
pensar que ele estava mas era maluco de todo e que o melhor era eu ir chamar a
minha mãe sim porque já lhe tem dado para ser comerciante vendedor de
propriedades angariador de publicidade e mais uma data de coisas que acabam
por ele nunca conseguir vender nada mas nunca lhe tinha dado para ser
marisco e com o negócio do peixe como está se lhe dava para continuar com a
mania de ser mexilhão lá ficávamos outra vez sem a televisão como aconteceu
daquela vez que lhe deu para andar de porta em porta cá na Graça a vender
apartamentos no Algarve enfim daí a bocado íamos a caminho de casa e o meu
pai esbarrou com o senhor Eusébio que é do partido socialista e que lhe disse
então o meu amigo como anda? cheio de esperança na vitória cá do partido ou
quê? e vai ele respondeu com toda a lata tenho-a por certa senhor Eusébio isto é
tão certo como dois e dois serem quatro já quase a chegarmos a casa demos com
o senhor Adalberto da pastelaria que é do partido comunista e que lhe disse ao
ouvido então desta vez é que vai camarada? e vai ele respondeu com toda a lata
já cá canta camarada Adalberto isto desta vez não falha e mesmo à porta de casa
esbarrámos com o antigo chefe Roberto que agora trabalha na funerária e que
lhe segredou muito baixinho o amigo não desespere que isto já se começou a
organizar é só esperar e vai ele respondeu não espero outra coisa senhor
Roberto olhe que não espero outra coisa palavra que é duma pessoa ficar doida
quando íamos a subir a escada perguntei-lhe oiça lá de que partido é você? e vai
ele respondeu com toda a lata quando o mar bate na rocha quem se lixa é o
mexilhão como se fosse natural um homem da idade do meu pai com uma filha
crescida e responsabilidades na vida andar com a mania que é marisco.

In A Mosca, 8 Julho 1974.

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As desgraças cá da Graça

Cá na Graça toda a gente pensa que a vida é uma coisa muito triste que
aconteça o que acontecer as coisas caminham para pior que não há bem que
sempre dure que o pior ainda está para vir e que a gente está sempre lixada já a
minha avó que Deus tem coitadinha quando alguém dizia que Deus lhe tinha
mandado uma desgraça dizia logo Não te queixes de Deus que se não houvesse
Deus havia outra coisa qualquer para te lixar pessoas são assim pessimistas
porque nunca lhes aconteceu nada de bom e nunca lhes aconteceu nada de bom
porque os reaças nunca deixaram que lhes acontecesse uma coisa boa no tempo
dos meus antepassados que Deus tem coitadinhos as coisas já eram assim cá na
Graça apesar do povo fazer o que podia quando foi dum chamado Mestre de
Aviz a malta foi para a rua aos berros e correu dum lado para o outro a fazer
comícios a favor dele e vai fizeram-no rei e tudo correu bem durante uns
tempos mas a verdade é que passados esses tempos que foram bem curtos as
coisas começaram a correr mal outra vez porque engatavam cá a malta da Graça
para ir nas caravelas coitadinhos e eles lá iam e muitas vezes não voltavam e
quando chegavam ao fim das viagens não tinham ganho para pagar a prestação
da casa ao J. Pimenta desse tempo que era um chamado Infante D. Henrique
que era uma espécie de Tenreiro que em vez de peixe congelado tinha
congelado bocados de África que lhe rendiam uns pilins bestiais enfim
desgraças! nessa altura o Algarve era promovido por esse D. Henrique porque
estas coisas passaram-se antes de haver Torralta mas a verdade é que mesmo
nesse tempo aquilo era caro de mais para a malta da Graça lá ir passar as férias
e mesmo que fosse barato não ia porque as pessoas tinham medo de serem
apanhadas pelos angariadores de trabalho voluntário nas caravelas tal como
agora têm medo de serem apanhadas pelos donos dos restaurantes e dos hotéis
que lhes ficam com tudo e mais alguma coisa nessa altura foi apanhada muita
malta da Graça mas é que mesmo muita e ninguém mais lhe pôs a vista em
cima se algum dia rasparem o fundo do mar no Cabo da Boa Esperança dão
com uma data de esqueletos «made in Graça» olá se dão! nesse tempo de
desgraças enquanto o tal infante D. Henrique mais os sócios da Torralta da
época enchiam a barriga de coisas boas vindas de África como cocos bananas e
amendoins cá a malta da Graça rapava uma fome danada e comia um naquito
de pão quando o apanhava a jeito mal constava que o tal infante tinha tido mais

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uma glória e tinha descoberto mais um sítio a malta fugia a sete pés para não ir
lá parar porque era certo e sabido que quem ia malhar com os ossos às
fortalezas gloriosas era a malta da Graça e quem lá morria com fome e febre era
a malta da Graça e quem lá dava o corpo ao manifesto quando havia combates
era a malta da Graça sim porque esse Tenreiro D. Henrique não levantava o
rabo de Sagres que era o Hotel Alvor desse tempo mas as desgraças da malta da
Graça não ficaram por aí não senhor quando um chamado D. António que era
prior do Crato que não sei onde é nem quero saber resolveu salvar a Pátria que
estava a ser atacada pelos espanhóis quem foi para o caneiro de Alcântara levar
bumba no toutiço foi a malta da Graça porque os nobres e os cavaleiros e os
mais accionistas das empresas do tempo cavaram por todos os lados e puseram-
se do lado dos espanhóis sim quem foi falecer prematuramente a Alcântara foi a
malta da Graça mais tarde veio um chamado D. Miguel Cazal Ribeiro ou
qualquer coisa parecida que tinha ao seu serviço uma data de arruaceiros
votados à defesa dos bons princípios e vai esses para defenderem os bons
princípios davam com os cacetes nas cabeças da malta da Graça havia noites
que o barulho das cacetadas era tão grande que até parecia que estalavam
foguetes sim porque é certo e sabido que quando é preciso salvar o País quem
leva com a cachaporra é a malta da Graça isto é tão certo como dois e dois
serem quatro esse D. Miguel salvava a Pátria todos os dias e nessa altura como
não havia bancos nos hospitais a malta da Graça tinha de curar as salvações da
Pátria com que ficava no corpo com papas de linhaça e pupú de galinha enfim
desgraças e mais desgraças vai a certa altura a malta da Graça que ainda tinha
uns optimismos escondidos lembrou-se de fazer uma coisa chamada a
República para ver se virava a moeda e durante uns tempos até a mudou mas
depois veio outro salvador da Pátria chamado Salazar que não gramava a malta
da Graça por nada deste mundo e que resolveu salvá-la outra vez ena pai ena
pai ena pai que rica salvação! a primeira coisa que esse Salazar fez foi pôr
adesivo na boca da malta toda para ela não falar a segunda coisa foi chamar os
netos do tal D. Miguel e metê-los numa coisa que houve chamada pide que era
um grupo de caceteiros que usava pistolas e metralhadoras em vez de cacetes e
que metia a malta da Graça numa estância de Verão que esse Salazar tinha em
Caxias enfim mais desgraças de maneira que não espanta que a malta da Graça
agora ande com medo de ser salva outra vez sim porque se há coisas que a
malta da Graça não aguenta é outra salvação como as antigas agora ou a
salvação é diferente ou a malta da Graça acaba de vez porque não há ninguém
que aguente tanta salvação o que eu quero dizer com isso é que a malta da
Graça está de olho vivo a ver o que acontece porque está farta de curar as

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feridas das salvações e desta vez gostava que as coisas corressem de outra
maneira por enquanto anda cheia de esperanças mas começa a dizer que há
discursos a mais e feitos a menos no tempo do salvador Salazar que o Diabo
tem levavam a malta ao futebol para distrair e para ela não pensar no que está a
acontecer agora não a levam ao futebol não senhor mas há muitos futebóis
diferentes e em matéria de distracções há futebóis em que não há bolas e que
nem sequer são nos campos de futebol como há maneiras de pôr a malta a
berrar sem ser a dar vivas ao Eusébio a malta da Graça já berrou tanta coisa no
decorrer da sua vida que para ela as palavras são como as caganitas de cabra
nos montes nem as come nem as apanha nem as leva a sério é por isso que está
a ver menos televisão a ouvir menos rádio e a voltar aos cafés palavras leva-as o
vento e agora o vento deve andar cheio delas porque a malta da Graça já está a
meter algodão nos ouvidos de tanta palavra que para aí anda no ar.

In A Mosca, 19 Outubro 1974.

39
Deus nos livre dos santos
e dos iluminados que dos maus sabe a gente safar-se

Dois passos para a frente e um para trás dois passos para trás e um para a
frente dois passos para o lado para ver o que acontece dois passos para trás e
quatro para a frente quatro passos pra trás e dois para a frente isto aqui na
Graça está uma confusão que ninguém se entende porque ninguém tem nada
para fazer senão botar sentença sobre coisas que não entende e tentar chegar ao
alto seja como for o grande problema é que as pessoas quando se habituam a
botar sentença e receber palmas e ter o retrato nos jornais nunca mais querem
outra vida e quem pensa que elas são capazes de voltar a ser aquilo que
realmente são ou é parvo ou faz-se sim porque isto tem pouco que se lhe diga e
conta-se em duas palavras para começar durante a confusão que houve vai para
dois anos o guarda nocturno Silva deu consigo mesmo um dia a mandar na
cantina na escola e na sala de espectáculos do clube é claro que foi um ar que
deu ao clube porque o guarda-nocturno Silva talvez saiba guardanoturnar mas
não sabe tomar conta de cantinas de escolas e de salas de espectáculos de forma
que de um dia para o outro a cantina ficou sem bolos de arroz a escola ficou
sem carteiras e a sala de espectáculos ficou mais vazia que a barriga da gente no
fim do mês em vez disso tudo a malta ia para o clube dar vivas ao senhor Silva
berrar reivindicar gritar e fazer outras coisas o que a malta não fazia era
trabalhar vai as coisas começaram a modificar-se o senhor Silva foi parar ao
olho da rua e começou-se outra vez a ver se o clube funcionava mesmo que
funcionasse mal sempre era um princípio enfim com o clube parado é que a
gente ia mesmo ao fundo mas quem é que aguenta o senhor Silva a
guardanotunar agora que se habitou às palmas aos gritos e aos vivas? sim quem
é que consegue que ele ande de porta em porta à noite agora que se habitou aos
projectores? sim quem é que consegue que o senhor Silva em lugar de sonhar
com coisas que não entende ande a ver se os automóveis e as casas têm as
portas bem fechadas? e os amigos do senhor Silva? quem é que consegue que
eles voltem a andar no jardim dum lado para o outro todos fardados a armar
aos cágados quando eles se habituaram a ir à rádio e à televisão botar sentença?
quem é que consegue que eles voltem a ser os apagadinhos que nasceram agora
que eles se habituaram a ser iluminados e a julgar que andam a cumprir
missões históricas? é que há coisas mesmo impossíveis como esta por exemplo

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dum homem que fez a sua carreira de guarda-nocturno e que um dia deu
consigo a comandar o clube se satisfazer em voltar a guardanoturnar sem
palmas sem vivas sem berros e sem excitações é o que eu digo quem se habitua
às alturas nunca mais se satisfaz com as baixuras mesmo que a natureza o tenha
feito para viver nas baixuras que Deus Nosso Senhor nos salve dos iluminados
e dos parvos que dos maus sabe a gente defender-se cá na Graça o perigo digo e
repito não é os maus subirem à direcção do clube o perigo é os iluminados e os
santos conseguirem sentar-se na cadeira do poder é para eles sol de pouca dura
mas enquanto o pau vai e vem ou vem e vai lá sobe o preço do peixe lá
desaparece a carne outra vez lá aumenta o desemprego lá ficam os actores todos
desempregados por eles ocuparem a televisão de manhã à noite lá fica a rádio a
«sloganisar» todo o dia lá fica a gente outra vez aos gritos e aos berros para
disfarçar a fome e a sede palavra que isto aqui na Graça não vai nada bem não
senhor a gente anda toda aterrada com medo de que o Silva desate para aí aos
saltos outra vez e se meta em alhadas porque é certo e sabido que se fizer desta
vez as coisas correm de outra forma e anda tudo para trás de tal maneira que é
como se não tivesse nunca havido eleições no clube isto é tão sério que até se
pode perguntar se os iluminados não serão todos parvos e não perceberão o
que se passa à volta deles? serão cegos? serão surdos? andarão sempre uns com
os outros e não ouvirão as outras pessoas? palavra que o futuro do clube
impressiona-me porque o Silva e os amigos não têm nada que fazer senão
conspirar e ter saudades do tempo em que eram aplaudidos de maneira que há
poucas esperanças de que tenham apanhado juízo e percebido o triste fim que
os espera e que nos espera a todos se não tiverem muito mas é que muito juízo
sim porque se eles nos metem numa alhada é certo e sabido que estamos todos
tramados porque os inimigos do Silva matam-nos a todos sem pedir
autorização a ninguém e o pior é que o Silva e os amigos ainda se conseguem
safar para o estrangeiro como já demonstraram mas nós temos mesmo de ficar
cá e de ir malhar com os ossos à cadeia se não tivermos um destino pior é
sempre a mesma coisa os heróis iluminados metem toda a gente em alhadas e
pisgam-se para continuar a luta num sítio seguro enquanto a gente se amola
num sítio inseguro palavra que me espanto de como é que há gente que ainda
não entendeu a Graça porque a Graça é bestialmente fácil de entender olá se é!
só os iluminados e os burros é que não entendem os outros sabem muito bem
como as coisas são e tanto lhes faz ganhar hoje como amanhã se calhar aos
inimigos do Silva convinha que o Silva e os amigos se metessem noutra se
calhar até rezam para isso acontecer porque era uma maneira de se verem livres
deles o pior e é bom que toda a gente da Graça entenda isto é que os inimigos

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do Silva e dos seus muchachos que lá arranjarão um salvo-conduto para se
porem a mexer o pior é que vão ver-se livres de nós todos e isso é que é chato
porque ficam com o país só para eles e nem daqui a vinte anos damos outro
passo em frente.

In O Jornal, 29 Outubro 1976.

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A Graça está cheia de bombas

Essa coisa das bombas anda a lixar a malta cá da Graça olá se anda para
começar a malta anda tão assustada que mal encontra um embrulho fica logo a
arder de medo e chama a polícia no outro dia uma que há cá chamada Engrácia
e que tem uma tabacaria desatou aos gritos que tinha uma bomba na capelista e
vai tanto gritou que atraiu a atenção do guarda Silva que estava de serviço na
taberna do sr. João e que não teve outro remédio senão abandonar o copito que
estava a provar para ir até lá a mulher estava aos gritos à porta da loja e o
guarda Silva perguntou-lhe o que era aquela alteração da ordem pública! E ela
disse-lhe que tinham posto uma bomba no chão ao pé do balcão quando ouviu
isto o guarda Silva começou a desanimar e afastar-se do local para discutir o
assunto o mais longe porque nestas coisas de bombas as discussões devem ser
afastadas dos sítios onde estão as bombas para garantir que a conversa continua
depois das bombas rebentarem começou logo a juntar-se gente o Batista que é
um finório meteu meio nariz na loja e disse que a bomba era de plástico porque
já tinha visto uma e sabia distingui-la das outras o senhor Ernesto que é uma
autoridade porque esteve emigrado três anos na Alemanha e por isso é muito
batido em coisas de electrónica disse que a bomba tinha um dispositivo de
disparo transistorizado o Joãozinho dos rádios que ganha a vida a roubar rádios
de automóveis assim que ouviu a palavra transistorizado desapareceu logo do
local não andasse por ali alguém da Judiciária a fazer investigações como eu
disse estava-se a juntar uma data de gente e o berreiro era cada vez maior
felizmente quando o guarda Silva ia à cabina ligar para a brigada de minas e
armadilhas apareceu a Dona Rosette aos berros a dizer que se tinha esquecido
na capelista dum embrulhinho com dois pastéis de Belém e lá acabou aquilo
tudo tudo porque o raio da mulher entrou na loja abriu o embrulho e viu-se que
a bomba eram mesmo dois pastéis de Belém bestialmente bem embrulhadinhos
que ela tinha comprado para a sogra que está entrevadinha coitada enfim este
caso ficou resolvido a contento de todos mas o caso do meu Pai foi mais grave
foi sim senhor e quem disser o contrário mente eu já andava desconfiada de que
lhe ia acontecer qualquer coisa porque sempre que há um acontecimento
qualquer no país quem se trama é o meu pai como ia dizendo um destes dias a
minha mãe encontrou um embrulho escondido no armário do quadro de
electricidade e vai chamou a vizinha que chamou uma amiga que chamou a

43
vizinha dela dez minutos depois havia ao patamar sete vizinhas aos gritos e é
claro que chamaram logo a polícia e mais uma data de amadores que há lá na
Graça e que se juntam sempre que há um embrulho qualquer pois como eu ia
dizendo juntou-se uma data de gente e o polícia a tremer como varas verdes
começou a desarmadilhar a bomba assim que abriu o embrulho apareceu o
gargalo duma garrafa e a verdade é que ninguém sabia se as bombas têm
gargalo de maneira que continuaram a abrir o embrulho até que houve um
amador que disse que aquilo era um Molotov enfim quando o papel caiu viu-se
que a bomba era uma garrafa de bagaço e vai chegou o meu pai e desatou aos
berros a dizer que ninguém tem o direito de andar a desarmadilhar as garrafas
alheias que era uma infâmia inconstitucional porque os embrulhos são
invioláveis e mais isto e mais aquilo é claro que ele não disse que a garrafa era
dele ou que ele é que a tinha escondido mas eu cá para mim ando suspeita de
que a bomba era uma garrafita que ele tinha escondido para se aquecer ao
entrar e ao sair de casa enfim aposto que o meu pai é a única pessoa que há em
Portugal a quem desarmadilharam o bagaço.

In O Jornal, 2.9 Outubro 1976.

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Os demónios da Graça

Aquele senhor do cinema chamado Fonseca e Costa deve ser muito rico
sim deve mesmo andar a nadar em pilim porque teve de ir a Alcácer Quibir à
procura de demónios quando lhe bastava ir a Alcácer do Sal que é muito mais
perto poupando dinheiro em transportes e em hotéis pensando bem até podia
ter vindo aqui à Graça porque os nossos demónios não são em nada inferiores
aos de Alcácer Quibir não senhor se é que não são superiores para começar
lixaram o bairro todo colando cartazes nas paredes temos cá tantos cartazes que
há prédios que nem se vêem alguns têm cartazes já com valor histórico que
deviam ir para o museu dos cartazes sim porque temos cá cartazes com três
anos de idade ou mais mas os demónios não ficaram por aqui alguns pintaram
as paredes com quadros feios como burro ninguém sabe ao certo quem é que
lhes disse que eles sabiam pintar mas a verdade é que temos as paredes cheias
de demonstrações de falta de talento os que perceberam a tempo que não
sabiam pintar dedicam-se a escrever nas paredes temos frases de todos os tipos
desde o viva o povo ao VIVA A MARIQUINHAS DO 5º ANDAR e desde O
SPÍNOLA é fascista ao queremos mais leite cá na Graça temos frases para todos
os gostos e para todas as idades mas onde os demónios mostram talento é nas
retretes aí é que a gente se benze de espanto e afasta a cara do espelho para não
nos vermos corados a retrete da Pérola da Graça por exemplo tem frases como
quem precisar de mim ligue para este número e vai tem um número de telefone
a seguir tenho pensado bastante nisto sim porque não é costume precisar-se de
alguém quando se está na retrete e vai pensei que talvez isto tivesse sido escrito
por um enfermeiro especializado em prisões de ventre urgentes outra frase que
lá está escrita é a manuela vai para a cama ora eu não sei quem é a Manuela mas
não percebo porque é que ela não pode ir para a cama ou o que é que tem de
especial ela ir para a cama se quisessem escrever os nomes de todas as pessoas
que vão para a cama não havia portas de retretes no mundo inteiro que
chegassem para escrever a lista sim porque ir para a cama é uma coisa que toda
a gente faz mas os nossos demónios para frases misteriosas estão por aqui senão
vejam esta que está escrita na porta da retrete da Drogaria Ideal É proibido
espreitar pelo buraco da fechadura ora em primeiro lugar não lembra a
ninguém ir para a retrete espreitar pelo buraco da fechadura e em segundo
lugar é impossível porque a retrete fica a quase um metro da porta e ninguém é

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tão comprido que possa fazer as duas coisas ao mesmo tempo outra actividade
dos demónios cá do bairro é tocarem às campainhas das portas quando a gente
está a dormir sim porque não há nada mais chato do que tocarem-nos à porta e
obrigarem a gente a levantar-se a meio da noite para esbarrar com o focinho no
ar mas antes isso do que dar com o focinho em dois matulões como aconteceu
àquela velhinha de Tábua a quem fizeram coisas tais que a coitadinha ficou
transformada num pastel de bacalhau para não dizer outra coisa sim porque
não foi só num pastel de bacalhau que ela ficou transformada não senhor.

In O Jornal, 22 Abril 1977.

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O Pele não veio à Graça diabos o pintem

Uma das grandes infâmias da discriminação que se fez contra a Graça é o


Pele ter ido a Lisboa e não ter ido à Graça que fica mesmo ao lado não se
percebe como é que uma pessoa tão viajada perdeu esta oportunidade que
podia aumentar bestialmente os seus conhecimentos de geografia e disto e
daquilo e lá por isso também não se percebe porque é que a Pepsi Cola se
divorciou da Graça que é um país populoso e sedoso que até podia ser um bom
mercado sim porque se a Pepsi Cola soubesse o que anda a fazer tinha mesmo
ido à Graça com o Pele eu cá para mim não distingo a Pepsi Cola da Coca da
Surf Cola e da Schwepps Cola para mim são todas iguais e castanhas mas
distingo perfeitamente o Pele que é muito diferente doutros jogadores como do
Chalana por exemplo e gostava de o ver passear na Graça que é uma terra de
heróis de mártires e de virgens onde os heróis devem ir quanto mais não seja
para poderem dizer que foram lá fico por aqui porque não sei bem o que é que
devo dizer para justificar a necessidade das virgens irem à Graça sim porque se
estiverem lá há muito tempo deixam de ter esse atributo e dos mártires nem
falo porque queremos lá mais do que os que já temos e posso jurar que temos
muitos sim porque com os transportes pelo preço porque estão e com esta
vergonha do governo nunca ter fomentado a indústria da Graça a grande
maioria dos Gracenses (há quem lhes chame Graciosos) tem de trabalhar no
estrangeiro no fundo nós os Gracenses somos um povo de emigração
quotidiana o que deve ser raro no mundo eu só conheço um caso parecido que é
dos Berlinenses que vivem de um lado do muro e trabalham do outro para
dizer a verdade nós cá na Graça ainda não fizemos um muro de separação
porque há muita falta de cimento e porque temos pena que os lisboetas não
possam beneficiar das nossas maravilhas mas se as coisas continuam como
estão temos mesmo de o fazer até porque andam imensas confusões nos
espíritos das pessoas como é o caso do ministro Medeiros Ferreira que se
demitiu do governo de Lisboa e que muita gente julga que também era ministro
dos Estrangeiros da Graça o que é uma mentira estúpida está-se mesmo a ver
que não era porque nós ainda não nomeámos o nosso ministro dos Estrangeiros
e como somos um embaixador em Lisboa enfim isto tudo são politiquices mas
lá que isso do Pele não ter cá vindo é uma verdade que ofendeu muito os
Gracenses isso é que ninguém pode negar e que é indecente brincar com os

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sentimentos de um povo isso é outra verdade que ninguém pode negar enfim
vamos às notícias porque se está a fazer tarde para já não temos notícias
nenhumas a dar tudo que se passa é antigo porque somos um povo pacífico e
trabalhador que não tem o menor desejo de andar sempre metido em agitações
e confusões como as que há nos países estrangeiros como Lisboa para só falar
desse nuestro hermano que tem fronteiras com a gente a única coisa digna de
registo é que tem cá vindo muito lisboeta trocar escudos com medo da
desvalorização para dizer a verdade ainda não temos moeda nossa o que
impede os lisboetas de fazer negociatas isto é bom sim deve dizer-se que isto é
bom porque se já tivéssemos moeda nossa já tínhamos trocado uma data delas
por escudos e estávamos à beira duma crise económica insuperável como esta
palavra é difícil e feia de mais para acabar um artigo acabo com outra mais
bonita: adeus.

In O Jornal, 14 Outubro 1977.

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O que é um bife?

Cá a nossa República Impopular da Graça continua na sua marcha


ascensional para o fundo do poço com tudo a correr de mal a pior e com Deus
sempre em férias para bem dos nossos pecados que são a única coisa em que
somos auto-abastecidos sim porque o resto é tudo importado desde as ideias ao
tabaco para começar continuamos sem governo o que para dizer a verdade faz
menos falta do que o bacalhau a que estávamos habituados o resultado é que
até estamos em crise de inauguradores e cortadores de fitas o que também para
dizer a verdade nos faz pouca diferença porque não temos nada para inaugurar
senão os preços cada vez mais altos que vão aparecendo e esses não dão motivo
para festas o que vale é que agora vamos ter a pirâmide que é uma festa em que
toda a gente vai dar aquilo de que não precisa sempre estou para ver se alguém
põe nessa pirâmide um pastel de bacalhau ou um quilo de feijão porque lá em
casa estamos muito precisados de comer e uma piramidezita de alimentos
mesmo que pequena calhava que nem ginjas olá se calhava eu cá por mim
também não me importava que alguém me desse uma piramidezita de cadernos
para a escola porque o meu pai anda com dificuldades financeiras a curto a
médio e a longo prazo e não tem dinheiro que chegue para eu comprar o
material de que preciso isto em resumo vai cada vez melhor cá na República
Impopular da Graça e se não fossem as fitinhas brasileiras que passam nas
televisões que ainda não estão no prego nem sei o que seria no outro dia fui a
casa da minha prima Amélia aos anos do filho dela que é um ranhoso chamado
Xico e o bolo de anos dele cabia num prato de sopa e só tinha duas velas apesar
do ranhoso fazer quatro anos porque não havia dinheiro para as velas no fim da
festa que para dizer a verdade não foi festa nenhuma o meu primo Epifânio
começou aos saltos na cadeira a babar ranho por todos os lados sem ninguém
perceber o que ele queria até que a minha prima explicou que ele tinha pago
nessa manhã a conta de electricidade com a licença da telefonia já incluída e
estava pior que uma barata porque não tem nem nunca teve telefonia porque é
surdo de nascença e não ouve nada e achava indecente os surdos terem de
pagar a taxa da telefonia se isto continua assim metem-nos a conta da carne na
renda da casa o que é bestialmente divertido porque lá em casa não aparece
carne há mais de um mês o pior é quando meterem a conta da gasolina na conta
de gás sim o que é que vão dizer os que não têm carro? Se calhar vão-se calar

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para não gastarem palavras com medo que se o Governo descobrir que eles
falam manda logo um imposto novo sobre as frases enfim uma maravilha isto
está tudo uma maravilha e eu para rematar esta redacção optimista quero
contar uma coisa que aconteceu lá na escola temos uma professora nova
bestialmente porreira que trata a gente como se fosse grande que tem métodos
novos e que quando quer acabar uma peça de tricot que anda a fazer ou quando
quer ler as cartas do namorado em lugar de dar aula de coisas dá aula de
criatividade que é o mesmo que dizer que se põe a fazer tricot e a ler as cartas
enquanto a gente faz cinzeiros de barro e pinta quadros de pulgas em cima de
árvores pois um dia destes essa professora resolveu dar uma aula de perguntas
que é os meninos sentarem-se e perguntarem tudo o que quiserem sem
restrições nenhumas mesmo de sexo ou de política está-se mesmo a ver como a
gente estava interessada naquilo sim porque temos lá uns matulhões dispostos
a tudo e como a professora tem assim como é que eu hei-de dizer maneiras
muito agraciadoras estávamos todas à espera de uma sessão de perguntas
quentes mas tivemos uma desilusão danada porque o primeiro aluno que se
levantou foi um puto que tem a mania que é intelectual e que gosta de saber
ratices sobre o passado e vai levantou-se e perguntou Ó minha senhora o que é
um bife? parece que o palerma tinha estado a ler um livro e tinha esbarrado
com aquela palavra a pergunta lixou a aula sim porque não era nada disso que
a gente queria mas já agora que vem a propósito quero fazer uma pergunta: o
que é um bife?

In O Jornal, 17 Novembro 1978.

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A Graça vai ser um país de turismo

Isto cá na Graça vai de mal a pior por causa dos preços mas a gente esta
semana teve uma ideia bestial e vai transformar tudo num país de turismo é o
que eu digo a Graça vai concorrer com a Espanha com a França com Portugal e
com a Itália para começar mandamos imprimir uns folhetos dizendo come spend
your vacanças in graça because le soleil is there com fotografias de mulheres de
biquini de raparigas a beijocarem rapazes e de uns rapazes que não se sabe bem
quem é que estão a beijocar nem interessa saber estes folhetos foram copiados
dos da pirilândia (Algarve) que parece que trazem fregueses mas não ficámos aí
estamos a modificar os nomes das lojas a merceearia A Pérola da Graça passa a
chamar-se The Pearl of the Graça a tasca do senhor Pombo que se chama Pombo
& Filhos Lda. passa a chamar-se Chez les Fils du Pigeon e a barbearia do senhor
Jaime passa a chamar-se D. Juan Hair Stylist mas além disso estamos a fazer
modificações na actividade comercial os letreiros das lojas por exemplo vão ser
modificados onde o Cruz da taberna tem um letreiro que diz Hoje há
passarinhos vamos pôr um letreiro iluminado a néon que diz Today are little
birds aujourd'hui avons petites oiseaux onde a Dona Isaura escreveu Tenho fava
rica vamos pôr I has rich bean e à porta do snack na lista dos comes e bebes onde
está Cadelinhas ao natural e à Bulhão Pato vamos pôr Little bitches the Bulhão
Duck way enfim progressos por todos os lados para se ver bem como o nosso
espírito de iniciativa é bom basta dizer que vamos ter 2.7 piscinas sem
gastarmos um tostão para isso vamos encher de água os buracos das ruas outra
iniciativa é criarmos uma zona livre no jardim do largo em que ninguém paga
impostos já lá pusemos um letreiro com a frase tax free public garden for tourist e
vamos ter uma free shop à saída da Graça do lado que dá para Almirante Reis
nessa free shop os turistas podem comprar as nossas especialidades que já estão
a ser inventadas por uma comissão eleita por uma outra comissão que por sua
vez foi eleita por uma quarta comissão o projecto só ainda não começou porque
um dos membros da segunda comissão tinha sido saneado por se ter descoberto
que um terceiro primo dele era da União Nacional de Barrotes de Cima e vai o
homem conseguiu provar que isso era mentira mas com tanto azar que a prova
chegou quando as coisas tinham mudado e agora continua saneado por o tal
primo não ter sido da União Nacional de Barrotes de Cima há pessoas com
muito azar coitadas mas o que tem graça é que as pessoas que o sanearam da

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primeira vez são as mesmas que o sanearam da segunda se calhar é por essas e
por outras iguais que a minha Pátria se chama Graça é que há quem ache graça
a essas coisas enfim os nossos planos não ficam por aqui vamos ter um
profissional de chapéu de palha na cabeça encostado à esquina da igreja vamos
ter outro profissional a fumar droga à porta do restaurante e vamos pôr em
cima das retretes em vez das letras wc que ninguém sabe o que querem dizer
grandes cartazes com a palavra wel-come em tinta fluorescente para não haver
erros e para toda a gente fazer o que tem a fazer em lugares próprios porque
disso que as pessoas fazem já nós temos a mais fora das retretes o que nos falta
para isto tudo acabar em beleza é um fundo de turismo mas isto cá na Graça é
como em Portugal os únicos fundos que estão à vista são os dos cofres o que é
chato olá se é o que vale é que isso não nos assusta nem nos mete medo antes
pelo contrário porque não havendo fundos não há quem os administre nem há
economistas a viver à custa da gente e onde não há dessa gente não há
decepções o meu Pai anda muito aflito porque chamaram um economista para
o emprego dele que até agora não precisara de subsídios nem estava falido e ele
diz que a partir de agora está tudo perdido porque a obrigação de qualquer
economista que se preza é lixar tudo com os seus conhecimentos teóricos
aprendidos na Rua do Quelhas e além disso diz o meu Pai que basta terem de
pagar o ordenado ao tal economista para a empresa entrar em crise mas nestes
períodos de crise não há outro remédio senão fazer a vontade a quem não sabe
nada é por isso que os períodos são de crise enfim para a semana tenho grandes
notícias para todos notícias que vão espantar muita gente olá se vão adeus
adeus adeus.

In O Jornal, 18 Maio 1979.

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Aldeias de Portugal

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Areeiro

O Areeiro é uma aldeia que fica entre o Hospital dos Doidos e Lisboa para
se ir lá é preciso tomar um eléctrico ou um autocarro porque eles não têm
metropolitano mas para dizer a verdade não vale muita a pena ir lá porque o
Areeiro é como as outras terras dos arrabaldes principalmente como a Rinchoa
e a Amadora só que tem mais peneiras e mais gente pirosa e em matéria de
pirismo o Areeiro deve ser a aldeia do mundo com mais pirosos por metro
quadrado cá pelas minhas contas há vinte pirosos por metro quadrado mas isso
é lá com eles as casas do Areeiro são todas de cimento porque as de pedra e cal
foram abatidas para os indígenas de Tomar poderem construir aqueles edifícios
de cimento tão bonitos que há lá e que embelezam tanto aquilo que as pessoas
de lá andam de óculos escuros mesmo no Inverno é uma coisa que só fazem os
indígenas da África e os do Areeiro lá no Areeiro há a pastelaria Mexicana e a
pastelaria Copacabana que é onde se juntam as meninas e os meninos para
beberem cafés e trocarem namorados a menina Graciette cá da Graça que é a tal
que trabalha lá para o fim do dia quando os homens saem dos empregos anda
muito nessa zona e diz que é muito rendível mas dessas coisas não sei em frente
da Praça de Londres que é o Terreiro do Paço da aldeia há um ministério de
vidro e quem trabalha lá pode ser contactado nas cervejarias da região e no Café
Roma mas como a aldeia é pequena ninguém tem de esperar muito tempo
porque as amigas mandam logo vir quem está no café e corre tudo bem o que a
gente gostava de saber é por que é que não dividem o pessoal do ministério em
dois grupos um grupo que ficasse de serviço no ministério e outro que estivesse
de serviço na pastelaria uma coisa que faz muita falta no Areeiro é uma pessoa
que se ria daquilo tudo dos falsos hippies da meia tijela dos falsos libertinos de
quarto de tijela dos falsos cosmopolitas de quinto de tijela das avenidas pirosas
de tijela das meninas pretensiosas e pirosas de décimo de tijela daquilo tudo em
resumo que deve ser a aldeia mais provinciana de Portugal quando se está
mesmo a ver que a aldeia mais portuguesa de Portugal é o Areeiro e que o resto
são cantigas olá se são o Areeiro é atravessado por uma avenida muito grande
que vai da entrada à saída da aldeia e tem muitas lojas dessas que há a fingir
que são inglesas e que são copiadas das que há nos bairros turísticos de Londres
que são uns bairros que os londrinos fizeram para os portugueses pirosos

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copiarem e ficarem muito contentes e muito convencidos no Areeiro não há
peixarias nem amoladores nem gatos vadios nem vendedores de mangericos
aquilo é uma aldeia árida que só tem gente dessa que se distingue por não se
distinguir porque o areense é igual a todos os outros areenses em tudo mas é
que em tudo ao contrário dos habitantes da Graça que são todos diferentes por
fora e por dentro eu tenho assim um grande orgulho de ser da Graça mas
palavra de honra gosto de não ser do Areeiro olá se gosto é claro que é não só
do Areeiro que eu gosto de não ser ele há outros bairros mas desses falo para a
semana adeus.

In O Jornal, 12 Maio 1978.

Título original: «Ainda bem que eu sou da Graça».

55
Alfama

Alfama é uma coisa que há e que é bestialmente típica porque tem maus
esgotos más canalizações ruas sujas e uma taberna por habitante o que dá uma
média muito grande talvez até a maior do País ele há várias Alfamas há uma
Alfama chamada Madragoa e há uma Alfama chamada Mouraria e há uma
Alfama chamada Castelo e há uma Alfama no coração de cada português com
más canalizações maus esgotos e ruas sujas quem me disse isso foi um fadista
que eu conheço e que mora no Areeiro mas que passa as noites numa Alfama a
cantar as belezas da vida alfamística pois como ia dizendo outra especialidade
das Alfamas são os cantos em que as pessoas urinam e fazem pupu cada canto
desses tem um cheiro muito típico e muito especial nos cantos que ficam aos
pés das tabernas a caliça caiu porque os urinadores têm muito ácido na urina
principalmente desde que o vinho começou a ser feito a martelo e a caliça não
aguenta muito ácido estes cheiros dos cantos misturam-se no ar e espalham-se
pelas Alfamas todas de maneira que passear nas Alfamas é um grande exercício
para o nariz é assim como levar a pituitária à ginástica em matéria de
população os habitantes de Alfama dividem-se em duas classes a primeira é dos
que lá trabalham e gostariam de ir à noite para o Areeiro e a segunda é a dos
que vivem no Areeiro e vão lá passar as noites além destes há os turistas de fora
que vão sempre visitar os bairros típicos esses são os camones os franciuses e os
alemões a maneira mais fácil de distinguir uns dos outros é ver se eles andam
sozinhos ou acompanhados os turistas do Areeiro vêm aos pares e em grupos
de cinco ou seis e turistas de fora vêm às manadas conduzidos por uma menina
que fala línguas de tal forma que ninguém entende senão quando fala
português muito lentamente em matéria de língua as opiniões dividem-se mas
a mais corrente é que nas Alfamas se fala português ribeirinho que é um
português atravessado de calão que só quem nasceu nas margens do Tejo é que
entende quem estiver parado numa rua de Alfama a ouvir falar os indígenas
fica espantado porque eles chamam um aos outros nomes que os lisboetas só
chamam aos políticos o que é muito engraçado quem fala bem português
ribeirinho é o meu pai principalmente quando está danado ou quando vai
pagar as cautelas ao prego nas Alfamas toda a gente se veste mais ou menos
como nos outros sítios mas paga menos pelo vestuário do que pagam os outros
habitantes de Lisboa eu conheço um aureense por exemplo que ainda outro dia

56
pagou 1500$00 por umas calças de ganga deslavadas só para fingir que eram
velhas em Alfamas essas coisas não acontecem porque as pessoas não são
parvas e porque quem compra umas calças novas gosta que os vizinhos saibam
que as calças são novas lá em Alfama já chegaram muitas manhas mas essas
manhas do Areeiro ainda lá não chegaram a comida em Alfama é mais ou
menos como nos outros sítios mas nos dias de festa os alfamenses fazem o
grande sacrifício de não comer bifes com batatas fritas para vender sardinhas
assadas pimentos e outras curiosidades aos turistas de dentro e de fora que lá
vão comê-las nesses dias os alfamenses colocam grande número de mesas na
rua e entretêm-se a vender aos areenses sardinhas pelo quádruplo do preço que
eles pagariam por elas no Areeiro nesses dias também vendem arroz-doce leite-
creme e outras coisas dessas antes do 25 de Abril o grande negócio dos
alfamenses era vender cravos de papel e agora têm de vender cravos
verdadeiros o que é uma chatice e fica muito mais caro enfim o que tem de ser
tem muita força e não vale a pena chorar pelo que já passou os alfamenses são
muito felizes gostam muito do seu bairro e só não emigram porque não podem.

In O Jornal, 19 Maio 1978.

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Campo de Ourique

Campo de Ourique fica entre o Casal Ventoso a Estrela e os arrabaldes da


Lapa de maneira que é assim uma coisa que não é carne nem peixe nem grelos o
que está é a abarrotar de gente há mais gente em Campo de Ourique do que no
resto do País pelas últimas estatísticas há cinquenta pessoas por metro
quadrado de passeio em todas as ruas menos em frente da Tentadora e do
Canas onde há duzentas e trinta e quatro por centímetro quadrado as grandes
instituições de Campo de Ourique são o Canas o Gigante a Concorrente e a
Tentadora o Canas é uma cervejaria muito parecida com a estação do Rossio
antes da partida do comboio das 7 para Sintra quem lá vai leva empurrões
pisadelas e apalpões que é uma coisa doida e nunca se sabe se não é violada
sem dar por isso no meio da multidão sim porque aquilo é um aperto tão
grande que vai lá gente só para emagrecer o Gigante é a mesma coisa mas em
um ponto mais pequeno e tem menos gente a Tentadora é a Brasileira dos
estudantes e das meninas pipi da área que vai da Rua Ferreira Borges a
Monsanto é lá que eles e elas se sentam a bebericar bicas e a comer pastelinhos e
não dizer nada uns aos outros como compete a quem não tem nada que fazer
nem a dizer a Concorrente é onde se compra os cadernos pioneses e
presentinhos de Natal daqueles que não servem para nada e que as pessoas não
usam a secretária põem em cima dela para a enfeitar há outros cruzamentos de
ruas em Campo de Ourique mas não contam as figuras populares de Campo de
Ourique são o Assis Pacheco que ao domingo vai bebericar bicas ao Canas o
actor Batista Fernandes que ao domingo passeia o cão entre a Rua Coelho da
Rocha e a Rua Ferreira Borges o actor Luís que como não tem cão mas tem uma
pelica muito parecida com um cão passeia a pelica de um lado para o outro e
põe-na a fazer chichi numa árvore exactamente como se fosse um cão só que a
pelica não chichia lá muito bem o João André que anda ali nas proximidades de
uma tasca que eu sei onde é mas não digo para não irem todos para lá mas onde
há um tintinho que é uma maravilha olá se há para além destas personalidades
populares há os directores das filiais dos bancos de Campo de Ourique sim
porque em Campo de Ourique há mais bancos do que caganitas de cabra num
monte de Trás-os-Montes e esses distinguem-se a olho nu porque andam
sempre de casaco e de gravata com um ar muito importante como se fossem
donos dos dinheiros que os clientes depositam lá nos bancos o centro cultural

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de Campo de Ourique é uma loja de discos e de livros que é do mesmo dono da
Concorrente e onde as meninas e os meninos vão comprar discos e cassetes o
ano passado já não me lembro de quando houve uma pessoa que comprou lá
um livro para ler sim é o que eu digo houve uma pessoa que comprou lá um
livro sem ser desses que vêm nas listas dos livros de estudo obrigatórios o que
mostra como o nível cultural de Campo de Ourique está a crescer em Campo de
Ourique não há campos de futebol nem de patinagem mas há um campo
chamado a parada onde não acontece nada e onde ninguém vai apanhar sol
nessa parada às vezes vêem-se os meninos e meninas a passear mas isso
acontece principalmente à noitinha porque de dia as vizinhas vêem tudo e não
perdoam olá se não perdoam aquilo é uma vergonha de falatório e de conversa
porque em Campo de Ourique o desporto nacional é a conversa fiada e o diz tu
direi eu para dizer a verdade sei pouca coisa de Campo de Ourique porque
vivo na Graça e cada vez mais gosto de viver na Graça isto sim é que é uma
aldeia bestial a aldeia de Campo de Ourique não vale nada ao pé da aldeia da
Graça.

In O Jornal, 25 Maio 1978.

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O Bairro Alto

O Bairro Alto bom é claro que se está mesmo a ver que o Bairro Alto é o
Bairro Alto e se o Bairro Alto é o Bairro Alto que outra coisa podia ser o Bairro
Alto senão o Bairro Alto? Ora como eu ia dizendo o Bairro Alto é o Bairro Alto e
por isso é ao mesmo tempo Alto e bairro o que quer dizer que como é bairro
mora lá muita gente e como é Alto vai lá muita gente que quer subir montar
ficar de cima estar mais alta lá porquê não sei o que sei é que é assim mesmo os
limites do Bairro Alto são fáceis de dar porque começa onde as ruas começam a
subir e acaba onde elas começam a descer é mais fácil sair do Bairro Alto do que
entrar porque toda a gente sabe que para baixo todos os santos ajudam embora
haja poucos santos no Bairro Alto lá disso estou certa aquilo não é bairro que
viva em cheirinho de santidade até porque cheira a lixo a couves podres a
esgotos em mau estado e a outras coisas uma coisa muito engraçada que há no
Bairro Alto são os lisbon by night que saem das camionetas ao princípio da noite
entram num bar bebem um copo entram numa casa de fados ouvem um fado e
desaparecem na calma outra vez para dentro das camionetas isto deve-se ao
prestígio do Bairro Alto no estrangeiro sim porque assim como a Europa está
connosco nós estamos com a Europa e a prova é que está tudo ensarilhado na
Europa mas para voltarmos ao Bairro Alto quero dizer que os lisbon by night são
a prova de que a Europa tem os olhos postos no Bairro Alto que goza de grande
prestígio nos meios turísticos europeus e asiáticos ainda no outro dia lá esteve
um chinês a provar isso no Bairro Alto há muitas vielas e muitos portais de dia
as pessoas andam nas vielas e à noite metem-se nos portais trata-se de um
bairro muito barulhento em que as pessoas querem descansar em silêncio e a
prova é que à noite ouve-se uma data de mulheres metidas aos portais a
sussurrar sckiulshiu! E a dizer pst! pst! porque há poucos telefones as pessoas
têm sempre de conseguir quem lhes faça os recados o que não é fácil outra coisa
que abunda no Bairro Alto é tabernas há quase tantas tabernas no Bairro Alto
como há igrejas em Roma o que mostra que o povo do Bairro Alto é religioso
sim porque o vinho foi aprovado nas bodas de Caná e é uma bebida muito
aprovada pelos religiosos e pelos bairroaltistas infelizmente eu não posso
indicar aos meus leitores quais são as grandes instituições do Bairro Alto
porque se eu mostro que sei estas coisas levo bumba no toutiço que é uma
limpeza de maneira que tenho que falar das instituições de segunda ordem

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como a leitaria do senhor João que é onde vai a malta do Diário de Lisboa e do
Diário Popular beber galões gin's e sei lá que mais a taberna do Tagarro que
está sempre cheia de pessoas a fanar rissóis ao balcão o célebre Farta Brutos o
célebre 13 o célebre Bichano e outros sítios mais onde se pode ver à hora do
almoço uma malta bestialmente castiça de barba em punho e olho no além a
beber vinho tinto e a dizer mal deste e daquele como compete a todo o
português que se preza às vezes há uns gritos na rua motivados por um
policiazito que está a dar uns impulsos nos transeuntes mas isso é raro porque o
Bairro Alto é um bairro pacífico se não fosse haver tanta taberna tanto
desordeiro tanto polícia tanto bar e tantas outras coisas até era o bairro mais
pacífico da cidade já me esquecia de dizer que há no Bairro Alto instituições
bestialmente sérias como a Caixa Geral dos Depósitos o Instituto do Vinho do
Porto e o 100 que são estabelecimentos metidos no negócio das divisas e dos
produtos similares uma coisa que corre mal no Bairro Alto são os transportes é
que não há eléctricos nem autocarros nem metropolitano as pessoas têm de
andar a pé e de carro e correm o risco de se lixar porque os passeios são
pequenos as ruas estão esburacadas e os carros ocupam o espaço todo o que é
uma infâmia as coisas são o que são e contra factos não há argumentos aliás o
Bairro Alto resiste a todos os argumentos o Bairro Alto continua disso podem
estar certos e fico por aqui porque o resto que eu sei do Bairro Alto não é para
os lábios de uma menina.

In O Jornal, 2, Junho 1978.

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A Estrela

A Estrela e a Lapa são os bairros mais queques da cidade que estão a


desaparecer sem os seus habitantes darem por isso já que a maioria deles está
no Brasil de onde não se vê nem a Estrela nem a Lapa por o Atlântico estar no
meio ora a Estrela e Lapa sempre tiveram em perigo que foi por estarem perto
de mais de Campo d'Ourique onde os queques se contam pelos dedos da mão
do Decepado que foi um que foi às guerras mas que teve azar porque em lugar
de arranjar várias comissões para comprar um Mercedes e dois apartamentos
meteu-se num sarilho com o inimigo e só conseguiu que lhe dessem dois cepos
para meter nos sítios onde tinha braços enfim o melhor é continuar pois como ia
dizendo os queques em Campo d'Ourique contam-se pelos dedos de uma mão
do Decepado e isso prejudica a quequesa da Estrela olá se prejudica porque os
não queques reproduzem-se mais depressa do que os queques e acabam por ser
tantos que os queques têm de se misturar com eles e perdem um bocado da
quequesa outra coisa que aconteceu à Estrela e à Lapa foi as casas de alguns
queques que foram para o Brasil terem sido ocupadas por cabo-verdianos e
toda a gente sabe que os cabo-verdianos não são lá muito queques hoje em dia
quem vá ao jardim da Estrela julga que está numa ilha qualquer lá de Cabo
Verde o que não auxilia os pergaminhos do bairro da Estrela tem uma igreja
muito grande chamada basílica lá porquê não sei nem me interessa mas é uma
igreja mesmo muito grande onde cabe muita gente e onde estaria muito mais
gente se não houvesse tantos fiéis interessados em estarem a comer bolos na
Normanda durante a hora da missa o que prejudica muita as lotações da
basílica antigamente os namorados iam namorar muito para o jardim da Estrela
mas agora não vão porque há cinquenta transístores por metro quadrado e
noventa gravadores por banco todos a vomitarem ruídos diferentes e toda a
gente sabe que o ruído prejudica os namorados que precisam muito de silêncio
para poderem sussurrar coisinhas boas uns aos outros eu por causa disso já
acabei um namoro sim porque fui para o banco do jardim do miradouro cá da
Graça com o filho de um guarda-livros que me pediu namoro e vai quando ele
me pediu para eu lhe sussurrar coisas boas eu segredei-lhe ao ouvido mousse
de chocolate e ele ficou ofendido como se houvesse coisa melhor do que mousse
de chocolate enfim vi-me livre do palerma o que foi bem bom porque não fui
feita para namoros e nenhum homem me leva se julga que me senta num banco

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de jardim para lhe segredar ao ouvido que o acho o mais bonito do que
Sandokan ou que antes queira casar com ele do que com Onassis eu para
baboseira não sirvo se servisse arranjava emprego na política e ia para o
parlamento fazer discursos namoros e «xaxadices» não é comigo não senhor se
a minha mãe tivesse sido como eu e não tivesse ido nas brilhantinas do meu pai
não tinha casado com ele e estávamos agora as duas sozinhas numa casa de três
assoalhadas que chegava para ambas e que com o meu pai em casa não chega
para ninguém o meu conselho para as mulheres é que não vão em brilhantinas
quando ele começam a brilhantinar o remédio é a gente pôr-se a mexer ainda
por cima os homens de cá não sabem brilhantinar como os de lá de fora e a
prova é que ainda não vi nenhum dar brilhantina como dá Omar Sheriff isso
sim é que é dar brilhantina quando o vejo até sinto arrepios na espinha mas
voltando à Estrela que é o tema desta redacção tenho a acrescentar mais
algumas informações senão a redacção serve para os turistas e para outras
pessoas que queiram conhecer o bairro pois a primeira informação importante é
que na Estrela não há vinho quem quer beber vinho na Estrela tem que ir a uma
taberna comprar vinho importado do Poço do Bispo ou de outro sítio qualquer
o que é chato outra informação importante principalmente para as mulheres é
que há na Estrela um grande hospital para militares doentes as mulheres que se
acautelem porque os magalas que andam lá em tratamento estão doentes de
tudo menos das mãos e as mulheres que lá passam levam cada apalpão que até
faz doer olá se levam e eles não são lá muito escolhedores porque a minha tia
Eulália que é velha e tem um rabão do tamanho de uma camioneta ia a passar lá
e levou um apalpão tão grande que largou a correr pela Calçada da Estrela
abaixo e só parou em São Bento foi pior a emenda do que o soneto coitada
porque São Bento foi conquistado pelos cabo-verdianos de forma que quando
ela chegou a casa o rabo era uma nódoa negra tão grande que até parecia que
ela tinha sentado em cima de um barril de tinta preta coitada que nunca mais
quis vir a Lisboa e mesmo lá na terra quando chega alguém de Lisboa encosta o
rabo à parede porque julga que isso em Lisboa é o desporto favorito enfim se
calhar até é mas como dizia a menina Graciete é bom saber que ainda há
alguma coisa gratuita na cidade é pena que sejam os beliscões e não as batatas
mas o que a gente pode fazer?

In O Jornal, 9 Junho 1978.

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Benfica

Lá para o fim do mundo onde a terra não acaba porque ainda há a Venda
Nova e a Reboleira e a Amadora e onde o mar não começa porque fica longe
como burro fica a aldeia de Benfica que alguns chamam de Malfica porque fica
tão longe que os transportes não chegam lá senão depois de uma data de horas
de viagem em que morre gente em que se dá à luz e em que se fazem e
desfazem casamentos e em que se apanha tanta pisadela e tanto beliscão que se
chega lá a Benfica com os pés e o cu numa lástima a minha prima Amélia que
vive lá depois de um ano de viagens teve de mandar vir um cu de plástico da
América porque o dela tinha-se gasto quem quiser ir de Lisboa a Benfica de
carro pode ir pelo mapa pela bússola ou à sorte o pior é que se for à sorte não
chega lá mas também não perde nada com isso porque a única coisa que lá há é
o Jardim Zoológico e como Lisboa agora é toda ela um jardim zoológico quem é
que quer ir ver o de Benfica? Outra maneira de uma pessoa que vai para Benfica
de carro se entreter é ir contando os polícias de trânsito que estão por lá aos
magotes ao fim da tarde o que explica o facto de haver tanto roubo em Lisboa
porque se está mesmo a ver que os polícias foram todos parar à Polícia de
Trânsito para caçar mais qualquer coisita aos automobilistas o meu pai diz que
entre o Governo aumentar os preços das gasolinas a Polícia de Trânsito a caçar
multas e os buracos das ruas a darem cabo das suspensões o diabo que escolha
é tudo uma cambada de ladrões enfim estas coisas não se podem dizer senão
começam logo a acusar a gente de estar a criar entraves ao Governo quando se
está mesmo a ver que o Governo é que passa a vida a criar entraves à gente a
gente anda tão entravada tão entravada tão entravada que não sabe o que há de
fazer à vida é por isso que há tanta gente em Benfica é uma forma de emigração
como qualquer outra só que para a nossa desgraça os emigrantes que vivem em
Benfica não têm o carinho das autoridades o senhor Presidente da República
não fala deles quando bota o discurso sobre as comunidades portuguesas
espalhadas pelo mundo e no Dia de Camões não se lembraram deles e nem
mandaram lá um senhor das Forças Armadas botar falação patriótica isto é uma
injustiça por um lado mas é uma sorte por outro sim porque sempre se safaram
de ouvir mais uma falação diz-se que o senhor Presidente da República agora
que veio do Brasil vai em visita oficial a Benfica se isso é verdade ele que venha
de helicóptero porque se vier de transporte público só cá chega lá pelo século

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XXII de qualquer forma há qualquer coisa que não se entende porque nossos
bravos militares já não andam de helicóptero como andavam durante o prec
que andavam sempre de helicóptero com um ar muito apressado e muito
cómico como se andassem a salvar a Pátria e isso enriquecia muito o folclore
nacional e punha a gente a rir não havia nada mais engraçado do que vê-los sair
dos helicópteros de blusões negros com um ar bestialmente bélico eu tenho
pena que isso tenha se acabado porque isto é um país triste e nessa altura era
divertido só era pena não andar ainda por cá o senhor Eça de Queiroz que se
esse tivesse tido tempo de os descrever antes de morrer a rir a gente tinha
ficado com uma literatura mais rica e esses dos helicópteros sempre tinham
enriquecido a literatura do País porque com as falações que fazem não chegam
lá nem lá nem a parte nenhuma isto quem não tem helicóptero não tem nada e
quem tem helicóptero tem tudo mais vale ter um helicóptero na mão do que
dois a voar filho de helicóptero sabe nadar helicóptero escondido com o rabo de
fora helicóptero a helicóptero a galinha enche o papo quem não quer ser
helicóptero não lhe veste a pele basta de helicópteros que de helicópteros
andamos todos fartos olá se andamos só não anda farto de helicópteros quem
tem saudades de andar de helicópteros e nós que os pagávamos mas não
andávamos neles não temos saudades nenhuma eu quando vejo um helicóptero
fico a tremer com medo que eles voltem só tenho pena de não haver
helicópteros para Benfica por causa da tal qualidade da vida sim porque como é
que se pode falar da qualidade da vida de uma pessoa que se levanta às seis e
meia da manhã para chegar às nove ao emprego de que sai às seis para ir a
correr para a bicha do autocarro ver se consegue chegar a casa às oito para
comer uma bucha fria porque está toda a gente tão cansada que ninguém tem
coragem para ir aquecer o carapau familiar sim quem é que pode falar da
qualidade da vida às pessoas assim ou pedir-lhes que vão a museus e a
concertos e a exposições coitados eles não chegam a casa em estado de ir a parte
nenhuma o que eles querem é mandar toda a gente àquela parte enfim vou
continuar a falar de Benfica e vou indicar as instituições de Benfica para os
turistas que lá quiserem ir a principal instituição cultural de Benfica é a
pastelaria Califa onde se juntam os intelectuais da região para beberem bicas e
para comerem pastéis de Belém têm todos pêra pelo menos os que têm barba e
há alguns que têm bigodes e barba toda a gente sabe que a barba dá um ar
bestialmente intelectual é por isso que é bestialmente fácil saber quem é que é
intelectual e quem não é a regra é simples os verdadeiros intelectuais não têm
barba o único que tem é o Júlio Caldeireiro mas esse é especial porque não é um
intelectual full-time digamos que faz o seu biscate de intelectual mas que o resto

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do tempo está na Brasileira e basta isso para não ter direito ao cartão do
sindicato ora na Califa todos têm barba o que dá logo a entender à gente que
aquilo é a Brasileira de Benfica o que é o mesmo que dizer que nenhum
intelectual lá põe o chispe há vinte anos outra instituição de Benfica é o Nilo
que é um café que há lá não me lembro de mais nada e estou farta de escrever
adeus.

In O Jornal, 16 Junho 1978.

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Alcântara

Alcântara fica em Alcântara como se está mesmo a ver o que não se está
mesmo a ver é que uma parte de Alcântara fica debaixo da ponte sobre o Tejo
outra parte fica para lá da ponte e outra parte fica para cá da ponte os
alcantaren-ses tiveram um azar bestial nisto porque se tivessem uma quarta
parte que ficasse em cima da ponte sobre o Tejo não tinham de pagar portagem
quando fossem à Caparica ou a Almada mas isto de ter sorte é uma coisa que só
acontece a alguns se acontecesse a todos não era sorte era o corrente ora a
primeira coisa que é preciso saber sobre Alcântara é que Alcântara não é muito
diferente dos outros bairros porque tem tudo o que os outros têm como por
exemplo ruas mal tratadas lojas passeios com buracos eléctricos apinhados
cervejarias polícias que andam a ver se multam os automobilistas enquanto os
ladrões roubam nas calmas um trânsito lixado supermercados e o mais que os
outros bairros têm à primeira vista nem se dá pelo carácter especial de
Alcântara e o que é engraçado é que à segunda vista também não e isto já é uma
característica importante que escapa a muitos observadores desses que há agora
e que dizem que são imparciais lá porquê não sei para dizer a verdade não
tenho ninguém da família em Alcântara e só fui lá uma vez de maneira que sei
pouco daquilo o que vale é que sou do meu tempo e como não tenho
preconceitos contra a ignorância antes pelo contrário isso de não saber nada de
Alcântara não me impede de escrever este artigo com a consciência tranquila
como qualquer profissional que se preze ora como eu ia dizendo mora muita
gente em Alcântara mesmo muita gente e toda essa gente se levanta ao mesmo
tempo e vai para o Largo do Calvário ver se apanha o mesmo eléctrico e como a
companhia ainda não conseguiu pôr ao dispor dos alcantarenses um eléctrico
em que eles caibam todos há muitos que ficam de fora a resmungar e a reclamar
vai à noite acontece a mesma coisa todos os alcantarenses saem dos empregos à
mesma hora e querem apanhar o mesmo eléctrico e há uma data deles que
chegam tarde a casa mas isso também acontece na Graça o meu Pai ainda no
mês passado perdeu o eléctrico e só chegou a casa de madrugada com muitas
dores nos pés um cravo na lapela e um cheiro de vinho tinto que empestou a
casa toda mas isso é natural coitado porque como ele não conseguiu arranjar
lugar nos eléctricos que param nas paragens andou a ver se conseguia lugar
num que parasse nas tascas ora como eu ia dizendo isso acontece muito em

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Alcântara é os gatos andarem nas ruas atrás das gatas se calhar isso não é
verdade mas como eu só fui uma vez a Alcântara como é que eu hei-de saber o
que se passa num sítio onde só fui uma vez? Julgam que sou daquelas que
chegam a um sítio que se metem num hotel e que vai escrevem três artigos para
explicar o que lá se passa? Não sou dessas não senhor e não quero enganar
ninguém de maneira que repito o que já disse de minha ida a Alcântara de uma
vez que meu Pai me levou ao aquário do Dafundo e que ficámos no caminho
por termos esbarrado com uma tasca onde tinha chegado o vinho novo lá em
Alcântara ora dessa vez espreitei e não vi nada que não tivesse já visto em
outros bairros vi um homem palmar a carteira a outro vi um polícia tirar um
número a um carro que não estava a fazer mal a ninguém vi um homem chegar-
se ao pé duma que estava encostada a uma esquina discutir com ela e depois
entrarem os dois para o vão de uma escada vi dois rapazes a colar cartazes
desses que dizem para os votantes votarem num partido qualquer vi dois
homens a lerem A Bola vi quatro miúdos a jogar ao berlinde num passeio vi os
limpadores da Câmara passarem por uma rua e ela ficar mais suja que estava vi
isto tudo e fiquei a pensar que Alcântara é como os outros bairros sem tirar nem
pôr só que fica mais longe da Graça e por isso vai-se lá menos vezes do que os
outros bairros a grande figura histórica de Alcântara parece-me que é um
religioso chamado Prior do Crato ou coisa que o valha mas não sei se ele já
morreu ou se ainda se mexe porque o meu professor quando a gente lhe
pergunta factos fica muito vermelho e responde outra coisa quando lhe
perguntei se o Prior do Crato ainda mexia respondeu-me que a burguesia tinha
colonizado a Guiné o que é interessante mas não ensina nada sobre o Prior do
Crato a grande batalha de Alcântara foi num caneiro mas também não sei por
que é que foi se calhar foi por causa da bola digo isto porque lá na Graça
quando há porrada é quase sempre por causa da bola enfim não sei mais nada
sobre Alcântara se calhar não há mais nada a saber.

In O Jornal, 23 Junho 1978.

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Vou ser designer

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Tive uma bolsa para ir à exposição do design

Pedi um subsídio de viagem à Fundação Mosca e vai comprei um bilhete


de eléctrico e mais outro e mais outro porque é bestialmente difícil ir da Graça à
Feira das Indústrias que é uma que há e não há sim porque há em nome mas
não há como devia haver porque não tem homens a vender churros tachos de
barro sardinhas assadas e frangos queimados e quem é que já ouviu falar numa
feira em que a gente não possa comer um franguinho queimado com batatas
fritas dois dias antes sim é que já ouviu falar numa feira assim? é o que diz o
meu Pai estas coisas que metem autoridades perdem logo a graça toda porque
as autoridades andam engravatadas e não gostam de sardinha assada mas
enfim o melhor é eu continuar fui lá a essa feira das tais indústrias e pediram-
me logo dinheiro à porta para eu entrar mas não me disseram para que colónia
balnear é que ia o dinheiro ora isso é uma grandessíssima indecência porque
quem paga um bilhete para entrar numa feira tem todo o direito de saber para
que colónia balnear é que vai o seu pilim quanto mais não seja porque até pode
haver quem goste dumas colónias balneares e não goste de outras cada um tem
as suas preferências e ninguém tem nada com o gosto das pessoas eu estive
mesmo para não entrar só por não me terem dito para que colónia balnear é que
ia o meu pilim e já agora aproveito para dizer que não temos lá na Graça
nenhuma colónia balnear e que faz falta não era má ideia não senhor se
fizessem uma feira para se arranjar pilim para uma colónia balnear na Graça
enfim entrei na tal feira das tais indústrias e deram-me uma data de papelinhos
com propaganda de coisas várias principalmente de máquinas que eu não
tenho dinheiro para comprar uma indústria que eles deviam montar era uma de
fazer dinheiro aposto que tinha um sucesso bestial mas enfim o que eu fui ver
foi o design que é a tal coisa bestial que há agora lá para quê não sei só se é para
dar que fazer aos designadores a primeira coisa que eu vi foi um designador
chamado Sena da Silva que é um que há bestialmente alto que estava ao lado
dum outro chamado Júlio Moreira quem os designou e pôs ao lado um do outro
estava mesmo a precisar dum curso de design porque um é bestialmente alto e
o outro é bestialmente baixo porque um é assim a modos que desprovido de
cabelo para não lhe chamar careca e o outro ainda tem algum de maneira que é
um par bestialmente mal designado olá se é ficam tão bem ao lado um do outro
como uma abóbora e um camarão palavra que nestas exposições deviam

70
esconder os designers outro que lá estava que um chamado Sam para não
destoar tem uma barba que não diz nem com o Sena da Silva nem com Júlio
Moreira de maneira que quem entrar e der com eles fica logo bestialmente
desconfiado a pensar «c'os diabos se este conjunto de designers está tão mal
designado como é que não será o resto?» mas enfim quem fechar os olhos e não
olhar para eles acaba por dar com coisas giras como por exemplo umas
motocicletas tão bem designadas que não se distinguem das que não são
designadas aquilo deve estar lá para demonstrar que também há camuflagem
designada porque aquelas motocicletas estão camufladas de motocicletas não
designadas e nisso são bestiais mesmo bestiais outra coisa que lá há são umas
cadeiras tão iguais às outras que a gente até julga que se enganou no pavilhão e
que está na Nauticampo sim porque aquilo só para campistas e mesmo assim
para campistas levesinhos porque um campista pesado que se sentasse numa
daquelas cadeiras dava com o assento no chão em três tempos e desistia de
fazer campismo outra coisa que lá há é rótulos destes que se põem em garrafas
esses também estão camuflados de rótulos normais o que eu digo é que aquilo é
só para pessoas muito inteligentes mesmo muito inteligentes porque as outras
não percebem que estão numa exposição de design não senhor e até são capazes
de pensar que estão numa loja de ferro-velho especializada em coisas novas sim
numa espécie de ferro-novo agora o que não percebem é porque é que aquilo é
design do que eu gostei muito foi das coisas do Sam da barba que é um que
parece o ítalo Balbo que é um que eu tenho lá em casa num calendário de
propaganda de laranjadas as coisas do Sam como eu estava a dizer foram
desenhadas para não servirem para nada e não servem mesmo para nada o que
é bestial porque há lá uma data de coisas que foram designadas para servirem
para qualquer coisa e não servem para nada é por isso que eu sou fã do tal Sam
da barba esse sim sabe o que é design agora um que tem lá um bidé que toda a
gente sabe para o que serve tapado com uma almofada diabos me pintem se é
um designer porque a almofada está exactamente no sítio onde a gente tem de
pôr o sítio para o lavar convenientemente e para que diabo serve o bidé que não
tem sítio para a gente pôr o sítio? aquele sítio tapado ainda é pior do que o sítio
da Nazaré que é um que há lá sempre cheio de gente com dores de barriga
porque vai ao sítio e vai chega lá e é um sítio como os outros que não serve para
a gente fazer aquilo que se deve fazer nos sítios mas enfim o da Nazaré ainda
leva lá turistas ao passo que aquele não leva lá ninguém e se levar é muito bem
feito para não serem tansos eu cá palavra que sou toda pelo design e já escrevi
isso uma data de vezes sim porque não há ninguém que goste mais de design
do que eu mas o que ainda não tenho é cultura para distinguir as coisas

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designadas das que não o são e por isso vejo-me muito aflita parece que para se
ver a diferença é preciso ser sócio duma casa que há na Rua Barata Salgueiro e
ter um curso e eu não tenho curso nem dinheiro para pagar quotas senão na
Sociedade Cultural e Recreativa da Graça mas tenho pena olá se tenho porque
gostava muito mesmo muito de olhar para uma coisa e ver se ela foi designada
ou se foi só feita para servir para aquilo que serve tudo isto é uma questão
cultural e eu nisso confesso que não sou barra a gente lá na Graça anda muito
atrasada quando compra um bidé por exemplo não lhe põe uma almofada em
cima não senhor mas agora [1973] que vai haver mais escolas e mais
universidades é possível que tudo mude e que as pessoas passem a comprar
almofadas para pôr em cima dos bidés eu cá por mim se isso acontecer monto
logo uma loja de almofadas porque se há coisas que vá dar lucro é isso da
venda de almofadas à medida que a cultura for crescendo e que as pessoas
forem mais vezes às exposições de design para mostrar a minha boa-vontade
também vou designar um bidé com almofada só que o meu é para pessoas
normais e aquele que há lá na exposição é para pessoas de pernas muito
afastadas daquelas que nasceram para fazer inveja ao Arco da Rua Augusta
enfim cada designador é que sabe as pessoas para quem desenha porque a
verdade é que as pessoas são todas diferentes umas das outras e que um casaco
designado para um marreco não serve a um que seja normal agora o que eu
digo é que gostava de ver as pessoas que vão utilizar o tal bidé olá se gostava e
gostava porque nunca vi nenhuma e devem ser giras.

In A Mosca, 10 Março 1973.

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Vou ser designer

Tenho cá andado a pensar que o meu futuro é ser designer que é uma
profissão que há agora para quem sabe melhorar as coisas que existem mas que
não são funcionais como deviam ser o melhor é eu explicar o que é «funcional»
senão ninguém me entende «funcional» é uma coisa que só serve para fazer
uma coisa e não serve para mais nada por exemplo num apartamento dum
prédio construído pelo meu primo Manel do Mercedes que é o tal que era pato-
bravo e agora para ser mais funcional é «industrial da construção civil» havia
na entrada uma secretária em que o porteiro almoçava em que ele se punha em
pé para chegar aos fusíveis quando a senhora do terceiro andar ligava o ferro
eléctrico e o bairro ficava às escuras em que ele abria o Diário de Notícias para
ver se alguém pagava melhor aos porteiros do que o meu primo em que as
pessoas quando vinham das compras punham os embrulhos enquanto
procuravam nas carteiras as chaves das caixas do correio e em que até se podia
dormir uma soneca pois esta mesa não era funcional e vai o meu primo Manel
do Mercedes que gosta bestialmente de andar à moda e até deixou crescer o
cabelo desde que deixou de ser «pato-bravo» para ser «industrial da construção
civil» resolveu deitá-la fora e pôr lá uma bestial feita daquele plástico que agora
inventaram e não madeira apesar de estar pintado como se fosse madeira e não
plástico todo às curvas estou agora a falar da mesa e não do plástico e em cima
dela pôs um aparelho todo cheio de botões encarnados e verdes chamado
intercomunicador que obriga o doutor do quarto esquerdo a disfarçar a voz
quando alguém liga para lá a saber se ele está que é para poder dizer que não
está e um bloco-notas para o porteiro assentar recados que ele está proibido de
usar para não gastar papel e como essa mesa foi desenhada só para o bloco-
notas e para o aparelho não cabe lá o jornal e o porteiro tem de o abrir no chão e
como essa mesa foi desenhada só para isso ninguém lá pode pôr embrulhos
enquanto procura a chave do correio e as pessoas têm de pô-los em cima das
caixas e às vezes caem e partem-se ovos e como o intercomunicador está ligado
por uma data de fios à mesa e à parede não se pode tirar a mesa para servir de
escada quando rebentam os fusíveis e por isso o meu primo teve de comprar
um escadote que está na entrada encostado à parede e como a mesa tem um
tampo tão pequenino que não cabe lá nada senão o intercomunicador e o bloco-
notas o porteiro não pode pôr o prato da sopa em cima dela e tem de comer

73
sentado nos degraus da escada pois isto é que é o que se chama uma mesa
funcional porque foi desenhada para aquilo e para mais nada e porque só serve
para aquilo e para mais nada pois as coisas funcionais estão cada vez mais na
moda e eu tenho cá andado a pensar que há um grande futuro em fazer coisas
funcionais que é o que fazem os designers e já pensei em algumas coisas que
podem ser muito melhoradas como por exemplo as pessoas sim porque se
alguma coisa está a precisar da atenção dos designers essa coisa é o ser humano
que é feito ao acaso por pessoas que o fazem sem saber para o que ele vai servir
e sem se preocuparem muito com isso eu cá por mim até acho que as pessoas
deviam ser proibidas de fazer pessoas sem primeiro tirarem um curso de design
para aprenderem a fazer pessoas funcionais porque a verdade é que os
hospitais estão cheios a abarrotar de gente que só lá está por ter sido feita ao
acaso hoje para começar e digo para começar porque para a semana volto a este
assunto que me parece bestialmente importante vou dizer duas ideias que tive
para melhorar o corpo de toda a gente e para a semana escrevo sobre a maneira
de melhorar os seres humanos das diferentes profissões para começar vamos às
pernas que toda a gente sabe que têm duas partes a saber a da frente e de trás
pois ao contrário do que seria funcional a parte de trás das pernas estão
protegidas por uma coisa que se chama a barriga das pernas e a da frente não
tem pára-choques nenhum o que é estúpido como uma porta porque as pessoas
andam para a frente e é com a parte da frente das pernas que batem nos
obstáculos como se vê pelas nódoas negras que têm nas canelas isto é tão
estúpido como seria por exemplo porem os pára-choques ao lado dos
automóveis em lugar de os porem à frente e atrás quando os automóveis andam
é para a frente e para trás e não para os lados outra prova de que as pessoas não
sabem fazer pessoas é os olhos estarem só na cara quando se está mesmo a ver
que cada pessoa devia ter um olho na ponta do indicador para meter nos
buracos das fechaduras para meter nas panelas a ver o estado do cozimento
sem as destapar completamente para meter nos buracos dos marcos do correio
para ver se já fizeram a triagem ou ainda para ver quem está atrás no cinema o
que é muito mais giro do que estar a olhar para a frente ver se alguém colou
uma pastilha elástica ainda boa debaixo do tampo duma mesa e para outros fins
que as pessoas quisessem porque cada um é que sabe o que quer ver e onde é
que quer meter o dedo isto como eu disse são só duas ideias porque a verdade é
que há muitas outras maneiras de melhorar o corpo das pessoas para elas
ficarem mais funcionais mas por hoje basta para a semana trago mais designs.

In A Mosca, 2 Dezembro 1973.

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Mais designs

Cá estou outra vez com as minhas ideias de design que é a tal coisa que
faz com que as coisas sirvam bestialmente bem para o que servem e não sirvam
para mais nada para começar acho que as pessoas estão todas erradas porque
servem para tudo menos para o que servem sim porque as pessoas deviam ser
feitas para aquilo que vão fazer na vida e para mais nada o resto é uma
inutilidade bestial que prejudica toda a gente e não favorece ninguém
comecemos pelo meu Pai que faz ele na vida sim que faz ele na vida? se formos
a ver bem as coisas trabalha numa repartição e para isso basta ter rabo para
estar sentado atrás de um guichet que é uma folha de vidro com um buraco no
meio ora se ele só precisa de ter rabo para que há-de ter mais coisas sim para
que há-de ter mais coisas? enfim porque é meu pai eu não me importo que ele
tenha uma parte do corpo para se entreter mas bem vistas as coisas o que ele faz
para se entreter é berrar com toda a gente em casa ora para ele ficar perfeito
para o que serve e para ainda se poder entreter basta-lhe portanto ter rabo e
boca e tudo o que ele tem a mais que isso é inútil e quando falo dele falo duma
data de colegas dele lá da repartição a seguir vamos ver para o que serve o
senhor Carlinhos que é o namorado novo da menina Lisette pois o senhor
Carlinhos é marinheiro e os marinheiros servem para andar no mar a navegar
se os pais dele soubessem alguma coisa de design tinham-lhe feito o peito como
a proa dos navios e tinham-lhe posto um mastro em vez de cabeça como eu sei
muito bem o que ele faz para se entreter porque o vejo metido com a menina
Lisette no vão da escada todas as noites punha-lhe uma ventosa no meio da
proa e pronto estava feito a seguir vamos ver como é que eu fazia o meu primo
Manel do Mercedes que é aquele que era «pato-bravo» e que agora é «industrial
da construção civil» palavra que não sei o que fazem os industriais da
construção civil de maneira que não sei ao certo como é que faria o meu primo
Manel se tivesse de o fazer segundo as regras do design mas uma coisa sei é que
ele faz uns prédios com janelas em que não cabe ninguém com portas que têm a
fechadura ao nível da rua para as pessoas se porem de cócoras quando querem
entrar em casa com umas casitas de banho em que só se pode estar de pé com
uns livings que é o sítio onde se faz tudo e onde os meninos dormem porque a
avó está no único quarto que há não contando com o dos pais pois ele faz uns
livings em que não se pode fazer nada e julga que é uma pessoa bestial e eu

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como tudo o que ele faz não serve para nada senão para encher o olho aos
papalvos vingava-me dele fazendo um primo novo que servisse para não fazer
nada isto é que fosse só um enfeite para o olho como são as casas que ele faz
mas para o tramar mesmo fazia um enfeite que se tivesse de pôr de cócoras
para abrir a porta de casa e pronto ficava o meu primo Manel todo à design
para aprender a não ser parvo a seguir vou ver o que é que fazia à menina
Mariazinha do 43 que é dactilógrafa e tem uma data de peças a mais sim senhor
porque uma dactilógrafa escreve à máquina todo o dia sentada numa cadeira
quando se fosse feita por uma pessoa que soubesse design tinha o rabo para se
sentar e dedos para escrever mas não tinha mais nada e para se poupar a
cadeira até se podia fazer uma dactilógrafa com um rabo e uns dedos tão bem
desenhados que o conjunto se pudesse sentar em cima da máquina isso era
bestialmente fácil a seguir vou fazer o senhor Raul do prédio novo que é
porteiro ora que faz um porteiro sim que faz um porteiro sim que faz um
porteiro? nada absolutamente nada senão ver quem passa palitar os dentes ora
para isso bastava-lhe ter um olho e um palito de maneira que eu se fosse do
design era assim que o fazia a pessoa mais difícil de fazer outra vez como deve
ser é a menina Lisette que sai de casa à tardinha e nunca lhe falta pilim mas eu
não sei ao certo o que ela faz para ganhar a vida o melhor é deixá-la como está
porque desta gente toda é quem ganha mais pilim e por isso até é capaz de ser
bem feita para o que é para a semana se eu tiver mais ideias dou-as que agora já
estou cansada sim porque nada cansa mais do que ter ideias.

In A Mosca, 9 Dezembro 1972.

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Os meus primeiros namoros

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Os meus primeiros namoros

O meu primeiro namoro foi um chamado Xico que anda sempre com as
mãos nos bolsos e que estava atrás de mim na aula tive de o namorar porque o
bandido aproveitava-se de estar atrás de mim para me espetar a esferográfica
entre os omoplatas de cinco em cinco minutos e eu já andava com as costas
desfeitas o nosso namoro era muito chalado mas verdade verdadinha que
sempre aproveitei dele porque esse tal Xico passava-me as respostas dos pontos
de história que era uma coisa que eu não sabia muito às vezes à tarde íamos ao
miradouro ver a cidade e andávamos uns minutos de mãos dadas por termos
namoro um dia atrás da igreja ele deu-me um beijo na boca à cinema foi o meu
primeiro beijo para dizer a verdade não percebi por que é que eles gastavam
tanto tempo nos filmes a fazer aquilo eu cá para mim não achei piada nenhuma
não senhor porque fiquei toda lambuzada e não gozei nada se o tal Xico não
tivesse estado minutos antes a mastigar uma chiclet o beijo não tinha sabido a
nada mas assim sempre me soube a hortelã-pimenta depois disso dei alguns
bem piores olá se dei mas o melhor é continuar como ia dizendo o meu namoro
com o tal Xico foi muito chalado e tive de o acabar porque ele não me deixava
namorar o Pilo que é um que vive ao pé da Feira da Ladra e que é filho de um
merceeiro nunca percebi por que o tal Xico não me deixava namorar o Pilo pelo
menos aos sábados mas a verdade é que não deixava e que se portou muito mal
comigo quando acabei o namoro porque no dia seguinte no ponto de história
deu-me as respostas erradas às perguntas e a professora levou a mal que eu
tivesse respondido que um tal de D. João I tinha sido o primeiro Presidente da
República Portuguesa como se fizesse alguma diferença que tivesse sido ele ou
o dr. Mário Soares ou lá quem foi e tudo isso por causa do tal Xico embora eu
tivesse sido estúpida em acabar o namoro na véspera do ponto de história mas
era muito nova e tinha muitas ilusões sobre os homens agora felizmente perdi-
as todas e quem me tirou algumas foi esse tal Pilo que foi meu segundo namoro
pois esse tal Pilo não andava com as mãos nos bolsos não senhor tinha a mania
de pôr uma delas em cima do meu joelho e tinha mais manias uma delas era ver
se eu tinha cócegas apesar de eu ter lhe dito que não tinha vai que não vai dizia
aposto que tu tens cócegas e começa a ver se eu tinha cócegas em sítios em que
ninguém tem cócegas um dia aquilo chegou a tal ponto que tive de lhe dar um
pontapé e vai ele ficou danado e perguntou se eu sabia o que era namorar e se

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eu julgava que namorar era andar de mãos dadas no miradouro e falar do
poente e do ocaso e das estrelas só mais tarde quando eu já namorava o Cucas é
que percebi que esse tal Pilo julgava que namorar era ver se as pessoas têm
cócegas digo isso porque já o vi no cinema a ver se a Marília tem cócegas ele
agora anda com essa lambisgóia o bandido que me deixou por eu não querer
que ele andasse sempre a ver se eu tinha cócegas uma vez por dia ainda vá mas
de cinco em cinco minutos é de mais principalmente porque ninguém tem
cócegas onde ele queria ver enfim o Cucas que foi o meu terceiro namoro era
mais sério e passava o dia a falar de coisas sérias como por exemplo quantos
filhos é que a gente ia ter quando casasse os inconvenientes dos casais
dormirem em camas separadas e outras coisas deste género além disso
preocupava-se muito com a minha cultura geral e andava sempre a perguntar-
me se eu queria que ele me explicasse como é que se fazia para ter filhos aquilo
nele era uma ideia fixa eu depois à medida que fui crescendo que os homens
têm todos ideias fixas e que o mais engraçado é que as fixam todos nas mesmas
coisas para dizer a verdade os homens são um sexo muito chalado mas como
não há outro a gente tem de os aturar enfim desgraças ou para dizer a verdade
imprevidências de Deus eu não acredito na perfeição de Deus se ele fosse
perfeito não tinha inventado os homens que enquanto são novos têm as tais
ideias fixas e quando começam a envelhecer dá-lhes para a política entre os dois
o diabo que escolha.

In A Mosca, 6 Julho 1979.

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Também tive um namoro a sério

A minha vida amorosa não foi nada fácil não senhor e quem pensar o
contrário engana-se redondamente porque as coisas são o que são a vida de
uma rapariga inocente é bestialmente difícil e quando se torna fácil é porque ela
já não é inocente ora eu fui sempre bestialmente inocente apesar das
dificuldades com que lutei que foram muitas porque a Graça não é um retiro de
anjinhos nem um Krúger Park de bem-intencionados o meu namoro mais sério
foi um chamado «Caracol» porque quando pequeno tinha a mania de andar aos
caracóis quando o conheci já ele usava calças compridas e já comprava os
caracóis apanhados por outros enfim já era um homem quase feito para ser um
homem completo já só lhe faltava a barba e uns anitos até já fumava quando
encontrava alguém com cigarros conheci-o na pastelaria A Formosa da Graça a
comer um Olá era capaz de ter dinheiro para dois e pus-me a passear à frente
dele a ver se ele me via e viu logo aí não não viu e daí a cinco minutos
perguntou-me o que é que eu estava a fazer e perguntei-lhe se ele tinha alguma
coisa a ver com a minha vida e que se metesse na dele e ele vai disse-me que
não me queria ofender e eu perguntei-lhe se ele se metia com todas as raparigas
e ele disse que só se metia com algumas e eu disse-lhe para ele ir se meter com
as que conhecia e para me deixar a mim em paz e ele disse que como estávamos
a falar há cinco minutos já nos conhecíamos e já se podia meter comigo e eu
mandei-o àquela parte e ele disse-me que só ia se eu fosse com ele estava tudo a
correr bestialmente bem como estou a contar e eu a perceber que tínhamos um
começo de namoro romântico e vai chegou um namorado que eu tinha na
altura chamado Xico Ranholas e meteu-se na conversa a dizer que estava na
hora de irmos passear para o miradouro e vai eu disse-lhe que fosse sozinho e o
«Caracol» que não sabia que ele era meu namorado meteu-se no assunto e
disse-lhe para ele se ir embora e ele disse que não ia e pegaram-se à pancada e
um cão que ia a passar mordeu a perna esquerda do «Caracol» e vai as pessoas
separaram-nos mas eu tive de lhe prestar assistência por causa da dentada do
cão e fui com ele à farmácia pôr-lhe tintura de iodo na perna e a conversa
começou outra vez eu a dizer-lhe que me deixasse em paz e ele a dizer-me para
o largar porque sabia ir sozinho à farmácia eu a mandá-lo àquela parte ele a
dizer-me que a comesse com erva enfim tudo a correr bem quando saímos da
farmácia ele disse que ia comer um Olá e eu disse que também me apetecia e

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vai entramos outra vez na Formosa da Graça e pedimos dois gelados de
chocolate com baunilha e com morango e quando eu estava à espera de que
pagasse ele olhou para mim e disse paga tu que eu pago amanhã e eu disse-lhe
que não tinha dinheiro e ele disse que também não tinha e que tinha dito para
irmos lá a pensar que eu tinha quem nos salvou foi o Xico Ranholas que estava
à porta da loja cheguei-me ao pé dele e disse-lhe Ó Xico Ranholas se queres
continuar o namoro que tens comigo e ir comigo passear para o miradouro
prova que és homem e paga ali dois sorvetes que eu comi e saí da loja com o
«Caracol» dizendo-lhe Espera aí que eu já venho para irmos passear e ele
coitado pagou e ficou ali à minha espera se calhar ainda lá está não sei porque
isso passou-se há uma data de anos e eu estive muito tempo sem ir à Formosa
de qualquer forma o que interessa é que comecei nesse dia um namoro muito
bom com o «Caracol» esse namoro durou quatro meses e só acabou porque a
família dele arranjou uma parte de casa em Lisboa e emigrou para lá e eu lá
pagar eléctricos para ir namorar a Lisboa é coisa que não faria nem que ele fosse
o Travolta depois dele houve mais dois um chamado Lingrinhas e outro
chamado Calmeirão, o segundo era melhor porque o primeiro passava o dia a
discutir política e eu não gosto de política e nem de mesas-redondas nem de
eleições nem de discursos nem de comunicações nem de chatices porque a vida
é curta de mais para chatices.

In O Jornal, 13 Julho 1979.

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O meu primeiro noivado

Vai um dia fiquei noiva não foi por amor nem por negócios nem de
urgências que nisso de urgências ninguém me apanha não senhor fiquei noiva
porque o meu Pai me apanhou debaixo da escada a namorar com o Xico
Relógio que se chama assim porque está sempre a ver as horas e vai o meu Pai
levantou a mão e o palerma do Xico Relógio em vez de cavar pela porta fora
com toda a mecha ficou parado a olhar para ele de boca aberta e quando o meu
Pai gritou Que está você aqui a fazer seu valdevinos? o palerma abriu a boca e
disse isso que me espantou tanto tanto que ainda coro fico espantada só de
ouvi-lo: E síom a pedir noivado à menina Guidinha e o meu Pai ficou com a
mão no ar a olhar para ele com mais espanto nos olhos do que teria se tivesse
ganho a sorte grande e em lugar de lhe dar uma chapada desceu o braço
apertou-lhe a mão e convidou-o para ir lá a casa beber uma jeropiga que lá
tínhamos porque o meu primo Manel tinha-a trazido na véspera e minha Mãe
tinha-a escondido quando chegámos lá acima eu ia com umas dores de barriga
tão grandes que só fui para a sala passados uns vinte minutos e vai que dei com
o meu Pai a beber jeropiga com o Xico Relógio e perguntar-lhe o que ele fazia e
se tinha casa e quais eram seus projectos para o futuro tudo isso com a minha
Mãe especada de pernas abertas a olhar para eles como se fossem fantasmas
quando eu entrei o meu Pai levantou-se com um grande sorriso e deu-me um
beijo e disse que estava muito contente por eu ter assentado e que ia me dar um
presente e vai convidou o Xico Relógio para jantar e deu dinheiro à minha Mãe
para ela ir comprar um frango grande e uns pacotes de batatas fritas e ela saiu
coitadinha sempre com aquela expressão de espanto na cara assim como se
tivesse caído o Skylab na cozinha e no corredor perguntou-me Olha lá o que é
que deu ao teu Pai? Aquilo é manha para ir à taberna depois de jantar ou para ir
visitar a menina Lisette aposto é manha nunca o vi assim e eu também não às
vezes penso que ele o que queria era ver-se livre de mim mas não estou lá
muito segura não senhor nestas coisas nunca se sabe ao certo o que é que leva
os pais a fazerem isto ou aquilo porque a verdade é que os pais são umas
pessoas bestialmente misteriosas que não funcionam como nós alguns deles
aposto que até têm macaquinhos no sótão mas adiante que se começo a falar
dos pais não conto a história do meu primeiro noivado daí a bocado a minha
Mãe voltou com o frango as batatas vinham num saco plástico e o ar espantado

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vinha na cara dela e foi para a cozinha guisar o frango porque um frango
guisado rende muito mais já que as pessoas vêem uma data de bocados de
ossos no prato e têm vergonha de pedir mais além disso com a cebola e com
tomates parece maior pois como eu ia dizendo a minha Mãe foi para a cozinha e
o meu Pai ficou na saleta com o Xico Relógio a falar de futebol e quando
descobriram que eram ambos do Sporting e não sei a que mais e vai daí a
bocado sentamo-nos à mesa a comer e ver «O Astro» o que foi muito bom para
todos porque o meu Pai quando havia «Astro» não bebia enquanto aquilo
durava enfim depois de jantar bebemos todos menos a minha Mãe que não
dizia nada à saúde do futuro casal e o meu Pai deu-me autorização a segurar a
mão do Xico Relógio e a sair com ele desde que não saísse do jardim do
miradouro e viesse para casa antes do sol posto eu ia-me engasgando com
aquela de não sair do jardim do miradouro porque estava farta de andar com
ele na Rua do Ouro e no Parque Eduardo VII e na Costa e já tinha ido com ele
ao cinema mais de vinte vezes enfim como eu disse os Pais são o que são e não
há nada a fazer do que eu não gostei foi de segurar a mão do Xico Relógio que
estava bestialmente suada e vai o meu Pai perguntou quando é que as duas
famílias se juntavam para se conhecerem e aí é que foi o gato porque o Xico
Relógio ficou sem voz para começar os pais dele são divorciados e para
continuar cada um vive com outro de maneira que a tal junção das famílias era
difícil mas a coisa mais difícil é que o Xico Relógio anda no quinto ano do liceu
há cinco anos e se o Pai dele ouvisse falar em casamentos aquilo dava olá se
dava enfim ele disse que ia falar nisso aos Pais assim que eles viessem de França
é claro que eles nunca foram a França mas aquilo sempre lhe dava algum tempo
o pior foi que o meu Pai quando ouviu falar de eles estarem em França começou
logo a perguntar se eles mandavam dinheiro para cá todos os meses e se esse
dinheiro era para comprar uma casa e se estava a prazo no banco e mais isto e
mais aquilo mas o resto fica para a semana porque esta história já está grande
de mais.

In O Jornal, 3 Agosto 1979.

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A chatice das aulas

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Vou-me licenciar por obra e graça do Espírito Santo

Nestas coisas da vida uma pessoa ou tem sorte ou não tem eu cá por mim
tenho de confessar que não sou das que tiveram mais sorte e tudo porque
comecei a tirar a minha instruçãosita primária antes das reformas contra-
reformas sugestões de reformas propostas de reformas discussões sobre
reformas questões sobre reformas estudos sobre reformas esperas por reformas
e o mais que há sobre reformas e o resultado deste meu azar de ter começado a
ir à escola antes de tudo isto foi que tive de estudar uma data de coisas para
fazer exame da primeira classe mais uma data de coisas para fazer o da segunda
classe mais uma data de coisas para fazer o da terceira classe e nem digo
quantas coisas para fazer o da quarta classe para verem como as coisas eram
tenebrosas até tive de aprender a ler para tirar a quarta classe o que mostra
como a gente era perseguida torturada e maltratada nos tempos antigos se no
meu tempo já andassem estas reformas todas no ar eu tinha-me safado muito
melhor para começar não tinha tido aulas durante metade do ano por causa da
reforma e tinha passado para a segunda classe sem saber fazer contas de
multiplicar vai na segunda classe com uns sarilhitos tinha passado para a
terceira sem saber fazer contas nem de multiplicar nem de dividir e para entrar
no liceu sem eles darem por isso arranjava-se uma dispensasita de exame por
não saber ao certo como é que ia ser a reforma é claro que no liceu avançava da
mesma maneira não tinha aulas por falta de professores não tinha aulas porque
os professores faltavam não tinha aulas porque tinha de ir à cantina não tinha
aulas porque os professores estavam reunidos a tratar dos interesses superiores
dos alunos não tinha aulas porque os alunos estavam reunidos a tratar dos
interesses superiores dos professores não tinha aulas porque os pais se reuniam
a dizer que estavam a puxar de mais pelas cabeças dos filhos não tinha aulas
porque havia uma grande reunião a pedir ao ministro para não haver aulas não
tinha aulas porque era dia de feriado não tinha aulas porque o ministro tinha
medo de mandar a gente às aulas não fosse a gente fazer-lhe barulho à porta de
casa não tinha aulas porque não me apetecia ir às aulas e ninguém podia
mandar-me ir com medo de que eu não fosse apesar da ordem e lá se ia a
autoridade não tinha aulas porque não estava na moda haver aulas enfim o que
eu quero dizer é que acabava por entrar na faculdade que é para onde eu quero

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ir sem ninguém perceber que eu não sabia ler nem fazer contas de multiplicar e
de dividir com as coisas assim eu tenho a certeza de que chegava ao fim sem
abrir um livro o que até me facilitava a vida porque se me obrigassem a abrir
um livro eu estava frita por não saber ler e isso de ir às aulas era coisa que eu
não fazia porque havia de arranjar maneira de lá não pôr os pés umas vezes não
ia porque não havia professores outras vezes não ia porque não gostava deles
outras vezes não ia porque estava à espera que fosse resolvido o problema dos
transportes em Alcácer do Sal outras vezes não ia porque era dispensada de ir
enquanto não viesse a reforma e outras vezes não ia porque não ia e pronto
ninguém tem nada com o que faço enfim chegava ao fim do curso e davam-me
um canudo todo escrito em latim e um emprego pago em dinheiro português
corrente como eu gostava de ser médica porque gosto muito daqueles filmes
que há na televisão com aqueles médicos bestialmente simpáticos que fazem
discursos às pessoas e que as curam com palavrinhas mansas e compreensão ia
para um hospital trabalhar talvez na cirurgia é claro que ao princípio matava
umas pessoas para descobrir onde é que elas têm o apêndice e o fígado mas isso
que importância tem neste mundo em que há gente a mais? com o tempo e com
umas buscas bem organizadas acabava por saber onde é que estava o apêndice
de cada um e cortava-o tão bem como se tivesse aprendido porque não há nada
como o saber adquirido pela experiência eu calculo que me bastariam duzentas
pessoas para ficar a operar apêndices quatrocentas para operar estômagos e
umas quinhentas ou seiscentas para operar cabeças ao todo com umas mil
mortesitas ficava a cirurgiar tão bem como qualquer que tivesse estudado e não
tinha perdido o meu tempo em escolas faculdades e outras velharias o meu azar
foi ter ido para a instrução primária antes das pessoas começarem com isto das
reformas que vai haver mas não me perco por isso não senhor que não estou
para ser prejudicada por coisas de que não tenho culpa nenhuma para já
declaro aqui que para o ano não vou às aulas e que se me quiserem chatear vou
tocar tambor em frente da casa do ministro e dar berros até ele ficar acagaçado e
me dispensar com quatro valores que é o que eu costumo ter escrevendo nos
pontos umas coisitas que oiço em casa e de exames nem me falem o que eu
quero é uma reforma ampla e boa que não me obrigue a estudar até já ando a
combinar cá com uns amigos uma reivindicação que é o ministro dar à gente o
canudo logo à nascença montando um posto de entrega de canudos nas
maternidades para poupar trabalho aos funcionários e para reduzir a
burocracia que está cada vez pior sim porque não se entende esta exigência
burocrática de a gente ter de se inscrever em escolas a que não vai para fazer

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exames que não faz e passar de ano quando a gente passa sem ter de fazer nada
para isso neste país há a mania da burocracia.

In A Mosca, 22 Junho 1974.

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Que chatice começaram as aulas

Que chatice começaram as aulas agora que eu andava tão contente metida
na política a espalhar papéis a berrar e a politizar a Dona Almerinda que é
aquela que vive por cima da mercearia palavra que estou furiosa com o
Governo e que só não voto contra ele quando forem as eleições porque ele não
se arrisca a deixar-me votar por eu ainda não ter feito 18 anos mas quando as
meninas com 14 anos puderem votar é um ar que deu a este Governo Provisório
então isto admite-se sim isto admite-se? anda uma menina a politizar o seu
bairro a trabalhar para a política a explicar o que é a democracia e vai dum dia
para o outro metem-na no liceu a aprender a tirar a prova dos nove anda uma
menina a ensinar a pessoas o que é o comunismo e o liberalismo e vai obrigam-
na a ir escutar quem era um chamado Lenine e o que é que ele pensava como se
interessasse a alguém saber o que é que pensava esse Lenine que se calhar até
era jogador de futebol palavra que isto é ofensivo para a juventude eu cá por
mim protesto reclamo reivindico e proponho que o senhor ministro da
Educação seja saneado imediatamente e posto fora do ministério o que interessa
agora é a política se ele quiser saber quem é o tal Lenine que vá aprender e não
nos obrigue a nós a aprender chatices e inutilidades sim porque eu cá na Graça
tenho mais que fazer e vai ainda por cima metem-nos num liceu todas
empilhadinhas nesta época de gripes e cóleras porque não têm lugar para nós
ora eu cá acho que enquanto não tiverem lugar para nós o nosso lugar é fora do
liceu o meu primo Manel que tinha o Opel e que depois comprou o Mercedes e
que agora anda de metropolitano para mostrar que não tem pilim disse-me que
leva para aí dois ou três anos a construir um liceu decente para a gente e eu vou
organizar manifestações a reclamar para esperarem pela construção dos liceus
porque o que me convinha era ter três anitos de férias sem ter de aprender os
nomes das capitais dos países sem ter de saber tirar raízes quadradas e outras
velharias que não servem para nada para já vou fazer cartazes contra a medida
reaccionária de nos mandarem para a escola contra a medida reaccionária de
nos obrigarem a estudar contra a medida reaccionária de nos obrigarem a
aprender a ler e escrever quando já há televisão e rádio para a gente poder
ouvir o que interessa sem saber mais nada os meus cartazes vão dizer abaixo a
REACÇÃO / ABAIXO O MINISTRO REACCIONÁRIO / QUEREMOS O
SANEAMENTO DO MINISTÉRIO / RESISTAMOS AOS FASCISTAS e outras

88
coisas que eu cá ando a pensar e a preparar para a minha manifestação eles que
comecem as aulas e vão ver o que acontece sim vão ver o que acontece porque
comigo ninguém brinca já ando a preparar cá a malta da Graça a Odette leva
uma matraca de ferro que pesa uma data de quilos a Fininha que é uma que é
muito gorda e está sempre a ver se consegue cortar nos bolos de arroz para
emagrecer leva uma corrente de motocicleta exactamente igual a uma que eu vi
numa fita americana bestial passada não sei onde a Crista leva uma bola de
ferro que a gente roubou no museu militar e que parece que era uma bala de
canhão nos tempos antigos a Manela leva um martelo de cabeça de aço enfim a
gente vai preparada para malhar na polícia na tropa em quem aparecer até
levamos pioneses pregos e mais coisas para furar os pneus aos jipes do Saraiva
de Carvalho se eles chegarem a tempo isto agora não é a brincar não senhor que
a gente não está para ir à escola e ao liceu aprender coisas quando podíamos
andar cá fora a ensiná-las o ministro que se acautele que desta vez tem-me a
mim pela frente e eu não vou em cantigas nem em falinhas mansas leva três
anos a fazer uma escola boa e eu enquanto não tiver uma escola boa vou
continuar a politizar a Dona Almerinda e outras como ela que bem precisam de
quem as ensine como deve ser enfim este assunto está gasto e o melhor é eu
passar a outro mas para quê? sim para que hei-de eu continuar a escrever só
porque é minha obrigação e porque sou paga para isso? Para que hei-de eu
continuar a escrever se o que me apetece é ir passear para o miradouro? adeus
vou para o miradouro.

In A Mosca, 9 Novembro 1974.

89
Para os meninos do Liceu Pedro Nunes

Para começar isto é uma grandecíssima infâmia sim porque as pessoas têm
direitos morais e o direito moral mais importante que há é o direito de autor
que é um direito bestialmente importante que têm os autores e eu sou autora
das minhas redacções e tenho tantos direitos morais como o Camões que se
estivesse vivo e alguém quisesse editá-lo pagava-lhe uma percentagem que era
uma limpeza pois o que eu digo é que me estão a tramar porque estão a
prejudicar os meus direitos morais de autora mas o melhor é eu dizer o que me
está a acontecer para as pessoas saberem o que está a acontecer é que um
professor do Liceu Pedro Nunes mandou os alunos levarem as minhas
redacções para a aula para aprenderem a pôr pontos e vírgulas e mais coisas
dessas que não servem para nada e que eu deitei fora para ficarmos com uma
língua decente sim porque a gente quando fala não diz vírgula no meio das
palavras nem diz ponto no fim dos períodos se disséssemos essas coisas era
uma confusão que ninguém mais se entendia mesmo assim é o que é pois o que
eu acho é que ninguém tem o direito moral de mexer nas minhas redacções e de
as modificar sim porque as coisas são o que são e ninguém tem nada que meter
a foice ou lá o que é na seara alheia o que eu quero saber é por que eles não
põem pontos e vírgulas decentes no Camões sim porque é que não põem
pontos vírgulas pontos de interrogação e pontos de exclamação nos Lusíadas
que é um livro bestialmente difícil de entender sim que para entender aquilo é
preciso um curso cá por mim o que digo e repito é que há umas partes nos
Lusíadas que andam a pedir pontos de exclamação que é uma limpeza no outro
dia o Carlos da tabacaria que é aquele que lê tudo e mais alguma coisa sim é
porque nesse capítulo do «mais alguma coisa» eu nem falo porque ainda no
outro dia o vi ler umas coisas que se o pai o apanhava nem sei o que lhe
acontecia pois esse Carlos da tabacaria disse-me que os Lusíadas tinham umas
partes que não se lêem nas escolas por causa dos bons costumes mas que eram
bestiais e vai emprestou-mas e eu li-as não posso dizer que fossem mesmo
mesmo bestiais era tudo sobre uns senhores que andavam a correr atrás dumas
senhoras nuns arbustos lá porquê não cheguei a perceber mas penso que aquilo
ou se passava no Jardim da Estrela ou no Parque Eduardo VII ou na Mata de
Benfica porque não há arbustos noutros sítios e de qualquer forma eu duma vez
que fui à Mata de Benfica picnicar com a família vi um senhor a correr atrás

90
duma senhora e depois meteram-se num arbusto para conversar enfim o que eu
digo é que essa parte dos Lusíadas aguentava uns pontozitos de exclamação e
que lá no liceu deviam era metê-los lá em lugar de andarem a estragar as
minhas redacções sim porque o que a gente escreve tem um estilo e o estilo das
minhas redacções é meu e de mais ninguém e aposto que os meninos lá da aula
quando começarem a meter-lhe pontos e vírgulas estragam o meu estilo que é
meu e dão cabo da minha propriedade literária o que eu não sei é se não deva
pedir-lhes para me pagarem algum pilim por isso sim porque se o Camões
estivesse vivo e lhe mexessem nos Lusíadas pedia logo uns pilins ao rei ai não
não pedia olha quem que nestas coisas de arte só trabalha para bem da arte
quem não consegue mesmo que lhe comprem nada e não tem outro remédio
senão arranjar uma desculpita qualquer para continuar a fazer coisas enfim o
que digo é que isto de me mexerem nas redacções é uma grandecíssima infâmia
e ainda acaba mal olá se acaba mas para os ensinar a pôr pontos e vírgulas
quem os vai tramar sou eu com que então querem meter pontos e vírgulas nas
minhas redacções? com que então não respeitam os meus direitos morais? com
que então a minha propriedade é de todos? pois então experimentem lá meter
pontos e vírgulas no bocado que segue para ver se são capazes Água Beber
Tomar Aspirina NÃO SE MÃOS LAVAR AS DEVE VAI OU neste que eu meto
aqui em honra dum menino que anda lá no Liceu Pedro Nunes e que eu quero
tramar porque recebeu as ordens de levar uma redacção da Guidinha e não
reclamou em nome dos meus direitos morais de propriedade: meninos
CULTURAL E QUE PAZ JORNALÍSTICA DEIXEM ME SOU EM pontos no
camões e vírgulas que em que ora toma para ver se gostam que se julgam que
isto é só gozar enganam-se que ainda há muito boa gente neste mundo capaz de
defender os seus direitos e de armar sarilhos e agora para acabar se os meninos
não entenderem estes períodos que eu escrevi podem dizer-me que eu explico e
se quiserem pôr vírgulas e pontos que as ponham mas que usem os meus
pontos e as minhas vírgulas e aqui vão alguns para eles usarem a partir de
agora as minhas redacções sem pontos nem vírgulas custam um preço mas o
estojo completo com pontos e vírgulas é mais caro quando eu tiver fixado o
preço digo entretanto cá vão alguns de borla é aproveitar que se julgam que vai
haver mais saldos enganam-se ..........????
???????;;;;;;;;;;;;;;;;;!!!! adeus até ao meu regresso.

In Mosca, 30 Janeiro 1972.

91
O meu Pai foi preso

O meu Pai meteu-se numa alhada danada está a repousar na esquadra por
causa da televisão e disto e daquilo sim porque hoje em dia quem ligar a
televisão arrisca-se a ser preso que é uma limpeza que foi exactamente o que
aconteceu ao meu Pai coitado que foi parar ao Repouso dos Tesos por ser
patriota e por saber ler mas o melhor é eu contar o que aconteceu sim porque
não há nada como a gente conhecer a verdadinha toda o resto são cantigas ora o
que aconteceu na - que foi quando o doutor Saraiva falou na televisão sim
senhor porque foi nesse dia que aconteceu o que aconteceu antes não tivesse
acontecido as coisas passaram-se assim o meu Pai depois do jantar tirou as
moedas do bolso contou-as ficou muito triste por ver que o fim do mês tinha
chegado ainda mais cedo do que o costume e resolveu ver a televisão que por
acaso não está no prego calçou os chinelos desabotoou o colarinho sentou-se na
cadeira grande ajeitou o rabo por causa da mola partida da cadeira que se mete
pelo rabo da gente dentro e chega a fazer sangue e preparou-se para ver o
programa primeiro viu o filme da cerveja depois viu o filme das calças depois
viu o filme do detergente depois disse que se aquilo continuava assim não
havia razão para ele pagar a licença da televisão e quem tinha de a pagar era os
donos da cerveja das calças do detergente dos livros de bolso sim porque lá
nisso ele tem razão então eles passam a noite a fazer propaganda disto e
daquilo e a gente é que paga? e vai a gente julgou que tinha aparecido um
filmito novo de propaganda porque vimos escrito no quadradinho o tempo e a
alma e julgámos que era propaganda de relógios ou de detergentes porque o
tempo lava mais branco principalmente em matéria de almas mas não senhor
era propaganda do Camões mas não era para vender nada era só para a gente
ficar a saber que ele não tinha um olho mas que isso não lhe fez falta nenhuma
porque tinha outras coisas bestiais o meu Pai que nestas coisas é bestialmente
culto chamou-me e disse anda cá Guidinha vem aprender estas coisas para não
ficares burra e recitou uns versos do Camões para mostrar que não é parvo: As
armas e os barões assinalados pelas estradas ermas a cantar mas como não se
lembrou de mais ficou por aí e ainda bem porque ele antes de recitar tosse
sempre quatro vezes e não deixa ninguém ouvir o programa pois como eu ia
dizendo tudo correu muito bem o meu pai sempre a acenar com a cabeça para
mostrar à família que estava de acordo com o Doutor Saraiva e que ele não

92
estava a dizer nada que ele não soubesse até ao momento em que o doutor
Saraiva começou a falar do Infante D. Henrique das caravelas que é aquele que
andava de chapéu de hippy e que está na parede do fundo do recreio com talent
de bien fa escrito na moldura eu sei que a frase não é só esta mas alguém
arrancou três letras da última palavra de maneira que ninguém sabe
exactamente que é que aquilo quer dizer apesar da Deolinda do 2.o C dizer que
aquilo é francês o que não pode ser verdade porque um homem patriota como o
Infante D. Henrique não ia com certeza falar uma língua estrangeira em Sagres
antes de chegarem os turistas enfim tudo correu bestialmente bem até o doutor
Saraiva começar a falar no Infante D. Henrique porque a partir daí foi um
sarilho bestial primeiro porque ele disse que o que eu aprendi na escola quando
ele era ministro não é verdade e eu aproveitei para dizer ao meu Pai uma coisa
que eu até acho bestialmente certa sim o que eu disse foi o pai vê que não vale a
pena a gente estudar na escola? aprendi aquilo tudo e afinal é mito e agora
querem por força que aprenda equações mas eu não vou nisso porque aposto
que daqui a dois anos o senhor ministro da Educação vem dizer que as
equações eram mitos ora não vale a pena a gente cansar a cabeça com mitos ora
eu disse isto para o meu Pai perceber a vida e até vou mais longe: o que eu disse
é bestialmente verdadeiro e se a gente pensasse bem na vida nunca mais punha
os pés na escola e isso não é tudo porque a verdade é que se a gente na escola
aprende mitos pequeninos na universidade aprende mitos grandes e claro que
eu disto sei pouco digo o que digo porque sou bestialmente lógica e as coisas
são o que são quer a gente queira ou não e a verdade é que a universidade é
maior do que o liceu enfim vou continuar com a história do meu Pai coitado
que fez a sua vida com uns princípios e umas coisas que aprendeu para poder
ser promovido de vez em quando e vai agora riem-se todos das coisas que ele
aprendeu e nunca mais o promovem e ele anda bestialmente infeliz e revoltado
porque não há direito de se fazer uma coisa destas a uma pessoa o meu Pai
coitado pagou durante anos cotas e andou a espalhar na taberna que o Benfica
era o melhor do mundo que os estrangeiros tinham inveja de nós e que
andavam a organizar coisas contra nós mas que a gente tinha sempre razão e
que D. Afonso Henriques limpava o cebo aos russos e vai agora não o
promovem e até dizem que ele foi parvo pois ele coitado anda com mais
complexos do que um cão que tem carraças e basta-lhe ouvir alguém defender
uma coisa nova nem que seja um tostãozito novito que andava para aí antes de
emigrar para perder a cabeça e ficar todo revoltado coitadito que ainda fez um
esforço para se adaptar à vida a ver se o promoviam e durante uns tempos
defendeu tudo o que era novo mas largaram a rir dele e agora nem quer ouvir a

93
palavra novo e foi o que lhe aconteceu na noite em que o doutor Saraiva disse
aquilo do Infante D. Henrique é que nem sei explicar o que aconteceu ele deu
um berro saltou da cadeira atirou com o cinzeiro para o chão aos gritos Viva o
tronco em flor! Viva a cruz de Cristo nas velas! Viva D. Sebastião! Viva Dona
Urraca! e ainda a minha Mãe e eu estávamos de boca aberta já ele ia pela escada
abaixo a dizer que só faltava difamarem o D. Afonso Henriques e que ia para a
taberna beber do tinto especial enquanto houvesse tinto porque esta gente ia
destruir tudo e que o D. Afonso Henriques tinha mesmo sido bestial e que não
admitia que lhe dissessem o contrário e mais isto e mais aquilo enfim para
encurtar razões foi preso de madrugada a dar vivas ao D. Afonso Henriques e à
Dona Amália Rodrigues e ainda está no Repouso dos Tesos dizem que só abre a
boca para gritar que isto é tudo uma data de estrangeiros e que assim não vale a
pena viver.

In A Mosca, 4 Novembro 1972.

94
A linguagem é bestialmente importante

Esta coisa chamada língua portuguesa é bestialmente importante sim


porque a gente ouve-os falar e fica logo a saber quem eles são e o que eles
querem ser na vida aquele provérbio antigo que havia e que era diz-me com
quem andas e dir-te-ei quem és devia ser diz-me como falas e dir-te-ei o que
queres ser no antigamente e quem diz no antigamente já está a dizer quem é
havia uma linguagem de ministro uma linguagem de director-geral uma
linguagem de oposicionista bem e uma linguagem de gente assim como o meu
Pai e eu e bastava a gente ouvi-los falar para ficar logo a saber quem eles eram e
o que queriam ser quando por exemplo alguém no antigamente dizia nós que
demos novos mundos no mundo e cruzamos os oceanos para espalhar a fé de
Cristo a gente ficava logo a saber que se tratava de um ministro com sede a
pedir um copo de água quando alguém dizia nós que deste jardim da Europa à
beira-mar plantado continuamos a iluminar o mundo com nossa visão histórica
a gente ficava logo a saber que era um ministro com poucas vitaminas a pedir
um pratinho de hortaliça quando alguém dizia as infra-estruturas das
estruturas carecem duma revisão estrutural para salvaguarda das estruturas a
gente ficava a saber que era um director-geral a ver se conseguia ir a ministro
quando houvesse uma reforma quando alguém dizia a falta de quadros
tecnicamente adequados à construção duma média indústria apta a concorrer a
gente ficava logo a saber que era um director-geral que tinha ido ao estrangeiro
duas vezes numa missão e que tinha ficado com a cabeça a andar à volta por ter
lido a Playboy no avião quando alguém dizia na medida em que ou uma visão
superficial do problema levar-nos-ia a concordar ou a priori parecia que a gente
ficava a saber que era um oposicionista a ver se não lhe cortavam a palavra
depois do antigamente quando alguém dizia a gente não tem formação política
mas sabe o que quer politicamente a gente ficava logo a saber que era um
capitão com ambições deputádicas quando alguém dizia em nosso entender a
indústria privada tem um grande papel a desempenhar a gente ficava logo a
saber que era um cozinheiro político a preparar um prato de lebre com carne de
gato agora quando a gente ouve dizer por exemplo e não só fica a saber que é
um cozinheiro promovido a brigadeiro digo a locutor de rádio no decorrer de
um plenário em que a malta saiu antes da votação por estar farta de discursos e
quando a gente ouve dizer outra vez as infra-estruturas das estruturas carecem

95
de uma revisão estrutural para salvaguardar as estruturas fica a saber que é um
igual aos de antigamente mas tingido de fresco para ver se o fazem director-
geral das novas direcções-gerais há uns anos que começam desde pequeninos a
preparar o futuro lá no meu liceu por exemplo há um chamado Mário Jorge que
é tão sabido tão sabido que estuda as lições de véspera para mostrar ao
professor que sabe quando ele no dia seguinte dá aula e para mostrar que é
esperto estuda um detalhesinho sem importância nenhuma que atira para o ar a
meio da aula só para mostrar que sabe muito esse um dia destes a apreciar um
sermão do Padre António Vieira liquidou a malta dizendo trata-se de uma
exortação repleta de subjacências está-se mesmo a ver que a subjacência dele é
querer ir a deputado a director-geral e a ministro e se a gente não toma cuidado
até vai a menos que lhe topem subjacências a tempo isso da linguagem é tão
importante que mais dia menos dia volto ao assunto entretanto o que era
preciso era alguém chegar-se ao Mário Jorge e dar-lhe um pontapé com força na
subjacência.

In O Jornal, 3 Dezembro 1976.

96
O ensino superior comprido e o ensino superior curto

Ora vejam lá se não se está mesmo a ver que esta gente é doida sim ora
vejam lá que digo isto porque agora como não tinham mais nada a fazer
criaram o Ensino Superior Curto ora com as faltas as greves as férias os sarilhos
e mais isto e mais isto o ensino superior já estava tão curto que se lhe tirassem
um bocado deixava de se ver mas eles a essas coisas não ligam como não ligam
à lógica sim porque das duas uma ou o ensino superior é comprido em demasia
e então deve ser encurtado porque é estúpido manter os meninos a estudar
mais tempo do que o necessário ou tem exactamente o tamanho necessário e
não pode ser encurtado e nesse caso o tal ensino novo é o que quiserem menos
curto o que ele não é com certeza é superior de qualquer forma o que isso prova
é a riqueza bestial deste país que tem uma universidade velha uma
universidade nova e que agora passa a ter também uma universidade curta o
meu Pai diz que a universidade curta foi criada para dizer com o cabaz das
compras com os ordenados e que estão cada vez mais curtas por causa da
inflação de qualquer forma isto vai dar uma confusão danada porque nós já
tínhamos os doutores por extenso os drs. sem ser por extenso e agora vamos
ficar com os drs. curtos porque mais dia menos dia os drs. curtos reivindicam o
direito de ter o mesmo tratamento dos drs. compridos e vão para a rua berrar
que a diferença é uma discriminação que não se admite numa democracia não
sei se o regime vai mudar todo ou se fica tudo na mesma cá por mim apresento
uma sugestão como as aulas da Universidade Comprida duram 50 minutos
proponho que as aulas das Universidades Curtas durem 10 minutos como os
professores da Universidade Comprida são normais proponho que se cortem as
pernas dos professores da Universidade Curta para eles ficarem mais curtos
como os alunos da Universidade Comprida estudam por livros normais
proponho que a direcção da Reader's Digest seja incumbida de resumir os
textos para o ensino curto onde os alunos da Universidade Comprida por
exemplo estudam que o valor de pi (passe a ortografia mas a minha máquina
não tem o símbolo) é 14,16 etc. os alunos da Universidade Curta devem estudar
que total de pi vale 10,15 aos cursos de humanidades da Universidade Curta
também se deve facilitar a vida aos licenciados curtos da seguinte forma onde
os da Universidade Comprida dizem D. Pedro V os da Universidade Curta
devem dizer D. Pedro II é certo que isso pode dar uma certa confusão mas é

97
igualmente certo que os desgraçados não têm tempo para estudar mais porque
se começarem a estudar acaba-se-lhes o curso antes de chegarem ao fim do
estudo no meio disto tudo o que eu digo é que inventaram esta Universidade
Curta por o Cardia da Educação ser tão pequenino se ele fosse mais comprido
nada disso acontecia agora lá como é que ele vai se amanhar com tanta
Universidade é que ninguém sabe porque se está mesmo a ver que ele nem com
a Comprida se safa quanto mais com a comprida e com a curta e como nestas
coisa de demagogia não há rei nem roque eu cá por mim proponho que se acabe
mesmo com as universidades e que se introduza na Constituição uma regra
dizendo Cada português é doutor por direito próprio se seguissem este meu
plano acabavam os complexos punha-se termo aos privilégios e poupava-se
muita lata nos canudos que na Universidade Curta passam a ter o tamanho das
pasta de pomada para lavar os dentes uma coisa que vai ter é piada é arranjar
nome para as coisas da Universidade Curta os lentes por exemplo passam a ser
o quê nessa universidade? vidrinhos sem graduação? e os doutores honnoris
causa? será que vão passar a chamar nessa universidade doutores honnoris
causita? ou doutores honnoris curta? e quem vai ser o director? o Marcelo
Curto? bem sei que este último problema não é grave porque não faltam por aí
curtos de toda a espécie para leccionar e as cátedras? passarão a chamar-se
bancos de cozinha? enfim se isto tudo tem uma moral essa moral é que ter um
ministro da educação que dá pela cintura da gente acaba por se reflectir no
tamanho dos cursos e dito isto aqui vão as notícias da Graça como é natural a
Graça vai bem e recebem a notícia da Universidade Curta com grande
entusiasmo para dizer a verdade e para que se possam avaliar esse entusiasmo
informo que já se organizou uma comissão incumbida de propor ao dr. Mário
Soares que instale a Reitoria da Universidade Curta aqui no bairro é certo que
não temos edifícios apropriados mas numa rua cujo o nome não revelamos há
um vão de escada desocupado e como a Universidade é curta talvez lá caiba o
ministro da educação pode lá entrar sem bater com a cabeça no vão da porta
disso estamos certos deve ser o único português que consegue isso mas antes
conseguir isso que não conseguir nada.

In O Jornal, 12 Agosto 1977.

98
A chuva (uma redacção no velho estilo da Guidinha)

A chuva é uma água que cai do céu e que às vezes em vez de ser água é
granizo que é a mesma coisa mas é mais dura e vem às bolinhas há muitas
espécies de chuva há chuva pesada que é a que pesa mais há a chuva leve que é
a que pesa menos que a chuva pesada e há a chuva molha tolos que é uma
chuva que só molha os tolos ultimamente tem chovido muito dessa chuva e
anda para aí muita gente molhada a principal característica da chuva molha
tolos é ser ineficiente porque cai principalmente à noite que é quando os
políticos estão em casa isto leva logo a crer que esta chuva ganhava em ser mais
esperta a segunda característica desta chuva molha tolos é cair em pinguinhos
pequeninos se caísse em pingos maiores molhava os tolos mais depressa e
podia ir para casa mais cedo quando chove as pessoas que vão para o trabalho
metem-se nos vãos das portas e esperam que a chuva passe e as pessoas que
vão para casa ou para o cinema metem-se nos eléctricos ou em táxis e seguem o
seu caminho o que mostra que a chuva afecta as pessoas de maneiras diferentes
conforme o seu destino contra a chuva as pessoas usam gabardinas chapéus de
chuva e aspirina cada um usa o que pode e ninguém tem nada com isso porque
vivemos numa democracia e a chuva é constitucional porque tudo o que tem de
ser é constitucional continuando quero dizer que há chuvas chatas e chuvas
boas as chuvas chatas são as chuvas que caem quando a gente está no recreio na
praia ou num piquenique as chuvas boas são as que caem quando a gente está
na cama ou a namorar eu digo porque tenho visto muitas raparigas que estão
sentadas num banco do jardim a namorar e quando começa a chover têm de
arranjar um abrigo e dão beijocas que nunca mais acaba assim que estão
escondidas num abrigo é por isso que eu acho que a chuva é favorável aos
namorados e àquilo a que a minha professora chama propagação da espécie eu
não sei lá muito bem o que isso é mas tenho a impressão que é uma coisa que
corre muito bem quando está a chover voltando aos utensílios de defesa contra
a chuva quero dizer que os melhores utensílios são os chapéus de chuva porque
servem para proteger a gente e para espetar nos olhos das pessoas o meu Pai já
tem entrado em casa com uma garrafa de briol metida no chapéu para a minha
mãe não ver eu é que coco tudo olá se coco as gabardinas são boas mas são
caras a do meu Pai está no prego a secar desde o Inverno passado e foi por isso
que ele se constipou quatro vezes este ano mas como ele diz que a aspirina fica

99
mais barata do que tirar a gabardina do prego a gente lá vai vivendo e
resistindo a chuva quando cai faz poças e dentro das poças forma-se lama que é
terra molhada quando uma pessoa cai numa poça aleija-se mas isso é sabido e
tem pouca importância a água da chuva serve para lavar a cabeça porque a
menina Paulina que é a tal que ainda não sofreu com a crise do desemprego
porque trabalha à noite ali para os lados do Técnico tem uma tijela no vão da
janela para apanhar água de chuva para lavar a cabeça e duma vez a tijela caiu
em cima do polícia José e fez-lhe um galo na cabeça ele ficou danado e entrou
na casa dela para a multar mas quando saiu de casa duas horas depois vinha
com um ar satisfeito a abotoar o casaco se calhar ela lavou-lhe a cabeça com a
água da chuva o que é muito meritório eu estou a escrever esta redacção e a
olhar para a chuva pela janela para dizer a verdade eu não gosto da chuva.

In O Jornal, 5 Maio 1978.

100
Ora abóbora!

101
O pó

Esta coisa de viver no meio da poeira é difícil como burro e o burro como
toda a gente sabe é o animal mais difícil do mundo depois do burro-homem a
quem também se dá o nome de homem-burro apesar de ter as patas metidas
para dentro ao contrário do burro que não é homem e que as tem metidas para
fora e aqui é que está a verdadeira diferença entre estas duas qualidades de
burro porque quem quiser encontrar outras está condenado a ter grandes
desilusões a não ser que estude as diferenças entre o homem-burro e o burro-
não-homem pelo aparelho digestivo que é aquele que vem na página 81 do
livro de ciências e que serve para a gente comer o que depois descome ora as
grandes diferenças são que o burro-não-homem come palha enquanto o
homem-burro come pó mas isso não é tudo porque enquanto a palha que o
burro-não-homem come lhe vai parar ao estômago depois de lhe passar pela
boca e pelo esófago o pó que o homem-burro come vai-lhe parar à cabeça
directamente e sai-lhe depois pela boca em palavras que cobrem tudo duma
poeirada danada que esconde as verdades e que encobre tudo até não se ver
nada lá no meu liceu há tantos homens-burros ou burros-homens que até faz
pena e como esta redacção é sobre o pó e a poeira eu vou contar o que o
professor de português cá do liceu anda a fazer ao reitor sem ele dar por isso ou
pelo menos sem ele mostrar que dá por isso mas para começar é preciso
explicar que o meu professor de português é um velhinho que faia achim e chó
dich parvoiches e belharias que não interechsm s ninguém com menos de 90
anoch e chá debe haber muitch poucoch deches o que eu não percebo é porque é
que não o arrumam a um canto a jogar dominó com os outros da mesma idade
mental mas não senhor lá porquê não sei se calhar é para o entreterem deixam-
no trabalhar num jornal que a gente cá tem e que ninguém lê mas que é o jornal
do liceu chamado o Ala Arriba para enganar a gente porque estamos todos a
ver que as coisas cá no liceu estão de tal forma por causa desse e de outros que
o jornal devia era chamar-se Ala Abaixo mas enfim esse professor está feito com
um outro que quer ser reitor à força mas como não tem força para isso faz de
conta que é muito amigo do reitor e que concorda com ele quando ele manda
varrer um corredorzito para amostra ou quando ele manda fazer um bebedouro
de água no recreio mas passa o dia a dizer mal dele pelos cantos e escreve
grandes artigos no Ala Arriba a dizer que os resultados das coisas que o reitor

102
faz são maus que é para ver se o ministro da Instrução põe o reitor fora por
exemplo quando o reitor mandou fazer o bebedouro ele fez um grande discurso
a dizer que tinha sido sempre pelo princípio de dar água aos alunos mas
quando os amigos lhe disseram que isso da água gratuita tramava o negócio da
água engarrafada da cantina começou a publicar no jornal Ala Arriba grandes
artigos contra os inconvenientes das crianças se molharem com água de
bebedouros por causa das constipações que era para ver se o senhor ministro da
Educação começava a ver que o progresso do liceu era perigoso isto é uma
técnica muito conhecida tão conhecida que a gente sabe muito bem ao que ele
anda e o que ele quer e por isso ri que nem uns doidos quando ele começa a
fazer discursos sobre princípios principalmente porque a gente sabe muito bem
quais é que são os princípios dele e a quem é que ele quer ajudar com os tais
princípios e com os medos que quer meter às pessoas dizem que isto é muito
antigo e que havia um professor de português antigo no tempo de Cristo
chamado Judas que dizia bestialmente bem dele mas que estava feito com os
romanos que toda a gente sabe que estavam mortos por caçá-lo a uma esquina
enfim eu destas coisas não sei o que sei é que este professor de português antigo
nunca fez nada senão dizer bem dos que lhe pagavam o que me parece ser
bestialmente pouco para dar direito a reforma mas lá que ele enche tudo de pó
é verdade basta ele tocar numa coisa para essa coisa ficar toda empoeirada só
há um sítio em que ele não consegue deitar pó e esse sítio é os olhos da gente o
que deve ser muito triste para ele porque passou toda a vida a ver se conseguia
isso e passou toda a vida a ser pago para isso e vai morrer coitadito sem ter
conseguido a única coisa que lhe interessava a gente até devia ter pena dele e
até tinha se ele estivesse quieto mas como é que se pode ter pena dum burro
que mesmo depois de morto dá coices? a minha redacção acaba aqui porque
estou bestialment comovida a chorar com pena deste professor de português
antigo que há lá no meu liceu e ainda mancho o papel com as minhas lágrimas.

In A Mosca, 18 Novembro 1972

103
As boas educações

Esta coisa da boa educação e da «menina tenha maneiras» é uma coisa tão
misteriosa que ninguém a entende para começar não há regras iguais para toda
a gente se os adultos por exemplo se levantarem da mesa sem pedir licença uns
aos outros não lhes acontece nada mas se eu me levantar sem perguntar se
posso aqui d'el-rei que a minha mãe não me educa e mais isto e mais aquilo se a
minha mãe estiver a falar da vida e o meu pai a interromper para dizer que o
chefe da repartição chegou tarde ao serviço não acontece nada mas se for o meu
pai que estiver a falar da vida e eu o interromper para lhe dizer que o reitor
chegou tarde ao liceu aqui d'el-rei que a minha mãe não me educa e mais isto e
mais aquilo outra coisa bestialmente complicada é que a boa educação varia
bestialmente conforme as pessoas que estão na sala o meu pai por exemplo é
careca e usa uma coisa chamada chino para disfarçar e eu todos os dias quando
ele chega a casa tiro-lhe a tal coisa chino da cabeça e limpo-a com álcool e ele
gosta muito que eu lhe faça isso e está sempre a dizer que não sabia o que havia
de fazer se não fosse eu às vezes quando eu me atraso começa logo então
Guidinha não te lembras de qual é a tua primeira obrigação? e eu entretenho-
me a tirar-lhe a tal coisa da cabeça quando ele está distraído e rimo-nos
bestialmente é uma espécie de jogo que temos os dois pois no outro dia o meu
pai trouxe um amigo cá a casa para provar a jeropiga que mandaram da terra
para o magusto e quando eles estavam na sala a beber eu entrei nas pontas dos
pés sem fazer barulho pus-me atrás da cadeira do meu pai e arranquei-lhe o
chino para o limpar o amigo do meu pai desatou a rir o meu pai não sei o que é
que lhe deu tirou-me aquilo das mãos numa fúria e enfiou aquilo ao contrário
na careca o amigo ainda se riu mais e o meu pai em lugar de me agradecer e de
me dizer que não sabia o que havia de fazer da vida se não fosse eu começou
aos berros e quando o amigo se foi embora deu-me duas lamparinas que me
puseram a cara à banda enfim que há-de uma pessoa fazer neste mundo em que
são todos malucos menos eu e a minha mãe e mesmo da minha mãe tenho cá
umas desconfianças mas isto ainda não é nada não senhor outra coisa má é que
isso da boa educação varia muito conforme as pessoas com quem se tem a boa
educação um dia veio cá a casa uma tia minha que vive lá na terra e que nunca
tinha vindo a Lisboa e quando ela estava na sala chegou o meu pai que lhe
apertou a mão e ela disse-lhe então não me dás um beijo, homem e a minha mãe

104
começou logo dá-lhe um beijo, parece que ela é uma estranha e vai o meu pai
deu-lhe um beijo e ficou toda a gente contente pois dois dias depois a minha
mãe deu com o meu pai a dar um beijo pequenino na menina Lisabette e
começou aos berros sem razão nenhuma porque a menina Lisabette também
não é uma estranha não senhor até é vizinha e vive no primeiro esquerdo enfim
isto da boa educação é uma coisa que ninguém entende quando a minha mãe
sai com o meu pai vai sempre do lado de dentro do passeio por causa da boa
educação mas duma vez que eu saí com a menina Lisabette ela pediu-me para ir
do lado de fora para não levar beliscões em frente do café é bom que as pessoas
saibam isto porque em matéria de beliscões aqui a Graça está uma desgraça é
beliscão de meia noite a toda a hora e quem não sabe defender-se chega a casa
com o rabo que é uma desgraça a menina Lisabette que o diga coitadinha que é
uma vítima por ter o rabo a modos que saído o que vale é que isto não pode
durar porque mais tarde ou mais cedo a civilização chega à Graça olá se chega e
é bem feito para tramar uns que por cá andam e que estão mesmo a pedir
civilização o pior de todos era um da mercearia que não sabia ler nem escrever
e que era mesmo um bandido em matéria de beliscões e de palavrões a Graça
vai mesmo civilizar-se quanto mais não seja porque eles vão-se embora o que é
um grande alívio para os rabos de toda a gente e principalmente para o da
menina Lisabette que deve andar vermelho como um morango maduro outra
coisa chata da boa educação é que ninguém dá por ela e tanto faz a gente ser
bem educado como mal educado que vem a dar tudo ao mesmo.

In A Mosca, 25 Novembro 1972.

105
Os empregos

Eu nunca estive empregada e por isso de empregos só sei o que oiço dizer
e que não é pouco porque as pessoas falam muito dos empregos que têm e
algumas falam tanto tanto tanto que mesmo nos empregos o que fazem é falar
dos empregos em vez de fazer alguma coisa mas isso são só algumas porque há
outras como o meu Pai que não têm tempo para falar nos empregos porque têm
de ler os jornais da bola e dizer às pessoas que voltem daí a dias porque não são
escravos de ninguém mas mesmo isto não é tudo não senhor porque há outros
que trabalham de manhã à noite como os polícias que andam na rua atrás dos
desgraçados que param os carros onde podem para irem trabalhar e os que têm
mesmo de trabalhar noite e dia para poderem pagar as multas dos carros que
têm de parar onde podem para poderem trabalhar enfim isto é uma coisa a que
chamam o moto contínuo que ao contrário do que parece não é a Honda do
Acácio do Largo da Graça que não pára nem um minuto todo o dia mas isso de
trabalhar para pagar as multas que se fazem para se poder trabalhar o que me
espanta é que havendo tanta falta de braços andem tantos braços pela rua a
tomar apontamentos de números mas o melhor é eu estar calada porque isso até
pode acordar o amor à matemática no nosso povo e é sabido que precisamos
muito de quem tenha amor à matemática porque é um povo de cábulas que o
que quer é versos e fados e tem horror aos números e às coisas que é preciso
estudar para saber enfim voltando aos empregos se isso também acontecesse
nos empregos mal pagos em que se exige que as pessoas saibam fazer alguma
coisa só para vermos o que acontecia podemos imaginar que para premiar um
senhor doutor qualquer desses lhe dessem um lugar de barbeiro ou de pedreiro
o resultado era que os homens andavam para aí todos com a cara coberta de
ligaduras e os prédios estavam todos a ruir isso de só darem a estes doutores
empregos que funcionam mesmo sem eles mostra muito bom senso mesmo
muito bom senso e prova que ainda não está tudo perdido outra coisa muito má
dos empregos é haver poucos bons e muitos maus o meu Pai coita dito que é
funcionário viu-se e desejou-se a comprar selos e papel selado para mostrar que
tinha habilitações para colar estampilhas em envelopes mas enfim sempre tem
uma certa autoridade para berrar ao guichet e para dizer que isto e aquilo vem
na lei só com advogados é que ele abaixa a voz porque esses como estudaram a
lei metem os funcionários em sarilhos e não vão em autoridades de janela o que

106
dificulta muito a vida aos funcionários o meu Pai diz que prefere atender mil
merceeiros ou seis mil futebolistas a atender um advogado mas isto de
empregos é como é e não vale a pena discuti-los o meu primo Manel que era do
Mercedes e que agora é do Opel é que a sabe toda porque nunca estudou nada
senão a técnica dum patrão que teve quando foi marçano duma mercearia e
com essa técnica chegou a construtor civil e ganha mais do que a maioria dos
doutores que para aí andam e que são uns pelintras danados que nem para
comprar um Mercedesito têm pilim nestas coisas mais vale ter sorte do que ter
habilitações que é o que eu digo aos meus colegas lá do liceu que andam com a
mania de estudar para entrar no Taco a Taco para ganharem uma piscina eu
para começar quero ver a piscina sim porque se julgam que eu vou empinar
uma data de regras de gramática para depois me darem um bidet estão muito
enganados primeiro mostram uma piscina já feita num liceu e depois veremos
mas mesmo assim não prometo nada porque essa de porem a gente a estudar
para quando chegar mesmo ao fim do liceu ganhar uma piscina que só começa
a funcionar quando a gente tiver saído do liceu talvez leve algumas que andam
neste mundo por ver andar os outros mas a mim não me levam não senhor
ainda por cima não se percebe esta dos prémios serem coisas que a gente devia
ter sim porque se a gente deve ter ginástica então devem dar-nos as coisas que
são precisas para a fazer sem termos de entrar em concursos o que eu quero
saber é porque é que não fazem a mesma coisa com os livros e com as aulas a
gente entrava num concurso e o liceu que ganhasse tinha livros aulas e
professores e os outros não tinham nada quem gosta destas coisas é o meu
primo Manel do Mercedes que aprova tudo o que mete construção civil e que
disse logo para eu estudar a ver se ganhava uma tacotaquice porque do que o
país precisa é de encomendar coisas aos construtores enfim para a semana faço
uma redacção sobre isto agora tenho de ficar por aqui porque tenho mais que
fazer adeus.

In A Mosca, 31 Março 1973.

107
Mexericos

Eu cá não sou de mexericos mas a verdade é que se não houvesse


mexericos ninguém sabia nada do que se passa sim porque uma coisa é a gente
ser contra os mexericos e viver na ignorância e outra coisa é a gente ser pelos
mexericos e viver mais ou menos informada do que se passa há um que lê uma
coisa num jornal estrangeiro há outro que ouve numa coisa que há chamada
Bêbêcê há outro que falou com um que chegou da Guiné há outro que viu a
menina Eulália na Rua Luciano Cordeiro com o Manel da garagem há outro que
ouviu o patrão que veio de fora há outro que falou com um que veio passar as
vacances há outro que conhece um que trabalha numa agência de notícias há
outro que passa a noite a ouvir rádios lá de fora e um destes conhece um que
conhece um outro que tem um primo que namora a cunhada dum outro e vai
ainda há um que anda a fazer-se ao piso com a criada de fora dum que é amigo
dum que trabalha num Ministério e como as notícias mexeriqueiras andam
mais depressa de boca em boca do que o Agostinho de bicicleta esta semana por
exemplo a menina Aldinha que trabalha na modista e que fica em casa todas as
noites a bordar e sabe-se lá o quê e a namorar com um que costuma deixar o
carro num sítio que eu cá sei mas não digo deu-me dez dos cinquenta escudos
que o namorado lhe deu para ela me dar só porque tinha ouvido uns mexericos
parabriseiros e tinha dito à menina Alda para lhe dizer para deixar o carro
noutro sítio e vai ele seguiu o meu conselho e poupou uma data de pilim para
os outros por não acreditarem em mexericos não pouparam o que mostra como
uma pessoa até pode ganhar a vida se tiver os ouvidos bem limpos e os olhos
bem abertos e não tiver essa coisa a que se chama preconceitos contra os
mexericos já uma vez lá na terra quando eu estava de férias um amigo muito
velho do meu avô ia com a gente a passear num campo depois dum temporal e
viu um cabo que o vento tinha atirado ao chão e ia para apanhá-lo quando eu
lhe disse tome cuidado que se isso é um cabo de alta tensão o senhor pode levar
um choque bestial mas ele não acreditou não senhor e vai disse que isso eram
boatos e mexericos porque se estava mesmo a ver que se isso fosse verdade
tinham avisado a gente e eu não disse nada o velhote pegou no cabo deu um
berrito agudo fez um pinosito que ninguém esperava na idade dele ficou
branco e entrou no céu ou lá para onde é que ele entrou de pernas para o ar eu
cá por mim só gostava de ter visto a cara de São Pedro quando lhe bateram ao

108
portão e ele deu com um velho a fazer o pino enfim se ele me tivesse ouvido e
tivesse dado ao meu Pai cinquenta escuditos pelo aviso tínhamos ficado todos a
ganhar ele porque acabava por entrar no céu decentemente daí a uns tempos o
meu pai porque empochava quarenta escudos e eu que sempre recebia dez
escuditos ou coisa para comprar gelados é por isso que eu digo que é sempre
bom a gente ouvir o que se diz quanto mais não seja porque fica a saber o que
se passa em minha casa o jornal é o meu Pai que nos conta ao jantar o que ouviu
na repartição e no café e eu digo o que ouvi na capelista e nas ruas da Graça e
muitas vezes acertamos tão em cheio tão em cheio que dois ou três dias depois
ouvimos o senhor Fialho ou aquele que quando põe os óculos novos fica tal e
qual o focinho dum automóvel americano dizer exactamente a mesma coisa que
a gente disse antes enfim quem quiser perceber como é que a gente sabe as
coisas que abra bem os olhos e que limpe os ouvidos que é o que eu faço e eu
não sou de mexericos nem gosto de mexericos.

In A Mosca, 12 Maio 1973.

109
As marchas populares

Ena pai que grande barraca que foram as marchas este ano [1973] palavra
que ainda foram mais ratonas que as dos outros anos nisto dos festejos palavra
que não há meio de acertarmos numa primeiro foi aquela de largarem o rancho
folklórico dos touros do Ribatejo na Calçada de Carriche e no Campo Pequeno
dessa vez houve desmaios e chatices em barda e parece que uma data de
mirones foram parar ao hospital com a cabeça partida e agora foi aquela das
marchas populares do Mundo Luzíada eles lembram-se de coisas do arco da
velha sim porque esta não lembra nem a um careca que tenha estado muito
tempo ao sol palavra que até fiquei gaga primeiro pensaram nessa e depois em
vez de a esquecer mandaram vir os teams lá do mundo Luzíada do Brasil para
alinharem na Avenida da Liberdade palavra que eram uns Luzíadas bestiais
tinham cara de Luzíadas cor de Luzíadas pronúncia de Luzíadas e para rematar
cantavam à moda dos Luzíadas modinhas bestialmente Luzíadas eu fui lá com
o meu primo Manel que é aquele que tinha um Opel e que agora passou para o
Mercedes porque ganhou uns pilins a construir umas capoeiras que lá na outra
banda chamam casas de habitação e lá que a festa era Luzíada isso era mesmo
porque para começar parámos o carro num canto e apareceu logo um polícia
Luzíada com um livrinho na mão que pelo aspecto não era os Luzíadas porque
os Luzíadas já estão escritos e este livrinho era daqueles em que eles andam
sempre a escrever e ficou à esquina a ver se a gente deixava o carro ou não e vai
quando viu que a gente saía e fechava a porta ficou todo sorridente sim porque
nós Luzíadas somos um povo bestialmente bom e bestialmente sorridente e vai
quando a gente se afastou tirou logo o número ao carro e escreveu-o no tal
livrinho de maneira que ando cá com uma impressão danada de que o meu
primo vai pagar uma multa Luzíada que não lhes digo nada porque eu assim
que vi o polícia percebi logo que as festas eram mesmo Luziadas e não há coisa
mais Luzíada do que uma boa multa com todos que é assim como o Luzíada
bacalhau com todos mas que em vez de couves e de batatas tem acréscimos e
mais acréscimos sim: porque nestas coisas é que os Luzíadas são espertos e
quem duvidar que os veja todo o dia a caçar multas e a beber bicas com o
mesmo entusiasmo com que os Luzíadas antigos descobriam terras novas eu cá
por mim acho que somos iguais ao que eram os descobridores só que agora o
que queremos é ver se descobrimos uma maneira qualquer de multar as

110
pessoas mas é o mesmo desejo de descobrir coisas que tínhamos antigamente
dá é mais pilim porque aposto que um polícia ao fim do dia fez mais pilim do
que fazia um descobridor quando vendia o que trazia na caravela enfim
chegamos lá e pusemo-nos no passeio para ver as marchas Luzíadas mas antes
de as vermos tivemos de aguentar uma data de empurrões Luzíadas que nos
davam os Luzíadas que nos queriam roubar os lugares para só falar nos
empurrões porque se fôssemos a falar nos beliscões Luzíadas que eu levei o
papel todo da «Mosca» não chegava lá que somos bestialmente Luziadas é que
ninguém pode negar não senhor mas enfim aquilo lá começou e eu vi tudo olá
se vi daquela dança Luzíada chamada samba às outras o meu primo Manel que
era o do Opel e agora é o do Mercedes diz que os brasileiros Luzíadas já nos
pediram para mandar o Verde Gaio ou o rancho de Viana do Castelo ao
Carnaval do Rio para o ano eu cá por mim acho que devem mandar também
um que há chamado Artur Garcia que dançava tão bem os pauliteiros de
Miranda é que a gente assim fazia um vistão entre os Luziadas do lado de lá e já
agora porque é que não mandamos vir uns ranchos de espanhóis que como são
do país irmão ficavam a ser Luzíadas irmãos que sempre é melhor que não ser
nada é que umas malaguenas daquelas que nunca mais acabam ficavam na
Avenida e dava prestígio à festa olá se davam agora lá que aquilo foi
bestialmente popular isso foi eu que o diga que levei dois pisões que nem sei
como é que me aguento em pé e que fiquei sem me poder sentar durante dois
dias sim porque toda a gente sabe como é que acabam as coisas populares cá na
nossa terra tão Luzíada olá se sabe enfim quando chegámos a casa estava o meu
pai deitado no sofá a ver se lhe passava uma dor de cabeça que tinha apanhado
a ver televisão porque este ano não foi em festas Luzíadas não senhor e disse
que não ia porque a sardinha está a trinta escudos o quilo e que isto não é para
festas tanto mais que o vinho está pelos olhos da cara o que é uma indecência
das grandes e que não vai a festas Luzíadas porque tem medo de não falar a
língua dos que entran nelas porque ele coitado como nasceu cá só fala
português de cá já no outro dia comum que andava a varrer a rua e que era um
Luzíada da ilha Brava se tinha visto grego para conversar porque os
portugueses Luzíadas deles eram bestialmente diferentes isto agora anda cheio
duns Luzíadas bestialmente diferentes dos que há na Graça mais dia menos dia
nem se pode sair de casa ou então tem de andar-se na rua com um dicionário.

In A Mosca, 30 Junho 1973.

111
O Natal foi tão bom ai que bom que foi o Natal

Ena pai que bom que foi o Natal cá em casa só queria que vissem para
começar a minha Mãe andou na Baixa toda a semana a ver se comprava
presentes para toda a gente com uma lista na mão que dizia assim primo manel
Um presente de pelo menos 100$00 porque é ele que nos leva à terra no
automóvel dele prima amélia Um presente de pelo menos 100$00 porque foi ela
que emprestou o dinheiro para o arranjo do fogão tia leucádia Um presente de
pelo menos 100$00 porque é dela que depende a gente herdar ou não herdar a
terra que fica ao pé da vinha das pedras lá na terra tio joão Um presente de pelo
menos 50$00 porque ele deu um vestido e uma camisola à Guidinha quando ela
fez anos senhor costa da padaria Uma recordação assim assim para ele não
exigir já a conta que lhe devemos desde Agosto. prima eulália Uma recordação
barata porque o estupor o ano passado não nos deu nada. isto é só metade da
lista porque não vale a pena mostrar o resto sim porque era toda mais ou menos
assim a única coisa indecente era que à frente do meu nome vinha escrito ver o
que lhe faz mais jeito talvez um casaco ora se há uma coisa que não me faz jeito
nenhum é um casaco o que me fazia jeito era uma fisga de plástico como uma
que eu vi na capelista que custava 60$00 outra coisa que me fazia jeito era uma
colecção de garrafinhas de mau cheiro porque o carnaval vem aí tão perto como
dois e dois serem quatro mas dessas coisas que me fazem jeito não se lembram
elas não senhor do que se lembram é de casacos e de meias e de sapatos e de
coisas que eles tinham obrigação de me dar durante o ano e que aproveitam
para me dar no Natal o que é uma grandecíssima infâmia enfim a gratificação
do meu Pai veio no dia 23 quando a gente já tinha outra vez a televisão a
descansar mas sempre veio mais vale tarde que nunca isto dos patrões darem as
gratificações bestialmente tarde prejudica bestialmente por causa da
desvalorização da moeda sim porque basta eles atrasarem-se três dias para a
gratificação valer menos por tudo ter subido de preço de qualquer forma com a
gratificação comprou-se o peru no supermercado é verdade que não era assim
um peru por aí além mas o que eu posso dizer é que apesar de pequenino
custou tanto como uma vitela teria custado há dois anos e quem o disse foi o
meu primo Carlos que sabe disso porque é sócio dum matadour clandestino
mas o mais engraçado do peru era o recheio que os homens do supermercado lá
tinham metido dentro sabia não sei bem a quê talvez a mangueira de jardim de

112
qualquer forma lá que aquilo tinha plástico isso tinha olá se tinha mas agora o
que é que não tem? durante o jantar o meu Pai mostrou um relógio novo que
comprou a um contrabandista que a gente tem aqui na Graça e que vende tudo
chega ao dia de Natal morto de trabalho enfim é lá com ele e de qualquer forma
não faz diferença nenhuma porque toda a gente sabe onde é que o relógio do
meu pai vai parar para a semana a festa foi bestial mesmo bestial o meu pai
pegou-se com o meu primo por causa dum futebolista que morreu no Porto um
a dizer que tinha sido por uma coisa e outro a dizer que tinha sido por outra
coisa e o pior é que ninguém sabe quem tinha razão porque estão à espera dum
relatório para desempatarem e parece que esse relatório é como o segredo de
Fátima: ainda não estamos preparados para o ver enfim com uns copos a mais
lá foi tudo para a cama e eu é claro que fiquei com um casaco um par de meias
uma régua plástica um abafo para pôr à volta do pescoço quatro esferográficas
e uma pasta nova tudo coisas que me fizeram muito jeito era mesmo o que
estava à espera.

In A Mosca, 19 Dezembro 1973.

113
Até que enfim

Ele havia o dia da Mãe o dia do Pai o dia do Pai Natal o dia do peditório
para o cancro o dia do peditório para os combatentes o dia dos amigos do
Salazar sim porque ele antigamente tinha muitos amigos agora é que se sabe
que andavam a disfarçar o dia da parada na avenida o dia da raça o dia disto o
dia daquilo só não havia era o dia da criança sim porque eles de vez em quando
iam a uma escola juntavam a malta diziam que a gente era os homens de
amanhã eu para dizer a verdade ando a ser homem de amanhã há uma data de
anos apesar de ser mulher se isto continuava eu ainda acabava esquisita e
pronto iam-se embora só voltavam a ligar à gente quando iam inaugurar uma
barragem e um homem de amanhã lá da terra que normalmente era o filho do
presidente da câmara ou dum grémio qualquer avançava com cara de parvo e
entregava um ramo de flores ao cabeça de nabo e vai ele abaixava-se e bumba
enfiava-lhe com um xoxo no focinho mas isso não queria dizer nada porque no
dia seguinte mandava a polícia dar-lhe bumba na mesma bochecha em que lhe
tinha dado o beijo enfim isto cá na terra para as crianças era uma pouca
vergonha se calhar para os adultos era uma muita vergonha mas dos adultos
não falo eles que se amanhem para toda a gente ficar a saber como isto era só
conto que antigamente quando cá estavam os republicanos as crianças eram
mesmo crianças e pensava-se nelas em 1911 começaram a proteger as creches e
as escolas infantis mas depois quando os republicanos se foram embora e
vieram os endireitas chefiados pelo casaca de Coimbra que era assim a modos
que um pai teórico com pouca experiência de filhos sim porque para dizer a
verdade ele não tinha assim muita vontade de os fazer ou se tinha era um
incompetente porque não deixou senão filhos sintéticos eu cá por mim digo que
ele não gostava de crianças e a prova é que em 1937 entregou a gente toda à
Obra das Mães que é uma obra que havia lá para quê não sei o que sei é que as
crianças coitadinhas ficaram lixadinhas de todo porque essas Mães não eram
mães de toda a gente eram só mães dos filhos delas e a prova é que nunca
deixaram a gente ter uma festa no dia 1 de Junho que é hoje e que é o Dia
Mundial da Criança até o escrevo com letras maiúsculas para as pessoas
perceberem que é um dia mesmo importante para a gente c'os diabos que
também nasceu ao sol e também tem direitos como os outros para começar é
preciso dizer que vamos ter uma festa bestial hoje à tarde no Jardim da Estrela

114
mas como a gente agora pode dizer a verdade tem mesmo de a dizer de
maneira que eu tenho de esclarecer ena pai que palavra tão política sim porque
a palavra esclarecer é dos políticos cá as crianças não têm de esclarecer nada
porque dizem o que têm a dizer claramente logo à primeira mas como estas
redacções são lidas por uma data de adultos eu tenho mesmo de usar a palavra
esclarecer para explicar que talvez a nossa festa não seja este ano ainda tão
bestial como vai ser para o ano e daqui a dois anos e daqui a três anos até ao fim
do tempo mas é que não houve lá muito tempo para a organizar o que também
não tem muita importância porque o que é importante é haver uma festa no Dia
Mundial da Criança o que é importante é a gente poder rir brincar correr
conversar jogar conhecermo-nos uns aos outros no mesmo dia em que em todo
o mundo todas as crianças vão rir brincar conversar e jogar o que é importante é
a gente ter a nossa primeira festa de maneira que o meu grito de hoje é só um e
é este.
Guidinhas de toda a cidade assim que esta redacção lhes chegar às mãos
toca a andar para o Jardim da Estrela.
Pais de todas as Guidinhas tratem de não nos chatear inventando coisas
para a gente fazer hoje porque queremos ir todas para o Jardim da Estrela.
O Dia Mundial da Criança é nosso e nós queremos gozá-lo.

In A Mosca, 1 Junho 1973.


A página da Redacção da Guidinha foi adaptada para conter em rodapé
convocatória para a festa das crianças no Jardim da Estrela.

115
É preciso mais imaginação porque esta não chega

Tive cá uma ideia bestial para salvar o País e para a gente ficar à cabeça de
todos os países da Europa sim porque não há nada mais fácil do que a gente
aldrabar tudo sem se perceber que estamos a aldrabar só não sei é a quem é que
me hei-de dirigir para expor a minha ideia de maneira que vou expô-la aqui a
ver se alguém a vê e percebe como eu sou bestialmente patriota e como quero
salvar a minha terra que é também a terra dos meus igrégios avós coitadinhos
que foram bestialmente infelizes principalmente a minha avó que morreu
depois de uma vida de sofrimento por causa de um reumatismo que tinha no
braço esquerdo esta ideia que eu tive veio-me no outro dia quando li aquilo das
passagens administrativas que me fez uma impressão bestial porque fiquei a
pensar que bem aproveitadas as passagens administrativas dão para muita
coisa e podem salvar a gente sim porque eu tenho ouvido dizer que a
imaginação está no poder e até acredito o que tenho é pena que não a usem
mais porque está-se mesmo a ver que só um bocadito de imaginação é que
subiu ao poder e que todos ganhávamos se lá chegasse mais um bocado mas o
melhor é eu começar pelo princípio tenho para aí ouvido dizer que o turismo
está bestialmente fraco este ano porque os turistas meteram-se em copas e não
querem vir comprar estas fatiazitas de sol que a gente costuma vender no Verão
ora o problema é bestialmente fácil de resolver pelo sistema da passagem
administrativa basta a gente chegar ao Algarve e passar administrativamente a
turistas as pessoas de que precisarmos vejam lá se isto não é um remédio bestial
sim porque ficamos logo com turistas é claro que fica de pé o problema das
divisas porque um passeante algarvio não fica com divisas só por ter passado a
turista administrativo mas isso também se arranja pelo mesmo sistema e de
uma forma bestialmente barata querem ver como? compra-se uma data de rolos
de papel higiénico cortam-se os rolos nos respectivos bocados e passa-se
administrativamente esses bocados a divisas vejam lá se há coisa mais simples
sim o que é que pode haver de mais simples? é tudo uma questão de
imaginação o que as pessoas não sabem é que a passagem administrativa
também pode resolver o problema hospitalar de um dia para o outro para
começar não temos hospitais apetrechados mas isso resolve-se de uma penada a
gente chega aos hospitais que há e promove-os administrativamente a hospitais
apetrechados querem coisa mais simples? dizem que nos hospitais não há

116
camas mas se as não há é só porque falta imaginação ao nosso ministro
Galhordas porque se ele quiser pedir a imaginação emprestada ao seu colega da
Instrução resolve o problema das camas em cinco minutos de uma forma
bestialmente simples que é promover administrativamente a camas as cadeiras
que houver a mais nos hospitais e se não houver cadeiras a mais arranja outra
coisa qualquer muito antes do vinte e cinco de Abril já nós cá em casa tínhamos
adoptado o processo da passagem administrativa porque a minha mãe tem uma
imaginação bestial querem ver o que ela fazia? logo de manhã ia à praça
comprava um cachucho passava-o administrativamente a bacalhau e fazia
pastéis de bacalhau com ele o resultado era que a gente tinha pastéis de
bacalhau sem ter de comprar bacalhau com os bifes era a mesma coisa toda a
gente sabe que aqui na Graça em que eu vivo os bifes são tão raros como os
legionários depois do vinte e cinco de Abril vai a minha mãe quando alguém
fazia anos comprava uns bifitos de cavalo passava-os administrativamente a
bifes de vaca argentina e a gente nos dias de festa tinha bifes de vaca em casa
que era uma limpeza o que eu digo é que por este processo da passagem
administrativa se pode ir muito longe mesmo muito longe tão longe que
resolvemos calmamente todos os problemas do País de uma forma bestialmente
original que é de ficarem os problemas ao mesmo tempo resolvidos e por
resolver ora o que eu quero saber é se algum outro País poderá dizer o mesmo?
estou muito contente com a minha ideia mas não quero medalhas por ela não
senhor porque não gosto de medalhas a não ser que as passem
administrativamente a qualquer coisa que se coma então já teria de pensar duas
vezes ou mais porque tudo isto mete muito pensamento o que eu quero dizer é
que é preciso mais imaginação a que há não está má como se vê pelas passagens
administrativas mas não chega é preciso levar as coisas até ao fim e a passagem
administrativa levada até ao fim dá para resolver muita coisa olá se dá o que é
pena é que o sistema de resolver problemas conservando-os não seja novo cá na
terra não senhor no tempo da outra senhora já era assim se calhar é por sermos
um povo muito conservador e muito tradicionalista que gostamos de conservar
os velhos hábitos eu cá para mim julgo que tudo isto é para resolver o problema
do turismo porque estas passagens administrativas são soluções para inglês ver
e como nos faltam turistas andam a ver se a gente fica todos ingleses para
julgarmos que as coisas ficam mesmo resolvidas vai-se a educação mas com a
nossa passagem administrativa a ingleses salva-se o turismo já não é nada mau
viva a Pátria.

In A Mosca, 29 Junho 1974.

117
Deu a mania do cinema ao meu pai

Ora cá estou eu no meio das férias que não tenho por via do preço da
carne do peixe à dos sapatos e do mais que é preciso e que leva o pilim todo que
devia ir para as férias sim porque este ano não há pilim para nada o meu pai
quando soube que os da pide têm cama mesa e roupa lavada à custa dele sim
porque ele é contribuinte ficou pior que uma barata e lembrou-se logo de ir
dizer que era da pide a ver se o prendiam porque como continuava a receber o
ordenado e não tinha despesas a gente podia ir para a praia o que era bestial só
não o fez porque tinha vergonha de voltar à Graça com toda a gente a saber que
ele tinha sido um deles quando penso no que se gasta neste mundo e eu com
tanta precisão até fico tonta ainda no outro dia me contaram que há aí uma fita
chamada A Grande Bufa em que as pessoas comem tanto que até morrem é
claro que é uma fita estrangeira porque aqui na Graça isso nunca aconteceu
aqui na Graça o contrário até é mais natural mas isto agora em matéria de fitas
anda bestial digo isto pelo que está a acontecer ao meu Pai que não ia ao cinema
desde que acabaram as fitas do Costinha e do António Silva e que agora não faz
outra coisa senão andar de cinema em cinema e que chega a casa com os olhos
de fora a dar vivas à revolução sexual e a uma coisa que há chamada a
liberdade do corpo uma noite destas até levou a minha Mãe chegou a casa à
hora do jantar e começou com falinhas mansas a dizer que a minha Mãe andava
sem ideias que era uma provinciana que andava atrasada que tinha de o
acompanhar porque as estatísticas de Nova Iorque mostravam que quando a
mulher não acompanha intelectualmente o marido tem mais probabilidades de
se divorciar e mais isto e mais aquilo tira daqui tira dali e convidou-a para ir ao
cinema como se aquele discurso todo fosse preciso para isso sim porque ela está
sempre pronta para ir seja aonde for coitadinha que nunca sai de casa bastava
ele dizer-lhe vamos à rua para ela ficar logo toda contente enfim abriram o
jornal da tarde estudaram as fitas a que havia e vai foram ver uma chamada O
Último Tango em Paris que vai na Baixa de Lisboa porque na baixa cá da Graça
nunca vai nada que se aproveite lá o que eles viram não sei só sei que quando
chegaram a minha Mãe vinha calada que nem um rato toda corada e que não
abria a boca por nada deste mundo quem vinha todo saltitante era o meu Pai
mais alegre que um pássaro numa cesta de trigo quem o visse até pensava que
ele tinha tido a terminação na lotaria o que nunca lhe acontece que ele coitado

118
vai para dois anos que resolveu deixar de perder dinheiro a comprar jogo
porque gosta mais de o gastar em vinho cada um é como é e ninguém tem nada
com isso mas vai no dia seguinte ao almoço como era Domingo o meu Pai
chegou à cozinha de pijama todo lampeiro e perguntou à minha Mãe Olha lá
mulher então porque é que te levantaste tão cedo não sabes que é Domingo? e
vai ela toda aguerrida disse que se tinha levantado porque não queria estar na
cama e ele riu que nem um perdido lá porquê não sei o que sei é que quando ele
saiu ela foi à janela falar com a vizinha do 3.0 esquerdo e disse-lhe que tinha ido
ao cinema ver o tal Tango mas quando eu me sentei para a ouvir a história o
que sempre é melhor que nada ela ficou toda furiosa e mandou-me lá para
dentro tive de encostar o ouvido à porta e mesmo assim só a ouvi dizer toda
zangada «com margariana vizinha Conceição! Ora veja lá uma coisa destas!
Com margarina»! lá o que isto queria dizer não sei mas calculo que a fita era
estrangeira porque a gente cá na Graça costuma é cozinhar com óleo mas lá que
esta ida ao cinema mudou a vida toda cá em casa e a prova é que antigamente a
minha mãe nem acabava de ver o filme da televisão de sono que tinha às vezes
chegava ao intervalo e ia deitar-se agora desde que foram ver o tal Tango fica
até ao fim e quando a fita acaba diz ao meu pai para se ir deitar que ela ainda
tem uma fiada do bordado a fazer e a verdade é que só vai para a cama depois
do meu pai adormecer chega a ir nas pontas dos pés ao quarto duas e três vezes
para ter a certeza de que ele já está a dormir eu cá por mim acho tudo isto ratão
mas não sei o que se passa nem quero saber porque acho que não se deve meter
colher nem mesmo cheia de margarina entre marido e mulher o que eu digo é
que nunca vi uma fita que não me deixasse ir para a cama à hora do costume e
que algumas até me levam a querer ir mais cedo mais dia menos dia o meu pai
tem é de a levar ao teatro porque ainda me lembro muito bem de que
antigamente quando começava o teatro da televisão todos adormecíamos logo
que era uma limpeza para dormir não há como o teatro é o que eu digo mas
para acabar estas notícias cá da minha familória só digo que ontem o meu pai
perguntou se a minha mãe queria ir outra vez ao cinema e que ela desatou aos
berros a dizer que ele era um valdevinos malandreco cor de ferrugem e que
nunca mais ia ao cinema na vida inteira que o que ele queria sabia ela mas que
podia ir fritar carapaus com margarina para outro sítio que se quisesse fosse
visitar a menina Lisabeth do primeiro andar que essa é que era do ramo e mais
isto e mais aquilo foi uma barulheira tal que até fiquei com vergonha da
vizinhança e tudo isto por causa duma fita de cinema olhem que vale a pena
estes adultos é o que eu digo até parecem crianças enfim adeus que esta já vai

119
longa é que eu quero ir ver as montras do São Jorge a ver se percebo porque é
que foi este barulho todo.

In A Mosca, 17 Agosto 1974.

120
A abóbora

A abóbora é uma bola grande que há na província e que podia parecer um


queijo flamengo se tivesse queijo lá dentro mas infelizmente não tem porque
uma coisa segura sobre a abóbora é ela estar cheia de abóbora por dentro como
eu ia dizendo a abóbora é um produto da província e nasce nos beirais dos
telhados quem já tiver andado na província já viu abóboras nos beirais dos
telhados e por isso sabe isto cá em Lisboa não há abóboras uma pessoa pode
percorrer a Avenida a Estrela a Graça o bairro de Santos e o Areeiro a olhar
para o ar sem nunca encontrar um beiral de telhado com abóboras calculo eu
que ou elas não se dão com o clima de Lisboa ou morrem com o fumo dos
escapes porque a verdade é que nunca vi uma abóbora num beiral em toda a
cidade isto de as abóboras nascerem nos beirais dos telhados é que tornou a
abóbora popular na província porque toda a gente sabe que o povo tinha falta
de terras por causa dos latifúndios e foi por isso que teve de aproveitar os
beirais dos telhados a ver o que é que lá se dava e vai teve tanto azar que só lá
se deu a abóbora digo isto para verem o azar que teve o povo sim porque os
espargos os espinafres a couve-flor e os morangos não se deram nos beirais não
senhor deram-se foi na terra dos ricos nos beirais do povo foi a abóbora e daí a
expressão popular que nasceu quando o primeiro homem do povo olhou para o
seu beiral a ver o que é que lá se dava e viu o raio da bola a crescer coitado ficou
tão lixado que exclamou ora abóbora! houve quem o ouvisse estas coisas
correm e vai a expressão pegou e hoje em dia quando alguém tem uma
decepção diz ora abóbora! ora como eu ia dizendo a abóbora é uma bola
horrível que se dá aos porcos e que se vende à gente da cidade quando ela vai
ao campo porque a gente da cidade gosta muito de ir ao campo acha muito
folclórico ver o povo a cavar a terra e gosta de usar botas durante umas horas
para poder dizer que tem os pés bem assentes na terra pois não há coisa que a
gente da cidade goste mais quando vai ao campo do que comprar umas coisas e
trazer para a cidade porque se gaba aos amigos de ter coisas frescas apesar de
trazer tanta couve que acaba sempre a comer couves mais velhas do que as que
comeria se as fosse comprar à praça adiante pois uma das coisas que a gente da
cidade gosta de trazer do campo é uma abóbora porque o raio da bola dura
uma data de tempo sem se estragar e porque enche o olho e o carro da gente da
cidade chega a casa tira a abóbora do carro sobe a escada com ela e toda a

121
vizinhança fica a saber que os donos estiveram no campo que têm família na
província que não lhes falta nada em casa e mais essas coisas de que a gente da
cidade gosta sim porque a gente da cidade tem um medo secreto de lhe
faltarem coisas e mal chega o tempo das vacas magras começa a lembrar-se da
terra e da felicidade da gente do campo que sempre vai tendo umas batatinhas
uns feijões e umas couves para o caldo e quando começam as faltas' na praça
começa a escrever postais aos primos que tem na província a dizer que gosta
muito deles e que sente muito a falta deles e vai os tais primos da província que
lhes conhecem a manha à légua vingam-se mandando-lhes de vez em quando
uma abóbora roubada ao comer dos porcos adiante da abóbora fazem-se várias
coisas principalmente felhoses que são uns pastéis de bacalhau que em vez de
bacalhau levam abóbora e que se comem pelo Natal as pessoas quando comem
aquilo dizem ai que bom! mas a prova de que aquilo é uma grandecíssima acac
(1) é que só a comem no Natal sim porque se gostassem comiam mais vezes
outra coisa que se faz da abóbora além do comer para os porcos é um doce
chamado doce de gila que já ninguém faz senão os pasteleiros e mesmo esses o
menos que podem toda a gente diz que gosta muito de doce de gila e até
espanta que gostando tanta gente de doce de gila e sendo a abóbora tão barata
nunca se coma doce de gila em casa de ninguém cá para mim o que isso prova é
que ninguém gosta de doce de gila do que as pessoas gostam é da ideia do doce
de gila porque lhes faz lembrar a tal vida de campo que gostariam de ter tido
mas que não tiveram sim porque tudo isto é uma pepineira levada da breca o
que é preciso é entendê-los como eu já disse cá em Lisboa as abóboras não
nascem nos beirais dos telhados o que em Lisboa nasce nos beirais dos telhados
são as leis de Imprensa eu digo isto porque quando saiu a lei de Imprensa ouvi
uma data de gente dizer ora abóbora! exactamente como o tal homem quando
olhou para o telhado e viu o que lhe tinha lá nascido.

(1) Escrevo a palavra ao contrário para o caso desta redacção ser lida por uma
pessoa fina.

In A Mosca, 21 Setembro 1974.

122
Futebol e vinho tinto

Ena pai ainda não estou boa do susto que apanhei quando foi do desafio
de futebol entre Portugal e a Inglaterra ena pai que sarilho bestial para começar
a família uniu-se lá toda em casa à volta da televisão do meu primo Manel do
Opel que agora tem um Honda pequenino que ele mandou amolgar para fingir
que está velho e que é em segunda mão porque a construção civil está em crise
embora a gente não saiba lá muito bem porque é que ele se preocupa com isso
sim porque ele com a construção civil não teve nada com o que ele teve foi com
a construção militar eu digo isso porque ele andava sempre a fazer prédios de
apartamentos para coronéis que vinham de África adiante que nestas coisas
todo o cuidado é pouco pois como eu ia dizendo a família reuniu-se lá toda em
volta da televisão do meu primo Manel porque a do meu pai está a descansar
no prego outra vez com esta é a décima sétima quem um dia a comprar faz um
rico negócio compra um aparelho dum modelo velho mas sem uso nenhum
enfim adiante que o que interessa é o desafio pois o meu primo levou a
televisão para casa do meu pai em lugar de nos convidar a ir para casa dele
porque o meu pai recebeu dois garrafões da terra e toda a gente sabe que
quando chegam garrafões da terra os meus primos começam todos a ter ataques
de amizade pelo meu pai e vai juntaram-se lá todos para jantar e ver o desafio a
minha mãe que é a grande vítima do amor familiar passou o dia na cozinha a
trabalhar fazendo um arroz de frango à minhota bestialmente difícil porque só
tinha um frango para toda a gente e porque a minha prima Amélia que tinha
ficado de levar o chouriço esqueceu-se dele o diabo da mulher nestas coisas de
trazer chouriço é muito esquecida é mesmo quase tão esquecida como o meu
pai em matéria de semanadas e o meu primo Manel em matéria de perus
quando foi do Natal do ano passado o meu primo Manel jurou em Novembro
que o ano passado quem entrava com o peru era ele e vai no dia 1 de Dezembro
disse que já tinha comprado o peru no dia 3 disse que tinha o peru lá em casa e
que estava a dar-lhe uma ração especial para ele ficar ainda mais gordo e
saboroso no dia 15 disse que o peru andava pálido e com má cara no dia 18
disse que o peru estava mesmo adoentado e vai na véspera do Natal disse que o
peru tinha morrido é claro que lá tivemosoutro Natal sem peru que eu me
lembre só tivemos peru num Natal em que a minha avó ainda estava viva
coitadinha e que mandaram um peru lá da terra que a minha mãe escondeu não

123
fosse o meu pai pô-lo no prego para comprar vinho sim porque nestas coisas de
comida de festa cada um tem o seu critério para a minha mãe o Natal é peru
para mim é bolo mas para o meu pai é vinho tinto mas o meu pai não conta que
ele nestas coisas é muito parcial e acha que a comida da Páscoa é vinho tinto
que a comida de Natal é vinho tinto que a comida do dia de anos dele é vinho
tinto que a comida do dia de anos da minha mãe é vinho tinto que a comida dos
meus anos é vinho tinto que a comida mesmo dos dias em que não há festas e
em que ninguém faz anos é vinho tinto basta dizer que para ele o grande dia do
ano não é dia de Natal e sim o dia de São Martinho para se ver como ele é às
vezes penso que se não fosse o São Martinho havia menos católicos cá na Graça
há mais católicos de São Martinho do que da Virgem de Fátima que toda a
gente sabe que era muito mais enfim adiante que estas coisas de religião são
delicadas e eu não quero contribuir para que haja um problema religioso cá na
Graça viva o São Martinho e fiquemos por aqui pois como ia dizendo sentaram-
se todos à volta do arroz de frango à minhota que a minha mãe tinha feito o que
eu não disse foi que ela fez o arroz de frango à minhota porque esse arroz é
assim a modos que aguado e a água é a única coisa que ainda não subiu de
preço cá na Graça pois como eu ia dizendo com esta é a quarta vez que ia
dizendo mas não disse juntaram-se à volta do arroz de frente para a televisão e
o meu pai disse que a gente ia ganhar o futebol porque tínhamos os melhores
jogadores e o meu primo disse que íamos perder que era uma limpeza palavra
puxa palavra o meu pai que tinha andado lá dentro nas provas do vinho tinto
atirou com o cinzeiro à cabeça do meu primo e como o cinzeiro era um daqueles
pesados de vidro de propaganda do Martini que o meu pai tinha roubado para
recordação duma loja o meu primo ficou com uma ferida na testa e enfiou com
um prato de arroz na cabeça do meu pai a minha mãe começou a berrar para
alguém ir chamar a copcon mas eu sei lá onde é que isso fica de maneira que fui
mas foi chamar a polícia mas vai a polícia disse-me que essas coisas não eram
com ela que eram com a copcon e eu voltei para casa nessa altura já as coisas
estavam mais calmas porque o jogo tinha começado e o primeiro garrafão tinha
acabado o pior foi que o meu pai cada vez que a gente pegava na bola subia
para cima da mesa e dava vivas à pátria e ao glorioso povo português com o
resultado de que a certa altura escorregou caiu em cima da terrina do arroz e
acusou o meu primo de o ter empurrado o que só não foi verdade porque ele
estava longe sim porque lá capaz de o empurrar é ele olá se é lá se foi a paz
doméstica outra vez ao ar e lá fui eu outra vez para a rua à procura da copcon
sem saber onde é que ela fica ou o que é quando voltei estava o jogo no
intervalo e eles aos berros que nem uns malucos enfim a minha mãe lá lhes

124
disse que o melhor era acabarem com aquilo e apostarem no resultado do jogo
quem ganhasse ganhava e estava o assunto arrumado enfim aquilo acabou bem
por causa do tinto no fim do jogo deram abraços e foram-se todos embora só
que o meu pai não devia estar a sentir-se bem porque na quinta-feira logo de
manhã começou a dizer que o meu primo Manel lhe devia 100$00 da aposta
quando a verdade é que a aposta era de 20$00 e que ninguém tinha ganho
enfim lá se passou mais este dia o que não foi nada mau.

In A Mosca, 23 Novembro 1974.

125
Ando a poupar energia

Deixei de ir à escola para poupar energia porque nestas coisas patrióticas


estou na vanguarda de tudo e ninguém brinca comigo isto de ir à escola
despende uma data de energia inutilmente para começar uma pessoa tem de se
levantar da cama e gasta nisso uma data de calorias preciosas que lhe podem
ser precisas para ir berrar para a rua ou para ir ao cinema depois uma pessoa
tem de se vestir o que é outro dispêndio de energia inútil nos filmes que há
agora em Lisboa anda toda a gente nua e conservam as luzes acesas todo o
tempo o que mostra que a energia que se poupa numas coisas dá para as outras
quem não acreditar que vá ver o Satiricon que é um exemplo de poupanço de
energia neste campo duma pessoa se vestir mas isso ainda não é tudo porque
para se chegar à escola é preciso descer a escada esperar pelo autocarro
combater com as pessoas que estão na bicha pagar o bilhete e sei lá o quê cá
pelos meus cálculos a energia que se gasta para se chegar à escola é suficiente
para manter todas as luzes de São Bento acesas durante uma semana uma vez
na escola a gente tem de abrir a carteira de tirar os livros do saco de os abrir e
de preparar os cadernos outro dispêndio bestial de energia palavra que se
somassem as calorias gastas numa só aula a fazer ficava-se com calorias
suficientes para os carros do estado andarem meia hora bem sei que isso não
era assim uma grande economia mas sempre era um princípio mal acabam as
aulas lá tem uma pessoa de se deslocar ao longo do corredor para ir para o
recreio o que representa o dispêndio da energia necessária para um helicóptero
vir da Ota a Lisboa à hora do almoço mas isto ainda não é tudo não senhor
quando acabam as aulas é preciso repetir este esforço todo e gastar a energia
suficiente para uma camioneta azul ir e vir a Vila Franca duas vezes não há
dúvida de que isto de se ir à escola é antipatriótico e que quem vai à escola
devia ser castigado mas isto ainda não é tudo cheguei lá a casa e só não
desliguei o aquecedor eléctrico porque não temos aquecedor eléctrico mas fiz as
contas e cheguei à conclusão de que com a energia que pouparíamos se eu
desligasse o aquecedor eléctrico que não temos podíamos comprar combustível
para mandarmos pelo menos quatro pessoas conversar a três ou quatro países
estrangeiros sobre qualquer coisa interessante daquelas que se diz que eles vão
fazer mas de que a gente nunca vê os resultados depois fui a correr a casa da
vizinha Matilde e desliguei o fogão em que ela estava a aquecer água para a

126
botija e não me venham dizer que isto foi uma crueldade porque eu no dia
seguinte ofereci-me para lhe ir comprar aspirina à farmácia e só não fui porque
ela tinha morrido de frio durante a noite mas isso é lá com ela a verdade é que
poupei a energia suficiente para quatro jeeps percorrerem a cidade seis vezes
enfim à tarde o meu pai chegou cheio de frio porque a verdade é que está
mesmo frio e disse que se a temperatura não melhorasse ia mas era viver para a
repartição que sempre é aquecida e eu tive uma ideia bestial que era acabar com
os postos de rádio às nove da noite e dar ao povo aparelhos de ondas curtas
daqueles que funcionam a pilhas para eles ouvirem os postos estrangeiros
sempre era uma economia de electricidade e só se tramava o autor de Grândola
Vila Morena que deixava de receber uns pilins que de qualquer forma não lhe
faziam falta porque se a gente poupar a sério acaba por não ter em que os gastar
palavra que sou toda pela poupança ando cada vez mais entusiasmada não só
deixei de ir à escola como deixei mesmo de estudar porque entendo que os
livros são um desperdício inútil de papelada a gente não precisa de livros para
nada bastava haver um livro que andasse de mão em mão para se poupar papel
sem ninguém perder nada com isso porque agora são todos iguais só as capas é
que variam e podíamos proibir os nascimentos e fechar as ma-ternidades sim
porque os homens não servem para nada se não houvesse homens havia
energia em abundância havia papel em barda para os jornais havia carne e leite
que era uma coisa doida não havia o problema da habitação havia gasolina
mais do que suficiente para os jeeps e para os Mercedes palavra que era uma
maravilha e além disso não havia crimes nem doenças nem litígios nem
aumentos do custo da vida nem moeda falsa nem aquela coisa chamada falta de
divisas se calhar até havia divisas a mais e havia uma harmonia bestial o grande
problema da humanidade é haver humanidade porque enquanto houver
humanidade continua a haver gente que dispende energia e que gasta coisas é
assim uma espécie de lei natural e não há nada a fazer eu cá por mim entendo
que os problemas todos dos portugueses se resolviam se não houvesse
portugueses e que isso pode-se arranjar com uma lei que proíba os nascimentos
e feche as maternidades a culpa de tudo isto é das maternidades que são
fábricas dispendiosas de esbanjadores.

In A Mosca, 8 Fevereiro 1975.

127
Ena pai que festival de civismo

Muito obrigada pelas cartas que recebi por causa de ter de ir à retrete
parece que há mais gente como eu enfim isto não é um país de prisão de ventre
é um alívio a gente saber isso mas em troca de não sermos um país de prisão de
ventre somos um país de mentirosos digo isto porque estive a ler as declarações
dos candidatos durante as eleições e vi que todos eles acusaram os outros de ser
mentirosos ora isto é muito feio mesmo feio na vida civil quando uma menina
diz uma mentira aparece imediatamente quem lhe ponha pimenta na língua e
lhe chegue as calcinhas ao rabinho mas parece que na vida oficial não é assim e
cada um pode dizer o que lhe dá na bolha sem lhe acontecer nada lá porque é
que isto é assim na vida oficial é que eu não sei mas se fosse adulta exigia
moralidade lá isso exigia será que não há pimenta no país para pôr nas línguas
das pessoas importantes? se não há devíamos mandar lá fora o nosso Melo
Antunes com uma comissão ou quatro comissões em vez dele para pedirem um
crédito de alguns milhões de dólares para a gente comprar pimenta mas há
outra solução que é obrigarem as pessoas importantes a andarem sempre de
gravador para a gente depois saber que é que tem de levar pimenta na língua e
quem é que não tem sim porque agora os gravadores são mais ou menos
baratos (sempre são mais baratos que os helicópteros) e o país gostava de saber
como é que é porque é o país coitadito gostava muito mas é que mesmo muito
de saber como é que é em muitas coisas enfim lá passaram mais estas eleições e
agora podemos todos trabalhar até as próximas é claro que quando eu digo
todos quero dizer os que trabalham e são bem poucos sim porque toda a gente
sabe que eu tenho razão se todos trabalhassem mesmo isto era bem diferente
olá se era pois como ia dizendo todos votamos com muito civismo mesmo com
muito civismo a rádio disse que tínhamos tido muito civismo os jornais
disseram que tínhamos tido muito civismo enfim foi um festival de civismo que
até faz impressão o que tem um piadão porque mostra a falta de civismo que há
por cá sim porque os ingleses os italianos os franceses os alemães os americanos
e se calhar os hindus votam e ninguém diz que votaram com civismo ou sem
civismo só quando a gente vota é que é preciso falar nisso tal é a falta de
confiança que a gente tem no nosso civismo mas para cá agora anda tudo cheio
de adjectivos mentais quando as pessoas se beijam é para resolverem a sua
problemática de isolamento quando as pessoas fazem lá o que fazem é para

128
resolverem a sua problemática sexual quando as pessoas comem é para
resolverem a sua problemática alimentar ninguém beija por gostar de outra
pessoa ninguém faz lá o que faz por amor ninguém come por ter fome isto é um
país de chatos adjectivos e anormais que pertence ao terceiro mundo só porque
não há um quinto mundo porque se houvesse éramos do quinto mundo que é
uma limpeza isto não é um país é uma problemática chata como burro cheia de
gente infeliz teo-rizante anémica sloganística e míope palavra que se eu não
fosse estrangeira natural da Graça emigrava para a Graça e naturalizava-me
graciosa ou gracense ou graciescalabitana para imitar os de Santarém.

In O Jornal, 2 Julho 1976.

129
Contribuição para um dicionário
de português contemporâneo

Vou publicar um dicionário olá se vou para as pessoas aprenderem a falar


o português de agora que não tem nada a ver com o de antigamente não senhor
e quem quiser falar o português de antigamente vê-se grego para começar o
meu dicionário vai ter três capítulos mais ou menos assim:
O português político;
governo uma coisa que pede dinheiro a juros no estrangeiro e em Portugal
prometendo que paga na esperança de sair antes da data do pagamento porque
não se vê como é que ele vai pagar.
partido agrupamento que herdou a mentalidade dos grupos onomásticos
de antigamente os que são do mesmo partido protegem-se uns aos outros e
desprotegem os que são dos outros partidos como os partidos são uma
novidade estão na moda as pessoas chamam aos seus partidos o Partido como
se não houvesse os outros e pertencem aos partidos mais ou menos pelos
mesmos motivos por que usam calças de ganga botas altas e outras novidades
da moda.
ministro uma pessoa que dá conferências de imprensa entrevistas para a
televisão e para os jornais dizendo que não pode dizer o que está a dizer o que
não afecta nem desafecta ninguém porque toda a gente está mesmo a ver que
eles não dizem nada nos intervalos de não dizer nada parece que trabalha mas
não há provas disso.
secretário-geral um senhor que há nos partidos e que tem por missão ir à
televisão dizer que o seu partido é que ganhou as eleições que o seu partido é
que representa o povo que não está de acordo com o governo.
membro de um partido o que entra com o pilim em cotas jornais festas e
outras coisas mais.
conselheiro da revolução membro dum conselho duma revolução que
houve há dois anos e que ainda por lá está a ver o que se passa.
public relations cavalheiro desempregado a quem o partido arranja um
emprego num ministério para dizer ao telefone que não sabe nada do que lhe
estão a perguntar mas que talvez consiga falar com alguém que saiba se esse
alguém existir.

130
carro do estado uma coisa do antigamente que deve ser como os coelhos
porque agora ainda se vêem mais.
O português gastronómico
carne palavra do antigamente que caiu em desuso por falta de quorum.
batata palavra do antigamente ainda em uso em alguns sítios cada vez
mais raros.
leite palavra do antigamente agora poucas vezes usadas senão em
holandês.
arroz prato de substância desde que a restante comida subiu de preço tem
vários derivados como a) arroz de frango o mesmo que dizer arroz mas com
uma asita de frango esfarrapada que custa um dinheirão este arroz dá para
quatro refeições familiares b) arroz de grelos o mesmo que arroz de frango mas
com uma folha de grelo que custa um dinheirão a mistura dá para três refeições
familiares c) arroz solto um arroz sem asa de frango e sem folha de grelo que se
come com um caril feito de carne que não há.
omeleta fritura de ovos que tende a substituir a carne o peixe e as batatas à
medida que o tempo passa.
O português quotidiano (algumas expressões)
então como estás? esta expressão vem do tempo em que as pessoas
estavam alguma coisa e caiu em desuso por medo da resposta mesmo assim
quando alguém a faz a resposta certa é tenho dias...
que barulho foi este? pergunta que se fazia antes do início da campanha
em curso contra o ruído dos automóveis actualmente a resposta a esta pergunta
é foi uma bomba qualquer!
que há hoje na televisão? antigamente esta pergunta tinha várias respostas
mas agora só tem uma que é Ópera a não ser que se seja ainda mais pessimista
porque nesse caso a resposta é discursos.
que fazes no domingo? esta pergunta vem do português erudito anterior à
subida do preço da gasolina e actualmente só tem uma resposta fico em casa à
resposta normalmente seguem-se uns desabafos que a boa educação não
permite que sejam impressos.

In O jornal, 21 Janeiro 1977

131
Precisamos dum cortejo histórico

O mal das perturbações sociais é que a gente habitua-se ao barulho e


depois não se consegue habituar ao silêncio o que eu acho é que depois de uma
crise devia haver festas públicas com santinhos entronizados arraiais
marchinhas e caldo verde para o silêncio vir mais gradualmente sim porque isto
de passar do barulho para o nada de repente é mau e pode perturbar as pessoas
algumas até podem dar em doidas e a gente tem doidos a mais ora não há
dúvida de que se estamos numa crise muito grande precisamos urgentemente
de festas para nos despedirmos da boa vida e das coisas boas uma coisa era
arranjarem um Leitão de Barros para o novo regime porque todos os regimes
têm o seu Leitão de Barros e o nosso ainda não tem pois como ia dizendo era
giro arranjar um Leitão de Barros que fizesse um cortejo histórico para subir a
avenida mas só com as figuras históricas dos últimos tempos em cima de
Chaimites em vez de carros alegóricos porque esses Chaimites são as carroças
alegóricas do nosso tempo e em cima deles vinha essa gente toda que passou
tão depressa que já nem nos lembramos dos nomes deles ainda no outro dia vi
duas pessoas fazerem uma aposta sobre quem era o Paulino um dizia que era
um jogador do Carcavelinhos em evidência depois da Primeira Guerra Mundial
e outro dizia que era um dos de Abril mas que não sabia ao certo quem era
nestas condições acho que a ideia do Cortejo Histórico podia ser aceite e que
dava um espectáculo turístico muito bom no Inverno estou a vê-los a subirem a
avenida em cima dos Chaimites de G-3 a tiracolo e de slogans na boca e a malta
toda que gosta muito de folclore a bater palmas e a dançar o vira palavra que
era um bom espectáculo mas podíamos fazer mais porque só um não chegava
podíamos fazer um cortejo fluvial com os nossos almirantes a remar do Cais do
Sodré à barra para a gente perceber o que é que eles fazem outra coisa que
podíamos fazer era um arraial gigantesco em todas as terras do país ao mesmo
tempo para fomentar a dança porque como a gente anda sempre a dançar na
corda bamba precisamos do treino olá se precisamos isto sem treino não vai
bem vistas as coisas uma amiga minha por exemplo mandou no outro dia
encadernar um dólar que lá tinha em casa e diz que a desvalorização do escudo
lhe vai pagar a encadernação eu como não tenho um dólar não posso fazer isso
mas sei quem tem um bacalhau que vai mandar para o Museu Nacional de Arte
Antiga para eles mostrarem aos vindouros porque se há um Museu dos Coches

132
por que é que não há um Museu das Comidas Antigas? pensando bem se calhar
é por falta de verba para comprar espécimens se for por isso já se entende enfim
do que precisamos é de fazer coisas porque se continuamos a não fazer nada
daqui a pouco não existimos é certo que não fazemos grande falta mas
habituámo-nos a estar vivos e fazia-nos falta respirar e agora vamos à política
que isto sem politicazinha não vai para começar tenho uma grande notícia a
dar: está tudo na mesma e estar tudo na mesma quer dizer que os partidos não
se entendem e os partidos não se entenderem é estarem a ter conversas uns com
os outros para depois mandarem comunicados a dizer que não se entendem eu
cá por mim acho que eles podiam poupar as línguas eliminando as conversas e
mandando logo os comunicados sempre se poupava papel nos jornais e sempre
se poupava a nossa paciência que está a rebentar e por hoje basta porque não há
mais nada para dizer adeus até para a semana e que todos se chateiem o menos
possível enquanto os preços sobem.

In O Jornal, 8 Setembro 1978.

133
É festa é festa

Ora cá estou eu outra vez a divertir-me com o que se vai passar sim
porque vamos ter eleições e cá em minha casa isso é sempre sinal de
divertimento para mim mas o melhor é eu explicar o que se passa cá na minha
família ninguém tinha ideias políticas no antigamente as pessoas diziam todas
mal do governo e pronto isso chegava-lhes para tudo o governo era mau as
pessoas do governo não sabiam o que faziam o ministro disto ou daquilo era
um asno e o resto era risota as pessoas riam-se quando o presidente da
república fazia um discurso as pessoas caíam para o lado à gargalhada quando
um chamado Silva Cunha aparecia na televisão muito pequenininho com
aquelas calças às risquinhas que ele usava parecia um pinguim anão coitado
que ainda por cima tinha umas trombas a dizer com as calças as pessoas
resmungavam contra isto e contra aquilo mas não tinham ideias políticas o meu
Pai por exemplo não perdia um discurso do almirante e imitava-o tão bem a
dizer aquela coisa de ter dado um piriquito ou lá o que era ou lá o que era ao
outro almirante que lá na taberna estavam sempre a pedir-lhe para o imitar é o
que eu digo cá na minha família toda a gente gozava os tipos e chateava-se com
eles como os cães se chateiam com as pulgas mas ninguém tinha ideias políticas
e vai de um dia para o outro começaram todos a tê-las o meu primo Manel que
era pato bravo daqueles que fazem prédios com três assoalhadas calculadas
para homem dormir com a cabeça numa delas com o rabo noutra e com os pés
na última ficou cheio de medo e optou pelo partido do «aguenta-te a ver se isto
muda» coitadinho nem abria a boca e para não darem por ele levou o Mercedes
para a terra e passou a andar de Fiat éoo o meu primo Xico que é funcionário
público e que tinha entrado para a Legião para conseguir o emprego mas que
nunca lá tinha ido nem sabia ao certo o que aquilo era apanhou um cagaço tão
grande tão grande tão grande de perder o emprego que começou a berrar que
nem um doido contra os outros tipos lá do emprego que também tinham
entrado lá para a tal Legião para conseguirem o emprego chamando-lhes
fascistas e reaccionários e bandidos e assassinos e o mais que lhe vinha à cabeça
que para dizer a verdade não é lá muito grande o meu primo Irineu que era do
Sporting ou do Benfica já não me lembro mas sei que era de um deles e que não
pensava noutra coisa senão no jogo e que sabia os nomes de todos os jogadores
e os resultados de todos os campeonatos desde 1921 até agora e que gostava

134
tanto da bola que sabia quantos cabelos é que tinha um chamado Eusébio e o
que é que o Pedroto comia ao pequeno-almoço pois esse mudou-se a correr
para um partido e encornou os nomes todos dos chefes da banda e agora sabe
os resultados de todas as revoluções que houve desde o século xiv e o que é que
os chefes comem ao pequeno-almoço e quando há manifes de rua não se deita
toda a noite para encornar as palavras de ordem o meu primo Sebastião que
lava carros numa garagem aprendeu uma data de frases que aplica a tudo por
exemplo se estava na bicha e o eléctrico não vinha punha-se a dizer aos
presentes que a culpa era do Champallimaud uma vez que estava num grupo
em que toda a gente dizia mal do Mello da cuf começou logo a chamar-lhe
nomes e no fim perguntou ao meu Pai quem era o Mello da cuf a minha prima
Eulália com medo que lhe nacionalizassem os dois pedaços de terra que herdou
da minha avó desatou a dizer bem dum chamado Mussolini e a dizer que os
bárbaros tinham chegado a minha prima Leucádia que nem sabia o Padre
Nosso passou a ir à missa e decorou uma palavra chamada encíclica que atirava
à cara da gente de cinco em cinco minutos aquilo palavra de honra que foi um
pagode e quem soubesse o suficiente da minha família para perceber o que
estava a acontecer tinha matéria para rir até ao fim da vida e para ir para a cova
a rir e para entrar na eternidade ainda às gargalhadas mas o mais divertido é
que mesmo os que percebiam tinham tanto medo de serem saneados ou
perseguidos ou lixados que em lugar de rir punham uma cara bestialmente
séria e fingiam que não percebiam o que estava a acontecer coitadinhos eu às
vezes pergunto-me por que é que as pessoas têm tanto medo de que falte o
petróleo quando temos um carburante muito mais rico em octanas do que a
gasolina esse carburante chama-se cagaço e faz coisas do arco da velha pois a
razão que me leva a a estar tão divertida é exactamente saber que durante uns
tempos vou rir a bom rir com as novas eleições com os discursos com o meu
primo Manel outra vez a andar de Fiat 600 com o meu primo Xico outra vez aos
gritos de que é preciso sanear o Lopes que entrou para a Legião no mesmo dia
em que ele entrou com o meu primo Irineu outra vez a dizer que não vai à bola
porque é um jogo alienante com a minha prima Eulália a fechar as janelas para
não ouvir os gritos dos bárbaros na rua e com a minha prima Leucádia a correr
para a igreja cá por mim já me estou a rir e a procissão ainda vai no adro
quando penso no comportamento desta gente toda e me lembro que as eleições
são antes do fim do ano pergunto-me se elas não teriam sido preparadas de
colaboração com a unesco e não serão o último acontecimento do Ano
Internacional da Criança.

135
In O Jornal, 10 Agosto 1979.

136
Então mas que é isto?

Então mas que é isto há uma data de tempo que não vai nenhuma missão
portuguesa ao estrangeiro e que a televisão não os mostra ao aeroporto à
chegada do Afeganistão e do Nepal a dizer que correu tudo muito bem e que os
governos do Afeganistão e do Nepal além da Comissão dos Aborígenes da
Austrália Central estão inteiramente de acordo com a gente e até estão
dispostos a comprar duas camionetas de cortiça à gente mas então que é isto? o
governo anda doido ou quê para deixar que se percam as nossas novas
tradições? mas então já estarão esgotadas todas as pessoas que queriam viajar e
não tinham dinheiro para o fazer à custa própria? mas então o governo estará
esquecido de que o nosso Vítor Crespo ainda não foi ao Nepal ver se eles
querem comprar feijão carrapato? e a Patagónia? deixa-se assim a Patagónia
sem uma visitação oficial sem uma explicação sem nada? e o Butão? não
figurará o Butão na lista dos sítios a que temos de mandar um enviado ou dois
ou mesmo sete num avião de quatro motores a gastarem gasolina para ver se
eles concordam com o texto do artigo 128 da Constituição? mas o governo terá
consciência da gravidade que pode vir a ter para Portugal isto de termos
eliminado o Butão da lista dos sítios a visitar? eu cá não sou política e nem sei
nada de política mas estou com medo destes esquecimentos que ainda podem
vir a lixar-nos e tenho pena das pessoas que ainda não foram numa visitazita
coitadas que se perdem esta ocasião enquanto o ferro está quente nunca mais
apanham outra isto é uma questão grave porque além do Butão ficaram por
visitar uma data de sítios importantes como a Córsega a Sardenha o
Liechstenstein e a ilha de Lesbos ora se não fazemos qualquer coisa
imediatamente para aplacar as iras que certamente despertamos nestes sítios
por não termos lá mandado ninguém isso pode acabar mal por outro lado há
que dar que fazer aos vips que ficaram sem postos senão eles começam para aí a
conspirar outra vez e isto de os nomear caixeiros viajantes itinerantes
representantes importantes é muito mais útil para os entreter palavra que cá na
Graça andamos preocupados com esta paragem das viagens oficiais porque
estávamos habituados à chatice de os ver na televisão a dizer banalidades à
chegada e à partida e agora a televisão tem de arranjar outra chatice para
substituir essa o que é tão grave como esquecer o Nepal e o Butão para não
falarmos das ilhas de Páscoa que também não foram visitadas com graves

137
prejuízos para a nossa política internacional e para não falarmos das Berlengas
coitadinhas que ainda não têm um partido separatista uma Comissão de Ilhéus
uma Comissão Organizativa dum Congresso de Ilhas Pacíficas e que ainda nem
sequer foram visitadas por um caixeiro viajante itinerante representante
importante sou de opinião e há muita gente nas Berlengas nem que fosse uma
reunião de indivíduos incumbidos de apreciarem a presente situação
económica e política do país ou um piquenique ou um festival de canção livre
se não houver mais nada pelo menos se mande construir lá um urinol público
porque o que se passa é uma indecência anti-social sim porque não há um único
urinol público nas ilhas e os faroleiros quando saem do farol para ver como está
o tempo têm de urinar atrás duma rocha ou dum arbusto e toda a gente sabe
que é proibido urinar fora dos sítios destinados a isso eu acho que esta situação
justifica a visita dum enviado extraordinário ou duma comissão incumbida de
estruturar um grande Plano Provisório para o Estudo da Cultura Berlengal e
dos Métodos Ancestrais de Urinação usados pelos Naturais com vias à
Estruturação dum Plano Definitivo de Urinação que se Coadune com os
Objetivos Sociais e Políticos da Nova Sociedade Portuguesa e Não Só. ibid., 2.0.

Agosto 1976.

138
Da Arte de Driblar a Censura

139
O sapo queixinhas

Há um «queixinhas» em todas as escolas de segunda porque nas de


primeira como ninguém lhes liga eles desistem e têm de fazer qualquer coisa
seja o que for para as pessoas darem por eles sim porque o que eles querem é
dar nas vistas dos professores seja como for porque a natureza que é uma coisa
que há à volta da gente nem sempre para não dizer quase nunca ajuda os
Queixinhas à nascença pois o que eu estou a dizer é que nós na minha escola
temos um «queixinhas» que deve ser dos melhores que há porque este é que é
dos tais que se não fosse «queixinhas» não era mesmo nada mas é que mesmo
nada porque não sabe nada de ciências nem de literatura nem de matemática
nem de desenho nem de línguas sim porque nisso de línguas só sabe dizer oui
oui oui e mesmo quando diz non a uns é porque está a dizer oui a outros e de
história só sabe umas coisitas que lhe convém saber ou que julga que lhe
convém saber e como é surdo não ouve a história acontecer à volta dele e vai
para ver se alguém vê que ele existe principalmente os professores sim porque
este nosso «queixinhas» é dos tais que só fala para os professores o ouvirem
porque os professores são os únicos que não largam a rir às gargalhadas porque
precisam de manteiga como a gente não precisa está-se nas tintas para os ecos
dos defuntos e ele não passa dum defunto que só ainda não foi enterrado de
vez porque lá na aula temos tudo menos cangalheiros pois este nosso
«queixinhas» tem duas coisas que ninguém mais tem uma é que parece um
sapo cheio de peçonha e outra é que os professores lá porque ainda ninguém
percebeu de vez em quando pegam nele e deixam-no sapar para quem não
conhece a língua dos animais explicamos que sapar é falar língua de sapo pois
deixam-no sapar se calhar porque julgam que a gente ouve o que ele diz
quando a verdade é que a gente quando ele sapa com aquela cara de sapo que a
natureza lhe deu para ir bem com o que ele tem em vez de miolos desliga que é
o mesmo que dizer que se põe a jogar à batalha naval ou ao galo mas enfim os
professores põem o sapo a falar e ele fala o que é o mesmo que dizer que está
calado porque uma coisa é falar e outra é fazer barulho com a boca pois este
«queixinhas sapo» que nós temos lá na aula como nunca fez nada que valesse a
pena a gente ver para se tornar notado inventa escândalos contra este e contra
aquele e fica todo contente ao ver que os professores castigam aqueles contra

140
quem faz queixa coitadito não se lhe pode levar a mal porque se não fizesse
estas coisitas não fazia mesmo nada porque não é capaz de fazer nada coitadito
que é muito fiel à cara e aos miolitos de sapo que a natureza lhe deu mas
quando faz estas coisitas de sapo fica todo contente o que até é justo sim porque
se os sapos não fazem coisas de sapo que diabo é que eles hão-de fazer? pois
este nosso «queixinhas sapo» coitadito para dar nas vistas dos cegos e digo isto
porque os outros nem olham para ele tem de inventar escândalos e anda todo o
dia com os olhitos de sapo muito abertos a ver se arranja uma coisita qualquer
que ele possa aldrabar para caçar o olho dos professores a não ser quando
trabalha de encomenda que é quando o professor de literatice digo de literatura
digo de literatice digo de literatura digo de literatice digo de literatura digo de
literatice que é um que anda sempre a dizer que é bom em ginástica defensiva
mas que a gente não sabe se encomenda uma al-drabicesita contra este ou
aquele e vai ele coitadito satisfaz a encomendazita para ganhar a vidita de sapo
pois este é bestial nisto de inventar queixitas para dar nas vistas dos ceguinhos
uma técnica que ele usa muito é andar a ver o que a gente escreve nas paredes
sim porque cá na nossa escola ou se escreve nas paredes ou não se escreve em
parte nenhuma por exemplo a gente por exemplo quer escrever numa parede
vai logo dizer aos professores que a gente ia a escrever abaixo o professor de
matemática a gente por exemplo quer escrever numa parede que os burros se
aproveitam das aulas para dizer burrices e ele vai dizer aos professores que a
gente está a achincalhar as aulas enfim coitadito ninguém se pode espantar
porque o que seria de espantar seria que ele não saísse à natureza e dissesse
coisas inteligentes mas para isso coitadito teria que ir pedir a inteligência
emprestada aos amigos e ficava tão mal servido como se usasse a dele o que é
engraçado é que ele coitadito não percebe que toda a gente se ri dele e continua
com as suas «queixinhas» a dar vontade de rir a toda a gente mas a vida é o que
é nestas escolas de segunda e não há nada a fazer o que vale é que a gente com
estas queixitas todas vai para o céu olá se vai porque nestas coisas eu acredito
numa justiça divina e assim como nestas escolas de segunda são um céu para os
burros.

In A Mosca, 16 Dezembro 1972

141
Disto e daquilo principalmente daquilo

Não não não ele há coisas que não se fazem a uma menina ingénua como
eu que ainda nem sequer estudou biologia e organização política e que ainda
está na idade de comer gelados e de chupar bombons e de fazer chichi atrás de
uma árvore sem os guardas se chatearem sim porque não é só cá na Graça que
há velhinhos não senhor também os há noutros sítios e o pior é que um dia fico
assim o que peço quando isso acontecer é que não me deixem fazer nada nem
abrir o bico porque uma coisa é a gente ser velho porque tem de ser e outra
coisa é a gente ser velho e dar vontade de rir como dava o meu Avô que Deus
tem se o tiver sim porque não há certeza nenhuma dele estar na tal mão de
Deus não senhor porque se havia uma pessoa difícil de apanhar era ele quando
se raspava de casa para fazer discursos nas esquinas sobre isto e sobre aquilo
principalmente sobre o Benfica que era o clube de que ele gostava muito mas
como a gente sabia como ele era mal dávamos pela falta dele seguíamo-lo
porque aqui na Graça o povo ri que é uma coisa doida se calhar não é aqui na
Graça se calhar o povo ri em toda a parte porque o povo é muito dado ao riso
mas isso é capaz de ser política e eu em política não me meto não senhor para
não estragar a vida ao meu Pai lá na repartição de maneira que o melhor é
mudar de assunto mas ainda dentro deste assunto quero dizer que isso da
sardinha deve ser mentira porque a sardinha está cara como burro e o povo já
teve de a deixar agora só se ri com o carapau do besugo do peixe-espada e dos
jaquinzinhos que estão cada vez mais caros e o preço deles dá cada vez menos
vontade de rir ai meu Deus que lá vou eu outra vez a falar de preços assim lá
tramo o meu pai na repartição nestas coisas não há como estar calado mas como
é que uma pessoa pode estar calada enfim muda de assunto Guidinha que
ainda te arrependes ora vamos lá então a mudar de assunto e a falar duma coisa
que ninguém mesmo que tenha má-vontade possa dizer que é política este ano
o Verão está muito bom há muita gente na praia já vi um cão de coleira fazer
chichi na areia nas piscinas também há muita gente e nas ruas também e nos
parques também cá a Graça está cheia de gente só cá não estão os que foram
embora lá porquê não sei só se for por maldade sim porque há muita gente com
a maldade entranhada que não sai nem com sabão-macaco outra coisa que se vê
muito cá na Graça é o povo a rir de felicidade ri-se que é uma coisa doida
principalmente na véspera da partida a Graça é muito estranha não há quem a

142
entenda senão quem a entenda mas o melhor é eu mudar outra vez de assunto
porque as pessoas são muito sensíveis e podem pensar que eu estou a falar de
coisas de que não estou a falar como por exemplo de elefantes já que falei de
elefantes explico que são uns bichos que têm um nariz enorme mas é que
mesmo enorme mas no meio daquela cabeçona em que têm o nariz tem muito
pouco miolo.

In A Mosca, 11 Agosto 1973.

http://groups-beta.google.com/group/digitalsource
http://groups-beta.google.com/group/Viciados_em_Livros

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