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Título: Libertação
Título original: : Szabadulás
Autor: Sándor Márai
Edição: Cecília Andrade
Tradução: Piroska Felkai
Revisão: Clara Boléo
Capa: Maria Manuel Lacerda
Imagem de capa: © Stephen Mulcahey / Trevillion Images
ISBN: 9789722079174
Este livro segue o Novo Acordo Ortográfico de 1990, por política da editora.
Índice
Ficha Técnica
1
2
3
1
[1] Márai não é coerente com a utilização do tempo na escrita do romance, pelo que é difícil
acompanhar as mudanças nos dias do cerco. (Nota da editora húngara.)
[2] Referente ao Partido da Cruz Flechada, um partido nacional fascista, pró-alemão e
antissemita, semelhante ao Partido Nazi. (N. da T.)
[3] Sabatista: membro de uma seita cristã fundado no século por Sabbathius. Os sabatistas
celebram a Páscoa no mesmo dia que os judeus. (N. da T.)
[5] Mihály Vörösmarty (1800-1855) e János Arany (1817-1882): poetas húngaros. (N. da T.)
2
[6] Os Árpád foram a dinastia reinante do Principado da Hungria nos séculos e . As listras
brancas e vermelhas, símbolos do brasão real, mais tarde apareceram nas braçadeiras dos agentes do
Partido da Cruz Flechada. (N. da T.)
O edifício vizinho foi atingido por chamas, mas o fogo já está extinto. Lá
fora, uma manhã, aquela atividade lúgubre, cujo som faz lembrar as
máquinas de uma fábrica, começa ainda mais cedo do que nos dias
anteriores. Porque o cerco tem um tempo e um rumo precisos. O cerco de
uma grande cidade – um milhão e meio de habitantes, também Erzsébet e
os seus companheiros de cave já se aperceberam – não é apenas uma
questão de máquinas e fatalidades, mas também de homens… e também se
pode encontrar algo reconfortante nele. É feito por pessoas que utilizam
máquinas, por homens desconhecidos, os bolcheviques. Mas,
aparentemente, são seres humanos, porque, mesmo durante o cerco, as
máquinas que comandam por vezes calam-se. Ficam silenciosas,
descansam.
O que é que os sitiantes fazem nesses momentos? Nesta situação
monstruosa, no meio de caves e quarteirões destruídos? Provavelmente o
mesmo que os habitantes da cidade cercada fazem: descansam. Comem
qualquer coisa, untam e recarregam as suas máquinas, avançam lentamente,
com metralhadoras na mão, acima e abaixo do solo, atravessam as caves de
milhares de edifícios. Em cada cave há homens à sua espera, incluindo
aqueles que ontem ainda eram nazis ou fascistas – porque agora,
paralelamente à resistência e à defesa oficial, há este estranho apelo no
grande corpo da cidade, que convida, exorta os sitiantes e parece dizer:
venham, venham! Todos esperam por eles, mesmo os seus adversários.
Talvez até os soldados alemães estejam à sua espera; antes de morrerem,
nas suas mentes, nos seus corpos, este estranho desejo é despertado, o
desejo de ver finalmente os inimigos chegar, de poder encontrá-los e que
finalmente tudo o que acontece aqui, nas caves malcheirosas, nas covas da
morte, possa fazer sentido. Esta espera decide o destino do cerco. Erzsébet
sente-o no seu corpo, sente esta chamada; como toda a gente nas caves,
como toda a gente na cidade, um milhão e meio de seres humanos.
Muitos esperam pelos sitiantes tremendo, com raiva e desespero, sentem
no fundo que o destino por eles invocado é impossível… e mesmo assim
esperam por ele. O destino do cerco está agora decidido, isto todos sabem,
na cave, na rua, na cidade.
De tempos a tempos, ainda chegam notícias da cidade escura e cercada.
Já não há rádio. Nem eletricidade. Ir buscar água a poços, a casas próximas,
é uma tentativa cada vez mais arriscada. Alguns homens partem, na maioria
das vezes por volta das nove horas da noite, com baldes e jarras. Procedem
em fila indiana, e as mulheres acompanham-nos até à porta da cave. Já
aconteceu que um deles não regressou… O que lhe terá acontecido? Um
estilhaço, um fragmento de bomba, uma bala perdida ou algum outro
incidente ao mesmo tempo trivial e obscuro pode ter acabado com os seus
dias. Mas o grupo vai todas as noites, e todas as noites novas pessoas
juntam-se a ele; por exemplo, o pálido veterinário do bairro, que durante
cinco dias não se atreveu a enfrentar uma caminhada tão perigosa, tem uma
súbita explosão de heroísmo, agarra numa marmita e num balde e junta-se
aos carregadores de água.
Pálida, sem uma palavra, a sua mulher acompanha-o até ao pátio. Este
heroísmo agora, de repente, porquê? Nem ele sabe, isso é certo. As pessoas
agora são imprevisíveis. Mas a espera, a atração, os fascínios do
acontecimento estão tão vivos nos seus corpos e na sua consciência que
geram tensão e comportamento compulsivo. Querem acabar com isso,
passar para outra coisa; depois disso… haverá outra coisa, outra coisa
diferente… isso é claro para todos…
Agora estão habituados ao cerco, sabem como funciona. É gerido por
seres humanos, pelo que, a maior parte do tempo começa às seis e meia,
sete da manhã. E dura até às oito, nove da noite, raramente mais tarde… O
que há de estranho nisso? Essa curiosa confusão de ruídos, bombas a cair,
granadas a explodir, aviões a rugir, metralhadoras a crepitar, essa harmonia
estranha é quase «suportável», mesmo quando se aproxima cada vez mais,
mesmo quando parece vir da casa ao lado, onde algo explode, e ouvem-se
os sons de martelos, arranhões, apitos… Um ruído mecânico, semelhante ao
de uma oficina, como se numa fábrica improvável se começasse a trabalhar
todas as manhãs ao amanhecer, com equipas em turnos…
Aqui vão eles, pensa Erzsébet, ao amanhecer, na sua cama.
Todos na cidade pensam a mesma coisa. Aqui vão eles, e já sabem
exatamente com o quê: com canhões e granadas, ou outras armas de fogo.
Por esta altura, já todos se tornaram especialistas em armas. Os nervos
auditivos funcionam com a mesma acuidade que os nervos óticos; e
transmitem informações irrefutáveis, as quais não podem ser contestadas.
Nesta grande indústria da guerra, nesta guerra moderna travada com
máquinas, há muitos lugares como Budapeste, que é apenas um deles… Por
todo o lado, a moer e a martelar, do amanhecer ao anoitecer. O que estão
eles a fabricar? A paz? Um mundo melhor, mais próspero, mais inteligente?
Erzsébet não sabe. Este ruído, este barulho abafado, tem uma resposta
para tudo e impede a mente de analisar e compreender o que quer que seja.
Então, de repente, ao anoitecer, cai o silêncio. E agora, o que estão os
combatentes a fazer? Estão cobertos de sangue? Em geral, como são eles?
Ninguém sabe. Esse grande exército vem da escuridão, do desconhecido.
Erzsébet não consegue sequer imaginar como é um soldado russo, como é o
seu uniforme, as suas armas, como se comporta. Como é que é a sua cara?
São eslavos… é a única coisa que ela sabe. Nas ruas, há cartazes que
retratam seres ferozes, desprovidos de qualquer traço humano, com
intenção de saquear ou assassinar… Seriam estes os bolcheviques? Erzsébet
sente, sabe que esses cartazes são mendazes e distorcem a realidade. Os
bolcheviques são seres humanos, tal como todos os que estão aqui na cave.
À noite, depois dos combates, eles vão certamente querer lavar-se e comer.
Depois, eles dormem também, no meio das máquinas da morte, no chão,
como puderem. Isto porque a sequência cronológica do cerco e a sua série
de acontecimentos fatais exercem a mesma pressão sobre os sitiantes e os
sitiados.
E depois, numa manhã, a abertura desta polifonia monótona, os
primeiros acentos da cacofonia das máquinas de guerra ressoam mais alto…
A cave acorda do seu sono, as pessoas sentam-se nos colchões imundos,
prestam atenção. Alguém já está consciente de que os sitiantes estão mais
próximos, estão aqui, à volta do quarteirão. Esta palavra, «quarteirão»,
adquire subitamente um significado invulgar.
Como se alguém estivesse a dizer «pátria», uma versão mais familiar e
mais restrita da existência. Porque ainda ontem havia um mundo ao qual se
pertencia. Depois havia um continente em perigo, com as suas catedrais,
hospícios, casas, com os seus viadutos, paisagens, música de Bach e livros:
a Europa… E finalmente esse conceito, essa ideia tinha encolhido, era agora
uma questão da pátria, que subitamente emergiu na luz do dia e na
consciência dos homens, e adquiriu um significado especial, mais
importante do que alguma vez tinha tido: a pátria, os Cárpatos, a planície
sobre a qual a cavalaria e os tanques russos avançavam.
Depois, o conceito de pátria também encolheu: tornou-se mais pequeno a
cada dia, até que restavam apenas alguns bairros, algumas cidades
conhecidas, depois a grande cidade sozinha; e agora, dentro da cidade, os
bairros, rendendo-se uns atrás dos outros; e, finalmente, o quarteirão…
E depois disso? O que vem a seguir? O edifício em que Erzsébet e os
outros se encontram, depois, dentro deste edifício, esta cave e este recanto
que terá de ser conquistado como tal. E agora, nesta madrugada, à medida
que se aproxima o barulho mecânico, as pessoas fechadas já não falam do
mundo, da Europa, da pátria ou da grande cidade, mas do quarteirão, apenas
do quarteirão. Esta é agora a pátria: uma série de casas e prédios
delimitados por algumas ruas. A guerra chegou aqui, a uma das ruas
vizinhas, em frente à mercearia da esquina.
Durante muito tempo, a guerra tinha divagado noutros locais, nas
planícies ucranianas, nas margens do Volga, na Normandia; as pessoas
compraram o jornal, folhearam-no, viraram a página, leram cuidadosamente
a informação sobre os cupões de racionamento que poderiam ser utilizados
no dia seguinte… Mas agora não há mais jornais. A guerra está aqui, pode
sentir-se a sua respiração. Como se, na escuridão, um monstro se inclinasse
sobre todos: as vítimas sentem o seu hálito fétido, quente e selvagem no
pescoço, o monstro está a farejá-las. Os habitantes da cave começam a
preparar-se… para quê? Para uma espécie de boas-vindas. Alguns tocam
com os dedos os objetos de valor escondidos debaixo da cama. Outros
preparam febrilmente a sua bagagem, uma mulher penteia o seu cabelo,
começa a vestir-se, como se estivesse convidada para um encontro
escaldante ou para uma reunião social.
A guerra está aqui, muito perto, a arder na esquina do quarteirão; e os
habitantes da cave não se aperceberam imediatamente que a guerra mede
espaço e tempo de forma diferente da paz. Agora, ao experimentarem este
sistema por si próprios, apercebem-se de que a guerra não se resume a
entidades abstratas, continentes e nações, mas que ela está aqui, presente, na
realidade concreta. A guerra está aqui, pode ouvir-se a sua respiração
ofegante, sentir-se o seu hálito ardente e abafado, está aqui, muito perto, na
rua seguinte ou a três ruas de distância… mas, no entanto, ainda não
chegou. Todos estão alertados no escuro, os seus olhos fixos, os seus
ouvidos tensos, como animais selvagens a sentir a presença de um caçador.
Mas o caçador não se mexe. E esta espera iminente é, sem dúvida, pior
do que qualquer outra coisa. A guerra usa as botas das sete léguas, sobe
sobre os Cárpatos, corre para aqui da Normandia ou das margens do Volga,
mas de repente, na rua seguinte, pára e descansa. Que está ela a fazer? Está
a reunir as suas forças? Apenas alguns metros separam os cercados do
instante em que a guerra entra na sua cave, mas estes poucos metros
parecem agora uma distância abismal, como há um ano, mil quilómetros.
Uma espera desamparada, muda e ociosa começou.
Mais uma vez, chegam os pressagiadores, agora as suas cabeças estão
ensanguentadas, os seus braços enfaixados com ligaduras sujas, como os
sobreviventes que aparecem nas velhas imagens de batalha, e anunciam que
a duas ruas de distância, numa clareira onde apenas algumas semanas antes,
ao sol de uma manhã de inverno, as crianças brincavam, a guerra chegou.
Os alemães montaram ali acampamento, reocuparam duas caves,
expulsaram os que ali viviam em direção à frente vizinha, ou seja, a rua ao
lado, e estão agora a montar novas posições no andar superior do prédio da
esquina, no apartamento de um dentista com uma varanda. Os russos estão
também aqui, do outro lado da rua, na cave de um cinema de bairro. É por
isso que a guerra está agora silenciosa à volta do quarteirão: os combatentes
estão agora perto uns dos outros, perto da luta corpo a corpo. É por isso que
não caem bombas há dois dias: os russos poupam este quarteirão porque
poupam os seus soldados.
E mais longe? Na cidade? Em Buda? Fala-se de «desembarque», cujo
palco já não é o Mediterrâneo, mas uma doca de barcos a motor nas
margens do Danúbio, de «confrontos decisivos» que ocorrem no passeio
ribeirinho, onde os sitiantes ocuparam dois hotéis famosos e quatro cafés da
moda. E as pontes? Muitos acreditam que as pontes ainda lá se encontram.
Outros dizem que os alemães colocaram a «bandeira preta» numa janela do
Castelo de Buda, o que revela a sua intenção de nunca entregar Budapeste
ao inimigo, de lutar até à última rua, à última casa, à última cave, ao último
homem.
Entretanto, esta calma densa e repentina já dura há dias. Quantos dias
tem durado o cerco? Dez, doze? Ninguém os conta. Como quando se está
gravemente doente, o dia absorve a noite: já não se consegue distinguir os
momentos do dia nem os acontecimentos relativos aos indivíduos que
vivem no quarteirão e na cave. Tudo se torna uniforme, o tempo, o dia, a
noite, tudo se torna compacto e pastoso. Até os rostos das pessoas. Erzsébet
vive lentamente nesta atmosfera densa e pegajosa, como animais em
hibernação: metabolismo reduzido, batimentos cardíacos e respiração
abrandados.
Todos eles vivem assim agora. As coisas acontecem: de vez em quando
alguém adoece, três camas abaixo um homem morre de cancro pancreático.
É um homem velho, calmo e calado, que trouxe a sua própria sentença
pessoal para aqui, para a cave e para o buraco infernal de um cerco. Ele foi
inspetor-geral dos caminhos de ferro, dizem. Ninguém o conhecia. Chegou
no início do cerco acompanhado pela sua mulher, uma mulher loira, com ar
abatido; o casal idoso tinha-se instalado num canto, ela não falava com
ninguém, o homem não se queixava, Erzsébet só tinha visto a mulher a dar
uma injeção de morfina ao marido de vez em quando. Uma noite, o homem
doente morreu, silenciosamente, devido ao seu cancro. A mulher não
chorou.
Naquela manhã, ao amanhecer, ouviram-se tiros de armas de fogo em
redor do edifício. Erzsébet deu uma mão ao enterro do homem no pátio:
embrulharam o cadáver num lençol e a mulher envolveu piedosamente o
corpo esquelético na mortalha suja, prendeu-o com alfinetes de segurança,
como se estivesse a preparar uma múmia dos tempos antigos. Ninguém
olhava para eles, havia apenas três pessoas a movimentarem-se à volta do
cadáver, o médico do abrigo antiaéreo, a viúva e Erzsébet. Os habitantes da
cave falavam de outra coisa, distantes, com ar silencioso, como fazem os
adultos quando falam na presença de crianças de coisas odiosas e terríveis,
às quais é melhor não prestar atenção. «Cancro pancreático», dizia a viúva
de vez em quando, enquanto executava esse trabalho, com alfinetes de
segurança entre os dentes; dizia-o espontaneamente, com uma solicitude
desconcertada e mecânica, como se estivesse a relatar uma circunstância
atenuante a um juiz. Como se ela soubesse que a sua presença e a morte do
seu marido estavam a causar aborrecimentos desnecessários aos habitantes
do abrigo e insistisse em encontrar uma justificação, em repetir que o morto
e ela, a viúva, não tinham culpa, que o cancro pancreático era a causa de
tudo isto.
Ela tinha embrulhado bem o falecido no lençol e prendeu-o com
alfinetes de segurança, porque «assim aguenta melhor» tinha dito com
pressa, e ninguém tinha ficado surpreendido, nem mesmo Erzsébet, ao ouvir
esta estranha afirmação. Então dois homens, o porteiro e o médico,
carregaram o falecido sobre os ombros e levaram-no para o pátio. Estava a
nevar. Nevoeiro e neve tinham descido sobre o pátio, não se podia ver o
céu. Erzsébet acompanhou a procissão fúnebre, caminhou atrás da viúva, e
no pátio, em frente da fossa que o porteiro tinha cavado na noite anterior,
parou e respirou profundamente. O seu único pensamento, a sua única
preocupação naquele momento era não poder ver o céu da manhã por causa
do nevoeiro.
A fossa é rudimentar, não mais do que meio metro de profundidade, na
terra congelada não se pode cavar mais nem mesmo com uma picareta;
deitam nela o falecido e atiram-lhe torrões por cima. Agora ele jaz aqui, ao
pé da parede principal, debaixo da fila de janelas de sanitários de serviço
estreitas, o estranho que tinha trazido o seu cancro pancreático para a cave
de um outro prédio, em tempo de cerco, dentro do seu próprio corpo, e tinha
morrido sem sentir nada graças à morfina, sem uma palavra, no meio do
turbilhão acima e abaixo do solo.
O porteiro coloca uma cruz improvisada sobre a sepultura. Esta morte
«burguesa» no meio da guerra, esta morte «civil» é a morte como a de
alguém que cai atingido por uma bala ou estilhaço. É nisto que Erzsébet
está a pensar ao ler a inscrição na cruz. Morreu com a idade de cinquenta e
seis anos. Inspetor dos caminhos de ferro. Ela gostaria de compreender isto,
de compreender o que é um homem e se tudo isto, os esforços humanos, os
esforços e o sofrimento têm algum significado. O que pensa o seu pai sobre
isto? Qual é a relação com o cosmos, com as estrelas? Não há ninguém a
quem perguntar. Todos eles regressam à cave.
À volta do quarteirão o cerco parou durante alguns dias. Agora, a guerra
ressoa e ronca mais longe de novo; é como uma trovoada subterrânea. Os
habitantes da cave, com o instinto cego das criaturas que vivem nas
profundezas, preparam-se durante esses momentos de calma precária. O
perigo, a única coisa que dá sentido às suas vidas – tal como é a dor que
estimula os neurónios de uma pessoa doente –, tem diminuído. Mas eles
sabem que esta atenuação é temporária. E como os doentes graves nos raros
momentos em que a dor diminui e deixa de torturar os seus corpos,
preparam-se para algo extremo, para a investida de um novo perigo, de uma
dor final, devastadora.
O homem com cancro do pâncreas foi enterrado, mas ninguém fala sobre
isso. Não há condolências nas palavras ou atitude das pessoas, apenas uma
espécie de irritação ressentida; parecem considerar que é uma falta de
respeito, um gesto intrusivo de alguém vir ter com elas para morrer de
cancro pancreático, no meio do perigo geral, no meio das suas ansiedades e
preparações. Como se dissessem: «Está a ir longe demais! É preciso ter
lata! É um ser bem estranho…» A viúva sente a atmosfera hostil e tenta
desaparecer, para se misturar no matagal humano que enche a cave; ela não
ostenta o seu luto, que é certamente também um alívio, como qualquer luto
recente – e certamente ainda mais em tal situação, dado que, ter de
alimentar um homem moribundo, prover às suas necessidades, lidar com o
seu desamparo, tudo isto foi um empreendimento complicado e sem
esperança, onerosa para a mulher e para os que a rodeiam, mais pesada e
mais dolorosa do que em qualquer outra situação na vida…
Agora ele está morto, e jaz ali no pátio. Muitos descansam assim, em
sepulturas improvisadas nos pátios dos edifícios vizinhos. Uma rapariga
arrasta a sua mãe morta de costas, do armazém de madeira para a vala
comum cavada no pátio vizinho, porque o bombardeamento não para nesse
dia, e não há ninguém que a acompanhe. De tudo isto, os habitantes da cave
não falam. A atmosfera torna-se cada vez mais agressiva: no início, só a
descarregam naqueles que, de uma forma ou de outra, perturbam a ordem
infernal da coexistência, naqueles que morrem, ou nos doentes, ou naqueles
que exigem algo mais do que os outros; depois descarregam nos espertos,
naqueles que compreenderam como as coisas funcionam, naqueles que
conseguem mais água, naqueles que comem a melhor comida, naqueles que
têm contacto com o mundo exterior; finalmente, descarregam uns nos
outros, em todos aqueles que partilham a mesma situação. Durante algum
tempo, esta raiva que se acumula e se adensa, apenas se manifesta em
explosões de irritação e discussões ocasionais.
Duas mulheres a lutarem por cima do fogão, alguém roubou a lata de
banha… Na cave, de facto, as pessoas estão agora a roubar, embora ainda
não de uma forma generalizada e compulsiva como será nas semanas
seguintes, quando a destruição será total; agora só roubam esporadicamente,
movidas por uma tentação momentânea. Mas as pessoas roubam. Já não
existe qualquer legalidade, e os laços sociais também se soltaram
consideravelmente.
Erzsébet conhece apenas algumas poucas pessoas no edifício. Não há
amigos íntimos dela na cave. E a vida lá, a promiscuidade tipo chiqueiro
devido ao cerco, não lhe dá qualquer possibilidade de conhecer as pessoas.
Ela simplesmente toma nota de que as «pessoas distintas» são sempre as
mais irritáveis, mas ao mesmo tempo esforçam-se por se aproximar das
«pessoas simples», dirigindo-se a elas com uma afabilidade estridente, o
que parece hipócrita: os russos estão próximos e ninguém sabe o que o
futuro lhes reserva.
O conselheiro estatal, um advogado idoso, vive num canto isolado com a
sua mulher e filha, e mesmo aqui, com a sua cozinheira e empregada,
mantêm o estilo de vida que tinham quando viviam no apartamento de oito
assoalhadas no primeiro andar, continuam ansiosos por se distinguirem dos
outros e manterem o seu lugar na escala social… Estranhamente agora,
embora os russos, os bolcheviques, estejam por perto, não é tanto a família
do conselheiro de estado que quer preservar esta distinção de posto, mas as
«pessoas simples», as pessoas mais humildes que vivem no prédio, os
proletários… A mulher do conselheiro de estado ainda é tratada por
«senhora honrada»[8], ninguém se atreve a chamar-lhe outra coisa.
Erzsébet não conhece ninguém neste porto marítimo subterrâneo, mas,
na escuridão, neste caos tumultuoso, certos comportamentos humanos são
óbvios, e ela sente com espanto que, neste momento, tudo toma um rumo
diferente do que tinha imaginado…
Todos os tipos de pessoas vivem aqui, notáveis, gente rica, instruída,
pequeno-burgueses, um alfaiate, um bombeiro, um professor universitário
que Erzsébet conhece de algum lado, um empresário recente que enriqueceu
quando as leis e as exações fascistas erradicaram o comércio judaico, um
advogado, um dançarino que agora vende sulfato de cobre; todos os tipos de
pessoas. Num canto vive também um ferreiro doente com tuberculose, com
cinco filhos, sem mulher. E dois carvoeiros, que ainda conseguem,
teimosamente, recorrendo a reservas de álcool cuja origem é desconhecida,
embebedar-se constantemente; já não se trata de um caso de bebedeira atrás
de outra, apenas precisam de tomar um gole de vez em quando para
consolidar aquele estado calmo de embriaguez com que têm tentado
nocautear-se desde o início do cerco.
No meio daquele enxame, na multidão humana cada vez mais
desconfiada, dominada por vozes agitadas e agudas, Erzsébet percebe, sem
ser capaz de o verbalizar, que algo está a mudar na alma do povo.
Sim, algo está a acontecer nas almas de todas aquelas pessoas que são
forçadas a viver juntas, a discutir, a tremer de medo, a conversar com uma
afabilidade embaraçosa, a trocar cortesias através de dentes cerrados ou
a repreenderem-se mutuamente com uma inquietação sombria no seu olhar.
O que está a «mudar» sente-se, por assim dizer, lá fora na rua, nos becos do
quarteirão. O que está «a acontecer»? Por vezes Erzsébet pensa ter
compreendido.
As pessoas esperam e chamam por algo… mas o quê? Os russos? O fim
do cerco? Claro que o desejam com todas as suas forças; mas também estão
à espera de algo mais. O quê, então?… Erzsébet está a refletir, deitada
numa escuridão cada vez mais imunda, pegajosa, cada vez mais impregnada
de um cheiro intenso e rançoso de seres humanos; descansa ali, e não
consegue encontrar a palavra que procura. Embora não possa ser expressa
em palavras, a expetativa que se apoderou de todos é palpável. Ninguém
sabe realmente o que quer. A distinta mulher e filha do conselheiro de
estado gostariam a todo o custo de continuar a ser as distintas senhoras que
são, mas discretamente, quase sem revelar a sua posição; gostariam de
sobreviver ao cerco com este tipo de distinção incógnita. Ao almoço e ao
jantar, a senhora mais ilustre partilha ostensivamente a comida cozinhada
no seu fogão com os «pobres», com os pirralhos do ferreiro tuberculoso, e
com igual ostentação o ferreiro dirige-se à senhora mais ilustre em voz alta,
gabando-se de que ela é «a mais ilustre».
A classe alta e o proletariado estão igualmente perplexos, sem certezas.
Ninguém sabe exatamente o que as próximas horas irão trazer. O que os
comunistas vão querer, que tipo de ordem vão estabelecer, quem vai ser o
chefe, quem vai ser o servo. O conselheiro de estado chama «meus caros
amigos» aos carvoeiros bêbados e brinda-os com conhaque francês, e os
carvoeiros, cada vez que se levantam das suas camas, levantam os seus
pequenos copos cheios do licor nobre com uma mão ligeiramente trémula, e
numa voz rouca, mas forte, bebem à saúde do ilustre conselheiro de estado.
Todos têm dúvidas. Amanhã ou hoje à noite, o cavalheiro pode já não ser
realmente um cavalheiro, e o pobre homem não sabem em quem se tornará
ele. Ele próprio, um homem ilustre? Os «pobres» comportam-se
curiosamente, isto Erzsébet nota de imediato; são de uma educação
ostensiva. É como se não conseguissem ultrapassar o facto de esta
dependência complexa e misteriosa com que sempre viveram poder mudar
de um dia para o outro. A experiência, o instinto e a desconfiança estão
patentes em tudo o que dizem e na forma como atuam… uma experiência
que não remonta a dez ou mesmo cem anos, é mais antiga ainda, de mil
anos. O velhote, com a voz trémula e estridente, que na primeira noite do
cerco tinha feito um discurso sincero sobre as «bombas baratas» dos russos,
enquanto continuava a segurar o seu cachimbo frio, ouve a tagarelice que,
em momentos mais calmos, os «cavalheiros» e os «pobres» trocam,
sentados juntos num canto qualquer debaixo de uma vela. Ele pestaneja,
funga, e, prudentemente, não intervém. O seu rosto enrugado, coberto de
pelo esparso, exprime desconfiança e o sorriso que ele exibe é cauteloso.
Como se estivesse a dizer: «Eu sei o que sei. Isso também vai mudar.
Vamos apenas esperar um pouco mais.»
E Erzsébet sente que o velhote, os carvoeiros e o ferreiro com
tuberculose têm razão: o que eles sabem não se limita a essa circunstância,
não está relacionado com a terrível, mas ainda passageira, experiência do
cerco… Eles sabem algo desde muito antes, desde o início dos tempos.
E o conselheiro de estado e o professor… Há tantos deles nas caves, e,
de vez em quando, aparecem caras novas. Erzsébet não consegue
acompanhá-los, como se estivesse num comboio em movimento, onde as
características distintivas dos companheiros de viagem se desvanecem
à medida que eles vão e vêm constantemente. Em suma, os «cavalheiros», a
classe média, aqueles que ocupam o degrau mais alto ou mais baixo, têm
cada vez menos certezas a cada dia que passa. Erzsébet pensa, quase com
pesar, que não há verdadeiros «cavalheiros» na cave – são uma espécie de
pessoas ausentes neste microcosmo. Há «pessoas abastadas», as «mais
ilustres» são todas hesitantes, excessivamente afáveis, condescendentes,
demasiado familiarizadas umas com as outras e com os «pobres», estes
«queridos amigos»; todas se tornaram expansivas, como se agora, no último
momento, todas as barreiras de classe tivessem caído, e o que foi passado
em silêncio durante anos, na cave, no apartamento de oito quartos
no primeiro ou terceiro andar, no pequeno quarto alugado com vista para o
pátio, tivesse de ser discutido, explicado à pressa. Pode-se dizer que as
«boas pessoas» pensam: «Somos todos seres humanos e estamos todos em
perigo. Temos de nos compreender e amar rapidamente.» Mas os
verdadeiros «cavalheiros» – onde estão eles? Onde estão os homens de
classe? É isso que Erzsébet pergunta a si própria.
Aquele inválido no canto, pelo menos, mantém-se em silêncio. Não
tagarela, não procura a amizade dos proletários, não quer apressar-se em
alianças com pessoas de outros sectores da vida. É evidente que ele também
é um «cavalheiro»: tem um cobertor de lã, a sua camisa, a sua gravata, o
seu casaco, os seus lençóis, todos os seus artigos são refinados,
cuidadosamente escolhidos e de excelente qualidade. É um homem careca,
nos seus cinquenta anos, talvez até menos. Tem uma estranha bengala
vagamente semelhante a uma muleta, com uma ponta de borracha, e que
mantém sempre na mão junto da maca. Só sai da cama uma vez por dia, e
com grande esforço, tenta o seu melhor como se tivesse de fazer um
exercício de ginástica complicado ou um ato de circo e, agarrado à bengala
com ambas as mãos, arrasta-se em direção às casas de banho.
Não fala com ninguém, mas se lhe falam, ele sorri e responde num tom
calmo. Os poucos passos que separam a maca do buraco malcheiroso que
cento e quarenta pessoas ajudaram a sujar nos últimos dias devem significar
para ele um esforço de vontade que Erzsébet nem sequer consegue
imaginar, mas cuja tensão interior sente. É evidente que o homem está a
calcular cada movimento seu, como lá em cima no trapézio o acrobata que
faz um salto mortal: muitas vezes Erzsébet assistiu à sua luta silenciosa ao
sair da cama, como agarrar a pega do bastão, dobrar o tronco para a frente,
incliná-lo em cima dele e, ajudando-se desta forma, arrastar a parte inferior
paralisada para fora da cama. É desta forma espantosa, mas determinada,
que ele se dirige uma vez por dia para a latrina.
Ele não tem ninguém. Erzsébet não se lembra de quem o trouxe para lá
numa maca. No entanto, foram estranhos que o colocaram num canto, como
um embrulho, e depois desapareceram. O homem foi deixado sozinho, com
o seu cobertor de lã, a sua roupa fina e uma mala de mão. Ele tem uma
garrafa térmica, comida, tudo cuidadosamente escolhido… É evidente que
este homem que ninguém conhece preparou-se para o cerco, que se equipou
bem em antecipação deste empreendimento, tendo em conta a sua paralisia,
como para uma excursão extraordinária, na selva ou na mina… A garrafa
térmica, o recipiente isolado para alimentos, os artigos de higiene pessoal,
os medicamentos, tudo está à mão, como a bordo de um navio de
emigrantes, onde a situação é incerta e todos, no meio de tantos estranhos,
têm um mínimo de espaço.
O homem instalou-se a bordo deste estranho navio que é a cave da
cidade cercada; ele usa cada centímetro à volta do seu leito, é evidente que
poupa em movimentos, palavras, até olhares, porque precisa de toda a força
que lhe resta para sobreviver a estas semanas de crise. Ele não tem
ninguém; e a solidão que o rodeia é estranha, suspeita.
Todos sabem que o recém-chegado não está sozinho sem uma razão, que
não é coincidência que tenha sido ali depositado naquela noite por
estranhos. Talvez ele seja judeu. Há judeus na cave, e não poucos, toda a
gente sabe. No extremo da terceira cave, um dentista pálido está
encurralado nas sombras; é um judeu que escapou do campo de
concentração da fábrica de tijolos. Ele tem documentos falsos, isso é
conhecido, o porteiro e o responsável pelo prédio também sabem… Mas
agora há muitos que se esforçam por ajudar os judeus, e talvez no último
momento, agora que os russos estão tão perto, fechar os olhos a um judeu
escondido pode ser um «ponto positivo».
No entanto, o destino dos judeus está a tornar-se cada vez mais incerto,
mesmo agora que os russos estão a um passo de distância; sim, talvez
estejam agora em maior perigo do que alguma vez estiveram. Ninguém
sabe o que está a acontecer no gueto de Budapeste, onde os cruzes
flechadas e os alemães acabaram por prender os judeus da cidade. Quantos
estão lá dentro? Setenta mil? Cem mil? Será que já os mataram? Ou ainda
estão vivos e esfomeados? Mas há muitos mais escondidos na cidade, nas
caves dos prédios cercados, dezenas de milhares deles. Estão escondidos, e
muitos sabem disso, muitos ajudam-nos e calam-se; mas nem todos.
No vigésimo-quarto dia do cerco, Erzsébet e os habitantes da cave são
acordados durante a noite por barulhos e gritos. Tiveram um dia muito duro,
os aviões russos lançaram dezoito ataques à vizinhança, o segundo andar do
prédio foi atingido por duas granadas, os habitantes da cave dormiram mal,
em perpétuo estado de alarme. De repente, são despertados por gritos e
feixes de luz. Na divisão do meio da cave, entre colchões e camas, na
escuridão turva pelo fedor das secreções humanas, o odor das comidas, as
exalações dos corpos não lavados, no meio das pessoas a dormir enroladas
em colchas e cobertores, roncando, gemendo, oprimidas pelo medo da
morte, com nervos esgotados, atordoados pelo cheiro dos seus próprios
corpos, apareceu um estranho grupo.
Entre os colchões, é sussurrado que os cruzes flechadas chegaram para
uma visita noturna. Quatro figuras estão no meio da confusão fétida, uma
espécie de anão corcunda que se parece com um gnomo, um homem alto
vestido de casaco de couro com uma cara bexigosa a quem os outros
chamam Irmão Szappanos, e dois homens gordos visivelmente bêbados a
soltarem palavrões com uma voz rouca, talvez algozes. O irmão Szappanos
é o líder do grupo, mas o gnomo despachado parece ser a sua alma. Estão
vestidos com casacos forrados de pele e coletes de couro, a segurar
metralhadoras e lanternas com feixes de luz ofuscantes. O gnomo precede
os outros, inclinando-se para a frente, como se se sentisse perfeitamente em
casa ali, naquele mundo subterrâneo, como se estivesse no seu elemento
e no seu próprio terreno; é seguido pelo monótono e magro comandante, os
dois caceteiros, o responsável pelo prédio pálido e barbudo, e o porteiro, um
homem sempre hesitante, que até agora se mostrou atencioso e bondoso
para com os infelizes na cave. Agora caminha de forma diferente. Com
ambas as mãos, segura um pacote grande. O irmão Szappanos conhece o
porteiro, dirige-se a ele com familiaridade.
– Por aqui, à esquerda, irmão – diz o porteiro.
E o grupo caminha lentamente pela fila de colchões, onde Erzsébet e os
seus companheiros estão deitados.
Neste instante, Erzsébet tem a mesma sensação de alguns dias antes:
algo «está a acontecer». Como lá em cima, no bairro do Castelo, quando ela
se encostou à porta da casa abandonada e a palavra «sabatista» lhe veio à
mente. O porteiro é um «irmão», já todos compreenderam isso. Esta é a
segunda vez em poucos dias que ela teve de olhar um homem no rosto sem
pestanejar, como quando, no corredor escuro do prédio oposto, o sabatista a
escrutinara apontando-lhe o feixe da sua lanterna. Mesmo agora, uma luz
acesa atinge Erzsébet no rosto. O gnomo apontou-lhe o feixe, o comandante
alto inclina-se sobre ela.
– Quem é esta? – pergunta a voz rouca.
– Uma estranha – responde o porteiro.
Erzsébet coloca a mão debaixo do colchão, no meio daquela confusão
gordurosa procura os documentos falsos emitidos em nome de Erzsébet
Sós. A seguir – sem dizer uma palavra, semelhante à forma como o destino
nos comunica, lentamente, ultrapassando uma resistência e obedecendo a
outra força –, o raio de luz da lanterna do gnomo descreve um semicírculo e
passa sobre Erzsébet e os seus vizinhos que permanecem nas sombras.
A luz procura agora mais lugares, ilumina outros rostos; rostos
aterrorizados, desorientados, macerados nos vapores imundos do cerco e da
vida subterrânea, examina-os calmamente, o que leva o seu tempo, como se
os russos estivessem a lutar noutro lugar, longe, como se ainda houvesse um
estado policial na cidade, e as autoridades estivessem a vigiar, conduzindo
inspeções noturnas… É assim que o irmão Szappanos e os seus ajudantes,
atrás deles o porteiro, segurando debaixo do braço um saco cheio de
despojos, escrutinam as pessoas.
Depois afastam-se lentamente, a luz guia o grupo escuro como o clarão
frio de uma obsessão guia um louco. Erzsébet sente um arrepio gelado.
Considera esta visita noturna uma forma de delírio. Não pode ser
racionalmente concebido que os homens continuem, até ao fim, a roubar, a
destruir vidas e bens, sem um objetivo, só porque têm o poder… Nem
sequer podem usufruir dos frutos do roubo, o destino das vítimas não pode
agora influenciar o resultado do cerco… Mas então o que é que o irmão
Szappanos, o gnomo e os outros querem? Será que eles têm algum
«propósito»?
A loucura não tem nenhum propósito. O louco faz algo, fá-lo sem
propósito ou motivo, sem mais nem menos, porque pode fazê-lo: arranca os
dentes com um prego ferrugento, ou começa a gritar em norueguês, sem
qualquer sentido. Esta noite, estes doentes mentais vão «conseguir alguma
coisa».
Entram em ação, e da cave mais próxima vem um grito histérico. Afinal,
os visitantes da noite não vieram sem propósito. Ouvem-se apelos de uma
voz masculina velada depois outras vozes rosnam, ladram, juram.
Encontraram quem procuravam: e todos naquela parte da cave, cento
e quarenta pessoas em silêncio, no meio de um horror arrepiante, sabem
quem encontraram: o judeu escondido, o dentista. O porteiro «irmão» afinal
revelou o segredo partilhado por todos. Ele provavelmente recebeu uma
recompensa dos irmãos; o pacote que transportava, deve ter uma parte do
espólio. Ou foi seduzido por uma promessa, ou, simplesmente, a natureza
humana, a simples volúpia e prazer da crueldade levou-o a denunciar aquele
pobre coitado com óculos que já vivia entre eles há três semanas, lívido de
medo, numa espera angustiada que lhe faz bater os dentes.
Como, no final da caçada, uma matilha de cães se espalha sobre o animal
morto, assim os irmãos festejam o seu prémio, o seu saque e a sua presa,
com gritos de gralhas. A luz da lanterna vagueia cegamente para a cave
seguinte. Ninguém fala. Cento e quarenta pessoas estão em silêncio, apenas
a voz rouca dos assassinos zangados e maliciosos pode ser ouvida. Até a
vítima está em silêncio. O grupo abandona a cave.
Os momentos que se seguem são intemporais. O tiro, que todos esperam,
não demora muito a chegar; mas o som do disparo chega abafado, as
paredes do abrigo absorvem e neutralizam o som seco. Ninguém se mexe.
Lá estão também dois funcionários dos correios, ambos inquilinos do
edifício. Um deles, um homem de uma certa idade, é conselheiro, o outro é
gerente de um dos correios do bairro. Eles são os primeiros a dizer alguma
coisa. Como se o facto de pertencerem à mesma administração os
encorajasse a exprimirem-se: com embaraço e raiva, fazem uma espécie de
dueto agressivo, como se se acusassem um ao outro do incidente. O
conselheiro ataca primeiro, o gerente responde num tom lamuriante,
irritado, mas ao mesmo tempo humilde.
– Já lhe disse tantas vezes – ouve-se a voz trémula do mais velho na
escuridão –, e disse sempre que estão a ir longe demais…
O outro responde desesperado:
– Acredite-me, estes já não são seres humanos. Já chega.
Agora todos falam ao mesmo tempo, como se um coro percorresse as
três caves; estão a falar, a deitar fora frases desconexas. O gerente disse
qualquer coisa. «Isto é demasiado» parece a todos ser uma expressão
adequada; o gerente deu voz aos pensamentos dos habitantes da cave e, para
exprimir a sua convicção, inventou uma fórmula sedutora que tem um
efeito libertador nos espíritos. Algumas das mulheres começaram a
choramingar e a cacarejar, os carvoeiros bêbados, com certo fervor,
gritaram que queriam fazer algo, mas o professor e o conselheiro geral
impediram-nos. A expressão «isto é demasiado» torna-se uma palavra de
ordem que irrompe de cada garganta.
Agora podemos finalmente falar… sobre o quê? Libertos, mas no
embaraço e na explosão verborreica da culpa, todos veem finalmente uma
oportunidade de se livrarem de um fardo, para se assegurarem que sim,
foram cúmplices em tudo o que aconteceu até agora, mas «até este ponto,
não para além dele». Na escuridão da cave, as pessoas gritam de divisão em
divisão. Mulheres, homens, crianças, toda a gente está a gritar, a gritar
contra o porteiro, que «sempre foi um tipo suspeito», a expressar pena pela
vítima, a amaldiçoar os agentes das cruzes flechadas. Mas toda a gente sabe
que isto é apenas conversa fiada, palavras fúteis.
O que Erzsébet sente, o que toda a gente na cave sente, é que se trata de
outra coisa. A questão é: o que aconteceu realmente aconteceu, aliás perante
os seus olhos, a uma pessoa de carne e sangue que conheciam
pessoalmente; «isso já é demasiado». Se tudo isto tivesse acontecido na rua
seguinte ou no edifício vizinho, teria certamente sido «demasiado», como o
professor tinha dito novamente ontem, no intervalo entre
bombardeamentos, entre conversas e aguardentes; mas em todo o caso não
teria acontecido aqui, a um palmo de distância, por isso a responsabilidade
dos presentes teria sido menor, muito menor… assim pensaram eles. Mas
não é só o que aconteceu que é importante – eles tinham arrastado um pobre
coitado que estava no seu meio, que tinha partilhado com eles o destino do
cerco e do abrigo, e tinham-no assassinado no pátio –, mas aconteceu que
eles, os presentes, tinham tido pessoalmente algo a ver com este
assassinato… de que forma?
Pelo simples facto de estarem presentes. Entre eles e o acontecimento
não havia muro nem distância. Tinham estado presentes, tinham ouvido os
protestos ténues e gaguejantes de um homem condenado à morte, tinham
escutado, estupefactos de horror e repulsa, enquanto na escuridão o irmão
Szappanos, o porteiro, o gnomo e os bandidos arrastaram e mataram um
homem, e eles nada tinham feito… Mas o que é que eles poderiam ter feito?
Esta é a pergunta que ninguém pronuncia, mas que soa bem alto na
consciência das pessoas.
Não poderiam ter feito nada porque os «irmãos», esses assassinos,
tinham chegado armados com metralhadoras; não poderiam ter feito nada
porque eles, como testemunhas e participantes ao mesmo tempo estavam
desarmados; não poderiam ter feito nada porque o porteiro era um
informador… Mas então, toda esta agitação porquê? Não é só por causa do
homem assassinado. É por causa de si próprios que ficam tão agitados, que
atiram gritos uns aos outros, discutem, e agora tentam brutalmente
desculpar-se a si próprios… Mas quem os acusa?
Os russos? Ainda não chegaram; estão a dez, ou talvez a cem metros de
distância, e em qualquer caso quem sabe por que critérios irão julgar
situações, pessoas e responsabilidades. Além disso, como é que os russos
julgam? A sensação de inquietação assola subitamente todos os cidadãos;
porque o que ontem era apenas um artigo de jornal, um rumor derrotista,
uma invenção dos judeus e dos plutocratas bolcheviques, faz agora parte
das suas vidas, já não é notícia, mas a realidade, pela qual são responsáveis.
Eles compreenderam que o que aconteceu ontem, na Polónia, na Ucrânia,
nos campos alemães, nas caves dos quartéis nas cidades de França, Bélgica,
Holanda, Noruega, Áustria, Boémia, Sérvia, já não é «notícia alarmista» ou
«propaganda», mas sua responsabilidade pessoal.
Eles perceberam que são responsáveis. É por isso que se queixam.
Erzsébet também sente que é responsável, sente-o fisicamente. Todos
aqueles que estão vivos e que não impediram nada (mas como, em nome do
céu?) são responsáveis. Como lidar com as metralhadoras? Com os tanques
e os canhões? Talvez não com armas, mas de outras formas, opondo uma
resistência interior?… Agora eles compreendem isso.
Mas também compreendem outra coisa. Como se a captura do judeu
tivesse dado um significado, uma medida e um propósito à situação em que
viviam, tão densa, pegajosa, detestável, mas estranhamente familiar e
natural: de repente compreendem que a visita do irmão Szappanos e dos
outros carrascos, a denúncia do porteiro, o súbito manto de silêncio – como
se a guerra, esta criatura feroz, tivesse contido a respiração por um
momento e depois rugido ainda mais alto –, tudo isto estava organicamente
ligado. Pois chegou agora o momento em que a sua situação já não pode ser
mantida artificialmente e pela força. Agora têm de agir pessoalmente, caso
contrário, algo lhes acontecerá: cento e quarenta pessoas começam a agitar-
se, a preparar-se, a pôr-se em movimento, como se esta confusão humana
fosse um só corpo, com inúmeros braços e pernas.
Apressam-se e preparam-se. E então a guerra faz-se ouvir novamente…
A sua voz soa de muito perto; não muito alto, mas determinada. O seu alvo
– todos sabem – é a carne, o trigo do país. São duas horas da manhã. Ouve-
se o fogo das metralhadoras, mas não há bombas a cair; isto também é um
sinal de que os russos já devem estar algures por perto… Na agitação geral
– que é tão desprovida de sentido e de direção como a apatia e a resignação
dos últimos dias – os dois homens dos correios comportam-se de forma
estranha.
Sobem e descem, falam demasiado alto, a sua discussão é acalorada.
Nem sequer parecem reparar naquela colina de formigas estranhamente
perturbada, naquela massa de seres humanos a entrar em pânico, a discutir,
a fazer as malas, a mexer-se, a saltar das suas camas imundas, a roubar tudo
o que pode, a recriminar, a gritar e a preparar-se para sair dali… Mas para
onde ir? A visita dos cruzes flechadas e o assassinato a meio da noite
perturbaram a cave.
Mais tarde, chegam alguns fugitivos, todos desorientados, trazendo
notícias. Alguém já sabe que os russos chegaram ao edifício vizinho, estão
a lutar em frente ao portão do prédio da esquina e à entrada da cave,
enquanto os alemães, retirando-se por esse caminho, passarão pela cave, e
depois serão todos forçados a segui-los. Esta hipótese não é totalmente
implausível. Não se passa um único dia sem que haja notícias de tal
movimento forçado, quando os soldados alemães que lutam na
clandestinidade aparecem nalgum refúgio, expulsam os que lá estão para o
campo de batalha improvisado, ou seja, a rua, e durante algumas horas, ou
alguns dias, montam um novo posto militar no abrigo esvaziado
apressadamente.
Do andar superior desce um homem com notícias sinistras. Os cruzes
flechadas levaram o porteiro com eles, o «irmão» que os ajudou a levar o
espólio. O cadáver do dentista assassinado encontra-se no chão, no
corredor, em frente ao portão. No primeiro andar, no apartamento do
conselheiro estatal, cinco alemães das SS montaram um ninho de
metralhadoras na sala com varanda e de lá estão a disparar na esquina da
rua, onde os russos já montaram barricadas rudimentares.
Todos sabem que estes relatórios são verdadeiros, não são alarmistas. Os
homens reúnem-se em grupos, mexem em malas e sacos, as mulheres
sentam-se à beira dos colchões, têm a expressão desconcertada daquelas
que estão prestes a ser expulsas das suas casas, como se a cave fosse
realmente para elas o último abrigo, o último lar no mundo. E no meio desta
agitação súbita e geral, do pânico estridente que por vezes se torna
desanimado e silencioso, sem fôlego, os dois homens dos correios sobem e
descem, argumentando animadamente.
Erzsébet ouve tudo o que eles dizem. A sua discussão parece um pouco
forçada. Dois pequenos-burgueses que mesmo agora, no meio do caos, na
confusão geral, preservam fragmentos da ordem obsessiva que deu sentido
às suas vidas. Por esta altura já concordam que «isto é demasiado», e falam
do que agora estão a tentar perceber que «não foi demasiado»…
Interrompem as palavras um do outro, discutir esta questão parece-lhes de
repente muito urgente. Ouve-se pelo seu tom de voz que estão a ficar sem
tempo, e que estão cientes disso.
– Comecei a não gostar de tudo isto – diz o conselheiro – quando
expulsaram os judeus de casa e os forçaram a coser a estrela amarela sobre
si próprios. Porque já não se trata apenas da questão judaica, meu caro
amigo. Já, nessa altura, eu tinha dito ao secretário de Estado… – E
menciona o seu nome.
O chefe dos correios interrompe-o em voz alta.
– Sim, já era um exagero – diz ele com uma voz trémula, e depois engole
a saliva. É evidente que ele está a lutar contra os seus próprios preconceitos,
chegou o momento de ele dizer algo explicitamente, de tomar uma posição.
Os dois homens sentem que chegou o momento histórico em que, como
membros honrados da sociedade, são obrigados a «falar». Eles esperaram
muito tempo para o fazer, pensa Erzsébet.
– Porque já não se trata apenas da questão judaica – diz em voz alta o
conselheiro geral, e faz uma pausa para que todos ouçam o que ele diz. –
Trata-se, como devo dizer… de uma questão de humanidade.
Ele olha em volta com orgulho para avaliar o efeito das suas palavras e
para ver se ecoará a sua afirmação, que amadureceu no final de uma longa e
dolorosa reflexão e foi finalmente pronunciada superando uma forte
resistência, e que ele considera de excecional importância para si próprio e
para os outros. Mas para além de Erzsébet, a jovem e o paralítico na maca,
ninguém ouviu; os homens do carvão aproveitam a grande confusão para
esticar as mãos e roubar algo, completamente indiferentes às questões da
humanidade.
Os dois homens usam tons cada vez mais ousados.
– Eu também costumava dizer isto – afirma o gerente com a sua voz
ainda a tremer de emoção –, hoje a mim, amanhã a ti. O que é feito aos
judeus, um dia eles poderão fazê-lo a nós. Ontem estavam a carregá-los
para os comboios e, quem sabe, talvez amanhã possa ser a nossa vez.
O seu discurso é coerente, pode dizer-se que esta dúvida se tem
escondido na sua mente há muito tempo.
O conselheiro acena com a cabeça.
– Talvez ainda não tenhamos chegado a esse ponto – diz ele com cautela,
olhando à sua volta.
Depois, surpreendido:
– Sempre ouvi falar muito bem dos Correios russos. Há muita ordem lá.
Depois vão-se embora.
Na escuridão, Erzsébet sente um sorriso involuntário e doloroso a
aparecer no seu rosto. Ela quer limpá-lo, como se fosse uma espécie de suor
doentio e impuro.
– Isso não é o pior de tudo – diz uma voz feminina ao seu lado, na
escuridão.
Ela sussurra, mas com veemência, como se estivesse a gritar com a boca
tapada por um lenço. A oradora é a jovem mulher disfarçada de bandido
suburbano. Durante dezoito dias, ela passou o tempo ao lado de Erzsébet
numa estranha quietude, como alguém que finge estar morto. Estava deitada
ali, enrolada no seu lugar, mas era como se nem sequer estivesse lá. Com a
extraordinária capacidade que certos animais têm, em situações perigosas,
de se misturarem com o seu ambiente, ela tinha conseguido durante dezoito
dias e dezoito noites criar magicamente uma auréola de invisibilidade à sua
volta. Ela viveu sem fazer o menor som. Agora que a ouve falar, Erzsébet
apercebe-se subitamente que este ser vivo realizou uma metamorfose
espetacular, deliberada e instintiva, da qual os seres humanos só se tornam
capazes em situações de perigo extremo. Ela marginalizou-se desta
sociedade subterrânea que a rejeitou, e conseguiu fazê-lo sem suscitar a
mais pequena suspeita ou chamar a atenção. Não tinha ocorrido a ninguém
perguntar quem era esta mulher que só ocasionalmente, com a cautela de
um animal vadio conduzido por uma barriga vazia, se aproximou da
cozinheira comunitária para roubar um prato de sopa de feijão.
Erzsébet nem sequer se lembrava de alguma vez ter visto a sua estranha
companheira sair à procura de água ou ir à latrina. E agora abriu a boca.
Fala como se todo o seu corpo e a voz do seu destino lhe estivessem a
dizer que chegou finalmente o momento em que o pode fazer. Ela fala
porque esteve calada durante muito tempo, porque o seu corpo está cheio do
que tem para dizer, cheio de uma espécie de veneno que está agora
a transbordar dos seus órgãos. Erzsébet não ficou surpreendida ao ouvi-la.
Durante todo esse tempo, esse silêncio pareceu-lhe eloquente, ela sabia que
a mulher estava escondida, que tinha fugido para algum lugar, que o seu
vestido era um disfarce, que o seu agachamento num canto era uma
encenação deliberada. Ela também sente que chegou finalmente o momento
em que pode quebrar o silêncio.
Não são apenas os homens dos correios que têm a sensação de que «já
chega». É como se os habitantes da cave se estivessem a preparar para algo
extremo, como uma expatriação em massa, uma revolução, algum
empreendimento carregado de consequências imprevisíveis… Chegou o
momento; talvez sejam os alemães que encontrarão em breve uma solução,
ou talvez os russos; o que é certo, porém, é que agora se pode falar.
Por agora apenas com veemência contida, como esta mulher. É como se
as pessoas na cave tivessem enlouquecido e começassem a despir-se devido
a um calor insuportável que queima os seus corpos, como se um fogo
tivesse deflagrado subitamente na cave, e já não pudessem esperar ou
perder tempo com os preparativos: todos eles dizem o que foi mantido em
silêncio, e não apenas ontem ou nos últimos vinte e quatro dias, mas
também no passado, durante anos e anos, ao longo do curso doloroso da
vida. É assim que a mulher fala, e Erzsébet pergunta-lhe sem mostrar
surpresa:
– O que é que foi pior?
Estão ambas deitadas de costas, na mesma posição em que estiveram
durante aqueles dias e noites intermináveis, naquela inatividade particular
que é tão cansativa como um grande esforço físico. É a primeira vez, agora,
que falam uma com a outra, porque agora «já se pode». Claro que o homem
na maca, o vizinho à sua direita, a mulher à sua esquerda e a própria
Erzsébet já tinham dito algo uns aos outros: limitaram-se a palavras
adequadas à situação na altura, sugeriram alguma forma de mitigar a
miséria da vida subterrânea, discutiram sobre os ataques, ruídos do mundo
exterior, ajudaram-se mutuamente em caso de necessidade, se pudessem
partilhar água e comida… Mas nenhum deles tinha prestado particular
atenção a estas coisas. Até então, nenhum dos três se tinha alguma vez
dirigido pessoalmente aos outros; nem sequer sabiam os seus nomes.
Nomes, personalidades, tudo se tinha desvanecido na cave, como se
todos participassem naquele atroz baile de máscaras subterrâneo envolto
num denso nevoeiro! No entanto, os três naquele canto, embora limitados a
algumas frases banais e a contactos esporádicos e superficiais, sabiam que
estavam unidos por uma forte solidariedade.
No meio de pessoas barulhentas, cada dia mais e mais rudes, que
pareciam esquecer e repudiar sem restrições todas as convenções sociais, no
meio daquela sociedade subterrânea que se despojava com pressa neurótica
de toda a frágil, fugaz e superficial aparência de «civilização» e boas
maneiras, os três, através das suas trocas de banalidades, sabiam que tinham
muitas coisas em comum. Nestes dez meses, Erzsébet aprendeu que se pode
entrar em contacto com as pessoas, mesmo sem falar. Em dez meses, e no
caos dos últimos vinte e quatro dias e noites, aprendeu que há uma forma de
fazer contacto entre seres humanos que é mais percetiva e fiável do que a
fala, feita de olhares, silêncios, gestos, e mensagens ainda mais subtis; é a
forma como um ser humano, no seu íntimo, responde ao apelo de outro,
aquela cumplicidade silenciosa que, no momento do perigo, dá à pergunta
silenciosa uma resposta mais inequívoca do que qualquer confissão ou
argumento, e cujo significado é simplesmente este: estou do vosso lado,
sinto o mesmo, partilho da vossa preocupação, todos concordamos…
Este entendimento mudo é mais convincente do que qualquer outra
coisa. O homem é «isto» ou «aquilo», ou seja, está de um lado ou de outro,
por isso ou está do lado dos agressores cujas hordas selvagens se apressam
como canibais ao assalto, balançando os seus tacos; ou, do outro lado, o dos
lesados, dos perseguidos, ou pertence simplesmente à massa incalculável
daqueles que pensam o contrário… Pois quanto mais selvagens e
estridentes se tornam os gritos da manada de carrascos, mais grossa e
indignada se torna a multidão que está do outro lado e reúne todos aqueles
que «não pensam assim».
Erzsébet sabe agora que isto não é suficiente; não é suficiente «pensar de
forma diferente»; chega um momento na vida em que também se deve agir
de forma diferente. Não basta pensar algo; esta «diversidade» em algum
momento também tem de ser expressa sob a forma de palavras ou ações…
O conselheiro geral continua a tentar regatear, pensa de passagem Erzsébet,
espera que os correios russos sejam «fiáveis», e que, consequentemente
para ele, o fiel funcionário dos correios, haverá definitivamente trabalho, e
bom trabalho sob o novo regime.
Mas esta mulher começou agora a falar. Depois de trocar apenas frases
ocasionais, ela pronunciou as suas primeiras palavras reais, aquelas que lhe
dizem respeito pessoalmente, que se elevam do fundo da sua alma e
consciência.
– O pior – diz a mulher – não é quando eles aparecem do nada,
inesperadamente. Quando se está apenas com medo, isso não é a pior coisa.
Quando eles vêm de repente e levam alguém para o matar, isso também não
é o pior. Não dura muito tempo… Há pior.
Aquele sussurro ardente, que apenas dois deles, Erzsébet e o seu vizinho
na maca, conseguem ouvir, passa pelo disfarce, pela armadura da mulher,
como uma gota de sangue que escapa de um corpo ferido.
– O que é que é pior? – pergunta Erzsébet novamente.
A mulher fica em silêncio. Numa voz velada e quase neutra, diz ela:
– O médico.
Erzsébet fica surpreendida. Este diálogo produz nela a impressão de ler
um livro do qual um rigoroso censor apagou todas as frases supérfluas,
deixando apenas informação crua que comunica o essencial, o sentido
profundo.
– Qual médico? – pergunta Erzsébet com o mesmo desprendimento
cúmplice, como se ela compreendesse perfeitamente o que a mulher quer
dizer e também o que não disse, como se as condições, as premissas, as
circunstâncias já tivessem sido discutidas, e agora é possível passar
abertamente para as conclusões.
– O médico do campo – diz a mulher simplesmente. E agora Erzsébet
compreende.
Ela fica em silêncio. Na cave, o barulho tornou-se insuportável, como na
ala de uma clínica psiquiátrica onde os pacientes se tinham amotinado
subitamente. A voz da mulher consegue chegar a Erzsébet superando aquele
barulho louco, neutro, calmo. Mas o seu tom desprendido é mais chocante,
mais atroz do que se ela tivesse gritado. Nessa voz queima uma chama sem
calor, sem luz, sem brasas, e ainda assim queima. Erzsébet não lhe pergunta
que médico ou que acampamento, porque já compreendeu.
Sem precisar de ser incitada, a mulher continua a sua história, num tom
coloquial:
– Aqueles que foram colocados desde o momento em que chegaram,
juntamente com os velhos, as crianças e os demasiado fracos, foram os que
melhor se saíram. Foram imediatamente levados para os duches. Na manhã
seguinte, já eram cinzas, não tinham ouvido nada. Mas aqueles que foram
enviados para o trabalho antes, todas as semanas tinham de ir ao médico, e
isso era péssimo. Porque eles sabiam o que ia acontecer. Foi quando o
médico levantou a mão.
A mulher permanece impassível ao contar estas coisas, e Erzsébet não só
ouve, mas também vê tudo o que diz; através das suas palavras, vê «o
médico a levantar a mão».
– Era uma pessoa muito educada – continua a mulher. – Ele nunca
discutiu com ninguém, e não levantou a voz. Ele era alto, usava um
uniforme, tinha óculos, e olhos azul-claros e calmos. Quando era a minha
vez de trabalhar para ele, chamava-me sempre Fräulein. Bitte, Fräulein.
Nunca de outra forma. Mas era cortês mesmo para com os médicos judeus,
mesmo para com os médicos polacos que foram escolhidos para trabalhar
com ele. Não gritava como as SS, nunca magoava ninguém, não tocava em
ninguém nem mesmo com um dedo. Talvez tivesse sido melhor se tivesse
gritado – diz a rapariga, levantando um pouco a sua voz. – Essa disciplina
silenciosa, sabe? Essa foi a pior, pior do que qualquer outra coisa.
Erzsébet compreende. Ela percebe as palavras da mulher não só com o
seu nervo auditivo e mente, mas com todo o seu corpo, mesmo com as suas
mãos e pernas.
– No campo, claro, já se sabia o que queria dizer se o médico levantasse
a mão. Todas as semanas ele ficava ali com os seus ajudantes no meio da
grande sala, e todos passavam por ele, nus, homens e mulheres, e ele apenas
os observava, com cuidado, conscienciosamente. Ele era uma pessoa muito
conscienciosa – diz a mulher com uma espécie de estranha admiração. –
Tudo o que ele tinha de fazer era olhar para o meu pai para o mandar
diretamente para os chuveiros. Eu estava no outro grupo, com os jovens, do
outro lado. Tínhamos chegado juntos, mas em duas carruagens diferentes. O
meu pai não me viu quando saímos e eles alinharam-nos, e essa foi uma
grande sorte.
Ela agora fica em silêncio. Erzsébet espera. O tom da mulher é sempre
descontraído, coloquial. Erzsébet deixa passar algum tempo, depois atreve-
se a perguntar:
– Porque é que foi uma grande sorte?…
A jovem responde prontamente:
– Porque não se pode prever o que vai acontecer nesse momento, logo
depois de sair do vagão, quando os membros de uma família se encontram
de novo por acaso no campo, e o médico os examina e lhes acena para
ficarem à direita ou à esquerda… O meu pai era um homem muito
disciplinado. Um oficial do exército. Era um oficial no ativo, e os oficiais
no ativo, nos velhos tempos, foram educados para a disciplina rigorosa em
Wiener Neustadt, no reinado de Francisco José. Mais tarde, soube de
algumas pessoas que estavam na sua carruagem, que até ao último minuto
ele trabalhou arduamente, tentou manter o moral dos outros, confortar e
convencê-los de que tudo iria correr bem, afinal os alemães são pessoas
civilizadas; eles iriam trabalhar para eles, disse ele. Ele tinha viajado com
um grupo de crianças, vindas de um orfanato judeu. Nessa noite enviaram-
nos para a câmara de gás, a ele, aos idosos e às crianças, todos os que eram
inúteis. Mas, nessa altura, isto ainda não era conhecido… Disseram que os
estavam a levar para o duche. Quem sabe o que ele teria feito se me tivesse
visto do outro lado, entre as mulheres. Porque uma senhora idosa, com
quem eu tinha feito a viagem, viu a sua filha do outro lado, chegando num
outro comboio, ficou chocada e saiu da fila. Isso foi um erro… – diz ela
placidamente.
Erzsébet reage automaticamente:
– Porque é que foi um erro?…
A resposta vem imediatamente:
– Porque não estamos autorizados a sair da fila. Havia seis mil pessoas
na fila, nuas, está a ver? Uma mulher SS aproximou-se imediatamente da
velha, desatou o cinto de couro que usava à volta da cintura e estrangulou-a.
Agora os dois homens dos correios passaram à frente delas, por isso
baixaram a voz; passando, diz o gerente:
– Na Rússia eles também dão juros sobre os depósitos.
E o conselheiro responde prontamente:
– Dois e meio por cento. – Depois acrescenta, num tom de esperança:
talvez até três.
Erzsébet pergunta agora:
– Estrangulou-a diante de seis mil pessoas?
A mulher, num tom didático:
– Porque ela tinha saído da fila. Isso não é permitido. Mas o médico
nunca fez nada do género. Apenas observava, com cuidado, com os seus
olhos azuis, com o olhar que só pode vir de alguém que sabe perfeitamente
para onde está a olhar. Conhecia o corpo humano como poucos. É também
verdade que ele tinha muita experiência. Tinha olhado para centenas de
milhares de pessoas nos últimos anos, talvez até um milhão. Podia-se ver
que não havia segredos para ele, como um joalheiro, sabe? Talvez apenas
um joalheiro saiba avaliar um metal como aquele, num único olhar, mesmo
sem ferramentas, para julgar se é genuíno ou falso, se se trata de sucata ou
de metal precioso. Da mesma forma, o médico conhecia o corpo humano.
Um olhar era suficiente para ele saber de imediato se uma pessoa estava
doente ou saudável, se estaria curada em mais ou menos de oito dias.
Aqueles que estariam curados em menos de oito dias, ele enviaria para o
hospital. Também me mandaram para lá. No hospital não se estava mal. Se
não ficássemos na ala experimental, não havia problema, tínhamos uma
cama limpa e éramos mais bem tratados do que no campo. Havia todos os
medicamentos de que se precisava para ficar bom… claro que só se se
ficasse bom dentro de oito dias. O comité ia ao hospital todas as semanas.
Nesse dia, os doentes receberam melhor comida, e por essa altura já
sabíamos… À cabeça da comissão estava sempre o médico, ele parava em
frente das camas, depois levantava a mão e acenava com a cabeça: direita
ou esquerda, compreende? – relata a mulher em voz mais alta.
Ela diz isto num tom impaciente, quase gritando; mas como há tanto
barulho na cave, ninguém a ouve.
A matéria humana imunda que fermenta aqui há semanas, na miséria do
cerco, nestas últimas horas, parece quase ferver. Todos estão a discutir.
– Os alemães estão aqui – anuncia o professor palidamente no limiar da
cave.
Ninguém o ouve.
– Aqui, onde? – pergunta o chefe dos correios num tom beligerante.
E o conselheiro geral acrescenta:
– Nós não vamos embora. – grita com raiva. – É uma vergonha absoluta!
Queremos ficar aqui!
As suas palavras perdem-se nesse barulho sem sentido. Agora Erzsébet
ouve novamente a voz da mulher:
– Imagine um homem calmo, que conhece o corpo humano, que sabe
quanta força de trabalho ainda resta nesse corpo, que nunca comete erros.
Ele sabe quanto vale um corpo humano em quilos, nervos, dias, calorias.
Durante anos, ele observa corpos nus, judeus, polacos, holandeses, sérvios,
belgas, noruegueses. Ele também sabe quantos meses ou semanas a força de
um corpo irá durar. Ele sabe. Da mesma forma que um sem-abrigo não deita
fora um único trapo, porque sabe que até isso vale alguma coisa, pode fazer
dele papel, da mesma forma o médico sabe o que vale um polaco magricela
ou um húngaro de cinquenta anos. Então ele levanta a mão e acena. Depois
de ver este gesto muitas vezes, percebi até que ponto os alemães são um
povo musical. Não estou a brincar, estou a falar a sério. Eles gostam muito
de música. O médico, quando podia, ligava o seu gramofone, tinha uns
discos maravilhosos na cirurgia, Bach na atuação da Filarmónica de
Londres, e Mozart. No gesto com que indicava esquerda ou direita, câmara
de gás ou algumas semanas extra de trabalho, havia algo que fazia lembrar
um maestro. É inegável… Só um músico pode levantar a mão assim, num
gesto suave e enérgico ao mesmo tempo, cheio de ímpeto, um maestro que
levanta a mão sente e domina o ritmo… percebe? – diz a mulher, agora em
voz mesmo muito alta.
À entrada da sala abobadada central está o responsável pelo prédio. À
sua direita e à sua esquerda estão dois soldados alemães. Lançam a luz
ofuscante das suas lanternas na cave. Têm capacetes, metralhadoras nas
ancas, diferentes tipos de armas nos cintos, granadas de mão, punhais.
Ficam em silêncio, como polícias que têm de manter a calma na multidão
durante os distúrbios públicos.
– Dentro de dez minutos todos devem sair da cave – diz o responsável
pelo prédio em voz rouca, asfixiado com angústia. – Vamos passar para o
prédio vizinho através da saída de emergência. Podemos levar a nossa
bagagem connosco.
Os dois alemães ficam ali sem dizer uma palavra. No silêncio surdo, que
se segue ao anúncio, durante alguns segundos, como se uma mão horrenda
tivesse agarrado as pessoas presentes pela garganta, Erzsébet sente ter
recebido uma ordem. E a ordem é simplesmente esta: imediatamente e a
todo o custo ela deve sair dali, mas não com os outros através da saída de
emergência para a cave do prédio vizinho, não, ela deve atravessar aquela
multidão desesperada, passar pelos alemães armados com metralhadoras,
sair do prédio, atravessar a rua e ir para o sabatista, porque o seu pai está
em perigo. De repente, tem a sensação de que o espaço, o tempo, a noite, a
guerra já não conta para nada; através das paredes da cave, através da noite,
a única coisa que conta é que o seu pai está em perigo, e ela tem de chegar
até ele.
Com um gesto mecânico, baixa-se e procura na escuridão a sua mala de
mão, no chão manchado. A jovem também se prepara, e continua a falar…
Fala com indiferença, como se este anúncio, esta ordem dos alemães, este
esvaziamento da cave fosse um acontecimento banal, um episódio
desinteressante ao qual não vale a pena prestar atenção… É como se numa
multidão, movida pelos semáforos que controlam o tráfego na rua,
começasse a andar mecanicamente com os outros ao ver o sinal «livre»…
– Temos de ir – diz ela de passagem –, mas já não falta muito.
Está a pegar nas sua coisas.
– Sim, temos de ir – diz Erzsébet também.
Levanta-se, com a mala na mão, pronta para partir. E, nesse momento,
sente uma mão ossuda agarrar-lhe a mão direita acima do pulso, na
escuridão, com um movimento suave, mas firme.
O tato não é desagradável. O gesto é suave, mas tão firme como quando
um homem sério diz algo em voz baixa, mas com todas as implicações. É o
vizinho da esquerda que aperta assim a mão de Erzsébet, o homem calado
e deitado na maca.
– Não se vá embora – diz agora a voz de forma tranquila.
– Tenho de ir – repete Erzsébet, mas não se mexe.
– Fique, por favor – reitera o homem. – Acho que é melhor ficar. Ou,
pelo menos, espere mais um pouco – diz calmamente, em tom simpático,
sem suplicar, mas com uma força convincente e séria.
Erzsébet não responde, mas pela resistência do seu corpo a mão estranha
sente que a jovem mulher quer sair:
– Vai haver agora uma grande confusão. Eles irão aglomerar-se, e é
possível que os alemães disparem no meio. Se quiserem partir a todo o
custo, podem fazê-lo, mas mais tarde, juntamente com os últimos. Não
tenham pressa.
Fala como se estivesse a explicar algo lógico, pode dizer-se, pelo seu
tom, que é a voz de um conferencista, de alguém habituado a dar lições, a
explicar fenómenos, cuja função é comunicar de forma didática e
convincente.
– Devo ir ter com o meu pai – diz Erzsébet agora impacientemente. E o
homem, com calor espontâneo na voz, como alguém que se regozija com
boas notícias:
– Então ele está vivo?…
Erzsébet procura na escuridão os olhos do homem:
– Ele está vivo… Como sabe quem é o meu pai?
O homem responde calmamente:
– Eu sei quem é. Pensava que ele estava morto…
Ele fala num tom neutro. Erzsébet lembra-se agora de que também tinha
ouvido aquele rumor sinistro algumas semanas antes: a notícia espalhou-se
na cidade de que o seu pai tinha sido levado e assassinado pelos cruzes
flechadas. Erzsébet regozijou-se com essa notícia falsa na altura, porque
esperava que ela desviasse a atenção dos cruzes flechadas em relação ao seu
pai.
– Há três semanas ele ainda estava vivo – diz Erzsébet, e agora também
fala num tom alheio, como se a calma do estranho a obrigasse a acordar do
estado sonâmbulo em que tinha caído pouco tempo antes. – Tanto quanto
sei, ele ainda está vivo. Mas penso que está na altura de ir ter com ele. Ele
não está muito longe…
O homem interrompe-a.
– Esteja perto, esteja longe – diz ele –, agora não se mexa. Preste
atenção. O que se passa agora, é o pânico. Olhe à sua volta. Tudo o que vê é
o pânico. O pânico também está dentro de si. É por isso que quer ir ter com
o seu pai.
A outra vizinha de Erzsébet, a jovem mulher, levanta-se do seu colchão
com a bagagem na mão. Ela não ouviu a conversa deles. Visivelmente
fechada nas suas memórias, ela não consegue prestar atenção a mais
ninguém.
– Vamos? – pergunta a Erzsébet de passagem, como se sair dali fosse a
coisa mais natural do mundo, uma simples excursão, altura de visitar
alguém, ou ir ao mercado, ou a um encontro secreto. Ela fala, move-se, age
como se nada na vida a pudesse surpreender mais, como se tivesse visto
tudo e estivesse pronta a aceitar qualquer coisa, mesmo o facto de os
alemães estarem agora a persegui-los e a mandá-los para fora.
A situação apresenta-se a Erzsébet como estranhamente familiar, como
se fosse um sonho, como se já tivesse vivido no passado o que está a
acontecer no presente. Ela lembra-se do nome dado ao fenómeno: «a
memória do presente», é o que os neurologistas e psicólogos lhe chamam…
Erzsébet conhece o fenómeno por experiência própria e por ter estudado o
fenómeno em livros. Já o experimentou muitas vezes no passado, desde a
infância; mas nunca tão fortemente, com esta impressão intensa da
realidade.
A situação extraordinária, a cave escura, as pessoas em fuga, os soldados
alemães armados com metralhadoras, silenciosos, sombrios, tudo lhe soa
familiar. Mesmo a mulher que de repente começou a falar, a contar-lhe num
tom calmo, coloquial e natural – mas Erzsébet sabe muito bem que esta
«naturalidade» é um sintoma de um estado de espírito próximo da loucura –
as suas memórias do acampamento e do médico que, com um gesto de
maestro, levantou a mão para dar sinal às pessoas para irem para a esquerda
ou para a direita… E agora também este homem que tinha começado a
falar, este homem deitado numa maca, paralisado, taciturno, que, para além
de algumas trocas de banalidades, tinha estado em silêncio durante vinte e
quatro dias, durante todo o tempo do cerco.
Outra voz começou a falar, para avisar Erzsébet que tinha chegado o
momento de sair dali, de procurar o seu pai, de estar com ele nas horas que
se seguiam, aconteça o que acontecer… Tudo isto é simples, familiar,
presente e real, mas assemelha-se a um delírio, como uma loucura ou um
sonho. Esta situação extraordinária, este «fim de algo», esta consciência
tecida de sonho e realidade é a única certeza que Erzsébet possui; mais
certa, mais tangível, mais real do que as pessoas à sua volta, os alemães
armados e as paredes húmidas da cave. É apenas num sonho que
o inconcebível, o improvável se torna natural e simples; quando cresce a
barba às mulheres e começam a voar, sem asas e sem motor; ou quando de
repente alguém começa a falar na língua do sonho, para enunciar, naquela
situação extraordinária, uma verdade banal e, no entanto, de conto de fadas,
que talvez nunca soubesse formular…
A mulher começou a falar, mas Erzsébet sabe que esta pessoa disfarçada
no último período nunca deixou de falar sobre «aquilo», sobre a única
realidade que enche o seu corpo e alma: sobre o campo, e como tinham
matado o seu pai diante dos seus olhos, sobre a mulher SS que tinha
estrangulado uma mulher velha com um cinto de couro, sobre o médico que
adorava música e que ocasionalmente levantava a mão. Ela começou a falar,
com a mesma facilidade com que as mulheres conversavam entre si e
trocavam confidências, livremente, sem reticências, porque agora é
possível…
E o homem também começou a falar; do pânico, do impulso
inconsciente que agora agitava os corpos das pessoas… Ele começou a
falar, e sabe de onde veio Erzsébet, sabe o nome do seu pai, porque todos
têm estado igualmente silenciosos nas últimas semanas, no turbilhão deste
baile de máscaras subterrâneo; mas agora tinha chegado o momento de os
dançarinos pararem de girar sem sentido e arrancarem as suas máscaras
com um gesto claro.
O homem solitário tinha-se mantido em silêncio, não falou igualmente
sobre «aquilo», conversava sobre coisas indiferentes, sobre as bombas,
perguntando-se se a água seria suficiente para a noite ou se o serviço postal
russo era fiável; e, entretanto, todos se mantiveram em silêncio. Esse
mutismo comprimia e incendiava tudo o que agora tinham para dizer uns os
outros com palavras: o segredo da sua existência, o sentido cruel da
clandestinidade e o pesadelo da sua situação atual.
O que é isto, senão sonho ou loucura?, pensa Erzsébet. Na realidade
deve ter pensado em voz alta, porque o homem responde.
– No último momento não se podem cometer erros – diz ele em tom de
professor, mas simpático e íntimo. – A situação não pode durar muito mais
tempo. Não será melhor na outra cave. Fique aqui.
Senhor professor, pensa Erzsébet e também diz:
– Sim, senhor professor.
O homem não rejeita o tratamento. Agora, para Erzsébet, é como se, na
confusão onírica que se tornou a sua vida nas últimas semanas, tivesse
finalmente chegado o momento em que os dançarinos daquele infernal baile
de máscaras se revelam. Ninguém esconde mais o seu rosto, o seu nome, a
sua personalidade, ninguém sente a necessidade de dar explicações… Esta é
a hora da verdade, pensa Erzsébet. Ele é o professor, e eu já não sou
Erzsébet Sós, mas uso o nome do meu pai.
– O que vai acontecer ao meu pai? – pergunta ela mansamente e alto,
como se o professor, apesar da miséria da sua situação e da paralisia, do
auge da sua autoridade, pudesse responder a esta pergunta. Pois, mesmo
nestes momentos, emerge uma espécie de hierarquia entre as pessoas.
Erzsébet sente que este homem, que passou todo o tempo do cerco
mantendo-se em silêncio na companhia dos seus vizinhos, trocando apenas
algumas trivialidades com eles, tem o direito de exigir algo… Que direito?
É difícil dizer, mas é como se, à sua maneira, usasse um uniforme, ou
tivesse insígnias como os alemães. Talvez ele também tenha uma arma,
reflete Erzsébet; não uma metralhadora, mas um outro tipo de arma.
E o homem, como se respondesse às suas perguntas – não apenas àquelas
que foram formuladas em voz alta, mas também a todas as outras que
Erzsébet apenas tenciona colocar nesse instante – diz calmamente:
– Não podemos saber. Não me atrevo a tranquilizá-la. Mas é provável
que seja salvo, se tiver conseguido salvar-se até agora.
Na sua ansiedade, Erzsébet agarra-se a estas palavras tranquilizadoras:
– Acha que sim?…
O homem está a refletir. Pesa cada palavra, ele sabe que as palavras são
armas, como metralhadoras.
– Não é impossível – diz ele lentamente – que os seres humanos
possuam a capacidade de sentir algo que transcenda a distância, o espaço e
o tempo. Sem dúvida que estes tipos de sensações existem… Alguém envia
uma mensagem, telefona, pede algo, e outra pessoa à distância ouve esta
chamada. Mas não conheço o seu pai… Tenho um grande respeito por ele,
mas não o conheço pessoalmente. Eu não sinto nada em concreto.
Erzsébet pergunta angustiada:
– Mas então porque é que me tenta tranquilizar dizendo que ele será
salvo?
Com uma voz carinhosa, como se falasse com uma criança, o homem
diz-lhe:
– Porque eu faço cálculos.
Erzsébet, quase com raiva:
– Porque é que faz cálculos?
E o homem, em tom paciente e cortês:
– Porque faz parte do meu trabalho.
A cave está quase completamente vazia. As pessoas, no meio de choros e
lamentações, são empurradas para fora em fila indiana. Deixam para trás
camas abandonadas, bagagem desembrulhada. Os dois alemães e o
responsável pelo prédio – como figuras sem movimento numa fotografia de
grupo fantasmagórica – ainda estão parados no meio do círculo da luz da
lanterna; os soldados apontam os canos das suas metralhadoras para as
costas das pessoas que passam pela sua frente. Erzsébet gostaria de
responder ao homem, mas agora não pode prestar atenção a nada além dos
dois alemães. Um deles é muito jovem, não mais do que dezoito anos. É um
rapaz de cabelo castanho, curto, sem barba, mas a penugem de adolescente
só cresce aqui e ali no seu rosto, em pequenos tufos de cerdas. Ele é pálido
e sério. Há repugnância e horror no seu olhar, enquanto aponta o cano da
sua arma para as pessoas que passam por ele. Aparentemente tem medo, é
muito jovem, não compreende nada.
O outro alemão tem uma aparência mais militar, talvez seja um
prussiano, alto, louro, tem cabelo rapado, o seu rosto acabado de barbear,
mas também tem cicatrizes de duelos causados por uma faca: na vida civil
ele deve ser um estudante, herói das cantinas. Este não tem medo. No seu
rosto aguçado, um sorriso satisfeito e altivo testemunha o prazer que nele se
sente, como se o que se passa fosse divertido, uma grande brincadeira, uma
magnífica distração: a cave, aqueles infelizes que fogem como ratos de
esgoto, o cerco, os confrontos com os russos, o perigo de morte… Sente-se
à vontade, está a pavonear-se na ribalta, vê-se que dificilmente consegue
abster-se de disparar algumas balas de metralhadora contra os fugitivos…
Ele está satisfeito e confiante nesta situação, não é a primeira vez que isso
lhe acontece, comporta-se como um artesão na sua oficina, no exercício
competente do seu ofício.
– Por ter feito cálculos, sabe que o meu pai ainda está vivo? – pergunta
Erzsébet quase a sussurrar.
Falam agora em voz muito baixa, porque já não se ouve o rebuliço das
pessoas que se afastam, pelo que temem que os alemães os ouçam.
– Não sei, mas espero que sim – responde o homem num tom neutro e
monótono, e ainda mais tranquilizador do que qualquer encorajamento. Esta
tranquilidade irrita Erzsébet e ao mesmo tempo infunde-lhe uma grande
confiança. – A probabilidade é elevada. Se ele estiver aqui, nesta zona, só
lhe poderá acontecer um acidente… Mas agora acabou – diz ele
assertivamente. – É por isso que a aconselho a ficar. Eles não vão lutar aqui.
Se conseguir manter-se em silêncio, não vão reparar em nós e vão partir. Se
for com os alemães, eles vão empurrá-la à frente deles para novas zonas de
combate… É mais sensato ficar aqui.
Percebe-se que ele não só encoraja Erzsébet mas também está a discutir
consigo próprio. Ele discute e tomou a sua decisão.
Mas ele é paralítico, pensa Erzsébet com súbita suspeita. Não quer ficar
sozinho, também não pode sair daqui. É por isso que ele quer convencer-me
a ficar.
De repente o homem, num tom mais frio, mais desligado, quase formal
diz:
– Mas se pensa que o prédio ao lado é um lugar mais seguro, por favor
vá.
Erzsébet tem vergonha. Nesses momentos, palavras e pensamentos são
indistinguíveis.
– O senhor Professor, vai ficar aqui? – pergunta ela, como uma
estudante, num tom deferencial.
E o homem, calmo e frio:
– Mesmo que quisesse, não posso partir. Estou paralisado. Mas não se
preocupe comigo… Por favor, não se preocupe, a sério – sussurra ele agora
num tom amigável. – Estou preparado para isso.
Volta a deitar-se na maca, descansa a cabeça na almofada e larga o pulso
de Erzsébet, como alguém que, finda uma discussão, não tem mais nada a
acrescentar.
A outra companheira parte agora sem dizer nada. Para em frente da cama
de Erzsébet; há um estranho brilho nos seus olhos, gélido e hostil.
– Então não vem? – pergunta ela com voz rouca. – Faça como quiser.
Nas suas palavras ressoa uma profunda indiferença, quase ódio. Erzsébet
sente que esta mulher fala com ela de longe – para ela, para os outros na
cave, para todos, para o mundo inteiro – como uma pessoa que sofreu um
trauma lacerante, por isso separa-se para sempre do resto da humanidade.
Fala de longe, mesmo neste momento, num tom impessoal, como os loucos;
fala da outra margem, de onde, uma vez desembarcada, tudo o que a vida
ainda pode reservar-lhe lhe parece indiferente. O ódio surge nas suas
palavras, um ódio acendido pela tensão da fuga iminente. Ela já
experimentou algo, algo mais do que já tinha dito antes… mas o quê? Os
seres humanos, pensa Erzsébet.
Ela experimentou aquilo que os seres humanos são capazes de fazer
quando já não há nenhuma lei, religião ou regra que os prenda. E agora está
completamente indiferente ao que a próxima meia hora trará, já nem sequer
tem medo dos alemães, não mais do que tem tido de bombas e granadas
durante os últimos vinte e quatro dias. Ela já deve ter conhecido outros
perigos, então agora nada lhe importa que os homens ainda possam
inventar… Ela parte assim, sem se despedir, quase indiferente, com a sua
bagagem na mão, ela passa ao lado dos alemães que a mantêm debaixo de
olho.
Nos momentos que se seguem, Erzsébet e o paralítico sabem que o seu
destino está a ser decidido. Os alemães olham à sua volta. Movem-se
lentamente, para a cave vazia, dá para ver os seus olhares mecânicos,
apenas os olhos do mais novo refletem repugnância e um medo insidioso.
Desempenharam a sua tarefa, tiraram os moradores da cave; ou assim
pensam eles. O líder, pálido como a morte na luz violenta, parte para trás
dos outros. O canto em que Erzsébet e o homem se agacham é escuro. O
alemão louro inclina-se sobre uma bagagem semiaberta e abandonada, com
a ponta da faca vasculha a roupa e os restos de comida, ele tem um ar
reticente, como se estivesse a espetar o dedo numa matéria impura. Dois
apitos afiados ressoam na escuridão. Depois tiros; tiros estranhos, nunca
ouvidos, muito próximos, soando de forma diferente do que Erzsébet
conheceu até agora. No mesmo instante, de longe, da saída de emergência
da cave, Erzsébet ouve a voz da mulher que tinha saído pouco tempo antes,
ela grita: «… libertação!». Ela provavelmente disse outra coisa, mas só esta
palavra chega a Erzsébet. É a voz de alguém a gritar num estado de
inconsciência.
Aos apitos, os alemães começam a correr em direção à saída. Esquecem-
se da lâmpada no chão da cave; a luz violenta espalha-se pelo chão de pedra
como óleo queimado.
A cave está vazia. Erzsébet continua a ouvir na escuridão. Uma palavra
ressoa nos seus ouvidos e ela di-la, em voz alta, como se respondesse à
escuridão: «Libertação.» O homem não reage. Ambos se sentam de costas
contra a parede na cama ignóbil. O homem mantém os braços cruzados e,
nesta posição, estica a orelha. Os tiros estalam não muito longe dali; numa
das caves ao lado, alemães e russos estão a ter um encontro próximo.
O homem inclina-se ligeiramente para a frente, como se apanhasse o que
está a acontecer com todo o seu corpo doente, e não apenas com os seus
olhos e audição. Só depois de algum tempo é que ele parece recuperar os
sentidos e responder ao grito da mulher e ao eco de Erzsébet:
– O que é que ela disse?… Sim, acho que já estão perto.
Ele espreita para a escuridão. Erzsébet desliza no colchão e chega mais
perto do homem. Agora sente-se assustadoramente abandonada, sozinha,
infeliz. Partiram todos, o conselheiro, o gerente dos correios, o responsável
pelo prédio, os ilustres senhores e a mulher estranha que tinha gritado já
fora da cave: desapareceram. Foram-se todos embora, como Tibor, como o
seu pai, todos os que significaram alguma coisa para ela estão longe. Só
esta lâmpada fica com a sua luz violenta e inútil, como um louco e o seu
delírio; e este paralítico, que observa, calcula, porque «essa é a sua função».
Erzsébet aproxima-se dele porque, no silêncio e na infelicidade que
subitamente desceram sobre ela, esse homem é o único ser humano com
quem tem algo a partilhar.
Neste momento, para Erzsébet, só há guerra, solidão e ele. E a
libertação, que agora não deve demorar muito. O homem também fala sobre
o assunto.
– Penso que fizemos bem os nossos cálculos – diz ele com calma e
contentamento, como um engenheiro que resolveu um problema
complicado. – Este caminho de fuga conduz a um beco sem saída. Os
alemães não podem ir para a esquerda, para o edifício da esquina; se
estiverem encurralados ali, serão obrigados a subir aos andares superiores
ou a chegar à praça através do pátio… O que é que disse? – pergunta agora
num tom educado, virando-se para Erzsébet, como se percebesse que ainda
há um ser humano ao seu lado, e que se deve responder educadamente
à pergunta angustiada de uma pessoa desamparada, a gemer na sua solidão.
– Libertação? Sim, os russos não estão muito longe. Não haverá mais luta
aqui agora – diz ele num tom firme e definitivo; e com a sua mão fina,
branca e ossuda aponta para a cave vazia.
– A mão do músico – pensa Erzsébet, é o mesmo movimento lento, o
ritmo de que a mulher tinha falado pouco antes…
– Não vai haver mais luta, e dentro de pouco tempo os russos vão
chegar – diz ele, como se tivesse chegado à solução de um problema difícil
após uma longa e profunda discussão consigo mesmo; depois, satisfeito e
cansado, agora que escapou ao perigo, deixa-se ir de novo para a sua cama
doente.
Erzsébet olha para o rosto do homem. As luzes do outro lado lançam um
brilho pálido no seu canto escuro. O seu rosto, o rosto daquele homem
doente é branco, como se estivesse iluminado pela Lua.
– No fim de contas fez bem em ter ficado aqui – diz ele com olhos
fechados. – Aqueles pobres homens foram e entraram na luta – e aponta
para a direção daqueles que tinham partido. – No prédio vizinho vai haver
luta. Tudo o que podemos fazer agora é esperar. Não vai demorar muito até
chegarem – diz ele, e com os braços cruzados, endireitado, inclina-se contra
a parede em posição de espera.
Ficam em silêncio durante muito tempo. Erzsébet apenas ouve o bater
alto e desordenado do seu próprio coração; é assim que, após grande
esforço físico, as suas veias palpitam na garganta, como se já não
conseguissem aguentar a tensão, como se a sua pele estivesse prestes a
rachar. Percebe que o seu corpo atingiu o limite da resistência. O professor
estava certo, pensa ela; teve de ficar aqui, calculou tudo bem. Ele está
paralisado, mas é bom nos cálculos. Se eu tivesse partido com os outros,
teria acabado ainda mais longe do meu pai, de Tibor, da vida, de tudo.
Tinha de ficar aqui, com ele. É aqui que se deve esperar… mas esperar pelo
quê?
Ela pensa em voz alta:
– Como vai ser?
O homem abre os olhos. Tem olhos cinzentos, e agora aquele olhar
cinzento, aguçado, calmo, espantado, olha fixamente para Erzsébet.
– Como será o quê? – pergunta ele. Ele usou um tom estranhamente
seco, quase rude, como se Erzsébet fosse uma criança que tivesse
interrompido a sua linha de pensamento, quando está a trabalhar numa obra
importante. Ao ouvir a sua voz, Erzsébet quase ruboriza, sente-se culpada.
– O que está para vir – responde ela.
O homem olha fixamente para a cara dela.
– O que está para vir – repete ele. – Não compreendo. De que está a
falar?
E após uma breve pausa, em sincero espanto:
– Como vai ser aquilo?
Então, perante o silêncio confuso e embaraçoso de Erzsébet, o rosto do
homem ilumina-se com um sorriso, e começa a rir-se com voz rouca.
– Liebes Kind – diz ele, e Erzsébet nem sequer se surpreende que nesse
momento, nessa situação, alguém se esteja a dirigir-lhe em alemão. – Liebes
Kind – o homem repete, ao abanar a cabeça, está a sorrir mansa e
indulgentemente, como os adultos tentam sorrir quando as crianças os
perturbam com uma pergunta inesperada e absurda.
– Minha querida menina… Perdoe-me, sou húngaro, mas vivi em Viena
durante muito tempo. Ainda penso por vezes em alemão… Mas está à
espera de quê?
Erzsébet começa a irritar-se com essa atitude de superioridade
indulgente, essa benevolência paternalista.
– Já lhe disse – responde ela, levantando a voz. – Estou à espera da
libertação. De que mais poderia eu esperar? Por isso estava a perguntar
como seria. – Ao gritar, ela própria sente-se como uma criança a bater os
pés com excitação, porque gostaria de saber, cinco minutos antes de as
velas de Natal serem acesas, o que o Menino Jesus lhe trouxe.
O homem ouve sorridente essa explosão; depois o seu rosto fica sério.
Ele começa a falar e a sua voz é tão triste – tão benévola e penosa, para
além de todo o tom didático e altivo – que Erzsébet fica, de repente,
envergonhada, e gostaria de lhe pedir desculpa.
– Está à espera da libertação – diz o homem com ar sério, como se
respondesse a si próprio. – Gostaria de saber como vai ser. Ninguém sabe…
Erzsébet insiste, pressionando, como se, embora queira pedir desculpa
pela sua impaciência, não pudesse expressar-se de outra forma, porque não
lhe resta muito tempo e ela tem de saber a verdade:
– Com os russos… como vai ser?
O homem pondera.
– Vamos saber em breve – diz ele calmamente. – Mais uns minutos, mais
umas horas… e eles vão chegar.
Ele não diz mais nada. Erzsébet pressiona-o febrilmente com as suas
perguntas:
– Conhece os russos?
O homem abana a cabeça:
– É muito difícil dizer que conhecemos os russos, ou os alemães, o povo
inglês… não acha? Eu conheço alguns russos. Conheço a literatura russa. E
as obras de matemáticos russos. Excelentes matemáticos. Eles têm grandes
escritores.
Erzsébet interrompe-o:
– Todos aqui tinham medo deles e contavam mentiras sobre eles.
O homem acena com a cabeça:
– Sim, contaram muitas mentiras. Tinham medo do bolchevismo, e foi
por isso que mentiram. Todos mentiram – diz ele num tom calmo e
descontraído. – Talvez isso tenha sido o pior – acrescenta sussurrando,
como se estivesse a discutir consigo próprio. – Todas estas mentiras, nos
últimos anos, dia e noite, nos jornais, na rádio, em conversas privadas… Foi
nauseante. Só mentiras em todo o lado. Não acha?
Erzsébet acena entusiasmada com a cabeça:
– Sim. O senhor é professor? – pergunta ela sem transição.
O homem responde de forma simples:
– Sim. Eu dava aulas de matemática em Viena.
Ficam em silêncio. Depois Erzsébet pergunta:
– Vive aqui há muito tempo?
O homem calcula mentalmente:
– Sim, há bastante tempo. Quando os alemães entraram em Viena,
regressei à minha pátria. Aqui, durante anos, ninguém me incomodou. Mas
depois os alemães também vieram para cá… como sabe.
Erzsébet acena com a cabeça:
– Claro que sei. Também foi procurado, professor? – pergunta ela, com
respeitoso interesse.
O homem abana a cabeça:
– Não é que estivessem à minha procura de todo. Eu não era tão
importante e interessante para eles como o seu pai, menina. Digamos
apenas que foi melhor para mim não me cruzar com eles… por várias
razões – diz ele e levanta a cabeça.
Falou com orgulho, o orgulho profundo, penetrante e implacável do
homem ferido, que se recusa a discutir o seu ferimento e considera o mal
sofrido um assunto privado.
– Sim, os últimos meses não têm sido fáceis – diz ele. – A pobre rapariga
acompanhou-me até aqui. Ela portou-se bem – diz ele num tom
desprendido. É verdade que a dela foi uma escola dura. Mas ninguém
suspeitava, aqui na cave, que já nos conhecíamos há muito tempo… não é
verdade? – pergunta ele apreendido com dúvidas.
Erzsébet responde prontamente:
– Não, ninguém… Quem é aquela rapariga?
O homem encolhe os ombros:
– Uma mulher… Para que precisa de saber o nome dela? Nunca se
devem mencionar nomes.
Depois fica calado com ar hostil. Como Erzsébet não lhe faz mais
perguntas, ele acrescenta num tom mais suave:
– Precisava de alguém que me acompanhasse, por causa das minhas
pernas.
Como se lamentasse o que disse, começa a morder nervosamente o lábio
inferior.
– O senhor é uma pessoa orgulhosa – diz Erzsébet de repente. No
momento em que o diz, já se arrepende, mas não pode deixar de dizer o que
lhe vai na cabeça agora. O homem olha para ela, há uma luz fria e escura
nos seus olhos cinzentos.
– Orgulhoso? – pergunta ele com uma voz prolongada. – Acha que
sim? – Desta vez, o tom é severo.
Ele acena, como se se resignasse a responder à acusação.
– Tem razão, sou orgulhoso – admite ele calmamente. – Faz parte da
minha natureza. Só assim consigo defender-me do mundo.
Erzsébet disse rapidamente, como se fosse obrigada a fazê-lo:
– Os judeus são todos orgulhosos.
O homem permanece imóvel, não pestaneja; fala como alguém que está
envolvido nesta discussão há muito tempo, desde que nasceu, que conhece
exatamente todos os argumentos a favor e contra, as perguntas e as
respostas, e pacientemente responde às coisas mais absurdas, está habituado
a isso, porque esta controvérsia é eterna, e tem preenchido toda a sua vida.
– Os judeus também são seres humanos – diz ele no seu tom monótono e
didático –, pelo que há também orgulhosos entre eles. Depois há
gananciosos, vorazes, lascivos, e até mesmo ladrões. Entre eles há os que
gostam de enganar os outros, e há outros que mentem. Mas os judeus são
assim porque são seres humanos – diz ele silenciosamente. – Os judeus,
menina… são bem diversos. Aqueles que pensam que são todos iguais, não
os conhecem. Os judeus não são todos iguais – diz ele e levanta a sua voz.
E Erzsébet, teimosa, não parece querer ceder:
– Sim, mas eles são orgulhosos.
O homem passa uma mão sobre a testa, cansado.
– É verdade, há muitos orgulhosos entre eles. É claro que não são só os
judeus ricos que gostam de ostentar a sua riqueza, que construíram a sua
própria fortuna ou alcançaram sucesso social… Este tipo de orgulho não
interessa, é demasiado óbvio. Há judeus que são orgulhosos de outra
maneira. Acha que, de facto, eles se consideram o povo escolhido?…
Erzsébet responde de forma hesitante:
– Algo do género… Não sei. Estivemos sempre do lado dos judeus, o
meu pai e eu. Ainda mais agora, nestes tempos difíceis.
O homem acena com a cabeça:
– Eu sei.
Erzsébet, num tom agressivo:
– Como é que sabe?…
O homem responde educadamente:
– É do conhecimento geral. Os fascistas já escreveram muitas vezes
sobre isso.
Erzsébet suspira:
– É verdade. Não foi por isso que eu o disse… Mas eu sempre pensei
que os judeus se orgulhavam. Não sei se eles se consideram realmente o
povo escolhido… Pode ser que isto também seja apenas uma calúnia
antissemita. Foi mais um tipo de orgulho… Como se nós, os outros, não
soubéssemos algo que eles, os judeus, sabem.
O homem esboça um sorriso gentil e indulgente, como se a conversa o
divertisse:
– Como vê, talvez isto esteja na raiz de todos os mal-entendidos. A
generalização é o problema, e a causa comum de muita maldade. Tem a
melhor das intenções, no entanto também diz: eles, os judeus… Acredita
que uma espécie de segredo une os judeus, um espírito fatal de pertença.
Mas isso não é verdade, menina – diz ele agora a sério, com um ar severo,
quase solene. Os judeus é uma generalização, tal como dizer: os cristãos.
Há judeus e há cristãos, e a origem, a religião, o estilo de vida, certamente
envolvem traços comuns… Mas os judeus diferem mais uns dos outros do
que se assemelham uns aos outros. Acredite em mim… talvez um dia se
aperceba disto. Um cristão nunca se pode afastar tanto do espírito de outro
cristão como os judeus são capazes de quebrar todos os laços entre eles. A
realidade desse famoso espírito de pertença dos judeus, de que eles são
acusados, é bastante diferente… Disso falaremos novamente quando
tivermos uma ocasião mais propícia. Mas sim, pode ser verdade que eles
sejam orgulhosos – diz com ar severo. – O orgulho é um erro, talvez até um
pecado. Todos pagam pelos pecados que cometem. No entanto, não acha
que os judeus já pagaram por todos os seus pecados, alegados ou reais?…
Por exemplo, aquele infeliz que acabou de ser executado?
Erzsébet tapa o seu rosto com as mãos. Ficam sentados um tempo, em
silêncio, imóveis.
Parece que todos os sons são abafados na cave. Tudo o que vem de longe
é o som de passos desorientados. Como se alguém estivesse a correr
loucamente entre as divisões da cave.
– Aquela rapariga há pouco… – Erzsébet começa então timidamente.
– Ela é judia – corta cerce o homem. – Ela já não é uma rapariga.
Mataram o pai, o marido e os dois filhos. Ela enlouqueceu. Como viu, ela
nem sequer se despediu de nós. Eu trouxe-a comigo para não estar sozinho
na cave. Eu, um paralítico, trouxe aquela mulher louca. Agora ela foi-se
embora, sem se despedir. Mas ela pode em breve estar aqui novamente.
Nada de grave lhe pode acontecer agora, ela já sobreviveu ao pior. Ouviu o
que ela disse.
Erzsébet, com uma voz rouca:
– Perdoe-me.
Com sincero espanto, mas educadamente, o homem pergunta-lhe:
– Perdoar-lhe? Porquê, menina?…
E antes que Erzsébet possa responder, como se ele compreendesse o
caminho complicado do seu pensamento, rebenta a rir e diz:
– Porque acusou os judeus de serem orgulhosos? Sei que ajudaram não
só os judeus, mas também outros perseguidos. Porque disse isto apenas
meia hora depois de eles terem assassinado perante os seus olhos um ser
humano cuja única culpa era ser judeu, e que talvez, secretamente, também
estivesse orgulhoso, por uma razão ou outra?… Aber, liebes Kind – diz ele
calmamente, com uma risada relaxada e amigável. – Porque devia eu
perdoar-lhe? Não tem culpa nenhuma. É uma boa pessoa, cheia de
humanidade. Nós, judeus, não podemos pedir-lhe mais.
A garganta de Erzsébet está seca, ela engole com dificuldade.
– Mas agora as coisas vão mudar – diz ela. – Em breve os russos vão
estar aqui…
O homem, com uma calma sombria:
– Acha que sim? Eu não. Porque deveriam ser diferentes? O que é que as
pessoas pensam? A maior parte das pessoas acha que os judeus formaram
algum tipo de aliança secreta com os russos? Elas estão erradas – diz ele
rapidamente. – Os russos só vão trazer o que está enraizado neles, o que é o
resultado da sua educação, das suas opiniões, da sua vontade de poder, das
suas ideias sobre a sociedade. Eles não perseguem os judeus só porque são
judeus. Mas provavelmente também não os adoram. E porquê? Nenhuma
comunidade humana merece ser venerada como tal.
Erzsébet, com uma voz quase suplicante:
– Mas um dia a ordem terá de ser posta em prática. Não se pode viver
assim. Os judeus, os burgueses, os nazis, os bolcheviques, este ódio, toda a
gente odeia toda a gente… Não, não se pode viver assim – diz ela de forma
firme.
Agora ela está quase a gritar. Como se de repente compreendesse alguma
coisa – e as suas palavras ecoam na cave.
– Mas o que é que todos querem? Vale a pena viver assim?
Ela grita no escuro, na escuridão longínqua da cave onde as sombras do
cerco desapareceram.
– Mas não se pode olhar assim para os outros seres humanos. Até os
animais vivem melhor. Sinto que algo está a acontecer. Não sou
bolchevique, mas sinto-o, sabe? Também sinto fisicamente que os russos
nos vão trazer algo, que vamos sair daqui, eu, o senhor, e todos os outros,
judeus, cristãos, proletários, burgueses, vamos sair das caves, vamos
regressar à superfície da terra, e tudo será melhor. Então, porque é que tudo
isto aconteceu? – grita ela.
O homem estende a mão ossuda, agarra o pulso da rapariga com os seus
dedos magros e fortes, como já tinha feito antes.
– Acalme-se – diz ele. E quando os seus dedos sentem o tremor do braço
da rapariga, num tom calmo, com grande paciência, ele diz-lhe:
– Não pode gritar. Ainda não podemos saber nada. Vai permanecer
calma, promete?…
Erzsébet sente que o contacto dos dedos frios a acalma. A sensação do
tremor frio, dos arrepios violentos está a desaparecer. Ela deita-se no
colchão, afunda o seu rosto no travesseiro imundo. O homem solta-lhe o
pulso, estende a mão e toca no cabelo da rapariga, a seguir, lentamente,
começa a acariciá-lo.
– Ah sim – diz então ele, e retira a mão, como se se assustasse com
aquele gesto involuntário de ternura. – É difícil. Admito que é muito
difícil – murmura.
No silêncio profundo, no isolamento, naquela calma estranha e
inacreditável que de repente existe à sua volta, depois do tumulto do cerco,
da convivência com estranhos, do barulho do bombardeamento, o homem
fala num tom calmo, normalmente, como se também ele sentisse que
chegou o momento de converter as ideias em palavras.
– É preciso compreender – diz ele, como se estivesse a discutir com
alguém e à procura dos argumentos certos para convencer o seu
interlocutor. – As pessoas já não aguentam mais. Elas esperam por algo
melhor. Estão convencidas de que, primeiro, vão para o inferno, depois um
dia, se voltam à superfície, tudo será melhor. Sim, sim – murmura de forma
estranha, para si próprio, como fazem os idosos.
Erzsébet está deitada no colchão, a ouvir com os olhos fechados a
conversa deste homem que está ao seu lado e, no entanto, parece
incrivelmente distante.
– Mas o que é que eles esperam? Ah sim, a libertação… Desceram ao
inferno, de livre vontade, aqueceram-no bem lá em baixo, até puseram
alguns milhões de toneladas de explosivos nas brasas para melhorar o fogo,
e agora estão surpreendidos por estar quente…
Dá uma gargalhada, mas silenciosamente, a seguir abana a cabeça.
– É assim que eles são, os seres humanos.
Ele cai no silêncio, os seus lábios exangues, uma linha pálida corta a sua
cara branca e barbuda, movendo-se sem som, como se estivesse a contar
para si próprio.
– Eles sentam-se no inferno, à espera de algo – continua num tom firme.
– Mas Voltaire afirma que só quem não tem desejos é feliz – e volta a rir,
divertido com essa ideia que é simultaneamente sombria e irónica. –
Acreditam que alguém virá, os russos ou um profeta, e algo irá acontecer, e
assim eles, que alimentaram o fogo no inferno, irão um dia regressar à
superfície da terra, e tudo será melhor.
Erzsébet abre os olhos.
– Não melhor – diz ela. – Mas um pouco mais digno.
O homem torna-se novamente sério.
– Se fosse esse o caso – retoma num tom mais grave e respeitoso, como
se finalmente falassem de algo que não é para ser gozado, nem sarcástico,
nem duvidoso –, se fosse esse o caso, menina, então tudo valeria a pena
aturar, até mesmo o inferno. Mesmo o facto de haver ricos e pobres, judeus
e cristãos, negros e brancos, saudáveis e aleijados como eu. Tudo – diz ele
severo. – Mas não é assim.
Erzsébet levanta-se do colchão:
– O que tem nas suas pernas?
O homem responde mansamente:
– Estão paralisadas. Aparentemente, é uma espécie de poliomielite. Mas
isso é apenas uma palavra. A realidade é que eu estou paralisado. Há quatro
anos que estou paralisado. Mesmo nestes quatro anos.
Como a rapariga permanece em silêncio:
– Acredita que todo este sofrimento torna as pessoas melhores?
Erzsébet responde imediatamente, com uma voz rouca mas audível:
– Sim, creio que sim.
O homem abana a cabeça:
– Acredita porque é jovem e porque é mulher – diz ele. – Eu não acredito
nisso. Nunca ninguém aprende nada. Todos querem recomeçar onde
pararam. É uma lei. Quem não sabe isso é uma criança.
Desta vez Erzsébet também fala em tom severo:
– Ou não tem fé.
O homem não se mexe, nem sequer responde. Erzsébet senta-se no
colchão, ajusta o cabelo, alisa o vestido.
– Acredito que ninguém sofre em vão, acredito que os seres humanos
aprendem com o sofrimento. Acredito que há algo que, em última análise, é
mais forte do que o ódio.
Fica assustada, porque na sua própria voz sente aquela nuance extasiante
com que os estudantes repetem de cor uma lição cheia de conceitos nobres.
– Em que acredita? – pergunta o homem, e as suas palavras, imbuídas de
uma gravidade profunda e pouco encorajadora, parecem vir de longe, da
escuridão, de cima, como se não estivesse deitado na cama ao seu lado.
Erzsébet quase se sente envergonhada, temendo que as suas palavras
possam soar demasiado enfáticas, e depois continua em voz baixa:
– É difícil dizer…
O homem vem em seu socorro. Num tom desprendido, ele pergunta-lhe:
– No amor, certo?
Erzsébet suspira e não responde. O homem acena com a cabeça.
– Acredita que o sofrimento educa os seres humanos para o amor,
acredita que o amor os liberta do sofrimento e da miséria. – Fala num tom
competente, como se aplicasse uma noção aritmética a um problema trivial.
– Muitos acreditaram nisso, grandes homens, santos, poetas, e comuns
mortais, quando estavam em apuros. Mas o amor, deve saber…
A sua voz quebra-se. Erzsébet tem a sensação de que, pela primeira vez
no decurso da conversa, o homem está inseguro. Ela observa-o curiosa. E
pela primeira vez em semanas e depois desta noite, ela sente que é mais
forte do que ele, mais forte do que as circunstâncias… que tem algum tipo
de arma na sua mão. Esta arma é aquela palavra à qual o homem procura
uma resposta.
– Há amor – continua ele gravemente. – Há quando o homem ama,
quando ele ama muito – murmura ele. – Nesse momento, é muito forte.
Talvez até se possa salvar uma vida quando se ama alguém. Há um estado
de espírito a que os seres humanos chamam amor, e também pode ser
duradouro, o que também é verdade. Mas é um estado transitório. Ele passa,
e o homem permanece. Não – diz ele firmemente, abanando a cabeça –,
nem sequer o amor é libertação. Há apenas um tipo de libertação – diz ele
com um orgulho frio e inapelável.
– O que é? – pergunta Erzsébet num tom tão baixo e tímido, como se não
lhe saísse da boca nenhuma palavra, apenas um sopro.
– Acontece quando alguém é suficientemente forte para reconhecer a
realidade da sua própria natureza – diz o homem –, essa pessoa forte está
próxima da libertação. Aceita-a sem se sentir ofendida, porque essa é a
realidade. E, na medida do possível, ela vive sem falsos desejos. Isto é tudo
o que podemos fazer – diz ele, e levanta a sua mão branca, como se
rejeitasse definitivamente alguém ou alguma coisa.
Após um momento, acrescenta:
– Eles esqueceram-se de nós.
Está a sorrir. Fala num tom leve, como se, mudando de assunto, estivesse
a retomar a conversa onde esta tinha sido interrompida por um
acontecimento extraordinário, anormal, uma espécie de ressaca. Mas
Erzsébet está agora serena. Uma grande tranquilidade toma conta dela, uma
sensação de força e segurança. Em poucos momentos ela tem a impressão
de ter recuperado a estranha calma que se apoderara dela nos últimos meses
e semanas, e que a tinha deixado nas últimas horas.
– O senhor é um homem e um matemático – diz ela calmamente. – Mas
agora apercebi-me de que nós mulheres temos uma espécie de refúgio onde
os homens nunca nos podem seguir. Pode desprezar isto, considerá-lo como
fraqueza, falso desejo, um estado de espírito transitório. Mas sei que tudo
aquilo em que acredito é mais importante do que qualquer coisa que o
senhor possa saber. Acredito que há algo… perdoe-me… é tão difícil falar
sobre isso… – tira uma madeixa de cabelo da testa – algo que é mais forte
do que tudo o que nos aconteceu. E está a acontecer.
Depois olha para a escuridão. Ouve a sua própria voz, como se não fosse
ela a falar. Como se alguém estivesse a falar em vez dela.
– Acredita, simplesmente… é tudo – diz o homem.
– Isso não é pouco – reage Erzsébet num tom infantil.
– Pois não – responde o homem, educadamente –, claro que não é pouco.
Deve ser uma grande ajuda.
Erzsébet dá alguns passos na escuridão, e sente que são passos instáveis,
como se cambaleasse.
– Onde vai? – pergunta-lhe o homem. – Fique aqui.
A sua voz está velada, cansada.
– Fique aqui e espere – diz ele indiferente. – Tudo acontece no seu
próprio tempo.
Mas Erzsébet sente-se como se fosse levada por uma grande força. Vira-
se para a porta da cave, em direção à saída.
– Vai ver e compreender – diz ela em voz alta, e com espanto ouve as
suas palavras ecoando na escuridão húmida – que este horror não foi em
vão. Vamos sair daqui, o senhor também, e tudo será diferente, sim,
diferente…
O homem responde com uma voz abafada:
– É provável que muitas coisas serão diferentes.
Na abertura da porta de ferro que serviu de proteção contra um ataque de
gás, Erzsébet repara agora num russo. O homem é alto, e entra na cave
encurvado mais a rastejar do que a andar. Para na soleira, e nessa posição
dobrada, quase agachado, olha em volta, imóvel. A sua postura, a forma
como se move, parece a de uma grande besta. Agacha-se na porta, pronto
para atacar ou fugir; na mão direita agarra a metralhadora, na esquerda uma
lanterna. Não se mexe, não se endireita, mantém os ombros levantados e a
cabeça encaixa entre eles, o rosto escondido pela gola de pele do seu
casaco.
A sua figura concentra-se naquela torção e tensão do corpo, todos os
seus músculos, todos os seus nervos estão prontos para a ação, seja ela de
ataque ou de fuga. Ele permanece nessa posição durante muito tempo. Vira
lentamente a cabeça e observa a cave. Inspeciona conscienciosa, atenta e
metodicamente os cantos escuros das três divisões, com a mão esquerda
dirigindo cautelosamente a poderosa luz da sua lanterna.
O feixe de luz encosta-se a um canto, minuciosamente, sem pressa, como
faria um mineiro num túnel, quando reconhece uma situação perigosa e
teme más surpresas, um desmoronamento ou uma explosão de grisu.
Erzsébet vê apenas o tronco do homem agachado, o feixe inquisitivo da
lanterna e, atrás dele, uma cara indistinta. Apenas o olhar de perscrutador
brilha nesta face. A concentração é tão intensa que parece serem os seus
olhos que irradiam luz na escuridão.
Avança curvado, com o andar furtivo de um animal selvagem que lhe
parece ser habitual; não é a primeira vez que entra numa cave como esta,
onde alemães, pessoas armadas, resistentes ou algum perigo mortal podem
estar à sua espera atrás dos pilares. Ele não tem pressa; para aquele homem
agachado, cada momento de observação vigilante tem um enorme valor.
Cada momento significa vida, mesmo que seja apenas um segundo extra de
vida, uma oportunidade que nunca mais se repetirá.
Dá alguns passos; depois para, endireita as costas.
Erzsébet vê agora como o homem é alto. A sua cabeça quase atinge a
abóbada da cave. É um homem alto, não desproporcionado, mas um pouco
mais alto do que a pessoa comum. Traz um boné de pele cinzenta, um
casaco acolchoado cinzento, calças talvez feitas de couro e botas altas. A
sua mão direita, com a qual agarra o punho da metralhadora, está nua, a
outra tem uma luva grossa que deixa os dedos descobertos, como os usados
pelos mecânicos e motoristas. Ele está de pé, com as pernas afastadas,
apontando a arma para Erzsébet. Porque, agora, reparou nela.
– Nemcy?[9] – pergunta ele.
Erzsébet percebe que está à procura de alemães.
– Aqui não há alemães – grita ela em voz alta. – Apenas eu.
As suas palavras ecoam na cave vazia.
O russo não se mexe.
É muito estranho, esse silêncio. Como se a guerra estivesse morta. Como
se uma carcaça estivesse algures na cave, ou lá fora, no asfalto congelado,
entre os cavalos mortos, em frente do portão, talvez perto do judeu
assassinado. Este é o sentimento de Erzsébet. Não há guerra em lado
nenhum nesse momento. Há um silêncio profundo, um silêncio como
Erzsébet nunca tinha sentido na sua vida, em circunstância alguma. Como
se a guerra que tem bradado, trovejado, roncado perto dela – não nos
campos de batalha, mas naquele mesmo prédio –, durante os últimos meses
e semanas, tivesse de repente cessado. Erzsébet sabe que esta estranha
situação não é fortuita, que não é uma simples trégua, não; no instante em
que o homem curvado, pronto para a ação, atravessa o limiar da cave, para
Erzsébet aquela coisa a que chamam guerra acabou realmente. Acabou,
pensa ela.
E num instante – isto é o que acontece aos seres humanos em alturas
como esta, quando algo realmente «acaba» ou «começa», por exemplo, no
momento da morte, quando se olha para trás, para a própria vida – Erzsébet
vê um grande turbilhão, uma enorme corrente. Porque a guerra não era só as
bombas, ou os «golpes», o perigo para a vida, os decretos odiosos, a
perseguição cruel, não, a guerra não era só isso. A guerra estava também na
sua alma. Um momento antes, ainda lá estava, sob a forma de consciência,
sensação, ou aquilo que o paralítico tinha definido como «realidade» pouco
tempo antes. Um momento antes, a guerra ainda vivia na alma de Erzsébet,
não apenas no campo de batalha, no ar ou debaixo do mar. A guerra era
também uma sensação, uma espécie de pensamento fantasmagórico que
assombrava o seu corpo e alma, em estado de vigília e sono.
Erzsébet compreende e sabe agora que a guerra não se prepara apenas
nas oficinas de guerra, quartéis e campos de batalha, mas também na alma
das pessoas. Ela, Erzsébet, tinha estado até então, à sua maneira, em guerra.
Era parte beligerante, tinha estado na frente e tinha lutado. O seu corpo e a
sua alma foram invadidos pela guerra, como pode ser também por um
pensamento ou uma doença. Mas quando viu o russo, a guerra acabou para
ela.
No prédio ao lado ainda estão a disparar, e sobre as cidades alemãs e
portos japoneses, enormes aviões cinzentos atravessam o céu quase
preguiçosamente e lançam bombas que limpam distritos inteiros da face da
terra. Mas isto já não lhe diz respeito. A outra guerra, aquela em que ela
tinha participado pessoalmente, cessou no instante em que aquele homem
desconhecido entrou na cave.
Há que ter muito cuidado, pensa Erzsébet. Os seus sentidos estão tensos,
está no estado de alerta, sabe que está na plenitude das suas faculdades, o
que nunca pensou ser possível. Agora algo «acabou», o que também
significa que algo «está a começar», mas não da forma como as coisas na
vida normalmente começam e acabam, com um período de transição no
meio: agora algo «acabou» de uma forma completamente diferente, e de
uma forma igualmente diferente algo «está a começar». Não há dúvidas
quanto a isso.
Ao mesmo tempo, ela percebe que o homem paralisado, deitado atrás
dela na escuridão, estava certo: não se pode simplesmente fechar e «acabar»
com o que foi, só se pode continuar… Nem mesmo agora é possível
começar «desde o início», nem neste momento excecional, em que, aqui
mesmo, à sua frente, está o russo, o bolchevique, com uma metralhadora na
mão, pronto a disparar, e que está a caçar alemães… Algo acabou; mas o
que acabou só pode ser continuado… talvez melhor, de forma mais digna
do que até agora. Isso é o que ela sente.
Mas este sentimento não é muito claro. Ela não sabe quem pensa agora
no seu lugar, é como se os processos habituais de consciência e reflexão
tivessem mudado. Há uma Erzsébet que pensa, que é ela própria em pessoa
e que, no entanto, é também outra, nem melhor nem pior, mas diferente. E
esta outra Erzsébet, agora que enfrenta o russo, está a refletir com frieza
glacial, com precisão, sem emoção, procurando as palavras exatas.
Bem, é isto, pensa ela. O grande caos, a guerra que me invadiu até agora
acabou. Agora começa outra guerra. Porque sabe que este «fim» não
significa o fim absoluto da guerra; no máximo, um tipo de guerra cessou e
um tipo diferente de guerra começa. Não a paz, isso não.
Mas como era a paz? Erzsébet tem uma vaga memória dela. Como se
alguém, há muito tempo, lhe tivesse falado de paz, como se só tivesse lido
sobre ela em livros, em grandes livros com títulos como Guerra e Paz, ou
algo semelhante. Foi também um russo que escreveu esse livro, pensa ela
agora. Alegra-se com esse título, porque representa o primeiro ponto de
contacto entre ela e o estrangeiro. Certamente ele também deve ter lido
Guerra e Paz, pensa com alívio. E também Evgenij Onegin. Ela tinha-o lido
da última vez com Tibor. Algumas frases vêm-lhe à cabeça.
O seu cérebro trabalha de forma intensiva, as ideias tecem-se
rapidamente; tudo é importante agora, porque o russo entrou na cave. Agora
é preciso encontrar um ponto de contacto com este desconhecido, pensa.
Não pode haver mal-entendidos entre nós, afinal ambos já lemos os
mesmos livros, Tolstoi, Tchékhov, Onegin… É uma grande oportunidade, e
ela prende a respiração.
Porque, ao mesmo tempo, apercebe-se de que esta grande oportunidade
não é suficiente. Nesse momento, estavam a produzir-se outros
acontecimentos que Erzsébet nunca tinha vivido antes. As bombas já não
caem, em breve vai chegar o momento em que já não será necessário ir
buscar água ao poço, poderá sentar-se sozinha na sanita, sem ser
incomodada, ou poderá caminhar pela rua, à luz do sol, sem ter de temer
granadas. As coisas também funcionarão para os judeus, e para as pessoas
em geral, pensa ele de passagem. Tudo ficará bem.
A coisa mais difícil… mas não consegue exprimi-lo em palavras, o que,
de momento, lhe pesa muito na alma. Será medo? Não, é algo diferente do
medo, da angústia. É claro que também é preocupação. Este homem pode
matar-me, pensa ela. No entanto, tem a certeza de que ele trouxe algo mais
para ali, não apenas a metralhadora.
Observam-se cuidadosamente um ao outro. Durante um longo momento,
mais longo do que alguma vez vivenciou e nunca pensou que um momento,
entre duas pessoas, pudesse durar tanto tempo. O homem permanece na
sombra, Erzsébet não distingue claramente o seu rosto, ela vê antes uma
figura, um corpo masculino alto e calmo. Este homem é um bolchevique,
tão diferente de mim, pensa ela. Mas imediatamente sente que isto também
é falso, como todas as ideias e opiniões que vêm «de lá», do outro tempo,
de um momento anterior. Porque no momento em que Erzsébet viu o russo,
muita coisa se desmoronou. Pode ser que a partir de agora, a vida seja
completamente diferente, pensa Erzsébet, mas também pode ser que, para
as pessoas em geral, tudo permaneça na mesma. De uma coisa ela tem a
certeza, uma certeza terrível – ela sente-o na pele, até nas raízes do seu
cabelo –, que para ela, Erzsébet, tudo será diferente de agora em diante. O
resto é obscuro. Mas isto ela sabe com certeza.
De outra forma, bem diferente, disse-o este homem pálido, este inválido;
mas também é claro que, de certa maneira, tudo vai continuar como antes.
Porquê?… Ela ouve a voz do homem: «… porque eles são seres humanos».
Esta afirmação é um grande alívio para Erzsébet, dá-lhe uma grande
segurança. Agora que se lembra dela, agarra-se a ela como se estivesse a
cair no vazio e visse um apoio, uma mão estendida… Sente-se aliviada, mas
isso é também um aviso. «Porque são seres humanos.» Esta silhueta, na
origem daquele segundo em que tudo se estilhaçou, não é apenas «um
soldado do Exército Vermelho», «um bolchevique», mas também outra
pessoa. Antes de mais, um ser humano.
Agora que o vê à sua frente, Erzsébet acalma-se; mas, ao mesmo tempo,
começa a ter medo. Acalma-se de uma forma diferente da que tinha
imaginado, e tem medo de uma forma diferente da anterior. Não tem medo
do bolchevique, não tem medo dele por ser comunista e ela ser de origem
burguesa, tem medo porque ele é um ser humano. Aquele homem armado
com uma metralhadora e que vem de longe olha para Erzsébet sem mover o
seu olhar: não há mais nada para ver e compreender. Tudo o que ouviu, que
imaginou, tornou-se insignificante, grotesco, aborrecido, uma vez
confrontado com a realidade que se lhe apresenta.
Desde que tem idade suficiente para entender, desde há vinte e cinco
anos, Erzsébet sempre ouviu falar dos bolcheviques como uma raça
diabólica, seres depravados que comem crianças nas igrejas, que em
cerimónias sacrílegas ultrajam tudo o que é belo, tudo aquilo em que os
homens acreditam. Mas Erzsébet sempre soube, durante esses vinte e cinco
anos, que as coisas eram diferentes. Ela sabia que os bolcheviques estavam
a construir uma sociedade, e estavam a fazê-lo de uma maneira imperfeita e
impiedosamente, mas com fé e entusiasmo, inspirados por elevados ideais;
estavam a construí-la da forma como os homens estão habituados a levar a
cabo os seus empreendimentos. A propaganda tinha-se tornado cada vez
mais violenta nos últimos tempos. Mas Erzsébet sabia que a verdade tinha
de estar noutro lugar. E agora que o russo chegou – ele veio de tão longe!,
pensa Erzsébet com admiração, quase com ingenuidade – e trouxe um fim à
guerra, um fim a uma ignomínia intolerável, um fim a algo que se tinha
tornado impossível de suportar, agora o espanto inquieto de Erzsébet, a sua
espera temerosa não corresponde à situação, e uma pergunta ressoa cada
vez mais alto no seu corpo, nos seus nervos, no seu ser de carne e osso.
A questão é: «Porque é que não estou feliz com isso?…»
De facto, não está contente. Ela não tem muito medo, dada a situação em
que se encontra: sozinha numa cave, num dos momentos mais perigosos do
cerco, sozinha com um homem armado que é de qualquer modo um
inimigo, que lá chegou no meio de cadáveres e armas de fogo, e que não
pode saber com que sentimentos Erzsébet esperou por ele e o acolheu; não,
ela não tem mais medo do que qualquer pessoa em tal situação, o seu
coração bate apenas um pouco mais acelerado. É um pequeno medo,
natural, fácil de ultrapassar… E, no entanto, ela não está feliz. E isto
desconcerta-a.
Ela espera este momento há meses e meses, dez, para ser precisa: desde
aquela noite de março, quando a Gestapo tocara à campainha para prender o
seu pai, e depois sob a chuva de bombas, e mais uma vez, quando eles
tinham arrastado o dentista judeu. Tal como uma mulher grávida espera
pelo parto, ela esperou por este momento com todo o seu corpo durante
meses e meses. Claro que não podia saber onde, em que circunstâncias e em
que cenário iria encontrar o primeiro russo – na rua, num campo de batalha
improvisado, ou numa casa – nem sequer podia imaginar. Mas agora ele
estava ali, exatamente como era suposto estar, como o inimaginável nos
livros de histórias. Ele não é um fantasma ou um monstro. Ele é um belo
pedaço de homem, alto, robusto. Ele está lindamente vestido. E isto produz
um efeito diferente do dos soldados alemães e húngaros; como se o recém-
chegado não fosse um soldado, mas um caçador que tinha chegado de terras
distantes, um caçador que por acaso estava lá enquanto perseguia
aventureiramente as presas. Está parado, como se estivesse à espreita na
atitude familiar dos caçadores que avistam presas num arbusto ou à beira de
uma clareira.
Ainda assim, não se pode deixar de notar algo sobre este homem. Mas o
quê?… Que ele é «diferente». Mas ele não é «diferente» por ser um
bolchevique. Erzsébet já sabe que este «bolchevique» come, dorme, se
alegra ou se zanga, acredita ou nega, blasfema e se enternece, tal como o
seu pai ou como ela. Bolchevique, o que é que isso significa…
O bolchevismo é uma teoria, transformada em projeto e prática, e durante
quase três décadas os homens, entre os quais estavam bolcheviques (e
certamente muitos que não o eram), conseguiram algo, trabalharam pela
unidade dos homens, acabaram por implementar uma parte daquilo com que
tinham sonhado, por vezes estavam prestes a conseguir que as pessoas e as
instituições fizessem tudo o que queriam, mas depois depararam-se com
obstáculos repentinos e viram outras possibilidades, pelo que começaram
a adotar as soluções fáceis, tanto para construir como para destruir.
De tudo isto surgiu aquilo que o mundo conhece como «bolchevismo».
Mas o termo define duas coisas: bolchevismo e comunismo. Erzsébet não
sabe exatamente o que significa «bolchevismo» e «comunismo», mas tem a
vaga sensação de que não significam totalmente a mesma coisa!
O comunismo é antes um «conceito», algo que se pode estudar nos livros
escolares, enquanto o bolchevismo é mais sobre prática e realidade! Mas
essa é uma hipótese vaga… Em qualquer caso, este «algo» é o resultado de
várias intenções, de experiências planeadas ou impostas por acaso, pelas
circunstâncias. Um grande número de seres humanos, talvez duzentos
milhões, já o conseguiram. Alguns com entusiasmo, outros fria e
racionalmente, e a maioria – dezenas e dezenas de milhões – sem qualquer
planeamento ou vontade revolucionária ou particular, simplesmente porque
eram cidadãos da União Soviética, porque nasceram, depois frequentaram a
escola, receberam uma educação, aprenderam uma profissão, e viveram o
melhor que puderam…
E por detrás da palavra «bolchevismo» existe um país imenso, muito
maior do que a Europa, com mares, lagos, florestas espessas, campos
cultivados, e diferentes povos, alguns, como o homem que está aqui agora,
bastante semelhantes aos húngaros ou aos franceses, e depois outros, os
mongóis, semelhantes aos chineses, em suma, povos de todos os tipos. E
todas estas paisagens, estas florestas, estes desertos, estes povos estão
vivos, e o mundo associa-os sob o nome de «comunismo».
Aqueles que o temiam falavam dele com ódio, outros, insatisfeitos com
o capitalismo, evocavam-no cheios de esperança e entusiasmo, de
convicções vibrantes… Mas tudo isto eram generalizações. O que não era
generalização, mas especificidade, daí a realidade tangível, estava agora
perante Erzsébet. Este homem veio de lá… mas de onde?
De muito longe. Sente-se esta distância nele como se vê o pó da estrada
no vagabundo. Esta distância pode estar-lhe ligada por muitas razões; talvez
porque é bolchevique, ou simplesmente porque é um soldado, um homem
armado de uma potência inimiga, ou por outras razões. O facto de ele ser
russo, de viver num lugar distante, a milhares de quilómetros dali, um lugar
onde o pão é cozido de forma diferente, onde a polia do poço é virada por
um sistema diferente, onde as pessoas pensam outras coisas quando leem os
romances de Tolstoi, sentem outras coisas quando veem o sol nascer ao
amanhecer no Volga… Em suma, esta alteridade: é o que se mantém com o
estrangeiro que finalmente chegou, o que para Erzsébet significa o fim da
guerra.
Para mim, este homem não é um inimigo, Erzsébet pensa rapidamente.
Mas será que realmente «pensa» assim? Será que isto continua a ser o
ato de pensar no sentido habitual do termo? Não tem nada a ver com a
associação lógica de ideias coerentes que é vulgarmente chamada «pensar»,
que deriva de processos biológicos que foram estudados em profundidade e
são bem conhecidos por Erzsébet. Ela sabe que agora não está apenas a
«pensar», como noutras alturas, mas a «viver», e que está a viver de forma
diferente, mais intensa, mais perigosa, mais verdadeira do que alguma vez
viveu antes. Esta outra vida começou há poucos minutos, e esta sensação
repentina, eletrizante está agora a tomar conta de tudo. Ele não é um
inimigo porque eu estava à sua espera, pensa ela, e eu não era a única à sua
espera, éramos muitos, nesta grande cidade que agora parece um animal
ferido, um ser pré-histórico trespassado, com as tripas de fora…
Estávamos todos à sua espera, mesmo aqueles que tinham medo dele, o
gerente dos correios, o conselheiro de estado, o jovem alemão que já estava
a tagarelar, e o outro, aquele com as cicatrizes dos duelos na cara, loiro, a
cambalear. Ele também o esperava, os cruzes flechadas também o
esperavam, e o judeu que mataram, amigo e inimigo, todos. Esperei dez
meses, e na espera, lentamente, todo o medo se evaporou, toda a
propaganda se desvaneceu, a espera relativizou o conteúdo garrido da
palavra «inimigo»… Não pode ser um verdadeiro inimigo aquele por quem
se esperou tanto tempo, noite e dia, durante meses. E não só para mim.
Erzsébet já não pensa em palavras e frases, mas como os músicos quando
compõem ou ouvem música: eles não percebem as notas separadas, mas
apenas o todo, o grande e pulsante fluxo da música, que excita não só a sua
audição, mas enaltece todo o seu corpo, talvez mesmo toda a sua existência!
Este estrangeiro já não é um inimigo para mim. Este russo, este
bolchevique, não é inimigo de milhões de pessoas, burgueses, camponeses,
pequeno-burgueses, que lutaram contra ele, e enquanto lutaram, entre falsas
notícias espalhadas para aterrorizar as pessoas e notícias reais, entre a
informação nos jornais e os discursos na rádio, acabaram por perceber,
embora com dificuldade, rangendo os dentes, gemendo e gritando, que isto
não podia acabar de outra maneira, que um dia de longe, de longe, viria um
homem. Ele entraria numa cave ou numa sala onde esperavam por ele.
Estavam à sua espera, a ranger os dentes, cheios de terror. Ou de esperança.
Ou de perplexidade ingénua. Mas este momento tinha de chegar. E agora
aqui está ele. Porque é que não estou feliz com isso?, pensa Erzsébet.
E porque este momento preciso está a chegar ao fim, atingindo um limite
inescapável – como qualquer situação humana, também ele tem o seu ponto
extremo de tensão, quando o tempo é preenchido com um conteúdo fatal e
ameaçador, e basta um segundo para que tudo expluda em atos insanos e
sem sentido –, Erzsébet estende a mão em direção ao russo.
O gesto é convidativo. Como dar as boas-vindas. Convidante, mas não
sincero. Erzsébet sabe disso, e aparentemente o russo também sabe. Porque
o homem alto e calmo, com uma arma mortal na mão, não tem pressa. Ele
olha para Erzsébet, depois para a mão estendida na sua direção como um
objeto, com um ar indiferente e desprendido. Ele não se mexe; nem mesmo
a arma e a lanterna se movem nas suas mãos.
Erzsébet apercebe-se agora que o russo está desconfiado, que a situação
lhe parece inacreditável. Não poderia ser de outra forma, ela diz a si própria
para se tranquilizar. Devo persuadi-lo de que sou sua amiga. Tenho de o
fazer compreender o quanto esperei por ele, e mesmo que neste momento
não me possa alegrar o suficiente com a sua vinda, ou com tudo aquilo por
que esperei, este homem é como crianças ou animais selvagens, não
compreende as palavras, mas tem um instinto apurado e seguro! No entanto,
sou sua amiga, pois ele trouxe-me salvação e libertação. De uma forma ou
de outra, tenho de lhe dizer. Em palavras não se pode… Envergonhada,
retira a sua mão estendida, e aproxima-se do russo.
A lanterna ilumina o seu rosto; o russo está em frente dela imóvel, com
uma postura que transmite um certo tipo de vontade de recuar, até o feixe de
luz da lanterna parece ser uma arma.
– Já não há alemães aqui – diz Erzsébet, esforçando-se por falar devagar,
para articular bem as suas palavras, como se respondesse a alguém que
conheceu na rua e que, perdido, lhe pediu indicações. – Eles desapareceram
todos, por ali – e ela aponta para a saída de emergência. – Aqui sou a única
pessoa que resta, sozinha – ela está a mentir.
Nem sequer por um momento ela sente que falar húngaro é inútil. É
como se os dois, o russo que escuta e Erzsébet a falar em húngaro,
estivessem a utilizar uma estranha língua internacional. O homem não
responde, escrutina-a com um olhar sombrio e penetrante.
– Esperei tanto tempo por si – diz Erzsébet, sorrindo, e agora sente-se
como se estivesse a falar num palco, com um sotaque cantado, falso e
mendaz.
O russo continua a não responder. Ele sente que estou em parte a mentir,
pensa Erzsébet. Mas eu estava realmente à espera dele, esperei por ele tanto
quanto se podia, pensa ela com profundo espanto. Mas então porque estou
eu a mentir? E porque é que estou a falar com uma voz tão falsa e cantada,
como uma menina da escola na peça da turma? E este sorriso duro, este tipo
de sorriso no meu rosto… Então ele não pode confiar em mim, pensa.
É melhor ele não dar conta do professor. Talvez ele saia daqui
imediatamente, e eu com ele, atravessemos o pátio, vamos sair para a rua, ir
até ao sabatista e ao meu pai. Agora também eles estão livres, se este já cá
está, este homem alto, então os russos também estarão do outro lado da rua.
Mas é melhor ele não dar conta do professor, não se pode saber o que
poderá fazer com ele. Não se pode saber nada, pensa agora de repente.
Sente-se tranquila.
A certeza de que «nada pode saber neste momento» – a hora da salvação
chegou, mas não trouxe nada de certo com ela – acalma-a subitamente.
Espera-se por algo, e eis que este algo chegou, e é mesmo como ela o tinha
imaginado, mas ao mesmo tempo completamente diferente: por isso é
preciso ser cauteloso e esperar. Agora a sua voz é natural, calma, quando,
apontando para uma espreguiçadeira abandonada, ela diz:
– Senta-te.
O russo olha com atenção para a espreguiçadeira, em cima da qual está
uma almofada imunda e amassada e um cobertor rasgado. Ele não se senta.
Move o feixe de luz à volta da cave.
– Já te disse que não está aqui ninguém. – Erzsébet repete mais alto, e
faz um esforço para falar num tom natural e neutro, como se tivesse
finalmente encontrado a sua verdadeira voz.
Gostaria de falar espontânea e cordialmente, para tranquilizar esta figura
escura e desconfiada, esta sombra muda, com a sua voz e gestos. Porque é
que não lhe mostro o professor?, pensa enquanto as suas palavras ecoam na
cave. E porque é que o professor não diz nada, porque é que ele não escarra,
não grita alguma coisa? Mas o homem paralítico escondido no fundo da
cave, atrás das costas de Erzsébet, está calado. Deitado na sua cama no
escuro, espera que o encontrem ou o esqueçam, não dá sinais da sua
presença, nem sequer com tosse; Erzsébet compreende que o homem com o
seu silêncio lhe pede para desviar a atenção do russo. Ele não quer travar
conhecimento, Erzsébet pensa agora com ironia súbita, ele não é do tipo
sociável… Ele também não confia em ninguém. Gostaria de evitar este
primeiro encontro, para não ser notado.
Não tem importância, conclui ela. O que importa sou eu, e este homem.
A lanterna do russo passa por todos os recantos da cave, e o feixe de luz
inquiridor regressa agora para descansar no rosto de Erzsébet. Que poderia
ele fazer a um paralítico, que é também um refugiado, um dos nossos?…
Ele não lhe pode fazer mal, Erzsébet diz a si própria para se tranquilizar.
Então, como se, do seu canto escuro, o paralítico a obrigasse, com o seu
silêncio e o olhar que ela sentia dirigido para as suas costas, a não falar
dele, a entreter o russo, acrescenta rapidamente:
– Todos eles se foram embora, mesmo os nemcy.
Ela designa os alemães com a palavra russa e, pela primeira vez, o
homem responde às palavras de Erzsébet. Lentamente, num tom grave, ele
diz:
– Ponimaju[10].
E acena com a cabeça. Baixa a mão com que apontava a arma à rapariga
e desliga a lanterna. Agora a única luz é a que os alemães deixaram acesa
no meio da cave. O russo move-se lentamente na semiescuridão, poisa a
metralhadora no chão com um gesto de especialista e encosta-a a uma
cadeira; depois levanta as mãos e cuidadosamente, com o gesto relaxado e
meticuloso de quem alcançou o seu objetivo, retira o boné que tinha
mantido firmemente na sua cabeça até então.
Na parte da frente do boné – que faz lembrar a cúpula de uma igreja
russa – brilha a estrela vermelha da União Soviética. Erzsébet observa os
movimentos do homem, e sente uma admiração ingénua. O russo coloca o
boné em cima de uma pequena mesa, depois alisa calmamente o cabelo com
ambas as mãos. Cada gesto dele é natural, relaxado. As suas mãos são tão
brancas como o seu rosto e testa, de uma palidez luminosa. Tem cabelo
louro muito claro, com reflexos prateados. Tal cor Erzsébet só viu sair das
mãos experientes de um cabeleireiro. Ele é jovem, não tem trinta anos de
idade. E debaixo daquela testa branca, naquela cara fresca, emoldurada por
um cabelo louro muito claro, que parece não tanto o cabelo mas o pelo
macio e brilhante de um animal selvagem dos países nórdicos, um par de
olhos cinzentos olha fixamente para Erzsébet.
Impossível escapar, nem sequer por um momento, a estes olhos
penetrantes: Erzsébet sente conscientemente, mas também com todos os
seus nervos, que nenhum olho humano jamais olhou para ela na sua vida
com tanta atenção e profundidade, de uma forma tão segura e impiedosa.
Recorda-se do gato siamês de pelo branco, que tinha tido na sua infância,
uma bichinha oriental feroz, orgulhosa e frágil: era capaz de olhar para ela
assim, durante horas, com o olhar apaixonado e ardente de um louco, ou de
um ser vivo que observa os fenómenos do universo com extrema
desconfiança.
É isso que lhe vem agora à mente. No olhar dos olhos cinzentos não há
vontade de se aproximar, nenhuma confiança, nenhuma alegria, nenhum
convite para se familiarizar, nada. É apenas olhar. E os olhos cinzentos têm
a mesma luz que os destaques prateados do seu cabelo: um brilho
alienígena, uma sombra que Erzsébet nunca viu na realidade. É evidente
que foi outro clima, outro sol, a diferente humidade do ar no país onde o
homem cresceu que deu a tonalidade luminosa particular a esse cabelo
macio, a esses olhos.
O homem não tem qualquer semelhança com a imagem do «russo» que
Erzsébet tinha construído para si própria. Não tem maçãs do rosto largas,
nem uma testa baixa. A forma da sua cabeça, bastante alongada, sugere um
nórdico; poderia ser um alemão pomeraniano, um escandinavo, um
norueguês ou um sueco. Mas o que mais impressiona Erzsébet são as suas
mãos – não tanto as mãos, para ser exata, mas a forma como as move. São
mãos cónicas, brancas, ossudas, e os seus movimentos são particularmente
soltos. As unhas são alongadas, ovais, brancas, bem tratadas, como se
tivessem acabado de ser confiadas a uma manicure especialista. E essas
mãos cónicas e brancas movem-se com uma lentidão elegante.
Cada um dos gestos do homem é fino, colocado: a forma como levantou
o boné, alisou o cabelo depois de colocar a arma junto à cadeira; cada um
dos seus gestos é deliberado, atencioso, meticuloso, sincero. Erzsébet
lembra-se agora das mãos dos músicos, então, por associação atroz, da mão
do médico.
O russo está a olhar para ela, e Elisabeth não consegue desviar o olhar
nem por um segundo, não consegue olhar para baixo. Era como se, com os
seus dedos ossudos e fortes, ele a tivesse agarrado pela cintura: assim, com
os seus olhos implacáveis e impiedosos, o homem segura o olhar de
Erzsébet. Como é o seu olhar? Não é curioso, não é terno, não é brincalhão,
nem é benevolente. Mas também não é hostil. Pelo contrário, é desapegado
e atencioso. No mar, pensa agora Erzsébet, algures no Norte, no Oceano
Ártico, é assim que os seres vivos, os ursos polares e os seus caçadores,
devem olhar uns para os outros.
E agora, ao refletir nisso, sente que está no caminho certo, e de repente
compreende esse olhar. Como se o russo não fosse sequer um soldado…
Claro que é, mas ao contrário da maioria dos soldados, que na vida civil são
sapateiros ou torneiros, e um belo dia põem-lhes uma arma na mão a dizer:
agora és um soldado. Ele é um soldado, mas é como se todas estas situações
– encontrar-se sozinho, de espingarda na mão, na cave de uma cidade
estrangeira, no meio dos alemães, ou noutro lugar, numa caverna
enfrentando feras selvagens, ou confrontado com sombras e fantasmas
ainda mais assustadores –, é como se todas estas situações lhe fossem
familiares há muito tempo. Ele não subestima os perigos, mas também não
entra em pânico. Está simplesmente preparado para todas as eventualidades.
A metralhadora está ao alcance da sua mão, de modo que ao menor
ruído, ao menor movimento inesperado, tudo o que ele tem de fazer é
levantá-la e agarrá-la. A forma como se senta, lentamente, quase agachado
– o mesmo movimento que tinha quando entrou na cave, como se andar e
descansar fossem duas situações com que tinha de estar igualmente
atento –, a forma como puxa as pernas debaixo dele, a forma como coloca
as botas grandes debaixo da borda da espreguiçadeira, a forma como enfia
uma mão no seu casaco almofadado, tira uma cigarreira prateada e oferece
um cigarro a Erzsébet, tira um isqueiro e acende-o: cada gesto dele é
estudado, sóbrio, elegante. Mas esta elegância não se assemelha a qualquer
requinte que Erzsébet conheça, qualquer atitude ou gesto das pessoas do seu
mundo. É a elegância de alguém que é completamente livre por dentro,
alguém que está habituado, nesta vida perigosa, a comportar-se e agir de
acordo com as suas próprias leis, desinibido por preconceitos, regras ou
convenções. E observa.
Só um homem que vive ao ar livre pode ter esse aspeto. Aquele que
passa a sua vida numa sala tem um olhar habituado a outras dimensões, e
tem um ar diferente. Mas este caçador, que também é um soldado, está
habituado a certificar-se de que o seu olhar não colide com os obstáculos e
limitações das paisagens urbanas: é assim que os marinheiros são, aqueles
que vivem nos grandes espaços desérticos. É um olhar severo.
Este ser humano sentado em frente de Erzsébet sugere com o seu olhar
que não confia em ninguém. Devo tranquilizá-lo, devo dar-lhe alguma
confiança, pensa Erzsébet febrilmente. Tenho de falar com ele. Nem por um
momento lhe passa pela cabeça que não tem forma de falar com o
estrangeiro, uma vez que não sabe russo. Como se houvesse algum tipo de
língua comum entre os seres humanos, uma misteriosa possibilidade de
comunicação, mais simples e universal do que o esperanto: assim Erzsébet
fala, fluentemente, abertamente.
– Há pouco eles ainda aqui estavam – diz ela. – Foram para o prédio
vizinho. Mas tu não corras atrás deles, descansa.
O russo não responde, nem sequer se mexe, apenas o peso do seu olhar,
um peso cinzento, cai sobre Erzsébet sem pestanejar:
– Não acreditas em mim? – pergunta ela. – Nem podes acreditar em
mim. Vens de um país estrangeiro, de longe, da guerra. E nós aqui somos
inimigos para ti. Pelo menos pensas que todos nós somos inimigos. Mas
isso não é verdade. Eu, por exemplo, tenho estado à tua espera, há muito
tempo. E há muitos outros que não conheces. Os fascistas fugiram para o
estrangeiro, mas nós, que ficámos aqui, todos esperámos por ti. Não podes
imaginar quanto tempo esperámos por ti.
O russo ouve. Ouve em silêncio, a sua cabeça loira inclinando-se um
pouco para a frente, como se assim pudesse compreender melhor o que
Erzsébet está a dizer.
– Acredita em mim, por favor – diz Erzsébet apressadamente. Este olhar,
este silêncio tenaz, a tensão peculiar que irradia da atenção concentrada e da
evidente desconfiança do russo perturbam-na. Distraí-lo não é tão fácil
como eu pensava, essa é a sua impressão. Talvez nem esteja a falar com
sinceridade.
Assim, ela decide mudar de tom, e quase sussurrando, com a particular
nuance de confiança na voz que quer tocar intimamente alguém, ela
continua:
– Não podes acreditar em mim porque não me conheces. Vivi sob um
nome falso, tive de me esconder dos alemães. Não acreditas?… Olha, estão
aqui os meus documentos. São documentos falsos – diz ela rapidamente.
E, com uma mão nervosa e trémula, mete a mão na sua bolsa e tira os
documentos de Erzsébet Sós e entrega-os ao russo.
Mas o homem não lhes toca, não se mexe, às vezes coloca o cigarro na
boca, inala o veneno amargo em fumadas regulares, e não mexe nos
documentos de Erzsébet. Através do fumo, por cima do cigarro mantido
entre os seus dedos brancos de neve, ele olha para Erzsébet e para os seus
papéis com um ar sério e, ao mesmo tempo, algo zombeteiro. Vê-se
claramente que ele compreende tudo, que compreende a intenção de
Erzsébet, que compreendeu o significado desses documentos, e a situação
diverte-o.
Erzsébet sente que o russo está a desprezá-la um pouco neste momento.
Ele não quer saber dos meus documentos, pensa ela desanimadamente; ele
não quer saber se eu sou fascista ou uma resistente que se esconde, ele não
quer saber de nada disto… Provavelmente já passou por uma situação
semelhante muitas vezes, certamente não veio até aqui, até à cave de um
prédio em Peste, de tão longe, da Rússia, de algum lugar junto ao mar, sem
já ter encontrado aqueles que febrilmente lhe mostraram documentos,
justificando-se, com uma atitude de culpa cheia de ponderação. Tudo isto já
não lhe interessa, apenas desperta o seu desprezo – é isso que Erzsébet
percebe, e, envergonhada, apressa-se com um gesto brusco a colocar os
documentos de Erzsébet Sós na sua bolsa.
O mar, pensa ela, entretanto. Estranho, este homem conhece o mar, como
uma foca conhece a gordura na sua pele. Fecha a bolsa, e pergunta:
– Você é ucraniano?…
O homem acena não com a cabeça.
– Então de onde é?…
O russo deita fora o cigarro. Com a bota grande esmaga de vez a beata.
Depois olha para Erzsébet e solenemente, com uma voz grave, diz:
– Sibiren.
– Ah, siberiano – diz Erzsébet. E imediatamente a seguir, um pouco
estupidamente, como se quisesse compensar algo: – Maravilhoso.
O russo acena com a seriedade de uma criança crescida. Parece que
finalmente está em pleno acordo com Erzsébet e eles chegaram a um ponto
de viragem significativo na sua conversa: o facto de ele, o russo, ser
siberiano parece ter grande relevância.
Esta seriedade solene e algo infantil encorajou Erzsébet. Finalmente,
encontraram um ponto comum. Aparentemente, é importante para ele ter
sido capaz de me dizer isto. O facto de ele ser siberiano é muito
significativo para ele. Ele disse-o como se me estivesse a dar uma grande
notícia.
– É muito bom seres siberiano – acrescenta ela rapidamente. Não deve
desistir agora pensa ela, nem um momento deve ser desperdiçado para o
amolecer, para o acalmar. Porquê?… Não sei. Mas preciso de o convencer
de que somos bons amigos, e que não me pode fazer mal porque somos
amigos. Tudo depende disso.
Rápido, portanto, para não perder esta fugaz oportunidade de fazer
amizade, ela continua:
– Sou húngara e nunca estive na Sibéria. Lamento, não sabemos muito
sobre a Sibéria, apenas alguns clichés, sabes, por exemplo, que lá está frio,
muito frio. Estás a entender? – pergunta ela, articulando bem as suas
palavras.
O russo começa a sorrir. E é como se o sorriso iluminasse ainda mais o
seu rosto pálido. Com um ar um pouco de gozo, mas amigável, ele diz:
– Zima[11]– e acena com a cabeça, como se esta tentativa de comunicar o
divertisse.
Aparentemente, ela compreende esta palavra, pensa Erzsébet com
entusiasmo, e esforça-se por continuar a troca. É importante aproveitar
todas as oportunidades para criar um laço de amizade com o desconhecido.
– Zima, frio, sim – exclama alegremente, como se esta descoberta
tornasse agora o contacto entre eles marcadamente mais fácil. – Zima,
zimankó. Vês, também conhecemos as vossas palavras. Temos muitas
palavras de origem eslava como esta zimankó. Emparedámos o meu pai
numa outra cave, para que os alemães não o encontrassem – diz ela.
O russo está calado, nem pestaneja. Só um caçador pode olhar com tanto
cuidado quando faz pontaria, pensa Erzsébet. E um arrepio frio corre-lhe
pelas costas e por todo o corpo.
Agora o russo vira o seu olhar para longe de Erzsébet, e a mulher segue-
o com esperança. Não vai ser fácil, pensa ela; e o seu coração bate de forma
acelerada. Não vai ser fácil domar este homem. Já não é apenas
desconfiado; é receoso de uma maneira diferente. Ele simplesmente não
confia em ninguém. Se calhar devia oferecer-lhe algo… Numa caixa, vê
uma garrafa de aguardente que os carvoeiros deixaram lá. Ela dá um pulo e
entrega ao russo a garrafa e um copo um pouco sujo.
– Aguardente – diz ela. – Queres um pouco?
Antes de o homem responder, ela enche o copo com o líquido amarelo-
escuro. Segurando a garrafa numa mão e o copo na outra, aproxima-se do
russo, com um sorriso forçado, uma solicitude simulada, excessivamente
afável e amigável. Mas o homem levanta-se, tira o copo da mão de Erzsébet
e, com um gesto surpreendente, ergue-o bem alto. Bate os calcanhares,
ergue o copo na direção de Elisabeth, tal como nós fazemos aqui – o gesto é
um pouco provinciano, mas não é de todo ridículo.
Erzsébet acena educadamente, a garrafa continua na sua mão; o russo,
sério, com a cabeça inclinada para trás e os olhos fechados está a saborear a
bebida. Depois devolve o copo a Erzsébet, limpa a boca com a mão, acena
ligeiramente com a cabeça e senta-se agora sorrindo.
Ótimo, pensa Erzsébet. Já está. Somos amigos.
– Queres mais? – pergunta ela e volta a encher o copo. – Ofereço-te com
muito gosto, bebe… Vieste de longe e apanhaste frio. Mesmo que estejas
habituado à Sibéria… – agora fala assim, fluentemente; e o russo, um pouco
embriagado, está a sorrir.
O rosto pálido ficou vermelho, os olhos cinzentos cintilam. Consegui,
pensa Erzsébet alegremente. Senta-se ao lado do russo, garrafa na mão, olha
para o homem, e diz:
– Vamos sair daqui agora, pode ser? Acompanha-me, ajuda-me a
atravessar a rua – e aponta com a garrafa em que direção devem ir.
Mas o russo não responde. Ao que parece, a aguardente está a dominar o
corpo dele, bebeu um copo grande; não está bêbado, mas o álcool circula
pelo seu corpo, ao longo das suas veias. Os seus olhos cinzentos estão a
brilhar, um sorriso involuntário surge no seu rosto.
Erzsébet não gosta daquele sorriso. Talvez não lhe devesse ter oferecido
uma bebida, pensa ela. Talvez ele tenha bebido de estômago vazio, e isso
nunca é bom… Ela olha à sua volta, o que poderia oferecer ao seu
convidado para comer? Num prato há pão, um pedaço de queijo já trincado,
algum tipo de chouriço. Ela estende a mão em direção ao prato. Mas nesse
instante, com um gesto rápido – tal como um caçador ou um animal
carnívoro apanha a sua presa – o russo estende a sua mão e agarra o braço
de Erzsébet.
O toque da mão é frio e duro. Essa mão toca o corpo de Erzsébet de uma
forma bastante diferente do aperto reconfortante com que o professor a
tinha convencido a ficar pouco tempo antes. Os dedos brancos apertam-lhe
o braço com uma força implacável e impiedosa. Erzsébet não se consegue
levantar. Sente todo o sangue a descer da sua cabeça. O que é isto, pensa
ela, o que aconteceu? Será que fiz algo de errado? Será que ele não quer
comer?
– Muito bem, então não comas – diz ela e os lábios estão a tremer. –
Pensei que estavas com fome. Não estás?… Larga o meu braço –
acrescenta suavemente, porque lembra-se de que não está sozinha,
escondido no escuro o homem paralítico escuta.
Nesse instante, o tremor que tinha atravessado o seu corpo pelo contacto
com a mão do russo tornou-se ainda mais forte, incontrolável. Está a
tremer-lhe o queixo como se de um violento ataque de febre se tratasse.
– Larga-me – sussurra ela, como se a única coisa importante fosse que o
paralítico não soubesse nada do que está a acontecer.
É um sussurro íntimo, como se entre os dois, entre ela e o russo, existisse
uma relação que ninguém precisa de saber.
– Não me apertes o braço assim – diz ela. – O que é que queres?
Ambos se levantaram. O russo é bastante mais alto do que ela, Erzsébet
tem de erguer a cabeça para poder olhar para ele. Na luz fraca, ela vê
apenas a testa pálida do homem, o seu cabelo macio e brilhante com
madeixas prateadas e os seus olhos cinzentos, que continuam a olhar para
ela… um olhar fixo, mas em que há um reflexo diferente de antes. Agora
esses olhos cintilam como luzes estranhas a piscar no escuro. Ele nem
sequer diz uma palavra: mas não solta o braço de Erzsébet. Ele quer aquilo,
pensa ela. E, nesse momento, o seu corpo deixa de tremer nervosamente.
Ela inclina-se para a frente, liberta o braço do domínio do russo. A garrafa
de aguardente cai no chão e parte-se ruidosamente. Um cheiro nauseante,
fermentado e azedo enche o ar. O russo curva-se para baixo, agarra o ombro
de Erzsébet com uma mão e obriga-a a permanecer imóvel.
– Louco – grita Erzsébet. – Deixe-me ir, você é louco.
Já não tem medo. Acontece como quando se é confrontado com algo
impossível, absurdo, quando num sonho os fenómenos familiares,
conhecidos, se transformam em algo perturbador, monstruoso – uma barba
hirsuta brota num rosto conhecido, e esse rosto amado deforma-se num
esgar de ódio – e a pessoa que sonha sente uma alegria maligna e altiva,
porque finalmente o que era familiar, íntimo, revelou a sua verdadeira
faceta! Assim, agora que o russo lhe agarrou o pulso, Erzsébet já não tem
medo.
– O que é que estás a fazer? – grita ela. – Não acredito.
Mas o homem está calmo. Como se estivesse preparado para essas
palavras, como se não fosse a primeira vez que ouviu um protesto tão
veemente. Ele é calmo, profissional, desapegado. Neste momento, está a
segurar Erzsébet com ambas as mãos; ele não a abraçou, mas agarrou os
seus ombros e obrigou-a a virar-se para ele e a permanecer imóvel. Erzsébet
não tem força física suficiente para resistir ao aperto, à vontade dessas
mãos. Eles estão de pé, voltados um para o outro, o rosto do russo está a
brilhar em cima do dela. Erzsébet olha para essa cara. Como ele é jovem!,
pensa ela. E tão sério… Pois o rosto do desconhecido não revela nenhum
desejo apaixonado. O seu rosto jovem e pálido é sério e triste: essa tristeza,
essa gravidade silenciosa são mais terríveis do que um sorriso lascivo. Ele
inclina-se sobre Erzsébet, não pede, apenas toma; obedece, com gravidade e
sem possibilidade de oposição, a uma ordem que lhe foi dada.
E a antecipação que invade o corpo de Erzsébet naquele momento é
alimentada por essa gravidade e tristeza. Talvez se o russo gritasse,
explicasse, implorasse ou ameaçasse… talvez não fosse tão assustador.
Mas ele não fala. As duas mãos agarram os ombros de Elisabeth, o
homem permanece de pé, imóvel… os seus olhos cinzentos olham para a
jovem com desprendimento e frieza. É como se a figura silenciosa que
entrou na cave e trouxe a Erzsébet uma nova situação com o seu silêncio
dissesse algo mais terrível do que qualquer ameaça explícita. Com esse
silêncio, não se pode discutir. Se ele não falar, pensa Erzsébet, então não há
fuga possível.
– Fala – grita ela, e com o punho bate na cara pálida.
O russo começa a sangrar do nariz. Mas a figura imponente não se move
mesmo agora, ele continua ali, segurando Erzsébet firmemente com os
dedos, como se fossem algemas de aço, e resiste sem dizer nada enquanto o
sangue escorre das suas narinas.
– Fala – grita Erzsébet. – Porque é que estás calado? Diz qualquer coisa!
Explica o que queres!
Ela sabe que tudo seria melhor e mais fácil se o russo dissesse alguma
coisa. Apenas algumas palavras, se emitisse um som humano, e poderia
imediatamente negociar, discutir, evitar, rezar… a situação tornar-se-ia
novamente humana, se ao menos o russo falasse. Com um homem que nos
ameaça, pode-se discutir. Mas não com um homem que não diz nada.
Erzsébet sente com todo o seu corpo que o russo bloqueou com um gesto
simples e inapelável, que o homem não se calou de forma cruel e hostil,
mas triste e impotente, com aquela impotência particular do soldado que
não abre a boca perante o seu superior, ou de todos aqueles que ficam em
silêncio enquanto executam uma ordem inexorável, uma ordem dada por
uma autoridade, pelo corpo ou pelo instinto! Ela sente que perante um
homem que está calado é impossível argumentar.
Finalmente, um guincho agudo chega até ela. Uma criança ferida ou um
leitão trespassado grita dessa maneira. Na cave ecoa aquele grito atroz. Sou
eu quem grita, pensa ela desconcertada. O russo tapa com uma mão a boca
gritante de Erzsébet. O grito vem abafado, morre por falta de ar. O homem
levanta Erzsébet com um braço, com facilidade, como se levantasse um
objeto, deita-a na cama suja e deixa-se cair em cima dela. O corpo grande
parece não ter peso. Erzsébet sente dor, e um cheiro a água de Colónia
barata e ridícula que lhe recorda o salão de cabeleireiro suburbano. É
interessante ele também usar água de Colónia, pensa ela. Mas a dor é muito
forte. De olhos fechados, atira a cabeça para a almofada, porque a náusea
que sente é pior do que qualquer outra coisa. Lembra-lhe o tempo em que
ficou enjoada no barco em frente a Lovran. Começa a vomitar.
Vomitar ajuda. Devia tê-lo feito mais cedo, pensa Erzsébet enquanto
vomita, logo depois de me ter agarrado pelos ombros. Então, assim, se
calhar, não me tinha feito nada… Mas ela sabe que isso não é verdade. Sabe
– porque se tinha apercebido antes, quando a dor aguda, ardente
e lancinante tinha invadido o seu corpo – que nem uma conversa, nem a
ação, nem o vómito ou a luta, nada a poderia ter ajudado. No momento em
que o corpo daquele grande homem se aproximara, pesado e ao mesmo
tempo leve no acto sexual, ela sabia que ninguém a poderia ter ajudado,
porque, naquele instante, o homem não estava a «fazer» ou a «cometer»
nada, estava simplesmente a obedecer a uma ordem, uma espécie de
sentença.
Isto ambos sabíamos, pensou Erzsébet com os olhos fechados. Estranho,
ele não me beijou, pensa. Talvez porque o seu nariz estava a sangrar…
Agora, sente uma mão e um lenço a manejar à volta da boca; com gestos
cautelosos, desajeitados e ternos, o homem está a limpar vestígios de
vómito do rosto e pescoço de Erzsébet.
Limpa-o, pensa Erzsébet, limpa-me… Agora, que importa. Volta para a
Sibéria, e eu fico aqui. Talvez apanhe uma doença ou engravide. Volta lá,
para a Sibéria, onde está frio, muito frio, zima…
Ela sente a mão do russo na testa. O contacto é desajeitado, tímido. Só
não me peças desculpa, nada de elogios, pensa Erzsébet assustada,
especialmente não sejas terno… Ela sente que essa carícia é o limite para
além do qual já não pode tolerar nada. Ficam assim na espreguiçadeira,
Erzsébet deitada, de olhos fechados, o russo sentado na borda, perfumado
com água de Colónia, a palma fresca da sua mão a repousar na testa dela.
Durante algum tempo, nada perturba essa quietude. Situação idílica,
pensa ela, e torce a boca, como quando nos surge uma ideia estranha, e a
boca reage involuntariamente com uma careta sarcástica. Um idílio próprio,
o ambiente típico e perfeito do après. Só não tira fotografias, não me mostra
o retrato da sua mãe, da sua irmã, porque isso realmente não aguentava…
Ou talvez uma fotografia da sua namorada, da sua mulher? Mas não, ele
não é casado, conclui ela. Ele vive no Norte, lá em cima será um caçador ou
um operário. Um rapaz simpático…
Com os olhos fechados, atenta ao seu próprio corpo, escuta-o, como se,
debruçada sobre ele, pudesse ouvir uma resposta a tudo o que a sua razão
não podia, ou não ousava, exprimir por palavras. Mas o corpo, ela nota com
espanto, está calmo. Erzsébet não ouve nenhum gemido indignado, nenhum
protesto, nenhum grito a sair do corpo violado e desorientado. A dor e as
náuseas ainda circulam no seu organismo, como substâncias injetadas na
sua corrente sanguínea. Mas a dor agora adormeceu, e a náusea é vaga,
menos intensa.
O meu corpo não diz nada, constata. A dor passou, até me esqueci das
náuseas, e este homem não estará aqui por muito mais tempo. Terá de partir
em breve. Ele tem de ocupar o edifício ao lado, a rua. Depois Peste e Buda.
Depois terá de ir mais longe, terá ainda de ocupar as cidades para além do
Danúbio, Viena e Berlim. Ainda tem muito a fazer, pensa ela
sonolentamente, com admiração infantil.
Porque a dormência em que a dor e a náusea estão a dissolver-se, agora
atua como um ansiolítico sobre a sua consciência. Sente o pesado aturdir
que precede o sono; ouve o seu corpo e reflete.
Deve ser perigoso. Ocupar este prédio. Budapeste, Viena e Berlim. E
antes de chegar aqui, no meio de tanques e canhões, isso também deve ter
sido perigoso. Ele é muito jovem e triste, pensa ela, e não fala muito. Os
homens do Norte são taciturnos. O que é que ele disse? Nemcy, zima,
sibiren, e ponimaju. O que significa esta última palavra?… Ele acenou com
a cabeça enquanto a dizia, como se isso implicasse que compreendia algo,
que estava tudo bem.
– Ponimaju – diz Erzsébet de repente, e senta-se, e olha para o russo com
olhos bem abertos.
Ela disse isso durante o sono; mas agora acordou. O russo olha para ela
espantado, repete hesitando:
– Ponimaju?… – a sua voz é rouca e incerta.
Eles olham assim um para o outro. Tenho de arranjar o meu vestido,
pensa Erzsébet; e, involuntariamente, estende a mão. Mas o gesto morre a
meio caminho. Cada gesto é supérfluo. Em que estado estarei eu?
Assustador, pensa com satisfação. Não me lavei durante quatro dias, nem
sequer a cara. Vomitei por todo o lado, o meu cabelo tapa uma parte da
minha cara. As minhas mãos estão sujas, pegajosas. Estou a usar a mesma
roupa interior há dez dias. O mais provável é que esteja a cheirar mal,
constata, quase com alívio, contentamento. E este homem está limpo, bem
vestido, talvez até um pouco demais, como um cavalheiro acabado de sair
da barbearia.
Ela percebe com grande satisfação física o estado de negligência do seu
próprio corpo. Devo estar malcheirosa, suja, desgrenhada, talvez até tenha
vermes, não sei, nos últimos dias não tive tempo de prestar atenção a esses
detalhes. O meu cabelo está pegajoso de sujidade. As unhas… Erzsébet
levanta as mãos e olha para elas. O russo segue o seu movimento com os
olhos e depois o olhar de Erzsébet. As mãos também são como Erzsébet
esperava: a sujidade preta espreita debaixo das unhas. Pobrezinha, pensa ela
agora, com súbita e sincera compaixão. Foi isto que lhe calhou, este corpo
cheio de imundície. Este corpo imundo e malcheiroso, este cabelo
desgrenhado, o corpo desta mulher macerado na imundície de vinte e quatro
dias de cerco. E foi para isto que ele veio da Sibéria? Não me parece…
Mas então porquê? O que é que ele queria? O que é que lhe podia dar? O
que poderia eu significar para ele, porque o fez? Esta não sou eu. Esta já
nem sequer é Erzsébet Sós. Ela é uma bela rapariga de vinte e três anos,
com uma aparência limpa, seios bonitos e olhos azuis. E eu, onde estou?…
Estou certamente algures, atrás destes trapos, atrás deste corpo fedorento;
algures muito longe. Como ele é modesto, por se conformar com isto… e
olha para as suas mãos com piedade, as suas pernas calçadas de meias
esfarrapadas.
O estrangeiro, por outro lado, tem o cabelo arranjado e o rosto lavado,
limpo, mesmo nesta altura do cerco. Por causa do seu cheiro fresco parece
um cavalheiro matinal. Tem um cheiro masculino forte, nem sequer o do
tabaco e da aguardente se misturam na sua boca. Por ser jovem, a sua boca
é saudável, cheira a humano. Ele deve viver numa floresta ou junto ao mar.
O seu rosto ainda está coberto de sangue, resultado do murro que lhe dei.
Ele veio de longe, e trouxe-me… o que é que ele me trouxe? Erzsébet
reflete. Está concentrada, tenta encontrar uma palavra, uma palavra familiar,
como se estivesse à procura de um objeto apressadamente escondido. Mas
ela já não a consegue encontrar. Ela não consegue dizer o que o russo lhe
trouxe.
Ela só sabe que não guarda rancor contra o russo. Pelo contrário, ela
sente pena dele. Devia estar carente, pensa ela. Isso deve ser algo
semelhante à fome ou à sede. Quando se come carniça, bebe-se das poças.
Em dias anteriores, tinham trazido para a cave alguma carne cortada da
carniça dos cavalos, e tinham-na cozinhado e comido. Eu, então, não queria
comer essa carne de carniça. Mas este pobre rapaz comeu-a agora, pensa
ela. Ele merece mais. Aquele que come tal corpo, como o meu agora, deve
sofrer muito, caso contrário não o faria. Agora ele olha para mim e está
perturbado. Ponimaju, quem sabe o que isso significa, talvez compreendo,
ou algo… Eu compreendo, sim, eu compreendo. O que vai acontecer agora?
O que me vai dar como lembrança? Uma fotografia, dez rublos ou um pão
de forma? Há dois dias que não como pão…
Com grande e sincero espanto, com alegria, constata que sente fome.
Estou esfomeada, pensa ela; e, mais uma vez, sente nos seus lábios aquele
sorriso irónico e nervoso.
Porque tem realmente fome; como se isso fosse a resposta do seu corpo a
tudo o que aconteceu. Essa fome torce-lhe o estômago, aperta-lhe as
entranhas. Com um gesto involuntário e ganancioso, estende a mão em
direção ao prato onde há pouco ela tinha visto o pão e o queijo. Os seus
dedos encontram-nos. Sentada, começa a roer vorazmente o pedaço de pão
seco.
Com a cabeça ligeiramente inclinada para o lado, a boca semiaberta, o
russo olha para ela com espanto. O olhar assustado e espantado, a expressão
desnorteada do outro provoca riso nela.
– Estou com fome – diz ela, com a boca cheia.
O russo acena com a cabeça; depois, ainda com o mesmo gesto
desajeitado – como um adolescente a querer compensar um ato impróprio –
ele vira os bolsos, tira alguns trapos, no meio dos trapos procura um saco de
papel todo amassado, e com um gesto tímido entrega-o a Erzsébet.
– O que é isto? – pergunta ela. – Um presente?… Rebuçados?
Maravilhoso!
E ela está a rir. Cheio de gratidão – grato porque Erzsébet se vira para ele
e aceita o pacote –, o russo acena com entusiasmo, depois diz com uma voz
rouca:
– Da, da. Sachar[12].
Segurando o pão seco e os rebuçados pegajosos na sua mão, Erzsébet ri-
se de boca aberta e diz:
– És querido. Realmente, terno e atencioso. Muito obrigada.
Agora deixa cair os rebuçados no colo. De repente, sente-se cansada.
Encosta a cabeça em cima da almofada suja, o resto do pão seco também
cai da sua mão, tapa os olhos com o braço. Fica deitada assim.
Perto, ouvem-se passos. Erzsébet ouve o russo – sem fazer barulho, com
aquela prontidão furtiva de um animal selvagem, com movimentos
silenciosos – a saltar a pés juntos e a agarrar na arma. Vai, luta bem, pensa
Erzsébet. É o teu trabalho… Ainda tens muito a fazer antes de ires para
casa, para a Sibéria gelada. Luta bem. Ainda tens muitas caves à tua frente.
Ela não o vê, mas sente que o homem está lá, com a arma na mão; sente a
sua agitação e espera alarmada e ameaçadora ao mesmo tempo.
Ele quer partir e quer ficar ao mesmo tempo, pensa ela. Está perturbado,
porque tem de lutar, e não sabe o que fazer comigo agora. Parte, sem
dizeres adeus. A seguir, também eu me irei embora daqui. Sairemos todos
daqui, do inferno, para a rua e viveremos como pudermos.
Ela reflecte lentamente, meio adormecida; agora parece-lhe que não há
nada urgente, é um sentimento cruel e assustador. Um destes dias vou tomar
banho, da cabeça aos pés, vou até lavar o meu cabelo. Se eu tiver vermes,
vão desinfetar-me. Irei também a um médico. Se adoecer, eles vão curar-
me, entre os amigos do pai há muitos médicos. Se eu engravidar… bem,
vou dizer a Tibor. Tudo a seu tempo. Mas agora vai-te embora… Como se
ela lhe estivesse a implorar com os seus pensamentos, ela deseja com todas
as suas forças que o russo se vá embora, que se vá embora de imediato.
Ela abre os olhos. O homem, com um olhar confuso, vira-se para ela,
depois para a porta da cave.
– Tens medo? – pergunta-lhe Erzsébet em voz baixa.
O russo não responde. Aparentemente está a hesitar. E a mulher, a meia
voz, sussurra-lhe:
– Vai-te embora. – E ela estende a sua mão suja na direção dele com um
gesto frouxo.
Ela sente que cora, porque esse gesto fraco – o primeiro desse género
desde que se encontraram – é um gesto feminino, dirigido pessoalmente a
ele. O russo compreende isto. O seu rosto pálido ilumina-se, reflete uma
agitação ingénua e devota. Abre a boca, como uma criança, parece que quer
dizer algo. Com a ponta dos dedos, cautelosamente, toca na mão suja –
como se fosse um objeto ou um pássaro caído –, inclina-se, olha para ela.
Os seus dedos apertam a mão da mulher, incertos. Depois, volta a colocar a
mão no peito de Erzsébet.
Vira-se e afasta-se, não olha para atrás. No limiar da cave, agacha-se,
agarra a metralhadora com ambas as mãos, e espreita cuidadosamente para
a escuridão. Ouvem-se disparos novamente, não muito longe. O russo
coloca o boné na testa e, com os ombros para a frente e o tronco inclinado,
atravessa o limiar para desaparecer na escuridão do corredor. Erzsébet fica
ali, imóvel. A sensação de dor, náuseas, fome misturam-se no seu corpo
com um cansaço tórpido e apático que nunca tinha sentido antes. Seria bom
poder dormir, pensa. Dormir profundamente, depois levantar-se e tomar um
banho. Mas agora não posso dormir, pensa ela, porque estou livre. E mais
uma vez ela sente aquele sorriso desagradável à volta dos seus lábios, como
se formigas passassem em cima do rosto de uma pessoa adormecida. A sua
mão chega ao colo, onde encontra o saco de papel com os rebuçados que o
russo acabou de lhe dar. Agarra-o distraidamente e coloca-o no seu peito.
Fica ali deitada assim durante muito tempo.
Ouvem-se três tiros nas proximidades; a seguir volta a reinar o silêncio.
Já não se ouvem os passos. Podem chegar agora mesmo, pensa Erzsébet. E
de repente, com grande espanto: quem pode chegar até aqui? Os outros,
aqueles que tinham saído da cave? Ou os russos? Os alemães? Ou os velhos
conhecidos, as pessoas em geral? O meu pai ou Tibor? Estranho, não estou
à espera de ninguém, pensa ela calmamente.
Tudo parece estar vazio – não só a cave, mas também o prédio, a rua,
toda a sua vida –, ecoa a súbita solidão que pesa sobre Erzsébet depois da
partida do russo. Tudo o que ela compreende é que não está à espera de
ninguém. O seu pai pode ainda estar vivo, e um dia regressará às suas
estrelas. Mais cedo ou mais tarde, Tibor regressará a casa, e então retomará
as conversas sobre o futuro e a força moral para resistir… Mas Erzsébet
sabe que isso tudo já não será tão importante para ela como era há uma hora
ou alguns minutos atrás. Como se tudo – os projetos e empreendimentos
que até recentemente lhe pareciam ser os únicos objetivos da sua vida –
tivesse, de repente, perdido o sentido e o valor.
Tudo o que era importante antes, a biologia, estar à espera, a juventude.
E toda a esperança por aquilo que pudesse vir depois da libertação… No
entanto, a libertação chegou, pensa Erzsébet, e os seus dedos apertam o
saco de papel cheio de rebuçados. A libertação chegou, a guerra acabou.
Pelo menos a minha guerra acabou. E agora? Como é que vou lidar com
aquilo que vai acontecer?
Continua a dar atenção. O seu corpo está cheio de uma tal curiosidade
que deve bem haver alguém no mundo que possa responder à sua pergunta.
Mas, ao mesmo tempo, ela sabe que esse alguém não existe em lado
nenhum. O que é que as mulheres fazem quando algo assim lhes acontece?,
pergunta a si própria. Algumas suicidam-se, outras casam-se ou vão a um
médico… Foi o que aconteceu, pensa calmamente. E depois: como foi?
Terrível? Não, não foi terrível, pensa ela. Doloroso? Sim, foi doloroso. Mas
é uma dor familiar, a dor de uma mulher… Desagradável, mas não assim
tão desagradável. Foi repugnante? Talvez o que tenha sido realmente
nojento foi o facto de eu estar tão suja. Foi agradável? Não, não senti nada,
apenas dor e náuseas. Então… o que aconteceu afinal?, pergunta-se num
sussurro, e só agora percebe que já há algum tempo que fala sozinha a
meia-voz.
Agora que está a ouvir a sua própria voz, lembra-se que não está
sozinha. O paralítico está ali deitado num canto. Fica corada na escuridão.
Levanta-se abruptamente, ajusta o vestido e o cabelo. O seu rosto está a
arder. O que é isto? Vergonha, pudor? Sente uma tremenda raiva a arder em
todo o corpo, como se o paralítico, aquele homem silencioso, fosse o
culpado de tudo isto. Ela não se ressente do russo, nem sequer se ressente…
Porque deveria ela estar zangada… Mas ele, aquele homem, porque é que
permaneceu em silêncio? Se ele tivesse tossido, ou se tivesse feito um
esforço para se levantar e aproximar-se pelo menos um pouco mais, se o
siberiano tivesse visto que eles não estavam sozinhos… Mas não, aquele
cobarde, aquele desgraçado, aquele homem tão cauteloso e espertinho tinha
permanecido em silêncio.
Desgraçado, pensou Erzsébet corada, com a raiva a crescer dentro dela.
Ele é um cobarde, um calculista, viu tudo, ouviu tudo, e não interveio,
apenas ficou no canto. Aproxima-se da luz do candeeiro, levanta-o, começa
a dirigir-se energicamente em direção ao canto da cave onde o homem se
encontra; o violento raio de luz ilumina o leito do paralítico. Mas depois,
ela para: as suas mãos tornam-se pesadas, coloca lentamente o candeeiro no
chão. O homem está sentado com o tronco inclinado para a frente. Mantém
a cabeça baixa, o rosto escondido nas mãos, como se estivesse a rezar ou a
meditar. Senta-se assim, com as mãos coladas ao rosto, na pose de quem
está a refletir ou a orar. Não olha para cima, permanece imóvel, como se
não pudesse, ou não quisesse olhar nos olhos de Erzsébet, como alguém que
se envergonha de algo e tenta mantê-lo escondido… Erzsébet compreende
agora que o homem não tem vergonha do que aconteceu, nem sequer da sua
própria mesquinhez e impotência, mas sim de outra coisa, envergonhado de
outra coisa…
De repente, ela compreende, e como antes – quando o russo a agarrara
com ambas as mãos e um tremor frio atravessara todo o seu corpo, através
de todos os seus nervos – o seu queixo começa a tremer do frio. Ele tem
vergonha de alguma coisa, é por isso que esconde o rosto, pensa ela. Tem
vergonha de ser homem.
Agora que ela formulou este pensamento, o seu corpo deixa de tremer.
Aproxima-se do homem e, com um gesto reconfortante, afasta as mãos
brancas, ossudas e tendinosas do rosto dele, que agora levanta os olhos
brilhantes e a observa carinhosamente. Olham um para o outro durante
muito tempo.
– Acho que posso ir-me embora – diz Erzsébet.
O homem acena sim com a cabeça.
– Se quiser, já se pode ir embora.
Erzsébet revista o saco que trouxe consigo para o abrigo, tira um lenço,
deita-lhe algumas gotas de água de Colónia, limpa os vestígios de vómito
da cara. O homem com os braços cruzados observa imóvel enquanto a
mulher limpa o rosto, a boca, penteia o seu cabelo desgrenhado.
– Não precisa de nada? – pergunta Erzsébet, com o pente na mão, por
cima do ombro.
– Obrigado, eu não preciso de nada – responde o homem. – Eles virão
buscar-me dentro de algum tempo.
E aponta para a porta da cave:
– Aqui estão eles, chegaram.
O responsável pelo prédio entra com dois russos, e Erzsébet, com a
bagagem na mão, caminha tranquilamente em direção à saída e passa entre
eles. A confiança com que ela anda, a indiferença que mostra ao não os
dignificar com um olhar, obriga os russos a afastarem-se enquanto ela
passa: é como se ela marchasse no meio de uma guarda de honra, é assim
que ela atravessa a porta da cave. Estes russos são diferentes, mais baixos,
os seus rostos não estão barbeados, pensa Erzsébet enquanto passa entre
eles. E já ouve as suas vozes atrás dela, excitados, o líder a explicar e a
apontar, os russos a falar apressadamente, interessando-se por isto e por
aquilo.
Mas Erzsébet já se encontra agora no corredor, dirigindo-se para as
escadas. Por duas vezes tropeça em corpos humanos, passa por cima deles.
Um deles talvez seja o dentista judeu, pensa ela. Mas ela não se vira para
ver. Pisa outros corpos, com passos rápidos e ágeis. Sombras rápidas
movem-se à sua volta de todos os lados: russos em batas brancas, e, entre os
habitantes abrigados no prédio adjacente, algumas figuras familiares. Ela
distingue o chefe dos correios, que caminha rapidamente ao lado de um
russo de fato-macaco branco, e com uma voz rouca e sufocada grita
entusiasmado:
– Tovarišc´[13], por aqui, venham, sigam-me, tovarišc´!…
As criaturas do formigueiro subterrâneo começaram a movimentar-se, a
agitarem-se freneticamente. Mas ninguém cria obstáculos no caminho de
Erzsébet. Passa por cima dos mortos, e chega ao corredor. Aqui ela vê
novamente os carvoeiros; eles estão sentados num degrau, estão a brindar
com dois russos, seguram alegremente a garrafa de aguardente e oferecem
bebida aos convidados.
O portão está aberto, um brilho cinzento-pálido ilumina a rua. Já é
madrugada, pensa Erzsébet. Caminha energicamente, como se se dirigisse
para um destino específico e alegre. Mas o seu coração está vazio. Ela não
vê nenhum destino.
O que ela vê é a estrada devastada pelas feridas do cerco, coberta de
vidro estilhaçado e escombros, na gelada luz do amanhecer de janeiro que a
cobre com uma espécie de lençol imundo. Junto ao prédio, há um tanque
virado de lado; alguns passos mais à frente, perto da casa do sabatista, está
um carro a arder, envolto na dança nervosa das chamas vermelhas e
esverdeadas. Na esquina da rua, ainda se ouvem tiros de canhões e podem
ouvir-se metralhadoras a crepitar. Eles avançaram, pensa Erzsébet como
especialista em assuntos militares, estão agora a três edifícios de distância.
Ao meio-dia, esta rua estará livre.
E eu?, pensa ela e para. Fica ali, diretamente no meio da rua deserta, a
seus pés alguns invólucros de balas, a carniça de um cavalo rasgada em
pedaços e escavada por facas, um cadáver, tijolos e cacos de vidro. E eu,
serei livre ao meio-dia, serei alguma vez livre?
É como se nada mais lhe interessasse; faz uma pausa, olha à sua volta
perturbada, perplexa. A paisagem familiar da cidade está envolta em
chamas e fumo.
Quando serei livre?, pensa Erzsébet, e já não consegue continuar a andar.
O que será a liberdade? Olha para o nevoeiro, para o fumo e para o fogo.
Depois olha para o cadáver a seus pés, o que a impede de continuar. Na
luz cinzenta da manhã tingida de vermelho pelas chamas, ela reconhece o
russo. Deitado de costas, com a mão direita no peito num gesto de defesa,
como dormem as crianças quando o sono é profundo. A sua mão esquerda
está afastada do corpo, a metralhadora ainda está lá ao seu alcance. E o
boné com a estrela vermelha soviética, forrado com pelo de cordeiro,
também está perto na neve. O russo está esticado a direito, como se tivesse
sido deliberadamente colocado dessa forma. O seu rosto está coberto de
sangue. Erzsébet inclina-se sobre ele, ajoelha-se ao seu lado, a sua mão nua
toca-lhe no rosto. O jovem corpo ainda está quente. Um golpe na testa,
acima do olho direito, pensa Erzsébet. Pega no lenço embebido em água de
Colónia, e cuidadosa e meticulosamente começa a limpar as manchas de
sangue à volta dos olhos do homem morto.
Está a nevar, mas em flocos muito esparsos. Erzsébet limpa o rosto do
russo, e pensa que na Sibéria podem nem sequer reparar numa queda de
neve tão leve. É um tipo diferente de frio por lá, zima, pensa ela. E, de
repente, sente-se invadida por uma grande calma. É isso, então, pensa ela. E
como se tudo se encaixasse numa ordem – a guerra e tudo o que aconteceu,
este homem morto, e ela, Erzsébet, que agora está livre, mas não sabe o que
fazer com esta liberdade, e como ela, os outros, nem mesmo o paralítico, lá
em baixo na cave sabe o que fazer com a liberdade, porque ele é um ser
humano! –, como se esta situação, esta rua ardente, e no meio da rua este
homem morto, que lhe é tão estranhamente familiar e ao mesmo tempo
mais estrangeiro do que qualquer outro na vida de Erzsébet, como se tudo
estivesse em ordem, levanta-se, e com gestos lentos começa a torcer
lentamente o lenço ensanguentado.
As gotas de sangue caem sobre a neve. O fogo de morteiro na esquina da
rua cessou. Aparentemente, o bloco rendeu-se, pensa Erzsébet de forma
distraída. Agora só se ouve o crepitar das traves das casas em chamas.
Ela permanece assim durante muito tempo, a observar a luz cinzenta do
amanhecer, agarrando o seu lenço ensopado em sangue na mão.
A rua está deserta, a guerra afastou-se ainda mais. Um soldado russo a
cavalo aparece na esquina da rua. Cavalga lentamente sobre o pavimento
coberto de estilhaços de vidro. No brilho cinzento, no meio dos escombros
da rua em Peste, o soldado da guarda a cavalo tropeça indiferentemente,
como se não estivesse numa terra estrangeira, mas no seu próprio país,
algures ao longo do rio, numa caçada matinal. O cavalo e o cavaleiro
passam por Erzsébet. O soldado da guarda é jovem, as suas maçãs do rosto
são largas, tem típicos olhos asiáticos. Cacos de vidro crepitam debaixo dos
cascos do cavalo. O russo segura a metralhadora com uma atitude relaxada,
os seus olhos em forma de amêndoa viram-se para o fundo da estrada, e
depois – com o olhar indiferente e frio que só pode ser de alguém que veio
de longe, não só no espaço, mas também no tempo e na vida – baixa os
olhos para Erzsébet e para o homem morto.
Ele não diz nada, nem sequer acena com a cabeça, um momento depois
já virou a cabeça e volta a olhar para a distância. Quando o soldado a cavalo
desaparece no nevoeiro, Erzsébet começa a sentir frio.
– Aparentemente, estou livre – diz em voz alta.
Mas ninguém responde. Fica parada por algum tempo, sem saber o que
fazer.
Está com muito frio. Anda à volta do cadáver do russo, e com passos
incertos dirige-se para o prédio do lado oposto.
Leányfalu, julho-setembro de 1945
[8] «Senhora honrada» expressa sinal de respeito por uma pessoa de uma classe superior.
(N. da T.)
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