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Ficha Técnica

Título: Libertação
Título original: : Szabadulás
Autor: Sándor Márai
Edição: Cecília Andrade
Tradução: Piroska Felkai
Revisão: Clara Boléo
Capa: Maria Manuel Lacerda
Imagem de capa: © Stephen Mulcahey / Trevillion Images
ISBN: 9789722079174

Publicações Dom Quixote


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Este livro segue o Novo Acordo Ortográfico de 1990, por política da editora.
Índice

Ficha Técnica
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1

Na terceira noite após a passagem de ano[1] – o vigésimo quarto dia do


cerco de Budapeste – uma jovem decidiu abandonar o seu abrigo num
grande prédio no centro da cidade para atravessar a rua transformada num
campo de batalha e encontrar-se, por qualquer meio e a qualquer custo, com
o homem que há quatro semanas tinha sido emparedado, juntamente com
cinco camaradas, numa cave apertada do prédio em frente. Esse homem era
o seu pai, e a polícia política persistiu, mesmo no auge do caos e
da desordem, em procurá-lo com uma obstinação zelosa e perspicaz.
A jovem mulher não era uma «heroína», ou pelo menos não se
considerava assim. Por esta altura, apenas se sentia invadida por um imenso
cansaço: o cansaço que vem de um enorme esforço físico, quando o espírito
acredita que ainda consegue suportar a tensão, mas o corpo revolta-se
abruptamente, o estômago reage com náuseas a tudo o que acontece e o
organismo está indefeso, como se estivesse embrulhado num manto de
chumbo. Esse mesmo cansaço extremo, próximo da náusea, que se sente em
certos dias de verão de calor e humidade ferozes.
A jovem tinha boas razões para se sentir exausta: não tinha tido uma
residência fixa durante meses, e o seu pai estava em perigo de vida. Ela
tinha-o escondido durante dez meses, juntamente com outros homens,
imigrantes ilegais, fugitivos, que naquele mundo, agora em ruínas,
procuravam refúgio ocasional, abrigo para a noite. Nas últimas semanas, ela
própria tinha sido forçada a viver como «foragida», porque na universidade,
onde frequentava o seu último semestre, tinha desobedecido às ordens
alemãs ao recusar-se entrar num comboio, com os seus colegas de turma,
que era suposto levar os jovens estudantes universitários de forma segura
para a Alemanha antes da chegada dos russos. E, agora, era também
considerada uma espécie de «desertora», por viver escondida com
documentos falsos. Mas, como muitos outros, ela não se importava com
pormenores tão insignificantes. Os russos tinham agora atravessado os
subúrbios e estavam a lutar nos bairros do centro da cidade.
De acordo com os documentos falsos – obtidos pela filha de uma das
empregadas de limpeza da universidade – o nome da jovem mulher era
Erzsébet Sós. Segundo os documentos, tinha vinte e três anos e trabalhava
como enfermeira hospitalar; para um observador superficial, tudo isto até
podia ser verdade. Em vez disso, e por puro acaso, apenas o primeiro nome
correspondia: o nome da jovem era realmente Erzsébet. Nessa coincidência,
viu um sinal celestial, um viático benevolente: não teria de substituir o E
inicial bordado na sua roupa interior por outra letra, e estava feliz com isso,
porque agora só tinha aquela que estava a usar.
Por vezes, em momentos de maior calma e lucidez – nas últimas
semanas, e nas últimas quatro semanas em particular, uma vez que o seu pai
tinha sido emparedado atrás da parede da cave do edifício oposto, sentia-se
como se tivesse febre e só conseguia raciocinar de acordo com a lógica e o
senso comum – achou ridículo esse disfarce e a necessidade de recorrer a
documentos falsos: ridículo, tolo, resultado de excessiva precaução e zelo
supérfluo, uma importância excessiva para si própria. Como todos aqueles
que, nos últimos meses após a invasão alemã, tinham sido obrigados a
esconder-se por alguma razão, Erzsébet também tinha aprendido todos os
estratagemas associados a essa situação, mas ao mesmo tempo
compreendeu que, com a devida cautela, era o destino cego que presidia aos
seres humanos nestas situações.
As pessoas escondiam-se durante meses a fio, munidas de documentos
«irrepreensíveis», com cuidado extremo, mas depois, um belo dia, às cinco
da tarde, sob efeito de uma espécie de esgotamento nervoso, iam para a rua
e para o habitual café ou cinema, e, por fim, acabavam diretamente nos
braços dos guardas ou da polícia política. Foram assim presos, ou não
aconteceu nada… Erzsébet suspeitava que nem sequer o mais astuto dos
«guerrilheiros» seria capaz de prever os acontecimentos.
Mas a maioria destes «guerrilheiros» deram-se ares de importantes; entre
eles estavam alguns que nem sequer eram procurados, apenas tentavam
construir um álibi perante si próprios e o mundo, com vista a um futuro em
que poderiam dizer que estavam entre os perseguidos naqueles tempos
sombrios. Erzsébet também sabia muito bem que podia andar
tranquilamente pelas ruas. No entanto, escondeu-se: porque, naqueles dias,
o nome que tinha era provocação suficiente para os polícias do regime.
É claro que não se chamava Erzsébet Sós. O que estava a causar
problemas era o nome do seu pai, esse nome conhecido e respeitado em
todas as partes do país, o nome do cientista e professor que, nos últimos
anos, os jornalistas tinham vindo a citar com um ódio cada vez mais
violento na sua crescente sede de sangue e que as novas autoridades
evocavam nas suas reuniões políticas. O nome do seu pai, que Erzsébet
também ostentava, esse nome conhecido e respeitado mesmo fora das
fronteiras do país, onde quer que os homens ainda fossem capazes de
julgamento imparcial e reflexão científica, esse nome não poderia então ser
levado ao conhecimento público.
Erzsébet Sós sabia que não se encontrava pessoalmente ameaçada por
qualquer perigo. Quem, nesse caos, se teria interessado por uma rapariga
tão jovem? O seu único crime foi não ter partido para a Alemanha com os
outros estudantes evacuados. Mas quem sabia disso? No máximo, alguns
funcionários da universidade; e estes, se ainda estivessem em Budapeste,
devem ter tido outras preocupações que não as de procurarem estudantes
desaparecidos. O destino pessoal de Erzsébet não tinha qualquer interesse
para ninguém.
Mas o nome do seu pai, mesmo agora que a grande cidade estava em
chamas, e os russos já lutavam de rua em rua, de casa em casa, contra os
alemães cercados e em retirada e contra os cruzes flechadas húngaros, esse
nome ainda tinha o poder de irritar os fascistas. O nome do seu pai, ao qual
não pertencia nenhuma memória de qualquer ação política, era um sinal de
aviso para todos os fascistas nos seus últimos anos. A pessoa do seu pai, a
vida solitária que levava, o seu trabalho, aquele trabalho científico isento de
qualquer interesse prático diário, provocava a raiva e a agressividade dos
seus colegas e políticos; e nos últimos tempos, o seu nome tinha-se tornado
quase um objeto de ódio também para as pessoas comuns.
Porquê?… Erzsébet tinha testemunhado muitas discussões sobre o
assunto e lido os artigos e panfletos dos adversários, mas nunca tinha
conseguido encontrar a mínima acusação bem fundamentada naquelas
ferozes invetivas. É um esquerdista, disseram, ou insinuaram perfidamente
que era amigo dos britânicos e dos judeus, que era pago por uns ou outros,
que tinha feito acordos secretos com Moscovo, que tinha traído o ideal
nacional húngaro, a ciência… Era, pelo menos, o que eles afirmavam. Mas
o seu pai não era membro de nenhum partido político, e os seus amigos de
esquerda até o censuraram pela sua atitude moderada. O seu pai não
participou em reuniões secretas; entre os seus amigos havia também judeus,
mas também muitos que não o eram, e que sobre a questão judaica, como
sobre a situação política, pensavam de forma diferente e discutiam
vivamente com o cientista. No entanto, continuavam amigos…
E depois havia os outros, aqueles que odiavam o seu pai. Escreviam e
falavam dele como se organizasse partidos, exércitos secretos, como se
tivesse relações diretas com os aliados, como se tivesse traído, vendido o
país. Erzsébet sabia que todas estas acusações eram falsas.
O seu pai era astrónomo e matemático… e, mesmo em tempos recentes,
parecia interessar-se com maior paixão e profundidade pelos segredos dos
céus do que pelos acontecimentos terrenos. A sua opinião sobre os judeus
era que eles eram seres humanos, nascidos de uma mãe, e não podiam ser
condenados e punidos pelas suas origens; eram seres humanos, capazes de
cometer erros, e se eles fossem condenados seria apenas por esses erros,
certamente não pelas suas origens. Mas agora que os judeus eram
perseguidos como feras, ele tinha decidido abandonar toda a cautela; tinha
partilhado a sua casa e os seus ganhos com os perseguidos. Erzsébet sabia,
além disso, que o seu pai também ajudava refugiados polacos, estudantes
sérvios, intelectuais franceses que o turbilhão da guerra tinha conduzido
para o território húngaro… Um território que desde o início da ocupação
alemã tinha deixado de ser uma pátria para se tornar um terreno de caça
onde perseguidores e perseguidos se enfrentavam uns aos outros.
O seu pai estava entre os perseguidos. No dia da ocupação – Erzsébet
lembrar-se-ia daquela manhã de domingo para o resto da sua vida! – os
homens da Gestapo já o tinham procurado no início da tarde, e como não o
tinham encontrado nem em casa nem no seu escritório, tinham deixado uma
notificação escrita a lápis num pedaço de papel, ordenando-lhe que se
apresentasse num hotel no centro da cidade. Mas o seu pai, já avisado pelos
seus amigos, tinha partido para o campo no comboio da manhã.
Erzsébet tinha deixado o apartamento nas primeiras horas do dia, com
medo de ser interrogada e forçada a revelar o esconderijo do seu pai – já
circulavam informações fiáveis sobre os métodos de interrogatório dos
nazis e dos seus colaboradores húngaros. Desde então, quanto tempo tinha
passado? Erzsébet tinha feito a contagem: exatamente dez meses, desde o
dia 19 de março até ao dia 19 de janeiro, há dez meses dessa mesma hora,
que ela já não vivia em casa.
Esta casa, também o seu escritório isolado, onde o pai morava desde que
ficara viúvo, levando uma vida calma e retirada com a sua filha, tinha-se
desmoronado lentamente ao longo desses dez meses. Primeiro, foi a polícia
alemã que saqueou todos os quartos depois de mãos desconhecidas
e misteriosas terem roubado roupas e objetos; em outubro, após a revolta
dos cruzes flechadas, ladrões com braçadeiras tinham revistado os quartos
já devastados, para tomar posse do que restava; finalmente, em novembro,
uma bomba tinha dado o golpe mortal no apartamento e no prédio inteiro.
Erzsébet sabia há semanas o que o seu pai ainda não sabia: já não tinham
lar, restavam apenas alguns manuscritos e alguns livros que um amigo
generoso, durante esses dez meses, tinha salvo de ladrões e de bombas.
Mas a casa estava em ruínas, e nas ruínas todas as notas preciosas do seu
pai, fotografias, cálculos, livros raros de astronomia inglesa, francesa e
alemã, cartas, artigos polémicos de colegas estrangeiros tinham sido
perdidos… Tudo o que ainda era importante para o seu pai em vida. Os
móveis, as memórias de uma família antiga, as roupas… Erzsébet nem
sequer pensou nisso.
O seu pai estava de alguma forma persuadido de que a casa continuava a
existir. Naqueles meses de esconderijo, ele falava sempre confiante de
como em breve voltariam ao apartamento sossegado no centro, como
substituiriam os objetos perdidos por novos, os livros e as notas, dizia ele,
encontrá-los-iam no seu lugar, «porque ninguém saberia o que fazer com
eles, certo?» Era assim que ele se consolava e se encorajava. E Erzsébet não
tinha tido a coragem, nesses dez meses, de lhe dizer a verdade sobre o
destino da casa.
O homem, sobre cuja cabeça os fascistas tinham secretamente colocado
um preço, e que estava a ser procurado por todo o país por agentes
profissionais húngaros e alemães, agarrou-se obstinadamente à esperança de
que o trabalho de toda uma vida não se tivesse perdido. Ele acreditava que
um dia seria capaz de continuar a trabalhar, ver a sua casa novamente… E
por vezes, aquele grande estudioso das coisas da natureza, que considerava
até os segredos dos céus apenas em termos de equilíbrio natural, falava com
uma confiança próxima da superstição da casa à qual, um dia, Erzsébet e
ele, o cientista perseguido, voltariam. Por ocasião dos seus raros e
arriscados encontros, quando visitou o seu pai num dos seus novos e cada
vez mais engenhosos esconderijos, Erzsébet não ousou dizer-lhe que mãos
humanas, ladrões sorrateiros, polícias sanguinários, e, finalmente, bombas
tinham devastado a sua casa.
Há dez meses – um período que lhe parecia tão distante como se
estivesse a olhar para ele do lado oposto da vida! –, algumas horas após a
fuga do seu pai e antes da chegada da Gestapo, Erzsébet também tinha
deixado o apartamento. Ela só o voltaria a ver numa noite nebulosa de
novembro, algumas semanas antes, quando lhe tinham chegado notícias de
que uma bomba tinha destruído a casa. Não havia mais lar, estudos, notas,
biblioteca, nada restava agora. Mas ela só pensou nisto de passagem.
Dez meses. E os últimos vinte e quatro dias. Só isso?… Na cave, muitos
contaram o início do cerco a partir da véspera de Natal, quando os
primeiros tanques russos tinham aparecido do outro lado do rio, numa
grande praça em Buda. Depois, tudo, naquele caos infernal, se tinha tornado
incerto e confuso. Dez meses, em que as suas vidas, os seus destinos
mudaram de uma semana para a outra. Semanas em que tanto Erzsébet
como o seu pai sentiram o sopro da polícia no pescoço, dias e horas em que
se tornou quase impossível encontrar um novo esconderijo, mesmo por uma
noite, um buraco, uma cama, um armário, um sótão ou uma adega, porque
os seus amigos assustados começavam a cansar-se, porque o halali dos
perseguidores parecia cada vez mais próximo… porque dez meses passados
naquelas condições era muito tempo!
Erzsébet só agora percebera quanto tempo tinha passado! A situação
estava em constante mudança. A grande caçada dos primeiros meses tinha
sido seguida de uma espécie de calma temporária, a vida parecia menos
cheia de perigo, como se a grande excitação tivesse diminuído, como se a
polícia tivesse ficado cansada. O ambiente político parecia menos sombrio:
algumas embaixadas estrangeiras, as embaixadas sueca, suíça e portuguesa,
o gabinete do Núncio Papal, deram o seu apoio incessante; apareceram
heróis sem nome com a cruz vermelha no peito; potências estrangeiras
começaram a mobilizar-se a favor dos judeus perseguidos, das centenas de
milhares de pessoas infelizes amontoadas em carruagens de comboio e
levadas para as câmaras de gás, dos refugiados políticos… As pessoas não
tinham realmente vivido durante esses dez meses, pareciam aturdidas pelo
sopro do simum.
No entanto, de vez em quando, esse vento escaldante diminuía. Um dia,
aconteceu que uma confiança cega e irracional deu aos oprimidos a
coragem de pôr o nariz fora dos seus esconderijos, de sair para as ruas, de
conhecer pessoas, de trocar mensagens. Num desses dias, o seu pai deixou o
campo e foi para a capital: viajou de comboio, ninguém falou com ele,
ninguém o reconheceu, ninguém o denunciou; chegou à cidade, encontrou
imediatamente um lugar para dormir na casa de um antigo aluno, estava
sereno e confiante, queria recuperar as suas notas imediatamente, voltar ao
trabalho… Estava-se a meio do verão.
Centenas de milhares de judeus da província já tinham sido deportados,
mas os judeus de Peste e os perseguidos políticos, fechados nas suas casas
do gueto marcadas com a estrela amarela ou escondidos em casas privadas,
falavam com a esperança ansiosa da libertação iminente. Era como se algo
tivesse acontecido: os alemães não resistiriam por muito tempo, as forças
internas húngaras levantar-se-iam, as figuras políticas eminentes agora
forçadas a esconder-se protestariam, iria acabar em breve… Então, de
repente, o pânico!
O que é que tinha acontecido? Nada em particular, ou talvez apenas isto:
nada tinha acontecido. Perceberam então como a «mudança» que pensavam
estar tão perto, que já podiam tocar com as mãos, ainda estava muito longe,
se calhar, semanas, até meses, passariam, e cada dia, cada hora era um
prenúncio de acontecimentos terríveis.
Os condenados e perseguidos não foram os únicos a aperceberem-se
disso. As mãos solidárias que, ainda ontem, por generosa solicitude ou
cálculo prudente se tinham aproximado deles, retiraram-se subitamente com
medo. Ainda ontem, dez pessoas estavam prontas a oferecer abrigo durante
uma ou mais noites ao clandestino, enquanto hoje o mesmo clandestino, ao
anoitecer, ainda não sabia onde iria deitar a cabeça. Como é que… Teria
acontecido alguma coisa? O pânico, o terror, uma notícia falsa de guerra, ou
uma outra de «armas maravilhosas», uma mentira absurda e disparatada,
tudo isto alarmou o povo, e aqueles que ontem, com generoso empenho, se
apressaram a ajudar, hoje fecharam-se, regelaram, gaguejaram
embaraçados, já não atenderam o telefone, e já não abriram a porta ao toque
combinado da campainha.
Durante dez meses, o ritmo dessa dança variava de semana para semana.
Eram poucos os que suportavam ou que sabiam aceitar, com calma e
tenacidade, os riscos extenuantes da solidariedade. E poucos, também,
foram os perseguidos que não cometeram erros facilmente evitáveis, que
não caíram perante obstáculos imprevistos, que não reagiram de forma
imprudente a alguma mudança repentina no clima político… O seu pai, ele,
resistiu à perseguição.
Ninguém, nem mesmo Erzsébet, teria ousado esperar que este homem de
constituição frágil, afastado dos assuntos do mundo, solitário e desajeitado,
tivesse obstinadamente sobrevivido a meses de perseguição e
clandestinidade com tal teimosia, resistência, exibindo uma astúcia lúcida.
O cientista cumpriu a tarefa excecional que a vida lhe tinha imposto e que
lhe era absolutamente estranha, física e mentalmente, com um sentido tão
prático que quase parecia ter passado a sua existência não afundada em
estudos astronómicos abstratos, isolado no seu gabinete, longe do tumulto
do mundo, mas numa barricada qualquer, ao lado dos seus jovens e
combativos camaradas em batalha. Em silêncio, com um sorriso suave,
suportou pacientemente a mudança, e também as condições de vida
dolorosas e desconfortáveis; adaptou-se a companheiros mal-humorados, a
clandestinos com nervos frágeis que viam perigos mesmo onde não havia
nenhum, teve sempre uma boa ideia quando era necessário, não se cansava
de encorajar os necessitados, de animar aqueles ruidosos que, depois de
perderem o fôlego, ficavam ansiosos e comportavam-se da forma mais
imprudente…
Em todos aqueles meses, os nervos do seu pai não tinham falhado. Ele
conseguia ler, mas, na ausência de livros ou companhia, ou – o que para ele
era ainda mais intolerável – na companhia de pessoas ignorantes e
superficiais, conseguia manter-se calmo, atencioso, prudente. O seu nome
era um sinal, um lembrete sinistro e excitante para aqueles que andavam
atrás dele.
O que é que eles odiavam nele?… Certamente não a sua postura política
– todos sabiam como ele detestava a ideologia fascista da época, a teoria
sobre raça, a loucura de um poder obcecado pelo ódio e pela violência
voraz, como estava convencido de que as forças mobilizadas a nível
mundial pelos Aliados acabariam por derrotar a máquina de guerra
alemã! –, não, foi antes o seu comportamento como homem que alimentou
o ódio feroz dos seus colegas que tinham escolhido ficar do lado do poder e
da sua imprensa ruidosa. Esta atitude era inequívoca: o seu silêncio irritou a
direita exatamente como se tivesse levantado a sua voz contra ela. Nada, de
facto, era mais valioso para o grupo dirigente do que a autoridade moral do
homem da ciência. Ter-lhe-iam concedido qualquer coisa se com um aceno
de cabeça ele tivesse aprovado a sangrenta aventura para a qual, com
slogans nacionalistas e raciais sedutores, pretendiam arrastar as massas.
Mas precisamente isto, o apoio moral do homem da ciência, era o que não
conseguiam obter do seu pai: daí o ódio. Eles teriam precisado do seu
nome, o famoso e imaculado nome do cientista, mas esse cientista tinha-se
mantido em silêncio durante anos, não se tinha afastado do seu gabinete e,
finalmente, em meados de março tinha desaparecido. Por isso odiavam-no,
e procuravam-no com uma obstinação cada vez mais maníaca.
Dez meses passados assim. Dez meses em que Erzsébet não tinha podido
usar o nome do seu pai. Quando cada toque de campainha poderia significar
qualquer coisa. Quando, com a venda dos seus poucos objetos com algum
valor, tinham conseguido sobreviver; na verdade, gastaram muito acima das
suas posses – ninguém se entrega a despesas tão exorbitantes como aqueles
que são forçados a esconder-se! – e todos os dias aquele pouco de comida
necessária para sobreviver numa cave tornara-se cada vez mais escasso. Um
relógio, um anel antigo, o violino do seu pai, e depois o sacrifício mais
doloroso, alguns dos raros livros que ele tinha laboriosamente guardado:
tudo tinha acabado no mercado negro. A clandestinidade devorava
o dinheiro.
Como não tinha senhas de racionamento, Erzsébet comprava alimentos a
altos preços no mercado negro, que depois partilhava com outras pessoas
famintas. Há dez meses que o seu pai vivia assim, e Erzsébet não se atrevia
a revelar-lhe a miséria total em que se encontravam. Roupas, livros, roupa
de cama, tudo se tinha agora transformado em comida para satisfazer as
suas necessidades diárias. O fundo de solidariedade estava a começar a
esgotar-se, mas o seu pai nem sequer sabia – e nunca deveria saber – que
ela tinha sido recentemente obrigada a aceitar a ajuda dos movimentos de
resistência clandestinos. Quando o cerco começara, eles já não tinham nada.
O regime terrorista das cruzes flechadas[2] tinha conseguido assustar os
últimos amigos de boa vontade, mesmo os mais corajosos. À noite, a polícia
tinha tocado à campainha da porta, orientada por denúncias, que certamente
não faltavam naquela altura! Era como se toda uma sociedade, no momento
de extremo perigo, tivesse perdido toda a dignidade humana residual:
pessoas traídas em massa, escreviam cartas, anónimas ou com o seu
primeiro e último nome, corriam pessoalmente para denunciar um
desgraçado que, no turbilhão dos últimos acontecimentos, se tinha
escondido no fundo de um abrigo…
Mas chegou o dia em que Erzsébet percebeu que já não conseguia lidar
com as ansiedades de uma vida que exigia nervos de aço, astúcia, engenho.
A noite chegou quando Erzsébet soube que o esconderijo do seu pai tinha
sido descoberto e que eles iriam apanhá-lo. Um miliciano, um dos
assassinos, tinha-se gabado da proeza iminente à sua namorada, uma
estudante. Incitada pelo bizarro impulso que por vezes inspira ações
humanas, a rapariga, que também nutria simpatia pelos cruzados, tinha ido
ter com Erzsébet para revelar tudo à companheira.
Tinha acontecido às sete horas da noite, dois dias antes do Natal.
Erzsébet ainda sentia o terror que tinha arrefecido o seu corpo e alma ao
ouvir a notícia. Procurar um novo esconderijo para o seu pai, naquela noite
de inverno, numa cidade bombardeada, onde a maioria das pessoas já tinha
abandonado as suas casas e dormia em abrigos! Levar alguém tão
conhecido como o seu pai para um abrigo onde qualquer pessoa o pudesse
reconhecer, ou escondê-lo numa daquelas casas vazias sem aquecimento,
que ela nem sequer podia deixar para ir até à cave em caso de
bombardeamento! Ela lembrar-se-ia sempre do tremor nervoso que abanara
o seu corpo ao ouvir tal notícia.
E depois todos estavam cansados. Solidariedade, compaixão, todos os
sentimentos de humanidade tinham-se desvanecido da alma das pessoas.
Todos, a qualquer momento, esperavam a morte, uma bomba, uma bala de
canhão, ou uma mudança, uma reviravolta repentina de acontecimentos
cujas consequências ninguém podia prever.
Durante esse período de Natal, os últimos dias antes do cerco, a cidade
tinha caído em angústia e apatia. Todos tinham medo, todos faziam um
balanço, ou calculavam ansiosamente, com a meticulosidade de um
avarento, os «pontos bons» adquiridos. Atormentados, assombrados pela
consciência de uma culpa comum monstruosa, os habitantes da grande
cidade estavam temerosos, cheios de incerteza. Amizades romperam-se,
parentes, membros da mesma família atiraram-se uns aos outros com fúria
descontrolada, ou fugiram. Todos: mas quantos eram?
Na altura, a população de Budapeste, contando os refugiados, era
estimada em cerca de um milhão e meio. Os refugiados, em consequência
dos rumores terroristas difundidos pelos nazis, tinham fugido das suas casas
antes da chegada dos russos, abandonaram as suas quintas distantes na
Transilvânia, no norte da Hungria e na Grande Planície; corriam rumores de
que os russos tinham ateado fogo a aldeias e cidades, matado os habitantes,
não poupando nem mesmo os bebés, e afirmavam que aqueles que não
tinham fugido dos russos eram traidores à pátria, carrascos das suas
famílias! Tudo isso era propaganda!, diziam muitos, mas diziam-no com
ranger de dentes. Na realidade, ninguém tinha a certeza de nada. Os russos
estavam agora por perto, a poucos quilómetros de distância, e ainda
ninguém sabia de nada. Era como se um nevoeiro separasse os russos do
universo conhecido; esperar por eles era como estender a mão para o
nevoeiro.
Mas o seu pai tinha de fugir. Dois dias antes do Natal, quando o céu à
volta de Budapeste começava a ficar avermelhado, quando os projéteis de
morteiros brilhavam incessantemente sob o céu escuro de dezembro e a
rádio já não avisava da aproximação de bombardeiros. O telefone ainda
funcionava, ainda havia água e luz na cidade, de tempos a tempos, uns
elétricos escuros vagueavam pelas ruas escuras, preenchidas de barreiras
antitanque, posições de artilharia, barragens de betão, poços de argamassa
fixos; mais uma vez, a última, Erzsébet partiu para encontrar abrigo, um
esconderijo para o seu pai, perseguido e sob ameaça iminente de morte.
Ela bateu a duas portas em vão: alguns amigos já tinham saído do
primeiro endereço; quanto ao outro – um apartamento com três quartos
danificado por bomba no segundo andar de um edifício, um conhecido
esconderijo no círculo dos movimentos clandestinos –, estava vazio há
vários dias. Ninguém respondeu quando ela bateu à porta na escuridão do
corredor, uma estranha sussurrou-lhe que alguns dias antes, agentes do
partido da Cruz Flechada tinham revistado o apartamento e levado amigos e
estranhos. Erzsébet saiu da porta, depois parou na rua escura. Para onde ir
agora? Uma morada veio-lhe à cabeça, uma morada em Buda… e quase
correu em direção à ponte das Correntes.
A maior parte das pontes naquela noite ainda estava de pé. A ponte das
Correntes, aquele grande corpo gracioso que com a sua bela silhueta tinha
feito parte das viagens diárias de Erzsébet ao longo da sua infância e
juventude, aquele corpo leve e arejado, suspenso sobre a grande via
navegável, com as gaivotas por cima dos pilares, aquele grande corpo
familiar rodeia e apoia suavemente, com os seus braços fortes, o ligeiro
peso de Erzsébet enquanto ela se apressa. Ela atravessa a ponte quase a
correr. De todos os lados, sentinelas seguem-na com os seus olhos; às
correntes de suspensão estão presas cargas de ecrasite. Erzsébet tem a
sensação de que está a caminhar no pavimento daquela ponte familiar pela
última vez.
É uma noite de Lua cheia e brilhante. À sua direita ela vê as ruínas da
ponte Margarida, que foi rebentada; com a cabeça do lado da Peste
afundada na água, a ponte parece agora um monstro pré-histórico dobrado
sobre o antigo rio, o Danúbio, um réptil gigantesco caído de joelhos, ferido
por um caçador cruel… Mas a cidade, que já nem sequer tem iluminação,
com as suas silhuetas escuras, continua viva sob a luz da Lua. Na margem
direita, o grande cenário com o Palácio Real, a sede do primeiro-ministro
e o Parlamento do lado oposto, tudo o que é história esculpido em pedra,
um símbolo de orgulho e ostentação, ainda está no lugar.
Erzsébet chegou ao outro lado da ponte; o enorme canhão instalado em
frente do túnel observa a outra margem do rio. A seguir, começa a caminhar
em direção ao Palácio ao longo da avenida sinuosa que contorna a colina.
Aqui reina um silêncio mortífero, parece uma cidade encantada. Os
gabinetes ministeriais e o Palácio estão abandonados e desertos; os
saqueadores dos cruzes flechadas já partiram com os tesouros roubados,
algures na Áustria estão a brincar ao governo, à presidência de um estado…
Erzsébet cruza a Praça Dísz, toca à porta de um pequeno palácio. Toca
durante muito tempo, ninguém responde. Tudo sugere que o palácio está
deserto.
Encosta-se à parede e, de repente, sente-se muito cansada. Que horas
são? Já passa das oito, os cruzes flechadas vão buscar o seu pai por volta da
meia-noite. Ela olha para o céu, que brilha azulado à luz fria da Lua. De vez
em quando, um tanque atravessa a praça. Em algum lugar os aviões russos
estão a lançar um ataque, bombas podem ser ouvidas a explodir nas
proximidades. Dois soldados passam por Erzsébet a correr, atiram-se ao
chão, um deles grita para ela: «Debaixo do portão!» Eles ficam assim
durante alguns momentos, depois saltam sobre os pés e fogem.
E agora o quê? No pequeno edifício viviam conhecidos, pessoas do
antigo regime, a família de um ex-funcionário do ministério dos Negócios
Estrangeiros, pessoas comuns, anónimas; esse endereço era a última
esperança de Erzsébet. O prédio está escuro, silencioso, visivelmente
deserto. Teriam eles também levado os seus habitantes? Ou será que
também fugiram dos alemães ou dos russos? Por esta altura já estavam
todos a fugir para escapar aos perigos de que nada sabiam; a histeria da
fuga espalhava-se pela atmosfera sufocante da cidade sitiada, todos estavam
infetados por ela. A fugir para o estrangeiro, abandonar a cidade, ou ficar lá,
refugiando-se no subsolo, numa das cavernas profundas que perfuram a
colina em que se encontra o Palácio, o mais profundo possível… Muitos
procuraram uma forma extrema de escapar, entregando-se à morte. Outros,
em delírio, trancaram-se nas suas casas, esperando por ela em frente de uma
janela aberta.
Erzsébet sente-se desamparada, perdida, já não consegue aguentar. É o
destino, estes são os últimos momentos; a quem mais pode ela recorrer?
Mas nesse momento, como muitas vezes acontece num sonho, quando,
numa fração de segundo, uma situação atroz e impossível derruba a nossa
visão familiar do mundo, num décimo de segundo, ela pensa, de repente,
como se uma voz lhe gritasse: «O sabatista![3]»
E ela vê um rosto. Como é este rosto? Não é nada de especial. É o rosto
de um homem de cinquenta anos. Há já algum tempo que ela o vê todos os
dias, muito cedo pela manhã, quando sai da casa onde agora vive: o homem
está ali, em frente do edifício oposto, a ocupar-se com vassouras e pá de
lixo, com a máxima quantidade de lixo que consegue mover para a lixeira
que se amontoa há semanas à beira do passeio… Erzsébet vê-o todos os
dias… O que é que a impressiona nele? No seu fato gasto, o homem luta
com o lixo. Ele é porteiro no edifício do outro lado da rua, um
encadernador, mas não tem emprego há meses… Soube isto por acaso,
através de uma colega de quarto que vive naquela casa e conhece bem os
habitantes da rua. Ele é um sabatista, diz esta mulher. Os ouvidos e a
memória de Erzsébet retiveram a informação.
A colega também conta uma história estranha e confusa: no edifício
acreditavam que ele era judeu e até tinham mandado coser-lhe a estrela
amarela. Durante algumas semanas, ele tinha usado essa marca infame sem
protestar. Familiares e conhecidos esclareceram mais tarde o mal-entendido:
o homem não era judeu, mas sim da Transilvânia e sabatista. Um sectário,
tinha então pensado Erzsébet de forma distraída. A estrela amarela
desapareceu do seu peito, e o porteiro permaneceu no seu lugar.
Há já algum tempo que Erzsébet o vê todas as manhãs ao amanhecer. É
um homem cujo rosto ela mal consegue fixar… nada o caracteriza, ele é um
rosto apagado. Mas agora é como se alguém lhe gritasse: «O sabatista!»
Porque Erzsébet sabe há alguns dias que o sabatista «está a fazer algo» no
edifício do outro lado da rua. Ela soube isto de passagem, no decurso de
uma conversa casual: um judeu forçado a esconder-se mencionou-lhe que
há lá um endereço, ele não o conhece pessoalmente, ainda não tentou lá ir.
Ele é o porteiro do grande edifício de apartamentos do outro lado da rua,
um sabatista, que é judeu, mas, ao mesmo tempo não é, e no meio dos
clandestinos e dos resistentes, diz-se que bater à sua porta não é uma tarefa
totalmente impossível.
Naquele momento, Erzsébet não prestou muita atenção a essa
informação. Ela acreditava que o seu pai estava a salvo, ela própria tinha-se
instalado discretamente no seu alojamento atual, e quanto ao homem que
desempenhava um papel importante na sua vida, o jovem médico que tinha
fugido para o estrangeiro nos dias em que os alemães tinham invadido a
Jugoslávia, também se encontrava agora a salvo… Erzsébet vive sozinha. À
exceção do seu pai, ela não tem ninguém por quem temer.
O endereço do sabatista é como qualquer outro. Mas agora é o único…
na grande cidade, com os seus palácios e blocos de apartamentos, tremendo
de terror mortal, gemendo interiormente com medo do cerco, é o único
endereço em que ela acredita – acredita? Não, ela tem a certeza! – que não é
«inútil». Porquê? Talvez porque lhe tenham dito isso? Nas últimas semanas,
ela tem ficado frequentemente desiludida. Ou talvez porque é um vizinho
do outro lado da rua? A proximidade não lhe dá qualquer garantia. Será que
ela sabe algo mais sobre o sabatista, será que ouviu algo mais do que a
informação genérica, o rumor incontrolável que circula entre os resistentes?
Não ouviu, não sabe mais nada. De uma coisa ela tem a certeza: é a última
oportunidade de salvação.
Mais tarde, pensará muitas vezes no assunto. Que forças estão em ação
nesses momentos nos meandros da mente e da consciência? Ou será talvez
a partir de uma camada mais profunda que uma mensagem nos chega no
momento do perigo? Erzsébet estuda biologia, tem um professor rigoroso
que a ensinou a acreditar apenas na realidade, no que pode tocar com as
mãos, perceber com os sentidos, e verificar com o método experimental.
Erzsébet sabe que no organismo humano um estímulo nervoso se propaga à
velocidade de cento e vinte e seis metros por segundo, ela conhece muitas
outras verdades deste tipo, medidas e verificadas mil vezes… Mas tudo o
que ela aprendeu não lhe permite responder à questão de como e porquê,
naquele momento, entre uma bomba e outra, no limiar daquela casa
abandonada, esse mesmo pensamento lhe chegou.
E tudo o que ela aprendeu no laboratório sobre o organismo humano,
sobre os segredos da vida e o funcionamento do metabolismo, todas as
noções que lhe foram inculcadas são teóricas e não lhe permitem de forma
alguma desvendar o segredo da vida – e tudo o que sabemos sobre isso,
afinal, é o seguinte: há vida onde há metabolismo. Mas a ciência nunca lhe
poderá responder: quem lhe enviou essa mensagem, como foi enviada, que
energia, impulsionando-se a cento e vinte e seis metros por segundo, fez
emergir a imagem do sabatista no corpo, na consciência e no sistema
nervoso de Erzsébet?
Para ela, na cidade sem luzes, esta imagem cinzenta e desfocada, esta
silhueta indistinta é agora a única realidade. Com espírito aliviado, desce a
correr pela avenida sinuosa que vai do grande palácio em direção a Tabán.
Por toda a parte, nas ruas escuras iluminadas pela Lua, canhões, camiões,
soldados sem fazer nada, à espera de que algo aconteça. Estão à espera do
cerco, de alguma ação que dê sentido à sua presença ali, e vigiam. Os
grupos estão taciturnos e sombrios. Tudo está pronto: os soldados, os
canhões, os tanques, as barricadas, as pessoas, toda a cidade nas caves e
casas escurecidas, todos estão à espera, mas nada podem fazer; algo está
prestes a acontecer, o tempo chegou ao fim.
Para este «algo» os habitantes da cidade, os soldados alemães e húngaros
prepararam-se meticulosa e habilmente… Eles não começaram a preparar-
se ontem, ou mesmo há quinze dias, quando tiraram o pavimento das ruas,
colocaram canhões nas paragens dos elétricos, instalaram peças de artilharia
nas janelas das caves. E nem mesmo há dois meses, quando, nessa altura, o
país já não tinha força ou vontade de inverter a direção a meio caminho,
para parar a guerra e rebelar-se contra os alemães.
Agora o jogo acabou, já não há mais apostas, acabou, absolutamente,
totalmente… Porquê? Quem o queria? Claro que há quem o quisesse, mas
muitos não o quiseram, a maioria ficou a assistir e deixou acontecer, com
um desamparo entorpecido e sonâmbulo. Foi tolerado que um belo dia as
ruas fossem transformadas num campo de batalha. E falava-se, falava-se
muito.
Havia aqueles que não acreditavam no cerco. Acreditavam que tudo
fazia parte de algum tipo de estratagema: os canhões nas ruas, as barragens
antitanque, as cargas de ecrasite penduradas nas correntes suspensas das
pontes, as peças de artilharia, os preparativos, as manobras frenéticas dos
soldados, os artigos de jornal descrevendo enfaticamente a «cidade da
frente», a sua espera «heroica, calma e determinada». A «cidade da frente»,
na qual Erzsébet também viveu, estava consciente do seu destino. Erzsébet
sentia fisicamente esse destino, como toda a gente, mas também sentia que
ninguém podia prever o que seria.
Talvez apenas alguns oficiais alemães soubessem antecipadamente e
com precisão matemática o que aconteceria no dia seguinte ou dois dias,
uma semana, um mês depois… Mas será que esses peritos, esses homens
altivos, frios e precisos tinham realmente uma ideia clara de como seria o
futuro? No entanto, imaginaram-no, organizaram-no, prepararam-no
inúmeras vezes. Erzsébet tinha ouvido falar de um cavalheiro que era o
«especialista em explosões» do exército alemão; um homenzinho calmo, de
maneiras suaves e que usava óculos. Este perito tinha feito explodir Atenas
e Estalinegrado, Varsóvia e algumas cidades francesas; Erzsébet sabia que
este cavalheiro alemão estava agora em Budapeste, que tinha inspecionado
as pontes e «encontrado tudo em ordem». E estes preparativos sérios e
meticulosos para uma ação monstruosa foram vistos por muitos como um
estratagema… «Os alemães não vão defender, não podem defender
Budapeste», disseram eles, «tudo isto só serve para enganar.» Não podem
defender a capital aliada se não conseguirem defender seriamente nem
Roma nem Paris! Eis o que eles dizem…
Não haverá cerco, sussurram, no último momento retirar-se-ão, todos
estes preparativos servem apenas para deixar poeira nos olhos dos russos,
para abrandar o seu avanço, para os fazer acreditar que os alemães reuniram
grandes forças em Budapeste; mas, no último momento, as tropas alemãs
entregarão a cidade e retirar-se-ão para as novas linhas de defesa nas alturas
da floresta de Bakony e de Vértes. É o que dizem os estrategas dos abrigos
antiaéreos, entre vagas de bombardeamentos.
Aqueles que não conseguiram escapar a tempo com os cruzes flechadas,
os húngaros da extrema direita pró-nazi encalhados na cidade, observam
desconfiados, piscando os olhos, estes inconfundíveis preparativos, os
sinais óbvios e alarmantes por toda a cidade anunciando a vontade dos
alemães de defender Budapeste rua a rua, com o único propósito de retardar
o avanço dos russos em direção a Viena e Bratislava: pestanejam
sombriamente na grande cidade transformada numa fortaleza, prontos a
apostar que os reforços alemães já estão a caminho do lago Balaton.
Os alemães derrotarão os russos em frente a Székesfehérvár, retomarão
Csepel, e, pelo Natal, Budapeste será libertada do cerco. Mas ninguém
acredita nisso, nem mesmo eles…
Os membros da Cruz Flechada vagueiam pelas ruas, dia e noite, em
grupos, exibindo braçadeiras e metralhadoras, sem dizer uma palavra, à
espreita como um bando de adolescentes medonhos e selvagens deixados à
sua sorte, a uma espécie de jogo monstruoso de índios e cowboys, em busca
de vítimas e espólio…
A esta mesma hora, enquanto um milhão e meio de pessoas se escondem
em abrigos devorados pela angústia, eles vagueiam na escuridão húmida da
noite gelada de dezembro, caçando judeus ou opositores políticos, e depois
assassinando-os no último momento nas margens do Danúbio, onde é fácil
livrarem-se de uma vítima.
Erzsébet depara-se por vezes com as suas vítimas, pessoas que foram
baleadas na boca ou no peito e que, apesar das suas feridas, conseguiram
sair dos lençóis de gelo do Danúbio. Ainda estão vivas e voltam a esconder-
se. E, no entanto, mesmo agora que as armas russas estão a disparar perto
do centro da cidade, que as bombas caem a cada quarto de hora sobre os
edifícios sem o aviso de sirenes, que já não é possível acreditar que estão a
ser «poupados» ou que os terríveis preparativos de guerra são apenas um
«estratagema» e que os alemães se retirarão no último momento – sussurra-
se que os negociadores russos enviados pelo general Malinovsky para
entregar o seu ultimato foram mortos pelos alemães –, mesmo agora os
membros da Cruz Flechada estão a pilhar e a matar.
Entram em casas, vasculham as gavetas dos armários com punhais,
disparam sobre qualquer pessoa que, por acaso, se meta no seu caminho. A
cidade sabe agora que não pode contar com qualquer ajuda, que tem de
sobreviver ao cerco. Não são apenas os soldados que se preparam para o
cerco, toda a cidade está pronta. Um milhão e meio de pessoas aceitaram
agora, com um estranho fatalismo, este destino. Cozinharam em
antecipação para o cerco como se estivessem a preparar-se para um passeio
em grupo, embalaram as suas bugigangas, os seus objetos de valor,
instalaram-se na cave, com astúcia e rapacidade apressaram-se para ocupar
os recantos mais confortáveis dos abrigos antiaéreos. Arrastaram camas de
ferro e camas de rotim para o subsolo, como animais nas suas tocas,
amontoaram-se sobre leitos improvisados, com os seus fardos, os seus
filhos e os seus penicos; armazenaram água em todo o tipo de recipientes,
os mais improváveis, e aguardaram o cerco. Eles quase desejavam que
começasse. Estão aterrorizados com a sua chegada, mas ao mesmo tempo
esperam e anseiam por ele, porque se tornou uma realidade incontornável
e consumada. Agora devem dar à luz com sangue e dor este monstro, este
destino que se tornou uma realidade: o cerco.
Erzsébet atravessa o jardim Tabán. Aqui, os preparativos de guerra são
particularmente cénicos… tanques gigantescos – os Tigres – são colocados
na linha da frente e foram escavadas trincheiras por todo o lado. Este jardim
é particularmente querido para ela. Era aqui que se encontrava com Tibor
todas as tardes durante um longo e perfumado outono. Ela passa por um
banco: era aqui que eles se sentavam, à sombra dos espigões.
Neste sítio, Tibor tinha falado, pela primeira vez, da sua intenção de
deixar o país porque não tinha «confiança na capacidade de resistência da
sociedade húngara», porque «esta sociedade» não tinha «a força moral para
resistir». Ele tinha usado essas palavras e Erzsébet nunca tinha visto este
homem calmo e taciturno tão excitado.
Erzsébet tinha então protestado vivamente. Tinham falado do povo
húngaro, do passado, de Széchenyi[4], dos escritores, de Vörösmarty e
Arany[5], de todos aqueles que tinham acreditado no povo húngaro para
depois se sentirem desiludidos, sofrendo até à loucura. Erzsébet tinha
defendido ferozmente as suas posições, de tal modo que até se sentiu ficar
sem fôlego. Tibor tinha dito que iria partir e propôs-lhe que o seguisse; ele
não podia prometer-lhe que voltaria… Mas Erzsébet sabia que não podia ir
com ele, abandonar o seu pai que, além dela e do seu próprio trabalho, não
tinha mais nada.
A mãe tinha morrido há muito tempo, e para estes dois homens, o seu pai
e Tibor, Erzsébet era ao mesmo tempo mãe, filha, amiga. Mas agora um
deles queria partir, o amigo, o jovem, o escolhido do seu coração, porque «a
sociedade húngara não tem a força moral para se opor»… Ele não queria
ficar ali para dar o exemplo; este homem calmo e taciturno falava da sua
desilusão dolorosa com uma paixão ardente, como se uma ferida mortal lhe
tivesse sido infligida. Tibor também não «se envolveu na política»… mas
Erzsébet sabia que havia algo que transcendia os partidos e a política, algo
autêntico que em si mesmo era uma resposta: o comportamento. Era através
do seu comportamento que Tibor e o seu pai davam as respostas que não
tinham forma ou desejo de formalizar em palavras.
Um deles tinha partido, porque não suportava ver e ouvir o que tinha
acontecido nos últimos anos. Tinha-se preparado, amadurecido durante
esses anos na sua terra; o outro tinha ficado, e agora andavam à procura
dele para o matar. Erzsébet passou pelo banco. Aqui, outrora, não há muito
tempo, encontrava-se a «fonte colorida»; a fonte que com leal cortesia o
município obsequioso tinha construído para o Regente, em frente às janelas
do seu apartamento privado no castelo, no lugar de um antigo e dilapidado
bairro demolido… A fonte colorida tornou-se um local de colocação de
artilharia. Um soldado alemão com capacete fuma um cigarro num banco.
De algum lugar vem um apito. Erzsébet apressa-se a sair. Há algo asfixiante
nesta noite gelada de dezembro, algo insuportável, como se as coisas e
situações se tivessem tornado completamente distorcidas. Ela atravessa o
rio pela ponte Erzsébet na direção de Peste.

[1] Márai não é coerente com a utilização do tempo na escrita do romance, pelo que é difícil
acompanhar as mudanças nos dias do cerco. (Nota da editora húngara.)
[2] Referente ao Partido da Cruz Flechada, um partido nacional fascista, pró-alemão e
antissemita, semelhante ao Partido Nazi. (N. da T.)

[3] Sabatista: membro de uma seita cristã fundado no século por Sabbathius. Os sabatistas
celebram a Páscoa no mesmo dia que os judeus. (N. da T.)

[4] István Széchenyi (1791-1860): político húngaro. (N. da T.)

[5] Mihály Vörösmarty (1800-1855) e János Arany (1817-1882): poetas húngaros. (N. da T.)
2

Encontra o sabatista no posto de porteiro. Está a ler o jornal à luz de uma


lâmpada protegida por um lenço; no seu nariz, um par de óculos com
armações metálicas juntas por um cordel. Ele tira-os lenta e calmamente,
fecha-os, coloca-os num bolso, e depois olha para Erzsébet. Não pergunta
nada. Olha à volta da casa da guarda pouco iluminada, e com a cabeça
aponta para a escadaria escura. Ficam ali, sem se verem um ao outro. Falam
no escuro, em voz muito baixa. Erzsébet, como num sonho, vai diretamente
ao assunto. Não dá explicações, não se apresenta.
– Pode acolher uma pessoa? – pergunta.
O sabatista permanece silencioso. O seu hálito cheira a alho, ele deve ter
acabado de jantar.
– É difícil – responde ele.
Não pergunta quem, não pergunta porquê, nem sequer pergunta quem é
Erzsébet, não protesta, não promete nada. Ao ver esta impassibilidade e
imparcialidade, Erzsébet fica imediatamente tranquila. O terror louco que
tem estado a apertar-lhe o peito há horas dissolve-se ao ouvir esta voz.
Agora ela sabe que não veio até aqui em vão, que há uma razão pela qual o
sabatista lhe surgiu na cabeça; e uma sensação violenta, um calor intenso
toma fisicamente posse dela, como uma onda ardente de felicidade. É o que
se sente ao estar apaixonado, quando o corpo é impregnado de uma corrente
quente de confiança. Ela está convencida de que nada aconteceu por acaso.
O seu coração está na sua garganta, sente o seu corpo inundado por esta
súbita e absurda esperança. Não foi por acaso que o judeu refugiado
mencionou o sabatista na presença de Erzsébet. Nada aconteceu por
acaso… e este sentimento ardente e sufocante de felicidade está cheio de
humildade e esperança. Como se pela primeira vez Erzsébet compreendesse
o significado de uma palavra: acreditar. Há algo acima do conhecimento,
acima da experiência, acima de tudo o que a observação da realidade, a
ciência, nos ensina… E aqui está, agora, esse algo.
O que é isto? Este homem, o sabatista, um homem taciturno que está ali
no escuro, de quem Erzsébet sabe exatamente o que está a pensar naquele
preciso momento, de quem acha também que conhece todos os seus
sentimentos e pensamentos. Que tipo de homem é ele? Um sectário
ingénuo, uma espécie de fanático religioso que obedece a algum
mandamento cristão piedoso? Ou algo mais, algo diferente? Um homem em
quem a palavra das Sagradas Escrituras, a palavra suprema que permite ao
ser humano responder a si próprio e ao mundo, se tornou ação? Aquele que
está prestes a afogar-se deve olhar para a hesitação da mão estendida na sua
direção da mesma maneira… O sabatista, de facto, continua calado.
– É muito difícil… – diz ele então, com uma voz baixa, pouco audível. –
Cada dia é mais difícil.
Erzsébet prende a respiração. O que é que poderia dizer? O que poderia
perguntar, ou prometer? Houve uma altura em que, em troca de dinheiro ou
joias, as pessoas estavam dispostas a correr riscos… Mas esse tempo já
passou há muito. E em qualquer caso, este homem é de um temperamento
diferente, ela tem a certeza. Os riscos são agora demasiado elevados, é
inútil discutir, tentar convencer; neste momento, qualquer pessoa que aceite
prestar ajuda a alguém, está a pôr em risco o seu próprio destino… É por
isso que nada lhe pode ser pedido. Sem qualquer transição, o sabatista diz
agora estas palavras:
– É um homem?
Erzsébet compreende e sabe que isto é importante e responde num
sussurro:
– Sim, é um homem.
De repente, da lanterna de bolso que o sabatista segura vem uma luz
forte e deslumbrante que o homem aponta para o rosto de Erzsébet. A
rapariga aguenta o súbito ataque. Como se ela tivesse todo o tempo do
mundo, como se soubesse que, de momento, essa é a única forma de
comunicar, de trocar ideias, uma vez que cada palavra é pouco fiável e
supérflua: o sabatista escrutina o rosto de Erzsébet cuidadosamente, com
alvoroço, à luz da lanterna. Passa um longo tempo, talvez meio minuto,
talvez mais. Depois a luz apaga-se.
– Você vive do outro lado da rua – diz ele, lentamente, na escuridão. –
Você é… – e pronuncia o verdadeiro nome de Erzsébet.
– Como sabe isso? – pergunta Erzsébet com a garganta seca.
Apesar da escuridão, ela parece ver o homem encolher os ombros.
– Sei – diz ele impassivelmente. – Vejo-a sair todas as manhãs ao
amanhecer. Disseram-me…
Eles permanecem em silêncio durante muito tempo. Depois, quase
abruptamente, sem transição, o homem diz:
– Quem é que quer trazer para aqui?
Erzsébet responde agora calmamente.
– O meu pai – diz ela num tom neutro. E parece ver novamente a figura
escura a acenar com a cabeça, como se estivesse à espera desta resposta.
Em silêncio, voltam para a casa da guarda e entram. O sabatista fecha a
porta de vidro, aponta para uma cadeira ao lado da mesa da cozinha, senta-
se em frente a ela, inclina-se sobre o jornal e enrola um cigarro.
– Onde está ele agora?… – pergunta de passagem.
Assim que Erzsébet responde, ele interrompe-a.
– Não quero saber a morada. Nunca dê endereços. A ninguém, nem
mesmo a mim… Queria saber a que distância fica daqui. Dez minutos?
Meia hora?…
Erzsébet calcula mentalmente.
– A um quarto de hora daqui – diz ela.
O homem consulta um relógio de cuco pendurado na parede.
– São nove e um quarto – diz ele. – Se pudesse trazê-lo aqui
imediatamente… – E não termina a frase.
Erzsébet levanta-se e põe-se a caminho.
– Espere – diz o sabatista. – Não venham aqui. A loja de latoaria na rua
seguinte tem uma entrada que leva até à cave…
Ele fala num tom calmo e perito.
– Está a compreender? – pergunta ele com firmeza. – Repita.
Erzsébet repete a lição. O sabatista interrompe-a:
– Muito bem, compreendeu – diz ele rapidamente.
Depois, num tom quase doce e suave, com um véu de tristeza na sua voz
que Erzsébet não ouve há muito tempo:
– Vai ser muito difícil, menina. Na verdade, já há cinco deles lá em
baixo. E se o velho chega, tenho de o emparedar com os outros. Não se
pode fazer de outra maneira.
Erzsébet percebe que «o velho» é o seu pai e que o sabatista quer
enclausurá-lo algures na cave juntamente com outros cinco enterrados
vivos.
– Não pode ser feito de outra forma – repete o homem num tom abafado,
acenando com a cabeça como se se quisesse convencer a si próprio. – Neste
momento, os irmãos já são frequentemente vistos por aqui.
Claro que ele não se refere aos sabatistas, mas sim aos «irmãos» das
cruzes flechadas. Erzsébet limita-se a fazer uma mera réplica:
– Aceita?
O homem acena com a cabeça:
– Sim.
Eles saem de novo para o corredor e despedem-se à porta.
Tinha corrido assim. «Ele aceitou», porquê?… Nas próximas semanas,
Erzsébet terá ocasião de refletir sobre isto até que, do lado oposto, acima do
abrigo na cave, o edifício se desmorona no meio do bombardeamento e de
explosões de granadas. Ela terá tempo e oportunidade de pensar sobre o que
acontece numa cave do edifício oposto, onde vivem seis pessoas, num
espaço do tamanho de uma despensa, sem ar, sem luz, sem sanitários, sem
poderem deitar-se, e todos os dias, uma vez por dia, uma mão, a mão do
sabatista, através de uma abertura estreita, passa-lhes água e um balde de
comida, feijão ou batata, por vezes pão… Mas imaginar tudo isto já não a
incomoda mais.
Ela pensa noutra coisa. Quando a casa, as paredes, o chão de betão da
cave vão tremer à sua volta: o que se passa na alma do sabatista? O que
acontece na alma de um homem agora, quando se perdeu tudo o que torna o
ser humano mesmo humano? Na alma de um homem que permanece fiel a
um pacto escrito e não escrito, à lei da solidariedade, num mundo que
repudia toda a lei humana e, tomado por uma raiva sem sentido, se destrói a
si próprio.
Uma espécie de chama amarela fatídica pisca diante dos olhos dos
homens, e atrai-os para os fossos, entre os cadáveres, à procura do
espólio… Erzsébet tinha perguntado ao sabatista se ele queria dinheiro.
Para as despesas necessárias, tinha acrescentado. O sabatista tinha feito
contas, movendo silenciosamente os seus lábios, antes de dizer num tom
seco:
– Não é preciso. O que há é suficiente.
Assim, ele tinha dinheiro, para os feijões, ervilhas e batatas com que
alimentava os seus protegidos. Um homem de poucas palavras, impassível.
Nada sentimental. Não se comove. Face à miséria humana, ele age com
compostura, como uma enfermeira experiente que vagueia silenciosa e
quase indiferente entre os moribundos, sem uma lágrima, sem ceder à
emoção ou à raiva. Ele considera a miséria, a perseguição, o perigo de
morte, a necessidade de se esconder como situações naturais para um ser
humano, factos triviais e compreensíveis. O ser humano é assim: mata,
rouba e esconde-se… Erzsébet não deteta nenhuma emoção em particular
nas suas palavras, na sua atitude. Quando ela e o seu pai chegaram à cave, o
sabatista já lá estava com um pé-de-cabra, a retirar tijolos da fila de baixo
de uma parede e perscrutou o seu pai com um ar competente, como um
alfaiate a tirar medidas.
– Estou apenas a remover duas filas de tijolos – disse ele. – Por favor,
deite-se de barriga para baixo e rasteje para a frente.
O pai deitou-se de barriga para baixo e através da estreita abertura
desapareceu lentamente primeiro o seu tronco, depois as suas pernas longas
e magras. Erzsébet e o sabatista ficaram ali em silêncio a ver o homem a
rastejar de barriga para baixo, o seu corpo frio a desaparecer na abertura
daquela estranha prisão. Erzsébet pensou que, durante toda a sua vida, o pai
tinha estado a olhar para as estrelas, e agora estava a afundar o seu rosto no
chão coberto de argila lamacenta daquela cave… Mas depois olhou para o
sabatista e sentiu-se envergonhada, pois ao ver o seu rosto indiferente e
calmo ela percebeu a pretensão e a falsidade da sua metáfora.
Voltaram a pôr os tijolos no lugar, Erzsébet ajudou com a argamassa. O
sabatista é bom a rebocar, em poucos minutos completou o trabalho de
alvenaria e, por fim, colocou alguns barris de gasolina vazios em frente ao
esconderijo.
– É tudo uma questão de os irmãos não arrombarem a parede da cave ao
lado – disse então. – Porque é isso que eles normalmente fazem quando
estão encurralados. Eles vão de cave em cave e partem as paredes.
Erzsébet percebe que realmente «tudo depende disso» e não tem nada a
ver com as estrelas ou que um destino forçou o seu pai a rastejar sobre a sua
barriga.
Foi assim, simplesmente… Que motivação poderia ter um homem como
o sabatista? Dinheiro não pede, não se queixa, não odeia, não quer nada,
não tem planos a longo prazo. Ele apenas age quando todos estão
aterrorizados com a ação, ele «acolhe» alguém quando os únicos impulsos
que animam os seres humanos são o egoísmo desenfreado e um instinto de
sobrevivência petulante e desejado. Ele é assim porque acredita em algo,
porque é religioso?… Talvez. Mas também pode ser que ele seja
simplesmente um homem cuja alma, cujo sistema nervoso é governado por
uma lei estrutural, um tipo de impulso de vida contra o qual não pode lutar.
Cem mil pessoas não a ajudaram; esta única pessoa ajudou-a. Mas o seu
«segredo» não pode ser decifrado.
Erzsébet volta para o edifício do outro lado da rua, sobe ao terceiro
andar, para o apartamento onde agora encontrou refúgio, e naquele quarto
pequeno e gelado deita-se vestida na cama de ferro e fica lá no escuro com
os olhos abertos. Ouve o rugido dos canhões.
Esta noite os canhões têm um som diferente do habitual: é um estrondo
mais ritmado e contínuo. Aquele ruído distante e mecânico que até então
indicava os impactos, agora tornou-se contínuo, como se uma atividade
ocasional e aleatória se tivesse transformado num empreendimento resoluto,
planeado, cuidadosamente preparado e conduzido profissionalmente.
Ontem, anteontem, há uma semana, as bombas e granadas continuavam a
cair como se um gigante caprichoso estivesse a desfrutar deste passatempo
hediondo. Agora esse ruído mecânico tem um som diferente: poder-se-ia
dizer que uma grande máquina, após alguma hesitação inicial, está
finalmente a começar a funcionar com todo o impulso necessário.
O gigante é o exército russo, e as engrenagens da máquina são os
canhões, os aviões, os chamados órgãos de Estaline, ou seja, os lança-
foguetes, a artilharia do Segundo Exército Ucraniano; estas são as suas
peças. E agora a máquina funciona a toda a velocidade de forma rítmica e
monótona. É um ruído que já nem sequer aterroriza. É tão natural como o
do trabalho noturno numa fábrica. Todas estas máquinas e os muitos
homens desconhecidos que cuidam delas e as operam, as limpam e as
alimentam tinham saído das planícies russas alguns meses antes, tinham
atravessado os Cárpatos, tinham avançado lentamente através das planícies
húngaras, tinham por vezes parado, reunido, depois atacado, tinham
avançado ou recuado alguns quilómetros.
Entretanto, em Budapeste, na «cidade da frente», saíram jornais,
circularam boatos sobre a vida privada das pessoas, uma atriz anunciou que
tinha perdido o seu casaco de pele de raposa azul, um jornalista tinha
desmascarado um político, e o pai de Erzsébet viveu tranquilamente no
abrigo do momento e trabalhou nas suas notas. Uma noite Erzsébet tinha
ido ao teatro – a Cândida de Shaw estava a ser representada – o espetáculo
era razoável… Nos restaurantes as mesas estavam postas, nos melhores
sítios davam guardanapos limpos e serviam almoços aceitáveis, também
não muito caros, só a comida era morna porque o fornecimento de gás já
não funcionava tão bem e os comboios de carvão já não chegavam à cidade
meio colapsada… Ao meio-dia, os cafés estavam cheios e as montras das
lojas ainda exibiam artigos de Natal, artesanato transilvano, serpentinas
brilhantes.
As pessoas andavam entre os canhões, e se as bombas caíssem sem aviso
prévio, abrigavam-se debaixo dos portões; quanto aos elétricos, paravam e
esperavam que o ataque cessasse. Os passageiros atiravam-se para o chão
ao lado do elétrico, no passeio, ou ficavam lá dentro, sentados sem
movimento, à espera de que uma morte aleatória e caprichosa acabasse os
seus dias… Os mortos eram cobertos de papel de embrulho até que alguém
nomeado pelas autoridades aparecesse para levar as vítimas. Já ninguém
usava lençóis para tapar os mortos, porque agora eram demasiado caros.
Isto tem vindo a acontecer há semanas. E em breve chegará o Natal. Nas
caves, os inquilinos montaram cozinhas comunitárias, estão ocupados à
volta do fogão. Mesmo os pobres estão a lutar para organizar jantares de
três pratos, e como já não há mercado negro ou racionamento, chegou o
momento de gastar tudo o que estava armazenado: há muita carne afogada
em gordura, entrecostos guardados em panelas, metades de gansos,
presuntos inteiros, vinho e aguardente. Mas nesta folia geral, não há nada
nas panelas de muitos, os habitantes de bairros inteiros têm de aguentar com
sopas de feijão.
Erzsébet está deitada na cama no quarto pequeno e gelado; a vidraça da
janela ficou partida há alguns dias devido a uma pressão atmosférica, já não
vale a pena aquecer. Ela não tem frio; um calor intenso atravessa o seu
corpo. Pensa no sabatista, na cidade escura, na Ponte das Correntes, nas
peças de artilharia na piscina colorida da fonte, no seu pai a rastejar sobre a
barriga e a desaparecer no buraco da parede, sob as estrelas que não verá
durante algum tempo, em Tibor que tinha falado da «força moral para se
opor…» e cujo olhar estava cheio de raiva, os lábios pálidos e trémulos e
que, em consequência de tudo isso e do desespero, resolvera ir para o
estrangeiro, deixando-a ali.
A realidade é esta, ele abandonou-me, pensa Erzsébet. Deixou-me aqui
com o pai procurado pelos alemães e pelos outros, aqueles que se dizem
húngaros porque falam húngaro e porque usam uma braçadeira com o
escudo de Árpád[6] e empunham metralhadoras. Matam todos aqueles que
caem nas suas mãos, até matariam o meu pai se pudessem, até a mim…
pensa. E depois novamente: «força moral para se oporem…»
É o tipo de coisa que os homens dizem quando estão a tentar dizer o que
não conseguem explicar. Os homens costumam usar estas expressões.
Erzsébet já sabe que elas são apenas palavras. A realidade é outra coisa.
A realidade é que, quando ela pensa em Tibor, mesmo agora, após um
ano, Erzsébet sente, no seu corpo, uma confiança particular… Não é algo
relacionado com um sentimento, um estado de espírito, é antes um
sentimento físico de confiança. Todo o seu corpo confia no homem pálido e
triste que foi para o estrangeiro, deixando-a aqui, no meio de bombas e
assassinos, sozinha com o seu pai. Nada pode extinguir esta confiança no
corpo de Erzsébet. É o que a mantém viva. Fecha os olhos, e a confiança
circula pelo seu corpo como uma corrente elétrica. Ele partiu porque as
pessoas enlouqueceram, porque há ódio entre os homens, porque eles
perturbam e destroem tudo: isso é uma parte da vida. A outra é a confiança
que o seu corpo sente quando pensa nele.
Ela acalma-se de repente. De vez em quando, a casa treme de uma
explosão próxima; mas o corpo de Erzsébet fica calmo. O seu pai está
deitado de barriga para baixo na cave do edifício vizinho; à noite, homens
armados com metralhadoras automáticas vão de cave em cave, apontam as
suas lanternas para a cara dos que dormem nos abrigos, ocasionalmente
arrebatam alguém do sono, homem ou mulher, gritam: Judeu!, arrastam-no
para fora, disparam-lhe um tiro em frente da porta, depois voltam para o
edifício para o invadir. No braço, usam o escudo de Árpád. Falam em
húngaro, mais raramente em alemão…
Contudo, o corpo de Erzsébet está confiante. O seu pai irá sobreviver e
Tibor irá regressar, para ela. Ele regressará, com ou sem fronteiras. E se não
houver mais pontes, ele atravessará o Danúbio a nado, ou caminhará sobre
os seus lençóis de gelo; mas ele regressará! Não pode durar muito… O quê?
Aquilo que já começou. O cerco ou a guerra? Erzsébet sente que estas
palavras não exprimem o essencial.
O cerco e a guerra são apenas consequências. Mas o que não pode durar
muito, o que em breve acabará, e é verdadeiramente intolerável, pelo que,
não pode durar para sempre, é o ódio. Esse clarão nos olhos dos homens.
O ódio com que olham uns para os outros, em caves escuras e ruas ainda
mais escuras, ou durante o dia, acima dos cadáveres cobertos de papel de
embrulho. Toda a gente tem aquele olhar em que um brilho negro arde.
Nele se pode ler ódio, medo, culpa, crueldade, fúria delirante, ranger de
dentes de ganância. É isto que não pode durar muito mais tempo, esta luz
escura tem de se apagar no mundo. E depois, o que é que vai suceder? O
seu pai rastejará para fora do calabouço e voltará a olhar para as estrelas,
com o mesmo olhar cético e atento com que está habituado a olhar para as
coisas do mundo, como se tudo o divertisse, tanto as estrelas como os seres
humanos… E Tibor regressará a Erzsébet.
O prédio está agora a tremer. Deve ter caído mesmo ao seu lado…
Erzsébet levanta-se da cama, procura o saco onde recolheu o que lhe restava
– alguma água potável numa garrafa, alguns biscoitos, algumas fotografias,
os documentos de Erzsébet Sós – e desce até à cave. Algumas sombras
vacilam nas escadas. O grande prédio ressoa como uma colmeia da qual as
abelhas se aglomeram subitamente. Muitas pessoas, que há semanas já não
se preocupavam com os alarmes, aparecem nas escadas escuras, carregadas
de pacotes, avançam desajeitadamente em agitação, apressando-se em
direção aos pisos mais baixos, mais abrigados. Na cave, ainda não descem,
hesitam.
Durante as últimas semanas, o perigo incessante tornou todos apáticos.
Há alguns habitantes permanentes no abrigo, amontoados dia e noite no
subsolo com medo obsessivo, mas a maioria dos que vivem no grande
prédio de apartamentos habituou-se ao perigo, como os soldados ao fogo de
armas. No entanto, esta última explosão deve ter acontecido muito perto.
Alguém já sabe que o prédio vizinho está em chamas. O comandante do
quarteirão pede aos homens para ajudarem a apagar o fogo. Erzsébet dirige-
se para a porta da frente, mas o responsável pelo prédio manda-a para a
cave.
Uma nova onda de ataques de aviões russos está em curso, bombas estão
a cair perto, figuras escuras vindas da rua invadem o corredor. Dois homens
trazem alguém numa maca e começam a falar com o porteiro e o
responsável pelo prédio, entram e discutem; por fim, os recém-chegados
dirigem-se com a maca à cave, o local do abrigo… No corredor espalha-se
a notícia de que o prédio vizinho ruiu e estão a evacuar as mulheres, as
crianças e os doentes para os transferir para aqui, para o abrigo do prédio de
Erzsébet.
Esta notícia gera agitação no prédio. Agora todos se despacham para a
cave, com as suas bagagens ou de mãos vazias: os inquilinos temem que os
seus vizinhos, esses estranhos, ocupem os melhores recantos do abrigo.
Trata-se de uma apreensão que não é totalmente infundada. Erzsébet desce
para a cave; no limiar da porta de ferro para. Daqui há acesso a três grandes
salas com tetos abobadados. O ar mofento e húmido, o cheiro amargo
a bolor provoca-lhe enjoo. Ela hesita na soleira, como se percebesse que
atravessar não significa entrar naquele abrigo subterrâneo por um curto
período, mas que esse passo será seguido por uma estadia mais longa e
drástica… Com o saco na mão, olha à sua volta perplexa.
Nas grandes salas brancas, a multidão é semelhante à das plataformas do
metropolitano. O que Erzsébet vê agora é algo diferente do que viu e
conheceu no ano anterior no abrigo. Na altura dos ataques aéreos anglo-
americanos, o abrigo era como um teatro de guerra temporário, um lugar
onde se prestava uma espécie de primeiros socorros numa emergência;
sentavam-se numa das bancadas como no cinema e aguardavam o início do
espetáculo que nunca durou muito e, ao fim de algumas horas, acabou…
Em alguns prédios, cujas paredes espessas abafavam o rugido do mundo
exterior, os habitantes mal se aperceberam do drama que se desenrolava ali:
a lâmpada apagou-se por um momento, quando os fragmentos da bomba
que caíam atingiam os cabos elétricos algures… foi apenas isso.
Mas agora a cena é completamente diferente. Erzsébet é empurrada para
o lado, porque, neste momento, já há muitos atrás dela. Estão a carregar a
maca, e à luz das lâmpadas, ela pode agora distinguir o homem doente
deitado em cima dela: um homem pálido, bastante idoso, careca, com rosto
acabado de barbear e, apesar da situação, vestido com uma certa elegância.
Permanece em silêncio e segura um livro na mão; com um gesto de
proteção, prende-o ao peito, como se fosse a sua única arma nesta situação
bizarra.
O abrigo do grande prédio pode acomodar muitas pessoas, há uma
centena de inquilinos, mas também há espaço para os que vinham do
edifício vizinho. Até agora, a ordem que reinava nestas salas tinha algo de
teatral, como se fosse um lugar oficialmente destinado a espetáculos
públicos, uma estranha sala de espetáculos: bancos estavam regularmente
alinhados no meio das salas da cave, e apenas os visitantes que mais
valorizavam o conforto tinham, há já algum tempo, trazido para baixo, em
antecipação à sua estadia subterrânea, poltronas e cadeiras de vime do
jardim.
Essa ordem já não existe. Bancos são afastados para dar lugar a
colchões, colchas, almofadas, que estão dispostos em filas no chão, penas a
sair das fronhas a esvoaçar no ar bafiento. A luz permanece acesa; estão
colocados junto à entrada avisos sobre o que fazer em caso de ataque aéreo,
há pás, picaretas, sacos de areia, um verdadeiro hospital de campo está
instalado num canto: à volta de uma mesa com ligaduras e medicamentos,
um médico, um inquilino do edifício, usando uma braçadeira da Cruz
Vermelha, faz o seu trabalho silenciosamente no meio de toda a azáfama
barulhenta. Ele prepara o algodão, as ligaduras, os instrumentos, como se
fosse a mais natural das situações, uma espécie de curso prático para
principiantes…
Aqueles que chegam agora não se instalam nas bancadas com a ideia de
ficar por um tempo limitado, mas por um período mais longo, vê-se isso
pela forma como se organizam apressadamente para dormir, cozinhar,
comer, passar o tempo; também se percebe que os três quartos na cave não
formam um espaço assim tão grande. Muitos já estão a lutar por lugares de
canto. Erzsébet prossegue hesitantemente entre os colchões, no meio de
mulheres inclinadas para a frente para acalmar as crianças, preparar os
alimentos, arranjar as camas. Os homens montam-nas, criam-nas a partir
das cadeiras de convés, abrem as camas dobráveis retiradas dos aposentos
dos criados. Na divisão do meio, muitos já estão deitados nas suas camas
improvisadas, os recém-chegados do prédio do lado são empurrados com
hostilidade pelos inquilinos para o terceiro compartimento da cave, o mais
escuro, o mais apertado.
Erzsébet segue em frente com os estranhos. O homem que carregaram na
maca encontra-se agora num canto escuro, imóvel, o seu livro na mão, nem
sequer olha para a azáfama à sua volta, mas vagamente para a luz da
lâmpada. Erzsébet toma o seu lugar entre uma jovem e o homem na maca,
numa espécie de colchão que a desconhecida lhe indica silenciosamente.
Coloca o saco junto à parede, que lhe será útil como apoio de cabeça no
caso de ter de lá ficar para dormir. Ela puxa um cobertor, senta-se, espalha-
o sobre as pernas e encosta-se à parede da cave.
Não é um lugar mau, pensa satisfeita. Sente-se estranhamente sossegada.
Observa a cena à sua volta, de alguma forma já familiar, habitual; no
entanto, nunca tinha visto uma tal agitação. É evidente que as pessoas estão
a instalar-se para uma estadia mais permanente e prolongada; de facto, é a
única coisa que fica clara da azáfama e da agitação. Todos sabem, Erzsébet
inclusive, que estes já não são os ataques aéreos habituais. A esses, afinal
de contas, as pessoas já se tinham habituado. Quando as sirenes ainda
soavam e a rádio estava a transmitir, os ataques aéreos pareciam, apesar de
tudo, estar sob um controlo humano paradoxal. Como se as autoridades, no
meio de bombas de uma tonelada a chover do céu, ainda estivessem a tomar
conta da população. A ordem reinou sobre tudo, meia hora antes, a rádio
anunciou que vários aviões inimigos «tinham invadido» o espaço aéreo
nacional e estavam a sobrevoá-lo em «formação próxima». As pessoas
ouviram as notícias da rádio e abanaram a cabeça.
Sim, reina uma grande ordem no país, pensa Erzsébet. Pensa nisso
ironicamente, porque na realidade essa ordem significava destruição, ruína;
no entanto, no fundo do seu coração, sentiu uma espécie de contentamento,
uma esperança cautelosa: as autoridades ainda estavam a desempenhar as
suas funções e os ingénuos podiam esperar que essa informação implicasse
uma estratégia de defesa séria… As armas antiaéreas são colocadas ao
longo da fronteira, combatentes alemães e húngaros – quantas unidades?
ninguém sabe – estão em alerta, e agora que as traiçoeiras «formações
próximas» «invadiram» o espaço aéreo nacional, os pilotos britânicos e
americanos em breve terão dificuldades, porque as forças antiaéreas, depois
do ataque, dispersarão e abaterão as «formações inimigas», que serão
forçadas a largar as suas bombas «de uma forma desordenada», sem
apontar, inutilmente, sem conseguirem destruir os «objetivos militares»…
A população civil ouviu e leu esta notícia, e os que não tinham sentido
crítico, os crédulos, todos aqueles que se iludiram e reconquistaram a
confiança com cada notícia falsa, deram alguma credibilidade a estas
tranquilizadoras palavras ocas.
Mas a grande maioria da «população civil» estava bem ciente de que
tudo não passava de um monte de mentiras parvas, mentiras de guerra da
pior espécie; afinal, pouco importava se os pilotos inimigos lançavam as
suas bombas de uma tonelada «ao acaso» ou com objetivos precisos,
porque, na maioria das vezes, se não atingissem «alvos militares», como de
facto acontecia com bastante frequência, as bombas caíam sobre casas civis,
pátios, pontes e abrigos.
Apesar de tudo, reinava a ordem. A rádio ficou silenciosa, e um homem
cuja voz soava estranhamente anunciou com aparente calma e falsa perícia
que os programas seriam «suspensos indefinidamente». Até recentemente, a
rádio ainda tocava a música de Schubert, a melodia de Três Meninas[7]…
Agora estava em silêncio. O programa «informação em caso de ataques
aéreos» mudava todas as semanas, porque a «ordem» ainda reinava, as
autoridades tomavam conta da população civil: nas caves, água e areia
tinham de ser «armazenadas», durante os ataques aéreos, os líderes do
campo podiam dar vazão aos seus instintos – humanos ou desumanos –, as
mulheres que se tinham transformado em viragos davam ordens à esquerda
e à direita assumindo ares de importância de forma desnecessária, os
reformados beligerantes arrogantemente tiranizavam a pequena comunidade
reunida na cave para aguardar o seu destino… Mas isto continuava a ser
considerado «ordem». Entretanto a rádio recomeçou, transmitindo marchas
militares crepitantes que se destinavam certamente a incutir coragem nos
cobardes e derrotistas.
Porque as «formações inimigas em maior número» – ou seja, as centenas
de grandes bombardeiros americanos que brilhavam como borboletas
prateadas, tão alto que nada nem ninguém podia parar o seu voo, e
certamente nem os escassos caças da «defesa aérea nacional» nem os
trovejantes canhões antiaéreos – já tinham passado a região de Bácska e a
cidade de Baja, e estavam agora prestes a entrar «no espaço aéreo da
capital». Os canhões já podiam ser ouvidos na cave, e o estrondo monótono
dos aviões, a princípio muito distante, podia transformar-se numa questão
de momentos numa explosão muito próxima que se desfazia em vida ou
morte…
No entanto, a rádio estava a transmitir novamente. «Fez sinais», deu
instruções e mandou os camionistas reunirem-se o mais depressa possível
neste ou naquele local após o ataque, porque teriam muito que fazer…
Algures, entre o céu e a terra, ainda existia uma autoridade que, com
decretos e ordens, agia como se tivesse poder real, como se os ataques
aéreos fossem meros incidentes fortuitos com os quais pudesse lidar. Então
as sirenes começavam a gritar, a rádio dava o sinal de «cessar-fogo», as
pessoas na cave levantavam-se e corriam para a rua, para a luz, levantavam
a cara para o sol, cambaleavam de volta para as suas casas geladas, as suas
janelas bem abertas, engoliam mais algumas colheres de sopa agora fria,
almoçavam, ou tentavam fazer uma chamada telefónica, desde que o
telefone funcionasse. Os elétricos começariam a funcionar novamente.
Porque a «ordem» ainda reinava.
Em algum lugar os edifícios tinham-se desmoronado, várias centenas de
pessoas tinham perdido a vida, uma rua tinha sido varrida da face da terra…
mas «a nossa casa» ainda estava de pé, «o nosso lar» ainda intacto, ainda
estávamos vivos, e as autoridades estavam a olhar por nós. A rádio tinha
recomeçado a funcionar, tocando canções populares magiares, cheias de
vivacidade e bom humor, ou – como se nada tivesse acontecido! –
transmitia com precisão destacada os novos despachos das autoridades: no
dia seguinte, com senha de racionamento podia ter acesso a duzentos
gramas de carneiro, e os japoneses tinham destruído a frota naval
americana… «O perigo passou», e continuamos vivos…
Filas de pessoas saíam dos elétricos, mulheres saíam das caves, pareciam
embriagadas e apressavam-se a fazer as suas compras ou a correr para um
encontro amoroso ou deitavam-se nas suas camas às quatro horas da tarde,
bêbadas e exaustas, no seu apartamento com as janelas bem abertas, mas o
seu lar continuava no seu lugar. Há algum tempo que os ataques ocorriam
com uma cadência regular. Se tivesse havido um ataque pesado de manhã,
só se podia esperar que a província fosse bombardeada à tarde, ou talvez
nada mais acontecesse nesse dia. «Não somos assim tão importantes»,
disseram os mais otimistas com fanfarronice, mas tremendo, «para eles não
vale a pena desperdiçar bombas que custam uma fortuna atacando-nos duas
vezes por dia…» Assim, à tarde, os teatros, cinemas e cafés enchiam-se.
Até às dez horas da noite, a cidade estava repleta de gente.
Os restaurantes estavam cheios. Mas por volta das dez horas, todos
chamavam o empregado e pediam a conta porque se tinha espalhado a
notícia de que a rádio tinha parado de transmitir. «Estão apenas a sobrevoar
a cidade», disseram alguns com gesto da mão; no entanto, chamaram o
empregado, mastigaram e engoliram rapidamente os últimos bocados. Nos
apartamentos, as mães embrulhavam as crianças adormecidas em xailes, e
na cidade mergulhada na noite, através das janelas que se esqueceram de
fechar ouvia-se o eco da voz metálica e viril do locutor. «Pequenas
formações inimigas estão ativas no espaço aéreo a norte do país», ouvia-se
a voz do locutor durante a noite, na rua sem iluminação. Muitas pessoas
suspiraram de alívio e foram para a cama. O «espaço aéreo a norte» estava
muito longe.
Um simples sobrevoo, eles trazem armas para Tito, disse o bem
informado. Foi assim que a cidade viveu, prendendo a respiração, com o
coração na garganta, exibindo indiferença e calma ou em verdadeiro terror,
durante todo o verão. Talvez nos possamos habituar a isto, pensa Erzsébet
por vezes. As pessoas viajavam de elétrico, de repente, as sirenes
começavam a tocar e as pessoas a correr e a desaparecer na cave do prédio
mais próximo, misturando-se com estranhos; a luz na cave umas vezes
funcionava, outras vezes não, as bombas caíam, os canhões disparavam.
Apesar de tudo, havia uma «ordem». Após o ataque, as pessoas
regressavam à rua, entravam no elétrico, ficavam contentes por encontrarem
as suas casas e também os seus conhecidos.
Na primavera e no verão, os dias e noites tinham sido perturbados a um
ritmo regular e frequente pelos bombardeamentos britânicos, e houve
alturas em que a cidade vivia em pânico, tanto que ao primeiro sinal de
rádio suspeito houve uma espécie de migração em massa para Buda, para as
grutas do bairro do Castelo, que foram consideradas seguras. Depois a
situação tinha-se acalmado. Agora era a zona rural ou os subúrbios que
sofriam, onde as instalações industriais eram bombardeadas… Mas a cidade
tinha-se acalmado subitamente. Erzsébet pensou nesse tempo, quando
descansou a cabeça sobre a bolsa de toilete e fechou os olhos. Os
bombardeamentos começaram novamente nas proximidades.
«Os russos só lançam bombas baratas, pequenas bombas», disse uma voz
triste de perto. Olhou para cima e viu um homem idoso coberto de trapos,
com barba por fazer, a falar com o seu vizinho na voz trémula e estridente
de um velho, mas com o ar de alguém que sabe o que está a dizer. Nunca o
tinha visto na cave. Havia estranhos por todo o lado. O velho disse estas
coisas com a simpatia do proletário, como alguém que está do lado do
exército russo e acredita que os russos não querem causar danos graves à
cidade, que estão a bombardear só porque têm de o fazer, depois insinuou
que, «só o suficiente para pessoas pobres como nós». Erzsébet sorriu, pois
tinha apanhado medo e temor na voz do velhote.
De facto, os russos não lançaram bombas de uma ou seis toneladas,
como os americanos fizeram na Alemanha, quando explodiram blocos
inteiros de prédios da face da terra com uma única bomba, como em
Hamburgo e Berlim… Os russos lançavam bombas de algumas centenas de
peso, uma após a outra com mais frequência e uma cadência mecânica,
repetitiva, agora inconfundível. Estas «pequenas bombas baratas» nunca
deixaram de chover do céu. E agora estavam a cair perto.
Por vezes, o zumbido na cave diminuía. As pessoas ouviam agora o
barulho do mundo exterior com todo o seu sistema nervoso, e não apenas de
forma auditiva. Agora os habitantes do prédio e outros estranhos estavam
juntos, pessoas que tinham vindo ninguém sabe de onde, como a jovem ao
lado de Erzsébet, que parecia mascarada: como se se tivesse vestido como
uma rapariga suburbana, uma vagabunda. Mas podia-se dizer pelo seu
silêncio, pelas suas maneiras, pelos seus gestos, que o vestido era apenas
um disfarce. Os habitantes da cave, os antigos residentes, nervosos,
barulhentos, em cada palavra que diziam insinuavam que algo irreparável
iria acontecer naquela noite, que não só tinham descido à cave durante
algumas horas, para se abrigarem das «pequenas bombas baratas», mas que
iriam lá ficar durante muito tempo. Na cave, todos tinham agora a sensação
de serem confrontados com uma realidade que esperavam e para a qual se
tinham preparado. Em algum lugar, tinha sido ligado um gramofone.
Depois, a energia foi-se abaixo.
No entanto, havia água para dois dias. Na véspera de Natal, ainda havia
água no subsolo, um fino gotejamento corria dos canos da lavandaria –
Erzsébet agora lembra-se disso perfeitamente. Mas, nessa noite,
aconteceram muitas coisas: alguém tinha ligado um gramofone na sala ao
lado, um coro cantou Um Anjo Veio do Céu, depois tinham ouvido música
clássica com um ar devoto; mais tarde tinham também posto alguma música
de dança. Todos tinham comido muito, até as mulheres tinham bebido
bastante, sobretudo aguardentes fortes. Perceberam que esta era a sua vida
agora – cento e quarenta pessoas na cave, deitadas em colchões e camas
dobráveis ao lado de fogões comuns, sentadas nas suas bagagens que
defendiam com os seus corpos, contra os outros mas também contra o
perigo iminente, distante mas agora considerado certo –, esta vida de
roedor, esta vida de curral, por vezes entrecortada de querelas ruidosas, esta
vida já não era apenas um momento transitório, mas a realidade para a qual
se tinham preparado.
Estranhamente, esta situação, que ninguém poderia ter imaginado alguns
dias antes, não era tão insuportável como eles tinham pensado… Já não
havia diferença entre o dia e a noite, entre a tarde e a manhã: todos sabiam
que havia, mas não como dois dias antes, quando, entre dois
bombardeamentos, se contentaram em esperar pelo que finalmente tinha
chegado desta vez, o que agora podiam sentir e tocar.
Porque mesmo depois do primeiro dia, havia um cheiro, um cheiro de
humanos, espesso, abafado, denso. Contudo, havia algo reconfortante
naquele confinamento comunitário, como em qualquer realidade para a qual
nos tenhamos preparado durante muito tempo e que depois, quando chega, é
completamente diferente do que se tinha imaginado, mas também, de
alguma forma, semelhante. Eles sabiam que era o cerco. O prédio ainda
estava inteiro, havia quem, durante algumas horas, se precipitasse para um
dos apartamentos dos andares superiores. Aquele desejo compulsivo e
obsessivo de roubar, que dentro de algumas semanas iria tomar conta dos
sistemas nervosos e das mentes dos habitantes da cidade sitiada, deu apenas
alguns tímidos sinais por enquanto. Mas nos intervalos entre os
bombardeamentos, algumas pessoas corriam para os seus apartamentos e
regressavam com pequenas embalagens, as quais escondiam
apressadamente entre almofadas ou onde julgassem ficar mais seguras.
Sombras errantes invadiram a escadaria e a cave, jovens rondavam o
edifício deserto. Já não há eletricidade e, no terceiro dia, a água para de sair
das torneiras, durante dois dias vivem das reservas, depois começam a
transportar água de um poço na rua ao lado, às nove horas da noite ou às
cinco de manhã, assim que o ambiente se torne calmo… uma autêntica
peregrinação furtiva, com baldes e jarras para se aproximarem dos poços.
Porque, por vezes, tudo está calmo.
Como todas as atividades humanas, o cerco funciona de acordo com
certas regras. Agora todos compreendem que um cerco, especialmente um
cerco de uma grande cidade, não é algo improvisado, mas uma operação
concertada, planeada e levada a cabo com meticulosidade burocrática. O
cerco continua, agora sabem que já não se trata de ataques esporádicos; é
uma realidade. Uma realidade ao mesmo tempo mais terrível e mais simples
do que alguém tinha imaginado. No quarto dia, esta realidade é já a vida de
cento e quarenta pessoas na cave escura, iluminada por algumas velas, no
meio de camas improvisadas, com abastecimentos de água cuidadosamente
racionados.
Ainda há muita comida. Todos têm mais comida do que precisam. Nos
fogões comuns, que fumegam e crepitam, as numerosas panelas e
frigideiras murmuram de manhã à noite, como se lá estivessem a ser
preparados banquetes de casamento ou funerais infernais. Sabores e cheiros
de deliciosos pratos flutuam pelo ar carregado, banha de porco crepita numa
frigideira, o seu aroma mistura-se com o cheiro amargo de couve. Também
se habituam aos cheiros muito mais facilmente do que se poderia imaginar,
assim como à escuridão, à falta de água e ao facto de já não haver distinção
entre dia e noite. Há apenas uma unidade de tempo, apenas uma dimensão:
o cerco.
E este cerco – assim se sentem os angustiados e consternados – chegou
«finalmente». Já não é apenas um «começo», já não é um palpite, já não é
um talvez e um quem sabe, mas uma realidade, como a vida ou a morte. E
ainda é melhor do que qualquer outra coisa que tenha acontecido antes.
Erzsébet também se instalou na sua cama, confortavelmente. Por vezes,
vai ao fogão e aquece algo na chama comum. Tem algumas bolachas,
algumas conservas, num saco de papel trouxe alguns quilos de feijão e
ervilhas. Uma cozinheira, uma grande mulher empregada pela família do
conselheiro estatal que vive no primeiro andar, cozinha para Erzsébet e
também para outros com muito gosto. O cerco é uma realidade, e segue um
conjunto de regras internas e externas. O cerco é uma realidade, na cidade,
e na cave. Ora, o reconhecimento desta realidade dá sentido e direção à
vida. Porque o que «começou» terá também um fim, uma vez que o seu
tempo acabou, e depois tudo terá terminado: a tarefa é simplesmente
sobreviver…
E esta tarefa «simples» não é tão sobre-humana como se tinha julgado.
Não é preciso escalar as muralhas da cidade e lançar tochas cobertas de
alcatrão para o inimigo, como se tinha lido nos livros. Este cerco é
diferente. A maioria daqueles que participam nele têm apenas a tarefa de
sobreviver, sem cometer erros, o mais sábio é não se preocuparem
desnecessariamente, consumir água muito moderadamente, deitarem-se
calmamente na cama e esperar.
Estar à espera de quê? Da morte? Ou pela continuação da vida? Por
vezes, as bombas caem muito perto, o que é uma coisa assustadora e
cansativa; até não caírem aqui, neste mesmo edifício, a única tarefa para os
habitantes das casas sitiadas é deitarem-se calmamente e esperar. E mesmo
que uma bomba atinja o edifício, mesmo que várias bombas caiam sobre
ele, sim, mesmo assim haverá uma hipótese de fuga… Nem todos morrerão.
Ao alcance dos moradores da cave está a picareta, a areia, o pé-de-cabra.
Aqueles que permanecerem ilesos poderão derrubar a parede que os separa
da cave da casa vizinha. Não é utilizado gás nesta guerra, e a bomba não
mata toda a gente. Basta deitarem-se calmamente, não se deve desperdiçar
comida ou água potável, não se deve mexer muito, deve-se tolerar os
sanitários, com o seu fedor horrível, a sua promiscuidade malcheirosa… ah
sim, isto é o cerco.
Erzsébet aguenta tudo isto. Ela não se sente revoltada. O seu pai está
numa situação muito pior, e Tibor nem sequer está lá. O mau cheiro, o
barulho, o medo das bombas, nada disto a toca de perto. Ela sente uma
espécie de serenidade que nunca tinha sentido antes. Uma serenidade
inesperada, como um presente. Este deve ser o estado de espírito dos
doentes graves, no final, quando a doença deixou de se enfurecer contra
eles, e na alma dos moribundos permanece apenas uma resistência suave
que os faz aceitar o seu destino… Erzsébet descansa na cama, entre a jovem
disfarçada de rapariga suburbana e o paralítico silencioso.
Raramente falam uns com os outros, e apenas para decidir sobre as
necessidades do momento. Ela sente que tem tido sorte por ter escolhido
bons vizinhos. O paralítico também tem uma espécie de candeeiro de
petróleo, que por vezes acende e por baixo de cuja luz fraca lê um livro
grosso. Erzsébet não lhe pergunta que livro está a ler, porque ela própria
não tem vontade de ler. Ela está deitada aqui, numa cama, na cave de um
prédio na cidade sitiada, como se estivesse numa estranha ala hospitalar,
onde a tivessem levado após uma longa e misteriosa doença. Agora basta
ficar ali em silêncio, na grande ala com os outros doentes, mas um dia tudo
será diferente.
Como será isso? Erzsébet não sabe. Mas no seu coração há agora apenas
uma ligeira expectativa, uma humilde esperança, ela sente-se pronta a
aceitar o que o tempo lhe trouxer. Como se esticasse as mãos em direção ao
destino, num gesto antigo e familiar, como na infância se estende a mão em
direção ao que se conhece, em direção à mãe, ou em direção à perfeição da
noite. É assim que ela descansa.

[6] Os Árpád foram a dinastia reinante do Principado da Hungria nos séculos e . As listras
brancas e vermelhas, símbolos do brasão real, mais tarde apareceram nas braçadeiras dos agentes do
Partido da Cruz Flechada. (N. da T.)

[7] Canção popular húngara. (N. da T.)


3

O edifício vizinho foi atingido por chamas, mas o fogo já está extinto. Lá
fora, uma manhã, aquela atividade lúgubre, cujo som faz lembrar as
máquinas de uma fábrica, começa ainda mais cedo do que nos dias
anteriores. Porque o cerco tem um tempo e um rumo precisos. O cerco de
uma grande cidade – um milhão e meio de habitantes, também Erzsébet e
os seus companheiros de cave já se aperceberam – não é apenas uma
questão de máquinas e fatalidades, mas também de homens… e também se
pode encontrar algo reconfortante nele. É feito por pessoas que utilizam
máquinas, por homens desconhecidos, os bolcheviques. Mas,
aparentemente, são seres humanos, porque, mesmo durante o cerco, as
máquinas que comandam por vezes calam-se. Ficam silenciosas,
descansam.
O que é que os sitiantes fazem nesses momentos? Nesta situação
monstruosa, no meio de caves e quarteirões destruídos? Provavelmente o
mesmo que os habitantes da cidade cercada fazem: descansam. Comem
qualquer coisa, untam e recarregam as suas máquinas, avançam lentamente,
com metralhadoras na mão, acima e abaixo do solo, atravessam as caves de
milhares de edifícios. Em cada cave há homens à sua espera, incluindo
aqueles que ontem ainda eram nazis ou fascistas – porque agora,
paralelamente à resistência e à defesa oficial, há este estranho apelo no
grande corpo da cidade, que convida, exorta os sitiantes e parece dizer:
venham, venham! Todos esperam por eles, mesmo os seus adversários.
Talvez até os soldados alemães estejam à sua espera; antes de morrerem,
nas suas mentes, nos seus corpos, este estranho desejo é despertado, o
desejo de ver finalmente os inimigos chegar, de poder encontrá-los e que
finalmente tudo o que acontece aqui, nas caves malcheirosas, nas covas da
morte, possa fazer sentido. Esta espera decide o destino do cerco. Erzsébet
sente-o no seu corpo, sente esta chamada; como toda a gente nas caves,
como toda a gente na cidade, um milhão e meio de seres humanos.
Muitos esperam pelos sitiantes tremendo, com raiva e desespero, sentem
no fundo que o destino por eles invocado é impossível… e mesmo assim
esperam por ele. O destino do cerco está agora decidido, isto todos sabem,
na cave, na rua, na cidade.
De tempos a tempos, ainda chegam notícias da cidade escura e cercada.
Já não há rádio. Nem eletricidade. Ir buscar água a poços, a casas próximas,
é uma tentativa cada vez mais arriscada. Alguns homens partem, na maioria
das vezes por volta das nove horas da noite, com baldes e jarras. Procedem
em fila indiana, e as mulheres acompanham-nos até à porta da cave. Já
aconteceu que um deles não regressou… O que lhe terá acontecido? Um
estilhaço, um fragmento de bomba, uma bala perdida ou algum outro
incidente ao mesmo tempo trivial e obscuro pode ter acabado com os seus
dias. Mas o grupo vai todas as noites, e todas as noites novas pessoas
juntam-se a ele; por exemplo, o pálido veterinário do bairro, que durante
cinco dias não se atreveu a enfrentar uma caminhada tão perigosa, tem uma
súbita explosão de heroísmo, agarra numa marmita e num balde e junta-se
aos carregadores de água.
Pálida, sem uma palavra, a sua mulher acompanha-o até ao pátio. Este
heroísmo agora, de repente, porquê? Nem ele sabe, isso é certo. As pessoas
agora são imprevisíveis. Mas a espera, a atração, os fascínios do
acontecimento estão tão vivos nos seus corpos e na sua consciência que
geram tensão e comportamento compulsivo. Querem acabar com isso,
passar para outra coisa; depois disso… haverá outra coisa, outra coisa
diferente… isso é claro para todos…
Agora estão habituados ao cerco, sabem como funciona. É gerido por
seres humanos, pelo que, a maior parte do tempo começa às seis e meia,
sete da manhã. E dura até às oito, nove da noite, raramente mais tarde… O
que há de estranho nisso? Essa curiosa confusão de ruídos, bombas a cair,
granadas a explodir, aviões a rugir, metralhadoras a crepitar, essa harmonia
estranha é quase «suportável», mesmo quando se aproxima cada vez mais,
mesmo quando parece vir da casa ao lado, onde algo explode, e ouvem-se
os sons de martelos, arranhões, apitos… Um ruído mecânico, semelhante ao
de uma oficina, como se numa fábrica improvável se começasse a trabalhar
todas as manhãs ao amanhecer, com equipas em turnos…
Aqui vão eles, pensa Erzsébet, ao amanhecer, na sua cama.
Todos na cidade pensam a mesma coisa. Aqui vão eles, e já sabem
exatamente com o quê: com canhões e granadas, ou outras armas de fogo.
Por esta altura, já todos se tornaram especialistas em armas. Os nervos
auditivos funcionam com a mesma acuidade que os nervos óticos; e
transmitem informações irrefutáveis, as quais não podem ser contestadas.
Nesta grande indústria da guerra, nesta guerra moderna travada com
máquinas, há muitos lugares como Budapeste, que é apenas um deles… Por
todo o lado, a moer e a martelar, do amanhecer ao anoitecer. O que estão
eles a fabricar? A paz? Um mundo melhor, mais próspero, mais inteligente?
Erzsébet não sabe. Este ruído, este barulho abafado, tem uma resposta
para tudo e impede a mente de analisar e compreender o que quer que seja.
Então, de repente, ao anoitecer, cai o silêncio. E agora, o que estão os
combatentes a fazer? Estão cobertos de sangue? Em geral, como são eles?
Ninguém sabe. Esse grande exército vem da escuridão, do desconhecido.
Erzsébet não consegue sequer imaginar como é um soldado russo, como é o
seu uniforme, as suas armas, como se comporta. Como é que é a sua cara?
São eslavos… é a única coisa que ela sabe. Nas ruas, há cartazes que
retratam seres ferozes, desprovidos de qualquer traço humano, com
intenção de saquear ou assassinar… Seriam estes os bolcheviques? Erzsébet
sente, sabe que esses cartazes são mendazes e distorcem a realidade. Os
bolcheviques são seres humanos, tal como todos os que estão aqui na cave.
À noite, depois dos combates, eles vão certamente querer lavar-se e comer.
Depois, eles dormem também, no meio das máquinas da morte, no chão,
como puderem. Isto porque a sequência cronológica do cerco e a sua série
de acontecimentos fatais exercem a mesma pressão sobre os sitiantes e os
sitiados.
E depois, numa manhã, a abertura desta polifonia monótona, os
primeiros acentos da cacofonia das máquinas de guerra ressoam mais alto…
A cave acorda do seu sono, as pessoas sentam-se nos colchões imundos,
prestam atenção. Alguém já está consciente de que os sitiantes estão mais
próximos, estão aqui, à volta do quarteirão. Esta palavra, «quarteirão»,
adquire subitamente um significado invulgar.
Como se alguém estivesse a dizer «pátria», uma versão mais familiar e
mais restrita da existência. Porque ainda ontem havia um mundo ao qual se
pertencia. Depois havia um continente em perigo, com as suas catedrais,
hospícios, casas, com os seus viadutos, paisagens, música de Bach e livros:
a Europa… E finalmente esse conceito, essa ideia tinha encolhido, era agora
uma questão da pátria, que subitamente emergiu na luz do dia e na
consciência dos homens, e adquiriu um significado especial, mais
importante do que alguma vez tinha tido: a pátria, os Cárpatos, a planície
sobre a qual a cavalaria e os tanques russos avançavam.
Depois, o conceito de pátria também encolheu: tornou-se mais pequeno a
cada dia, até que restavam apenas alguns bairros, algumas cidades
conhecidas, depois a grande cidade sozinha; e agora, dentro da cidade, os
bairros, rendendo-se uns atrás dos outros; e, finalmente, o quarteirão…
E depois disso? O que vem a seguir? O edifício em que Erzsébet e os
outros se encontram, depois, dentro deste edifício, esta cave e este recanto
que terá de ser conquistado como tal. E agora, nesta madrugada, à medida
que se aproxima o barulho mecânico, as pessoas fechadas já não falam do
mundo, da Europa, da pátria ou da grande cidade, mas do quarteirão, apenas
do quarteirão. Esta é agora a pátria: uma série de casas e prédios
delimitados por algumas ruas. A guerra chegou aqui, a uma das ruas
vizinhas, em frente à mercearia da esquina.
Durante muito tempo, a guerra tinha divagado noutros locais, nas
planícies ucranianas, nas margens do Volga, na Normandia; as pessoas
compraram o jornal, folhearam-no, viraram a página, leram cuidadosamente
a informação sobre os cupões de racionamento que poderiam ser utilizados
no dia seguinte… Mas agora não há mais jornais. A guerra está aqui, pode
sentir-se a sua respiração. Como se, na escuridão, um monstro se inclinasse
sobre todos: as vítimas sentem o seu hálito fétido, quente e selvagem no
pescoço, o monstro está a farejá-las. Os habitantes da cave começam a
preparar-se… para quê? Para uma espécie de boas-vindas. Alguns tocam
com os dedos os objetos de valor escondidos debaixo da cama. Outros
preparam febrilmente a sua bagagem, uma mulher penteia o seu cabelo,
começa a vestir-se, como se estivesse convidada para um encontro
escaldante ou para uma reunião social.
A guerra está aqui, muito perto, a arder na esquina do quarteirão; e os
habitantes da cave não se aperceberam imediatamente que a guerra mede
espaço e tempo de forma diferente da paz. Agora, ao experimentarem este
sistema por si próprios, apercebem-se de que a guerra não se resume a
entidades abstratas, continentes e nações, mas que ela está aqui, presente, na
realidade concreta. A guerra está aqui, pode ouvir-se a sua respiração
ofegante, sentir-se o seu hálito ardente e abafado, está aqui, muito perto, na
rua seguinte ou a três ruas de distância… mas, no entanto, ainda não
chegou. Todos estão alertados no escuro, os seus olhos fixos, os seus
ouvidos tensos, como animais selvagens a sentir a presença de um caçador.
Mas o caçador não se mexe. E esta espera iminente é, sem dúvida, pior
do que qualquer outra coisa. A guerra usa as botas das sete léguas, sobe
sobre os Cárpatos, corre para aqui da Normandia ou das margens do Volga,
mas de repente, na rua seguinte, pára e descansa. Que está ela a fazer? Está
a reunir as suas forças? Apenas alguns metros separam os cercados do
instante em que a guerra entra na sua cave, mas estes poucos metros
parecem agora uma distância abismal, como há um ano, mil quilómetros.
Uma espera desamparada, muda e ociosa começou.
Mais uma vez, chegam os pressagiadores, agora as suas cabeças estão
ensanguentadas, os seus braços enfaixados com ligaduras sujas, como os
sobreviventes que aparecem nas velhas imagens de batalha, e anunciam que
a duas ruas de distância, numa clareira onde apenas algumas semanas antes,
ao sol de uma manhã de inverno, as crianças brincavam, a guerra chegou.
Os alemães montaram ali acampamento, reocuparam duas caves,
expulsaram os que ali viviam em direção à frente vizinha, ou seja, a rua ao
lado, e estão agora a montar novas posições no andar superior do prédio da
esquina, no apartamento de um dentista com uma varanda. Os russos estão
também aqui, do outro lado da rua, na cave de um cinema de bairro. É por
isso que a guerra está agora silenciosa à volta do quarteirão: os combatentes
estão agora perto uns dos outros, perto da luta corpo a corpo. É por isso que
não caem bombas há dois dias: os russos poupam este quarteirão porque
poupam os seus soldados.
E mais longe? Na cidade? Em Buda? Fala-se de «desembarque», cujo
palco já não é o Mediterrâneo, mas uma doca de barcos a motor nas
margens do Danúbio, de «confrontos decisivos» que ocorrem no passeio
ribeirinho, onde os sitiantes ocuparam dois hotéis famosos e quatro cafés da
moda. E as pontes? Muitos acreditam que as pontes ainda lá se encontram.
Outros dizem que os alemães colocaram a «bandeira preta» numa janela do
Castelo de Buda, o que revela a sua intenção de nunca entregar Budapeste
ao inimigo, de lutar até à última rua, à última casa, à última cave, ao último
homem.
Entretanto, esta calma densa e repentina já dura há dias. Quantos dias
tem durado o cerco? Dez, doze? Ninguém os conta. Como quando se está
gravemente doente, o dia absorve a noite: já não se consegue distinguir os
momentos do dia nem os acontecimentos relativos aos indivíduos que
vivem no quarteirão e na cave. Tudo se torna uniforme, o tempo, o dia, a
noite, tudo se torna compacto e pastoso. Até os rostos das pessoas. Erzsébet
vive lentamente nesta atmosfera densa e pegajosa, como animais em
hibernação: metabolismo reduzido, batimentos cardíacos e respiração
abrandados.
Todos eles vivem assim agora. As coisas acontecem: de vez em quando
alguém adoece, três camas abaixo um homem morre de cancro pancreático.
É um homem velho, calmo e calado, que trouxe a sua própria sentença
pessoal para aqui, para a cave e para o buraco infernal de um cerco. Ele foi
inspetor-geral dos caminhos de ferro, dizem. Ninguém o conhecia. Chegou
no início do cerco acompanhado pela sua mulher, uma mulher loira, com ar
abatido; o casal idoso tinha-se instalado num canto, ela não falava com
ninguém, o homem não se queixava, Erzsébet só tinha visto a mulher a dar
uma injeção de morfina ao marido de vez em quando. Uma noite, o homem
doente morreu, silenciosamente, devido ao seu cancro. A mulher não
chorou.
Naquela manhã, ao amanhecer, ouviram-se tiros de armas de fogo em
redor do edifício. Erzsébet deu uma mão ao enterro do homem no pátio:
embrulharam o cadáver num lençol e a mulher envolveu piedosamente o
corpo esquelético na mortalha suja, prendeu-o com alfinetes de segurança,
como se estivesse a preparar uma múmia dos tempos antigos. Ninguém
olhava para eles, havia apenas três pessoas a movimentarem-se à volta do
cadáver, o médico do abrigo antiaéreo, a viúva e Erzsébet. Os habitantes da
cave falavam de outra coisa, distantes, com ar silencioso, como fazem os
adultos quando falam na presença de crianças de coisas odiosas e terríveis,
às quais é melhor não prestar atenção. «Cancro pancreático», dizia a viúva
de vez em quando, enquanto executava esse trabalho, com alfinetes de
segurança entre os dentes; dizia-o espontaneamente, com uma solicitude
desconcertada e mecânica, como se estivesse a relatar uma circunstância
atenuante a um juiz. Como se ela soubesse que a sua presença e a morte do
seu marido estavam a causar aborrecimentos desnecessários aos habitantes
do abrigo e insistisse em encontrar uma justificação, em repetir que o morto
e ela, a viúva, não tinham culpa, que o cancro pancreático era a causa de
tudo isto.
Ela tinha embrulhado bem o falecido no lençol e prendeu-o com
alfinetes de segurança, porque «assim aguenta melhor» tinha dito com
pressa, e ninguém tinha ficado surpreendido, nem mesmo Erzsébet, ao ouvir
esta estranha afirmação. Então dois homens, o porteiro e o médico,
carregaram o falecido sobre os ombros e levaram-no para o pátio. Estava a
nevar. Nevoeiro e neve tinham descido sobre o pátio, não se podia ver o
céu. Erzsébet acompanhou a procissão fúnebre, caminhou atrás da viúva, e
no pátio, em frente da fossa que o porteiro tinha cavado na noite anterior,
parou e respirou profundamente. O seu único pensamento, a sua única
preocupação naquele momento era não poder ver o céu da manhã por causa
do nevoeiro.
A fossa é rudimentar, não mais do que meio metro de profundidade, na
terra congelada não se pode cavar mais nem mesmo com uma picareta;
deitam nela o falecido e atiram-lhe torrões por cima. Agora ele jaz aqui, ao
pé da parede principal, debaixo da fila de janelas de sanitários de serviço
estreitas, o estranho que tinha trazido o seu cancro pancreático para a cave
de um outro prédio, em tempo de cerco, dentro do seu próprio corpo, e tinha
morrido sem sentir nada graças à morfina, sem uma palavra, no meio do
turbilhão acima e abaixo do solo.
O porteiro coloca uma cruz improvisada sobre a sepultura. Esta morte
«burguesa» no meio da guerra, esta morte «civil» é a morte como a de
alguém que cai atingido por uma bala ou estilhaço. É nisto que Erzsébet
está a pensar ao ler a inscrição na cruz. Morreu com a idade de cinquenta e
seis anos. Inspetor dos caminhos de ferro. Ela gostaria de compreender isto,
de compreender o que é um homem e se tudo isto, os esforços humanos, os
esforços e o sofrimento têm algum significado. O que pensa o seu pai sobre
isto? Qual é a relação com o cosmos, com as estrelas? Não há ninguém a
quem perguntar. Todos eles regressam à cave.
À volta do quarteirão o cerco parou durante alguns dias. Agora, a guerra
ressoa e ronca mais longe de novo; é como uma trovoada subterrânea. Os
habitantes da cave, com o instinto cego das criaturas que vivem nas
profundezas, preparam-se durante esses momentos de calma precária. O
perigo, a única coisa que dá sentido às suas vidas – tal como é a dor que
estimula os neurónios de uma pessoa doente –, tem diminuído. Mas eles
sabem que esta atenuação é temporária. E como os doentes graves nos raros
momentos em que a dor diminui e deixa de torturar os seus corpos,
preparam-se para algo extremo, para a investida de um novo perigo, de uma
dor final, devastadora.
O homem com cancro do pâncreas foi enterrado, mas ninguém fala sobre
isso. Não há condolências nas palavras ou atitude das pessoas, apenas uma
espécie de irritação ressentida; parecem considerar que é uma falta de
respeito, um gesto intrusivo de alguém vir ter com elas para morrer de
cancro pancreático, no meio do perigo geral, no meio das suas ansiedades e
preparações. Como se dissessem: «Está a ir longe demais! É preciso ter
lata! É um ser bem estranho…» A viúva sente a atmosfera hostil e tenta
desaparecer, para se misturar no matagal humano que enche a cave; ela não
ostenta o seu luto, que é certamente também um alívio, como qualquer luto
recente – e certamente ainda mais em tal situação, dado que, ter de
alimentar um homem moribundo, prover às suas necessidades, lidar com o
seu desamparo, tudo isto foi um empreendimento complicado e sem
esperança, onerosa para a mulher e para os que a rodeiam, mais pesada e
mais dolorosa do que em qualquer outra situação na vida…
Agora ele está morto, e jaz ali no pátio. Muitos descansam assim, em
sepulturas improvisadas nos pátios dos edifícios vizinhos. Uma rapariga
arrasta a sua mãe morta de costas, do armazém de madeira para a vala
comum cavada no pátio vizinho, porque o bombardeamento não para nesse
dia, e não há ninguém que a acompanhe. De tudo isto, os habitantes da cave
não falam. A atmosfera torna-se cada vez mais agressiva: no início, só a
descarregam naqueles que, de uma forma ou de outra, perturbam a ordem
infernal da coexistência, naqueles que morrem, ou nos doentes, ou naqueles
que exigem algo mais do que os outros; depois descarregam nos espertos,
naqueles que compreenderam como as coisas funcionam, naqueles que
conseguem mais água, naqueles que comem a melhor comida, naqueles que
têm contacto com o mundo exterior; finalmente, descarregam uns nos
outros, em todos aqueles que partilham a mesma situação. Durante algum
tempo, esta raiva que se acumula e se adensa, apenas se manifesta em
explosões de irritação e discussões ocasionais.
Duas mulheres a lutarem por cima do fogão, alguém roubou a lata de
banha… Na cave, de facto, as pessoas estão agora a roubar, embora ainda
não de uma forma generalizada e compulsiva como será nas semanas
seguintes, quando a destruição será total; agora só roubam esporadicamente,
movidas por uma tentação momentânea. Mas as pessoas roubam. Já não
existe qualquer legalidade, e os laços sociais também se soltaram
consideravelmente.
Erzsébet conhece apenas algumas poucas pessoas no edifício. Não há
amigos íntimos dela na cave. E a vida lá, a promiscuidade tipo chiqueiro
devido ao cerco, não lhe dá qualquer possibilidade de conhecer as pessoas.
Ela simplesmente toma nota de que as «pessoas distintas» são sempre as
mais irritáveis, mas ao mesmo tempo esforçam-se por se aproximar das
«pessoas simples», dirigindo-se a elas com uma afabilidade estridente, o
que parece hipócrita: os russos estão próximos e ninguém sabe o que o
futuro lhes reserva.
O conselheiro estatal, um advogado idoso, vive num canto isolado com a
sua mulher e filha, e mesmo aqui, com a sua cozinheira e empregada,
mantêm o estilo de vida que tinham quando viviam no apartamento de oito
assoalhadas no primeiro andar, continuam ansiosos por se distinguirem dos
outros e manterem o seu lugar na escala social… Estranhamente agora,
embora os russos, os bolcheviques, estejam por perto, não é tanto a família
do conselheiro de estado que quer preservar esta distinção de posto, mas as
«pessoas simples», as pessoas mais humildes que vivem no prédio, os
proletários… A mulher do conselheiro de estado ainda é tratada por
«senhora honrada»[8], ninguém se atreve a chamar-lhe outra coisa.
Erzsébet não conhece ninguém neste porto marítimo subterrâneo, mas,
na escuridão, neste caos tumultuoso, certos comportamentos humanos são
óbvios, e ela sente com espanto que, neste momento, tudo toma um rumo
diferente do que tinha imaginado…
Todos os tipos de pessoas vivem aqui, notáveis, gente rica, instruída,
pequeno-burgueses, um alfaiate, um bombeiro, um professor universitário
que Erzsébet conhece de algum lado, um empresário recente que enriqueceu
quando as leis e as exações fascistas erradicaram o comércio judaico, um
advogado, um dançarino que agora vende sulfato de cobre; todos os tipos de
pessoas. Num canto vive também um ferreiro doente com tuberculose, com
cinco filhos, sem mulher. E dois carvoeiros, que ainda conseguem,
teimosamente, recorrendo a reservas de álcool cuja origem é desconhecida,
embebedar-se constantemente; já não se trata de um caso de bebedeira atrás
de outra, apenas precisam de tomar um gole de vez em quando para
consolidar aquele estado calmo de embriaguez com que têm tentado
nocautear-se desde o início do cerco.
No meio daquele enxame, na multidão humana cada vez mais
desconfiada, dominada por vozes agitadas e agudas, Erzsébet percebe, sem
ser capaz de o verbalizar, que algo está a mudar na alma do povo.
Sim, algo está a acontecer nas almas de todas aquelas pessoas que são
forçadas a viver juntas, a discutir, a tremer de medo, a conversar com uma
afabilidade embaraçosa, a trocar cortesias através de dentes cerrados ou
a repreenderem-se mutuamente com uma inquietação sombria no seu olhar.
O que está a «mudar» sente-se, por assim dizer, lá fora na rua, nos becos do
quarteirão. O que está «a acontecer»? Por vezes Erzsébet pensa ter
compreendido.
As pessoas esperam e chamam por algo… mas o quê? Os russos? O fim
do cerco? Claro que o desejam com todas as suas forças; mas também estão
à espera de algo mais. O quê, então?… Erzsébet está a refletir, deitada
numa escuridão cada vez mais imunda, pegajosa, cada vez mais impregnada
de um cheiro intenso e rançoso de seres humanos; descansa ali, e não
consegue encontrar a palavra que procura. Embora não possa ser expressa
em palavras, a expetativa que se apoderou de todos é palpável. Ninguém
sabe realmente o que quer. A distinta mulher e filha do conselheiro de
estado gostariam a todo o custo de continuar a ser as distintas senhoras que
são, mas discretamente, quase sem revelar a sua posição; gostariam de
sobreviver ao cerco com este tipo de distinção incógnita. Ao almoço e ao
jantar, a senhora mais ilustre partilha ostensivamente a comida cozinhada
no seu fogão com os «pobres», com os pirralhos do ferreiro tuberculoso, e
com igual ostentação o ferreiro dirige-se à senhora mais ilustre em voz alta,
gabando-se de que ela é «a mais ilustre».
A classe alta e o proletariado estão igualmente perplexos, sem certezas.
Ninguém sabe exatamente o que as próximas horas irão trazer. O que os
comunistas vão querer, que tipo de ordem vão estabelecer, quem vai ser o
chefe, quem vai ser o servo. O conselheiro de estado chama «meus caros
amigos» aos carvoeiros bêbados e brinda-os com conhaque francês, e os
carvoeiros, cada vez que se levantam das suas camas, levantam os seus
pequenos copos cheios do licor nobre com uma mão ligeiramente trémula, e
numa voz rouca, mas forte, bebem à saúde do ilustre conselheiro de estado.
Todos têm dúvidas. Amanhã ou hoje à noite, o cavalheiro pode já não ser
realmente um cavalheiro, e o pobre homem não sabem em quem se tornará
ele. Ele próprio, um homem ilustre? Os «pobres» comportam-se
curiosamente, isto Erzsébet nota de imediato; são de uma educação
ostensiva. É como se não conseguissem ultrapassar o facto de esta
dependência complexa e misteriosa com que sempre viveram poder mudar
de um dia para o outro. A experiência, o instinto e a desconfiança estão
patentes em tudo o que dizem e na forma como atuam… uma experiência
que não remonta a dez ou mesmo cem anos, é mais antiga ainda, de mil
anos. O velhote, com a voz trémula e estridente, que na primeira noite do
cerco tinha feito um discurso sincero sobre as «bombas baratas» dos russos,
enquanto continuava a segurar o seu cachimbo frio, ouve a tagarelice que,
em momentos mais calmos, os «cavalheiros» e os «pobres» trocam,
sentados juntos num canto qualquer debaixo de uma vela. Ele pestaneja,
funga, e, prudentemente, não intervém. O seu rosto enrugado, coberto de
pelo esparso, exprime desconfiança e o sorriso que ele exibe é cauteloso.
Como se estivesse a dizer: «Eu sei o que sei. Isso também vai mudar.
Vamos apenas esperar um pouco mais.»
E Erzsébet sente que o velhote, os carvoeiros e o ferreiro com
tuberculose têm razão: o que eles sabem não se limita a essa circunstância,
não está relacionado com a terrível, mas ainda passageira, experiência do
cerco… Eles sabem algo desde muito antes, desde o início dos tempos.
E o conselheiro de estado e o professor… Há tantos deles nas caves, e,
de vez em quando, aparecem caras novas. Erzsébet não consegue
acompanhá-los, como se estivesse num comboio em movimento, onde as
características distintivas dos companheiros de viagem se desvanecem
à medida que eles vão e vêm constantemente. Em suma, os «cavalheiros», a
classe média, aqueles que ocupam o degrau mais alto ou mais baixo, têm
cada vez menos certezas a cada dia que passa. Erzsébet pensa, quase com
pesar, que não há verdadeiros «cavalheiros» na cave – são uma espécie de
pessoas ausentes neste microcosmo. Há «pessoas abastadas», as «mais
ilustres» são todas hesitantes, excessivamente afáveis, condescendentes,
demasiado familiarizadas umas com as outras e com os «pobres», estes
«queridos amigos»; todas se tornaram expansivas, como se agora, no último
momento, todas as barreiras de classe tivessem caído, e o que foi passado
em silêncio durante anos, na cave, no apartamento de oito quartos
no primeiro ou terceiro andar, no pequeno quarto alugado com vista para o
pátio, tivesse de ser discutido, explicado à pressa. Pode-se dizer que as
«boas pessoas» pensam: «Somos todos seres humanos e estamos todos em
perigo. Temos de nos compreender e amar rapidamente.» Mas os
verdadeiros «cavalheiros» – onde estão eles? Onde estão os homens de
classe? É isso que Erzsébet pergunta a si própria.
Aquele inválido no canto, pelo menos, mantém-se em silêncio. Não
tagarela, não procura a amizade dos proletários, não quer apressar-se em
alianças com pessoas de outros sectores da vida. É evidente que ele também
é um «cavalheiro»: tem um cobertor de lã, a sua camisa, a sua gravata, o
seu casaco, os seus lençóis, todos os seus artigos são refinados,
cuidadosamente escolhidos e de excelente qualidade. É um homem careca,
nos seus cinquenta anos, talvez até menos. Tem uma estranha bengala
vagamente semelhante a uma muleta, com uma ponta de borracha, e que
mantém sempre na mão junto da maca. Só sai da cama uma vez por dia, e
com grande esforço, tenta o seu melhor como se tivesse de fazer um
exercício de ginástica complicado ou um ato de circo e, agarrado à bengala
com ambas as mãos, arrasta-se em direção às casas de banho.
Não fala com ninguém, mas se lhe falam, ele sorri e responde num tom
calmo. Os poucos passos que separam a maca do buraco malcheiroso que
cento e quarenta pessoas ajudaram a sujar nos últimos dias devem significar
para ele um esforço de vontade que Erzsébet nem sequer consegue
imaginar, mas cuja tensão interior sente. É evidente que o homem está a
calcular cada movimento seu, como lá em cima no trapézio o acrobata que
faz um salto mortal: muitas vezes Erzsébet assistiu à sua luta silenciosa ao
sair da cama, como agarrar a pega do bastão, dobrar o tronco para a frente,
incliná-lo em cima dele e, ajudando-se desta forma, arrastar a parte inferior
paralisada para fora da cama. É desta forma espantosa, mas determinada,
que ele se dirige uma vez por dia para a latrina.
Ele não tem ninguém. Erzsébet não se lembra de quem o trouxe para lá
numa maca. No entanto, foram estranhos que o colocaram num canto, como
um embrulho, e depois desapareceram. O homem foi deixado sozinho, com
o seu cobertor de lã, a sua roupa fina e uma mala de mão. Ele tem uma
garrafa térmica, comida, tudo cuidadosamente escolhido… É evidente que
este homem que ninguém conhece preparou-se para o cerco, que se equipou
bem em antecipação deste empreendimento, tendo em conta a sua paralisia,
como para uma excursão extraordinária, na selva ou na mina… A garrafa
térmica, o recipiente isolado para alimentos, os artigos de higiene pessoal,
os medicamentos, tudo está à mão, como a bordo de um navio de
emigrantes, onde a situação é incerta e todos, no meio de tantos estranhos,
têm um mínimo de espaço.
O homem instalou-se a bordo deste estranho navio que é a cave da
cidade cercada; ele usa cada centímetro à volta do seu leito, é evidente que
poupa em movimentos, palavras, até olhares, porque precisa de toda a força
que lhe resta para sobreviver a estas semanas de crise. Ele não tem
ninguém; e a solidão que o rodeia é estranha, suspeita.
Todos sabem que o recém-chegado não está sozinho sem uma razão, que
não é coincidência que tenha sido ali depositado naquela noite por
estranhos. Talvez ele seja judeu. Há judeus na cave, e não poucos, toda a
gente sabe. No extremo da terceira cave, um dentista pálido está
encurralado nas sombras; é um judeu que escapou do campo de
concentração da fábrica de tijolos. Ele tem documentos falsos, isso é
conhecido, o porteiro e o responsável pelo prédio também sabem… Mas
agora há muitos que se esforçam por ajudar os judeus, e talvez no último
momento, agora que os russos estão tão perto, fechar os olhos a um judeu
escondido pode ser um «ponto positivo».
No entanto, o destino dos judeus está a tornar-se cada vez mais incerto,
mesmo agora que os russos estão a um passo de distância; sim, talvez
estejam agora em maior perigo do que alguma vez estiveram. Ninguém
sabe o que está a acontecer no gueto de Budapeste, onde os cruzes
flechadas e os alemães acabaram por prender os judeus da cidade. Quantos
estão lá dentro? Setenta mil? Cem mil? Será que já os mataram? Ou ainda
estão vivos e esfomeados? Mas há muitos mais escondidos na cidade, nas
caves dos prédios cercados, dezenas de milhares deles. Estão escondidos, e
muitos sabem disso, muitos ajudam-nos e calam-se; mas nem todos.
No vigésimo-quarto dia do cerco, Erzsébet e os habitantes da cave são
acordados durante a noite por barulhos e gritos. Tiveram um dia muito duro,
os aviões russos lançaram dezoito ataques à vizinhança, o segundo andar do
prédio foi atingido por duas granadas, os habitantes da cave dormiram mal,
em perpétuo estado de alarme. De repente, são despertados por gritos e
feixes de luz. Na divisão do meio da cave, entre colchões e camas, na
escuridão turva pelo fedor das secreções humanas, o odor das comidas, as
exalações dos corpos não lavados, no meio das pessoas a dormir enroladas
em colchas e cobertores, roncando, gemendo, oprimidas pelo medo da
morte, com nervos esgotados, atordoados pelo cheiro dos seus próprios
corpos, apareceu um estranho grupo.
Entre os colchões, é sussurrado que os cruzes flechadas chegaram para
uma visita noturna. Quatro figuras estão no meio da confusão fétida, uma
espécie de anão corcunda que se parece com um gnomo, um homem alto
vestido de casaco de couro com uma cara bexigosa a quem os outros
chamam Irmão Szappanos, e dois homens gordos visivelmente bêbados a
soltarem palavrões com uma voz rouca, talvez algozes. O irmão Szappanos
é o líder do grupo, mas o gnomo despachado parece ser a sua alma. Estão
vestidos com casacos forrados de pele e coletes de couro, a segurar
metralhadoras e lanternas com feixes de luz ofuscantes. O gnomo precede
os outros, inclinando-se para a frente, como se se sentisse perfeitamente em
casa ali, naquele mundo subterrâneo, como se estivesse no seu elemento
e no seu próprio terreno; é seguido pelo monótono e magro comandante, os
dois caceteiros, o responsável pelo prédio pálido e barbudo, e o porteiro, um
homem sempre hesitante, que até agora se mostrou atencioso e bondoso
para com os infelizes na cave. Agora caminha de forma diferente. Com
ambas as mãos, segura um pacote grande. O irmão Szappanos conhece o
porteiro, dirige-se a ele com familiaridade.
– Por aqui, à esquerda, irmão – diz o porteiro.
E o grupo caminha lentamente pela fila de colchões, onde Erzsébet e os
seus companheiros estão deitados.
Neste instante, Erzsébet tem a mesma sensação de alguns dias antes:
algo «está a acontecer». Como lá em cima, no bairro do Castelo, quando ela
se encostou à porta da casa abandonada e a palavra «sabatista» lhe veio à
mente. O porteiro é um «irmão», já todos compreenderam isso. Esta é a
segunda vez em poucos dias que ela teve de olhar um homem no rosto sem
pestanejar, como quando, no corredor escuro do prédio oposto, o sabatista a
escrutinara apontando-lhe o feixe da sua lanterna. Mesmo agora, uma luz
acesa atinge Erzsébet no rosto. O gnomo apontou-lhe o feixe, o comandante
alto inclina-se sobre ela.
– Quem é esta? – pergunta a voz rouca.
– Uma estranha – responde o porteiro.
Erzsébet coloca a mão debaixo do colchão, no meio daquela confusão
gordurosa procura os documentos falsos emitidos em nome de Erzsébet
Sós. A seguir – sem dizer uma palavra, semelhante à forma como o destino
nos comunica, lentamente, ultrapassando uma resistência e obedecendo a
outra força –, o raio de luz da lanterna do gnomo descreve um semicírculo e
passa sobre Erzsébet e os seus vizinhos que permanecem nas sombras.
A luz procura agora mais lugares, ilumina outros rostos; rostos
aterrorizados, desorientados, macerados nos vapores imundos do cerco e da
vida subterrânea, examina-os calmamente, o que leva o seu tempo, como se
os russos estivessem a lutar noutro lugar, longe, como se ainda houvesse um
estado policial na cidade, e as autoridades estivessem a vigiar, conduzindo
inspeções noturnas… É assim que o irmão Szappanos e os seus ajudantes,
atrás deles o porteiro, segurando debaixo do braço um saco cheio de
despojos, escrutinam as pessoas.
Depois afastam-se lentamente, a luz guia o grupo escuro como o clarão
frio de uma obsessão guia um louco. Erzsébet sente um arrepio gelado.
Considera esta visita noturna uma forma de delírio. Não pode ser
racionalmente concebido que os homens continuem, até ao fim, a roubar, a
destruir vidas e bens, sem um objetivo, só porque têm o poder… Nem
sequer podem usufruir dos frutos do roubo, o destino das vítimas não pode
agora influenciar o resultado do cerco… Mas então o que é que o irmão
Szappanos, o gnomo e os outros querem? Será que eles têm algum
«propósito»?
A loucura não tem nenhum propósito. O louco faz algo, fá-lo sem
propósito ou motivo, sem mais nem menos, porque pode fazê-lo: arranca os
dentes com um prego ferrugento, ou começa a gritar em norueguês, sem
qualquer sentido. Esta noite, estes doentes mentais vão «conseguir alguma
coisa».
Entram em ação, e da cave mais próxima vem um grito histérico. Afinal,
os visitantes da noite não vieram sem propósito. Ouvem-se apelos de uma
voz masculina velada depois outras vozes rosnam, ladram, juram.
Encontraram quem procuravam: e todos naquela parte da cave, cento
e quarenta pessoas em silêncio, no meio de um horror arrepiante, sabem
quem encontraram: o judeu escondido, o dentista. O porteiro «irmão» afinal
revelou o segredo partilhado por todos. Ele provavelmente recebeu uma
recompensa dos irmãos; o pacote que transportava, deve ter uma parte do
espólio. Ou foi seduzido por uma promessa, ou, simplesmente, a natureza
humana, a simples volúpia e prazer da crueldade levou-o a denunciar aquele
pobre coitado com óculos que já vivia entre eles há três semanas, lívido de
medo, numa espera angustiada que lhe faz bater os dentes.
Como, no final da caçada, uma matilha de cães se espalha sobre o animal
morto, assim os irmãos festejam o seu prémio, o seu saque e a sua presa,
com gritos de gralhas. A luz da lanterna vagueia cegamente para a cave
seguinte. Ninguém fala. Cento e quarenta pessoas estão em silêncio, apenas
a voz rouca dos assassinos zangados e maliciosos pode ser ouvida. Até a
vítima está em silêncio. O grupo abandona a cave.
Os momentos que se seguem são intemporais. O tiro, que todos esperam,
não demora muito a chegar; mas o som do disparo chega abafado, as
paredes do abrigo absorvem e neutralizam o som seco. Ninguém se mexe.
Lá estão também dois funcionários dos correios, ambos inquilinos do
edifício. Um deles, um homem de uma certa idade, é conselheiro, o outro é
gerente de um dos correios do bairro. Eles são os primeiros a dizer alguma
coisa. Como se o facto de pertencerem à mesma administração os
encorajasse a exprimirem-se: com embaraço e raiva, fazem uma espécie de
dueto agressivo, como se se acusassem um ao outro do incidente. O
conselheiro ataca primeiro, o gerente responde num tom lamuriante,
irritado, mas ao mesmo tempo humilde.
– Já lhe disse tantas vezes – ouve-se a voz trémula do mais velho na
escuridão –, e disse sempre que estão a ir longe demais…
O outro responde desesperado:
– Acredite-me, estes já não são seres humanos. Já chega.
Agora todos falam ao mesmo tempo, como se um coro percorresse as
três caves; estão a falar, a deitar fora frases desconexas. O gerente disse
qualquer coisa. «Isto é demasiado» parece a todos ser uma expressão
adequada; o gerente deu voz aos pensamentos dos habitantes da cave e, para
exprimir a sua convicção, inventou uma fórmula sedutora que tem um
efeito libertador nos espíritos. Algumas das mulheres começaram a
choramingar e a cacarejar, os carvoeiros bêbados, com certo fervor,
gritaram que queriam fazer algo, mas o professor e o conselheiro geral
impediram-nos. A expressão «isto é demasiado» torna-se uma palavra de
ordem que irrompe de cada garganta.
Agora podemos finalmente falar… sobre o quê? Libertos, mas no
embaraço e na explosão verborreica da culpa, todos veem finalmente uma
oportunidade de se livrarem de um fardo, para se assegurarem que sim,
foram cúmplices em tudo o que aconteceu até agora, mas «até este ponto,
não para além dele». Na escuridão da cave, as pessoas gritam de divisão em
divisão. Mulheres, homens, crianças, toda a gente está a gritar, a gritar
contra o porteiro, que «sempre foi um tipo suspeito», a expressar pena pela
vítima, a amaldiçoar os agentes das cruzes flechadas. Mas toda a gente sabe
que isto é apenas conversa fiada, palavras fúteis.
O que Erzsébet sente, o que toda a gente na cave sente, é que se trata de
outra coisa. A questão é: o que aconteceu realmente aconteceu, aliás perante
os seus olhos, a uma pessoa de carne e sangue que conheciam
pessoalmente; «isso já é demasiado». Se tudo isto tivesse acontecido na rua
seguinte ou no edifício vizinho, teria certamente sido «demasiado», como o
professor tinha dito novamente ontem, no intervalo entre
bombardeamentos, entre conversas e aguardentes; mas em todo o caso não
teria acontecido aqui, a um palmo de distância, por isso a responsabilidade
dos presentes teria sido menor, muito menor… assim pensaram eles. Mas
não é só o que aconteceu que é importante – eles tinham arrastado um pobre
coitado que estava no seu meio, que tinha partilhado com eles o destino do
cerco e do abrigo, e tinham-no assassinado no pátio –, mas aconteceu que
eles, os presentes, tinham tido pessoalmente algo a ver com este
assassinato… de que forma?
Pelo simples facto de estarem presentes. Entre eles e o acontecimento
não havia muro nem distância. Tinham estado presentes, tinham ouvido os
protestos ténues e gaguejantes de um homem condenado à morte, tinham
escutado, estupefactos de horror e repulsa, enquanto na escuridão o irmão
Szappanos, o porteiro, o gnomo e os bandidos arrastaram e mataram um
homem, e eles nada tinham feito… Mas o que é que eles poderiam ter feito?
Esta é a pergunta que ninguém pronuncia, mas que soa bem alto na
consciência das pessoas.
Não poderiam ter feito nada porque os «irmãos», esses assassinos,
tinham chegado armados com metralhadoras; não poderiam ter feito nada
porque eles, como testemunhas e participantes ao mesmo tempo estavam
desarmados; não poderiam ter feito nada porque o porteiro era um
informador… Mas então, toda esta agitação porquê? Não é só por causa do
homem assassinado. É por causa de si próprios que ficam tão agitados, que
atiram gritos uns aos outros, discutem, e agora tentam brutalmente
desculpar-se a si próprios… Mas quem os acusa?
Os russos? Ainda não chegaram; estão a dez, ou talvez a cem metros de
distância, e em qualquer caso quem sabe por que critérios irão julgar
situações, pessoas e responsabilidades. Além disso, como é que os russos
julgam? A sensação de inquietação assola subitamente todos os cidadãos;
porque o que ontem era apenas um artigo de jornal, um rumor derrotista,
uma invenção dos judeus e dos plutocratas bolcheviques, faz agora parte
das suas vidas, já não é notícia, mas a realidade, pela qual são responsáveis.
Eles compreenderam que o que aconteceu ontem, na Polónia, na Ucrânia,
nos campos alemães, nas caves dos quartéis nas cidades de França, Bélgica,
Holanda, Noruega, Áustria, Boémia, Sérvia, já não é «notícia alarmista» ou
«propaganda», mas sua responsabilidade pessoal.
Eles perceberam que são responsáveis. É por isso que se queixam.
Erzsébet também sente que é responsável, sente-o fisicamente. Todos
aqueles que estão vivos e que não impediram nada (mas como, em nome do
céu?) são responsáveis. Como lidar com as metralhadoras? Com os tanques
e os canhões? Talvez não com armas, mas de outras formas, opondo uma
resistência interior?… Agora eles compreendem isso.
Mas também compreendem outra coisa. Como se a captura do judeu
tivesse dado um significado, uma medida e um propósito à situação em que
viviam, tão densa, pegajosa, detestável, mas estranhamente familiar e
natural: de repente compreendem que a visita do irmão Szappanos e dos
outros carrascos, a denúncia do porteiro, o súbito manto de silêncio – como
se a guerra, esta criatura feroz, tivesse contido a respiração por um
momento e depois rugido ainda mais alto –, tudo isto estava organicamente
ligado. Pois chegou agora o momento em que a sua situação já não pode ser
mantida artificialmente e pela força. Agora têm de agir pessoalmente, caso
contrário, algo lhes acontecerá: cento e quarenta pessoas começam a agitar-
se, a preparar-se, a pôr-se em movimento, como se esta confusão humana
fosse um só corpo, com inúmeros braços e pernas.
Apressam-se e preparam-se. E então a guerra faz-se ouvir novamente…
A sua voz soa de muito perto; não muito alto, mas determinada. O seu alvo
– todos sabem – é a carne, o trigo do país. São duas horas da manhã. Ouve-
se o fogo das metralhadoras, mas não há bombas a cair; isto também é um
sinal de que os russos já devem estar algures por perto… Na agitação geral
– que é tão desprovida de sentido e de direção como a apatia e a resignação
dos últimos dias – os dois homens dos correios comportam-se de forma
estranha.
Sobem e descem, falam demasiado alto, a sua discussão é acalorada.
Nem sequer parecem reparar naquela colina de formigas estranhamente
perturbada, naquela massa de seres humanos a entrar em pânico, a discutir,
a fazer as malas, a mexer-se, a saltar das suas camas imundas, a roubar tudo
o que pode, a recriminar, a gritar e a preparar-se para sair dali… Mas para
onde ir? A visita dos cruzes flechadas e o assassinato a meio da noite
perturbaram a cave.
Mais tarde, chegam alguns fugitivos, todos desorientados, trazendo
notícias. Alguém já sabe que os russos chegaram ao edifício vizinho, estão
a lutar em frente ao portão do prédio da esquina e à entrada da cave,
enquanto os alemães, retirando-se por esse caminho, passarão pela cave, e
depois serão todos forçados a segui-los. Esta hipótese não é totalmente
implausível. Não se passa um único dia sem que haja notícias de tal
movimento forçado, quando os soldados alemães que lutam na
clandestinidade aparecem nalgum refúgio, expulsam os que lá estão para o
campo de batalha improvisado, ou seja, a rua, e durante algumas horas, ou
alguns dias, montam um novo posto militar no abrigo esvaziado
apressadamente.
Do andar superior desce um homem com notícias sinistras. Os cruzes
flechadas levaram o porteiro com eles, o «irmão» que os ajudou a levar o
espólio. O cadáver do dentista assassinado encontra-se no chão, no
corredor, em frente ao portão. No primeiro andar, no apartamento do
conselheiro estatal, cinco alemães das SS montaram um ninho de
metralhadoras na sala com varanda e de lá estão a disparar na esquina da
rua, onde os russos já montaram barricadas rudimentares.
Todos sabem que estes relatórios são verdadeiros, não são alarmistas. Os
homens reúnem-se em grupos, mexem em malas e sacos, as mulheres
sentam-se à beira dos colchões, têm a expressão desconcertada daquelas
que estão prestes a ser expulsas das suas casas, como se a cave fosse
realmente para elas o último abrigo, o último lar no mundo. E no meio desta
agitação súbita e geral, do pânico estridente que por vezes se torna
desanimado e silencioso, sem fôlego, os dois homens dos correios sobem e
descem, argumentando animadamente.
Erzsébet ouve tudo o que eles dizem. A sua discussão parece um pouco
forçada. Dois pequenos-burgueses que mesmo agora, no meio do caos, na
confusão geral, preservam fragmentos da ordem obsessiva que deu sentido
às suas vidas. Por esta altura já concordam que «isto é demasiado», e falam
do que agora estão a tentar perceber que «não foi demasiado»…
Interrompem as palavras um do outro, discutir esta questão parece-lhes de
repente muito urgente. Ouve-se pelo seu tom de voz que estão a ficar sem
tempo, e que estão cientes disso.
– Comecei a não gostar de tudo isto – diz o conselheiro – quando
expulsaram os judeus de casa e os forçaram a coser a estrela amarela sobre
si próprios. Porque já não se trata apenas da questão judaica, meu caro
amigo. Já, nessa altura, eu tinha dito ao secretário de Estado… – E
menciona o seu nome.
O chefe dos correios interrompe-o em voz alta.
– Sim, já era um exagero – diz ele com uma voz trémula, e depois engole
a saliva. É evidente que ele está a lutar contra os seus próprios preconceitos,
chegou o momento de ele dizer algo explicitamente, de tomar uma posição.
Os dois homens sentem que chegou o momento histórico em que, como
membros honrados da sociedade, são obrigados a «falar». Eles esperaram
muito tempo para o fazer, pensa Erzsébet.
– Porque já não se trata apenas da questão judaica – diz em voz alta o
conselheiro geral, e faz uma pausa para que todos ouçam o que ele diz. –
Trata-se, como devo dizer… de uma questão de humanidade.
Ele olha em volta com orgulho para avaliar o efeito das suas palavras e
para ver se ecoará a sua afirmação, que amadureceu no final de uma longa e
dolorosa reflexão e foi finalmente pronunciada superando uma forte
resistência, e que ele considera de excecional importância para si próprio e
para os outros. Mas para além de Erzsébet, a jovem e o paralítico na maca,
ninguém ouviu; os homens do carvão aproveitam a grande confusão para
esticar as mãos e roubar algo, completamente indiferentes às questões da
humanidade.
Os dois homens usam tons cada vez mais ousados.
– Eu também costumava dizer isto – afirma o gerente com a sua voz
ainda a tremer de emoção –, hoje a mim, amanhã a ti. O que é feito aos
judeus, um dia eles poderão fazê-lo a nós. Ontem estavam a carregá-los
para os comboios e, quem sabe, talvez amanhã possa ser a nossa vez.
O seu discurso é coerente, pode dizer-se que esta dúvida se tem
escondido na sua mente há muito tempo.
O conselheiro acena com a cabeça.
– Talvez ainda não tenhamos chegado a esse ponto – diz ele com cautela,
olhando à sua volta.
Depois, surpreendido:
– Sempre ouvi falar muito bem dos Correios russos. Há muita ordem lá.
Depois vão-se embora.
Na escuridão, Erzsébet sente um sorriso involuntário e doloroso a
aparecer no seu rosto. Ela quer limpá-lo, como se fosse uma espécie de suor
doentio e impuro.
– Isso não é o pior de tudo – diz uma voz feminina ao seu lado, na
escuridão.
Ela sussurra, mas com veemência, como se estivesse a gritar com a boca
tapada por um lenço. A oradora é a jovem mulher disfarçada de bandido
suburbano. Durante dezoito dias, ela passou o tempo ao lado de Erzsébet
numa estranha quietude, como alguém que finge estar morto. Estava deitada
ali, enrolada no seu lugar, mas era como se nem sequer estivesse lá. Com a
extraordinária capacidade que certos animais têm, em situações perigosas,
de se misturarem com o seu ambiente, ela tinha conseguido durante dezoito
dias e dezoito noites criar magicamente uma auréola de invisibilidade à sua
volta. Ela viveu sem fazer o menor som. Agora que a ouve falar, Erzsébet
apercebe-se subitamente que este ser vivo realizou uma metamorfose
espetacular, deliberada e instintiva, da qual os seres humanos só se tornam
capazes em situações de perigo extremo. Ela marginalizou-se desta
sociedade subterrânea que a rejeitou, e conseguiu fazê-lo sem suscitar a
mais pequena suspeita ou chamar a atenção. Não tinha ocorrido a ninguém
perguntar quem era esta mulher que só ocasionalmente, com a cautela de
um animal vadio conduzido por uma barriga vazia, se aproximou da
cozinheira comunitária para roubar um prato de sopa de feijão.
Erzsébet nem sequer se lembrava de alguma vez ter visto a sua estranha
companheira sair à procura de água ou ir à latrina. E agora abriu a boca.
Fala como se todo o seu corpo e a voz do seu destino lhe estivessem a
dizer que chegou finalmente o momento em que o pode fazer. Ela fala
porque esteve calada durante muito tempo, porque o seu corpo está cheio do
que tem para dizer, cheio de uma espécie de veneno que está agora
a transbordar dos seus órgãos. Erzsébet não ficou surpreendida ao ouvi-la.
Durante todo esse tempo, esse silêncio pareceu-lhe eloquente, ela sabia que
a mulher estava escondida, que tinha fugido para algum lugar, que o seu
vestido era um disfarce, que o seu agachamento num canto era uma
encenação deliberada. Ela também sente que chegou finalmente o momento
em que pode quebrar o silêncio.
Não são apenas os homens dos correios que têm a sensação de que «já
chega». É como se os habitantes da cave se estivessem a preparar para algo
extremo, como uma expatriação em massa, uma revolução, algum
empreendimento carregado de consequências imprevisíveis… Chegou o
momento; talvez sejam os alemães que encontrarão em breve uma solução,
ou talvez os russos; o que é certo, porém, é que agora se pode falar.
Por agora apenas com veemência contida, como esta mulher. É como se
as pessoas na cave tivessem enlouquecido e começassem a despir-se devido
a um calor insuportável que queima os seus corpos, como se um fogo
tivesse deflagrado subitamente na cave, e já não pudessem esperar ou
perder tempo com os preparativos: todos eles dizem o que foi mantido em
silêncio, e não apenas ontem ou nos últimos vinte e quatro dias, mas
também no passado, durante anos e anos, ao longo do curso doloroso da
vida. É assim que a mulher fala, e Erzsébet pergunta-lhe sem mostrar
surpresa:
– O que é que foi pior?
Estão ambas deitadas de costas, na mesma posição em que estiveram
durante aqueles dias e noites intermináveis, naquela inatividade particular
que é tão cansativa como um grande esforço físico. É a primeira vez, agora,
que falam uma com a outra, porque agora «já se pode». Claro que o homem
na maca, o vizinho à sua direita, a mulher à sua esquerda e a própria
Erzsébet já tinham dito algo uns aos outros: limitaram-se a palavras
adequadas à situação na altura, sugeriram alguma forma de mitigar a
miséria da vida subterrânea, discutiram sobre os ataques, ruídos do mundo
exterior, ajudaram-se mutuamente em caso de necessidade, se pudessem
partilhar água e comida… Mas nenhum deles tinha prestado particular
atenção a estas coisas. Até então, nenhum dos três se tinha alguma vez
dirigido pessoalmente aos outros; nem sequer sabiam os seus nomes.
Nomes, personalidades, tudo se tinha desvanecido na cave, como se
todos participassem naquele atroz baile de máscaras subterrâneo envolto
num denso nevoeiro! No entanto, os três naquele canto, embora limitados a
algumas frases banais e a contactos esporádicos e superficiais, sabiam que
estavam unidos por uma forte solidariedade.
No meio de pessoas barulhentas, cada dia mais e mais rudes, que
pareciam esquecer e repudiar sem restrições todas as convenções sociais, no
meio daquela sociedade subterrânea que se despojava com pressa neurótica
de toda a frágil, fugaz e superficial aparência de «civilização» e boas
maneiras, os três, através das suas trocas de banalidades, sabiam que tinham
muitas coisas em comum. Nestes dez meses, Erzsébet aprendeu que se pode
entrar em contacto com as pessoas, mesmo sem falar. Em dez meses, e no
caos dos últimos vinte e quatro dias e noites, aprendeu que há uma forma de
fazer contacto entre seres humanos que é mais percetiva e fiável do que a
fala, feita de olhares, silêncios, gestos, e mensagens ainda mais subtis; é a
forma como um ser humano, no seu íntimo, responde ao apelo de outro,
aquela cumplicidade silenciosa que, no momento do perigo, dá à pergunta
silenciosa uma resposta mais inequívoca do que qualquer confissão ou
argumento, e cujo significado é simplesmente este: estou do vosso lado,
sinto o mesmo, partilho da vossa preocupação, todos concordamos…
Este entendimento mudo é mais convincente do que qualquer outra
coisa. O homem é «isto» ou «aquilo», ou seja, está de um lado ou de outro,
por isso ou está do lado dos agressores cujas hordas selvagens se apressam
como canibais ao assalto, balançando os seus tacos; ou, do outro lado, o dos
lesados, dos perseguidos, ou pertence simplesmente à massa incalculável
daqueles que pensam o contrário… Pois quanto mais selvagens e
estridentes se tornam os gritos da manada de carrascos, mais grossa e
indignada se torna a multidão que está do outro lado e reúne todos aqueles
que «não pensam assim».
Erzsébet sabe agora que isto não é suficiente; não é suficiente «pensar de
forma diferente»; chega um momento na vida em que também se deve agir
de forma diferente. Não basta pensar algo; esta «diversidade» em algum
momento também tem de ser expressa sob a forma de palavras ou ações…
O conselheiro geral continua a tentar regatear, pensa de passagem Erzsébet,
espera que os correios russos sejam «fiáveis», e que, consequentemente
para ele, o fiel funcionário dos correios, haverá definitivamente trabalho, e
bom trabalho sob o novo regime.
Mas esta mulher começou agora a falar. Depois de trocar apenas frases
ocasionais, ela pronunciou as suas primeiras palavras reais, aquelas que lhe
dizem respeito pessoalmente, que se elevam do fundo da sua alma e
consciência.
– O pior – diz a mulher – não é quando eles aparecem do nada,
inesperadamente. Quando se está apenas com medo, isso não é a pior coisa.
Quando eles vêm de repente e levam alguém para o matar, isso também não
é o pior. Não dura muito tempo… Há pior.
Aquele sussurro ardente, que apenas dois deles, Erzsébet e o seu vizinho
na maca, conseguem ouvir, passa pelo disfarce, pela armadura da mulher,
como uma gota de sangue que escapa de um corpo ferido.
– O que é que é pior? – pergunta Erzsébet novamente.
A mulher fica em silêncio. Numa voz velada e quase neutra, diz ela:
– O médico.
Erzsébet fica surpreendida. Este diálogo produz nela a impressão de ler
um livro do qual um rigoroso censor apagou todas as frases supérfluas,
deixando apenas informação crua que comunica o essencial, o sentido
profundo.
– Qual médico? – pergunta Erzsébet com o mesmo desprendimento
cúmplice, como se ela compreendesse perfeitamente o que a mulher quer
dizer e também o que não disse, como se as condições, as premissas, as
circunstâncias já tivessem sido discutidas, e agora é possível passar
abertamente para as conclusões.
– O médico do campo – diz a mulher simplesmente. E agora Erzsébet
compreende.
Ela fica em silêncio. Na cave, o barulho tornou-se insuportável, como na
ala de uma clínica psiquiátrica onde os pacientes se tinham amotinado
subitamente. A voz da mulher consegue chegar a Erzsébet superando aquele
barulho louco, neutro, calmo. Mas o seu tom desprendido é mais chocante,
mais atroz do que se ela tivesse gritado. Nessa voz queima uma chama sem
calor, sem luz, sem brasas, e ainda assim queima. Erzsébet não lhe pergunta
que médico ou que acampamento, porque já compreendeu.
Sem precisar de ser incitada, a mulher continua a sua história, num tom
coloquial:
– Aqueles que foram colocados desde o momento em que chegaram,
juntamente com os velhos, as crianças e os demasiado fracos, foram os que
melhor se saíram. Foram imediatamente levados para os duches. Na manhã
seguinte, já eram cinzas, não tinham ouvido nada. Mas aqueles que foram
enviados para o trabalho antes, todas as semanas tinham de ir ao médico, e
isso era péssimo. Porque eles sabiam o que ia acontecer. Foi quando o
médico levantou a mão.
A mulher permanece impassível ao contar estas coisas, e Erzsébet não só
ouve, mas também vê tudo o que diz; através das suas palavras, vê «o
médico a levantar a mão».
– Era uma pessoa muito educada – continua a mulher. – Ele nunca
discutiu com ninguém, e não levantou a voz. Ele era alto, usava um
uniforme, tinha óculos, e olhos azul-claros e calmos. Quando era a minha
vez de trabalhar para ele, chamava-me sempre Fräulein. Bitte, Fräulein.
Nunca de outra forma. Mas era cortês mesmo para com os médicos judeus,
mesmo para com os médicos polacos que foram escolhidos para trabalhar
com ele. Não gritava como as SS, nunca magoava ninguém, não tocava em
ninguém nem mesmo com um dedo. Talvez tivesse sido melhor se tivesse
gritado – diz a rapariga, levantando um pouco a sua voz. – Essa disciplina
silenciosa, sabe? Essa foi a pior, pior do que qualquer outra coisa.
Erzsébet compreende. Ela percebe as palavras da mulher não só com o
seu nervo auditivo e mente, mas com todo o seu corpo, mesmo com as suas
mãos e pernas.
– No campo, claro, já se sabia o que queria dizer se o médico levantasse
a mão. Todas as semanas ele ficava ali com os seus ajudantes no meio da
grande sala, e todos passavam por ele, nus, homens e mulheres, e ele apenas
os observava, com cuidado, conscienciosamente. Ele era uma pessoa muito
conscienciosa – diz a mulher com uma espécie de estranha admiração. –
Tudo o que ele tinha de fazer era olhar para o meu pai para o mandar
diretamente para os chuveiros. Eu estava no outro grupo, com os jovens, do
outro lado. Tínhamos chegado juntos, mas em duas carruagens diferentes. O
meu pai não me viu quando saímos e eles alinharam-nos, e essa foi uma
grande sorte.
Ela agora fica em silêncio. Erzsébet espera. O tom da mulher é sempre
descontraído, coloquial. Erzsébet deixa passar algum tempo, depois atreve-
se a perguntar:
– Porque é que foi uma grande sorte?…
A jovem responde prontamente:
– Porque não se pode prever o que vai acontecer nesse momento, logo
depois de sair do vagão, quando os membros de uma família se encontram
de novo por acaso no campo, e o médico os examina e lhes acena para
ficarem à direita ou à esquerda… O meu pai era um homem muito
disciplinado. Um oficial do exército. Era um oficial no ativo, e os oficiais
no ativo, nos velhos tempos, foram educados para a disciplina rigorosa em
Wiener Neustadt, no reinado de Francisco José. Mais tarde, soube de
algumas pessoas que estavam na sua carruagem, que até ao último minuto
ele trabalhou arduamente, tentou manter o moral dos outros, confortar e
convencê-los de que tudo iria correr bem, afinal os alemães são pessoas
civilizadas; eles iriam trabalhar para eles, disse ele. Ele tinha viajado com
um grupo de crianças, vindas de um orfanato judeu. Nessa noite enviaram-
nos para a câmara de gás, a ele, aos idosos e às crianças, todos os que eram
inúteis. Mas, nessa altura, isto ainda não era conhecido… Disseram que os
estavam a levar para o duche. Quem sabe o que ele teria feito se me tivesse
visto do outro lado, entre as mulheres. Porque uma senhora idosa, com
quem eu tinha feito a viagem, viu a sua filha do outro lado, chegando num
outro comboio, ficou chocada e saiu da fila. Isso foi um erro… – diz ela
placidamente.
Erzsébet reage automaticamente:
– Porque é que foi um erro?…
A resposta vem imediatamente:
– Porque não estamos autorizados a sair da fila. Havia seis mil pessoas
na fila, nuas, está a ver? Uma mulher SS aproximou-se imediatamente da
velha, desatou o cinto de couro que usava à volta da cintura e estrangulou-a.
Agora os dois homens dos correios passaram à frente delas, por isso
baixaram a voz; passando, diz o gerente:
– Na Rússia eles também dão juros sobre os depósitos.
E o conselheiro responde prontamente:
– Dois e meio por cento. – Depois acrescenta, num tom de esperança:
talvez até três.
Erzsébet pergunta agora:
– Estrangulou-a diante de seis mil pessoas?
A mulher, num tom didático:
– Porque ela tinha saído da fila. Isso não é permitido. Mas o médico
nunca fez nada do género. Apenas observava, com cuidado, com os seus
olhos azuis, com o olhar que só pode vir de alguém que sabe perfeitamente
para onde está a olhar. Conhecia o corpo humano como poucos. É também
verdade que ele tinha muita experiência. Tinha olhado para centenas de
milhares de pessoas nos últimos anos, talvez até um milhão. Podia-se ver
que não havia segredos para ele, como um joalheiro, sabe? Talvez apenas
um joalheiro saiba avaliar um metal como aquele, num único olhar, mesmo
sem ferramentas, para julgar se é genuíno ou falso, se se trata de sucata ou
de metal precioso. Da mesma forma, o médico conhecia o corpo humano.
Um olhar era suficiente para ele saber de imediato se uma pessoa estava
doente ou saudável, se estaria curada em mais ou menos de oito dias.
Aqueles que estariam curados em menos de oito dias, ele enviaria para o
hospital. Também me mandaram para lá. No hospital não se estava mal. Se
não ficássemos na ala experimental, não havia problema, tínhamos uma
cama limpa e éramos mais bem tratados do que no campo. Havia todos os
medicamentos de que se precisava para ficar bom… claro que só se se
ficasse bom dentro de oito dias. O comité ia ao hospital todas as semanas.
Nesse dia, os doentes receberam melhor comida, e por essa altura já
sabíamos… À cabeça da comissão estava sempre o médico, ele parava em
frente das camas, depois levantava a mão e acenava com a cabeça: direita
ou esquerda, compreende? – relata a mulher em voz mais alta.
Ela diz isto num tom impaciente, quase gritando; mas como há tanto
barulho na cave, ninguém a ouve.
A matéria humana imunda que fermenta aqui há semanas, na miséria do
cerco, nestas últimas horas, parece quase ferver. Todos estão a discutir.
– Os alemães estão aqui – anuncia o professor palidamente no limiar da
cave.
Ninguém o ouve.
– Aqui, onde? – pergunta o chefe dos correios num tom beligerante.
E o conselheiro geral acrescenta:
– Nós não vamos embora. – grita com raiva. – É uma vergonha absoluta!
Queremos ficar aqui!
As suas palavras perdem-se nesse barulho sem sentido. Agora Erzsébet
ouve novamente a voz da mulher:
– Imagine um homem calmo, que conhece o corpo humano, que sabe
quanta força de trabalho ainda resta nesse corpo, que nunca comete erros.
Ele sabe quanto vale um corpo humano em quilos, nervos, dias, calorias.
Durante anos, ele observa corpos nus, judeus, polacos, holandeses, sérvios,
belgas, noruegueses. Ele também sabe quantos meses ou semanas a força de
um corpo irá durar. Ele sabe. Da mesma forma que um sem-abrigo não deita
fora um único trapo, porque sabe que até isso vale alguma coisa, pode fazer
dele papel, da mesma forma o médico sabe o que vale um polaco magricela
ou um húngaro de cinquenta anos. Então ele levanta a mão e acena. Depois
de ver este gesto muitas vezes, percebi até que ponto os alemães são um
povo musical. Não estou a brincar, estou a falar a sério. Eles gostam muito
de música. O médico, quando podia, ligava o seu gramofone, tinha uns
discos maravilhosos na cirurgia, Bach na atuação da Filarmónica de
Londres, e Mozart. No gesto com que indicava esquerda ou direita, câmara
de gás ou algumas semanas extra de trabalho, havia algo que fazia lembrar
um maestro. É inegável… Só um músico pode levantar a mão assim, num
gesto suave e enérgico ao mesmo tempo, cheio de ímpeto, um maestro que
levanta a mão sente e domina o ritmo… percebe? – diz a mulher, agora em
voz mesmo muito alta.
À entrada da sala abobadada central está o responsável pelo prédio. À
sua direita e à sua esquerda estão dois soldados alemães. Lançam a luz
ofuscante das suas lanternas na cave. Têm capacetes, metralhadoras nas
ancas, diferentes tipos de armas nos cintos, granadas de mão, punhais.
Ficam em silêncio, como polícias que têm de manter a calma na multidão
durante os distúrbios públicos.
– Dentro de dez minutos todos devem sair da cave – diz o responsável
pelo prédio em voz rouca, asfixiado com angústia. – Vamos passar para o
prédio vizinho através da saída de emergência. Podemos levar a nossa
bagagem connosco.
Os dois alemães ficam ali sem dizer uma palavra. No silêncio surdo, que
se segue ao anúncio, durante alguns segundos, como se uma mão horrenda
tivesse agarrado as pessoas presentes pela garganta, Erzsébet sente ter
recebido uma ordem. E a ordem é simplesmente esta: imediatamente e a
todo o custo ela deve sair dali, mas não com os outros através da saída de
emergência para a cave do prédio vizinho, não, ela deve atravessar aquela
multidão desesperada, passar pelos alemães armados com metralhadoras,
sair do prédio, atravessar a rua e ir para o sabatista, porque o seu pai está
em perigo. De repente, tem a sensação de que o espaço, o tempo, a noite, a
guerra já não conta para nada; através das paredes da cave, através da noite,
a única coisa que conta é que o seu pai está em perigo, e ela tem de chegar
até ele.
Com um gesto mecânico, baixa-se e procura na escuridão a sua mala de
mão, no chão manchado. A jovem também se prepara, e continua a falar…
Fala com indiferença, como se este anúncio, esta ordem dos alemães, este
esvaziamento da cave fosse um acontecimento banal, um episódio
desinteressante ao qual não vale a pena prestar atenção… É como se numa
multidão, movida pelos semáforos que controlam o tráfego na rua,
começasse a andar mecanicamente com os outros ao ver o sinal «livre»…
– Temos de ir – diz ela de passagem –, mas já não falta muito.
Está a pegar nas sua coisas.
– Sim, temos de ir – diz Erzsébet também.
Levanta-se, com a mala na mão, pronta para partir. E, nesse momento,
sente uma mão ossuda agarrar-lhe a mão direita acima do pulso, na
escuridão, com um movimento suave, mas firme.
O tato não é desagradável. O gesto é suave, mas tão firme como quando
um homem sério diz algo em voz baixa, mas com todas as implicações. É o
vizinho da esquerda que aperta assim a mão de Erzsébet, o homem calado
e deitado na maca.
– Não se vá embora – diz agora a voz de forma tranquila.
– Tenho de ir – repete Erzsébet, mas não se mexe.
– Fique, por favor – reitera o homem. – Acho que é melhor ficar. Ou,
pelo menos, espere mais um pouco – diz calmamente, em tom simpático,
sem suplicar, mas com uma força convincente e séria.
Erzsébet não responde, mas pela resistência do seu corpo a mão estranha
sente que a jovem mulher quer sair:
– Vai haver agora uma grande confusão. Eles irão aglomerar-se, e é
possível que os alemães disparem no meio. Se quiserem partir a todo o
custo, podem fazê-lo, mas mais tarde, juntamente com os últimos. Não
tenham pressa.
Fala como se estivesse a explicar algo lógico, pode dizer-se, pelo seu
tom, que é a voz de um conferencista, de alguém habituado a dar lições, a
explicar fenómenos, cuja função é comunicar de forma didática e
convincente.
– Devo ir ter com o meu pai – diz Erzsébet agora impacientemente. E o
homem, com calor espontâneo na voz, como alguém que se regozija com
boas notícias:
– Então ele está vivo?…
Erzsébet procura na escuridão os olhos do homem:
– Ele está vivo… Como sabe quem é o meu pai?
O homem responde calmamente:
– Eu sei quem é. Pensava que ele estava morto…
Ele fala num tom neutro. Erzsébet lembra-se agora de que também tinha
ouvido aquele rumor sinistro algumas semanas antes: a notícia espalhou-se
na cidade de que o seu pai tinha sido levado e assassinado pelos cruzes
flechadas. Erzsébet regozijou-se com essa notícia falsa na altura, porque
esperava que ela desviasse a atenção dos cruzes flechadas em relação ao seu
pai.
– Há três semanas ele ainda estava vivo – diz Erzsébet, e agora também
fala num tom alheio, como se a calma do estranho a obrigasse a acordar do
estado sonâmbulo em que tinha caído pouco tempo antes. – Tanto quanto
sei, ele ainda está vivo. Mas penso que está na altura de ir ter com ele. Ele
não está muito longe…
O homem interrompe-a.
– Esteja perto, esteja longe – diz ele –, agora não se mexa. Preste
atenção. O que se passa agora, é o pânico. Olhe à sua volta. Tudo o que vê é
o pânico. O pânico também está dentro de si. É por isso que quer ir ter com
o seu pai.
A outra vizinha de Erzsébet, a jovem mulher, levanta-se do seu colchão
com a bagagem na mão. Ela não ouviu a conversa deles. Visivelmente
fechada nas suas memórias, ela não consegue prestar atenção a mais
ninguém.
– Vamos? – pergunta a Erzsébet de passagem, como se sair dali fosse a
coisa mais natural do mundo, uma simples excursão, altura de visitar
alguém, ou ir ao mercado, ou a um encontro secreto. Ela fala, move-se, age
como se nada na vida a pudesse surpreender mais, como se tivesse visto
tudo e estivesse pronta a aceitar qualquer coisa, mesmo o facto de os
alemães estarem agora a persegui-los e a mandá-los para fora.
A situação apresenta-se a Erzsébet como estranhamente familiar, como
se fosse um sonho, como se já tivesse vivido no passado o que está a
acontecer no presente. Ela lembra-se do nome dado ao fenómeno: «a
memória do presente», é o que os neurologistas e psicólogos lhe chamam…
Erzsébet conhece o fenómeno por experiência própria e por ter estudado o
fenómeno em livros. Já o experimentou muitas vezes no passado, desde a
infância; mas nunca tão fortemente, com esta impressão intensa da
realidade.
A situação extraordinária, a cave escura, as pessoas em fuga, os soldados
alemães armados com metralhadoras, silenciosos, sombrios, tudo lhe soa
familiar. Mesmo a mulher que de repente começou a falar, a contar-lhe num
tom calmo, coloquial e natural – mas Erzsébet sabe muito bem que esta
«naturalidade» é um sintoma de um estado de espírito próximo da loucura –
as suas memórias do acampamento e do médico que, com um gesto de
maestro, levantou a mão para dar sinal às pessoas para irem para a esquerda
ou para a direita… E agora também este homem que tinha começado a
falar, este homem deitado numa maca, paralisado, taciturno, que, para além
de algumas trocas de banalidades, tinha estado em silêncio durante vinte e
quatro dias, durante todo o tempo do cerco.
Outra voz começou a falar, para avisar Erzsébet que tinha chegado o
momento de sair dali, de procurar o seu pai, de estar com ele nas horas que
se seguiam, aconteça o que acontecer… Tudo isto é simples, familiar,
presente e real, mas assemelha-se a um delírio, como uma loucura ou um
sonho. Esta situação extraordinária, este «fim de algo», esta consciência
tecida de sonho e realidade é a única certeza que Erzsébet possui; mais
certa, mais tangível, mais real do que as pessoas à sua volta, os alemães
armados e as paredes húmidas da cave. É apenas num sonho que
o inconcebível, o improvável se torna natural e simples; quando cresce a
barba às mulheres e começam a voar, sem asas e sem motor; ou quando de
repente alguém começa a falar na língua do sonho, para enunciar, naquela
situação extraordinária, uma verdade banal e, no entanto, de conto de fadas,
que talvez nunca soubesse formular…
A mulher começou a falar, mas Erzsébet sabe que esta pessoa disfarçada
no último período nunca deixou de falar sobre «aquilo», sobre a única
realidade que enche o seu corpo e alma: sobre o campo, e como tinham
matado o seu pai diante dos seus olhos, sobre a mulher SS que tinha
estrangulado uma mulher velha com um cinto de couro, sobre o médico que
adorava música e que ocasionalmente levantava a mão. Ela começou a falar,
com a mesma facilidade com que as mulheres conversavam entre si e
trocavam confidências, livremente, sem reticências, porque agora é
possível…
E o homem também começou a falar; do pânico, do impulso
inconsciente que agora agitava os corpos das pessoas… Ele começou a
falar, e sabe de onde veio Erzsébet, sabe o nome do seu pai, porque todos
têm estado igualmente silenciosos nas últimas semanas, no turbilhão deste
baile de máscaras subterrâneo; mas agora tinha chegado o momento de os
dançarinos pararem de girar sem sentido e arrancarem as suas máscaras
com um gesto claro.
O homem solitário tinha-se mantido em silêncio, não falou igualmente
sobre «aquilo», conversava sobre coisas indiferentes, sobre as bombas,
perguntando-se se a água seria suficiente para a noite ou se o serviço postal
russo era fiável; e, entretanto, todos se mantiveram em silêncio. Esse
mutismo comprimia e incendiava tudo o que agora tinham para dizer uns os
outros com palavras: o segredo da sua existência, o sentido cruel da
clandestinidade e o pesadelo da sua situação atual.
O que é isto, senão sonho ou loucura?, pensa Erzsébet. Na realidade
deve ter pensado em voz alta, porque o homem responde.
– No último momento não se podem cometer erros – diz ele em tom de
professor, mas simpático e íntimo. – A situação não pode durar muito mais
tempo. Não será melhor na outra cave. Fique aqui.
Senhor professor, pensa Erzsébet e também diz:
– Sim, senhor professor.
O homem não rejeita o tratamento. Agora, para Erzsébet, é como se, na
confusão onírica que se tornou a sua vida nas últimas semanas, tivesse
finalmente chegado o momento em que os dançarinos daquele infernal baile
de máscaras se revelam. Ninguém esconde mais o seu rosto, o seu nome, a
sua personalidade, ninguém sente a necessidade de dar explicações… Esta é
a hora da verdade, pensa Erzsébet. Ele é o professor, e eu já não sou
Erzsébet Sós, mas uso o nome do meu pai.
– O que vai acontecer ao meu pai? – pergunta ela mansamente e alto,
como se o professor, apesar da miséria da sua situação e da paralisia, do
auge da sua autoridade, pudesse responder a esta pergunta. Pois, mesmo
nestes momentos, emerge uma espécie de hierarquia entre as pessoas.
Erzsébet sente que este homem, que passou todo o tempo do cerco
mantendo-se em silêncio na companhia dos seus vizinhos, trocando apenas
algumas trivialidades com eles, tem o direito de exigir algo… Que direito?
É difícil dizer, mas é como se, à sua maneira, usasse um uniforme, ou
tivesse insígnias como os alemães. Talvez ele também tenha uma arma,
reflete Erzsébet; não uma metralhadora, mas um outro tipo de arma.
E o homem, como se respondesse às suas perguntas – não apenas àquelas
que foram formuladas em voz alta, mas também a todas as outras que
Erzsébet apenas tenciona colocar nesse instante – diz calmamente:
– Não podemos saber. Não me atrevo a tranquilizá-la. Mas é provável
que seja salvo, se tiver conseguido salvar-se até agora.
Na sua ansiedade, Erzsébet agarra-se a estas palavras tranquilizadoras:
– Acha que sim?…
O homem está a refletir. Pesa cada palavra, ele sabe que as palavras são
armas, como metralhadoras.
– Não é impossível – diz ele lentamente – que os seres humanos
possuam a capacidade de sentir algo que transcenda a distância, o espaço e
o tempo. Sem dúvida que estes tipos de sensações existem… Alguém envia
uma mensagem, telefona, pede algo, e outra pessoa à distância ouve esta
chamada. Mas não conheço o seu pai… Tenho um grande respeito por ele,
mas não o conheço pessoalmente. Eu não sinto nada em concreto.
Erzsébet pergunta angustiada:
– Mas então porque é que me tenta tranquilizar dizendo que ele será
salvo?
Com uma voz carinhosa, como se falasse com uma criança, o homem
diz-lhe:
– Porque eu faço cálculos.
Erzsébet, quase com raiva:
– Porque é que faz cálculos?
E o homem, em tom paciente e cortês:
– Porque faz parte do meu trabalho.
A cave está quase completamente vazia. As pessoas, no meio de choros e
lamentações, são empurradas para fora em fila indiana. Deixam para trás
camas abandonadas, bagagem desembrulhada. Os dois alemães e o
responsável pelo prédio – como figuras sem movimento numa fotografia de
grupo fantasmagórica – ainda estão parados no meio do círculo da luz da
lanterna; os soldados apontam os canos das suas metralhadoras para as
costas das pessoas que passam pela sua frente. Erzsébet gostaria de
responder ao homem, mas agora não pode prestar atenção a nada além dos
dois alemães. Um deles é muito jovem, não mais do que dezoito anos. É um
rapaz de cabelo castanho, curto, sem barba, mas a penugem de adolescente
só cresce aqui e ali no seu rosto, em pequenos tufos de cerdas. Ele é pálido
e sério. Há repugnância e horror no seu olhar, enquanto aponta o cano da
sua arma para as pessoas que passam por ele. Aparentemente tem medo, é
muito jovem, não compreende nada.
O outro alemão tem uma aparência mais militar, talvez seja um
prussiano, alto, louro, tem cabelo rapado, o seu rosto acabado de barbear,
mas também tem cicatrizes de duelos causados por uma faca: na vida civil
ele deve ser um estudante, herói das cantinas. Este não tem medo. No seu
rosto aguçado, um sorriso satisfeito e altivo testemunha o prazer que nele se
sente, como se o que se passa fosse divertido, uma grande brincadeira, uma
magnífica distração: a cave, aqueles infelizes que fogem como ratos de
esgoto, o cerco, os confrontos com os russos, o perigo de morte… Sente-se
à vontade, está a pavonear-se na ribalta, vê-se que dificilmente consegue
abster-se de disparar algumas balas de metralhadora contra os fugitivos…
Ele está satisfeito e confiante nesta situação, não é a primeira vez que isso
lhe acontece, comporta-se como um artesão na sua oficina, no exercício
competente do seu ofício.
– Por ter feito cálculos, sabe que o meu pai ainda está vivo? – pergunta
Erzsébet quase a sussurrar.
Falam agora em voz muito baixa, porque já não se ouve o rebuliço das
pessoas que se afastam, pelo que temem que os alemães os ouçam.
– Não sei, mas espero que sim – responde o homem num tom neutro e
monótono, e ainda mais tranquilizador do que qualquer encorajamento. Esta
tranquilidade irrita Erzsébet e ao mesmo tempo infunde-lhe uma grande
confiança. – A probabilidade é elevada. Se ele estiver aqui, nesta zona, só
lhe poderá acontecer um acidente… Mas agora acabou – diz ele
assertivamente. – É por isso que a aconselho a ficar. Eles não vão lutar aqui.
Se conseguir manter-se em silêncio, não vão reparar em nós e vão partir. Se
for com os alemães, eles vão empurrá-la à frente deles para novas zonas de
combate… É mais sensato ficar aqui.
Percebe-se que ele não só encoraja Erzsébet mas também está a discutir
consigo próprio. Ele discute e tomou a sua decisão.
Mas ele é paralítico, pensa Erzsébet com súbita suspeita. Não quer ficar
sozinho, também não pode sair daqui. É por isso que ele quer convencer-me
a ficar.
De repente o homem, num tom mais frio, mais desligado, quase formal
diz:
– Mas se pensa que o prédio ao lado é um lugar mais seguro, por favor
vá.
Erzsébet tem vergonha. Nesses momentos, palavras e pensamentos são
indistinguíveis.
– O senhor Professor, vai ficar aqui? – pergunta ela, como uma
estudante, num tom deferencial.
E o homem, calmo e frio:
– Mesmo que quisesse, não posso partir. Estou paralisado. Mas não se
preocupe comigo… Por favor, não se preocupe, a sério – sussurra ele agora
num tom amigável. – Estou preparado para isso.
Volta a deitar-se na maca, descansa a cabeça na almofada e larga o pulso
de Erzsébet, como alguém que, finda uma discussão, não tem mais nada a
acrescentar.
A outra companheira parte agora sem dizer nada. Para em frente da cama
de Erzsébet; há um estranho brilho nos seus olhos, gélido e hostil.
– Então não vem? – pergunta ela com voz rouca. – Faça como quiser.
Nas suas palavras ressoa uma profunda indiferença, quase ódio. Erzsébet
sente que esta mulher fala com ela de longe – para ela, para os outros na
cave, para todos, para o mundo inteiro – como uma pessoa que sofreu um
trauma lacerante, por isso separa-se para sempre do resto da humanidade.
Fala de longe, mesmo neste momento, num tom impessoal, como os loucos;
fala da outra margem, de onde, uma vez desembarcada, tudo o que a vida
ainda pode reservar-lhe lhe parece indiferente. O ódio surge nas suas
palavras, um ódio acendido pela tensão da fuga iminente. Ela já
experimentou algo, algo mais do que já tinha dito antes… mas o quê? Os
seres humanos, pensa Erzsébet.
Ela experimentou aquilo que os seres humanos são capazes de fazer
quando já não há nenhuma lei, religião ou regra que os prenda. E agora está
completamente indiferente ao que a próxima meia hora trará, já nem sequer
tem medo dos alemães, não mais do que tem tido de bombas e granadas
durante os últimos vinte e quatro dias. Ela já deve ter conhecido outros
perigos, então agora nada lhe importa que os homens ainda possam
inventar… Ela parte assim, sem se despedir, quase indiferente, com a sua
bagagem na mão, ela passa ao lado dos alemães que a mantêm debaixo de
olho.
Nos momentos que se seguem, Erzsébet e o paralítico sabem que o seu
destino está a ser decidido. Os alemães olham à sua volta. Movem-se
lentamente, para a cave vazia, dá para ver os seus olhares mecânicos,
apenas os olhos do mais novo refletem repugnância e um medo insidioso.
Desempenharam a sua tarefa, tiraram os moradores da cave; ou assim
pensam eles. O líder, pálido como a morte na luz violenta, parte para trás
dos outros. O canto em que Erzsébet e o homem se agacham é escuro. O
alemão louro inclina-se sobre uma bagagem semiaberta e abandonada, com
a ponta da faca vasculha a roupa e os restos de comida, ele tem um ar
reticente, como se estivesse a espetar o dedo numa matéria impura. Dois
apitos afiados ressoam na escuridão. Depois tiros; tiros estranhos, nunca
ouvidos, muito próximos, soando de forma diferente do que Erzsébet
conheceu até agora. No mesmo instante, de longe, da saída de emergência
da cave, Erzsébet ouve a voz da mulher que tinha saído pouco tempo antes,
ela grita: «… libertação!». Ela provavelmente disse outra coisa, mas só esta
palavra chega a Erzsébet. É a voz de alguém a gritar num estado de
inconsciência.
Aos apitos, os alemães começam a correr em direção à saída. Esquecem-
se da lâmpada no chão da cave; a luz violenta espalha-se pelo chão de pedra
como óleo queimado.
A cave está vazia. Erzsébet continua a ouvir na escuridão. Uma palavra
ressoa nos seus ouvidos e ela di-la, em voz alta, como se respondesse à
escuridão: «Libertação.» O homem não reage. Ambos se sentam de costas
contra a parede na cama ignóbil. O homem mantém os braços cruzados e,
nesta posição, estica a orelha. Os tiros estalam não muito longe dali; numa
das caves ao lado, alemães e russos estão a ter um encontro próximo.
O homem inclina-se ligeiramente para a frente, como se apanhasse o que
está a acontecer com todo o seu corpo doente, e não apenas com os seus
olhos e audição. Só depois de algum tempo é que ele parece recuperar os
sentidos e responder ao grito da mulher e ao eco de Erzsébet:
– O que é que ela disse?… Sim, acho que já estão perto.
Ele espreita para a escuridão. Erzsébet desliza no colchão e chega mais
perto do homem. Agora sente-se assustadoramente abandonada, sozinha,
infeliz. Partiram todos, o conselheiro, o gerente dos correios, o responsável
pelo prédio, os ilustres senhores e a mulher estranha que tinha gritado já
fora da cave: desapareceram. Foram-se todos embora, como Tibor, como o
seu pai, todos os que significaram alguma coisa para ela estão longe. Só
esta lâmpada fica com a sua luz violenta e inútil, como um louco e o seu
delírio; e este paralítico, que observa, calcula, porque «essa é a sua função».
Erzsébet aproxima-se dele porque, no silêncio e na infelicidade que
subitamente desceram sobre ela, esse homem é o único ser humano com
quem tem algo a partilhar.
Neste momento, para Erzsébet, só há guerra, solidão e ele. E a
libertação, que agora não deve demorar muito. O homem também fala sobre
o assunto.
– Penso que fizemos bem os nossos cálculos – diz ele com calma e
contentamento, como um engenheiro que resolveu um problema
complicado. – Este caminho de fuga conduz a um beco sem saída. Os
alemães não podem ir para a esquerda, para o edifício da esquina; se
estiverem encurralados ali, serão obrigados a subir aos andares superiores
ou a chegar à praça através do pátio… O que é que disse? – pergunta agora
num tom educado, virando-se para Erzsébet, como se percebesse que ainda
há um ser humano ao seu lado, e que se deve responder educadamente
à pergunta angustiada de uma pessoa desamparada, a gemer na sua solidão.
– Libertação? Sim, os russos não estão muito longe. Não haverá mais luta
aqui agora – diz ele num tom firme e definitivo; e com a sua mão fina,
branca e ossuda aponta para a cave vazia.
– A mão do músico – pensa Erzsébet, é o mesmo movimento lento, o
ritmo de que a mulher tinha falado pouco antes…
– Não vai haver mais luta, e dentro de pouco tempo os russos vão
chegar – diz ele, como se tivesse chegado à solução de um problema difícil
após uma longa e profunda discussão consigo mesmo; depois, satisfeito e
cansado, agora que escapou ao perigo, deixa-se ir de novo para a sua cama
doente.
Erzsébet olha para o rosto do homem. As luzes do outro lado lançam um
brilho pálido no seu canto escuro. O seu rosto, o rosto daquele homem
doente é branco, como se estivesse iluminado pela Lua.
– No fim de contas fez bem em ter ficado aqui – diz ele com olhos
fechados. – Aqueles pobres homens foram e entraram na luta – e aponta
para a direção daqueles que tinham partido. – No prédio vizinho vai haver
luta. Tudo o que podemos fazer agora é esperar. Não vai demorar muito até
chegarem – diz ele, e com os braços cruzados, endireitado, inclina-se contra
a parede em posição de espera.
Ficam em silêncio durante muito tempo. Erzsébet apenas ouve o bater
alto e desordenado do seu próprio coração; é assim que, após grande
esforço físico, as suas veias palpitam na garganta, como se já não
conseguissem aguentar a tensão, como se a sua pele estivesse prestes a
rachar. Percebe que o seu corpo atingiu o limite da resistência. O professor
estava certo, pensa ela; teve de ficar aqui, calculou tudo bem. Ele está
paralisado, mas é bom nos cálculos. Se eu tivesse partido com os outros,
teria acabado ainda mais longe do meu pai, de Tibor, da vida, de tudo.
Tinha de ficar aqui, com ele. É aqui que se deve esperar… mas esperar pelo
quê?
Ela pensa em voz alta:
– Como vai ser?
O homem abre os olhos. Tem olhos cinzentos, e agora aquele olhar
cinzento, aguçado, calmo, espantado, olha fixamente para Erzsébet.
– Como será o quê? – pergunta ele. Ele usou um tom estranhamente
seco, quase rude, como se Erzsébet fosse uma criança que tivesse
interrompido a sua linha de pensamento, quando está a trabalhar numa obra
importante. Ao ouvir a sua voz, Erzsébet quase ruboriza, sente-se culpada.
– O que está para vir – responde ela.
O homem olha fixamente para a cara dela.
– O que está para vir – repete ele. – Não compreendo. De que está a
falar?
E após uma breve pausa, em sincero espanto:
– Como vai ser aquilo?
Então, perante o silêncio confuso e embaraçoso de Erzsébet, o rosto do
homem ilumina-se com um sorriso, e começa a rir-se com voz rouca.
– Liebes Kind – diz ele, e Erzsébet nem sequer se surpreende que nesse
momento, nessa situação, alguém se esteja a dirigir-lhe em alemão. – Liebes
Kind – o homem repete, ao abanar a cabeça, está a sorrir mansa e
indulgentemente, como os adultos tentam sorrir quando as crianças os
perturbam com uma pergunta inesperada e absurda.
– Minha querida menina… Perdoe-me, sou húngaro, mas vivi em Viena
durante muito tempo. Ainda penso por vezes em alemão… Mas está à
espera de quê?
Erzsébet começa a irritar-se com essa atitude de superioridade
indulgente, essa benevolência paternalista.
– Já lhe disse – responde ela, levantando a voz. – Estou à espera da
libertação. De que mais poderia eu esperar? Por isso estava a perguntar
como seria. – Ao gritar, ela própria sente-se como uma criança a bater os
pés com excitação, porque gostaria de saber, cinco minutos antes de as
velas de Natal serem acesas, o que o Menino Jesus lhe trouxe.
O homem ouve sorridente essa explosão; depois o seu rosto fica sério.
Ele começa a falar e a sua voz é tão triste – tão benévola e penosa, para
além de todo o tom didático e altivo – que Erzsébet fica, de repente,
envergonhada, e gostaria de lhe pedir desculpa.
– Está à espera da libertação – diz o homem com ar sério, como se
respondesse a si próprio. – Gostaria de saber como vai ser. Ninguém sabe…
Erzsébet insiste, pressionando, como se, embora queira pedir desculpa
pela sua impaciência, não pudesse expressar-se de outra forma, porque não
lhe resta muito tempo e ela tem de saber a verdade:
– Com os russos… como vai ser?
O homem pondera.
– Vamos saber em breve – diz ele calmamente. – Mais uns minutos, mais
umas horas… e eles vão chegar.
Ele não diz mais nada. Erzsébet pressiona-o febrilmente com as suas
perguntas:
– Conhece os russos?
O homem abana a cabeça:
– É muito difícil dizer que conhecemos os russos, ou os alemães, o povo
inglês… não acha? Eu conheço alguns russos. Conheço a literatura russa. E
as obras de matemáticos russos. Excelentes matemáticos. Eles têm grandes
escritores.
Erzsébet interrompe-o:
– Todos aqui tinham medo deles e contavam mentiras sobre eles.
O homem acena com a cabeça:
– Sim, contaram muitas mentiras. Tinham medo do bolchevismo, e foi
por isso que mentiram. Todos mentiram – diz ele num tom calmo e
descontraído. – Talvez isso tenha sido o pior – acrescenta sussurrando,
como se estivesse a discutir consigo próprio. – Todas estas mentiras, nos
últimos anos, dia e noite, nos jornais, na rádio, em conversas privadas… Foi
nauseante. Só mentiras em todo o lado. Não acha?
Erzsébet acena entusiasmada com a cabeça:
– Sim. O senhor é professor? – pergunta ela sem transição.
O homem responde de forma simples:
– Sim. Eu dava aulas de matemática em Viena.
Ficam em silêncio. Depois Erzsébet pergunta:
– Vive aqui há muito tempo?
O homem calcula mentalmente:
– Sim, há bastante tempo. Quando os alemães entraram em Viena,
regressei à minha pátria. Aqui, durante anos, ninguém me incomodou. Mas
depois os alemães também vieram para cá… como sabe.
Erzsébet acena com a cabeça:
– Claro que sei. Também foi procurado, professor? – pergunta ela, com
respeitoso interesse.
O homem abana a cabeça:
– Não é que estivessem à minha procura de todo. Eu não era tão
importante e interessante para eles como o seu pai, menina. Digamos
apenas que foi melhor para mim não me cruzar com eles… por várias
razões – diz ele e levanta a cabeça.
Falou com orgulho, o orgulho profundo, penetrante e implacável do
homem ferido, que se recusa a discutir o seu ferimento e considera o mal
sofrido um assunto privado.
– Sim, os últimos meses não têm sido fáceis – diz ele. – A pobre rapariga
acompanhou-me até aqui. Ela portou-se bem – diz ele num tom
desprendido. É verdade que a dela foi uma escola dura. Mas ninguém
suspeitava, aqui na cave, que já nos conhecíamos há muito tempo… não é
verdade? – pergunta ele apreendido com dúvidas.
Erzsébet responde prontamente:
– Não, ninguém… Quem é aquela rapariga?
O homem encolhe os ombros:
– Uma mulher… Para que precisa de saber o nome dela? Nunca se
devem mencionar nomes.
Depois fica calado com ar hostil. Como Erzsébet não lhe faz mais
perguntas, ele acrescenta num tom mais suave:
– Precisava de alguém que me acompanhasse, por causa das minhas
pernas.
Como se lamentasse o que disse, começa a morder nervosamente o lábio
inferior.
– O senhor é uma pessoa orgulhosa – diz Erzsébet de repente. No
momento em que o diz, já se arrepende, mas não pode deixar de dizer o que
lhe vai na cabeça agora. O homem olha para ela, há uma luz fria e escura
nos seus olhos cinzentos.
– Orgulhoso? – pergunta ele com uma voz prolongada. – Acha que
sim? – Desta vez, o tom é severo.
Ele acena, como se se resignasse a responder à acusação.
– Tem razão, sou orgulhoso – admite ele calmamente. – Faz parte da
minha natureza. Só assim consigo defender-me do mundo.
Erzsébet disse rapidamente, como se fosse obrigada a fazê-lo:
– Os judeus são todos orgulhosos.
O homem permanece imóvel, não pestaneja; fala como alguém que está
envolvido nesta discussão há muito tempo, desde que nasceu, que conhece
exatamente todos os argumentos a favor e contra, as perguntas e as
respostas, e pacientemente responde às coisas mais absurdas, está habituado
a isso, porque esta controvérsia é eterna, e tem preenchido toda a sua vida.
– Os judeus também são seres humanos – diz ele no seu tom monótono e
didático –, pelo que há também orgulhosos entre eles. Depois há
gananciosos, vorazes, lascivos, e até mesmo ladrões. Entre eles há os que
gostam de enganar os outros, e há outros que mentem. Mas os judeus são
assim porque são seres humanos – diz ele silenciosamente. – Os judeus,
menina… são bem diversos. Aqueles que pensam que são todos iguais, não
os conhecem. Os judeus não são todos iguais – diz ele e levanta a sua voz.
E Erzsébet, teimosa, não parece querer ceder:
– Sim, mas eles são orgulhosos.
O homem passa uma mão sobre a testa, cansado.
– É verdade, há muitos orgulhosos entre eles. É claro que não são só os
judeus ricos que gostam de ostentar a sua riqueza, que construíram a sua
própria fortuna ou alcançaram sucesso social… Este tipo de orgulho não
interessa, é demasiado óbvio. Há judeus que são orgulhosos de outra
maneira. Acha que, de facto, eles se consideram o povo escolhido?…
Erzsébet responde de forma hesitante:
– Algo do género… Não sei. Estivemos sempre do lado dos judeus, o
meu pai e eu. Ainda mais agora, nestes tempos difíceis.
O homem acena com a cabeça:
– Eu sei.
Erzsébet, num tom agressivo:
– Como é que sabe?…
O homem responde educadamente:
– É do conhecimento geral. Os fascistas já escreveram muitas vezes
sobre isso.
Erzsébet suspira:
– É verdade. Não foi por isso que eu o disse… Mas eu sempre pensei
que os judeus se orgulhavam. Não sei se eles se consideram realmente o
povo escolhido… Pode ser que isto também seja apenas uma calúnia
antissemita. Foi mais um tipo de orgulho… Como se nós, os outros, não
soubéssemos algo que eles, os judeus, sabem.
O homem esboça um sorriso gentil e indulgente, como se a conversa o
divertisse:
– Como vê, talvez isto esteja na raiz de todos os mal-entendidos. A
generalização é o problema, e a causa comum de muita maldade. Tem a
melhor das intenções, no entanto também diz: eles, os judeus… Acredita
que uma espécie de segredo une os judeus, um espírito fatal de pertença.
Mas isso não é verdade, menina – diz ele agora a sério, com um ar severo,
quase solene. Os judeus é uma generalização, tal como dizer: os cristãos.
Há judeus e há cristãos, e a origem, a religião, o estilo de vida, certamente
envolvem traços comuns… Mas os judeus diferem mais uns dos outros do
que se assemelham uns aos outros. Acredite em mim… talvez um dia se
aperceba disto. Um cristão nunca se pode afastar tanto do espírito de outro
cristão como os judeus são capazes de quebrar todos os laços entre eles. A
realidade desse famoso espírito de pertença dos judeus, de que eles são
acusados, é bastante diferente… Disso falaremos novamente quando
tivermos uma ocasião mais propícia. Mas sim, pode ser verdade que eles
sejam orgulhosos – diz com ar severo. – O orgulho é um erro, talvez até um
pecado. Todos pagam pelos pecados que cometem. No entanto, não acha
que os judeus já pagaram por todos os seus pecados, alegados ou reais?…
Por exemplo, aquele infeliz que acabou de ser executado?
Erzsébet tapa o seu rosto com as mãos. Ficam sentados um tempo, em
silêncio, imóveis.
Parece que todos os sons são abafados na cave. Tudo o que vem de longe
é o som de passos desorientados. Como se alguém estivesse a correr
loucamente entre as divisões da cave.
– Aquela rapariga há pouco… – Erzsébet começa então timidamente.
– Ela é judia – corta cerce o homem. – Ela já não é uma rapariga.
Mataram o pai, o marido e os dois filhos. Ela enlouqueceu. Como viu, ela
nem sequer se despediu de nós. Eu trouxe-a comigo para não estar sozinho
na cave. Eu, um paralítico, trouxe aquela mulher louca. Agora ela foi-se
embora, sem se despedir. Mas ela pode em breve estar aqui novamente.
Nada de grave lhe pode acontecer agora, ela já sobreviveu ao pior. Ouviu o
que ela disse.
Erzsébet, com uma voz rouca:
– Perdoe-me.
Com sincero espanto, mas educadamente, o homem pergunta-lhe:
– Perdoar-lhe? Porquê, menina?…
E antes que Erzsébet possa responder, como se ele compreendesse o
caminho complicado do seu pensamento, rebenta a rir e diz:
– Porque acusou os judeus de serem orgulhosos? Sei que ajudaram não
só os judeus, mas também outros perseguidos. Porque disse isto apenas
meia hora depois de eles terem assassinado perante os seus olhos um ser
humano cuja única culpa era ser judeu, e que talvez, secretamente, também
estivesse orgulhoso, por uma razão ou outra?… Aber, liebes Kind – diz ele
calmamente, com uma risada relaxada e amigável. – Porque devia eu
perdoar-lhe? Não tem culpa nenhuma. É uma boa pessoa, cheia de
humanidade. Nós, judeus, não podemos pedir-lhe mais.
A garganta de Erzsébet está seca, ela engole com dificuldade.
– Mas agora as coisas vão mudar – diz ela. – Em breve os russos vão
estar aqui…
O homem, com uma calma sombria:
– Acha que sim? Eu não. Porque deveriam ser diferentes? O que é que as
pessoas pensam? A maior parte das pessoas acha que os judeus formaram
algum tipo de aliança secreta com os russos? Elas estão erradas – diz ele
rapidamente. – Os russos só vão trazer o que está enraizado neles, o que é o
resultado da sua educação, das suas opiniões, da sua vontade de poder, das
suas ideias sobre a sociedade. Eles não perseguem os judeus só porque são
judeus. Mas provavelmente também não os adoram. E porquê? Nenhuma
comunidade humana merece ser venerada como tal.
Erzsébet, com uma voz quase suplicante:
– Mas um dia a ordem terá de ser posta em prática. Não se pode viver
assim. Os judeus, os burgueses, os nazis, os bolcheviques, este ódio, toda a
gente odeia toda a gente… Não, não se pode viver assim – diz ela de forma
firme.
Agora ela está quase a gritar. Como se de repente compreendesse alguma
coisa – e as suas palavras ecoam na cave.
– Mas o que é que todos querem? Vale a pena viver assim?
Ela grita no escuro, na escuridão longínqua da cave onde as sombras do
cerco desapareceram.
– Mas não se pode olhar assim para os outros seres humanos. Até os
animais vivem melhor. Sinto que algo está a acontecer. Não sou
bolchevique, mas sinto-o, sabe? Também sinto fisicamente que os russos
nos vão trazer algo, que vamos sair daqui, eu, o senhor, e todos os outros,
judeus, cristãos, proletários, burgueses, vamos sair das caves, vamos
regressar à superfície da terra, e tudo será melhor. Então, porque é que tudo
isto aconteceu? – grita ela.
O homem estende a mão ossuda, agarra o pulso da rapariga com os seus
dedos magros e fortes, como já tinha feito antes.
– Acalme-se – diz ele. E quando os seus dedos sentem o tremor do braço
da rapariga, num tom calmo, com grande paciência, ele diz-lhe:
– Não pode gritar. Ainda não podemos saber nada. Vai permanecer
calma, promete?…
Erzsébet sente que o contacto dos dedos frios a acalma. A sensação do
tremor frio, dos arrepios violentos está a desaparecer. Ela deita-se no
colchão, afunda o seu rosto no travesseiro imundo. O homem solta-lhe o
pulso, estende a mão e toca no cabelo da rapariga, a seguir, lentamente,
começa a acariciá-lo.
– Ah sim – diz então ele, e retira a mão, como se se assustasse com
aquele gesto involuntário de ternura. – É difícil. Admito que é muito
difícil – murmura.
No silêncio profundo, no isolamento, naquela calma estranha e
inacreditável que de repente existe à sua volta, depois do tumulto do cerco,
da convivência com estranhos, do barulho do bombardeamento, o homem
fala num tom calmo, normalmente, como se também ele sentisse que
chegou o momento de converter as ideias em palavras.
– É preciso compreender – diz ele, como se estivesse a discutir com
alguém e à procura dos argumentos certos para convencer o seu
interlocutor. – As pessoas já não aguentam mais. Elas esperam por algo
melhor. Estão convencidas de que, primeiro, vão para o inferno, depois um
dia, se voltam à superfície, tudo será melhor. Sim, sim – murmura de forma
estranha, para si próprio, como fazem os idosos.
Erzsébet está deitada no colchão, a ouvir com os olhos fechados a
conversa deste homem que está ao seu lado e, no entanto, parece
incrivelmente distante.
– Mas o que é que eles esperam? Ah sim, a libertação… Desceram ao
inferno, de livre vontade, aqueceram-no bem lá em baixo, até puseram
alguns milhões de toneladas de explosivos nas brasas para melhorar o fogo,
e agora estão surpreendidos por estar quente…
Dá uma gargalhada, mas silenciosamente, a seguir abana a cabeça.
– É assim que eles são, os seres humanos.
Ele cai no silêncio, os seus lábios exangues, uma linha pálida corta a sua
cara branca e barbuda, movendo-se sem som, como se estivesse a contar
para si próprio.
– Eles sentam-se no inferno, à espera de algo – continua num tom firme.
– Mas Voltaire afirma que só quem não tem desejos é feliz – e volta a rir,
divertido com essa ideia que é simultaneamente sombria e irónica. –
Acreditam que alguém virá, os russos ou um profeta, e algo irá acontecer, e
assim eles, que alimentaram o fogo no inferno, irão um dia regressar à
superfície da terra, e tudo será melhor.
Erzsébet abre os olhos.
– Não melhor – diz ela. – Mas um pouco mais digno.
O homem torna-se novamente sério.
– Se fosse esse o caso – retoma num tom mais grave e respeitoso, como
se finalmente falassem de algo que não é para ser gozado, nem sarcástico,
nem duvidoso –, se fosse esse o caso, menina, então tudo valeria a pena
aturar, até mesmo o inferno. Mesmo o facto de haver ricos e pobres, judeus
e cristãos, negros e brancos, saudáveis e aleijados como eu. Tudo – diz ele
severo. – Mas não é assim.
Erzsébet levanta-se do colchão:
– O que tem nas suas pernas?
O homem responde mansamente:
– Estão paralisadas. Aparentemente, é uma espécie de poliomielite. Mas
isso é apenas uma palavra. A realidade é que eu estou paralisado. Há quatro
anos que estou paralisado. Mesmo nestes quatro anos.
Como a rapariga permanece em silêncio:
– Acredita que todo este sofrimento torna as pessoas melhores?
Erzsébet responde imediatamente, com uma voz rouca mas audível:
– Sim, creio que sim.
O homem abana a cabeça:
– Acredita porque é jovem e porque é mulher – diz ele. – Eu não acredito
nisso. Nunca ninguém aprende nada. Todos querem recomeçar onde
pararam. É uma lei. Quem não sabe isso é uma criança.
Desta vez Erzsébet também fala em tom severo:
– Ou não tem fé.
O homem não se mexe, nem sequer responde. Erzsébet senta-se no
colchão, ajusta o cabelo, alisa o vestido.
– Acredito que ninguém sofre em vão, acredito que os seres humanos
aprendem com o sofrimento. Acredito que há algo que, em última análise, é
mais forte do que o ódio.
Fica assustada, porque na sua própria voz sente aquela nuance extasiante
com que os estudantes repetem de cor uma lição cheia de conceitos nobres.
– Em que acredita? – pergunta o homem, e as suas palavras, imbuídas de
uma gravidade profunda e pouco encorajadora, parecem vir de longe, da
escuridão, de cima, como se não estivesse deitado na cama ao seu lado.
Erzsébet quase se sente envergonhada, temendo que as suas palavras
possam soar demasiado enfáticas, e depois continua em voz baixa:
– É difícil dizer…
O homem vem em seu socorro. Num tom desprendido, ele pergunta-lhe:
– No amor, certo?
Erzsébet suspira e não responde. O homem acena com a cabeça.
– Acredita que o sofrimento educa os seres humanos para o amor,
acredita que o amor os liberta do sofrimento e da miséria. – Fala num tom
competente, como se aplicasse uma noção aritmética a um problema trivial.
– Muitos acreditaram nisso, grandes homens, santos, poetas, e comuns
mortais, quando estavam em apuros. Mas o amor, deve saber…
A sua voz quebra-se. Erzsébet tem a sensação de que, pela primeira vez
no decurso da conversa, o homem está inseguro. Ela observa-o curiosa. E
pela primeira vez em semanas e depois desta noite, ela sente que é mais
forte do que ele, mais forte do que as circunstâncias… que tem algum tipo
de arma na sua mão. Esta arma é aquela palavra à qual o homem procura
uma resposta.
– Há amor – continua ele gravemente. – Há quando o homem ama,
quando ele ama muito – murmura ele. – Nesse momento, é muito forte.
Talvez até se possa salvar uma vida quando se ama alguém. Há um estado
de espírito a que os seres humanos chamam amor, e também pode ser
duradouro, o que também é verdade. Mas é um estado transitório. Ele passa,
e o homem permanece. Não – diz ele firmemente, abanando a cabeça –,
nem sequer o amor é libertação. Há apenas um tipo de libertação – diz ele
com um orgulho frio e inapelável.
– O que é? – pergunta Erzsébet num tom tão baixo e tímido, como se não
lhe saísse da boca nenhuma palavra, apenas um sopro.
– Acontece quando alguém é suficientemente forte para reconhecer a
realidade da sua própria natureza – diz o homem –, essa pessoa forte está
próxima da libertação. Aceita-a sem se sentir ofendida, porque essa é a
realidade. E, na medida do possível, ela vive sem falsos desejos. Isto é tudo
o que podemos fazer – diz ele, e levanta a sua mão branca, como se
rejeitasse definitivamente alguém ou alguma coisa.
Após um momento, acrescenta:
– Eles esqueceram-se de nós.
Está a sorrir. Fala num tom leve, como se, mudando de assunto, estivesse
a retomar a conversa onde esta tinha sido interrompida por um
acontecimento extraordinário, anormal, uma espécie de ressaca. Mas
Erzsébet está agora serena. Uma grande tranquilidade toma conta dela, uma
sensação de força e segurança. Em poucos momentos ela tem a impressão
de ter recuperado a estranha calma que se apoderara dela nos últimos meses
e semanas, e que a tinha deixado nas últimas horas.
– O senhor é um homem e um matemático – diz ela calmamente. – Mas
agora apercebi-me de que nós mulheres temos uma espécie de refúgio onde
os homens nunca nos podem seguir. Pode desprezar isto, considerá-lo como
fraqueza, falso desejo, um estado de espírito transitório. Mas sei que tudo
aquilo em que acredito é mais importante do que qualquer coisa que o
senhor possa saber. Acredito que há algo… perdoe-me… é tão difícil falar
sobre isso… – tira uma madeixa de cabelo da testa – algo que é mais forte
do que tudo o que nos aconteceu. E está a acontecer.
Depois olha para a escuridão. Ouve a sua própria voz, como se não fosse
ela a falar. Como se alguém estivesse a falar em vez dela.
– Acredita, simplesmente… é tudo – diz o homem.
– Isso não é pouco – reage Erzsébet num tom infantil.
– Pois não – responde o homem, educadamente –, claro que não é pouco.
Deve ser uma grande ajuda.
Erzsébet dá alguns passos na escuridão, e sente que são passos instáveis,
como se cambaleasse.
– Onde vai? – pergunta-lhe o homem. – Fique aqui.
A sua voz está velada, cansada.
– Fique aqui e espere – diz ele indiferente. – Tudo acontece no seu
próprio tempo.
Mas Erzsébet sente-se como se fosse levada por uma grande força. Vira-
se para a porta da cave, em direção à saída.
– Vai ver e compreender – diz ela em voz alta, e com espanto ouve as
suas palavras ecoando na escuridão húmida – que este horror não foi em
vão. Vamos sair daqui, o senhor também, e tudo será diferente, sim,
diferente…
O homem responde com uma voz abafada:
– É provável que muitas coisas serão diferentes.
Na abertura da porta de ferro que serviu de proteção contra um ataque de
gás, Erzsébet repara agora num russo. O homem é alto, e entra na cave
encurvado mais a rastejar do que a andar. Para na soleira, e nessa posição
dobrada, quase agachado, olha em volta, imóvel. A sua postura, a forma
como se move, parece a de uma grande besta. Agacha-se na porta, pronto
para atacar ou fugir; na mão direita agarra a metralhadora, na esquerda uma
lanterna. Não se mexe, não se endireita, mantém os ombros levantados e a
cabeça encaixa entre eles, o rosto escondido pela gola de pele do seu
casaco.
A sua figura concentra-se naquela torção e tensão do corpo, todos os
seus músculos, todos os seus nervos estão prontos para a ação, seja ela de
ataque ou de fuga. Ele permanece nessa posição durante muito tempo. Vira
lentamente a cabeça e observa a cave. Inspeciona conscienciosa, atenta e
metodicamente os cantos escuros das três divisões, com a mão esquerda
dirigindo cautelosamente a poderosa luz da sua lanterna.
O feixe de luz encosta-se a um canto, minuciosamente, sem pressa, como
faria um mineiro num túnel, quando reconhece uma situação perigosa e
teme más surpresas, um desmoronamento ou uma explosão de grisu.
Erzsébet vê apenas o tronco do homem agachado, o feixe inquisitivo da
lanterna e, atrás dele, uma cara indistinta. Apenas o olhar de perscrutador
brilha nesta face. A concentração é tão intensa que parece serem os seus
olhos que irradiam luz na escuridão.
Avança curvado, com o andar furtivo de um animal selvagem que lhe
parece ser habitual; não é a primeira vez que entra numa cave como esta,
onde alemães, pessoas armadas, resistentes ou algum perigo mortal podem
estar à sua espera atrás dos pilares. Ele não tem pressa; para aquele homem
agachado, cada momento de observação vigilante tem um enorme valor.
Cada momento significa vida, mesmo que seja apenas um segundo extra de
vida, uma oportunidade que nunca mais se repetirá.
Dá alguns passos; depois para, endireita as costas.
Erzsébet vê agora como o homem é alto. A sua cabeça quase atinge a
abóbada da cave. É um homem alto, não desproporcionado, mas um pouco
mais alto do que a pessoa comum. Traz um boné de pele cinzenta, um
casaco acolchoado cinzento, calças talvez feitas de couro e botas altas. A
sua mão direita, com a qual agarra o punho da metralhadora, está nua, a
outra tem uma luva grossa que deixa os dedos descobertos, como os usados
pelos mecânicos e motoristas. Ele está de pé, com as pernas afastadas,
apontando a arma para Erzsébet. Porque, agora, reparou nela.
– Nemcy?[9] – pergunta ele.
Erzsébet percebe que está à procura de alemães.
– Aqui não há alemães – grita ela em voz alta. – Apenas eu.
As suas palavras ecoam na cave vazia.
O russo não se mexe.
É muito estranho, esse silêncio. Como se a guerra estivesse morta. Como
se uma carcaça estivesse algures na cave, ou lá fora, no asfalto congelado,
entre os cavalos mortos, em frente do portão, talvez perto do judeu
assassinado. Este é o sentimento de Erzsébet. Não há guerra em lado
nenhum nesse momento. Há um silêncio profundo, um silêncio como
Erzsébet nunca tinha sentido na sua vida, em circunstância alguma. Como
se a guerra que tem bradado, trovejado, roncado perto dela – não nos
campos de batalha, mas naquele mesmo prédio –, durante os últimos meses
e semanas, tivesse de repente cessado. Erzsébet sabe que esta estranha
situação não é fortuita, que não é uma simples trégua, não; no instante em
que o homem curvado, pronto para a ação, atravessa o limiar da cave, para
Erzsébet aquela coisa a que chamam guerra acabou realmente. Acabou,
pensa ela.
E num instante – isto é o que acontece aos seres humanos em alturas
como esta, quando algo realmente «acaba» ou «começa», por exemplo, no
momento da morte, quando se olha para trás, para a própria vida – Erzsébet
vê um grande turbilhão, uma enorme corrente. Porque a guerra não era só as
bombas, ou os «golpes», o perigo para a vida, os decretos odiosos, a
perseguição cruel, não, a guerra não era só isso. A guerra estava também na
sua alma. Um momento antes, ainda lá estava, sob a forma de consciência,
sensação, ou aquilo que o paralítico tinha definido como «realidade» pouco
tempo antes. Um momento antes, a guerra ainda vivia na alma de Erzsébet,
não apenas no campo de batalha, no ar ou debaixo do mar. A guerra era
também uma sensação, uma espécie de pensamento fantasmagórico que
assombrava o seu corpo e alma, em estado de vigília e sono.
Erzsébet compreende e sabe agora que a guerra não se prepara apenas
nas oficinas de guerra, quartéis e campos de batalha, mas também na alma
das pessoas. Ela, Erzsébet, tinha estado até então, à sua maneira, em guerra.
Era parte beligerante, tinha estado na frente e tinha lutado. O seu corpo e a
sua alma foram invadidos pela guerra, como pode ser também por um
pensamento ou uma doença. Mas quando viu o russo, a guerra acabou para
ela.
No prédio ao lado ainda estão a disparar, e sobre as cidades alemãs e
portos japoneses, enormes aviões cinzentos atravessam o céu quase
preguiçosamente e lançam bombas que limpam distritos inteiros da face da
terra. Mas isto já não lhe diz respeito. A outra guerra, aquela em que ela
tinha participado pessoalmente, cessou no instante em que aquele homem
desconhecido entrou na cave.
Há que ter muito cuidado, pensa Erzsébet. Os seus sentidos estão tensos,
está no estado de alerta, sabe que está na plenitude das suas faculdades, o
que nunca pensou ser possível. Agora algo «acabou», o que também
significa que algo «está a começar», mas não da forma como as coisas na
vida normalmente começam e acabam, com um período de transição no
meio: agora algo «acabou» de uma forma completamente diferente, e de
uma forma igualmente diferente algo «está a começar». Não há dúvidas
quanto a isso.
Ao mesmo tempo, ela percebe que o homem paralisado, deitado atrás
dela na escuridão, estava certo: não se pode simplesmente fechar e «acabar»
com o que foi, só se pode continuar… Nem mesmo agora é possível
começar «desde o início», nem neste momento excecional, em que, aqui
mesmo, à sua frente, está o russo, o bolchevique, com uma metralhadora na
mão, pronto a disparar, e que está a caçar alemães… Algo acabou; mas o
que acabou só pode ser continuado… talvez melhor, de forma mais digna
do que até agora. Isso é o que ela sente.
Mas este sentimento não é muito claro. Ela não sabe quem pensa agora
no seu lugar, é como se os processos habituais de consciência e reflexão
tivessem mudado. Há uma Erzsébet que pensa, que é ela própria em pessoa
e que, no entanto, é também outra, nem melhor nem pior, mas diferente. E
esta outra Erzsébet, agora que enfrenta o russo, está a refletir com frieza
glacial, com precisão, sem emoção, procurando as palavras exatas.
Bem, é isto, pensa ela. O grande caos, a guerra que me invadiu até agora
acabou. Agora começa outra guerra. Porque sabe que este «fim» não
significa o fim absoluto da guerra; no máximo, um tipo de guerra cessou e
um tipo diferente de guerra começa. Não a paz, isso não.
Mas como era a paz? Erzsébet tem uma vaga memória dela. Como se
alguém, há muito tempo, lhe tivesse falado de paz, como se só tivesse lido
sobre ela em livros, em grandes livros com títulos como Guerra e Paz, ou
algo semelhante. Foi também um russo que escreveu esse livro, pensa ela
agora. Alegra-se com esse título, porque representa o primeiro ponto de
contacto entre ela e o estrangeiro. Certamente ele também deve ter lido
Guerra e Paz, pensa com alívio. E também Evgenij Onegin. Ela tinha-o lido
da última vez com Tibor. Algumas frases vêm-lhe à cabeça.
O seu cérebro trabalha de forma intensiva, as ideias tecem-se
rapidamente; tudo é importante agora, porque o russo entrou na cave. Agora
é preciso encontrar um ponto de contacto com este desconhecido, pensa.
Não pode haver mal-entendidos entre nós, afinal ambos já lemos os
mesmos livros, Tolstoi, Tchékhov, Onegin… É uma grande oportunidade, e
ela prende a respiração.
Porque, ao mesmo tempo, apercebe-se de que esta grande oportunidade
não é suficiente. Nesse momento, estavam a produzir-se outros
acontecimentos que Erzsébet nunca tinha vivido antes. As bombas já não
caem, em breve vai chegar o momento em que já não será necessário ir
buscar água ao poço, poderá sentar-se sozinha na sanita, sem ser
incomodada, ou poderá caminhar pela rua, à luz do sol, sem ter de temer
granadas. As coisas também funcionarão para os judeus, e para as pessoas
em geral, pensa ele de passagem. Tudo ficará bem.
A coisa mais difícil… mas não consegue exprimi-lo em palavras, o que,
de momento, lhe pesa muito na alma. Será medo? Não, é algo diferente do
medo, da angústia. É claro que também é preocupação. Este homem pode
matar-me, pensa ela. No entanto, tem a certeza de que ele trouxe algo mais
para ali, não apenas a metralhadora.
Observam-se cuidadosamente um ao outro. Durante um longo momento,
mais longo do que alguma vez vivenciou e nunca pensou que um momento,
entre duas pessoas, pudesse durar tanto tempo. O homem permanece na
sombra, Erzsébet não distingue claramente o seu rosto, ela vê antes uma
figura, um corpo masculino alto e calmo. Este homem é um bolchevique,
tão diferente de mim, pensa ela. Mas imediatamente sente que isto também
é falso, como todas as ideias e opiniões que vêm «de lá», do outro tempo,
de um momento anterior. Porque no momento em que Erzsébet viu o russo,
muita coisa se desmoronou. Pode ser que a partir de agora, a vida seja
completamente diferente, pensa Erzsébet, mas também pode ser que, para
as pessoas em geral, tudo permaneça na mesma. De uma coisa ela tem a
certeza, uma certeza terrível – ela sente-o na pele, até nas raízes do seu
cabelo –, que para ela, Erzsébet, tudo será diferente de agora em diante. O
resto é obscuro. Mas isto ela sabe com certeza.
De outra forma, bem diferente, disse-o este homem pálido, este inválido;
mas também é claro que, de certa maneira, tudo vai continuar como antes.
Porquê?… Ela ouve a voz do homem: «… porque eles são seres humanos».
Esta afirmação é um grande alívio para Erzsébet, dá-lhe uma grande
segurança. Agora que se lembra dela, agarra-se a ela como se estivesse a
cair no vazio e visse um apoio, uma mão estendida… Sente-se aliviada, mas
isso é também um aviso. «Porque são seres humanos.» Esta silhueta, na
origem daquele segundo em que tudo se estilhaçou, não é apenas «um
soldado do Exército Vermelho», «um bolchevique», mas também outra
pessoa. Antes de mais, um ser humano.
Agora que o vê à sua frente, Erzsébet acalma-se; mas, ao mesmo tempo,
começa a ter medo. Acalma-se de uma forma diferente da que tinha
imaginado, e tem medo de uma forma diferente da anterior. Não tem medo
do bolchevique, não tem medo dele por ser comunista e ela ser de origem
burguesa, tem medo porque ele é um ser humano. Aquele homem armado
com uma metralhadora e que vem de longe olha para Erzsébet sem mover o
seu olhar: não há mais nada para ver e compreender. Tudo o que ouviu, que
imaginou, tornou-se insignificante, grotesco, aborrecido, uma vez
confrontado com a realidade que se lhe apresenta.
Desde que tem idade suficiente para entender, desde há vinte e cinco
anos, Erzsébet sempre ouviu falar dos bolcheviques como uma raça
diabólica, seres depravados que comem crianças nas igrejas, que em
cerimónias sacrílegas ultrajam tudo o que é belo, tudo aquilo em que os
homens acreditam. Mas Erzsébet sempre soube, durante esses vinte e cinco
anos, que as coisas eram diferentes. Ela sabia que os bolcheviques estavam
a construir uma sociedade, e estavam a fazê-lo de uma maneira imperfeita e
impiedosamente, mas com fé e entusiasmo, inspirados por elevados ideais;
estavam a construí-la da forma como os homens estão habituados a levar a
cabo os seus empreendimentos. A propaganda tinha-se tornado cada vez
mais violenta nos últimos tempos. Mas Erzsébet sabia que a verdade tinha
de estar noutro lugar. E agora que o russo chegou – ele veio de tão longe!,
pensa Erzsébet com admiração, quase com ingenuidade – e trouxe um fim à
guerra, um fim a uma ignomínia intolerável, um fim a algo que se tinha
tornado impossível de suportar, agora o espanto inquieto de Erzsébet, a sua
espera temerosa não corresponde à situação, e uma pergunta ressoa cada
vez mais alto no seu corpo, nos seus nervos, no seu ser de carne e osso.
A questão é: «Porque é que não estou feliz com isso?…»
De facto, não está contente. Ela não tem muito medo, dada a situação em
que se encontra: sozinha numa cave, num dos momentos mais perigosos do
cerco, sozinha com um homem armado que é de qualquer modo um
inimigo, que lá chegou no meio de cadáveres e armas de fogo, e que não
pode saber com que sentimentos Erzsébet esperou por ele e o acolheu; não,
ela não tem mais medo do que qualquer pessoa em tal situação, o seu
coração bate apenas um pouco mais acelerado. É um pequeno medo,
natural, fácil de ultrapassar… E, no entanto, ela não está feliz. E isto
desconcerta-a.
Ela espera este momento há meses e meses, dez, para ser precisa: desde
aquela noite de março, quando a Gestapo tocara à campainha para prender o
seu pai, e depois sob a chuva de bombas, e mais uma vez, quando eles
tinham arrastado o dentista judeu. Tal como uma mulher grávida espera
pelo parto, ela esperou por este momento com todo o seu corpo durante
meses e meses. Claro que não podia saber onde, em que circunstâncias e em
que cenário iria encontrar o primeiro russo – na rua, num campo de batalha
improvisado, ou numa casa – nem sequer podia imaginar. Mas agora ele
estava ali, exatamente como era suposto estar, como o inimaginável nos
livros de histórias. Ele não é um fantasma ou um monstro. Ele é um belo
pedaço de homem, alto, robusto. Ele está lindamente vestido. E isto produz
um efeito diferente do dos soldados alemães e húngaros; como se o recém-
chegado não fosse um soldado, mas um caçador que tinha chegado de terras
distantes, um caçador que por acaso estava lá enquanto perseguia
aventureiramente as presas. Está parado, como se estivesse à espreita na
atitude familiar dos caçadores que avistam presas num arbusto ou à beira de
uma clareira.
Ainda assim, não se pode deixar de notar algo sobre este homem. Mas o
quê?… Que ele é «diferente». Mas ele não é «diferente» por ser um
bolchevique. Erzsébet já sabe que este «bolchevique» come, dorme, se
alegra ou se zanga, acredita ou nega, blasfema e se enternece, tal como o
seu pai ou como ela. Bolchevique, o que é que isso significa…
O bolchevismo é uma teoria, transformada em projeto e prática, e durante
quase três décadas os homens, entre os quais estavam bolcheviques (e
certamente muitos que não o eram), conseguiram algo, trabalharam pela
unidade dos homens, acabaram por implementar uma parte daquilo com que
tinham sonhado, por vezes estavam prestes a conseguir que as pessoas e as
instituições fizessem tudo o que queriam, mas depois depararam-se com
obstáculos repentinos e viram outras possibilidades, pelo que começaram
a adotar as soluções fáceis, tanto para construir como para destruir.
De tudo isto surgiu aquilo que o mundo conhece como «bolchevismo».
Mas o termo define duas coisas: bolchevismo e comunismo. Erzsébet não
sabe exatamente o que significa «bolchevismo» e «comunismo», mas tem a
vaga sensação de que não significam totalmente a mesma coisa!
O comunismo é antes um «conceito», algo que se pode estudar nos livros
escolares, enquanto o bolchevismo é mais sobre prática e realidade! Mas
essa é uma hipótese vaga… Em qualquer caso, este «algo» é o resultado de
várias intenções, de experiências planeadas ou impostas por acaso, pelas
circunstâncias. Um grande número de seres humanos, talvez duzentos
milhões, já o conseguiram. Alguns com entusiasmo, outros fria e
racionalmente, e a maioria – dezenas e dezenas de milhões – sem qualquer
planeamento ou vontade revolucionária ou particular, simplesmente porque
eram cidadãos da União Soviética, porque nasceram, depois frequentaram a
escola, receberam uma educação, aprenderam uma profissão, e viveram o
melhor que puderam…
E por detrás da palavra «bolchevismo» existe um país imenso, muito
maior do que a Europa, com mares, lagos, florestas espessas, campos
cultivados, e diferentes povos, alguns, como o homem que está aqui agora,
bastante semelhantes aos húngaros ou aos franceses, e depois outros, os
mongóis, semelhantes aos chineses, em suma, povos de todos os tipos. E
todas estas paisagens, estas florestas, estes desertos, estes povos estão
vivos, e o mundo associa-os sob o nome de «comunismo».
Aqueles que o temiam falavam dele com ódio, outros, insatisfeitos com
o capitalismo, evocavam-no cheios de esperança e entusiasmo, de
convicções vibrantes… Mas tudo isto eram generalizações. O que não era
generalização, mas especificidade, daí a realidade tangível, estava agora
perante Erzsébet. Este homem veio de lá… mas de onde?
De muito longe. Sente-se esta distância nele como se vê o pó da estrada
no vagabundo. Esta distância pode estar-lhe ligada por muitas razões; talvez
porque é bolchevique, ou simplesmente porque é um soldado, um homem
armado de uma potência inimiga, ou por outras razões. O facto de ele ser
russo, de viver num lugar distante, a milhares de quilómetros dali, um lugar
onde o pão é cozido de forma diferente, onde a polia do poço é virada por
um sistema diferente, onde as pessoas pensam outras coisas quando leem os
romances de Tolstoi, sentem outras coisas quando veem o sol nascer ao
amanhecer no Volga… Em suma, esta alteridade: é o que se mantém com o
estrangeiro que finalmente chegou, o que para Erzsébet significa o fim da
guerra.
Para mim, este homem não é um inimigo, Erzsébet pensa rapidamente.
Mas será que realmente «pensa» assim? Será que isto continua a ser o
ato de pensar no sentido habitual do termo? Não tem nada a ver com a
associação lógica de ideias coerentes que é vulgarmente chamada «pensar»,
que deriva de processos biológicos que foram estudados em profundidade e
são bem conhecidos por Erzsébet. Ela sabe que agora não está apenas a
«pensar», como noutras alturas, mas a «viver», e que está a viver de forma
diferente, mais intensa, mais perigosa, mais verdadeira do que alguma vez
viveu antes. Esta outra vida começou há poucos minutos, e esta sensação
repentina, eletrizante está agora a tomar conta de tudo. Ele não é um
inimigo porque eu estava à sua espera, pensa ela, e eu não era a única à sua
espera, éramos muitos, nesta grande cidade que agora parece um animal
ferido, um ser pré-histórico trespassado, com as tripas de fora…
Estávamos todos à sua espera, mesmo aqueles que tinham medo dele, o
gerente dos correios, o conselheiro de estado, o jovem alemão que já estava
a tagarelar, e o outro, aquele com as cicatrizes dos duelos na cara, loiro, a
cambalear. Ele também o esperava, os cruzes flechadas também o
esperavam, e o judeu que mataram, amigo e inimigo, todos. Esperei dez
meses, e na espera, lentamente, todo o medo se evaporou, toda a
propaganda se desvaneceu, a espera relativizou o conteúdo garrido da
palavra «inimigo»… Não pode ser um verdadeiro inimigo aquele por quem
se esperou tanto tempo, noite e dia, durante meses. E não só para mim.
Erzsébet já não pensa em palavras e frases, mas como os músicos quando
compõem ou ouvem música: eles não percebem as notas separadas, mas
apenas o todo, o grande e pulsante fluxo da música, que excita não só a sua
audição, mas enaltece todo o seu corpo, talvez mesmo toda a sua existência!
Este estrangeiro já não é um inimigo para mim. Este russo, este
bolchevique, não é inimigo de milhões de pessoas, burgueses, camponeses,
pequeno-burgueses, que lutaram contra ele, e enquanto lutaram, entre falsas
notícias espalhadas para aterrorizar as pessoas e notícias reais, entre a
informação nos jornais e os discursos na rádio, acabaram por perceber,
embora com dificuldade, rangendo os dentes, gemendo e gritando, que isto
não podia acabar de outra maneira, que um dia de longe, de longe, viria um
homem. Ele entraria numa cave ou numa sala onde esperavam por ele.
Estavam à sua espera, a ranger os dentes, cheios de terror. Ou de esperança.
Ou de perplexidade ingénua. Mas este momento tinha de chegar. E agora
aqui está ele. Porque é que não estou feliz com isso?, pensa Erzsébet.
E porque este momento preciso está a chegar ao fim, atingindo um limite
inescapável – como qualquer situação humana, também ele tem o seu ponto
extremo de tensão, quando o tempo é preenchido com um conteúdo fatal e
ameaçador, e basta um segundo para que tudo expluda em atos insanos e
sem sentido –, Erzsébet estende a mão em direção ao russo.
O gesto é convidativo. Como dar as boas-vindas. Convidante, mas não
sincero. Erzsébet sabe disso, e aparentemente o russo também sabe. Porque
o homem alto e calmo, com uma arma mortal na mão, não tem pressa. Ele
olha para Erzsébet, depois para a mão estendida na sua direção como um
objeto, com um ar indiferente e desprendido. Ele não se mexe; nem mesmo
a arma e a lanterna se movem nas suas mãos.
Erzsébet apercebe-se agora que o russo está desconfiado, que a situação
lhe parece inacreditável. Não poderia ser de outra forma, ela diz a si própria
para se tranquilizar. Devo persuadi-lo de que sou sua amiga. Tenho de o
fazer compreender o quanto esperei por ele, e mesmo que neste momento
não me possa alegrar o suficiente com a sua vinda, ou com tudo aquilo por
que esperei, este homem é como crianças ou animais selvagens, não
compreende as palavras, mas tem um instinto apurado e seguro! No entanto,
sou sua amiga, pois ele trouxe-me salvação e libertação. De uma forma ou
de outra, tenho de lhe dizer. Em palavras não se pode… Envergonhada,
retira a sua mão estendida, e aproxima-se do russo.
A lanterna ilumina o seu rosto; o russo está em frente dela imóvel, com
uma postura que transmite um certo tipo de vontade de recuar, até o feixe de
luz da lanterna parece ser uma arma.
– Já não há alemães aqui – diz Erzsébet, esforçando-se por falar devagar,
para articular bem as suas palavras, como se respondesse a alguém que
conheceu na rua e que, perdido, lhe pediu indicações. – Eles desapareceram
todos, por ali – e ela aponta para a saída de emergência. – Aqui sou a única
pessoa que resta, sozinha – ela está a mentir.
Nem sequer por um momento ela sente que falar húngaro é inútil. É
como se os dois, o russo que escuta e Erzsébet a falar em húngaro,
estivessem a utilizar uma estranha língua internacional. O homem não
responde, escrutina-a com um olhar sombrio e penetrante.
– Esperei tanto tempo por si – diz Erzsébet, sorrindo, e agora sente-se
como se estivesse a falar num palco, com um sotaque cantado, falso e
mendaz.
O russo continua a não responder. Ele sente que estou em parte a mentir,
pensa Erzsébet. Mas eu estava realmente à espera dele, esperei por ele tanto
quanto se podia, pensa ela com profundo espanto. Mas então porque estou
eu a mentir? E porque é que estou a falar com uma voz tão falsa e cantada,
como uma menina da escola na peça da turma? E este sorriso duro, este tipo
de sorriso no meu rosto… Então ele não pode confiar em mim, pensa.
É melhor ele não dar conta do professor. Talvez ele saia daqui
imediatamente, e eu com ele, atravessemos o pátio, vamos sair para a rua, ir
até ao sabatista e ao meu pai. Agora também eles estão livres, se este já cá
está, este homem alto, então os russos também estarão do outro lado da rua.
Mas é melhor ele não dar conta do professor, não se pode saber o que
poderá fazer com ele. Não se pode saber nada, pensa agora de repente.
Sente-se tranquila.
A certeza de que «nada pode saber neste momento» – a hora da salvação
chegou, mas não trouxe nada de certo com ela – acalma-a subitamente.
Espera-se por algo, e eis que este algo chegou, e é mesmo como ela o tinha
imaginado, mas ao mesmo tempo completamente diferente: por isso é
preciso ser cauteloso e esperar. Agora a sua voz é natural, calma, quando,
apontando para uma espreguiçadeira abandonada, ela diz:
– Senta-te.
O russo olha com atenção para a espreguiçadeira, em cima da qual está
uma almofada imunda e amassada e um cobertor rasgado. Ele não se senta.
Move o feixe de luz à volta da cave.
– Já te disse que não está aqui ninguém. – Erzsébet repete mais alto, e
faz um esforço para falar num tom natural e neutro, como se tivesse
finalmente encontrado a sua verdadeira voz.
Gostaria de falar espontânea e cordialmente, para tranquilizar esta figura
escura e desconfiada, esta sombra muda, com a sua voz e gestos. Porque é
que não lhe mostro o professor?, pensa enquanto as suas palavras ecoam na
cave. E porque é que o professor não diz nada, porque é que ele não escarra,
não grita alguma coisa? Mas o homem paralítico escondido no fundo da
cave, atrás das costas de Erzsébet, está calado. Deitado na sua cama no
escuro, espera que o encontrem ou o esqueçam, não dá sinais da sua
presença, nem sequer com tosse; Erzsébet compreende que o homem com o
seu silêncio lhe pede para desviar a atenção do russo. Ele não quer travar
conhecimento, Erzsébet pensa agora com ironia súbita, ele não é do tipo
sociável… Ele também não confia em ninguém. Gostaria de evitar este
primeiro encontro, para não ser notado.
Não tem importância, conclui ela. O que importa sou eu, e este homem.
A lanterna do russo passa por todos os recantos da cave, e o feixe de luz
inquiridor regressa agora para descansar no rosto de Erzsébet. Que poderia
ele fazer a um paralítico, que é também um refugiado, um dos nossos?…
Ele não lhe pode fazer mal, Erzsébet diz a si própria para se tranquilizar.
Então, como se, do seu canto escuro, o paralítico a obrigasse, com o seu
silêncio e o olhar que ela sentia dirigido para as suas costas, a não falar
dele, a entreter o russo, acrescenta rapidamente:
– Todos eles se foram embora, mesmo os nemcy.
Ela designa os alemães com a palavra russa e, pela primeira vez, o
homem responde às palavras de Erzsébet. Lentamente, num tom grave, ele
diz:
– Ponimaju[10].
E acena com a cabeça. Baixa a mão com que apontava a arma à rapariga
e desliga a lanterna. Agora a única luz é a que os alemães deixaram acesa
no meio da cave. O russo move-se lentamente na semiescuridão, poisa a
metralhadora no chão com um gesto de especialista e encosta-a a uma
cadeira; depois levanta as mãos e cuidadosamente, com o gesto relaxado e
meticuloso de quem alcançou o seu objetivo, retira o boné que tinha
mantido firmemente na sua cabeça até então.
Na parte da frente do boné – que faz lembrar a cúpula de uma igreja
russa – brilha a estrela vermelha da União Soviética. Erzsébet observa os
movimentos do homem, e sente uma admiração ingénua. O russo coloca o
boné em cima de uma pequena mesa, depois alisa calmamente o cabelo com
ambas as mãos. Cada gesto dele é natural, relaxado. As suas mãos são tão
brancas como o seu rosto e testa, de uma palidez luminosa. Tem cabelo
louro muito claro, com reflexos prateados. Tal cor Erzsébet só viu sair das
mãos experientes de um cabeleireiro. Ele é jovem, não tem trinta anos de
idade. E debaixo daquela testa branca, naquela cara fresca, emoldurada por
um cabelo louro muito claro, que parece não tanto o cabelo mas o pelo
macio e brilhante de um animal selvagem dos países nórdicos, um par de
olhos cinzentos olha fixamente para Erzsébet.
Impossível escapar, nem sequer por um momento, a estes olhos
penetrantes: Erzsébet sente conscientemente, mas também com todos os
seus nervos, que nenhum olho humano jamais olhou para ela na sua vida
com tanta atenção e profundidade, de uma forma tão segura e impiedosa.
Recorda-se do gato siamês de pelo branco, que tinha tido na sua infância,
uma bichinha oriental feroz, orgulhosa e frágil: era capaz de olhar para ela
assim, durante horas, com o olhar apaixonado e ardente de um louco, ou de
um ser vivo que observa os fenómenos do universo com extrema
desconfiança.
É isso que lhe vem agora à mente. No olhar dos olhos cinzentos não há
vontade de se aproximar, nenhuma confiança, nenhuma alegria, nenhum
convite para se familiarizar, nada. É apenas olhar. E os olhos cinzentos têm
a mesma luz que os destaques prateados do seu cabelo: um brilho
alienígena, uma sombra que Erzsébet nunca viu na realidade. É evidente
que foi outro clima, outro sol, a diferente humidade do ar no país onde o
homem cresceu que deu a tonalidade luminosa particular a esse cabelo
macio, a esses olhos.
O homem não tem qualquer semelhança com a imagem do «russo» que
Erzsébet tinha construído para si própria. Não tem maçãs do rosto largas,
nem uma testa baixa. A forma da sua cabeça, bastante alongada, sugere um
nórdico; poderia ser um alemão pomeraniano, um escandinavo, um
norueguês ou um sueco. Mas o que mais impressiona Erzsébet são as suas
mãos – não tanto as mãos, para ser exata, mas a forma como as move. São
mãos cónicas, brancas, ossudas, e os seus movimentos são particularmente
soltos. As unhas são alongadas, ovais, brancas, bem tratadas, como se
tivessem acabado de ser confiadas a uma manicure especialista. E essas
mãos cónicas e brancas movem-se com uma lentidão elegante.
Cada um dos gestos do homem é fino, colocado: a forma como levantou
o boné, alisou o cabelo depois de colocar a arma junto à cadeira; cada um
dos seus gestos é deliberado, atencioso, meticuloso, sincero. Erzsébet
lembra-se agora das mãos dos músicos, então, por associação atroz, da mão
do médico.
O russo está a olhar para ela, e Elisabeth não consegue desviar o olhar
nem por um segundo, não consegue olhar para baixo. Era como se, com os
seus dedos ossudos e fortes, ele a tivesse agarrado pela cintura: assim, com
os seus olhos implacáveis e impiedosos, o homem segura o olhar de
Erzsébet. Como é o seu olhar? Não é curioso, não é terno, não é brincalhão,
nem é benevolente. Mas também não é hostil. Pelo contrário, é desapegado
e atencioso. No mar, pensa agora Erzsébet, algures no Norte, no Oceano
Ártico, é assim que os seres vivos, os ursos polares e os seus caçadores,
devem olhar uns para os outros.
E agora, ao refletir nisso, sente que está no caminho certo, e de repente
compreende esse olhar. Como se o russo não fosse sequer um soldado…
Claro que é, mas ao contrário da maioria dos soldados, que na vida civil são
sapateiros ou torneiros, e um belo dia põem-lhes uma arma na mão a dizer:
agora és um soldado. Ele é um soldado, mas é como se todas estas situações
– encontrar-se sozinho, de espingarda na mão, na cave de uma cidade
estrangeira, no meio dos alemães, ou noutro lugar, numa caverna
enfrentando feras selvagens, ou confrontado com sombras e fantasmas
ainda mais assustadores –, é como se todas estas situações lhe fossem
familiares há muito tempo. Ele não subestima os perigos, mas também não
entra em pânico. Está simplesmente preparado para todas as eventualidades.
A metralhadora está ao alcance da sua mão, de modo que ao menor
ruído, ao menor movimento inesperado, tudo o que ele tem de fazer é
levantá-la e agarrá-la. A forma como se senta, lentamente, quase agachado
– o mesmo movimento que tinha quando entrou na cave, como se andar e
descansar fossem duas situações com que tinha de estar igualmente
atento –, a forma como puxa as pernas debaixo dele, a forma como coloca
as botas grandes debaixo da borda da espreguiçadeira, a forma como enfia
uma mão no seu casaco almofadado, tira uma cigarreira prateada e oferece
um cigarro a Erzsébet, tira um isqueiro e acende-o: cada gesto dele é
estudado, sóbrio, elegante. Mas esta elegância não se assemelha a qualquer
requinte que Erzsébet conheça, qualquer atitude ou gesto das pessoas do seu
mundo. É a elegância de alguém que é completamente livre por dentro,
alguém que está habituado, nesta vida perigosa, a comportar-se e agir de
acordo com as suas próprias leis, desinibido por preconceitos, regras ou
convenções. E observa.
Só um homem que vive ao ar livre pode ter esse aspeto. Aquele que
passa a sua vida numa sala tem um olhar habituado a outras dimensões, e
tem um ar diferente. Mas este caçador, que também é um soldado, está
habituado a certificar-se de que o seu olhar não colide com os obstáculos e
limitações das paisagens urbanas: é assim que os marinheiros são, aqueles
que vivem nos grandes espaços desérticos. É um olhar severo.
Este ser humano sentado em frente de Erzsébet sugere com o seu olhar
que não confia em ninguém. Devo tranquilizá-lo, devo dar-lhe alguma
confiança, pensa Erzsébet febrilmente. Tenho de falar com ele. Nem por um
momento lhe passa pela cabeça que não tem forma de falar com o
estrangeiro, uma vez que não sabe russo. Como se houvesse algum tipo de
língua comum entre os seres humanos, uma misteriosa possibilidade de
comunicação, mais simples e universal do que o esperanto: assim Erzsébet
fala, fluentemente, abertamente.
– Há pouco eles ainda aqui estavam – diz ela. – Foram para o prédio
vizinho. Mas tu não corras atrás deles, descansa.
O russo não responde, nem sequer se mexe, apenas o peso do seu olhar,
um peso cinzento, cai sobre Erzsébet sem pestanejar:
– Não acreditas em mim? – pergunta ela. – Nem podes acreditar em
mim. Vens de um país estrangeiro, de longe, da guerra. E nós aqui somos
inimigos para ti. Pelo menos pensas que todos nós somos inimigos. Mas
isso não é verdade. Eu, por exemplo, tenho estado à tua espera, há muito
tempo. E há muitos outros que não conheces. Os fascistas fugiram para o
estrangeiro, mas nós, que ficámos aqui, todos esperámos por ti. Não podes
imaginar quanto tempo esperámos por ti.
O russo ouve. Ouve em silêncio, a sua cabeça loira inclinando-se um
pouco para a frente, como se assim pudesse compreender melhor o que
Erzsébet está a dizer.
– Acredita em mim, por favor – diz Erzsébet apressadamente. Este olhar,
este silêncio tenaz, a tensão peculiar que irradia da atenção concentrada e da
evidente desconfiança do russo perturbam-na. Distraí-lo não é tão fácil
como eu pensava, essa é a sua impressão. Talvez nem esteja a falar com
sinceridade.
Assim, ela decide mudar de tom, e quase sussurrando, com a particular
nuance de confiança na voz que quer tocar intimamente alguém, ela
continua:
– Não podes acreditar em mim porque não me conheces. Vivi sob um
nome falso, tive de me esconder dos alemães. Não acreditas?… Olha, estão
aqui os meus documentos. São documentos falsos – diz ela rapidamente.
E, com uma mão nervosa e trémula, mete a mão na sua bolsa e tira os
documentos de Erzsébet Sós e entrega-os ao russo.
Mas o homem não lhes toca, não se mexe, às vezes coloca o cigarro na
boca, inala o veneno amargo em fumadas regulares, e não mexe nos
documentos de Erzsébet. Através do fumo, por cima do cigarro mantido
entre os seus dedos brancos de neve, ele olha para Erzsébet e para os seus
papéis com um ar sério e, ao mesmo tempo, algo zombeteiro. Vê-se
claramente que ele compreende tudo, que compreende a intenção de
Erzsébet, que compreendeu o significado desses documentos, e a situação
diverte-o.
Erzsébet sente que o russo está a desprezá-la um pouco neste momento.
Ele não quer saber dos meus documentos, pensa ela desanimadamente; ele
não quer saber se eu sou fascista ou uma resistente que se esconde, ele não
quer saber de nada disto… Provavelmente já passou por uma situação
semelhante muitas vezes, certamente não veio até aqui, até à cave de um
prédio em Peste, de tão longe, da Rússia, de algum lugar junto ao mar, sem
já ter encontrado aqueles que febrilmente lhe mostraram documentos,
justificando-se, com uma atitude de culpa cheia de ponderação. Tudo isto já
não lhe interessa, apenas desperta o seu desprezo – é isso que Erzsébet
percebe, e, envergonhada, apressa-se com um gesto brusco a colocar os
documentos de Erzsébet Sós na sua bolsa.
O mar, pensa ela, entretanto. Estranho, este homem conhece o mar, como
uma foca conhece a gordura na sua pele. Fecha a bolsa, e pergunta:
– Você é ucraniano?…
O homem acena não com a cabeça.
– Então de onde é?…
O russo deita fora o cigarro. Com a bota grande esmaga de vez a beata.
Depois olha para Erzsébet e solenemente, com uma voz grave, diz:
– Sibiren.
– Ah, siberiano – diz Erzsébet. E imediatamente a seguir, um pouco
estupidamente, como se quisesse compensar algo: – Maravilhoso.
O russo acena com a seriedade de uma criança crescida. Parece que
finalmente está em pleno acordo com Erzsébet e eles chegaram a um ponto
de viragem significativo na sua conversa: o facto de ele, o russo, ser
siberiano parece ter grande relevância.
Esta seriedade solene e algo infantil encorajou Erzsébet. Finalmente,
encontraram um ponto comum. Aparentemente, é importante para ele ter
sido capaz de me dizer isto. O facto de ele ser siberiano é muito
significativo para ele. Ele disse-o como se me estivesse a dar uma grande
notícia.
– É muito bom seres siberiano – acrescenta ela rapidamente. Não deve
desistir agora pensa ela, nem um momento deve ser desperdiçado para o
amolecer, para o acalmar. Porquê?… Não sei. Mas preciso de o convencer
de que somos bons amigos, e que não me pode fazer mal porque somos
amigos. Tudo depende disso.
Rápido, portanto, para não perder esta fugaz oportunidade de fazer
amizade, ela continua:
– Sou húngara e nunca estive na Sibéria. Lamento, não sabemos muito
sobre a Sibéria, apenas alguns clichés, sabes, por exemplo, que lá está frio,
muito frio. Estás a entender? – pergunta ela, articulando bem as suas
palavras.
O russo começa a sorrir. E é como se o sorriso iluminasse ainda mais o
seu rosto pálido. Com um ar um pouco de gozo, mas amigável, ele diz:
– Zima[11]– e acena com a cabeça, como se esta tentativa de comunicar o
divertisse.
Aparentemente, ela compreende esta palavra, pensa Erzsébet com
entusiasmo, e esforça-se por continuar a troca. É importante aproveitar
todas as oportunidades para criar um laço de amizade com o desconhecido.
– Zima, frio, sim – exclama alegremente, como se esta descoberta
tornasse agora o contacto entre eles marcadamente mais fácil. – Zima,
zimankó. Vês, também conhecemos as vossas palavras. Temos muitas
palavras de origem eslava como esta zimankó. Emparedámos o meu pai
numa outra cave, para que os alemães não o encontrassem – diz ela.
O russo está calado, nem pestaneja. Só um caçador pode olhar com tanto
cuidado quando faz pontaria, pensa Erzsébet. E um arrepio frio corre-lhe
pelas costas e por todo o corpo.
Agora o russo vira o seu olhar para longe de Erzsébet, e a mulher segue-
o com esperança. Não vai ser fácil, pensa ela; e o seu coração bate de forma
acelerada. Não vai ser fácil domar este homem. Já não é apenas
desconfiado; é receoso de uma maneira diferente. Ele simplesmente não
confia em ninguém. Se calhar devia oferecer-lhe algo… Numa caixa, vê
uma garrafa de aguardente que os carvoeiros deixaram lá. Ela dá um pulo e
entrega ao russo a garrafa e um copo um pouco sujo.
– Aguardente – diz ela. – Queres um pouco?
Antes de o homem responder, ela enche o copo com o líquido amarelo-
escuro. Segurando a garrafa numa mão e o copo na outra, aproxima-se do
russo, com um sorriso forçado, uma solicitude simulada, excessivamente
afável e amigável. Mas o homem levanta-se, tira o copo da mão de Erzsébet
e, com um gesto surpreendente, ergue-o bem alto. Bate os calcanhares,
ergue o copo na direção de Elisabeth, tal como nós fazemos aqui – o gesto é
um pouco provinciano, mas não é de todo ridículo.
Erzsébet acena educadamente, a garrafa continua na sua mão; o russo,
sério, com a cabeça inclinada para trás e os olhos fechados está a saborear a
bebida. Depois devolve o copo a Erzsébet, limpa a boca com a mão, acena
ligeiramente com a cabeça e senta-se agora sorrindo.
Ótimo, pensa Erzsébet. Já está. Somos amigos.
– Queres mais? – pergunta ela e volta a encher o copo. – Ofereço-te com
muito gosto, bebe… Vieste de longe e apanhaste frio. Mesmo que estejas
habituado à Sibéria… – agora fala assim, fluentemente; e o russo, um pouco
embriagado, está a sorrir.
O rosto pálido ficou vermelho, os olhos cinzentos cintilam. Consegui,
pensa Erzsébet alegremente. Senta-se ao lado do russo, garrafa na mão, olha
para o homem, e diz:
– Vamos sair daqui agora, pode ser? Acompanha-me, ajuda-me a
atravessar a rua – e aponta com a garrafa em que direção devem ir.
Mas o russo não responde. Ao que parece, a aguardente está a dominar o
corpo dele, bebeu um copo grande; não está bêbado, mas o álcool circula
pelo seu corpo, ao longo das suas veias. Os seus olhos cinzentos estão a
brilhar, um sorriso involuntário surge no seu rosto.
Erzsébet não gosta daquele sorriso. Talvez não lhe devesse ter oferecido
uma bebida, pensa ela. Talvez ele tenha bebido de estômago vazio, e isso
nunca é bom… Ela olha à sua volta, o que poderia oferecer ao seu
convidado para comer? Num prato há pão, um pedaço de queijo já trincado,
algum tipo de chouriço. Ela estende a mão em direção ao prato. Mas nesse
instante, com um gesto rápido – tal como um caçador ou um animal
carnívoro apanha a sua presa – o russo estende a sua mão e agarra o braço
de Erzsébet.
O toque da mão é frio e duro. Essa mão toca o corpo de Erzsébet de uma
forma bastante diferente do aperto reconfortante com que o professor a
tinha convencido a ficar pouco tempo antes. Os dedos brancos apertam-lhe
o braço com uma força implacável e impiedosa. Erzsébet não se consegue
levantar. Sente todo o sangue a descer da sua cabeça. O que é isto, pensa
ela, o que aconteceu? Será que fiz algo de errado? Será que ele não quer
comer?
– Muito bem, então não comas – diz ela e os lábios estão a tremer. –
Pensei que estavas com fome. Não estás?… Larga o meu braço –
acrescenta suavemente, porque lembra-se de que não está sozinha,
escondido no escuro o homem paralítico escuta.
Nesse instante, o tremor que tinha atravessado o seu corpo pelo contacto
com a mão do russo tornou-se ainda mais forte, incontrolável. Está a
tremer-lhe o queixo como se de um violento ataque de febre se tratasse.
– Larga-me – sussurra ela, como se a única coisa importante fosse que o
paralítico não soubesse nada do que está a acontecer.
É um sussurro íntimo, como se entre os dois, entre ela e o russo, existisse
uma relação que ninguém precisa de saber.
– Não me apertes o braço assim – diz ela. – O que é que queres?
Ambos se levantaram. O russo é bastante mais alto do que ela, Erzsébet
tem de erguer a cabeça para poder olhar para ele. Na luz fraca, ela vê
apenas a testa pálida do homem, o seu cabelo macio e brilhante com
madeixas prateadas e os seus olhos cinzentos, que continuam a olhar para
ela… um olhar fixo, mas em que há um reflexo diferente de antes. Agora
esses olhos cintilam como luzes estranhas a piscar no escuro. Ele nem
sequer diz uma palavra: mas não solta o braço de Erzsébet. Ele quer aquilo,
pensa ela. E, nesse momento, o seu corpo deixa de tremer nervosamente.
Ela inclina-se para a frente, liberta o braço do domínio do russo. A garrafa
de aguardente cai no chão e parte-se ruidosamente. Um cheiro nauseante,
fermentado e azedo enche o ar. O russo curva-se para baixo, agarra o ombro
de Erzsébet com uma mão e obriga-a a permanecer imóvel.
– Louco – grita Erzsébet. – Deixe-me ir, você é louco.
Já não tem medo. Acontece como quando se é confrontado com algo
impossível, absurdo, quando num sonho os fenómenos familiares,
conhecidos, se transformam em algo perturbador, monstruoso – uma barba
hirsuta brota num rosto conhecido, e esse rosto amado deforma-se num
esgar de ódio – e a pessoa que sonha sente uma alegria maligna e altiva,
porque finalmente o que era familiar, íntimo, revelou a sua verdadeira
faceta! Assim, agora que o russo lhe agarrou o pulso, Erzsébet já não tem
medo.
– O que é que estás a fazer? – grita ela. – Não acredito.
Mas o homem está calmo. Como se estivesse preparado para essas
palavras, como se não fosse a primeira vez que ouviu um protesto tão
veemente. Ele é calmo, profissional, desapegado. Neste momento, está a
segurar Erzsébet com ambas as mãos; ele não a abraçou, mas agarrou os
seus ombros e obrigou-a a virar-se para ele e a permanecer imóvel. Erzsébet
não tem força física suficiente para resistir ao aperto, à vontade dessas
mãos. Eles estão de pé, voltados um para o outro, o rosto do russo está a
brilhar em cima do dela. Erzsébet olha para essa cara. Como ele é jovem!,
pensa ela. E tão sério… Pois o rosto do desconhecido não revela nenhum
desejo apaixonado. O seu rosto jovem e pálido é sério e triste: essa tristeza,
essa gravidade silenciosa são mais terríveis do que um sorriso lascivo. Ele
inclina-se sobre Erzsébet, não pede, apenas toma; obedece, com gravidade e
sem possibilidade de oposição, a uma ordem que lhe foi dada.
E a antecipação que invade o corpo de Erzsébet naquele momento é
alimentada por essa gravidade e tristeza. Talvez se o russo gritasse,
explicasse, implorasse ou ameaçasse… talvez não fosse tão assustador.
Mas ele não fala. As duas mãos agarram os ombros de Elisabeth, o
homem permanece de pé, imóvel… os seus olhos cinzentos olham para a
jovem com desprendimento e frieza. É como se a figura silenciosa que
entrou na cave e trouxe a Erzsébet uma nova situação com o seu silêncio
dissesse algo mais terrível do que qualquer ameaça explícita. Com esse
silêncio, não se pode discutir. Se ele não falar, pensa Erzsébet, então não há
fuga possível.
– Fala – grita ela, e com o punho bate na cara pálida.
O russo começa a sangrar do nariz. Mas a figura imponente não se move
mesmo agora, ele continua ali, segurando Erzsébet firmemente com os
dedos, como se fossem algemas de aço, e resiste sem dizer nada enquanto o
sangue escorre das suas narinas.
– Fala – grita Erzsébet. – Porque é que estás calado? Diz qualquer coisa!
Explica o que queres!
Ela sabe que tudo seria melhor e mais fácil se o russo dissesse alguma
coisa. Apenas algumas palavras, se emitisse um som humano, e poderia
imediatamente negociar, discutir, evitar, rezar… a situação tornar-se-ia
novamente humana, se ao menos o russo falasse. Com um homem que nos
ameaça, pode-se discutir. Mas não com um homem que não diz nada.
Erzsébet sente com todo o seu corpo que o russo bloqueou com um gesto
simples e inapelável, que o homem não se calou de forma cruel e hostil,
mas triste e impotente, com aquela impotência particular do soldado que
não abre a boca perante o seu superior, ou de todos aqueles que ficam em
silêncio enquanto executam uma ordem inexorável, uma ordem dada por
uma autoridade, pelo corpo ou pelo instinto! Ela sente que perante um
homem que está calado é impossível argumentar.
Finalmente, um guincho agudo chega até ela. Uma criança ferida ou um
leitão trespassado grita dessa maneira. Na cave ecoa aquele grito atroz. Sou
eu quem grita, pensa ela desconcertada. O russo tapa com uma mão a boca
gritante de Erzsébet. O grito vem abafado, morre por falta de ar. O homem
levanta Erzsébet com um braço, com facilidade, como se levantasse um
objeto, deita-a na cama suja e deixa-se cair em cima dela. O corpo grande
parece não ter peso. Erzsébet sente dor, e um cheiro a água de Colónia
barata e ridícula que lhe recorda o salão de cabeleireiro suburbano. É
interessante ele também usar água de Colónia, pensa ela. Mas a dor é muito
forte. De olhos fechados, atira a cabeça para a almofada, porque a náusea
que sente é pior do que qualquer outra coisa. Lembra-lhe o tempo em que
ficou enjoada no barco em frente a Lovran. Começa a vomitar.
Vomitar ajuda. Devia tê-lo feito mais cedo, pensa Erzsébet enquanto
vomita, logo depois de me ter agarrado pelos ombros. Então, assim, se
calhar, não me tinha feito nada… Mas ela sabe que isso não é verdade. Sabe
– porque se tinha apercebido antes, quando a dor aguda, ardente
e lancinante tinha invadido o seu corpo – que nem uma conversa, nem a
ação, nem o vómito ou a luta, nada a poderia ter ajudado. No momento em
que o corpo daquele grande homem se aproximara, pesado e ao mesmo
tempo leve no acto sexual, ela sabia que ninguém a poderia ter ajudado,
porque, naquele instante, o homem não estava a «fazer» ou a «cometer»
nada, estava simplesmente a obedecer a uma ordem, uma espécie de
sentença.
Isto ambos sabíamos, pensou Erzsébet com os olhos fechados. Estranho,
ele não me beijou, pensa. Talvez porque o seu nariz estava a sangrar…
Agora, sente uma mão e um lenço a manejar à volta da boca; com gestos
cautelosos, desajeitados e ternos, o homem está a limpar vestígios de
vómito do rosto e pescoço de Erzsébet.
Limpa-o, pensa Erzsébet, limpa-me… Agora, que importa. Volta para a
Sibéria, e eu fico aqui. Talvez apanhe uma doença ou engravide. Volta lá,
para a Sibéria, onde está frio, muito frio, zima…
Ela sente a mão do russo na testa. O contacto é desajeitado, tímido. Só
não me peças desculpa, nada de elogios, pensa Erzsébet assustada,
especialmente não sejas terno… Ela sente que essa carícia é o limite para
além do qual já não pode tolerar nada. Ficam assim na espreguiçadeira,
Erzsébet deitada, de olhos fechados, o russo sentado na borda, perfumado
com água de Colónia, a palma fresca da sua mão a repousar na testa dela.
Durante algum tempo, nada perturba essa quietude. Situação idílica,
pensa ela, e torce a boca, como quando nos surge uma ideia estranha, e a
boca reage involuntariamente com uma careta sarcástica. Um idílio próprio,
o ambiente típico e perfeito do après. Só não tira fotografias, não me mostra
o retrato da sua mãe, da sua irmã, porque isso realmente não aguentava…
Ou talvez uma fotografia da sua namorada, da sua mulher? Mas não, ele
não é casado, conclui ela. Ele vive no Norte, lá em cima será um caçador ou
um operário. Um rapaz simpático…
Com os olhos fechados, atenta ao seu próprio corpo, escuta-o, como se,
debruçada sobre ele, pudesse ouvir uma resposta a tudo o que a sua razão
não podia, ou não ousava, exprimir por palavras. Mas o corpo, ela nota com
espanto, está calmo. Erzsébet não ouve nenhum gemido indignado, nenhum
protesto, nenhum grito a sair do corpo violado e desorientado. A dor e as
náuseas ainda circulam no seu organismo, como substâncias injetadas na
sua corrente sanguínea. Mas a dor agora adormeceu, e a náusea é vaga,
menos intensa.
O meu corpo não diz nada, constata. A dor passou, até me esqueci das
náuseas, e este homem não estará aqui por muito mais tempo. Terá de partir
em breve. Ele tem de ocupar o edifício ao lado, a rua. Depois Peste e Buda.
Depois terá de ir mais longe, terá ainda de ocupar as cidades para além do
Danúbio, Viena e Berlim. Ainda tem muito a fazer, pensa ela
sonolentamente, com admiração infantil.
Porque a dormência em que a dor e a náusea estão a dissolver-se, agora
atua como um ansiolítico sobre a sua consciência. Sente o pesado aturdir
que precede o sono; ouve o seu corpo e reflete.
Deve ser perigoso. Ocupar este prédio. Budapeste, Viena e Berlim. E
antes de chegar aqui, no meio de tanques e canhões, isso também deve ter
sido perigoso. Ele é muito jovem e triste, pensa ela, e não fala muito. Os
homens do Norte são taciturnos. O que é que ele disse? Nemcy, zima,
sibiren, e ponimaju. O que significa esta última palavra?… Ele acenou com
a cabeça enquanto a dizia, como se isso implicasse que compreendia algo,
que estava tudo bem.
– Ponimaju – diz Erzsébet de repente, e senta-se, e olha para o russo com
olhos bem abertos.
Ela disse isso durante o sono; mas agora acordou. O russo olha para ela
espantado, repete hesitando:
– Ponimaju?… – a sua voz é rouca e incerta.
Eles olham assim um para o outro. Tenho de arranjar o meu vestido,
pensa Erzsébet; e, involuntariamente, estende a mão. Mas o gesto morre a
meio caminho. Cada gesto é supérfluo. Em que estado estarei eu?
Assustador, pensa com satisfação. Não me lavei durante quatro dias, nem
sequer a cara. Vomitei por todo o lado, o meu cabelo tapa uma parte da
minha cara. As minhas mãos estão sujas, pegajosas. Estou a usar a mesma
roupa interior há dez dias. O mais provável é que esteja a cheirar mal,
constata, quase com alívio, contentamento. E este homem está limpo, bem
vestido, talvez até um pouco demais, como um cavalheiro acabado de sair
da barbearia.
Ela percebe com grande satisfação física o estado de negligência do seu
próprio corpo. Devo estar malcheirosa, suja, desgrenhada, talvez até tenha
vermes, não sei, nos últimos dias não tive tempo de prestar atenção a esses
detalhes. O meu cabelo está pegajoso de sujidade. As unhas… Erzsébet
levanta as mãos e olha para elas. O russo segue o seu movimento com os
olhos e depois o olhar de Erzsébet. As mãos também são como Erzsébet
esperava: a sujidade preta espreita debaixo das unhas. Pobrezinha, pensa ela
agora, com súbita e sincera compaixão. Foi isto que lhe calhou, este corpo
cheio de imundície. Este corpo imundo e malcheiroso, este cabelo
desgrenhado, o corpo desta mulher macerado na imundície de vinte e quatro
dias de cerco. E foi para isto que ele veio da Sibéria? Não me parece…
Mas então porquê? O que é que ele queria? O que é que lhe podia dar? O
que poderia eu significar para ele, porque o fez? Esta não sou eu. Esta já
nem sequer é Erzsébet Sós. Ela é uma bela rapariga de vinte e três anos,
com uma aparência limpa, seios bonitos e olhos azuis. E eu, onde estou?…
Estou certamente algures, atrás destes trapos, atrás deste corpo fedorento;
algures muito longe. Como ele é modesto, por se conformar com isto… e
olha para as suas mãos com piedade, as suas pernas calçadas de meias
esfarrapadas.
O estrangeiro, por outro lado, tem o cabelo arranjado e o rosto lavado,
limpo, mesmo nesta altura do cerco. Por causa do seu cheiro fresco parece
um cavalheiro matinal. Tem um cheiro masculino forte, nem sequer o do
tabaco e da aguardente se misturam na sua boca. Por ser jovem, a sua boca
é saudável, cheira a humano. Ele deve viver numa floresta ou junto ao mar.
O seu rosto ainda está coberto de sangue, resultado do murro que lhe dei.
Ele veio de longe, e trouxe-me… o que é que ele me trouxe? Erzsébet
reflete. Está concentrada, tenta encontrar uma palavra, uma palavra familiar,
como se estivesse à procura de um objeto apressadamente escondido. Mas
ela já não a consegue encontrar. Ela não consegue dizer o que o russo lhe
trouxe.
Ela só sabe que não guarda rancor contra o russo. Pelo contrário, ela
sente pena dele. Devia estar carente, pensa ela. Isso deve ser algo
semelhante à fome ou à sede. Quando se come carniça, bebe-se das poças.
Em dias anteriores, tinham trazido para a cave alguma carne cortada da
carniça dos cavalos, e tinham-na cozinhado e comido. Eu, então, não queria
comer essa carne de carniça. Mas este pobre rapaz comeu-a agora, pensa
ela. Ele merece mais. Aquele que come tal corpo, como o meu agora, deve
sofrer muito, caso contrário não o faria. Agora ele olha para mim e está
perturbado. Ponimaju, quem sabe o que isso significa, talvez compreendo,
ou algo… Eu compreendo, sim, eu compreendo. O que vai acontecer agora?
O que me vai dar como lembrança? Uma fotografia, dez rublos ou um pão
de forma? Há dois dias que não como pão…
Com grande e sincero espanto, com alegria, constata que sente fome.
Estou esfomeada, pensa ela; e, mais uma vez, sente nos seus lábios aquele
sorriso irónico e nervoso.
Porque tem realmente fome; como se isso fosse a resposta do seu corpo a
tudo o que aconteceu. Essa fome torce-lhe o estômago, aperta-lhe as
entranhas. Com um gesto involuntário e ganancioso, estende a mão em
direção ao prato onde há pouco ela tinha visto o pão e o queijo. Os seus
dedos encontram-nos. Sentada, começa a roer vorazmente o pedaço de pão
seco.
Com a cabeça ligeiramente inclinada para o lado, a boca semiaberta, o
russo olha para ela com espanto. O olhar assustado e espantado, a expressão
desnorteada do outro provoca riso nela.
– Estou com fome – diz ela, com a boca cheia.
O russo acena com a cabeça; depois, ainda com o mesmo gesto
desajeitado – como um adolescente a querer compensar um ato impróprio –
ele vira os bolsos, tira alguns trapos, no meio dos trapos procura um saco de
papel todo amassado, e com um gesto tímido entrega-o a Erzsébet.
– O que é isto? – pergunta ela. – Um presente?… Rebuçados?
Maravilhoso!
E ela está a rir. Cheio de gratidão – grato porque Erzsébet se vira para ele
e aceita o pacote –, o russo acena com entusiasmo, depois diz com uma voz
rouca:
– Da, da. Sachar[12].
Segurando o pão seco e os rebuçados pegajosos na sua mão, Erzsébet ri-
se de boca aberta e diz:
– És querido. Realmente, terno e atencioso. Muito obrigada.
Agora deixa cair os rebuçados no colo. De repente, sente-se cansada.
Encosta a cabeça em cima da almofada suja, o resto do pão seco também
cai da sua mão, tapa os olhos com o braço. Fica deitada assim.
Perto, ouvem-se passos. Erzsébet ouve o russo – sem fazer barulho, com
aquela prontidão furtiva de um animal selvagem, com movimentos
silenciosos – a saltar a pés juntos e a agarrar na arma. Vai, luta bem, pensa
Erzsébet. É o teu trabalho… Ainda tens muito a fazer antes de ires para
casa, para a Sibéria gelada. Luta bem. Ainda tens muitas caves à tua frente.
Ela não o vê, mas sente que o homem está lá, com a arma na mão; sente a
sua agitação e espera alarmada e ameaçadora ao mesmo tempo.
Ele quer partir e quer ficar ao mesmo tempo, pensa ela. Está perturbado,
porque tem de lutar, e não sabe o que fazer comigo agora. Parte, sem
dizeres adeus. A seguir, também eu me irei embora daqui. Sairemos todos
daqui, do inferno, para a rua e viveremos como pudermos.
Ela reflecte lentamente, meio adormecida; agora parece-lhe que não há
nada urgente, é um sentimento cruel e assustador. Um destes dias vou tomar
banho, da cabeça aos pés, vou até lavar o meu cabelo. Se eu tiver vermes,
vão desinfetar-me. Irei também a um médico. Se adoecer, eles vão curar-
me, entre os amigos do pai há muitos médicos. Se eu engravidar… bem,
vou dizer a Tibor. Tudo a seu tempo. Mas agora vai-te embora… Como se
ela lhe estivesse a implorar com os seus pensamentos, ela deseja com todas
as suas forças que o russo se vá embora, que se vá embora de imediato.
Ela abre os olhos. O homem, com um olhar confuso, vira-se para ela,
depois para a porta da cave.
– Tens medo? – pergunta-lhe Erzsébet em voz baixa.
O russo não responde. Aparentemente está a hesitar. E a mulher, a meia
voz, sussurra-lhe:
– Vai-te embora. – E ela estende a sua mão suja na direção dele com um
gesto frouxo.
Ela sente que cora, porque esse gesto fraco – o primeiro desse género
desde que se encontraram – é um gesto feminino, dirigido pessoalmente a
ele. O russo compreende isto. O seu rosto pálido ilumina-se, reflete uma
agitação ingénua e devota. Abre a boca, como uma criança, parece que quer
dizer algo. Com a ponta dos dedos, cautelosamente, toca na mão suja –
como se fosse um objeto ou um pássaro caído –, inclina-se, olha para ela.
Os seus dedos apertam a mão da mulher, incertos. Depois, volta a colocar a
mão no peito de Erzsébet.
Vira-se e afasta-se, não olha para atrás. No limiar da cave, agacha-se,
agarra a metralhadora com ambas as mãos, e espreita cuidadosamente para
a escuridão. Ouvem-se disparos novamente, não muito longe. O russo
coloca o boné na testa e, com os ombros para a frente e o tronco inclinado,
atravessa o limiar para desaparecer na escuridão do corredor. Erzsébet fica
ali, imóvel. A sensação de dor, náuseas, fome misturam-se no seu corpo
com um cansaço tórpido e apático que nunca tinha sentido antes. Seria bom
poder dormir, pensa. Dormir profundamente, depois levantar-se e tomar um
banho. Mas agora não posso dormir, pensa ela, porque estou livre. E mais
uma vez ela sente aquele sorriso desagradável à volta dos seus lábios, como
se formigas passassem em cima do rosto de uma pessoa adormecida. A sua
mão chega ao colo, onde encontra o saco de papel com os rebuçados que o
russo acabou de lhe dar. Agarra-o distraidamente e coloca-o no seu peito.
Fica ali deitada assim durante muito tempo.
Ouvem-se três tiros nas proximidades; a seguir volta a reinar o silêncio.
Já não se ouvem os passos. Podem chegar agora mesmo, pensa Erzsébet. E
de repente, com grande espanto: quem pode chegar até aqui? Os outros,
aqueles que tinham saído da cave? Ou os russos? Os alemães? Ou os velhos
conhecidos, as pessoas em geral? O meu pai ou Tibor? Estranho, não estou
à espera de ninguém, pensa ela calmamente.
Tudo parece estar vazio – não só a cave, mas também o prédio, a rua,
toda a sua vida –, ecoa a súbita solidão que pesa sobre Erzsébet depois da
partida do russo. Tudo o que ela compreende é que não está à espera de
ninguém. O seu pai pode ainda estar vivo, e um dia regressará às suas
estrelas. Mais cedo ou mais tarde, Tibor regressará a casa, e então retomará
as conversas sobre o futuro e a força moral para resistir… Mas Erzsébet
sabe que isso tudo já não será tão importante para ela como era há uma hora
ou alguns minutos atrás. Como se tudo – os projetos e empreendimentos
que até recentemente lhe pareciam ser os únicos objetivos da sua vida –
tivesse, de repente, perdido o sentido e o valor.
Tudo o que era importante antes, a biologia, estar à espera, a juventude.
E toda a esperança por aquilo que pudesse vir depois da libertação… No
entanto, a libertação chegou, pensa Erzsébet, e os seus dedos apertam o
saco de papel cheio de rebuçados. A libertação chegou, a guerra acabou.
Pelo menos a minha guerra acabou. E agora? Como é que vou lidar com
aquilo que vai acontecer?
Continua a dar atenção. O seu corpo está cheio de uma tal curiosidade
que deve bem haver alguém no mundo que possa responder à sua pergunta.
Mas, ao mesmo tempo, ela sabe que esse alguém não existe em lado
nenhum. O que é que as mulheres fazem quando algo assim lhes acontece?,
pergunta a si própria. Algumas suicidam-se, outras casam-se ou vão a um
médico… Foi o que aconteceu, pensa calmamente. E depois: como foi?
Terrível? Não, não foi terrível, pensa ela. Doloroso? Sim, foi doloroso. Mas
é uma dor familiar, a dor de uma mulher… Desagradável, mas não assim
tão desagradável. Foi repugnante? Talvez o que tenha sido realmente
nojento foi o facto de eu estar tão suja. Foi agradável? Não, não senti nada,
apenas dor e náuseas. Então… o que aconteceu afinal?, pergunta-se num
sussurro, e só agora percebe que já há algum tempo que fala sozinha a
meia-voz.
Agora que está a ouvir a sua própria voz, lembra-se que não está
sozinha. O paralítico está ali deitado num canto. Fica corada na escuridão.
Levanta-se abruptamente, ajusta o vestido e o cabelo. O seu rosto está a
arder. O que é isto? Vergonha, pudor? Sente uma tremenda raiva a arder em
todo o corpo, como se o paralítico, aquele homem silencioso, fosse o
culpado de tudo isto. Ela não se ressente do russo, nem sequer se ressente…
Porque deveria ela estar zangada… Mas ele, aquele homem, porque é que
permaneceu em silêncio? Se ele tivesse tossido, ou se tivesse feito um
esforço para se levantar e aproximar-se pelo menos um pouco mais, se o
siberiano tivesse visto que eles não estavam sozinhos… Mas não, aquele
cobarde, aquele desgraçado, aquele homem tão cauteloso e espertinho tinha
permanecido em silêncio.
Desgraçado, pensou Erzsébet corada, com a raiva a crescer dentro dela.
Ele é um cobarde, um calculista, viu tudo, ouviu tudo, e não interveio,
apenas ficou no canto. Aproxima-se da luz do candeeiro, levanta-o, começa
a dirigir-se energicamente em direção ao canto da cave onde o homem se
encontra; o violento raio de luz ilumina o leito do paralítico. Mas depois,
ela para: as suas mãos tornam-se pesadas, coloca lentamente o candeeiro no
chão. O homem está sentado com o tronco inclinado para a frente. Mantém
a cabeça baixa, o rosto escondido nas mãos, como se estivesse a rezar ou a
meditar. Senta-se assim, com as mãos coladas ao rosto, na pose de quem
está a refletir ou a orar. Não olha para cima, permanece imóvel, como se
não pudesse, ou não quisesse olhar nos olhos de Erzsébet, como alguém que
se envergonha de algo e tenta mantê-lo escondido… Erzsébet compreende
agora que o homem não tem vergonha do que aconteceu, nem sequer da sua
própria mesquinhez e impotência, mas sim de outra coisa, envergonhado de
outra coisa…
De repente, ela compreende, e como antes – quando o russo a agarrara
com ambas as mãos e um tremor frio atravessara todo o seu corpo, através
de todos os seus nervos – o seu queixo começa a tremer do frio. Ele tem
vergonha de alguma coisa, é por isso que esconde o rosto, pensa ela. Tem
vergonha de ser homem.
Agora que ela formulou este pensamento, o seu corpo deixa de tremer.
Aproxima-se do homem e, com um gesto reconfortante, afasta as mãos
brancas, ossudas e tendinosas do rosto dele, que agora levanta os olhos
brilhantes e a observa carinhosamente. Olham um para o outro durante
muito tempo.
– Acho que posso ir-me embora – diz Erzsébet.
O homem acena sim com a cabeça.
– Se quiser, já se pode ir embora.
Erzsébet revista o saco que trouxe consigo para o abrigo, tira um lenço,
deita-lhe algumas gotas de água de Colónia, limpa os vestígios de vómito
da cara. O homem com os braços cruzados observa imóvel enquanto a
mulher limpa o rosto, a boca, penteia o seu cabelo desgrenhado.
– Não precisa de nada? – pergunta Erzsébet, com o pente na mão, por
cima do ombro.
– Obrigado, eu não preciso de nada – responde o homem. – Eles virão
buscar-me dentro de algum tempo.
E aponta para a porta da cave:
– Aqui estão eles, chegaram.
O responsável pelo prédio entra com dois russos, e Erzsébet, com a
bagagem na mão, caminha tranquilamente em direção à saída e passa entre
eles. A confiança com que ela anda, a indiferença que mostra ao não os
dignificar com um olhar, obriga os russos a afastarem-se enquanto ela
passa: é como se ela marchasse no meio de uma guarda de honra, é assim
que ela atravessa a porta da cave. Estes russos são diferentes, mais baixos,
os seus rostos não estão barbeados, pensa Erzsébet enquanto passa entre
eles. E já ouve as suas vozes atrás dela, excitados, o líder a explicar e a
apontar, os russos a falar apressadamente, interessando-se por isto e por
aquilo.
Mas Erzsébet já se encontra agora no corredor, dirigindo-se para as
escadas. Por duas vezes tropeça em corpos humanos, passa por cima deles.
Um deles talvez seja o dentista judeu, pensa ela. Mas ela não se vira para
ver. Pisa outros corpos, com passos rápidos e ágeis. Sombras rápidas
movem-se à sua volta de todos os lados: russos em batas brancas, e, entre os
habitantes abrigados no prédio adjacente, algumas figuras familiares. Ela
distingue o chefe dos correios, que caminha rapidamente ao lado de um
russo de fato-macaco branco, e com uma voz rouca e sufocada grita
entusiasmado:
– Tovarišc´[13], por aqui, venham, sigam-me, tovarišc´!…
As criaturas do formigueiro subterrâneo começaram a movimentar-se, a
agitarem-se freneticamente. Mas ninguém cria obstáculos no caminho de
Erzsébet. Passa por cima dos mortos, e chega ao corredor. Aqui ela vê
novamente os carvoeiros; eles estão sentados num degrau, estão a brindar
com dois russos, seguram alegremente a garrafa de aguardente e oferecem
bebida aos convidados.
O portão está aberto, um brilho cinzento-pálido ilumina a rua. Já é
madrugada, pensa Erzsébet. Caminha energicamente, como se se dirigisse
para um destino específico e alegre. Mas o seu coração está vazio. Ela não
vê nenhum destino.
O que ela vê é a estrada devastada pelas feridas do cerco, coberta de
vidro estilhaçado e escombros, na gelada luz do amanhecer de janeiro que a
cobre com uma espécie de lençol imundo. Junto ao prédio, há um tanque
virado de lado; alguns passos mais à frente, perto da casa do sabatista, está
um carro a arder, envolto na dança nervosa das chamas vermelhas e
esverdeadas. Na esquina da rua, ainda se ouvem tiros de canhões e podem
ouvir-se metralhadoras a crepitar. Eles avançaram, pensa Erzsébet como
especialista em assuntos militares, estão agora a três edifícios de distância.
Ao meio-dia, esta rua estará livre.
E eu?, pensa ela e para. Fica ali, diretamente no meio da rua deserta, a
seus pés alguns invólucros de balas, a carniça de um cavalo rasgada em
pedaços e escavada por facas, um cadáver, tijolos e cacos de vidro. E eu,
serei livre ao meio-dia, serei alguma vez livre?
É como se nada mais lhe interessasse; faz uma pausa, olha à sua volta
perturbada, perplexa. A paisagem familiar da cidade está envolta em
chamas e fumo.
Quando serei livre?, pensa Erzsébet, e já não consegue continuar a andar.
O que será a liberdade? Olha para o nevoeiro, para o fumo e para o fogo.
Depois olha para o cadáver a seus pés, o que a impede de continuar. Na
luz cinzenta da manhã tingida de vermelho pelas chamas, ela reconhece o
russo. Deitado de costas, com a mão direita no peito num gesto de defesa,
como dormem as crianças quando o sono é profundo. A sua mão esquerda
está afastada do corpo, a metralhadora ainda está lá ao seu alcance. E o
boné com a estrela vermelha soviética, forrado com pelo de cordeiro,
também está perto na neve. O russo está esticado a direito, como se tivesse
sido deliberadamente colocado dessa forma. O seu rosto está coberto de
sangue. Erzsébet inclina-se sobre ele, ajoelha-se ao seu lado, a sua mão nua
toca-lhe no rosto. O jovem corpo ainda está quente. Um golpe na testa,
acima do olho direito, pensa Erzsébet. Pega no lenço embebido em água de
Colónia, e cuidadosa e meticulosamente começa a limpar as manchas de
sangue à volta dos olhos do homem morto.
Está a nevar, mas em flocos muito esparsos. Erzsébet limpa o rosto do
russo, e pensa que na Sibéria podem nem sequer reparar numa queda de
neve tão leve. É um tipo diferente de frio por lá, zima, pensa ela. E, de
repente, sente-se invadida por uma grande calma. É isso, então, pensa ela. E
como se tudo se encaixasse numa ordem – a guerra e tudo o que aconteceu,
este homem morto, e ela, Erzsébet, que agora está livre, mas não sabe o que
fazer com esta liberdade, e como ela, os outros, nem mesmo o paralítico, lá
em baixo na cave sabe o que fazer com a liberdade, porque ele é um ser
humano! –, como se esta situação, esta rua ardente, e no meio da rua este
homem morto, que lhe é tão estranhamente familiar e ao mesmo tempo
mais estrangeiro do que qualquer outro na vida de Erzsébet, como se tudo
estivesse em ordem, levanta-se, e com gestos lentos começa a torcer
lentamente o lenço ensanguentado.
As gotas de sangue caem sobre a neve. O fogo de morteiro na esquina da
rua cessou. Aparentemente, o bloco rendeu-se, pensa Erzsébet de forma
distraída. Agora só se ouve o crepitar das traves das casas em chamas.
Ela permanece assim durante muito tempo, a observar a luz cinzenta do
amanhecer, agarrando o seu lenço ensopado em sangue na mão.
A rua está deserta, a guerra afastou-se ainda mais. Um soldado russo a
cavalo aparece na esquina da rua. Cavalga lentamente sobre o pavimento
coberto de estilhaços de vidro. No brilho cinzento, no meio dos escombros
da rua em Peste, o soldado da guarda a cavalo tropeça indiferentemente,
como se não estivesse numa terra estrangeira, mas no seu próprio país,
algures ao longo do rio, numa caçada matinal. O cavalo e o cavaleiro
passam por Erzsébet. O soldado da guarda é jovem, as suas maçãs do rosto
são largas, tem típicos olhos asiáticos. Cacos de vidro crepitam debaixo dos
cascos do cavalo. O russo segura a metralhadora com uma atitude relaxada,
os seus olhos em forma de amêndoa viram-se para o fundo da estrada, e
depois – com o olhar indiferente e frio que só pode ser de alguém que veio
de longe, não só no espaço, mas também no tempo e na vida – baixa os
olhos para Erzsébet e para o homem morto.
Ele não diz nada, nem sequer acena com a cabeça, um momento depois
já virou a cabeça e volta a olhar para a distância. Quando o soldado a cavalo
desaparece no nevoeiro, Erzsébet começa a sentir frio.
– Aparentemente, estou livre – diz em voz alta.
Mas ninguém responde. Fica parada por algum tempo, sem saber o que
fazer.
Está com muito frio. Anda à volta do cadáver do russo, e com passos
incertos dirige-se para o prédio do lado oposto.
Leányfalu, julho-setembro de 1945

[8] «Senhora honrada» expressa sinal de respeito por uma pessoa de uma classe superior.
(N. da T.)

[9] «Alemães?» (N. da T.)

[10] «Percebo». (N. da T.)

[11] «Inverno». (N. da T.)

[12] «Sim, sim. Açúcar.» (N. da T.)

[13] «Camaradas». (N. da T.)


Contents
1. Ficha Técnica
2. 1
3. 2
4. 3

Landmarks
1. Cover
2. Title-Page
3. Table of Contents

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