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de pele de arlequim
Eduardo Guimaraens
1925
Poucos afeavam de tão mau gosto a Cidade no desalinho das casas mal
construídas, a mostrar pelos beiços abertos do combalido reboco as avermelhadas
guelas dos tijolos, como aquele prédio assombrado de três janelas, por cima de um
armazém de secos e molhados, e que punha, às horas de sol, nas lájeas do passeio,
a sinuosa sombra das suas telhas velhas.
Era ali, entretanto, naquela informe e mal equilibrada ruinaria, que se tramava a
demolição do mundo antigo e a reforma completa da sociedade atual. Instalara-se
naquele casarão dos tempos coloniais, sob o patrocínio de três ou quatro
“camaradas” de outras terras — um russo, um espanhol, um italiano e outro que
fazia questão de não ter nacionalidade alguma, — uma escola racional, que recebeu
o nome de Eliseu Reclus.
Ocupávamos, é claro, a mais escura das calas do edifício, por ser a mais barata. No
resto, semeado de largos corredores e estreitíssimos cubículos, havia vendedores de
bilhetes lotéricos, pintores de liso, eletricistas para instalações econômicas,
mascates, agiotas. Havia de tudo.
O recinto, onde se encontravam a aulas da Eliseu Reclus, era bastante vasto para
acomodar seus toscos bancos de pau, alongados de forma, e outras tantas mesas
escolares onde se inorustavam redondos tinteiros, tudo em fila disposto, o que
somava um total, em noites de maior frequência, de 18 a 20 alunos. Tal quantidade
de aspirantes à Anarquia numa cidade que ainda não contava com cem mil
habitantes, era, sem dúvida possível, notável percentagem…
De um lado e outro da porta, colocadas na parede externa, afim de que fossem logo
vistas ao entrar, emolduravam-se duas estampas que tinham a firma,
imediatamente reconhecível, de Ad. Willette. Duas gravuras simbólicas e terríveis!
Era a outra gravura, um trecho da famosa ponte Alexandre III, de Paris, com a sua
ornamental arquitetura, figuras de mármore, florões etc. Nessa ponte, sobressaindo
contra a balaustrada um casal de miseráveis proletários, um par de infelizes
carregado de filhos, todos de esfomeada cara; e ela, a desventurosa, ainda
santamente apertando aos seios secos, murchos, acabados, um bebê que dava,
acreditem-me, desconsoladora pena! E o desgraçado gaulês, que talvez se
considerasse também um “cidadão do mundo”, deixava cair, esquálidos, os braços
desanimado, e tinha (conforme, embaixo, estava escrito) esta espantosa frase:
Dos “camaradas” mais chegados, entre os que, sem serem operários que não da
obra de reconstrução humana, defendiam com entusiasmo, a causa das
reivindicações sociais, contávamos com o doutor Kelly, médico de origem austríaca,
temperamento de excessão. Dedicara-se às moléstias que perseguem as camadas
paupérrimas, vítimas das aglomerações e da promiscuidade. Defendera, ao
formar-se, uma tese violenta, nesse sentido. Era anarquista sendo sociólogo, e
intelectual sendo homem culto.
Estávamos num bar, uma noite, diante de vários whiskys e outros estupeficantes. O
doutor Kelly, dosado de alguns copos, começou, já não me lembra a que propósito, a
narração de uma das suas aventuras:
-- Estive, há cinco anos, como vocês bem sabem, algum tempo no Mato Grosso.
Nomearam-me para fazer parte de uma missão científica, que para lá fora estudar já
não sei quantas espécies de enfermidades microbianas então em foco. Para o bom
resultado das pesquisas, fui eu o encarregado, num improvisado laboratório, de
preparar a catalogar as culturas de bactérias típicas. Lá, sem bem o querer, acabei
arranjando uma gentil companheira de exílio, pronta sempre a distrair-me as
intermináveis insônias da tenda nostálgica. Essa cabocla, vejam vocês como o Diabo
as arma, acabou por querer-me. Verdadeira paixão, que, devo ser franco, a princípio
me aborreceu deveras, mas que por fim veio a comover-me. Duraram os trabalhos
três meses.
Neste circunstância da sua história. Kelly classificou essa pobre heroína com o mais
grosseiro dos epítetos:
-- !... É o que ela era! Mas, eu, vocês imaginam bem, enfureci-me. Perdi a cabeça…
Se estivesse ainda lá, batia-lhe.
Sabiamo-lo capaz disso. Já uma vez nos tinha eitado o conselho do autor de “Ecce
Homo”: “Quando tiveres de falar a uma mulher, não esqueças o chicote”.
-- Passei dez noites sem pregar olho. Mas, certa madrugada, lembrei-me de que
havia trazido comigo algumas culturas de bactérias infecciosas. Levantei-me, passei
o dia a prepará-las. Escrevi-lhe, no outro dia, uma carta apaixonada, em que não me
conformava com o seu ato, nem tão pouco me resignava a perdê-la. Depois de
secá-lo, embebi o papel de cartas numa das piores e mais fulminantez culturas.
-- Ah, e depois?...
Ele, friamente:
-- Não tive mais notícias. Julgo que essa mortífera infecção a levou.
O filho, era enérgico e não sabia o que fossem preconceitos. À hora do almoço,
queixou-se-lhe um dia a cara-metade. Sentia-se Mme. Bersange Fils muito
ofendida com os ditos e olhos inconvenientes que costumava dirigir-lhe, sempre que
a cruzava só na rua, um rapaz rico, elegante, genro de conhecido milionário e
frequentador da “alta”.
Dois dias após, à sombra de uma fileira de plátanos, na praça principal da Cidade,
Mme. Bersange Fils, gentilmente acometida pelo Doutor F. J., descalçou a fina luva
da sua não menos fina destra e, com essa veementíssima mudez, vibrou-lhe nas
glabras e cínicas faces quatro sonoras bofetadas. O escândalo foi calorosamente
aplaudido pelo público. Marcel Bersange, ao contar-lhe em casa a esposa o
incidente humorístico, soltou uma boa risada e teve apenas este lacônico e sensato
comentário:
Irônico, tal como se risse ainda de ter assistido a uma imprevista catástrofe de
ilusões, o eco do “bis” parecia ??cernir:
… L’Internationale,
Sera la genre humain…
(Pele de Arlequin)
EDUARDO GUIMARAENS