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A FELICIDADE
NO CRIME
Barbey D'Aurevilly, retratado por E. Levy (1881).
Barbey D'Aurevilly
A FELICIDADE
NO CRIME
tradução e apresentação
ANÍBAL FERNANDES
ISBN 978-972-37�1545-3
EDIÇÃO 1435, DEZEMBRO 2010
Nascer num país católico em 2 de Novembro é, por
fatalidade de calendário, nascer num Dia de Finados; e,
na vida de Barbey d'Aurevilly (bastante longa porque de
oitenta e um anos no século XIX), entendido como mau
pressdgio: Vim ao mundo num dia de Inverno escuro
e gelado; o dia dos suspiros e das lágrimas que os mor
tos, dando-lhe o nome, marcaram com uma profecia
de pó. Sim, acreditei sempre que esse dia espalhou
uma influência funesta sobre a minha vida e o meu
pensamento.
Acrescente-se ao dia- às simbologias do dia- um
parto caseiro de 1808feito por mãos indbeis e num remoto
Saint-Sauveur-le- Vicomte, a poucos passos do Canal da
Mancha; onde o mal atado nó umbilical esvaiu o recém
-nascido até hesitações que pareciam de vida e de morte.
De todo este sangue sobreviveu a criança; desde muito
cedo diferente porque, na idade dos brinquedos e dessa
agitação que é da infância, jd sonhadora de longas horas à
frente daspaisagens normandas e de um mar definisterra,
porque atenta aos contos que lhe mostravam fadas e gigan
tes- o que era natural- mas a exibir uma precoce luci-
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dez que a fazia encantar-se pelas conversas que só eram
«dos crescidos». Este Jules Amedée, primogénito numa série
de quatro e toda masculina, foi hostilizado pelas suas in
vulgaridades. Contrariava a mãe com esta atitude assim,
tão pouco infantilperante a vida, com afalta de graça que
se espera de um menino - único, naqueles dias, na grande
casa dos Barbey; e, pior ainda, a. mãe traída pe/,a negação
de beleza física num ser criado nas suas entranhas de mu
lher retocada pelas vaidades e pelos luxos possíveis naquele
fim de França. «És feio!», dizia-lhe a expandir a sua de
cepção; ou ainda a terceiros e com ele a ouvi-/,a: «Jd viram
criança maisfeia?»
Acusar de fealdade uma criança é construir sobre o
seu frdgil suporte de mundo um destino de solidão interior.
E talvez daqui a suspeita de esta desastrada mãe ter deter
minado traços marcantes no cardcter do Jules Amedée Bar
bey (trinta anos mais tarde Barbey d'Aurevilly, quando
lhe pareceu que uma sonoridade aristocrdtica não estaria
mal no seu nome das letras, e se apropriou do que mais gos
tava na assinatura de um seu tio-avôjd falecido). Dir-se-d
que esta fealdade de rosto e de presença constantemente
sentida, mesmo nos momentos em que ele não se olhava ao
espelho, procurou compensações numa arrogância de
classe, na inteligência exibicionista, num e/,aborado acto de
aparência. D'Aurevilly fez-se mondrquico ostensivo por
que aqueles tempos de República humilhavam osprestígi,os
normandos dos Barbey; contrariou a intelectualidade /,aica
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da sua época com um catolicismo autoritdrio, sonhado
com terrores góticos do Além, cruzadas de estandarte er
guido e tudo o que lhe chegava soprado na leitura de velhas
crónicas sangrentas. Teve coragens, como essa de um indi
vidualismo ao contrdrio dos· ventos socializantes (Bem
procuro a verd<\_de nas massas mas não a encontro, só a
encontro nos indivíduos), como a do seu brandido de
sencanto no país que tinha como lema a .fraternidade e a
iguaúlade sonhadas pe/,a Revolução (O homem só pode
levar a bom termo a sua vida numa sociedade estrita
mente ordenada, como existiu na Idade Média).
O seu acto de aparência, esse, foi todo copiado do
dandismo; talvez grotesco, mas supostamente inspirado
pelo melhor de George BrummelL· Para as pessoas do meu
género, a forma nunca é uma coisa fútil, e a preocupa
ção do trajo é a preocupação de uma frase bem feita, e
mesmo mais do que isso. Mais do que uma .frase bem
feita, foi preocupação de acrescentar um ícone de biza,rras
elegâncias ao conjunto de atitudes religiosas, políticas e
literdrias que ele pôs a circu/,ar em contracorrente, e com
evidente vontade de controvérsia, nos meios intelectuais de
Paris. Os Irmãos Goncourt viram-no num jantar de Maio
de 1885, tinha ele setenta e seis anos de idade, e deixaram
este sarcasmo no seu Journal: « Traz vestida uma sobreca
saca com abasfolgadas que lhefazem ancas, como se usasse
uma crinolina, traz umas calças de lã branca queparecem
cerou/,as de baetilha com presilhas. Por baixo desta roupa
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ridícula e pederdstica, um senhor de excelentes maneiras
com palavra doce de homem habituado a falar às mulhe
res, e com falta de dentes que lhe dd uma entoação gutu
ralparecida, embora em tom menor, com a do Frédérick
Lemaitre. » Neste final de vida assombrado por grandes
dificuldades materiais, o seu dandy a todo o custo era pa
tética paródia de um ídolo de muitos anos, o Lord Byron
considerado pela elegância formoso, apesar do seu metro e
cinquenta e dois de altura e do pé deformado. (Sou um
Lord Byron, se não de génio pelo menos de instinto, e
sem fortuna nesta sociedade de mortos-de-fome e de
igualitários.)
D'Aurevilly vivia em Paris desde 1833, em ruptura
com os preconceitos provincianos de Saint-Sauveur-le
- Vicomte e com a sua família jansenista. Uma herança
entregue à sua discrição desde a morte de Lefevbre de
Montrenel seu padrinho, oferecia-lhe aos vinte e cinco
anos de idade todas as seduções de Montparnasse. Ojovem
normando entregou-se de bolsos cheios aosprazeres caros da
Cidade e aos elevadospreços dos costureiros de Paris. Tinha
cabeleireiro didrio e ao domicílio, bengalas que saíam de
um gosto aristocrdtico de outras idades, luvas de uma sin
gularidade diftcil de localizar nas ofertas do mercado.
E o dinheiro do padrinho Montrenel não durou
muito. D'Aurevilly teve de sujeitar-se a umjornalismo di
fícil· diftcilporque malpago, diftcilporque um jovem na
casa dos vintehostilizava com impertinência e a persistên-
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'
eia do seu verbo alto alguns dos maiores prestígi,os da lite
ratura nacional O jovem Barbey d'Aurevilly incensava,
por exemplo, Balzac, Stendhal Baudelaire e Léon Bloy;
mas incomodava Victor Hugo argumentando longamente
· que Les Misérables, no auge da sua popularidade, como
literatura não chegava aos calcanhares de Les Mysteres de
Paris de Eugene Sue; ou Flaubert chamando-lhe «assus
tadora secura». Depois de ser insistentemente atacado,
Sainte-Beuve escreveu que o seujovem detractor era apenas
«Um sapo que gostaria de ser víbora»; e, do cimo da sua
glória, É mile Zola respondeu às suas invectivas chamando
-lhe «um católico histérico».
Eram ondas impertinentes, provocadas por um jovem
sem nome firmado no jornalismo; era uma coragem que
ateava, de cabeça perdida, braseiros incómodos a grandesfi
guras da cena literdriaftancesa. Ojovem d'Aurevilly teve a
decepção de ver algumasportasfecharem-se àsprosas do seu
jornalismo crítico. Hd, numa carta do director da Revue
des Deux Mondes, a explicação da sua recusa em tê-lo nas
suas colunas: «Tem o talento de um enraivecido, e não quero
que venha pegar-me fogo à loja!» E desta mesma crise se
conhece o que ele próprio pensou de si e da sua França: Na
França, a originalidade fica sem pátria: proíbem-lhe o
fogo e a água; odeiam-na tanto como a um distintivo
nobiliário. A França levanta as pessoas medíocres e sem
pre prontas a dar, contra os que não são como elas, mor
deduras de gengivas que não rasgam mas sujam.
II
Só em 1851, ou seja, aos quarenta e três anos de idade,
Barbey d'Aurevilly se estreou como escritor de romances,
dando a conhecer excepcionais dotes de narrador não pre
visíveis na sua anterior obra de jornalista. Véio mais tarde
a perceber-se que a consciência deste talentofaria, nas suas .
ficções, a narração suplantar a história, o discurso ter as-
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brilhante e a violência das suas alucinações. Em 1874
aconteceu o pior: as seis novelas das quase quinhentas pd
gi,nas de Les Diaboliques foram retiradas do mercado por
ordem judicial e D'Aurevilly sofreu uma ameaça de pro
cesso feita por um ma_ gistrado que lhe reconhecia «O prazer
da indecência naspinturas, inexplicdvel num autor que se
proclamava católico». Hd desta mesma altura uma carta
em que o visado pergimta: O que haveria mais estúpido
do que os monárquicos, se não existissem os católicos?
Em meio século de vida parisiense teve muitos mo
mentos q ue responderam mal às necessidades do seu
guarda-roupa, aos seus hdbitos de dandy, à vontade de ser
visto sob aparências de um alto nível social Mas antes de
chegar à grave situação financeira dos seus últimos dias,
teve desalentos como este: Volto a estar na minha solidão,
com o quarto em desordem, os frascos precipitada
mente destapados no momento em que saio de casa,. e
lá ficam abertos a exalar o que já não têm dentro; roupa
em cima dos móveis, e livros e papéis espalhados! Esta
vida pesa-me. Sem lugar, sem lar, numa tenda de nó
mada que em poucas horas se desmonta e levamos con
nosco. É triste, passados vinte e cinco anos! E isto tam
bém numa carta à baronesa de Bouglon, o seu anjo
branco, a sua eterna noiva nunca desposada: O meu ta
lento é uma reacção contra a minha vida, é o sonho da
quilo que me faltou. Mais teria gostado, de facto, de ser
um brilhante coronel dos hussardos, que conduz o seu
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regimento para o fogo, do que ter escrito tudo o que es
crevi. Não é esta a opinião de muitos dos meus amigos,
mas é a minha, porque um marechal das letras nunca
me há-de valer um marechal da França.
Em 1889, um dia depois da sua morte, jean Lorrain
escreveu que o senhor D'Aurevilly se tinha mantido oitenta
anos igual a si próprio; que era «um orgulho de grande se
nhor e uma consciência de homem honesto» e, naquela
partida, a merecer «uma grande chapelada». E Léon Bloy
foi dos que fizeram justiça ao seu rasto de fogo nas letras
\ francesas: <<Àté ele aparecer, nenhum romancista excitou
·
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à reabilitação comercial de Les Diaboliques concedida ao
velho autor septagendrio que a Terceira República resolvia
homenagear; e fazia-o no mesmo ano em que era publi
cado o seu maior êxito como escritor: Uma História Sem
Nome, com um título que se negava a si próprio, nem
diabólica, nem cesleste, mas. . . sem nome, dizia a sua
epígrafe, talvez para não fazer desde logo pressentir o que
as suas capacidades de romancista, intactas, sabiam ima
ginarpara um grandioso horror da culpabilidade sexual e
dos enigmas da sua redenção.
A.E
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são no sangue e até à ponta as unhas, e porque além de
médico a sério era grande observador de muitos outros
casos, não apenas fisiológicos e patológicos . . .
Alguma vez encontrastes o doutor Torty? Era um
destes espíritos ousados e vigorosos, que não calçam
luvas pela muito boa e proverbial razão de «os gatos de
pata enluvada não caçarem ratos» e porque, sendo ma
treiro de raça fina e forte, já apanhara imensos e conti
nuava a querer apanhá-los; da espécie de homens que
me agradam muito e sobretudo pelos lados (sei bem
do que falo!) que aos outros mais desagradam. Com
efeito, o brusco e original deste doutor Torty costu
mava desagradar bastante aos que se portavam bem;
mas quando aqueles a quem mais desagradava adoe
ciam, faziam-lhe salamaleques como os selvagens à es
pingarda de Robinson que podia matá-los; não pelas
mesmas razões dos selvagens, mas sobretudo por razões
contrárias: podia salvá-los! Sem esta condição prepon
derante, nunca o doutor teria ganho vinte mil libras de
rendimento numa pequena cidade aristocrática, de
vota e presumida, que o deixaria pura e simplesmente
à porta de cocheira dos seus palácios se apenas tivesse
em conta as suas próprias opiniões e antipatias. Com
muito sangue-frio o notava, aliás, e com isto se diver
tia. «Íeriam de escolher - dizia ele, a gracejar, nos
tempos em que cumpria o contrato de trinta anos em
V. . . entre mim e a extrema-unção; e, por muito
-·
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devotos que fossem, preferiam ter-me pela frente do
que aos santos óleos.» Podeis ver que não era de meias
palavras, o doutor. Tinha uma graça ligeiramente sa
crílega. Franco discípulo de Cabanis em filosofia
médica, era como o seu velho camarada Chaussier; da
escola desses médicos terríveis, porque de um mate
rialismo absoluto; e, como Dubois - o primeiro dos
Duboisl - de uma impudência que deita tudo abaixo,
que trataria por tu duquesas e damas de honor da im
peratriz, e chamar-lhes-ia «mãezinhas», como se mais
nem menos elas fossem do que peixeiras. Para dar uma
simples ideia da impudência do doutor Torty, foi ele
quem uma noite me disse no círculo dos Ganaches,
com olhar de proprietário e abraçando sumptuosa
mente o quadrilátero cheio de brilhos de uma mesa
enfeitada com cento e vinte convivas: «Sou eu quem os
faz a todos! . . . » Mais orgulhoso Moisés não estaria ao
mostrar a vara que transformava rochedos em fontes.
Mas que outra coisa haveríeis de querer, senhora2? Não
tinha essa protuberância craniana das inteligências que
metem respeito, e até achava que tinha um buraco no
sítio onde ela existe no crânio dos outros homens. Ve-
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lho com os setenta ultrapassados mas largo, robusto e
nodoso como o seu· nome; com rosto sardónico, e de
baixo do capachinho castanho-claro, muito liso, muito
lustroso e de cabelo muito curto, com um olhar pene
trante, virgem de óculos, e quase sempre vestido com
fatos cinzentos ou desse castanho há muito tempo cha
mado famo de Moscovo, nem de trajo nem de aspecto se
parecia com esses senhores médicos de Paris, correctos e
engravatados a branco como o sudário dos seus mortos!
Era outro género de homem. Com luvas de gamo, bo
tas de sola forte e tacão grosso que fazia ressoar num
passo muito firme, havia nele qualquer coisa de homem
prevenido e cavaleiro; e a palavra exacta é cavaleiro por
que tinha mantido (quantos anos passados sobre os
trinta!) o calção charivari abotoado na coxa quando ia a
cavalo por caminhos de partir centauros ao meio - e
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de ser misantropos 1 • Isto é fatal. E, por isto mesmo, ele
era assim. Tivera tempo de se embotar com as outras
vazas da vida, enquanto obrigava o ventre cilhado do
cavalo a beber a lama dos maus caminhos. Não era
nada parecido com um misantropo à maneira de Al
ceste2. Não se indignava virtuosamente. Não se encole
rizava. Não! Tão calmamente desprezava o homem
como cheirava uma pitada de tabaco; e ao desprezá-lo
chegava mesmo a sentir tanto prazer como a cheirá-la.
Era assim, sem tirar nem pôr, este doutor Torty
com quem eu passeava.
Nesse dia o tempo era de um Outono alegre e claro,
de fazer parar as andorinhas que vão partir. O meio-dia
soava na Notre-Dame e era de tal forma puro o ar
vibrado, que o grave e grande sino parecia derramar
longos estremecimentos luminosos por cima do rio
verde e matizado nos pilares das pontes, e até por cima
das nossas cabeças! A folhagem ruiva das árvores do jar
dim tinha gradualmente enxugado o nevoeiro azul que
as afoga nessas vaporosas manhãs de Outubro, e um
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as do doutor, enquanto parámos para ver a famosa pan
tera negra que o Inverno passado morreu, e do peito
como as raparigas. Num ponto ou noutro havia à volta
o público habitual do Jardim das Plantas, esse público
especial, feito por gente do povo, soldados e criadas de
meninos, que gosta de se embasbacar à frente da grade
das jaulas e se diverte muito a atirar cascas de noz e cas
cas de castanha aos animais entorpecidos ou que dor
mem atrás das suas barras de ferro. Por certo estareis
lembrados de que essa pantera, da qual nos aproximá
mos a deambular, era da espécie só existente na ilha de
Java, o país do mundo com a mais intensa das nature
zas, ela própria parecida com uma qualquer grande ti
greza que o homem não domestica, o fascina e morde
com tudo o que o seu solo terrível e esplêndido produz.
Em Java as flores têm mais brilho e perfume, os frutos
mais gosto, os animais maior beleza e força do que em
qualquer outro país da terra, e nada consegue dar uma
ideia desta violência de vida aos que não receberam as
lancinantes e mortais sensações de uma região ao mesmo
tempo enfeitiçadora e envenenadora, ao mesmo tempo
Armida e Locustai. Espalhada com indolência sobre as
patas elegantes e esticadas à sua frente, com a cabeça
erguida, os olhos de esmeralda imóveis, o animal era
1 Armida é a que retém pelos seus encantos o Rinaldo de Jerusalém Liber
tada de Torquato Tasso. Locusta é quem prepara o veneno que Nero dá a beber
a Britânico, na tragédia de Jean Racine. (N. da T.)
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uma magnífica amostra das temíveis produções do seu
país. Nenhuma, mancha fulva lhe estrelava a pelagem de
veludo negro, de um negro tão profundo e baço que a
luz, ao deslizar nela, nenhum brilho fazia e era absorvida
como a água na esponja que a bebe . . . Quando desviá
vamos o olhar desta forma ideal de beleza flexível; de
terrível força num repouso, de impassível e majestático
desdém para com as criaturas humanas que lhe deita
vam miradas tímidas, a contemplavam com olhos arre
galados e boca aberta, à humanidade não cabia o melhor
papel, mas ao animal. E tão superior, que chegava quase
a ser humilhante! Eu comentava isto em voz muito
baixa com o doutor, quando duas pessoas cindiram o
grupo amontoado junto da pantera e foram plantar-se
mesmo à frente dela: «Sim - respondeu-me o doutor
- mas veja agora! Está restabelecido o equilíbrio entre
as espécies!»
Eram um homem e uma mulher, ambos altos, e
logo ao primeiro olhar me pareceram dos estratos ele
vados do mundo parisisense. Não eram jovens, nein
um nem outro, mas nem por isso deixavam de mostrar
uma beleza perfeita. O homem devia andar pelos qua
renta e sete anos ou mais, e a mulher devia ter ultrapas
sado os quarenta. . . Tinham transposto a linha, como
dizem os marinheiros que regressam da Terra do Fogo,
a linha fatal, mais formidável que a do Equador porque
não voltamos, uma vez transposta, a cruzar os mares da
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vida! Mas esse facto parecia preocupá-los pouco. Nem
na cara nem noutra parte tinham melancolia . . . O ho
mem, esguio e patrício na sobrecasaca preta tão bem
abotoada como a de um oficial de cavalaria, parecia ter
vestido um dos trajos que Tiziano dá aos retratos e,
com essa elegância severa, o ar efeminado e altivo, os bi
godes agudos de um gato, com pontas que começavam
a esbranquiçar, parecia um favorito do tempo de Hen
rique III; e para mais completa parecença usava um ca
belo curto que deixava bem visíveis nas orelhas duas sa
firas de um azul escuro, que me fizeram lembrar as duas
esmeraldas usadas por Sbogan exactamente no mesmo
sítio 1 . Exceptuado este pormenor ridículo (como a
• •
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riÔsa altivez e pela força lembrava a grande Ísis negra do
Museu Egípcio. Coisa estranha! Se nos aproximásse
mos deste belo casal, eram da mulher os músculos e do
homem os nervos . . . Nessa altura eu só a via de perfil;
mas o perfil é o escolho da beleza ou a sua mais bri
lhante certificação. Julgo que nunca tinha visto outro
mais puro e mais altivo. Quanto aos olhos eu não podia
julgá-los porque os tinha fixos na pantera que estava a
receber, sem dúvida, uma impressão magnética, desa
gradável; e já imóvel, conforme ia sendo olhada pela
mulher que tinha ido vê-la, parecia mergulhar cada vez
mais nessa imobilidade rígida; e - como os gatos, se
uma luz os encandeia - sem mexer a cabeça um milí
metro, sem a fina extremidade dos bigodes estremecer;
mas depois de piscar algum tempo os olhos, e como se
não conseguisse aguentar mais, a pantera recolheu sob a
corrediça das pálpebras, lentamente, as duas estrelas
verdes do seu olhar. Emparedara-se.
- Eh! Eh! Pantera contra pantera! - disse-me ao
ouvido o doutor. - Mas o cetim é mais forte do que o
veludo.
O cetim era a mulher com um vestido desse tecido
luzente - um vestido de cauda a arrastar. E tinha visto
com acerto, o doutor! Preta, flexível, com articulações
igualmente fortes e real atitude também - na sua es
pécie com uma beleza equiparável, e uma sedução
ainda mais inquietante - a mulher, a desconhecida,
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estava erguida à frente da pantera animal como uma
pantera humana, e a eclipsá-la; e a fera, sem dúvida,
acabara de senti-lo no momento em que fechou os
olhos. Mas à mulher - admitindo que era uma - não
bastou este triunfo. Faltou-lhe generosidade. Quis que
a rival a visse humilhá-la e para isso voltasse a abrir os
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cador em forma de gancho por toda a extensão do nariz
de papagaio (um dos seus gestos) - vamos lá ver, não
acha essa patusca com mais ar de uma lady Macbeth do
que de uma Baucis? . . .
- Doutor, meu caro e adorável doutor - conti
nuei eu com toda a espécie de blandícias na voz - não
vai dizer-me tudo o que sabe sobre o conde e a condessa
de Savigny? . . .
- O médico é o confessor dos tempos modernos
- respondeu num tom solenemente trocista. - Subs-
tituiu o padre, senhor, e está obrigado como o padre ao
segredo da confissão . . .
Olhou para mim com ar malicioso, por saber do
amor e do respeito que tenho pelas coisas do catoli
cismo, do qual era inimigo. Piscou um olho. Julgou-me
vencido.
- E vai guardá-lo . . . como o padre! - acrescen
tou numa explosão, a rir-se com o mais cínico dos seus
risos. - Venha por aqui. Vamos conversar.
Levou-me para a grande álea de árvores, que da
quele lado flanqueia o Jardim das Plantas e o bulevar
De l'Hôpital . . . Sentámo-nos num banco de costas ver
des, e começou:
- A história, meu caro, já tem de ser apanhada
longe como uma bala perdida debaixo de carnes que
voltaram a unir-se; porque o esquecimento é como
uma carne de coisas vivas que se refaz por cima dos fac-
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tos e nos impede de lá ver qualquer coisa, e ao fim de
certo tempo conjecturar seja o que for, mesmo o lugar.
Foi nos primeiros anos que seguiram à Restauraçãq.
Um regimento da Guarda passou na cidade de V . . ; e .
obrigado a ficar lá dois dias, não sei por que razão mili
tar, os oficiais desse regimento lembraram-se de organi
zar um combate de armas em honra da cidade. De
facto, a cidade tinha tudo o que precisava para esses
oficiais da Guarda a honrarem e festejarem. Era, como
nesses tempos se dizia . . . mais partidária da realeza do
que o próprio rei. Mantidas as devidas proporções, le
vando em conta a sua dimensão (não passava de uma
cidade com cerca de cinco a seis mil almas) efervescia
de nobreza. Mais de trinta jovens das suas melhores fa
mílias serviam então o Corpo da Guarda ou do Bispo,
e quase todos eram conhecidos dos oficiais do regi
mento de passagem em V . . . Mas o que decidiu a festa
marcial de um combate foi principalmente a reputação
de uma cidade a que chamavam a esgrimista, e naquela
altura ainda a mais esgrimista da França. De que valeu
a Revolução de 1789 tirar aos nobres o direito de usar
espada? Ficou provado em V . . . que era possível eles já
rião a usarem continuando a servir-se dela. O combate
organizado pelos oficiais foi muito brilhante. Viu-se
que lá compareciam todas as lâminas fortes da região e
mesmo todos os amadores, os mais jovens de uma gera
ção que não cultivara, como anteriormente se cultivava,
31
a tão complicada e difícil arte da esgrima; e tanto entu
siasmo revelaram todos por este manejo da espada, glória
dos nossos pais, que um velho preboste do regimento,
com o seu tempo três ou quatro vezes ultrapassado e o
braço coberto de galões, imaginou que abrindo uma sala
de armas em V . . . estaria em bom lugar para acabar os
seus dias; e o coronel, a quem comunicou e que aprovou
a sua intenção, concedeu-lhe a licença e lá o deixou ficar.
Este preboste, que tinha Stassin como nome de família e
O Estocada como alcunha, fora pura e simplesmente
tocado por uma ideia de génio. Não havia há muito
tempo em V . . uma sala de armas mantida a preceito;
.
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tera aos palmos todos os outros prebostes e ganhara um
prémio de dois floretes e duas máscaras armadas em
prata - estava justamente entre esses esgrimistas que as
escolas não conseguem produzir se a natureza lhes não
tiver preparado excepcionais constituições. Foi, como é
natural, a admiração de V . . . , e pouco depois foi mais
do que isso. Nada igualiza tanto como a espada. No
tempo da antiga monarquia, os reis conferiam nobreza
aos homens que os ensinavam a agarrar nela. Se bem
me recordo, foi Luís XV quem deu a Danet, o seu pro
fessor que nos deixou um livro sobre esgrima, quatro
das suas flores de lis entre duas espadas cruzadas, para
ele pôr no seu brasão de armas! . . . Estes fidalgos da pro
víncia, que ainda sentiam todo o cheiro da sua monar
quia no nariz, passado pouco tempo estavam a acama
radar, tu cá tu lá, com o velho preboste como se fosse
um dos seus.
«Até aqui tudo bem; só havia que felicitar o Stassin,
a quem chamavam O Estocada, pela boa fortuna; mas,
infelizmente, quando este velho preboste dava as ma
gistrais lições não tinha apenas o coração de marroquim
vermelho no plastrão de pele branca acolchoado que
lhe tapava o peito . . . Dava-se o caso de ter por baixo
outro, e este começar a fazer das suas naquela cidade de
V . . onde ele viera procurar o porto de abrigo.e salva
.
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a pólvora arde melhor. De uma forma geral, as mulhe
res de V . . são muito bonitas e em todo o lado havia a
.
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Saiu dali aquela tempestade! No fundo, todos os berços
são doacas que nos obrigam várias vezes por dia a mu
dar-lhes a roupa; o que só é poético para quem acredita
na poesia, quando a criança já lá não está.
E, neste ponto do relato, para dar peso ao axioma
o doutor bateu na coxa com uma das luvas de gamo
que mantinha agarrada pelo dedo médio; e o gamo es
talou na coxa de forma a provar, a quem compreen
desse música, que o homenzinho ainda tinha músculos.
Aguardou. Mas eu não estava disposto a contrariá
-lo na sua filosofia. E, porque eu nada disse, continuou:
- Aliás, O Estocada deve ter delirado com o seu,
como todos esses velhos soldados que até dos filhos
alheios gostam. No facto não há nada de espantoso.
Quando o homem a ir para a idade tem um filho, gosta
mais dele do que um jovem pai; porque a vaidade, que
duplica tudo, também duplica o sentimento paternal.
Todos os velhos gaiteiros, que na minha vida vi terem
um filho, adoravam a progenitura e mostravam um or
gulho cómico, como se ele fosse um acto espectacular.
Uma persuasão de juventude que a natureza lhes co
lava, a troçar deles, no coração! Só conheço uma felici
dade mais embriagadora e um orgulho mais estranho:
os do velhote que faz dois filhos com um só tiro, em vez
de um! O Estocada não teve este orgulho paternal dos
dois gémeos; mas, dizendo-se a verdade, teve com que
moldar dois filhos no seu. A menina - acabou de vê-la
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e sabe, portanto, se cumpriu as promessas! - era uma
criança maravilhosa na força e na beleza. O velho pre
boste teve como primeiro cuidado arranjar-lhe um pa
drinho entre os nobres que frequentavam com assidui
dade de pedra e cal a sala de armas; e entre eles escolheu
o conde D'Avice, o decano de todos aqueles batedores
de ferro e solo; ele próprio preboste em Londres du
rante a emi gração, a vários guinéus a aula. O conde
D'Avice de Sortôville-en-Beaumont, já antes da Revo
lução cavaleiro de Saint-Louis e capitão de dragões - e
naquele momento septagenário, se não mais do que
isso - ainda tocava os jovens a. florete e dava-lhes o que
em linguagem de sala se chama «magníficos capotes».
Era um velho finório, com ferozes zombarias quando
actuava. Gostava, por exemplo, de passar o estoque pela
chama de uma vela, e depois de ter endurecido deste
modo a lâmina, chamar o duro florete - que não se
vergava e nos partia o esterno ou as costelas com um to
que - pelo nome insolente de «arruma medricas». O
conde tinha O Estocada em alta estima e tratava-o por
tu. «A filha de um homem como tu - dizia - deve
chamar-se como a espada de um bravo. Chamemos-lhe
Hautedaire!» E este nome lhe pôs. O padre de V .-. .
37
elas. Como os seus pais e os seus irmãos à frente delas
falavam com espanto e admiração da Hauteclaire, te
riam gostado de ver de perto esse São Jorge-fêmea cuja
beleza, ouviam dizer, ia de par com o talento na es
grima. Só a viam de longe e mal. Foi nessa altura que eu
cheguei a V . e testemunhei com frequência estas ar
. .
39
desta época, para chegar mais depressa ao momento em
que a história realmente começa. A mademoiselle Hau
teclaire estava com cerca de dezassete anos. O Estocada,
o homem que tinha sido belo e se transformara num
autêntico velhote com aquela situação de viúvo, e ficara
moralmente morto por essa Revolução de Julho que
obrigou os nobres enlutados a partir para os seus caste
los e lhe esvaziou a sala, lutava em vão contra uma gota
destemida, que ignorava as intimações do seu pé, e lá ia
caminhando de rota batida para o cemitério. Um mé
dico com diagnóstico feito tinha isso por garantido . . .
Era evidente. E não augurava eu que vivesse muito mais
tempo, quando uma manhã foi levado da sala de armas
- pelo visconde de Taillebois e pelo cavaleiro de Mes
nilgrand - um rapaz da terra educado longe, que tinha
vindo viver no castelo do seu pai, morto há pouco
tempo. Era o conde Serlon de Savigny, o pretendido da
mademoiselle Josephine de Cantor (dizia V . . , usando a
.
40
que punham em relevo as formas de Pallas de Velletri, e
na blusa de marroquim preto que apertava a cintura ro
busta e airosa até fazê-la estalar - uma destas cinturas
que as circassianas só conseguem obter aprisionando as
suas jovens raparigas num cinto de couro, apenas que
brado pelo desenvolvimento do corpo. A Hauteclaire
Stassin era séria como uma Clorinda 1 • Viu-a dar uma
lição e pediu-lhe para cruzarem ferros. Mas este conde
de Savigny não foi o Tancredo da situação! Por várias
vezes a mademoiselle Hauteclaire Stassin vergou como
uma foice a espada sobre o coração do belo Serlon, e só
numa ocasião foi tocada.
«- Ninguém consegue tocar-lhe, menina - disse
ele com muita graça. - Será um augúrio? . . .
«Nessa tarde, o amor próprio já estaria no rapaz a
ser vencido pelo amor?
«Foi, de facto, a partir dessa tarde que o conde de
Savigny veio diariamente a uma lição de armas na sala
d'O Estocada. O castelo do conde só estava afastado al
gumas léguas. E não tardou que ele as devorasse, quer a
cavalo, quer de carro, sem que nenhuma pessoa o no
tasse no ninho tagarela de uma pequena cidade onde a
ponta da língua espetava as mais pequenas coisas, mas
42
disto, aos hábitos citadinos e continuou a ir todos os
dias a V. . . Muitos castelões das redondezas faziam,
aliás, o mesmo. Foi passando tempo. O velho Estocada
morreu. Depois de alguns instantes fechada, a sala rea
briu. A mademoiselle Hauteclaire Stassin anunciou que
continuaria as lições do seu pai; e, longe de ter menos
alunos por causa desta morte, teve-os em maior nú
mero. Os homens são. todos iguais. De homem a ho
mem, o que é estranho desagrada e magoa; mas se a es
tranheza usar saias, deliram com ela. Na França, se uma
mulher fizer o que um homem faz, mesmo que o faça
menos bem, terá sempre assinalável vantagem sobre o
homem. Ora, a mademoiselle Hauteclaire Stassin era
muito melhor do que eles naquilo que fazia. Tornara-se
muito mais forte do que o seu pai. Nas lições era in
comparável a exemplificar, e esplêndida na beleza do
exercício. Tinha estocadas irresistíveis - dessas estoca
das tão impossíveis de ensinar como a arcada ou a mão
corrida no braço do violino, e que nunca chegam às
mãos de ninguém por lição. Eu, como todos os que me
rodeavam, nesses tempos espadeirava relativamente
bem; e como amador confesso que alguns dos seus pas
sos me encantavam. Entre outras coisas, parecia má
gica a forma como se desembaraçava a passar da quarta
à terça. Deixávamos de ter uma espada a bater-nos, mas
uma bala! O homem mais rápido a parar um golpe só
vergastava o vento, mesmo se ela o prevenisse de que ia
43
atacar; e a · cutilada atingia-o no ombro ou no peito,
inevitável. Não tinha conseguido encontrar-lhe o ferro!
Vi esgrimistas ficarem loucos com esta estocada a que
chamavam trapaça, e com uma raiva capa'z de lhe engo
lir o florete! Não fosse mulher, tais estocadas acabariam
numa briga dos diabos. Com um homem, dariam ori
gem a vinte duelos.
«De resto, pondo de parte este talento fenomenal e
tão pouco próprio de uma mulher, mas que a fazia viver
com tanta nobreza, era realmente muito interessante
que esta rapariga pobre e sem outros recursos além do
florete, e numa situação que a misturava com os jovens
mais ricos da cidade, entre os quais havia sujeitos bas
tante maus e muito presunçosos, não visse prejudicada
a flor da sua boa reputação. Nem com o Savigny, nem
com qualquer outro, a reputação da mademoiselle
Hauteclaire Stassin foi atingida . . . "Parece que é, afinal,
uma rapariga honestà', diziam as mulheres decentes,
como se tivessem falado de uma actriz. Eu próprio - já
que comecei por lhe falar de mim - eu próprio, que
me gabava de ser observador, tinha sobre a virtude da
Hauteclaire a opinião de toda a cidade. Antes e depois
do casamento do Savigny fui por vezes à sala de armas,
e só lá vi uma rapariga grave que desempenhava com
simplicidade a sua função. Devo dizer que metia muito
respeito e tinha posto toda a gente no seu lugar, sem fa
miliaridades e sem ceder a ninguém. A sua fisionomia,
44
de uma altivez extrema e sem a expressão apaixonada
que há pouco tanto o impressionou, não denunciava
mágoa, nem preocupação, nem nada de um género que
mesmo de longe fizesse prever a coisa espantosa, com o
efeito de um tiro de canhão, que partiu vidros na atmos
fera de uma pequena cidade tranquila e rotineira . . .
-« A mademoiselle Hauteclaire Stassin desapa
receu!
«Tinha desaparecido. Porquê? . . . Como? . . . Para
onde tinha ido? Não se sabia. Mas era certo que tinha de
saparecido. Começou por ser um grito seguido de um si
lêncio, embora o silêncio não durasse muito tempo. As
línguas desataram-se. Muito tempo refreadas - como a
água numa adufa, que se precipita quando a represa é le
vantada e faz a roda do moinho girar com fúria - as lín
guas começaram a · espumar e a tagarelar sobre aquele
desaparecimento inesperado, súbito, incrível, sem ne
nhuma explicação porque a mademoiselle Hauteclaire
tinha desaparecido sem dar a ninguém uma palavra ou
deixar uma palavra escrita. Desaparecera como se desa
parece, havendo realmente vontade de desaparecer - se
não é desaparecer deixar atrás de si o nada, um nada sem
qualquer valor a que possam os outros agarrar-se para ex
plicar que se desapareceu. - Tinha desaparecido da mais
radical maneira. Tinha feito, não o que chamamos um
buraco na lua, porque não deixara atrás de si nem dívida
nem outra coisa qualquer, mas só o que pode muito bem
45
chamar-se um buraco no vento. O vento soprou e não a
devolveu. E pelo facto de o moinho das línguas ter girado
em seco, não quer dizer que girasse menos e não tenha
moído com crueldade aquela reputação nunca posta a
jeito de um qualquer ataque. Agarraram nela, depena
ram-na, passaram-na pela peneira, cardaram-na . . .
Como e com quem se tinha ido embora aquela rapariga
tão correcta e tão altiva? . . . Quem a tinha raptado? Por
que ela fora, claro está, raptada . . . Não se dava a isto ne
nhuma resposta. Era de deixar uma pequena cidade
louca de fi.íria; e V. . . ficou-o, de facto. Quantas razões
para se encolerizar! Primeiro, o não sabido estava per
dido. Depois, a argúcia perdia-se por causa de uma rapa
riga que eles julgavam conhecer e não conheciam, já
que a não tinham julgado capaz de desaparecer assim . . .
E também perdiam uma rapariga que contavam ver en
velhecer ou casar-se como as outras raparigas da cidade
- metidas numa casa do tabuleiro de xadrez de uma ci
dade de província, como cavalos na entreponte de um
navio de guerra. Perdendo aquela mademoiselle Stassin,
que passava a ser apenas aqueúz Stassin, perdia-se afinal
uma sala de armas ali à volta célebre e que era a distinção,
o ornamento e a honra da cidade, a menina dos seus
olhos, a sua bandeira no alto do campanário. Ah! Era
duro, tantas perdas juntas! E quantas razões concentradas
numa só, para se fazer passar a torrente mais ou menos
lamacenta de todas as suposições sobre a memória da-
quela irrepreensível Hautedaire! Vai daí, passaram . . . Se
exceptuarmos alguns velhos fidalgos de província com
espírito de grandes senhores e que a tinham visto criança,
como o seu padrinho conde D'Avice, que não se impres
sionaram por aí além e acharam muito natural ela en
contrar um sapato mais à medida do pé do que a sandá
lia de mestre-de-armas, e o tivesse calçado, a Hautedaire
Stassin não teve do seu lado ninguém quando desapare
ceu. Ao ir-se embora ofendera o amor-próprio de todos;
e até acontecia que os jovens lhe mostrassem mais rancor
e se encarniçassem mais contra ela, por não ter desapare
cido com nenhum deles.
«Durante muito tempo foi este o grande agravo e a
grande angústia de todos eles. Com quem se tinha ido
embora? . . . Alguns destes jovens iam todos os anos viver
um ou dois meses de Inverno a Paris,. e dois ou três acha
47
guidez de vida e à palidez de todas as cidades pequenas
sem um centro de actividade que faça as paixões e os ·
gostos convergirem . . . O amor pelas armas enfraque
ceu. Outrora animada com toda esta juventude mar
cial, a cidade de V . . . ficou triste. Os jovens que espadei
ravam todos os dias, quando estavam nos seus castelos,
trocaram o florete pela espingarda. Fizeram-se caçadores
e ficaram-se pelas suas terras e pelas suas matas, o conde
de Savigny como todos os outros. Veio cada vez menos
a V . . . e, se em algumas ocasiões o encontrei lá, foi na
casa da família da sua mulher, que me tinha como mé
dico. No entanto, numa época em que ninguém havia
com a menor desconfiança de que pudesse existir qual
quer coisa entre ele e esta Hauteclaire tão bruscamente
desaparecida, nenhuma razão havia para eu lhe falar do
desaparecimento súbito, sobre o qual começava a esten
der-se o silêncio filho das línguas cansadas; - e ne
nhuma vez me falou da Hauteclaire, nem dos tempos
em que nos encontrávamos na casa dela, nem a tais tem
pos se permitiu fazer uma alusão, longínqua que fosse.»
- Já vejo aonde quer chegar com os seus tamancos
de pau - disse eu ao doutor, servindo-me de uma ex
pressão da terra em causa, que é a minha. - Foi raptada
por ele!
- Pois bem, nada disso - respondeu-me. - Era
melhor do que isso! Nunca poderá desconfiar do que se
tratava . . .
«Para além de um rapto não ser coisa fácil, por
causa do secretismo que exige, sobretudo na província,
depois de o conde de Savigny se casar não voltara a sair
do castelo.
«Era ao olhar de todos evidente que vivia na intimi
dade de um casamento com ar de lua-de-mel indefinida
mente prolongada - e, como tudo é citado e taxado na
província,. citavam e taxavam o Savigny como um destes
muito raros maridos que é preciso queimar (uma graça
provinciana) para as suas cinzas seram deitadas em cima
de outros. Deus sabe quanto tempo me teria eu próprio
enganado com esta reputação, se um dia - mais de um
ano passado sobre o desaparecimento da Hauteclaire
Stassin - não me chamassem com insistência ao castelo
de Savigny, que tinha a castelã doente. Parti de imediato,
e mal lá cheguei levaram-me à condessa que sofria muito,
de facto, com uma vaga e complicada doença mais peri
gosa do que um mal severamente caracterizado. Era uma
destas .mulheres de velha e já esgotada raça, elegante, dis
tinta, altiva, e que parecia dizer-nos do fundo da sua livi
dez e da sua magreza: "O tempo venceu-me, como à mi
nha raça; morro mas desprezo-vos!". Apesar de tão
plebeu, como sou, e um pouco filósofo, diabos me levem
se não tive de achar isto bonito. A condessa estava deitada
num leito de repouso, numa espécie de locotório com vi
goras pretas e paredes brancas, muito vasto, muito alto e
ornamentado com coisas de arte antiga que honravam
49
muito o gosto dos condes de Savigny. A grande sala era
iluminada por um candeeiro único; e a claridade, tor
nada mais misteriosa com o quebra-luz verde que a ve
lava, caía no rosto da condessa, que tinha os malares in
cendiados pela febre. Desde alguns dias estava doente, e
o Savigny - para velar melhor - mandara instalar no
locotório uma cama pequena, ao pé da cama da sua cara
metade bem-amada. Mas só quando a febre, mais tenaz
do que todos os cuidados prestados, mostrou uma fero
cidade inesperadamente surgida, ele decidiu mandar-me
chamar. Estava ali, com as costas voltadas para o fogo, de
pé, sombrio e inquieto, a fazer-me acreditar que amava
com paixão a sua mulher e a julgava em perigo. Não era,
no entanto, por causa dela que a inquietação lhe pesava,
mas de outra que estava no castelo de Savigny sem eu
desconfiar, e cuja visão me espantou até ao assombro.
A Hautedaire!»
- Oh, diabo! É de um grande atrevimento! -
disse eu ao doutor.
- Tão atrevido - continuou - que me julguei a
sonhar quando a vi! A condessa tinha solicitado ao ma
rido que tocasse, para chamar a criada de quarto a
quem ela pedira, antes da minha chegada, a mesma po
ção que eu acabava de lhe aconselhar. Segundos mais
tarde alguém abriu a porta.
«- · Eulalie, a minha poção? - disse de imediato a
impaciente condessa.
50
«- Aqui a tem, senhora! - respondeu uma voz
que julguei reconhecer e foi seguida, mal chegava aos
meus ouvidos, pela Hautedaire Stassin a sair da sombra
que afogava o contorno profundo do locotório, e se
aproximava até à beira do círculo luminoso traçado
pelo candeeiro à volta da cama. Sim, a Hautedaire em
pessoa! Com as belas mãos a agarrar numa bandeja de
prata onde fumegava a taça que a condessa tinha pe
dido. Ver aquilo deixou-me de respiração cortada! Eu
lalie! . . . Por sorte, o nome Eulalie pronunciado com
tanta naturalidade disse-me tudo e foi uma espécie de
martelada de gelo que me fez regressar a um sangue-frio
prestes a ser perdido, e à minha atitude passiva de mé
dico e observador. A Hautedaire transformada em Eu
lalie e em criada de quarto da condessa de Savigny! . . .
O seu disfarce - se uma mulher daquelas pode disfar
çar-se - . era completo. Vestia como uma banal costu
reira da cidade de V . . . , tinha um penteado parecido
com um capacete e longos caracóis pendurados à frente
das faces - o género de caracóis a que os pregadores
nesse tempo chamavam «serpentes», para as raparigas
bonitas se desagradarem deles, mas sem nunca o terem
conseguido. - E, atrás de uma beleza cheia de reserva
e de uma nobreza de olhar baixo, provava-se que estas
cobras-fêmeas tudo fazem dos seus corpos satânicos,
desde que tenham nisso o mais leve interesse . . . Apesar
de refeito, e tão seguro de mim como o homem que
51
acaba de morder a língua para não deixar escapar um
grito de surpresa, tive a pequena fraqueza de querer
mostrar à rapariga audaciosa que estava a reconhecê-la.
Enquanto a condessa bebia a poção, com a testa encos
tada à taça, cravei nos olhos dela os meus dois olhos,
como se lá espetasse duas estacas; mas os seus olhos -
nessa noite olhos de corça pela brandura - foram mais
firmes que os da pantera ainda há pouco fechados por
sua causa. Nem pestanejou. Só houve um estremeci
mento leve, quase imperceptível, que passou pelas
mãos que seguravam a bandeja. A condessa bebia
muito devagar; e depois, quando terminou:
«- Pronto - disse ela - pode levar.
«E a Hautedaire-Eulalie deu uma volta, com aquela
maneira que eu teria reconhecido entre as vinte mil ma
neiras das raparigas de Assuero 1 , e levou dali a bandeja.
Confesso que fiquei um instante com os olhos desvia
dos do conde de Savigny, por perceber o significado que
o meu olhar podia ter para ele num tal momento; mas,
1 Nome do rei Xerxes, entre os Gregos. <<As raparigas de Assuero» estará re
lacionado com o facto de Ester, uma tragédia de Racine que toma por tema o con
flito de Ester e Assuero, ter sido representada pela primeira vez (em 1 689) com as
Raparigas de Saint-Cyr em todos os seus papéis, inclusive os masculinos, como
resposta ao teatro inglês, que tinha o hábito de fazer desempenhar os papéis femi
ninos por jovens actores. (N. do T.)
52
pressão do alívio. Acabava.de compreender que eu tinha
visto, mas também compreendia que eu não queria ver
nada, e voltava a respirar. Tinha a certeza de uma im
penetrável discrição, e talvez a explicasse (mas isso tanto
me fazia!) com o cuidado do médico que não quer per
der um cliente como ele, embora no facto só existisse o
interesse do observador que não quer fechada a porta
de uma casa onde há, sem a cidade inteira saber, coisas
daquele género para observar.
«E com um dedo pousado na boca refiz-me, muito
decidido a não dizer palavra sobre uma coisa de que
ninguém naquela terra desconfiava. Ah! Os prazeres do
observador! Estes prazeres impessoais e solitários do
observador, que sempre coloquei acima de todos os ou
tros, ia podê-los gozar em cheio naquele recanto da
província, naquele castelo velho e isolado aonde eu,
como médico, podia ir quando quisesse . . . - Feliz por
se ver livre de uma preocupação, disse-me o Savigny:
''Até nova ordem venha cá todos os dias, doutor." Eu ia
afinal poder estudar com tanto interesse como assidui
dade, uma doença, o mistério de uma situação que,
contada a alguém, pareceria impossível. . . E como este
mistério, logo no primeiro dia em que o vislumbrei ex
citou a minha faculdade de raciocinar que é a bengala
de cego do sábio, e sobretudo da encarniçada curiosi
dade das investigações do médico, comecei de imediato
a discorrer sobre a situação, para a deixar esclarecida . . .
53
Existiria desde quando? . . . Desde o desaparecimento da
Hauteclaire? . . . Como ele durava há mais de um ano, a
Hauteclaire seria desde então criada de quarto em casa
da condessa de Savigny? Como é que ninguém, a não
ser eu e porque tinha sido preciso chamarem-me, vira o
que eu vi com tanta facilidade e tão depressa? . . . Estas
perguntas montaram todas a cavalo e acompanharam
-me na garupa até V . . . , com muitas mais entretanto le
vantadas e apanhadas ao longo do caminho. É verdade
que o conde e a condessa de Savigny passavam por se
adorar um ao outro e viviam bastante retirados de toda a
espécie de convívio. Mas era ainda assim possível que
uma visita fosse de · tempos a tempos parar ao castelo.
Também é verdade que a Hauteclaire, tratando-se de
uma visita masculina, podia não aparecer. E, se fossem
visitas femininas, a maior parte das mulheres de V . . .
nunca a tinha visto suficientemente bem para reconhecer
a rapariga que as lições tinham durante anos trancado no
fundo de uma sala de armas e, quando era vista de longe,
a cavalo ou na igreja, usava véus tornados por si própria
espessos a seu bel-prazer - porque a Hauteclaire {como
eu já lhe disse) mostrara sempre essa altivez dos seres
muito altivos, a quem a curiosidade excessiva ofende e
que, quanto mais alvo de olhares se sentem, mais se es
condem. Quanto ao pessoal do senhor de Savigny, com
quein era obrigada a viver, se fosse de V . . não a conhe
.
54
quanto eu ia trotando respondia assim a estas primeiras
perguntas, que ao fim de certo tempo e de um certo ca
minho encontravam respostas; e antes de eu descer da
sela já tinha construído todo um edifício de suposições
mais ou menos plausíveis para explicar o que seria inex
plicável a qualquer outro tão argumentador como eu.
A única coisa que eu talvez não explicasse muito bem
era a esplendorosa beleza da Hauteclaire não ter sido
obstáculo quando entrou ao serviço de uma condessa
de Savigny que amava o seu marido e devia sentir ciú
mes. Mas como as patricianas de V . . . , pelo menos tão
orgulhosas como as mulheres dos paladinos de Carlos
Magno, não achavam (erro grave; tivessem ao menos
lido O Casamento de Figaro!) que aos olhos dos seus ma
ridos a mais bela criada de quarto pode valer mais do
que vale aos olhos delas o mais belo dos lacaios; quando
me desembaracei dos estribos disse a mim próprio que a
condessa de Savigny tinha razões para se julgar amada e,
bem vistas as coisas, o sacripanta do Savigny era de um
género que mais força daria a tais razões, se alguma dú
vida ela chegasse a ter.»
- Hum! - disse eu com cepticismo, sem conse
guir deixar de interromper o doutor. - Tudo isso vale
o que vale, mas à situação não retira imprudência.
55
Há paixões incendiadas pela imprudência e que não exis
tiriam sem o perigo que provocam. No século XVI, tão
apaixonado como um século pode ser, a entre todas
magnífica causa do amor foi o perigo do próprio amor.
Quem saísse dos braços de uma amante, corria o risco de
ser apunhalado; ou o marido envenenava o regalo da
mulher, beijado e alvo de todas as tolices do costume; e,
muito longe de apavorar o amor, este perigo incessante
incitava-o, incendiava-o e fazia-o irresistível! É evidente
que nos nossos entendiantes costumes modernos, com a
lei a substituir a paixão, o artigo do Código aplicável ao
marido culpado de ter introduzido «a concubina no do
micílio conjugal» - como diz grosseiramente a lei - é
um perigo bastante ignóbil; mas, tratando-se de almas
57
normal batia com pulsações enfraquecidas, deu-me a
ideia de que a tinham posto no mundo e criado para ví
tima . . . para ser pulverizada sob os pés da altiva Haute
claire que à frente dela se curvava tanto quanto era exi
gido pelo papel de criada. No entanto esta ideia, que
começou por me assaltar quando a olhei, era contra
riada por um queixo erguido na ponta do rosto pe
queno, um queixo de Fúlvia nas medalhas romanas,
perdido na parte baixa daquele palmo de cara amarro
tado, e também por uma testa abaulada com obstinação
abaixo do cabelo mate. Tudo isto acabava por embaraçar
o julgamento. No que toca ao sossego da Hauteclaire,
talvez · lhe chegasse daí o verdadeiro obstáculo, por ser
impossível que a situação vislumbrada naquela casa -
de momento tranquila - não descambasse num qual
quer tumulto medonho . . . Tendo em vista esse futuro
tumulto comecei a auscultar de duas formas diferentes
aquela mulher franzina que não conseguiria, perante o
seu médico, ser durante muito tempo uma carta fe
chada. Aquele que confessa o corpo, bem depressa se
apodera do coração. Se houvesse no actual sofrimento
da condessa causas morais ou imorais, de nada valeria
fechar-se comigo e recolher dentro de si as impressões e
os pensamentos; teria de mostrá-los por extenso. Era o
que a mim próprio eu dizia; mas, pode acreditar, em
vão lhe dei voltas e mais voltas com a garra de médico.
Ao fim de alguns dias foi-me evidente que não tinha a
menor suspeita de cumplicidade entre o seu marido e a
Hauteclaire num crime doméstico cujo silencioso e dis
creto teatro era aquela casa . . . Da sua parte seria falta de
sagacidade? Mutismo dos sentimentos de ciúme? O que
seria? . . . A toda a gente, com excepção do marido, mos
trava uma reserva um tanto orgulhosa. Com a falsa Eu
lalie que a servia, era imperiosa mas branda. Pode pare
cer contraditório. Mas não é. Não é mais do que a
verdade. Tinha um comando rápido mas nunca em voz
elevada, de mulher feita para ser obedecida e com a cer
teza de que vai sê-lo . . . E era-o,- admiravelmente. A Eu
lalie, aquela assustadora Eulalie insinuada e metida não
sei como na sua casa, envolvia-a com esses cuidados que
param no momento justo, antes de serem uma fadiga
para quem os recebe, e mostrava nos pormenores do
serviço uma flexibilidade e um entendimento do carác
ter da patroa que tinham tanto de génio da vontade
como de génio da inteligência . . . Acabei mesmo por fa
lar à condessa dessa Eulalie que eu via durante as minhas
visitas circular com tanta naturalidade à sua volta, e nas
costas me fazia o frio da serpente quando a vemos de
senrolar-se e esticar-se, sem nenhum ruído, e aproxi
mar-se do leito de uma mulher adormecida . . . Uma
noite, a condessa mandou-a buscar já me não lembro o
quê e aproveitei a ocasião dessa saída, e a rapidez dos
passos com que a executava, para arriscar palavras que
talvez tenham acendido alguma luz:
59
«- Que andar de veludo! disse eu quando a vi
-·
60
«- Acha que sim? - perguntou, continuando a
mirar-se e sempre distraída do que eu dizia.
«- E talvez um homem decente, e do meio da se
61
amá-lo estranhamente, para fazer o que fazia; para ter
renunciado a quanto havia de excepcional numa exis
tência que podia incensar-lhe a vaidade, fazer incidir
sobre si os olhares de uma cidade pequena - para ela, o
universo - onde mais tarde poderia encontrar alguém
entre aqueles jovens, seus admfradores e adoradores, que
se casasse com ela por amor ou a fizesse entrar na socie
dade mais alta que ela só conhecia através dos seus ho
mens. Ele, o amante, fazia um jogo por certo mais arris
cado. Quanto a abnegação, tinha o lugar inferior. O seu
orgulho de homem devia sofrer por não conseguir pou
par à sua amante a indignidade de uma situação que a
humilhava. Em tudo isto chegava a haver qualquer coisa
que não se coadunava com o feitio impetuoso, atribuído
ao Savigny. Se amava a Hauteclaire ao ponto de lhe sa
crificar a sua jovem mulher, teria podido raptá-la e ir vi
ver com ela na Itália - uma coisa já nesses tempos fácil
de fazer! - sem passar pelas abominações de uma con
cubinagem vergonhosa e oculta. Seria então ele quem
menos amava? . . . Preferia deixar-se amar pela Haute
claire, ser por ela mais amado do que ele próprio a
amava? . . . Teria sido ela quem viera, por decisão pró
pria, forçá-lo em plena zona vigiada do domicílio con
jugal? E, por ele achar a situação audaciosa e picante,
deixava agir aquela Putifar de uma nova espécie, que a
todo o momento lhe avivava a tentação? . . O que eu via
.
66
da mata negra onde eu não via nenhuma luz nem ouvia
nenhum ruído, chegou..,me um que tomei pelo de uma
pá de lavadeira - a pá de uma pobre camponesa qual
quer, durante o dia ocupada nas terras e a aproveitar a lua
para lavar a sua roupa num lavadouro ou num fosso . . .
Só quando me aproximei do castelo a batida regular se
misturou com outro ruído e me esclareceu sobre a natu
reza do primeiro. Era um tilintar de espadas a cruzarem
-se, e a esfregarem-se, e a agastarem-se. Sabe como tudo
se ouve no silêncio e no ar fino das noites, como os me
nores ruídos ganham precisões de singular acuidade! Eu
ouvia, sem qualquer hipótese de engano, o animado
atrito de ferros. Pelo espírito passou-me uma ideia; mas
quando saí da mata de pinheiros do castelo empalide
cido pela lua e com uma janela aberta:
«''Oh!" - disse eu a admirar aquela força de gos
tos e hábitos. - "Continuam com esta forma de fazer
amor!"
«Eram, com toda a evidência, o Serlon e a Haute
daire a terçarem àquela hora as suas armas. As espadas
ouviam-se como se estivessem à vista. O que eu tomara
pelo ruído das pás de lavadeira era a provocação dos pés
dos esgrimistas. O castelo tinha quatro alas, e a janela
aberta situava-se na mais afastada do quarto da con
dessa. Adormecido, sinistro e branco ao luar, o castelo
era como uma coisa morta . . . Exceptuada essa ala esco
lhida a preceito, e com uma porta envidraçada e orna-
mentada por uma varanda atrás de persianas meio cor
ridas, tudo estava em silêncio e às escuras; mas destas
persianas meio corridas e riscadas de luz, a darem para a
varanda, é que chegava o ruído duplo da provocação
dos pés e do ranger dos floretes. Era tão claro, chegava
aos ouvidos tão nítido, que cheio de razão, como vai
ver, pressupus que eles sentiam muito calor (estava-se
em Julho) e tinham aberto a porta da varanda, atrás das
persianas. Eu tinha parado o cavalo na orla da mata,
para ouvir o recontro que parecia tão vivo, interessado
naquele combate de amantes que se tinham amado e
assim continuavam a amar-se com armas na mão,
quando ao fim de certo tempo o tilintar dos floretes e o
estalar da provocação dos pés terminaram. As persianas
da porta envidraçada da varanda foram empurradas,
abriram-se, e s6 tive tempo de não ser notado na noite
dara fazendo o cavalo recuar para a sombra da mata de
pinheiros. O Serlon e a Hautedaire vieram debruçar-se
na guarda de ferro da varanda. Distinguia-os muitís
simo bem. A lua caiu, oculta pela pequena mata, mas a
luz de um candelabro que eu via atrás deles, no aparta
mento, punha-lhes em destaque a silhueta dupla. A
Hautedaire estava vestida, se àquilo pode chamar-se
vestida, como tantas vezes a tinha visto quando dava li
ções em V . ; apertada com atilhos naquele colete de
. .
68
calções de seda que lhe reproduziam de tão justa forma
o contorno musculado. O Savigny trazia um fato quase
idêntico. Ambos surgiam esbeltos e robustos no fundo
luminoso que os enquadrava como duas belas estátuas
da Juventude e da Força. Há pouco admirou neste jar
dim a beleza orgulhosa de um e de outro, que os anos
ainda não destruíram. Pois bem! Seja ajudado com isto
a fazer uma ideia da magnificência do casal que eu via
na varanda, metido naquelas roupas apertadas que pa
reciam uma nudez. Apoiados na grade falavam, mas
baixo de mais para· eu poder ouvir-lhes as palavras; no
entanto, a atitude dos corpos falava por eles. Num dado
momento o Savigny deixou cair apaixonadamente o
braço à volta daquela cintura de amazona, que parecia
feita para todas as resistências, mas não as fez . . . E com
a altiva Hauteclaire quase ao mesmo tempo suspensa
do pescoço do Serlon, ambos formaram esse famoso e
voluptuoso grupo de Canova que está em todas as me
mórias; e assim permaneceram, esculpidos boca com
boca, durante um tempo que à minha fé daria para se
beber uma garrafa de beijos, sem interrupção nem re
cobrar alento! Durou bem sessenta pulsações contadas
neste pulso mais acelerado do que agora está, e que o
espectáculo ainda mais rapidamente fazia bater . . . »
«''Oh! Oh!", disse eu quando me desacoitei da
mata e eles voltaram, sempre enlaçados um no outro, a
entrar no apartamento e a baixar as cortinas, grandes
cortinas escuras. - "Uma destas manhãs vão ter de
confiar-se a mim. Porque terão mais do que as suas pes
soas para esconder." Vendo aquelas carícias e aquela in
timidade que tudo me revelavam, tirei delas as minhas
consequências de médico. No entanto, o seu ardor de
veria enganar-me as previsões. Sabe, como eu, que os
seres que se amam em excesso (o descarado doutor disse
outra palavra) não fazem filhos. Na manhã seguinte fui
a Savigny. Encontrei a Hauteclaire já outra vez Eulalie,
sentada no vão de uma das janelas do longo corredor
que ia dar ao quarto da sua patroa, com um monte de
roupa e trapos na cadeira à sua frente; ela, a espadachim
nocturna, ocupada a coser e a cortar! Alguém desconfia
disto?, pensei, ao apanhá-la de avental branco e com
aquelas formas que eu tinha visto como se estivessem
nuas na moldura iluminada da varanda, a afogarem-se
agora nas pregas de uma saia que as não podia engo
lir . . . Passei mas sem lhe falar, porque eu falava com ela
o menos possível, já que não queria ter ar de saber o que
sabia e talvez surgisse filtrado através da minha voz e do
meu olhar. Sentia-me muito menos comediante do que
ela, e receava por mim próprio . . . Quando eu passava
ao longo do corredor onde ela se mantinha a trabalhar,
se não estivesse de serviço ao pé da condessa, em geral
ouvia-me muito bem, quando eu me aproximava, e ti
nha tanta certeza de que era eu, que nunca levantava a
cabeça. Mantinha o rosto inclinado por baixo do bar-
70
rete de batista com goma, ou de outro boné normando
que em certos dias também usava e parecia o chapéu
medieval de Isabel da Baviera; ficava com os olhos pos
tos no trabalho e as faces veladas por aqueles caracóis de
um preto azul, enroscados, que pendiam no oval pálido
sem mais me oferecerem à vista do que a curva de uma
nuca fumada por espessos casulos de cabelo que se tor
ciam tanto como os desejos que despertavam. Esplên
dido, na Hauteclaire, era acima de tudo o animal. Tal
vez não haja mulher com mais intensa beleza daquele
género . . . Os homens, que tudo dizem· entre si, ti
nham-no muitas vezes notado. Em V . . . , quando ela
dava as suas lições de armas os homens chamavam-lhe a
mademoiselle Esaú . . . O Diabo diz às mulheres o que
elas são, ou antes, dizem-no elas ao Diabo, no caso de
ele o não saber . . . Apesar de muito pouco dada a afec
tações, quando ouvia quem lhe falava, a Hauteclaire ti
nha o hábito de agarrar e desenrolar com os dedos o
longo cabelo frisado e acumulado naquela parte do pes
coço, aqueles rebeldes ao pente que lhe tinha alisado a
nuca e, como diz a Bíblia, só um deles bastante para
nos perturbar a alma I . Ela bem sabia que ideias um tal
71
jogo fazia nascer! Mas, naquela altura e desde que era
criada de quarto, nem mesmo quando olhava para o
Savigny eu lhe vi alguma vez ousar esse gesto ·do poder
que brinca com o fogo.
«Meu caro, o parêntese é longo mas à minha histó
ria importa tudo quanto serve para lhe dar a conhecer
como era a Hauteclaire Stassin . . . Nesse dia viu-se obri
gada ao incómodo de mostrar o rosto e se aproximar de
mim, porque a condessa a chamou e ordenou que me
desse a tinta e o papel necessários para eu passar uma re
ceita. Aproximou-se, e no dedo trazia o dedal de aço
que não tivera tempo de tirar, e tinha espetado a agulha
enfiada no peito provocante, onde já tinha pregado uma
porção delas, encostadas umas às outras e que o deixa
vam embelezado com o seu aço. Até o aço das agulhas
ficava bem ao diabo desta rapariga feita para o aço, e que
teria na Idade Média usado couraça. Manteve-se de pé à
minha frente enquanto eu escrevia, a oferecer-me o tin
teiro com esse movimento de antebraços nobre e flexível
que o hábito de esgrimir lhe tinha dado, a ela mais do
que a qualquer outra pessoa. Quando acabei ergui os
olhos e fixei-a, para não parecer que a evitava, e encon
trei o rosto fatigado pela sua noite. O Savigny, que não
_
de a Mademoiselle Esaú andar escondida atrás de uma máscara, como Jacó atrás
da pele de carneiro quando se fez passar por Esaú. A segunda é uma evidente alu
são ao «Cantico dos Canticos»: «Perturbaste-me a alma [ . . . ] com um único ca
72
estava lá quando cheguei, entrou de repente. Bem mais
fatigado do que a Hautedaire . . . Falou-me do estado da
condessa, que não melhorava. E falou-me como um ho
mem impaciente por ela não melhorar. Tinha o tom
amargo, violento, tenso do homem impaciente. En
quanto ia falando, andava de um lado para o outro. Eu
observava-o com frieza, achando que a coisa ia destavez
longe de mais, e era algo inconveniente o tom napoleó
nico que usava para me falar. "Mas se eu te curasse a
mulher", pensei com insolência, "não andarias toda a
noite a terçar armas e a fazer amor com a tua amante".
Teria podido apelar aos seus sentimentos e à delicadeza
de que ele estava a esquecer-se, pôr-lhe debaixo do nariz
os sais ingleses de uma boa resposta. Contentei-me em
olhá-lo. Mas achava-o mais interessante do que nunca,
porque era mais do que nunca evidente que represen
tava uma comédia.»
E o doutor voltou a calar-se. Mergulhou o largo
polegar e o indicador na sua caixa de prata lavrada com
ondulações, e aspirou uma pitada de macubaco, como
pomposamente e por hábito chamava ao seu tabaco.
Tão interessante ele próprio me pareceu, que não fiz ne
nhuma observação; e o doutor, depois de absorver a pi
tada e passar o dedo em gancho na curvatura do ávido
nariz com forma de bico de corvo, prosseguiu:
-. Oh! Lá impaciente, estava; mas não por a
sua mulher continuar sem melhoras, a mulher a quem
73
era tão determinadamente infiel! Que diabo! Ele, a
concubinar na sua própria casa com uma criada, por a
sua mulher não melhorar não podia encolerizar-se
muito! Com ela curada, o adultério não teria sido mais
difícil? Mas é verdade que o arrastamento do mal sem
fim cansava-o, atacava-lhe os nervos . . Teria imagina
do que ia durar menos? E depois, quando pensei no
assunto . . . caso ele, ou ela, ou ambos tivessem a ideia
de acabar com aquilo, já que a doença ou o médico a
nenhum lado chegava, não teria sido a partir daquele
momento . . .
- O quê! Teriam eles, doutor? . . .
Não terminei a frase, com as palavras cortadas pela
ideia que ele me dava!
Baixou a cabeça, a olhar para mim tão trágico
como a estátua do Comendador quando aceitou cear1.
- Sim! - soprou com lentidão, numavoz baixa
que me respondia ao pensamento. - Pelo menos, toda
a região se aterrorizou poucos dias depois, ao saber que
a condessa tinha morrido envenenada . . .
- Envenenada! - exclamei.
- . . . Pela criada de quarto, a Eulalie, que con-
fundiu frascos, e em vez do remédio que eu receitara
deu a beber à patroa, segundo se dizia, um frasco de
74
tinta dupla 1 • Um tal desleixo podia acontecer, de facto.
Mas eu sabia que a Eulalie era a Hautedaire! E vira-os
aos dois na varanda, a reproduzir o par do Canova! As
outras pessoas não tinham visto o mesmo que eu. As
pessoas só começavam a ter a impressão de que acon
tecera um terrível acidente. Mas, dois anos depois da
catástrofe, quando foi do conhecimento geral que o
conde Serlon de Savigny se tinha casado publicamente
com a filha do Stassin - porque acabou por se arran
car do escuro quem diabo ela era, a falsa Eulalie - e
que ia deitá-la nos lençóis ainda quentes da primeira
mulher, a mademoiselle Delphine de Cantor! Oh,
nessa altura trovejaram suspeitas, embora em voz baixa,
como se o dito e o pensado metessem medo. Mas a ver
dade é que ninguém, no fundo, sabia de nada. Só era
conhecida a monstruosidade daquele casamento desi
gual, que fazia apontar a dedo o conde de Savigny e o
isolava como um empestado. O que era, de resto, bas
tante. O meu amigo sabe que desonra é, ou antes, era,
porque as coisas entretanto se alteraram muito, dizer
-se naquela terra que um homem se tinha casado com .
a criada! Esta desonra ganhou uma grande dimensão e
ficou agarrada ao Serlon como uma nódoa. Quanto ao
horrível zumbido do crime que ele tinha supostamente
1 Tinta que tanto podia ser utilizada para escrever como para pintar cabe
dal. (N. do T.)
75
praticado, não tardou a esmorecer como o do zângão
caído de cansaço numa rodeira. Mas havia alguém que
sabia e tinha a certeza . . .
- Podia ser mais alguém, que não o doutor? -
interrompi.
. .
77
«Disse é o que eu quero como nunca lho tinha ou
vido dizer . . . como só poderia dizê-lo uma mulher com
aquela testa e aquele queixo de que lhe falei.
«- Também saio? - perguntou o Savigny com
voz fraca.
«- Também - disse ela. E acrescentou, quase
como uma carícia: - O meu amigo sabe que as mu
lheres têm pudores, sobretudo com aqueles a quem
amam.
«Mal saiu, deu-se nela uma transformação atroz.
De meiga passou a bravia.
«- Doutor - disse-me com voz rancorosa -
isto da minha morte não é acidente, é um crime. O Ser
lon ama a Eulalie, e ela envenenou-me! Não lhe dei cré
dito, quando me disse que a rapariga é bonita de mais
para criada de quarto. Fiz mal. Ele ama aquela celerada,
aquela execrável rapariga que me matou. É o mais cul
pado porque a ama e por sua causa me ter traído. Desde
há dias tenho sido advertida pela maneira como se
olham de um lado da cama para o outro. E além disso,
o gosto horrível da tinta com que me envenenaram! . . .
Mas bebi tudo, tomei tudo, apesar do pavoroso gosto,
porque estava com muita vontade de morrer! Não me
venha falar em contravenenos. Não quero nenhum dos
seus remédios. Quero morrer.
«- Se assim é, por que me mandou cá vir, senhora
condessa? . . .
«- Olhe! Vai ver porquê - continuou, a ofe
gar . . . - para lhe dizer que me envenenaram e dar-me
a sua palavra de honra de que vai ocultá-lo. Tudo isto
pode dar origem a um terrível tumulto. Devemos evitá
-lo. É meu médico e vão acreditar em si, em si quando
falar deste engano que eles inventaram, quando disser
que eu não morreria, que podia ser salva se a minha
saúde não fosse desde há muito tempo um caso per
dido. Aqui está o que vai ter de me jurar, doutor . . .
«Como eu não lhe dava nenhuma resposta; viu o
que estava a ganhar corpo dentro de mim. Pensei que
amava o seu marido ao ponto de querer salvá-lo. Era a
ideia que me acudia ao espírito, a ideia natural e banal,
porque há mulheres marcadas pelo amor e pelas suas
abnegações ao ponto de não retribuírem o tiro que as
faz morrer. Mas a condessa de Savigny nunca me tinha
dado a ideia de ser uma mulher deste género!
«- Ah! O que me leva a pedir-lhe esta jura não é
o que julga, doutor. Oh! Não! Neste momento odeio
demasiadamente o Serlon para não continuar a amá-lo,
apesar da sua traição . . . Mas não sou tão cobarde que vá
perdoar-lhe! Vou partir desta vida com ciúmes dele, e
implacável. Mas em causa não está o Serlon, doutor -
continuou numa voz enérgica, pondo a descoberto
todo um lado do seu carácter que eu tinha vislumbrado
mas não penetrado no que ele possuía de mais pro
fundo. - Em causa está o conde de Savigny. Depois de
79
morta, não quero que o conde de Savigny passe por
assassino da sua mulher. Não quero que o arrastem até
ao tribunal, acusem de ser cúmplice de uma criada
adúltera1 e envenenadora! Não quero esta mancha
agarrada ao nome Savigny, que eu usei. Oh! Se apenas
se tratasse dele, seria digno de todos os cadafalsos! Eu
seria capaz de lhe comer o coração! Mas trata-se de to
dos nós, as pessoas decentes desta terra! Se ainda fôsse
mos o que devíamos ser, eu teria mandado atirar essa
Eulalie para uma das masmorras do castelo de Savigny,
e nunca haveria ocasião para isto acontecer! Mas agora
já não somos senhores nas nossas casas. Já não temos a
nossa justiça expedita e muda, e por nada deste mundo
quero escândalos nem as publicidades da vossa, doutor;
prefiro deixá-los nos braços um do outro, felizes, livres
de mim, e morrer enraivecida como morro, do que
morrer a pensar na ignomínia de existir um envenena
dor entre as fileiras da nobreza de V . . .
«Falava com uma vibração inaudita, apesar dos tre
mores bruscos do maxilar que batia, com risco de lhe
partir os dentes. Embora eu a reconhecesse, ficava a sa
ber mais a seu respeito! Era, de facto, a rapariga nobre e
mais nada, a rapariga nobre que tinha na hora da morte
mais força do que a mulher ciumenta. Morria como
1 Faz-se a tradução directa da palavra do original, embora o adultério seja
cometido apenas por quem viola a sua fidelidade conjugal. Hauteclaire só pode
ria ser acusada de levar Savigny a cometer adultério. (N. do T.)
80
uma verdadeira filha de V . . . , a última cidade nobre da
França! E, mais emocionado do que talvez devesse estar,
prometi e jurei o que me pedia, no caso de não conse
guir salvá-la.
«E cumpri-o, meu caro. Não a salvei. Não conse
gui salvá-la: recusou com obstinação todos os remédios.
Depois de morta eu disse o que ela queria, e fui persua
sivo . . . Já lá vão uns vinte e cinco anos . . . Desta pavo
rosa aventura tudo está agora serenado, silenciado, es
quecido. Muitas pessoas desse tempo já morreram.
Cresceram sobre os seus túmulos outras gerações igno
rantes, indiferentes, e a si estou a dizer uma primeira
palavra sobre esta história sinistra!
«Mesmo assim foi preciso o que acabámos de ver
para eu a contar. Foi preciso aquelas duas criaturas de
beleza imutável apesar do tempo, de felicidade imutá
vel apesar do seu crime, cheias de força, apaixonadas,
que só querem saber de si próprias, passarem por nós
com tanta soberba perante a vida como perante este
jardim, parecidas com dois anjos de altar que levantam
voo, unidos na sombra de ouro das suas quatro asas!»
Eu estava espantado . . .
- Mas, doutor, se é verdade o que me conta -
disse eu - a felicidade daquela gente é uma assusta
dora desordem na criação.
- É uma desordem ou uma ordem, como quiser
- respondeu o doutor Torty, ateu absoluto e tão tran-
81
quilo como os dois de quem falava - mas um facto.
Vivem uma felicidade excepcional e são insolentemente
felizes. Estou muito velho, e na minha vida já vi muitas
felicidades que não duraram; mas nenhuma assim tão
profunda, e que continua a durar!
«E pode acreditar que muito estudei, muito escru
tei, muito perscrutei! Acredite que muito esquadrinhei o
bichinho daquela felicidade! Peço-lhe desculpa da ex
pressão, mas posso dizer-lhe que a espiolhei. . . Meti o
bedelho na vida daquelas duas criaturas, o mais que
pude, para ver se não haveria um defeito, uma fissura,
pequena que fosse, em qualquer ponto oculto da sua es
pantosa e revoltante felicidade; mas só pude encontrar
uma felicidade de meter inveja e que seria um excelente
e triunfante gracejo do Diabo contra Deus, se lá hou
vesse um Deus e um Diabo! Como deve calcular, depois
de a condessa morrer mantive boas relações com o Sa
vigny. Como eu me tinha limitado a apoiar com a mi
nha afirmação a fábula que eles imaginaram para expli
car o envenenamento, não mostraram interesse em
afastar-me; e era muito grande a minha vontade de co
nhecer o que seria a sua continuação, e o que iam fazer,
aquilo em que iam transformar-se. Eu arrepiav:,i-me mas
afrontava os arrepios . . . A continuação começou por ser
o luto do Savigny, que durou os dois anos do costume e
ele usou de maneira a confirmar-se, na ideia pública,
como o melhor dos maridos passados, presentes e futu-
82
ros . . . Durante esses dois anos não se mostrou absoluta
mente a ninguém. Com tal rigor na solidão se enterrou
no castelo, que ninguém soube da presença em Savigny
da Eulalie, causa involuntária da morte da condessa e
que ele devia, por sua pessoal conveniência, ter posto na
rua apesar da certeza de que não era culpada. O acto im
prudente de manter uma tal rapariga em sua casa, de
pois de tão grande catástrofe, dava-me provas da insen
sata paixão do Serlon, que eu sempre desconfiara que
existia. Nada me surpreendeu, portanto, que no regresso
de uma das minhas voltas de médico tivesse encontrado
na estrada de Savigny um criado e ele me informasse,
quando lhe pedi notícias do que se passava no castelo,
que a Eulalie continuava a /,d estar. . A naturalidade com
.
86
vez encontrei-a e trazia estampada no rosto a sua felici
dade; tão radiosa, que não teria sido possível apagá-la
derramando nele uma garrafa inteira da tinta que enve
nenara a condessa!
«Nessa primeira vez encontrei-a na grande escada
do castelo. Estava a descer e eu a subir. Estava a descê-la
com alguma pressa; mas abrandou os passos quando
me viu, empenhada em mostrar-me faustosamente o
rosto, sem dúvida, e a levar até bem ao fundo dos meus
olhos os seus, qµe podem fechar os de uma pantera mas
não conseguiram fechar os meus. A descer os degraus
da sua escada, com as saias a flutuar atrás de si, sopradas
por um movimento rápido, pareceu-me que descia do
céu. Estava sublime, com aquele ar de tanta felicidade.
· Ah! Tinha um ar quinze mil léguas mais alto do que o
ar do Serlon! Apesar disso não me coibi de lhe fazer um
sinal de cortesia, porque o próprio Luís XIV cumpri
mentava nas escadas criadas de quarto, e vá lá dizer-se
que não eram envenenadoras! Naquele dia ela ainda era
criada de quarto no comportamento, no trajo, no avental
branco; mas a impassibilidade da escrava fora substi
tuída pelo ar feliz da mais triunfante e despótica patroa.
Foi um ar que nunca mais a abandonou. Acabo de vol
tar a vê-lo, e o me� amigo pôde avaliá-lo. Chega a ser
mais evidente do que a beleza do rosto onde ele res
plandece. Passados vinte anos continua com o ar sobre
-humano da altivez nesse amor feliz que deve ter dado
87
ao Serlon e ele começou por não mostrar, mas que não
vejo agora velar-se um instante na face destes dois estra
nhos privilegiados da vida. Com esse ar responderam
sempre e vitoriosamente a tudo, ao abandono, às male
dicências, aos desprezos da opinião indignada; e àqueles
que os encontram fazem achar que é atroz calúnia o
crime de que foram durante alguns dias acusados.»
- Mas - interrompi - depois de tudo o que o
doutor sabe, como é que se deixa vencer por esse ar?
Não os seguiu por todo o lado? Não está constante
mente a vê-los?
- Só não os vejo à noite, no quarto onde dor
mem, e não será ali que o perdem - disse o doutor
Torty, brejeiro mas profundo. ·- Creio bem que os vi
em todos os momentos da sua vida, a seguir a terem ce
lebrado o casamento não sei onde, para evitar a baru
lheira com que a populaça de V . . . prometia envolvê-los,
à sua maneira tão furiosa como a nobreza é à sua.
Quando regressaram casados, ela uma autêntica con
dessa de Savigny, ele totalmente desonrado por se ter ca
sado com uma criada, foram-se instalar lá, no seu castelo
de Savigny. fu pessoas voltaram-lhes as costas. - Deixa
ram-nos saciar-se à vontade um com o outro . . . No en
tanto parecia que nunca chegavam a ficar repletos; ainda
há pouco não estava aplacada essa fome que sentem de si
próprios. Naquilo que me toca, porque não quero mor
rer sem ter escrito, na minha qualidade de médico, um
88
tratado de teratologia, interessavam-me . . . como mons
tros, e não me pus na fila dos que fugiram deles.
Quando vi a falsa Eulalie ser uma autêntica condessa, re
cebeu-me como se o tivesse sido durante toda a vida.
Queria lá saber que eu tivesse na memória a lembrança
do avental branco e da bandeja! "Deixei de ser a Eula
lie", disse-me ela, "sou a Hauteclaire, a Hauteclaire feliz
por ter sido criada dele . . . " Eu pensava que outra coisa
muito diferente tinha sido; mas como fui a única pessoa
da terra a aparecer em Savigny, quando para lá voltaram,
já tinha toda a vergonha engolida e acabei por visitá-los
muitas vezes. Posso dizer que continuei a perscrutar com
obstinação a intimidade dessas duas criaturas tão com
pletamente felizes através do amor. Pois bem, meu caro!
Acredite se quiser, mas não vi que a pureza desse amor
maculado por um crime cometido, estava eu certo disso,
fosse . . . já não direi embaciada, mas num só minuto de
um dos seus dias assombrada. No firmamento da sua fe
90
há factos, e eles espantaram-me tanto como o espanta
ram a si. Há o fenómeno de uma felicidade contínua, de
uma bola de sabão que continua a aumentar e nunca re
benta! Quando a felicidade é contínua, já é uma sur
presa; mas esta felicidade no crime é uma estupefacção, e
há vinte anos não me refaço dela. O velho médico, o ve
lho observador, o velho moralista. . . ou imoralista -
continuou ele, observando o meu sorriso - fica des
concertado com o espectáculo de que é há tantos anos
assistente e que não consegue dar a ver-lhe em porme
nor, porque existe uma frase arrastada por todos os sítios,
tão verdadeira ela é!, a dizer-nos que a felicidade não tem
história. Nada mais há a descrever. Não pode pintar-se
mais a felicidade, essa infusão de uma vida superior na
vida, do que poderia pintar-se a circulação do sangue
das veias. Pelo pulsar das artérias verifica-se que ele lá cir
cula, e assim verifico a felicidade destes dois seres que
acaba de ver, a felicidade incompreensível, à qual eu
tomo há muito tempo o pulso. Sem darem por isso, o
conde e a condessa de Savigny refazem todos os dias o
magnífico capítulo de O Amor no Casamento, de Ma
dame de Stael, ou os ainda mais magníficos versos de
O Paraíso Perdido de Milton. No que me diz pessoal
mente respeito, nunca fui muito sentimental nem muito
poético; mas eles, com o ideal que realizaram e eu julga
ria impossível, fizeram-me ficar enfastiado com esses ca
samentos que conheci, chamados pela sociedade encan-
91
tadores. Sempre os achei muito inferiores ao deles, tão
descoloridos e tão frios são! O destino, a sua estrela, o
acaso, sei lá o quê!, conseguiram fazê-los viver para si
próprios. Ricos, tiveram a dádiva da ociosidade sem a
qual o amor não existe, mas que mata muitas vezes o
amor que precisa dela para nascer . . . No seu caso excep
cional, a ociosidade não o matou. O amor, que simpli
fica tudo, fez da sua vida uma simplificação sublime. Na
existência destes dois casados, que na aparência viveram
como todos os castelões da terra, longe do mundo a que
não têm de pedir nada, a preocuparem-se tão pouco
com a estima que ele lhes dedica como se preocupam
com o seu desprezo, não há essas coisas grosseiras a que é
costume chamar-se acontecimentos. Nunca se separa
ram um do outro. Aonde um deles vai, o outro acompa
nha-o. As estradas dos arredores de V . . . voltam a ver a
Hauteclaire montada a cavalo, como no tempo do velho
Estocada, mas com ela está o conde de Savigny; e as mu
lheres da terra, que passam de carro como outrora, talvez ·
a olhem ainda mais do que na altura da grande e miste
riosa rapariga com véu azul-escuro e impossível de ser
vislumbrada. Agora ergue o véu e mostra atrevidamente
o rosto de criada que conseguiu casar-se com o patrão, e
elas voltam para casa indignadas mas sonhadoras . . . O
conde e a condessa de Savigny não viajam; vêm algumas
vezes a Paris, mas só aqui ficam uns dias. A sua vida con
centra-se por completo naquele castelo de Savigny, tea-
92
tro de um crime cuja memória talvez eles tenham per
dido no abismo sem fundo dos seus corações . . . »
- E nunca tiveram filhos, doutor? - perguntei.
- Ah! - disse o doutor Torty - Julga que está
aí a fissura, a desforra da Sorte e aquilo a que se chama
a vingança ou a justiça de Deus? Não, nunca tiveram
filhos. Lembre-se! Ocorreu-me uma vez a ideia de que
não iriam tê-los. Amam-se em excesso . . . O fogo . . .
que devora . . . consome e não produz. Um dia eu disse
à Hautedaire:
«- Não está triste por não ter filhos, senhora con
dessa?
«- Não os quero! - respondeu imperiosamente.
- Amaria menos o Serlon. Os filhos - acrescentou
com uma espécie de desprezo - são bons para as mu
lheres infelizes!»
E com esta frase, que supunha profunda, o doutor
Torty acabou de repente a sua história.
Eu tinha-a seguido com interesse, e disse-lhe:
- Por muito criminosa que a Hautedaire seja,
faz-nos interessar por ela. Sem o seu crime, eu com
preenderia o amor do Serlon.
- Talvez mesmo com o crime! - disse o doutor.
- Tal como eu - acrescentou o intrépido homem de
bem.
93
COLECÇÃO GATO MALTÊS
O Teatro, Emma Santos
A Casa do Incesto, AnaYs Nin
História Universal da Infâmia, Jorge Luis Borges
Primeiro Livro de Urizen (ed. bilingue), William Blake
Do Caos à Ordem (ed. bilingue) , Ezra Pound
Mocidade, Joseph Conrad
Cálamo (ed. bilingue) , Walt Whitman
A Princesa, D.H. Lawrence
A Canção de Amor de J. Alfred Prufrock (ed. bilingue) , T.S. Eliot
Lunar Caustic, Malcolm Lowry
De Três em Pipa, L.F. Céline
A Fera na Selva, Henry James
«8 Ícones», Arsenii Tarkovskii
Bartleby, Herman Melville
Os Hinos à Noite (ed. bilingue) , Novalis
As Magias (alguns exemplos), versões Herberto Helder
A Voz Humana, Jean Cocteau
Seta de Fogo (ed. bilingue) , Santa Teresa de Ávila
A Mão ao Assinar Este Papel (ed. bilingue) , Dylan Thomas
Pela Água (ed. bilingue) , Sylvia Plath
Ficção Suprema (ed. bilingue) , Wallace Stevens
xix poemas (ed. bilingue) , e.e. cummings
O Tempo Aprazado (ed. bilingue) , Ingeborg Bachmann
Aos Mortos da União e Outros Poemas (ed. bilingue) , Robert Lowell
Antologia Breve (ed. bilingue) , William Carlos Williams
O Livro das Igrejas Abandonadas, Tonino Guerra
Elegias Amorosas (ed. bilingue) , John Donne
Esta É a Minha Carta ao Mundo (ed. bilingue) , Emily Dickinson
A Última Costa (ed. bilingue) , Francisco Brines
Poemas de Amor do Antigo Egipto
Aforismos, Teixeira de Pascoaes
Greguerías, Ramón Gómez de la Serna
A Teoria e o Cão I Os Caminhos que Tomamos, O. Henry
O Nariz, Nikolai Gógol
Hamlet Tragédia Cómica, Luís Bufíuel
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Chuva na Primavera e Outros Poemas, Li Shang-yin
O Capote, Nikolai Gógol
Poemas (ed. bilingue} , Victor Hugo
O Fogueiro, Franz Kafka
História do Soldado, C.-F. Ramuz
A Guerra Santa, René Daumal
O Dom das Lágrimas (orações da antiga liturgia cristã) (ed. bilingue} ,
Vanina Vanini, Stendhal
Avenida Névski, Nikolai Gógol
Diário de um Louco, Nikolai Gógol
Primeira Neve (Haikus} , Issa Kobayashi
O Menino ao Colo. Momentos, Falas, Lugares do Sublime Santo
António, Armando Silva Carvalho
O Jogo das Nuvens, Johann Wolfgang Goethe
Poemas Anónimos - Turcos, Mongóis, Chineses e Incertos
A Flagelação das Bolsinhas de Camurça seguido de Um Outro Kratki
-Baschik, Heimito von Doderer
O Retrato, Nikolai Gógol
O Imenso Adeus - Poemas celtas do amor
O Grito do Gamo - Poemas celtas da fé e do sagrado
Parábolas e Fragmentos, Franz Kafka
O Homem Que Morreu, D.H. Lawrence
O Oficial Prussiano, D.H. Lawrence
O Poema do Manto, Ka'b ibn Zuhayr
A Perfeita Harmonia - Poemas celtas da natureza
O Fim do Mundo Filmado pelo Anjo N.-D., Blaise Cendrars
Folhas de Viagem, Blaise Cendrars
Lorenzaccio seguido de O Prisioneiro de Sintra, Paul Morand
E Cantou como Canta a Tempestade,
Anna Akhmátova e Marina Tsvétaleva
Frágua de Amor / Floresta de Enganos, Gil Vicente
O Livro Branco, Jean Cocteau
Carta a D. Luís sobre as Vantagens de Ser Assassinado / O Seu Enterro,
Fialho de Almeida
Os Cardos do Baragan, Pana'it lstrati
Tenzo Kyokun - Instruções para o Cozinheiro Zen, Eshei Dogen
O Bebedor Nocturno, versões de Herberto Helder
O Tempo das Suaves Raparigas e Outros Poemas de Amor, Ruy Belo
REVISÃO: ANTÓNIO LAMPREIA
2675-374 ODIVELAS