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GATO MALTb / 78

A FELICIDADE
NO CRIME
Barbey D'Aurevilly, retratado por E. Levy (1881).
Barbey D'Aurevilly

A FELICIDADE
NO CRIME

tradução e apresentação

ANÍBAL FERNANDES

ASSÍRIO & ALVIM


TÍTULO ORIGINAL: LE BONHEUR DANS LE CRIME

©ASSÍRIO & ALVIM (2010)


RUA PASSOS MANUEL, 67-B, 1150-258 LISBOA
tradução © ANfBAL FERNANDES

NA CAPA: GUSTAV KLIMT, SENHORA COM CHAPÉU DE PLUMA (1910)

ISBN 978-972-37�1545-3
EDIÇÃO 1435, DEZEMBRO 2010
Nascer num país católico em 2 de Novembro é, por
fatalidade de calendário, nascer num Dia de Finados; e,
na vida de Barbey d'Aurevilly (bastante longa porque de
oitenta e um anos no século XIX), entendido como mau
pressdgio: Vim ao mundo num dia de Inverno escuro
e gelado; o dia dos suspiros e das lágrimas que os mor­
tos, dando-lhe o nome, marcaram com uma profecia
de pó. Sim, acreditei sempre que esse dia espalhou
uma influência funesta sobre a minha vida e o meu
pensamento.
Acrescente-se ao dia- às simbologias do dia- um
parto caseiro de 1808feito por mãos indbeis e num remoto
Saint-Sauveur-le- Vicomte, a poucos passos do Canal da
Mancha; onde o mal atado nó umbilical esvaiu o recém­
-nascido até hesitações que pareciam de vida e de morte.
De todo este sangue sobreviveu a criança; desde muito
cedo diferente porque, na idade dos brinquedos e dessa
agitação que é da infância, jd sonhadora de longas horas à
frente daspaisagens normandas e de um mar definisterra,
porque atenta aos contos que lhe mostravam fadas e gigan­
tes- o que era natural- mas a exibir uma precoce luci-

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dez que a fazia encantar-se pelas conversas que só eram
«dos crescidos». Este Jules Amedée, primogénito numa série
de quatro e toda masculina, foi hostilizado pelas suas in­
vulgaridades. Contrariava a mãe com esta atitude assim,
tão pouco infantilperante a vida, com afalta de graça que
se espera de um menino - único, naqueles dias, na grande
casa dos Barbey; e, pior ainda, a. mãe traída pe/,a negação
de beleza física num ser criado nas suas entranhas de mu­
lher retocada pelas vaidades e pelos luxos possíveis naquele
fim de França. «És feio!», dizia-lhe a expandir a sua de­
cepção; ou ainda a terceiros e com ele a ouvi-/,a: «Jd viram
criança maisfeia?»
Acusar de fealdade uma criança é construir sobre o
seu frdgil suporte de mundo um destino de solidão interior.
E talvez daqui a suspeita de esta desastrada mãe ter deter­
minado traços marcantes no cardcter do Jules Amedée Bar­
bey (trinta anos mais tarde Barbey d'Aurevilly, quando
lhe pareceu que uma sonoridade aristocrdtica não estaria
mal no seu nome das letras, e se apropriou do que mais gos­
tava na assinatura de um seu tio-avôjd falecido). Dir-se-d
que esta fealdade de rosto e de presença constantemente
sentida, mesmo nos momentos em que ele não se olhava ao
espelho, procurou compensações numa arrogância de
classe, na inteligência exibicionista, num e/,aborado acto de
aparência. D'Aurevilly fez-se mondrquico ostensivo por­
que aqueles tempos de República humilhavam osprestígi,os
normandos dos Barbey; contrariou a intelectualidade /,aica

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da sua época com um catolicismo autoritdrio, sonhado
com terrores góticos do Além, cruzadas de estandarte er­
guido e tudo o que lhe chegava soprado na leitura de velhas
crónicas sangrentas. Teve coragens, como essa de um indi­
vidualismo ao contrdrio dos· ventos socializantes (Bem
procuro a verd<\_de nas massas mas não a encontro, só a
encontro nos indivíduos), como a do seu brandido de­
sencanto no país que tinha como lema a .fraternidade e a
iguaúlade sonhadas pe/,a Revolução (O homem só pode
levar a bom termo a sua vida numa sociedade estrita­
mente ordenada, como existiu na Idade Média).
O seu acto de aparência, esse, foi todo copiado do
dandismo; talvez grotesco, mas supostamente inspirado
pelo melhor de George BrummelL· Para as pessoas do meu
género, a forma nunca é uma coisa fútil, e a preocupa­
ção do trajo é a preocupação de uma frase bem feita, e
mesmo mais do que isso. Mais do que uma .frase bem
feita, foi preocupação de acrescentar um ícone de biza,rras
elegâncias ao conjunto de atitudes religiosas, políticas e
literdrias que ele pôs a circu/,ar em contracorrente, e com
evidente vontade de controvérsia, nos meios intelectuais de
Paris. Os Irmãos Goncourt viram-no num jantar de Maio
de 1885, tinha ele setenta e seis anos de idade, e deixaram
este sarcasmo no seu Journal: « Traz vestida uma sobreca­
saca com abasfolgadas que lhefazem ancas, como se usasse
uma crinolina, traz umas calças de lã branca queparecem
cerou/,as de baetilha com presilhas. Por baixo desta roupa

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ridícula e pederdstica, um senhor de excelentes maneiras
com palavra doce de homem habituado a falar às mulhe­
res, e com falta de dentes que lhe dd uma entoação gutu­
ralparecida, embora em tom menor, com a do Frédérick
Lemaitre. » Neste final de vida assombrado por grandes
dificuldades materiais, o seu dandy a todo o custo era pa­
tética paródia de um ídolo de muitos anos, o Lord Byron
considerado pela elegância formoso, apesar do seu metro e
cinquenta e dois de altura e do pé deformado. (Sou um
Lord Byron, se não de génio pelo menos de instinto, e
sem fortuna nesta sociedade de mortos-de-fome e de
igualitários.)
D'Aurevilly vivia em Paris desde 1833, em ruptura
com os preconceitos provincianos de Saint-Sauveur-le­
- Vicomte e com a sua família jansenista. Uma herança
entregue à sua discrição desde a morte de Lefevbre de
Montrenel seu padrinho, oferecia-lhe aos vinte e cinco
anos de idade todas as seduções de Montparnasse. Ojovem
normando entregou-se de bolsos cheios aosprazeres caros da
Cidade e aos elevadospreços dos costureiros de Paris. Tinha
cabeleireiro didrio e ao domicílio, bengalas que saíam de
um gosto aristocrdtico de outras idades, luvas de uma sin­
gularidade diftcil de localizar nas ofertas do mercado.
E o dinheiro do padrinho Montrenel não durou
muito. D'Aurevilly teve de sujeitar-se a umjornalismo di­
fícil· diftcilporque malpago, diftcilporque um jovem na
casa dos vintehostilizava com impertinência e a persistên-

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'
eia do seu verbo alto alguns dos maiores prestígi,os da lite­
ratura nacional O jovem Barbey d'Aurevilly incensava,
por exemplo, Balzac, Stendhal Baudelaire e Léon Bloy;
mas incomodava Victor Hugo argumentando longamente
· que Les Misérables, no auge da sua popularidade, como
literatura não chegava aos calcanhares de Les Mysteres de
Paris de Eugene Sue; ou Flaubert chamando-lhe «assus­
tadora secura». Depois de ser insistentemente atacado,
Sainte-Beuve escreveu que o seujovem detractor era apenas
«Um sapo que gostaria de ser víbora»; e, do cimo da sua
glória, É mile Zola respondeu às suas invectivas chamando­
-lhe «um católico histérico».
Eram ondas impertinentes, provocadas por um jovem
sem nome firmado no jornalismo; era uma coragem que
ateava, de cabeça perdida, braseiros incómodos a grandesfi­
guras da cena literdriaftancesa. Ojovem d'Aurevilly teve a
decepção de ver algumasportasfecharem-se àsprosas do seu
jornalismo crítico. Hd, numa carta do director da Revue
des Deux Mondes, a explicação da sua recusa em tê-lo nas
suas colunas: «Tem o talento de um enraivecido, e não quero
que venha pegar-me fogo à loja!» E desta mesma crise se
conhece o que ele próprio pensou de si e da sua França: Na
França, a originalidade fica sem pátria: proíbem-lhe o
fogo e a água; odeiam-na tanto como a um distintivo
nobiliário. A França levanta as pessoas medíocres e sem­
pre prontas a dar, contra os que não são como elas, mor­
deduras de gengivas que não rasgam mas sujam.

II
Só em 1851, ou seja, aos quarenta e três anos de idade,
Barbey d'Aurevilly se estreou como escritor de romances,
dando a conhecer excepcionais dotes de narrador não pre­
visíveis na sua anterior obra de jornalista. Véio mais tarde
a perceber-se que a consciência deste talentofaria, nas suas .
ficções, a narração suplantar a história, o discurso ter as-
r

cendente sobre a narrativa; que ele seria sempre um autor


de «eu», mesmo que se não dirigisse ao leitor na primeira
pessoa. D'Aurevilly escrevia para um leitor-auditor e sedu­
zia-o com movimentos lentos e sinuosos de uma linguagem
vibrante, de umafalsa «oralidade» que ele nunca se esque­
cia de conciliar com as mais ddssicas formas de estar nas
prosas da literatura. Percebeu-se também que o jornalista
fogoso passava palavra a um inventor de históriasfascina­
das pelo Mal a um romancista com vocação para fazer as
suas personagens construírem êxitos e felicidades de vida
<<pecaminosos». Tudo a levar à pergunta que dificilmente
teria resposta: como era possível um católico de altiva pose
tão mal defender os valores cristãos?
Logo em 1851 o seu primeiro romance levou, com o
fósforo incendiário anunciado no Prefdcio, as melhores
mentes ao escândalo; e Une Vieille Ma1tresse- esta his­
tória escrita «com sangue coagulado» - veio a ter em
1858 outra edição, suavizada para serenar tempestades.
Catorze anos depois Un Prêtre Marié, sombria ficção de
um padre casado, irritou profandamente a Igreja embora
excitasse agradavelmente muitos leitores com o seu estilo

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brilhante e a violência das suas alucinações. Em 1874
aconteceu o pior: as seis novelas das quase quinhentas pd­
gi,nas de Les Diaboliques foram retiradas do mercado por
ordem judicial e D'Aurevilly sofreu uma ameaça de pro­
cesso feita por um ma_ gistrado que lhe reconhecia «O prazer
da indecência naspinturas, inexplicdvel num autor que se
proclamava católico». Hd desta mesma altura uma carta
em que o visado pergimta: O que haveria mais estúpido
do que os monárquicos, se não existissem os católicos?
Em meio século de vida parisiense teve muitos mo­
mentos q ue responderam mal às necessidades do seu
guarda-roupa, aos seus hdbitos de dandy, à vontade de ser
visto sob aparências de um alto nível social Mas antes de
chegar à grave situação financeira dos seus últimos dias,
teve desalentos como este: Volto a estar na minha solidão,
com o quarto em desordem, os frascos precipitada­
mente destapados no momento em que saio de casa,. e
lá ficam abertos a exalar o que já não têm dentro; roupa
em cima dos móveis, e livros e papéis espalhados! Esta
vida pesa-me. Sem lugar, sem lar, numa tenda de nó­
mada que em poucas horas se desmonta e levamos con­
nosco. É triste, passados vinte e cinco anos! E isto tam­
bém numa carta à baronesa de Bouglon, o seu anjo
branco, a sua eterna noiva nunca desposada: O meu ta­
lento é uma reacção contra a minha vida, é o sonho da­
quilo que me faltou. Mais teria gostado, de facto, de ser
um brilhante coronel dos hussardos, que conduz o seu

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regimento para o fogo, do que ter escrito tudo o que es­
crevi. Não é esta a opinião de muitos dos meus amigos,
mas é a minha, porque um marechal das letras nunca
me há-de valer um marechal da França.
Em 1889, um dia depois da sua morte, jean Lorrain
escreveu que o senhor D'Aurevilly se tinha mantido oitenta
anos igual a si próprio; que era «um orgulho de grande se­
nhor e uma consciência de homem honesto» e, naquela
partida, a merecer «uma grande chapelada». E Léon Bloy
foi dos que fizeram justiça ao seu rasto de fogo nas letras
\ francesas: <<Àté ele aparecer, nenhum romancista excitou
·

tão perigosamente a mucosa dos magistrados mais auste­


ros»; e acrescentava que era sua, a verdadeira «monografia
do Crime e da Felicidade nos braços do crime».
Tratava-se, como é evidente, de uma referência directa
a esta novela que fica como excelente exemplo da prosa e das
obsessões mais persistentes da obra ficcionada de Barbey
d'Aurevilly, escrita para figurar entre as suas seis «diabóli­
cas», seis mulheres saídas do que pode a Eva bíblica dar de
mais misógi,no e destruidor. À Hauteclaire de <<À Felici­
dade no Crime» cabe a glória do êxito altivo contra um
escândalo onde só a vítima do crime tem castigo; onde a
única angústia é da mulher que se sente traída, na sua aris­
tocracia, pela vitóriafria de uma plebeia. Era umjogo ina­
ceitdvel numa épocaformada por romances de crimespuni­
dos, e teve o preço de uma condenação. Mas D'Aurevilly
viveu o suficientepara assistir, sete anos antes da sua morte,

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à reabilitação comercial de Les Diaboliques concedida ao
velho autor septagendrio que a Terceira República resolvia
homenagear; e fazia-o no mesmo ano em que era publi­
cado o seu maior êxito como escritor: Uma História Sem
Nome, com um título que se negava a si próprio, nem
diabólica, nem cesleste, mas. . . sem nome, dizia a sua
epígrafe, talvez para não fazer desde logo pressentir o que
as suas capacidades de romancista, intactas, sabiam ima­
ginarpara um grandioso horror da culpabilidade sexual e
dos enigmas da sua redenção.

A.E
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Neste tempo delicioso, quando se
conta uma história verídica é de
acreditar que o Diabo a ditou...

Numa das manhãs do último Outono andei a pas­


sear no Jardim das Plantas, acompanhado pelo doutor
Torty que é, por certo, um dos meus mais velhos conhe­
cimentos. Não passava eu de uma criança, já o doutor
Torty exercia medicina na cidade de V ; mas depois de
. . .

cerca de trinta anos com este agradável exercício, e de os


seus doentes terem morrido - os seus feitores, como ele
lhes chamava, e mais renda lhe terem trazido do que os
feitores aos. seus arrendatários nas melhores terras da
Normandia - outros não arranjara; e com idade já
avançada, e a estrondear independência como um ani­
mal que tivesse desde sempre caminhado com freio e
acabasse por parti-lo, viera enfiar-se em Paris - mesmo
ali, nas viZinhanças do Jardim das Plantas, julgo que na
rua Cuvier - onde só praticava medicina por um pra­
zer pessoal que era grande, aliás, porque tinha a profis-

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são no sangue e até à ponta as unhas, e porque além de
médico a sério era grande observador de muitos outros
casos, não apenas fisiológicos e patológicos . . .
Alguma vez encontrastes o doutor Torty? Era um
destes espíritos ousados e vigorosos, que não calçam
luvas pela muito boa e proverbial razão de «os gatos de
pata enluvada não caçarem ratos» e porque, sendo ma­
treiro de raça fina e forte, já apanhara imensos e conti­
nuava a querer apanhá-los; da espécie de homens que
me agradam muito e sobretudo pelos lados (sei bem
do que falo!) que aos outros mais desagradam. Com
efeito, o brusco e original deste doutor Torty costu­
mava desagradar bastante aos que se portavam bem;
mas quando aqueles a quem mais desagradava adoe­
ciam, faziam-lhe salamaleques como os selvagens à es­
pingarda de Robinson que podia matá-los; não pelas
mesmas razões dos selvagens, mas sobretudo por razões
contrárias: podia salvá-los! Sem esta condição prepon­
derante, nunca o doutor teria ganho vinte mil libras de
rendimento numa pequena cidade aristocrática, de­
vota e presumida, que o deixaria pura e simplesmente
à porta de cocheira dos seus palácios se apenas tivesse
em conta as suas próprias opiniões e antipatias. Com
muito sangue-frio o notava, aliás, e com isto se diver­
tia. «Íeriam de escolher - dizia ele, a gracejar, nos
tempos em que cumpria o contrato de trinta anos em
V. . . entre mim e a extrema-unção; e, por muito

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devotos que fossem, preferiam ter-me pela frente do
que aos santos óleos.» Podeis ver que não era de meias
palavras, o doutor. Tinha uma graça ligeiramente sa­
crílega. Franco discípulo de Cabanis em filosofia
médica, era como o seu velho camarada Chaussier; da
escola desses médicos terríveis, porque de um mate­
rialismo absoluto; e, como Dubois - o primeiro dos
Duboisl - de uma impudência que deita tudo abaixo,
que trataria por tu duquesas e damas de honor da im­
peratriz, e chamar-lhes-ia «mãezinhas», como se mais
nem menos elas fossem do que peixeiras. Para dar uma
simples ideia da impudência do doutor Torty, foi ele
quem uma noite me disse no círculo dos Ganaches,
com olhar de proprietário e abraçando sumptuosa­
mente o quadrilátero cheio de brilhos de uma mesa
enfeitada com cento e vinte convivas: «Sou eu quem os
faz a todos! . . . » Mais orgulhoso Moisés não estaria ao
mostrar a vara que transformava rochedos em fontes.
Mas que outra coisa haveríeis de querer, senhora2? Não
tinha essa protuberância craniana das inteligências que
metem respeito, e até achava que tinha um buraco no
sítio onde ela existe no crânio dos outros homens. Ve-

1 Cabanis, médico materialista, autor do Traité du Physique et du Moral de


l'Homme. Chaussier, professor de Anatomia e Fisiologia em Paris. Antoine Dubois,
parteiro célebre, o que assistiu ao parto da imperatriz Maria Luísa quando nasceu
o Rei de Roma. (N. do T.)
2 Esta narrativa é feita a uma indeterminada auditora. (N. do T.)

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lho com os setenta ultrapassados mas largo, robusto e
nodoso como o seu· nome; com rosto sardónico, e de­
baixo do capachinho castanho-claro, muito liso, muito
lustroso e de cabelo muito curto, com um olhar pene­
trante, virgem de óculos, e quase sempre vestido com
fatos cinzentos ou desse castanho há muito tempo cha­
mado famo de Moscovo, nem de trajo nem de aspecto se
parecia com esses senhores médicos de Paris, correctos e
engravatados a branco como o sudário dos seus mortos!
Era outro género de homem. Com luvas de gamo, bo­
tas de sola forte e tacão grosso que fazia ressoar num
passo muito firme, havia nele qualquer coisa de homem
prevenido e cavaleiro; e a palavra exacta é cavaleiro por­
que tinha mantido (quantos anos passados sobre os
trinta!) o calção charivari abotoado na coxa quando ia a
cavalo por caminhos de partir centauros ao meio - e

tudo a adivinhar-se bem na forma como ainda empi­


nava o largo busto aparafusado a rins que não se mexiam,
e se balançava sobre pernas fortes sem reumáticos, ar­
queadas como as de um antigo postilhão. O doutor
Torty era uma espécie de Meias de Couro equestre que
tivesse vivido nos pantanais do Cotentin, como o Meias
de Couro de Cooper nas florestas da América. Natura­
lista que troçava das leis sociais, como o herói de Co o_­
per, não as tinha porém substituído pela ideia de Deus,
como o homem de Fenimore, e transformara-se num
destes observadores impiedosos que não podem deixar

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de ser misantropos 1 • Isto é fatal. E, por isto mesmo, ele
era assim. Tivera tempo de se embotar com as outras
vazas da vida, enquanto obrigava o ventre cilhado do
cavalo a beber a lama dos maus caminhos. Não era
nada parecido com um misantropo à maneira de Al­
ceste2. Não se indignava virtuosamente. Não se encole­
rizava. Não! Tão calmamente desprezava o homem
como cheirava uma pitada de tabaco; e ao desprezá-lo
chegava mesmo a sentir tanto prazer como a cheirá-la.
Era assim, sem tirar nem pôr, este doutor Torty
com quem eu passeava.
Nesse dia o tempo era de um Outono alegre e claro,
de fazer parar as andorinhas que vão partir. O meio-dia
soava na Notre-Dame e era de tal forma puro o ar
vibrado, que o grave e grande sino parecia derramar
longos estremecimentos luminosos por cima do rio
verde e matizado nos pilares das pontes, e até por cima
das nossas cabeças! A folhagem ruiva das árvores do jar­
dim tinha gradualmente enxugado o nevoeiro azul que
as afoga nessas vaporosas manhãs de Outubro, e um

bonito sol de fim de estaç�o aquecia-nos agradavel­


mente as costas com o seu algodão de ouro, as minhas e
1 O americano Fenimore Cooper (1789-1 851) escreveu cinco livros de
uma série que intintlou Leather-Stocking Novels (Romances dos Meias de Couro).
D'Aurevilly refere-se ao seu herói Harvey Birch, solitário, que sacrifica tudo ao
patriotismo. (N. do T.)
2 Personagem de O Misantropo de Moliere, que odeia ostensivamente o
género humano. (N. do T.)

21
as do doutor, enquanto parámos para ver a famosa pan­
tera negra que o Inverno passado morreu, e do peito
como as raparigas. Num ponto ou noutro havia à volta
o público habitual do Jardim das Plantas, esse público
especial, feito por gente do povo, soldados e criadas de
meninos, que gosta de se embasbacar à frente da grade
das jaulas e se diverte muito a atirar cascas de noz e cas­
cas de castanha aos animais entorpecidos ou que dor­
mem atrás das suas barras de ferro. Por certo estareis
lembrados de que essa pantera, da qual nos aproximá­
mos a deambular, era da espécie só existente na ilha de
Java, o país do mundo com a mais intensa das nature­
zas, ela própria parecida com uma qualquer grande ti­
greza que o homem não domestica, o fascina e morde
com tudo o que o seu solo terrível e esplêndido produz.
Em Java as flores têm mais brilho e perfume, os frutos
mais gosto, os animais maior beleza e força do que em
qualquer outro país da terra, e nada consegue dar uma
ideia desta violência de vida aos que não receberam as
lancinantes e mortais sensações de uma região ao mesmo
tempo enfeitiçadora e envenenadora, ao mesmo tempo
Armida e Locustai. Espalhada com indolência sobre as
patas elegantes e esticadas à sua frente, com a cabeça
erguida, os olhos de esmeralda imóveis, o animal era
1 Armida é a que retém pelos seus encantos o Rinaldo de Jerusalém Liber­
tada de Torquato Tasso. Locusta é quem prepara o veneno que Nero dá a beber
a Britânico, na tragédia de Jean Racine. (N. da T.)

22
uma magnífica amostra das temíveis produções do seu
país. Nenhuma, mancha fulva lhe estrelava a pelagem de
veludo negro, de um negro tão profundo e baço que a
luz, ao deslizar nela, nenhum brilho fazia e era absorvida
como a água na esponja que a bebe . . . Quando desviá­
vamos o olhar desta forma ideal de beleza flexível; de
terrível força num repouso, de impassível e majestático
desdém para com as criaturas humanas que lhe deita­
vam miradas tímidas, a contemplavam com olhos arre­
galados e boca aberta, à humanidade não cabia o melhor
papel, mas ao animal. E tão superior, que chegava quase
a ser humilhante! Eu comentava isto em voz muito
baixa com o doutor, quando duas pessoas cindiram o
grupo amontoado junto da pantera e foram plantar-se
mesmo à frente dela: «Sim - respondeu-me o doutor
- mas veja agora! Está restabelecido o equilíbrio entre
as espécies!»
Eram um homem e uma mulher, ambos altos, e
logo ao primeiro olhar me pareceram dos estratos ele­
vados do mundo parisisense. Não eram jovens, nein
um nem outro, mas nem por isso deixavam de mostrar
uma beleza perfeita. O homem devia andar pelos qua­
renta e sete anos ou mais, e a mulher devia ter ultrapas­
sado os quarenta. . . Tinham transposto a linha, como
dizem os marinheiros que regressam da Terra do Fogo,
a linha fatal, mais formidável que a do Equador porque
não voltamos, uma vez transposta, a cruzar os mares da

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vida! Mas esse facto parecia preocupá-los pouco. Nem
na cara nem noutra parte tinham melancolia . . . O ho­
mem, esguio e patrício na sobrecasaca preta tão bem
abotoada como a de um oficial de cavalaria, parecia ter
vestido um dos trajos que Tiziano dá aos retratos e,
com essa elegância severa, o ar efeminado e altivo, os bi­
godes agudos de um gato, com pontas que começavam
a esbranquiçar, parecia um favorito do tempo de Hen­
rique III; e para mais completa parecença usava um ca­
belo curto que deixava bem visíveis nas orelhas duas sa­
firas de um azul escuro, que me fizeram lembrar as duas
esmeraldas usadas por Sbogan exactamente no mesmo
sítio 1 . Exceptuado este pormenor ridículo (como a
• •

alta sociedade diria) e a mostrar bastante desdém pelos


gostos e pelas ideias da época, no comportamento desse
homem que não chamava por si próprio as atenções
nem as captaria de todo se não desse o braço à mulher
que ali estava naquele momento, tudo era simples e
dandy como o pretendia Brummell, ou seja, sem dar
nas vistas . . Com efeito, muito mais do que o seu
.

acompanhante esta mulher atraía os olhares e por mais


tempo os retinha. Era grande como ele. Tinha a cabeça
quase à altura da sua. E como também vestia total­
mente de preto, pela amplidão das formas, pela miste-:-
1 Herói de «Jean Sbogan>, um conto de Charles Nodier, a história de um

salteador, chefe oculto de um bando que aterroriza o litoral veneziano e dálmata


nos primeiros anos do século XIX. (N. do T.)

24
riÔsa altivez e pela força lembrava a grande Ísis negra do
Museu Egípcio. Coisa estranha! Se nos aproximásse­
mos deste belo casal, eram da mulher os músculos e do
homem os nervos . . . Nessa altura eu só a via de perfil;
mas o perfil é o escolho da beleza ou a sua mais bri­
lhante certificação. Julgo que nunca tinha visto outro
mais puro e mais altivo. Quanto aos olhos eu não podia
julgá-los porque os tinha fixos na pantera que estava a
receber, sem dúvida, uma impressão magnética, desa­
gradável; e já imóvel, conforme ia sendo olhada pela
mulher que tinha ido vê-la, parecia mergulhar cada vez
mais nessa imobilidade rígida; e - como os gatos, se
uma luz os encandeia - sem mexer a cabeça um milí­
metro, sem a fina extremidade dos bigodes estremecer;
mas depois de piscar algum tempo os olhos, e como se
não conseguisse aguentar mais, a pantera recolheu sob a
corrediça das pálpebras, lentamente, as duas estrelas
verdes do seu olhar. Emparedara-se.
- Eh! Eh! Pantera contra pantera! - disse-me ao
ouvido o doutor. - Mas o cetim é mais forte do que o
veludo.
O cetim era a mulher com um vestido desse tecido
luzente - um vestido de cauda a arrastar. E tinha visto
com acerto, o doutor! Preta, flexível, com articulações
igualmente fortes e real atitude também - na sua es­
pécie com uma beleza equiparável, e uma sedução
ainda mais inquietante - a mulher, a desconhecida,

25
estava erguida à frente da pantera animal como uma
pantera humana, e a eclipsá-la; e a fera, sem dúvida,
acabara de senti-lo no momento em que fechou os
olhos. Mas à mulher - admitindo que era uma - não
bastou este triunfo. Faltou-lhe generosidade. Quis que
a rival a visse humilhá-la e para isso voltasse a abrir os

olhos. E então, sem dizer uma palavra abriu os doze bo­


tões da luva roxa que lhe modelava o magnífico ante­
braço, tirou-a, passou audaciosamente a mão entre as
grades da jaula e vergastou com ela o focinho curto da
I
pantera, que so teve um movimento . . . mas que movi-
• •

mento! . . . e com uma dentada rápida como um relâm­


pago . . . Do grupo onde estávamos saiu um grito. Julgá­
mos que o punho tinha sido arrancado: mas só tinha
sido a luva. A pantera engolira-a. A formidável fera ul­
trajada reabrira os olhos pavorosamente dilatados, com
as narinas franzidas ainda a vibrar . . .
- Louca! - disse o homem, agarrando na bela
mão que acabava de escapar à mais cortante das dentadas.
Todos sabem como às vezes se diz «louca!» . . .
Dessa forma ele o disse; e com um gesto arrebatado
beijou-lhe a mão.
E, como ela estava do nosso lado, para o olhar vol­
tou-se a três quartos baixando a mão sem luva; e vi que
olhos tinha. . . olhos que fascinavam tigres e naquele
momento se fascinavam por um homem; os seus olhos,
dois grandes diamantes pretos talhados para todas as
sobrancerias da vida, e que ao olhá-lo exprimiam mais
do que todas as adorações do amor!
Aqueles olhos eram e diziam todo um poema.
O homem não largara o braço que devia ter sentido o
hálito febril da pantera e, mantendo-o dobrado sobre
o seu coração, arrastou com ele a mulher na grande ala­

meda do jardim, indiferente aos murmúrios e às excla­


mações do grupo popular - ainda emocionado com o
perigo que a imprudente acabara de correr - e voltava
tranquilamente a atravessá-la. Passaram perto de nós,
do doutor e de mim, mas com os rostos voltados um
para o outro, flanco apertado contra flanco como se ti­
vessem querido penetrar-se, ele entrar nela, e ela nele,
formar apenas um corpo que só aos dois pertencesse,
sem nada verem além de si próprios. Ao passarem assim
acreditar-se-ia que eram criaturas superiores, que os
seus tornozelos nem se apercebiam da terra onde cami­
nhavam, e atravessavam o mundo na sua nuvem, como
em Homero os Imortais!
Coisas destas são raras em Paris, e por isso conti­
nuámos parados a ver o par senhorial que se ia embora
- a mulher a espalhar a cauda preta na poeira do jar­
dim, como um pavão que tudo desdenhasse, até a sua
própria plumagem.
Eram magníficas, aquelas duas criaturas que assim
se afastavam sob os raios do sol do meio-dia, com o seu
entrelaçado majestoso . . . e desta forma chegaram à en-
trada do portão do jardim e voltaram a subir para o cupé
que os esperava, a resplandecer de cobres e cavalos.
- Esquecem-se do universo! - disse eu ao dou­
tor, que me compreendeu o pensamento.
-. Ah! Querem lá saber do universo! - respondeu
com a sua voz mordaz. - Nada vêem do que existe na
criação, e ainda mais forte do que isso é passarem
mesmo ao lado do seu médico sem o verem.
- O quê! É médico deles? - perguntei. -. Vai
portanto dizer-me quem são, meu caro doutor.
O doutor fez o que se chama ganhar tempo, por­
que queria produzir um efeito, porque tinha para tudo
as suas manhas, o compadre!
- Pois bem, são Filémon e Baucis 1 - limitou-se
a dizer. - Nem mais!
- Com mil raios! - exclamei. - Um Filémon e
uma Baucis com modos altivos e que pouco se parecem
com os antigos. Mas não se chamam assim, doutor . . .
Que nome lhes dá?
- Que nome? - respondeu o doutor. - No
meio que o meu amigo frequenta, e onde eu não apa­
reço; nunca ouviu falar do conde e da condessa Serlon
de Savigny como de um fabuloso modelo de amor
conjugal?

1 Na mitologia grega, um casal muito pobre que deu hospedagem a Zeus


e a Hermes, quando viajavam incógnitos. (N do T.)
-
. Palavra de honra que não, doutor - disse eu.
- No meio que eu frequento, pouco se fala de amor
conjugal.
- Hum! Hum! É bem possível - disse o doutor
respondendo bastante mais ao seu próprio pensamento
do que ao meu. - Nesse mundo, que é também o de­
les, passam-se muitas coisas mais ou menos decentes.
Mas além de eles terem uma razão para não o frequen­
tar e de habitarem quase todo o ano no velho castelo de
Savigny no Cotentin, em tempos idos foram alvo de ta­
manhos ruídos, que o faubourg Saint-Germain, onde
ainda existe um resto de solidariedade nobiliária, gosta
mais de ficar calado do que falar deles.
- E que ruídos eram? . . . Ah! Estou a sentir curio­
sidade, doutor! Deve saber qualquer coisa a tal respeito.
O castelo de Savigny não é muito distante da cidade de
V! . , onde foi médico.
.

- Eh! Esses ruídos . . . - disse o doutor (tomando


pensativamente uma pitada de tabaco) . -Acabou por
se acreditar que afinal eram falsos! Tudo passou . . . Mas
apesar de os casamentos de amor e as felicidades que
eles dão serem na província o ideal de todas as mães de
família romanescas e virtuosas, as que eu lá conheci não
puderam . . . falar muito daquele às suas filhas!
- O doutor citou, no entanto, o Filémon e a
Baucis . ..
- Baileis! Baucis! Hum! Meu caro . . . - inter­
rompeu o doutor Torty, passando bruscamente o indi-

29
cador em forma de gancho por toda a extensão do nariz
de papagaio (um dos seus gestos) - vamos lá ver, não
acha essa patusca com mais ar de uma lady Macbeth do
que de uma Baucis? . . .
- Doutor, meu caro e adorável doutor - conti­
nuei eu com toda a espécie de blandícias na voz - não
vai dizer-me tudo o que sabe sobre o conde e a condessa
de Savigny? . . .
- O médico é o confessor dos tempos modernos
- respondeu num tom solenemente trocista. - Subs-
tituiu o padre, senhor, e está obrigado como o padre ao
segredo da confissão . . .
Olhou para mim com ar malicioso, por saber do
amor e do respeito que tenho pelas coisas do catoli­
cismo, do qual era inimigo. Piscou um olho. Julgou-me
vencido.
- E vai guardá-lo . . . como o padre! - acrescen­
tou numa explosão, a rir-se com o mais cínico dos seus
risos. - Venha por aqui. Vamos conversar.
Levou-me para a grande álea de árvores, que da­
quele lado flanqueia o Jardim das Plantas e o bulevar
De l'Hôpital . . . Sentámo-nos num banco de costas ver­
des, e começou:
- A história, meu caro, já tem de ser apanhada
longe como uma bala perdida debaixo de carnes que
voltaram a unir-se; porque o esquecimento é como
uma carne de coisas vivas que se refaz por cima dos fac-

30
tos e nos impede de lá ver qualquer coisa, e ao fim de
certo tempo conjecturar seja o que for, mesmo o lugar.
Foi nos primeiros anos que seguiram à Restauraçãq.
Um regimento da Guarda passou na cidade de V . . ; e .

obrigado a ficar lá dois dias, não sei por que razão mili­
tar, os oficiais desse regimento lembraram-se de organi­
zar um combate de armas em honra da cidade. De
facto, a cidade tinha tudo o que precisava para esses
oficiais da Guarda a honrarem e festejarem. Era, como
nesses tempos se dizia . . . mais partidária da realeza do
que o próprio rei. Mantidas as devidas proporções, le­
vando em conta a sua dimensão (não passava de uma
cidade com cerca de cinco a seis mil almas) efervescia
de nobreza. Mais de trinta jovens das suas melhores fa­
mílias serviam então o Corpo da Guarda ou do Bispo,
e quase todos eram conhecidos dos oficiais do regi­
mento de passagem em V . . . Mas o que decidiu a festa
marcial de um combate foi principalmente a reputação
de uma cidade a que chamavam a esgrimista, e naquela
altura ainda a mais esgrimista da França. De que valeu
a Revolução de 1789 tirar aos nobres o direito de usar
espada? Ficou provado em V . . . que era possível eles já
rião a usarem continuando a servir-se dela. O combate
organizado pelos oficiais foi muito brilhante. Viu-se
que lá compareciam todas as lâminas fortes da região e
mesmo todos os amadores, os mais jovens de uma gera­
ção que não cultivara, como anteriormente se cultivava,

31
a tão complicada e difícil arte da esgrima; e tanto entu­
siasmo revelaram todos por este manejo da espada, glória
dos nossos pais, que um velho preboste do regimento,
com o seu tempo três ou quatro vezes ultrapassado e o
braço coberto de galões, imaginou que abrindo uma sala
de armas em V . . . estaria em bom lugar para acabar os
seus dias; e o coronel, a quem comunicou e que aprovou
a sua intenção, concedeu-lhe a licença e lá o deixou ficar.
Este preboste, que tinha Stassin como nome de família e
O Estocada como alcunha, fora pura e simplesmente
tocado por uma ideia de génio. Não havia há muito
tempo em V . . uma sala de armas mantida a preceito;
.

e isto até se comentava com melancolia entre aqueles


nobres obrigados a dar pessoalmente lições aos seus fi­
lhos, ou a fazê-las dar por um qualquer camarada re­
gressado do serviço e que pouco sabia, ou mal sabia, o
que ensinava. Os habitantes de V . . . gabavam-se de ser.
difíceis. Tinham, de facto, um fogo sagrado. Não lhes
bastava matar o seu homem; queriam por princípio
matá-lo com saber e arte. Acima de tudo era-lhes pre­
ciso que um homem fosse belo nas armas, como costu­
mavam dizer, e só sabiam sentir profundo desprezo por
esses desastrados robustos que podem no terreno ser
muito perigosos mas não são o que se chama, no sen­
tido estrito e verdadeiro, «esgrimistas». O Estocada, que
na sua juventude tinha sido, e ainda era, um belo ho­
mem - que, muito novo, no campo da Holanda ba-

32
tera aos palmos todos os outros prebostes e ganhara um
prémio de dois floretes e duas máscaras armadas em
prata - estava justamente entre esses esgrimistas que as
escolas não conseguem produzir se a natureza lhes não
tiver preparado excepcionais constituições. Foi, como é
natural, a admiração de V . . . , e pouco depois foi mais
do que isso. Nada igualiza tanto como a espada. No
tempo da antiga monarquia, os reis conferiam nobreza
aos homens que os ensinavam a agarrar nela. Se bem
me recordo, foi Luís XV quem deu a Danet, o seu pro­
fessor que nos deixou um livro sobre esgrima, quatro
das suas flores de lis entre duas espadas cruzadas, para
ele pôr no seu brasão de armas! . . . Estes fidalgos da pro­
víncia, que ainda sentiam todo o cheiro da sua monar­
quia no nariz, passado pouco tempo estavam a acama­
radar, tu cá tu lá, com o velho preboste como se fosse
um dos seus.
«Até aqui tudo bem; só havia que felicitar o Stassin,
a quem chamavam O Estocada, pela boa fortuna; mas,
infelizmente, quando este velho preboste dava as ma­
gistrais lições não tinha apenas o coração de marroquim
vermelho no plastrão de pele branca acolchoado que
lhe tapava o peito . . . Dava-se o caso de ter por baixo
outro, e este começar a fazer das suas naquela cidade de
V . . onde ele viera procurar o porto de abrigo.e salva­
.

ção da sua vida. Parece que o coração de um soldado é


sempre feito de pólvora. Ora, num tempo que fica seco

33
a pólvora arde melhor. De uma forma geral, as mulhe­
res de V . . são muito bonitas e em todo o lado havia a
.

chispa para a pólvora seca do meu velho preboste. Por


isso a sua história terminou como a de um grande nú­
mero de velhos soldados. Depois de rodar por todos os
países da Europa e tomar o pulso a todas as raparigas
que o diabo lhe tinha posto no caminho, o antigo sol­
dado do Primeiro Império consumou a última estroi­
nice casando-se após os cinquenta, cumprindo todas as
formalidades e todos os sacramentos que a coisa pede
- no município e na igreja - com uma estouvanada
de V . . que o presenteou, claro está, com uma criança
.

depois de vencidos os nove meses da praxe dia a dia


contados . . . não conheça eu bem as estouvanadas da-
quela terra . . . partejei-as o bastante para as conhecer! . . .
E, meu caro, esta criança, uma rapariga, mais não é do
que a mulher com ar de deusa, acabada de passar, que
nos lambeu insolentemente com o vento do vestido e
ligou tanto como se aqui não estivéssemos!»
- A condessa de Savigny! - exclamei.
- Sim, de uma ponta à outra a condessa de Sa-
vigny em pessoa! Ah! No que toca a origens, devemos
olhar a das mulheres como a das nações; não devemos
olhar para o berço de ninguém. Lembro-me de ter visto
em Estocolmo o de Carlos XII, que parecia uma man­
jedoura de cavalo grosseiramente colorida a vermelho e
nem sequer se aguentava a prumo nas quatro estacas.

34
Saiu dali aquela tempestade! No fundo, todos os berços
são doacas que nos obrigam várias vezes por dia a mu­
dar-lhes a roupa; o que só é poético para quem acredita
na poesia, quando a criança já lá não está.
E, neste ponto do relato, para dar peso ao axioma
o doutor bateu na coxa com uma das luvas de gamo
que mantinha agarrada pelo dedo médio; e o gamo es­
talou na coxa de forma a provar, a quem compreen­
desse música, que o homenzinho ainda tinha músculos.
Aguardou. Mas eu não estava disposto a contrariá­
-lo na sua filosofia. E, porque eu nada disse, continuou:
- Aliás, O Estocada deve ter delirado com o seu,
como todos esses velhos soldados que até dos filhos
alheios gostam. No facto não há nada de espantoso.
Quando o homem a ir para a idade tem um filho, gosta
mais dele do que um jovem pai; porque a vaidade, que
duplica tudo, também duplica o sentimento paternal.
Todos os velhos gaiteiros, que na minha vida vi terem
um filho, adoravam a progenitura e mostravam um or­
gulho cómico, como se ele fosse um acto espectacular.
Uma persuasão de juventude que a natureza lhes co­
lava, a troçar deles, no coração! Só conheço uma felici­
dade mais embriagadora e um orgulho mais estranho:
os do velhote que faz dois filhos com um só tiro, em vez
de um! O Estocada não teve este orgulho paternal dos
dois gémeos; mas, dizendo-se a verdade, teve com que
moldar dois filhos no seu. A menina - acabou de vê-la

35
e sabe, portanto, se cumpriu as promessas! - era uma
criança maravilhosa na força e na beleza. O velho pre­
boste teve como primeiro cuidado arranjar-lhe um pa­
drinho entre os nobres que frequentavam com assidui­
dade de pedra e cal a sala de armas; e entre eles escolheu
o conde D'Avice, o decano de todos aqueles batedores
de ferro e solo; ele próprio preboste em Londres du­
rante a emi gração, a vários guinéus a aula. O conde
D'Avice de Sortôville-en-Beaumont, já antes da Revo­
lução cavaleiro de Saint-Louis e capitão de dragões - e
naquele momento septagenário, se não mais do que
isso - ainda tocava os jovens a. florete e dava-lhes o que
em linguagem de sala se chama «magníficos capotes».
Era um velho finório, com ferozes zombarias quando
actuava. Gostava, por exemplo, de passar o estoque pela
chama de uma vela, e depois de ter endurecido deste
modo a lâmina, chamar o duro florete - que não se
vergava e nos partia o esterno ou as costelas com um to­
que - pelo nome insolente de «arruma medricas». O
conde tinha O Estocada em alta estima e tratava-o por
tu. «A filha de um homem como tu - dizia - deve
chamar-se como a espada de um bravo. Chamemos-lhe
Hautedaire!» E este nome lhe pôs. O padre de V .-. .

torceu um pouco o nariz ao nome invulgar que as pias


baptismais da sua igreja nunca tinham ouvido, mas
como o padrinho era o senhor conde D'Avice e, apesar
dos liberais e das suas gritarias, entre a nobreza e o clero
há sempre indestrutíveis convivências, e como existe,
por outro lado, uma santa chamada Clara no calendá­
rio romano, sem a cidade de V. . . se impressionar
muito o nome da espada de Olivier 1 passou para a
criança. E tal nome parecia anunciar um destino. O ve­
lho preboste, que gostava quase tanto da sua profissão
como da sua filha, resolveu ensinar-lhe o seu próprio
talento e deixar-lho como dote. Triste dote! Com os
costumes modernos magro sustento, que o pobre diabo
do mestre-de-armas não previa! Mal a criança pôde
aguentar-se de pé, começou a vergá-la aos exercícios da
esgrima; e como a rapariguinha era o que se chama uma
miúda sólida, com ligações e articulações de aço fino, de­
senvolveu-a de estranha forma, ao ponto de aos dez
anos parecer que tinha quinze, e ser admirável parceira
do seu pai e dos mais fortes esgrimistas da cidade de
V . . . Em todo o lado se falava da pequena Hauteclaire
Stassin, que mais tarde· iria tornar-se mademoiselle
Hauteclaire Stassin. Como o meu amigo pode prever
houve uma incrível, ou antes, uma bastante crível cu­
riosidade misturada com despeito e inveja, sobretudo
nas jovens raparigas daquela cidade onde a filha do
Stassin, chamado O Estocada, se dava muito bem com
os seus pais sem poder conviver decentemente com

'Um dos doze pares de Carlos Magno, personagem da Canção de Rolando.


(N. do T.)

37
elas. Como os seus pais e os seus irmãos à frente delas
falavam com espanto e admiração da Hauteclaire, te­
riam gostado de ver de perto esse São Jorge-fêmea cuja
beleza, ouviam dizer, ia de par com o talento na es­
grima. Só a viam de longe e mal. Foi nessa altura que eu
cheguei a V . e testemunhei com frequência estas ar­
. .

dentes curiosidades. O Estocada, que servira nos hus­


sardos durante o Império e estava a ganhar com a sala de
armas bom dinheiro, permitiu-se comprar um cavalo
para dar lições de equitação à sua filha; e como também
treinava ao ano cavalos novos, destinados aos frequenta­
dores da sala, muitas vezes passeava com a Hauteclaire a
cavalo nas estradas que irradiam da cidade e a circun­
dam. Quando eu voltava das minhas visitas de médico,
muitas vezes ali os encontrei; e sobretudo nesses encon­
tros pude avaliar o interesse, inflamado até ao delírio,
que a grande e tão apressadamente desenvolvida rapa­
riga excitava nas outras raparigas da terra. Nesses tem­
pos eu andava sempre por carreiros e caminhos, e era
frequente cruzar-me com elas; porque iam com os seus
pais visitar de carro todos os castelos das redondezas.
Pois bem, nunca imaginará a avidez e até o impudor
com que eu as via debruçarem-se, encostadas às portas
das carruagens, quando a mademoiselle Hauteclaire
Stassin aparecia à distância numa estrada, ao pé do pai,
a trotar ou a galopar com borzeguins de cano. Dava-se
porém o caso de isto lhes valer de muito pouco; no dia
seguinte havia quase sempre decepções e penas, expres­
sas nas minhas visitas matinais às mães delas, porque só
em vulto conseguiam ver bem aquela rapariga feita para
o trajo de amazona e que o usava como pode calcular -
uma vez que acaba de observá-la - mas sempre com o
rosto mais ou menos escondido num véu azul-escuro e
muito espesso. Só os homens da cidade de V . . . conhe­
ciam qualquer coisa da mademoiselle Hautedeire Stas­
sin. Todo o dia com o florete na mão, com o rosto sob as
malhas da máscara de armas que não era muitas vezes
retirada à frente deles, pouco saía da sala daquele pai
que começava a enferrujar e ela substituía com frequên­
cia na lição. Muito raramente se mostrava na rua - e as
mulheres decentes só aí podiam vê-la, ou então na missa
do domingo; mas, quer na rua, quer na missa do do­
mingo, trazia uma máscara que a ocultava quase tanto
como na sala do seu pai porque a renda do véu preto
ainda era mais escura e cerrada do que as malhas da más­
cara de ferro. Nesta forma de se mostrar ou esconder ha­
veria uma afectação que excitava as imaginações curio­
sas? . É bem possível que sim; mas quem saberia, quem
. .

poderia dizê-lo? Aquela rapariga, que prolongava a más­


cara com um véu, não teria um carácter ainda mais im­
penetrável do que o rosto, como os factos seguintes não
fizeram mais do que deixar bem provado?
«Deve compreender, caríssimo, que me vejo obri­
gado a passar rapidamente por todos os pormenores

39
desta época, para chegar mais depressa ao momento em
que a história realmente começa. A mademoiselle Hau­
teclaire estava com cerca de dezassete anos. O Estocada,
o homem que tinha sido belo e se transformara num
autêntico velhote com aquela situação de viúvo, e ficara
moralmente morto por essa Revolução de Julho que
obrigou os nobres enlutados a partir para os seus caste­
los e lhe esvaziou a sala, lutava em vão contra uma gota
destemida, que ignorava as intimações do seu pé, e lá ia
caminhando de rota batida para o cemitério. Um mé­
dico com diagnóstico feito tinha isso por garantido . . .
Era evidente. E não augurava eu que vivesse muito mais
tempo, quando uma manhã foi levado da sala de armas
- pelo visconde de Taillebois e pelo cavaleiro de Mes­
nilgrand - um rapaz da terra educado longe, que tinha
vindo viver no castelo do seu pai, morto há pouco
tempo. Era o conde Serlon de Savigny, o pretendido da
mademoiselle Josephine de Cantor (dizia V . . , usando a
.

sua linguagem de pequena cidade) . O conde de Savigny


era, por certo, um dos rapazes mais brilhantes e mais
campeadores dessa época feita de rapazes que campea­
vam, porque nesse velho mundo (em V . . . , como nou­
tros lados) havia uma juventude a sério. Que deixou
agora de existir. Tinham-lhe falado muito da famosa
Hauteclaire Stassin, e quis ver esse milagre. Achou-a tal
qual era - uma admirável rapariga, picante e provo­
cante como o diabo nos seus calções de malha de seda

40
que punham em relevo as formas de Pallas de Velletri, e
na blusa de marroquim preto que apertava a cintura ro­
busta e airosa até fazê-la estalar - uma destas cinturas
que as circassianas só conseguem obter aprisionando as
suas jovens raparigas num cinto de couro, apenas que­
brado pelo desenvolvimento do corpo. A Hauteclaire
Stassin era séria como uma Clorinda 1 • Viu-a dar uma
lição e pediu-lhe para cruzarem ferros. Mas este conde
de Savigny não foi o Tancredo da situação! Por várias
vezes a mademoiselle Hauteclaire Stassin vergou como
uma foice a espada sobre o coração do belo Serlon, e só
numa ocasião foi tocada.
«- Ninguém consegue tocar-lhe, menina - disse
ele com muita graça. - Será um augúrio? . . .
«Nessa tarde, o amor próprio já estaria no rapaz a
ser vencido pelo amor?
«Foi, de facto, a partir dessa tarde que o conde de
Savigny veio diariamente a uma lição de armas na sala
d'O Estocada. O castelo do conde só estava afastado al­
gumas léguas. E não tardou que ele as devorasse, quer a
cavalo, quer de carro, sem que nenhuma pessoa o no­
tasse no ninho tagarela de uma pequena cidade onde a
ponta da língua espetava as mais pequenas coisas, mas

1 Outra personagem de]ernsalém Libertada de Torquato Tasso, virgem guer­


reira com desprezo pelos trabalhos femininos, dada à caça, à eqwtação e à luta. Foi
imaginada por Delacroix no seu quadro Olinda e Sofrónia na Foguei.ra. (N. do T.)
onde tudo era explicado com o amor pela esgrima. O Sa­
vigny não fez confidências a ninguém. Até chegou a re­
ceber a lição, evitando as horas em que os outros jovens
da cidade lá apareciam. Era um rapaz a quem não faltava
mistério, este Savigny . . . O que entre ele e a Hauteclaire
se passou, se alguma coisa se passou, nessa época nin­
guém soube nem teve a tal respeito qualquer descon­
fiança. O casamento do conde de Savigny com a made­
moiselle Delphine de Cantor, desde há anos aceite pelos
pais das duas famílias e excessivamente adiantado para
não se consumar, deu-se três meses depois de ele regressar
àquela terra; e até foi pretexto para viver um mês em
V . . . , perto da noiva, passar os dias na casa dela, sem fal­
tar, apenas saindo de lá ao fim da tarde para receber com
muita regularidade a sua lição . . .
«A mademoiselle Hauteclaire ouviu, como toda a
gente, serem proclamados na igreja paroquial de V . . .
os banhos do casamento do conde de Savigny com a
mademoiselle De Cantor; mas nem a sua atitude nem a
sua fisionomia revelaram qualquer interesse por estas
declarações públicas. É verdade que nenhum dos assis­
tentes se pôs à espreita para a observar. Os observadores
não estavam preparados para o ainda adormentado
facto de haver uma possível ligação · entre o Savigny e a
bela Hauteclaire. Depois de celebrado o casamento, a
condessa foi instalar-se com toda a tranquilidade no
seu castelo, com o marido que não renunciou, apesar

42
disto, aos hábitos citadinos e continuou a ir todos os
dias a V. . . Muitos castelões das redondezas faziam,
aliás, o mesmo. Foi passando tempo. O velho Estocada
morreu. Depois de alguns instantes fechada, a sala rea­
briu. A mademoiselle Hauteclaire Stassin anunciou que
continuaria as lições do seu pai; e, longe de ter menos
alunos por causa desta morte, teve-os em maior nú­
mero. Os homens são. todos iguais. De homem a ho­
mem, o que é estranho desagrada e magoa; mas se a es­
tranheza usar saias, deliram com ela. Na França, se uma
mulher fizer o que um homem faz, mesmo que o faça
menos bem, terá sempre assinalável vantagem sobre o
homem. Ora, a mademoiselle Hauteclaire Stassin era
muito melhor do que eles naquilo que fazia. Tornara-se
muito mais forte do que o seu pai. Nas lições era in­
comparável a exemplificar, e esplêndida na beleza do
exercício. Tinha estocadas irresistíveis - dessas estoca­
das tão impossíveis de ensinar como a arcada ou a mão
corrida no braço do violino, e que nunca chegam às
mãos de ninguém por lição. Eu, como todos os que me
rodeavam, nesses tempos espadeirava relativamente
bem; e como amador confesso que alguns dos seus pas­
sos me encantavam. Entre outras coisas, parecia má­
gica a forma como se desembaraçava a passar da quarta
à terça. Deixávamos de ter uma espada a bater-nos, mas
uma bala! O homem mais rápido a parar um golpe só
vergastava o vento, mesmo se ela o prevenisse de que ia

43
atacar; e a · cutilada atingia-o no ombro ou no peito,
inevitável. Não tinha conseguido encontrar-lhe o ferro!
Vi esgrimistas ficarem loucos com esta estocada a que
chamavam trapaça, e com uma raiva capa'z de lhe engo­
lir o florete! Não fosse mulher, tais estocadas acabariam
numa briga dos diabos. Com um homem, dariam ori­
gem a vinte duelos.
«De resto, pondo de parte este talento fenomenal e
tão pouco próprio de uma mulher, mas que a fazia viver
com tanta nobreza, era realmente muito interessante
que esta rapariga pobre e sem outros recursos além do
florete, e numa situação que a misturava com os jovens
mais ricos da cidade, entre os quais havia sujeitos bas­
tante maus e muito presunçosos, não visse prejudicada
a flor da sua boa reputação. Nem com o Savigny, nem
com qualquer outro, a reputação da mademoiselle
Hauteclaire Stassin foi atingida . . . "Parece que é, afinal,
uma rapariga honestà', diziam as mulheres decentes,
como se tivessem falado de uma actriz. Eu próprio - já
que comecei por lhe falar de mim - eu próprio, que
me gabava de ser observador, tinha sobre a virtude da
Hauteclaire a opinião de toda a cidade. Antes e depois
do casamento do Savigny fui por vezes à sala de armas,
e só lá vi uma rapariga grave que desempenhava com
simplicidade a sua função. Devo dizer que metia muito
respeito e tinha posto toda a gente no seu lugar, sem fa­
miliaridades e sem ceder a ninguém. A sua fisionomia,

44
de uma altivez extrema e sem a expressão apaixonada
que há pouco tanto o impressionou, não denunciava
mágoa, nem preocupação, nem nada de um género que
mesmo de longe fizesse prever a coisa espantosa, com o
efeito de um tiro de canhão, que partiu vidros na atmos­
fera de uma pequena cidade tranquila e rotineira . . .
-« A mademoiselle Hauteclaire Stassin desapa­
receu!
«Tinha desaparecido. Porquê? . . . Como? . . . Para
onde tinha ido? Não se sabia. Mas era certo que tinha de­
saparecido. Começou por ser um grito seguido de um si­
lêncio, embora o silêncio não durasse muito tempo. As
línguas desataram-se. Muito tempo refreadas - como a
água numa adufa, que se precipita quando a represa é le­
vantada e faz a roda do moinho girar com fúria - as lín­
guas começaram a · espumar e a tagarelar sobre aquele
desaparecimento inesperado, súbito, incrível, sem ne­
nhuma explicação porque a mademoiselle Hauteclaire
tinha desaparecido sem dar a ninguém uma palavra ou
deixar uma palavra escrita. Desaparecera como se desa­
parece, havendo realmente vontade de desaparecer - se
não é desaparecer deixar atrás de si o nada, um nada sem
qualquer valor a que possam os outros agarrar-se para ex­
plicar que se desapareceu. - Tinha desaparecido da mais
radical maneira. Tinha feito, não o que chamamos um
buraco na lua, porque não deixara atrás de si nem dívida
nem outra coisa qualquer, mas só o que pode muito bem

45
chamar-se um buraco no vento. O vento soprou e não a
devolveu. E pelo facto de o moinho das línguas ter girado
em seco, não quer dizer que girasse menos e não tenha
moído com crueldade aquela reputação nunca posta a
jeito de um qualquer ataque. Agarraram nela, depena­
ram-na, passaram-na pela peneira, cardaram-na . . .
Como e com quem se tinha ido embora aquela rapariga
tão correcta e tão altiva? . . . Quem a tinha raptado? Por­
que ela fora, claro está, raptada . . . Não se dava a isto ne­
nhuma resposta. Era de deixar uma pequena cidade
louca de fi.íria; e V. . . ficou-o, de facto. Quantas razões
para se encolerizar! Primeiro, o não sabido estava per­
dido. Depois, a argúcia perdia-se por causa de uma rapa­
riga que eles julgavam conhecer e não conheciam, já
que a não tinham julgado capaz de desaparecer assim . . .
E também perdiam uma rapariga que contavam ver en­
velhecer ou casar-se como as outras raparigas da cidade
- metidas numa casa do tabuleiro de xadrez de uma ci­
dade de província, como cavalos na entreponte de um
navio de guerra. Perdendo aquela mademoiselle Stassin,
que passava a ser apenas aqueúz Stassin, perdia-se afinal
uma sala de armas ali à volta célebre e que era a distinção,
o ornamento e a honra da cidade, a menina dos seus
olhos, a sua bandeira no alto do campanário. Ah! Era
duro, tantas perdas juntas! E quantas razões concentradas
numa só, para se fazer passar a torrente mais ou menos
lamacenta de todas as suposições sobre a memória da-
quela irrepreensível Hautedaire! Vai daí, passaram . . . Se
exceptuarmos alguns velhos fidalgos de província com
espírito de grandes senhores e que a tinham visto criança,
como o seu padrinho conde D'Avice, que não se impres­
sionaram por aí além e acharam muito natural ela en­
contrar um sapato mais à medida do pé do que a sandá­
lia de mestre-de-armas, e o tivesse calçado, a Hautedaire
Stassin não teve do seu lado ninguém quando desapare­
ceu. Ao ir-se embora ofendera o amor-próprio de todos;
e até acontecia que os jovens lhe mostrassem mais rancor
e se encarniçassem mais contra ela, por não ter desapare­
cido com nenhum deles.
«Durante muito tempo foi este o grande agravo e a
grande angústia de todos eles. Com quem se tinha ido
embora? . . . Alguns destes jovens iam todos os anos viver
um ou dois meses de Inverno a Paris,. e dois ou três acha­

vam que a tinham visto lá e reconhecido - num espec­


táculo - ou nos Campos Elíseos, a cavalo - acompa­
nhada ou só - embora não tivessem a certeza absoluta.
Não podiam afirmá-lo. Era ela, e bem podia ser que não
fosse ela; mas a preocupação mantinha-se . . . Nenhum
conseguia impedir-se de pensar nesta rapariga que ti­
nham admirado e, ao desaparecer, enlutara a cidade da
esgrima onde era a grande artista, a diva especial, o raio
de luz. Depois de este raio de luz se ter apagado, ou seja,
e falando de outro modo, depois de esta famosa Haute­
daire ter desaparecido, a cidade de V . . . sucumbiu à lan-

47
guidez de vida e à palidez de todas as cidades pequenas
sem um centro de actividade que faça as paixões e os ·
gostos convergirem . . . O amor pelas armas enfraque­
ceu. Outrora animada com toda esta juventude mar­
cial, a cidade de V . . . ficou triste. Os jovens que espadei­
ravam todos os dias, quando estavam nos seus castelos,
trocaram o florete pela espingarda. Fizeram-se caçadores
e ficaram-se pelas suas terras e pelas suas matas, o conde
de Savigny como todos os outros. Veio cada vez menos
a V . . . e, se em algumas ocasiões o encontrei lá, foi na
casa da família da sua mulher, que me tinha como mé­
dico. No entanto, numa época em que ninguém havia
com a menor desconfiança de que pudesse existir qual­
quer coisa entre ele e esta Hauteclaire tão bruscamente
desaparecida, nenhuma razão havia para eu lhe falar do
desaparecimento súbito, sobre o qual começava a esten­
der-se o silêncio filho das línguas cansadas; - e ne­
nhuma vez me falou da Hauteclaire, nem dos tempos
em que nos encontrávamos na casa dela, nem a tais tem­
pos se permitiu fazer uma alusão, longínqua que fosse.»
- Já vejo aonde quer chegar com os seus tamancos
de pau - disse eu ao doutor, servindo-me de uma ex­
pressão da terra em causa, que é a minha. - Foi raptada
por ele!
- Pois bem, nada disso - respondeu-me. - Era
melhor do que isso! Nunca poderá desconfiar do que se
tratava . . .
«Para além de um rapto não ser coisa fácil, por
causa do secretismo que exige, sobretudo na província,
depois de o conde de Savigny se casar não voltara a sair
do castelo.
«Era ao olhar de todos evidente que vivia na intimi­
dade de um casamento com ar de lua-de-mel indefinida­
mente prolongada - e, como tudo é citado e taxado na
província,. citavam e taxavam o Savigny como um destes
muito raros maridos que é preciso queimar (uma graça
provinciana) para as suas cinzas seram deitadas em cima
de outros. Deus sabe quanto tempo me teria eu próprio
enganado com esta reputação, se um dia - mais de um
ano passado sobre o desaparecimento da Hauteclaire
Stassin - não me chamassem com insistência ao castelo
de Savigny, que tinha a castelã doente. Parti de imediato,
e mal lá cheguei levaram-me à condessa que sofria muito,
de facto, com uma vaga e complicada doença mais peri­
gosa do que um mal severamente caracterizado. Era uma
destas .mulheres de velha e já esgotada raça, elegante, dis­
tinta, altiva, e que parecia dizer-nos do fundo da sua livi­
dez e da sua magreza: "O tempo venceu-me, como à mi­
nha raça; morro mas desprezo-vos!". Apesar de tão
plebeu, como sou, e um pouco filósofo, diabos me levem
se não tive de achar isto bonito. A condessa estava deitada
num leito de repouso, numa espécie de locotório com vi­
goras pretas e paredes brancas, muito vasto, muito alto e
ornamentado com coisas de arte antiga que honravam

49
muito o gosto dos condes de Savigny. A grande sala era
iluminada por um candeeiro único; e a claridade, tor­
nada mais misteriosa com o quebra-luz verde que a ve­
lava, caía no rosto da condessa, que tinha os malares in­
cendiados pela febre. Desde alguns dias estava doente, e
o Savigny - para velar melhor - mandara instalar no
locotório uma cama pequena, ao pé da cama da sua cara
metade bem-amada. Mas só quando a febre, mais tenaz
do que todos os cuidados prestados, mostrou uma fero­
cidade inesperadamente surgida, ele decidiu mandar-me
chamar. Estava ali, com as costas voltadas para o fogo, de
pé, sombrio e inquieto, a fazer-me acreditar que amava
com paixão a sua mulher e a julgava em perigo. Não era,
no entanto, por causa dela que a inquietação lhe pesava,
mas de outra que estava no castelo de Savigny sem eu
desconfiar, e cuja visão me espantou até ao assombro.
A Hautedaire!»
- Oh, diabo! É de um grande atrevimento! -
disse eu ao doutor.
- Tão atrevido - continuou - que me julguei a
sonhar quando a vi! A condessa tinha solicitado ao ma­
rido que tocasse, para chamar a criada de quarto a
quem ela pedira, antes da minha chegada, a mesma po­
ção que eu acabava de lhe aconselhar. Segundos mais
tarde alguém abriu a porta.
«- · Eulalie, a minha poção? - disse de imediato a

impaciente condessa.

50
«- Aqui a tem, senhora! - respondeu uma voz
que julguei reconhecer e foi seguida, mal chegava aos
meus ouvidos, pela Hautedaire Stassin a sair da sombra
que afogava o contorno profundo do locotório, e se
aproximava até à beira do círculo luminoso traçado
pelo candeeiro à volta da cama. Sim, a Hautedaire em
pessoa! Com as belas mãos a agarrar numa bandeja de
prata onde fumegava a taça que a condessa tinha pe­
dido. Ver aquilo deixou-me de respiração cortada! Eu­
lalie! . . . Por sorte, o nome Eulalie pronunciado com
tanta naturalidade disse-me tudo e foi uma espécie de
martelada de gelo que me fez regressar a um sangue-frio
prestes a ser perdido, e à minha atitude passiva de mé­
dico e observador. A Hautedaire transformada em Eu­
lalie e em criada de quarto da condessa de Savigny! . . .
O seu disfarce - se uma mulher daquelas pode disfar­
çar-se - . era completo. Vestia como uma banal costu­
reira da cidade de V . . . , tinha um penteado parecido
com um capacete e longos caracóis pendurados à frente
das faces - o género de caracóis a que os pregadores
nesse tempo chamavam «serpentes», para as raparigas
bonitas se desagradarem deles, mas sem nunca o terem
conseguido. - E, atrás de uma beleza cheia de reserva
e de uma nobreza de olhar baixo, provava-se que estas
cobras-fêmeas tudo fazem dos seus corpos satânicos,
desde que tenham nisso o mais leve interesse . . . Apesar
de refeito, e tão seguro de mim como o homem que

51
acaba de morder a língua para não deixar escapar um
grito de surpresa, tive a pequena fraqueza de querer
mostrar à rapariga audaciosa que estava a reconhecê-la.
Enquanto a condessa bebia a poção, com a testa encos­
tada à taça, cravei nos olhos dela os meus dois olhos,
como se lá espetasse duas estacas; mas os seus olhos -
nessa noite olhos de corça pela brandura - foram mais
firmes que os da pantera ainda há pouco fechados por
sua causa. Nem pestanejou. Só houve um estremeci­
mento leve, quase imperceptível, que passou pelas
mãos que seguravam a bandeja. A condessa bebia
muito devagar; e depois, quando terminou:
«- Pronto - disse ela - pode levar.
«E a Hautedaire-Eulalie deu uma volta, com aquela
maneira que eu teria reconhecido entre as vinte mil ma­
neiras das raparigas de Assuero 1 , e levou dali a bandeja.
Confesso que fiquei um instante com os olhos desvia­
dos do conde de Savigny, por perceber o significado que
o meu olhar podia ter para ele num tal momento; mas,

quando me arrisquei a fixá-lo, encontrei o seu bem pou­


sado em mim e a passar da mais horrível angústia à ex-

1 Nome do rei Xerxes, entre os Gregos. <<As raparigas de Assuero» estará re­
lacionado com o facto de Ester, uma tragédia de Racine que toma por tema o con­
flito de Ester e Assuero, ter sido representada pela primeira vez (em 1 689) com as
Raparigas de Saint-Cyr em todos os seus papéis, inclusive os masculinos, como
resposta ao teatro inglês, que tinha o hábito de fazer desempenhar os papéis femi­
ninos por jovens actores. (N. do T.)

52
pressão do alívio. Acabava.de compreender que eu tinha
visto, mas também compreendia que eu não queria ver
nada, e voltava a respirar. Tinha a certeza de uma im­
penetrável discrição, e talvez a explicasse (mas isso tanto
me fazia!) com o cuidado do médico que não quer per­
der um cliente como ele, embora no facto só existisse o
interesse do observador que não quer fechada a porta
de uma casa onde há, sem a cidade inteira saber, coisas
daquele género para observar.
«E com um dedo pousado na boca refiz-me, muito
decidido a não dizer palavra sobre uma coisa de que
ninguém naquela terra desconfiava. Ah! Os prazeres do
observador! Estes prazeres impessoais e solitários do
observador, que sempre coloquei acima de todos os ou­
tros, ia podê-los gozar em cheio naquele recanto da
província, naquele castelo velho e isolado aonde eu,
como médico, podia ir quando quisesse . . . - Feliz por
se ver livre de uma preocupação, disse-me o Savigny:
''Até nova ordem venha cá todos os dias, doutor." Eu ia
afinal poder estudar com tanto interesse como assidui­
dade, uma doença, o mistério de uma situação que,
contada a alguém, pareceria impossível. . . E como este
mistério, logo no primeiro dia em que o vislumbrei ex­
citou a minha faculdade de raciocinar que é a bengala
de cego do sábio, e sobretudo da encarniçada curiosi­
dade das investigações do médico, comecei de imediato
a discorrer sobre a situação, para a deixar esclarecida . . .

53
Existiria desde quando? . . . Desde o desaparecimento da
Hauteclaire? . . . Como ele durava há mais de um ano, a
Hauteclaire seria desde então criada de quarto em casa
da condessa de Savigny? Como é que ninguém, a não
ser eu e porque tinha sido preciso chamarem-me, vira o
que eu vi com tanta facilidade e tão depressa? . . . Estas
perguntas montaram todas a cavalo e acompanharam­
-me na garupa até V . . . , com muitas mais entretanto le­
vantadas e apanhadas ao longo do caminho. É verdade
que o conde e a condessa de Savigny passavam por se
adorar um ao outro e viviam bastante retirados de toda a
espécie de convívio. Mas era ainda assim possível que
uma visita fosse de · tempos a tempos parar ao castelo.
Também é verdade que a Hauteclaire, tratando-se de
uma visita masculina, podia não aparecer. E, se fossem
visitas femininas, a maior parte das mulheres de V . . .
nunca a tinha visto suficientemente bem para reconhecer
a rapariga que as lições tinham durante anos trancado no
fundo de uma sala de armas e, quando era vista de longe,
a cavalo ou na igreja, usava véus tornados por si própria
espessos a seu bel-prazer - porque a Hauteclaire {como
eu já lhe disse) mostrara sempre essa altivez dos seres
muito altivos, a quem a curiosidade excessiva ofende e
que, quanto mais alvo de olhares se sentem, mais se es­
condem. Quanto ao pessoal do senhor de Savigny, com
quein era obrigada a viver, se fosse de V . . não a conhe­
.

cia, e até podia acontecer que não fosse de lá . . . En-

54
quanto eu ia trotando respondia assim a estas primeiras
perguntas, que ao fim de certo tempo e de um certo ca­
minho encontravam respostas; e antes de eu descer da
sela já tinha construído todo um edifício de suposições
mais ou menos plausíveis para explicar o que seria inex­
plicável a qualquer outro tão argumentador como eu.
A única coisa que eu talvez não explicasse muito bem
era a esplendorosa beleza da Hauteclaire não ter sido
obstáculo quando entrou ao serviço de uma condessa
de Savigny que amava o seu marido e devia sentir ciú­
mes. Mas como as patricianas de V . . . , pelo menos tão
orgulhosas como as mulheres dos paladinos de Carlos
Magno, não achavam (erro grave; tivessem ao menos
lido O Casamento de Figaro!) que aos olhos dos seus ma­
ridos a mais bela criada de quarto pode valer mais do
que vale aos olhos delas o mais belo dos lacaios; quando
me desembaracei dos estribos disse a mim próprio que a
condessa de Savigny tinha razões para se julgar amada e,
bem vistas as coisas, o sacripanta do Savigny era de um
género que mais força daria a tais razões, se alguma dú­
vida ela chegasse a ter.»
- Hum! - disse eu com cepticismo, sem conse­
guir deixar de interromper o doutor. - Tudo isso vale
o que vale, mas à situação não retira imprudência.

- Claro que não! - respondeu. - Mas se fosse a


imprudência a gerar, ela própria, a situação? - acres­
centou o grande conhecedor da natureza humana. -

55
Há paixões incendiadas pela imprudência e que não exis­
tiriam sem o perigo que provocam. No século XVI, tão
apaixonado como um século pode ser, a entre todas
magnífica causa do amor foi o perigo do próprio amor.
Quem saísse dos braços de uma amante, corria o risco de
ser apunhalado; ou o marido envenenava o regalo da
mulher, beijado e alvo de todas as tolices do costume; e,
muito longe de apavorar o amor, este perigo incessante
incitava-o, incendiava-o e fazia-o irresistível! É evidente
que nos nossos entendiantes costumes modernos, com a
lei a substituir a paixão, o artigo do Código aplicável ao
marido culpado de ter introduzido «a concubina no do­
micílio conjugal» - como diz grosseiramente a lei - é
um perigo bastante ignóbil; mas, tratando-se de almas

nobres, por ser ignóbil ainda maior se torna; e, expondo­


-se a ele, talvez o Savigny encontrasse aí a única angustiosa
volúpia que embriaga verdadeiramente as almas fortes.
«Acredite que no dia seguinte - continuou o dou­
tor Torty - era cedo e já eu estava no castelo; mas, nem
nesse dia nem nos dias seguintes vi nada que destoasse
do funcionamento das casas onde tudo é normal e regu­
lar. Nem do lado da doente, nem do lado do conde,
nem mesmo do lado da.falsa Eulalie a fazer o seu traba­
lho como se a tivessem exclusivamente educado para
isso, notei qualquer coisa que pudesse esclarecer-me so­
bre o segredo surpreendido. Inegável era o conde de
Savigny e a Hauteclaire Stassin representarem com sim-
plicidade de actores consumados a mais pavorosamente
impudica das comédias, e que se entendiam para a re­
presentar. Mas não era tão inegável, e comecei por que­
rer esclarecê-lo, que andassem realmente a enganar a
condessa; e que a situação pudesse, neste caso, durar
muito. Concentrei, portanto, na condessa toda a aten­
ção. Pouca dificuldade tive em descortiná-lo porque era
minha doente e, devido ao seu mal, ponto de mira das
minhas observações. Tal como lhe disse, era uma ge­
nuína mulher de V . , que não sabia nadinha para além
. .

disto: era nobre, e o mundo exterior à nobreza não me­


recia um olhar . . . Sentirem-se na sua própria nobreza
era a única paixão das mulheres na classe alta de V . .
.

- e, em todas as classes, pouco apaixonadas eram.


Educada nas beniditinas, onde se entediava horrivel­
mente por não ter nenhuma vocação religiosa, a made­
moiselle Delphine de Cantor saíra de lá para se entediar
em família; até ao momento em que se casou com o
conde de Savigny, a quem amou ou julgou amar com a
facilidade que as raparigas entediadas têm para amar o
primeiro que lhes apareça à frente. Era uma mulher
branca com tecidos moles mas dura de ossos, com a to­
nalidade de um leite onde sobrenadassem farelos; por­
que estava semeada com pequenas sardas, mais escuras
por certo do que o seu cabelo de um ruivo muito suave.
Quando me estendeu o braço pálido, com veias de um
nácar azulado, um punho fino e de raça que em estado

57
normal batia com pulsações enfraquecidas, deu-me a
ideia de que a tinham posto no mundo e criado para ví­
tima . . . para ser pulverizada sob os pés da altiva Haute­
claire que à frente dela se curvava tanto quanto era exi­
gido pelo papel de criada. No entanto esta ideia, que
começou por me assaltar quando a olhei, era contra­
riada por um queixo erguido na ponta do rosto pe­
queno, um queixo de Fúlvia nas medalhas romanas,
perdido na parte baixa daquele palmo de cara amarro­
tado, e também por uma testa abaulada com obstinação
abaixo do cabelo mate. Tudo isto acabava por embaraçar
o julgamento. No que toca ao sossego da Hauteclaire,
talvez · lhe chegasse daí o verdadeiro obstáculo, por ser
impossível que a situação vislumbrada naquela casa -
de momento tranquila - não descambasse num qual­
quer tumulto medonho . . . Tendo em vista esse futuro
tumulto comecei a auscultar de duas formas diferentes
aquela mulher franzina que não conseguiria, perante o
seu médico, ser durante muito tempo uma carta fe­
chada. Aquele que confessa o corpo, bem depressa se
apodera do coração. Se houvesse no actual sofrimento
da condessa causas morais ou imorais, de nada valeria
fechar-se comigo e recolher dentro de si as impressões e
os pensamentos; teria de mostrá-los por extenso. Era o
que a mim próprio eu dizia; mas, pode acreditar, em
vão lhe dei voltas e mais voltas com a garra de médico.
Ao fim de alguns dias foi-me evidente que não tinha a
menor suspeita de cumplicidade entre o seu marido e a
Hauteclaire num crime doméstico cujo silencioso e dis­
creto teatro era aquela casa . . . Da sua parte seria falta de
sagacidade? Mutismo dos sentimentos de ciúme? O que
seria? . . . A toda a gente, com excepção do marido, mos­
trava uma reserva um tanto orgulhosa. Com a falsa Eu­
lalie que a servia, era imperiosa mas branda. Pode pare­
cer contraditório. Mas não é. Não é mais do que a
verdade. Tinha um comando rápido mas nunca em voz
elevada, de mulher feita para ser obedecida e com a cer­
teza de que vai sê-lo . . . E era-o,- admiravelmente. A Eu­
lalie, aquela assustadora Eulalie insinuada e metida não
sei como na sua casa, envolvia-a com esses cuidados que
param no momento justo, antes de serem uma fadiga
para quem os recebe, e mostrava nos pormenores do
serviço uma flexibilidade e um entendimento do carác­
ter da patroa que tinham tanto de génio da vontade
como de génio da inteligência . . . Acabei mesmo por fa­
lar à condessa dessa Eulalie que eu via durante as minhas
visitas circular com tanta naturalidade à sua volta, e nas
costas me fazia o frio da serpente quando a vemos de­
senrolar-se e esticar-se, sem nenhum ruído, e aproxi­
mar-se do leito de uma mulher adormecida . . . Uma
noite, a condessa mandou-a buscar já me não lembro o
quê e aproveitei a ocasião dessa saída, e a rapidez dos
passos com que a executava, para arriscar palavras que
talvez tenham acendido alguma luz:

59
«- Que andar de veludo! disse eu quando a vi

sair. - A senhora condessa tem, segundo creio, uma


criada de quarto de bem agradável serviço. Permite-me
que pergunte onde a arranjou? A rapariga será de V . . . ,
por acaso?
«- Sim, serve-me muito bem - respondeu com

indiferença a condessa, nesse momento a ver-se num


pequeno espelho portátil encaixilhado a veludo verde e
rodeado de penas de pavão, com o ar impertinente das
alturas em que nos ocupamos de tudo, excepto do que
nos dizem. - Não posso estar mais satisfeita. Não é de
V . . . ; mas não saberei dizer-lhe de onde veio. Pergunte­
-o o doutor ao senhor de Savigny, se estiver interessado
em sabê-lo, porque foi ele quem a trouxe algum tempo
depois de nos casarmos. Quando a apresentou, disse que
tinha servido na casa de uma velha prima sua, recente­
mente falecida, e ficara sem emprego. Aceitei-a sem he­
sitar, e fiz bem. Como criada de quarto é perfeita. Não
acredito que tenha um defeito.
- « Conheço-lhe um, senhora condessa - disse
eu, afectando um ar grave.
«- Ah! E qual é? - perguntou num tom indo­

lente, desinteressada do que dizia e ainda a olhar-se no


pequeno espelho, a estudar com atenção os lábios des­
corados.
«- É bonita de mais - disse eu. - É, de facto,

bonita de mais para criada de quarto. Um destes dias al­


guém vai roubá-la.

60
«- Acha que sim? - perguntou, continuando a
mirar-se e sempre distraída do que eu dizia.
«- E talvez um homem decente, e do meio da se­

nhora condessa, vá embeiçar-se por ela! Tem beleza que


chegue para fazer um duque perder a cabeça.
«Medi o alcance destas palavras enquanto estava a
dizê-las. Eram uma sondagem; mas se eu nada encon­
trasse, mais nenhuma poderia fazer.
«- Em V . . . não há duques - respondeu a con­
dessa, mantendo a testa tão lisa como o espelho que ti­
nha na mão. - E aliás, doutor - acrescentou a alisar
uma das sobrancelhas - quando estas raparigas se que­
rem ir embora, não é o nosso afecto que as demove. A
Eulalie é um encanto a fazer o seu serviço, mas abusaria
como as outras do afecto que lhe demonstrássemos; e
por isso me coíbo de lhe ganhar afeição.
«Nesse dia não voltámos a falar da Eulalie. A con­
dessa estava completamente iludida. De resto, quem
não o estaria? Eu próprio - que às primeiras tinha re­
conhecido a Hauteclaire, vista tantas vezes na sala de ar­
mas do seu pai e apenas à distância de uma lâmina de
espada - passei por momentos em que me senti ten­
tado a acreditar na Eulalie. O Savigny, que devia ser
mais livre, desenvolto e natural na mentira do que ela,
era-o bastante menos. Mas ela! Ah! Movia-se e vivia
nesse campo como o mais flexível dos peixes vive e se
movimenta na água. Era necessário, de facto, amá-lo e

61
amá-lo estranhamente, para fazer o que fazia; para ter
renunciado a quanto havia de excepcional numa exis­
tência que podia incensar-lhe a vaidade, fazer incidir
sobre si os olhares de uma cidade pequena - para ela, o
universo - onde mais tarde poderia encontrar alguém
entre aqueles jovens, seus admfradores e adoradores, que
se casasse com ela por amor ou a fizesse entrar na socie­
dade mais alta que ela só conhecia através dos seus ho­
mens. Ele, o amante, fazia um jogo por certo mais arris­
cado. Quanto a abnegação, tinha o lugar inferior. O seu
orgulho de homem devia sofrer por não conseguir pou­
par à sua amante a indignidade de uma situação que a
humilhava. Em tudo isto chegava a haver qualquer coisa
que não se coadunava com o feitio impetuoso, atribuído
ao Savigny. Se amava a Hauteclaire ao ponto de lhe sa­
crificar a sua jovem mulher, teria podido raptá-la e ir vi­
ver com ela na Itália - uma coisa já nesses tempos fácil
de fazer! - sem passar pelas abominações de uma con­
cubinagem vergonhosa e oculta. Seria então ele quem
menos amava? . . . Preferia deixar-se amar pela Haute­
claire, ser por ela mais amado do que ele próprio a
amava? . . . Teria sido ela quem viera, por decisão pró­
pria, forçá-lo em plena zona vigiada do domicílio con­
jugal? E, por ele achar a situação audaciosa e picante,
deixava agir aquela Putifar de uma nova espécie, que a
todo o momento lhe avivava a tentação? . . O que eu via
.

não elucidava muito sobre o Savigny e a Hauteclaire . . .


Cúmplices - lá isso eram, pela minha vida! - num
adultério banal. Mas que sentimentos haveria no fundo
desse adultério? . . . Qual era a situação destes dois seres,
um perante o outro? . . . Era esta a incógnita da minha
álgebra, que eu tentava calcular. O Savigny era irre­
preensível junto da sua mulher; mas quando a Haute­
claire-Eulalie estava presente e eu o aferia pelo canto do
olho, tinha precauções que atestavam um espírito bem
pouco tranquilo. Quando, no quotidiano da vida, pe­
dia à criada de quarto da sua mulher um livro, um jor­
nal, um objecto qualquer, as formas que tinha de agar­
rar nesse objecto tudo revelariam a outra mulher, mas
não o faziam à pensionista com quem se tinha casado,
educada nas beneditinas . . . Via-se que a sua mão tinha
receio de encontrar a mão da Hauteclaire, como se ao
tocar-lhe por um acaso fosse impossível deixar de a
agarrar. A Hauteclaire não tinha nenhum destes emba­
raços, destas apavoradas precauções . . . Tentadora como
todas são, ao ponto de tentarem Deus no seu céu, se
um lá houvesse, e o Diabo no seu inferno, parecia inte­
ressada em excitar ao mesmo tempo o desejo e o perigo.
Vi-a uma ou duas vezes - . nos dias em que a minha vi­
sita coincidia com o jantar devotamente comido pelo
Savigny junto do leito da sua mulher. Era ela quem ser­
via, porque as outras criadas não entravam no aparta­
mento da condessa. Para pôr os pratos na mesa tinha de
se debruçar um pouco sobre o ombro do Savigny, e sur-
preendi-a a roçar as saliências da blusa na nuca e nas ore­
lhas do conde, que ficava muito pálido . . . e olhava, para
ver se a sua mulher não teria notado. Palavra de honra!
Nesse tempo eu era novo e parecia-me que o alvoroço
das moléculas da nossa constituição, a que chamamos
violência das sensações, era a única coisa que valia a pena
ser vivida. Por isso imaginava, sob a provocação feita aos
olhos de uma mulher que tudo podia adivinhar, que fa­
mosos prazeres haveria na escondida concubinagem
com uma falsa criada. Sim, nesse momento compreendi
o que era a concubinagem na casa conjugal, para utilizar
as palavras do velho Prudhomme do Código!
«Mas, exceptuados a palidez e os transes reprimidos
do Savigny, eu nada via do romance que eles faziam um
com o outro enquanto esperavam pelo drama e pela ca­
tástrofe . . . na minha opinião inevitáveis. Até aonde te­
riam ambos chegado? Era este segredo do seu romance
que eu queria arrancar-lhes. Apoderava-se do meu pen­
samento como a garra da esfinge de um problema; e, tão
forte se fez, que caí da observação na espionagem que só
é a observação por qualquer preço. Hé hé! De pouco
tempo um gosto intenso precisa para nos depravar . . .
Para saber o que ignorava permiti-me muitas baixezas
banais, muito indignas de mim, e que apesar de reco­
nhecidas como tal acedi a praticar. Ah! O hábito de usar
a sonda, meu caro! Atirava-a a tudo. Quando fazia visi­
tas ao castelo e punha o cavalo na estrebaria, como
quem não quer a coisa levava os criados a descoserem-se
sobre os patrões. Por conta da minha própria curiosi­
dade mexericava (oh!, não consigo evitar a palavra) .
Mas tão enganados os criados andavam como a con­
dessa. Com muito boa fé tomavam a Hauteclaire por
um dos seus, e nada eu teria a dar-me paga às exigências

da curiosidade se um acaso, como acontece sempre, não


fizesse mais pelo caso numa única ocasião do que todas
as minhas combinações, e não me tivesse ensinado mais
do que todas as espionagens.
«Há mais de dois meses eu ia visitar a condessa,
que não melhorava da sua saúde e mostrava cada vez
mais fortes sintomas de um enfraquecimento, agora tão
vulgar mas que os médicos designavam naquela época,
tão pouco elucidada, por anemia. O Savigny e a Hau­
teclaire continuavam a representar com perfeição idên­
tica a muito difícil comédia que a minha chegada ao
castelo e a minha presença não tinham desconcertado .
. Dir-se-ia, ainda assim, que os actores mostravam al­
guma fadiga. O Serlon emagrecera; e em V . . eu tinha
.

ouvido dizer: "Que bom marido, o senhor de Savigny!


A doença da sua mulher já conseguiu alterá-lo por
completo. Que bela coisa é amarmo-nos!" Apesar da
sua beleza imóvel, a Hauteclaire tinha os olhos pisados;
não pisados por terem chorado, porque talvez nunca ti­
vessem chorado na sua vida, mas como numa altura de
muitas vigílias; e nem por isso a brilhar com menos
ardor no fundo do seu círculo violáceo. De resto, podia
ser que a magreza do Savigny e as olheiras da Haute­
daire chegassem de outra coisa que não a vida tensa que
a si próprios tinham imposto. De muitas coisas podiam
chegar-lhes, naquele meio subterraneamente vulcani­
zado! Andava eu a observar nos seus rostos estas marcas
traidoras, a interrogar-me em voz baixa e sem saber
muito bem que resposta dar, quando passei um dia por
Savigny, durante a minha visita de médico pelos arredo­
res. Fazia tenções de entrar no castelo, como era hábito,
mas o parto muito trabalhoso de uma camponesa ti­
nha-me retido até tarde, e quando passei por Savigny a
hora era avançada de mais para lá entrar. Eu não sabia,
aliás, que horas eram. Tinha o relógio de bolso parado.
Mas a lua, que começava a descer o outro lado da sua
curva no céu, marcava nesse vasto mostrador azul pouco
mais do que a meia-noite e, com a ponta inferior do
crescente, quase tocava na zona mais elevada dos pi­
nheiros de Savigny, prestes a desaparecer atrás deles . . .
«- Costuma ir a Savigny? - perguntou-me o
doutor, fazendo uma interrupção repentina e voltando­
-se para mim. - Costuma - prosseguiu quando lhe
respondi afirmativamente com a cabeça. - Pois bem!
Sabe então que somos obrigados a entrar naquela mata
de pinheiros e passar ao longo dos muros do castelo;
que temos de virar, como se ele fosse um cabo, para to­
mar a estrada directa até V . . . De repente, na espessura

66
da mata negra onde eu não via nenhuma luz nem ouvia
nenhum ruído, chegou..,me um que tomei pelo de uma
pá de lavadeira - a pá de uma pobre camponesa qual­
quer, durante o dia ocupada nas terras e a aproveitar a lua
para lavar a sua roupa num lavadouro ou num fosso . . .
Só quando me aproximei do castelo a batida regular se
misturou com outro ruído e me esclareceu sobre a natu­
reza do primeiro. Era um tilintar de espadas a cruzarem­
-se, e a esfregarem-se, e a agastarem-se. Sabe como tudo
se ouve no silêncio e no ar fino das noites, como os me­
nores ruídos ganham precisões de singular acuidade! Eu
ouvia, sem qualquer hipótese de engano, o animado
atrito de ferros. Pelo espírito passou-me uma ideia; mas
quando saí da mata de pinheiros do castelo empalide­
cido pela lua e com uma janela aberta:
«''Oh!" - disse eu a admirar aquela força de gos­
tos e hábitos. - "Continuam com esta forma de fazer
amor!"
«Eram, com toda a evidência, o Serlon e a Haute­
daire a terçarem àquela hora as suas armas. As espadas
ouviam-se como se estivessem à vista. O que eu tomara
pelo ruído das pás de lavadeira era a provocação dos pés
dos esgrimistas. O castelo tinha quatro alas, e a janela
aberta situava-se na mais afastada do quarto da con­
dessa. Adormecido, sinistro e branco ao luar, o castelo
era como uma coisa morta . . . Exceptuada essa ala esco­
lhida a preceito, e com uma porta envidraçada e orna-
mentada por uma varanda atrás de persianas meio cor­
ridas, tudo estava em silêncio e às escuras; mas destas
persianas meio corridas e riscadas de luz, a darem para a
varanda, é que chegava o ruído duplo da provocação
dos pés e do ranger dos floretes. Era tão claro, chegava
aos ouvidos tão nítido, que cheio de razão, como vai
ver, pressupus que eles sentiam muito calor (estava-se
em Julho) e tinham aberto a porta da varanda, atrás das
persianas. Eu tinha parado o cavalo na orla da mata,
para ouvir o recontro que parecia tão vivo, interessado
naquele combate de amantes que se tinham amado e
assim continuavam a amar-se com armas na mão,
quando ao fim de certo tempo o tilintar dos floretes e o
estalar da provocação dos pés terminaram. As persianas
da porta envidraçada da varanda foram empurradas,
abriram-se, e s6 tive tempo de não ser notado na noite
dara fazendo o cavalo recuar para a sombra da mata de
pinheiros. O Serlon e a Hautedaire vieram debruçar-se
na guarda de ferro da varanda. Distinguia-os muitís­
simo bem. A lua caiu, oculta pela pequena mata, mas a
luz de um candelabro que eu via atrás deles, no aparta­
mento, punha-lhes em destaque a silhueta dupla. A
Hautedaire estava vestida, se àquilo pode chamar-se
vestida, como tantas vezes a tinha visto quando dava li­
ções em V . ; apertada com atilhos naquele colete de
. .

armas feito de pele de camelo: que lhe fazia uma espécie


de couraça, e com as pernas modeladas num daqueles

68
calções de seda que lhe reproduziam de tão justa forma
o contorno musculado. O Savigny trazia um fato quase
idêntico. Ambos surgiam esbeltos e robustos no fundo
luminoso que os enquadrava como duas belas estátuas
da Juventude e da Força. Há pouco admirou neste jar­
dim a beleza orgulhosa de um e de outro, que os anos
ainda não destruíram. Pois bem! Seja ajudado com isto
a fazer uma ideia da magnificência do casal que eu via
na varanda, metido naquelas roupas apertadas que pa­
reciam uma nudez. Apoiados na grade falavam, mas
baixo de mais para· eu poder ouvir-lhes as palavras; no
entanto, a atitude dos corpos falava por eles. Num dado
momento o Savigny deixou cair apaixonadamente o
braço à volta daquela cintura de amazona, que parecia
feita para todas as resistências, mas não as fez . . . E com
a altiva Hauteclaire quase ao mesmo tempo suspensa
do pescoço do Serlon, ambos formaram esse famoso e
voluptuoso grupo de Canova que está em todas as me­
mórias; e assim permaneceram, esculpidos boca com
boca, durante um tempo que à minha fé daria para se
beber uma garrafa de beijos, sem interrupção nem re­
cobrar alento! Durou bem sessenta pulsações contadas
neste pulso mais acelerado do que agora está, e que o
espectáculo ainda mais rapidamente fazia bater . . . »
«''Oh! Oh!", disse eu quando me desacoitei da
mata e eles voltaram, sempre enlaçados um no outro, a
entrar no apartamento e a baixar as cortinas, grandes
cortinas escuras. - "Uma destas manhãs vão ter de
confiar-se a mim. Porque terão mais do que as suas pes­
soas para esconder." Vendo aquelas carícias e aquela in­
timidade que tudo me revelavam, tirei delas as minhas
consequências de médico. No entanto, o seu ardor de­
veria enganar-me as previsões. Sabe, como eu, que os
seres que se amam em excesso (o descarado doutor disse
outra palavra) não fazem filhos. Na manhã seguinte fui
a Savigny. Encontrei a Hauteclaire já outra vez Eulalie,
sentada no vão de uma das janelas do longo corredor
que ia dar ao quarto da sua patroa, com um monte de
roupa e trapos na cadeira à sua frente; ela, a espadachim
nocturna, ocupada a coser e a cortar! Alguém desconfia
disto?, pensei, ao apanhá-la de avental branco e com
aquelas formas que eu tinha visto como se estivessem
nuas na moldura iluminada da varanda, a afogarem-se
agora nas pregas de uma saia que as não podia engo­
lir . . . Passei mas sem lhe falar, porque eu falava com ela
o menos possível, já que não queria ter ar de saber o que
sabia e talvez surgisse filtrado através da minha voz e do
meu olhar. Sentia-me muito menos comediante do que
ela, e receava por mim próprio . . . Quando eu passava
ao longo do corredor onde ela se mantinha a trabalhar,
se não estivesse de serviço ao pé da condessa, em geral
ouvia-me muito bem, quando eu me aproximava, e ti­
nha tanta certeza de que era eu, que nunca levantava a
cabeça. Mantinha o rosto inclinado por baixo do bar-

70
rete de batista com goma, ou de outro boné normando
que em certos dias também usava e parecia o chapéu
medieval de Isabel da Baviera; ficava com os olhos pos­
tos no trabalho e as faces veladas por aqueles caracóis de
um preto azul, enroscados, que pendiam no oval pálido
sem mais me oferecerem à vista do que a curva de uma
nuca fumada por espessos casulos de cabelo que se tor­
ciam tanto como os desejos que despertavam. Esplên­
dido, na Hauteclaire, era acima de tudo o animal. Tal­
vez não haja mulher com mais intensa beleza daquele
género . . . Os homens, que tudo dizem· entre si, ti­
nham-no muitas vezes notado. Em V . . . , quando ela
dava as suas lições de armas os homens chamavam-lhe a
mademoiselle Esaú . . . O Diabo diz às mulheres o que
elas são, ou antes, dizem-no elas ao Diabo, no caso de
ele o não saber . . . Apesar de muito pouco dada a afec­
tações, quando ouvia quem lhe falava, a Hauteclaire ti­
nha o hábito de agarrar e desenrolar com os dedos o
longo cabelo frisado e acumulado naquela parte do pes­
coço, aqueles rebeldes ao pente que lhe tinha alisado a
nuca e, como diz a Bíblia, só um deles bastante para
nos perturbar a alma I . Ela bem sabia que ideias um tal

1 Duas referências relacionadas com a Bíblia. A primeira difícil de esclare­


cer porque Esaú é o filho de Isaac e Rebeca que vendeu os seus direitos de primo­
génito por um prato de lentilhas, facto que nada tem a ver com a situação da his­
tória. Sobre a sua beleza, diz-se que era ruivo e cheio de pêlo, o que também não
tem sentido num passo em que se elogia a beleza de Hauteclaire. Resta a hipótese

71
jogo fazia nascer! Mas, naquela altura e desde que era
criada de quarto, nem mesmo quando olhava para o
Savigny eu lhe vi alguma vez ousar esse gesto ·do poder
que brinca com o fogo.
«Meu caro, o parêntese é longo mas à minha histó­
ria importa tudo quanto serve para lhe dar a conhecer
como era a Hauteclaire Stassin . . . Nesse dia viu-se obri­
gada ao incómodo de mostrar o rosto e se aproximar de
mim, porque a condessa a chamou e ordenou que me
desse a tinta e o papel necessários para eu passar uma re­
ceita. Aproximou-se, e no dedo trazia o dedal de aço
que não tivera tempo de tirar, e tinha espetado a agulha
enfiada no peito provocante, onde já tinha pregado uma
porção delas, encostadas umas às outras e que o deixa­
vam embelezado com o seu aço. Até o aço das agulhas
ficava bem ao diabo desta rapariga feita para o aço, e que
teria na Idade Média usado couraça. Manteve-se de pé à
minha frente enquanto eu escrevia, a oferecer-me o tin­
teiro com esse movimento de antebraços nobre e flexível
que o hábito de esgrimir lhe tinha dado, a ela mais do
que a qualquer outra pessoa. Quando acabei ergui os
olhos e fixei-a, para não parecer que a evitava, e encon­
trei o rosto fatigado pela sua noite. O Savigny, que não
_
de a Mademoiselle Esaú andar escondida atrás de uma máscara, como Jacó atrás
da pele de carneiro quando se fez passar por Esaú. A segunda é uma evidente alu­
são ao «Cantico dos Canticos»: «Perturbaste-me a alma [ . . . ] com um único ca­

belo da tua nuca>>. (N. do T.)

72
estava lá quando cheguei, entrou de repente. Bem mais
fatigado do que a Hautedaire . . . Falou-me do estado da
condessa, que não melhorava. E falou-me como um ho­
mem impaciente por ela não melhorar. Tinha o tom
amargo, violento, tenso do homem impaciente. En­
quanto ia falando, andava de um lado para o outro. Eu
observava-o com frieza, achando que a coisa ia destavez
longe de mais, e era algo inconveniente o tom napoleó­
nico que usava para me falar. "Mas se eu te curasse a
mulher", pensei com insolência, "não andarias toda a
noite a terçar armas e a fazer amor com a tua amante".
Teria podido apelar aos seus sentimentos e à delicadeza
de que ele estava a esquecer-se, pôr-lhe debaixo do nariz
os sais ingleses de uma boa resposta. Contentei-me em
olhá-lo. Mas achava-o mais interessante do que nunca,
porque era mais do que nunca evidente que represen­
tava uma comédia.»
E o doutor voltou a calar-se. Mergulhou o largo
polegar e o indicador na sua caixa de prata lavrada com
ondulações, e aspirou uma pitada de macubaco, como
pomposamente e por hábito chamava ao seu tabaco.
Tão interessante ele próprio me pareceu, que não fiz ne­
nhuma observação; e o doutor, depois de absorver a pi­
tada e passar o dedo em gancho na curvatura do ávido
nariz com forma de bico de corvo, prosseguiu:
-. Oh! Lá impaciente, estava; mas não por a
sua mulher continuar sem melhoras, a mulher a quem

73
era tão determinadamente infiel! Que diabo! Ele, a
concubinar na sua própria casa com uma criada, por a
sua mulher não melhorar não podia encolerizar-se
muito! Com ela curada, o adultério não teria sido mais
difícil? Mas é verdade que o arrastamento do mal sem
fim cansava-o, atacava-lhe os nervos . . Teria imagina­
do que ia durar menos? E depois, quando pensei no
assunto . . . caso ele, ou ela, ou ambos tivessem a ideia
de acabar com aquilo, já que a doença ou o médico a
nenhum lado chegava, não teria sido a partir daquele
momento . . .
- O quê! Teriam eles, doutor? . . .
Não terminei a frase, com as palavras cortadas pela
ideia que ele me dava!
Baixou a cabeça, a olhar para mim tão trágico
como a estátua do Comendador quando aceitou cear1.
- Sim! - soprou com lentidão, numavoz baixa
que me respondia ao pensamento. - Pelo menos, toda
a região se aterrorizou poucos dias depois, ao saber que
a condessa tinha morrido envenenada . . .
- Envenenada! - exclamei.
- . . . Pela criada de quarto, a Eulalie, que con-
fundiu frascos, e em vez do remédio que eu receitara
deu a beber à patroa, segundo se dizia, um frasco de

1 Frase destinada aos leitores dos Contes Crue/.s de Villiers de l'Isle-Adam e,


em especial, do conto «Le Convive des Dernieres Fêtes». (N. do T.)

74
tinta dupla 1 • Um tal desleixo podia acontecer, de facto.
Mas eu sabia que a Eulalie era a Hautedaire! E vira-os
aos dois na varanda, a reproduzir o par do Canova! As
outras pessoas não tinham visto o mesmo que eu. As
pessoas só começavam a ter a impressão de que acon­
tecera um terrível acidente. Mas, dois anos depois da
catástrofe, quando foi do conhecimento geral que o
conde Serlon de Savigny se tinha casado publicamente
com a filha do Stassin - porque acabou por se arran­
car do escuro quem diabo ela era, a falsa Eulalie - e
que ia deitá-la nos lençóis ainda quentes da primeira
mulher, a mademoiselle Delphine de Cantor! Oh,
nessa altura trovejaram suspeitas, embora em voz baixa,
como se o dito e o pensado metessem medo. Mas a ver­
dade é que ninguém, no fundo, sabia de nada. Só era
conhecida a monstruosidade daquele casamento desi­
gual, que fazia apontar a dedo o conde de Savigny e o
isolava como um empestado. O que era, de resto, bas­
tante. O meu amigo sabe que desonra é, ou antes, era,
porque as coisas entretanto se alteraram muito, dizer­
-se naquela terra que um homem se tinha casado com .
a criada! Esta desonra ganhou uma grande dimensão e
ficou agarrada ao Serlon como uma nódoa. Quanto ao
horrível zumbido do crime que ele tinha supostamente

1 Tinta que tanto podia ser utilizada para escrever como para pintar cabe­
dal. (N. do T.)

75
praticado, não tardou a esmorecer como o do zângão
caído de cansaço numa rodeira. Mas havia alguém que
sabia e tinha a certeza . . .
- Podia ser mais alguém, que não o doutor? -
interrompi.
. .

- Eu, de facto, mas não só - continuou. - Se


só eu soubesse, nunca chegaria a ter mais do que vagos
clarões, piores do que a ignorância . . . Nunca chegaria a
ter uma certeza - disse, carregando nas palavras com a
firmeza de uma total segurança - e eu tenho-a! - E
vai ouvir bem como a tenho! - acrescentou a agarrar­
-me no joelho com os dedos nodosos, como se fossem
uma tenaz.
Mas a história ainda me atenazava mais do que o
conjunto de articulações de caranguejo existentes na
sua mão terrível.
- Como pode muito bem calcular - continuou
- fui o primeiro a saber do envenenamento da con-
dessa. Culpados ou não, tiveram de mandar procurar­
-me porque eu era o médico deles. Nem se deram ao
trabalho de selar um cavalo. Um rapaz da estrebaria
montou em pêlo, e a grande galope foi ter comigo a
V . . . , de onde o segui num galope idêntico até Savigny.
Quando lá cheguei . . . teria sido uma coisa calculada? . . . .
já não me era possível travar as devastações do envene­
namento. Com a fisionomia alterada, o Serlon surgiu à
minha frente no pátio e, como se tivesse medo das pa-
lavras que utilizava, num aparte que o rapaz da estreba­
ria não podia ouvir, disse:
«- Uma criada enganou-se. (Evitava o Eulalie, o
nome que andava, no dia seguinte, na boca de toda a
gente.) Mas, doutor, não é possível! A tinta dupla é
mesmo um veneno? . . .
«- Depende das substâncias com que é feita -
atalhei.
«Levou-me aos aposentos da condessa, esgotada
com a dor, com uma face contraída que parecia um no­
velo de linha branca caído em tinta verde . . . Era assus­
tadora, assim. Fez-me um pavoroso sorriso de lábios
negros, um destes sorrisos que diz ao homem calado:
"Sei bem o que está a pensar . . . " Percorri o quarto com
os olhos, à procura da Eulalie, mas não estava lá.
Naquele momento gostaria de ver que aspecto ela
tinha. Não havia nenhum rasto. Apesar de ter mos­
trado tanta coragem, estaria com medo de mim? . . .
Ah! Naquela altura os únicos dados que eu tinha eram
poucos precisos . . .
«Quando deu por mim, a condessa fez um esforço
e soergueu-se, apoiada no cotovelo.
«- Ah! Até que enfim, doutor - disse ela - mas
chega tarde de mais. Estou morta. Serlon, quem tinha
de mandar chamar não era o médico, mas o padre. Vá!
Dê ordens para ele vir cá, e que toda a gente me deixe
dois minutos a sós com o doutor. É o que eu quero!

77
«Disse é o que eu quero como nunca lho tinha ou­
vido dizer . . . como só poderia dizê-lo uma mulher com
aquela testa e aquele queixo de que lhe falei.
«- Também saio? - perguntou o Savigny com
voz fraca.
«- Também - disse ela. E acrescentou, quase
como uma carícia: - O meu amigo sabe que as mu­
lheres têm pudores, sobretudo com aqueles a quem
amam.
«Mal saiu, deu-se nela uma transformação atroz.
De meiga passou a bravia.
«- Doutor - disse-me com voz rancorosa -
isto da minha morte não é acidente, é um crime. O Ser­
lon ama a Eulalie, e ela envenenou-me! Não lhe dei cré­
dito, quando me disse que a rapariga é bonita de mais
para criada de quarto. Fiz mal. Ele ama aquela celerada,
aquela execrável rapariga que me matou. É o mais cul­
pado porque a ama e por sua causa me ter traído. Desde
há dias tenho sido advertida pela maneira como se
olham de um lado da cama para o outro. E além disso,
o gosto horrível da tinta com que me envenenaram! . . .
Mas bebi tudo, tomei tudo, apesar do pavoroso gosto,
porque estava com muita vontade de morrer! Não me
venha falar em contravenenos. Não quero nenhum dos
seus remédios. Quero morrer.
«- Se assim é, por que me mandou cá vir, senhora
condessa? . . .
«- Olhe! Vai ver porquê - continuou, a ofe­
gar . . . - para lhe dizer que me envenenaram e dar-me
a sua palavra de honra de que vai ocultá-lo. Tudo isto
pode dar origem a um terrível tumulto. Devemos evitá­
-lo. É meu médico e vão acreditar em si, em si quando
falar deste engano que eles inventaram, quando disser
que eu não morreria, que podia ser salva se a minha
saúde não fosse desde há muito tempo um caso per­
dido. Aqui está o que vai ter de me jurar, doutor . . .
«Como eu não lhe dava nenhuma resposta; viu o
que estava a ganhar corpo dentro de mim. Pensei que
amava o seu marido ao ponto de querer salvá-lo. Era a
ideia que me acudia ao espírito, a ideia natural e banal,
porque há mulheres marcadas pelo amor e pelas suas
abnegações ao ponto de não retribuírem o tiro que as
faz morrer. Mas a condessa de Savigny nunca me tinha
dado a ideia de ser uma mulher deste género!
«- Ah! O que me leva a pedir-lhe esta jura não é
o que julga, doutor. Oh! Não! Neste momento odeio
demasiadamente o Serlon para não continuar a amá-lo,
apesar da sua traição . . . Mas não sou tão cobarde que vá
perdoar-lhe! Vou partir desta vida com ciúmes dele, e
implacável. Mas em causa não está o Serlon, doutor -
continuou numa voz enérgica, pondo a descoberto
todo um lado do seu carácter que eu tinha vislumbrado
mas não penetrado no que ele possuía de mais pro­
fundo. - Em causa está o conde de Savigny. Depois de

79
morta, não quero que o conde de Savigny passe por
assassino da sua mulher. Não quero que o arrastem até
ao tribunal, acusem de ser cúmplice de uma criada
adúltera1 e envenenadora! Não quero esta mancha
agarrada ao nome Savigny, que eu usei. Oh! Se apenas
se tratasse dele, seria digno de todos os cadafalsos! Eu
seria capaz de lhe comer o coração! Mas trata-se de to­
dos nós, as pessoas decentes desta terra! Se ainda fôsse­
mos o que devíamos ser, eu teria mandado atirar essa
Eulalie para uma das masmorras do castelo de Savigny,
e nunca haveria ocasião para isto acontecer! Mas agora
já não somos senhores nas nossas casas. Já não temos a
nossa justiça expedita e muda, e por nada deste mundo
quero escândalos nem as publicidades da vossa, doutor;
prefiro deixá-los nos braços um do outro, felizes, livres
de mim, e morrer enraivecida como morro, do que
morrer a pensar na ignomínia de existir um envenena­
dor entre as fileiras da nobreza de V . . .
«Falava com uma vibração inaudita, apesar dos tre­
mores bruscos do maxilar que batia, com risco de lhe
partir os dentes. Embora eu a reconhecesse, ficava a sa­
ber mais a seu respeito! Era, de facto, a rapariga nobre e
mais nada, a rapariga nobre que tinha na hora da morte
mais força do que a mulher ciumenta. Morria como
1 Faz-se a tradução directa da palavra do original, embora o adultério seja
cometido apenas por quem viola a sua fidelidade conjugal. Hauteclaire só pode­
ria ser acusada de levar Savigny a cometer adultério. (N. do T.)

80
uma verdadeira filha de V . . . , a última cidade nobre da
França! E, mais emocionado do que talvez devesse estar,
prometi e jurei o que me pedia, no caso de não conse­
guir salvá-la.
«E cumpri-o, meu caro. Não a salvei. Não conse­
gui salvá-la: recusou com obstinação todos os remédios.
Depois de morta eu disse o que ela queria, e fui persua­
sivo . . . Já lá vão uns vinte e cinco anos . . . Desta pavo­
rosa aventura tudo está agora serenado, silenciado, es­
quecido. Muitas pessoas desse tempo já morreram.
Cresceram sobre os seus túmulos outras gerações igno­
rantes, indiferentes, e a si estou a dizer uma primeira
palavra sobre esta história sinistra!
«Mesmo assim foi preciso o que acabámos de ver
para eu a contar. Foi preciso aquelas duas criaturas de
beleza imutável apesar do tempo, de felicidade imutá­
vel apesar do seu crime, cheias de força, apaixonadas,
que só querem saber de si próprias, passarem por nós
com tanta soberba perante a vida como perante este
jardim, parecidas com dois anjos de altar que levantam
voo, unidos na sombra de ouro das suas quatro asas!»
Eu estava espantado . . .
- Mas, doutor, se é verdade o que me conta -
disse eu - a felicidade daquela gente é uma assusta­
dora desordem na criação.
- É uma desordem ou uma ordem, como quiser
- respondeu o doutor Torty, ateu absoluto e tão tran-

81
quilo como os dois de quem falava - mas um facto.
Vivem uma felicidade excepcional e são insolentemente
felizes. Estou muito velho, e na minha vida já vi muitas
felicidades que não duraram; mas nenhuma assim tão
profunda, e que continua a durar!
«E pode acreditar que muito estudei, muito escru­
tei, muito perscrutei! Acredite que muito esquadrinhei o
bichinho daquela felicidade! Peço-lhe desculpa da ex­
pressão, mas posso dizer-lhe que a espiolhei. . . Meti o
bedelho na vida daquelas duas criaturas, o mais que
pude, para ver se não haveria um defeito, uma fissura,
pequena que fosse, em qualquer ponto oculto da sua es­
pantosa e revoltante felicidade; mas só pude encontrar
uma felicidade de meter inveja e que seria um excelente
e triunfante gracejo do Diabo contra Deus, se lá hou­
vesse um Deus e um Diabo! Como deve calcular, depois
de a condessa morrer mantive boas relações com o Sa­
vigny. Como eu me tinha limitado a apoiar com a mi­
nha afirmação a fábula que eles imaginaram para expli­
car o envenenamento, não mostraram interesse em
afastar-me; e era muito grande a minha vontade de co­
nhecer o que seria a sua continuação, e o que iam fazer,
aquilo em que iam transformar-se. Eu arrepiav:,i-me mas
afrontava os arrepios . . . A continuação começou por ser
o luto do Savigny, que durou os dois anos do costume e
ele usou de maneira a confirmar-se, na ideia pública,
como o melhor dos maridos passados, presentes e futu-

82
ros . . . Durante esses dois anos não se mostrou absoluta­
mente a ninguém. Com tal rigor na solidão se enterrou
no castelo, que ninguém soube da presença em Savigny
da Eulalie, causa involuntária da morte da condessa e
que ele devia, por sua pessoal conveniência, ter posto na
rua apesar da certeza de que não era culpada. O acto im­
prudente de manter uma tal rapariga em sua casa, de­
pois de tão grande catástrofe, dava-me provas da insen­
sata paixão do Serlon, que eu sempre desconfiara que
existia. Nada me surpreendeu, portanto, que no regresso
de uma das minhas voltas de médico tivesse encontrado
na estrada de Savigny um criado e ele me informasse,
quando lhe pedi notícias do que se passava no castelo,
que a Eulalie continuava a /,d estar. . A naturalidade com
.

que o disse fez-me perceber que ninguém, entre o pes...


soal do conde, suspeitava de que a Eulalie fosse sua
amante. "Continuam a actuar com todas as cautelas",
disse para comigo. "Mas por que não saem do país? O
conde é rico. Pode em qualquer lado viver à grande. Por
que não desaparece daqui com esta diaba (tratando-se
de diabas, bem convencido estava de que ela era uma)
que para ter bem agarrado o seu amante preferiu viver
na casa dele, correndo todos os riscos, em vez de ser sua
amante em V . . . ; num qualquer alojamento retirado,
onde muito mais tranquilidade ele teria visitando-a às
escondidas?" Nisto existia um avesso que eu não com­
preendi. Seriam tão intensos o delírio, a forma como se
entredevoravam, que nada viam das prudências e das
preocupações da vida? . A Hautedaire, que no carácter
. .
.

eu supunha mais forte do que o Serlon e imaginava, nas


relações entre os dois amantes, a desempenhar o papel
do homem, quereria afinal manter-se naquele castelo
onde a tinham visto como criada e iam vê-la como pa­
troa? E, mantendo-se lá, quando ficasse a saber-se que lá
continuava, e se· isto desse origem a um escândalo, pre­
parar a opinião pública para outro escândalo bem mais
pavoroso, o seu casamento com o conde de Savigny?
Não me teria acudido tal ideia se, neste instante da mi­
nha história, lhe não tivesse acudido a ela. A Hautedaire
Stassin, filha d'O Estocada, esse velho pilar da sala de ar­
mas - que todos tínhamos visto em V . dentro de
. .

calças justas e a dar lições e estocadas fatais - condessa


de Savigny! Imagine-se! Quem acreditaria nesta revira­
volta, neste fim do mundo? Oh! Palavra de honra! Pela
minha parte eu estava absolutamente convencido, in
petto, de que a concubinagem entre aqueles dois ani­
mais altivos, logo ao primeiro olhar cientes de que per­
tenciam à mesma espécie e teriam ousadia para cometer
o adultério debaixo dos olhos da condessa, ia continuar
imperturbável. Mas, palavra de honra, o casamento, o
casamento afrontosamente consumado nas barbas de
Deus e dos homens, este desafio atirado à cara da opi­
nião pública numa terra insultada nos seus sentimentos
e nos seus costumes, eu estava a mil léguas de distância
de achar possível; e tão longe dele que, ao fim dos dois
anos de luto, quando a coisa bruscamente sucedeu,
caiu-me na cabeça o corisco da surpresa como se eu fosse
um desses imbecis que nunca prevêem nada do que
acontece, e olham naquela terra uns para os outros, e ge­
mem como os cães que gemem nas encruzilhadas, fusti­
gados pela noite.
«De resto, nesses dois anos de luto do Serlon tão
rigorosamente cumprido, e tão furiosamente rotulado
de hipocrisia e baixeza quando chegou ao fim, não fui
muito ao castelo de Savigny . . . O que teria lá para fa­
zer? . . . Estavam de boa saúde, e até ao momento talvez
não muito distante em que mandassem chamar-me de
noite, por causa de um parto que ainda teriam de en­
cobrir, não precisariam dos meus serviços. Apesar disto
arrisquei neste entretanto uma visita ao conde. Cortesia
acompanhada pela eterna curiosidade. O Serlon costu­
mava receber-me num lado ou noutro, de acordo com
a ocorrência, ou no local onde estivesse quando eu lá
chegava. Não fez comigo nenhuma cerimónia. Recu­
perara a afabilidade. Mas tinha um ar grave. Eu já repa­
rara que os seres felizes são graves. Estão muito atentos
ao seu coração, como se ele fosse um copo cheio, que ao
menor movimento corre o risco de se derramar ou par­
tir . . . Apesar da gravidade e da roupa preta, o Serlon ti­
nha nos olhos a incoercível expressão de uma felicidade
imensa. Já não se tratava daquela expressão de alívio e
libertação que neles tinha brilhado no dia em que viu,
nos aposentos da sua mulher, que eu reconhecia a Hau­
teclaire mas tomava o partido de a não reconhecer.
Não, à fé de quem sou! Era felicidade a sério! Embora
só conversássemos sobre coisas superficiais e exteriores
nessas visitas rápidas e de circunstância, o conde de Sa­
vigny não as dizia com a voz do tempo em que a sua
mulher estava viva. Com uma plenitude quase quente
nas entoações, mostrou nessa altura dificuldade em
conter sentimentos com muita vontade de lhe sair do
peito. Quanto à Hauteclaire (que continuava Eulalie e
no castelo, como me tinha dito o criado), decorreu muito
tempo sem a encontrar. Quando eu passava no corre­
dor já não a via naquele vão de janela onde antes, no
tempo da condessa, ficava a trabalhar. A pilha de roupa
no mesmo sítio, com as tesouras, o estojo de costura e o
dedal no parapeito diziam, no entanto, que continuava
a trabalhar ali, naquela cadeira agora vazia mas talvez

ainda morna, e de onde acabava de sair por ter ouvido


que eu estava a aproximar-me. Lembre-se de que eu ti­
nha a fatuidade de a julgar com receio do meu olhar pe­
netrante; embora já não houvesse naquela altura razões
para o temer. Ela ignorava que eu tinha acolhido a terrí­
vel confidência da condessa. Com o carácter altivo e au­
dacioso que eu lhe conhecia, até devia estar contente
por poder afrontar a sagacidade da minha descoberta.
E estava certo, de facto, o que eu presumia, porque uma

86
vez encontrei-a e trazia estampada no rosto a sua felici­
dade; tão radiosa, que não teria sido possível apagá-la
derramando nele uma garrafa inteira da tinta que enve­
nenara a condessa!
«Nessa primeira vez encontrei-a na grande escada
do castelo. Estava a descer e eu a subir. Estava a descê-la
com alguma pressa; mas abrandou os passos quando
me viu, empenhada em mostrar-me faustosamente o
rosto, sem dúvida, e a levar até bem ao fundo dos meus
olhos os seus, qµe podem fechar os de uma pantera mas
não conseguiram fechar os meus. A descer os degraus
da sua escada, com as saias a flutuar atrás de si, sopradas
por um movimento rápido, pareceu-me que descia do
céu. Estava sublime, com aquele ar de tanta felicidade.
· Ah! Tinha um ar quinze mil léguas mais alto do que o
ar do Serlon! Apesar disso não me coibi de lhe fazer um
sinal de cortesia, porque o próprio Luís XIV cumpri­
mentava nas escadas criadas de quarto, e vá lá dizer-se
que não eram envenenadoras! Naquele dia ela ainda era
criada de quarto no comportamento, no trajo, no avental
branco; mas a impassibilidade da escrava fora substi­
tuída pelo ar feliz da mais triunfante e despótica patroa.
Foi um ar que nunca mais a abandonou. Acabo de vol­
tar a vê-lo, e o me� amigo pôde avaliá-lo. Chega a ser
mais evidente do que a beleza do rosto onde ele res­
plandece. Passados vinte anos continua com o ar sobre­
-humano da altivez nesse amor feliz que deve ter dado

87
ao Serlon e ele começou por não mostrar, mas que não
vejo agora velar-se um instante na face destes dois estra­
nhos privilegiados da vida. Com esse ar responderam
sempre e vitoriosamente a tudo, ao abandono, às male­
dicências, aos desprezos da opinião indignada; e àqueles
que os encontram fazem achar que é atroz calúnia o
crime de que foram durante alguns dias acusados.»
- Mas - interrompi - depois de tudo o que o
doutor sabe, como é que se deixa vencer por esse ar?
Não os seguiu por todo o lado? Não está constante­
mente a vê-los?
- Só não os vejo à noite, no quarto onde dor­
mem, e não será ali que o perdem - disse o doutor
Torty, brejeiro mas profundo. ·- Creio bem que os vi
em todos os momentos da sua vida, a seguir a terem ce­
lebrado o casamento não sei onde, para evitar a baru­
lheira com que a populaça de V . . . prometia envolvê-los,
à sua maneira tão furiosa como a nobreza é à sua.
Quando regressaram casados, ela uma autêntica con­
dessa de Savigny, ele totalmente desonrado por se ter ca­
sado com uma criada, foram-se instalar lá, no seu castelo
de Savigny. fu pessoas voltaram-lhes as costas. - Deixa­
ram-nos saciar-se à vontade um com o outro . . . No en­
tanto parecia que nunca chegavam a ficar repletos; ainda
há pouco não estava aplacada essa fome que sentem de si
próprios. Naquilo que me toca, porque não quero mor­
rer sem ter escrito, na minha qualidade de médico, um

88
tratado de teratologia, interessavam-me . . . como mons­
tros, e não me pus na fila dos que fugiram deles.
Quando vi a falsa Eulalie ser uma autêntica condessa, re­
cebeu-me como se o tivesse sido durante toda a vida.
Queria lá saber que eu tivesse na memória a lembrança
do avental branco e da bandeja! "Deixei de ser a Eula­
lie", disse-me ela, "sou a Hauteclaire, a Hauteclaire feliz
por ter sido criada dele . . . " Eu pensava que outra coisa
muito diferente tinha sido; mas como fui a única pessoa
da terra a aparecer em Savigny, quando para lá voltaram,
já tinha toda a vergonha engolida e acabei por visitá-los
muitas vezes. Posso dizer que continuei a perscrutar com
obstinação a intimidade dessas duas criaturas tão com­
pletamente felizes através do amor. Pois bem, meu caro!
Acredite se quiser, mas não vi que a pureza desse amor
maculado por um crime cometido, estava eu certo disso,
fosse . . . já não direi embaciada, mas num só minuto de
um dos seus dias assombrada. No firmamento da sua fe­

licidade nem uma só vez vi a nódoa dessa lama de um


crime cobarde que não teve a coragem de ser sangrento!
É de deixar arrasados todos os moralistas da terra que in­
ventaram o belo axioma do vício punido e da virtude re­
compensada. Não é verdade? Abandonados e solitários
como estavam, visitados apenas por mim que, à custa de
tanta convivência, não era mais incómodo do que um
médico quase transformado num amigo, não exerciam
sobre si próprios nenhuma vigilância. Esqueciam-me e
viviam muito bem comigo presente, inebriados por
uma paixão que eu não comparo com mais nada, veja lá
bem, que exista em todas as recordações da minha
vida . . . Ainda há pouco foi testemunha disso: passaram
e nem deram por mim, apesar de eu estar mesmo ao seu
lado! Tenho parte da minha vida passada com eles, e
nem assim me viram . . . Correctos, amáveis, mas a maior
parte do tempo distraídos; procederam comigo de uma
forma que, sem estar empenhado em estudar microsco­
picamente a sua inacreditável felicidade e, para minha
pessoal edificação, surpreender nela o grão de areia de
um cansaço, de um sofrimento, ou - para dizer a pala­
vra forte - de um remorso, eu não teria voltado a Sa­
vigny. Mas nada! Nada! O amor tinha tomado conta de
tudo, enchia-lhes tudo, punha-lhes uma rolha em tudo,
no senso da moral e na consciência - como vocês, vo­
cês os outros, dizem; e só a olhar para eles, os felizes,
compreendi como era séria a piada do meu velho cama­
rada Broussais quando afirmava isto sobre a consciência:
"Ando a dissecar há trinta anos, e nem sequer uma ore­
lha desse animalzinho descobri!"
«E não imagine - continuou este velho diabo do
doutor Torty, como se lesse no meu pensamento - que
acabo de lhe enunciar uma tese . . . a prova de uma dou­
trina que julgo verdadeira e nega . em absoluto a cons­
ciência como a negava Broussais. Não há aqui tese ne­
nhuma. Não pretendo arranhar as suas convicções . . . Só

90
há factos, e eles espantaram-me tanto como o espanta­
ram a si. Há o fenómeno de uma felicidade contínua, de
uma bola de sabão que continua a aumentar e nunca re­
benta! Quando a felicidade é contínua, já é uma sur­
presa; mas esta felicidade no crime é uma estupefacção, e
há vinte anos não me refaço dela. O velho médico, o ve­
lho observador, o velho moralista. . . ou imoralista -
continuou ele, observando o meu sorriso - fica des­
concertado com o espectáculo de que é há tantos anos
assistente e que não consegue dar a ver-lhe em porme­
nor, porque existe uma frase arrastada por todos os sítios,
tão verdadeira ela é!, a dizer-nos que a felicidade não tem
história. Nada mais há a descrever. Não pode pintar-se
mais a felicidade, essa infusão de uma vida superior na
vida, do que poderia pintar-se a circulação do sangue
das veias. Pelo pulsar das artérias verifica-se que ele lá cir­
cula, e assim verifico a felicidade destes dois seres que
acaba de ver, a felicidade incompreensível, à qual eu
tomo há muito tempo o pulso. Sem darem por isso, o
conde e a condessa de Savigny refazem todos os dias o
magnífico capítulo de O Amor no Casamento, de Ma­
dame de Stael, ou os ainda mais magníficos versos de
O Paraíso Perdido de Milton. No que me diz pessoal­
mente respeito, nunca fui muito sentimental nem muito
poético; mas eles, com o ideal que realizaram e eu julga­
ria impossível, fizeram-me ficar enfastiado com esses ca­
samentos que conheci, chamados pela sociedade encan-

91
tadores. Sempre os achei muito inferiores ao deles, tão
descoloridos e tão frios são! O destino, a sua estrela, o
acaso, sei lá o quê!, conseguiram fazê-los viver para si
próprios. Ricos, tiveram a dádiva da ociosidade sem a
qual o amor não existe, mas que mata muitas vezes o
amor que precisa dela para nascer . . . No seu caso excep­
cional, a ociosidade não o matou. O amor, que simpli­
fica tudo, fez da sua vida uma simplificação sublime. Na
existência destes dois casados, que na aparência viveram
como todos os castelões da terra, longe do mundo a que
não têm de pedir nada, a preocuparem-se tão pouco
com a estima que ele lhes dedica como se preocupam
com o seu desprezo, não há essas coisas grosseiras a que é
costume chamar-se acontecimentos. Nunca se separa­
ram um do outro. Aonde um deles vai, o outro acompa­
nha-o. As estradas dos arredores de V . . . voltam a ver a
Hauteclaire montada a cavalo, como no tempo do velho
Estocada, mas com ela está o conde de Savigny; e as mu­
lheres da terra, que passam de carro como outrora, talvez ·
a olhem ainda mais do que na altura da grande e miste­
riosa rapariga com véu azul-escuro e impossível de ser
vislumbrada. Agora ergue o véu e mostra atrevidamente
o rosto de criada que conseguiu casar-se com o patrão, e
elas voltam para casa indignadas mas sonhadoras . . . O
conde e a condessa de Savigny não viajam; vêm algumas
vezes a Paris, mas só aqui ficam uns dias. A sua vida con­
centra-se por completo naquele castelo de Savigny, tea-

92
tro de um crime cuja memória talvez eles tenham per­
dido no abismo sem fundo dos seus corações . . . »
- E nunca tiveram filhos, doutor? - perguntei.
- Ah! - disse o doutor Torty - Julga que está
aí a fissura, a desforra da Sorte e aquilo a que se chama
a vingança ou a justiça de Deus? Não, nunca tiveram
filhos. Lembre-se! Ocorreu-me uma vez a ideia de que
não iriam tê-los. Amam-se em excesso . . . O fogo . . .
que devora . . . consome e não produz. Um dia eu disse
à Hautedaire:
«- Não está triste por não ter filhos, senhora con­
dessa?
«- Não os quero! - respondeu imperiosamente.
- Amaria menos o Serlon. Os filhos - acrescentou
com uma espécie de desprezo - são bons para as mu­
lheres infelizes!»
E com esta frase, que supunha profunda, o doutor
Torty acabou de repente a sua história.
Eu tinha-a seguido com interesse, e disse-lhe:
- Por muito criminosa que a Hautedaire seja,
faz-nos interessar por ela. Sem o seu crime, eu com­
preenderia o amor do Serlon.
- Talvez mesmo com o crime! - disse o doutor.
- Tal como eu - acrescentou o intrépido homem de
bem.

93
COLECÇÃO GATO MALTÊS
O Teatro, Emma Santos
A Casa do Incesto, AnaYs Nin
História Universal da Infâmia, Jorge Luis Borges
Primeiro Livro de Urizen (ed. bilingue), William Blake
Do Caos à Ordem (ed. bilingue) , Ezra Pound
Mocidade, Joseph Conrad
Cálamo (ed. bilingue) , Walt Whitman
A Princesa, D.H. Lawrence
A Canção de Amor de J. Alfred Prufrock (ed. bilingue) , T.S. Eliot
Lunar Caustic, Malcolm Lowry
De Três em Pipa, L.F. Céline
A Fera na Selva, Henry James
«8 Ícones», Arsenii Tarkovskii
Bartleby, Herman Melville
Os Hinos à Noite (ed. bilingue) , Novalis
As Magias (alguns exemplos), versões Herberto Helder
A Voz Humana, Jean Cocteau
Seta de Fogo (ed. bilingue) , Santa Teresa de Ávila
A Mão ao Assinar Este Papel (ed. bilingue) , Dylan Thomas
Pela Água (ed. bilingue) , Sylvia Plath
Ficção Suprema (ed. bilingue) , Wallace Stevens
xix poemas (ed. bilingue) , e.e. cummings
O Tempo Aprazado (ed. bilingue) , Ingeborg Bachmann
Aos Mortos da União e Outros Poemas (ed. bilingue) , Robert Lowell
Antologia Breve (ed. bilingue) , William Carlos Williams
O Livro das Igrejas Abandonadas, Tonino Guerra
Elegias Amorosas (ed. bilingue) , John Donne
Esta É a Minha Carta ao Mundo (ed. bilingue) , Emily Dickinson
A Última Costa (ed. bilingue) , Francisco Brines
Poemas de Amor do Antigo Egipto
Aforismos, Teixeira de Pascoaes
Greguerías, Ramón Gómez de la Serna
A Teoria e o Cão I Os Caminhos que Tomamos, O. Henry
O Nariz, Nikolai Gógol
Hamlet Tragédia Cómica, Luís Bufíuel
-
Chuva na Primavera e Outros Poemas, Li Shang-yin
O Capote, Nikolai Gógol
Poemas (ed. bilingue} , Victor Hugo
O Fogueiro, Franz Kafka
História do Soldado, C.-F. Ramuz
A Guerra Santa, René Daumal
O Dom das Lágrimas (orações da antiga liturgia cristã) (ed. bilingue} ,
Vanina Vanini, Stendhal
Avenida Névski, Nikolai Gógol
Diário de um Louco, Nikolai Gógol
Primeira Neve (Haikus} , Issa Kobayashi
O Menino ao Colo. Momentos, Falas, Lugares do Sublime Santo
António, Armando Silva Carvalho
O Jogo das Nuvens, Johann Wolfgang Goethe
Poemas Anónimos - Turcos, Mongóis, Chineses e Incertos
A Flagelação das Bolsinhas de Camurça seguido de Um Outro Kratki­
-Baschik, Heimito von Doderer
O Retrato, Nikolai Gógol
O Imenso Adeus - Poemas celtas do amor
O Grito do Gamo - Poemas celtas da fé e do sagrado
Parábolas e Fragmentos, Franz Kafka
O Homem Que Morreu, D.H. Lawrence
O Oficial Prussiano, D.H. Lawrence
O Poema do Manto, Ka'b ibn Zuhayr
A Perfeita Harmonia - Poemas celtas da natureza
O Fim do Mundo Filmado pelo Anjo N.-D., Blaise Cendrars
Folhas de Viagem, Blaise Cendrars
Lorenzaccio seguido de O Prisioneiro de Sintra, Paul Morand
E Cantou como Canta a Tempestade,
Anna Akhmátova e Marina Tsvétaleva
Frágua de Amor / Floresta de Enganos, Gil Vicente
O Livro Branco, Jean Cocteau
Carta a D. Luís sobre as Vantagens de Ser Assassinado / O Seu Enterro,
Fialho de Almeida
Os Cardos do Baragan, Pana'it lstrati
Tenzo Kyokun - Instruções para o Cozinheiro Zen, Eshei Dogen
O Bebedor Nocturno, versões de Herberto Helder
O Tempo das Suaves Raparigas e Outros Poemas de Amor, Ruy Belo
REVISÃO: ANTÓNIO LAMPREIA

TIRAGEM: 1000 EXEMPLARES

DEPÓSITO LEGAL: 321228/10

IMPRESSO NA GUIDE ARTES GR.AFICAS, LDA.

RUA HERÓIS DE CHAIMITE, 1 4

2675-374 ODIVELAS

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