Você está na página 1de 12

Liev Tolstói

O diabo e outras histórias

7 radução
Beatriz M u r a b i t o
Beatriz R i c c i
Maira Pinto

Seleção e apresentação
Paulo Bezerra

COSACNAIFY
um prqjeto pessoal de criar u m laboratório vivo de tradução e
investir nos alunos de melhor destaque no curso de língua e l i -
teratura, estimular a criatividade e aproveitar o potencial de ca-
da u m . Visava eu, ainda, lançar as bases para a criação de uma
equipe que, no futuro, pudesse preencher a carência de bons
tradutores de russo no mercado brasileiro, carência essa não
Três mortes
preenchida pelos poucos cursos de russo existentes no Brasil
nem por aqueles oferecidos em universidades russas.
A o término do trabalho, percebi que os textos poderiam
ser aproveitados numa seleta para publicação, contanto que eu
me debruçasse sobre cada u m e procedesse a uma cuidadosa
revisão suplementar, primeiro cotejando os textos traduzidos
com os originais russos, depois procedendo a uma nova revi-
são da linguagem. Assim, os textos que a editora Cosac & Naify
p õ e agora ao alcance do leitor brasileiro passaram por nova re-
visão: primeiro minha, a partir de u m novo cotejo com o r i g i -
nais russos, e depois em conjunto com Samuel T i t a n j r . , j á com
vistas ao m á x i m o aprimoramento possível da linguagem

26
I

Era outono. Pela estrada real duas carruagens seguiam a trote


rápido. N a da frente viajavam duas mulheres. U m a , a senhora,
magra e pálida. A outra, a criada, gorda e de u m corado lustro-
so. Seus cabelos curtos e ressecados brotavam por baixo do
chapéu desbotado, e a m ã o avermelhada, coberta por uma l u -
va poída, ajeitava-os com gestos bruscos. O busto volumoso,
envolto n u m lenço rústico, transpirava saúde; os olhos negros
e vivazes ora espiavam pela janela os campos fugidios, ora ob-
servavam timidamente a senhora, ora lançavam olhares inquie-
tos para os cantos da carruagem. A criada tinha bem ao nariz
o chapéu da senhora pendurado no bagageiro, u m cãozinho
deitado nos joelhos, os pés acima dos bauzinhos dispostos no
chão, tamborilando sobre eles, em sons quase abafados pelo
ruído dos solavancos das molas e do tilintar dos vidros.
De mãos cruzadas sobre os joelhos e de olhos fechados,
a senhora balouçava levemente nas almofadas que lhe serviam
de apoio e, c o m u m leve franzir de cenho, dava tossidelas fun-
das. Tinha na cabeça uma touquinha branca de d o r m i r e u m

29
lencinho azul celeste envolto no pescoço pálido e delicado. soerguer-se para se sentar mais alto, mas faltaram-lhe forças. A

Uma risca brotava abaixo da touquinha e repartia os cabelos boca se contorceu e todo o rosto ficou desfigurado por uma

ruços, excessivamente lisos e empastados; havia qualquer coisa expressão de ironia impotente e malévola. "Pelo menos você

de seco e mortiço na brancura do couro daquela vasta risca. A devia me ajudar... A h , não é preciso! Eu mesma faço, só que não

pele murcha, u m tanto amarelada, mal conseguia modelar suas ponha atrás de m i m essas suas sacolas, faça o favor!... E melhor

feições belas e esguias, que ganhavam u m t o m vermelho nas mesmo que não me toque, j á que não leva jeito." A senhora fe-

maçãs do rosto. Os lábios secos nie\iam-se intranqúilos, as ralis chou os olhos e mais uma vez ergueu as pálpebras, observando

pestanas não se encrespavam, e o sobretudo de viagem forma- a criada. M a t r i o c h a mordia o lábio inferior avermelhado,

va rugas entre os seios encovados. Mesmo de olhos fechados, olhando para ela. O peito da doente exalou u m suspiro fundo

o rosto da senhora expressava cansaço, irritação e u m sofri- que, antes de terminar, transformou-se em tosse. Ela se virou,

mento que lhe era familiar. encolheu-se e agarrou-se ao peito com ambas as mãos. Quan-

Recostado em seu banco, o criado cochilava na boleia; do a tosse passou, tornou a fechar os olhos e permaneceu sen-

0 postilhão gritava .mimado e fustigava a possante quadriga tada sem se mexer. A carruagem e a caleça chegaram à aldeia.

suada; vez por outra espreitava o outro cocheiro, que gritava de Matriocha tirou a m ã o roliça do lenço e se benzeu.

trás, da caleça. As marcas paralelas e largas das rodas se esten- — O que é isso? - perguntou a senhora.

diam nítidas e iguais pelo calcário lamacento da estrada. O céu — A estação de posta, senhora.
estava cinzento e frio; a bruma úmida espalhava-se pelos cam- — E por que você está se benzendo?
pos e pela estrada. A carruagem estava abafada e recendia poei- — Tem uma igreja, senhora.
ra e água-de-colónia. A doente inclinou a cabeça para trás e A doente voltou-se para a janela e c o m e ç o u a se benzer
abriu devagar os olhos, grandes, brilhantes, de uma bela tona- lentamente, c o m os olhos bem graúdos fitos numa grande
lidade escura. igreja de madeira que a carruagem contornava.

" O u t r a vez!", disse ela, repelindo nervosamente com a Os dois veículos pararam em frente à estação. O marido

m ã o bonita e magra a ponta da saia da criada, que lhe roçava da doente e o m é d i c o desceram da caleça e se aproximaram da

de leve a perna, e torceu a boca de dor. Matriocha recolheu a


1 carruagem.

saia com ambas as mãos, soergueu as pernas robustas e sentou- — C o m o a senhora se sente? — perguntou o médico, t o -
se mais afastada. U m corado vivo cobriu-lhe o rosto viçoso. Os mando-lhe o pulso.
belos olhos escuros da doente fitavam ansiosos os movimentos — E então, como está, minha cara, não está cansada? -
da criada. A senhora apoiou as mãos no banco e quis também perguntou o marido em francês. - N ã o quer descer?
Matriocha j u n t o u as trouxas e encolheu-se n u m canto
1
Diminutivo de Matriona. (N.T.)
para não atrapalhar a conversa.

30 3i
— Mais ou menos... na mesma — respondeu a doente. — no estrangeiro como se estivesse c o m saúde. E fosse eu falar do
N ã o vou descer. seu estado... seria o mesmo que matá-la.
O marido foi para a estação, depois de ficar u m pouco — Mas ela j á está morta, o senhor precisa saber disso, Vassili
com a mulher. Matriocha desceu do carro e correu pela lama Dmítritch. Uma pessoa não pode viver quando não tem pulmões,
para a entrada do edifício, nas pontas dos pés. e os pulmões não tornam a crescer. E triste, duro, mas o que se vai
— Se eu estou mal, isto não é razão para o senhor não fazer? O meu e o seu problema é fazer com que o fim dela seja
tomar o seu café - disse a senhora, c o m u m leve sorriso, ao o mais tranquilo possível. N ó s precisamos é de u m confessor.
m é d i c o postado à janela. — A i meu Deus! Mas o senhor entenda a minha situação
— N e n h u m deles se importa comigo — disse consigo na hora de lembrar a ela esta sua última vontade. Aconteça o
mesma, mal o m é d i c o se afastou devagarinho e subiu corren- que acontecer, isso eu não vou dizer a ela. O senhor bem sa-
do a escada da estação. — Eles estão bem, o resto não tem i m - be como ela é bondosa...
portância. O h , meu Deus! — Mesmo assim tente convencê-la a ficar até o final do
— E então, Edvard Ivánovitch? - disse o marido ao en- inverno — disse o médico, meneando a cabeça c o m ar expres-
contrar o médico, esfregando as mãos com u m sorriso jovial. — sivo —, senão pode acontecer o pior na viagem...
Ordenei que trouxessem alguma provisão, o que o senhor acha? — Aksiucha! Ei, Aksiucha! 2 - grunhiu a filha do chefe da
— Pode ser. estação, jogando u m lenço sobre a cabeça e pisando no alpen-
— E ela, como está? - perguntou suspiroso o marido, dre enlameado nos fundos da casa. - Vamos espiar a senhora de
baixando a voz e levantando as sobrancelhas. C h i r k i n , dizem que está doente do peito e que estão levando
— Eu disse: ela não vai conseguir chegar, e não só até a para o estrangeiro. E u nunca v i como é uma tísica.
Itália: queira Deus que chegue a Moscou. Ainda mais c o m es- Aksiucha correu para a soleira da porta e ambas preci-
se tempo. pitaram-se portão afora de mãos dadas. Encurtando a marcha,
— E o que é que nós vamos fazer? A h , meu Deus! M e u passaram diante da carruagem e espiaram através da janela
Deus! - o marido tapou os olhos c o m as mãos. - Traga aqui - aberta. A doente voltou o rosto para elas mas, percebendo-lhes
acrescentou ele para o h o m e m que carregava as provisões. a curiosidade, franziu o cenho e virou-se para o outro lado.
— Ela deveria ter ficado - respondeu o médico, dando de — M m - ã e - z i n h a ! - disse a filha do chefe da posta, vol-
ombros. tando rapidamente a cabeça. — Que encanto de beleza deve ter
— Agora me diga, o que é que eu podia fazer? - objetou sido; agora vejam o que sobrou dela! D á até medo. V i u , v i u ,
o marido. — Ora, eu fiz de tudo para detê-la, falei dos recursos, Aksiucha?
das crianças que nós teríamos de deixar, e dos meus negócios;
ela não quer dar ouvidos a nada. Fica fazendo planos de vida - Diminutivo de Aksínia. (N. T.)

3^ 33
— Sim, como está mal! - Aksiucha fez coro c o m a m o - para o marido c o m ar de súplica e interrogação. Ele baixou o
ça. — Vamos dar mais uma olhada, a gente faz que está indo pa- olhar e calou. De repente, a doente fez u m beicinho infantil, e
ra o poço.Você percebeu? Ela deu as costas, mas eu v i . Que d ó , lágrimas lhe saltaram dos olhos. O marido cobriu o rosto c o m
Macha. 0 lenço e afastou-se da carruagem.
— E, e que lama! - respondeu Macha, e as duas correram " N ã o , eu v o u " , disse a doente, levantando os olhos pa-
para o portão. ra o céu, juntando as mãos e murmurando palavras descone-
— Pelo visto, estou com uma aparência horrível — pen- xas. " M e u Deus! Por q u ê ? " , dizia ela, e as lágrimas corriam
sou a doente. — Eu só preciso chegar mais rápido, mais rápido ainda mais intensas. Rezou por muito tempo com ardor, mas
ao estrangeiro, lá eu me curo. no peito, a mesma dor e opressão, no céu, nos campos e na es-
— E então, minha cara, como está? — disse o marido, ao trada, o mesmo t o m cinzento e sombrio, e a mesma bruma de
se aproximar da carruagem mastigando. outono, nem mais nem menos rarefeita, derramando-se do
— A mesma pergunta de sempre. E comendo! - pensou mesmo j e i t o sobre a lama da estrada, os telhados, a carruagem
ela. — Mais o u menos... — falou entre dentes. e os rw/n/« 3 dos cocheiros, que discutiam em voz alta, alegres,
— Sabe de uma coisa, minha cara, receio que, c o m esse enquanto lubrificavam e preparavam a carruagem...
tempo, você piore no caminho; Edvard Ivanitch t a m b é m acha.
N ã o seria o caso de voltar?
Ela calava, emburrada. II
— Pode ser que O tempo melhore, que a estrada fique
boa e que você se recupere; e aí poderíamos ir juntos. A carruagem estava atrelada, mas o cocheiro fazia hora. Ele ha-
— Desculpe, mas se por m u i t o tempo não tivesse lhe da- via passado pela isbá dos cocheiros. A isbá estava quente, aba-
do ouvidos, eu estaria agora em Berlim e totalmente curada. fada, escura, com u m ar pesado, u m cheiro de lugar habitado,
— Mas o que eu podia fazer, meu anjo? Era impossível, de pão assado, repolho e pele de carneiro. Havia alguns cochei-
você sabe. Mas agora, se ficasse por u m mes. ao menos, iria se ros no c ó m o d o , uma cozinheira ocupava-se no forno e, em c i -
recuperar prontamente; eu terminaria meus negócios, levaría- ma deste, u m doente estava deitado, coberto por uma pele de
mos as crianças... carneiro.
— As crianças estão com saúde, eu não. - T i o Khviédor! O , tio Khviédor! - disse o jovem co-
-Veja se entende, minha cara, com u m tempo desses, se cheiro vestido de tuhip, com u m chicote no cinto, entrando no
você piorar na viagem... pelo menos você estaria em casa. c ó m o d o e dirigindo-se ao doente.
— E m casa, o quê? Pra morrer? — respondeu a doente i r -
ritada. Mas a palavra " m o r r e r " pelo visto a assustou, e ela olhou 1
E s p é c i e de casaco, (N. T.)

34 35
— O que é que tu vai querer c o m o Fiédka, 4 seu vadio? N o peito do doente alguma coisa c o m e ç o u a vibrar e
— perguntou u m dos cocheiros. — Olha só, tão te esperando na roncar; ele inclinou-se e uma interminável tosse de garganta o
carruagem... sufocou.
— Quero pedir as botas dele; as minhas se acabaram — - Pra que vai precisar? - trovejou de repente por toda a
respondeu o rapaz, jogando os cabelos para trás e ajeitando as isbá a voz da cozinheira zangada. — Faz uns dois meses que ele
luvas no cinto. não sai do forno. T á vendo, tá se arrebentando, até as entranhas
— Que que é? — do forno ouviu-se uma voz fraca, e u m dele doem, escuta só. C o m o é que ele vai precisar das botas?
rosto magro, de barba ruiva, espiou. A m ã o larga, descarnada e N i n g u é m vai enterrá-lo c o m botas novas. J á não é sem tempo,
branca, coberta de pêlos, enfiava uma samarra nos ombros os- Deus que me perdoe. T á vendo, tá se arrebentando. O u então
sudos, cobertos por u m camisolão sujo. - M e dá alguma coisa que alguém leve ele daqui pra outra isbá ou pra outro lugar!
pra beber, irmão; o que que é? Diz que na cidade tem esse tipo de hospital; isso é coisa que se
O rapaz lhe serviu uma caneca de água. faça, ocupar o canto todo... chega! N ã o se tem espaço pra na-
— Sabe o que é, Fedia, - disse ele, indeciso - pelo visto da. E ainda por cima, ficam me cobrando limpeza.
tu não vai precisar das botas novas agora; dá pra m i m , pelo vis- - E i , Serioga, 5 vá para a carruagem, os senhores estão es-
to t u não vai andar. perando - gritou da porta o chefe da estação.
O doente tombou a cabeça cansada sobre a caneca relu- Serioga queria ir sem esperar resposta, mas o doente,
zente, molhou os bigodes ralos e caídos na água escura e bebeu tossindo, deu-lhe a entender c o m os olhos que queria dizer al-
sem forças. A barba emaranhada estava suja; os olhos fundos, guma coisa.
embotados, levantaram-se c o m dificuldade para o rosto do ra- - Pega as botas, Serioga - disse ele, contendo a tosse e
paz. Depois de beber, ele afastou a água e quis levantar as mãos descansando u m pouco. - S ó que tu me compra uma campa,
para enxugar os lábios úmidos, mas não conseguiu e enxugou- porque eu tô morrendo... - acrescentou roncando.
as na manga da samarra. Calado e respirando c o m dificuldade - Obrigado, t i o , então eu levo; e a campa, tá, tá, eu
pelo nariz, olhava o rapaz direto nos olhos, reunindo forças. compro!
— Pode ser que tu j á tenha prometido a alguém — disse - Bem, meninos, vocês ouviram - ainda conseguiu d i -
o rapaz. - O problema é que lá fora está úmido, e como eu te- zer o doente, e tornou a se curvar sufocado.
nho que ir pro trabalho, pensei c o m meus botões: eu pego e - T á bem, ouvimos - respondeu u m dos cocheiros.-Vai,
p e ç o as botas do Fiédka; pelo j e i t o ele não vai precisar. Agora, Serioga, vai pra carruagem, senão o chefe vem te chamar o u -
se tu precisar, então tu diz... tra vez. A senhora de C h i r k i n tá lá doente.

4
Diminutivo de F i ó d o r . (N. T.) s
Diminutivo de Sierguiêi. (N. T.)

36 37
Serioga tirou depressa as imensas botas Miradas e jogou-as bancos. S ó o doente gemia fraquinho, tossia e revirava-se no
debaixo de u m banco. As botas novas do tio Fiódor eram preci- forno. A o amanhecer, aquietou-se de vez.
samente o seu número, e ele foi para a carruagem, admirando-as. - Estranho o que eu v i esta noite em sonho - disse a
- Eta beleza de bota! Deixa eu engraxar — disse u m co- cozinheira, espreguiçando-se na penumbra da manhã seguin-
cheiro c o m graxa na m ã o , enquanto Serioga subia na boleia e t e . - V e j o como se o tio Khviédor tivesse descendo do forno e
tomava as rédeas. — Deu de graça? saindo pra rachar l e n h a . " N á s t i a " 6 , diz ele,"deixa eu te ajudar";
- A h , invejoso! - respondeu Serioga, aprumando-se e e eu pra ele: " C o m o é que tu vai rachar lenha?", mas ele agar-
juntando as pontas do casaco j u n t o aos pés. - Eia, vamos, be- ra o machado e tome de rachar lenha c o m tanta vontade, e era
lezas! - gritou para os cavalos, agitando o chicote; carruagem só lasca voando. E eu: " C o m o é que pode. tu não tava doen-
e caleça, com seus passageiros, malas e bagagens, saíram em dis- te?". "Nada", diz ele, "eu estou b e m " . E sacode o machado de
parada pela estrada molhada, sumindo na bruma cinzenta de u m j e i t o que me dá medo; aí eu comecei a gritar e acordei.
outono. Será que eleja não m o r r e u '
O cocheiro doente permaneceu sobre o forno da isbá - T i o Khviédor! O , t i o !
abafada e, sem conseguir escarrar, virou-se a m u i t o custo para Fiódor não respondia.
o outro lado e ficou quieto. - E mesmo, será que eleja não morreu?Vamos ver - dis-
Até o cair da tarde, gente chegava, comia, saía da isbá; e se u m dos cocheiros, que havia acordado.
não se ouvia sinal do doente. A o anoitecer, a cozinheira subiu U m braço magro, frio e céreo, coberto de pêlos ruivos,
no forno e puxou a samarra por cima das pernas dele. pendia do forno.
- N ã o fica zangada comigo, Nastácia - disse o doente - , - Vamos falar com o chefe da estação, parece que tá
logo vou deixar este teu canto. morto - continuou o cocheiro.
- T á bem, tá bem, deixa pra lá - m u r m u r o u Nastácia. - Fiódor não tinha parentes. Viera de longe. N o dia se-
Onde é que dói, tio? M e diz. guinte, foi enterrado no cemitério novo, atrás do bosque, e
- U m a dor insuportável por dentro. S ó Deus sabe. Nastácia passou vários dias contando a todo mundo o sonho
- Na certa a garganta também dói, tu tosse tanto! que tivera e como tinha sido a primeira a perceber a morte do
- D ó i tudo. Minha hora chegou, é isso. O h , o h , o h ! - tio Fiódor.
gemeu o doente.
- Cobre as pernas assim - disse Nastácia, ajeitando a sa-
marra sobre ele, ao descer do forno.
À noite, uma lamparina iluminava fracamente a isbá.
Nastácia e uns dez cocheiros roncavam alto pelo chão e pelos 6
Diminutivo de Nastácia. (N. T.)

38 39
Ill O marido estava agitadíssimo e parecia completamente
perdido. Ia caminhando em direção à velha, mal deu alguns pas-

Chegou a primavera. Nas ruas úmidas da cidade rumorejavam sos, voltou-se, andou pela sala e aproximou-se do sacerdote. Este

regatos velozes entre o gelo sujo de esterco; as cores dos trajes olhou para ele, levantou os olhos para o céu e suspirou. A barba

e o som das vozes dos transeuntes distinguiam-se nitidamente. cerrada, tingida de fios grisalhos, também se ergueu e baixou.

Nos jardins, atrás das sebes, as árvores inchavam de botões e - M e u Deus, meu Deus! - disse o marido.
mal se notava o balançar dos ramos ao sopro da brisa fresca. - O que é que se vai fazer? - retrucou suspiroso o padre,
Por todo lado gotinhas transparentes pingavam... Pardais desa- e mais uma vez sobrancelhas e barba se ergueram e baixaram.
jeitados piavam e adejavam com suas asinhas. Nos lados enso- - E a mãe dela está aqui! - disse o marido quase em de-
larados, nas sebes, nas casas e nas árvores, tudo se movia e b r i - sespero. — Ela não vai suportar isso tudo. Porque amar como
lhava. Reinava a alegria e o viço tanto no céu e na terra como ela a ama... não sei, não. Reverendo, se pelo menos o senhor
no coração dos homens. tentasse tranquilizá-la e fazer c o m que ela saísse daqui...

E m uma das ruas principais, palha fresca se estendia no O sacerdote levantou-se e aproximou-se da velha.
chão diante de uma grande casa senhorial; na casa estava aque- - E isso, ninguém pode avaliar u m coração de m ã e -
la mesma doente moribunda que tinha pressa em chegar ao disse ele - , mas Deus é misericordioso.
exterior. De repente o rosto da velha c o m e ç o u a se contrair ca-
A porta fechada do quarto, o marido da doente e uma se- da vez mais e u m soluço histérico a sacudiu.
nhora idosa. N u m divã, u m sacerdote, vista baixa, segurando al- - Deus é misericordioso — continuou o sacerdote, quan-
guma coisa enrolada na estola de seus paramentos. A um canto, do ela se acalmou u m pouco. — E m minha paróquia havia u m
uma velha, mãe da doente, chorava com amargura numa poltro- doente m u i t o mais grave que Maria Dmítrievna; e veja o que
na Voltaire. A seu lado, uma criada segurava u m lenço, esperan- aconteceu, foi completamente curado c o m ervas por u m h o -
do que a velha o pedisse; outra lhe friccionava alguma coisa nas mem simples, em pouco tempo. E além do mais, esse mesmo
têmporas e soprava por baixo da touquinha a cabeça grisalha. homem está agora em Moscou. Eu disse aVassili Dmítrievitch

— Vá c o m Cristo, minha amiga — disse o marido à m u - que dava para se tentar. A o menos serviria de consolo para a

lher idosa ao seu lado —, ela confia tanto na senhora... a senho- doente. A Deus nada é impossível.

ra é tão jeitosa c o m ela, procure convencê-la direitinho, minha - N ã o , ela não tem mais j e i t o - pronunciou a velha - ,
querida; vá, vá. — Eleja queria abrir a porta, mas a prima o de- em vez de me levar, é a ela que Deus leva. — E os soluços his-
teve, passou o lenço algumas vezes nos olhos e sacudiu a cabeça. téricos tornaram-se tão fortes que ela perdeu os sentidos.
- Agora não parece mais que chorei — disse ela e abriu O marido da enferma cobriu o rosto c o m as mãos e
a porta, entrando no quarto. correu para fora do quarto.

40 41
N o corredor, a primeira pessoa que encontrou foi u m A doente baixou a cabeça em sinal de consentimento.
menino de seis anos, que tentava alcançar a todo custo uma — Deus, perdoa essa pecadora! — sussurrou. A prima saiu
menina menor. e fez sinal para o padre.
— E as crianças, não permite que eu as leve para perto — E u m anjo! - disse ela ao marido, com lágrimas nos
da mãe? — perguntou a babá. olhos.
— N ã o , ela não quer vê-las. Isto a deixaria transtornada. O marido c o m e ç o u a chorar; o sacerdote entrou na sa-
O menino parou u m m i n u t i n h o e examinou atento o la; a velha permanecia desacordada; no quarto principal reina-
rosto do pai; mas, n u m repente, deu u m chute no ar e, com u m va u m silêncio absoluto. Uns cinco minutos depois, o padre
grito de alegria, continuou a correr. saiu do quarto da doente, tirou a estola e ajeitou os cabelos.
— Faz de conta que ela é o cavalo murzelo, papai! — ber- — Graças a Deus, está mais calma agora - disse ele. -
rou o garoto, apontando para a irmã. Quer vê-los.
Enquanto isso, no outro quarto, a prima sentava-se ao A prima e o marido entraram. A doente fitava u m í c o -
lado da doente e conduzia habilmente a conversa, tentando ne e chorava baixinho.
prepará-la para a ideia da morte. N a outra janela, o m é d i c o — Eu a felicito, minha amiga — disse o marido.
mexia a tisana. — Deus seja louvado! C o m o me sinto bem, agora; uma
Metida num roupão branco, cercada de almofadas na ca- doçura inexplicável - disse a doente, e u m leve sorriso b r i n -
ma, a doente olhava calada para a prima. cou e m seus lábios finos. — C o m o Deus é misericordioso!
— A h , minha amiga — disse, interrompendo-a inesperada- N ã o é verdade que ele é misericordioso e onipotente? — E
mente - , não precisa me preparar. N ã o me trate como criança. mais uma vez o l h o u para o ícone com olhos marejados e ávi-
Eu sou cristã. Eu sei de tudo. E u sei que minha vida está por da súplica.
um fio; eu sei que se meu marido tivesse me escutado antes, eu De repente, pareceu lembrar-se de algo. Fez u m sinal
estaria na Itália agora e. quem sabe, podia até ser verdade, eu es- para que o marido se aproximasse.
taria curada. Todos lhe diziam isso. Mas o que se há de fazer? - V o c ê nunca faz o que eu peço - disse ela com uma voz
Pelo visto, foi assim que Deus quis.Todos nós temos muitos pe- fraca e descontente.
cados, eu sei disso; mas espero a graça de Deus, que a tudo per- O marido esticava o p e s c o ç o e escutava-a submisso.
doa, a tudo perdoa. Eu me esforço para entender, mas tenho — O que foi, minha querida?
muitos pecados, querida. Por outro lado, j á sofri bastante. Esfor- — Quantas vezes eu disse que esses médicos não sabem
cei-me para suportar com paciência meu sofrimento... de nada; existem remédios caseiros que curam tudo... Escuta o
— Chamo então o padre, querida? Você vai se sentir mais que o padre disse... o homem simples... Mande buscá-lo.
leve comungando - disse a prima. — Pra quê, minha querida?

4^ 43
- M e u Deus, ninguém quer entender!... - E a doente IV
franziu o cenho e fechou os olhos.
( ) médico chegou-se a ela e tomou-lhe o pulso. Batia ca- U m mês depois erigiu-se u m jazigo de pedra sobre a sepul-
da vez mais fraco. Ele lançou um olhar para o marido. A senhora tura da morta. Sobre a do cocheiro ainda não havia nenhu-
percebeu o gesto e olhou à volta assustada. A prima deu-lhe as ma campa, apenas uma relva verde-clara brotava do m o n t í c u -
costas e começou a chorar. lo de terra, único vestígio de u m h o m e m que havia passado
- N ã o chore, não aflija a você e a m i m - disse a doen- pela existência.
te. - Assim você tira este meu último sossego. - Serioga, t u vai cometer u m pecado se não comprar a
- V o c ê é um anjo! - disse a prima, beijando-lhe a mão. campa para o Khviédor - disse a cozinheira da estação de pos-
- N ã o , beije aqui, s ó se beija a m ã o dos mortos. M e u ta. - Tu dizia assim: é inverno, é inverno. Mas agora, por que
Deus, meu Deus! não m a n t é m a palavra? Foi na minha frente que t u prometeu.
Na mesma noite, a doente era só corpo, e este corpo ja- Ele j á veio pedir uma vez, e se tu não compra, ele volta e des-
zia n o caixão, na sala do casarão. N o c ó m o d o espaçoso, a por- sa vez é pra te estrangular.
tas fechadas, u m sacristão lia salmos de Davi c o m voz fanhosa - Que nada! Por acaso eu estou recusando?! - respon-
e ritmada. A luz viva das velas caía dos altos candelabros de deu Serioga. - Eu vou comprar a campa; j á disse que vou c o m -
prata sobre a fronte cérea da morta, suas pesadas mãos de cera, prar; vou comprar por u m rublo e meio. N ã o me esqueci, mas
sobre as pregas da coberta que delineavam espantosamente os é que precisa trazer. E só ir na cidade que eu compro.
joelhos e os dedos dos pés. Sem entender o que dizia, o sacris- - Devia pelo menos colocar uma cruz lá, é isso que vo-
tão lia de maneira compassada e, no silêncio da sala, as palavras cê tinha que fazer - retrucou u m velho cocheiro - , senão isso
ecoavam estranhas e m o r r i a m . De quando em quando, de al- vai é acabar mal. As botas t u tá usando, né?
gum quarto distante chegavam vozes infantis e o barulho do - E essa cruz, onde é que se vai arranjar? N ã o dá pra fa-
sapateado das crianças. zer de lenha, né?
"Se ocultas o rosto, eles se perturbam", anunciou o livro - Isso lá é coisa que se diga? Claro que de lenha não dá
dos Salmos. "Se lhes cortas a respiração, m o r r e m e voltam ao pra fazer; tu pega o machado e vai mais cedo pro bosque, e en-
seu p ó . Envias o teu Espírito, eles são criados e, assim, renovas tão tu faz. Tu pega e corta u m freixo. O u então t u vai ter que
a face da terra. A glória do Senhor seja para sempre!" dar vodca ao guarda florestal. Pra toda essa canalha não há be-
O rosto da morta estava severo, calmo, majestoso. Nada bida que chegue. Faz pouco eu quebrei a trave da carruagem
se movia, nem na fronte limpa e fria. nem nos lábios cerrados e cortei uma senhora tora e n i n g u é m deu u m pio.
e enrijecidos. Ela era toda atenção. E será que ao menos ago- De manhã bem cedo, mal c o m e ç o u a clarear, Serioga
ra ela compreendia essas grandes palavras? pegou o machado e foi para o bosque.

44 4>
Por toda parte estendia-se u m manto de orvalho frio e brincar na relva; nuvenzinhas brancas e transparentes dispersa-
fosco que caía insistente e que o sol não iluminava. O nascente vam-se apressadas pelo firmamento azulado. Os pássaros revoa-
mal começava a clarear, fazendo sua frágil luz rerletir no firma- vam sobre a mata espessa e, sem rumo, gorjeavam felizes; folhas
mento encoberto por nuvens ralas. N ã o se mexia u m só talo de viçosas sussurravam radiantes e tranquilas nas copas, e os ramos
capim e uma única folha nas copas. S ó de quando em quando das árvores vivas mexeram-se lentos, majestosos, sobre a árvo-
uns ruídos de asas entre as árvores compactas o u u m leve farfa- re tombada e morta.
lhar pelo chão quebravam o silêncio da mata. De repente, um
som estranho, desconhecido da natureza, espalhou-se e conge- Tradução âe Beatriz Morabito e Beatriz Ricci
lou na orla do bosque. E de novo ouviu-se o mesmo som que
passou a se repetir de forma regular, embaixo, j u n t o ao tronco
de uma árvore imóvel. A copa de uma árvore estremeceu de
forma incomum; suas folhas viçosas sussurraram algo; uma t o u -
tinegra pousada em u m galho esvoaçou duas vezes, piando, e
pousou em outra árvore, remexendo a caudinha.
Embaixo, o machado ressoava cada vez mais e mais sur-
do; as lascas brancas e molhadas de seiva voavam sobre o capim
orvalhado, ouvindo-se u m leve rangido após os golpes. A árvo-
re estremeceu por inteiro, inclinou-se e aprumou-se rapidamen-
te, vacilando assustada sobre sua raiz. Por u m instante, tudo ficou
em silêncio; mas a árvore tornou a se inclinar e ouviu-se mais
uma vez o rangido de seu tronco; e ela despencou de copa na
terra úmida, quebrando e soltando os ramos. Cessaram os sons
do machado e dos passos. A toutinegra piou e voou para mais
alto. O ramo em que ela roçou suas asas balançou por algum
tempo e estacou, como os outros, c o m todas as suas folhas.
As árvores, ainda mais alegres, pavoneavam seus galhos
imóveis no espaço aberto há pouco.
Os primeiros raios de sol infiltraram-se por entre as nu-
vens, brilharam lá no alto e correram a terra e o céu. A nebli-
na derramou-se em ondas pelos vales; o orvalho c o m e ç o u a

4" 47

Você também pode gostar