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172 REVISTA USP, São Paulo, n.59, p. 172-180, setembro/novembro 2003


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hc
h BORIS SCHNAIDERMAN

HAROLDO
DE CAMPOS,
Apresentado em Salto Oriental, Uru-

POESIA RUSSA guai, em 28/6/91, no simpósio


internacional, ali realizado, sobre
a obra de Haroldo de Campos. O
texto que então foi lido sairia na

MODERNA, revista Fragmentos (publicada pela


Universidade Federal de Santa Ca-
tarina, vol. 4, no 2). Introduzo
agora alguns acréscimos e faço
pequenas alterações.

TRANSCRIAÇÃO
Tenho a maior satisfação e sinto-me honrado de estar aqui,

nesta confraternização entre nossas culturas, e tanto mais por

se tratar de uma verdadeira homenagem a meu amigo de muitos

anos, Haroldo de Campos. Aproveito a oportunidade para trans-

mitir a vocês um pouco da minha experiência como seu cola-

borador no campo da poesia russa moderna.

O seu trabalho “O Texto como Produção (Maiakóvski)” é BORIS


SCHNAIDERMAN
um roteiro comentado, com muita intensidade e vivência, da é tradutor, professor
aposentado de Língua
tradução que realizou de um dos poemas mais fortes de
e Literatura Russa da USP
Maiakóvski, “A Sierguéi Iessiênin”, sobre o suicídio desse e autor de, entre outros,
Os Escombros e o Mito
poeta russo em 1925, mas é também um depoimento sobre (Companhia das Letras).

como ele iniciou esses trabalhos.

“Quando me dispus a traduzir um poema de Maiakóvski, após

pouco mais de três meses de estudo do idioma russo, conhecia

minhas limitações, mas tinha também presente o problema


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específico da tradução de poesia, que, a meu ver, é modalidade


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que se inclui na categoria da criação. Tra- façanhas poundianas, não há dúvida de que
duzir poesia há de ser criar, sob pena de deste caso-paradigma decorre toda uma
esterilização e petrificação, o que é pior do didática” (1).
que a alternativa de trair.
Mas não me propus uma tarefa absurda. Depois, em várias passagens ele se re-
Ezra Pound traduziu ‘nôs’ japoneses, numa fere à leitura que fiz quando o poema esta-
época em que não se tinha ainda iniciado va ainda em rascunho. O que o poeta não
no estudo do ideograma, ou em que estaria diz, porém, é que, embora ele tivesse estu-
numa fase rudimentaríssima desse estudo, dado até então pouco mais de três meses
servindo-se do texto (versão) intermediá- num curso de iniciação à língua russa, pude
1 Haroldo de Campos, A Ope- rio do orientalista Fenollosa, iluminado por dar apenas pouquíssimas sugestões, tal era
ração do Texto, São Paulo, Pers-
pectiva, pp. 43-4. sua prodigiosa intuição. E o resultado, como a qualidade de seu trabalho.
2 Haroldo de Campos, Ilíada de poesia, excede sem comparação o do emi- Daí nasceu uma colaboração e conví-
Homero , vol. I, São Paulo, nente sinólogo e niponista Arthur Waley, e vio que se estenderam a seu irmão, Augusto
Mandarim, 2001; vol. II, São
Paulo, ARX, 2002. acabou, inclusive, por instigar o teatro cri- de Campos, outro grande tradutor de poe-
3 Décio Pignatari, “Situação Atu- ativo de Yeats (At the Hawk’s Well, 1916). sia para o português.
al da Poesia no Brasil”, in
Sem que se tenha a imodéstia de pretender Parece-me às vezes incrível que nosso
Revista Invenção, no 1, 1962,
p. 65. repetir, no campo da tradução da poesia, as trabalho de grupo se tenha desenvolvido
tão harmoniosamente, sem atritos de espé-
cie alguma. Acho que na história da tradu-
Foto: Juan Esteves ção foram poucos os casos em que isto se
tornou possível, pois quase sempre surgem
questões pessoais, competição, rivalidades.
Quanto a nós, houve realmente uma
complementaridade operativa, pudemos
completar em grupo aquilo que nos faltava
individualmente. E a amizade pessoal
acompanhou de perto este tipo de realiza-
ção. Depois, Haroldo teve outros colabora-
dores, ele tinha certamente uma predispo-
sição especial para o trabalho em equipe. E
foi esse espírito que o ajudou a realizar,
com a colaboração de nosso helenista
Trajano Vieira, a tradução da Ilíada (2).
Compreende-se a atração que Maia-
kóvski exercia sobre Haroldo e seus com-
panheiros de geração. Estávamos em 1961,
quando o interesse dos poetas do concre-
tismo paulista pelo construtivismo, pelas
manifestações de um espírito geométrico
que aparece na arte moderna em formas as
mais variadas, foi acompanhado de uma
identificação com as grandes esperanças
da esquerda da época. Era o tempo em que
Décio Pignatari falava no “pulo conteu-
dístico-semântico-participante” da poesia
concreta e acrescentava: “A onça vai dar o
pulo” (3). Este espírito era evidente em cada
um dos poetas do grupo.
Conforme Haroldo conta no trabalho
que citei há pouco, ele ficava intrigado com

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a obra de Maiakóvski: os seus escritos de tar e vencer este desafio, expôs o seu traba-
poética, que ele pudera ler em tradução, lho de poeta no estudo que citei há pouco.
mostravam um criador bem cônscio de que Sem entrar em maiores detalhes, quero lem-
a poesia lida com linguagem concentrada brar que aquele trecho do original, “v zviózdi
ao máximo, de que o poeta deve ser um vriézivaias”, acrescido ao início forte e ao
construtor de linguagem. Mas, quando ele mesmo tempo em tom coloquial, exigia algo
passava a traduções em línguas ocidentais, correspondente na língua de chegada e que
aparecia em quase todas um poeta de comí- sem isto o poema se tornaria frouxo, pode-
cio, um emissor de slogans fáceis e muitas se dizer invertebrado. E foi o que Haroldo
vezes banais. Tentando resolver o enigma conseguiu:
e animado por umas pouquíssimas tradu-
ções ocidentais (no referido estudo, ele se “Você partiu,
refere particularmente ao tradutor alemão como se diz,
Karl Dedecius), Haroldo se dispôs a estu- para o outro mundo.
dar russo, tendo como objetivo principal a
aproximação com a obra de Maiakóvski. Vácuo...
Depois que ele me trouxe a sua tradu- Você sobe,
ção do poema sobre o suicídio de Iessiênin, entremeado às estrelas”.
percebi que havia nele extremos de vir-
tuosismo, com a recriação de recursos so- Lembro-me de que Roman Jakobson e
noros do original. Este inicia-se assim: sua mulher, Krystyna Pomorska, quando
estiveram em São Paulo em 1968, falavam
“Vi uchli, do deslumbramento que lhes causara a reve-
kak govorítsia, lação daquele texto em português, e sobre-
v mir inói. tudo a solução “entremeado às estrelas” para
Pustotá... “v zviózdi vriézivaias”. Na realidade, Harol-
Letítie, do conseguira fazer o português cantar com
v zviózdi vriézivaias”. sotaque russo, a ponto de um russo como
Jakobson encontrar no texto traduzido o
Pois bem, na tradução de Haroldo isto som de sua língua-mãe.
aparece assim: Afinidade entre línguas tão diferentes?
Sim, não há dúvida, mas esta afinidade só
“Você partiu, pode ser desvendada pelos poetas, e, mes-
como se diz, mo não sendo religiosos, devemos agrade-
para o outro mundo. cer aos céus quando isto acontece. Pois o
que mais se encontra é a velha cantilena
Vácuo... sobre o intraduzível da poesia. Assim, o
Você sobe, norte-americano Samuel Charters, num li-
entremeado às estrelas”. vro sobre Maiakóvski (5), procura descul-
par-se dos parcos resultados com suas tra-
Os diversos passos do poema foram ana- duções, afirmando: “… inglês e russo não
lisados por Maiakóvski em sua radiografia são línguas compatíveis. Elas têm tão pouco
desse texto, o ensaio Como Fazer Versos? vocabulário e gramática em comum que, se
(4). Este ensaio permite compreender me- tentamos reproduzir a rima e o ritmo do rus-
lhor o trabalho do poeta, mas, ao mesmo so, o significado é distorcido, e se este é
4 In Boris Schnaiderman, A Poé-
tempo, dá ao tradutor uma responsabilidade traduzido literalmente, perde-se a forma poé- tica de Maiakóvski através de
maior, torna-se imperativo conseguir na lín- tica”. Ora, acaso o português e o russo têm sua Prosa, São Paulo, Perspec-
tiva, 1971, pp. 167-220.
gua-alvo aquilo que se realizara na língua de maiores afinidades de “vocabulário e gra-
5 Ann e Samuel Charters, I love
partida e que estava tão claramente exposto mática”? Parece-me que não. É tudo um – The Story of Vladimir
pelo artista criador. Foi este o desafio que o Maiakóvski and Lili Brik, New
problema de realização poética. Assim, na York, Farrar Straus Giroux,
tradutor brasileiro aceitou. E depois de acei- tradução de um famoso slogan publicitário 1979.

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de Maiakóvski, Charters escreve, explicati- e muitas das soluções acabam surgindo
vo: “You need no more than the mosselprom inconscientemente. E esta “configuração
store”. Mas, como soa direta e incisiva, bem subliminar” opera verdadeiros milagres,
mais próxima do original, a tradução de algo que chega a parecer sobrenatural.
Haroldo: “O bom? No Mosselprom”! Como exemplo, pode-se citar um
Na minha estada em Moscou em 1972, acréscimo de Roman Jakobson à edição
encontrei-me com uma especialista em li- brasileira de seu estudo referido há pou-
teratura latino-americana, que estava em- co, onde ele chama a atenção para o fato
penhada em estimular alguns poetas cuba- de que, na tradução do poema “O Grilo” de
nos a repetir o que Haroldo e Augusto de Khlébnikov, Augusto de Campos empre-
Campos haviam feito em português, com a gou, nos primeiros versos, os cinco eles do
minha colaboração. Pois bem, os textos que original, sem nenhum conhecimento, por
ela me mostrou me pareceram bem fracos deficiências de comunicação entre o Brasil
e, sobretudo, muito presos à poética tradi- e a Rússia, dos comentários que o poeta
cional. Quando observei isto, respondeu- fizera sobre a importância que eles tinham
me: “Ora, é um problema de língua. O por- para o arcabouço do texto. Vê-se, pois, que
tuguês se presta muito mais que o espanhol um poeta fala a outro sem necessidade da
para uma transposição criativa”. Franca- explicitação que faz para o leitor.
mente, eu não acredito nisso. Há quem diga No prefácio à segunda edição de Poesia
que a sonoridade do português aproxima- Russa Moderna, cito o caso de um poema
se bastante do russo. Mas, em todos os idio- de Siemión Gudzenko, incluído no livro, e
mas, é uma questão de encontrar o tom exato que fora deformado pela censura soviética,
para a tradução poética e escolher no reper- mas que Haroldo traduziu suprimindo aque-
tório da língua aquilo que nos dá o corres- las deformações, sem saber nada desse pro-
pondente ao original que se estiver tradu- blema editorial.
zindo. Nosso trabalho tinha às vezes muito de
A partir das traduções de Maiakóvski, júbilo, de epifania. Lembro-me agora da
estendemos o leque para a poesia russa alegria com que Haroldo me telefonou para
moderna em geral. A nossa abordagem des- me comunicar o final que tinha consegui-
sa poesia tinha como eixo dorsal os textos do para a tradução da “Carta a Tatiana
de Khlébnikov e Maiakóvski, cuja obra Iácovleva” de Maiakóvski, escrito em Pa-
correspondia mais de perto ao que buscá- ris e dirigido a uma russa emigrada, e que
vamos. Mas justamente o trabalho com es- ele concitava a regressar à pátria. O poema
ses dois poetas facilitou a aproximação com é magnífico, certamente um dos mais belos
outros bem diferentes deles, o que permitiu de Maiakóvski, e tem um granfinale, sem
construir uma antologia bastante abrangen- o qual todo ele ficaria desequilibrado. De-
te. Assim, depois de Poemas de Maiakóvski pois de rabiscar inúmeras soluções, Haroldo
(6), publicamos a seis mãos Poesia Russa chegou ao seguinte resultado:
Moderna (7).
Trabalhávamos freqüentemente num “Você não quer? Hiberne então, à parte.
clima de grande entusiasmo. Muitas solu-
ções eram discutidas pelo telefone, havia (No rol dos vilipêndios
uma impregnação constante pelo trabalho marquemos:
6 Rio de Janeiro, Tempo Brasilei- poético. Evidentemente, não dá para acre- mais um X).
ro, 1967, edição ampliada,
São Paulo, Perspectiva, 1982. ditar hoje em dia em inspiração, pelo me- De qualquer modo
7 Rio de Janeiro, Civilização Bra-
nos no sentido que os românticos davam a um dia vou tomar-te
sileira, edição ampliada, São esse termo. Mas podemos falar com sozinha
Paulo, Perspectiva, 2001.
Jakobson em “configuração subliminar em ou com a cidade de Paris”.
8 Cf. Roman Jakobson, “Configu-
ração Verbal Subliminar em poesia” (8).
Poesia”, in Lingüística, Poética Isto é, o artista criador articula a seu No texto original, não aparece aquele
e Cinema, São Paulo, Perspec-
tiva, 1970. modo as estruturas poéticas de sua língua, X, mas se Maiakóvski escrevesse em por-

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tuguês e trabalhasse com os elementos grá- milhão e meio de habitantes, estabelecido
ficos, fônicos e semânticos de nossa lín- na região do Volga). Mas, próximo de
gua, certamente haveria de aproveitar aque- Pasternak por ocasião do escândalo do prê-
le X tão sonoro e graficamente tão bonito mio Nobel, ele não conseguia publicar nada
na página. em russo. Os seus versos eram muito co-
Houve ocasiões em que o verso traduzi- nhecidos em tradução, na Polônia, Tche-
do soava mais forte que o original, mas isto coslováquia, Iugoslávia e Hungria, mas em
nos parece absolutamente indispensável. Moscou, onde estava morando, era um ilus-
Haroldo costumava falar em “lei das com- tre desconhecido e enfrentava grandes pro-
pensações em poesia”. Quer dizer, se eu blemas para garantir a sobrevivência. Por
não consigo reproduzir todos os processos outro lado, o Ocidente quase não tomara Haroldo de
construtivos de um poeta, em todas as pas- ainda conhecimento dele.
Campos, na
sagens em que eles aparecem, devo acres- Indo a Moscou em 1965, não o encon-
centar em outros procedimentos que são trei, pois estava de férias no interior, mas homenagem ao
inerentes ao trabalho criador no original. deixei para ele uma carta em que manifes- filósofo Max
Um dos exemplos mais belos de que me tava interesse por sua poesia. Em respos-
lembro é o verso “A dor do universo numa ta, enviou-me inúmeros materiais e mui-
Bense,
fava”, que aparece na tradução de Haroldo tos poemas seus datilografados. Sua poe- Stuttgart, 1994
do poema de Pasternak, “Definição de
Poesia”. Pasternak nos diz ali que a poesia
está nos objetos, no mundo, e não só nas Foto: Carmen de Arruda Campos

palavras. Daí, aquele “A dor do universo


numa fava”. Mas o referido verso não tem
no original a mesma força e grandeza, está
mais ligado ao regional e descritivo; o acha-
do de Haroldo contribuiu para que o con-
junto do poema tivesse aquela grandiosi-
dade requintada, que é típica de Pasternak.
Costuma-se dizer que a língua portu-
guesa é o “túmulo do pensamento”, o que
é verdade se pensamos nas dificuldades
que um texto brasileiro encontra para cir-
cular fora do país. Mas o simples fato de
estarmos aqui, tratando da obra de um po-
eta brasileiro, mostra que essa verdade é
bastante relativa, e isso foi reafirmado pelo
clima desse nosso encontro e, particular-
mente, pelos que me precederam.
Posso ilustrar este fato com mais um
passo de nossa atividade de tradutores.
Haroldo esteve na Tchecoslováquia em
1964, pouco antes do golpe de estado no
Brasil. Naquele país teve oportunidade de
conversar com uma funcionária dos servi-
ços culturais soviéticos, que, a propósito
de poesia de vanguarda, falou-lhe muito
de um poeta russo praticamente desconhe-
cido na União Soviética. Tratava-se de
Guenádi Aigui, tchuvache de nascimento
e que passara a escrever em russo (os
tchuvaches são um povo com cerca de um

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sia nos impressionou desde o início e ele to Haroldo como Augusto receberam me-
é o poeta vivo que tem maior espaço em lhor que os demais alunos aquela carga de
nossa antologia. banalidades: João foi à escola, Vera foi ao
Depois disso, enviamos cópias de seus supermercado, e assim por diante.
poemas a vários amigos na Europa ociden- Depois de algum tempo, percebi o que
tal e, deste modo, certamente contribuímos estava acontecendo. No final de cada lição,
para a sua divulgação no mundo. Hoje, com havia um ou dois provérbios, e isso tornava
a glasnost, ele é poeta publicamente reco- para ambos mais suportável toda a carga de
nhecido, mas até o prestígio que ele tem em sensaboria, pois o provérbio lhes dava a
seu país deve muito à divulgação que se fez oportunidade de assimilar um fato de lin-
dele no Ocidente, nos cerca de trinta anos guagem e poesia. Tudo o mais, além do pra-
em que viveu no ostracismo. Uma vida zer que eles tinham em assimilar as estrutu-
admirável, de fidelidade irrestrita à poesia, ras da língua, era uma espécie de preparação
que chegava quase à auto-imolação. O es- daqueles momentos felizes. Alguns desses
tético, no caso, aliava-se a uma postura ética provérbios os deixavam simplesmente em
inabalável. êxtase. E a possibilidade de trabalhar com
O interesse apaixonado de Haroldo e aquelas sentenças como textos poéticos so-
Augusto pela poesia de tantos outros paí- brepujava todos os outros inconvenientes: o
ses e, de minha parte, a ocupação com ou- professor sem experiência didática, o méto-
tros setores da literatura russa desviaram- do tradicional do compêndio, etc.
nos de um esforço contínuo nesse campo. Felizmente, aquilo ocorreu antes que os
No entanto, os anos que passamos lidando cursos de línguas fossem invadidos pelos
com os textos da poesia russa, e também os métodos audiovisuais, aplicados mecani-
estudos de língua que Haroldo e Augusto camente, de modo que se tornavam muitas
empreenderam comigo, deixaram-me para vezes uma versão modernosa e aparente-
sempre a mais grata recordação. mente mais sofisticada do ba-be-bi-bo-bu
Por isso mesmo, quero recordar um do começo do século. Assim, quando os
pouco mais como isso aconteceu a partir de alunos reclamavam do uso dos compên-
1961. Augusto, Haroldo e Décio Pignatari dios e exigiam métodos mais modernos,
foram a minha casa, apresentados por nos- sobretudo em 1968, eu me lembrava sem-
so amigo comum, Anatol Rosenfeld, um pre com carinho daquele compêndio fran-
nome importante dos nossos estudos lite- cês, tão antiquado e tão poético, com aque-
rários, que saiu jovem da Alemanha, fugin- la recompensa dos provérbios rimados, no
do do nazismo, e se fez escritor no Brasil. final de cada lição.
Combinei com Haroldo aulas de russo aos A reação de Haroldo e Augusto aos
sábados. Pouco depois, Augusto de Cam- provérbios fez com que procurasse outros
pos matriculava-se no Curso Livre de Rus- para enriquecer as aulas, e assim a poesia
so, de criação então recente na Universida- dos provérbios animou os nossos trabalhos
de de São Paulo, e do qual eu era o único com as declinações ou com os terríveis
professor. verbos de movimento russos. Foi, por exem-
Meu trabalho didático dirigido aos dois plo, um dia de glória quando levei à aula o
poetas diferenciava-se evidentemente do provérbio “Nievino vinó, vinovato
usual. No trecho que li no início desta mi- pianstvo” (“o vinho é inocente, culpada é a
nha palestra, Haroldo lembra como eram bebedeira”), onde vinó designa também
parcos na época os seus conhecimentos de vodca (isto em linguagem popular). Aque-
língua russa. E o seu objetivo principal não la ênfase nos ii marca, está claro, a sonori-
era chegar a comunicar-se oralmente, mas, dade do dito. Além disso, há um jogo com
sim, o de estudar os textos poéticos. No a palavra vinó e as derivações de viná (cul-
processo de aprendizagem, ele se dedicava pa), sugerindo uma vinculação etimológica,
com afinco e sem resistência ao trabalho de que não existe.
memorizar as categorias gramaticais. Tan- Foram esses trabalhos com os provér-

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bios russos que me permitiram apontar, no guas em geral, que o fazia viajar pelos mais
livro A Poética de Maiakóvski através de diversos idiomas, sempre com entusiasmo
sua Prosa, a relação da poesia russa mo- e empenho. Seu encantamento pelo ideogra-
derna com a tradição popular. E agora, o ma chinês e pela poesia japonesa não era
trato contínuo com o popular, graças a menor nem maior do que o fascínio pelos
Jerusa, deu mais consistência a estas mi- textos bíblicos.
nhas preocupações. O falar e o escrever estavam nele inti-
Enfim, não consigo muito separar poe- mamente ligados à poesia, e não foi por
sia de vida. Quanto mais presente a poesia, acaso que ele viu como típico da moder-
mais rica a vida. E tudo isso, evidentemen- nidade a abolição das fronteiras entre poe-
te, está muito ligado à presença de Haroldo, sia e prosa. Essa posição teórica estava
ao convívio constante com ele, mesmo nas intimamente associada à sua postura, havia
ocasiões em que estamos separados pela “função poética” em tudo o que dizia, a
distância. própria gesticulação se ligava a isso. Não
constituiu, pois, nenhuma surpresa para
mim a teorização que desenvolveu nesse
sentido no livro organizado pela Unesco
POST-SCRIPTUM sobre as literaturas da América Latina (9).
Se a sua elocução oral já estava próxi-
Releio o texto desta palestra (proferida ma da poesia ou, melhor, já era poesia (10),
há doze anos) poucas semanas após a mor- o cuidado com que elaborava os textos em
te de Haroldo. prosa trazia esta marca bem acentuada.
Se eu a concluí tratando da relação en- Veja-se o estudo introdutório de Haroldo à
tre poesia e vida, foi porque, poucos dias sua tradução de seis cantos do Paraíso de
antes, ele me dissera: “Eu tive de escolher Dante, que tem o seguinte final:
entre a vida e os signos, e acabei escolhen-
do os signos”. Ora, o seu comportamento “Tudo isto o tradutor tem que transcriar,
na viagem que realizamos juntos ao Uru- excedendo os lindes de sua língua, estra-
guai, Haroldo com Carmen, eu com Jerusa, nhando-lhe o léxico, recompensando a per-
acompanhados por um grupo de amigos, da aqui com uma intromissão inventiva
participantes daquele seminário, parecia um acolá, a infratradução forçada com a hiper-
desmentido cabal à sua declaração tão pe- tradução venturosa, até que o desatine e
remptória. desapodere aquela última Húbris (culpa
Lembro-me de Haroldo vivo e alegre, luciferina, transgressão semiológica?), que
solto, de riso franco, cantando boleros de- é transformar o original na tradução de sua
pois que Jerusa entoava o verso inicial. tradução. Como o olho agraciado de Dante
Lembro-me também de seu gosto por tra- no olho divino, tudo então pode translu-
jes vistosos, o prazer com que se apegava a minar-se, ainda que por um fúlgido e ins-
uma fivela de cinto ou cachecol bonito, e tantâneo clarão. A escritura paradisíaca se
da alegria com que atacava um prato sabo- deixa (imagem de miragem?) subscrever
roso ou um bom vinho. E o que dizer de sua por um duplo luminescente, um átimo que 9 Haroldo de Campos, “Ruptura
dos Gêneros na Literatura Lati-
afetividade e do carinho com que ele rece- seja” (11). no-americana”, in César
bia estudantes e pesquisadores? Fernandes Moreno (org.), Amé-
rica Latina em sua Literatura,
Mas, ao mesmo tempo, tudo passava Ele falava sempre de signos, tinha um São Paulo, Perspectiva/
Unesco, 1979, pp. 281-306,
pelo mundo dos signos. Em seus momen- interesse muito grande pela pintura, o cine- v. 294 e segs.
tos alegres, articulava expressões muitas ma o deslumbrava, era muito ligado à mú- 10 Cf. Jerusa Pires Ferreira,
vezes engenhosas, as metáforas fluíam com sica moderna, teve um período de aproxi- “Haroldo Oral”, neste número
da Revista USP.
a maior naturalidade, em borbotão e já ar- mação íntima com o nosso teatro, recordo
11 Dante Alighieri, 6 Cantos do
ticuladas numa expressão poética. seu interesse pelas novelas de televisão, Paraíso, tradução de Haroldo
A paixão pelo dizer em língua portu- numa época em que eu simplesmente as de Campos, São Paulo,
Fontana/Instituto Italiano de
guesa estava ligada nele à paixão pelas lín- evitava, mas o que o apaixonava mesmo Cultura, 1976, p. 19.

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era a expressão verbal – o fulcro de toda a do anterior, infelizmente, Haroldo só che-
sua vida. Não havia, pois, nem um pouco gou a traduzir umas poucas estrofes do
de bravata quando, nos últimos anos, fica- romance em versos de Púchkin, Ievguêni
va trabalhando com Trajano Vieira na tra- Oniéguin) marcaram cada um de nós com
dução da Ilíada e dizia ser aquilo a sua o impacto daquela vivência poética.
“homeroterapia”. Como foi jubiloso, por exemplo, o dia
Realmente, a paixão pela palavra era o em que Haroldo recebeu pelo correio o tex-
que o prendia à existência. Já alquebrado, to do poema “Goya” de Andréi Voznies-
ainda encontrava forças para ler poemas e siênski, copiado à mão, numa caligrafia
transmitir em palestras e mesas-redondas a caprichada, pelo grande eslavista italiano
sua concepção do fazer poético. Só nas Angelo Maria Ripellino! Ou aquelas cartas
últimas apresentações sua voz chegou a fa- sucessivas que recebi do poeta russo-
lhar, mas nunca lhe faltou lucidez e ener- tchuvache Guenádi Aigui, acompanhadas
gia. Quem participou daquelas reuniões não de poemas seus, quase sempre datilogra-
poderá esquecer aquele exemplo de luta- fados e todos inéditos. Foi realmente o iní-
dor que vai até o limite de suas forças. cio de uma amizade a três, cultivada em
Sua vida, dedicada inteiramente à poe- meio às tormentas e desilusões de dois sé-
sia, é motivo de orgulho para todos nós. E culos. Haroldo haveria de encontrar o nos-
é com encantamento e emoção que eu lem- so amigo xamânico e grande poeta em
bro o tempo quando tive a sorte e o privilé- Copenhague, num congresso de poesia em
gio de acompanhá-lo em seu convívio com 1993 – há uma fotografia desse encontro
O poeta com a poesia russa. em nosso Poesia Russa Moderna (ver nota
a gata Lady Bi Esta foi, realmente, de importância 6 desse trabalho). E esta amizade a três teve
crucial para ele. Aqueles dias em que lida- ressonância pelo mundo (estou me repetin-
em seu mos, Haroldo, Augusto e eu, com a grande do, não importa), pois acabamos reenviando
escritório poesia dos russos do século XX (do perío- aqueles textos de Aigui, nas décadas de 60
e 70, para amigos na Europa. Assim, este
nosso “túmulo do pensamento”, o portu-
Foto: Carmen de Arruda Campos
guês, pôde funcionar como veículo para
outras culturas.
Haroldo acabou tendo também um con-
tato pessoal com Andréi Vozniessiênski,
com quem se encontrou em Paris, creio
que em 2001. Ultimamente, ele queria rea-
lizar comigo e com Augusto uma coletâ-
nea de Vozniessiênski e Aigui, os dois
poetas atuais da Rússia com quem tive-
mos mais afinidade. E esta sua intenção
foi reiterada por ele num telefonema que
me fez do hospital.
No entanto, projetos, trabalhos, delírios
criativos, tudo se esvaiu num leito de UTI.
Penso agora no caminho percorrido e
constato que esses anos de convívio com
Haroldo foram sobretudo uma longa
aprendizagem. Pois a sua passagem pela
terra nos trouxe um exemplo e uma lição
de poesia no cotidiano, a apoteose da co-
municação humana, um anular de frontei-
ras e comunhão permanente entre as lin-
guagens.

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