2021 Frankenstein, um romance gótico escrito pela inglesa Mary Shelley, é não só um pioneiro da ficção científica e terror, mas um clássico da literatura mundial com muitas discussões e nuances atemporais que asseguram sua presença no imaginário coletivo e na cultura popular desde 1818. A obra nasceu de um desafio entre a escritora e outros poetas, como Lord Byron e Percy Shelley, de escrever histórias de fantasma enquanto eles se isolavam juntos em decorrência de uma tempestade. Após ter um sonho extremamente perturbador, Shelley se propõe a escrever um conto que, mais tarde, se tornaria uma das mais notáveis histórias de terror de todos os tempos. O ponto mais marcante da obra é, sem dúvidas, o uso do cientificismo como elemento norteador da narrativa. Em um contexto de afastamento da religiosidade e aclamação da ciência decorrentes de uma série de avanços tecnológicos, Shelley se apoia no medo do desconhecido e em uma argumentação similar à científica para criar uma espécie de uncanny valley em que a ficção e a realidade se aproximam. Os acontecimentos sobrenaturais são usados não como um elemento fantástico, mas imprimem uma racionalidade científica e alimentam uma ideia de ‘antifantasia’ que visa convencer o leitor da verossimilhança da narrativa e explorar a trivialidade da confusão entre moral e monstruosidade. Outro recurso essencial da narrativa de Shelley é o uso de diversos pontos de vista, que estimulam o leitor a questionar o tempo todo a sanidade e as motivações de cada personagem. O livro é narrado majoritariamente por três pontos de vista: Walton, um marinheiro que encontra com Victor no Polo Norte e decide repassar o relato do cientista a sua irmã por meio de cartas, ele representa o ponto de vista neutro e não tem um julgamento preestabelecido do caráter dos protagonistas; Victor, o cientista que se voluntariamente se isola da família com o objetivo de ampliar seus conhecimentos metafísicos e acaba passando dos limites, ele representa a tese; por fim, temos o ponto de vista do Monstro, que estão contidos na descrição do cientista num terceiro nível narrativo, ele representa a antítese. Outro ponto muito interessante da estrutura do romance é que a figura da criatura e do criador se confundem, como duas faces antiéticas do mesmo indivíduo (o que explicaria a confusão do público ao se referir ao monstro pelo nome do cientista). Segundo a novelista escocesa, Muriel Spark, é como se Victor personificasse a parte emocional do ser e a criatura o lado racional (as ‘emoções’ dele seriam, na verdade, manifestações intelectuais). Outro fator que fortalece essa tese é a ausência de testemunhos dos dois protagonistas juntos: Victor é a única pessoa a ver o monstro por todo o romance, enfatizando a atmosfera de isolamento e desamparo que o estabeleceria como um narrador não-confiável. A única interação da criação é com Walton após a morte do criador, já tendo ouvido os relatos do cientista, incitando o questionamento de sua sanidade nesse ponto do livro. Mais um elemento primordial do horror da narrativa é a construção da imagem do “monstro”. Como citado anteriormente, as descrições do monstro e seu ponto de vista são apresentados ao leitor por intermédio de Victor Frankenstein e o fato de sua criação sequer ter um nome, sendo tratado como ‘criatura’, ‘demônio’, ‘monstro’, entre outros termos derrogatórios ajuda na construção da atmosfera de repulsa e desesperança que o cerca. Os relatos da criatura são extremamente melancólicos e seus conflitos internos enfatizam uma essência humana nesse ser bastardo da natureza, alienado do meio social. Além disso, a segregação o isenta das normas e valores socialmente compartilhados, tornando seu comportamento e ponto de vista imprevisíveis às pessoas comuns, exacerbando a aversão com que é tratado pelas pessoas comuns (reação monstruosa x essência humana). O horror de sua condição está principalmente no seu declínio moral causado pelo repúdio de seu criador e de todos a quem ele direcionou seu afeto, que revive o debate de natureza x criação: o monstro nasce puro, mas perde sua inocência em decorrência de sua rejeição. Ao longo de seus mais de 200 anos de existência, a obra de Mary Shelley foi traduzida inúmeras vezes para as telas. A maior parte das adaptações tem os mesmos problemas em relação ao romance, então tomaremos como exemplo a sua versão mais notória. Esta já superou o original no imaginário coletivo, criando uma história e uma criatura completamente independente e abandonando a mensagem inicial da autora baseada em autocrítica social e desprendimento estético. Quando se fala em Frankenstein, geralmente a imagem que se tem é a de Boris Karloff em sua icônica interpretação do monstro na adaptação de James Whale em 1931, que é a imagem que costuma ser repetida em outras adaptações. Nessa tradução, o terror sutil de Shelley baseado na verossimilhança se perde e é substituído por algo mais inclinado ao terror visual e focado nas proporções exageradas e a imagem grotesca do monstro. Além disso, o monstro autoconsciente e inteligente é substituído por um ser de movimentos descoordenados e raciocínio atrofiado e elimina o debate criação x natureza ao usar um cérebro de criminoso para justificar o comportamento da criatura, além do completo afastamento dos conflitos internos dos protagonistas. A essência do monstro não é a única que se perde na adaptação, o estudante com sede imprudente de conhecimento é substituído por um cientista excêntrico e megalomaníaco. A complexidade e nuance das discussões propostas por Shelley não serão traduzidas com sucesso para as telas sem os elementos citados anteriormente serem tratados como elementos centrais da estrutura da narrativa.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
SHELLEY, Mary W. Frankenstein – ou o moderno Prometeu. Disponível em: