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REVOLUÇÃO FRANCESA – BIBLIOGRAFIA COMENTADA

Daniel Gomes de Carvalho

No ano de 2019, em artigo publicado no portal Café História, foi apresentado um


quadro geral da historiografia da Revolução Francesa até a época do bicentenário, em
1989. À época prometemos a publicação de uma bibliografia comentada a respeito dos
livros produzidos após o bicentenário, especialmente no século XXI. Entretanto, a
publicação foi adiada pela elaboração de meu próprio livro sobre o tema, Revolução
Francesa, publicado em 2022 pela Editora Contexto. A pesquisa realizada durante a
publicação do livro, não obstante, enriqueceu esta própria biografia comentada; desse
modo, espero compensar minimamente o lapso entre a promessa e o seu cumprimento.
Desse modo, dado que o público brasileiro ainda costuma conhecer a Revolução
Francesa por meio de trabalhos de autores franceses do século XX – tais como George
Lefebvre, Albert Soboul, Michel Vovelle e François Furet – este artigo, sem de forma
alguma diminuir a importância de trabalhos anteriores, buscou apresentar trabalhos
produzidos por historiadores e historiadoras que atuam no século XXI, destacando
também produções ligadas às universidades brasileiras. Não obstante, demos lugar
também a algumas publicações em língua francesa e inglesa, as quais figuram hoje
como leituras obrigatórias para os especialistas no tema.

MORIN, Tania Machado. Virtuosas e perigosas: as mulheres na Revolução


Francesa. Alameda Casa Editorial, 2014.

Fruto de uma dissertação de mestrado defendida na Universidade de São Paulo e


publicada em 2009, trata-se, sem dúvidas, de um dos melhores trabalhos produzidos
sobre a Revolução Francesa no Brasil. Fruto do uso de fontes primárias em diálogo com
a mais recente historiografia, a obra distancia-se de uma história das mulheres na
Revolução Francesas que, como usualmente se faz, se restringe apenas às mulheres da
burguesia (em geral, ligadas à produção intelectual), e busca também o contato com as
peixeiras, as sans-culottes e as mulheres que lutaram no exército. Se muitas
historiadoras, a partir de trabalhos como o de Joan Landes, apresentaram a Revolução
Francesa como uma derrota histórica para as mulheres, Morin, sem negar os diversos
“fechamentos” presentes na Revolução Francesa, filia-se a historiadoras que, como
Lynn Hunt, mostram também as fendas abertas pelas indeterminações revolucionárias.
Cabe destacar, por fim, o impecável trabalho iconográfico presente no livro, o qual pode
ser extremamente útil a profissionais que buscam trabalhar a Revolução Francesa em
sala de aula.

BIARD, Michel, & LINTON, Marisa. Terror: The French Revolution and Its
Demons. John Wiley & Sons, 2021.

O debate a respeito da natureza do “terror” (inclusive se devemos usar o termo em


minúsculo, “terror”, ou em maiúsculo, “Terror”) é um dos mais pujantes na
historiografia da Revolução Francesa na atualidade. A propósito, o autor David Bell,
crítico dessa historiografia, recentemente a batizou esse grupo de historiadores, com
forte ironia, de “Don’t Say Terror School” (em português, algo como “a escola do não
diga terror”). Em cerca de 160 páginas, o livro de Marisa Linton, professora emérita da
Universidade de Kingston, e Michel Biard, da Universidade de Rouen-Normandie,
sintetiza de forma magistral essas discussões em cerca, deixando claro a ideia do
“Terror” como um sistema, um período ou como uma época é fruto das construções
feitas após a morte de Robespierre (notadamente pelos discursos de Tallien e pelos
trabalhos de Benjamin Constant e Hegel), inclusive por pessoas que participaram de
diversas violências. Em vez de apontar Robespierre como “ditador” (o que ele nunca
foi) e como “mandante do terror” (o que ele, igualmente, não foi), os autores
apresentam os “terrores” como uma situação complexa, na qual diversas violências são
exercidas em muitas direções, de modo que a ideia de “um Terror” como “um programa
de Estado” não se sustenta empiricamente.

POPKIN, Jeremy. A New World Begins: The History of the French Revolution.
Hachette UK, 2019.

Na década de 1980, o historiador Yves Benot, em seus trabalhos sobre a Revolução


Francesa e o mundo colonial, observou que a maioria dos historiadores desconsiderava
o fato de que a Revolução Francesa não aconteceu em um país, mas em um Império –
portanto, a forma como os revolucionários lidavam com o problema das colônias e da
escravidão, como Jean Jaurés e Aimé Cesaire já haviam chamado atenção, constitui-se
em um dos problemas mais fundamentais para a compreensão da natureza e dos limites
da Revolução Francesa. É por isso que o livro de Popkin, professor da Universidade de
Kentucky, é de singular importância: como historiador especializado na história da
Revolução Haitiana, escreveu o livro que melhor captou a relação entre os eventos
revolucionários na metrópole e as dinâmicas coloniais. De fato, a partir do livro de
Popkin torna-se claro como a Revolução Francesa e a Revolução Haitiana – bem como
os movimentos em outras colônias, como Martinica, Guadalupe e Guiana – são
processos históricos entrelaçados, os quais só podem ser bem compreendidos se
estudados em sua interação.

MARTIN, Jean-Clément. La revolución francesa. Editorial Crítica, 2012.

Disponível em tradução para a língua espanhola, trata-se de um panorama de fôlego da


Revolução Francesa que, embora organizado de maneira factual e cronológica, não
deixa de lado os debates historiográficos que envolvem o tema, tornando-se uma das
obras mais representativas do tema em nosso tempo. Martin, professor da Universidade
de Paris I-Panthéon-Sorbonne e um dos principais historiadores da Revolução Francesa
na atualidade, definitivamente incorpora a narrativa da “Era das Revoluções
Democráticas” dentro do quadro geral da Revolução Francesa (apresentando a queda da
Bastilha ao lado dos movimentos revolucionários na Córsega, Haiti, Polônia, Países
Baixos e outros territórios) e sintetiza suas célebres pesquisas a respeito da Guerra da
Vendeia e do terror. No caso o evento na Vendeia, por exemplo, o autor, sem negar as
violências que envolvem o episódio, se afasta da narrativa predominante entre os
autores conservadores de que se trataria de um “genocídio” perpetrado pelo “governo”
jacobino
HUNT, Lynn. Política, cultura e classe na Revolução Francesa. Editora Companhia
das Letras, 2007.

A historiadora panamenha Lynn Hunt figura hoje como não apenas um dos principais
nomes na área da Revolução Francesa, mas também como uma das principais
referências na área da história cultural. Tendo passado por diversas universidades
(California, Los Angeles, Berkeley e Pensilvânia), o trabalho de Hunt, publicado pela
primeira vez em 1984, aborda de forma original o problema da simbologia da
Revolução Francesa; os símbolos, em seu trabalho, não aparecem como meros
“epifenômenos”, mas como parte da própria formação das consciências no decorrer do
processo de rutura revolucionária. Além disso, inicialmente a fim de verificar a
plausibilidade da ideia de “Revolução Burguesa”, a autora realiza um estudo minucioso
da composição das assembleias revolucionárias em nível local e nacional, apresentando
um quadro empiricamente consistente do que teria sido a “burguesia” revolucionária.
Cabe destacar que, em português, também pela Companhia das Letras, está disponível
outro de seus trabalhos, A Invenção dos Direitos Humanos, no qual ela mostra com
incomparável inteligência a relação entre a literatura oitocentista e ascensão da moderna
ideia de direitos humanos.

LEUWERS, Hervé. Robespierre. Fayard, 2014.

Trata-se de uma das biografias mais bem documentadas a respeito do mais conhecido e
controverso revolucionário francês (dentre as boas biografias de Robespierre,
poderíamos também mencionar os trabalhos de Michel Biard e Philie Bourdin, de Jean-
Clemént Martin e de Peter McPhee). A partir de um impressionante trabalho com fontes
primárias, Hervé Leuwers, professor da Universidade de Lille, desmonta várias lendas a
respeito do autor (como a de que ele teria se encontrado com Luís XVI enquanto jovem,
mito acriticamente reproduzido por trabalhos como o de Ruth Scurr) e busca uma leitura
equilibrada a respeito do advogado de Aras, a qual se afaste tanto da “lenda obscura”
(segundo a qual ele seria ditador, megalomaníaco e responsável pelo terror) quanto da
“lenda dourada” (que enxerga nele tão somente um herói em defesa das causas sociais).
Ainda do mesmo autor, gostaria de destacar o livro La Révolution française, excelente
síntese do processo revolucionário (a meu ver, a melhor, ao lado dos mencionados
livros e Martin e de Popkin), publicado em 2020 pelas Presses universitaires de France.

FLORENZANO, Modesto. Lições de história moderna (séculos XV a XX). São


Paulo: Intermeios, 2021.

Não há como pensar na produção a respeito da Revolução Francesa no Brasil sem


mencionar os trabalhos do docente aposentado da Universidade de São Paulo, Modesto
Florenzano, um dos pioneiros no estudo do tema em nosso país. Nesse sentido, seu livro
mais recente, Lições de História Moderna, embora não trate unicamente de Revolução
Francesa, apresenta de forma concisa os resultados de suas pesquisas elaboradas em
mais de quatro décadas, com destaque para seus estudos sobre alguns protagonistas e/ou
intérpretes da Revolução, como Edmund Burke, Thomas Paine e Alexis de Tocqueville.
É importante destacar também os trabalhos orientados por Florenzano, como as obras de
Josemar Machado de Oliveira, professor da Universidade Federal do Espírito Santo,
sobre Robespierre e sobre o Père Duchesne, bem como os trabalhos de Miguel Nanni
Soares sobre a obra de Joseph de Maistre.

Linda Colley
Laurent

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