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Por que é preciso tornar a ler

Sartre, quarenta anos depois de


sua morte
Um dos principais intelectuais de sua época,
pensador francês soube expressar a revolta do
inconformismo servindo-se de sua pena e de
suas ideias em registros múltiplos, lembra
professor de filosofia

Quatro dias após a morte do filósofo, o funeral de Sartre, sepultado no cemitério de Montparnasse,
atraiu uma multidão — a última vez em que isso aconteceu em torno de um intelectual Foto: GEORGES
BENDRIHEM / AFP

RIO - Se quiséssemos buscar uma definição para a vida e a obra de


Jean-Paul Sartre — pensador para o qual a existência é, in
extremis, a negação de todas as definições possíveis —,
dificilmente encontraríamos uma mais adequada do que aquela
pronunciada por Raymond Bellour ainda em 1966: “Sartre é o último
dos grandes escritores políticos franceses. Compreendo aqui não o
homem da teoria, nem mesmo o historiador, mas o homem do
panfleto, da análise revoltada”.

Assim, Sartre, o homem que morreu há exatos quarenta anos, um


dos mais influentes pensadores de sua época, soube expressar a
revolta do inconformismo servindo-se de sua pena e de seu
pensamento em registros diversos. Filósofo, concebeu uma das
grandes obras do existencialismo, “O ser e o nada” (1943),
percorrendo algo como 600 páginas de recusa a toda forma de
determinismo e de sentido pré-fixados em nossa condição
existenciária. Ficcionista, redigiu “A náusea” (1938), seu mais
célebre romance, no qual a personagem principal faz a experiência
da radical gratuidade da existência e a descoberta do assédio da
objetividade indiferenciada das coisas sobre a consciência.
Dramaturgo, compôs peças teatrais nas quais suas personagens se
entregam de má-fé a uma vontade alheia, fixando-se em
determinações que lhe são dadas em exterioridade em lugar de
assumirem a responsabilidade por suas próprias existências.
Jornalista, foi um dos fundadores da revista “Os tempos modernos”
(1945), publicação destinada à realização de uma experiência
concreta da liberdade por meio do radical compromisso do escritor
com sua própria época. Ativista, intelectual militante, engajou-se
politicamente na causa da revolução, mas preservou independência
ao definir-se como um “companheiro de rota” dos comunistas,
produzindo uma crítica severa ao “método de Terror” da burocracia
stalinista e seu empreendimento de eliminação violenta de toda
dissidência.

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de lugar secundário em relação a Jean-Paul Sartre
Mas, se Sartre era um negador exemplar, um inconformado,
também era um homem de afirmações: se não há determinismos
em uma vida, é porque a existência não nos é dada em sua
totalidade, mas sim constituída como tarefa de uma“moral do
engajamento” (somos desde sempre no mundo) que deve traduzir-
se em luta política pelo reconhecimento da dignidade humana e a
efetivação prática da liberdade. E mesmo o sentimento da angústia,
que acompanha a radical revelação existencial de nossa gratuidade,
deve ser vivido como um imperativo para possuir convicções,
esperanças, indignações, revoltas.

Portanto, ao percorrermos as encarnações teóricas e práticas do


indivíduo Sartre, seus vários registros e expressões multifacetadas,
estamos diante de um conjunto de inconformismos —
metafísicos, morais, políticos — que representam, para o filósofo e
intelectual Sartre, a afirmação de um horizonte sempre
comprometido com outrem e com as condições de realização
prática da liberdade, em meio a inumanidade politicamente
produzida por um mundo que passara pelo trauma da Segunda
Grande Guerra, e de seu potencial de produção da morte em escala
técnico-industrial.

Neste sentido, se Sartre pode ser considerado o último dos


“grandes escritores políticos franceses”, o homem do “panfleto”
e da “análise revoltada” — como pretendera Bellour —, isso se deve
ao fato de que sua trajetória e seu pensamento marcam uma linha
de continuidade com certa tradição intelectual tipicamente francesa
(que remonta à entrada do “homem de letras” na arena do debate
público como sujeito coletivo, marcada pelo Caso Dreyfus e a
manifestação seminal de Émile Zola com seu “J’accuse”). Porém, ao
mesmo tempo, apontam para o limiar de ruptura de uma experiência
política, o ponto de seu esgotamento histórico. Assim, basta dizer
que Sartre pertenceu a um mundo (não muito distante) para o qual
a categoria histórica de “revolução” ainda guardava vigência prática
(mesmo que estivesse em vias de falência). Nós, de nossa parte,
pertencemos a uma época de esgotamento das grandes
narrativas utópicas, de suspeição com relação às promessas de
libertação emancipatória da política.

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Daí que Sartre tenha sido um inconformado, julgando que a


existência mesma é a inconformidade incessante às formas da
tirania da técnica e da objetividade cínica das manifestações
recorrentes e sorrateiras das práticas da chamada Realpolitik. E
pergunto-me qual teria sido a reação de Sartre diante de nossa
situação atual, paralisados, atônitos diante de uma pandemia
que parece dissolver nossa experiência cotidiana ordinária e,
portanto, não pode ser compreendida como fenômeno meramente
natural, mas sim como um acontecimento que explicita os limites de
nossa atual prática política, reduzida à mera institucionalidade vazia
das garantias formais e à ideologia de segurança que a acompanha.

Por isso mesmo, é preciso tornar a ler Sartre, para dar lugar à
palavra revoltada e abrir novamente a possibilidade de uma
experiência renovada de insurgência.

*André Constantino Yazbek é professor do Departamento de


Filosofia e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da
Universidade Federal Fluminense (UFF)

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