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O insight que permeia a obra é aquele que diz que para ver ou escrever não é
necessário, de fato, o sentido da visão. Derrida se propõe a repensar o âmbito do visual.
No desenho ou no discurso há autor um cego, que produz algo sem “acessar” um
horizonte visual para depois, dotado das imagens captadas, tracejar. Em vez de advogar
por uma teoria monocular da visão, Derrida há situa num âmbito complexo e ambíguo.
Tudo se passa na entre-vista, ora um momento de revelação e luzes de soslaio, ora um
momento de cegueira e escuridão total.
1
Mythologie blanche (La métaphora dans le texte philosophique) apud A Metáfora Viva, p. 439.
Memórias de Cego é um livro que reinterpreta o tema da cegueira, da cegueira
como tema clássico que perpassa a história, por Narciso, Tirésias, Édipo, Homero, etc.
Porém a cegueira não é o único tema do livro. Este também busca dizer dos retratos, dos
auto-retratos, do desenho e da memória.
Derrida joga com as noções de traço (trait) e retraço (retrait = retirer, ôter,
enlever, se rétracter), enquanto o primeiro faz surgir a memória formadora de uma
identidade, este a torna velada, a esconde, a universaliza. Desenhar é um ato de
privacidade, ao mesmo tempo de velamento, ação que engendra uma singularidade.
Decorre disso a cegueira, a sombra inerente a qualquer obra. Pois além de velar,
esconder, preservar uma singularidade a obra revela, confessa algo de seu desenhador,
revela seu olhar turvo, na busca de se ver e se autografar, seu olhar permanece
enublado. A obra traça e retraça, aparece na luz e se esconde na escuridão revelando
com isso os limites e possibilidades dos seres humanos. Há como que uma cisão entre
aparecimento e velamento que interrompe um ao outro de forma perpétua.
Derrida nos alerta que o traço institui uma singularidade, uma manha e uma
auto-biografia e, ao mesmo tempo, engendra uma criação ficcional aleatória; coerência
interna concomitante a uma divergência transgressiva. Isso se dá pois aos homens é
vetado o acesso à totalidade da natureza; a origem da cultura, ao contrário do que
pensava Heidegger, não fornece um acesso privilegiado ao Ser. Em Derrida, a origem
como modelo total não é acessível, e isso marca a sinete todas as obras futuras. Releva-
se o aspecto de palimpsesto do texto e do quadro, que se dá apagando-se, escondendo-
se, já que não representa qualquer modelo canônico. Daí o ceticismo que aparece com
em Memórias de Cego exatamente anterior à exposição da hipótese ab-ocular.
Buscaremos considerar, no excerto que nos coube, como Jacques Derrida pensa
a questão da origem do traço, questão detalhada com mais pormenores na conclusão que
se seguirá.
2
Memórias de Cego, p. 71.
que constitui o ser humano. Daí que toda a obra de arte tenha marcas de outra mão, para
além da mão que a tece. É desse outro no próprio que brota a peculiaridade da obra.
O traço que gera a obra é guiado por mais de uma mão, mais de uma
perspectiva, mais de uma língua, mais de uma individualidade. Nessa multiplicidade de
vozes e rastros nasce a cultura, o conjunto das obras humanas. Olhares vários que se
somam e se constrangem mutuamente, indecisos sobre como tornar memoráveis suas
vozes e olhares efêmeros.
3
Ibid, p. 74.
Nos desenhos que representam os olhos fechados, que permeiam as páginas 82-
85, Derrida vê o protótipo de todo ser humano. Os olhos fechados como que remetem
para a insuficiência do olhar, que por mais que busque apreender o que presencia,
sempre é remetido para um horizonte da não-visão, da obscuridade, do passado
originário inacessível que está contido em cada átimo do presente.
III. Conclusão
4
Contingency, Irony and Solidarity, p. 127.
5
Gramatologia, p. 33.
Estes, por sua vez, seriam combinações de sons e conceitos, relacionados por um
sistema de convenções. O caráter convencional da relação interna entre os componentes
do signo faria dele um elemento completamente arbitrário. Sendo assim, o signo não
teria essência e não apontaria para nenhuma finalidade, estaria longe de poder ser o aval
para a idéia platônica de conceitos universais, absolutos, dados pelas formas puras.
6
Ibid, p. 54.
7
Ibid, p. 56.
rastro “presente” aponta para seu passado inefável. Qualquer grafema leva contido em
seu cerne o mistério da sua origem, que o torna, no presente, um sinal de um passado
imemorial. Na origem, que institui o rastro originário, não há possibilidade de decifrar
um sujeito, nem mesmo as coisas e os referentes.
Ao longo do livro nos deparamos com duas hipóteses, que desembocam numa
terceira: (I) todos os artistas figuram o cego, (II) o próprio artista é o cego figurado, e,
portanto, (III) todos os desenhos são auto-retratos. Decorre disso que o artista desenha
cego, não é guiado pelo poder ocular, assim como no ato mesmo de escrever que nos é
ocultada a visão da ponta da caneta. Além disso, como todo desenho é levado a cabo por
um cego que procura se auto-representar, a obra final está sempre fadada ao insucesso,
pois seu artista a desenha sem ver. Por isso falarmos de obra enlutada e arruinada; a
obra dá provas da inaptidão visual de seu autor, que indica o acesso, sempre vetado aos
seres humanos, ao momento originário que compõe qualquer obra.
IV. Notas de Aula
02/10/2010
Esse colocar-se da total alteridade pode ser uma religião, por exemplo. O
absolutamente outro pode ser o animal. Nem Kant, nem Descartes e a Bíblia não dão
conta de pensar o animal. (O animal é pensado como impotente). Bentham traz a
questão da necessidade de pensar o animal. “Nunca vi totalmente a absoluta alteridade
como nos olhos de um animal” Derrida
Qual o alcance hiperpolítico das artes? A arte inicia-se por ser perturbante, non-
sense. O pensamento é monstruoso ou nâo é pensamento. A dissidência é uma
desobediência civil (Me lembrei do magnífico texto de Thoreau, que ficava no criado-
mudo do Gandhi)
09/10/10
Por que Derrida toma o desenho como o paradigma da arte? O desenho não se
reporta à apreciação, nem a presença e sim à memória. A arte se conjuga com a
melancolia. Esta conduz a mão do artista.
Não se fala sobre algo: falar sobre é ter a pretensão de tomar a alteridade como
objeto. O que nunca se realiza completamente. A palavra aproxima e afasta ao mesmo
tempo. O sim como uma Urwort. A resposta inerente ao falar.
Segunda: relação do sujeito com a língua: o outro tal como eu diz primeiramente sim
O luto originário do sujeito que não possui a língua e portanto não possui nunca
a si próprio. Na origem é a ruína, o luto, a diferença. Porém a linguagem, para Derrida,
não é uma linguagem anônima, se endereça de uma singularidade para outra
singularidade. Ao contrário de Heidegger que há um anonimato da língua.
“O Bem pode ser designado por Ideia Suprema num duplo sentido. É a Ideia
mais elevada como fonte de possibilidade e olhar que se dirige para ela é o mais vertical
e portanto o mais penoso” Heidegger.
23/10/10
Considerações acerca da frase: “esta língua, a única que estou condenado a falar, nunca
será minha”. O interlocutor afirma haver uma contradição performativa em tal frase, o
que remete para o jargão da filosofia de Habermas. Porém, acusar de contradição
performativa é o mesmo que apontar para o caráter relativista do discurso. Ao perguntar
por algo, a própria possibilidade de uma resposta verdade seria impossível.
30/10/10
Toda obra é já uma ruína. Essa tese da ruína da obre tem paralelo com o efeito
que a noção de inconsciente de Freud fez com a categoria da subjetividade. Ou seja,
impõe uma criatividade não comandada.
Só realmente somos por relação com a língua do outro. Essa é uma condição
para se pensar a mundialização. (Pensamos numa língua, não fixos num local)
O que é anterior, ou seja, a língua tem primazia sobre o sujeito secundário. Este
é solitário, a sua singularidade advém do fato que só ele pode responder ao apelo da
língua. Nossa singularidade é intransmissível.
Derrida e Levinas propõem que sejamos levados ao fim do mundo para iniciar
novamente. A epocké tem o sentido aqui do tempo do outro que faz ver a
secundariedade do sujeito. E isso é a própria condição de possibilidade do mundo.
(Responsabilidade arquioriginária). Na desconstrução há uma formação no sentido
de Bildung contínua, em busca de trair o que o hábito tão regula.
06/11/10
13/11/10
A abissalidade do foro íntimo, esse outro em mim, mais íntimo em mim do que
eu próprio e o mais estranho podemos chamar de deus em mim. Todos os homens e
mulheres são impróprios, estão endividados com o passado e com o futuro. Há nisso
então uma universalidade da incondição humana. Essa universalidade apaga os idiomas
e as singularidades, partindo de um respeito absoluto dessas singularidades. Esse
respeito absoluto é o motor da universalização e mundialização.
20/11/10
27/11/10
A relação do ser humano com a obra é uma não-relação. Ver a obra é retirar-se.
A representação se torna a própria operalização que engendra a obra. Toda leitura
contra-assina uma obra autograficamente. A obra como auto-bio-thanato-hetero-
gráfica. A separação da língua estrangeiriza o sujeito, na sua autobiografia.
04/12/10
A arte é esse poder de tudo inventar, porém que guarda segredo. Qualquer artista
guarda segredo. “A singularidade é o irredutível de uma idiomaticidade.” O mais
próprio é o mais estranho. “Como fazer apologia à universalidade mantendo o respeito
pela alteridade absoluta?”
11/12/10
RICOUER, Paul. A Metáfora Viva, Edições Loyola, 2005, São Paulo, Brasil.