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EDUARDO BERLINER E EVA HESSE

“Certeza Estranha”?1

Sabrina Maurília dos Santos2

Resumo: O presente artigo visa analisar uma pintura de Eduardo Berliner e uma
instalação de Eva Hesse, sob tais apontamentos, cabe discorrer a partir daquilo que se
sente ao observar as imagens dos referidos artistas. Nesse sentido, busca-se também,
estabelecer diálogos ou implicações entre questões que nos reportam ao tema da
Diferença e repetição, sob a luz da filosofia de Deleuze e O Estranho, a partir da
psicanálise freudiana.

Palavras-chave: Eduardo Berliner, Eva Hesse, Diferença e Repetição, O Estranho.

Abstract: This article aims to analyze a painting by Eduardo Berliner and installation
by Eva Hesse, from these points, it should discuss the basics of what it feels like to
watch the images of these artists. In this sense, also seeks to establish dialogues between
the implications that relate to the theme of Difference and Repetition, from the
philosophy of Deleuze, and The Stranger from Freud.

Key-words: Eduardo Berliner, Eva Hesse, Difference and Repetition, The Stranger.

1
Artigo apresentado ao Seminário Temático: História da Arte como Operação de Hiper-Texto,
do Programa de Pós-graduação em Artes Visuais da Universidade do Estado de Santa Catarina -
UDESC, ministrado pela Professora Drª Rosângela Cherem.
2
Graduada em Educação Artística – Habilitação em Artes Plásticas pela Universidade do
Estado de Santa Catarina - UDESC. Mestranda regularmente matriculada no Programa de Pós-
graduação em Artes Visuais na UDESC, em Florianópolis, sob orientação da Professora Drª
Rosângela Cherem.

1
À primeira vista, um flagrante3. Seria a cena do momento exato da colisão? Ou
os “corpos” foram arremessados na grama há algumas horas? Não! Nota-se que um
homem lê, pacientemente, um jornal dentro do carro intacto no acostamento. Não fosse
o porta malas aberto, poderia muito bem se encaixar em um dos personagens
Hopperianos, permeado pela rua vazia, em que a solidão se faz presente na paisagem
que se esvanece no silêncio perturbador. Ou tratar-se-ia de mais um instante ou
momento fugaz, talvez lúdico? Não! Porque é como se algo não se resolvesse bem na
cena. Sim! Os “corpos”, no primeiro plano, estão numa situação estranha... Entendido!
As cabeças dos corpos na grama! É apavorante ver que uma delas está decapitada, e que
a outra se encontra numa situação um tanto quanto bizarra, como se fosse grávida da sua
própria forma.
Num passar de olhos, o que se nota na pintura é “quase’’ um imprevisto, seguido
de um instante “quase” banal, para então, sob uma análise mais atenciosa, deparar-se
com o incômodo e, assim, eis que surge, o choque. A singularidade da composição está
justamente na idéia de perfeita acomodação dos elementos imagéticos e na harmonia da
composição visual, seria uma cena quase corriqueira não fosse uma certeza estranha4,
cintilando da imagem. Paradoxal ao primeiro plano, o artista retrata no segundo plano
um indivíduo pós-moderno em seu cotidiano, num cenário bucólico, o percorrer do
olhar que vê num relance, se contrário ao prolixo, o mesmo olho que caminha pela cena
ordinária de uma página policial do jornal, e quando o olhar retorna ao primeiro plano
pode deparar-se com um anteparo, eis o absurdo.
No livro de Ricardo Basbaum, estampado com o título Arte Brasileira e
Contemporânea, há um texto de Ronaldo Brito cujo título e conteúdos remontam a
assuntos pertinentes a presente discussão. Certeza Estranha pode ser considerado um
texto poético, em que o autor se refere às esculturas de José Resende numa paradoxal
desambientação com relação ao espaço que obra se encontra. Tais escritos são
pertinentes ao presente pensamento, pois ao lançar o mesmo olhar em Acostamento,
3
Referente à pintura de Eduardo Berliner, intitulada de Acostamento, do ano de 2009.
4
Tomo emprestado este termo, baseada na seguinte referência: BRITO, Ronaldo. Certeza
estranha. In: BASBAUM, Ricardo (Org.). Arte contemporânea brasileira: texturas, dicções,
ficções, estratégias. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001 p.84.

2
descobre-se um ser que também está desambientado da cena. O que de fato interessa
aqui é a perturbação gerada por essa condição da obra, que convoca o retorno do olhar,
pois:

Afinal, ficamos sem saber o que significam, embora saibamos que


significam e não param de significar. Pensando neles, repetimos
compulsivamente a dessincronia – intuímos um todo, analisamos as
partes, mas não achamos relações entre as duas operações5.

É coerente pensar o processo artístico de Eduardo Berliner, através da ótica


citada acima, como se fosse uma forma de transpor para a pintura o próprio
estranhamento que tem diante de imagens percebidas em seu dia-a-dia. Através da
fotografia e colagem de imagens, o artista repete na intenção de tentar resolver na
pintura o incômodo gerado por figuras em uma mesma cena. Ao olhar as pinturas de
Berliner é como se tentássemos buscar analogias com qualquer identidade ou
pertencimento, mas como a ação é sem sucesso, incide a angústia da obra, no que tange
a busca do sentido ou quando deparamo-nos com a falta ou ausência de uma linguagem,
pois é como se estivéssemos lendo uma língua muda.
Para Benjamin, se pensarmos desde Antelo, o conceito de semelhança penetra
pela linguagem, embora a mimese não fosse apenas um aspecto cultural, mas também
natural6. A semelhança apareceria como uma leitura sem escrita, a leitura do invisível.
A presença de uma imagem que incide a algo que não existe, remete-nos ao paradoxo, o
problemático que nasce do incômodo e da dúvida. A certeza estranha de Berliner, não
tão longe da certeza estranha de Ronaldo Brito, remete a ansiedade causada pelo
irresoluto da cena, maquiada por um refinamento malvado, a imagem, em seu contexto,
carrega uma excrucitante ordem. A precisão da técnica pictórica irreparável se revela
na armadilha e na realidade presente nos corpos dispostos de forma incongruente,
produtos que só pertencem ao sonho e a Arte.
Longe do ignorável, não por acidente, a junção do diferente resulta em algo que
instiga-nos o vai e vem do olho, que passeia pela imagem de maneira a constatar o que
5
BRITO, Ronaldo. Certeza estranha. In: BASBAUM, Ricardo (Org.). Arte contemporânea
brasileira: texturas, dicções, ficções, estratégias. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001, p.85.
6
ANTELO, Raul. Ausências. Florianópolis: Editora da Casa, 2009.

3
já se desconfiava desde o início, o estranho, descoberto na certeza do absurdo que se vê
e que retorna a todo o momento, só que em diferentes faces, porque quando olhamos de
novo, já nos escapou a genuína sensação da vez anterior, para, então, regressar
dissimuladamente em outra roupagem.
Assim, o artista a cada pintura disfarça, vestindo e acomodando em faces
dessemelhantes, suas obras, sempre iguais no conceito, porém, diferentes na repetição.

Imagem 01 – Eduardo Berliner, Acostamento, 2009.

O filósofo Deleuze, escrevera em seu reconhecido livro, Diferença e repetição,


que a repetição “não é generalidade”, a repetição só se apresenta naquilo que “não pode
ser substituído”, ela aparece como singularidade, assim como o roubo e o dom, são da
ordem do que não se troca. Não é análoga a nada, é única. Deste modo, tanto a diferença

4
como a repetição necessitam da identidade de algo, em outras palavras, dependem de
uma particularidade na coisa, de uma reprodução no conceito.
Em El inconsciente óptico, Rosalind Krauss descreve o processo artístico de Eva
Hesse. Sob uma lógica minimalista e impessoal, presente nas séries e retículas, a artista
desenvolve sua poética em uma dialética paradoxal, que vai de encontro ao orgânico, ou
seja, um jogo entre orgânico e inorgânico dado pela ênfase em materiais como látex,
fibra de vidro e borracha, sempre alusivos à corporeidade e à sensualidade.
Como foi dito anteriormente, a respeito do estranhamento nas pinturas de
Berliner, aqui, o trabalho de Eva Hesse se desenvolve pela temática do Absurdo:
“Hesse era dada a senãlar que o absurdo es una de las cosas que la repetición puede
producir sin esfuerzo alguno”7. A repetição, segundo Krauss, vem constatar seu
fascínio pelo absurdo. A autora escrevera que quando a artista retorna a Nova Iorque,
após conhecer alguns objetos de Duchamp, seus trabalhos abandonam o caráter
divertido ou até mesmo infantilizado, e se configuram como repetições seriais de
produção desejante. Em outras palavras, como puro processo, distribuído nos corpos
sem planos ou na definição do corpo sem órgãos de Deleuze e Gattari. Aqui, se conjuga
a ameaça de um corpo sem forma, que sofre por não ter nenhuma organização, suas
obras mudam para uma temática muito mais absurda e perturbadora quando repetidas e
seriadas.
Quando Krauss explica o trabalho de Eva Hesse, pela estrutura de pensamento
ou sob o conceito das máquinas desejantes, significa que a lógica dessas relações
substitui o fluxo do processo repetitivo da artista pelo significado transcendental que
carrega, apresentando assim, um sujeito desorganizado (corpo sem órgãos), como se
fosse a veste de algo que é mais profundo.

7
KRAUSS, Rosalind. El inconsciente óptico. Madri: Rigorma, 1997, p.330.

5
Imagem 02: Eva Hesse, Seven Poles, 1970.

Ao observar a imagem 01 e 02, que aludem ao corpo fragmentado, nota-se que


as duas idéias trazem inquietações pelo seu silêncio e descontinuidade que carregam em
sí. Presente em ambas o informe, o corpo que falta ou o real (diferente da realidade do
pintor realista), que não engana e que não cessa, não se pega e não se capta, o que é,
assustadoramente, a mais profunda das verdades.
“Fiel a natureza inteira!”, como já diria Nietzsche, o pintor realista pinta o que
lhe agrada, “e o que lhe agrada? O que é capaz de pintar!” 8. O processo pictórico de
Eduardo Berliner, em certos momentos, fidedigno a observação do que vê a seu redor
ou, em outros momentos, pelas montagens das imagens advindas de sua mente ou do
estranhamento ou perturbação que lhe causa algo viu, conjetura a mesma subjetividade
na união de contrários, que ironiza e irrita pela tensão indefinida e sem forma, assim
como os objetos de Eva Hesse. Avalia-se que o universo imagético presente nas pinturas
de Berliner e nos objetos Eva Hesse, advém de um mistério muito mais ligado a ordem
do sentir, a mistura do orgânico ao inorgânico, real e ilusório, fazendo com que a

8
NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. Trad. Jean Melville. São Paulo: Editora Martin
Claret, p.43, 2004.
6
sensação seja esse intervalo de experiências que não são assimiladas, de uma linguagem
inexistente nas coisas, como citado anteriormente, que se desloca a luz de um único
sentido. Essa é uma questão cara a Deleuze, o autor de diferença e repetição, faz uma
série de referências que nos interessam quando nos vemos diante das obras dos referidos
artistas:

Quando falta a consciência do saber ou a elaboração da lembrança, o


saber, tal como é em si, não vai além da repetição de seu objeto: ele é
desempenhado, isto é repetido, posto em ato, em vez de ser conhecido.
A repetição aparece aqui como inconsciente do livre conceito, do
saber ou da lembrança, o inconsciente da representação.9

Acompanhado da tentativa de abrir um caminho às causas da repetição, Deleuze


citará Freud para situar no recalque a razão correspondente a tal o bloqueio. Sob a
clareza de tal idéia é conveniente pensar que só se recalca aquilo que ainda não veio à
luz da consciência, só se repete o que ainda não foi recordado e assim a repetição torna-
se uma compulsão.
Deleuze também irá dizer que para o filósofo Nietzsche a repetição é
estabelecida no Eterno Retorno, sob esse prisma, o retorno que não é do mesmo, e sim o
mesmo que é produzido na diferença, dito de outro modo, a repetição no eterno retorno
não é a reprodução ou representação do mesmo, mas do que difere em si. Assim, em
Gaia Ciência, Nietzsche defende a premissa de que extremos se alternam nas vivências
de uma eterna repetição, como se tudo que fosse embora retornasse. Desde aquilo que
pode ser menor ou maior, porém, mesmo que sejam diferentes estes extremos não se
contrapõem, ao contrário, pertencem à mesma coisa, só que em estados ou níveis
diferentes.

E se um dia, ou uma noite, um demônio lhe aparecesse furtivamente


em sua mais desolada solidão e te dissesse: “Esta vida, como você a
está vivendo e já viveu, você terá de viver mais uma vez e por
incontáveis vezes e nada haverá de novo nela, cada dor e cada prazer
e cada suspiro pensamento e tudo o que é inefavelmente grande e
pequeno em sua vida terão de lhe suceder novamente, e tudo na
mesma seqüência e ordem.10
9
DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Trad.: Luiz Orlandi, Roberto Machado, 2ª ED. Rio
de Janeiro: Graal, p.37, 2006.
10
NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. Trad. Jean Melville. São Paulo: Editora Martin
Claret, p. 230, 2004.
7
Assim, entende-se que a noção de tempo não está presente no Eterno Retorno, a
realidade para Nietzsche não tem uma intenção ou objetivo a cumprir, e por isso as
alternâncias de prazer e desprazer se repetem durante a vida. – O Eterno Retorno não se
reproduz sob uma conjetura temporal ou cíclica, mas nas nuances de vivências que se
complementam, e por isso, dão sentido a vida.
O que intriga é pensar as obras como um recalque ou a eterna repetição de uma
potência maior. Convenhamos que fosse amedontrador sentir que o que se esconde por
trás da obra poderá se repetir dezenas ou milhares de vezes e sempre, como ininterrupta
face do que foi. Por isso, analisar tais implicações pode ser instigante, na medida em
que o artista, ao tornar seu inconsciente visível pela obra, não por acaso, pode fazer com
que essas imagens se tornem um espelho ou um duplo. O Duplo, referente à análise
freudiana11, ao mesmo tempo em que é semelhança ou igualdade pode ser também a
divisão, o que separa, assim como a morte é uma pulsão que afasta, de modo que há
nesse entrecruzamento uma mistura de sentimentos, tanto de pavor como de conforto.
Por isso, a repulsa que sentimos sob tais imagens nos leva a pensar o duplo
enquanto estranhamento. Tendo como base os preceitos abordados no parágrafo
anterior, poder-se-ia dizer que o estranho vem como o retorno de um secreto “ser” que
fora reprimido, mas que ficou guardado de forma latente e retorna a partir do momento
que encontra seu “eu” semelhante, nesse caso, o duplo separado e ao mesmo tempo
próximo. Assim o estranho provém o seu medo não de algo desconhecido, ao contrário,
o estranho vem deste “ser” semelhante, que é aqui, o próprio eu reprimido. Nos estudos
de Freud, o psicanalista define o estranho como alguma coisa que pode ser assustadora,
que causa medo ao mesmo tempo em que é familiar, ao passo que essa “familiaridade”
torna-se inesperadamente estranha. Freud propõe, em tais escritos, investigar diversas
categorias que originam o sentimento de estranheza, considerando-as como fator
primário o retorno de algo que fora reprimido, e que tal regresso gera uma combinação
entre o familiar e o estranho.
A verdade que cega, ao mesmo tempo em que comprova e que dissimula, é
também a que distorce para revelar alguma coisa. No caso de Berliner e Eva Hesse, a
11
FREUD, Sigmund. O estranho (1919). Ediçao Standart das obras completas de Zigmund
Freud. V. XVII. Rio de Janeiro: Editora Amago, 2006.

8
obra de arte vem como essa mistura estranha, uma certeza que desconcerta ou o informe
dos corpos que não se resolvem e que fragmentam. Algo falta, ao passo que se repetindo
as partes, é como se estas - utopicamente - se resolvessem.
Por fim, ao observar os deslocamentos poéticos nas obras dos artistas
apresentados, observa-se que em Acostamento, o índice é mais direto com relação à
Seven Poles de Eva Hesse, apesar da sutileza da operação, a passagem do
estranhamento a compreensão em Acostamento não extrai a surpresa do trabalho, já em
Eva Hesse essa passagem se apresenta de forma sutil ou até mesmo implícita. O
mistério das duas obras - essas forças estranhas que teimam em retornar, como feridas
abertas que fazem com que nos interrogamos sobre o ser – pode estar na ironia de certas
estruturas ou objetos estéticos, no intuito de “inventar” novos universos ou conjunção
de reinos ou realidades incomensuráveis, presente nessa particular ansiedade que Freud
diagnóstica em O Estranho, essa incapacidade de distinção entre o orgânico ou
inorgânico, morto ou vivo, que se repetem sobremaneira nas obras dos artistas aqui
apresentados.

REFERÊNCIAS

ANTELO, Raul. Ausências. Florianópolis: Editora da Casa, 2009.

BRITO, Ronaldo, Certeza Estranha. In: BASBAUM, Ricardo. Arte Contemporânea


Brasileira. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001.

DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Trad.: Luiz Orlandi, Roberto Machado, 2ª


ED. Rio de Janeiro: Graal, 2006.

FREUD, Sigmund. O estranho (1919). Ediçao Standart das obras completas de


Zigmund Freud. V. XVII. Rio de Janeiro: Editora Amago, 2006.

KRAUSS, Rosalind. El inconsciente óptico. Madri: Rigorma, 1997.

NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. Trad. Jean Melville. São Paulo: Editora
Martin Claret, 2004.

Catálogo do prêmio CNI SESI Marcantonio Vilaça para as Artes Plásticas 2009/10.

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Imagem 01 – Eduardo Berliner, Acostamento, 2009. Catálogo do prêmio CNI SESI
Marcantonio Vilaça para as Artes Plásticas 2009/10. Retirado de:
<http://www.rodadamoda.com/post.php?id_post=354> acesso em: 11 jan 2011.

Imagem 02: Eva Hesse, Seven Poles, 1970. Retirado de:


<http://www.flickr.com/photos/33057901@N00/2194079259> acesso em: 01 fev 2011.

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