Você está na página 1de 202

HISTÓRIA DA FILOSOFIA

CONTEMPORÂNEA II
CURSOS DE GRADUAÇÃO – EAD
História da Filosofia Contemporâea II – Prof. Ms. Alexis Daniel Rosim, Prof. Ms. Luís
Fernando Crespo e Prof. Dr. Stefan Vasilev Krastanov

Meu nome é Alexis Daniel Rosim. Sou bacharel em filosofia


pela USP (Universidade de São Paulo) e mestre pela UNICAMP
(Universidade Estadual de Campinas). Atualmente, desenvol-
vo minha pesquisa de doutorado na área de Filosofia Francesa
Contemporânea e ministro aulas para o curso de licenciatura em
Filosofia do Centro Universitário Claretiano / EAD.
e-mail: alexisrosim@yahoo.com.br

Luís Fernando Crespo. Sou natural da cidade de Araras, onde


ainda hoje resido. Minha formação é toda na Filosofia: cursei a
graduação (Bacharelado) e o mestrado (Ética) na PUC-Campinas.
Meus estudos são desenvolvidos na filosofia heideggeriana: no
início, tratei da morte do Da-sein; depois, passei para a ética
ecológica a partir do segundo Heidegger; hoje quero entender
as relações da trajetória de pensar de M. Heidegger com a polí-
tica de sua época. Outra área muito importante para o filosofar
– e da qual também gosto muito – é a Lógica. Já no trabalho
com esta modalidade de ensino durante um tempo, posso dizer
que acredito em sua proposta, mas ela depende – e muito – da
aplicação e dedicação do aluno. Espero ser um auxílio na caminhada daqueles que se
dispõem a conhecer a Filosofia neste curso.
e-mail: lfcrespo@claretiano.edu.br

Meu nome é Stefan Vasilev Krastanov. Sou doutor em Filosofia


pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR), graduado, pós-
-graduado e mestre em Filosofia pela Universidade de Sofia, Bul-
gária. Atuo na área da História da Filosofia, estética e metafísica.
Desde 2002, trabalho como professor universitário.
e-mail: stefanve@terra.com.br.

Fazemos parte do Claretiano - Rede de Educação


Alexis Daniel Rosim
Luís Fernando Crespo
Stefan Vasilev Krastanov

HISTÓRIA DA FILOSOFIA
CONTEMPORÂNEA II
Caderno de Referência de Conteúdo

Batatais
Claretiano
2013
© Ação Educacional Claretiana, 2010 – Batatais (SP)
Versão: dez./2013

190 R73h

Rosim, Alexis Daniel


História da filosofia contemporânea II / Alexis Daniel Rosim, Luís Fernando
Crespo, Stefan Vasilev Krastanov – Batatais, SP : Claretiano, 2013.
202 p.

ISBN: 978-85-67425-68-9

1. Arthur Schopenhauer. 2. Sören Kierkegaard. 3. Friedrich Nietzsche. 4. Henri


Bergson. 5. Edmund Husserl. 6. Jean-Paul Sartre. 7. Maurice Merleau-Ponty.
8. Martin Heidegger. 9. A Escola de Frankfurt. I. Crespo, Luís Fernando. II.
Krastanov, Stefan Vasilev. III. História da filosofia contemporânea II.

CDD 190

Corpo Técnico Editorial do Material Didático Mediacional


Coordenador de Material Didático Mediacional: J. Alves

Preparação Revisão
Aline de Fátima Guedes Cecília Beatriz Alves Teixeira
Camila Maria Nardi Matos Felipe Aleixo
Carolina de Andrade Baviera Filipi Andrade de Deus Silveira
Cátia Aparecida Ribeiro Paulo Roberto F. M. Sposati Ortiz
Dandara Louise Vieira Matavelli Rodrigo Ferreira Daverni
Elaine Aparecida de Lima Moraes Sônia Galindo Melo
Josiane Marchiori Martins
Talita Cristina Bartolomeu
Lidiane Maria Magalini
Vanessa Vergani Machado
Luciana A. Mani Adami
Luciana dos Santos Sançana de Melo
Luis Henrique de Souza Projeto gráfico, diagramação e capa
Patrícia Alves Veronez Montera Eduardo de Oliveira Azevedo
Rita Cristina Bartolomeu Joice Cristina Micai
Rosemeire Cristina Astolphi Buzzelli Lúcia Maria de Sousa Ferrão
Simone Rodrigues de Oliveira Luis Antônio Guimarães Toloi
Raphael Fantacini de Oliveira
Bibliotecária Tamires Botta Murakami de Souza
Ana Carolina Guimarães – CRB7: 64/11 Wagner Segato dos Santos

Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução, a transmissão total ou parcial por qualquer
forma e/ou qualquer meio (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia, gravação e distribuição na
web), ou o arquivamento em qualquer sistema de banco de dados sem a permissão por escrito do
autor e da Ação Educacional Claretiana.

Claretiano - Centro Universitário


Rua Dom Bosco, 466 - Bairro: Castelo – Batatais SP – CEP 14.300-000
cead@claretiano.edu.br
Fone: (16) 3660-1777 – Fax: (16) 3660-1780 – 0800 941 0006
www.claretianobt.com.br

Fazemos parte do Claretiano - Rede de Educação


SUMÁRIO

CADERNO DE REFERÊNCIA DE CONTEÚDO


1 INTRODUÇÃO .................................................................................................... 7
2 ORIENTAÇÕES GERAIS PARA O ESTUDO.......................................................... 8

Unidade 1 – KIERKEGAARD, SCHOPENHAUER E NIETZSCHE


1 OBJETIVOS......................................................................................................... 33
2 CONTEÚDOS...................................................................................................... 34
3 ORIENTAÇÕES GERAIS PARA O ESTUDO DA UNIDADE................................... 35
4 INTRODUÇÃO À UNIDADE................................................................................ 35
5 KIERKEGAARD.................................................................................................... 36
6 SCHOPENHAUER............................................................................................... 47
7 NIETZSCHE......................................................................................................... 60
8 NEGAÇÃO X AFIRMAÇÃO: SCHOPENHAUER E NIETZSCHE............................ 85
9 QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS......................................................................... 106
10 CONSIDERAÇÕES.............................................................................................. 109
11 E-REFERÊNCIAS................................................................................................. 109
12 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................... 110

Unidade 2 – FILOSOFIA ALEMÃ DO SÉCULO 20


1 OBJETIVOS......................................................................................................... 111
2 CONTEÚDOS...................................................................................................... 112
3 ORIENTAÇÕES GERAIS PARA O ESTUDO DA UNIDADE................................... 112
4 INTRODUÇÃO À UNIDADE................................................................................ 113
5 A FILOSOFIA DE EDMUND HUSSERL................................................................ 113
6 MAX SCHELER.................................................................................................... 119
7 MARTIN HEIDEGGER (1889-1976).................................................................... 128
8 A ESCOLA DE FRANKFURT E A TEORIA CRÍTICA.............................................. 139
9 QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS......................................................................... 149
10 CONSIDERAÇÕES.............................................................................................. 151
11 E-REFERÊNCIAS................................................................................................. 151
12 BIBLIOGRAFIA................................................................................................... 152

Unidade 3 – A FILOSOFIA FRANCESA DO SÉCULO 20


1 OBJETIVOS......................................................................................................... 153
2 CONTEÚDOS...................................................................................................... 154
3 ORIENTAÇÕES GERAIS PARA O ESTUDO DA UNIDADE................................... 154
4 INTRODUÇÃO: A FILOSOFIA DO PÓS-GUERRA............................................... 154
5 A FILOSOFIA DE HENRI-LOUIS BÉRGSON (1859-1941).................................... 156
6 PRIMEIROS ESCRITOS DE JEAN-PAUL SARTRE................................................ 162
7 "EM BUSCA DE UM OLHAR ANTROPOLÓGICO".............................................. 191
8 QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS......................................................................... 199
9 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................... 200
10 E-REFERÊNCIAS................................................................................................. 201
11 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................... 201

Claretiano - Centro Universitário


Caderno de
Referência de
Conteúdo

CRC
Ementa––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Arthur Schopenhauer. Sören Kierkegaard. Friedrich Nietzsche. Henri Bergson.
Edmund Husserl. Jean-Paul Sartre. Maurice Merleau-Ponty. Martin Heidegger. A
Escola de Frankfurt.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

1. INTRODUÇÃO
O Caderno de Referência de Conteúdo História da Filoso-
fia Contemporânea II dá continuidade à reflexão iniciada no CRC
anterior, apresentamos o contexto histórico e quais as principais
questões e discussões que a Filosofia proporcionou ao mundo, es-
pecialmente, na França e na Alemanha. Com isso, a razão passa
a ser a mãe de todo o saber filosófico e crítico, o que ocasiona
grandes discussões e críticas do pensamento contemporâneo. Esta
fase pode ser considerada a de maior desenvolvimento crítico.
No Caderno de referência de conteúdo, você encontrará um
texto mais denso, que exigirá de você uma leitura mais atenciosa
e reflexiva. Contudo, trata-se de um esforço recompensador, pois
lhe ampliará a visão e a compreensão acerca da filosofia alemã nos
séculos 19 e 20, e da francesa no século 20, à esteira de seus prin-
cipais representantes, como Kierkegaard, Schopenhauer, Nietzsche,
8 © História da Filosofia Contemporânea II

Husserl, Heidegger, M. Horkheimer, T. W. Adorno, H. Marcuse, J.


Habermas, Sartre, Bérgson e outros.
Para que seu estudo seja mais bem aproveitado, vale ressal-
tar que a leitura dos textos clássicos dos filósofos se faz indispen-
sável nesta fase, como também serão as análises dos principais
intérpretes, por isso a determinação e a perseverança deverão ser
nossas palavras de ordem.
Desejamos que, ao final do estudo deste CRC, você tenha
construído um conjunto de ideias que lhe permita analisar, discutir
e apresentar aquilo que é de mais importante para compreender
o pensamento contemporâneo. Esperamos que você seja capaz de
apontar aquilo que há de mais importante nos diversos autores
desse período e que saiba indicar a sua importância para o desen-
volvimento não só do pensamento de sua época, mas também da
construção da reflexão filosófica posterior.
Assim, convidamos você para aceitar o convite de desenvol-
ver uma postura crítica e consciente diante dos acontecimentos
e sentir-se instigado pelo desejo de conhecer e de transformar o
debate filosófico e educacional.

2. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO

Abordagem Geral
Prof. Dr. Stefan Vasilev Krastanov
Doutor em Filosofia pela UFSCAR com a tese "Nietzsche:
pathos artístico versus consciência ética"

Neste tópico, apresenta-se uma visão geral do que será es-


tudado neste CRC. Aqui, você entrará em contato com os assuntos
principais deste conteúdo de forma breve e geral e terá a oportu-
nidade de aprofundar essas questões no estudo de cada unidade.
Desse modo, essa Abordagem Geral visa fornecer-lhe o conheci-
mento básico necessário a partir do qual você possa construir um
© Caderno de Referência de Conteúdo 9

referencial teórico com base sólida – científica e cultural – para


que, no futuro exercício de sua profissão, você a exerça com com-
petência cognitiva, ética e responsabilidade social. Vamos come-
çar nossa aventura pela apresentação das ideias e dos princípios
básicos que fundamentam este CRC.
Filosofias da vontade e o existencialismo
Bem vindo à parte conclusiva do nosso curso histórico da Fi-
losofia, ou seja, bem vindos à Historia da Filosofia Contemporânea
II.
Devido à diversidade da problemática filosófica na contem-
poraneidade, não será possível, neste primeiro momento, abordar
devidamente essa enorme herança filosófica.
Todavia, a nossa proposta, consiste em tentar analisar ao
menos duas vertentes filosóficas que se destacaram mais no âm-
bito filosófico na época, embora, estando em relação de continui-
dade, a saber, a filosofia da vida, por um lado, representada por
Schopenhauer e Nietzsche, e, por outro lado, a fenomenologia e a
sua vertente existencialista, representados, respectivamente, por
Husserl e Heidegger.
Schopenhauer
A primeira parte a videoaula será dedicada à filosofia da
vida, dando ênfase à proposta irracionalista de Schopenhauer e
Nietzsche e, na segunda parte, falaremos sobre a fenomenologia e
a sua vertente existencialista.
O século 19 é um século de grandes mudanças no âmbito
filosófico – época em que o poderoso idealismo alemão começa a
perder fôlego sob o violento irracionalismo que se instaura firme-
mente no discurso filosófico a partir de Schopenhauer. É a época
em que a razão poderosa se vê subjugada à insaciável vontade.
Schopenhauer é um dos célebres pensadores do século 19
que traçaram esse novo caminho no itinerário filosófico. Conforme

Claretiano - Centro Universitário


10 © História da Filosofia Contemporânea II

Schopenhauer, todos os filósofos anteriores falharam no pressu-


posto de que a essência do homem está no intelecto, ao contrário,
afirma o filósofo, o ser humano é, antes de tudo, um ser que dese-
ja e, portanto, é um ser guiado pela vontade. Assim, ele instaura o
primado da vontade sobre o racional.
A grande obra de Schopenhauer é O Mundo como Vontade
e Representação. Na primeira parte desta obra, Schopenhauer en-
cara o mundo como objeto no âmbito do princípio da razão que
atua nas faculdades cognitivo-representativas do intelecto. Esses
configuram o mundo de modo próprio para ser conhecido. Po-
rém, como representação. Na segunda parte, ao tratar da vontade
como essência mais primeva do mundo, como coisa em si, Schope-
nhauer instaura a impossibilidade do seu conhecimento enquanto
coisa-em-si. A vontade é a profunda e cega força obscura que atua
no fundo do ser e não cede às formas da razão. Assim, ela adquire
um estatuto alógico e irracional. Portanto, o mundo como em-si
seria o mundo "sem razão", sem sentido para o intelecto humano.
O dinamismo da vontade revela-se pela guerra perpétua de exis-
tência entre suas formas fenomênicas (representações), que são
nada mais do que a própria vontade. Então, conforme Schopenhauer,
a guerra se dá entre a vontade e ela mesma.
Para resolver a contradição que se desenha entre a vonta-
de una e suas manifestações diversas, Schopenhauer utiliza-se de
uma noção advinda do pensamento oriental – o conceito de Maya
– a capacidade das personagens divinas de se transformarem e
encarnarem em formas diferentes – que expressa, grosso modo, o
símbolo da ilusão do ser. Diz Schopenhauer:
E Maya é o véu da ilusão, que, ao cobrir os olhos dos mortais, lhes
faz ver um mundo que não se pode dizer se existe ou não existe,
um mundo que se assemelha ao sonho, à radiação do sol sobre a
areia, onde, de longe, o viajante acredita ver uma toalha de água,
ou ainda uma corda atirada por terra, que ele toma por uma ser-
pente (2001, p. 14).

Temos de ressaltar que, com surgimento do homem e sua


consciência, o mundo, que até então era só vontade, se torna re-
© Caderno de Referência de Conteúdo 11

presentação. Grosso modo, trata-se de uma subordinação do prin-


cípio da razão à vontade, assim como se a vontade, para alcançar
as suas metas, se utilizasse do seu servo – a razão, manipulando-o
para ver e pensar aquilo que é do proveito da vontade. Justamen-
te por isso o mundo fenomênico, das representações, não passa
de uma ilusão, e faz que o intelecto humano veja coisas que são
expressões ilusórias das encarnações da Maya, que, no fundo, é
nada mais do que a vontade una. E aqui vale citar um trecho de O
Mundo como vontade e como representação:
A natureza só pode atingir o seu objetivo fazendo nascer no indiví-
duo uma certa ilusão, graças à qual ele considera como uma vanta-
gem pessoal o que na realidade é apenas vantagem para a espécie,
do mesmo modo que é para a espécie que ele trabalha quando
imagina trabalhar para ele mesmo (SCHOPENHAUER, 2001).

Portanto, se a vontade está no fundo do ser, se ela é a cau-


sa da dor, do sofrimento, transformando a vida em absurdo, sem
lógica, irracional, então, pelo tragismo da vida, pela mesma dor
e sofrimento, Schopenhauer é conduzido a renunciar à vontade,
negando a vida. A negação da vontade no indivíduo realiza-se por
meio da negação do eu. Uma das vias da negação do eu apresenta
a arte.
Na sua concepção estética, a arte exerce uma função liberta-
dora dos grilhões da vontade; ela é concebida por Schopenhauer
em estilo kantiano, como contemplação desinteressada, com efei-
to, como uma meditação livre sem qualquer objetivo ou interesse.
Para Schopenhauer, na contemplação estética, não existe nenhum
desejo, o sujeito puro e involuntário entrega-se unicamente ao co-
nhecimento advindo da arte.
Mas há, ainda, outra via ainda mais definitiva e eficiente do
que a experiência estética, que liberta o homem da sujeição da
vontade: é a vida ascética.
Com isso se inaugura o conceito da ética da compaixão. Essa
ética entra em vigor quando o sujeito percebe que todos os so-
frimentos espalhados pelo mundo são, também, seus, estando a
individualidade já suprimida. A verdadeira compaixão é desinte-

Claretiano - Centro Universitário


12 © História da Filosofia Contemporânea II

ressada, pois ela não advém de um interesse próprio. O estado de


recusa do todo querer é o ascetismo que é a radical negação da
sua própria essência. Em outras palavras, o ascetismo postula a
renúncia completa dos desejos por meio de uma espécie de auto-
flagelação, cujo resultado é o aniquilamento da vontade.
Nietzsche e a crítica da tradição
Baseado no voluntarismo schopenhaueriano e seu principal
aspecto – a vontade – Nietzsche, surpreendentemente, revela-se
como um pensador oposto ao seu precursor. Enquanto Schope-
nhauer nega o sentido da vida, reduzindo-a em dor e sofrimento,
em algo que não vale a pena ser vivido, e encontrava a salvação no
ato da negação da vontade, Nietzsche, ao contrário, insiste na vida
e justifica seu devir a partir de um foco estético. E, nesse sentido,
soam bastante convincentes as palavras de Nietzsche: "somente
como fenômeno estético a existência e o mundo podem ser justifica-
dos eternamente" (apud CLAUDEMIR, 2009, p. 131).
As obras escritas por Nietzsche são, geralmente, divididas
em três períodos, a saber:
1) O primeiro período é o juvenil, em que se mostra a tran-
sição da filologia para a filosofia, lembrando que Nietzs-
che é filólogo por formação. Neste período, a obra em
destaque é O nascimento da tragédia.
2) Já no segundo período, o filósofo enfatiza a crítica contra
a tradição em todas as suas manifestações; este é o perí-
odo, por assim dizer, de marteladas que devem preparar
o solo do seu projeto de filosofia a partir do prisma es-
tético, como contraponto a toda consciência moral que
subjaz a tradição.
3) Por fim, no terceiro período, o da maturidade, o filósofo
enuncia seus principais conceitos entre os quais atenção
especial cabe a eterno retorno, vontade de poder e além
do homem.
© Caderno de Referência de Conteúdo 13

O primeiro período dos escritos nietzschianos revela um for-


te interesse a uma retomada ao modelo grego suscitado, sobretu-
do a partir dos seus estudos filológicos sobre antiguidade.
O Nascimento da Tragédia, primeiro livro de Nietzsche, dedi-
cado a Wagner, revela, grosso modo, o intuito do filósofo de cons-
truir uma visão global sobre o mundo grego. Justamente Wagner
era o inspirador desse projeto.
No que diz respeito à vontade una de Schopenhauer, temos
de deixar bem claro que esta, em Nietzsche, assume traços dife-
rentes. Ela se multiplica conforme a diversidade do mundo feno-
mênico e torna-se plural, transfigura-se em vontade de poder. Esta
citação de Zaratustra não deixa dúvida a respeito: "Somente, onde
há vida, há também vontade: mas não vontade de vida, e sim – as-
sim vos ensino – vontade de poder".
Portanto, se pensarmos que o ponto de partida dos dois pen-
sadores é idêntico, com efeito, que a vontade está no fundo do ser,
que esta é responsável pela dor, pelo sofrimento, transformando
a vida em absurdo, sem lógica, irracional, devemos notar os al-
cances diferentes de cada um. Pelo tragismo da vida, pela mesma
dor e sofrimento, Schopenhauer é conduzido a renunciar a vonta-
de, negando a vida. Nietzsche, com base nos mesmos pressupos-
tos, encontra o sentido da existência justamente nesse horizonte
trágico – de querer e afirmar seu próprio destino. O pessimismo
sombrio de Schopenhauer deriva da consciência ética, no fundo
da qual transparece o norteador: sentido – segurança, o norteador
que coordenava cultura ocidental desde Sócrates e Platão. Ao con-
trário, Nietzsche dá um passo adiante, para além da consciência
ética, além dos valores morais, para o pathos artístico.
Crítica do niilismo
Na sua obra mais sistemática, Genealogia da Moral, Nietzsche se
impõe a tarefa de denunciar, não só a origem da moral, mas tam-
bém a sua transformação ao longo da história. O problema gene-

Claretiano - Centro Universitário


14 © História da Filosofia Contemporânea II

alógico é introduzido ainda no prólogo da obra, na qual Nietzsche,


resumidamente, coloca tais objetivos. Temos de notar que a crítica
que Nietzsche dirige à moral é inédita, neste aspecto, transcen-
dendo todas as dúvidas até então levantadas. Nietzsche investiga
"Sob que condições o homem inventou para si os juízos de valor
'bom' e 'mau'? E que valor têm eles?" (NIETZSCHE, 2004, p. 9).
A investigação de Nietzsche no campo moral mostra que por
trás de toda consciência moral se oculta uma poderosa vontade
de conservação, que é, ao mesmo tempo, a vontade de verdade.
E é essa verdade, segundo o filósofo, que dará suporte da fuga da
transitoriedade e de todo devir no qual a vida acontece. De acordo
com isso, soam as palavras de Nietzsche: "Não almejamos a ver-
dade apenas pela verdade, mas a almejamos como um meio de
escapar da transitoriedade da toda ilusão".
Neste estado de total negação da vida, Nietzsche aponta
uma saída, uma maneira de se superar o niilismo em todas as suas
versões.
A superação do niilismo consiste, de modo geral, no rompi-
mento do eixo: sentido-segurança, eixo que, certamente, orien-
ta a vida dos "fracos", aqueles que souberam organizar sua vida
devido à máxima: "reduzir os riscos". O rompimento desse eixo
indica, grosso modo, o processo de transvaloração de todos os va-
lores, visto que todos os valores são determinados por tal eixo,
quer dizer, trata-se de substituir um princípio avaliador por outro,
o do criador. O eixo que regulamentava, orientava e dava sentido
ao sofrimento, por meio da esperança que o sofredor alcançará o
mundo verdadeiro, o paraíso, a salvação, desaba com este rompi-
mento, mas, para Nietzsche, o sofrimento, a dor e o fracasso não
são algo que deva ser evitado a qualquer preço, nem deva ser su-
portado com a esperança da salvação. Esses são ingredientes ab-
solutamente indispensáveis para a vida e para a superação do ho-
mem: "Toda vitória, toda sensação de prazer parte do pressuposto
de que uma resistência foi superada" (WILL ZUR MACH, p. 702).
© Caderno de Referência de Conteúdo 15

E essa superação Nietzsche reserva para o além do homem. Para


descrevermos adequadamente o retrato do "além-do-homem",
devemos descartar quaisquer idéias evolucionistas que possam
contaminar tal imagem. É no herói trágico da tragédia grega que
Nietzsche inspira o "além-do-homem", no o próprio eterno prazer
do devir, aquele prazer que ainda encerra em si mesmo o prazer de
exterminar (EH, 6. 312).

O retrato do "além-do-homem", em Zaratustra (a obra mais


amada pelo seu autor), pode-se desvelar desde o começo do livro,
em "das três metamorfoses do espírito" O "camelo" é a primei-
ra manifestação do espírito carregador de "tu deves". Em segui-
da, ocorre a segunda transformação: o "camelo" transmuda em
"leão", símbolo da luta contra o "monstro" do "tu deves". "Luta"
pela qual descobriu seu "eu quero". Porém, na luta contra "tu de-
ves" o "leão" permanece geneticamente ligado ao "tu deves", na
medida em que é dele que quer se libertar. O fio condutor no esta-
do de "leão" é "liberdade de...". A "liberdade para..." – o mais alto
grau da liberdade anuncia a transformação do espírito de leão em
criança. Diz Nietzsche, em Zaratustra: "Inocência e esquecimento
é a criança, um começar de novo, um jogo, uma roda que por si
gira, um primeiro movimento, um sagrado dizer-sim" (NIETZSCHE,
1990, p. 25).
Eis, aí, o "além-do-homem", o senhor da "liberdade para...",
sendo esta a condição indispensável para a criação, a essência
mais profunda do homem, que estava oculta debaixo das camadas
de "tu deves", que suprimia o "eu quero" da arte, da criação e da
vida. A mudança é mudança de dimensão; não se pode pensar o
"além-do-homem" numa dimensão moral, mas pode-se pensá-lo
em dimensão artística. O principal traço do "além-do-homem" é a
capacidade/liberdade de criar, criar sentidos infinitos e participar
do jogo da criação com todos os seus efeitos.
O liame dessa transformação é a vontade de poder. Temos
de deixar bem claro que a vontade de poder é vontade de po-
der sobre si próprio – ao despertar a força criativa que habita no
criador. Pela criação se preservará o palco da vida. Apenas querer

Claretiano - Centro Universitário


16 © História da Filosofia Contemporânea II

conservar, significa sucumbir. Pela criação preserva-se a vida, pois


criar é continuar, mediante a criação, as possibilidades das futuras
configurações.
Então a vontade de poder não contempla a conservação,
mas é o princípio da preservação da vida e não das suas concretas
manifestações ou indivíduos particulares cuja conservação, efetu-
ada no conceito (Estado, moral, religião, ideologia etc.), resulta na
verdadeira extinção.
O mundo todo com seus aspectos singulares é o "mundo
dionisíaco do eterno criar-se, do eterno destruir-se". É a partir daí
que podemos pensar mais claramente a ideia de eterno retorno
de Nietzsche a partir do conceito de vontade de poder. Com efeito,
o mesmo, que retorna, é exatamente essa vontade de poder, as
"duas pulsões artísticas da natureza", ou simplesmente o ato de
criar. Numa das suas anotações de 1870, Nietzsche escreve: "[...] A
Vontade precisa do artista, nele repete-se o processo originário..."
(1870, p. 208).
Devemos sublinhar, aqui, que a Vontade precisa do artista
como meio da expressão da sua força criadora e seu devir eterno.
É a lei da vida e da atividade produtiva; é a lei do jogo inocente,
mediante o qual o além-do-homem afirma seu "amor fati" no cír-
culo chamado eterno retorno.
A fenomenologia e o existencialismo
Agora, entraremos em contato com a segunda parte da nos-
sa proposta filosófica, em que falaremos sobre a vertente fenome-
nológica na sua versão husserliana e heideggeriana. Para ilustrar o
significado da Fenomenologia, nada melhor do que citar um tre-
cho História da fenomenologia e existencialismo, de Thomas Ramson
Giles:
Em toda historia do pensamento a fenomenologia é a única filoso-
fia genuína e completamente transcendental. Ao mesmo tempo é
a única filosofia totalmente objetiva, o que quer dizer, em outras
palavras, que é a única filosofia totalmente filosófica. E ainda: A
filosofia de Husserl é radicalmente revolucionaria porque a revolu-
© Caderno de Referência de Conteúdo 17

ção é um processo constante. Não é apenas contra o status quo; é


guerra constante contra a tendência natural do espírito humano de
seguir numa contradição (2003, p. 71).

Certamente, a fenomenologia configura no âmbito filosófico


uma nova proposta, na medida em que, agora, o objeto privile-
giado da reflexão filosófica não é o cosmos, nem Deus, como nas
épocas anteriores, mas o homem. É a partir deste que se origina a
reflexão filosófica e é neste que se revela o seu sentido.
Para entender melhor esta nova proposta, pensemos na
filosofia como numa figura a ser desenhada. A figura da filo-
sofia aberta pelo gênio grego, no interior da qual opera uma
necessidade de preenchimento desta figura, descreve o des-
tino da filosofia, ou melhor, seu destinamento. Destinamen-
to determinado pela necessidade da própria razão, movida
por uma espécie de enteléquia, ou de realização da potência.
A noção de destinação é bastante familiar ao idealismo alemão
e à, imposta por ele, necessidade de chegar ao fim, de realização
das potências ocultas da razão. É a necessidade de realização que
norteia o caminho da filosofia na direção do seu acabamento.
A filosofia chega ao seu fim por ter atingido a sua realização.
O fato de ter atingido o seu fim, ou seja, ter realizado seu destino
como metafísica, coloca à filosofia a pergunta sobre o destino des-
ta, mas, agora, em termos de sobrevivência. O perigo para o pen-
samento está anunciado pelo acabamento da filosofia. Mas isso
quer dizer que, para os filósofos de hoje, não há outra perspectiva
a não ser fazer da filosofia uma história do pensamento ou uma
ciência? A ausência de necessidade como impulso que conduz a
filosofia à sua realização pode ser, como Heidegger nota, marca de
uma nova necessidade, ou melhor, de uma nova tarefa. Diz ele:
Ora, é precisamente essa ausência de necessidade, definindo não
mais uma destinação, mas talvez uma tarefa; não somos mais hoje
os destinatários de uma primeira remessa, no sentido em que cer-
tamente o foram Platão e Aristóteles, mas também que São Tomas
e Duns Scot, isto é aqueles que abriram a historia; abrir historia só
é possível no horizonte de uma necessidade.

Claretiano - Centro Universitário


18 © História da Filosofia Contemporânea II

Essa nova necessidade, ou melhor, tarefa do pensamento,


nos diz ainda Heidegger em seu Schelling, não é necessidade de
uma época, a necessidade de um século, mas a necessidade de
dois milênios, da indigência que nos torna necessitados desde que
o pensamento é metafísico.
Mas de que é essa nova necessidade? É a necessidade de se
meditar sobre dois milênios de filosofia, sobre a figura desenhada
pela sua história. Trata-se, grosso modo, de um recomeço.
Esse recomeço ou refundação de que estamos tratando aqui
pode ser mais bem compreendida como descobrimento de novas
possibilidades no âmbito de uma arqueologia do pensamento.
Heidegger questiona em seu Fim da filosofia e a tarefa do pensa-
mento sobre as possibilidades mais extremas; se não era tempo
de liberar a possibilidade primeira a partir da qual o mundo foi de-
terminado de tal maneira. Essa liberação, pergunta Heidegger, não
poderia servir como refundação de novas experiências? O retorno
à origem, portanto, não seria simples repetição, mas geração de no-
vas possibilidades e desenho de nova figura igual o ofício do artista.
O retorno à origem só tem sentido como destruição da metafísi-
ca para a liberação de possibilidades, de novas experiências. Essa
nova experiência ou possibilidade diante da filosofia nos revela a
fenomenologia.
A nova proposta que a fenomenologia apresenta na versão
husserliana, se expressa, grosso modo, em três pontos fundamen-
tais que se resumem em termos de radicalismo:
• ao ponto de partida de todo conhecimento;
•  no que diz respeito à tradição filosófica anterior;
• às ciências particulares; Sendo que, a partir desses as-
pectos, se delineará o caráter inédito e, também, toda a
dificuldade do pensamento husserliano.
Para fazer valer o método fenomenológico, Husserl dirige
uma crítica implacável contra as ciências positivas, no sentido de
© Caderno de Referência de Conteúdo 19

purificação do conhecimento de todos os resíduos psicologistas e


naturalistas.
O argumento principal da situação crítica das ciências,
Husserl vê nas suas impossibilidades de responder às questões
mais urgentes da humanidade, como, por exemplo, a questão so-
bre o sentido da existência humana – questões, que, em última
instância, dizem respeito ao homem.
Portanto, as causa principais da crise que, segundo Husserl,
invadiu e dominou por completo todas as áreas da atividade hu-
mana, consiste na impossibilidade de se fornecer um quadro ou
noção completa sobre o homem, por um lado, e, por outro, no fato
de que o diálogo entre a ciência e o mundo da vida, aos poucos,
se desconfigurou e se dissolveu na significabilidade dos símbolos
matemáticos, esquecendo sua origem mundana. Por isso essa cri-
se impõe a necessidade de retomar ao mundo da vida, ao mundo
pré-predicativo e nele descobrir a origem e o meio de se refazer
o elo rompido. Na sua visão, o problema não consiste na incapaci-
dade de as ciências particulares responderem tais questões, mas,
antes, de tampar os olhos dos homens com a fé no progresso cien-
tífico e, daí, a indiferença aos problemas existências.
Certamente, o existencialismo toma carona neste pensa-
mento e, especialmente, o existencialismo heideggeriano – que é
o alvo da nossa parte conclusiva.
O existencialismo heideggeriano surge com base da fenome-
nologia de Husserl. O método fenomenológico de Husserl, como
sabemos, consiste em captar a essência das coisas, isto é, tudo
aquilo para o qual o positivismo não dava conta. A essência, que
Husserl mirava como alvo do método fenomenológico, no existen-
cialismo, cedeu lugar à existência. Precisamos recordar que justa-
mente a existência é que Husserl colocava entre parentes, ao pas-
so que, na sua versão existencial da fenomenologia, a existência se
absolutiza, contudo, sem essência.

Claretiano - Centro Universitário


20 © História da Filosofia Contemporânea II

Mas, talvez, o conceito mais importante que o existencialis-


mo herdou do método fenomenológico é o conceito da intencio-
nalidade da consciência.
Todavia, devemos sublinhar que Heidegger não utiliza o ter-
mo intencionalidade. Ele privilegia o termo transcendência. Qual a
conotação que cada um coloca?
A intencionalidade revela a relação entre o sujeito e obje-
to no plano gnosiológico, conforme a proposta husserliana. Já a
transcendência vai mais longe, ela aponta para a condição ontoló-
gica do homem como ser-no-mundo.
O distanciamento que ocorre entre Husserl e Heidegger é
notado, ainda, nas suas aulas de 1925, proferidas por Heidegger,
em que este explica para os seus alunos porque não pode e não
deve aceitar o entendimento husserliano de fenomenologia, pois,
O campo temático da análise husserliano, afirma Heidegger, é a
consciência. [...] como tal ela não é para as próprias coisas.
Heidegger, ao contrário, retoma a questão do ser como pro-
blema fundamental da existência, configurando a sua filosofia em
termos de ontologia fundamental.
Heidegger traça um entendimento novo à principal tese hus-
serliana: "vamos para as próprias coisas", enquanto "as próprias
coisas" não são mais os fenômenos puros no sentido husserliano,
mas o próprio ser das coisas cuja condição é o homem, isto é, as
coisas revelam-se para a realidade humana que Heidegger chama
de Dasein, e que, literalmente traduzido, significa Ser-aí.
Mas qual o sentido do Dasein? Presença do ser por meio
da existência humana enquanto esta é abertura, possibilidade de
pensar o sentido do ser.
O fenômeno para Heidegger é algo que por si mesmo se
mostra, mas mostrar-se, por sua vez, requer uma estrutura exis-
tencial, aberta para receber tal mostração. Mas quem será, entre
todos os existentes, aquele que é capaz de ser receptor, ou melhor,
© Caderno de Referência de Conteúdo 21

revelador de tal mostração? A faculdade poderia ser facilmente re-


movida, uma vez verificado que não há, senão, um ser capaz de se
interrogar sobre o ser. E esse ser é o próprio Dasein, ou, literalmen-
te Ser-aí, por ser este tanto o primado ôntico, na medida em que a
essência de Dasein reside na sua existência, como também prima-
do ontológico, que é o único capaz de se interrogar pelo sentido do
ser. Aqui, surgem dois aspectos fundamentais para a compreensão
da filosofia heideggeriana que merecem ser tratados com a devida
seriedade. O primeiro diz respeito à frase supracitada de que a es-
sência do Dasein reside na sua existência e o segundo aspecto diz
respeito, a saber o motivo pelo qual o homem é primado ôntico.
Temos de notar que, para Heidegger, a existência não envol-
ve nenhum contraste com a essência, somente o homem é dotado
de existência. Ao especificar essa forma humana da existência ele
usa o termo eks-sistencia:
O estar postado na clareira do ser denomino eu a eks-sistencia do
homem. "Essência do Dasein está na sua existência" significa que
o determinante (essência) do homem está em falta de determina-
ção. A eksistência, assim entendida, revela-nos a falta de qualquer
determinação no homem, com efeito, ele não possui um lugar fixo,
ele é essencialmente eksistente, é um dês-locar-se. Essa falta de
determinação faz o homem projetar-se para suas possibilidades,
fazendo seu próprio modo de ser, cuja condição é a temporalida-
de humana fixada pelo horizonte da finitude. Com outras palavras,
ciente para sua finitude entendida como ser para a morte Dasein
se projeta para o futuro, querendo alcançar a si mesmo – tornar-se
autêntico. O futuro que passa e gera o presente revela a tempora-
lidade da existência humana como sentimento da situação origi-
naria – estar sozinho com o seu futuro. Neste âmbito, de repente,
Dasein mergulha no nada sob o véu da angustia, em que Dasein,
como "clareira do ser" é conduzido, originariamente, para iluminar
o sentido do ser. (HEIDEGGER, 1973).

"A essência do Dasein está na sua existência", revela a pos-


sibilidade ontológica de abertura e elaboração da questão sobre
o sentido de ser. Assim, o sentido do ser desvela-se a partir do
ser-aí, mediante a compreensão da sua autenticidade, fazendo o
pensamento filosófico retornar à sua origem e seu sentido primor-
dial. Neste sentido, Heidegger permanece "in-sistentemente" fiel

Claretiano - Centro Universitário


22 © História da Filosofia Contemporânea II

à sua empresa ontológica. E, com isso, respondemos ao segundo


aspecto, o do primado ôntico – como sendo, entre todos os entes,
o único ente revelador, isto é, como Heidegger nota – a clareira
do ser que evoca, ilumina e mantém o sentido do ser e com isso o
sentido da própria filosofia entendida antes como ontologia.
Todavia, o sentido do ser, apesar de ser pensado, não é pos-
sível de ser definido, pois toda definição, como necessária limi-
tação, ocorre no âmbito do ser, do "é". E é por isso que todos os
filósofos, segundo Heidegger, fracassaram ao tentar definir o ser,
transformando este em mero ente. A impossibilidade de definição
do sentido do ser impõe que a questão seja retomada – e isso cer-
tamente faz do filósofo um pastor do ser na medida em que sem-
pre invoca e mantém, desperta a pergunta sobre o sentido do ser.

Glossário de conceitos
O Glossário de Conceitos permite a você uma consulta rá-
pida e precisa das definições conceituais, possibilitando-lhe um
bom domínio dos termos técnico-científicos utilizados na área
de conhecimento dos temas tratados no CRC História da Filosofia
Contemporânea II. Por uma opção pedagógica do autor, os termos
do glossário não seguem uma ordem alfabética, mas uma ordem
cronológica da importância que cada um dos conceitos adquire
ao longo do estudo desse material. Veja, a seguir, a definição dos
principais conceitos:
1) Dialética subjetiva: noção utilizada por Kierkegaard
como contraponto à dialética objetiva de Hegel. No in-
terior da filosofia de Kierkegaard, a dialética subjetiva
deve ser entendida como existência. Ela passa por três
etapas: estética, ética e religiosa, que postula a tríade da
vivência pessoal.
2) Princípio da razão: expressão utilizada por Schopenhauer
para designar a categoria causalidade como uma das for-
mas puras do sujeito cognoscente.
3) Princípio da individuação: no interior da filosofia scho-
penahueriana, essa noção é utilizada para designar o
© Caderno de Referência de Conteúdo 23

espaço-tempo, como formas puras do intelecto huma-


no, as quais, na sua limitação recíproca, engendram a
representação do individual.
4) Representação intuitiva: Schopenhauer utiliza essa ex-
pressão para designar a representação direita do obje-
to.
5) Representação abstrata: expressão utilizada por
Schopenhauer para designar a representação mediata
do objeto, isto é, o conceito do qual surge a base da re-
presentação intuitiva.
6) Eudemonismo: a concepção ética segundo a qual a meta
suprema da vida humana é a felicidade.
7) Maya: de acordo com o pensamento oriental, Maya é
uma personagem divina que possui capacidade de se
encarnar em diferentes indivíduos. Com essa noção,
Schopenhauer alude às manifestações fenomênicas da
vontade.
8) Trágico: essa noção é utilizada para designar a colisão ou
o antagonismo entre duas forças opostas (colisão trági-
ca).
9) Tragédia: essa noção é utilizada para designar a reconci-
liação da colisão trágica, ou seja, a solução.
10) Niilismo: no interior da filosofia nietzschiana, o niilismo
designa o ato de negar a vida.
11) Eterno Retorno: essa é uma noção utilizada por Nietzsche
como contraponto à ideia de tempo linear. O conceito
de eterno retorno era bastante preconizado no pensa-
mento grego.
12) Além do homem: o além do homem deve ser entendido,
antes de tudo, como o homem criador. Seu traço mar-
cante é a constante superação de si.
13) Fenomenologia: a Fenomenologia trata de descrever,
compreender e interpretar os fenômenos que se apre-
sentam na tela da consciência.
14) Redução fenomenológica: literalmente, designa o ato
de pôr entre parentes tudo que o positivismo valorizava,

Claretiano - Centro Universitário


24 © História da Filosofia Contemporânea II

isto é, o que é concreto e quantitativamente mensurá-


vel.
15) Redução transcendental: literalmente, designa o ato pôr
entre parentes de todas as pré-compreensões e pré-ju-
ízos e que habitam a consciência do indivíduo. Trata-se,
grosso modo, de purificar a consciência para que ela se
torne apta para uma rigorosa análise fenomenológica.
16) Intencionalidade da consciência: noção utilizada por
Husserl para designar o caráter intencional da consciên-
cia. Nesse sentido, afirma Husserl, a consciência é sem-
pre intencionada.
17) Dasein: uma noção utilizada por Heidegger para desig-
nar o lugar da abertura para a pergunta pelo sentido do
ser. Numa das suas definições, Dasein seria a presença
do ser por meio da existência humana enquanto esta é
abertura para o sentido do ser.
18) Ser-aí: é a tradução de Dasein. Trata-se da presença hu-
mana e o seu vínculo ontológico ao ser.
19) Autenticidade: essa noção refere-se à existência do ser-
aí enquanto seu modo de ser originário.
20) Inautenticidade: refere-se à existência inautêntica do
homem que se reduz em massa, isto é, quando não
segue as suas possibilidades autênticas ou seu próprio
modo de ser.
21) Ser-no-mundo: essa noção é utilizada por Heidegger
para designar a ligação intima do ser-aí humano com o
mundo. Não se trata, porém, de compreender a realida-
de humana como estando dentro do mundo, mas sem-
pre vinculada ao mundo.
22) Analítica existencial: essa noção diz respeito à análise
existencial elaborada pelos filósofos existencialistas e,
sobretudo, por Heidegger.
23) Ôntico: designa qualquer coisa do mundo, seja concreta
(coisas do mundo, animais, etc.) ou abstrata (ideias, por
exemplo). Tudo que é passível à definição é um ente.
24) Ontológico: designa aquilo que se refere ao ser. No caso
de Heidegger, o ser é o âmbito ou o fundamento de toda
definição.
© Caderno de Referência de Conteúdo 25

25) Ser-com-outros: ser com outros designa o modo de ser


do ser-aí na sua relação intersubjetiva.
26) Ser-para-morte: é a noção por meio da qual Heidegger
designa a possibilidade última da existência humana, a
partir da qual se constitui o sentido de qualquer projeto.
Só como ser-para-morte ou finitude o homem é capaz
de transcender ou de se projetar.
27) Das-man: em português, é traduzido como "se" ou "a
gente". É a expressão inautêntica da realidade humana
enquanto cada um se oculta sob a máscara do impesso-
al.
28) Esquecimento do ser: com essa noção, Heidegger acu-
sa toda metafísica tradicional que se esqueceu do ser
transformando-o em ente. Vale observar que a vontade
metafísica de definir o ser (ser em definível porque é o
fundamento de toda definição) reduziu-o em ente.
29) Indústria cultural: o termo utilizado pelos pensadores
da Escola de Frankfurt para designar o processo em que
a cultura se torna mercadoria e a arte perde a sua aura
e encanto.
30) Duração: noção utilizada por Bérgson para designar o
tempo real da consciência (não da ciência). A duração
apresenta-se para a consciência como única corrente
fluida onde não existe qualquer divisão. Diz Bérgson
(2005): "Meu estado de alma, avançando no caminho do
tempo, vai se dilatando continuamente com a duração".
31) Intuição: na filosofia de Bérgson, a intuição é a consciên-
cia imediata ou, como diz o filósofo: "A intuição é a visão
do espírito por parte do espírito".
32) Elan Vital: consciência que penetra na matéria e a orga-
niza. Uma noção que alude á ideia de evolução.
33) Coisificação: uma vez que as coisas não se podem trans-
formar em coisas, essa noção refere-se ao processo de
coisificação do homem em objeto. Coisificado é o ho-
mem massificado, aquele que não vive seu próprio
modo de ser.

Claretiano - Centro Universitário


26 © História da Filosofia Contemporânea II

Esquema dos Conceitos-chave


Para que você tenha uma visão geral dos conceitos mais
importantes deste estudo, apresentamos, a seguir (Figura 1), um
Esquema dos Conceitos-chave. O mais aconselhável é que você
mesmo faça o seu esquema de conceitos-chave ou até mesmo o
seu mapa mental. Esse exercício é uma forma de você construir o
seu conhecimento, ressignificando as informações a partir de suas
próprias percepções.
É importante ressaltar que o propósito desse Esquema dos
Conceitos-chave é representar, de maneira gráfica, as relações en-
tre os conceitos por meio de palavras-chave, partindo dos mais
complexos para os mais simples. Esse recurso pode auxiliar você
na ordenação e na sequenciação hierarquizada dos conteúdos de
ensino.
Com base na teoria de aprendizagem significativa, entende-
-se que, por meio da organização das ideias e dos princípios em
esquemas e mapas mentais, o indivíduo pode construir o seu co-
nhecimento de maneira mais produtiva e obter, assim, ganhos pe-
dagógicos significativos no seu processo de ensino e aprendiza-
gem.
Aplicado a diversas áreas do ensino e da aprendizagem es-
colar (tais como planejamentos de currículo, sistemas e pesquisas
em Educação), o Esquema dos Conceitos-chave baseia-se, ainda,
na ideia fundamental da Psicologia Cognitiva de Ausubel, que es-
tabelece que a aprendizagem ocorre pela assimilação de novos
conceitos e de proposições na estrutura cognitiva do aluno. Assim,
novas ideias e informações são aprendidas, uma vez que existem
pontos de ancoragem.
Tem-se de destacar que "aprendizagem" não significa, ape-
nas, realizar acréscimos na estrutura cognitiva do aluno; é preci-
so, sobretudo, estabelecer modificações para que ela se configure
como uma aprendizagem significativa. Para isso, é importante con-
siderar as entradas de conhecimento e organizar bem os materiais
© Caderno de Referência de Conteúdo 27

de aprendizagem. Além disso, as novas ideias e os novos concei-


tos devem ser potencialmente significativos para o aluno, uma vez
que, ao fixar esses conceitos nas suas já existentes estruturas cog-
nitivas, outros serão também relembrados.
Nessa perspectiva, partindo-se do pressuposto de que é
você o principal agente da construção do próprio conhecimento,
por meio de sua predisposição afetiva e de suas motivações in-
ternas e externas, o Esquema dos Conceitos-chave tem por ob-
jetivo tornar significativa a sua aprendizagem, transformando o
seu conhecimento sistematizado em conteúdo curricular, ou seja,
estabelecendo uma relação entre aquilo que você acabou de co-
nhecer com o que já fazia parte do seu conhecimento de mundo
(adaptado do site disponível em: <http://penta2.ufrgs.br/eduto-
ols/mapasconceituais/utilizamapasconceituais.html>. Acesso em:
11 mar. 2010).

Claretiano - Centro Universitário


28 © História da Filosofia Contemporânea II

Figura 1 Esquema dos Conceitos-chave do Caderno de Referência de Conteúdo História da


Filosofia Contemporânea II

Como você pode observar, esse Esquema dá a você, como


dissemos anteriormente, uma visão geral dos conceitos mais im-
portantes deste estudo. Ao segui-lo, você poderá transitar entre
um e outro conceito deste CRC e descobrir o caminho para cons-
© Caderno de Referência de Conteúdo 29

truir o seu processo de ensino-aprendizagem. Por exemplo, o con-


ceito "existencialismo" implica conhecer as etapas da formação
do pensamento contemporâneo desde Kierkegaard até Nietzsche;
sem o domínio conceitual desse processo explicitado pelo Esque-
ma, pode-se ter uma visão confusa do tratamento da temática da
Filosofia Contemporânea proposto pelos autores deste CRC.
O Esquema dos Conceitos-chave é mais um dos recursos de
aprendizagem que vem se somar àqueles disponíveis no ambien-
te virtual, por meio de suas ferramentas interativas, bem como
àqueles relacionados às atividades didático-pedagógicas realiza-
das presencialmente no polo. Lembre-se de que você, aluno EAD,
deve valer-se da sua autonomia na construção de seu próprio co-
nhecimento.

Questões Autoavaliativas
No final de cada unidade, você encontrará algumas questões
autoavaliativas sobre os conteúdos ali tratados. Responder, discu-
tir e comentar essas questões, bem como relacioná-las à prática
do ensino de Filosofia, pode ser uma forma de medir seu conheci-
mento, de ter contato com questões pertinentes aos assuntos tra-
tados e de ajudar em sua preparação para a prova final, que será
dissertativa. Mais ainda: é uma maneira privilegiada de adquirir
uma formação sólida para sua prática profissional.

Bibliografia Básica
É fundamental que você use a Bibliografia Básica em seus
estudos, mas não se prenda só a ela. Consulte, também, as biblio-
grafias complementares.

Figuras (ilustrações, quadros...)


Neste material instrucional, as ilustrações fazem parte inte-
grante dos conteúdos, ou seja, elas não são meramente ilustra-
tivas, pois esquematizam e resumem conteúdos explicitados no

Claretiano - Centro Universitário


30 © História da Filosofia Contemporânea II

texto. Não deixe de observar a relação dessas figuras com os con-


teúdos do CRC, pois relacionar aquilo que está no campo visual
com o conceitual faz parte de uma boa formação intelectual.

Dicas (motivacionais)
O estudo deste CRC convida você a olhar, de forma mais apu-
rada, a Educação como processo de emancipação do ser humano.
É importante que você se atente às explicações teóricas, práticas
e científicas presentes nos meios de comunicação, bem como par-
tilhe suas descobertas com seus colegas de curso, pois, ao com-
partilhar com outras pessoas aquilo que você observa, permite-se
descobrir algo que ainda não se conhece, aprendendo, assim, a
ver e a notar o que não havia sido percebido antes. Observar é,
portanto, uma capacidade que nos impele à maturidade.
Você, como aluno dos Curso de Graduação na modalidade
EAD como e futuro profissional da educação, necessita de uma for-
mação conceitual sólida e consistente. Para isso, você contará com
a ajuda do tutor a distância, do tutor presencial e, sobretudo, da
interação com seus colegas. Sugerimos, pois, que organize bem o
seu tempo e realize as atividades nas datas estipuladas.
É importante, ainda, que você anote suas reflexões em um
caderno ou no Bloco de Anotações, pois, no futuro, elas poderão
ser utilizadas na elaboração de sua monografia ou de produções
científicas.
Leia os livros da bibliografia indicada, para que você amplie
seus horizontes teóricos. Coteje-os com o material didático, discu-
ta as unidades com seus colegas de curso e com o tutor e assista
às videoaulas.
No final de cada unidade, você encontrará algumas questões
autoavaliativas, que são importantes para a sua análise sobre os
conteúdos desenvolvidos e para saber se estes foram significativos
para sua formação. Indague, reflita, conteste e construa resenhas,
pois esses procedimentos serão importantes para o seu amadure-
cimento intelectual.
© Caderno de Referência de Conteúdo 31

Lembre-se de que o segredo para o sucesso em um curso na


modalidade EAD é participar, ou seja, interagir, procurando sempre
cooperar e colaborar com seus colegas de curso e seus tutores.
Caso precise de auxílio em algum assunto relacionado a este
CRC, entre em contato com seu tutor. Ele estará pronto para lhe
ajudar.

Claretiano - Centro Universitário


Claretiano - Centro Universitário
EAD
Kierkegaard,
Schopenhauer e
Nietzsche
1
1. OBJETIVOS
• C ompreender o contexto social, histórico, político, eco-
nômico e cultural em que Kierkegaard, Schopenhauer e
Nietzsche viveram.
• Identificar e relacionar as formas de existência do Ho-
mem: o Ético, o Estético e o religioso.
• Compreender o conceito de "angústia".
• Compreender o conceito de representação intuitiva e
abstrata.
• Reconhecer a importância das contribuições filosóficas
de Kant para o pensamento de Schopenhauer.
• Examinar e compreender o conceito de "Vontade".
• Relacionar os conceitos de "Vontade" e de "Intelecto".
• Compreender o conceito de tragédia como arte supre-
ma.
34 © História da Filosofia Contemporânea II

• E xaminar e relacionar o conceito de "Ética" e de "Estéti-


ca".
• Identificar o nascimento da Tragédia.
• Reconhecer a importância de Wagner e das contribuições
filosóficas de Schopenhauer para o pensamento de
Nietzsche.
• Identificar os períodos do desenvolvimento do pensa-
mento nietzcheano.
• Compreender o que significa "Vontade de poder".
• Distinguir e relacionar o "apolíneo" e o "dionisíaco".
• Compreender em que consiste a "crítica ao niilismo".
• Compreender em que consiste a "superação do niilismo"
e o "eterno retorno".

2. CONTEÚDOS
• C
ontexto social, histórico, político e econômico; as for-
mas de existência do homem: ética, estética e religiosa;
o conceito de angústia; contexto social, histórico, políti-
co e econômico; o conceito de representação; o conceito
de vontade; relação entre vontade e intelecto; estética;
a tragédia como arte suprema; o Santo e a Ética da com-
paixão; contexto social, histórico, político e econômico;
o nascimento da Tragédia; as contribuições de Wagner
e Schopenhauer para a formação do pensamento de
Nietzsche; o desenvolvimento do pensamento de Nietzche;
a vontade de Poder; o apolíneo e o dionisíaco; a crítica
ao nihilismo; a superação do nihilismo; o Eterno retorno;
opconceito de "além-do-homem".
© U1 - Kierkegaard, Schopenhauer e Nietzsche 35

3. ORIENTAÇÕES GERAIS PARA O ESTUDO DA UNI-


DADE
1) Para saber mais sobre a vida e a obra de Schopenhauer
acesse o seguinte endereço eletrônico: disponível em:
<http://www.culturabrasil.pro.br/schopenhauer.htm>.
Acesso em: 08 maio 2010.
2) Não deixe de ler a bibliografia indicada neste Caderno de
referência de conteúdo, é importante aprofundar seus
conhecimentos com a leitura das obras dos filósofos
aqui tratados e seus principais comentadores.
3) Para ampliar seu conhecimento sobre a relação entre
Schopenhauer e Nietzsche indicamos a leitura da obra O
pessimismo e suas vontades: Schopenhauer e Nietzsche
de José Thomas Brum.
4) Para saber mais sobre a o filósofo Kierkegaard acesse:
disponível em: <http://www.posgrap.ufs.br/periodi-
cos/cadernos_ufs_filosofia/revistas/ARQ_cadernos_7/
deyve.pdf>. Acesso em: 08 maio 2010.

4. INTRODUÇÃO À UNIDADE
O percurso histórico filosófico proposto neste material di-
dático abrange o período posterior ao fim do idealismo alemão,
isto é, o período em que o reinado da razão, por assim dizer, sede
lugar às correntes irracionalistas e voluntaristas (Schopenhauer e
Nietzsche) e à tendência existencialista iniciada por Kierkegaard.
Veremos, portanto, uma nova proposta filosófica que sai das por-
tas do academismo para filiar-se à vida. Essa ruptura com a filoso-
fia acadêmica causa impacto devastador sobre a concepção teóri-
ca inaugurada desde Sócrates e Platão e põe definitivamente em
prova a noção da verdade. Como consequência dessa implosão da
verdade operada pela filosofia de vida e o existencialismo, põem-
se em dúvida, também, os valores tradicionais. Levantam-se novos
problemas diante da especulação filosófica e novas tarefas diante
os filósofos.

Claretiano - Centro Universitário


36 © História da Filosofia Contemporânea II

O martelo genealógico de Nietzsche, depois da renúncia


schopenhaueriana, vem à cena não apenas como aniquilador de
antigas tábuas valorativas, mas também como criador de nova vi-
são de vida – a vida como obra de arte. A partir daí, a arte sai do
esconderijo analítico dos estudiosos estéticos e começa a desem-
penhar uma função vital.
O existencialismo inspirado nas filosofias de Kierkegaard,
Nietzsche e Schopenhauer retoma a tendência antropológica da
filosofia e coloca novamente o homem (concreto, individual, exis-
tencial) como principal de todas as coisas. O homem, em sua exis-
tência única e irrepetível, novamente se torna a medida das coisas.
Não será acaso que o sofista Protágoras, na contemporaneidade,
ganhará a disputa com o celebre Sócrates, pois a tendência relati-
vista e subjetivista ganha força na filosofia da vida (Schopenhauer
e Nietzsche) e no existencialismo.
Nesta primeira unidade, vamos estudar o contexto social,
histórico, político, econômico e cultural em que Kierkegaard,
Schopenhauer e Nietzsche viveram, além de identificar as formas
de existência do homem, compreender o conceito angústia e
representação intuitiva e abstrata. Estudaremos, também, os
conceitos de Vontade e Intelecto; da tragédia como arte suprema.
Identificaremos os períodos de desenvolvimento do pensamento
de Nietzsche, compreenderemos o significado de "Vontade de
poder" e o conceito de apolíneo e dionisíaco, para, finalmente,
compreender o que significa a crítica ao niilismo, a superação ao
niilismo e o eterno retorno.

5. KIERKEGAARD
Kierkegaard é dos pensadores que não foram compreendi-
dos durante a sua vida, pois as suas ideias transcenderam o tempo
e, justamente por isso, permaneceram distantes e incompreendi-
dos por seus contemporâneos. Diferentemente de pensadores
© U1 - Kierkegaard, Schopenhauer e Nietzsche 37

como Kant, Fichte, Schelling e Hegel que ainda, em vida, gozaram


de fama e reconhecimento, as ideias
do pensador dinamarquês passam des-
percebidas. Kierkegaard segue o desti-
no dos gênios – se não de todos, pelo
menos a da maioria – serem desperce-
bidos em vida e, apenas após a morte
de alcançar seus triunfos espirituais.
Aproximadamente um século mais tar-
de, o filósofo será reconhecido como
um dos célebres pensadores europeus.
Autor de mais de 10 livros edi- Figura 1 - Kierkegaard
tados durante a sua vida e tanto mais
editados postumamente, cerca de 20 volumes de diários escritos
durante 20 anos, Kierkegaard se destaca como um pensador de-
masiado laborioso. Dedicará sua vida à busca da verdade e de si
mesmo a partir do texto, vida que se manifesta pelo texto, vida de
um verdadeiro homo scribens, pois a vida de Kierkegaard está no
seu escrito.
Dificilmente a vida pessoal de um filósofo penetra tanto
na sua filosofia, como ocorre com o pensador dinamarquês. Um
acontecimento da sua mocidade torna-se marcante para a sua
vida: o pai (num dos momentos difíceis da sua vida, amaldiçoou
Deus e assim, de acordo com Kierkegaard, expôs toda sua família à
ira divina) – encarna a personagem de Abraão, pronto a sacrificar
o seu filho; Kierkegaard, durante toda sua vida se sentirá como
Isaac, como o escolhido para o sacrifício. Buscando em todo acon-
tecimento existencial descobrir a si mesmo e seu destino, o que
nota-se não somente nas suas análises bíblicas, mas também nas
obras clássicas da literatura. Talvez seja por isso que o seu sedutor
confessa: "Gosto muito de conversar comigo mesmo. Na minha
face eu descobri a pessoa mais interessante de todos que tinha co-
nhecido" (KIERKEGAARD, 1973). A automeditação tem uma longa
tradição na filosofia pós-renascentista: Montaigne (Ensaios), Pas-

Claretiano - Centro Universitário


38 © História da Filosofia Contemporânea II

cal (Pensamentos), Goethe (Poesia e verdade). Mas, nesta longa


tradição, Kierkegaard, sem dúvida, é o seu clássico.
A filosofia de Kierkegaard é, grosso modo, poesia da sua vida
– da realidade e dos sonhos dela. Ela começa e termina com o indi-
víduo, sendo este a raiz, núcleo e a verdadeira concentração desta
filosofia. Justamente por isso Kierkegaard será reconhecido como
o verdadeiro promotor do existencialismo.

Estético, ético e religioso


Kierkegaard começa a sua filosofia quando o domínio da fi-
losofia hegeliana na Alemanha se enfraquece. O pensamento sis-
temático, o esforço de ordenar tudo num mecanismo gigantesco,
a tentativa de apresentar a experiência dos indivíduos como uma
função do Espírito Absoluto, da Razão, da História, decepcionam
profundamente Kierkegaard, que vê, nessas intenções, tentativa
de se suprimir o indivíduo e a sua liberdade – que são, essencial-
mente, o objeto primordial de todo filosofar.
Apesar da plena recusa da filosofia hegeliana, todavia, a fi-
losofia do pensador dinamarquês sofre influência da tradição fi-
losófica alemã. Kierkegaard elabora uma dialética subjetiva como
contraponto da dialética objetiva de Hegel, da mesma maneira,
seu irracionalismo ao racionalismo da filosofia clássica alemã.
A dialética subjetiva, entendida como existência, passa por
três etapas: estética, ética e religiosa, que postula a tríade da vi-
vência pessoal. Essa marcha triádica assemelha-se, sem dúvida, à
tríade hegeliana do Espírito. No entanto, a tríade kierkegaardiana
toma inspiração da própria existência, é a sua descrição, ao pas-
so que tríade hegeliana visa à dimensão lógico-histórica, sem se
importar com a subjetividade humana. A dialética subjetiva de
Kierkegaard revela três esferas da existência humana, que o ho-
mem livremente escolhe, com efeito, não sendo determinado por
alguma necessidade. O filósofo dinamarquês considera essas três
esferas não em termos de passagem dialética, mas como indepen-
© U1 - Kierkegaard, Schopenhauer e Nietzsche 39

dentes e separadas formas de existência. Cada um escolhe a forma


que corresponde melhor à sua ideia de vida. Por isso a diferença
entre estético, ético e religioso não impede a sua unidade. São três
aliados que descrevem a essência humana. Justamente por isso a
dialética de Kierkegaard não é só subjetiva, mas, sobretudo, exis-
tencial.

Estético
A primeira forma da existência humana é a forma estética
da existência. Temos de frisar que o filósofo não fala do estético
como fenômeno objetivo ou como realidade ou parte da realida-
de, mas como modo de existência e relação para com o mundo.
Como modo de existência, o estético é oposto ao ético, homem
estético versus homem ético. Apesar de o estético ser assinalado
como inferior em relação ao ético, Kierkegaard tem argumentos
em prol do estético: "Abaixo do céu do estético tudo é leve, bonito
e fugaz. Quando a ética vem à tona tudo se torna duro, quadrado
e infinitamente fastio" (KIERKEGAARD, s/d.,p.26).
A principal característica do estético, conforme o filósofo, é
a existência imediata. E isso quer dizer que a forma estética da
existência se encontra na parte física e não na parte espiritual do
homem, na sua sensibilidade, que é inimiga mortal do espírito. O
homem estético permanece na esfera do imediato, ao passo que
o homem ético tende na esfera da consciência e da reflexão. O
homem estético não escolhe a si mesmo, como faz o homem éti-
co, ele se apaixona por si mesmo, como Narciso. No entanto, o
homem estético não é do tipo hedonista – caçador de prazeres. O
verdadeiro esteta não encontra os prazeres no exterior, nos obje-
tos, mas dentro de si mesmo. As condições do prazer permanecem
fora dele, mas o próprio prazer encontra-se nele, na sua própria
existência em que sempre há algo do narcisismo.
O esteta não gosta de ação, não gosta de fazer nada. O im-
portante, para ele, é a contemplação e o prazer que esta suscita.
O seu destino é o erótico e sua forma suprema – a sedução. Nesta
empreitada ele é incomparável.

Claretiano - Centro Universitário


40 © História da Filosofia Contemporânea II

Entre todas as formas de prazeres, o homem estético de


Kierkegaard prefere o amor, pois ela é encarnação perfeita do esté-
tico. O esteta sedutor, no seu diário escreve: "Sou esteta e homem
que conhece a essência e o núcleo do amor, homem que acredita
no amor e que penetrou nas suas profundezas" (KIERKEGAARD,
1973, p. 18). O amor, conforme o filósofo, é a plena existência da
mulher e suas raízes mais profundas. O nexo do estético com o
amor da mulher, Kierkegaard encontra na ideia de que cada mu-
lher traz em si uma parte da toda riqueza feminina. Tal parte pode
manifestar-se no sorriso alegre, no olhar sedutor, na cabeça in-
clinada, na alma harmoniosa, na tristeza silenciosa, na pureza de
anjo, no andar leve e gracioso, nas formas macias, no cabelo, nos
seios, nas pernas, nas mãos etc. Em toda mulher, o sedutor encon-
tra a parte dessa riqueza feminina, elevando-a à beleza.
Sem dúvida alguma, aqui, Kierkegaard descobre uma função
da intuição estética: uma unidade viva, que se compreende como
unidade viva, não como um detalhe ou fragmento isolado, mas
como plenitude em qual pulsa vida: Toda mulher deve possuir uma
partícula da toda riqueza feminina, assim que o resto, que se en-
contra nela, se une harmonicamente ao redor desse ponto.
O fundamento mais profundo da arte e do amor é a liber-
dade – o amor existe só no âmbito da liberdade. Por isso, o esteta
de Kierkegaard tem argumentos prontos contra o casamento: no
casamento o homem perde a sua liberdade e independência; a
mulher possui todas as armas, da simulação às da fraqueza, por
meio das quais ela toma vantagem e submete o homem.
O amor e o erótico têm seus graus – o grau supremo do eró-
tico é encarnado em Dom Juan, que, segundo Kierkegaard, é um
esteta perfeito, que procura, não simplesmente prazeres sexuais,
mas que transforma em prazer o próprio prazer.
O tema sobre o Dom Juan – o objeto do primeiro volume de
Ou ético ou estético, naturalmente continua no Diário do sedutor.
De todos os tipos de amantes, Kierkegaard analisa, sobretudo, o
© U1 - Kierkegaard, Schopenhauer e Nietzsche 41

sedutor. Ele, em grau maior, encarna a essência estética do amor e


expressa plenamente a sua origem artística. A faculdade do esteta
de sentir prazer é dupla, é em primeiro lugar, do objeto externo,
e, depois, da sua própria personalidade. O sedutor sente prazer do
seu desejo e, enquanto se deleita ele já procura novo objeto. A
própria sedução é uma manifestação da arte. O sedutor não visa
ao sentido puramente fisiológico da sedução, ele detesta a força
bruta, ele é artista, a sua conduta faz com que a mulher deseje se
entregar a ele por pura vontade livre. É bem verdade que atrás dos
todos os truques do sedutor, de toda expressão artística da sua
conduta, se revela a sua tendência poética – de viver a dupla face
da sedução – estar dentro como principal atuante e contemplar,
como se estivesse por fora, a sua atuação. Ele é o herói principal e
a sua plateia ao mesmo tempo.
O jogo de sedução nos revela três aspectos, o que certamen-
te lembra a passagem dialética hegeliana. Todo desejo passa por
três etapas. No primeiro o desejo é um sonho; no segundo – uma
procura; no terceiro – uma realização do sonhado e do procura-
do. Apenas na terceira etapa o desejo encontra o seu objeto e se
identifica com ele. Se, na primeira etapa falta um objeto; se, no
segundo etapa o objeto se procura e se encontra no fundo da toda
diversidade, apenas na terceira, que é, grosso modo, síntese das
duas primeiras etapas, a realização é plena.
Kierkegaard, porém, não se satisfaz com a simples análise
da sedução e vai mais longe, tentando penetrar atrás da fenome-
nologia da existência estética. No segundo volume de Ou ético
ou estético, partindo da posição superior, isto é, da posição ética,
Kierkegaard procura as razões da existência estética e as encontra
na melancolia, no desespero e por fim, na descrença. A melancolia
é histeria do espírito, o seu deleite deriva da ambiguidade e inde-
terminação, da impossibilidade de se livrar do imediato. O melan-
cólico não sabe a causa da sua melancolia, não há nenhuma razão
visível. Da melancolia o homem ingressa na forma estética da exis-
tência. Da melancolia e do desespero. Frequentemente, conforme

Claretiano - Centro Universitário


42 © História da Filosofia Contemporânea II

Kierkegaard, o modo estético de existência em todos os seus as-


pectos, deriva do desespero, justamente o desespero se lança nos
braços do estético, pensando que ganha o mundo inteiro, sem ter
percebido que perdeu a sua alma.
Dom Juan é encarnação plena dessa vida estética, que se
norteia pela sensibilidade imediata. Todas as encarnações – literais
e teatrais do celebre cidadão de Sevilha mostram em que medida
ele é vivo na sua louca perseguição de prazeres. Conforme Ortega
e Gasset:
Desde quando surge a lenda de Dom Juan, não há povo, nem época
literária, não há pensador genial, grande poeta ou compositor, que
não se sentiu obrigado de enfrentar face a face com o coberto de
má fama espanhol. Como se tivessem todos sentindo que ao omitir
o abismo da sua alma, perderão o essencial das suas obras. Embo-
ra, pode-se dizer, que ele apresenta um dos poucos temas cardinais
da arte mundial que a Idade Média inventou e adicionou ao tesou-
ro sagrado da herança grego-romana" (s/d., p.48) .

Conforme Kierkegaard, Dom Juan de Mozart é a mais perfei-


ta encarnação do símbolo da sensibilidade imediata. Mozart foi o
primeiro e o único que compreendeu o demônio da erótica, como
força demoníaca, justamente por não ser desvinculado do espírito
(Cristianismo). Justamente nesse demônio a música encontra seu
objeto absoluto. A música é o ambiente do demoníaco e uma das
provas disso é que ela se mostra suspeita ao todo entusiasmo re-
ligioso.
Como pudemos perceber, o desespero, conforme o pensa-
dor dinamarquês, origina a forma estética da existência e com ela,
a sua mais forte expressão – a ironia – cujo mestre é Sócrates, ao
qual Kierkegaard dedica uma das suas primeiras obras fundamen-
tais – Sobre a noção de ironia, de 1841. Na sua análise sobre a iro-
nia, Kierkegaard lança a ideia de que a ironia é um estado humano,
uma forma de existência. A ironia é um estado de total negação,
não aceitação de nada, recusa de tudo. Ela é uma exigência de
ideal irrealizável. A finalidade da ironia não é fora dela, mas nela
mesma; a tarefa do irônico não se reduz em fazer os outros acre-
© U1 - Kierkegaard, Schopenhauer e Nietzsche 43

ditarem, mas a se libertar, de realizar a sua liberdade. Superando


o objeto e mostrando em todo momento que ele não é real, que
tudo ao redor dele é vazio, o irônico busca a sua liberdade na sua
infinita e absoluta subjetividade irônica. O irônico tende a se pre-
servar, escondendo-se atrás da sua independência de tudo, mas,
nos diz Kierkegaard, a ironia não salva, tampouco o irônico escapa
dela, pois a ela atrai o princípio da destruição de si mesmo – a
ironia de Sócrates, a sua consciência de que nada tem sentido da
vida substancial dos gregos encontra sua realização na autoironia
de Sócrates.
A ironia é destino, drama e, justamente nisso, ela se mani-
festa como existência. Mas ela – e isso nos adverte Kierkegaard
– não é um destino trágico, pois, além da simulação de existência
positiva que nela atua, se oculta a convicção profunda, que a vida
(como tudo ao redor dela), não há um valor precioso e, portanto,
mesmo a morte não é real, assim tornando-se vítima dos golpes
da ironia.
Conforme Kierkegaard, a ironia, apesar de ser uma forma es-
tética de existência, ela, em parte se vincula ao ético, com efeito,
preenche a fronteira entre as duas formas de existência. Segundo
o pensador dinamarquês, por um lado Sócrates é pura encarnação
do homem ético que escolha e realiza plenamente a sua liberdade;
por outro lado, como irônico, ele dissimula, ilude, joga – traços
expressamente estéticos. A ironia é uma forma estética de exis-
tência, pois nada a obriga a decidir; em sua infinita subjetividade,
ela guarda o seu direito de não se deter em nada a semelhança ao
sedutor kierkegaardiano – buscar sempre a nova conquista. Mas
a ironia – afirma Kierkegaard – tem outra face da qual brotam a
tristeza e a melancolia, pois ela é uma exigência de ideal, que julga,
mas não cumpre, exigência de legislação que não realiza. Por isso
o irônico é incapaz de realizar a sua liberdade plenamente, ele não
propõe nada positivo, não tem seu próprio projeto de vida e, por
isso, no final, se torna vítima da sua arma (a ironia).

Claretiano - Centro Universitário


44 © História da Filosofia Contemporânea II

Ético
O primeiro volume de Ou ético ou estético é escrito sob o
prisma do esteta, o segundo – sob o prisma do homem ético, que
deve mostrar a superioridade do seu foco sobre a sensibilidade
imediata do estético. Justamente esse dilema origina o próprio
título e a problemática do escrito. Semelhante ao príncipe dina-
marquês Hamlet, que coloca o dilema: ser ou não ser, o pensador
dinamarquês retoma tal dilema sob o mesmo registro – Ou – ou.
Mas a semelhança vai até certo ponto, visto que Hamlet não sabia
o que é melhor – ser ou não ser, ao passo que Kierkegaard dá o(s)
seu(s) pró(s) em prol do ético. Temos que frisar que o segundo vo-
lume (sobre ético) é escrito primeiro, mas na composição do livro
é colocado após o volume dedicado ao estético. Tudo isso para
mostrar os argumentos válidos contra a forma estética da existên-
cia. No entanto, Kierkegaard escreve tão bem sobre o estético que
deixa dúvidas a respeito das suas preferências existenciais.
No primeiro volume, sobre o estético, a análise do filósofo é
voltada ao amor em geral, desvinculado de normas e obrigações,
assim como ele se manifesta na vida do sedutor. No segundo volu-
me, sobre o ético, a análise do filósofo se dirige ao amor no casa-
mento amparado pela legislação institucional. E aí que o filósofo
vai mostrar a metamorfose do amor estético ao amor ético.
A apologia do casamento na filosofia de Kierkegaard tem um
significado rigoroso e destino certo. O amor no casamento é com-
parado com o amor estético, porém, o primeiro é privilegiado por
Kierkegaard por conter em si, componentes éticos e religiosos. O
casamento é a expressão suprema do estético, pois nele o estético
se realiza plenamente metamorfoseando em ético.
A diferenciação entre o homem ético e estético é, segundo
Kierkegaard, essencial. O esteta vê em todo lugar possibilidades,
ao passo que o homem ético – deveres. O traço marcante da exis-
tência ética é a escolha. A escolha é o elemento da vivência que
alicerça toda filosofia kierkegaardiana. O ato supremo do homem
© U1 - Kierkegaard, Schopenhauer e Nietzsche 45

como ser ético se revela na escolha. Em outro sentido, Kierkegaard


identifica o homem com a sua liberdade, com a possibilidade de
fazer seu próprio modo de ser, escolhendo entre os dilemas – por
isso o título da sua obra principal – Ou – ou.
Diante do homem, incessantemente e durante a sua vida in-
teira surgem dilemas que ele tem de resolver. Escolher entre várias
alternativas e ser responsável pelas escolhas realizadas, isso já é
a expressão ética da existência. É claro que o esteta também es-
colhe, mas a sua escolha se efetua espontaneamente ou se perde
na diversidade de objetos de escolha, o esteta se prende no mo-
mento que escolhe, porém, muda conforme a compreensão ime-
diata da realidade. Dito de outra maneira, o homem estético não
escolhe, mas é escolhido e levado pelos eventos, ele é totalmente
dependente deles.
A escolha, conforme entende o filósofo, é limitação, deter-
minação da decisão, passagem do âmbito estético para o ético, da
liberdade da existência imediata que se norteia pela imaginação,
para a necessidade e responsabilidade de tomar decisão em que
a realização do pessoal substitui o jogo da imaginação. A escolha
real, segundo Kierkegaard, é possível somente no âmbito da éti-
ca.
Na filosofia de Kierkegaard, o homem ético é sinônimo do
homem que escolhe, ao passo que o contrário é a escolha não re-
alizada – a falta de individualidade, de personalidade, de estética.
Justamente por isso o filósofo atribui à escolha um significado exis-
tencial.
Temos que sublinhar que a concepção kierkegaardiana do
ético é oposta a de Kant. Para o filósofo könisberguiano, o conhe-
cimento, o bem e o belo em toda sua interligação, são justificados
enquanto não contradizem o universal e o necessário. Na concep-
ção kierkegaardiana, a escolha, como traço fundamental do ético,
se induz do sujeito e não tem qualquer ponto de apoio universal
e necessário, mas deriva da existência e, por isso, tem dimensão
existencial.

Claretiano - Centro Universitário


46 © História da Filosofia Contemporânea II

Grosso modo, podemos dizer que Kierkegaard rompe com a


tradição clássica alemã e a sua filosofia do absoluto. Para ele, úni-
co absoluto é o homem, e quando este escolhe o absoluto, escolhe
a si mesmo em seu eterno significado humano.
No final da sua obra principal, teoreticamente se esboça
a passagem do ético para religioso – o grau superior da existên-
cia humana. O motivo do religioso será detalhadamente tratado
numa outra obra importantíssima do filósofo dinamarquês – Te-
mor e tremor, de 1843. Nesta obra se recusa a possibilidade do éti-
co compreender o religioso. O grau religioso é descrito por Kierke-
gaard como a mais grandiosa paixão do homem, que abrange a
vida como a realidade mais essencial da existência individual. Visto
assim, o estético e ético se apresentam somente como graus na
direção dessa existência perfeita. Se o homem estético é preso na
exterioridade sensível; se o homem ético se volta à vida interior e
na escolha realiza sua moral; apenas o homem religioso que se en-
trega à vontade divina, plenamente realiza a si mesmo. Se em "Ou
– ou" o ético toma vantagem sobre o estético, essa superioridade
é somente no âmbito da relação estético-ético. A forma religiosa
dispensa a escolha, pois não está sob o domínio do ou – ou, isto é,
das alternativas. O estado religioso é plena entrega de homem ao
Deus que se realiza pela fé.
Para personificar essa forma superior da existência humana,
Kierkegaard lança mão da figura do Abraão. Como a forma estética
encontra a sua personificação mais completa em Dom Juan, que é
o mais terrestre de todos, assim a forma religiosa é personificada
por Abraão que é o mais fiel entre todos os fiéis.
Abraão – o cavaleiro da fé – é o exemplo mais perfeito da
existência religiosa, que é disposto a sacrificar o seu próprio filho
– o mais precioso bem que ele possui – sem pensar, sem escolher,
sem estar diante de um ou – ou, em nome da fé. A conduta de
Abraão não é ética, pois, do ponto de vista moral ele não deveria
© U1 - Kierkegaard, Schopenhauer e Nietzsche 47

ceder ao mando do soberano. Pelo prisma do estético, o cavaleiro


da fé, seria louco, pelo prisma moral – maldoso e terrível, pai sem
responsabilidade. Somente pelo prisma religioso Abraão é herói.
Nenhuma reconciliação entre esses prismas diferentes é possível.
Decidido a sacrificar Isaac, Abraão abandona o âmbito ético.
Diferentemente do herói trágico que sacrifica a si mesmo em
prol do bem comum, Abraão não realiza nada para o bem comum
ele permanece sozinho no fundo da sua própria existência. O herói
trágico, afirma Kierkegaard, é grandioso pelo exemplo moral que
ele dá. Abraão é grandioso por virtude de uma convicção pessoal
que se norteia pela sua existência como um indivíduo único. As
ideias do filósofo dinamarquês podem parecer bem compreensí-
veis, se pensarmos que para ele, a existência religiosa está acima de
qualquer existência geral e social em que o ético se realiza. Abraão
realiza a relação absoluta do indivíduo com o absoluto (Deus).
Conforme Kierkegaard, o traço fundamental da fé é o absur-
do. O absurdo, afirma o filósofo, é objeto da fé e ele é o único obje-
to em que se pode ter fé. Abraão sobe a montanha, decidido a sa-
crificar o seu filho em nome de Deus. Nenhum pensamento pode
compreender esse ato, pois a fé começa justo onde o pensamento
termina. A razão tem de ser negada, pois somente livre do poder
da razão, afirma Kierkegaard, é possível ganhar Deus. Creio, pois é
absurdo – eis o ponto conclusivo da filosofia de Kierkegaard.

6. SCHOPENHAUER
Schopenhauer é um dos mais célebres pensadores do século
19 que traçam caminho novo no itinerário filosófico. Partindo da
tradição filosófica reinante, herdeiro da filosofia clássica alemã e
seu caráter sistemático, Schopenhauer cria um sistema, rigorosa-
mente dividido em quatro partes tradicionais, a saber: ontologia,
gnosiologia, ética e estética.

Claretiano - Centro Universitário


48 © História da Filosofia Contemporânea II

Em 1818, na idade de 30 anos, Schopenhauer termina sua


obra prima O mundo como vontade e
representação. A partir daí tudo que
o filósofo escreverá será uma espécie
de "rodapé" acerca da sua obra prin-
cipal. Podemos dizer que ele é um
exemplo raro de pensador que con-
seguiu incorporar as influências de
dois pensadores tão diferentes como
Platão e Kant e, ao mesmo tempo,
criar uma filosofia original, que por
sua vez, exerce influência tamanha
sobre a filosofia posterior. Na realida- Figura 2 – Arthur Schopenhauer
de, segundo o filósofo, os dois siste-
mas (de Platão e Kant) não são tão diferentes. Os pontos de con-
vergência entre ambos, segundo Schopenhauer, se podem reduzir
em termos de um dualismo expresso, grosso modo, pelos concei-
tos de aparência e essência. A saber: a divisão feita por Platão de
mundo das ideias e mundo das coisas sensíveis seria correspon-
dente ou quase correspondente à divisão de fenomênico e de coi-
sa em si de Kant. Schopenhauer não poupa louvores quando a
questão é Kant, que ele considera o maior pensador europeu e sua
Critica – o livro mais europeu, inaugura o verdadeiro início da filo-
sofia europeia:
O maior mérito de Kant, [diz o filósofo] é a distinção entre o fenô-
meno e a coisa em si, com base na demonstração de que, entre as
coisas e nós, está sempre ainda o intelecto que faz com que elas
não possam ser conhecidas segundo aquilo que seriam em si mes-
mas (SCHOPENHAUER, 1997, p. 120).

É curioso o fato de o irracionalista Schopenhauer ter deno-


minado o período entre Kant e ele de época de pseudofilosofia.
Essa crítica à filosofia clássica pós-kantiana deve-se, certamente, a
uma reação contra as frustrações do filósofo em sua carreira aca-
dêmica. Nesse âmbito acadêmico, o filósofo passa por inúmeras
decepções. Os fracassos na vida acadêmica levam Schopenhauer a
desistir do ambiente acadêmico e a se dedicar em escrever livros.
© U1 - Kierkegaard, Schopenhauer e Nietzsche 49

No entanto, o resultado é o mesmo – grande fracasso! As obras de


Schopenhauer passam despercebidas até o final da sua vida. Só
postumamente elas serão reconhecidas e colocadas no seu devido
lugar, no templo das obras clássicas da filosofia.
Dentre as obras do célebre pensador, estão as citadas a se-
guir:
a) Em 1813, Schopenhauer obteve seu título de doutor na
Universidade de Berlim com a obra Sobre a raiz quádru-
pla do princípio da razão suficiente.
b) Em 1816, em decorrência da influência de Goethe, com
quem tinha amizade, Schopenhauer escreve Sobre a Vi-
são e as Cores, obra na qual, grosso modo, se revela um
espírito antinewtoniano.
c) Em 1818, o filósofo publica a sua obra principal, O mun-
do como vontade e representação.
d) Em 1836, Schopenhauer publica o ensaio Sobre a von-
tade da natureza como uma espécie de complemento à
sua maior obra.
e) Em 1841, publica a obra Os dois problemas fundamen-
tais da ética.
f) Em 1851, publica a sua última obra, Parerga e Paralipo-
mena, composta por pequenos ensaios sobre diversas
temas: literatura, filosofia, política etc.
As obras de Schopenhauer, que, como já foi dito só alcançam
notório sucesso no final da sua vida, influenciaram, além da Ale-
manha, todo o pensamento europeu.

A Representação

Como já notamos, O Mundo como Vontade e Representa-


ção é a obra fundamental de Schopenhauer. Temos que frisar que
quando Schopenhauer chegou ao conceito da vontade, buscava
uma resposta para a questão do verdadeiro sentido das represen-
tações.

Claretiano - Centro Universitário


50 © História da Filosofia Contemporânea II

Schopenhauer pretende ser criador de uma filosofia nova,


completamente diferente da tradicional que parte ou do sujeito
ou do objeto. Segundo o filósofo, o ponto de partida tem de ser a
representação que, contém, ao mesmo tempo, tanto objeto como
o sujeito, pois sem sujeito não há objeto e vice-versa:
Segue-se que, um único sujeito, mais o objeto, chegariam para
construir o mundo considerado como representação, tão comple-
tamente como os milhões de sujeitos que existem; mas, se este
único sujeito que percebe desaparecer, ao mesmo tempo, o mundo
concebido como representação desaparecerá também. Estas duas
metades são, portanto, inseparáveis, mesmo em pensamento; cada
umas delas é apenas real e inteligível pela outra e para a outra; elas
existem e deixam de existir em conjunto (SCHOPENHAUER, 2001,
p. 11-12).

É claro, não seria difícil reconhecer no fundo da ideia de re-


presentação a dualidade kantiana de fenômeno e coisa em si.
Diferentemente da representação, ou seja, o mundo tal
como se manifesta para nós, conforme o filósofo, há outro mundo,
tal como é em si mesmo, que ele denomina de vontade. Justamen-
te por isso, Schopenhauer denomina a sua filosofia de metafísica,
noção que depois de Kant, assinala todo conhecimento que ultra-
passa os limites da experiência.
Schopenhauer considera o intelecto e a matéria como corre-
latos, pois cada um deles existe para o outro, isto é, como reflexo
do outro. Essencialmente, porém, ambos são uma e a mesma coi-
sa, porém considerados sob um prisma diferente. Segundo Scho-
penhauer, a matéria é a vontade, não por si mesma, mas enquanto
contemplada, isto é, enquanto assume a forma da representação
objetivada. Assim resulta, por um lado, que a matéria é represen-
tação do sujeito cognoscível, e, por outro, que o sujeito cognoscí-
vel é produto da matéria. Em última instância, a matéria depende
da representação e existe somente nela.
Para compreendermos melhor a concepção schopenhaue-
riana, precisamos fazer uma breve análise sobre as teorias de Kant
e Schopenhauer.
© U1 - Kierkegaard, Schopenhauer e Nietzsche 51

Apesar de considerar Kant como o maior de todos os filóso-


fos europeus, Schopenhauer submete à critica a teoria kantiana
em dois pontos:
1) O primeiro tange à afirmação kantiana de que o fenômeno
seja causado pela coisa em si. Com efeito, Schopenhauer
rejeita qualquer transcendência, visto que, segundo
ele, atrás do fenômeno (representação) não há nada de
transcendente que poderia se denominar coisa em si.
Em última análise, os fenômenos são meras ilusões da
vontade e nada há que possa firmar o status ontológico
deles.
2) Diferentemente de Kant, Schopenhauer afirma que a in-
tuição se origina do entendimento e não dos sentidos.
Segundo ele, não existe dado sensível, pois, o dado é
mera ilusão. Essa é a razão pela qual Schopenhauer abo-
le a intuição sensível. A intuição, afirma ele, é obra do in-
telecto, pois sem a participação do intelecto ela não terá
qualquer representação. E considerando que o intelecto
seja submetido à vontade, ele não é capaz de produzir
nada além de meras representações.
Temos que sublinhar que justamente o entendimento é
que liga o tempo e o espaço (pensados por Kant como princípios
constituintes da intuição sensível) na representação da matéria. O
mundo como representação, não só existe para o entendimento,
mas, antes, através dele.
Schopenhauer considera dois tipos de representações:
• Representação intuitiva.
• Representação abstrata.
A primeira se origina pelo principio da razão suficiente do
devir, isto é, a lei causal. Esta une o espaço e tempo e é ligada,
justamente por isso, ao ser, à experiência e à matéria. A causalida-
de, grosso modo, é a limitação recíproca do espaço e do tempo, a
saber, o vínculo que une os dois. Do espaço, a matéria recebe sua
forma, isto é, a permanência; do tempo a própria ação. A atividade
da matéria só é perceptível se remetida a uma permanência que

Claretiano - Centro Universitário


52 © História da Filosofia Contemporânea II

lhe fornece um conteúdo determinado e que se constitui na mu-


dança de estados. Grosso modo, trata-se de preencher as formas
vazias do tempo e do espaço para construir o modo do devir:
Cada instante da duração (tempo), por exemplo, só existe com a
condição de destruir o precedente que o engendrou, para ser tam-
bém, em breve, por sua vez anulado; o passado e o futuro, abstra-
ção feita das conseqüências possíveis daquilo que eles contem, são
coisas tão vãs como o mais vão dos sonhos, e o mesmo se pode
dizer do presente, limite sem extensão e sem duração entre os dois.
Ora, nós encontramos esse mesmo nada em todas as outras formas
do principio da razão; reconheceremos que o espaço tal como o
tempo e tudo o que existe ao mesmo tempo no espaço e no tempo,
em uma palavra, tudo o que tem uma causa ou um fim, tudo isso
apenas possui uma realidade puramente relativa: a coisa, com efei-
to, apenas existe em virtude ou em vista de uma outra da mesma
natureza que ela é submetida em seguida à mesma relatividade
(SCHOPENHAUER, 2007, p. 14).

Nesses termos, fica claro que conhecer por causas signifi-


caria, então, o conhecimento espaço temporal, e esta forma de
conhecimento é de domínio do entendimento; por esse motivo
Schopenhauer a chama representação intuitiva, contrariando seu
inspirador:
As coisas individuais são intuídas como tais no entendimento e atra-
vés dos sentidos: a impressão unilateral sobre estes é, então, logo
completada pela imaginação. Mas, logo que passamos ao pensar,
abandonamos as coisas individuais e estamos às voltas com concei-
tos universais, sem intuitividade; mesmo se, depois, aplicarmos os
resultados de nosso pensamento às coisas individuais. Tendo esta-
belecido isto, evidencia-se a inadmissibilidade da hipótese de que
a intuição das coisas só adquira realidade através do pensamento
dessas mesmas coisas, e se torne experiência, pela aplicação das
doze categorias. Pelo contrário, a realidade empírica, portanto, a
experiência, já está dada na própria intuição: só que a intuição só
pode realizar-se mediante a aplicação do conhecimento do nexo
causal, que é a única função do entendimento, à sensação dos sen-
tidos. A intuição é, portanto, efetivamente intelectual, o que justa-
mente Kant nega (SCHOPENHAUER, 1997, p. 145).

Por sua vez, a representação abstrata é ligada às operações


racionais e origina termos, palavras e conceitos. Essa espécie de
representação abstrata deve sua origem à intuição intelectual, da
qual, pela abstração da realidade sensível, se formam os conceitos
abstratos:
© U1 - Kierkegaard, Schopenhauer e Nietzsche 53

Resumindo: na primeira parte da sua obra principal Mundo


como vontade e representação, intitulada O mundo como repre-
sentação, Schopenhauer encara o mundo como objeto no âmbito
do principio da razão que atua nas faculdades cognitivo-represen-
tativas do intelecto. Estes configuram o mundo de modo próprio
para ser conhecido, porém, como representação. Na segunda par-
te, ao tratar da vontade como essência mais primeva do mundo,
como coisa em si, Schopenhauer instaura a impossibilidade do seu
conhecimento enquanto coisa-em-si. A vontade é a profunda e
cega força obscura que atua no fundo do ser e não cede às formas
da razão. Assim, ela adquire um estatuto alógico e irracional. Por-
tanto, o mundo como em-si seria o mundo "sem razão", sem sen-
tido para o intelecto humano. O dinamismo da vontade se revela
pela guerra perpétua de existência entre suas formas fenomênicas
(representações), que são nada mais do que a própria vontade.
Então, conforme Schopenhauer, a guerra se dá entre a vontade e
ela mesma:
Nessa luta perpétua compreendemos como a vontade se divorcia
dela mesma. Esta imagem de combate da guerra perpetua que
sustenta a vida é fundamental da sua visão pessimista da existên-
cia. [...] o caráter da vontade do em-si é essa luta, uma luta vã. Ele
(Schopenhauer) gostaria que esse caráter realmente não existisse
(BRUM, 1998, p. 26).

A falta de sentido no mundo faz de Schopenhauer um pes-


simista por excelência. No entanto, ele encontra uma forma de
salvação. Esta, de origem eudemonista, enuncia-se a partir da ne-
gação da vontade, isto é, do principio vital. Em outras palavras,
Schopenhauer faz apologia à morte voluntária: "a existência é uma
dívida perpétua que só a morte paga inteiramente [...] o mundo é
o pior dos mundos possíveis" (SCHOPENHAUER, 2001, p. 11-12).

A vontade
A vontade, conforme a concepção filosófica de Schope-
nhauer, é a essência mais primeva do mundo, causa de todos os
fenômenos. Ela é caracterizada como eterna, atemporal, não en-

Claretiano - Centro Universitário


54 © História da Filosofia Contemporânea II

velhece, nem se destrói. Ela não tem conotação física, mas, sim,
metafísica. Ela é sempre igual a si mesma e apesar das suas ma-
nifestações diversas, ela não conhece diferenciação interna. Essas
reflexões do filósofo são baseadas no fato de que, se a toda di-
ferença pressupõe algo dado, isto é, algo real, e visto que tudo
no mundo fenomênico é representação e, esta, por sua vez, não
passa de ilusão, tudo seria vontade.
Para resolver a contradição que se desenha entre a vonta-
de una e suas manifestações diversas, Schopenhauer se utiliza de
uma noção advinda do pensamento oriental – o conceito de Maya
– a capacidade das personagens divinas de se transformarem e
encarnarem em formas diferentes – que expressa, grosso modo, o
símbolo da ilusão do ser. Diz Schopenhauer:
E Maya é o véu da ilusão, que, ao cobrir os olhos dos mortais, lhes
faz ver um mundo que não se pode dizer se existe ou não existe, um
mundo que se assemelha ao sonho, à radiação do sol sobre a areia,
onde, de longe, o viajante acredita ver uma toalha de água, ou ain-
da a uma corda atirada por terra, que ele toma por uma serpente
(SCHOPENHAUER, 2001, p. 14).

A inspiração oriental que norteia o pensamento schope-


nhaueriano certamente cabe bem a esse dualismo instaurado pelo
filósofo e expressa metaforicamente a ilusão da existência enquan-
to representação embasada no principio da razão.
Essa mesma verdade, reapresentada de modo totalmente outro, é
também um dos ensinamentos principais dos Vedas e dos Puranas,
a doutrina de Maya, pela qual não se entende outra coisa senão
justamente o que Kant chama de fenômeno, em contraposição a
coisa em si: pois a obra de Maya é apresentada como este mundo
visível no qual estamos, uma magia suscitada, uma aparência ines-
sencial e inconsistente, comparável à ilusão de ótica e aos sonhos,
um véu que envolve a consciência, um Algo do qual é igualmente
falso e igualmente verdadeiro dizer que ele é, ou que ele não é
(SCHOPENHAUER, 1997, p. 121).

Portanto, a essência interna de cada coisa é a vontade. Sendo


ela coisa em si mesma, ela, segundo Schopenhauer, não se conhe-
ce inteiramente, mas se manifesta através da representação feno-
mênica. Segundo isso, toda atividade do nosso corpo e da razão é
© U1 - Kierkegaard, Schopenhauer e Nietzsche 55

manifestação da vontade, pois, na sua essência mais profunda, ela


é sempre vontade de viver. Os graus da objetivação da vontade nas
coisas individuais se manifestam como movimentos que tendem a
alcançar às inalcançáveis formas eternas – as ideias (próximo do
sentido platônico).
Temos que ressaltar que com surgimento do homem e sua
consciência, o mundo, que até então era só vontade, torna-se re-
presentação. Grosso modo, trata-se de uma subordinação do prin-
cípio da razão à vontade, assim como se a vontade, para alcançar as
suas metas, se utilizasse do seu servo – "a razão", manipulando-o
a ver e pensar aquilo que é do seu proveito. Justamente por isso, o
mundo fenomênico, das representações, não passa de uma ilusão,
e faz com que o intelecto humano veja coisas que são expressões
ilusórias das encarnações da Maya, que no fundo é nada mais do
que a vontade una.

Relação vontade – intelecto


Conforme Schopenhauer, todos os filósofos anteriores falha-
ram no pressuposto de que a essência do homem está no intelec-
to, ao contrário, o ser humano é, antes de tudo um ser que deseja
e, portanto, é um ser guiado pela vontade. Assim, ele instaura o
primado da vontade sobre o racional. Não seria sem fundamen-
to afirmarmos que justamente essa filosofia voluntarista aparece
como precursora da psicologia profunda e das concepções psica-
nalíticas de Freud.
A concentração real da vontade humana Schopenhauer en-
contra no sexo. Justamente pelo sexo, a coisa em si (a vontade)
se transforma em fenômeno. Por meio do ato sexual, que é ex-
pressão da vontade, esta se transforma em representação. Assim
o impulso sexual como um impulso criativo seria concebido por
Schopenhauer como meio da conservação da espécie, que é dita-
da pela vontade. Esta, utilizando-se do individuo, ou melhor, mani-
pulando-o, alcança seu principal objetivo:

Claretiano - Centro Universitário


56 © História da Filosofia Contemporânea II

A natureza só pode atingir o seu objetivo fazendo nascer no


indivíduo certa ilusão, graças a qual ele considera como uma van-
tagem pessoal o que na realidade é apenas vantagem para a espé-
cie, do mesmo modo que é para a espécie que ele trabalha quando
imagina trabalhar para ele mesmo.
Tal concepção, por sua vez, impõe algumas inversões da tra-
dicional visão da imortalidade da alma vinda da filosofia de Pla-
tão. O irracionalismo schopenhaueriano estabelece que mortal no
homem é só intelecto, ao passo que a vontade é imortal. Depois
da morte do individuo, a vontade se encarna em outra individua-
lidade. A maior prova disso é, segundo o filósofo, a existência das
gerações.
A vontade está além do espaço, do tempo e da causalidade
e, portanto, inacessível para o sujeito cognoscível. Essa inacessibi-
lidade resulta na impossibilidade do seu conhecimento. A vontade
movimenta as nossas representações e oprime o seu escravo – o
intelecto – de trabalhar e ordenar os nossos pensamentos, porém,
num nível fenomenal. A função principal do intelecto é servir à
vontade.

O caminho para a salvação


Estética
Para Schopenhauer, o fluxo eterno da vida revela um pesa-
delo, uma eterna guerra, um conflito perpétuo entre seus fenô-
menos que desvela o caráter trágico da existência. Apesar de o
descobrir, Schopenhauer não aceita esse caráter trágico, o que o
leva a negação da vontade, nega o mundo assim como ele é, des-
crito por ele.
Portanto, se a vontade está no fundo do ser, esta é respon-
sável pela dor, pelo sofrimento transformando a vida em absurdo,
tornando-a sem lógica, irracional. Então, pelo tragicismo da vida,
pela mesma dor e sofrimento, Schopenhauer é conduzido a re-
© U1 - Kierkegaard, Schopenhauer e Nietzsche 57

nunciar à vontade, negando a vida. A negação da vontade no indi-


viduo se realiza por meio da negação do eu, o eu que é sujeito aos
desejos dessa mesma vontade. Uma das vias da negação do eu se
apresenta na arte. Na sua concepção estética, que, grosso modo,
exerce uma função libertadora dos grilhões da vontade, é conce-
bida por Schopenhauer em estilo kantiano, como contemplação
desinteressada, com efeito, como uma meditação livre sem qual-
quer objetivo ou interesse. Assim, o eu, que é sujeito de interesses
e desejos deixa, na contemplação artística, de ser eu, perdendo-se
nela. Segundo Schopenhauer, na contemplação estética não exis-
te nenhum desejo, o sujeito puro e involuntário se entrega unica-
mente ao conhecimento advindo da arte.
Onde Kant vê o estético como sendo livre de qualquer in-
teresse, Schopenhauer descobre o intelecto como sendo livre da
vontade. Justamente essa liberdade do intelecto revela e constitui,
segundo o filósofo, o prazer estético.
Na contemplação artística ou na atividade do gênio, a pró-
pria consciência deixa de ser individual, isto é, deixa de ser guiada
pelo querer individual e se transforma em puro sujeito, livre da
vontade, do tempo e do movimento, que percebe não algo concre-
to, mas a própria ideia. Na sua obra, o gênio rejeita a sua vontade.
A sua principal característica, conforme entende Schopenhauer, é
negar a si mesmo e diluir-se no mundo. A genialidade é expressão
da capacidade de alcançar a pura contemplação em que a vontade
desaparece, libertando assim o conhecimento que no início serviu
à vontade. Rejeitando a sua personalidade, desistindo de si mes-
mo, o gênio se transforma em um sujeito puramente cognoscível
que rasga o véu do mundo fenomênico penetrando no âmbito das
ideias. A contemplação artística apresenta uma via para o indiví-
duo se libertar da submissão pessoal do querer da vontade, de
renunciar o eu. Assim, o indivíduo consegue desprender-se dos
fragmentos fenomenais que vagueiam em aparências ilusórias,
penetrando no "claro espelho do ser do mundo", que "fixa em fór-
mulas eternas o que flutua na vaga das aparências".

Claretiano - Centro Universitário


58 © História da Filosofia Contemporânea II

A tragédia como arte suprema


No §51 de O mundo como vontade e representação, em que
Schopenhauer esboça uma espécie de classificação das artes, a
tragédia terá o lugar privilegiado entre os gêneros poéticos. Ela,
no entendimento schopenhaueriano, denuncia, grosso modo, o
caráter pecador da toda existência, a crueldade da vida irracional
e serve como estimulante catártico para a renúncia da vida. Esta
sabedoria trágica chega ao seu ápice no herói trágico:
Enfim, nos seres excepcionais, o conhecimento, purificado e ele-
vado pelo próprio sofrimento, chega a esse grau em que o mundo
exterior, o véu de Maya, já não pode enganá-lo, em que vê claro
através da forma fenomenal ou princípio de individuação. Então,
o egoísmo, conseqüência deste princípio, desaparece com ele; os
'motivos', outrora tão poderosos, perdem o seu poder, e no seu lu-
gar, o conhecimento perfeito do mundo, agindo como calmante da
vontade, conduz à resignação, a renúncia e mesmo à abdicação da
vontade de viver. É assim que na tragédia vemos as naturezas mais
nobres renunciarem, após longos combates e longos sofrimen-
tos. Aos fins perseguidos tão ardentemente aí, sacrificarem para
sempre as alegrias da vida, ou mesmo desembaraçarem-se volun-
tariamente e com alegria do fardo da existência. (...) todas essas
personagens morrem purificadas pelo sofrimento, isto é, quando a
vontade de viver já está morta nelas.

Vê-se, pelo trecho citado, que a tragédia atua como purifica-


dor e acelerador da renúncia da vida. A dor e o sofrimento que a
tragédia suscita levam, em última consequência, a renúncia.
Mas há outra renúncia, que, em comparação da renúncia
suscitada pela arte, não é questão de um estado provisório, mas
sim, de um estado permanente. Tal estado de pura ausência do
querer torna-se privilégio do santo.
O santo e a Ética da compaixão
No final do livro 4 de O mundo como vontade e representa-
ção, Schopenhauer, propondo uma moral de renúncia ao mundo
por meio de uma prática religiosa, ascética ou budista, como for-
ma de escapar do círculo vicioso da existência, isto é, do eterno
retorno de desejos e sofrimentos, afirma:
© U1 - Kierkegaard, Schopenhauer e Nietzsche 59

Uma vez conduzidos, pelas nossas especulações, a ver a santidade


perfeita na negação e no sacrifício de todo querer, uma vez liberta-
dos, graças à convicção, de um mundo cuja essência total se reduz
para nós à dor, a ultima palavra da sabedoria consiste, para nós,
daqui em diante, apenas em nos afundarmos no nada. [...] então,
em vez da impulsão e da evolução sem fim, em vez de passagem
eterna do desejo ao receio, da alegria à dor, em vez de esperança
nunca farta, nunca extinta, que transforma a vida do homem, num
verdadeiro sonho, nós percebemos essa paz mais preciosa que to-
dos os bens da razão, esse oceano de quietude, esse repouso pro-
fundo da alma... É, portanto, bom meditar sobre a vida e os atos
dos santos [...].

A ética de Schopenhauer visa, em última análise, à libertação


do homem do sofrimento da existência, por meio de uma prática
acética, cujo objetivo será negação da individualidade que, por ser
sujeito do querer da vontade, acende o egoísmo. Este, por sua vez,
faz com que o homem seja inimigo do homem e da existência –
uma guerra perpétua.
A superação desse estado terrível da existência, torna-se
possível, a partir de uma ética da compaixão, que inspira a renún-
cia ao mundo e tudo provindo dele.
Na ética da compaixão, o sujeito sente que todos os sofri-
mentos espalhados pelo mundo são também seus, sendo que, a
individualidade já está suprimida. A verdadeira compaixão é desin-
teressada, pois, ela não advém de um interesse próprio. O estado
de recusa de todo querer é o ascetismo que é a radical negação
da sua própria essência. Em outras palavras, o ascetismo postula a
renúncia completa dos desejos, por meio de uma espécie de auto-
flagelação, cujo resultado é aniquilamento da vontade.
Conforme Schopenhauer, o ascetismo passa por quatro eta-
pas que, grosso modo são:
• A castidade.
• Pobreza voluntária.
• Aceitação do sofrimento.
• Passiva extinção do corpo.

Claretiano - Centro Universitário


60 © História da Filosofia Contemporânea II

Devemos frisar que esta última etapa é totalmente contrá-


ria ao suicídio, pois, se este é um resultado que visa ao deixar de
viver, por não conseguir deixar de querer, o asceta deixa de viver
em consequência que conseguiu deixar de querer. A recusa total
da vontade e do querer individual, em última instância, leva, jun-
to com o desaparecimento do sujeito, desaparecimento do objeto
também. A individualidade sucumbe em prol de uma união com o
absoluto, com o universo, com o Uno sagrado.

7. NIETZSCHE
Para os pensadores e artistas, a vida de Nietzsche é tão inte-
ressante quanto a suas ideias. Essas
ideias influenciaram várias gerações
da intelectualidade europeia do final
do século 19 e início do século 20,
tornando-se fonte inesgotável que
alimenta as ideias dos futuros pen-
sadores, escritores e artistas. A vida
de Nietzsche também não passa
omissa. Thomas Mann chama seu
Doutor Fausto – sua obra prima – ro-
mance de Nietzsche. A ideia de
Nietzsche sobre vida vista como Figura 3 – Nietzsche
obra de arte, é enunciada como se
tivesse sido inspirada em sua própria
vida.
Nascido num pequeno vilarejo na Alemanha, Röcken, em
1844, numa família de pastores protestantes, Nietzsche, em 1864,
termina o célebre colégio de Pforta, onde, antes dele, estudaram
celebridades como Fichte, Schlegel, Novalis e outros. Em seus es-
tudos posteriores Nietzsche se divide entre a teologia e a música,
mas, por fim, escolhe filologia clássica para permanecer fiel, para
sempre, à antiguidade. Após alguns anos de estudo nas Univer-
© U1 - Kierkegaard, Schopenhauer e Nietzsche 61

sidades de Bonn e de Leipzig, em 1869, com apenas 24 anos de


idade, o jovem filólogo é contratado como professor de filologia
clássica na Universidade de Basiléia. Poucos anos depois, por mo-
tivos de saúde, ele desiste da carreira acadêmica, aposenta-se e
passa a viajar em busca de melhores condições para a sua saúde,
percorrendo diferentes cidades europeias. Nessas viagens e na
companhia de dores e sofrimentos, Nietzsche escreve, uma depois
da outra, obras, compostas por aforismos e reflexões críticas sobre
a moral, a religião, o Estado etc. Em 1889, na idade de 45 anos,
Nietzsche, definitivamente, perde a sua consciência e permanece
assim mais 11 anos, até 1900. Tal é a tragédia desta vida e talvez
ela seja uma das fontes mais reais do interesse de Nietzsche sobre
a tragédia que começa com a sua obra de Juventude – O Nasci-
mento da tragédia e permanece até o final da sua vida.
Temos que frisar, antes de mais nada, que Nietzsche não é
um filósofo que se pode associar ou enquadrar no leito da filosofia
tradicional. Não se pode deixar de notar, em todos os seus escri-
tos, o tom crítico sobre toda tradição cultural em todos os seus
aspectos. Ele, criticamente, define toda a história ocidental como
história do niilismo, por esta ter gradativamente negado toda exis-
tência em prol de instâncias transcendentes. Partindo do volun-
tarismo schopenhaueriano e seu principal aspecto – a vontade
–, Nietzsche, surpreendentemente, revela-se como um pensador
oposto ao seu precursor. Enquanto Schopenhauer negava o sen-
tido da vida, reduzindo-a em dor e sofrimento, em algo que não
vale a pena ser vivido, e encontrava a salvação no ato da negação
da vontade, Nietzsche, ao contrário, insiste à vida e a justifica seu
devir a partir de um foco estético, como imagens passageiras da
beleza. E, neste sentido, soam bastante convincente as palavras de
Nietzsche: "O mundo e a vida são justificados eternamente como
fenômenos estéticos".

Claretiano - Centro Universitário


62 © História da Filosofia Contemporânea II

Períodos
Grosso modo, podemos assinalar três períodos da evolução
intelectual do pensamento nietzschiano, a saber:
• Escritos sobre os gregos – incluindo obras como O Nasci-
mento da tragédia, A filosofia da época trágica dos gre-
gos, o Drama musical grego, até Considerações contem-
porâneas, todos datados do período juvenil de Nietzsche
– um período de transição de filologia para a filosofia.
Neste período brotam ideias importantes que permeiam
os escritos posteriores do filósofo, como por exemplo, o
conceito de trágico, o dionisíaco, a transvaloração dos va-
lores, o conceito de eterno retorno, entre outros.
• O segundo período da gênese do pensamento nietzschia-
no ocupa-se com a crítica radical do niilismo. Este período
destaca o espírito crítico do filósofo. Eis algumas obras
deste período: Humano, demasiado humano, Aurora,
Gaia Ciência, O andarilho e a sua sombra, Aurora.
• Terceiro período, isto é, o período da maturidade, anuncia
a tentativa da superação do niilismo postulado pela tradi-
ção a partir dos conceitos do eterno retorno, vontade de
potência e além do homem. As obras que estão de acordo
com esse período são: Assim falou Zaratustra, Para além
do bem e mal, Para a Genealogia da moral, Crepúsculo
dos ídolos, O anticristo, Ecce Homo etc.
A questão da periodização das obras de Nietzsche é bastante
complicada e envolve diversas controvérsias sobre o assunto, visto
que existem muitas obras que envolvem partes e capítulos escritos
em diferentes períodos. Além disso, existe uma quantidade consi-
derável de escritos não publicados durante a sua vida, conhecidos
como póstumos. De qualquer maneira, nossa abordagem será nor-
teada à periodização citada anteriormente, como sendo conside-
ravelmente aceita.
© U1 - Kierkegaard, Schopenhauer e Nietzsche 63

O nascimento do trágico
O primeiro período dos escritos nietzschianos revela um for-
te interesse a uma retomada ao modelo grego suscitado, sobretu-
do dos seus estudos filológicos sobre antiguidade. A obra em des-
taque deste período é O Nascimento da tragédia. Porém, temos
que frisar que O Nascimento da Tragédia não é um escrito estrita-
mente filológico, mesmo que se associe com período filológico de
Nietzsche. Encontra-se, nesta obra, o abandono do rigor filológico
que o filósofo pouco prezava, em nome da liberdade de voar so-
bre os mistérios da vida e resgatar seu sentido perdido. Esta obra
claramente aponta para uma transmutação do pensamento anun-
ciando uma tempestade inevitável. Mas sob que condições isto
ocorreu? Para que possamos explicar essa mudança radical, será
imprescindível recorrer um pouco à biografia do filósofo, principal-
mente da juventude, em que brotam, grosso modo, algumas ideias
que vão se delineando ao longo da sua história intelectual.
A época em que Nietzsche vive na Alemanha é dominada
pelo espírito protestante, que estava dilacerado pelo movimen-
to pietista, que pretendia retornar para as teses originais da re-
forma protestante, negando teologia, cultos e ritos de qualquer
organização eclesiástica, contudo, voltando atenção à vida civil e
sua dimensão prática e utilitária. Esta repulsa contra a metafísi-
ca entendida como organon, para alcance da transcendência re-
ligiosa, talvez possa elucidar o ponto de partida de Nietzsche. Ele
demonstra que os sistemas metafísicos colocam a vida individual
entre parentes em função da "verdade eterna" e concebem o indi-
viduo como sendo predeterminado. Por volta de 1862, no seu arti-
go escrito para "Germânia", intitulado Sobre a infância dos povos,
Nietzsche lança a ideia de que a religião, em sua origem, nada mais
é do que a manifestação da criatividade dos povos, que subtrai
qualquer divindade do mundo, depositando-a no reino da trans-
cendência. De acordo com isso, Nietzsche escreve:
O fato de que Deus é transformado em homem, não deve conduzir
o homem ao infinito, mas deve levá-lo a fundar sobre a terra seu

Claretiano - Centro Universitário


64 © História da Filosofia Contemporânea II

paraíso; a ilusão de um mundo supra terrestre conduz o intelecto


humano à ignorância e um desgaste inútil de confronto contra o
mundo terrestre. Esta é a época infantil do homem.

A partir deste trecho é fácil notar que Nietzsche, desde seus


18 anos, já pensava sobre a ideia de uma existência plena e vigo-
rosa e pretendia devolvê-la o seu verdadeiro significado. As raízes
dessa intenção nietzschiana devem se procurar nos ventos que
dão direção à nave cultural da Alemanha do século 19. O modelo
grego revive mais intensamente nessa época na Alemanha, que
busca desenhar, a partir daquele, sua própria identidade cultu-
ral. Nietzsche, nos seus estudos secundários no colégio de Pforta
(1861 – 1864) e seus estudos acadêmicos na universidade de Bonn
e mais tarde de Leipzig, manifesta fortes interesses nesta direção.
O seu encontro com as obras de Goethe e Schiller e, sobretudo,
com as obras de Hölderlin foi decisivo.
Nietzsche precisava escolher uma especialização acadêmica
e então optou pela filologia. Seus estudos filológicos deste perío-
do não servem somente para a sua instrução filológico-acadêmica,
mas representam um momento de transformação que ocorre a
partir dos estudos sobre a antiguidade, o que, por sua vez, incor-
reu na sua atitude diante da religião. Podemos dizer que a ruptura
com a religião e o ambiente da religiosidade familiar foi uma con-
sequência dos estudos sobre os clássicos. Inspirador deste interes-
se forte ao mundo grego foi Ritschl. Nietzsche teria sido marcado
profundamente pelo gênio de um mestre fascinante – educador
com talento nato de ensinar e formar senso crítico aos seus alu-
nos. A filologia de Ritschl mirava a recuperação da imagem estéti-
ca do mundo grego oriunda, sobretudo, do classicismo. Nietzsche
sentia-se próximo ao seu mestre. Esta intimidade não seria tão in-
compreensível, se pensarmos que o mestre desenvolvera algumas
interpretações globais sobre o mundo grego. A visão estética das
pulsões artísticas – Dionísio e Apolo que Nietzsche desenvolveu
em O nascimento da tragédia, não seria tão distante da inicial co-
notação que seu mestre teria atribuído a tais personagens. Sem
© U1 - Kierkegaard, Schopenhauer e Nietzsche 65

dúvida, porém, a versão nietzschiana possui muito mais riqueza


e significado, que transbordam além da filologia, assumindo uma
conotação vital: "duas pulsões artísticas da natureza" – mediante
as quais se pode desenhar o sentido trágico da existência, que o
jovem discípulo transformará em princípio da vida.
Mas a virada da filologia para a filosofia ocorre sob a influên-
cia da leitura de Schopenhauer e seu O mundo como vontade e re-
presentação. O sentido da vida sai do esconderijo acadêmico e se
torna primordial. Nietzsche depõe contra a mentalidade científica
em nome da vida. O primeiro livro de Nietzsche – O nascimento
da tragédia, dedicado a Wagner, revela, grosso modo, o intuito
do filósofo de construir uma visão global sobre o mundo grego.
Justamente Wagner era o inspirador deste projeto. Ainda mais: o
homem novo que Wagner modela nas suas obras fomenta a es-
perança de Nietzsche ao retorno do herói trágico da época trágica
dos gregos. Neste homem, Nietzsche teria depositado o espírito
dionisíaco do artista que retoma o diálogo com a vida.
Apesar da profunda admiração pelo compositor, este sen-
timento não teria durado muito. Dezesseis anos mais tarde,
Nietzsche renunciará a seu primeiro livro, antes de tudo, por cau-
sa das principais personagens, sujeitas até então à veneração –
Wagner e Schopenhauer. Em Nietzsche contra Wagner, o filósofo
da vida confessa sua ilusão diante das obras de Wagner e Schope-
nhauer:
Compreendia a visão trágica como o mais belo luxo da nossa cul-
tura, como mais preciosa, mais nobre e mais perigosa exceção; po-
rém, em todo caso como um luxo que era lícito em consideração
a sua grande riqueza. Assim também eu interpretava a música de
Wagner, como expressão, a expressão do poder dionisíaco da alma;
parecia-me que nela irrompe o terremoto, como uma força primor-
dial da vida, comprimida desde a antiguidade, se manifestava em
fim; indiferente se tudo chamado hoje de cultura, não será abalado
nos seus alicerces. Vê-se em que me iludia, vê-se também o que
doem a Wagner e Schopenhauer; a mim mesmo doem... Toda arte,
toda filosofia podem ser considerados como meio curativo para a
vida ascendente ou decadente. Eles oferecem sempre sofrimentos
e sofredores. Há, porém dois tipos de sofredores: os que sofrem

Claretiano - Centro Universitário


66 © História da Filosofia Contemporânea II

por excesso de vida, os que querem à arte dionisíaca, como tam-


bém, a visão trágica da vida, e os que sofrem de empobrecimento
da vida, que anseiam da arte e da filosofia paz, silêncio e mares
tranquilos, ou melhor, embriaguez, êxtase, entorpecimento. Vin-
gar a própria vida – a mais doce embriaguez dessas almas pobres!
Na sua necessidade dupla correspondem como Wagner, também
Schopenhauer: esses negam a vida, caluniam-na e neste sentido
são meus antípodas.

Vemos que além de Wagner, Schopenhauer, seu mestre


espiritual, também é sujeito às marteladas nietzschianas. No que
tange a relação entre Schopenhauer e Nietzsche, cabe notar que
as divergências se originam de uma raiz comum para os ambos
– a vontade. Nietzsche encontra no conceito de vontade de
Schopenhauer o suporte indispensável para a construção da sua
filosofia da vida que teria, paradoxalmente, um destino oposto
diante de seu precursor. Schopenhauer nega a existência – a fonte
de toda dor e sofrimento; Nietzsche, ao contrário – inteiramente
a justifica. Diz ele:
Nessa luta perpétua compreendemos como a vontade se divorcia
dela mesma. Esta imagem de combate da guerra perpetua que
sustenta a vida é fundamental da sua visão pessimista da existên-
cia. [...] o caráter da vontade do em-si é essa luta, uma luta vã. Ele
(Schopenhauer) gostaria que esse caráter realmente não existisse
(BRUM, 1998, p. 26).

A falta de sentido no mundo faz de Schopenhauer um pes-


simista por excelência. No entanto, ele encontra uma forma de
salvação. Esta, de origem eudemonista, enuncia-se a partir da ne-
gação da vontade, isto é, do principio vital. Em outras palavras,
Schopenhauer faz apologia à morte voluntária: "a existência é uma
divida perpetua que só a morte paga inteiramente" "[...] o mundo
é o pior dos mundos possíveis".
Temos que deixar bem claro que a vontade una de
Schopenhauer em Nietzsche assume traços diferentes. Ela se
multiplica conforme a diversidade do mundo fenomênico, torna-
se plural, transfigura-se em vontade de poder: "Somente onde há
vida, há também vontade: mas não vontade de vida, e sim – assim
vos ensino – vontade de poder".
© U1 - Kierkegaard, Schopenhauer e Nietzsche 67

Portanto, se pudéssemos pensar que o ponto de partida dos


dois pensadores parece idêntico, com efeito, que a vontade está
no fundo do ser, que esta é responsável pela dor, pelo sofrimento
transformando a vida em absurdo, sem lógica, irracional, então de-
vemos notar os alcances diferentes de cada um. Pelo tragismo da
vida, pela mesma dor e sofrimento, Schopenhauer é conduzido a
renunciar a vontade, negando a vida. Nietzsche, partindo dos mes-
mos pressupostos encontra o sentido da existência justamente
neste horizonte trágico – de querer e afirmar seu próprio destino.
O pessimismo sombrio de Schopenhauer deriva da consciência éti-
ca, no fundo da qual transparece o norteador: sentido – seguran-
ça, o norteador que coordenava a cultura ocidental desde Sócrates
e Platão. Ao contrário, Nietzsche dá um passo à frente, para além
da consciência ética, além dos valores morais, transcendendo-os
com pathos artístico.
Se para Schopenhauer a vontade de viver, que é expressão
fenomênica da vontade Una, revela uma tendência de auto-con-
servação, esta, para Nietzsche, é apenas uma consequência. Em
Além do bem e mal, ao contestar Schopenhauer, Nietzsche escre-
ve:
Os fisiólogos deveriam refletir, antes de estabelecer o impulso de
auto-conservação como impulso cardinal para um ser orgânico.
Uma criatura viva quer, antes de tudo dar vazão à sua força – a
própria vida é vontade de poder: a auto-conservação é apenas uma
das indiretas, mais freqüentes conseqüências disso.

Mas é aí que se delineia a pergunta: o que é vontade de po-


der? Deleuze a descreve assim:
Toda força está, portanto, numa relação essencial com uma outra
força. O ser da força é plural; seria rigorosamente absurdo pensar
a força no singular (...). Eis o princípio da filosofia da natureza de
Nietzsche: uma pluralidade de forças agindo e sofrendo a distância,
onde a distância é o elemento diferencial compreendido em cada
força e pelo qual cada uma se relaciona com as outras (...). Assim,
o pluralismo encontra sua confirmação imediata e seu terreno fa-
vorável na filosofia da vontade. E o ponto no qual se dá a ruptura
de Nietzsche com Schopenhauer é preciso: trata-se justamente de
saber se a vontade é uma ou múltipla.

Claretiano - Centro Universitário


68 © História da Filosofia Contemporânea II

Percebe-se, deste trecho, que a vontade de poder é o princi-


pal agente em cada ser orgânico e, portanto, ela não é Una, como
afirmava Schopenhauer, mas múltipla. O mundo é concebido em
sentido de forças que agem entre si, cada uma querendo dominar
a outra.
Para Schopenhauer, o fluxo eterno da vida revela um pesa-
delo, que poderia terminar com a negação do eu. Para Nietzsche,
ao contrário, essa móvel, colorida e passageira imagem de frag-
mentos fugazes de vida apresenta uma perfeita e viva obra de arte
em que resplandece o júbilo luminoso do sentido trágico, frente
ao palco do criador trágico.
Sem sombra de dúvida, Nietzsche deve muito a Schopenhauer,
principalmente no que se refere ao conceito da vontade – uma
eterna guerra, um conflito perpétuo entre seus fenômenos que
desvela o caráter trágico da existência. Apesar de o descobrir,
Schopenhauer não aceita esse caráter trágico, o que o leva a nega-
ção da vontade, nega o mundo assim como ele é, descrito por ele.
Nietzsche, por sua vez, aceita e afirma justamente aquilo que
seu precursor rejeita – a vontade e a vida assim como ela é, com
todos os seus terríveis aspectos e sofrimentos. Podemos, sem dú-
vida, reconhecer na dor, no sofrimento, na alegria e no sentimento
de poder, com efeito, no conceito de vontade de poder nietzschia-
no, a encarnação do princípio dionisíaco, o princípio que atribui ao
mundo e a vida uma compreensão estética.
A fórmula dionisíaca da existência permeia todos os escritos
de Nietzsche desde O nascimento da tragédia até os últimos. Po-
demos dizer que o dionisíaco, como visão trágica da vida, apresen-
ta o contraponto à vida moral, norteada pela vontade de verdade.
O principal tema de O nascimento da tragédia é a análise
do surgimento e a morte da tragédia grega – segundo Nietzsche
– a arte superior dos antigos, que surge transfigurando os mitos.
Apesar das análises filológicas, percebe-se que esta obra, carrega-
da com poder explosivo, revela uma filosofia trágica da existência
© U1 - Kierkegaard, Schopenhauer e Nietzsche 69

como alternativa alegre do sombrio niilismo e culpabilidade cristã


desde suas raízes. Em Dionísio, Nietzsche encontra o antídoto con-
tra o niilismo que norteia toda cultura ocidental. Em O nascimento
da tragédia, o filósofo alemão lança a ideia de uma nova forma de
existência e afirmação da vida, isenta de valores morais – a vida
como obra de arte. De acordo com isso soa a própria voz do au-
tor: "A tragédia, uma arte dionisíaca, quer nos persuadir do prazer
eterno da existência".
O foco da noção do trágico tem como centro de gravidade a
questão da arte e a produção artística. Neste sentido temos que
compreender o trecho a seguir:
Criar é grande emancipação da dor, e o alívio da vida. Mas para que
exista o criador, necessitam-se muitas dores e transformações. [...]
Para que o criador seja o filho que renasce, é necessário que queira
ser a mãe, com as dores da mãe. Na verdade meu caminho atraves-
sou sem almas, sem berços e sem dores de parto. Muitas vezes me
despedi; conheço a amargura das últimas horas. Mas assim o quer
a minha vontade criadora, o meu destino. Ou para dizer-vos mais
francamente: tal é o destino que a minha vontade quer.

O criador – eis a justificação estética da vida, que não se ba-


seia num suporte moral ou do Bem, mas na arte e na beleza. Esta
ontologia estética pode fazer-se compreensível – sob o prisma do
pathos artístico – o mundo e a vida em todas as suas configura-
ções.
Assim, fica explícito que a estética nietzschiana nada tem a
ver com estética de Schopenhauer. São dois pólos opostos. A pri-
meira é apologia da vida; a segunda – sua renúncia.
O nascimento da tragédia é um enunciado do sentido trá-
gico da existência. O livro, grosso modo, constrói-se sobre uma
oposição fundamental entre a arte trágica e a tradição racionalis-
ta. Revelam-se, portanto, dois pólos que desvelam os traços fun-
damentais do pensamento ocidental, que podemos denominar –
pré e pós-socrático. Por um lado, Nietzsche revela o sentido da
existência trágica baseada no pathos artístico, que encontra o seu
ápice na filosofia de Heráclito. Esta é a visão homérica da existên-

Claretiano - Centro Universitário


70 © História da Filosofia Contemporânea II

cia. Por outro lado, temos o racionalismo socrático em cuja raiz


habita a moral que é o alvo principal da crítica nietzschiana. Esta
oposição mostra duas dimensões de vida irreconciliáveis: da cons-
ciência ética que entra em vigor a partir de Sócrates, e o pathos
artístico que dominava o mundo homérico – heraclitiano e que é,
conforme Nietzsche, a verdadeira expressão do sentido trágico da
existência.
O nascimento da tragédia é marcado profundamente por
duas personagens mitológicas – Dionísio e Apolo. Nietzsche con-
cebe Dionísio como símbolo de todas as forças produtivas. O culto
a Dionísio – o deus do vinho, da alegria, da fertilidade, da terra – é
culto à vida. Mas Dionísio é o deus sofredor, diante do qual tudo
perece, toda individualidade sucumbe. Seu oposto é Apolo – o lu-
minoso, o claro, que conflui com o efêmero do sonho, em soma:
"é o deus de todas as forças conformadoras, a imagem divina do
princípio da individuação da realidade".
Segundo o filósofo alemão, o êxtase dionisíaco e a harmo-
nia apolínea, com efeito, o mundo da embriaguez e o mundo do
sonho são dois instintos, duas pulsões artísticas que emergem da
própria natureza, sem intermediação do artista. Na embriaguez
dionisíaca conformam-se homens e animais, uns com os outros e
com a natureza.
A tragédia é arte suprema, pois nela realizam um pacto fra-
ternal Dionísio e Apolo. Somente na tragédia, Dionísio fala na lin-
guagem do Apolo, e Apolo, por sua vez, na linguagem de Dionísio:
"O mito trágico se pode entender só como encarnação da sabe-
doria dionisíaca em imagens, mediante as expressões artísticas de
Apolo". Realizando a síntese suprema de Dionísio e Apolo, a tragé-
dia grega justifica não só uma finalidade estética, mas exerce assim
uma missão suprema de vida. Apolo é responsável pela produção
artística, é o principio da individuação, enquanto Dionísio se ma-
nifesta como, aparentemente, supressor e aniquilador da singula-
ridade e da bela aparência. Visto por outro ângulo, cabe ressaltar,
© U1 - Kierkegaard, Schopenhauer e Nietzsche 71

que a aniquilação exercida por Dionísio tem outro alcance – a sus-


tentação da dinâmica do processo natural, quer dizer, trata-se de
não congelar as possibilidades infinitas da produção criadora em
configurações já formadas. Assim sendo, o princípio dionisíaco não
aniquila levando ao nada, mas renova as possibilidades da criação,
aniquilando. De acordo com isso ecoa a afirmação de Nietzsche
em O nascimento da tragédia:
Apolo quer aquietar as essências singulares. Justamente através do
fato de estabelecer linhas limítrofes entre elas e de relembrar sem-
pre novamente estas linhas como as leis mais sagradas do mundo
[...]. Para que esta tendência apolínea não se cristalize [...], a tor-
rente elevada do dionisíaco destrói de tempos em tempos todos
aqueles pequenos círculos nos quais a vontade apolínea unilateral
buscava exorcizar a Hélade [...].

Tudo isso, evidentemente, parece um jogo — jogo que ex-


pressa o sentido trágico da existência, o jogo da criação, da bela
aparência e sua aniquilação renovadora e vivificante promovido
por duas pulsões artísticas da natureza - Apolo e Dionísio. O jogo
é uma disputa, disputa em estilo homérico, disputa que se reduz
somente em disputar, em polemus, sem finalidade alguma a ser
alcançada, sem repouso ou descanso. Justamente ali, o herói trági-
co, o elegido por Nietzsche, esculpia com a sua arte de superação
o sentido trágico da existência. A disputa homérica engendrava o
artista, que só poderia ser reconhecido no combate.
E se aparecesse alguém, cuja supremacia fosse imbatível,
ameaçando assim paralisar a relação de forças – este teria que ser
isolado para que a disputa não cessasse: "Afasta-se o individuo
que ultrapassa os outros para o jogo das forças rivais reencontre
seu vigor".
Aqui Nietzsche revela por que a supremacia de uma das for-
ças tem de ser suprimida. A supressão do dominador absoluto não
era feita pela própria segurança dos súditos, mas para o incentivo
da disputa. Pois se houvesse uma dominação absoluta, ocorreria
imobilização das vontades, isto é, a degradação das forças produti-
vas, desconfiguração do devir, do principio vital. Praticamente isto

Claretiano - Centro Universitário


72 © História da Filosofia Contemporânea II

ocorreu alguns séculos depois com a introdução da dialética por


Sócrates – Platão, com a qual se inaugurou o reinado da razão.
Em vez de uma disciplina dos instintos, houve uma tiranização dos
instintos, houve o processo da interiorização. A força criativa foi
capturada e castrada, e no fim, petrificada, isto é, anulada pela
razão. Diferentemente da época Homero – heraclitiana que inspi-
rava a vida e tinha a coragem de enfrentar toda a sua crueldade e
sofrimento em nome do sentido trágico da existência, o homem
racional, por temor do devir, buscava desesperadamente a segu-
rança da verdade.
A disputa homérica, aos olhos de Nietzsche, representava
um exercício dos instintos, exercício do querer; em outras pala-
vras, intensificação da vontade de poder. É neste sentido que se
torna compreensível a afirmação de Lebrun, notada por Carlos Al-
berto de Moura, de que exatamente ali, em A Disputa em Homero
vai se delineando o conceito de vontade de poder: "uma vonta-
de mais próxima de paradigma do jogo que do modelo da guerra,
onde a luta é sempre pela dominação, não pelo aniquilamento do
adversário" .
Vemos que o sentido trágico da existência norteia e perpas-
sa todo pensamento nietzschiano desde o primeiro período, o da
juventude, até o último, da maturidade. Este sentido existencial
constrói um terreno firme para as futuras considerações do filóso-
fo, com efeito, é o ponto a partir do qual e em função do qual se
origina toda a crítica e a posterior tentativa de superação do ho-
mem, abrindo a visão panorâmica do eterno retorno do mesmo.

Crítica do niilismo
Na sua obra mais sistemática – "Genealogia da Moral" –
Nietzsche se impõe a tarefa de denunciar, não só a origem da
moral, mas também, a sua transformação ao longo da história. O
problema genealógico é introduzido ainda no prólogo da obra, no
qual Nietzsche resumidamente coloca seus objetivos: "meus pen-
© U1 - Kierkegaard, Schopenhauer e Nietzsche 73

samentos sobre a origem dos nossos preconceitos – tal é o tema


deste escrito polêmico" (NIETZSCHE, 2004, p. 8).
Cabe lembrar aqui, que a "suspeita" que Nietzsche dirige à
moral é inédita neste aspecto, transcendendo todas as dúvidas até
então levantadas. Mas a que se deve este caráter inédito? Por que
os fundamentos da moral não foram questionados, nesta medida,
anteriormente? Para compreender melhor essa posição inédita do
filósofo alemão, seria interessante observarmos alguns aspectos
do breve ensaio – Introdução acerca da verdade e da mentira em
um sentido extramoral, datado do período juvenil de Nietzsche.

INFORMAÇÃO COMPLEMENTAR
Lebrun prefere usar "suspeita" em vez de "crítica". Diz ele: "Dize-
mos de propósito suspeita, e não crítica – pois trata-se de ope-
rações bem distintas. O crítico é aquele que aborda o texto de
frente, que se prende às incoerências do autor, às liberdades que
toma ele com a documentação, à leviandade com a qual constitui
seus conceitos, etc. Já o que suspeita não vai tão longe. É diante
das palavras que ele se detém – procurando aquilo que quem as
emprega sequer sentiu necessidade de esclarecer, a tal ponto lhe
parecia inútil a precisão" – (LEBRUN, s/d., p. 118)

O próprio título nos coloca diante de uma perspectiva inédi-


ta. Com efeito, trata-se de uma análise sobre as noções da verdade
e da mentira no sentido extramoral. Obviamente, trata-se de des-
vinculação da moral para que se possa pensar extramoralmente.
Esta desvinculação levanta, por sua vez, a seguinte indagação: que
posição Nietzsche assume e que direito ele tem para falar extra-
moralmente? Qualquer que seja a crítica que Nietzsche dirige à
filosofia tradicional, fica claro que esta não pode ser reduzida a um
procedimento cético, pois parte de um ponto firme situado além
do campo moral. Ao falar no sentido extramoral, pressupõe-se, de
antemão, uma posição firme, que possa abrir uma distância entre
o foco do espectador e o objeto questionado. Tal distância é pos-
sível somente se o espectador se deslocasse e transcendesse ao
pólo oposto. Portanto, a pergunta sobre a posição em que se pode
falar extramoralmente deve ser a pergunta sobre o pólo oposto, a
partir do qual se dirige esta suspeita.

Claretiano - Centro Universitário


74 © História da Filosofia Contemporânea II

Mas em que dimensão este pólo oposto se encontra? A pos-


sibilidade de responder, hipoteticamente, pode partir da análise
linguística da relação metáfora-conceito. É importante notar que
nesta obra Nietzsche considera dois tipos de metáforas, que em
última análise revelam duas tendências de vida – racional e intui-
tiva.
A primeira tendência se dá na transformação da metáfora
em conceito, promovida pela filosofia tradicional. Não é descabi-
do pensar que este movimento acompanha a passagem dos mitos
para o Logos, que deve fixar o significado inequivocamente, isto é,
esvaziar o todo conteúdo da metáfora, que justamente é a fonte
do poder interpretativo. Isto se torna possível graças à tradição e
repetição em que o conceito adquire o estatuto de universal – um
processo que acompanha a formação do sentido moral.
Por outro lado, Nietzsche nos revela uma revalorização da
metáfora, que desvela o poder interpretativo – criativo do homem
intuitivo.
Este duplo caráter da metáfora revela duas opostas tendên-
cias à vida. A primeira tendência nos revela o caráter do homem
racional, cuja meta suprema é a conservação e é neste sentido que
ele almeja o chão firme da verdade. Pela segunda tendência, des-
creve-se o caráter do homem intuitivo, do artista. Neste ensaio, de
certo modo ainda prematuro, se instaura uma oposição que certa-
mente vai permear todos os escritos posteriores de Nietzsche – a
oposição entre a consciência ética do homem racional e o pathos
artístico do homem intuitivo, do criador.
É a partir desta oposição que se torna mais clara a voz de
Nietzsche ao falar da verdade e mentira no sentido extramoral.
Apesar de o ensaio ter sido escrito no período juvenil de Niet-
zsche, não resta dúvida que o escrito revela alguns traços que mais
tarde servirão como base de posteriores considerações. Como, por
exemplo, as oposições: metáfora – conceito; arte – ciência; cria-
ção/expansão – conservação; ética – estética etc. Em outras pa-
lavras, a empresa nietzschiana, geneticamente, opera entre dois
© U1 - Kierkegaard, Schopenhauer e Nietzsche 75

pilares fundamentais: consciência ética que se norteia pelo eixo


sentido – segurança, e o pathos artístico, norteado pela criação e
expansão.
O ensaio começa com uma fábula que, grosso modo, já indi-
ca o seu destino:
Num canto remoto do universo cintilante, vertido em incontáveis
sistemas solares, havia uma vez um astro onde animais inteligentes
inventaram o conhecimento (NIETZSCHE, 2005, p. 7).

Mas inventar o conhecimento, não significaria, ao mesmo


tempo, "inventar a verdade?" – visto que esta, naturalmente, deve
ser o fruto, a meta suprema daquele. Mas que verdade seria uma
verdade inventada? Não seria um fruto do poder criativo do ho-
mem, que almeja, a partir dela, conservar-se, transcendendo a
vida? Conforme Nietzsche, na vida o intelecto mostra-se como des-
provido da finalidade: "Para o intelecto não há outra missão que
transcenda a vida humana". Tudo se passa como se o intelecto,
sendo alienado da vida, construísse os fundamentos de todo niilis-
mo posterior. O sentido da vida, como expressão de forças vitais,
perdeu seu significado em prol da sua projeção eterna e imutável.
Analisado mais de perto, o ensaio nos revela, talvez, o pri-
meiro questionamento acerca do impulso de verdade: "De onde,
com os diabos, vem [...] o impulso da verdade?" Este questiona-
mento terá um papel fundamental nos escritos posteriores, que
vão delineando, cada vez mais claro, o quadro do niilismo.
O impulso da verdade, conforme o filósofo, surge como ma-
neira de se obter uma paz, que deve construir e dar apoio aos mu-
ros da segurança.
A legislação da língua fixa as palavras de tal modo que faz
impossível qualquer interpretação arbitrária, principalmente no
que refere à linguagem metafísica ou científica, cuja missão é pro-
mover e salvaguardar a verdade. As coisas recebem nomes a fim
de travar qualquer foco subjetivo; de travar as possibilidades do
sujeito singular de pensar e ver as coisas pelo seu prisma (foco)

Claretiano - Centro Universitário


76 © História da Filosofia Contemporânea II

individual. É o que Lebrun sublinha:


Nomear não é impor imperiosamente uma marca à coisa sensível:
é declarar que o ser dessa coisa está em seu nome, é futilizar seu
conteúdo imediato – e, assim, abdicar a condição de sujeito singu-
lar, para não ser mais que um si universal, que um representante do
logos (LEBRUN, s/d., p. 72).

Não será difícil, a partir dessas reflexões, enxergarmos, pe-


los olhos de Nietzsche, a verdadeira intenção velada pela tradição,
que consiste em aniquilar qualquer forma e ímpeto de criar. O ato
de criar certamente afeta a conservação do sistema e é por isso
que o criador será rebaixado em criminoso e mentiroso, por usar
as palavras fixas de maneira indevida.
Numa certa altura do ensaio, Nietzsche indaga sobre a for-
mação da palavra, afirmando que esta apresenta uma expressão
sonora de um estímulo nervoso, frisando que se trata de um ato
extremamente subjetivo. Sendo assim, como é que a palavra ad-
quire status de conceito? É pela imposição e a repetição que se
engendra o sentido universal do conceito. Ideia semelhante pode-
mos notar na Genealogia da Moral, de 1887:
Grava-se algo a fogo, para que fique na memória: apenas o que
não cessa de causar dor fica na memória [...] algumas idéias de-
vem se tornar indeléveis , onipresentes, inesquecíveis, "fixas", para
que todo sistema nervoso e intelectual seja hipnotizado por essas
"idéias fixas" – e os procedimentos e modos da vida ascéticos são
meios para livrar tais idéias da concorrência de todos os demais,
para faze-las inesquecíveis (NIETZSCHE, 2004, p.50-51)

Esse ato de memorização à força foi forjado, sem dúvida, pe-


los criadores, pelos promotores das verdades eternas, que devem
garantir paz, tranquilidade e melhor ambiente para a conservação.
Para entender essa inquisição intelectual da memória, achamos
indispensável fazer uma pequena remessa (análise) à consagração
deste processo civilizador, inaugurado por Platão na República.
Para o bem comum e a conservação do sistema, um dos papéis
mais importantes do Estado, é a educação. Esta, antes de tudo,
deve circunscrever o âmbito mais adequado para os fins educati-
vos, censurando tudo que futuramente poderia causar impacto no
© U1 - Kierkegaard, Schopenhauer e Nietzsche 77

sistema vigente. Assim caem as primeiras vítimas – Homero e He-


síodo – os poetas contadores de fábulas. Estes devem ser censu-
rados, conforme entende a principal personagem, por ensinarem
fábulas mentirosas. As mentiras, conforme o mentor da República,
reduzem-se à descrição dos deuses em termos humanos: eles são
vingativos, ciumentos, maus, invejosos, etc.; qualidades, que não
devem ser toleradas no Estado, pelo impacto que podem produzir,
o que, por sua vez, requer uma vigilância constante. Toda a disputa
entre os instintos, vinda do mundo homérico, que dava estímulo
para o desenvolvimento dos dons naturais, teria sido exorcizada
com instauração da soberania da razão. Na medida em que Platão
purificou as divindades dos traços humanos, ao mesmo tempo os
desvinculou do mundo imperfeito, das "cavernas", instaurando a
cisão entre os mundos em que a metafísica vai operar. Essa sobe-
rania racional e conceitual foi possível pela transformação da me-
táfora em conceito – movimento que a tradição orgulhosamente
designa como passagem do mito para o Logus.
A repetição da palavra em um sentido rígido único, indicado
pelo criador, absorvido e retomado pela tradição, congela seu sig-
nificado inequivocamente em paradigmas, assumindo o status de
intocáveis apresentantes da verdade.
Retornando a Genealogia da moral, devemos, antes de tudo,
ressaltar a empresa que Nietzsche se impõe: "Sob que condições
o homem inventou para si os juízes de valor 'bom' e 'mau'"? E que
valor tem eles? Estas perguntas requerem uma investigação das
condições em que os valores emergiram e se modificaram. Com
efeito, como é que os valores morais adquiriram estatuto de ab-
solutos?
Cabe ressaltar que a leitura de Nietzsche da história é essen-
cialmente moral. A moral é o elemento primordial e condicional,
o elemento norteador para a toda atividade humana. Ocorre, po-
rém, num momento determinado "o acontecimento" – a morte de
Deus:

Claretiano - Centro Universitário


78 © História da Filosofia Contemporânea II

Depois que a veracidade cristã tirou uma conclusão depois da ou-


tra, ela tira no fim, sua mais forte conclusão contra si mesma; isso,
porém, acontece quando ela coloca a questão "o que significa toda
vontade de verdade?" (...) que sentido teria nosso ser inteiro, se
não o de que, em nos, aquela vontade de verdade teria tomado
consciência de si como problema? Nesse tomar consciência de si da
vontade de verdade vai de agora em diante – disso não há dúvida
nenhuma – a moral em fundo (NIETZSCHE, 2004, p. 27).

Este acontecimento extraordinário transfigura qualquer sta-


tus e hierarquia, transfigura tudo. Deus identificava-se com a ver-
dade e com o ser. No momento em que se suprime a dicotomia
acima, desaparece imediatamente a função do termo Deus. As-
sim nasce a sensação de vazio, de insegurança e indeterminação
e o "mundo parece desprovido de valor". Percebe-se, claramente,
que a vontade da verdade exerce o papel principal dessa autossu-
peração da moral, atravessando toda a história, negando, suces-
sivamente, suas raízes anteriores, para chegar, ao final, à sua au-
tossupressão. O movimento da vontade de verdade começa com
a filosofia de Platão, com a divisão entre mundo ideal e mundo
sensível. A vontade de verdade atravessa, posteriormente, o cris-
tianismo, revestida em fé que "promete" salvação para o devoto
e o sábio; em seguida trava em Kant, quem se equivocou a dis-
tinguir fenômeno e noumeno, visto que este último é incognos-
cível e, portanto, não se pode alcançar a verdade do mundo em
si, do verdadeiro mundo. Mas, assim, ela toma outra direção e se
transfigura em nova forma e significado – a moral formal: "Ocorre,
aí, que o "mundo verdadeiro" tornasse inalcançável e ganha uma
conotação moral mais expressiva do que tinha nos pontos anterio-
res" (FONSECA, s/d. p. 69).
A "odisseia" da vontade da verdade não para por aí. Consi-
deramos indispensável uma breve consideração sobre o caráter da
vontade da verdade nesta última fase da sua "viagem", em que,
certamente, ocorre o acontecimento histórico – a morte de Deus e
sua substituição pela fé científica.
Deus acompanhava, apoiava e vigiava o homem em todos os
© U1 - Kierkegaard, Schopenhauer e Nietzsche 79

seus passos; apresentava a lei inexorável e justa; dava segurança e


esperança. Uma vez perdendo esses benefícios, o homem se sente
só, no meio de toda infinidade do mundo, na beira do abismo da
sua existência. Ele está livre, mas como um escravo libertado, não
sabe o que fazer com sua vida e em que crer de agora em diante.
Nessa situação a metafísica perde seu argumento mais poderoso –
mundo verdadeiro, Deus etc. e se disfarça em ciência:
Confrontado com a impossibilidade de continuar operando com a
cisão entre o mundo verdadeiro e o mundo sensível, o pensamento
metafísico desfaz-se de toda transcendência e encontra no método
cientifico uma espécie de derradeira tabua de salvação diante de
imanência de nada.
A ciência assume aqui [...] o lugar anteriormente ocupado pelo
pensamento teológico – metafísico.

Depois de ter perdido a sua crença transcendente, a verdade


se torna o valor supremo da ciência. Esta não suspeita, em nenhum
momento, se a verdade é necessária. Ela é a mais necessária, pois
é a única ferramenta, que tenta nos resgatar da transitoriedade,
resistir ao devir e restabelecer o sentido, assim perdido com a
morte de Deus. "Não almejamos a verdade apenas pela verdade,
mas a almejamos como um meio de escapar da transitoriedade da
toda ilusão".

Superação do niilismo e o eterno retorno


A superação do niilismo consiste, de modo geral, em rompi-
mento do eixo: sentido-segurança, eixo que certamente orienta a
vida dos "fracos", aqueles que souberam organizar sua vida devido
à máxima: "reduzir os riscos". O trecho a seguir mostra nitidamen-
te essa tendência:
Ora, o primeiro ato do criador autentico, do criador que operará
sem mascara ou disfarce, consistirá – ao contrario – em romper
essa equivalência insidiosa entre sentido e sistema de proteção
(LEBRUN, 1988, p. 144).

O rompimento deste eixo indica, grosso modo, o processo


de transvaloração de todos os valores, visto que todos os valores

Claretiano - Centro Universitário


80 © História da Filosofia Contemporânea II

são determinados por tal eixo, quer dizer, trata se de substituir


um princípio avaliador por outro, o do criador, que não terá mais
apoio em instâncias supra-sensíveis e terá de criar suas possibili-
dades autênticas: "Tem então os locutores liberdade para legislar,
liberdade para criar sentidos ad infinitum [...]" (LEBRUN, 1988, p.
144). O eixo que regulamentava, orientava e dava sentido ao sofri-
mento, por meio da esperança que o sofredor alcançará o mundo
verdadeiro, o paraíso, a salvação, desaba com este rompimento,
mas para Nietzsche o sofrimento, a dor e o fracasso não são algo
que deva ser evitado a qualquer preço, nem deva ser suportado
com a esperança da salvação. Estes são ingredientes absolutamen-
te indispensáveis para a vida e para a superação do homem: "Toda
vitória, toda sensação de prazer parte do pressuposto de que uma
resistência foi superada" (Will zur Mach, 702).
Como é possível romper o eixo? Para Nietzsche esse proble-
ma se resolve a partir da negação de qualquer instância soberana.
Diz ele: "Se o Deus cristão tem de ser rejeitado, é porque apare-
ce como um senhor, um estrangeiro de quem dependemos". Este
é o princípio de todos os valores até então conhecidos; este é o
eixo que mantém vigente toda a estrutura estimativa. Tal princípio
observa-se facilmente nos fundamentos da cultura ocidental, que
necessariamente tem de inspirar desconfiança aos criadores e a
toda produção criadora, que não é imitadora. O rompimento do
eixo norteador fornece a condição da arte e criação e, estes, por
sua vez, fundamentam a ideia do eterno retorno que será analisa-
da em seguir.
O eterno retorno
A ideia do eterno retorno tem sido introduzida nos tempos
mais remotos e, portanto, não se pode atribuir a autoria desse
conceito a Nietzsche. Essa ideia foi bastante difundida no período
pré-socrático – o período que mais teria influenciado Nietzsche. A
sua originalidade, portanto, consiste em provocar o renascimento
de uma ideia antiquíssima e enriquecê-la com novas interpreta-
ções:
© U1 - Kierkegaard, Schopenhauer e Nietzsche 81

Uma tal filosofia-experimental, tal como a vivi, antecipa a título de


um ensaio mesmo as possibilidades de um niilismo fundamental:
sem que com isso se diga que permanece parada junto a um não,
junto a uma negação, junto a uma vontade de não. Ela quer muito
mais atravessar até o pólo inverso – até um dizer-sim dionisíaco ao
mundo, tal como ele é, sem subtração, sem exceção e escolha – ela
quer o eterno curso circular – as mesmas coisas a mesma lógica e
não lógica de nós" (O.P, 1888, p. 492)

A ideia do eterno retorno aparece, de alguma maneira, no


mito do Dionísio – observará Safranski (2001, p. 206):
[...] o deus moribundo e sempre renascido, e como Nietzsche co-
meça seu raciocínio com Dionísio, podemos dizer que não encon-
trou a doutrina do eterno retorno mais tarde, mas a reencontrou,
depois de talvez a ter esquecido por algum tempo.

Existem, em geral, ao menos duas ideias que Nietzsche intro-


duziu ao tentar explicitar a doutrina do eterno retorno.
A primeira ideia pode ser compreendida por meio do "cálcu-
lo matemático". O conjunto de forças do universo como matéria
e energia é limitado; o tempo, porém é infinito. Neste tempo, por
ser infinito, já ocorreram todas as possíveis configurações e acon-
tecimentos, e, contudo, vão se repetir de novo e infinitamente. É o
que se conclui logicamente do cálculo. Pelo "cálculo matemático",
pode-se pensar o eterno retorno como uma lei mecânica-matemá-
tica do universo.
O conhecimento do eterno retorno certamente provoca hor-
ror e terror – e Nietzsche é ciente deste arrepiante conhecimento
– a crueldade do eterno devir. Eis porque ele tentará incorporar
tal conhecimento no "além-do-homem" e a sua capacidade de su-
portar e transformar tais pensamentos aterrorizantes em alegria
e prazer.
A segunda ideia revela uma dimensão diferente da primei-
ra. Segundo Safranski, Nietzsche teria compreendido a ideia do
eterno retorno como uma verdade proposicional, como norteador
pragmático e auto-sugestivo na afirmação da vida:

Claretiano - Centro Universitário


82 © História da Filosofia Contemporânea II

E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais


solitária solidão e te dissesse: 'Esta vida, assim como tu a vives ago-
ra e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúme-
ras vezes; e não haverá nada de novo, cada dor e cada prazer e cada
pensamento e suspiro e tudo que há de indizivelmente pequeno
e de grande em tua vida há de retornar, e tudo na mesma ordem
e sequência – e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as
árvores, e do eu próprio. A eterna ampulheta da existência será
sempre virada outra vez – e tu com ela, poeirinha da poeira!' Não te
lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio
que te falasse assim? Ou viveste alguma vez um instante desco-
munal, em que lhe respondera: 'Tu és um deus, e nunca ouvi nada
mais divino!' Se este pensamento adquirisse poder sobre ti, assim
como tu és, ele te transformaria e talvez te torturasse; a pergunta,
diante de tudo e de cada coisa: 'Quero isto ainda uma vez e ainda
inúmeras vezes?' Pesaria como o mais pesado dos pesos sobre teu
agir! Ou então, como terias de ficar bem contigo mesmo e com a
vida, para não desejar nada mais do que essa última, eterna confir-
mação e chancela? (G C, L.IV, #314).

Do fragmento citado anteriormente, certamente, poderiam


ser extraídos muitos sentidos e ele pode ser objeto de diversas
interpretações. No entanto, o conceito do eterno retorno, visto
por tal prisma, inspira rejeição de quaisquer instâncias suprassen-
síveis.
Trata-se, portanto, resumidamente, de remover todas as ca-
madas de falsa crença e seus suportes morais; trata-se de uma li-
bertação na própria "beira do abismo".
Obviamente, pelas citações colocadas anteriormente e suas
interpretações, podemos concluir: Tudo retorna na mesma ordem
e sequência, com efeito, todos os indivíduos e seus acontecimen-
tos particulares. Pelo menos essa é a ideia que emerge explicita-
mente, tanto das citações, como também das interpretações a
partir do texto nietzschiano. Mas será que tal conclusão não seria
precipitada?
Para que possamos responder a essa dúvida, faz-se necessá-
rio recorrer ao conceito do "além – do – homem", mediante o qual,
podemos tentar fornecer uma resposta unívoca. Pois bem, pode-
mos começar com a pergunta: Quem é o "além-do-homem"?
© U1 - Kierkegaard, Schopenhauer e Nietzsche 83

Para descrevermos adequadamente o retrato do


"além-do-homem", devemos descartar quaisquer ideias
evolucionistas que possam contaminar tal imagem.
É no herói trágico da tragédia grega que Nietzsche inspira
o "além-do-homem", no o próprio eterno prazer do devir, aquele
prazer que ainda encerra em si mesmo o prazer de exterminar (EH,
6. 312). Segundo Safranski (2001, p.249):
O além-do-homem é o ser humano prometéico que descobriu seus
talentos teogônicos. O Deus fora dele está morto; mas o Deus do
qual sabemos que só vive através do ser humano e nele está vivo, é
um nome para a força criadora do ser humano. E essa força criado-
ra faz os homens participarem do inaudito do Ser".

Sem sombra de dúvida, a obra mais amada e preciosa de


Nietzsche é Assim falou Zaratustra:
Entre minhas obras o meu Zaratustra ocupa um lugar à parte. Com
ele dei à humanidade o maior presente que lhe foi dado até hoje.
Esse livro, com sua voz ouvida ainda em milênios, não é apenas o
livro mais alto que existe, o livro que traz o verdadeiro ar das altu-
ras – o fato "Homem", como um todo, se encontra numa distância
monstruosa abaixo dele –, ele é também o mais profundo, que veio
ao mundo da riqueza mais profunda da verdade, uma fonte inesgo-
tável para a qual nenhuma balde desce sem voltar a subir carrega-
do de ouro e bondade (H, 4, 18).

O retrato do "além-do-homem" em Zaratustra pode-se des-


velar desde o começo do livro, em – "das três metamorfoses do es-
pírito" O "camelo" é a primeira manifestação do espírito carrega-
dor de "tu deves". Em seguida ocorre a segunda transformação – o
"camelo" transmuda em "leão" – símbolo da luta contra o "mons-
tro" do "tu deves". "Luta pela qual — sublinhará Safranski (2001,
p. 254) — descobriu seu "eu quero". Porém, na luta contra "tu de-
ves" o "leão" permanece geneticamente ligado com o "tu deves".
O fio condutor no estado de "leão" é "liberdade de...": "[...] nesse
"eu quero" ainda existe demais desafio e rigidez, ainda não existe
a verdadeira liberdade do querer criativo, ainda não chegamos a
nós mesmos no tesouro da nossa vida" (Safranski, 2001, p. 254).

Claretiano - Centro Universitário


84 © História da Filosofia Contemporânea II

A "liberdade para..." – o mais alto grau da liberdade – anun-


cia a transformação do espírito de leão em criança – "inocência é
a criança e esquecimento, um recomeçar, um jogo, uma roda que
gira por si, um primeiro movimento, um sagrado dizer sim" (Nietzsche,
Z. Das três metamorfoses).
Eis, portanto, o "além-do-homem", o senhor da "liberdade
para...", sendo esta a condição indispensável para a criação, a es-
sência mais profunda do homem, que estava oculta debaixo das
camadas de "tu deves", que suprimia o "eu quero" da arte, da cria-
ção e da vida. A mudança é mudança de dimensão; não se pode
pensar o "além-do-homem" numa dimensão moral, mas pode-se,
sim, em dimensão artística. O principal traço do "além-do-homem"
é a capacidade/liberdade de criar, criar sentidos infinitos e partici-
par do jogo da criação com todos os seus efeitos.
O liame dessa transformação é a vontade de poder. Percebe-
se claramente que a vontade de poder é vontade de poder sobre
si próprio – ao despertar a força criativa que habita o criador. Pela
criação se preservará o palco da vida. Apenas querer conservar
significa sucumbir. Pela criação preserva-se a vida, pois criar é con-
tinuar, mediante a criação, as possibilidades das futuras configu-
rações.
Então, a vontade de poder não contempla a conservação,
mas é o princípio da preservação da vida e não dos seus indivíduos
particulares cuja conservação efetuada no conceito (Estado, mo-
ral, religião, ideologia etc.), resulta na verdadeira extinção.
Agora podemos já identificar as duas pulsões artísticas da
natureza, sendo elas responsáveis pela produção artística, com a
vontade de poder. A vontade de poder é a vontade de criar – e
nada além disso!
O mundo todo, com seus aspectos singulares, é o "mundo
dionisíaco do eterno criar-se, do eterno destruir-se". É a partir daí
que podemos pensar mais claramente a ideia de eterno retorno
de Nietzsche: a partir do conceito de vontade de poder. Com efei-
© U1 - Kierkegaard, Schopenhauer e Nietzsche 85

to, o mesmo que retorna é exatamente essa vontade de poder, as


"duas pulsões artísticas da natureza", ou simplesmente o ato de
criar. "O artista realiza em sua ação a unidade destas duas pulsões
contraditórias" (CASANOVA, 2001, p. 252). Numa das suas anota-
ções de 1870 Nietzsche escreve: "[...] A Vontade precisa do artista,
nele repete-se o processo originário..." (O.P, 1870, p.208). Deve-
mos sublinhar aqui, que a Vontade precisa do artista como meio
da expressão da sua força criadora e seu devir eterno. É a lei da
vida e da atividade produtiva; é a lei do jogo inocente, mediante o
qual o além - do – homem afirma seu amor fati no círculo chamado
eterno retorno.

INFORMAÇÃO:
Amor fati expressa o dizer sim a toda sua vida independente dos
seus acontecimentos.

8. NEGAÇÃO X AFIRMAÇÃO: SCHOPENHAUER E


NIETZSCHE
Este tópico foi retirado e adaptado da dissertação
de doutorado do Prof. Dr. Stefan Vasilev Krastanov
intitulada "Nietzsche: pathos artístico versus consci-
ência ética".

No seu percurso intelectual, Nietzsche encontra-se com a


obra de Schopenhauer no inverno de 1865. O impacto suscitado
pela leitura da obra é decisivo para o jovem filólogo. Descreve-o
assim em Epistolário:
Aqui (no Mundo como vontade e representação) vemos um espe-
lho em que podemos avistar o mundo, a vida, a minha alma em
uma terrível grandiosidade. Aqui contemplava o olho desinteressa-
do da arte, que vê a doença e a cura, a missa do exílio e do refúgio,
o inferno e o paraíso. Fui violentamente agarrado à necessidade de
autoconsciência, antes de autodestruição. Testemunhos daquela
disposição são ainda hoje as páginas inquietantes e melancólicas
do meu diário com sua denúncia e miragem, à espera de santifica-
ção e transformação de tudo quanto é o núcleo do meu ser (1976,
p. 707).

Claretiano - Centro Universitário


86 © História da Filosofia Contemporânea II

Nietzsche teria sentido seu encontro com a obra de


Schopenhauer como explosão reveladora e teria se identificado
profundamente com a leitura. Todavia, aos poucos, o jovem filólo-
go distancia-se definitivamente do seu inspirador.
A relação entre Nietzsche e Schopenhauer é bastante com-
plexa e difícil de ser tratada em seus pormenores, especialmente
quando se trata do período no qual Nietzsche se mostra mais in-
fluenciado por Schopenhauer, isto é, o período de O nascimento da
Tragédia. Desde logo, cabe notar que as divergências se originam
de uma raiz comum para ambos, a vontade. Nietzsche encontra
no conceito de vontade de Schopenhauer o suporte indispensável
para a construção da sua filosofia da vida, que teria, paradoxal-
mente, um destino oposto diante do seu precursor. Na negação
radical de Schopenhauer, Nietzsche vai contrapor a afirmação in-
tegral da vida. Nessa altura, será indispensável a análise da visão
que cada um adere para pensar a vida, embora seja indispensável
um conhecimento sério sobre Schopenhauer para a compreensão
legítima de Nietzsche, já que Schopenhauer aparece como a fonte
principal de Nietzsche.
Em ambos os casos, a vida é pensada como efetividade
(wirklichkeit) – um devir constante que se realiza sob a forma de
conflitos que, no entanto, não afetam a sua essência. Segundo
Schopenhauer:
[...] o mundo visível, o fenômeno, é apenas o espelho da vontade, a
vida deve ser como companheira inseparável da vontade [...] e em
todo lugar onde haverá vontade, haverá vida, um mundo, enfim
(2004, p. 289).

Os fenômenos aparecem e desaparecem, mas a sua condi-


ção – a vontade – permanece intacta. A vontade e a sua "aparência
visível" seguem seu percurso circular sem começo nem fim por
toda a eternidade:
A terra gira, passa da luz às trevas; o indivíduo morre; mas o Sol,
esse, brilha como um esplendor ininterrupto, num eterno meio dia.
A vontade de viver está ligada à vida e a forma da vida é o presente
sem fim; no entanto, os indivíduos, manifestações da idéia, na re-
© U1 - Kierkegaard, Schopenhauer e Nietzsche 87

gião do tempo, aparecem e desaparecem, semelhantes a sonhos


instáveis (2004, p. 296).

A mesma instabilidade das aparências configura, para


Nietzsche, a noção de efetividade da vida (wirklichkeit) como de-
vir – uma oposição eterna de forças aparentemente contrárias que
perfazem o mundo sem cessar. Mas desse "desfile" que é a própria
vida, diferentemente de Schopenhauer, Nietzsche remove todo
sentido moral e filtra-a pelo crivo do pathos artístico, que transfor-
ma a negação em afirmação.
Certamente, Schopenhauer descreve um mundo desprovido
de finalidade, angustiante e cruel, que retira todo o valor da exis-
tência. No entanto, por uma via ascética, consegue trilhar o cami-
nho da sua superação. Talvez Michael Landmann (1960, p. 398)
tenha razão quando afirma que "o pessimismo de Schopenhauer
é um pessimismo eudemonístico", uma vez que propõe uma solu-
ção que conduz para além da tragicidade da existência, com efeito,
para além das contradições existenciais. Inversamente, aos olhos
de Nietzsche, essa tragicidade da existência, filtrada pelo pathos
artístico, configura-se como obra de arte cujo compositor legítimo
seria o herói trágico.
A partir da distinção entre representação e vontade,
Schopenhauer enuncia a falta de sentido da existência. Na primei-
ra parte de sua obra principal, Mundo como vontade e representa-
ção, intitulada O mundo como representação, o filósofo encara o
mundo como objeto no âmbito do princípio da razão que atua nas
faculdades cognitivo-representativas do intelecto. Estas configu-
ram o mundo de modo próprio para ser conhecido, porém, como
representação. É aqui que o filósofo retoma certos aspectos da
filosofia kantiana, reformulando-os de acordo com a sua filosofia
da vontade. A divisão entre o fenômeno e a coisa em si soaria bas-
tante convergente à herança kantiana, se não fosse enfatizado o
contraste entre a pluralidade e a unidade.

Claretiano - Centro Universitário


88 © História da Filosofia Contemporânea II

A pluralidade fenomênica manifesta-se na representação,


configurada pelo princípio da individuação constituído pelo espa-
ço e tempo e pelo princípio da causalidade em que o fenômeno
aparece como efeito de causas que o manifestam de uma deter-
minada maneira no espaço e no tempo. Todavia, a representação,
para Schopenhauer, não passa de uma ilusão. Para ele, diferen-
temente de Kant, por trás do fenômeno não há um dado que o
manifeste, por meio de uma relação causal, mesmo porque, como
antes notou Schulze em Novo Enesidemo (1792), a categoria cau-
salidade fora indevidamente utilizada por Kant para além do seu
uso legítimo, isto é, para fora do campo fenomênico; essa pura
ilusão que é o fenômeno, para Schopenhauer, não passa de uma
criação quimérica das faculdades cognitivas. Justamente por isso,
ele abole a intuição sensível, pois não há dado para ampará-la.
Objetando Kant, Schopenhauer afirma que a intuição não se refere
aos objetos dados de fora; ela como forma a priori do intelecto hu-
mano já opera no entendimento: "Esta (a intuição) não é, porém,
de modo algum mera sensação, mas nela o entendimento já se
mostra ativo" (1977, p. 176) embora seja afirmado, ainda, que
[...] a intuição só pode realizar-se mediante a aplicação do conhe-
cimento do nexo causal, que é a única função do entendimento, à
sensação dos sentidos. A intuição é portanto, efetivamente intelec-
tual, o que justamente Kant nega (1977, p. 145).

Além da pluralidade fenomênica, que, em última instância,


não passa de mera ilusão, existe uma unidade fundamental, es-
sência e causa de toda aparência, o mundo do em si, aludido por
Schopenhauer como vontade.
A vontade, na concepção schopenhaueriana, apresenta-se
como profunda e cega força obscura que atua no fundo do ser e
não cede às formas da razão. Assim, ela adquire um estatuto alógi-
co e irracional. Portanto, o mundo como em-si seria o mundo "sem
razão" (grundlos), sem sentido para o intelecto humano. O acesso
a tal realidade metafísica que subjaz a toda pluralidade fenomê-
nica é possível somente pela experiência do corpo. Justamente o
© U1 - Kierkegaard, Schopenhauer e Nietzsche 89

corpo revela para o homem que ele é, antes de tudo, um querer,


uma vontade. Essa experiência imediata do corpo revela também,
por analogia, que tudo é submetido a esse querer fundamental da
vida expresso em incessante conflito e disputa pela existência. O
dinamismo da vontade revela-se pela guerra perpétua da existên-
cia entre suas formas fenomênicas (representações), que são nada
mais do que a própria vontade. Então, conforme Schopenhauer, a
guerra ocorre entre a vontade e ela mesma.
A compreensão desse caráter essencialmente conflitante
da vontade requer uma breve retomada a alguns aspectos da sua
concepção das ideias. As "ideias platônicas" ocupam um lugar in-
termediário entre as manifestações fenomênicas, as representa-
ções e a essência fundamental do mundo, a vontade. Esta última,
antes de aparecer para o intelecto humano na sua manifestação
fenomênica graças a uma espécie de "óculos intelectuais" ou a
condições formais que subjazem a todo conhecimento humano
e o configuram de uma determinada maneira, encarna a forma
de imagem arquetípica, objetiva-se em formas paradigmais, total-
mente independente do princípio da razão que opera no intelecto
humano. Justamente pelas ideias, a coisa em si assume certa de-
terminação, torna-se objeto ou representação (imagem modelar),
porém, não maculada pelos atributos intelectuais (espaço, tempo
e causalidade). Schopenhauer, no livro II de O mundo como vonta-
de e representação, não deixa dúvida a respeito:
A idéia de Platão [...] constitui necessariamente um objeto, uma
coisa conhecida, uma representação; é precisamente por esse ca-
ráter – que ela se distingue da coisa-em-si. Ela renunciou apenas
às formas secundárias do fenômeno, todas aquelas que incluímos
no principio das contradições, ou, melhor dizendo, ela não se apro-
priou ainda delas; o que é verdade é que ela guarda em seu poder
a forma primitiva e a mais geral, aquela que é forma da represen-
tação em geral e que consiste em ser um objeto para um sujeito
(SCHOPENHAUER, 2004, p. 183).

Com outras palavras, ao adotar tais dispositivos, isto é, ao


passar pelo refletor cognitivo do intelecto humano constituído
pelo espaço, pelo tempo e pela causalidade, o modelo perfeito ge-

Claretiano - Centro Universitário


90 © História da Filosofia Contemporânea II

nérico metamorfoseia-se em multiplicidade fenomênica que passa


a vagar no reino do devir. Todavia, essa multiplicidade fenomênica
não deve se associar à ideia, esta é apenas a manifestação mais
imediata da coisa em si. Na medida em que as ideias encarnam ob-
jetos, mesmo que genéricos, elas são representações, no entanto,
livres do princípio da razão e, portanto, imutáveis.
Cabe notar que esse mundo paralelo ideal de paradigmas
eternos, da objetivação imediata da vontade, compreende dife-
rentes graus de objetivação, determinados e fixos, que aparecem
como modelos aos seus respectivos fenômenos. Os graus diferen-
tes, por sua vez, configuram-se em hierarquia. Esta, enquanto re-
ferida ao mundo fenomênico, realiza-se por meio de guerra. Tudo
isso porque a matéria, sendo quantitativamente determinada em
certos limites, provoca uma constante disputa pela sua posse. As-
sim, as espécies superiores apoderam-se da matéria de outros in-
feriores que também querem se manifestar. Trata-se, grosso modo,
de uma dominação por assimilação, dominação do orgânico sobre
o inorgânico, mas também o inverso, do inorgânico sobre o orgâni-
co. A respeito desse âmbito de guerra entre os graus da vontade,
Schopenhauer afirma:
Assim em toda parte da natureza, nós vemos luta, combate e al-
ternativa de vitória, e deste modo chegamos a compreender mais
claramente o divorcio essencial da vontade com ela mesma. Cada
grau de objetivação da vontade disputa ao outro a matéria, o espa-
ço e o tempo (SCHOPENHAUER, 2004, p. 155).

Portanto, em graus diferentes e claridade diferente, a vonta-


de objetiva-se de fenômenos inorgânicos a fenômenos orgânicos
para chegar, por fim, à sua manifestação mais completa e elevada
– o homem. Justamente na personificação humana, a vontade en-
contra a sua máxima clareza e a consciência de si mesma. Essa hie-
rarquia expressa em graus diferentes de perfeição não resulta de
um suposto processo evolutivo, mas é estaticamente fixa, inalte-
rável, dada ao mesmo tempo desde sempre. Justamente as ideias,
como "formas e propriedades originais e imutáveis de todos os cor-
pos naturais, tanto inorgânicos como orgânicos"(SCHOPENHAUER,
© U1 - Kierkegaard, Schopenhauer e Nietzsche 91

2004, p.177), como modelos e paradigmas de fenômenos empíri-


cos, mantêm intacta essa hierarquia e garantem aos seus graus um
caráter imutável e estático.
Ao ingressar no reino do devir, as ideias metamorfoseiam-se
em fenômenos e começam a disputar entre si o phisis, que é, por
sua vez, quantitativamente determinado. Assim é que o mundo
vegetal servirá como alimento aos herbívoros, e estes, por sua vez,
aos carnívoros. O homem consideraria todo esse mundo feito para
o seu uso levando ao extremo essa disputa. Essa guerra global de
todos contra todos descreve o âmbito conflituoso no qual a von-
tade devora a si mesma. Sendo assim, o destino individual, isto é,
a expressão fenomênica da vontade, visto por esse ângulo, não
possui nenhum significado nem valor, senão como marionete da
própria vontade. Do caráter vão da existência, do mundo sem ra-
zão (grundlos), Schopenhauer postula sua visão pessimista. Essa
constante guerra e ansiedade pela dominação descreve, segundo
ele, o "pior dos mundos possíveis".
No entanto, o filósofo encontra recursos para imobilizar a
"roda de Ixion", recursos que se enunciam a partir da renúncia da
vontade. Schopenhauer propõe duas alternativas de renúncia – a
arte e a moral acética. A primeira configura uma saída eficiente,
mas provisória, enquanto a segunda, definitiva e duradoura. A
preeminência que Schopenhauer atribui à alternativa moral da re-
núncia como meio de se escapar do círculo vicioso da existência,
define a sua filosofia como essencialmente moral. Certamente, é a
consciência ética que aparece por trás da concepção schopenhaue-
riana. No final do livro 4 do Mundo como vontade e representação,
Schopenhauer, propondo uma moral de renúncia ao mundo por
meio de uma prática religiosa, ascética ou budista, como forma de
escapar do círculo vicioso da existência, isto é, do eterno retorno
de desejos e sofrimentos, afirma:
Uma vez conduzidos pelas nossas especulações, a ver a santidade
perfeita na negação e no sacrifício de todo querer, uma vez liberta-
dos, graças à convicção, de um mundo cuja essência total se reduz
para nós à dor, a última palavra da sabedoria consiste, para nós,

Claretiano - Centro Universitário


92 © História da Filosofia Contemporânea II

daqui em diante, apenas em nos afundarmos no nada ... então, em


vez da impulsão e da evolução sem fim, em vez de passagem eter-
na do desejo ao receio, da alegria à dor, em vez de esperança nunca
farta, nunca extinta, que transforma a vida do homem num verda-
deiro sonho, nós percebemos essa paz mais preciosa que todos os
bens da razão, esse oceano de quietude, esse repouso profundo da
alma [...] É, portanto, bom meditar sobre a vida e os atos dos santos
(SCHOPENHAUER, 2004, p. 427).

A renúncia schopenhaueriana, portanto, procura, em última


instância, o pharmacon contra a fugacidade da existência, negando
o eterno devir com todos os seus aspectos – este, o mesmo devir
que Nietzsche, com tanta força, vai enfatizar, porém, por um viés
puramente estético. Justamente por isso privilegiaremos a análise
da arte na concepção de ambos, que vem à tona para estabelecer
as linhas limítrofes entre eles. E, certamente, ela servirá como a
base na qual se tornarão mais visíveis as diferentes concepções
sobre a vontade, a que ambos aderem.
Certamente, desde seus anos universitários em Leipzig,
Nietzsche foi profundamente marcado pela leitura do Mundo
como vontade e representação e, sobretudo, pela visão da existên-
cia trágica, alógica e irracional. Mas, enquanto Schopenhauer bus-
ca e encontra na arte uma fuga, mesmo que provisória do círculo
vicioso que a vontade descreve, perdendo-se na contemplação de-
sinteressada, Nietzsche toma inspiração do devir para constituir a
sua metafísica da arte que se determina pela ação produtora, pela
expansão da criação. Portanto, se pudéssemos pensar que o ponto
de partida dos dois pensadores parece idêntico, com efeito, que
a vontade está no fundo do ser, que esta é responsável pela dor,
pelo sofrimento, transformando a vida em absurdo, sem lógica,
irracional, então deveríamos notar os alcances diferentes de cada
um. Pelo aspecto trágico da vida, pela mesma dor e sofrimento,
Schopenhauer é conduzido a renunciar à vontade, negando a vida.
Nietzsche, partindo dos mesmos pressupostos, encontra o sen-
tido da existência justificado justamente nesse horizonte trágico
– de querer e afirmar seu próprio destino. O pessimismo schope-
nhaueriano origina-se no seio da consciência ética, que, por não
© U1 - Kierkegaard, Schopenhauer e Nietzsche 93

encontrar razões suficientes para afirmar a vida, uma vez que esta
escapa do eixo norteador sentido–segurança (o eixo que vigora na
cultura ocidental desde a época de Sócrates), dirige-se implaca-
velmente à renúncia. Ao contrário, Nietzsche dá um passo para
frente, para além da consciência ética, além dos valores morais,
transcendendo-os com pathos artístico.
Para Schopenhauer, o fluxo eterno da vida revela um pesa-
delo, que poderia terminar com a negação do eu. Para Nietzsche,
ao contrário, essa móvel, colorida e passageira imagem de frag-
mentos fugazes de vida apresenta uma perfeita e viva obra de arte
em que resplandece o sentido trágico, diante do palco do criador
trágico.
Sem sombra de dúvida, Nietzsche deve muito a Schopenhauer,
especialmente no que se refere ao conceito da vontade – uma
eterna guerra, um conflito perpétuo entre seus fenômenos, que
desvela o caráter trágico da existência. Apesar de descobrir esse
caráter, Schopenhauer não o quer tal como ele é e, por conseguin-
te, nega-o.
Nietzsche, por sua vez, aceita e afirma justamente aquilo
que seu precursor rejeita – a vontade e a vida em sua efetividade
ininterrupta, com todos os seus terríveis aspectos e sofrimentos.
Pode-se, sem dúvida, reconhecer na dor, no sofrimento, na alegria
e no sentimento de poder, a encarnação do princípio dionisíaco, o
princípio que atribui ao mundo e à vida uma compreensão estéti-
ca.
Caso seja possível resumir em poucas palavras as diferenças
entre ambos, teríamos de fazer isso baseados na oposição: cons-
ciência ética – pathos artístico. No trecho a seguir, extraído de Pa-
rerga e Paralipomena, podemos identificar a tendência moral de
Schopenhauer:
que o mundo possui apenas uma significação física, e nenhuma
moral, constitui o maior, o mais condenável, e o mais fundamen-
tal erro, a própria perversidade da mentalidade, e provavelmente
forma no fundo aquilo que a fé personificou como o anticristo
(SCHOPENHAUER, 2004, p. 243).

Claretiano - Centro Universitário


94 © História da Filosofia Contemporânea II

O trecho da obra citado não deixa dúvida de que


Schopenhauer permanece ligado à consciência moral ao avaliar
a vida pelo eixo bem–mal. Mas, na sua reprovação, ele é mais
radical que todos os moralistas. Uma vez que a filosofia, segundo
ele, possui um caráter puramente teórico, não cabe a ela um papel
formativo moral. Embora a conduta ética, ou a ação humana não
cedam à instrução: "[...] a virtude não se aprende - diz o filósofo -
não mais do que o gênio: quanto a ela, como quanto a arte o saber
por ele mesmo não tem valor" (SCHOPENHAUER, 2004, p. 285).
O conhecimento não tem nenhum impacto sobre a virtude e
esta não se associa àquele. Assim Schopenhauer desconfigura por
completo a relação advinda da antiguidade entre virtude e saber
e, portanto, entre a vontade e o intelecto. Desde então, a vontade
assume preponderância sobre o intelecto e o transforma em mero
servo dos seus propósitos. Ela é que determina o caráter: "todo o
homem deve à sua vontade ser o que é; o seu caráter existe nele
primitivamente, visto que o querer é o próprio princípio do seu ser"
(SCHOPENHAUER, 2004, p. 308). Esse querer indomável é a fonte de
todo infortúnio e, certamente, a personificação do anticristo.
Objetando a visão teológica, Schopenhauer declara que o
mal é inextinguível e "sempre ergue a cabeça novamente." A natu-
reza humana é indigna à dignidade da moral kantiana. "Quid su-
perbit homo, cujus conceptio culpa, nasce poena, labor vita, ne-
cesse mori" (SCHOPENHAUER, 2004, p. 220). Todavia, ao homem
resta apenas uma solução, certamente moral: a negação junto a
sua sublimidade – a ética da compaixão que, ao reconhecer, sob o
olhar puro da individualidade renunciada, que o carrasco e a sua
vítima fazem uma coisa só, renuncia por completo ao querer e al-
cança o estado de pleno ascetismo.
Percebe-se que a atitude schopenhaueriana diante da exis-
tência condiz, necessariamente, à negação da vontade. Nietzsche
recusa essa renúncia oriunda da consciência moral e contrapõe a
ela a sua visão estética da existência com a sua fórmula dionisíaca,
© U1 - Kierkegaard, Schopenhauer e Nietzsche 95

dando, assim, um passo a frente na superação do niilismo schope-


nhaueriano:
Aqui se faz agora necessário, com uma audaz arremetida, saltar
para dentro de uma metafísica da arte, retomando a minha propo-
sição anterior, de que a existência e o mundo aparecem justificados
somente como fenômeno estético: nesse sentido precisamente o
mito trágico nos deve convencer de que mesmo o feio e o desar-
mônico são um jogo artístico que a vontade, na perene plenitude
do seu prazer, joga consigo própria (1994, p. 141).

No entendimento schopenhaueriano, a arte exerce função


libertadora das ilusões da razão inspiradas pela vontade, à qual a
razão é submetida. Ele define a arte como: "a contemplação das
coisas independente do princípio da razão; opõe-se, assim, ao
modo do conhecimento acima definido, que conduz à experiência
e à ciência" (SCHOPENHAUER, 2004, § 36, p. 194).
A contemplação artística apresenta uma via para o indivíduo
libertar-se da submissão pessoal do querer da vontade, de renun-
ciar ao eu. Assim, o indivíduo consegue desprender-se dos frag-
mentos fenomenais que vagueiam em aparências ilusórias, pene-
trando no claro espelho do ser do mundo, que fixa "em fórmulas
eternas o que flutua na vaga das aparências" (SCHOPENHAUER,
2004, § 36, p. 195).
O conhecimento das ideias – objeto da contemplação estéti-
ca, porém, não é acessível a todos, somente aos homens excepcio-
nais, para os gênios que desprendem a sua cognição do princípio
da razão, tornando-se puros sujeitos do conhecimento. A respei-
to, Schopenhauer assevera: "o conhecimento em alguns homens
pode subtrair-se desta escravidão, rejeitar este jugo e permane-
cer puramente ele mesmo, independente de todo alvo voluntário,
como puro e claro espelho do mundo" (SCHOPENHAUER, 2004, §
27, p. 161).
A condição que torna possível a contemplação das ideias é a
anulação da vontade individual que sujeita, por sua vez, o conheci-
mento pelo princípio da razão. Diferentemente do conhecimento

Claretiano - Centro Universitário


96 © História da Filosofia Contemporânea II

científico, que necessariamente é guiado pelo interesse e, por-


tanto, submetido ao princípio da razão, a contemplação estética
dispensa das coisas contempladas seus atributos espaços tempo-
rais e causais, o que torna possível um conhecimento sub espé-
cie eternitatis, ou, dito de outra maneira, ver o geral no particular.
Assim, Schopenhauer redime a arte da posição inferior, na qual
Platão a coloca, como imitação do já imitado e atribui aos seus
objetos status de essências, com efeito, de ideias. Diferentemente
de Platão, para o qual é só por meio da dialética que se alcançam
as verdades eternas, para Schopenhauer, é a arte e, sobretudo, a
contemplação desinteressada que dá acesso às ideias, porque a
arte é "a contemplação das coisas independente do princípio de
razão" ((SCHOPENHAUER, 2004, § 36. p. 194).
Por outro lado, Schopenhauer adere à concepção kantiana
sobre o belo, ou, ao menos, pensa-o de modo bastante semelhan-
te. Conforme tal entendimento, o belo é um objeto da contempla-
ção desinteressada. Se esse for o caso, então o objeto belo que se
acessa em condição de contemplação desinteressada, ou seja, de
maneira livre da sujeição da vontade, seria a própria ideia. Assim,
Schopenhauer consegue unir, na sua concepção estética, Platão e
Kant, de maneira bastante original, tirando conclusões, no míni-
mo, curiosas, com efeito, que na contemplação estética se encon-
tra a chave para o acesso das verdades eternas, ou, pelo menos, o
acesso para a verdadeira face da ilusão.
No § 51 do Mundo como vontade e representação, de acordo
com os graus da objetivação da vontade em diferentes espécies
e a hierarquia entre elas, Schopenhauer esboça uma classificação
original das artes. Cada arte representa uma determinada ideia da
vontade. Assim, a classificação dos gêneros artísticos correspon-
de à posição que cada ideia ocupa na hierarquia. Nesse caso, a
própria beleza pode ser graduada, dependendo de que grau da
objetivação da vontade é revelado pela ideia. Assim, por exemplo,
arquitetura representa a natureza inorgânica, pedras e minerais.
A vontade, nesse grau, expressa-se pela luta entre a gravidade e a
© U1 - Kierkegaard, Schopenhauer e Nietzsche 97

resistência. Mas esse é o grau inferior das artes. Logo em seguida,


vem a jardinagem, que, certamente, representa a ideia do mundo
vegetal. Grau superior ao das artes que apresentam a natureza ve-
getal ocupam aquelas que representam o mundo animal, por te-
rem maior grau de perfeição na hierarquia entre as ideias. O grau
superior entre as artes plásticas ocupam escultura e pintura de ho-
mens, por estes corresponderem ao grau mais perfeito da objeti-
vação da vontade, com efeito, a do homem. Percebe-se que a arte,
na concepção schopenhaueriana, segue perfeitamente o percurso
da objetivação da vontade do reino inorgânico ao reino orgânico,
vegetal, animal e humano. Mas o grande legado das artes, segun-
do Schopenhauer, é o seu poder mágico de arrancar o indivíduo de
seu querer imediato, enquanto servo da vontade, e elevá-lo, pela
contemplação desinteressada, ao mundo perfeito dos paradigmas
eternos, isto é, ao mundo das ideias.
Grau mais elevado que as artes plásticas na classificação de
Schopenhauer ocupam os gêneros poéticos. Maior mérito atribu-
ído à poesia deve-se ao fato de que ela é mais dinâmica do que
as artes plásticas que permanecem do mesmo jeito: congeladas,
retratando apenas alguns aspectos. A poesia representa a huma-
nidade de modo dinâmico, mudando os temas e as cenas. Entre
os gêneros poéticos, há, também, uma gradação; o grau inferior
é ocupado pela poesia lírica por ser mais subjetiva, retratando os
sentimentos individuais. Logo em seguida, vem a poesia épica, na
qual tais sentimentos subjetivos quase não aparecem; por fim, o
topo da classificação o filósofo reserva para a tragédia, por apre-
sentar maior grau de objetividade, embora, ela, de modo incom-
parável, represente mais claramente a ideia do caráter discordan-
te da vontade, dando ênfase à colisão trágica. Aqui, claramente,
transparece que o critério de belas artes se norteia pela objetivi-
dade. Quanto mais objetiva é uma arte, tanto mais bela ela é. A
tragédia, no entendimento schopenhaueriano, denuncia o caráter
pecador de toda existência, a crueldade da vida irracional, e serve
como estimulante catártico para a renúncia da vida. Essa sabedo-
ria trágica chega ao seu ápice no herói trágico:

Claretiano - Centro Universitário


98 © História da Filosofia Contemporânea II

Enfim, nos seres excepcionais, o conhecimento, purificado e ele-


vado pelo próprio sofrimento, chega a esse grau em que o mundo
exterior, o véu de Maya, já não pode enganá-lo, em que vê claro
através da forma fenomenal ou princípio de individuação. Então,
o egoísmo, conseqüência deste princípio, desaparece com ele; os
"motivos", outrora tão poderosos, perdem o seu poder, e no seu lu-
gar, o conhecimento perfeito do mundo, agindo como calmante da
vontade, conduz à resignação, à renúncia e mesmo à abdicação da
vontade de viver. É assim que na tragédia vemos as naturezas mais
nobres renunciarem, após longos combates e longos sofrimentos,
aos fins perseguidos tão ardentemente, sacrificarem para sempre
as alegrias da vida, ou mesmo desembaraçarem-se voluntariamen-
te e com alegria do fardo da existência. [...] todas essas persona-
gens morrem purificadas pelo sofrimento, isto é, quando a vontade
de viver já esta morta nelas (SCHOPENHAUER, 2004, § 51, p. 266).

Obviamente, o poder mágico e benéfico das artes, para


Schopenhauer, está em seu poder de arrancar o indivíduo da su-
jeição da vontade, de levá-lo à sua renúncia. Mas é justamente
essa renúncia que vai se tornar o principal alvo da crítica por parte
de Nietzsche, a postura de Schopenhauer de encarar a vida como
uma desventura. A arte, segundo Nietzsche, não pode ser um en-
torpecente ou um calmante da vida, deve justamente ao contrário,
um estimulante.
Analisando melhor o que Nietzsche deve a Schopenhauer e
qual a novidade conceitual que Nietzsche introduz, temos de ob-
servar, inicialmente, as principais peças-chave que definem o pro-
jeto de juventude – as duas pulsões artísticas da natureza, Apolo
e Dionísio. Sem nenhum esforço, pode-se reconhecer a herança
schopenhaueriana na formulação de tais pulsões. Em sua inter-
pretação, Nietzsche, certamente, retoma o par schopenhaueria-
no – a representação e a vontade, porém, configura-o de acordo
com a sua visão afirmativa de existência. Apolo, a personificação
da representação, está condenado por Schopenhauer como mera
ilusão. Já em Nietzsche, assume a importância de uma ilusão ne-
cessária que deve seduzir a existência. Percebe-se, portanto, uma
curiosa diferença entre ambos. Tanto um como o outro afirmam
o caráter ilusório do princípio da individuação, porém, enquanto
© U1 - Kierkegaard, Schopenhauer e Nietzsche 99

Schopenhauer o despreza, por ser uma ilusão que engana,


Nietzsche, justamente ao contrário, faz apologia dessa aparência
enganadora. Ela, diferentemente da concepção schopenhaueria-
na, é hipostasiada em princípio artístico, que serve, mesmo que
superficialmente, como o véu que disfarça o fundo terrível da exis-
tência e seduz a vida. A representação schopenhaueriana, na ver-
são apolínea de Nietzsche, é elevada a status de arte, uma arte
necessária para a vida. A diferença anteriormente estabelecida re-
vela a originalidade de Nietzsche frente à Schopenhauer. Se para
este, são os "óculos intelectuais" que produzem a representação,
para Nietzsche, são os "óculos artísticos", por assim dizer, que ge-
ram essa necessária ilusão. No primeiro caso, é a consciência ética
que configura a visão pessimista, no segundo é o pathos artístico
que afirma a vida.
A resposta apolínea dada pelos gregos, diante dos horrores
da existência, Nietzsche (1994, p. 102) detecta ainda nas epopeias
homéricas das quais emana brilho, uma "glorificação luminosa da
eternidade da aparência." Os gregos instalaram essa irradiação
brilhante para tampar o fundo negro da existência e, apaixonados
pelos seus heróis olímpicos, foram levados a glorificar a própria
existência. Mas os gregos, e Nietzsche ressalta isso, foram cons-
cientes desse pharmacon ilusório da arte apolínea e forjaram-no
para continuarem a viver. Essa ilusão propositadamente criada não
foi, portanto, como no caso de Schopenhauer, um ato de manipu-
lação pela vontade. Isso é amparado pelo § 3, de O nascimento...,
no qual Nietzsche afirma:
O grego conheceu e sentiu os temores e os horrores do existir [...]
para poderem viver, tiveram os gregos, levados pela mais profunda
necessidade, de criar tais deuses, cujo advento devemos assim de
fato nos representar, de modo que, na primitiva teogonia titânica
dos terrores, se desenvolvesse, em morosas transições, a teogonia
olímpica do jubilo por meio do impulso apolíneo da beleza – como
rosas a desabrochar a moita espinhosa (1994, p. 102).

No que diz respeito ao Dionísio como personificação da von-


tade schopenhaueriana, Nietzsche novamente revela-se bastante

Claretiano - Centro Universitário


100 © História da Filosofia Contemporânea II

original. Se para Schopenhauer a arte nada tem a ver com a von-


tade, ou melhor, se a arte acontece quando o sujeito está livre da
sujeição da vontade, quando o poder da vontade está anulado no
sujeito, isto é, na contemplação; para Nietzsche, a própria vontade
assume papel de princípio artístico, personificando Dionísio. Essa
notável divergência entre ambos é perfeitamente retratada por
Nietzsche:
Com efeito, quanto mais percebo na natureza aqueles onipoten-
tes impulsos artísticos e neles um poderoso anelo pela aparência
(Schein), pela redenção através da aparência, tanto mais me sinto
impelido à suposição metafísica de que o verdadeiramente-exis-
tente (Wahrhaft-Seiende) e Uno primordial, enquanto o eterno
padecente e pleno de contradição, necessita, para a sua constante
redenção, também da visão extasiante, da aparência prazerosa [...]
(NIETZSCHE, 1994, p. 39).

Esse trecho indica claramente que se trata mais de uma união


fraternal entre ambos os princípios do que de uma distinção radi-
cal como no caso de Schopenhauer. A representação apolínea é o
produto deste "querer" fundamental da vontade. Todavia, o sur-
gimento do mundo fenomênico é acompanhado pela dor e pelo
sofrimento, pela dilaceração do Dionísio. Mas essa dor só é curável
pela produção da bela aparência, como bálsamo para as feridas.
No entanto, há um estado artístico ainda mais fundamental que se
enfatiza pela embriaguez dionisíaca:
Na embriaguez dionisíaca, no impetuoso percurso de todas as es-
calas anímicas, durante as excitações narcóticas ou no desencade-
amento dos impulsos primaveris, a natureza se manifesta em sua
força mais poderosa: ela reúne novamente os indivíduos e faz com
que se sintam como uma só unidade, de tal modo que o principium
individuationis aparece como um estado prolongado de fraqueza
da vontade. Quanto mais debilitada estiver a vontade, mais o todo
se fragmentará em partes isoladas; quanto mais o indivíduo for
egoísta e arbitrário, mais fraco será seu organismo. Por isso, em tais
estados, apresenta-se um traço sentimental da vontade, um 'solu-
ço da criatura' pelas coisas perdidas; no prazer supremo, ressoa o
grito de espanto, os gemidos nostálgicos de uma perda irreparável.
A natureza exuberante celebra, ao mesmo tempo, suas saturnais e
suas exéquias. [...] As dores despertam prazer, o júbilo arranca do
peito gritos cheios de dor. O deus, o liberador, desatou, em torno
dele, todas as amarras, a tudo transformou (1971, p. 557-558).
© U1 - Kierkegaard, Schopenhauer e Nietzsche 101

No ritual da reconciliação com o Uno primordial, no qual a


individualidade se dissolve por inteiro, gera-se o prazer de reinte-
gração do indivíduo com o todo. Na embriaguez dionisíaca, con-
formam-se homens e animais, uns com os outros e com a natureza
semelhante à sinfonia de Beethoven, como um evangelho vivo da
harmonia mundial:
[...] cantando e dançando, manifesta-se o homem como membro
de uma comunidade superior: ele desaprendeu a andar e a falar e
está a ponto de, dançando, sair voando pelos ares [...]. O homem
não é mais artista, tornou-se obra de arte (1994, §1, p. 31).

Portanto, se a resposta apolínea não consegue satisfazer por


completo a vontade helênica, para Nietzsche, a tragédia grega vem
cumprir esse vazio. Ela ofereceu, para o grego, uma visão mais pro-
funda do mundo que a arte apolínea era capaz de oferecer. Por
enfatizar o brilho e a beleza da imagem, a arte apolínea seduz o
homem para a alegria da vida e "[...] aqui, a beleza triunfa sobre o
sofrimento inerente à vida, a dor é, em certo sentido, mentirosa-
mente apagada dos traços da natureza" (1994, §16, p. 102).
Todavia, a arte dionisíaca vai mais longe, para além da ale-
gria fenomênica, para uma alegria primordial e eterna: "[...] a arte
dionisíaca quer nos convencer do eterno prazer da existência; só
que não devemos procurar esse prazer nas aparências, mas por
trás delas" (1994, §17, p. 102). O reconhecimento de que tudo que
nasce deve perecer configura o saber trágico da vida como uma
alegria metafísica que engendra o júbilo diante do espetáculo em
que o herói trágico, "a mais alta manifestação aparente da von-
tade, fica aniquilado para o nosso prazer" (1994, §16, p. 102) – o
que arremessa o espectador a sentir o caráter indestrutivelmente
poderoso da vida – um saber trágico que encerra em si o consolo
metafísico de que por trás de toda mudança a vida permanece in-
tacta. Mas só "o espírito da música nos faz compreender que uma
alegria possa resultar do aniquilamento do individuo" (1994, §16,
p. 101).

Claretiano - Centro Universitário


102 © História da Filosofia Contemporânea II

A tragédia grega, portanto, aparece, para Nietzsche, como


consolo metafísico, como a resposta dada pelos gregos aos horro-
res da existência. A música, então, para alcançar o efeito trágico de
consolo metafísico, deve encarnar expressões simbólicas adequa-
das à sabedoria dionisíaca. A aparência, com suas metamorfoses,
nesse contexto, exerce o papel de reveladora da "essência primor-
dial, a eterna criadora, a impulsão da vida eternamente coativa,
saciando-se eternamente nesta variabilidade da aparência" (1994,
§9, p. 93).
Mas na relação entre o apolíneo e o dionisíaco configuram-
se alguns aspectos importantes que merecem destaque. Apolo,
sendo responsável pela produção artística da individuação, quer
perpetuar as suas criações singulares; enquanto Dionísio manifes-
ta-se como aparentemente supressor e aniquilador da singularida-
de e da bela aparência. Cabe ressaltar que a aniquilação exercida
pelo dionisíaco tem um alcance diferente do que a de uma mera
dissolução da realidade concreta – a sustentação da dinâmica do
processo natural. Trata-se de não congelar as possibilidades infini-
tas das criações em configurações já formadas. Assim, o princípio
dionisíaco não aniquila levando ao nada, mas renova as possibili-
dades da criação, aniquilando. De acordo com isso, ecoa a afirma-
ção de Nietzsche em O nascimento da tragédia:
Apolo quer aquietar as essências singulares justamente através do
fato de estabelecer linhas limítrofes entre elas e de relembrar sem-
pre novamente estas linhas como as leis mais sagradas do mundo
[...] Para que esta tendência apolínea não se cristalize [...], a tor-
rente elevada do dionisíaco destrói de tempos em tempos todos
aqueles pequenos círculos nos quais a vontade apolínea unilateral
buscava exorcizar a Hélade [...](1994, § 9, p. 93).

Tudo isso, evidentemente, parece um jogo – jogo que retrata


a própria vida efetiva, o jogo da criação, da beleza da aparência e
sua aniquilação renovadora e vivificante, jogo promovido por duas
pulsões artísticas da natureza - Apolo e Dionísio.
A ênfase que Nietzsche põe na união fraternal entre as duas
pulsões artísticas concretiza-se na tragédia grega. A tragédia, se-
© U1 - Kierkegaard, Schopenhauer e Nietzsche 103

gundo o filósofo, origina-se do coro, a partir do qual, mais tarde,


surgem os atores, o diálogo, com efeito, o drama no sentido literal.
O coro, por sua vez, deve sua origem ao espírito da música – à
personificação estética do dionisíaco. O diálogo – simples, trans-
parente e belo, assim como é conhecido na linguagem dos heróis
de Sófocles – é expressão do princípio apolíneo. A tragédia é arte
suprema, pois nela Dionísio e Apolo realizam um pacto fraternal.
Somente na tragédia Dionísio fala na linguagem de Apolo, e Apolo,
por sua vez, na linguagem de Dionísio: "o mito trágico se pode en-
tender só como encarnação da sabedoria dionisíaca em imagens,
mediante as expressões artísticas de Apolo" (1994, §8, p. 61). Re-
alizando a síntese suprema de Dionísio e Apolo, a tragédia grega
justifica não só uma finalidade estética, mas exerce, assim, uma
missão suprema de vida.
A arte trágica assim entendida revela um notável poder de
transformação do horror existencial em sentimento do sublime.
Nela também se desenha a notável convergência entre Schopenhauer
e Nietzsche. Ambos concordando que a tragédia, enfim, o sofri-
mento que a acompanha intimamente, seja o meio de purificação
e superação, mas o primeiro filósofo trágico discordará drastica-
mente quanto às consequências da tragédia que Schopenhauer
depreende. Não renúncia e abdicação, mas fortalecimento e au-
mento de vontade, afirmação da vida como efetividade (wirkli-
chkeit) são resultados decorrentes da verdadeira tragédia da épo-
ca trágica dos gregos. Schopenhauer pensa o efeito trágico como
o necessário meio catártico para a renúncia da vontade e de todo
querer responsável pela tragicidade da vida. É como se a tragédia
fosse, para Schopenhauer, uma mostra perfeita em favor do não
querer, uma amostra de que o vitorioso e o derrotado são uma e
a mesma coisa. Portanto, o efeito trágico para Schopenhauer deve
suscitar a negação da vontade. Ao contrário, para Nietzsche, a fun-
ção terapêutica da tragédia consiste em excitar o sentimento do
sublime que glorifica a existência e serve como um tônico que traz
alegria e afirmação integral da vida em todos os seus aspectos.

Claretiano - Centro Universitário


104 © História da Filosofia Contemporânea II

E se a aniquilação do herói trágico produz, para o espectador, pra-


zer e alegria, é porque, a partir dessa aniquilação, se anuncia a res-
tauração da unidade e porque o herói trágico encontra o sentido
da existência mesmo na própria morte.
Caso a arte, no entendimento schopenhaueriano, forneça o
suporte indispensável para que o indivíduo se liberte da sujeição
da vontade e apresente um dos meios pelos quais se rompe o cír-
culo vicioso da existência trágica, ao contrário, para Nietzsche, como
já foi evidenciado, a arte representa, simbolicamente, o princípio
vital que é a vontade. Esse simbolismo revela a força estética de
criar condições para celebrar a vida, assim como o fazem Apolo e
Dionísio – as duas pulsões artísticas da natureza em O nascimento
da tragédia.
Certamente, por trás desse desvio conceitual que Nietzsche
opera diante de Schopenhauer está a música e o novo papel que
Nietzsche atribui a ela. Na hierarquia entre as artes que Schopenhauer
estabelece, a arte musical ocupa um lugar especial. Ela não é,
como as outras artes, uma objetivação original da vontade mani-
festando um aspecto modelar da realidade, ela, mais do que qual-
quer outra arte, acessa diretamente a vontade. Todavia, o autor
de O mundo confessa abertamente a dificuldade de provar essa
afirmação, dizendo que a música é: "[...] como cópia de um mo-
delo que nunca pode, ele mesmo, ser representado diretamente"
(SCHOPENHAUER, 2004, p. 270).
Nietzsche adere sem reservas à tese de Schopenhauer de
que a música é a arte suprema, todavia, diferentemente de Scho-
penhauer, o autor de O nascimento vincula a música à poesia trá-
gica, fazendo dela quintessência da sua tese sobre o trágico, trans-
figurando-a em uma nova e original concepção da tragédia. Assim,
vale dizer, a adesão à ideia de Schopenhauer sobre a música não
é totalmente gratuita: Nietzsche discorda de Schopenhauer em al-
guns aspectos tanto de cunho metafísico como estético.
© U1 - Kierkegaard, Schopenhauer e Nietzsche 105

Essa discordância transparece claramente num escrito da pri-


mavera de 1868, em que o autor, referindo-se à obra de Schopenhauer,
afirma:
Uma tentativa de explicar o mundo a partir de um fator admitido.
A coisa em si toma aqui uma de suas possíveis formas. A tentativa
falhou "[...] Schopenhauer substitui o X kantiano (a coisa em si) pela
vontade, que ele só obtém com a ajuda de uma intuição poética".
A esta vontade, radicalmente inconcebível, Schopenhauer impõe
'predicados bastante determinados'. Mas o mundo não se deixa
apreender facilmente nas determinações de um sistema. 'Scho-
penhauer quis achar o X de uma equação: de seus cálculos, surge
novamente que este X é igual a X, i.e. que ele não o encontrou'
(NIETZSCHE, 1937, p. 352-361).

Parece que por, "razões diplomáticas", essas objeções não


estão bastante explícitas em O nascimento. Nessa obra, certamen-
te aparecem passagens nas quais Nietzsche praticamente segue
a ideia schopenhaueriana de que a música acessa diretamente a
vontade. Diz Nietzsche no §16, reiterando Schopenhauer: "A mú-
sica não seria como as outras artes uma reprodução da aparên-
cia, mas antes a imagem imediata da própria vontade" (1994, §16,
p. 97). E, ainda: "Na doutrina de Schopenhauer, a música nos dá
imediatamente a linguagem da vontade" (1994, §16, p. 101). O
testemunho dessas passagens, no entanto, não é suficientemente
consistente para pensar a música como expressão direita da von-
tade, mesmo porque, em outras passagens, Nietzsche acentua seu
caráter simbólico, caráter que não deixa espaço para qualquer as-
sociação da música como expressão direta da vontade. Se com-
parado o trecho dos escritos da primavera de 1868, em que Niet-
zsche dirige crítica a Schopenhauer, com o trecho anteriormente
citado, em que se mostra a adesão total de Nietzsche à concepção
schopenhaueriana, notaremos que, em O nascimento, ele entra
em contradição consigo mesmo. Pois, como a música pode acessar
diretamente algo que não se pode representar? A relação entre a
vontade e a música é uma relação simbólica, e não direta, como a
pensa Schopenhauer. A vontade, na sua profunda natureza, por-
tanto, revela-se mediante a música e suas forças simbólicas, mas

Claretiano - Centro Universitário


106 © História da Filosofia Contemporânea II

o símbolo não é, de modo algum, "expressão direta". Em "A visão


dionisíaca do mundo", parte 3, Nietzsche diz:
[...] agora a verdade é simbolizada [...] ela se serve da aparência, e
por isso pode e tem que utilizar também as artes da aparência. Mas
essa aparência é forçada de desaparecer sob os acordes dissolven-
tes da música: "Quem vence o poder da aparência, e a despoten-
cializa, reduzindo-a a símbolo"? É a música (p. 571).

Mas o simbolismo musical que Nietzsche enfatiza revela um


estranho poder de transfiguração, poder de engendrar aparências
numa sucessão infinita e, portanto, poder de criar perspectivas.
Em virtude desse poder musical, o apolíneo entra no jogo como
um dos atributos essenciais da arte trágica:
[...] se pensarmos agora que a música, em sua suprema intensifi-
cação, tem de procurar atingir uma suprema afiguração, devemos
considerar como algo possível que ela saiba encontrar, outrossim,
a expressão simbólica para a sua autêntica sabedoria dionisíaca; e
onde mais haveremos de buscar tal expressão senão na tragédia e,
em geral, no conceito do trágico (1994, §16, p. 101)?

Em conclusão, de modo mais resumido, vale observar que a


relação entre Schopenhauer e Nietzsche poderia ser tratada e ana-
lisada a partir do eixo consciência ética – pathos artístico. Tal eixo
revelou que, apesar de Nietzsche aceitar os pressupostos scho-
penhauerianos da filosofia da vontade, consegue romper com as
conclusões pessimistas do seu inspirador e superar a sua solução
ascética, pondo a vida sob a perspectiva da arte. A revisão dos
pressupostos schopenhauerianos pelo crivo da arte traz à tona a
tragédia grega e, com ela, o primeiro filósofo trágico.

9. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS
As questões autoavaliativas têm como propósito a autoveri-
ficação do processo de aprendizagem durante o estudo da unida-
de. Por isso não deixe de responder às questões colocadas no final
de cada unidade para conferir a sua aprendizagem!
© U1 - Kierkegaard, Schopenhauer e Nietzsche 107

1) Schopenhauer critica a filosofia kantiana em dois pontos principais. Assinale


a alternativa que melhor corresponda a tais pontos!
a) Schopenhauer critica a noção kantiana de fenômeno, por um lado, e no-
ção da liberdade humana, por outro. Esses são os dois pontos da crítica
de Schopenhauer referente à filosofia kantiana.
b) O primeiro ponto da critica tange à afirmação kantiana de que o fenôme-
no seja causado pela coisa em si; no segundo ponto da crítica, recusa-se
a afirmação kantiana de que há distinção entre a intuição e o entendi-
mento. Ao contrário, Schopenhauer considera que a intuição já opera no
entendimento.
c) Schopenhauer critica a tendência kantiana de pensar o fenômeno como
mera representação, por um lado, e, por outro, de ter pensado a repre-
sentação como mera ilusão.
d) Schopenhauer, por um lado, critica o idealismo transcendental de Kant,
por outro, o realismo empírico. Esses pontos embasam a principal crítica
de Schopenhauer sobre Kant.

2) Schopenhauer retoma a distinção kantiana entre fenômeno e coisa em si.


Quais são os termos utilizados por ele para fundamentar essa distinção? As-
sinale a alternativa correta!
a) Representação e vontade.
b) Fenômeno e coisa em si.
c) Representação e coisa em si.
d) Fenômeno e vontade.

3) Nietzsche, por formação acadêmica, é filólogo. Ma ele faz transição da filo-


logia à filosofia sob a influência de uma obra de um grande pensador. Qual a
obra e qual o pensador? Assinale a alternativa correta.
a) Schopenhauer e seu Mundo como Vontade e Representação.
b) Pascal e seus Pensamentos.
c) Schelling e seu Sistema do Idealismo Transcendental.
d) Kant e a sua Crítica da Razão Pura.

4) O conceito "além do homem" na filosofia de Nietzsche associa-se ao homem


que:
a) Nega a si mesmo em prol de uma raça superior.
b) Resolve a si mesmo economicamente.
c) Supera a si mesmo.
d) Esquece de si mesmo, renunciando a sua vontade.

Claretiano - Centro Universitário


108 © História da Filosofia Contemporânea II

5) Como contra ponto à dialética objetiva elaborada por Hegel, Kierkegaard


elabora dialética subjetiva. No que ela consiste?
a) Dialética subjetiva implica três momentos entendidos como tese, antí-
tese e síntese, estes retratando o processo no interior da existência hu-
mana.
b) Dialética subjetiva, diferentemente da objetiva, implica dois momentos
sem reconciliação, a saber: tese e antítese.
c) Dialética subjetiva de Kierkegaard pretende dar conta à compreensão da
existência humana, a partir da tenção entre tese e antítese, isto é, entre
o mundo subjetivo e o mundo objetivo.
d) Dialética subjetiva, postulada por Kierkegaard, revela três etapas da exis-
tência humana (estético, ético, religioso), que o homem livremente es-
colha, sem ser impelido por alguma necessidade. Cada escolha retrata
um modo de vida.

6) Uma das formas que o homem na sua existência escolhe é a forma estética.
No que ela consiste?
a) A forma estética da existência apresenta uma existência imediata cujo
enfoque cai sobre a parte física. A forma estética da existência dispensa a
ação em prol da contemplação. O representante desta forma é o sedutor.
b) A forma estética da existência é vinculada à vida do artista, aquele que
aprecia e cria obras de arte.
c) A forma estética da existência revela-se como contemplação mediata da
vontade por meio das obras artísticas.
d) A forma estética da existência revela-se como contemplação desinteres-
sada e imediata da realidade profunda das coisas.

7) O jogo da sedução presente na existência estética a que Kierkegaard se refe-


re envolve três etapas. Quais são? Assinale a alternativa correta!
a) Desejo de possuir; realização do ato de possuir; abandono do objeto pos-
suído.
b) Sonho no qual o objeto está ausente; busca do objeto no fundo de toda
diversidade; realização da busca que é a plena realização entre o deseja-
do e o encontrado.
c) A primeira etapa do jogo de sedução descrito por Kierkegaard é a obser-
vação; a segunda é a experiência amorosa; a terceira, a traição.
d) O jogo de sedução começa com contemplação, passa por sensação e ter-
mina em reflexão.

Gabarito
1) b.
2) a.
3) a.
© U1 - Kierkegaard, Schopenhauer e Nietzsche 109

4) c.
5) d.
6) a.
7) b.

10. CONSIDERAÇÕES
Você pôde acompanhar, nesta apostila, a filosofia de
Kierkegaard, Schopenhauer e Nietzsche, um período da filosofia que
trouxe valiosos frutos para todo o pensamento ocidental posterior.
Esses pensadores não só irão exercer influência no domínio da
filosofia, mas, também, em poetas, pintores, compositores etc.
Suas filosofias visavam contemplar os problemas da existência em
seu âmbito mais íntimo. Os conceitos de angustia, vontade, eterno
retorno, estão sempre ligados a um pensamento profundo sobre
a vida que ganha um caráter ilógico e funda uma tragicidade no
pensamento ocidental. Suas visões de mundo são, ainda hoje, um
espelho claro de nossa existência e da nossa dor primordial. Não
deixe de conhecer mais sobre esses pensadores, aprofundando os
conhecimentos adquiridos com o auxílio deste material. Pois esses
filósofos são importantes para todo o futuro desenvolvimento da
filosofia.
Na próxima unidade, você tomará contato com a filosofia
alemã do século 20, por isso não deixe de tirar suas dúvidas sobre
os filósofos contemplados nesta primeira unidade, pois isso pode
facilitar seu aprofundamento nas questões que serão tratadas a
seguir.
Bons estudos!

11. E-REFERÊNCIAS
Figura 1 Kierkegaard. Disponível em: <http://www.marxists.org/glossary/people/k/pics/
kierkega.jpg>. Acesso em: 08 maio 2010.

Claretiano - Centro Universitário


110 © História da Filosofia Contemporânea II

Figura 2 Arthur Schopenhauer. Disponível em: <http://www.harpers.org/media/image/


blogs/misc/arthur_schopenhauer_portrait_by_ludwig_sigismund_ruhl_1815.jpeg>.
Acesso em: 08 maio 2010.
Figura 3 Nietzsche. Disponível em: <http://e-ducation.net/philosophers/Nietzsche.jpg>.
Acesso em: 08 maio 2010.

12. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


BRUM,T. Pessimismo e suas vontades. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
KIERKEGAARD, S. Diário de um sedutor. São Paulo: Abril Cultural, 1973 (Coleção Os
Pensadores).
______. Estético y Ético. Buenos Aires: Editorial Nova, s/d
NIETZSCHE, F. Acerca da verdade e da mentira. São Paulo: Rideel, 2005.
______. Alem do Bem e Mal. São Paulo: Cia das Letras, 1998.
______. Assim falou Zaratustra. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988.
______. Aurora. São Paulo: Cia das Letras, 1998.
______. Considerações extemporâneas. Sofia: Universitária, 1988.
______. Disputa em Homero. In: Cinco prefácios de cinco livros não Escritos. Rio de
Janeiro: 7 letras, 2005.
______. Ecce homo. Porto Alegre: L&PM, 2003.
______. Epistolário. Milano: Ed. Adelphi, 1976.
______. Gaia Ciência. São Paulo: Cia das Letras, 1998.
______. Genealogia da moral. São Paulo: Cia das Letras, 2004.
REALE, Giovanni & ANTISERI, Dario. História da filosofia: do Romantismo até os nossos
dias. São Paulo: Paulus, 1991. V. 3
SAFRANSKI, Rüdiger. Heidegger, um mestre da Alemanha entre o bem e o mal. São Paulo:
Geração Editorial, 2000.
______. Nietzsche: biografia de uma tragédia. São Paulo: Geração, 2001.
SARTRE, Jean-Paul. A imaginação. Rio de Janeiro : Bertrand Brasil, 1989.
______. A transcendência do ego. Lisboa: Colibri, 1994.
______. Baudelaire. Paris: Gallimard, 1963.
______. O ser e o nada. Petrópolis: Vozes, 1997.
______. Saint Genet: ator e mártir. Petrópolis: Vozes, 2002.
SCHOPENHAUER, A. Crítica da filosofia kantiana. São Paulo: Abril Cultural, 1997. (Coleção
Os Pensadores).
______. O mundo como vontade e representação. Ed. Contraponto, 2001.
______. Parerga e Paraliponema, capítulos V, VIII, XII, XIV. Tradução de Wolfang Leo
Maar. São Paulo, Nova Cultural, 1988 (Os Pensadores).
EAD
Filosofia Alemã
do Século 20

2
1. OBJETIVOS
• C
ompreender o contexto histórico, político, social e cultu-
ral dos pensadores contemporâneos apresentados nesta
unidade.
• Compreender em que consiste a fundamentação fenome-
nológica.
• Examinar e entender o conceito de epoché.
• Compreender o conceito de ser.
• Examinar a importância da obra Ser e tempo.
• Compreender o conceito de Da-sein e ente.
• Compreender a função da linguagem para a filosofia hei-
deggeriana.
• Compreender o que significa indústria cultural.
• Compreender o conceito de dialética negativa.
• Reconhecer a importância das obras de Marcuse e
Habermas para a filosofia no cenário contemporâneo.
112 © História da Filosofia Contemporânea II

2. CONTEÚDOS
• H usserl: Fundamentação fenomenológica; Epoché = re-
dução eidética ou redução fenomenológica.
• A antropologia filosófica de Max Scheller
• Heidegger: Ser e tempo; ser; dasein; ente; linguagem;
physis; Escola de Frankfurt; teoria crítica.
• M. Horkheimer: razão instrumental.
• T.W. Adorno: dialética negativa; indústria cultural.
• H. Marcuse: ideologia e sociedade industrial.
• J. Habermas: a teoria da ação comunicativa.

3. ORIENTAÇÕES GERAIS PARA O ESTUDO DA UNI-


DADE
1) Quando estiver estudando o pensamento de Martin
Heidegger, reflita sobre cada conceito apresentado,
pois, apesar de este material didático ser apenas um re-
ferencial para seu conhecimento, o pensamento heide-
ggeriano apresenta-se como complexo e de difícil com-
preensão. Com paciência, você terá fundamentado os
primeiros alicerces na filosofia de Martin Heidegger.
2) Os temas referentes a problemas metafísicos serão tra-
tados no CRC Metafísica II.
3) Quando esta unidade estiver tratando da filosofia heide-
ggeriana não se preocupe caso seja um erro de português
a hifenização das palavras, pois esta é uma característi-
ca do pensamento heideggeriano no quesito linguagem.
Para maiores informações, pesquise nas principais obras
do pensador e busque comentadores indicados nas Re-
ferências bibliográficas.
4) Para um estudo mais aprofundado sobre as ideias frank-
furtianas, sugerimos a leitura completa da obra de Olgá-
ria Matos. Neste livro, o leitor encontra, sob uma lingua-
gem de fácil entendimento, reflexões sobre a Escola de
Frankfurt a partir de suas várias ideias.
© U2 - Filosofia Alemã do Século 20 113

4. INTRODUÇÃO À UNIDADE
Na unidade anterior, discutimos sobre as principais temáticas
de Sören Kiekegaard, Arthur Schopenhauer e Friedrich Nietzsche.
Nesta unidade, vamos conhecer as principais características
do pensamento alemão do século 20, além de assimilar as prin-
cipais discussões de Edmund Husserl e Martin Heidegger, como
representantes da fenomenologia, e a Escola de Frankfurt, como
proposta para o pensamento alemão do século 20.

5. A FILOSOFIA DE EDMUND HUSSERL


Você já ouviu falar algo da filosofia de Husserl? Iniciamos
com esta pergunta, pois é importante co-
nhecer alguns aspectos do seu raciocínio,
uma vez que ele foi assumido por outros au-
tores que estenderam seu método a várias
áreas do conhecimento. Husserl (1859-
1938) é o iniciador da fenomenologia, que
tem influenciado pensadores da Filosofia,
Matemática e, de um modo geral, das Ciên-
cias Humanas.
Figura 1 - Edmund Gustav
Albrecht Husserl
Dados Biográficos
Antes de dar sequencia ao nosso estudo, vamos conhecer
alguns aspectos da vida de Edmund Husserl?
Edmund Gustav Albrecht Husserl nasceu em Prossnitz, uma
pequena cidade na atual República Tcheca, em 1859. Seus estudos
se deram em Física, Matemática, Astronomia e Filosofia e sua ati-
vidade docente (Filosofia) foi realizada nas cidades de Halle a par-
tir de 1887, Götingen a partir de 1901 e Freiburg, que foi de 1916
até se aposentar, no ano de 1928. Mas o trabalho do filósofo não
terminou aí, pois ele continuou suas pesquisas até 1933, quando

Claretiano - Centro Universitário


114 © História da Filosofia Contemporânea II

foi totalmente excluído por conta da ascensão nazista. Morre em


26 de abril de 1938 e deixa muitos escritos inéditos que existem
até hoje graças ao esforço do padre belga Hermann van Breda,
que os salvou da Segunda Guerra Mundial e, hoje, constituem o
"Arquivo Husserl", em Lovaina.
A influência [sic] de HUSSERL opera em várias direções. Em
primeiro lugar, as penetrantes análises de suas Investigações
lógicas representam sério golpe no positivismo e no nominalismo,
que imperavam no século 19. Ao mesmo tempo, seu método,
que sublinha o conteúdo e a essência do objeto, contribuiu
poderosamente para a elaboração de um pensamento antikantiano.
Sob este aspecto, é um dos grandes pioneiros da nova filosofia.
Por outro lado, criou um método, denominado fenomenológico,
aplicado hoje em dia por grande parte dos filósofos. Além disso,
seus trabalhos contêm [sic] tamanha quantidade de análises
sutis e penetrantes que parece ser mais que duvidoso que esta
multidão de conhecimentos tenha sido aplicada e aproveitada
em sua totalidade. Tem-se a impressão de que a obra de HUSSERL
esteja prestes a se converter numa fonte clássica da filosofia do
porvir. HUSSERL foi o fundador de uma escola muito numerosa
e importante. Mas sua influencia [sic] não se confina nesta
escola, senão que se estende, como dissemos, a toda a filosofia
contemporânea [sic]. (Disponível em: <http://www.consciencia.
org/husserlbochenski.shtml>. Acesso em: 05 mar. 2007).

Como se iniciaram os estudos de Husserl?


Os primeiros estudos do filósofo foram no campo da Mate-
mática: sua tese de doutorado foi Beiträge zur Variationsrechnung
("Contribuições ao cálculo das variáveis", de 1983). Podemos ob-
servar, então, que Husserl se dedicará à Matemática, mas enquan-
to estudo da Lógica.
Em 1887, Husserl escreveu Über den Begriff der Zahl ("Sobre
o conceito do número"), que oferecerá as bases para sua primeira
obra importante: Philosophie der Arithmetic ("Filosofia da Aritmé-
tica", de 1891). Somente em 1901 é que, pela primeira vez, apre-
sentará o método de análise que chamou de 'fenomenológico',
em suas Logische Untersuchungen ("Investigações lógicas"). E no
ano de 1913 o autor publica sua mais conhecida obra: Ideen zu ei-
ner reinen Phänomenologie und phanomenologischen Philosophie
© U2 - Filosofia Alemã do Século 20 115

("Idéias para uma fenomenologia pura e uma filosofia fenomeno-


lógica"), na qual a fenomenologia já é entendida como 'filosofia
primeira'.
Husserl, tendo já estudado com Franz Brentano (1838 –
1917), um filósofo alemão cujo principal foco de pesquisa era o
estudo de um tipo de aristotelismo moderno no campo da psico-
logia, a qual era defendida por ele como ciência da alma, chega à
ideia de que a filosofia pode ser entendida como conhecimento
exato; para isso, deveria ser erigida uma teoria a partir de dados
concretos inegáveis, que fossem evidentes e estáveis.

Fundamentos fenomenológicos
Até aqui, foram apresentadas a biografia e as influências,
além do caminho inicial de Franz Brentano, fonte de pesquisa que
a Filosofia necessita para buscar o conhecimento exato. Você tem
ideia de onde o autor buscou tais dados e exatidão? Acertou se
respondeu "na lógica"; a lógica, para Husserl, não é um conheci-
mento estático, mas dinâmico e vivo que oferece fundamentos
para um raciocínio correto e verdadeira apreensão das coisas – a
lógica não é normativa, mesmo oferecendo bases para as ciências
normativas.

INFORMAÇÃO COMPLEMENTAR
Neste caminhar, o autor tecerá críticas ao pensamento empírico-
psicologista que tenta demonstrar serem as regras lógicas apenas
atos psíquicos aos quais se chega por análise psíquica, empírica.

Como é possível traçar um caminho para chegar às coisas,


antes de sabermos propriamente o que são estas coisas? É preciso
saber o que é algo para, depois, chegar a ele; "saber o que é algo"
significa conhecer sua verdade, e o que é verdadeiro deve sê-lo
de maneira absoluta em si mesmo. Neste sentido, o psicologismo
e o empirismo erram por relacionarem a verdade à contingência

Claretiano - Centro Universitário


116 © História da Filosofia Contemporânea II

humana: o empírico (psíquico) não alcança a exatidão da lógica,


relativizando a verdade ao homem; deste modo não existiria a ver-
dade sem a condição humana (o que seria absurdo).
[...] a lógica pura é 'a teoria das teorias, a ciência das ciências'. [...]
[E as] proposições universais e necessárias são condições que tor-
nam possível uma teoria, sendo diferentes das proposições obtidas
indutivamente da experiência (REALE, 1991, p. 559).

A partir desta ideia sobre a lógica, podemos abrir caminho


para o entendimento do que é a fenomenologia: a ciência das es-
sências.

Ciência das essências


Como é classificada esta ciência? Qual é a verdade evidente
para este conhecimento?
As essências são o objeto de estudo do pesquisador que, em
sua pesquisa, não pode interferir no momento de conhecê-las. So-
mente a lógica apresenta as verdades evidentes, pois suas leis se
referem a processos ideais (não reais), buscando as essências ide-
ais e atemporais: são os conteúdos libertos de sua contingência.

INFORMAÇÃO COMPLEMENTAR
Atemporal – diz-se da forma verbal que não indica tempo, isto é,
não localiza a ação ou estado em algum momento, definido com
relação a um ponto de referência, ger. o momento da elocução.
(Dicionário eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa).

Mas o que é a essência para Husserl?


É o modo típico do aparecer dos fenômenos; estes, por sua
vez, são os casos particulares da ideia. Assim, as essências não são
reais, mas ideais, conceitos, que são captados apenas pela intui-
ção. Para o autor, o caminho de conhecimento das essências é a
chamada "intuição eidética", que se dá de maneira imediata; a in-
tuição de uma essência é que permite falar de proposições univer-
sais e necessárias. A lógica, por exemplo, trabalha com relações
entre essências.
© U2 - Filosofia Alemã do Século 20 117

Mas pare e pense: de onde vem a intuição eidética? Você


tem ideia do que proporcionaria conteúdo para a intuição? Acer-
tou mais uma vez se respondeu "da experiência".
O método fenomenológico não é dedutivo nem empírico. Consiste
em mostrar o que é dado e em esclarecer este dado. Não explica
mediante leis nem deduz a partir de princípios, mas considera ime-
diatamente o que está perante a consciência, o objeto. Conseqüen-
temente, tem uma tendência orientada totalmente para o objetivo.
Interessa-lhe imediatamente não o conceito subjetivo, nem uma
atividade do sujeito (se bem que esta atividade possa igualmente
tornar-se em objeto da investigação), mas aquilo que é sabido, pos-
to em dúvida, amado, odiado, etc. Mesmo nos casos em que se tra-
ta de uma representação pura, é preciso distinguir entre o imaginar
e o imaginado: quando, por exemplo, nos representamos um cen-
tauro, este centauro é um objeto que importa distinguir cuidadosa-
mente de nossos atos psíquicos. De igual modo, o tom musical dó,
o número 2, a figura círculo, etc., são objetos, não atos psíquicos.
Contudo, HUSSERL rejeita o platonismo: este só seria verdadeiro
no caso de cada objeto ser uma realidade. HUSSERL qualifica-se a
si próprio de "positivista", enquanto funda o saber sobre o dado.
(Disponível em: <http://www.consciencia.org/husserlbochenski.
shtm>. Acesso em: 05 mar. 2007).

Tentemos traçar um caminho lógico do conhecimento por


meio do método fenomenológico. Para melhor compreender o
pensamento fenomenológico, veja o exemplo a seguir:
Tenho uma caneta em minha mão e ela é azul – este é o fato,
contingente e variável; ter a caneta, vê-la e tocá-la significa fazer
uma experiência. De tal experiência, retiro o dado empírico que
me possibilitará captar apenas a essência (no caso, o azul). Este
conceito ao qual chego (pois a essência é conceitual) é um modo
de aparecer do fenômeno (azul); por sua vez, "azul" é um caso
particular da ideia de "cor".
Aqui podemos, então, falar da consciência, que pode ser en-
tendida como "designação que resume todos os atos psíquicos ou
vivências intencionais" (STEGMÜLLER, 1977, p. 68).
Husserl afirma a intencionalidade da consciência, ou seja: a
consciência é sempre de algo; a consciência é sempre de um su-
jeito e – necessariamente – é voltada para um objeto (aquilo que

Claretiano - Centro Universitário


118 © História da Filosofia Contemporânea II

aparece, o fenômeno). Portanto, não é possível conceber uma


consciência que não seja intencional.
Como já mencionamos; a consciência – em seu ato de co-
nhecer – deve se atentar ao "fenômeno em si", àquilo que real-
mente aparece e da maneira que aparece, sem interferência. Daí
o autor afirmar a necessidade da epochè, ou redução fenomeno-
lógica. A epochè é muito importante para que a fenomenologia se
torne uma ciência rigorosa, voltando-se para as coisas como elas
são (Zu den Sachen selbst! – "às coisas mesmas"). Tal caminho sig-
nifica suspender o juízo do sujeito que conhece; todos os gostos,
concepções e crenças (sejam da filosofia, da ciência ou do senso
comum) devem ser postos entre parênteses para se chegar ao fe-
nômeno mesmo, algo indubitável.
E o padre Van Breda (diretor do Arquivo Husserl, de Lovaina) obser-
va que, 'dada a tendência irresistível a objetivar de modo absoluto
o conteúdo da consciência para basear-se nesse conteúdo, a redu-
ção deve ser sempre retomada, não podendo jamais ser considera-
da como completamente realizada (REALE, 1991, p. 566).

Para Husserl, a única coisa que não pode ser posta entre pa-
rênteses, por ser, então, justamente indubitável, realidade eviden-
te e absoluta, é a consciência.
No momento, concluímos as orientações para o pensamento
de Edmund Husserl e o fato fenomenológico. Para dar continuida-
de aos nossos estudos, vamos conhecer o pensamento de Martin
Heidegger e Max Scheler, considerados os grandes expoentes da
fenomenologia.

FENOMENOLOGIA = CIÊNCIA DE EXPERIÊNCIA


A fenomenologia é ciência de experiência: por meio desta última é
que se torna possível captar uma essência. Observe que a experi-
ência vem dos fatos, mas a fenomenologia não é ciência de dados
de fatos, pois o fato é algo contingente, enquanto as essências
são invariáveis. Os fatos se apresentam à consciência; esta intui a
essência, que é separada mentalmente do empírico.
© U2 - Filosofia Alemã do Século 20 119

6. MAX SCHELER
Max Scheler destaca-se como um dos influentes pensadores
do século 20. Partindo da investigação
fenomenológica em sua versão teórica,
Scheler a põem em prática. Dotado de
um gênio enciclopédico, o filósofo mos-
trava-se apto a explorar diversas áreas
do conhecimento humano, como biolo-
gia, psicologia, teoria do conhecimento,
ética, sociologia, religião etc., a partir
das quais enriquece a especulação filo-
Figura 2 – Max Scheler
sófica. As ideias de Scheler exercem
uma notável contribuição sobre o exis-
tencialismo, o personalismo, e, antes de tudo, sobre a antropolo-
gia filosófica que ele mesmo inaugurou e traçou como novo cami-
nho da interrogação filosófica.
Vida e obras
Max Scheler nasceu em 1874, em Munique. Estudou, ini-
cialmente, medicina e filosofia na Universidade de Munique. Pos-
teriormente, terminou a sua livre-docência pela Universidade de
Iena e começou participar, efetivamente, das investigações feno-
menológicas. Nesse período, ele se encontra com Husserl e a sua
fenomenologia. Todavia, não reconhece a influência deste na sua
filosofia. Após alguns anos em Berlin, dedicados ao trabalho inte-
lectual e à publicação de diversas obras, Scheler assume a cátedra
de professor de filosofia na Universidade de Colônia (1919-1928).
Em 1928, o filósofo transfere-se para a Universidade de Frankfurt
e, alguns meses depois, no mesmo ano, morre.
Entre as obras de Scheler, cabem destaque às seguintes:
• O formalismo da ética e ética material dos valores (1913-
1916).
• Fenomenologia e teoria do conhecimento (1913).

Claretiano - Centro Universitário


120 © História da Filosofia Contemporânea II

• P
ara a idéia do homem (1918).
• A posição do homem no cosmos (1928).
A teoria fenomenológica do conhecimento
Assim como para Husserl, para Scheler a filosofia resume-se
em um modo peculiar da intuição sobre as essências. Com esse
seu caráter eidético, a investigação filosófica difere-se das outras
ciências. A partir dessa perspectiva, digamos puramente fenome-
nológica, Scheler define a fenomenologia como aquela "atitude do
olhar do espírito em que se vê ou se vive algo que, sem tal atitu-
de, permaneceria oculto: ou seja, descobre-se um reino de 'fatos'
de natureza peculiar" (1933, p. 266). A atitude fenomenológica,
assim entendida, difere-se das outras atitudes praticas, técnicas
e até científicas pelo seu caráter desinteressado. A intuição pura-
mente filosófica é a atitude de contemplação desinteressada em
que as coisas são refletidas como são em si mesmas e não em fun-
ção do homem. Ao contrário, a atitude natural, técnica e científica
enfoca as coisas de acordo com os interesses, isto é, de acordo
com as suas utilidades. A contemplação desinteressada que move
o filósofo, só pode ser, segundo Scheler, expressão do espírito. Jus-
tamente essa aptidão espiritual é capaz de ler e de compreender
as coisas em seu caráter essencial.
Vimos, até agora, que o método fenomenológico de Scheler
não difere muito do de Husserl. Todavia, a redução fenomenológica
operada por Husserl, recebe em Scheler uma correção, ou melhor,
um complemento. Segundo Scheler, a suspensão entre parentes
do aspecto existencial das coisas ainda não é capaz de abrir a in-
tuição às essências. Para a realização da contemplação desinteres-
sada, segundo o filósofo, será necessária a inclusão de mais uma
suspensão – a suspensão do emocional, que é, simultaneamente,
expressão da vontade. Portanto, trata-se de suspender-se entre
parentes, também, a vontade. A esse respeito, Scheler afirma: "A
colocação entre parentes da realidade só poderá ocorrer median-
te uma repressão de todas as funções da vontade [...]" (1933, p.
© U2 - Filosofia Alemã do Século 20 121

274.). Todos os resíduos emocionais acerca do espírito devem ser


suprimidos para que este se torne apto para a contemplação de-
sinteressada. Justamente nesses pensamentos aparece um aspec-
to peculiar da filosofia de Scheler – a separação entre o espiritual
e o vital. O aspecto vital (característica fundamental tanto para ho-
mem como para os animais) suspende o homem num mundo cir-
cundante de que este se serve para a sua vida. Em contrapartida,
o espírito não é determinado desse mundo circundante, ele é livre
de compreender as coisas de modo puro e essencial.
A diferenciação entre o espiritual e vital configura, por sua
vez, três tipos de conhecimentos:
• Conhecimento utilitário ou de domínio: esse conheci-
mento, válido no âmbito das ciências empíricas, ocupa-se
com os objetos do mundo de modo utilitário e pragmáti-
co. Nesse sentido, a vontade e o querer desempenham um
papel fundamental, um querer de domínio sobre a natu-
reza. Em hipótese nenhuma esse conhecimento pode ser
pensado em termos de contemplação desinteressada.
O conhecimento puramente espiritual, conforme a concep-
ção de Scheler, divide-se em dois tipos:
• Conhecimento essencial: diz respeito às áreas da lógica
e da fenomenologia. Gerenciada pelo espírito, a intuição
pura, aqui, capta as essências das coisas, de modo livre e
isento der qualquer significado pragmático.
• Conhecimento redentor: refere-se à penetração mais
profunda no núcleo do ser. Se o homem como ser finito,
possibilitado pela intuição espiritual, participa na nature-
za absoluta das coisas (no sentido das essências) ele se
correlaciona com Deus. Esse tipo de conhecimento é de-
finido por Scheler como metafísico, isto é: "um ato deter-
minado pelo amor de participação do núcleo da pessoa
humana no fundamento absoluto da essência das coisas"
(apud STEGMÜLLER, p. 97). Nesse âmbito metafísico, o

Claretiano - Centro Universitário


122 © História da Filosofia Contemporânea II

homem simplesmente supera a sua natureza determina-


da e transcende ao absoluto. Torna-se, por assim dizer,
um Deus.
O conhecimento metafísico funda-se a uma intuição imedia-
ta da evidência expressa em três graus:
• O primeiro grau dessa intuição imediata evidência de que
o nada não existe ou, dito de forma positiva, de que exis-
te, necessariamente, algo.
• O segundo grau da intuição funda-se na evidência da dis-
tinção entre o ente que é causa de si mesmo e, portanto,
não depende de outras coisas (Deus) e o ente relativo e
dependente de outras coisas. Vale observar, nesse caso,
que as demonstrações ontológicas fundadas em um ra-
ciocínio lógico não são capazes de evidenciar e transmitir
a ideia desse ser absoluto. Apenas em intuição de que, se
existe algum ente, é necessário que exista um ente puro e
simples evidencia a existência do ente sumamente perfei-
to.
• O terceiro grau da intuição evidencia que todos os entes
possuem, necessariamente, um modo de ser (essência) e
um ser aqui (existência). Essa distinção (entre essência e
existência), portanto, torna claro que a realidade e a exis-
tência não são uma e mesma coisa, uma vez que o real
também possui essência. Em outras palavras, o real impli-
ca essência e existência e é por isso que a existência e o
real não se podem associar como idênticos.
Vale observar que Scheler dirige criticas, no que diz respeito
à teoria do conhecimento, tanto ao idealismo, como ao realismo.
O idealismo peca no ponto de, uma vez desconsiderando qualquer
relação entre essência e existência, considerar que a existência é
imanente à consciência, descartando, assim, qualquer realidade
transcendental à consciência.
© U2 - Filosofia Alemã do Século 20 123

Em contrapartida, o realismo afirma que todo objeto é trans-


cendente à consciência, mas, uma vez considerando a insepara-
bilidade entre essência e existência, deduz que ambos os aspec-
tos do objeto devem ser transcendentes à consciência. Ou como
bem observou Stegmüller, para Scheler, o idealismo desemboca,
necessariamente, em subjetivismo e relativismo, pois faz depen-
der a natureza do ente conhecido da organização contingente do
sujeito cognoscente. O realismo desemboca, inapelavelmente, no
ceticismo, pois, se a essência do conhecimento consiste em copiar,
nós só podemos comparar imagens com outras imagens, nunca,
porém, com a original, de maneira que não deporíamos de critério
algum de verdade.
Ética material dos valores.
Na sua obra O formalismo da ética e ética material dos va-
lores, Scheler tenta fundamentar uma teoria objetiva da moral.
Isso será possível somente enquanto os valores sejam considera-
dos independentes da constituição subjetiva da pessoa humana.
Trata-se, grosso modo, de se fundamentar a existência de um rei-
no de valores, puramente objetivos ao qual a pessoa humana tem
acesso. Assim, vem à tona a ideia do caráter material dos valores
em termos de conteúdo preciso e objetivo. Em nome dessa ética
material, Scheler submete à critica a moral formal kantiana que
pretende fundamentar a universalidade dos imperativos morais a
partir da lei formal. Essa lei, assim pensada, em sua formalidade,
dispensa qualquer conteúdo material. Segundo Kant, as ideias de
fins ou bens aplicada à ética levaria, necessariamente, à relativiza-
ção da moral, pois colocaria tais noções em dependência do sujeito
e seu prazer e desprazer. E, visto que os fins e os bens mudam do
homem para homem e da sociedade para sociedade, então, será
forçoso admitir o caráter relativo dessa ética. Conforme o pensa-
dor königsberguiano, somente uma ética formal, isenta de qual-
quer conteúdo que reflete a forma da ação e não a sua matéria
poderia constituir universalidade da ação e sua validez absoluta.

Claretiano - Centro Universitário


124 © História da Filosofia Contemporânea II

A essa concepção formal da moral, Scheler contrapõe a sua


ética material dos valores. Ele submete à critica a posição kantiana
em vários pontos, dentre os quais podemos destacar três:
1) Contra o formalismo kantiano: segundo Scheler, Kant
confunde a ética dos fins e dos bens com a ética mate-
rial dos valores. Podemos constatar, por exemplo, que
é um quadro é belo, sem que "o belo" seja dependente
da nossa avaliação. Nesse caso, pode-se pensar no reino
dos valores em que o valor do belo está situado e é aces-
sado pela minha consciência estimativa. Todavia, o valor
do "belo" permanece um valor objetivo e independente
dessa consciência estimativa. Do mesmo modo, eu posso
imaginar uma cor sem, necessariamente, o fundamento
em que se apresenta. O valor, portanto, é algo que não
se associa ao objeto ou às suas características. Em con-
trapartida, explica Stegmüller, ao comentar essa ideia de
valor de Scheler:
O conhecimento de valores não está baseado a um conhecimento
não valorativo: nos não apreendemos primeiramente coisas puras,
para associá-las, em seguida a uma idéia de valor (...) Assim é que
nós achamos um quadro bonito antes mesmo de saber em quais
das suas características reside a beleza. (...) Esta preeminência e a
originalidade do conhecimento do valor antes de toda apreensão
puramente teórica residem, em ultima instancia, no fato de que os
atos de se interessar e de amar estão na base de todos os demais
(imaginação, juízo, percepção, memória) (1977, p. 103).
2) Assim, contra Kant, Scheler destaca o caráter objetivo
do conteúdo material dos valores, descartando qualquer
relativismo que possa derivar da relação do homem com
os valores.
3) Contra o apriorismo kantiano: nesse ponto, Scheler
drasticamente discorda com a posição kantiana de que o
a priori, como estrutura formal da subjetividade huma-
na, antecede tanto a dimensão teórica como a prática
e as torna possíveis no campo da experiência possível,
isto é, que produz leis conforme as quais ambas as di-
mensões se regulam. Scheler, ao contestar essa posição,
desvincula o a priori da subjetividade humana. Segundo
ele, existem proposições a priori que não dependem do
sujeito, embora sejam materiais enquanto essa matéria
© U2 - Filosofia Alemã do Século 20 125

é essência, e não um fato. Tal natureza possui as nossas


avaliações morais.
4) Os valores não são objetos de uma relação teórica: se-
gundo Scheler, Kant cometeu um erro grave ao despojar
o conhecimento prático (ético) dos sentimentos. "Um
ser racional puramente lógico – diz Stegmüller a esse
respeito – não saberia o que significa valor" (1977, p.
104.). Conclui-se, portanto, que a esfera emocional, ex-
pressa pelo sentimento de valor, possui a primazia na
captação dos valores.
Em resumo, as críticas de Scheler sobre a posição moral kan-
tiana derivam do fato de Kant ter negligenciado a distinção entre o
bem e o valor. Os bens são objetos carregados com valores. Estes,
por sua vez, expressam qualidades por meio das quais as coisas
podem ser chamadas de boas ou de bens. As qualidades pensadas
em termos de valores são essências. Nesse sentido, Rovighi bem
definiu: "Os bens são fatos (ou classes de fatos), os valores são
essências"(1999, p. 386).
Temos de observar que, segundo Scheler, os valores são, hie-
rarquicamente, determinados em quatro escalas:
a) Valores sensíveis: cujo eixo avaliativo se constitui pelo
agradável – desagradável.
b) Valores da vida: cujo eixo avaliativo oscila entre nobre
e vulgar.
c) Valores espirituais: cujo eixo avaliativo gira em torno de
verdadeiro – falso, justo – injusto, belo – feio.
d) Valores religiosos: cujo eixo avaliativo se configura entre
santo e profano.
Os valores que ocupam o topo da gradação hierárquica são
os valores espirituais e os valores religiosos.
Como se pode observar, a ética material dos valores neces-
sita, para a sua fundamentação, além da análise da noção do valor
(acima estudado), também da análise do outro polo constituinte
dessa ética dos valores que é a da realidade humana. Em seguida,

Claretiano - Centro Universitário


126 © História da Filosofia Contemporânea II

portanto, faremos a análise de uma das mais fundamentais noções


da filosofia de Scheler – a noção da pessoa.
Antropologia: a pessoa humana
A teoria scheleriana de pessoa parte do conceito da ação. Na
sua vida, o homem, constantemente, realiza diversas ações. Nes-
se sentido, Scheler interroga sobre aquela instância unitária que
engloba todas as ações num determinado indivíduo. Trata-se de
saber, portanto, qual a unidade das ações da realidade humana.
Nesse ponto, novamente o alvo preferido é Kant e, sobretudo, a
sua concepção formal de pessoa. Mas o caráter formal dessa ins-
tância subjetiva esvazia por completo a ideia de pessoa.
Todavia, não podemos deixar sem nota que a noção da pes-
soa como utilizada na contemporaneidade deve-se, de qualquer
modo, a Kant e à sua concepção de heterorrelação, isto é, de
que a natureza da pessoa consiste na relação com os outros. Daí
provém a razão de Kant ao afirmar que: "os seres racionais são
chamados de pessoas porque a natureza deles os indica já como
fins em si mesmos, como algo que não pode ser empregado uni-
camente como meio" (1973, p. 114). Já na fenomenologia husser-
liana, a pessoa é definida como "o pólo da vida intencional ativa
e passiva e de todos os hábitos criados por ela" (HUSSERL, § 44).
Vemos, portanto, que o entendimento husserliano da pessoa é
profundamente marcado pelo caráter intencional da consciência.
Essa intencionalidade é uma herança husserliana que soa bastan-
te elevada em Scheler. Todavia, Scheler, utilizando-se do concei-
to da intencionalidade, radicalizou ainda mais a noção de pessoa,
definindo-a como a unidade de ser concreta e essencial de atos
de essência diversa. Contudo, essa concepção de pessoa não deve
ser entendida como união de atos, uma vez que, do ponto de vista
fenomenológico, ela é fundamento dessa união dos atos. O traço
fundamental da pessoa humana é a sua constante variação oriun-
da dos seus atos intencionais. A pessoa é uma pura relação com
o mundo, e esse mundo é o mundo circundante em que a pessoa
© U2 - Filosofia Alemã do Século 20 127

atua variavelmente com os objetos, com os outros e consigo mes-


ma, e em virtude do qual ele se transforma.
Diferentemente da posição kantiana de pessoa, a pessoa de
Scheler não é uma instância transcendental, mas um sujeito indi-
vidual. Quanto mais individual a pessoa é, isto é, mais autêntica,
tanto mais é capaz de exprimir maior grau de valor. Essa posição,
certamente, vai na contramão das concepções universalistas do
homem.
Metafísica e Religião
No início deste estudo sobre Scheler, vimos a distinção que
ele opera entre a filosofia e as ciências. Vimos, também, que o
traço fundamental da atitude filosófica é a captação das essências
por meio da contemplação desinteressada em que o espírito se
destaca como principal protagonista. Partindo da mais fundamen-
tal premissa metafísica (porque ser e não nada?), formulada por
Schelling, Scheler chega à primeira intuição filosófica: o espanto
de que o "ente existe" e o "nada não existe". Diz Scheler: "Quem
não olhou no abismo do absoluto Nada não perceberá a eminente
positividade do conteúdo da intuição de que existe alguma coisa
e não o nada" (1972, p. 207). Essa descoberta só se faz pelo espí-
rito. Uma vez purificado pelos resíduos da ocupação cotidiana em
que a simples existência parece oculta, o espírito depara-se com
a profunda e mais fundamental intuição filosófica da existência.
Nesse sentido, podemos dizer que a atitude filosófica rasga o véu
da ocupação cotidiana e se depara com o abismo do ser. Todavia,
essa atitude apenas enuncia o despertar da investigação filosófica.
Em seguida, vem a segunda intuição fundamental de que
existe um ser absoluto (Deus), em outras palavras, um ser cuja
causa está nele e, portanto, não é como os outros entes em que a
sua causa se encontra fora deles e, portanto, são contingentes.
O ser absoluto é objeto da especulação tanto da metafísica,
como da religião. Mas isso, para Scheler, não quer dizer que ambos

Claretiano - Centro Universitário


128 © História da Filosofia Contemporânea II

se podem identificar. Cada uma dessas duas esferas compreende


e especula a natureza de Deus de modo peculiar e específico. As
palavras de Scheler a esse respeito são bastante elucidativas:
O Deus da consciência religiosa é e vive, exclusivamente, no
ato religioso, não no pensamento metafísico fundamentado em
conteúdos e realidades extrarreligiosas. Aquilo para o qual tende
a religião não é o conhecimento racional da realidade originária,
mas é a salvação do homem mediante uma comunhão de vida
com Deus – uma divinização (1972, p. 246).
Do trecho anterior, podemos concluir que o conhecimento
religioso de Deus se difere do conhecimento racional da metafísica
pelo fato de que a religião concebe Deus como pessoa, ao passo
que a metafísica o concebe como princípio em sua dimensão ex-
trarreligiosa.
A especulação de Scheler sobre a metafísica e a religião põe,
entretanto, uma crítica às concepções precedentes e dominantes.
Há uma concepção que põe em identidade a metafísica e religião,
tal é o caso da metafísica aristotélica que é, ao mesmo tempo, te-
ologia; Há outra concepção que coloca em subordinação a metafí-
sica à religião, como a Escolástica que se utiliza das especulações
metafísicas para a constituição das verdades religiosas. Essas duas
concepções não expressam uma compreensão legitima de ambas
as áreas, segundo Scheler. Segundo a sua teoria de conformidade,
a metafísica e a religião devem ser pensadas como complementa-
res. Apenas em sua união pode-se alcançar uma ideia adequada
de Deus.

7. MARTIN HEIDEGGER (1889-1976)


Agora, vamos estudar a sequencia fenomenológica de
Husserl, na pessoa de Martin Heidegger, seu maior sucessor. Ve-
remos suas principais ideias, obras, críticas e contribuições para a
Filosofia do século 20.
© U2 - Filosofia Alemã do Século 20 129

Vamos conhecê-lo?

Dados Biográficos
Possivelmente você já estudou o pensamento de Martin
Heidegger em outro CRC, seja direta-
mente ou por meio de autores que so-
freram sua influência.
De um modo geral, este autor in-
fluenciou várias linhas de pensamento,
e, saindo mesmo do âmbito filosófico,
ele não tratou em específico de, por
exemplo, ética ou educação, mas nos-
sa proposta com esta unidade é pensar
sobre estes temas a partir de sua obra,
simplesmente porque ele pensou aquilo
Figura 3 – Martin Heidegger
que é base de toda a existência: o Ser.
Martin Heidegger, já em sua época, teve grande repercus-
são pelo seu filosofar singular e pensamento original, já que sua
reflexão causava impacto. Segundo Safranski (2000, p. 134) "o 'pe-
queno bruxo de Messkirch', como breve o chamarão, conseguia
filosofar sobre a vivência de uma cátedra de maneira tal que os es-
tudantes, embora habituados aos fatos bem mais crus da guerra,
ficavam de respiração suspensa".
Qual o marco histórico que corresponde ao período heideg-
geriano? Quais são suas principais influências? Quais são os dados
biográficos do pensador alemão?
A época na qual surge o pensamento heideggeriano é mar-
cada por grande instabilidade sócio-intelecto-moral por conta da
Primeira Guerra Mundial, que abalou o ser humano em todas as
instâncias. Assim, tal pensamento tem o intuito de reestruturar a
Filosofia, re-pensando-a a partir de seu fundamento ordenador: a
questão do Ser.

Claretiano - Centro Universitário


130 © História da Filosofia Contemporânea II

Nascido em Messkirch em 26 de setembro de 1889, seus


primeiros estudos foram de base jesuítica, mas seu interesse pela
Filosofia realmente aconteceu quando leu um livro que ganhou,
sobre Aristóteles (Sobre os diversos sentidos do ente segundo Aris-
tóteles, de Franz Brentano); Heidegger estudou na Faculdade de
Teologia da Universidade de Freiburg e, aos poucos, foi construin-
do seu pensamento do contato com textos de vários pensadores
(citemos como muito influentes Aristóteles e Husserl).
Heidegger recebe a titulação de livre docente no ano de 1915
na Universidade de Freiburg e em 1916 publica Die Kategorien und
Bedeutungslehre des Duns Scotus ("A teoria das categorias e das
significações em Duns Escoto"). Mesmo com seus escritos univer-
sitários, ele tem contato direto com a Primeira Guerra, servindo às
forças armadas de 1917 a 1919.
Ao voltar, ele se torna assistente de Husserl até 1923, quan-
do tomou posse de uma cátedra em Marburg. Até este momento,
o pensador ainda era pouco conhecido no âmbito filosófico (o que
mudará com a publicação de Ser e Tempo).
No ano de 1933, Heidegger assume a reitoria da Universida-
de de Freiburg, em plena efervescência nazista, embora fique no
cargo por aproximadamente um ano, por perceber que a ideolo-
gia/ação nazista tomava rumos diferentes do que eram suas ideias.
Ao fim da Segunda Guerra, foi obrigado a se afastar por conta de
"supostas simpatias com o regime nazista" (GILES, 1975, p. 189). O
autor ainda produziu importantíssimas obras, embora não tivesse
mais a mesma participação no meio acadêmico alemão, até che-
gar sua morte em 1976.
Para acompanhar como Heidegger irá recolocar a questão
do Ser pode ser interessante para você ter estes questionamentos
em mente:
• Como será este repensar a partir do fundamento ordena-
do: a questão do Ser?
• A ontologia aristotélica cai por terra?
© U2 - Filosofia Alemã do Século 20 131

• Q
uais são as possíveis consequências desta nova visão de
ser?

Ser e Tempo
Após conhecer alguns dados biográficos de Martin Heidegger
e suas maiores influências, perguntamos: qual foi a sua obra de
maior relevância? Que contribuição ela apresenta para a Filosofia
do século 20?
Heidegger deixou uma obra que ultrapassou sessenta volu-
mes, mas o livro mais importante, talvez do pensamento ociden-
tal no século 20, é o Sein und Zeit ("Ser e Tempo"), publicado em
1927. A obra ficou inacabada, pois foram redigidas somente a pri-
meira e segunda seção da primeira parte; a terceira seção da pri-
meira parte e as três seções da segunda parte ficaram somente no
programa. (Cf. HEIDEGGER, 2001a, p. 71). As ideias presentes em
Ser e Tempo inauguram um novo modo de pensar que vem abrir
novos horizontes na questão do Ser e de seu sentido, orientado
pelo tempo.
Qual a proposta de Martin Heidegger com esta obra e a nova
visão de Ser?
Segundo o autor, é preciso resgatar a questão do Ser, pois
ela caiu no esquecimento (aos poucos, o homem foi afastando-se
do Ser e acabou se esquecendo de seu próprio ser).
Mas, pense: o que fazer com toda a metafísica até então,
já que o Ser havia sido esquecido? Destruir; o pensador propõe
a destruição da metafísica tradicional, que significa uma des-
construção3, com o intuito de realizar uma experiência que os
gregos realizaram com o Ser, pois a ideia do Ser teria sido apenas
"transmitida, de geração em geração, como um pressuposto
evidente, natural [...]" (MACDOWELL, 1993, p. 167). Para isso, é
preciso uma nova metafísica, a que o autor chamou de ontologia
fundamental; por conta desta nova ontologia, surgiu a consideração
de Heidegger como um existencialista – ideia que vai ser combatida
por ele, principalmente no texto Sobre o humanismo.

Claretiano - Centro Universitário


132 © História da Filosofia Contemporânea II

O que é necessário para Heidegger para a restauração des-


ta metafísica? Por quais caminhos deve percorrer para conquistar
com êxito sua proposta? Quais são os referenciais para fundamen-
tar seu pensamento?
Para o êxito de seu objetivo – a restauração da metafísica
– Heidegger vê como necessário o retorno às origens do pensar
ocidental: os primeiros cristãos e os gregos. Dos primeiros, tomou
principalmente o sentido da vida a partir da temporalidade huma-
na. Dos gregos, é retirada a experiência com relação à questão do
Ser, buscando experienciar o pensamento grego como se fosse o
próprio grego, sem um olhar deformante e preconceituoso para
desvendar o sentido do próprio Ser; a interpretação que os gregos
tinham de Ser também foi importante para a construção do con-
ceito heideggeriano de "existência".
Ainda outra grande influência no pensar heideggeriano foi
a Fenomenologia, pois, somente por meio dela é que o pensador
chegou à questão do Ser – mais tarde desvincula-se dela, assumin-
do-a unicamente como possibilidade metodológica.

Ser
É interessante notarmos que o pensamento heideggeriano
tem duas fases (Primeiro e Segundo Heidegger):
• Na primeira, a revelação do Ser se dá pelo Da-sein, logo
a analítica existencial é feita daquele ente que possui a
característica de Da-sein – o homem;
• Na segunda, a revelação do Ser se dá pela linguagem
(mais especificamente a poética). Mas a preocupação de
Heidegger em toda a trajetória de seu pensar foi o Ser, a
questão do sentido do Ser.
Vamos conhecer melhor cada um desses pensamentos?
Primeira fase: Revelação pelo Da-sein
Vimos anteriormente como o Ser age nas duas fases do pen-
samento heideggeriano. Mas, o que é o Ser? Para responder a esta
© U2 - Filosofia Alemã do Século 20 133

questão, escreve o filósofo contemporâneo Emmanuel Carneiro


Leão a respeito do Ser, na concepção do filósofo alemão:
O Ser nunca é diretamente acessível. Como diferença ontológica,
inclui sempre uma irredutibilidade ao ente. Nunca poderá ser ob-
jetivado. Nunca poderá ser encontrado nem como ente, nem com
o ente, nem dentro do ente. Nunca poderá ser constatado a modo
de um dado, fato ou valor objetivo. O Ser só se dá obliquamente,
enquanto, retraindo-se e escondendo-se em si mesmo, ilumina
o ente segundo determinada figura de sua Verdade (HEIDEGGER
apud LEÃO, 1999, p. 16, grifo nosso).

Mas qual o ponto de partida para realizar o caminho correto


até o Ser? Você tem alguma ideia do que poderia fornecer as pri-
meiras bases para tal questionamento? Você acertou se pensou
que tal caminho deve se iniciar por aquele que põe a questão do
Ser: o homem.
Por que o homem é o caminho inicial para o Ser? Quais qua-
lidades ou funções e atributos ele tem que outros entes não pos-
suem?
O autor entende que todo este pensamento deve partir do
único ente ("entes" são todas as coisas, Deus, o homem – todos
possuem ser), que é consciente de sua relação com o Ser. Daí a
razão de uma analítica existencial do ente humano.
Qual a relação da analítica existencial com o homem? Qual
sua função no pensamento heideggeriano?
A análise existencial do homem pode conduzir à questão do
Ser porque o homem possui a característica de ser-aí (Da-sein);
o homem possui uma relação especial com o Ser – daí dizermos
que a existência do Da-sein é ôntico-ontológica ("ôntico" refere-se
aos entes em geral e "ontológico" refere-se unicamente ao Ser). O
Da-sein está inserido no Ser, é revelação do Ser, é o único capaz de
compreender e interpretar o Ser em seu revelar-se e ocultar-se.
Esta compreensão do Ser constitui a essência do Da-sein:
sendo, o Da-sein se relaciona com o Ser e lhe corresponde; sua
essência se dá pela existência.

Claretiano - Centro Universitário


134 © História da Filosofia Contemporânea II

Nesta análise, o homem é visto, primeiramente, como sen-


do o ser-no-mundo que, diferentemente do que se poderia pensar
pela expressão, não significa que o Da-sein seja uma coisa dentre
todas as coisas que estão no mundo, mas que somente ele tem um
mundo, que é dado pela significação que ele dá a todos os entes. O
autor designa o modo de ser do homem de "mundano", enquanto
para os demais entes ele se utiliza do adjetivo "intramundano".
Enquanto a existência do homem se dá como projeto (é um
poder-ser, é sempre a possibilidade de atuar – ganhando ou per-
dendo seu "eu" mais próprio), os outros entes se dão como uten-
sílios utilizados no projetar. Ser utensílio significa que o ente intra-
mundano é instrumento, e sua essência está não em "ser" algo,
mas em ser "algo para" uma finalidade.
O modo de ser do instrumento é a manualidade, ou seja, o
"estar à mão", como um utensílio. Os utensílios são os entes que
vêm ao encontro do Da-sein, são entes produzidos ou entes que
já estão sempre à mão – como no caso da natureza. O Da-sein "é"
referindo-se a este mundo que lhe vem ao encontro, mundo no
qual ele não está sozinho, o que faz do homem também um
ser-com-os-outros e ser-com-as-coisas.
Outro existencial também muito importante é o ser-para-a-
-morte. A morte é algo pertinente na existência do Da-sein, per-
passando toda sua história e podendo surpreendê-lo a qualquer
momento. A partir de uma reflexão sobre a morte – assumindo-a
– é possível para o Da-sein viver o seu "eu" mais verdadeiro.
Heidegger entende que a existência humana, enquanto um pro-
jeto, significa um "poder-ser" próprio do homem, "uma possibili-
dade de ser ou não ser ele mesmo" (MACDOWELL, 1993, p. 190).
Daí que o autor falará de duas possibilidades do existir humano: o
autêntico (quando tem consciência de si e busca a compreensão
do Ser) e o inautêntico (quando se volta unicamente para o ente,
chegando até a se perder no mundo dos entes).
© U2 - Filosofia Alemã do Século 20 135

Quais as consequências da existência inautêntica? Qual a


posição do homem frente a este problema?
Este modo de existir inautenticamente leva o homem a se
diluir na massa, vivendo na impessoalidade e se distanciando de
si próprio. Exemplificando, Heidegger quer dizer que, ao invés de
afirmar "eu ajo", "eu falo", ou "eu faço" (desta ou daquela manei-
ra), encontramos o "age-se", "fala-se" e "faz-se". Mas esta exis-
tência (imprópria) também é um existencial do Da-sein, pois, na
maioria das vezes, o homem já está ocupado e preocupado com
aquilo que não vai realizar sua existência; já de antemão o Da-sein
não está consigo mesmo, mas está diluído na massa, no "se", no
"a gente".
Diferentemente, a existência autêntica é o modo mais verda-
deiro de o Da-sein viver seu "eu" mais original – é o viver na pro-
priedade –, que chega a inspirar certo temor pela liberdade que
nele está implícita, pelo jogo de poder decidir sua própria sorte. O
autor também entende este existir como angustiado, por conta da
angústia originada pela morte do Da-sein. Na existência autêntica,
assumindo sua única certeza – a morte –, o homem se distancia de
tudo aquilo que era fútil e não-verdadeiramente necessário para
realizar sua existência, ou seja, o homem afasta-se daquilo que o
impossibilitava de ouvir a voz do Ser e dar sua resposta.
Ganhar-se é fazer as verdadeiras escolhas diante de todas
as possibilidades que se apresentam ao ser humano; perder-se
é ligar-se àquilo que não trará contribuições para a realização do
Da-sein, é optar pelas futilidades, inutilidades, tendo como preo-
cupação, ao invés de seu ser, seu interesse em prazer, sucesso e
posses.
Até aqui está tudo claro para você? Não se preocupe se algo
não foi ainda totalmente assimilado, pois esta é uma das muitas
críticas feitas ao pensar heideggeriano: a desnecessidade de uma
linguagem complexa. Mas será mesmo desnecessária?

Claretiano - Centro Universitário


136 © História da Filosofia Contemporânea II

Segunda fase: Revelação pela linguagem.


A problematização que Heidegger faz do real é algo novo e,
da maneira que o faz, faltam palavras na linguagem comum. Mas
ainda temos mais: é necessário falar do chamado Segundo
Heidegger.
Vejamos quais são as contribuições da segunda fase do pen-
samento de Heidegger.
Na segunda fase de seu pensar, o autor entende de maneira
diferente o eixo de revelação do Ser: do Da-sein para a linguagem.
Ou seja, o ser humano somente possibilitará a manifestação do
Ser quando ouvi-lo em sua manifestação: o Ser fala e o ente mun-
dano deverá recebê-lo a partir das coisas que são, por tal ente,
trazidas para a proximidade. Mas não podemos fazer um corte na
obra de Heidegger, estabelecendo-se uma divisão clara entre um
antes e um depois: uma visão cronológico-linear não cabe a esta
explicitação do pensar do filósofo alemão; o que devemos realizar
são verdadeiros cortes de leituras, prendendo-nos à evolução do
pensar, mais que à própria língua que o fala.
Heidegger quer pensar o impensado, que é o próprio Ser, em
seu desenvolvimento histórico oculto. Mas mesmo sendo oculta-
do por aquilo que Heidegger chamou de esquecimento, toda a his-
tória da metafísica se desenvolveu sobre este solo (o impensado),
desenvolvendo toda a concepção metafísica após a experiência
grega, sobre algo que não se conhecia; melhor dizendo, algo não
totalmente claro. O autor buscou, então, na origem o sentido ain-
da impensado para poder construir uma nova metafísica e, a partir
desta, estabelecer um novo modo de habitar a terra.
Heidegger percebe que o esquecimento do Ser não foi sim-
plesmente uma falha ou falta (pela contingência humana), mas foi
uma consequência daquilo que o próprio Ser é: um dar-se e um
retirar-se. Neste sentido, não mais será possível entender o im-
pensado como sendo um solo para todo o pensar desenvolvido,
pois assim teríamos a ideia de algo no qual se toca para se poder
© U2 - Filosofia Alemã do Século 20 137

desenvolver. A nova interpretação se dá de maneira a entender a


origem como um abismo, ou seja, a falta, no retirar-se do Ser.
Segundo Zarader, "o impensado em questão não pode em
nenhum caso ser explicitado positivamente por si mesmo" (1990,
p. 353). Assim, será necessário um pensamento que não busque
o perfeito e claro des-velar da origem, mas que se atente à ma-
neira como o Ser se revela, em seus relances, na história do pen-
samento. A atenção deve ser depositada na linguagem pela qual
o Ser se dá na origem (esta que, então, não se situa mais em um
começo cronológico, mas é o solo-abismo da revelação do Ser).
Então Heidegger buscará decifrar a fundo o sentido das palavras
nas quais se dá o pensar grego: a aurora da Filosofia.
Falar do Ser no início da Filosofia não é o mesmo que falar
do que os pensadores pré-socráticos falaram. Por quê? O pensa-
mento na origem da Filosofia foi expresso por palavras que tinham
direta ligação com a experiência junto do Ser. Já que o Ser era sem-
pre dito por eles, devemos procurar compreender não a própria
palavra "ser", mas sim as palavras fundamentais – palavras estas
que, no fundo, revelavam o tratar do Ser pelos gregos. Uma das
mais importantes de tais palavras é: physis. A própria questão do
Ser e de seu sentido é pensada junto do entendimento da physis.
Heidegger questiona:
[...] O que diz então a palavra physis? Evoca o que sai ou brota de
dentro de si mesmo (por exemplo, o brotar de uma rosa), o desa-
brochar, que se abre, o que nesse despregar-se se manifesta e nele
[sic] retém e permanece; em síntese, o vigor dominante (Walten)
daquilo, que brota e permanece. Lèxicamente 'phyein' significa
crescer. Todavia, o que quer dizer crescer? Significará porventura
apenas in-cremento quantitativo, aumentar de quantidade e tor-
nar-se maior?
A physis, entendida, como sair e brotar, pode-se experimentá-la em
toda [sic], assim, por exemplo, nos fenômenos celestes (nascer do
sol), nas ondas do mar, no crescimento das plantas, no nascimento
dos animais e dos homens do seio materno. Entretanto, physis, o
vigor dominante, que brota, não se identifica com êsses [sic] fenô-
menos, que ainda hoje consideramos pertencentes à 'natureza'. Tal
sair e suster-se fora de si e em si mesmo (Dieses Aufgehen und In-

Claretiano - Centro Universitário


138 © História da Filosofia Contemporânea II

sich-aus-sich-Hinausstehen) não se deve tomar por um fenômeno


qualquer, que entre outros observamos no ente. A physis é o Ser
mesmo em virtude do qual o ente se torna e permanece observá-
vel.
Os gregos não experimentaram, o que seja a physis, nos fenômenos
naturais. Muito pelo contrário: por fôrça [sic] de uma experiência
fundamental do Ser, facultada pela poesia e pelo pensamento, se
lhes des-velou o que haviam de chamar physis (1999, p. 44-45).

A verdade da physis é ouvida principalmente de fragmentos


de Heráclito. Não somente para este pensador, mas também para
os pensadores gregos de um modo geral, o termo significa cresci-
mento. E de que trata este crescimento? É o crescer no sentido de
abrir-se, avançar no aberto, desabrochar (Aufgehen = emergência,
eclosão, demora). A abertura à qual o conceito de physis se refe-
re significa o mostrar-se na presença, ser presente. Será, então,
a partir desta palavra que o autor construirá sua reflexão sobre a
ação da técnica.
A técnica pode dar ao ser humano pretensões nada positivas
em sua con-vivência neste mundo (por exemplo, a pretensão de
se conseguir forjar cada vez mais a realidade na qual está inseri-
do, diante do desejo humano de dominação total). É preciso, en-
tão, saber lidar com a técnica, utilizando-a de maneira a respeitar
a existência de todos os entes, mundanos e intramundanos. Isto
quer dizer enxergar a técnica unicamente como um meio e não
como um fim em si mesmo; a essência da técnica é o fazer-sair-
-do-oculto (HEIDEGGER, 2002, p. 16). Toda a produção possibilita-
da pela técnica resume-se no sair-do-oculto que ela proporciona.
Desta maneira, a técnica é um dos modos de se fazer algo sair do
ocultamento – mas a técnica não é o único modo de se conhecer
a verdade de algo (esta crença leva ao mero aceitar e acatar as
concepções técnicas).
Enfim, com o intuito de ultrapassar barreiras, a tecnologia
busca transformar a tudo em uma grande uniformidade que aca-
ba com a proximidade, pois as coisas passam a estar nem longe
nem perto. A tecnologia não admite a auto-retração da natureza
© U2 - Filosofia Alemã do Século 20 139

(enquanto physis), querendo que esta esteja sempre pronta a ofe-


recer-se ao desejo humano (na verdade, o desejo humano some
diante do desejo da tecnologia). E "se a natureza já não 'fala', é
porque um mundo tecnológico não é de todo um mundo. É sim
uma estrutura, uma instalação, onde o significado nunca é aquilo
que interessa" (FOLTZ, 2000, p. 129).
É exatamente o aparecer da natureza enquanto physis, sig-
nificado na eclosão/ocultação, que Martin Heidegger busca. Ouvir
o que a natureza diz em sua grandeza, revelando sua essência, é o
que proporcionará uma nova visão de mundo; a partir desta nova
visão é que se poderá viver de maneira diferente. "Heidegger su-
gere que é na arte, e portanto no poético, que podemos uma vez
mais ser explicitamente conduzidos ao mistério que é inerente a
toda a revelação e podemos uma vez mais aprender que somos
necessários para a salvaguarda da desocultação" (FOLTZ, 2000,
p.130).
Depois desse conteúdo apreendido sobre a Fenomenologia
na pessoa de Husserl e Heidegger, vamos conhecer e refletir sobre
a contribuição da Escola de Frankfurt para a Filosofia Ocidental.
Siga enfrente!

8. A ESCOLA DE FRANKFURT E A TEORIA CRÍTICA


A Teoria Crítica realiza uma incorporação do pensamento de filóso-
fos 'tradicionais', colocando-os em tensão com o mundo presente
(MATOS, 2005, p. 14)

Com estas palavras da professora Olgária Matos, apresen-


tamos de maneira inicial qual o caminho objetivado e percorrido
pelos pensadores da Escola de Frankfurt. Por esta pequena frase
já é possível perceber que será construído grande debate filosófico
a partir do confronto entre o pensamento e a realidade. Acredita-
mos que, muitas vezes, você, aluno, já tenha empreendido esta
árdua tarefa, buscando enxergar de que maneira as várias ideias
dos pensadores nos levam a pensar a realidade. Por esta razão,

Claretiano - Centro Universitário


140 © História da Filosofia Contemporânea II

neste momento, veremos alguns autores que, iniciando uma nova


teoria, analisarão a sociedade em vários aspectos.
Como surgiu a Escola de Frankfurt? Quem foram seus fun-
dadores?
No ano de 1924 foi fundado o Instituto de Pesquisa Social, na
cidade de Frankfurt. Jovem acadêmico de 25 anos de idade, Félix
Weil convenceu seu pai (Herman Weil) a financiar seu projeto de
criar uma instituição de cunho marxista, com o objetivo de analisar
a sociedade da industrialização moderna sob uma ótica social; e
assim se deu: com local próprio para o desenvolvimento dos tra-
balhos, o auxílio anual dado por Weil conseguiu sustentar as obras
e o pessoal.
O primeiro diretor da Escola foi Carl Grümberg, na função
de 1923 a 1930, que deu nome ao primeiro órgão de divulgação
do Instituto: uma publicação chamada "Arquivos Grümberg". Logo
depois, o Instituto ficou sob a direção de Friedrich Polloch, mas
por pouco tempo, até que Max Horkheimer assumiu em 1931. A
partir deste momento, a Escola passou a ganhar importância cada
vez maior, tendo como órgão a "Revista para a Pesquisa Social",
que já indicava os direcionamentos mais filosóficos que políticos.
Na história do pensamento, a Escola de Frankfurt conquistou pres-
tígio pelo seu programa denominado "teoria crítica da sociedade".
A partir desse programa, a sociedade será revista pela teo-
ria frankfurtiana tratando dos problemas da história, da política
e da sociologia, tomando por base Platão, Kant, Hegel, Marx,
Schopenhauer, Bergson e Heidegger, dentre outros. Como afirma
Reale:
A pesquisa social é "a teoria da sociedade como um todo"; ela não
se resume ou se dissolve em investigações especializadas e seto-
riais, mas tende a examinar a relações que ligam reciprocamente
os âmbitos econômicos com os históricos, bem como os psicológi-
cos e culturais, a partir de uma visão global e crítica da sociedade
contemporânea [instaurando] [...] aquele laço entre hegelianismo,
marxismo e freudismo que caracterizava a escola de Francoforte
[...].
[...] O facismo, o nazismo, o stalinismo, a guerra fria, a sociedade
opulenta e a revolução não realizada, por um lado; e, por outro, a
© U2 - Filosofia Alemã do Século 20 141

relação entre Hegel e o marxismo e entre este e as correntes filosó-


ficas contemporâneas, como também a arte de vanguarda, a tecno-
logia, a indústria cultural, a psicanálise e o problema do indivíduo
na sociedade moderna são temas que se interligam na reflexão dos
expoentes da escola de Francoforte (1991, p. 837-39).

Por conta da ascensão nazista, o grupo de pensadores da Es-


cola migrou primeiro para Genebra, depois para Paris e, por fim,
para Nova York; mesmo com as dificuldade, trabalhos importantes
surgiram neste período, por exemplo, Estudos sobre a autorida-
de e a família, de 1936, e A personalidade autoritária, de 1950.
Terminada a Segunda Guerra Mundial, alguns frankfurtianos vol-
taram para a Alemanha e, em 1950, o Instituto de Pesquisa Social
renasceu, abrindo caminho para novos pensadores (por exemplo,
Habermas).
Tratemos, agora, de alguns dos principais autores da Escola
de Frankfurt (Horkheimer, Adorno, Marcuse e Habermas) – dei-
xamos claro que você ainda pode buscar outros autores também
importantes (Benjamin, Fromm e Reich, dentre outros).

Horkheimer
Horkheimer (1885-1973) era de as-
cendência judaica, nascido em Stuttgart.
Estudou literatura, passando para a psico-
logia e, desta, para a Filosofia – estudou
em München, Freiburg e Frankfurt. Em
1923 o autor se associou ao Instituto de
Pesquisa Social, do qual passou a ser di-
retor a partir de 1931, quando assumiu o
cargo de professor titular na Universidade
de Frankfurt. Quando o Instituto foi fecha- Figura 4 - Max Horkheimer
do em 1933, Horkheimer estava na Suíça,
em um anexo do Instituto, passando a dirigi-lo – já exilado; pas-
sou a publicar sob o pseudônimo de "Heinrich Regius" até se fixar
nos EUA, em 1934. Apenas em 1948 o autor voltou para Frankfurt,

Claretiano - Centro Universitário


142 © História da Filosofia Contemporânea II

onde chegou ao reitorado, de 1951 a 1953. Em 1959 mudou-se


para a Suíça, mas não perdeu contato com o Instituto.
Horkheimer acredita que a Filosofia tenha como função o
"denunciar" a maneira imprópria como a sociedade industrial
moderna entende a razão, deixando-se dominar por ela; a razão
criticada é a razão instrumental, base do que chamou de Teoria
Tradicional. A Teoria Crítica vem mostrar que, da maneira como é
entendida a razão pela sociedade industrial moderna, não se bus-
ca conhecer o homem em sua racionalidade, mas apenas se utili-
zar da razão como um instrumento de dominação do mundo, sem
ligação alguma com a práxis histórica. Este fator perpetua tanto a
dominação do capitalismo quanto do comunismo como regimes
totalitários (o homem é sempre objeto, seja nas mãos do capital
ou do Estado).
Para os sujeitos do comportamento crítico, o caráter discrepante
cindido do todo social, em sua figura atual, passa a ser contradição
consciente. Ao reconhecer o modo de economia vigente e o todo
cultural nele baseado como produto do trabalho humano, e como
a organização de que a humanidade foi capaz e que impôs a si mes-
ma na época atual, aqueles sujeitos se identificam, eles mesmos,
com esse todo e o compreendem como vontade e razão: ele é o
seu próprio mundo. Por outro lado, descobrem que a sociedade é
comparável com processos naturais extra-humanos, meros meca-
nismos, porque as formas culturais baseadas em luta e opressão
não é a prova de uma vontade autoconsciente e unitária. Em outras
palavras: este mundo não é o deles, mas sim o mundo do capital
(HORKHEIMER, 1975, p. 138).

A Filosofia deve, então, tomar os exemplos de luta na histó-


ria e fazer com que sejam conhecidos para que a sociedade perce-
ba o quanto a razão instrumental leva à diminuição da autonomia
humana ao elevar o nível técnico em todos os âmbitos. É preciso
enfrentar a opressão da sociedade industrial, denunciando esta ra-
cionalidade que – de tanto buscar rigor – acaba abstrata por não
se atentar à práxis histórica.
Nas palavras de Reale (1991, p. 848):
A razão, portanto, não nos dá mais verdades objetivas e universais
às quais possamos nos agarrar, mas somente instrumentos para
© U2 - Filosofia Alemã do Século 20 143

objetivos já estabelecidos: não é ela que fundamenta e estabelece


o que sejam o bem e o mal, como base para orientarmos nossa
vida; quem decide sobre o bem e o mal agora é o "sistema", ou
seja, o poder.

Theodor Wiesengrund Adorno


Adorno (1903-1969) era de ascen-
dência judaica, com pai alemão e mãe
italiana. De início sua atenção estava vol-
tada para a música, pois vinha de uma
família de musicistas; assim, dedicou-se
detidamente à estética musical. Para es-
tudos no campo da música, o autor se
mudou para Viena em 1925, retornando
para Frankfurt apenas em 1928. Defen-
deu sua tese de doutorado em 1931, so- Figura 5 - Theodor Wiesengrund
bre Kierkegaard, mas vinculou-se à Escola Adorno
de Frankfurt apenas em 1938, já sendo
exilado nos EUA. Retornando para a Alemanha, auxiliou na direção
do Instituto de Pesquisa Social, até assumir o cargo de diretor em
1958, com a aposentadoria de Horkheimer; em 1968 tornou-se
reitor da Universidade de Frankfurt.
Apresentaremos o pensamento de Adorno a partir de duas
questões principais: a dialética negativa e a indústria cultural. An-
tes de continuar a leitura, reflita sobre estas ideias; faça um exer-
cício filosófico e tente imaginar de que maneira as duas poderiam
ser entendidas e, depois, confronte com o pensamento adornia-
no.
Dialética negativa
Qual o ponto chave da dialética negativa?
A "dialética negativa" faz referência à obra Fenomenologia
do Espírito de Hegel – não tomando a dialética como sistema, mas
em seu potencial crítico. A adjetivação "negativa" indica a negação

Claretiano - Centro Universitário


144 © História da Filosofia Contemporânea II

da identidade entre a realidade e o pensamento; ou seja, pensar


sobre a realidade não significa que seja possível conhecer o real –
a razão não consegue tal feito porque o real não é razão.
Veja que a ideia anterior "tira" da Filosofia a pretensão de
poder conhecer o real por completo, desvendando-o. Na verdade,
é este mesmo o objetivo do filósofo: indicar a ilusão de se acredi-
tar que algum sistema possa conhecer a realidade. Para ele, o que
tais sistemas fazem é tentar eternizar um "presente" das coisas,
tentando abarcar a totalidade. A dialética negativa mostra não ser
possível abarcar o total por conta da impotência do espírito; temos
apenas o objeto em seu primado, particular, individual.
Em outros termos, a dialética negativa não é dialética ide-
alista, que mascara com esquemas conceituais a realidade, e sim
muito mais uma dialética materialista, para a qual a realidade não
é absolutamente racional e segundo a qual uma realidade despe-
daçada, não pacificada e irredutível infringe e desmistifica todas as
tentativas filosóficas, toda "totalidade" tanto teórica como prática,
isto é, política.
Indústria Cultural
Sobre a indústria cultural, o pensamento de Adorno é o de
que tal expressão se refere à exploração dos bens tidos como cultu-
rais; é mesmo uma substituição da expressão "cultura de massa".
A indústria cultural aponta para um aspecto de muita importância
que deve ser analisado: a exploração da técnica sobre a massa,
reduzindo a humanidade àquilo que será de interesse técnico. Vi-
vemos, então, segundo o autor, um movimento dialético do que o
Iluminismo começou: o homem foi libertado do medo, buscando a
conquista do mundo; agora o homem não tem liberdade, estando
totalmente preso à técnica.
O mundo inteiro passou pelo crivo da indústria cultural. A velha ex-
periência do espectador cinematográfico para que a rua lá de fora
parece a continuação do espetáculo acabado de ver – pois que este
quer precisamente reproduzir de modo exato o mundo percepti-
vo de todo dia – tornou-se o critério da produção. Quanto mais
© U2 - Filosofia Alemã do Século 20 145

densa e integral a duplicação dos objetos empíricos por parte de


suas técnicas, tanto mais fácil fazer crer que o mundo de fora é o
simples prolongamento daquele que se acaba de ver no cinema.
(HORKHEIMER & ADORNO apud ADORNO et al., 2000, pp. 174-75).

Herbert Marcuse (1898-1978)


Também de ascendência ju-
daica, envolveu-se no movimento
revolucionário em 1918/19, du-
rante a Revolução Berlinense. Seus
estudos filosóficos se deram em
Berlim e Freiburg, período no qual
conheceu Husserl e foi aluno de
Heidegger (seu orientador no dou-
torado) chegando a ser assistente
Figura 6 - Herbert Marcuse
dele. Em 1933, Marcuse foge para
Genebra, chegando a se fixar nos
EUA em 1934 – o contato com Horkheimer se deu por conta de
Husserl. No período em que estava ligado à Escola de Frankfurt foi
gerando as ideias que seriam defendidas em suas grandes obras;
Marcuse optou por ficar nos EUA quando Horkheimer e Adorno
voltam para a Alemanha – assim, aos poucos vai se afastando dos
pensadores frankfurtianos. O autor trabalhou no Departamento
de Estado, foi professor em Harvard de 1953 a 1954, quando se
tornou professor em Boston, até 1965. Também atuou na Univer-
sidade de San Diego, começando a "se caracterizar como uma das
referências mais importantes da Nova Esquerda [norte] america-
na" (MATOS, 2005, p. 68).
Para apresentar, ainda que de maneira breve, o pensamento
de Marcuse, tomamos uma ideia principal: a relação entre a feli-
cidade do ser humano e sua realização na sociedade atual. Pare
e pense em tal relação: como seria pensar a realização humana
na sociedade em que vivemos? Possivelmente buscaríamos fun-
damentar nossa ideia em alguma teoria; assim também Marcuse,

Claretiano - Centro Universitário


146 © História da Filosofia Contemporânea II

que apresenta um pensar que reflete sobre ideias principalmente


de Hegel, Marx e Freud.
Para o autor, toda necessidade advém de uma falta sentida
de determinados objetos – mas a partir de que podemos dizer que
existe a real necessidade de algo? Marcuse mostra que existe uma
falsa consciência da realidade; ou seja, o ser humano acredita ter
determinadas necessidades apenas porque a sociedade diz que
ele as tem – e ele não se dá conta disso.
A sociedade (tecnológica) na qual vivemos não permite, as-
sim, a felicidade humana, criando sempre e cada vez mais, neces-
sidades a serem buscadas ad infinitum; tudo isso porque devemos
obedecer ao que manda a civilização. Aqui entendemos sua grande
obra Eros e Civilização (1955), que busca bases na teoria freudia-
na. Segundo o pai da psicanálise, a história da civilização significa
o início da repressão do Eros – os instintos humanos.
E você, o que pensa? É possível buscar a realização dos ins-
tintos na civilização?
Não sendo possível a existência dos instintos na sociedade,
Freud entende que o processo se dá quando o "princípio da reali-
dade" se estabelece sobre o "princípio do prazer" (é a Civilização
detendo o Eros). Marcuse entende tal situação, mas busca ir além,
não a aceitando como algo único e imutável – ele vê a possibilida-
de de uma sociedade não repressora dos instintos, ao invés desta
sociedade de uma única dimensão.
Por "sociedade unidimensional" o autor entende a sociedade
tecnológica, que apresenta uma única visão de mundo, que deve
ser obedecida, sem possibilidade de questionamento – é o con-
trole social. Nesta situação também encontramos uma "filosofia
unidimensional", da lógica de dominação tecnológica. Estas ideias
são tratadas na obra One Dimensional Man (1964), que tem como
tradução para o português A Ideologia na Sociedade Industrial.
© U2 - Filosofia Alemã do Século 20 147

Para Marcuse, a solução deste problema não pode vir dos


trabalhadores, considerando que, entendo-se como inseridos no
sistema, já não têm força de transformação. O caminho vem da-
queles que não são considerados dentro do sistema e que, aos
poucos, vão se inserindo na história: a grande massa de margina-
lizados.
Esquecer é também perdoar o que não seria perdoado se a justiça e
a liberdade prevalecerem. Esse perdão reproduz as condições que
reproduzem injustiça e escravidão: esquecer o sofrimento passado
é perdoar as forças que o causaram – sem derrotar essas forças. As
feridas que saram com o tempo são também as feridas que contêm
o veneno. Contra essa rendição ao tempo, o reinvestimento da re-
cordação em seus direitos, como um veículo de libertação, é uma
das mais nobres tarefas do pensamento (MARCUSE. In: MATOS,
2005, p. 97).

Jürgen Habermas (1929)


No período que marcou o início
da Escola de Frankfurt nasceu Haber-
mas – autor remanescente de tal grupo
de pensadores; nasceu em Düsseldorf,
mas estudou em várias universidades,
passando por várias áreas: filosofia, psi-
cologia, história e economia dentre ou-
tras, doutorando-se em 1954, com tese
sobre Schelling. Habermas, já tomando
parte do Instituto de Pesquisa Social,
tornou-se assistente de Adorno – fato Figura 7 - Jürgen Habermas
significativo em sua vida, por não ser
algo comum, pela pouca idade; mas o autor perdeu um pouco a
ligação com o Instituto quando foi-lhe negada uma bolsa preten-
dida (1961). Lecionou em Heidelberg no período de 1961 a 1964,
quando chegou a ser professor em Frankfurt até 1971, tornando-
-se diretor do Instituto de Pesquisa Social Max-Planck.
Habermas é o herdeiro da tradição de pensamento crítico alemão,
em especial de Karl Marx, que foi relida e adaptada pela Escola de
Frankfurt, que a temperou com um pouco de Weber, Lukács, Freud

Claretiano - Centro Universitário


148 © História da Filosofia Contemporânea II

e Heidegger e que foi por fim confrontada e em parte mixada com


o pensamento de linhagem pragmatista e linguística [sic] dos pen-
sadores anglo-saxões.
O projeto intelectual de Habermas busca desenvolver a "crítica" em
dois sentidos: uma teoria social que procura encontrar a validade
de suas bases – examinar as condições em que é possível tal filoso-
fia – e uma teoria que permita desnudar a injustiça.
As bases dessa teoria, para Habermas, estão na compreensão da
"ação comunicativa", dos pressupostos de uma "comunidade ide-
almente livre" e das regras que permitem às pessoas chegarem
a um entendimento racional. (Disponível em: <http://www.mre.
gov.br/portugues/noticiario/nacional/selecao_detalhe.asp?ID_
RESENHA=320730&Imprime=on>. Acesso em: 07 jun. 2007).

Para Habermas, o tecnicismo deve ser criticado para que se


consiga desnudá-lo como ideologia que faz do ser humano apenas
mais um instrumento da tecnologia; ou seja, tentar, de qualquer
maneira, fazer com que o saber científico se plenifique na tecno-
logia moderna leva o ser humano a viver em um mundo ilusório,
que apenas obedece aos desejos de interesse capitalista. O autor
quer trazer as raízes antropológicas da prática científica; seu pen-
sar está principalmente preocupado com as ciências sociais.
Da maneira como encontramos as ciências na atualidade,
vemos que elas não podem resolver problemas da prática huma-
na, que envolvem avaliação e decisão; a ciência apenas conhece,
sem condições de avaliar. Mas, então, de onde poderiam vir as
condições de avaliação? Habermas diz que comumente recorre-se
a imagens e forças míticas que, arbitrariamente, estabelecem os
fins segundo os quais deve se orientar a ação. "O positivismo caiu
nas malhas da mitologia, da qual só a dialética poderá libertá-lo,
transformando em riso a profunda ironia." (REALE, 1991, p. 864)

As ideias habermasianas constituem sua Teoria da Ação Co-


municativa. Segundo o autor, a razão da ciência é a razão instru-
mental que deve ser contraposta à sua ideia de razão comunica-
cional. Sua proposta é fazer a análise de processos comunicativos,
© U2 - Filosofia Alemã do Século 20 149

sempre com um fim emancipatório; tal análise leva à ação que


visa à reciprocidade entre os sujeitos, assentando-se no entendi-
mento/acordo de comunicação pública. Habermas entende que
toda regra, bem como todo reconhecimento de "valor" não são
estabelecidos a partir da consciência que se tem dos fins, mas sim
pela argumentação do que pode ser aceito e validado pelo grupo
social.
É lógico que o processo de comunicação só pode realizar-se ple-
namente numa sociedade emancipada, que propicie as condições
para que seus membros atinjam a maturidade, criando possibilida-
des para a existência de um modelo de identidade do Ego, formado
na reciprocidade e na idéia de um verdadeiro consenso. Neste as-
pecto, o nível de veracidade das proposições funda-se numa ante-
cipação relativamente ao existencial. (HABERMAS, 1975, p. 300)

9. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS
Os principais assuntos tratados neste material são a fenome-
nologia de Husserl, Scheler e Heidegger e o pensamento da escola
de Frankfurt. Refletir sobre as questões propostas a seguir pode
ser importante para o seu aprendizado, pois elas abordam temas
específicos dos conteúdos tratados nesta unidade. Portanto, não
deixe de os tentar resolver, isso poderá ser de grande valia para o
seu aprendizado.
1) A fenomenologia como ciência rigorosa investiga:
a) Os fenômenos e as coisas em si.
b) A representação e o noumeno.
c) As aparências e as essências.
d) As essências
2) A filosofia de Heidegger, em geral, podemos definir como:
a) Como ontologia fundamental que se interroga pelo sentido do ser.
b) Como ontologia fenomenológica que interroga pelo sentido dos entes.
c) Como ontologia voluntarista que interroga sobre a liberdade.
d) Como fenomenologia ontológica que interroga sobre a condição huma-
na.

Claretiano - Centro Universitário


150 © História da Filosofia Contemporânea II

3) Habermas foi o filosofo que criou:


a) A teoria da ação comunicativa.
b) A teoria da comunicação social.
c) A teoria do sistema da informação.
d) A teoria do sistema comunicativa.
4) O conceito de dialética negativa utilizada por Adorno faz referência ao:
a) Parmênides.
b) Espinosa.
c) Reinhold.
d) Hegel.
5) O que é ser para Heidegger?
a) Ser é uma noção que diz respeito à realidade concreta.
b) Ser é uma noção que diz respeito à totalidade dos entes.
c) Ser é uma noção que remete ao ser humano.
d) Ser é uma noção que define Dasein.
6) Qual a crítica que Heidegger dirige à tradição metafísica?
a) A metafísica tradicional é esquecimento do ser.
b) A Metafísica tradicional é desvelamento do ser.
c) A metafísica tradicional é essencialmente moral.
d) A metafísica tradicional é esquecimento dos entes.
7) Segundo Adorno, a indústria cultural promove:
a) Autentificação no homem.
b) Erudição no homem.
c) Massificação da cultura.
d) Popularização da arte.

Gabarito
1) d.
2) a.
3) a.
4) d.
5) b.
6) a.
7) c.
© U2 - Filosofia Alemã do Século 20 151

10. CONSIDERAÇÕES
Com o estudo desta unidade, você pôde acompanhar o
desenvolvimento da fenomenologia de Husserl, Scheler e, espe-
cialmente, de Martin Heidegger. Mas, além de ter acompanhado
a nova direção filosófica proposta por esses pensadores, pôde
acompanhar outro importante período da filosofia: o da famosa
escola de Frankfurt e seus principais pensadores.
As questões aqui tratadas foram importantíssimas para a
compreensão do pensamento humano em nossos dias.
Não deixe de vasculhar, na bibliografia indicada, aqueles te-
mas que chamaram sua atenção para a pesquisa. As críticas dos
pensadores aqui estudados podem o auxiliar na compreensão de
assuntos importantes do mundo contemporâneo.
Na próxima unidade, você entrará em contato com a filosofia
do século 20 desenvolvida na França. Neste país, outros impor-
tantes filósofos questionaram e trataram temas essenciais para o
pensamento filosófico. Portanto, não deixe de se empenhar em
seus estudos. Esperamos que esta unidade tenha lhe proporciona-
do interessantes questionamentos e um ótimo aproveitamento na
construção de seu conhecimento!
Bons estudos!

11. E-REFERÊNCIAS
Figura 1 Edmund Gustav Albrecht Husserl. Disponível em: <http://www.educa.madrid.
org/web/ies.tirsodemolina.madrid/contenidos/departamentos/Filosofia/imagenes/
Husserl.jpg>. Acesso em: 4 maio 2010.
Figura 2 Max Scheler. Disponível em: <http://www.personalismo.org/wp-content/
themes/libra/imagenes/max-scheler.jpg>. Acesso em: 22 jul. 2007.
Figura 3 Martin Heidegger. Disponível em: <http://www.ibiblio.org/hhalpin/homepage/
presentations/programmingtalk/heidegger.jpg>. Acesso em: 4 maio 2010.
Figura 4 Max Horkheimer. Disponível em: <http://www.dec.ufcg.edu.br/biografias/
maxhorkh.jpg>. Acesso em: 23 jul. 2007.

Claretiano - Centro Universitário


152 © História da Filosofia Contemporânea II

Figura 5 Theodor Wiesengrund Adorno. Disponível em: <http://www.filosofiavirtual.pro.


br/imagens/adorno.jpg>. Acesso em: 22 jul. 2007.
Figura 6 Herbert Marcuse. Disponível em: <http://www.harvardsquarelibrary.org/
beacon/spring07images/spring07images/21-feenberg-marcuse/marcusepic.jpg>.
Acesso em: 22 jul. 2007.
Figura 7 Jürgen Habermas. Disponível em: <http://weblogs.nrc.nl/weblog/wereld/wp-
content/uploads/maart2007/habermas.jpg>. Acesso em: 22 jul. 2007.

12. BIBLIOGRAFIA
ABBAGNANO, N. Dicionário da filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
GILES, T. História do existencialismo e da Fenomenologia. São Paulo: EPU, 2003.
KANT, I. A metafísica do costumes. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
ROVIGHI, S. V. História da Filosofia Contemporânea. São Paulo: Loyola, 1999.
SCHELER, M. L'eterno nell'uomo. Milão: Fabbri, 1972.
______. Scriften aus derm Nachlass, (Nachlass I) Berlim: Der Neue Geist Verlag, 1933.
STEGMÜLLER, W. A filosofia contemporânea. São Paulo: EPU, 1977.
EAD
A Filosofia
Francesa do Século

3
20

1. OBJETIVOS
• E xaminar e entender a importância da influência da gera-
ção 3 H no pensamento de Jean-Paul Sartre.
• Compreender a definição dada pelo autor à situação hu-
mana
• Compreender a importância do método analítico existen-
cial para a filosofia sartreana.
• Compreender o conceito de "angústia".
• Analisar a questão do cogito e a complexificação da noção
de sujeito e subjetividade.
• Examinar e entender o contexto da psicanálise sob a ótica
da filosofia francesa.
• Examinar e entender o contexto do estruturalismo nesta
época.
154 © História da Filosofia Contemporânea II

• Compreender os conceitos de Instinto, Intuição e Inteli-


gência em Bérgson.

2. CONTEÚDOS
• F ilosofia Francesa: Bérgson
• O conceito de Instinto; o conceito de Intuição; o conceito
de Inteligência.
• Sartre.
• Influências da geração 3 "H" (Husserl, Heidegger e Hegel);
a situação humana; o método analítico existencial; a
questão do cogito e da questão da subjetividade; o Ser e
o Nada; os primeiros escritos; a Transcendência do Ego; o
conceito de Angústia; a psicanálise; o estruturalismo.

3. ORIENTAÇÕES GERAIS PARA O ESTUDO DA UNI-


DADE
• Os principais nomes do existencialismo, além de Jean-
-Paul Sartre, são Maurice Merleau-Ponty e Albert Camus.
Não deixe de pesquisar sobre a vida e a obra destes filó-
sofos.
• Não deixe de fazer anotar os principais conceitos apre-
sentados durante a disciplia. Isso poderá facilitar sua
compreensão da filosofia contemporânea como um todo.

4. INTRODUÇÃO: A FILOSOFIA DO PÓS-GUERRA


Nesta unidade, você será introduzido ao pensamento de
Jean-Paul Sartre e, a partir de alguns temas centrais de sua filoso-
fia, poderá conhecer, também, outros autores franceses do mes-
mo período.
Vamos lá?
© U3 - A Filosofia Francesa do Século 20 155

Bem, Sartre realizou seus estudos em filosofia no quadro do


ensino acadêmico do começo do século 20. Naquele momento, a
academia francesa era dominada, principalmente, pelo Positivis-
mo, pela filosofia de Henri Bérgson e pelo movimento neokantia-
no. Estas escolas representavam tendências que tiveram início no
final do século 19 e estendiam seu primado nas universidades até
o período entre-guerras. Sartre, por sua vez, estreia na cena filosó-
fica francesa criticando fortemente estas escolas.
Em seus primeiros escritos, Sartre discute, principalmente,
temas caros à psicologia e à filosofia da consciência. Por outro
lado, neles já podemos acompanhar a introdução de conceitos e
referências completamente estranhos à filosofia francesa de então
e cuja presença pode ser explicada pela adesão do autor à Feno-
menologia de Husserl, à ontologia de Heidegger e a certa leitura
"antropológica" da Fenomenologia do Espírito de Hegel.
Aliás, a influência dos três filósofos alemães é uma constante
do período que Sartre inicia. A adesão de toda uma nova geração
francesa às filosofias de Husserl, Heidegger e Hegel reservou-lhes,
inclusive, o título de "geração dos três H" (cf. DESCOMBES, 1979,
p. 13). Contudo, esta geração não deixou de aclimatar cada um
dos "H" a seu próprio campo de investigação: a "consciência em
situação", ou a "consciência encarnada".
A palavra-de-ordem desta geração era fazer a filosofia des-
cer ao terreno da vida concreta, alcançar a "situação humana" por
meio de uma "analítica existencial" da consciência. De modo que
esta primeira geração do século 20 é responsável por um impor-
tante episódio da Filosofia contemporânea promovendo o nasci-
mento de uma nova problemática: o existencialismo francês.
No caso de Sartre, veremos que ele não apenas adotou o mé-
todo da descrição fenomenológica da consciência de Husserl, mas
procurou estendê-la a um terreno que não fora explorado pelo pai
da Fenomenologia. A descrição fenomenológica de Sartre visava
ao terreno do "homem no mundo", da "consciência em situação",

Claretiano - Centro Universitário


156 © História da Filosofia Contemporânea II

ampliando o tema da redução praticada por Husserl e segundo a


qual a filosofia deveria limitar-se à esfera da "consciência pura".
Por outro lado, a ontologia de Heidegger ganha, com Sartre,
sua versão francesa. Nesta versão, o cogito adquire um papel cen-
tral para uma reflexão sobre o Dasein ou o "ser-no-mundo".
Finalmente, Sartre aplica o método dialético ao estudo da
consciência. Contudo, os conceitos hegelianos adquirem uma
nova interpretação sob a pena de Sartre. Por exemplo, o "Em-si"
e o "Para-si", conceitos centrais da filosofia do Espírito de Hegel,
serão adaptados, por Sartre, a uma "ontologia dualista" do Ser e
do Nada.
Acompanhemos, então, a formulação de cada um desses te-
mas.

5. A FILOSOFIA DE HENRI-LOUIS BÉRGSON (1859-


1941)
E se forem necessários meses ou anos? Consagraremos a isto o
tempo que for preciso. Uma vida não é suficiente? Muitas vidas
se sucederão; nenhum filósofo está obrigado a construir toda a
filosofia. Esta a linguagem que reservamos para o filósofo. Este
o método que lhe propomos. Ele exige que estejamos sempre
prontos, seja qual for a idade, a nos tornarmos novamente
estudantes (BERGSON, 1974b, p. 144).

Pense no trecho citado e perceba a importância que é dada à


dedicação necessária ao ato de filosofar. E mais: veja que, a partir
da ideia expressa, podemos refletir sobre a diversidade de pen-
samentos (às vezes contrários) no âmbito da Filosofia: ninguém
é obrigado a dar conta da Filosofia como um todo – na verdade,
ninguém consegue tal feito: a Filosofia se dá nas muitas vidas que
se sucedem buscando conhecer a Realidade. E uma característica
que devemos adquirir é a capacidade de, a cada momento, ser
estudante, re-aprendendo o já aprendido. Acreditamos que este
pensamento deva guiar toda nossa caminhada enquanto apaixo-
nados pela sabedoria.
© U3 - A Filosofia Francesa do Século 20 157

Biografia de Henri-Louis Bérgson


Henri-Louis Bérgson nasceu em
Paris no ano de 1859. Seus estudos ini-
ciais se deram nas áreas da matemática
e mecânica, somente depois chegando à
Filosofia (a filosofia bergsoniana tornou-
-se muito conhecida e exerceu influencia
em vários campos do conhecimento).
Dentre várias obras, destacamos
aqui quatro delas, que representam a
Figura 1 – Henri-Louis Bérgson
evolução espiritual do autor:
• Essai sur les données imédiates
de la conscience (Ensaios sobre os dados imediatos da
consciência, 1889, sua tese de doutorado que teve gran-
de sucesso).
• Matière et mémoire (Matéria e memória, 1896).
• L'évolution créatice (A evolução criadora, 1907) e
• Les deux sources de la morale et de la religion (As duas
fontes da moral e da religião, 1932).
Se ele tinha formação inicial em matemática e mecânica,
por que de ele se mudar para a Filosofia? Quando Bérgson migrou
para a Filosofia, por sua grande capacidade e sucesso com os
números, alguns autores afirmam que a Matemática perdeu um
de seus possíveis grandes teóricos. Mas, assim, o pensamento
filosófico ganhou um autor de peso imaginativo e ampla visão,
sem fazermos referência à sua brilhante e cativante escrita, com
linguagem de rara beleza, em função de tal estilo literário, em
1927, Bérgson conquistou o Prêmio Nobel de Literatura. Sua obra
ganhou reconhecimento, conferindo-lhe grande prestígio: suas
aulas eram acontecimentos disputados, tornando-se mesmo uma
"filosofia da moda".

Claretiano - Centro Universitário


158 © História da Filosofia Contemporânea II

A origem religiosa de Bérgson era a judaica, mas, aos poucos,


foi criando maior aproximação com o catolicismo, entendido como
o que "completa" o judaísmo (não chegou à plena conversão ape-
nas pelo antissemitismo que vinha crescendo); o autor morreu em
uma França tomada pelos nazistas.
Qual o ponto de partida do pensamento de Bérgson? A obra
bérgsoniana tem sempre como guia a experiência da consciência,
entendendo esta como sendo a própria vida espiritual, plena em
uma energia criadora.
Qual a proposta a ser alcançada pela consciência com base
na experiência? A experiência pura da consciência é levar ao ple-
no conhecimento da realidade – tal experiência incitará o autor a
criticar a História da Filosofia, enquanto esta tem por base uma
metafísica desviada de seu caminho, que se revela mais "física"
que "meta".

PARA VOCÊ REFLETIR:


Em qual período esta metafísica foi desviada em comparação a
proposta lançada pelos gregos? Quem são os pensadores respon-
sáveis por este desvio do estudo metafísico? Anote suas reflexões
no Bloco de anotações.

Instinto, intuição e inteligência


Com base na luta contra os desvios que a Filosofia do século
19 e 20 apresentam para Bérgson, quais são os instrumentos utili-
zados para que o processo seja amenizado? De início, precisamos
saber que a profunda experiência da consciência é a experiência
da duração (durée), direta e imediata; a consciência intui a dura-
ção enquanto característica de si própria.
A duração não é calculável, não podendo ser expressa por
meio de conceitos que se dão pelo tempo e espaço. "A intuição é
o órgão da metafísica" (REALE, 1991, p. 721) que nos revela um
"durar" da consciência; intuir algo significa transportar-se para o
interior de um objeto, atingindo o absoluto deste.
© U3 - A Filosofia Francesa do Século 20 159

Por exemplo, pensemos a percepção que temos de nós mesmos:


é algo interior (diferente do perceber outro objeto) que se dá por
uma simpatia. Daí o autor observar ser "mais difícil avançar no co-
nhecimento de si do que no do mundo exterior" (BERGSON, 1974b,
p. 127).

Diferentemente da intuição, temos o instinto e a inteligên-


cia.
O instinto é dado por órgãos naturais, de maneira incons-
ciente e que não varia; relaciona-se apenas ao que é particular, ao
presente. A inteligência, por sua vez, consegue tratar da relação
entre as coisas, sendo consciente, através de conceitos e formas;
ela analisa, ou seja, subdivide em partes para poder conhecer. As-
sim, podemos entender a intuição como sendo o instinto desinte-
ressado que reflete sobre o objeto; é o instinto ligado à inteligên-
cia.
Dissemos que o instinto leva ao conhecimento da duração –
mas o que é a duração? Não podemos dizer que é o movimento,
mas é o movente em plenitude. A consciência não se dá no tempo
(com antes e depois), mas sim através de uma sobreposição de
momentos impossível de ser dividida. Nas palavras do próprio
Bérgson (2005, p. 5): "A duração é o progresso contínuo do passa-
do que rói o porvir e que incha o avançar".
E por que apenas a intuição, e não a inteligência, consegue
captar a duração? Simplesmente porque a inteligência desfaz a du-
ração em "pedaços", apenas sendo capaz de pensar o movimento
como se fosse um espaço: a inteligência é espacializadora e trans-
fere as propriedades do espaço para o tempo original; tempo é o
devir em geral.
Somente a intuição pode mostrar que "a duração interior é
a vida contínua de uma memória que prolonga o passado no pre-
sente" (BERGSON, 1974a, p. 31). Ou seja, não há um passado que
"vem antes" de um futuro: é um perdurar no qual os momentos
não se distinguem.

Claretiano - Centro Universitário


160 © História da Filosofia Contemporânea II

A duração pura apresenta-nos uma sucessão puramente interna,


sem exterioridade; o espaço apresenta-nos uma exterioridade sem
sucessão. (DELEUZE, 1999, p. 27).

Para visualizarmos (pois aqui estamos na inteligência), a in-


teligência conhece o tempo como se fosse um colar de pérolas,
possível de se tomar cada parte separadamente; enquanto isso, a
intuição conhece o tempo como duração, como se fosse um nove-
lo de lã que, ao se trazer o momento presente, este vem ligado – e
traz consigo – todo o passado "condensado". Na duração, o que
"vem depois" não é mera combinação do antecedente, pois há a
possibilidade de surgir o novo – por conta do que Bérgson chamou
de impulso vital (pleno de criatividade). Daí entendermos também
o pensamento evolucionista de Bérgson – muito influenciado pelo
positivismo evolucionista de Herbert Spencer.
Para Bérgson, a consciência é o mais alto grau de evolução
alcançado pela matéria, e isto só se deu pelo impulso vital; ele
entende que espírito (que é a duração em sua máxima conden-
sação) e matéria (que é a duração em sua máxima distensão) são
apenas dois pólos de uma mesma realidade, e não duas realidades
diferentes. O biológico não é estático, mas se modifica levando ao
novo, sempre conservando seu passado todo: é evolução criadora,
sem caminho definido (como se fosse uma granada que, ao explo-
dir, acionasse outras granadas sucessivamente).
Na teoria do conhecimento bergsoniana encontramos uma
distinção muito importante para mostrar que na consciência há
muito mais que no cérebro: é a relação entre a realidade interna
e a externa, entre a matéria e a memória. O mental não é sim-
plesmente epifenômeno do cerebral, ou seja, a consciência não
depende do cérebro.
A intuição leva-nos ao conhecimento da consciência enquan-
to "aquela que dura". Desde o despertar da consciência, toda a
vida tem duração – a inteligência (espacializadora) já não nos pode
levar a isso; tal fato não nos leva a menosprezar a inteligência, mas
© U3 - A Filosofia Francesa do Século 20 161

sim a entender que ela deve cuidar de um tipo específico, mas não
de todo o conhecimento.
Na consciência temos a memória, a recordação e a percep-
ção. A memória é a consciência propriamente dita, na qual o pas-
sado está todo no presente. A recordação é a parte da memória
que a vida cobra do passado; ou seja, é a parte do passado que a
vida requer como presente. E a percepção é o direcionamento que
a consciência dá no conhecimento de algo; ou seja, é a ação possí-
vel do nosso corpo sobre outros corpos – a percepção seleciona.
A atualidade de nossa percepção consiste, portanto, em sua ativi-
dade, nos movimentos que a prolongam, e não em sua maior in-
tensidade: o passado não é senão idéia, o presente é ídeo-motor
(BERGSON, 1999, p. 72).

Por fim, é necessário mostrar o desenvolvimento da filoso-


fia de Bérgson nos campos da produção humana. A arte, que visa
"mais do que expressar, imprimir em nós sentimentos; sugere-os,
prescindindo facilmente da imitação da natureza quando depara
com meios mais eficazes" (BERGSON, 1988, p. 20). Ou seja, a arte
evidencia o impulso vital no intuito de conseguir se estabelecer se
desligando do que é natural e físico; ela não apenas é consequên-
cia dos sentimentos humanos, mas também causa deles, chegan-
do a apresentar de que maneira o futuro já está no presente: um
trecho musical possibilita que se vislumbre seu momento seguin-
te; o presente tem "algo que" leva ao futuro (é o próprio futuro na
sobreposição passado/presente/futuro).
Bérgson chega também a uma teoria dos valores que vão
dos morais aos religiosos. Para ele, as normas morais têm apenas
uma de duas fontes: a pressão social ou o impulso de amor.
A pressão social é dada por um caminho já trilhado: a socie-
dade já constituída (uma específica sociedade na história) na qual
o ser humano está inserido. Por ser moral de determinado grupo,
o autor a denomina "moral fechada", que exerce uma pressão so-
bre o indivíduo – unicamente por ter o sentido de assegurar a vida
em sociedade. Na sociedade fechada o ser humano não age em

Claretiano - Centro Universitário


162 © História da Filosofia Contemporânea II

sua total liberdade, pois deve respeitar as regras sociais, ele não se
vê como um todo criador do novo: ele é apenas uma parte de um
todo social. Nesta sociedade vemos que o homem se acostumou
com o "hábito de contrair hábitos" (REALE, 1991, p. 722).
Já o impulso de amor é uma característica da sociedade
aberta, ou seja, da realidade de uma moral absoluta. Nesse caso,
há uma preocupação diretamente relacionada aos valores univer-
sais, não se restringindo a determinada sociedade no tempo e no
espaço; é algo que se vive, mas não se ensina, pois faz parte do
que o ser humano tem de mais íntimo em sua humanidade. Aqui
o homem entende a si próprio como dono de si, na liberdade de
realizar a sua existência de maneira relacional com a humanidade.
Ainda é importante observar que encontramos uma reflexão
bergsoniana sobre a questão religiosa: temos a religião estática
e a religião dinâmica. Enquanto a primeira é vista em sua função
fabuladora, visando reforçar os laços existentes entre os homens
(pois a inteligência espacializadora ameaça a própria vida), a se-
gunda identifica propriamente com a experiência mística, enten-
dida como sendo o contato com o esforço criador – o misticismo
coincide com este esforço. Para Bérgson, a ação no mundo recebe
seu impulso do êxtase místico e o amor a Deus é o amor à própria
humanidade.

6. PRIMEIROS ESCRITOS DE JEAN-PAUL SARTRE

INFORMAÇÃO COMPLEMENTAR
"As primeiras publicações de Sartre foram A Imaginação,
L'imaginaire, Esquisse d'une théorie des emotions (sem tradução
para o português).

Crítica ao realismo ingênuo da imagem


Na primeira parte de A Imaginação, Sartre faz um estudo
crítico detalhado da noção de imagem tal como aparece na filoso-
© U3 - A Filosofia Francesa do Século 20 163

fia moderna e como é retomada pela


psicologia científica. Sabemos da im-
portância que a noção de imagem
guarda para o empirismo moderno
dos séculos 17 e 18. Para esta filoso-
fia nada está no pensamento que não
tenha estado antes nos sentidos e en-
tre as impressões provindas dos sen-
tidos estariam as ideias.
Figura 2 – Jean-Paul Sartre
A natureza das imagens foi de-
finida, por Hume, como "impressões fracas". Assim, as imagens
cumpririam o papel de retomar sensações ou associações entre
sensações, antes dadas aos sentidos, na forma de "impressões fra-
cas". Em outras palavras, as imagens seriam responsáveis pela me-
mória e, assim, teriam um papel fundamental no conhecimento
humano.
No final do século 19 a psicologia científica procura, então,
dar a esta noção clássica de imagem um estatuto mais positivo ou
experimental.
Para a psicologia científica a consciência não tem um acesso
imediato aos objetos físicos, mas apenas aos efeitos da excitação
mecânica desses objetos no aparelho sensorial. Estes efeitos eram
estudados por uma fisiologia experimental que deveria calcular as
intensidades de excitações e propor as leis físicas que regulam as
diferentes formas de intensidade no seu acesso à consciência.
Assim, a "imagem mental" seria o resultado da repetição,
mais fraca, dos caminhos deixados pela passagem da intensidade
de uma excitação sensorial. Deste modo, os "fenômenos psíqui-
cos" seriam compostos de:
• sensações ou intensidades de excitação no aparelho sen-
sorial

Claretiano - Centro Universitário


164 © História da Filosofia Contemporânea II

• i magens ou repetição dos caminhos percorridos pela exci-


tação sensorial e
• ideias ou sínteses seletoras de imagens.
Segundo a psicologia científica, este é o esquema completo
do "aparelho psíquico". Agora esta psicologia tem como tarefa for-
mular as leis que determinam o surgimento e acesso de imagens e
ideias à consciência por meio deste esquema e do mesmo método
experimental usado pela fisiologia.
Vamos retomar a avaliação de Sartre sobre esta manobra da
psicologia para constituir a consciência como um objeto científico.
Nesta passagem, Sartre mostra como o positivista Taine operou
este verdadeiro "passe de mágica":
Taine usa primeiramente a análise regressiva e, graças a este mé-
todo, opera ingenuamente, e sem suspeitar, um salto do plano psi-
cológico ao plano fisiológico que, em si mesmo, não é outra coisa
senão o terreno do mecanismo puro. Depois passa à síntese. Mas,
por 'síntese', é preciso entender aqui uma simples recomposição.
Elevamo-nos dos grupos relativamente simples aos grupos mais
complexos e o passe de mágica esta feito: o fisiológico é introduzi-
do na consciência (SARTRE, 1964, p. 24).

Segundo Sartre, para que a psicologia científica possa es-


tender os mesmos conceitos e métodos da fisiologia a um estudo
sobre a consciência, ela deveu antes considerar os conteúdos psí-
quicos (as "imagens" e as "ideias") como tendo o mesmo modo de
ser das sensações.
Mas, desta maneira, a psicologia científica "coisifica" a cons-
ciência, isto é, projeta para seu interior os próprios dados senso-
riais da fisiologia.
Tomemos um exemplo mais concreto do que Sartre quer di-
zer com sua crítica à "psicologia de análise": quando olhamos para
uma folha de papel e depois nos voltamos para o teto, sabemos
que ela continua existindo independente de nós a percebermos na
mesma escrivaninha. Podemos agora fechar os olhos e imaginar a
mesma folha.
© U3 - A Filosofia Francesa do Século 20 165

Façamos, então, uma descrição do que ocorre em nossa


consciência. Trata-se da imagem de uma folha projetada numa
tela, igual à folha real, mas apenas com um modo de ser mais fraco
para nossa consciência?
Se assim fosse, esta imagem teria uma existência indepen-
dente de nós, em algum lugar de nossa consciência, e, ao lembrá-
la, recorreríamos a ela como quando esticamos a mão em direção
à folha real que deixamos na escrivaninha. Como já dissemos, a
psicologia deveria estudar as leis e os processos necessários para
que esta folha imaginada apareça novamente em nossa consciên-
cia.
Mas Sartre faz a objeção de que, sendo assim, em certos
momentos, não haveria nenhum critério para distinguir uma folha
percebida de uma folha imaginada! E mostra ao absurdo que che-
ga esta teoria:
Se não dispuséssemos mais do que da intensidade para distinguir a
imagem da percepção os erros seriam freqüentes: constituir-se-ia
mesmo, em certos momentos, no crepúsculo, por exemplo, mun-
dos intermediários, compostos de sensações reais e imagens, a
meio caminho entre o sonho e a vigília (SARTRE, 1964, p. 73).

Veja, se dissermos que a distinção entre folha percebida e


folha imaginada consiste em uma diferença de intensidade, como
quer a psicologia científica, deveremos, então, dizer que, nos mo-
mentos em que a intensidade de nossa percepção da folha é mui-
to fraca (como no crepúsculo), ela se torna indistinguível de uma
lembrança. Ou, então, quando uma lembrança é muito forte ou
viva, ela se torna indistinguível de sua percepção real. E a conclu-
são parece inevitável, como pensa o próprio Taine: a folha percebi-
da seria uma espécie de "alucinação verdadeira", intensidade tão
forte, tão viva que a tomamos por verdadeira!
Enfim, claro que ninguém esperou o surgimento dos primei-
ros laboratórios de psicologia experimental para poder reconhe-
cer, sem nenhuma dificuldade, a diferença entre perceber, imagi-
nar e alucinar!

Claretiano - Centro Universitário


166 © História da Filosofia Contemporânea II

Investigar as imagens como se elas tivessem o mesmo modo


de ser das percepções é tratar a consciência como um receptá-
culo passivo de conteúdos mentais. Este "realismo ingênuo da
imagem" reduz a consciência a um órgão receptor de realidades
independentes.
Sartre conclui:
O grande erro na questão das imagens foi crer nelas como realida-
des. Perdeu-se de vista sua existência inteiramente hipotética, in-
teiramente convencional e, pouco a pouco, acabou-se por destacá-
la da palavra e da idéia. Acabou por admitir-se no cérebro imagens
sem palavras, sem idéias, sem nenhum atributo, imagens puras
(SARTRE, 1964, p. 98-99)

Daí Sartre dedicar a segunda parte d' A Imaginação à filosofia


de Husserl. Segundo Sartre, a estrutura intencional da consciência,
proposta por Husserl, é a prova da impossibilidade de naturalizar a
imagem mental, emprestando-lhe o modo de ser das percepções.
Para esclarecer este ponto, vamos retomar, brevemente, a
investigação fenomenológica de Husserl.
Vimos que Husserl pretendeu descrever as estruturas essen-
ciais da consciência e suas correlações a objetos possíveis. Desse
modo, sua investigação deveria prescindir de qualquer dado cien-
tífico ou experiência factual, pois seu questionamento recaia so-
bre as condições subjetivas essenciais de possibilidade de acesso a
essas instâncias. Tratava-se de uma descrição fenomenológica da
"consciência pura", portanto, de formular leis eidéticas por meio
das quais esta consciência podia correlacionar-se intencionalmen-
te com um objeto possível que ela mesma constituiu.
Ora, Sartre deseja, de certa maneira, partir do mesmo ponto
de vista eidético em sua investigação sobre o estatuto da "imagem
mental". Para tanto, Sartre dá à imagem mental a mesma estrutu-
ra essencial que Husserl atribuiu à intuição de um objeto possível
pela consciência transcendental ou pura.
© U3 - A Filosofia Francesa do Século 20 167

Mutatis mutandis, observe a passagem final d' A Imagina-


ção: "A imagem é um ato e não uma coisa. A imagem é consciência
de alguma coisa (...) Seria preciso agora abordar a descrição feno-
menológica da estrutura 'imagem'".
Nesta obra, Sartre não leva a cabo a descrição anunciada. De
qualquer maneira, a simples possibilidade de descrição fenome-
nológica da "estrutura 'imagem'" já contraria qualquer pretensão
de "coisificá-la", como presentificação de uma percepção passada
ou como membro da série de uma pretensa causalidade psicofísi-
ca. A imagem não poderia ter o mesmo modo de ser passivo das
percepções, pois sua "matéria", segundo Sartre, é a própria espon-
taneidade intencional e criadora da consciência!

Transcendência do Ego
Como vimos, Sartre incorporou a definição husserliana de
consciência como estrutura intencional. Lembra? O caráter in-
tencional da consciência consiste em ser "consciência de alguma
coisa". Por outro lado, Sartre estendeu a mesma espontaneidade
constituinte da consciência transcendental ou pura à investigação
da dimensão "psicofísica" da consciência: "a imagem é um ato,
não uma coisa".
Em A transcendência do ego, Sartre se propõe a fazer uma
descrição fenomenológica da maneira como a consciência cons-
titui seu Ego (o "eu psíquico"). Contudo, ele pretende atingir um
plano anterior ao momento de sua visada reflexiva.
Parece contraditório, não acha? Se Sartre quer fazer uma
descrição sobre um modo intencional da consciência, como po-
deria fazê-lo dispensando a reflexão?!? Acontece que, segundo
Sartre, a consciência, mesmo não sendo reflexiva, num modo de
ser "irrefletido", já age de maneira intencional.
Como isto é possível? Comecemos com uma certa lembran-
ça da leitura intensa de um romance. A lembrança em questão é
aquela que pode ser intuída de modo a apresentar a vivência da

Claretiano - Centro Universitário


168 © História da Filosofia Contemporânea II

leitura tal como se mostrou no momento mesmo em que ocorria.


O que Sartre propõe é que podemos captar a consciência espontâ-
nea de ler, compenetrada em sua própria atividade, a consciência
irrefletida de ler, sem que um Eu compareça no interior dessa vi-
vência para dar-lhe unidade.
De fato, ao intuir a lembrança "literal" da consciência imedia-
ta de ler, lembramos do desdobramento da leitura de suas linhas
(a narrativa, suas personagens etc.), mas nenhum Eu se apresenta
como sua fonte ou acompanhante real. Esta lembrança é chama
por Sartre de "reflexão pura".
Claro, esta leitura irrefletida da consciência também pode
ser retomada pela reflexão "eu lia". Mas, segundo Sartre, este
modo de consciência reflexiva já seria uma "operação de segundo
grau", uma "reflexão impura".
Neste caso, a consciência reflexiva também retoma a irre-
fletida, mas, nesta operação, a consciência irrefletida sofre uma
mutação radica. A lembrança anterior e impessoal, "há leitura",
transforma-se no modo pessoal: "eu lia".
Assim, Sartre conclui que estes dois modos de consciência
são irredutíveis entre si. Pela "reflexão impura", algo surge que
não estava contido no irrefletido e surge como se já estivesse lá!
Em outras palavras, o que Sartre quer dizer é que a "reflexão
impura" não torna explícito um conteúdo oculto à vivência irrefle-
tida, mas a transfigura, introduz nela elementos que alteram sua
estrutura intencional original.
Estes dois modos de consciência têm, portanto, estruturas
intencionais distintas. Pois, enquanto a consciência irrefletida
transcende a si mesma, numa pura imanência, em direção a um
objeto ("a própria leitura"), a "reflexão impura", também, se trans-
cende, mas pondo a consciência irrefletida como objeto.
Mas que novo objeto é esse? Como vimos, este objeto não é
resultado da descrição de uma consciência da consciência irrefleti-
© U3 - A Filosofia Francesa do Século 20 169

da ("havia leitura"), mas a consciência de um objeto transcendente


que escapa a esta descrição ("eu lia"). Em outras palavras, a "refle-
xão impura" aparece, à margem da consciência irrefletida, como
consciência de "alguma (outra) coisa".
A radicalidade da tese de Sartre, ao apontar para estes dois
modos irredutíveis de consciência, consiste em dizer que o Eu não
é parte de uma estrutura psíquica a priori, pressuposto ou con-
dição de nossa vida consciente. O ato reflexivo não descobre o
Eu por trás das vivências irrefletidas, mas tem que engendrá-lo,
constituí-lo! É a consciência reflexiva que põe e sustenta este novo
objeto e o retoma à margem de todas suas vivências irrefletidas.
Para deixar mais clara esta tese, leia uma passagem do livro
Saint Genet, em que Sartre mostra como se dá, geralmente, o mo-
mento inaugural de constituição dessa nova estrutura intencional
da consciência:
A criança brinca sozinha; uma leve mudança na paisagem, um
acontecimento, um pensamento fugaz bastam para suscitar essa
tomada de consciência que nos revela o nosso Ego. E esse Ego,
como mostrei em outro texto, ainda não é nada para si mesmo,
a não ser a forma vazia e universal da singularidade (...) Sinto que
sou diferente de Pedro e sei que Pedro se parece comigo porque se
sente diferente de mim (SARTRE, 2002, p. 34).

Podemos recorrer a outro exemplo, desta vez, literário. Em


Baudelaire, Sartre lembra a passagem do livro de Hughes, Um ci-
clone na Jamaica, em que se narra uma experiência infantil de ir-
rupção desta "forma universal da subjetividade":
(Emily) brincou de casinha num canto da parte dianteira do navio...
Cansada desse jogo, caminhou sem objetivo para trás, quando lhe
veio, de repente, o pensamento fulgurante de que ela era ela...
Uma vez plenamente convencida que ela era agora Emily Bas-
Thornton... Se pôs, então, a examinar seriamente o que este fato
implicava... Havia sua família, certo número de irmãos e irmãs dos
quais ela não tinha jamais, até aquele momento, inteiramente se
dissociado: mas agora que ela tinha adquirido, de uma maneira tão
súbita, o sentimento de ser uma pessoa distinta, lhe pareciam tão
estranhos quanto o próprio navio em que viajava' (...) Ela, apenas,
teve de si a experiência puramente negativa da separação e sua
experiência foi experiência da forma universal da subjetividade
(SARTRE, 1963, p. 22-23).

Claretiano - Centro Universitário


170 © História da Filosofia Contemporânea II

Você já pensou como foi sua descoberta infantil de que goza-


va de um "foro íntimo", inatingível e separado do resto do mundo?
Você já pensou que boa parte da vida consciente de uma criança
pode, perfeitamente, independer desta experiência reflexiva, até
ela ser magicamente tomada por esta descoberta em seu horizon-
te subjetivo?
Na verdade, experiências concretas da subjetividade, como
esta, operam como a pedra de toque da investigação fenomenoló-
gica de Sartre. Investigação da consciência em suas vivências con-
cretas e decisivas, sem elucubrações abstratas ou cientificistas.
Até aqui tudo bem? Pois bem, Sartre quer acompanhar, en-
tão, o destino e as vicissitudes desta nova estrutura intencional da
consciência que, segundo ele, inaugura, de fato, nossa "interiori-
dade", nosso "eu psíquico". Como esta estrutura passa a operar
regendo nossas ações, estados, qualidades. Qual é a natureza do
Eu apreendido pela consciência reflexiva e sua relação com a cons-
ciência irrefletida de que falamos acima?
Com relação a nossos estados (ódio, amor, rancor, cólera
etc.), tomemos o exemplo do particular do ódio de que Sartre se
usa. A experiência de repulsa por alguém não é senão a própria
vivência dessa repulsa. Este caráter imanente e momentâneo de
uma vivência irrefletida original, "há repulsa por alguém", se dá a
uma lembrança pura de maneira certa e evidente se a lembrança
se mantiver naquilo que a consciência refletida lhe fornecia. Se-
gundo Sartre, para que esta evidência de repulsa, vivenciada pela
consciência, se torne meu estado – "eu odeio fulano" – a reflexão
deveu, antes, ultrapassar este caráter imanente e momentâneo da
vivência de repulsa para pôr-se um objeto transcendente: o ódio.
Mas o que isso quer dizer? No momento da vivência de re-
pulsa, temos uma consciência que se transcende em direção a um
objeto: "situação repulsiva". A consciência imanente e momentâ-
nea de repulsa se mantém na exterioridade desta situação con-
creta vivenciada e o ser da consciência que se transcende nesta
situação é o seu próprio aparecer para ela como repulsiva.
© U3 - A Filosofia Francesa do Século 20 171

É com relação a esta situação concreta que a atitude reflexiva


se posiciona. A visada reflexiva do estado, "meu ódio por alguém",
que antes era uma consciência imediata de repulsa, ultrapassa a
própria vivência. O ódio, agora, existe em mim, mesmo quando
esteja pensando ou fazendo outra coisa. Ao sair do estupor mo-
mentâneo de outra situação concreta de repulsa poderei retomar
novamente o ódio como meu estado, reconstituindo o movimento
reflexivo que unifica uma série sempre aberta de vivências e lhes
dá sentido. Deste modo, o estado tornou-se um novo objeto trans-
cendente para a consciência.
Em tal caso, o sujeito não tem mais uma relação privilegiada
com seus estados. Elas lhe escapam na sua natureza de transcen-
dências, assim como lhe escapa a própria espontaneidade consti-
tutiva e irrefletida da consciência a partir da qual se posicionou.
A consciência sempre está separada delas e para esta distância
originária, estrutura essencial da consciência, não há adequação
possível. Não se tratam de "inclinações subjetivas", elas são tão
exteriores e objetivas para a consciência quanto esta apostila ou o
computador onde foi redigida, são objetos transcendentes para a
consciência! O amor de Pedro por Maria é tão transcendente para
ele como para o confidente a quem ele confessa seu amor. É um
objeto incerto, posto "à distância" de sua consciência, à margem
da certeza de uma vivenciada imanente e momentânea de atra-
ção.
Além dos estados, Sartre distingue outras duas categorias de
transcendência "psíquica": as ações (como a de odiar) e as qualida-
des (como a de ser capaz de odiar). As ações são as transcendên-
cias de um Eu já constituído. Estamos separados de nossa ação de
repulsa como diante de um objeto. Note, mais uma vez, algo surge
que não estava contido no irrefletido e surge como se já estivesse
lá: este objeto exige agora, reflexivamente, a ação transcendente
de odiar. Em suma, nos separamos da consciência imanente e a
objetivamos na forma de nossos estados e nossas ações.

Claretiano - Centro Universitário


172 © História da Filosofia Contemporânea II

Finalmente, a qualidade se apresenta entre as ações e os es-


tados como a disposição transcendente que exprime ou qualifica
o Eu. Como vimos, no caso da relação da ação com o estado, se
odeio é porque o ódio está em mim, eu o sustento como sendo
meu ódio. Mas, no caso da qualidade de "ser capaz de odiar", ela
mesma "age", ela se dá como uma força, uma potencialidade que
sempre pode ser "despertada", mesmo a despeito meu.
A consciência refere, então, esses modos de "interiorização"
das vivências (na forma de estados, ações e qualidades transcen-
dentes) a um Ego como a seu "pólo de unificação". O Eu age e su-
porta estados e qualidades. Estas são as duas faces de um mesmo
Ego. O Ego é a própria "interioridade psíquica" de onde nascem e
aonde voltam os estados, as ações e as qualidades. Um "pólo de
unificação" onde se concentra meu passado, minha personalidade
e onde se desenham, também, minhas ações, meu futuro, meu
destino.
Mas qual é a natureza desse objeto transcendente Ego?
Segundo a definição intencional da consciência "consciência
é consciência de alguma coisa". Estritamente falando, a consciên-
cia não poderia se "contemplar", na medida em que toda contem-
plação a supõe. Ela sempre se escapa transcendendo-se a alguma
coisa. Em outras palavras, a própria consciência reflexiva é uma
consciência irrefletida espontânea e imanente com relação a si
mesma, portanto, escapa a si mesma visando a um objeto.
Contudo, o efeito da "reflexão impura", a instaurar o Ego
como pólo de unificação de nossas vivências, inaugura a dualidade
"intra-psíquica" entre o "olhar" e, ao mesmo tempo, "ser olhado".
E a consciência refletida, que se cristaliza na reflexão, necessaria-
mente, deverá dar-se a si mesma o modo de ser de uma coisa.
Segundo Sartre, esta pretensão da consciência reflexiva de instau-
rar uma distância de si para si, ao "observar-se" em seu objeto
transcendente Ego, é responsável pelo efeito de "interioridade"
fechada, profunda, opaca como o modo de ser de uma coisa.
© U3 - A Filosofia Francesa do Século 20 173

Pôr diante de si a interioridade é, forçosamente, torná-la pesada ao


modo de um objeto. É como se ela se fechasse sobre si e não nos
oferecesse senão os seus exteriores; como se fosse preciso 'andar
à sua volta' para a compreender. E é mesmo assim que o Ego se
dá à reflexão: como uma interioridade fechada sobre ela mesma
(SARTRE, p. 71)

Não é mesmo essa impressão que temos de nós mesmos?


Por vezes nos defrontamos com uma personalidade mais ou me-
nos obscura, mais ou menos estranha, aliás, a nossa: "Como pude
fazer isso!?!", "Como pude desejar aquilo", "Por que deixei de
amar fulano?!", "Como pude ser capaz de odiar por tanto tempo
siclano?!" etc. Em vivências decisivas de arrependimento ou eufo-
ria, de arroubos ou de introspecção profunda, nos confrontamos
com a obscuridade deste estranho objeto chamado Eu. Mas ga-
rantimos sua estrutura, seu modo de ser unificado, sua realidade
definida: eu, Ego, minha natureza psíquica. Sartre chega a usar a
máxima de Rimbaud para expressar o efeito desta estrutura inten-
cional: "eu é um Outro"!
Contudo, como mostramos na experiência inaugural da "for-
ma universal da subjetividade", o Ego não seria, apenas, "um ob-
jeto apreendido, mas, também, um objeto constituído pelo saber
reflexivo".
Isso não quer dizer que a consciência reflexiva procure vo-
luntariamente um sentido unificador. Como quando busca o senti-
do de uma vivência irrefletida inédita no saber reflexivo de um es-
tado, isto é, como quando pensamos de uma vivência "será ódio,
será amor...?".
Não se trata de dar, apenas, unidade estática a uma sequência
de vivências, mas, diz Sartre, as próprias vivências refletidas agora
podem se voltar contra o Ego na forma de uma "contusão": sen-
timos o "peso morto" de um profundo arrependimento, de uma
perda ou o "impacto" da euforia de subir de posto, de ter um filho
etc: esse carrega consigo o "luto" depois da morte de sua mulher;
aquele ficou pedante depois que virou gerente. Enfim, os Egos pa-

Claretiano - Centro Universitário


174 © História da Filosofia Contemporânea II

decem, se transformam, se enriquecem, se alimentam, como um


corpo estanho habitando as profundezas da consciência. A cada
vivência decisiva, eles se recriam e nunca mais serão como dantes,
mantendo-se, em parte, ainda como eram.
O que Sartre quer dizer é que da própria espontaneidade in-
tencional da consciência, como essência do ato reflexivo, resultou
um Ego como objeto, ao mesmo tempo, coisa e espontâneo, fixo
e mutável, transcendente e interior a seus estados, qualidades e
ações. Um objeto muito particular, com vida própria, separado de
tudo, até da própria consciência que o visa, habitando as "profun-
dezas" de sua translucidez intencional:
(...) como a ordem é invertida por uma consciência que se aprisiona
no mundo para fugir de si, as consciências são dadas como ema-
nando dos estados e os estados como produzidos pelo Ego. Segue-
se que a consciência projeta a sua própria espontaneidade sobre
o objeto Ego para lhe conferir o poder criador que lhe é absolu-
tamente necessário. Só que essa espontaneidade, representada e
hipostasiada num objeto, torna-se espontaneidade bastarda e de-
gradada, que conserva magicamente o seu poder criador tornando-
se ao mesmo tempo passiva (...) Em virtude desta passividade ele
pode ser afetado. Nada pode agir sobre a consciência, porque ela
é causa de si. Mas, ao contrário, o Ego que produz sofre o choque
do retorno daquilo que produz. Ele está 'comprometido' com o que
produz" (SARTRE, p. 70).

No fim das contas, a questão que interessa a Sartre é a de


saber por que a consciência se aprisiona em seu papel de Ego ao
individualizar sua existência. Por que esta sedução ronda a consci-
ência e faz com que ela se cristalize na representação de seu Ego.
Vimos que a consciência reflexiva é a estrutura intencional
que possibilita o isolamento, a vivência da separação do Mundo
na intuição da própria singularidade: a forma universal e vazia da
subjetividade. Trata-se de um novo plano constituído pela consci-
ência, a forma vazia de um objeto transcendente, enfim, a desco-
berta de que outro, diferente de todos, sou Eu.
A questão é saber por que motivo a consciência transfere
sua essencial espontaneidade, sua liberdade imanente e impesso-
© U3 - A Filosofia Francesa do Século 20 175

al, nesse novo plano singular do objeto Eu, preenchendo-o, dan-


do-lhe vida, densidade e a fatalidade de uma força natural, como
em busca de um refúgio na individualização objetivadora de sua
existência.
Tudo se passa como se a consciência constituísse o Ego como uma
falsa representação dela mesma, como se ela se hipnotizasse com
este Ego que ela constitui, se absorvesse nele, como se ela dele
fizesse a sua salvaguarda e a sua lei: é graças ao Ego, com efeito,
que se poderá efetuar uma distinção entre o possível e o real, entre
a aparência e o ser, entre o querido e o sofrido (SARTRE, 1980, p
80).

Em outras palavras, de que encanto estará tomado o homem


para se iludir sendo o papel em que ele mesmo se aprisiona? Por
que motivo ele se constrange a um horizonte, devidamente de-
marcado, do possível, desejável, reprovável etc.?
Este tema adquire grande importância no pensamento de
Sartre. Pois, abordando este tema, Sartre quer atingir, não o ca-
ráter histórico ou cultural de comportamentos, mas um aspecto
constitutivo da própria condição humana, aspecto que subjaz à
própria cultura e à história dos homens. Sartre deverá investigar
as condições ontológicas que estão na base da constituição da "re-
alidade humana".
De qualquer maneira, por enquanto, basta observar um
pouco a nossa volta para reconhecer, com Sartre, que o "teatro é
eterno" e está na origem de todas as manifestações da "realidade
humana"!

O cogito em questão
Como vimos, Sartre adota uma concepção intencional da
consciência. Vimos também que apenas por meio de uma "refle-
xão impura", a consciência pode visar-se a si mesma como objeto
Ego.
Contudo, para além desse falso espelho "mundano" no qual
a consciência se projeta, individualizando sua existência e, desse

Claretiano - Centro Universitário


176 © História da Filosofia Contemporânea II

modo, objetivando-se em uma "natureza psíquica", deve existir o


princípio que dá unidade ao próprio ato de projeção dessa cons-
ciência. Em outras palavras, Sartre tem que resolver o seguinte
problema: o que torna possível a unidade da consciência em sua
estrutura intencional reflexiva, não mais como correlato objetivo
Ego, mas como consciência constituinte desse mesmo objeto.
Aliás, Sartre parece voltar ao problema clássico inaugurado
pelo filósofo René Descartes. Você se lembra das Meditações me-
tafísicas? Lá, Descartes colocou um problema idêntico: Qual é o
princípio que dá unidade ao cogito na relação com sua represen-
tações?
Ora, para Descartes, o próprio cogito fundamenta sua exis-
tência. Esta é a primeira verdade, origem de todas as outras. O
cogito é uma consciência que põe a si mesma como intuição de
uma identidade metafísica. E esta identidade é a condição indis-
pensável de unidade do cogito na relação com todas suas repre-
sentações. Um sujeito que é fundamento de sua própria existência
e do ser de seu objeto, como representação.
Ao contrário, vimos que Sartre descreveu a dimensão irrefle-
tida da consciência como sua estrutura intencional originária, seu
modo de ser originário. É a descrição fenomenológica desta estru-
tura que nos daria, finalmente, acesso ao verdadeiro fundamento
de unidade da consciência com todas suas representações:
O Eu penso pode acompanhar todas as minhas representações
porque surge sobre um fundo de unidade que ele não contribuiu
para criar e que esta unidade prévia torna possível (SARTRE, 1980,
p 46).

Afinal, se a consciência irrefletida não fosse fundamento de


sua própria unidade imanente, não seria tampouco consciência de
seu objeto. Em outras palavras, se a consciência espontânea de
ler não fosse, ao mesmo tempo, consciente de si, tampouco seria
consciente das linhas do romance que lê.
© U3 - A Filosofia Francesa do Século 20 177

Assim, mesmo a consciência reflexiva, segundo Sartre, man-


tém-se irrefletida com relação a si mesma, ela necessariamente se
unifica, escapando-se. Sua interioridade irrefletida é pura na me-
dida em que está sempre pressuposta no ato de transcender-se
em outra coisa.
Para Sartre, nunca há adequação absoluta da consciência
consigo mesma, como pensava Descartes e a filosofia idealista em
geral; ela apenas pode intuir-se na exterioridade como relação a
outra coisa.
Esta dimensão ontológica de unidade da consciência se dá
neste fundo imanente de todas as consciências que sempre se re-
tomam escapando-se em um objeto. Portanto, a dimensão irrefle-
tida dos atos da consciência é seu fundo inesgotável de unidade. A
respeito desta dimensão da consciência, Sartre considera:
Esta esfera transcendental é uma esfera de existência absoluta, quer
dizer, de espontaneidades puras, que não são nunca objetos e que
se determinam por elas mesmas a existir (...) Podemos, portanto,
formular a nossa tese: a consciência transcendental é uma espon-
taneidade impessoal. A cada instante, ela determina-se à existência
sem que se possa conceber qualquer coisa antes dela. Assim, cada
instante da nossa vida consciente revela-nos uma criação ex-nihilo.
Não um arranjo novo, mas uma nova existência (...) O Eu não tem
nenhum domínio sobre esta espontaneidade, pois a vontade é um
objeto que se constitui para e por esta espontaneidade. A vontade
dirige-se para os estados, para os sentimentos ou para as coisas,
mas ela não se volta nunca para a consciência (SARTRE, 1980, p.
79).

Em outras palavras, a descrição fenomenológica da consciên-


cia, segundo Sartre, deveria liberá-la de um cogito como condição
da existência de sua correlação com o Mundo e atingir o campo
transcendental sem sujeito, fundamento ontológico da consciên-
cia.
Da descoberta deste novo campo, Sartre desdobra três con-
sequências.
A primeira é uma refutação definitiva ao solipsismo, pois a
tese da intencionalidade da consciência, levada, por Sartre, às úl-

Claretiano - Centro Universitário


178 © História da Filosofia Contemporânea II

timas consequências, situa o cogito em um fundo de ser que lhe


escapa e do qual ele não é a origem, nem ocasião para um juízo
sobre sua própria existência como identidade estática e modelo de
verdade. O cogito não pode mais ter a pretensão de que o Mun-
do, tanto físico como "psíquico", se reduza a suas representações.
Algo lhe escapa e este excesso é constitutivo de sua estrutura in-
tencional originária.

INFORMAÇÃO
Solipsismo: Doutrina segundo a qual só existem, efetivamente,
o eu e suas sensações, sendo os outros entes (seres humanos
e objetos), como partícipes da única mente pensante, meras im-
pressões sem existência própria [Embora freq. considerado uma
possibilidade intelectual (caso limite da filosofia idealista), jamais
foi endossado integralmente por algum pensador.] (cf. Houaiss).

Neste sentido, aparecerá, finalmente, em O ser e o nada, a


fórmula intencional da consciência em sua versão sartreana defi-
nitiva:
A consciência é consciência de alguma coisa: significa que a trans-
cendência é estrutura constitutiva da consciência, quer dizer, a
consciência nasce tendo por objeto um ser que ela não é (SARTRE,
1997, p. 34, grifo nosso).

Ela nasce tendo por objeto um ser que ela não é e, assim,
mantém-se como condição estrutural de seu modo de ser.
Sartre chama essa estrutura de dimensão "transfenome-
nal" da relação da consciência ao Mundo. Esta estrutura é tomada
como "prova ontológica" de uma existência que escapa à "atitude
teórica" da consciência reflexiva. O termo filosófico "fenômeno"
é "o que aparece" a uma consciência transcendental como seu
correspondente empírico, objetivo, no sentido de que sobre este
correspondente dizemos que seu esse est percipi ("seu ser é ser
percebido") por uma consciência reflexiva, que o põe como objeto
de suas determinações conceituais, de suas representações.
© U3 - A Filosofia Francesa do Século 20 179

Contudo, para Sartre, a estrutura originária escapa a esta


relação de sujeito-objeto, "o ser do conhecimento não pode ser
medido pelo próprio conhecimento: escapa ao percipi (percebi-
do). E assim o ser-fundamento do percipere (perceber) e do percipi
deve escapar ao percipi" (SARTRE, 1997, p. 21). Há um plano de ser
que não pode ser tomado como uma determinação conceitual do
sujeito, que não pode ser reduzido a suas representações. Nesse
plano, a existência não é um "predicado intelectual da coisa", mas
escapa por todos os lados à consciência reflexiva:
Dizer que a consciência é consciência de alguma coisa é dizer que
deve produzir-se como revelação revelada de um ser que ela não é
e que dá-se como já existente quando ela o revela (SARTRE, 1997,
p. 35).

Enfim, o fundamento ontológico do cogito está aquém da


sua relação tética com o Mundo, relação à qual ele não garante a
existência constituída como "re-presentação", mas sempre escapa
a esta redução, por todos os lados.
Este ponto leva-nos a uma segunda consequência: a descri-
ção fenomenológica de Sartre explora o miolo ontológico de um
terreno singular, irredutível ao plano do conhecimento e de suas
abstrações. Com isso Sartre propõe uma crítica ao idealismo, sem,
por isso, voltar a uma concepção materialista da consciência que
a reduz a um objeto determinado entre outros objetos. Leia com
atenção a passagem a seguir:
O Mundo não criou o Eu, o Eu não criou o Mundo, eles são dois
objetos para a consciência absoluta, impessoal, e é por ela que
eles estão ligados. Esta consciência absoluta, quando é purificada
do Eu, nada mais tem que seja característico de um sujeito, nem
é também uma coleção de representações: ela é muito simples-
mente uma condição primeira e uma fonte absoluta de existência
(SARTRE, 1980, p. 83).

Ao contrário do que pensa o idealismo, o cogito não pode


servir como fundamento de nada, nem como um olhar privilegia-
do sobre uma suposta interioridade transcendental. Ele é, na sua
essência, uma busca, sempre precária, de fundamento em obje-
tos transcendentes dos quais a estrutura imanente da consciência
sempre se mantém a uma distância infranqueável:

Claretiano - Centro Universitário


180 © História da Filosofia Contemporânea II

a consciência é um ser para o qual, em seu próprio ser, está em


questão o seu ser enquanto este ser implica outro ser que não si
mesmo (SARTRE, 1997, p. 35).

Esta é a consequência a que chega Sartre. A existência não


é mais um predicado da coisa dado por uma atitude reflexiva. O
Mundo não se reduz à Ideia, o Mundo lhe escapa como um exces-
so ininteligível e injustificável que se volta contra ela como um não
si mesma. A consciência nasce como pura facticidade, como fundo
de presença contingente anterior a todo fundamento concebível.
Campo do injustificável e do imprevisível.
Estamos em um plano anterior à distinção entre o real e o
possível, categorias estabelecida pela atitude reflexiva e projeta-
das como uma sombra sobre a espontaneidade constitutiva da
consciência, pretendendo encerrá-la nos estreitos limites de uma
natureza determinada. Trata-se de uma "existência absoluta" que
nada determina, que está fora de toda determinação, uma liber-
dade que se esquiva a qualquer fixação, anterior a toda e qualquer
escolha!
Mas por que, então, a projeção alienante da consciência em
seu objeto transcendente Ego? Sartre encontra a explicação deste
movimento pelo qual a consciência constitui a partir de si mesma
sua "natureza psíquica" e nela se aprisiona como fuga diante dessa
sua absoluta espontaneidade e como marco zero de constituição
da própria "realidade humana":
se a 'atitude natural' nos parece por inteiro como um esforço que
a consciência faz para escapar a ela mesma, projetando-se no Eu e
absorvendo-se nele, e se este esforço não é nunca completamente
compensado, se é suficiente um simples ato de reflexão para que a
espontaneidade consciente se arranque bruscamente do Eu e se dê
independente, a εποχη [a redução, literalmente, em grego, "entre
parênteses"] já não é um milagre, já não é um método intelectual,
um procedimento douto: é uma angústia que se nos impõe e que
não podemos evitar, é ao mesmo tempo um acontecimento puro
de origem transcendental e um acidente sempre possível de nossa
vida cotidiana (SARTRE, 1980, p. 80-81).
© U3 - A Filosofia Francesa do Século 20 181

Daí, também, que a redução fenomenológica do objeto Ego,


feita por Sartre, deva ser confirmada por uma vivência concreta e
deva ser executada, de fato, no plano de "nossa vida cotidiana".
Esta questão central do existencialismo de Sartre nos leva a
suspeitar a forte relação deste autor com a literatura. Esta liber-
dade constitutiva e angustiante da consciência não poderia ser
descrita por um discurso transcendental, nem objetivada por um
discurso científico, mas tematizada a partir de uma vivência con-
creta. As abstrações da filosofia ou o aparato teórico da psicolo-
gia devem ceder lugar à busca do verdadeiro sentido da redução
fenomenológica como vivência fundamental de angústia. Resta a
Sartre o recurso à narrativa.
A respeito da relação entre o existencialismo de Sartre e seu
fazer literário, Gerd Borheim nos fornece uma análise muito inte-
ressante. Vamos acompanhá-lo:
O que Descartes realiza num ensaio como o Discurso do Método,
Sartre o faz através do romance A náusea. Por que o processo da
dúvida progressiva é desdobrado por Sartre percorrendo todas
as nuanças da narração de uma novela? Uma primeira resposta a
esta pergunta já é sugerida por uma epígrafe do livro: "é um rapaz
sem importância coletiva, é apenas um indivíduo". Realmente, não
se busca submeter à dúvida tão-somente o conhecimento, e sim
o próprio sentido da existência humana – da existência concreta,
apanhada em seu viver cotidiano, destituída de qualquer realce
especial, desprovida até mesmo de significado coletivo. A persona-
gem central da novela, Antoine Roquentin, ao instalar-se em uma
pequena cidade do interior francês dispõe-se, embora insciente, a
experiências que lhe modificaram o próprio sentido da vida. Diga-
mos que Roquentin encarna o método. Pois através de suas an-
danças revela-se-lhe, progressivamente, a clareza de uma verdade
última. Para Sartre não se trata de alcançar apenas um primeiro
princípio intelectual, mas um primeiro princípio existencial que,
além de permitir o acesso à verdade do reino humano, deverá ser
aceito também como instaurador de todo um programa de vida
(BORHEIM, 2000, p. 16-17).

O método da dúvida, o "ceticismo existencial" aplicado como


recurso metodológico, encarnando a redução fenomenológica em
uma vivência fundamental que põe o reino humano "entre parên-

Claretiano - Centro Universitário


182 © História da Filosofia Contemporânea II

teses", deveu ser empreendido por uma personagem "sem impor-


tância coletiva, apenas um indivíduo".
Antoine Roquentin chega a uma pequena cidade como anô-
nimo e esta situação de exílio, abandonado a si, torna-o uma fi-
gura privilegiada para desvelar uma verdade que subjaz à superfí-
cie dos papéis sociais que o cercam (do ser bibliotecário, garçom,
judeu, burguês, filho etc.). A experiência do anônimo Roquentin
deve encaminhá-lo a um plano mais fundamental onde irá captar,
finalmente, a "verdade do reino humano", a verdade que se fun-
damenta e se esconde no subsolo do "reino humano".
A descrição fenomenológica de Sartre engaja a consciência
em uma vivência de reconhecimento da liberdade constitutiva da
consciência, de sua existência absoluta e impessoal.
Resta saber por que esta vivência fundamental se manifesta
de maneira negativa, como angústia, como náusea. Em O ser e o
nada, Sartre procura desvelar a estrutura ontológica que subjaz
esta conduta e outras tantas condutas humanas, demasiado hu-
manas, em que o homem se confronta, em seu próprio ser, como
negatividade.

O ser e o nada
O subtítulo desta obra, "ensaio de ontologia fenomenológi-
ca", esclarece o procedimento aplicado por Sartre em sua investi-
gação sobre condutas do "homem no mundo", partindo de uma
descrição fenomenológica regressiva que deverá atingir suas con-
dições ontológicas de manifestação.
Para além dos esquemas formais da "consciência pura",
existe uma relação anterior e concreta ao mundo. Esta dimensão
"transfenomenal" deve, então, ser pensada fora dos esquemas
conceituais do Entendimento. Categorias, como a de possibilida-
de, necessidade, causalidade etc. são sobrepostas a este plano
sem jamais atingi-lo no seu ser irredutível a um esquema teórico.
© U3 - A Filosofia Francesa do Século 20 183

Como vimos, estamos em um plano de condutas humanas


onde as abstrações da filosofia devem ceder lugar a uma investiga-
ção sobre atos concretos e constitutivos da "realidade humana".
Este plano concreto do homem no mundo deve ser tomado,
portanto, em seu franco aparecer, isto é, como sendo, justamente,
o excesso, a contingência que escapa a toda reflexão. Como vimos,
o cogito é entendido por Sartre como fundamentado em uma exis-
tência anterior, em um campo transcendental sem sujeito. Assim,
neste campo Sartre busca relações existenciais no interior das
quais o cogito ganha seu verdadeiro sentido de "ser-no-mundo":
O concreto (...) É o homem no mundo, com essa união específica
do homem com o mundo que Heidegger, por exemplo, chama de
'ser-no-mundo' (...) cada uma das condutas humanas, sendo con-
dutas do homem no mundo, pode revelar-nos ao mesmo tempo o
homem, o mundo e a relação que os une, desde que os encaremos
como realidades apreensíveis objetivamente, não como inclina-
ções subjetivas que apenas podem ser compreendidas pela refle-
xão (SARTRE, 1997, p. 43-44).

Somente assim podemos passar ao plano "transfenomenal"


da consciência irrefletida (ou "pré-reflexiva"), como fundo originá-
rio da relação da consciência ao mundo.
Assim como na consciência reflexiva (que se visa a si mesma
como objeto), este fundo de presença é consciência de alguma coi-
sa, contudo, o transcendente que ela revela é radicalmente outro
que não o próprio ser da consciência.
Por exemplo, coloco-me agora diante dessa presença em sua
concretude: o computador em que escrevo estas linhas, a escriva-
ninha onde ele descansa, a xícara de café, o cinzeiro onde o cigarro
queima etc. Todas elas são coisas para a minha consciência. Elas se
apresentam na sua oposição essencial com relação ao ser de mi-
nha consciência: aquele que visa e aquilo que é visado. Oposição
que está pressuposta no fato de eu dar um sentido determinado
a estas coisas: de serem meus utensílios nos quais comprometo
minha urgência de escrever esta unidade.

Claretiano - Centro Universitário


184 © História da Filosofia Contemporânea II

Digito mais linhas no computador, escrevo em folhas, amas-


so-as e jogo-as no lixo, apago meu cigarro; o computador, de re-
pente, quebra, devo procurar as causas determinadas de seu esta-
do atual etc. Todas estas coisas são utensílios para executar minha
tarefa. Mas toda modificação dessa "massa de ser", no fim das
contas, deixou-a intacta no seu ser oposto à minha consciência. Lá
permanece a folha amassada no lixo, a bituca no cinzeiro, o com-
putador agora arrumado etc.
Uma insistente permanência "cega", "surda" e "muda",
alheia a minha tarefa, apenas é para minha consciência e ela conti-
nua como era antes: uma pura presença inerte! Permanência onde
minha consciência "patina" sem jamais atingi-la ou modificá-la no
seu ser de pura presença idêntica a si mesma. Inatingível em seu
ser, o Ser apenas é e se manifesta sendo o que é na sua insistente
permanência opaca e fechada em si mesma: o ser do mundo é
ser-em-si.
Porém, se este é o "ser-em-si", qual é o ser da consciência
na sua relação com o mundo? Ao contrário da opacidade impe-
netrável do mundo, a consciência só existe na medida em que se
aparece a si mesma no mundo. Ela se apresenta como translucidez
de uma presença a si, portanto, o ser da consciência é ser-para-si.
A conclusão parece inevitável: se, do "ser-em-si", apenas po-
demos dizer que ele é, na sua insistente presença fechada em-si,
somente a consciência, na translucidez de seu ser para-si no mun-
do, pode fazer irromper a negatividade na plena positividade de
um Ser sempre idêntico a si mesmo.
Vejamos os passos centrais da argumentação de Sartre.
Interrogar o mundo já seria, para nosso autor, uma prova da
realidade da negação, isto é, um ato que coloca a possibilidade de
não-ser no interior do próprio ser-em-si. Por exemplo, ao interro-
gar o carburador de um carro perguntando se ele "não tem nada",
esperamos uma "resposta" dele e essa reposta pode ser negativa
"não, não há nada aqui". Portanto, é o próprio ser que nos revela
a realidade da negação.
© U3 - A Filosofia Francesa do Século 20 185

A questão que Sartre se coloca é a de saber se esta negação


sustenta o "nada", como categoria da Razão, ou se, ao contrário,
é o nada, como estrutura do real, que está na origem da negação.
Em outras palavras, o nada nasce de uma atitude judicativa (que
formula juízos do tipo S não é P, S não tem P, etc.) ou se a atitude
judicativa pressupõe o nada como estrutura da própria realidade?
Lembre que Sartre quer atingir um plano onde a consciência
deve apresentar-se como "revelação revelada de um ser que ela
não é e que se dá-se como já existente quando ela o revela", isto é,
trata-se de pôr em questão a relação do plano irrefletido da cons-
ciência (ou "pré-reflexivo", portanto, também, prejudicativo) com
a reflexão. Nessa relação, Sartre deverá investigar o problema da
origem do nada.
Segundo ele, o nada já estaria pressuposto em uma longa
série de atitudes humanas prejudicativas. Como? Já na relação de
"limitação individualizadora", por meio da qual destacamos um
modo de ser singular, estaria pressuposto um "ato nadificador".
Por exemplo, a xícara que ganhei de minha finada avó e na
qual agora bebo café. Tomo muito cuidado com ela, tenho receio
de que ela venha a quebrar. Sartre diria que a "fragilidade está
impressa no próprio ser" desta xícara, pois o fato de ela se quebrar
seria, para mim, "absoluto e irreversível"! Note: um modo de ser
singular é impresso, por mim, em um ser que em si mesmo é ape-
nas uma realidade plena e idêntica a si mesma.
Portanto, há certo "ato nadificador" envolvendo a "limitação
individualizadora" que torna este ser um objeto único e frágil. Eu
penso a xícara como uma possibilidade de não-ser, é isto que a
torna "frágil". Possibilidade de não-ser que poderá ser confirma-
da caso um dia tenha que me defrontar com os cacos da "frágil"
xícara.
Agora vejo livros abertos e folhas anotadas na escrivaninha
ao lado da minha. A sala é de realidades plenas, mas minha aten-
ção se volta para os objetos da escrivaninha ao lado como signos

Claretiano - Centro Universitário


186 © História da Filosofia Contemporânea II

da ausência de alguém ("alguém esteve aqui"). E ao pensar estas


realidades plenas como "rastos" de minha irmã ausente, ela já de-
veu antes ser pensada por mim como uma ausência que dá novo
sentido aos objetos da escrivaninha. Portanto, nestes dois casos, o
nada se manifestou, de fato, no miolo de minha relação concreta
com o mundo.
A questão é saber qual é a origem, o fundamento, do nada
manifestado em minhas condutas? Não poderia ser produzido
pelo ser-em-si. Como vimos, este ser é de realidades plenas, pura
plenitude idêntica a si mesma, portanto, anterior aos seus modos
de ser "frágil", "destrutível", "ausente". Aquele que olha para es-
tas realidades como índices de uma ausência ou de uma destrui-
ção irreparável é precisamente o homem.
Podemos, entretanto, nos perguntar junto com Sartre: "o
que deve ser o homem em seu ser para que o nada venha ao ser?"
(SARTRE, 1997, p. 67). Esta questão implica voltar-se para o modo
de ser do para-si. É necessário adentrar-se na condição ontológica
que tornou as experiências de ausência e de destruição possíveis.
Se a consciência é o extremo oposto da plenitude do ser e,
por meio dela, o nada vem ao ser, é necessário, então, mergulhar
definitivamente na experiência ontológica que torna possível, sem
subterfúgios, a emergência plena desta oposição.
Sartre deverá apontar para o derradeiro "recuo nadificador"
que se recolhe a si para fundamentar-se em seu próprio nada.
Para tanto, ele se detém na descrição de condutas humanas que
envolvem situações extremas de perigo ou ameaça. Estas situa-
ções seriam uma ocasião para manifestar o nada como estrutura
permanente da consciência, constitutivo do seu ser, e pelo qual o
homem se manifesta como conduta de um ser que se fundamenta
em seu próprio nada.
Sartre fala de uma experiência de "angústia ante o futuro",
e usa-se do exemplo de andar à beira de um precipício. O pre-
cipício se apresenta como algo a evitar, uma ameaça de morte.
© U3 - A Filosofia Francesa do Século 20 187

Sinto horror porque imagino – quase sinto – as causas que podem


tornar esta ameaça uma realidade: escorregar em uma pedra, o
chão desmoronar sob meus pés etc. O sujeito visa-se, então, nes-
tas previsões como um objeto que não tem em si a origem de sua
futura extinção!
Contudo, também, posso concentrar-me em evitar a queda
fatal, projeto condutas futuras que possam afastar estas ameaças:
penso que poderia tomar mais cuidado ao andar, olhar com maior
atenção o chão que piso ou, de um salto, atravessar o trecho fal-
tante etc. Ao horror que me invadia diante do perigo "objetivo" da
situação é sobreposto um universo onde operam minhas possibi-
lidades. E este universo, por ser o de minhas possibilidades, não é
mais determinado por causas estranhas a mim. Estou completa-
mente comprometido nelas. Eu sou, por inteiro, minhas possibili-
dades.
Contudo, infelizmente, não é rigorosamente certo que, das
ações possíveis que venha a executar, alguma seja absolutamente
eficaz, sobretudo que eu a mantenha de maneira irresoluta. Tudo
pode acontecer!
Estou envolvido em uma situação concreta que me ameaça
de morte e, ao contrário desta situação, minhas possibilidades não
têm uma existência definitiva e absoluta. Sinto a ambiguidade de
uma vivência em que convivem o precipício, minhas possibilidades
e seu caráter apenas ideal, do qual, agora, somente eu sou a fonte
absoluta. Enfim, sou a angústia da completa indeterminação de
minhas possibilidades!
E a passagem do horror, do qual era vítima, a angústia, da
qual eu mesmo sou a fonte, não se levaria a cabo se eu pudes-
se captar-me como uma causa que produz necessariamente seus
efeitos que, então, seriam rigorosamente determinados. Deixa-
riam de ser possíveis e se transformariam em um "em-si", isto é,
em fatalidades por vir. Contudo, nada é determinante em minha
conduta presente. A angústia se apresenta como ruptura da fatali-
dade, suspensão do determinismo e emergência de possíveis.

Claretiano - Centro Universitário


188 © História da Filosofia Contemporânea II

O que sou (minhas possibilidades) não determina mais o


que serei. Nada garante a existência objetiva e eficaz de minhas
possibilidades. Eu sou a angústia de, subitamente, ver-me obriga-
do a nadificar meu futuro e reduzi-lo, ele próprio, à condição de
uma mera possibilidade, pois o futuro possível que sou permanece
completamente fora de meu alcance! Neste momento, nas pala-
vras de Sartre, "sou o que serei à maneira de não sê-lo".
Projeto-me neste devir de minhas possibilidades e, desse
modo, estabeleço uma relação muito especial entre meu ser pre-
sente e meu ser futuro. Tenho um encontro marcado comigo no
final do precipício, mas não sei se serei capaz de cumpri-lo, nem
mesmo sei se é isso que eu, realmente, quero agora (talvez decida
por ficar plantado no mesmo lugar me abandonando ao tremor
incontrolável de minhas pernas)! Afinal tudo é possível.
Nesse intervalo estou suspenso... Talvez fosse melhor lançar-
me, de uma vez, no precipício e acabar logo com isso! Não seria
esta a única maneira eficaz de acabar com minha angústia? Por
instantes, vejo-me lá no fundo como um corpo inerte! O que fa-
zer? Enfim o futuro se abre, diante de mim, como uma contingên-
cia absoluta e cabe a mim unicamente tomar a decisão definitiva!
Conseguirei chegar ao final do pesadelo de ter que me defrontar,
única e exclusivamente, com minhas próprias escolhas?!
Em situações extremas, como esta, o nada de ser do homem
pode tornar-se o epicentro de pura indeterminação. E, segundo
Sartre, dessa contingência absoluta diante do futuro desvelou-se a
consciência de minha liberdade radical:
(...) é na angústia que o homem toma consciência de sua liberdade,
ou, se se prefere, a angústia é o modo de ser da liberdade como
consciência de ser; é na angústia que a liberdade está em seu ser
colocando-se a si mesma em questão (SARTRE, 1997, p. 72).

Na angústia, a liberdade se manifesta, justamente, como


revelação de uma ruptura iminente com esta transcendência do
ser futuro, na maneira de não sê-lo. Momento em que o homem
se coloca a si mesmo em questão na irrupção de seus possíveis.
© U3 - A Filosofia Francesa do Século 20 189

Neste caso, nenhum motivo presente é determinante do ato fu-


turo, as possibilidades se insinuam como o que são: um fundo de
não-ser, uma estrutura ineficaz, entre uma situação e o ato que ela
"exige". Na verdade, nada justifica a execução do ato, nem minhas
"inclinações psicológicas", nem meus hábitos, muito menos uma
obrigação que me imponho: "Na angústia, a liberdade se angústia
diante de si porque nada a solicita ou obstrui jamais". Na angústia
estamos inteiramente entregues a nós mesmos...
Sartre diz encontrar a estrutura permanente do ser humano
nesta liberdade radical e considera que a angústia manifesta uma
tal estrutura. Mas você poderia se perguntar: como explicar, en-
tão, a raridade dessa experiência? Não podemos sempre colocar-
nos diante de nossos possíveis sem, contudo, angustiar-nos?
Na quase totalidade de nossos atos cotidianos nos encon-
tramos comprometidos em um mundo de exigências reais. Geral-
mente, agimos antes de designar nossos possíveis porque estamos
comprometidos em nosso ato e este ato se revela como exigência
de nossa vida cotidiana. Deste modo acabamos revelando nossos
possíveis no instante mesmo em que os realizamos (acender um
cigarro, cumprimentar o vizinho, tomar o ônibus etc.) ou os pensa-
mos em esperas passivas ("amanhã darei aula", "à tarde vou estu-
dar" etc.). Nestes casos, a consciência pode colocar-se frente a seu
futuro como diante de um em-si, sem maiores prejuízos.
Nosso ser está "em situação"; a todo instante estamos envol-
vidos nas exigências de nosso cotidiano. Não somos seres morais,
familiares, profissionais, religiosos para depois nos engajarmos em
nossos atos. Para Sartre, somos, por essência, seres históricos. Isto
quer dizer que nos conhecemos primeiro como ato na medida em
que nele nosso ser se reflete. Ou seja, somente podemos refle-
tir autenticamente sobre nossa própria existência como estando
comprometida, como estando, sempre, "em situação".
O problema é que captamos, como provenientes do mundo
e constitutivos de nosso ser, o sentido que nossa própria liberdade

Claretiano - Centro Universitário


190 © História da Filosofia Contemporânea II

deu a nossa existência, a escolha que fizemos de nós por nós mes-
mos. O projeto inicial, pelo qual somos o que somos, adquire um
caráter de inclinação psicológica, de exigência social, de obriga-
ção moral etc. Fazemos estes transcendentes se erguerem "como
perdizes" sob nossas cabeças "conduzindo" nossos atos, definindo
nosso ser e encobrindo o fato de que somos nós a nossa escolha
inicial por meio da qual demos sentido a este universo de ideali-
dades. Em outras palavras, para Sartre, a "realidade humana" é
sempre a liberdade constitutiva do ser-para-si naturalizada na for-
ma de um ser-em-si de exigências, valores, tabus e as cortinas se
abrem para dar lugar a títeres no palco da "realidade humana".
De fato, estamos comprometidos em um mundo de exigên-
cias e de valores. Mas são nossos atos irrefletidos que fazem os
possíveis e os valores flutuarem no ar, adiando a consciência an-
gustiada de que são sustentados no ser por nossa própria liber-
dade. Na angústia, ao contrário, nos captamos como totalmente
livres na medida em que não podemos evitar o sentimento de que
o mundo provenha de nós!
A qualquer momento, diz Sartre, poderemos ter um encon-
tro angustiante com esta liberdade autêntica e ele nos pergunta:
estaremos prontos? Estaremos à altura da tarefa de constituir um
novo universo de possíveis?

Texto complementar
Leia a seguir uma das passagens de O ser e o nada que me-
lhor retratam o desafio a que estamos submetidos pela definição
sartreana de uma liberdade autêntica:
'Descobrimo-nos, pois, em um mundo povoado de exigências, no
seio de projetos 'em curso de realização': escrevo, vou fumar, tenho
encontro com Pedro esta noite, não devo esquecer de responder a
Simão, não tenho direito de esconde a verdade de Cláudio por mais
tempo. Todas essas pequenas esperas passivas pelo real, todos es-
ses valores banais e cotidianos tiram seu sentido, na verdade, de
um projeto inicial meu, espécie de eleição que faço de mim mesmo
no mundo. Mas, precisamente, esse projeto meu para uma possibi-
lidade inicial, que faz com que haja valores, chamados, expectativas
e, em geral, um mundo, só me aparece para-além do mundo, como
© U3 - A Filosofia Francesa do Século 20 191

sentido e significação abstratos de minhas empresas. De resto, exis-


tem despertadores, formulários de impostos, agentes de polícia,
ou seja, tantos e tantos parapeitos de proteção contra a angústia.
Porém, basta que a empresa a realizar se distancie de mim e eu
seja remetido a mim mesmo porque devo me aguardar no futu-
ro, descubro-me de repente como aquele que dá ao despertador
seu sentido, que se proíbe, a partir de um cartaz, de andar por um
canteiro ou gramado, aquele que confere poder à ordem do che-
fe, decide sobre o interesse do livro que está escrevendo – enfim,
aquele que faz com que existam os valores, cujas exigências irão
determinar sua ação. Vou emergindo sozinho, e, na angústia frente
ao projeto único e inicial que constitui meu próprio ser, todas as
barreiras, todos os parapeitos desabam, nadificados pela consciên-
cia de minha liberdade; não tenho, nem posso ter, qualquer valor
a recorrer contra o fato de que sou eu quem mantém os valores no
ser; nada me protege de mim mesmo; separado do mundo e de
minha essência: eu decido sozinho, injustificável e sem desculpas
(SARTRE, 1997, p. 83-84).

7. "EM BUSCA DE UM OLHAR ANTROPOLÓGICO"


Boa parte do projeto da geração dos anos 30, da qual Sartre
era um de seus maiores expoentes, fora a elaboração de uma críti-
ca definitiva ao positivismo e ao naturalismo. A partir desta crítica,
pretendia-se fechar a via para a aplicação indiscriminada de es-
quemas e métodos das ciências naturais ao estudo da "realidade
humana". Todos concordavam sobre a impossibilidade de reduzir
esta realidade a um substancialismo neurofisiológico e encerrá-lo
em um determinismo universal.
Além das duas obras de Sartre citadas, dedicadas a esta críti-
ca, encontramos Estrutura do Comportamento de Merleau-Ponty,
O normal e o patológico e o artigo "O que é a Psicologia?" de
Georges Cangilhem, a tese de doutoramento do então jovem psi-
quiatra Jacques Lacan A psicose paranóica e suas relações com a
personalidade etc. Mesmo a geração que se seguiu à de 30, ainda
estava às voltas com essa crítica da "naturalização" do homem,
como podemos constatar nos primeiros artigos de Michel Foucault,
"A Psicologia de 1850 a 1950", "Introdução a Sonho e Existência de
Binswanger", entre outros.

Claretiano - Centro Universitário


192 © História da Filosofia Contemporânea II

Nesta direção, as "novas psicologias" (Gestalt, behaviorismo


e psicanálise) começavam a mostrar as incongruências do natura-
lismo e da "análise real" do psíquico, cartilha teórica dos primeiros
laboratórios de psicologia experimental.
As regras básicas da cartilha teórica naturalista podem ser
expostas na "análise real" proposta pelo psicólogo Pavlov. Segun-
do Pavlov:
É indispensável em primeiro lugar um agente externo [estímulo]
que provoque a excitação. Depois, uma via nervosa determinada
pela qual o estímulo externo alcance o órgão efetuador. É o que se
chama arco reflexo, cadeia de elementos nervosos que é composto
por um nervo aferente. E, por fim, o determinismo, e não o acaso, o
determinismo da reação que sempre se realiza em condições idên-
ticas (PAVLOV, 1979, p. 41).

Os resultados da Gestalt-theorie mostravam o caráter abs-


trato da redução da percepção a seus "elementos simples e cons-
titutivos", desvinculando os dados da fisiologia sensualista do "fe-
nômeno da percepção" que passa a ser entendido como estrutura
de "figura e fundo". O behaviorismo tomava o comportamento
como um "fenômeno total" e não como um agregado de nervos
aferentes e eferentes. Brentano formulava uma teoria intencional
da consciência contra sua redução a um "órgão sensorial recepti-
vo".
Não havia dúvida de que começava a se formar um grupo de
descobertas que convergiam para um mesmo ponto: a impossibi-
lidade de reduzir o homem a um objeto natural, apreendido, em
sua totalidade, por um esquema fisiológico abstrato de "estímulo-
resposta".
Era necessário constituir um projeto de conjunto que fosse
a síntese de todas essas contribuições das novas psicologias e que
lograsse, ao mesmo tempo, resolver definitivamente o problema
de fundo: refutar a saída objetivista que, reduz o sujeito a um ob-
jeto natural, sem cair em um subjetivismo idealista.
© U3 - A Filosofia Francesa do Século 20 193

Como refutar a redução do homem a uma "causalidade psi-


cofísica", sem fazer apelo ao mesmo cogito absoluto e incondi-
cionado das filosofias idealistas? Ou seja, como podemos ter um
olhar objetivo a respeito do homem mantendo, contudo, seu esta-
tuto intencional, seu estatuto de sujeito?
Assim, a introdução da psicanálise na França teve um grande
impacto para esta nova geração dos anos 30. A psicanálise é rece-
bida, por muito, como chave-mestra de acesso à "realidade huma-
na", na medida em que o método psicanalítico teria, finalmente,
alcançado um ponto de vista objetivo sobre o sentido. Os sintomas
e os sonhos passam a ser abordados como intenções significativas
visando a situações concretas e que, contudo, escapam ao próprio
sujeito que as constitui. Portanto, Freud teria ampliado o olhar so-
bre as formas de expressão humana ao descobrir intenções signi-
ficativas que escapavam ao sujeito em análise. Enfim, uma técnica
de investigação psicológica se aproxima de um ponto de vista ob-
jetivo sobre a subjetividade!
A psicanálise era o palco de descobertas concretas sobre os
conflitos do homem "em situação". Ao menos esta era a avaliação
da geração dos anos 30.
Contudo, a mesma geração acusava Freud de não ter resis-
tido ao modelo explicativo da psicologia abstrata do século 19.
Quando Freud passa às explicações "metapsicológicas" dos fenô-
menos oníricos e dos sintomas, todo o mecanismo abstrato de in-
tensidades, instintos, representações, instâncias no interior de um
aparelho psíquico, "rouba a cena". Era necessário depurar a psica-
nálise, separar o joio do trigo e, sobretudo, fulminar a intragável
noção de "Inconsciente".
Para ficar em um exemplo, podemos ler algumas linhas de
A estrutura do comportamento, de Maurice Merleau-Ponty, onde
ele expressa um verdadeiro consenso desta geração com relação
ao inconsciente psicanalítico:

Claretiano - Centro Universitário


194 © História da Filosofia Contemporânea II

[...] o que chamam de inconsciente [...] é somente uma significa-


ção desapercebida: acontece que nós mesmos não apreendemos
o verdadeiro sentido de nossa vida, não que uma personalidade in-
consciente esteja no fundo de nós e reja nossas ações, mas porque
nós não compreendemos nossos estados vividos sob uma idéia que
lhes é adequada (MERLEAU-PONTY, 1967, p. 237).

Para os adeptos da Fenomenologia, a noção de Inconsciente


não passaria de um completo contra-senso. É impensável tratar a
formação de uma intenção significativa como resultado de "forças
psíquicas" (recalque, censura, regressão etc.) e a consciência como
órgão sensorial submetido ao rebu dessas forças!
Possivelmente, Paul Ricoeur tenha sido o filósofo que me-
lhor diagnosticou e investigou esta cisão no interior da psicanálise,
entre uma investigação compreensiva do significado das condutas
humanas e uma tendência "energética" de instintos, pulsões etc.
Por essa via também se dirigiu o projeto do jovem psiquiatra
Jacques Lacan. Em seu artigo o "Estágio do Espelho", ele procu-
rava dar um sentido concreto à noção freudiana de "narcisismo
primário". Desse modo, procurou o surgimento do Ego infantil por
meio do reconhecimento da imagem integral do corpo próprio no
espelho. O "eu" infantil se constituiria, nestes termos, como um
outro especular. Imagem espetacular, primeira imago (a primeira
forma identificatória), condição para as identificações e complexos
posteriores. Assim, a teoria do narcisismo poderia conviver com
uma concepção intencional da consciência humana que, como sa-
bemos, estava "em alta" por aqueles dias.
Enfim, todos estes desenvolvimentos partiram de uma ques-
tão inicial que reclamava resposta urgente: afinal o que é um "su-
jeito"?
Se a tentativa de resposta a esta questão exigiu uma longa
reflexão antropológica dessa geração e rendeu fortes divergências
com a seguinte, ao menos, todos estavam de pleno acordo na re-
futação da noção clássica de "sujeito" como identidade transcen-
dental, suficientemente fincada na calmaria da vida acadêmica
© U3 - A Filosofia Francesa do Século 20 195

para passar ao largo das transformações radicais de uma Europa


devastada pela guerra e do novo jogo de forças geopolítico do ce-
nário nascente de Guerra Fria. Muito menos se estava disposto a
aceitar, como definição de "sujeito", a cobaia humana dos antigos
laboratórios nazistas.
Assim, como vimos, todos os esforços de Sartre e Merleau-
-Ponty se voltavam para que a redução fenomenológica à la fran-
cesa alcançasse, finalmente, o concreto. Um olhar antropológico
que atingisse os meandros da "realidade humana". Tratava-se de
constituir uma fenomenologia dialética da consciência "em situa-
ção" ou "encarnada". Em resumo, redefinir o cogito em um "cam-
po transcendental sem sujeito" onde ganhava a nova rubrica de
"ser-para-si". Campo de origem neutra, "impessoal", (nem Ideia,
nem coisa), dele surgiria, em seguida, a descrição ontológica de
um cogito "em situação" no interior de um cenário histórico que
exigia uma praxis libertária, uma "liquidação de classe" contra o
acomodado espírito "pequeno-burguês" e posicionamentos políti-
co claramente definido contra o neocolonialismo (o caso do confli-
to Argelino e Vietnamita, entre outros) e o frívolo "american way
of life".
Enfim, no propósito de responder à questão "o que é o su-
jeito?", muitas coisas "concretas" estavam em jogo e gastou-se
muito tinta, mobilizando um considerável arsenal filosófico (basta
limitar-nos às mais de 700 páginas de O ser e o nada). Não era para
menos, o projeto existencialista buscava dar "Objeto" para as ciên-
cias humanas (psicologia, psicanálise, etnologia, sociologia etc.),
colocando no seu centro uma expressão rigorosa e filosoficamente
aceitável do conceito de "homem".
Contudo, a geração seguinte dos anos 50 e 60, pouco a pou-
co, ia deslocando seu interesse para uma problemática completa-
mente diferente. Uma nova onda anunciava o eclipse da fenome-
nologia em sua versão francesa: a onda estruturalista.

Claretiano - Centro Universitário


196 © História da Filosofia Contemporânea II

Podemos resumir o estruturalismo em três momentos:


• Ao contrário do existencialismo, não se tratava de uma
"filosofia da consciência", nem mesmo de uma filosofia
estrito senso, mas de um método lógico-matemático que
não estava, a princípio, ligado a nenhum objeto específi-
co, mas a uma teoria axiomática de relações formais en-
tre elementos cuja natureza não intervinha minimamente
na investigação das consequências lógicas de sua "estru-
tura".
• Este método foi logo importado ao estudo de "sistemas
de signos" (semiologia e linguística) e foi transferindo-se
para a História da Religião (Georges Dumézil), Antropo-
logia (Claude Levi-Strauss), Sociologia (Louis Althusser),
psicanálise (Jacques Lacan, que também aderiu à nova
onda estruturalista), crítica literária e da cultura (Roland
Barthes) e assim por diante.
• Neste momento, a aposta estruturalista consistia em mos-
trar que o objeto das ciências humanas não era o homem,
mas as estruturas sociais e linguísticas que o determinam:
sistemas que "falam", por meio de nossas palavras, e que
"agem", por meio de nossas ações. Desse modo o pro-
blema do sentido era deslocado do "sujeito constituinte"
da abordagem fenomenológica a um sistema de signos
de clãs, instituições ou mesmo a sociedade capitalista oci-
dental que "se dizem a si mesmos" através dos indivíduos
que os compõem. A investigação deveu voltar-se, portan-
to, para o "sistema de função", "sistema de parentesco",
"sistema de trocas" etc., onde o sujeito é transformado
em "suporte" de relações linguísticas e sociais. Assim a
execrada noção de Inconsciente pela fenomenologia fran-
cesa agora tornava "la tarte à la creme" para o estrutura-
lismo.
E, embora esta problemática do Inconsciente estrutural não
estivesse diretamente relacionada com a filosofia, não podemos
© U3 - A Filosofia Francesa do Século 20 197

deixar de suspeitar que não fossem poucas as consequências que


lhe vinham em cima. Basta ver os comentários de Lévi-Strauss so-
bre a obra Crítica da razão dialética de nosso velho e bom "xamã"
contemporâneo, Jean-Paul Sartre, recebida pelo antropólogo es-
trutural a um "documento etnográfico de primeira ordem" que
exigiria um estudo detalhado para compreender a "mitologia de
nosso tempo" (LÉVI-STRAUSS, 1973, p. 338).
A questão era que o teorema semiológico sobre o primado
da estrutura trazia consigo seu corolário filosófico: as ideologias
modernas de nossa sociedade – incluídas as Filosofias fenome-
nológicas e dialéticas da Consciência e da História – não são se-
não nossos mitos modernos. Mitos fundadores entendidos como
discursos sobre uma origem trans-histórica que se manifesta em
momentos ritualísticos. Ora não é exatamente este o mesmo mo-
vimento da descrição ontológica da consciência de Sartre: esponta-
neidade "nadificadora" manifestada no transe de uma "liberdade
autêntica"? Não é esta, também, a concepção marxista dialética
da revolução proletária, como "Consciência de classe" portadora
do "universal-concreto"?
Assim,, o livro As palavras e as coisas, de Michel Foucault, faz
uma crítica a toda "ilusão antropológica" que pretende desvelar a
Verdade por trás do homem. Leia, a seguir, um trecho desta obra:
A todos aqueles que querem, ainda, falar do homem, de seu reino
ou de sua liberação, a todos aqueles que colocam ainda perguntas
sobre o que é o homem em sua essência, a todos aqueles que que-
rem partir dele para ter acesso à verdade, a todos aqueles que, ao
contrário, conduzem de novo todo conhecimento das verdades do
homem mesmo, a todos aqueles que não querem formalizar sem
antropologizar, que não querem mitologizar sem desmistificar, que
não querem pensar sem pensar também que é o homem quem
pensa, a todas estas reflexões torpes e desviadas não se pode opor
outra coisa senão um risada filosófica – isto é, de certa forma, silen-
ciosa (FOUCAULT, 2001, p. 333).

Você notou as implicações desta passagem? A refutação


estruturalista da "ilusão antropológica" parecia dirigir-se apenas
à fenomenologia. Mas, em Foucault, ela volta-se, surpreendente-

Claretiano - Centro Universitário


198 © História da Filosofia Contemporânea II

mente, contra toda tentativa de constituir o objeto das ciências


humanas, incluído neste rol o novo projeto estruturalista para as
ciências humanas. Para Foucault não se tratava apenas de denun-
ciar as metafísicas do sujeito na sua pretensão de chegar à verdade
"interior", "profunda", do homem, mas também toda pretensão
de pensar o homem como "suporte" de um pretenso saber estru-
turalista.
A "ilusão antropológica" de Foucault consiste em ignorar
que o próprio saber sobre o homem é resultado de transforma-
ções históricas, sociais, culturais que produzem as condições para
pensá-lo como objeto constituído por práticas científicas, práticas
disciplinares, práticas psiquiátricas etc. Dessas práticas surge um
saber organizado em torno de normas que permitem primeiro "su-
jeitar" os indivíduos para somente então dar lugar às ciências ditas
humanas. Cada uma delas, vistas por Foucault como produções
históricas da "verdade" sobre o "homem".
Segundo Foucault, para que as ciências humanas pudessem
reivindicar seu estatuto científico era necessário que saberes se
constituíssem enquanto representação do real e que o próprio ho-
mem se fizesse alvo de representação, através das ciências huma-
nas.
A palavra de ordem estruturalista de "morte do sujeito" é
levada por Foucault às últimas consequências, de modo a voltá-la
contra o próprio estruturalismo.
Foucault, junto com Derrida, Lyotard e Deleuze deverão inau-
gurar outro momento da filosofia francesa, o pós-estruturalismo.
Que, por sua vez, ainda, continua girando em torno do tema mais
caro à filosofia francesa, de Montaigne ao pós-estruturalismo: o
problema da subjetividade, agora "sujeitada", por todos os lados,
pelo Discurso e pelo Poder.
© U3 - A Filosofia Francesa do Século 20 199

8. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS
As questões a seguir podem ser importantes para a conso-
lidação do conteúdo apresentado nesta unidade. Elas focalizam
questões centrais do período da filosofia tratada nesta unidade,
bem como dos principais filósofos aqui apresentados. Não deixe
de enfrentar os desafios propostos a seguir, eles poderão contri-
buir com sua formação!
1) Como é possível, segundo Sartre, que a consciência se intuísse? Assinale a
alternativa correta!
a) Ela pode intuir-se só pela exterioridade, como relação à outra coisa.
b) Ela pode intuir-se a partir da sua autoconsciência.
c) Ela pode intuir-se a partir da sua reflexão abstrata.
d) Ela não pode intuir-se nem pela reflexão, nem pela intuição.
2) Como se dá, segundo Sartre a relação entre o ser e o nada? Assinale a alter-
nativa correta!
a) O ser brota no seio do nada.
b) O nada brota no seio do ser.
c) O nada e o ser se pressupõem e, portanto, os ambos são originários.
d) O ser e o nada se excluem conjuntamente.
3) O que é o homem, segundo Sartre? Assinale a alternativa correta!
a) O homem não é o que foi e é o que ainda não é.
b) O homem é o que foi e não é o que ainda não é.
c) O homem é o que Deus o criou.
d) O homem é o que o que fez de si.
4) O que expressa o conceito bergsoniano de Élã Vital?
a) Puro dinamismo vital composto por matéria e consciência, em que a
consciência tende a dominar a matéria e assim realizando a evolução
criadora.
b) Puro dinamismo instintivo em que os instintos criam o inconsciente.
c) Principio vital que contem as condições da razão.
d) Revitalização da metafísica para que esta se possa refundar.
5) A angustia segundo Sartre aparece quando:
a) O homem toma consciência da sua condição finita.
b) O homem se depara com a morte.
c) O homem se depara com o desespero.
d) O homem toma consciência da sua liberdade
6) Assinale a alternativa correta segundo Sartre:
a) As ações são transcendências do ego já constituído.

Claretiano - Centro Universitário


200 © História da Filosofia Contemporânea II

b) As ações são transcendências do eu produtivo na direção de si mesmo.


c) As ações são transcendências do eu já constituído.
d) As ações são transcendências do eu absoluto.

Gabarito
1) a.
2) b.
3) a.
4) a.
5) d.
6) c.

9. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com os estudos desenvolvidos nesta unidade sobre as prin-
cipais questões da filosofia desenvolvida no século 20 ou filosofia
do pós-guerra, chegamos ao fim de nosso estudo. Neste CRC você
pode entrar em contato com os principais filósofos da contempo-
raneidade. Na Unidade 1 você entrou em contato com as filosofias
do impulso com Schopenhauer e Nietzsche e com o existencialis-
mo de Kierkegaard. Depois na Unidade 2 pode acompanhar o de-
senvolvimento da filosofia com a fenomenologia de Husserl, Max
Scheler e Heidegger, bem como com a ilustre escola de Frankfurt.
Esperamos que você tenha atingido os objetivos durante o estudo
e que este CRC tenha contribuído na construção de seu conheci-
mento e na sua formação como futuro professor de filosofia, para
desenvolver seu trabalho a partir uma sólida base teórica da filo-
sofia.
Além de contribuir para o seu aprendizado esperamos, tam-
bém, que os questionamentos apresentados neste CRC tenha des-
pertado em você interesse pelas questões contemporâneas abrin-
do caminho para suas futuras pesquisas.
Boa sorte!
© U3 - A Filosofia Francesa do Século 20 201

10. E-REFERÊNCIAS
Figura 1 Henri-Louis Bérgson. Disponível em: <http://www.consciencia.org/imagens/
image003.jpg>. Acesso em: 11 de mai. 2010.
Figura 2 Jean-Paul Sartre. Disponível em: <http://www.marxists.org/glossary/people/b/
pics/bergson-henri1.jpg>. Acesso em: 11 de mai. 2010.

11. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


BERGSON, Henri. A evolução criadora. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
______. Ensaio sobre os dados imediatos da consciência. Lisboa: Edições 70, 1988.
______. Introdução à metafísica. São Paulo: Abril Cultural, 1974a. pp.17-45 (Coleção Os
Pensadores).
______. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. 2ª.ed. São
Paulo: Martins Fontes, 1999.
______. O pensamento e o movente. São Paulo: Abril Cultural, 1974b. pp.105-157
(Coleção Os Pensadores).
BONOMI, Andréa. Fenomenologia e estruturalismo. São Paulo: Perspectiva, 1974.
BORHEIM, Gerd. Sartre. São Paulo: Perspectiva, 2000.
LYOTARD, Jean-François. A fenomenologia. São Paulo: Difusão européia do livro, 1967.
MERLEAU-PONTY, Maurice. La structure du comportement. Paris: PUF, 1967.
REALE, Giovanni & ANTISERI, Dario. História da filosofia: do Romantismo até os nossos
dias. São Paulo: Paulus, 1991. V. 3
SARTRE, Jean-Paul. A imaginação. Rio de Janeiro : Bertrand Brasil, 1989.
______. A transcendência do ego. Lisboa: Colibri, 1994.
______. Baudelaire. Paris: Gallimard, 1963.
______. O ser e o nada. Petrópolis: Vozes, 1997.
______. Saint Genet: ator e mártir. Petrópolis: Vozes, 2002.
STEGMÜLLER, Wolfgang. A filosofia contemporânea: introdução crítica. São Paulo: EPU,
1977.

a)

Claretiano - Centro Universitário


Claretiano - Centro Universitário

Você também pode gostar