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Ética II

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Telma Apparecida Donzelli possui graduação em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Ciências
e Letras (Santa Úrsula) da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC); mestrado
(Diploma de Estudos Superiores) em Filosofia pela Faculté des Lettres et Sciences Humaines
da Université de Paris e doutorado em Filosofia das Ciências Humanas também por essa
universidade. Atualmente é aposentada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
e pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); tem experiência na área de Filosofia
Contemporânea, atuando, principalmente, com Filosofia, Metafísica, Razão Mítica e Ética.

A professora Telma Apparecida Donzelli agradece ao ex-aluno Luis Henrique de Souza, licenciado
em Filosofia (2010) e especialista em Filosofia e Ensino de Filosofia (2011), pelo apoio na seleção
de textos, nas traduções das obras de Spinoza, Hume, Kant e Schopenhauer e pela elaboração das
Questões Autoavaliativas desta obra.
Telma Apparecida Donzelli

Ética II

Batatais
Claretiano
2016
© Ação Educacional Claretiana, 2013 – Batatais (SP)
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Educacional Claretiana.

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Aparecida Ribeiro • Dandara Louise Vieira Matavelli • Elaine Aparecida de Lima Moraes • Josiane Marchiori
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Donzelli, Telma Apparecida


Ética II / Telma Apparecida Donzelli – Batatais, SP : Claretiano, 2016.
254 p.

ISBN: 978-85-8377-480-8

1. Ética. 2. Estudo da evolução do pensamento filosófico moderno. 3. A ética no seu


contexto histórico e epistêmico. 4. Ética: renascença, racionalismo, criticismo, empirismo
e a abertura para um pensamento contemporâneo. I. Ética II.

CDD 170

INFORMAÇÕES GERAIS
Cursos: Graduação
Título: Ética II
Versão: fev./2016
Formato: 15x21 cm
Páginas: 254 páginas

CDD 658.151
SUMÁRIO

Caderno de Referência de Conteúdo


1. INTRODUÇÃO.................................................................................................... 7
2. oRIENTAÇÕES PARA O ESTUDo...................................................................... 8
3. referências bibliográficas...................................................................... 41

Unidade 1 – A Concepção Ética do Renascimento


1. OBJETIVOs........................................................................................................ 43
2. CONTEÚDOS..................................................................................................... 43
3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE............................................... 43
4. Introdução.................................................................................................... 45
5. Giovanni Pico della Mirandola (1463-1494)......................................... 47
6. Machiavel (1469-1527).................................................................................. 52
7. Phillipus Theophrastus Bombastus von Hohenheim – Paracelso
(1493-1591)..............................................................................................................................62
8. Michel de Montaigne (1533-1592)............................................................. 64
9. questões autoavaliativas........................................................................ 72
10. Considerações.............................................................................................. 73
11. E-REFERÊNCIAS................................................................................................. 74
12. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...................................................................... 74

Unidade 2 – Ética Moderna: Racionalismo e Empirismo


1. objetivos........................................................................................................ 77
2. conteúdos..................................................................................................... 77
3. orientações para o estudo da unidade............................................... 78
4. introdução.................................................................................................... 79
5. RENÉ DESCARTES (1596-1650) e uma "moral de provisão"................... 81
6. BARUCH SPINOZA (1632-1677)........................................................................ 103
7. Thomas Hobbes (1588-1679)........................................................................ 124
8. John Locke (1632-1704)................................................................................. 130
9. questões autoavaliativas........................................................................ 136
10. considerações.............................................................................................. 138
11. e-referência................................................................................................... 139
12. referências bibliográficas...................................................................... 139

Unidade 3 – Ética Moderna: Hume e Kant


1. objetivos........................................................................................................ 141
2. conteúdos..................................................................................................... 141
3. orientações para o estudo da unidade............................................... 141
4. Introdução.................................................................................................... 142
5. David Hume (1711-1776)................................................................................ 146
6. Immanuel Kant (1724-1804)........................................................................ 159
7. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS........................................................................ 183
8. CONSIDERAÇÕES.............................................................................................. 185
9. E-REFERÊNCIAS................................................................................................. 186
10. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...................................................................... 186

Unidade 4 – Primórdios da Pós-Modernidade:


Schopenhauer e Nietzsche
1. objetivo.......................................................................................................... 187
2. conteúdos..................................................................................................... 187
3. orientações para o estudo da unidade............................................... 187
4. introdução.................................................................................................... 190
5. Arthur Schopenhauer (1788-1860)........................................................... 191
6. Wilhelm Friedrich Nietzsche (1844-1900)............................................... 220
7. questões autoavaliativas........................................................................ 247
8. Considerações finais.................................................................................. 251
9. e-referência................................................................................................... 253
10. referências bibliogrÁficas...................................................................... 254
Caderno de Referência de
Conteúdo
Conteúdo––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Estudo da evolução do pensamento filosófico moderno sobre a Ética no seu
contexto histórico e epistêmico. Renascença e a perspectiva sob diferentes
razões. Racionalismo de René Descartes, Baruch Spinoza, criticismo kantiano.
Empirismo: Thomas Hobbes, John Locke, David Hume. Arthur Schopenhauer
e Friedrich W. Nietszche e a abertura para um pensamento contemporâneo
sobre a Ética.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

1. INTRODUÇÃO
Nesta obra, intitulada Ética II, teremos por objetivo o estu-
do da evolução do pensamento filosófico moderno sobre a Ética
e a moral, em seu contexto histórico e epistêmico. Iremos da Re-
nascença (séculos 15 e 16) até fins do século 19, passando pelo
pensamento do racionalismo e empirismo dos séculos 17 e 18 e
os primórdios de uma pós-modernidade no século 19.
Na Renascença (séculos 15 e 16), mais precisamente,
trabalharemos as posições e pensamentos sobre a questão
ética e a questão moral a partir das perspectivas dos seguintes
filósofos: Giovanni Pico Della Mirandola; Nicolau Machiavel;
Phillipus Theophrastus Bombastus Von Hohenheim e Michel de
Montaigne.
No século 17, veremos as concepções de moral e Ética dos
racionalistas (René Descartes e Baruch Spinoza) e dos empiristas
(Thomas Hobbes e John Locke).

7
Caderno de Referência de Conteúdo

No século 18, analisaremos as obras de David Hume


e Immanuel Kant, e, finalmente, no século 19, as de Arthur
Schopenhauer e Friedrich Nietzsche.
Haverá, ainda, uma conclusão que versará sobre as impli-
cações e consequências das posições analisadas no universo do
pensamento contemporâneo, do século 20 até nossos dias.
Bons estudos!

2. oRIENTAÇÕES PARA O ESTUDo

Abordagem Geral

Introdução
Neste tópico, apresentaremos uma visão geral do que será
estudado nesta obra. Aqui, você entrará em contato com os as-
suntos principais deste conteúdo de forma breve e geral e terá a
oportunidade de aprofundar essas questões no estudo de cada
unidade. Desse modo, essa Abordagem Geral visa fornecer-lhe
o conhecimento básico necessário a partir do qual você possa
construir um referencial teórico com base sólida – filosófica e
cultural.
Vamos começar nossa aventura pela apresentação das
ideias e dos princípios básicos que fundamentam esta obra.
Quando falamos em Ética, encontramos concepções as
mais variadas e diferentes. E, não poucas vezes, o ético chega
mesmo a ser identificado com o moral. O ético, porém, não é o
moral. Por que, então, essa dificuldade em distingui-los?

8 © Ética II
Caderno de Referência de Conteúdo

Muitos autores têm-se voltado para a origem etimológica


da palavra grega "ethos". Outros, como o professor Ernst
Tugendhat, em sua obra Lições sobre ética (2000, p. 41), afirma:
"Portanto, não podemos tirar nenhuma conclusão para os termos
'moral' e 'ética' a partir de sua origem".
Estamos, porém, convencidos de que o estudo etimológico
da palavra grega "ethos", em suas duas formas – ethos com "e"
longo (ήθος) e ethos com "e" breve (έθος) –, tem muito a nos
esclarecer sobre o que funda propriamente o ético e o moral e
os distingue essencialmente.
Em grego, essas duas formas da palavra ethos, tinham sen-
tidos muito diferentes. Ethos com "e" longo significava "maneira
de ser interior", "modo de ser ou morada habitual", "caráter",
diz respeito à interioridade do ato humano, àquilo que torna
a ação propriamente humana; ethos com "e" breve significava
"maneira exterior de proceder", "costumes" decorrentes do sen-
tido comunitário da ação e dos valores culturais.
Consta que o termo grego "éthica" foi identificado, em seu
sentido de "costume", à palavra "mores" do latim, que também
significa "costume", pelo grande orador romano Cícero. Talvez
seja esta uma das razões da aproximação, e mesmo, por vezes,
identificação, do ético com o moral.
Considerando as definições das duas formas do ethos, ve-
mos que se distinguem profundamente. O primeiro sentido de
ethos se refere ao que é único, próprio e singular; o segundo sen-
tido diz respeito ao comportamento que se torna generalizado
como hábito e que é o que entendemos por costume, fundado
em valores e, como tal, passível de regras e normas.
Além disso, vale dizer que:

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Caderno de Referência de Conteúdo

• José Ferrater Mora (1990) afirma que o termo "moral"


tem usualmente uma significação mais ampla que o vo-
cábulo "ético". A moral é o que se submete a um valor;
• Aurélio Buarque de Holanda Ferreira (2010) define a
moral como um conjunto de regras e normas de condu-
ta consideradas válidas, seja em um determinado tem-
po e lugar, seja durante certos períodos de tempo.
O valor é uma determinação cultural. Por valores, temos
entendido diferentes coisas ao longo dos tempos, o que faz com
que a moral de um povo ou de uma civilização não só possa va-
riar com o tempo, mas possa ainda diferenciar-se da moral de
outro povo ou civilização.
Sobre valores, diz Peter Kemp (professor de Filosofia na Univer-
sidade de Copenhague, nascido em 1937), em seu livro L'irremplaça-
ble – une éthique de la technologie (1997, p. 52, tradução nossa):
[...] o herói grego era temperamental e corajoso, o santo cristão
da Idade Média, humilde e devotado, o homem do Renascimen-
to, liberal e repleto da alegria de viver, o burguês, econômico e
consciente de sua classe, o pioneiro da indústria, empreende-
dor e infatigável, o socialista moderno cultiva a solidariedade e
o técnico moderno, eficiência.

Há uma relatividade histórica no que diz respeito a bens e


valores. Continuando, diz Peter Kemp, na mesma obra:
A Idade Média Cristã [...] rejeitou a noção aristotélica de que só
se pode viver bem quando se é cercado de amigos. Substituiu
pela ideia segundo a qual a Igreja é que faz da comunidade de
fiéis um bem que permite viver na verdade. Os cristãos rejeita-
ram a ideia de Aristóteles de que a fortuna e o nascimento são
necessários à felicidade. No lugar de tais valores, defendem a fé
[...] como a coisa mais importante [...] O cristianismo suscitou
igualmente a ideia de que a liberdade constitui um bem [...]
(1997, p. 52, tradução nossa).

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Caderno de Referência de Conteúdo

Mas, frequentemente, quando se fala hoje em valores,


pensa-se menos em uma qualidade própria do ser humano e
mais na maneira pela qual ele desejaria verdadeiramente viver
sua vida. E, como vivemos em uma época em que o equilíbrio
ecológico é condição de sobrevivência de nosso planeta, não se
fala somente em valores que condicionam nossa existência pes-
soal e social, mas também em valores que possam nos garantir
uma natureza viva.
O filósofo americano Ian G. Barbour distinguiu estritamen-
te três níveis de valores diferentes: o nível material, o nível social
e o nível ambiental.
Cita, como valores materiais, a sobrevivência, a saúde, o
bem-estar material e o trabalho.
Os valores sociais são a justa repartição dos bens [...], a parti-
cipação do indivíduo nas decisões concernentes à sua própria
existência [...], a comunidade fundada no reconhecimento recí-
proco e a possibilidade para cada um de crescer em um sentido
pessoal [...].
Os valores ambientais são a utilização de recursos renováveis, a
conservação de um ecossistema equilibrado, [...], e a proteção
da natureza.
Certo número desses valores podem se opor entre eles, por
exemplo, os valores do terceiro grupo podem se apresentar
como dificilmente compatíveis com a exigência de crescimento
pessoal dos indivíduos. Certos valores podem, mesmo depen-
dendo das situações, ser pura e simplesmente excluídos por ou-
tros (BARBOUR, 1971, p. 52-54, tradução nossa).

Já para o pensador francês Jean Baudrillard (1929-2007),


na realidade, os valores hoje não possuem referencial definido.
Em sua obra A transparência do mal – ensaios sobre fenômenos
extremos, diz o seguinte:

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Caderno de Referência de Conteúdo

Após o estado natural, advém o estado de mercado e, em segui-


da, o estado estrutural e, finalmente, o estado fractal da noção
de valor. Ao estado natural correspondia um referencial natural,
a noção de valor tem como referência um uso natural do mun-
do. Ao estado de mercado correspondia um equivalente geral,
a noção de valor se desenvolve segundo uma lógica da mer-
cadoria. No estado estrutural a noção de valor correspondia a
um código, tendo como referência um conjunto de modelos. No
estado fractal ou estado viral ou, ainda, estado de irradiação,
não há mais nenhum referencial, a noção de valor se irradia em
todas as direções, em todos os interstícios, sem relação com o
que quer que seja, por pura contiguidade. Nesse estado fractal
não há mais equivalência, nem natural, nem geral, não há mais,
propriamente falando, lei do valor, há apenas uma espécie de
"epidemia" do valor, uma metástase geral do valor, uma prolife-
ração e uma dispersão aleatória. Rigorosamente, não se deveria
falar mais de valor, uma vez que tal multiplicação e reação em
cadeia torna impossível toda avaliação. O que se dá é, mais uma
vez, semelhante ao que se dá em microfísica: impossível avaliar
em termos de belo ou de feio, de verdadeiro ou de falso, de
bem ou de mal, da mesma maneira que é impossível calcular a
velocidade e posição de uma partícula. O Bem não se encontra
mais situado de maneira vertical com relação ao Mal, nada se
posiciona mais à maneira de abscissas e ordenadas. Cada par-
tícula segue seu próprio movimento, cada valor ou fragmento
de valor brilha por um instante no céu da simulação, depois de-
saparece no vazio, sob a forma de uma linha quebrada que só
excepcionalmente encontra as dos outros. É o próprio esquema
do fractal e é o esquema atual de nossa cultura (BAUDRILLARD,
1990, p. 13-14, tradução nossa).

Observação: fractal é um neologismo que significa irregular,


quebrado (do latim fractus) e que foi introduzido por Benoît
Mandelbrot (1924-2010), matemático francês de origem
polonesa.

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Caderno de Referência de Conteúdo

O ético, diferentemente do moral, não advém desse sentido


de valorização em comum, mas diz respeito à dimensão pessoal
do ato humano, àquilo que gera uma ação genuinamente humana.
Para melhor expressar o que estamos querendo dizer, busca-
remos recursos na distinção feita pelo filósofo francês Henri Bergson
(1859-1941), em sua obra As duas fontes da moral e da religião, entre
o que chamou de "moral fechada" e "moral aberta", aplicando-as a
um fato corriqueiro, a fim de ficar claro que o ético não se confunde
com o moral e isso vale para acontecimentos do nosso dia a dia.
O fato aconteceu no Rio de Janeiro, em setembro de 1992,
quando se encontrava internada, em estado grave, em uma clíni-
ca no bairro de Botafogo, a mãe do então presidente da Repúbli-
ca. O Jornal assim descrevia o acontecimento:

Excerto do Jornal–––––––––––––––––––––––––––––––––––
Logo após o esquema montado pela polícia ser desfeito, um grupo de 50 ma-
nifestantes começou a protestar em frente ao hospital. Já sem o aparato poli-
cial, estudantes de uma escola e outros manifestantes pediam a renúncia do
Presidente. Houve apenas um princípio de tumulto quando uma enfermeira
aposentada do INAMPS surgiu e dirigindo-se aos manifestantes, disse que
era contra o protesto em frente ao hospital. Muitos não gostaram da crítica e
partiram para cima da enfermeira, começando um bate-boca.
A enfermeira tentava explicar e justificar sua atitude: "– eu só estou dizendo
que não é certo protestar em frente a um hospital", dizia ela, "onde há pessoas
doentes que nada têm a ver com a crise econômica (motivo da manifestação)
e uma mulher que está quase à morte".
Respondiam os manifestantes: "– por que a senhora não vai comprar remédios
na farmácia para saber quanto custa? Vá ao hospital do INAMPS para saber se
não há gente que morre por falta de atendimento ou de remédio".
Insistia a enfermeira: "– vocês não estão me entendendo. Só estou querendo dizer
que a crise econômica não tem nada a ver com estas pessoas que estão doentes".
Mas, o bate-boca só terminou quando alguns policiais militares conseguiram
acalmar os manifestantes.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

© Ética II 13
Caderno de Referência de Conteúdo

Temos aqui, podemos dizer, dois tipos de comportamen-


to: um que chamaríamos de "moral" e outro que entenderíamos
como sendo "ético".
Bergson (1978), diz:
A sociedade é semelhante a um organismo cujas células, unidas
por invisíveis ligações, subordinam-se umas às outras visando
ao bem da totalidade, nem que para isso tenha que sacrificar
a parte.
Em outras palavras, embora cada um de nós nos sintamos livres
para seguir o nosso pensamento, gosto ou desejo, temos obri-
gações para com a sociedade de cultivar o nosso eu social. É o
que a sociedade espera de nós. A obediência a tal dever social
pode significar uma resistência àquilo que desejamos fazer, no
entanto, é nossa "obrigação".

Não é exatamente essa a situação daqueles manifestantes


diante da clínica? Ali temos: inclinação para o bem da totalidade,
bem este que leva ao sacrifício da parte, ou seja, a senhora em
coma e os demais doentes podem ser sacrificados, pois a gran-
de totalidade da população não pode sequer comprar remédios
e não é atendida convenientemente nos hospitais. Sentimo-nos
socialmente na obrigação de protestar, embora tenhamos que
sacrificar a parte (a senhora em estado grave e os demais doen-
tes). Gostaríamos de considerar a situação daquela senhora e
dos outros doentes, afinal poderiam ser um dos nossos, nossa
mãe, nossos parentes, porém somos impelidos, por uma obri-
gação social, a nos manifestar em favor da maioria, mesmo que
isso prejudique aquelas pessoas.
Pensamos que essa atitude é essencialmente racional, no
entanto, diz Bergson, trata-se de um hábito e de um hábito po-
deroso, o hábito de proteger a sociedade. Mais precisamente,
nossos deveres sociais visam à união social, à coesão social. Não

14 © Ética II
Caderno de Referência de Conteúdo

se trata, na verdade, do bem da sociedade, diz Bergson, mas da


sobrevivência da sociedade. E, observa que, em tempo de guer-
ra, o assassinato, a pilhagem, o roubo, a mentira tornam-se não
só lícitos, permitidos, mas até meritórios, concluindo que, por
mais que as sociedades progridam, complicando-se e espiritua-
lizando-se, esse seu comando permanecerá de maneira não só
regular, mas intensa.
Podemos, pois, dizer que, à luz das considerações aqui fei-
tas, orientando-nos pelo pensamento de Bergson, o comporta-
mento dos manifestantes é um comportamento moral, porque
se trata de defender o direito de todos, e isto é um comando da
sociedade.
O "moral" é, pois, "fechado" (na expressão de Bergson).
Fechado porque visa a uma sociedade fechada em si mesma:
• sacrifica a parte pelo todo;
• é uma exigência do hábito e não da razão; portanto, não
se abre ao diálogo: o bate-boca só terminou com a in-
tervenção dos policiais;
• é fundado na impessoalidade do princípio, da regra e da
norma: é preciso protestar, porque este é o nosso dever
com a sociedade.
Analisemos, agora, o comportamento da enfermeira.
Enquanto os manifestantes se encontram absorvidos em
uma mesma tarefa, voltados para si enquanto sociedade, em-
penhados na conservação de si mesmos e dos outros membros,
na condição de membros dessa mesma sociedade, a enfermeira
ocupa-se do "sentido" mesmo da situação vivida; ocupa-se do
que é "singular", característico e único a esta, ajustando-se a
ela. Uma atitude que não se conforma ao que é estabelecido pe-

© Ética II 15
Caderno de Referência de Conteúdo

los interesses gerais (o social, o cultural), mas atende à situação


no seu caráter mais próprio.
Cremos poder dizer que a atitude da enfermeira enqua-
dra-se no que Bergson denominou de "moral aberta". Aberta,
porque concretiza o que dela diz o filósofo:
1) não consiste em um comando da sociedade, mas em
um "apelo";
2) não implica, como no caso da atitude dos manifestan-
tes, escolha e exclusão (escolha de todos e exclusão de
alguns);
3) não depende de nenhuma meta, não busca nada, não
quer nada, a não ser expressar o que é adequado e
justo àquela situação;
4) não depende de nenhuma ideia ou princípio geral, di-
ferentemente dos manifestantes, que se encontram
sensibilizados por uma ideia ou imagem representada
(a do bem de todos), quer apenas atender ao em si
mesmo da situação.
Vemos, assim, que estamos diante de dois comporta-
mentos perfeitamente compreendidos como essencialmente
diferentes.
Por que, então, repetimos, tanta dificuldade em distinguir
o ético do moral?
A resposta, a nosso ver, está na natureza do tipo de saber
que caracteriza nossa civilização ocidental.
O sentido de ethos (costume) encontrou um solo estrutu-
ral de saber favorável, com o surgimento de um tipo de saber
denominado "conhecimento", saber que se caracteriza por con-

16 © Ética II
Caderno de Referência de Conteúdo

ceber todo universal como sendo o "geral", constituindo-se es-


sencialmente como uma busca de leis e regras gerais.
Tal saber estrutura-se à luz de noções derivadas da expe-
riência cultural e de uma postura universalista, sustentada pelo
esforço e desenvolvimento de um universal-abstrato, caracterís-
tica do pensamento dito "moderno".
Quanto ao ethos (caráter), cujo fundamento é a dimensão
"singular" de cada indivíduo, de cada ação, de cada situação,
de cada comportamento, de cada época, dimensão essa que os
caracteriza e os torna "únicos", manteve-se quase que inteira-
mente ignorado, pois um dos processos pelos quais se constrói
o universal-geral, base do conhecimento, é o da "abstração" de
toda singularidade (Aristóteles). Em outras palavras, o "singular"
não é objeto de conhecimento.
Vimos, no entanto, que a busca dessa singularidade se en-
contra presente, no que diz respeito à Ética, nos pensamentos
de Sócrates, Platão, Aristóteles, expressando-se principalmente
na ideia fundamental da "justa medida" (dar o devido a algo ou
alguém).
O desenvolvimento de um saber outro que não o do co-
nhecimento científico é uma tarefa de grande alcance filosófico,
pois requer necessariamente uma posição crítica com relação ao
paradigma filosófico, fundador do próprio conhecimento, requer
um tomar distância do modo de pensar que estruturou o nosso
mundo moderno.
Somente em fins do século 19, diante dos limites da ciên-
cia e da constatação de sua incapacidade não só de levar a hu-
manidade a uma realização plena e, principalmente, diante do
apoio, sob a forma da tecnologia, que essa mesma ciência pro-

© Ética II 17
Caderno de Referência de Conteúdo

porcionou aos trágicos acontecimentos da Primeira Guerra Mun-


dial (1914-1918), à preparação do advento da Segunda Guerra
Mundial (1939-1945), vamos encontrar filosofias como as do
alemão Edmund Husserl (1859-1939) e do francês Henri Bergson
(1859-1941), ambos judeus, que buscam estruturar um novo sa-
ber baseado não mais na razão teórica (abstrata e geral), mas, na
intuição e na compreensão.
Um novo paradigma de saber surge: o paradigma da
"compreensão".
"Compreender" não é "conhecer". Conhecer é estabelecer
causas e buscar resultados; compreender é captar razões, senti-
dos, direções, modos de ver, modos de ser, singularidades.
Sobre a ciência, diz Husserl (1976, p. 10, tradução nossa):
Nessa nossa vida infeliz, ouvimos em todo lugar que essa ciência
nada tem a nos dizer. As questões que ela exclui, por princípio,
são precisamente as questões mais importantes desta nossa
época infeliz, para uma humanidade abandonada aos transtor-
nos do destino: são as questões que dizem respeito ao sentido
ou à ausência de sentido de toda esta existência humana.

Para Husserl (1976), faz-se urgente e necessária uma re-


formulação da ideia de ciência. Propõe superar o universalismo
abstrato do saber científico, apresentando um novo modelo de
ciência, o qual denominou de "método fenomenológico", cuja
meta é buscar o fundamento originário do "sentido" das coisas,
dos comportamentos e situações, não por meio de conceitos e
teorias, mas daquilo que nelas "se mostra em pessoa" (os fenô-
menos, do grego "phainomenon", o que se mostra). A razão teó-
rico-técnica e uma metafísica subordinada ao naturalismo levam
a humanidade em direção a um vazio ético.

18 © Ética II
Caderno de Referência de Conteúdo

Por sua vez, na França, o filósofo Henri Bergson afirma que


a ciência ocultaria o vivido, pois, fruto da inteligência com sua
abordagem matemática, vê o mundo à maneira de um mecanis-
mo que dá a ilusão de movimento a partir de instantâneos, como
acontece em uma fita cinematográfica. A inteligência, base da
ciência, pensa o tempo à maneira do espaço (tempo de relógio)
e cai, assim, em um determinismo universal.
A intuição, de acordo com Bergson, diferentemente da in-
teligência, propicia uma abordagem qualitativa do mundo, uma
vez que, graças a ela, temos acesso à compreensão da vida, ao
sentimento de liberdade e à dimensão das possibilidades no que
diz respeito tanto às ações quanto aos comportamentos. É den-
tro desse contexto que o filósofo francês distingue as duas for-
mas de "moral": a moral "fechada" e a moral "aberta", de que
falamos anteriormente.
A moral "aberta", como foi visto, define o ético na medida
em que corresponde à busca do "caráter" da situação conside-
rada, agindo na "justa medida", visando dar "o devido a algo ou
alguém".
Será, pois, esta a orientação básica deste nosso estudo:
queremos acompanhar, por meio das obras de alguns filósofos
e pensadores representativos da Antiguidade grega até fins da
Idade Média e do século 15 até fins do século 19, o desenvol-
vimento do pensamento ocidental em direção a um saber-co-
nhecimento cada vez mais dominante e a um fortalecimento da
questão moral em detrimento da questão propriamente ética,
que, no entanto, permanece timidamente como pano de fundo,
suscitando, às vezes, reações conflitantes.

© Ética II 19
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Glossário de Conceitos
O Glossário de Conceitos permite a você uma consulta rá-
pida e precisa das definições conceituais, possibilitando-lhe um
bom domínio dos termos técnico-científicos utilizados na área
de conhecimento dos temas tratados em Ética II. Veja, a seguir, a
definição dos principais conceitos:
1) Ágape: "Transliteração da palavra grega comumente
traduzida em português por "AMOR". Ágape, como
uma preocupação ética reflete seu cognato hebraico,
"hesed", no sentido de que representa o valor de auto-
negação própria da benevolência, como modo como se
reflete no amor de Deus pela criação" (GRENZ; SMITH,
2005, p. 9). É distinto de Eros, que representa o amor
do desejo de união e de posse. Deve ser compreendi-
do como o amor que abre para, diferente do amor que
atrai para. É, portanto, doação, caridade.
2) Angústia ética: "Um sentimento de desespero origina-
do pela necessidade de tomar decisões éticas ou mo-
rais. A angustia ética é um atributo necessário à for-
mação do CARÁTER moral na SOCEIDADE ética. Søren
Kierkegaard afirmava que a angustia era uma das
marcas da verdadeira liberdade de escolha" (GRENZ;
SMITH, 2005, p. 11). Heidegger, que foi fortemente in-
fluenciado pelo existêncialismo de Kierkegaard, vê na
angustia uma das características essênciais do Ser-aí. É
porque o homem é finito e se angustia com a finitude
das possibilidades de ser que ele se abre para a possi-
bilidade mais fundamental de superar a inautênticida-
de e fazer uma escolha autêntica. Com isso, ele pode
cuidar de si, cuidar do outro e cuidar do mundo.

20 © Ética II
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3) Autonomia: "Literalmente, 'LEI de si mesmo' ou 'au-


togoverno' e, portanto, o exercício independente da
VONTADE individual ou da comunidade, levando a rei-
vindicações morais consideradas como sendo determi-
nadas pelo indivíduo" (GRENZ; SMITH, 2005, p. 45). A
autonomia moral é "A crença de que a orientação mo-
ral é interior, vindo à luz a partir da ação de um prin-
cípio que habita o agente moral individual" (GRENZ;
SMITH, 2005, p. 15).
4) Bom, bem, bondade: "Em sua forma de adjetivo e
como um termo ético, bom significa, basicamente,
algo de excelência moral. A bondade, por sua vez, sig-
nifica o estado ou a qualidade de ser bom. A natureza
dessa excelência moral, contudo, foi uma das questões
centrais exploradas pelos eticistas em toda a história.
Enquanto o centro do debate na tradição filosófica gre-
ga envolveu o problema do que constitui um homem
bom, a perspectiva bíblica começa com a excelência
moral de Deus" (GRENZ; SMITH, 2005, p. 19-20). O
bom na modernidade pode se referir a uma qualidade
mais mecânica de adequação a um sistema matemáti-
co. A influência da Matemática será sentida mesmo na
Ética, com Spinoza.
5) Justiça: "Em geral, a ordem das relações humanas ou
a conduta de quem se ajusta a essa ordem. Pode-se
distinguir dois significados principais: 1º Justiça como
conformidade da conduta a uma norma; 2º como efi-
ciência de uma norma (ou de um sistema de normas),
entendendo-se eficiência de uma norma uma certa ca-
pacidade de possibilitar as relações entre os homens.
No primeiro significado, esse conceito é empregado

© Ética II 21
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para julgar o comportamento humano ou a pessoa hu-


mana (esta última, com base em seu comportamen-
to). No segundo significado, é empregado para julgar
as normas que regulam o próprio comportamento. A
problemática histórica dos dois conceitos, ainda que
freqüentemente interligada e confundida, é completa-
mente diferente.
1º [...] Justiça é a conformidade de um comportamen-
to [...] a uma norma. [...] Esta pode ser de fato a norma
natural, a norma divina ou a norma positiva. Aristóte-
les diz: 'Uma vez que o transgressor da lei é injusto, en-
quanto é justo quem se conforma à lei, é evidente que
tudo aquilo que se conforma à lei é de alguma forma
justo: de fato, as coisas estabelecidas pelo poder legis-
lativo conformam-se à lei, e dizemos que cada uma de-
las é justa' (Et. nic., V, 1, 1129 b 11). [...], segundo Aris-
tóteles, a Justiça é a virtude integral e perfeita: integral
porque compreende todas as outras; perfeita porque
quem a possui pode utilizá-la não só em relação a si
mesmo, mas também em relação aos outros [...].
2º No segundo conceito, a Justiça não se refere ao
comportamento ou à pessoa, mas à norma; expressa a
eficiência da norma, sua capacidade de possibilitar as
relações humanas. Neste caso, obviamente, o objeto
do juízo é a própria norma, e desse ponto de vista as
diferentes teorias da Justiça são os diferentes concei-
tos de fim em relação ao qual se pretende medir a efi-
ciência da norma como regra para o comportamento
intersubjetivo. Platão foi o primeiro a insistir na Justi-
ça como instrumento. Sócrates pergunta a Trasímaco:
'Acreditas por acaso que uma cidade, um exército, um

22 © Ética II
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grupo de bandidos ou de ladrões, ou qualquer outro


amontoado de pessoas que se ponha de acordo para
fazer algo de injusto, poderia chegar a fazer alguma
coisa se os seus integrantes cometessem injustiça uns
para com os outros? – Não, de certo respondeu Trasí-
maco. – E se não cometessem injustiça, não seria me-
lhor? – Seguramente. – A razão disso Trasímaco, é que
a injustiça dá origem a ódios e lutas entre os homens,
enquanto a Justiça produz acordo e amizade' (Rep. 351
c-d)" (ABBAGNANO, 2007, p. 682-683).
6) Liberdade: "Esse termo tem três significados funda-
mentais, correspondentes a três concepções que se
sobrepuseram ao longo de sua história e que podem
ser caracterizados da seguinte maneira: 1ª como au-
toterminação ou como autocausalidade, segundo a
qual a Liberdade é ausência de condições e limites;
2ª Liberdade como necessidade, a autodeterminação,
mas atribuindo-a à totalidade a que o homem perten-
ce (Mundo, Substância, Estado); 3ª Liberdade como
possibilidade ou escolha, segundo a qual a Liberdade é
limitada e condicionada, isto é, finita. Não constituem
conceitos diferentes as formas que a Liberdade assu-
me nos vários campos, como por exemplo Liberdade
metafísica, Liberdade moral, Liberdade política, Liber-
dade econômica etc. As disputas metafísicas, morais,
políticas, econômicas etc., em torno da Liberdade são
dominadas pelos três conceitos em questão, aos quais
portanto, podem ser remetidas as formas específicas
de Liberdade sobre as quais essas disputas versam"
(ABBAGNANO, 2007, p. 699).

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7) Moral e Ética: nesta obra, a moral será tomada como o


conjunto de normas e costumes que regulamentam as
relações humanas de certa comunidade. Nesse senti-
do, pode haver muitas morais; há uma moral aristocra-
ta, uma moral cristã, uma moral judaica etc. Já no caso
da Ética, procura-se aquilo que deve preceder toda e
qualquer moral. A vida é um valor ético, já a pena de
morte ou o aborto são decisões de uma determinada
moral. A moral geralmente se aplica de maneira ge-
neralizada a todos os indivíduos de uma sociedade. A
Ética tem de levar em conta a singularidade de cada
ato ou dado. Nesse sentido, o advogado de defesa e
o promotor de justiça apreciam o processo de acordo
com as normas e costumes de uma sociedade. Já o
juiz tem de analisar o caso singular, irrepetível de cada
ação particular. O advogado e o promotor cuidam da
moral, o juiz, da Ética. Portanto, a Ética cuida do ser,
enquanto a moral da obrigação. A moral é cultural, a
Ética é ontológica e pode ser metafísica. A moral cuida
do universal enquanto geral em relação ao particular;
a Ética, do singular em relação ao universal. Para me-
lhor compreender a distinção, lembremos a passagem
bíblica em que Jesus é convidado a decidir se Maria
Madalena será ou não apedrejada. Segundo a Lei e os
Costumes do povo, ela deveria ser condenada ao ape-
drejamento. Os acusadores falam em nome da moral,
mas Jesus não a julga de acordo com a moral, mas com
a Ética, e procura compreender a situação em si mes-
ma. Preservando a vida como valor, ele contrapõe va-
lores éticos a valores morais.

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Glossário por autores

Hobbes
1) Noção de direito: é a liberdade de fazer o que não for
impedido por obstáculos exteriores. Todos têm um di-
reto natural a tudo o que for necessário para a conser-
vação de suas vidas. O contrato consiste em transferir
esse direito ao Soberano, de acordo com o que pres-
creve a lei natural.
2) Noção de Estado: o Estado é "uma pessoa civil", um
produto do artifício humano, segundo o mecanismo
contratual. O pacto social transforma a multidão dos
homens em um corpo do Estado. O Estado represen-
ta cada um de nós; decide, age por cada um de nós e
devemos nos reconhecer como autores de tudo o que
ele faz.
3) Noção de estado de natureza: a expressão "estado de
natureza" designa a situação dos homens na ausência
do Estado, isto é, uma situação de "guerra de uns con-
tra os outros".
4) Guerra: a guerra não consiste unicamente no fato de
se bater. Basta haver disposição para o combate, reco-
nhecida durante um certo período, sem que seja pos-
sível o contrário, para se ter uma situação de guerra. É
nesse sentido que o estado de natureza pode ser cha-
mado de um estado de guerra.
5) Liberdade: é a ausência de obstáculos exteriores. No
estado de natureza, a liberdade de cada um se confun-
de com seu direito natural. As diversas liberdades se
entrechocam e se paralisam. Com o Estado, os homens

© Ética II 25
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permanecem livres naqueles domínios sobre os quais


a lei civil não se pronuncia, uma vez que a lei não pode
abarcar todos os aspectos da vida. Domínios como o
da opinião íntima, o da vida familiar e o de uma grande
parte da vida econômica.
6) Lei: a lei se opõe ao direito pelo fato de obrigar. A lei
da natureza é um imperativo ditado pela razão: obriga
o homem a buscar a paz. Tal imperativo só pode ser
realizado graças ao contrato. É, pois, a lei natural que
nos ordena a obedecer às leis civis.
7) Marca (marks): marcas são símbolos que permitem ao
homem e somente a ele dominar o tempo, lembrando
o passado e tornando possível uma verdadeira ante-
cipação do futuro. Os nomes são "marcas" arbitrárias
por meio das quais notamos nossos pensamentos e
graças às quais podemos calcular suas consequências.
A linguagem humana é, assim, a fonte e o fundamento
dos artifícios políticos (contrato, Estado).
8) Soberano: é o que é supremo e não passível de ser
limitado por outra coisa. É o ser supremo, advindo do
contrato, é um absoluto inviolável.

Descartes
1) Generosidade: a verdadeira generosidade implica um
conhecimento justo de si mesmo, da própria liberda-
de, da disposição em utilizar o poder de julgar o que
é melhor. Só será possível se saber responsável de si
mesmo se o espírito se conhecer como espírito (no
cogito).

26 © Ética II
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2) Moral de provisão: é aquela especulação que nos con-


cede tempo suficiente para duvidar antes de encontrar
a certeza, quando a ação exige uma solução que não
pode esperar. Na ausência de princípios definitivos,
temos que adotar as máximas que nos permitem nos
conduzir de maneira resoluta, isto é, sem nos deixar
dominar pelos acontecimentos, seguindo os costumes
os mais moderados (primeira máxima), permanecen-
do constantes no que decidimos (segunda máxima)
e sabendo encontrar alegria naquilo que depende de
nós (terceira máxima).

Spinoza
1) Adequado: uma ideia adequada é uma verdadeira
ideia, porque é conforme o seu objeto, isto é, nos traz
integralmente seu objeto, de maneira que passamos a
conhecê-lo como Deus o conhece.
2) Afecção: ao nível psicológico, a "afecção" é o sentimen-
to daquilo que favorece ou prejudica a nossa potência
de ser. Ao nível do corpo, é o que aumenta ou diminui
o seu poder de agir. Quando a afecção é conhecida de
maneira inadequada, é uma paixão que nos submete
aos acontecimentos do mundo.
3) Amor: "o amor é uma alegria que acompanha a ideia
de uma causa exterior". Quando conhecido inadequa-
damente, o amor é uma paixão, pois, na paixão fica-
mos completamente submetidos a esta "causa exte-
rior". O amor nos permite igualmente compreender o
amor de Deus, reconhecendo sua presença em toda

© Ética II 27
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"causa exterior", reconhecendo a presença de Deus


em toda "alegria".
4) Atributo: tradicionalmente, entende-se por "atributo"
aquilo pelo qual uma substância pode ser conhecida.
Esta definição supõe uma dimensão íntima, oculta, não
passível de conhecimento da substância em si mesma.
Spinoza rompe radicalmente com esta suposição. Diz
ele: "Por atributo entendo o que o entendimento per-
cebe da substância como constituindo sua essência", o
que significa que o entendimento percebe a substân-
cia como ela é na realidade. Se nosso conhecimento de
Deus não é completo, pois, conhecemos apenas dois
de seus atributos (o Pensamento e a Extensão) tal co-
nhecimento, no entanto, é perfeito, não há lugar para
uma qualidade oculta.
5) Causa: é preciso distinguir a causa imanente, que pro-
duz seu efeito em si mesmo, da causa transitiva que
produz seu efeito fora de si mesmo. A Proposição 18 do
livro I da Ética estabelece que "Deus é causa imanente,
mas não transitiva de todas as coisas". Desta distinção
advém outra: Deus é causa da essência das coisas na
eternidade e de sua existência no tempo. Neste sen-
tido, as coisas são causas físicas produzindo-se umas
às outras. Cada existência singular é desta maneira
submetida a uma dupla determinação: é produzida
por Deus sob a condição de ser determinada por outra
existência singular que, por sua vez, é determinada por
outra e assim até o infinito (Ética I. Proposição 28).
6) Ciência intuitiva: a ciência intuitiva (conhecimento do
terceiro gênero) provem da ideia adequada da essência
formal de alguns atributos de Deus ao conhecimento

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adequado da essência das coisas (Ética II, Proposição


40, Comentário II). Trata-se para a alma individual de
conhecer o "processamento" de sua essência a partir de
Deus e não de se fundir com o infinito em uma espé-
cie de intuição inefável. Este conhecimento não pode se
realizar senão através das demonstrações, cuja geome-
tria, graças ao seu método genético, fornece o modelo.
A Ética, "demonstrada pela ordem geométrica", se situa
ao nível do conhecimento do terceiro gênero.
7) Essência: há em Deus, fora de meu pensamento, uma
essência eterna do meu corpo distinta de sua exis-
tência, assim como há uma essência eterna de minha
alma, precedendo sua existência.
8) Ideias Gerais: é preciso distinguir as ideias gerais ("ho-
mem", "ser", "coisa") das noções comuns (a "exten-
são", o "movimento", o "repouso"). O caráter univer-
sal das noções comuns nos permite pensar a riqueza
do particular, pois o que é comum a todas as coisas
se encontra paralelamente na parte e no todo. (Ética
II, Proposição 37). Ao mesmo tempo, o conhecimen-
to das noções comuns (segundo gênero) é adequado,
pois, é idêntico em nós e em Deus. O caráter "univer-
sal" das ideias gerais não provêm senão de sua confu-
são: o corpo humano sendo limitado, não pode formar
senão um certo número de imagens a cada vez; se este
número for ultrapassado, as imagens se confundem e
a alma imagina sem nenhuma distinção.
9) Liberdade: Spinoza distingue uma falsa ideia de li-
berdade que seria a ausência de necessidade de uma
verdadeira ideia de liberdade que seria a ausência de
constrangimento. A primeira é pura ilusão, não se apli-

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Caderno de Referência de Conteúdo

ca a nada de real e é prova de nossa ignorância, isto


é, de nossa servidão. A segunda se aplica a todo ser
que "existe e age somente segundo a necessidade de
sua natureza" sem sofrer necessariamente uma ação
exterior. Somente Deus é livre por natureza. O homem
pode se liberar através do conhecimento do segundo
gênero que lhe permite realizar sua ação segundo a
necessidade das coisas e também pelo conhecimento
do terceiro gênero, que lhe permite viver interiormen-
te o ato pelo qual Deus o criou para a eternidade.
10) Modo: contrariamente ao uso tradicional (de Aristó-
teles até Descartes), Spinoza não vê o "modo" como
uma maneira de ser da substância, mas como uma coi-
sa real, um efeito da substância. Chama as coisas reais
"modos", porque estas coisas existem na substância,
sendo esta sua causa imanente.
11) Superstição: noção central do Tratado teológico – po-
lítico, a superstição é a paixão de um espírito escravo
das oscilações entre a esperança e o medo. Em relação
à ilusão que nos apresenta deuses dirigindo a Natureza,
a superstição representa um grau superior da alienação.

Locke
1) Confiança (trust): a autoridade do poder político não
se baseia nem em um direito divino, nem em um poder
natural, mas no consentimento do povo. O contrato
social, expressão desse consentimento, é, ao mesmo
tempo, um ato de confiança que os governados atri-
buem a seus governantes, após o seu consentimento
à sociedade civil.

30 © Ética II
Caderno de Referência de Conteúdo

2) Propriedade (property): no vocabulário de Locke, a


palavra "propriedade" não designa estritamente a pos-
se de bens materiais, mas tudo o que é próprio de cada
um, ou seja, sua vida, sua liberdade, tudo o que cada
um conseguiu com seu trabalho e que, por isso, torna-
se sua propriedade legítima.
3) Resistência: Locke se opõe radicalmente a Hobbes, ad-
mitindo o direito de resistência a opressão. Não se trata
do direito de destruir o governo; o governo destrói a si
mesmo quando trai sua missão e é essa autodestruição
que legitima a oposição do povo. Não se trata também
de um direito à ação terrorista; o direito à resistência
não pertence aos indivíduos enquanto tais, mas ao povo
soberano, ao qual compete julgar se o governo eleito
por ele preenche corretamente sua missão.

Hume
1) Natureza humana: enquanto "natureza", a natureza
humana obedece a leis constantes, a exemplo dos fe-
nômenos climáticos: as variações históricas e geográfi-
cas não impedem que haja uma natureza humana uni-
forme no tempo e no espaço. Pode se ver, na natureza
humana, uma parte da natureza em geral, mas é mais
pertinente, do ponto de vista filosófico, considerar a
natureza humana como o centro, uma vez que as di-
ferentes ciências resultam do jogo das inclinações hu-
manas, devendo ser a ciência dessas inclinações uma
ciência central. Essa ciência do homem como ciência
central é o projeto inicial de Hume.

© Ética II 31
Caderno de Referência de Conteúdo

2) Senso moral: a ideia de "senso moral" tinha um pa-


pel fundamental no pensamento de alguns moralistas
ingleses e escoceses, dentre os quais o mais impor-
tante foi Francis Hutcheson (1694-1747). Segundo es-
ses moralistas, o ser humano teria uma faculdade de
percepção moral semelhante às nossas faculdades de
percepção sensorial. Em nome dessa faculdade ime-
diata e desinteressada, que nos permitiria reconhecer
o bem e o mal, rejeitavam a doutrina do egoísmo cal-
culador encontrada em Hobbes e Mandeville (Bernard
de Mandeville, 1670-1733): tudo o que o homem faz
pelo outro o faz calculando benefícios para si mesmo.
Retomando a expressão "senso moral", Hume lhe con-
fere uma dimensão bem maior. Para ele, o senso moral
testemunha a impotência de nossa razão, que jamais
será capaz de nos dizer o que é o bem e o que é o mal.
3) Simpatia: a simpatia não é uma paixão específica, mas
o princípio da comunicação das paixões. É graças a ela,
por exemplo, que penetramos os sentimentos dos ri-
cos e dos pobres, participamos do prazer de alguns e
do aborrecimento de outros, o que nos leva, pretende
Hume, a respeitar o poder dos ricos e a desprezar a
mediocridade dos pobres. A simpatia torna possíveis a
compaixão e a benevolência e não se limita a isso. Ela
me permite julgar a conduta moral do outro, em virtu-
de dessa capacidade que ela me dá de me identificar
com os outros. É, porém, limitada no que concerne,
observa Hume, ao julgamento do que é justo e do que
é injusto.

32 © Ética II
Caderno de Referência de Conteúdo

Kant
1) A priori: é o que não provem da experiência, que
dela é absolutamente independente. Opõe-se, pois,
ao "empírico" ou ao que vem da experiência (o "a
posteriori"). Enquanto a experiência só pode nos
oferecer generalidades e contingência, o a priori
caracteriza-se pela universalidade e pela necessidade.
2) Coisa-em-si: é o ente, enquanto existe independente-
mente de nosso conhecimento. Kant denomina a "coisa
-em-si" de noumeno ou númeno (do grego noúmenon),
em oposição ao "fenômeno". O númeno é o objeto do
entendimento. O fenômeno é objeto dos sentidos. O nú-
meno não pode ser dado a uma intuição sensível, porque
se encontra fora dos limites da experiência possível, por-
tanto, pode ser pensado, mas não pode ser conhecido,
isto é, determinado em sua essência. O númeno ou a coi-
sa-em-si é causa da representação ou fenômeno, não no
sentido de lhe ser exterior, mas de estar nele presente,
constituindo-o. Ao nível da sensibilidade, designa o que
há de conceitual: a existência. Do ponto de visa do enten-
dimento, a coisa-em-si é o objeto pensado. Corresponde
ao conhecimento do fenômeno que teria o entendimen-
to divino, que não podemos conhecer, mas que podemos
pensar.
3) Entendimento: faculdade dos conceitos. Kant distin-
gue os conceitos empíricos (os aspectos comuns a um
grupo de objetos) dos conceitos puros e a priori, que
definem a objetividade (os aspectos comuns a todos
os objetos), isto é, as regras de acordo com as quais
devemos associar os dados dos sentidos para construí
-los como objetos. O entendimento é uma faculdade

© Ética II 33
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ativa, um poder de síntese, porém um poder puramen-


te formal, ou seja, não produz de si mesmo nenhum
conteúdo e pode funcionar perfeitamente na ausência
dos dados da sensibilidade.
4) Razão: a noção de razão em Kant apresenta várias nuan-
ces, mas, em essência, podemos dizer que é o poder de
síntese do entendimento, fora de todo dado sensível,
produzindo os conceitos racionais ou ideias: o eu, o mun-
do, Deus, manifestando, assim, a pretensão a um tipo de
conhecimento puramente inteligível (não sensível).
5) Representação: estado de consciência no qual encon-
tramo-nos em relação com algo que tornamos presen-
te a nós mesmos e que pensamos espontaneamente
como existente.
6) Sensibilidade: é uma faculdade passiva e receptiva
pela qual algo nos é dado (não produzido por nós). É a
marca da finitude humana.
7) Transcendental em Kant: é o a priori, enquanto o que
delineia a forma da objetividade, ou, ainda, é o conjunto
das condições das possibilidades dos objetos enquanto
objetos. Opõe-se evidentemente ao empírico, porém
sobretudo ao "transcendente" (o que está fora dos limi-
tes da experiência), com o qual não deve ser confundido.

Nietzsche
1) Ativo/reativo: ativo é o que se afirma sem se opor,
sem negar, sem destruir o que quer que seja; reativo,
ao contrário, é o que só se coloca opondo-se, negando
alguma coisa. A criação artística manifesta a ativida-
de enquanto aberta à multiplicidade das forças vitais,

34 © Ética II
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enquanto as pesquisas do cientista ou do filósofo são


reativas, na medida em que rejeitam o erro e, portan-
to, negam uma parte da vida.
2) Genealogia: crítica que consiste a considerar todo jul-
gamento moral, científico, filosófico etc. como uma
avaliação referente a um estado de relação entre as
forças ativas e reativas, isto é, referente a um estado
da vontade. A prática genealógica desvela, por trás de
cada julgamento, uma interpretação que conseguiu se
impor, recuperando a sua gênese.
3) Niilismo: segundo Nietzsche, toda posição que nega a vida.
Tudo que é reativo é niilista, por exemplo, a vontade de
verdade que exclui o erro. "Querer o verdadeiro é querer
a morte". Toda a filosofia a partir de Platão é niilista, pois
tal filosofia postulou constantemente valores superiores à
vida (as ideias, o bem, o verdadeiro etc.). Em um sentido
mais específico, o niilismo é também, em Nietzsche, o pen-
samento moderno advindo da Renascença e que atinge
seu ponto culminante no século das Luzes, porque, em-
bora tal pensamento tenha combatido os valores superio-
res, a "morte" de Deus, por ele decretada, aconteceu por
vingança e ressentimento, ou seja, de maneira reativa. A
vida, com o pensamento moderno, não foi enriquecida:
reencontramo-nos sós, em um mundo sem valores e sem
meta.
4) Sintoma: essa noção faz parte do arsenal genealógi-
co de Nietzsche e significa que todo julgamento é uma
avaliação referente ao estado da vontade que o susten-
ta. Em outras palavras, trata-se de uma manifestação
de certa relação entre forças ativas e reativas. Não tem
o sentido da concepção médica clássica; aproxima-se

© Ética II 35
Caderno de Referência de Conteúdo

do sentido freudiano de um significante que não se re-


fere a nenhum significado fixo.
5) Vida: é o conjunto das forças ativas e reativas que lu-
tam entre si. A vida é multiplicidade, diferenciação
perpétua e se opõe à identidade e à estabilidade.
6) Vontade de poder: é o fundamento da vida e de toda rea-
lidade. Sendo a vida um jogo de forças, sua tendência mais
profunda é essa pressão permanente para obter sempre
mais poder, intensificando as forças que a constituem.

Observação: as informações constituintes deste Glossário por


autor foram obtidas do "Glossaires par auteurs" da obra Les
temps des philosophes (ROUX-LANIER, 1995).

Esquema dos Conceitos-chave


Para que você tenha uma visão geral dos conceitos mais
importantes deste estudo, apresentamos, a seguir (Figura 1), um
Esquema dos Conceitos-chave da obra. O mais aconselhável é
que você mesmo faça o seu esquema de conceitos-chave ou até
mesmo o seu mapa mental. Esse exercício é uma forma de você
construir o seu conhecimento, ressignificando as informações a
partir de suas próprias percepções.
É importante ressaltar que o propósito desse Esquema dos
Conceitos-chave é representar, de maneira gráfica, as relações entre
os conceitos por meio de palavras-chave, partindo dos mais com-
plexos para os mais simples. Esse recurso pode auxiliar você na or-
denação e na sequenciação hierarquizada dos conteúdos de ensino.
Com base na teoria de aprendizagem significativa, entende-
se que, por meio da organização das ideias e dos princípios em

36 © Ética II
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esquemas e mapas mentais, o indivíduo pode construir o seu co-


nhecimento de maneira mais produtiva e obter, assim, ganhos pe-
dagógicos significativos no seu processo de ensino e aprendizagem.
Aplicado a diversas áreas do ensino e da aprendizagem esco-
lar (tais como planejamentos de currículo, sistemas e pesquisas em
Educação), o Esquema dos Conceitos-chave baseia-se, ainda, na ideia
fundamental da Psicologia Cognitiva de Ausubel, que estabelece que
a aprendizagem ocorre pela assimilação de novos conceitos e de pro-
posições na estrutura cognitiva do aluno. Assim, novas ideias e infor-
mações são aprendidas, uma vez que existem pontos de ancoragem.
Tem-se de destacar que "aprendizagem" não significa, ape-
nas, realizar acréscimos na estrutura cognitiva do aluno; é preci-
so, sobretudo, estabelecer modificações para que ela se configu-
re como uma aprendizagem significativa. Para isso, é importante
considerar as entradas de conhecimento e organizar bem os ma-
teriais de aprendizagem. Além disso, as novas ideias e os novos
conceitos devem ser potencialmente significativos para o aluno,
uma vez que, ao fixar esses conceitos nas suas já existentes es-
truturas cognitivas, outros serão também relembrados.
Nessa perspectiva, partindo-se do pressuposto de que é
você o principal agente da construção do próprio conhecimen-
to, por meio de sua predisposição afetiva e de suas motivações
internas e externas, o Esquema dos Conceitos-chave tem por
objetivo tornar significativa a sua aprendizagem, transformando
o seu conhecimento sistematizado em conteúdo curricular, ou
seja, estabelecendo uma relação entre aquilo que você acabou
de conhecer com o que já fazia parte do seu conhecimento de
mundo (adaptado do site disponível em: <http://penta2.ufrgs.
br/edutools/mapasconceituais/utilizamapasconceituais.html>.
Acesso em: 11 mar. 2010).

© Ética II 37
38
ÉTICA

ETHOS: “e” longo


- Princípios e Razões criados pelo sujeito
ETHOS: “e” breve = MORAL
- Surge da reflexão interna do sujeito - Transmitido pelas gerações
- Impõe-se ao sujeito pela sua própria - Estabelecidos no seio de uma sociedade
vontade e consciência - Surgem do ambiente exterior ao indivíduo
Caderno de Referência de Conteúdo

MORAL ABERTA (BERGSON) MORAL FECHADA (BERGSON)


- Religião Dinâmica: Criatividade e - Religião Estática: Coesão Social
Progresso - Rigidez de Regras
- Liberdade e Possibilidades - Obediência Estrita

NICOLAU MACHIAVEL
- Cisão entre a dimensão ética e
a dimensão política. TEOLÓGICOS
- O fundamento ético ou a MODELOS ÉTICOS
- Julga a ação através de metas ou finalidades
“morada interior” é abandonado Renascentistas, Modernos e Contemporâneos
externas (Consequência. Ex.: Jeremy Bentham)

RELATIVISMO/SUBJETIVISMO DEONTOLÓGICOS
- Nega que haja qualquer direito moral, teoria, - Baseia-se na premissa da existência de
padrão ao valor ético exclusivo deveres morais
Ex.: Michel de Montaigne, Nietzsche, Hume etc. Ex.: Kant, Descartes, Thomas Hobbes, Locke etc.

Figura 1 Esquema dos Conceitos-chave da obra Ética II. (Desenhar esquema)

© Ética II
Caderno de Referência de Conteúdo

Questões Autoavaliativas
No final de cada unidade, você encontrará algumas ques-
tões autoavaliativas sobre os conteúdos ali tratados, as quais
podem ser de múltipla escolha, abertas objetivas ou abertas
dissertativas.
Responder, discutir e comentar essas questões, bem como
relacioná-las com a prática do ensino de Filosofia, pode ser uma
forma de você avaliar o seu conhecimento. Assim, mediante a
resolução de questões pertinentes ao assunto tratado, você es-
tará se preparando para a avaliação final, que será dissertativa.
Além disso, essa é uma maneira privilegiada de você testar seus
conhecimentos e adquirir uma formação sólida para a sua práti-
ca profissional.
Você encontrará, ainda, no final de cada unidade, um
gabarito, que lhe permitirá conferir as suas respostas sobre as
questões autoavaliativas de múltipla escolha.

As questões de múltipla escolha são as que têm como res-


posta apenas uma alternativa correta. Por sua vez, entendem-se
por questões abertas objetivas as que se referem aos conteú-
dos matemáticos ou àqueles que exigem uma resposta determi-
nada, inalterada. Já as questões abertas dissertativas obtêm
por resposta uma interpretação pessoal sobre o tema tratado;
por isso, normalmente, não há nada relacionado a elas no item
Gabarito. Você pode comentar suas respostas com o seu tutor
ou com seus colegas de turma.

Bibliografia Básica
É fundamental que você use a Bibliografia Básica em seus
estudos, mas não se prenda só a ela. Consulte, também, as bi-
bliografias complementares.

© Ética II 39
Caderno de Referência de Conteúdo

Figuras (ilustrações, quadros...)


Nesta obra instrucional, as ilustrações fazem parte inte-
grante dos conteúdos, ou seja, elas não são meramente ilus-
trativas, pois esquematizam e resumem conteúdos explicitados
no texto. Não deixe de observar a relação dessas figuras com os
conteúdos da obra, pois relacionar aquilo que está no campo vi-
sual com o conceitual faz parte de uma boa formação intelectual.

Dicas (motivacionais)
O estudo desta obra convida você a olhar, de forma mais
apurada, a Educação como processo de emancipação do ser hu-
mano. É importante que você se atente às explicações teóricas,
práticas e científicas que estão presentes nos meios de comunica-
ção, bem como partilhe suas descobertas com seus colegas, pois,
ao compartilhar com outras pessoas aquilo que você observa,
permite-se descobrir algo que ainda não se conhece, aprenden-
do a ver e a notar o que não havia sido percebido antes. Obser-
var é, portanto, uma capacidade que nos impele à maturidade.
Você, como aluno do curso de Licenciatura em Filosofia na
modalidade EaD, necessita de uma formação conceitual sólida e
consistente. Para isso, você contará com a ajuda do tutor a dis-
tância, do tutor presencial e, sobretudo, da interação com seus
colegas. Sugerimos, pois, que organize bem o seu tempo e reali-
ze as atividades nas datas estipuladas.
É importante, ainda, que você anote as suas reflexões em
seu caderno ou no Bloco de Anotações, pois, no futuro, elas po-
derão ser utilizadas na elaboração de sua monografia ou de pro-
duções científicas.

40 © Ética II
Caderno de Referência de Conteúdo

Leia os livros da bibliografia indicada, para que você amplie


seus horizontes teóricos. Coteje-os com o material didático, discu-
ta a unidade com seus colegas e com o tutor e assista às videoaulas.
No final de cada unidade, você encontrará algumas ques-
tões autoavaliativas, que são importantes para a sua análise
sobre os conteúdos desenvolvidos e para saber se estes foram
significativos para sua formação. Indague, reflita, conteste e
construa resenhas, pois esses procedimentos serão importantes
para o seu amadurecimento intelectual.
Lembre-se de que o segredo do sucesso em um curso na
modalidade a distância é participar, ou seja, interagir, procuran-
do sempre cooperar e colaborar com seus colegas e tutores.
Caso precise de auxílio sobre algum assunto relacionado
a esta obra, entre em contato com seu tutor. Ele estará pronto
para ajudar você.

3. referências bibliográficas
ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
BARBOUR, I. G. Issues in science and religion. New York: Harper & Row, 1971.
BAUDRILLARD, J. La transparence du mal, essais sur les phénomènes extremes. Paris:
Galilée, 1990.
BERGSON, H. As duas fontes da moral e da religião. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
FERREIRA, A. B. H. Miniaurélio: o minidicionário da língua portuguesa. 8. ed. Curitiba:
Positivo, 2010.
GRENZ, S. J.; SMITH, J. T. Dicionário de Ética: mais de 300 termos definidos de forma
clara e concisa. São Paulo: Editora Vida, 2005.
HUSSERL, E. La crise des sciences européenes et la phénoménologie transcendantale.
Paris: Gallimard, 1976.
KEMP, P. L'irremplaçable – une éthique de la technologie. Paris: Cerf, 1997.

© Ética II 41
Caderno de Referência de Conteúdo

MORA, J. F. Diccionario de Filosofia. 7. ed. Madrid: Alianza, 1990.


ROUX-LANIER, C. (Org.). Le temps des philosophes. Paris: Hatier, 1995.
TUGENDHAT, E. Lições sobre a Ética. Petrópolis: Vozes, 2000.

42 © Ética II
UNIDADE 1
A Concepção Ética do Renascimento

1. OBJETIVOs
• Conhecer e compreender as características fundamen-
tais do pensamento filosófico da Renascença, a partir
das mudanças relacionadas a uma visão do mundo e do
homem.
• Conhecer as concepções sobre o ético e o moral de al-
guns importantes e representativos pensadores da épo-
ca renascentista.

2. CONTEÚDOS
• Giovanni Pico della Mirandola.
• Nicolau Machiavel.
• Paracelso.
• Michel de Montaigne.

3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE


Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que
você leia as orientações a seguir:

43
UNIDADE 1 – A Concepção Ética do Renascimento

1) Antes de iniciar os estudos desta unidade, para mer-


gulhar na atmosfera da Renascença, seria interessante
que você assistisse a filmes como:
• Da Vinci e a Renascença, 1987, Encyclopaedia Bri-
tannica – são dois filmes: Leonardo da Vinci e O es-
pírito da Renascença.
• O homem que não vendeu a alma, de 1966, com
direção de Fred Zinnemann. O filme trata sobre a
vida de Thomas More ou Morus, mostrando o im-
pério das ideias humanistas e, ao mesmo tempo, a
resistência às reformas protestantes.
• Giordano Bruno, de 1973, com direção de Giuliano
Montaldo. Discute a tese de um universo infinito,
contrariando a concepção aristotélica da finitude
do universo, e a concepção de que o homem e a
terra não são o centro do universo.
• O mercador de Veneza, de 2004, com direção de
Michael Radford. Adaptação da peça homônima de
William Shakespeare.
• Lutero (Luther, no original), de 2003, com direção
de Eric Till.
• Documentários da BBC sobre Isaac Newton e outros
filósofos.
2) Hermetismo, nesta unidade, significará doutrina esoté-
rica baseada nos escritos da época greco-romana que
se considerava de inspiração do deus Hermes Trime-
gisto, personagem mítico da Antiguidade. Hermes é o
deus grego, mensageiro dos deuses, denominado pelos
romanos de Mercúrio e pelos egípcios de Thot, a quem
se atribui a inspiração para um conjunto de textos cha-

44 © Ética II
UNIDADE 1 – A Concepção Ética do Renascimento

mado Hermética, constituído do Corpus Hermeticum e


da Tábua Esmeralda. O Corpus Hermeticum consiste em
tratados místico-filosóficos em grego, datando do perío-
do helenista (período que vai da conquista por Alexan-
dre, o Grande, de uma parte do mundo mediterrâneo e
da Ásia, até a dominação romana). A Tábua Esmeralda é
um texto da literatura alquímica – prática da transmuta-
ção dos metais e de uma medicina universal, "panaceia"
(nome que vem da deusa grega Panaceia, que trazia aos
homens remédios originários de plantas) – composto
de uma dúzia de fórmulas obscuras e alegóricas (que
permitem expressar um ou mais sentidos além do li-
teral, como na fábula e na parábola). Nela se encontra
a famosa correspondência entre o macrocosmo (visão
do universo como um todo, cujas partes estão em cor-
respondência, visualização sob o modelo do organismo
humano) e o microcosmo (o homem enquanto imagem
reduzida do mundo). Daí a célebre frase: "o que está em
cima é igual ao que está em baixo e o que está em baixo
é igual ao que está em cima".

4. Introdução
Iniciaremos o estudo desta unidade com um texto sobre
o Renascimento, de Marilena Chauí (2015), intitulado Filosofia
moderna:
[...] o historiador das idéias e das instituições européias, Michel
Foucault, no livro As Palavras e as Coisas (Les Mots et les Choses),
considera o Renascimento um período em que os conhecimen-
tos são regulados por um conceito fundamental: o conceito de
Semelhança, graças ao qual são pensadas as relações entre se-
res que constituem toda a realidade, motivo pelo qual ciências

© Ética II 45
UNIDADE 1 – A Concepção Ética do Renascimento

como a medicina e a astronomia, disciplinas como a retórica e a


história, teorias sobre a natureza humana, a sociedade, a política
e a teologia empregam conceitos como os de simpatia e antipa-
tia (nas doenças e nos movimentos dos astros), de imitação ou
emulação (entre os seres humanos, entre as coisas vivas, entre
humanos e coisas, entre o visível e o invisível, como no caso da
alquimia), conceitos que nada têm a ver com a "magia" como su-
perstição, mas com a magia como forma de revelação do oculto
pelos poderes da mente humana, isto é, a Semelhança define um
certo tipo de saber e um certo tipo de poder. Também é central
o conceito de amizade, como atração natural e espontânea dos
iguais (animais, humanos) e que serve de referência para pensar-
-se a figura do tirano como inimigo do povo e criador de reinos
regulados pela inimizade recíproca (forma de compreender as
divisões sociais e os conflitos entre poder e sociedade).
A Natureza é pensada como um grande Todo Vivente, interna-
mente articulado e relacionado pelas formas variadas da Se-
melhança, indo dos minerais escondidos no fundo da terra ao
brilho dos astros no firmamento, das coisas aos homens, dos
homens a Deus.

Estamos, assim, diante de um naturalismo, em que todo


ser, inclusive o ser humano, age à luz de princípios naturais e não
sob o império da divindade.
Por sua vez, pela noção de "semelhança" dá-se igualmente
a busca do conhecimento, caracterizando uma racionalidade que
se manifesta predominantemente à maneira de uma razão subje-
tiva, a razão daquele que contempla e observa. Uma racionalidade
que, baseando-se na noção de "semelhança", descreve e interpre-
ta, assumindo, por vezes, a dimensão de uma visão mágica das
coisas, a criação de obras pelo simples prazer de criação do belo e
da beleza. O resultado é uma época de grandes artistas, pintores,
arquitetos como Leonardo da Vinci, Rafael, Michelangelo e outros.

46 © Ética II
UNIDADE 1 – A Concepção Ética do Renascimento

Desse modo, um antropocentrismo e um humanismo se


impõem. O mundo passa a ser visto a partir do humano. Tudo
pode ser explicado pela razão humana, tudo pode ser criado por
mãos humanas, daí o desenvolvimento de técnicas.
Mas, certo vínculo se mantém com a visão do homem me-
dieval: salvaguarda-se a fé, isto é, para a mente renascentista,
tudo pode ser explicado pela razão humana, porém alcançado
pela fé. Não há, dessa maneira, um rompimento total com a tra-
dição medieval, embora dela se diferencie essencialmente, na
medida em que se busca, ao contrário daquela, uma aproxima-
ção da Natureza com o Divino.
É dentro de um tal contexto que a dimensão moral do ca-
ráter racional e passional da alma humana se torna um dos prin-
cipais temas de reflexão.
É o que veremos ao trabalhar o pensamento de quatro re-
presentantes desta visão renascentista:
• Giovanni Pico della Mirandola;
• Nicolau Machiavel;
• Phillipus Theophrastus Bombastus von Hohenheim
(Paracelso);
• Michel de Montaigne.
Seguiremos uma ordem cronológica, baseada nas datas de
nascimento desses pensadores.

5. Giovanni Pico della Mirandola (1463-1494)


O italiano Giovanni Pico della Mirandola foi discípulo de
Marsílio Ficino (1433-1599) e de seu círculo neoplatônico, na
Academia de Florença (Itália). O neoplatonismo, revivido na Re-

© Ética II 47
UNIDADE 1 – A Concepção Ética do Renascimento

nascença italiana por, entre outros, Marsílio Ficino, é uma cor-


rente de pensamento iniciada no século 3º da nossa era, por
Plotino (205-270 d.C.), grande filósofo grego de Alexandria. Ba-
seada, em princípio, nos ensinamentos de Platão, dos quais se
diferencia bastante, foi reintroduzida no Ocidente por Plethon
(1355-1452), um dos grandes pensadores de seu tempo, que,
por sua vez, dizia ter recebido os ensinamentos de Amônio Sa-
cas (175-242), renomado filósofo grego de Alexandria. Segundo
o neoplatonismo, o Uno refere-se a Deus, que é indivisível, e do
Uno emanou uma sequência de seres menores. Os neoplatôni-
cos não acreditavam na existência do mal, que, para eles, seria
a imperfeição. Veremos essa ideia permear todo o pensamento
de Pico della Mirandola, na medida em que funda toda ética e
moral na busca da perfeição.
Pico della Mirandola define o homem como meio de equi-
líbrio de todas as coisas criadas: pela força do espírito e do inte-
lecto, é o homem capaz de unir e harmonizar os elementos da
natureza.
Apesar de ter falecido aos 31 anos de idade, Pico della Mi-
randola é um dos representantes mais significativos dessa visão,
que coloca o homem como o centro do universo. Ao lado do
papel preponderante do homem na Criação Divina e sua con-
sequente miséria com a "queda" advinda do "pecado original",
tão lembrada e descrita na visão religiosa, há que se enfatizar,
segundo ele, a dignidade que advém ao homem com o exercício
da liberdade.
Esforçava-se Pico della Mirandola por estabelecer uma
nova fé cristã fundamentada no desenvolvimento das capacida-
des humanas por meio de uma excelente formação intelectual
pelo estudo de correntes as mais diversas e mesmo opostas.

48 © Ética II
UNIDADE 1 – A Concepção Ética do Renascimento

O sincretismo, tendência a reunir doutrinas ou teorias diversas


ensinadas como verdadeiras seja por um autor, seja por vários
autores, é uma das características de sua obra. Propunha-se a
estudar um tema sob o maior número de pontos de vista, ten-
tando chegar à visão ou ideia mais próxima possível da realidade
observada.
Sendo por natureza um eclético, busca, em vários sistemas
filosóficos e religiosos, o que mais lhe parecia conter elementos
interessantes para compor um único sistema de explicação da
realidade observada. Pico sintetizou as doutrinas filosóficas co-
nhecidas em sua época, principalmente o platonismo, os aristo-
telismos, a escolástica, os escritos hebraicos e talmúdicos (textos
fundamentais do judaísmo rabínico, estruturados nos séculos 2º
e 6º E.C. – Era Cristã – e reconhecidos como a norma do judaís-
mo), assim como os textos do hermetismo.
Do ponto de vista de uma "Ética", a obra de Giovanni Pico
della Mirandola representa o que Henri Gouhier (filósofo francês
de inspiração cristã, historiador de Filosofia e crítica dramática,
autor, entre outras obras, de L'Anti-humanisme du XVII siècle)
denominou de "misticismo da nobreza humana". Trata-se de va-
lorizar o poder de escolha situado no íntimo de cada ser humano
– nisso consistindo sua dignidade: "somos dignos porque somos
livres". Esse poder de escolha, a liberdade, seria uma potenciali-
dade do homem – potencialidade que o liberta do dogma deter-
minista religioso ou astrológico (a astrologia tinha grande auto-
ridade na época, no que concerne à determinação do destino de
cada indivíduo) e que reduzia o homem a um mero instrumento
de luta entre forças opostas. O poder de escolher torna-se um
instrumento positivo de ação sobre a realidade. O ser humano
é um ser imperfeito, mas cuja possibilidade de perfeição é ilimi-

© Ética II 49
UNIDADE 1 – A Concepção Ética do Renascimento

tada, podendo alcançar o grau de moralidade e intelectualidade


que desejar.
Sensível, para este humanista, o amor, fundamental na fé cristã,
possui capacidade de superar divergências e promover a har-
monia e a paz. Giovanni é cônscio de que todo homem é um ser
consciente, dotado de valor inestimável, e que é na dignidade
que repousa a nobreza humana, pois, o que há de único nos se-
res humanos não é somente sua racionalidade (Aristóteles) ou
sua imortalidade (cristianismo), mas a magnânima capacidade
de autocriar-se livremente, podendo vir-a-ser sempre e muito
mais do que já é por natureza (FÉLIX, 2015).

Leiamos o texto a seguir, extraído da obra de Giovanni Pico


della Mirandola Da dignidade do homem, escrito em 1486:
Já Deus, Pai e arquiteto supremo, havia construído segundo
as leis de uma sabedoria secreta esta morada do mundo que
nós vemos, augusto templo de sua divindade: ele tinha ornado
com espíritos a região supra-celeste, vivificado com almas eter-
nas os globos etéreos, preenchido com uma multidão de seres
de todo gênero as partes fétidas e impuras do mundo inferior.
Mas, uma vez sua obra terminada, o arquiteto desejava que
houvesse alguém que pudesse avaliar o seu significado, amar
sua beleza, admirar sua grandeza. Do mesmo modo, quando
tudo estava terminado (como atestam Moisés e Timeu) pensou
por último em criar o homem. Ora, não havia nos arquétipos
nada com que criar uma nova raça, nem nos tesouros o que ofe-
recer como herança ao novo filho, nem havia no mundo inteiro
o menor lugar onde o contemplador do universo pudesse se
instalar. Tudo estava já ocupado: tudo havia sido distribuído às
ordens superiores, intermediárias e inferiores. [...] Finalmente,
o perfeito construtor decidiu que àquele que não podia rece-
ber nada de próprio seria comum tudo o que havia sido dado
de particular a cada ser isoladamente. Pegou, pois, o homem,
essa obra de imagem indistinta, e, tendo o colocado no meio do
mundo, dirigiu-lhe a palavra dizendo: "Se não te demos, Adão,
um lugar determinado, nem um aspecto que te seja próprio,
nem um dom particular, é para que o lugar, o aspecto, os dons

50 © Ética II
UNIDADE 1 – A Concepção Ética do Renascimento

que tu mesmo quiseres, tu os tenha e possua de acordo com


o teu desejo, segundo a tua ideia. Para os outros seres, a na-
tureza deles definida é mantida presa a leis estabelecidas: tu,
nenhuma lei te prende, é a própria possibilidade de julgar que
te conferi que te permitirá definir tua natureza. Se te coloquei
no mundo, em posição intermediária, é para que daí onde es-
tás possas examinar mais à vontade tudo o que se encontra no
mundo ao teu redor. Se nós não te fizemos nem celeste nem
terrestre, nem mortal nem imortal, é para que, dotado, por as-
sim dizer, do poder honorável de arbítrio, possa te modelar e
de elaborar a ti mesmo, tu te dês a forma que preferires. Tu
poderás te degenerar em formas inferiores, que são bestiais; tu
poderás, por decisão de teu próprio espírito, te regenerar em
formas superiores, que são divinas".
Ó, suprema bondade de Deus o Pai, suprema e admirável fe-
licidade do homem! É te dado ter o que desejas, ser o que
quiseres. Os animais, no momento de seu nascimento, tra-
zem com eles "do ventre de sua mãe" [...] o que possuirão. Os
espíritos superiores foram, em sua totalidade ou quase, des-
tinados a ser eternamente. Mas, ao homem, ao nascer, o Pai
deu sementes de toda espécie e germes de todo tipo de vida.
Aqueles que cada um cultivar, em si mesmo, se desenvolve-
rão e frutificarão: vegetativos, o farão tornar-se planta; sen-
síveis, farão dele um animal; racionais, o elevarão à altura da
abóbada celeste; intelectivos, farão dele um anjo e um filho
de Deus e, se, sem te contentar com o destino de nenhuma
criatura, reconhece-te no centro de tua unidade, formando
com Deus um só espírito, na solitária opacidade do Pai, eleva-
do acima de todas as coisas, tendo sobre todos a preponde-
rância" (MIRANDOLA, 1995, p. 5-9, tradução nossa).

Temos, de um lado, o ideal almejado de chegar a uma ver-


dade geral via um conhecimento eclético de doutrinas filosóficas
conhecidas e escritos hebraicos; de outro lado, há a preocupa-
ção em busca do caráter mais próprio e único do ser do humano
e que seria a liberdade.

© Ética II 51
UNIDADE 1 – A Concepção Ética do Renascimento

A singularidade do humano, o que o caracteriza e o torna


único, para Pico della Mirandola, é a sua capacidade de agir li-
vremente. Toda moralidade se fundaria nessa estrutura de liber-
dade: as ações moralmente dignas devem ser essencialmente
livres, ações cujo dever é o de se aproximar da natureza celes-
tial, caminhando em direção à intelectualidade e afastando-se
de toda sensualidade que aproxima dos animais.

6. Machiavel (1469-1527)
Outro importante pensador do Renascimento, de interesse
no que diz respeito ao ético, particularmente na relação deste
com a política, foi, sem dúvida Nicholas Machiavel. Dele nos ocu-
paremos a seguir.
Nascido em Florença, Nicholas Machiavel é conhecido, so-
bretudo, pela sua obra controvertida O príncipe. Obra admirada
por Napoleão e criticada por Descartes, Diderot e outros. Trata-
-se de um manual dedicado aos príncipes para fortalecer e man-
ter seus poderes.
Florença, cidade onde nasceu Machiavel, fora libertada do
governo da poderosa família dos Médicis por Carlos VIII e vivia
como República ao mesmo tempo democrática e teocrática, sob
a inspiração do monge dominicano Savanarole (1452-1498).
Machiavel, nascido de uma família da pequena burguesia,
eleito secretário da segunda chancelaria, responsável pelas rela-
ções com o interior e com países estrangeiros, com missões jun-
to a soberanos italianos e estrangeiros, desenvolveu habilidades
políticas.
Encarregado de organizar a defesa da cidade, é vencido em
1512. Os espanhóis devastam a cidade e os Médicis retomam

52 © Ética II
UNIDADE 1 – A Concepção Ética do Renascimento

o poder. Machiavel é torturado e exilado. Redige sua obra, ini-


ciando por O Príncipe, terminado em 1513 e só publicado em
1532. Escreveu também um importante comentário sobre a his-
tória romana, intitulado Discursos sobre a primeira década de
Tito Lívio. De volta a Florença, em 1520, redige o Discurso sobre
a língua, comédias e obras históricas.
Como todo pensador de sua época, Machiavel rompe com
o poder da Igreja e, em consequência, com a tradição ética cristã
trazida da Idade Média. Volta-se para os historiadores da Anti-
guidade e se impõe a tarefa de esclarecer, de maneira rigorosa,
as práticas políticas de seu tempo. Da mesma maneira que se
procuram leis que dessem conta do comportamento da nature-
za, Machiavel busca as regras que regulam os comportamentos
sociais e políticos.
Machiavel estuda o passado para compreender qual o ca-
minho para tomar o poder e mantê-lo. Mais precisamente, quer
encontrar as leis eternas da dominação dos homens pelos ho-
mens. Pretende chegar ao conhecimento do sentido que funda
a ação humana, especialmente a ação política, não baseada em
uma visão mítica ou filosófica dos acontecimentos históricos, e
nem buscando dar conta das coisas pela ação de Deus ou da pro-
vidência divina. Sua meta é prever os acontecimentos por meio
da observação das ações humanas no presente, particularmente
das ações políticas.
Quanto ao comportamento ético em política, ao observar
os acontecimentos de sua época, caracterizada pela ausência de
um poder central e, consequentemente, por lutas constantes,
Machiavel conclui que a política não pode mais ser conduzida à
luz de uma norma transcendente, tal como o Bem dos filósofos
e teólogos. É necessário que a ação política seja prática, em um

© Ética II 53
UNIDADE 1 – A Concepção Ética do Renascimento

universo continuamente hostil. Trata-se de um mundo constituí-


do de indivíduos não éticos, que julgam e decidem segundo seus
desejos e necessidades imediatas.
Alguns autores observam que, diferentemente de Aristó-
teles, para quem a Ética e a política, embora não se confundam,
são campos relacionados, para Machiavel, embora seja louvável
exercer a política com integridade ética sempre que possível, é
preciso partir do princípio de que os homens são maus e de que
a ação política só pode ser julgada por sua eficácia. É a eficácia
da ação política que permite aos homens uma coexistência ética.
O Estado é uma criação de alguns homens superiores e nenhuma
ordem é possível senão pela coerção e pela força.
Enfim, fundamentar a ação política por uma concepção fi-
losófica do dever ético é, segundo Machiavel, correr o risco de
perder o que deve ser conservado (o poder) e com ele toda a
possibilidade de governar. A verdade em política é que, para se
atingir um bem como a paz e a prosperidade, todo meio é legíti-
mo. É o que o mundo real exige e o mundo, segundo Machiavel,
é imutável.

A imutabilidade do mundo
Em sua obra Discurso sobre a primeira década de Tito Lívio,
Machiavel apresenta o mundo como imutável, pois, se o mundo
não fosse constante, não seria possível estabelecer suas leis.
Refletindo sobre o andamento das coisas humanas, concluo
que o mundo permanece na mesma situação através dos tem-
pos; que há sempre a mesma quantidade de bem e de mal; mas
que este mal e este bem não fazem nada mais do que percorrer
diferentes lugares, diversos países.

54 © Ética II
UNIDADE 1 – A Concepção Ética do Renascimento

Segundo o que conhecemos dos antigos impérios, vimos todos


se deteriorarem uns após os outros na medida em que seus
costumes são modificados ou alterados.
Mas o mundo é sempre o mesmo (MACHIAVEL, 1995a, p. 177,
tradução nossa).

As experiências do passado são, assim, válidas para o pre-


sente e para o futuro. Ou seja, embora os acontecimentos histó-
ricos se movimentem com rapidez diferente, a história se repete
e é sempre a mesma, à semelhança do universo, que é constante
e sempre o mesmo, apesar do fato de os corpos nele se movi-
mentarem em velocidades diferentes.
Em contrapartida, as coisas humanas, ao contrário do uni-
verso, apresentam uma causalidade totalmente imprevisível. É
o que Machiavel denomina de Fortuna ou roda da fortuna. O
termo "Fortuna" tem uma origem mítico-filosófica, consistindo
na personificação do "acaso". A ideia expressa por ele vem da
deusa romana da sorte, representando as coisas inevitáveis que
acontecem aos seres humanos, tanto na vida cotidiana quanto
na Política. Significa a impossibilidade de o homem dominar to-
talmente a história. Porém, como veremos no texto a seguir, Ma-
chiavel considera que o homem tem possibilidade de, até certo
ponto, e de uma certa maneira, dominar o inevitável.

A mutabilidade dos negócios humanos


Leiamos o trecho a seguir:
Sei que alguns pensaram e pensam que os negócios deste mun-
do são de tal maneira governados por Deus e pelo destino que
os homens, com toda a sua sabedoria, não podem mudar e não
encontram para isso remédio; assim, poderiam julgar que suar
sangue e água para dominá-los seria em vão, em vez de se dei-
xar governar pelo destino. Esse ponto de vista foi retomado em

© Ética II 55
UNIDADE 1 – A Concepção Ética do Renascimento

nossa época por causa das grandes revoluções que se tem visto
e que se veem todos os dias, e que excedem toda conjectura
por parte dos homens. Se bem que, algumas vezes eu mesmo,
pensando sobre isso, me deixei levar, em parte, por essa visão.
No entanto, nosso livre arbítrio não pode ser negado, estimo
que possa ser verdadeiro que a sorte seja a senhora de meta-
de de nossas obras, mas que também ela nos deixa governar
aproximadamente a outra metade. Comparo o destino com um
desses torrenciais que, em sua cólera, inundam as planícies ao
redor, destroem árvores e casas, roubam a terra de um lado
para levá-la para outro; todos fogem diante deles, todo mundo
cede ao seu furor, sem poder impedi-los com diques e aterros
mais elevados. Apesar disso, os homens, em tempos amenos,
não deixam de ter a liberdade de construir diques e aterros de
maneira que, se o rio subir novamente, suas águas desemboca-
rão em um canal, ou sua fúria não será tão livre e tão destrui-
dora. O mesmo acontece com a Fortuna, que mostra seu poder
onde não há construção que possa resisti-la, e que ataca onde
sabe que não há diques nem pontes para enfrentá-la (MACHIA-
VEL, 1995b, p. 177-178, tradução nossa).

A necessidade leva a fins que a razão desconhece. Esse fato


explica os acidentes da história e sua aparência caótica. Inimiga
do homem de ação, a Fortuna pode vir a ser um seu auxiliar,
com a condição de que ele saiba dominá-la por meio da política.
E nisto consiste a "virtù", ou seja, na capacidade de adaptação
aos acontecimentos políticos e de consequente permanência
no poder. Segundo Machiavel, a tendência dos seres humanos
é manter sempre a conduta que deu certo, atitude que levaria à
perda do poder. Os grandes homens políticos, que criam novas
situações por sua virtù, são os "virtuosi".
Machiavel apresenta uma teoria cíclica da sucessão dos
governos, inspirando-se no historiador grego Políbio (202-120
a.C.) e na República de Platão. Segundo essa teoria, existe um ci-

56 © Ética II
UNIDADE 1 – A Concepção Ética do Renascimento

clo determinado que se apresenta de maneira regular, tornando


possível a observação histórica. O ciclo é o seguinte:
1) O governo original é criado por vários homens de dife-
rentes procedências, consistindo em um governo que
é a monarquia.
2) Não tarda tal governo entrar, por sua vez, em decadên-
cia, degenerando-se em tirania.
3) Surge, então, um novo governo melhor, a aristocracia.
4) Este não demora a degenerar-se em um governo
oligárquico.
5) A este sucede um governo democrático que também
não tarda a cair na desordem, anarquia.
6) Nessa situação, só um príncipe ou um monarca pode
salvar o povo. E o ciclo recomeça.
Para deixar o ciclo mais claro, analisemos a Figura 1 a
seguir:

Figura 1 Sucessão dos governos em Machiavel.

© Ética II 57
UNIDADE 1 – A Concepção Ética do Renascimento

Considerações finais
Sobre a questão de uma Ética em Machiavel, diz o profes-
sor Renato Janine Ribeiro à Revista E:
A leitura dos textos de Maquiavel nos leva a perceber que ele
não defendia a tese de que os fins justificam os meios e de que
o mal deve ser praticado para conseguir um fim egoísta. Ele se
mostra preocupado com o fato de que na política não existem
regras fixas; governar, isto é, tomar a iniciativa política, é um
trabalho extremamente criativo e, por isso mesmo, sem parâ-
metros anteriores. Assim, essa preocupação do filósofo, por
curioso que pareça, torna-se um bom instrumento para repen-
sar a ética. (RIBEIRO, 2015).

Continuando, Janine aproxima Machiavel de uma ética da


responsabilidade – classificação de Max Weber (1864-1920), so-
ciólogo e economista alemão:
Para falar de ética, também é necessária uma alusão a Max
Weber e sua teoria das duas éticas. Weber, depois da Primeira
Guerra Mundial, distingue a ética de princípios, em que se apli-
cam valores já estabelecidos, da ética da responsabilidade, que
é a ética do estadista. Esta modalidade aponta para a necessi-
dade de pensar nos resultados possíveis de uma determinada
ação. De modo geral, a ética da responsabilidade é uma reto-
mada de Maquiavel; ela representa a interferência da política
na ética. [...]
Então, o ponto interessante de Maquiavel e da questão ética
está na maneira como nós a enxergamos sob a luz da política. E
hoje, com o fim das garantias tradicionais para a ação do indiví-
duo privado, estamos todos mais ou menos na posição do prín-
cipe de Maquiavel – isto é, num mundo de incertezas, dentro
do qual temos de inventar a melhor posição (RIBEIRO, 2015).

A importância de Machiavel está, sem dúvida, nesse susci-


tar da reflexão sobre a Ética e sobre as dificuldades inerentes à

58 © Ética II
UNIDADE 1 – A Concepção Ética do Renascimento

tomada de decisões, particularmente em campos especialmente


móveis, como a política ou, hoje, a tecnologia.
O filósofo francês Maurice Merleau-Ponty, em sua obra
intitulada Signos, faz uma descrição fenomenológico-existencial
que visa compreender a obra de Machiavel dentro de seu con-
texto existencial. Isso significa que Merleau-Ponty vê, na obra de
Machiavel, um entendimento da política como algo eminente-
mente humano, buscando a verdade dos acontecimentos, des-
crevendo-os segundo se apresentam no mundo real, em sua ins-
tância de relação com o outro, que seria um "signo" de valor na
política, parte da experiência de seu próprio tempo.
Assim, por exemplo, quando Machiavel escreve que o prín-
cipe deve ter as qualidades que ele aparenta, estaria enunciando
uma condição fundamental da política como ela era em seu tem-
po e continua a ser até os dias de hoje, que é "se desenrolar na
aparência"; quando Machiavel diz que o príncipe tem que ter do-
mínio de si para poder desenvolver posições contrárias no caso
de ser necessário, isso significaria que, no campo da política, não
há lugar para os valores de uma moral abstrata. Enfim, a verdade
na política é aquela de quem tem o poder e que não vê a própria
imagem passada aos outros.
Merleau-Ponty vê, na obra O Príncipe, de Machiavel, a des-
crição da política como ela tem sido e é através dos tempos e,
como vimos, em tal política não há lugar para a Ética.
A questão que colocaríamos seria a seguinte: É mesmo
possível falar de uma Ética em Machiavel?
Responderíamos que a busca de Machiavel pela com-
preensão dos comportamentos sociais e políticos não tem como
objetivo propriamente o caráter destes enquanto se mostram

© Ética II 59
UNIDADE 1 – A Concepção Ética do Renascimento

em si mesmos, mas, sim, enquanto se mostram à luz de uma


meta geral: a obtenção e a manutenção do poder político.
Uma visão ética é sempre uma visão concreta, o que signifi-
ca uma visão completa tanto da "morada interior", ou seja, tanto
dos fenômenos em si mesmos, quanto da "morada exterior", ou
dos fatos em si. A visão de Machiavel permanece na "morada ex-
terior", ou seja, nos fatos. E a pergunta final é: O poder deve de-
correr do governar, do caráter próprio deste, do que lhe é único
e singular? Ou, ao contrário, o governar deve decorrer do poder?
Duas são as consequências principais da visão da política
em Machiavel, no que concerne à Ética, a nosso ver:
1) O ético ou a Ética estará necessariamente ausente em
suas considerações sobre a política, uma vez que tais
considerações não contemplam a ação política em seu
sentido mais próprio, buscando esse sentido fora dela.
2) Não há regras propriamente de moralidade em sua
concepção política, pois, sem fundamento ético, não
há moralidade. As regras de comportamento por ele
apresentadas são meros instrumentos de ação em
busca do poder e de sua manutenção. Para não citar
senão algumas:
• A opressão: para permanecer no poder, é permiti-
do, segundo Machiavel, usar de meios coercitivos,
como oprimir, cultivando o medo. Pode-se, ainda,
recorrer a medidas primitivas mais sumárias com
relação aos que subvertem a política adotada, como
as execuções.
• A destruição: em alguns casos, de acordo com Ma-
chiavel, é aconselhável destruir cidades inteiras,
quando o controle destas torna-se difícil, tendo em

60 © Ética II
UNIDADE 1 – A Concepção Ética do Renascimento

vista a existência de grupos de cidadãos, dotados de


consciência política, buscando subverter a política
implantada.
• A mentira: diz Machiavel, no capítulo XVIII da obra
O Príncipe, que um príncipe prudente não pode e
nem deve guardar a palavra dada, se isso vier a pre-
judicá-lo ou quando as causas que determinaram
a palavra dada cessarem de existir. Enfim, ser um
bom simulador e dissimulador é uma das qualida-
des do bom governante.
E, assim, muitos outros exemplos do pensamento em polí-
tica de Machiavel se encontram em sua obra principal, O Príncipe,
cuja leitura aconselhamos. Ao fazê-la, você perceberá o quanto
suas ideias são atuais e em plena vigência em nossa época.
No que diz respeito a convicções pessoais, estas configu-
ram uma moralidade pessoal e não propriamente uma Ética,
uma vez que se fundamentam em valores e normas culturais.
Quanto a uma Ética da responsabilidade, ela concerne a
consequências e não a resultados. Em uma área como a políti-
ca, particularmente assolada por circunstâncias, a postura ética
é essencial (Aristóteles, recordemos, considerava a Ética como
propedêutica à política), pois toda circunstância, por sua pró-
pria natureza, não comporta regras ou princípios gerais. Ela é
fundamentalmente singular. Atender às circunstâncias é buscar
compreendê-las, o que significa "dar a justa medida", captando
seus sentidos (direções) e possibilidades. É trabalho para uma
equipe de profissionais, pois implica a atuação de vários campos
do saber. Não há "savoir-faire", nem mesmo o político, como pa-
rece pretender Machiavel, que substitua o saber das razões que
fundamentam uma situação circunstancial.

© Ética II 61
UNIDADE 1 – A Concepção Ética do Renascimento

7. Phillipus Theophrastus Bombastus von


Hohenheim – Paracelso (1493-1591)
Phillipus Theophrastus Bombastus von Hohenheim, médi-
co suíço, autodenominado Paracelso, era, além de médico, tam-
bém alquimista, físico e astrólogo. Alguns o consideram a própria
expressão dessa visão mágica da natureza. Para ele a natureza
é uma força vital que cria, produz e transforma. Tudo é duplo:
há um macrocosmo e um microcosmo; um mundo visível e um
mundo invisível. A natureza só poderia ser conhecida por meio
da alquimia, da astrologia e da magia.
O invisível não é um objeto, e por isso nunca se apresenta
como imagem; é energia viva e criativa que, a partir do interior
das coisas, transforma-as no que elas são. O invisível se mostra
no visível, embora oculto. A natureza invisível se movimenta pela
imaginação e uma imaginação suficientemente forte é a origem
da magia. É por meio da magia que captamos os sinais do invisí-
vel no visível.
Segundo Paracelso, a saúde é um estado de equilíbrio das
energias e a doença, o desequilíbrio dessas mesmas energias. O
médico deve reconhecer a ação da natureza invisível no doente e
a medicação deve responder ao modo como a natureza trabalha
no visível, respeitando determinados horários correspondentes
a certas constelações planetárias. Para curar, é necessário abrir-
-se às forças naturais invisíveis, observando-as (ROUX-LANIER,
1995, p. 161).
Embora seja tido por muitos como charlatão e visionário,
encontramos, em Paracelso, não propriamente uma Ética cristã,
resultado da institucionalização dos ensinamentos de Jesus, o
Cristo, mas a Ética trazida por Jesus de Nazaré. Segundo Para-

62 © Ética II
UNIDADE 1 – A Concepção Ética do Renascimento

celso, o exercício da Medicina e os ensinamentos de Jesus são


inseparáveis. Trata-se essencialmente de uma Ética da Fé e do
corpo enquanto expressão do espírito e vice-versa. Deus, segun-
do ele, é uma entidade que devemos considerar antes de todas
as outras coisas. É o princípio que regula toda a vida, princípio
que denominou de Moral.
A Fé seria o elemento básico de toda cura, pois é impossí-
vel curar o corpo sem curar, ao mesmo tempo, o espírito. Todo
mal que se faz ao corpo atinge o espírito, pois o espírito é aquilo
que, sem matéria, está dentro do corpo físico e é gerado pelas
nossas sensações e meditações. Por isso, o espírito pode sofrer
as mesmas doenças do corpo. Por sua vez, todo pensamento ne-
gativo sobre o outro poderá nos afetar, porque é fruto de uma
vontade fixa, firme e intensa, geradora do espírito.

Considerações finais: um panenteísmo ético


No que diz respeito à Ética, a posição de Paracelso é deno-
minada de panenteísmo. Essa palavra foi cunhada pelo filósofo
alemão Karl C. F. Krause (1781-1832) e significa "Deus está pre-
sente em tudo", o que não quer dizer "panteísmo" (tudo é Deus).
De fato, a posição de Paracelso sobre o homem e a Ética
expressa uma das características básicas do Renascimento, que,
contrariamente à separação entre a natureza e o Divino (que se
deu na Idade Média), busca reaproximá-los.
Podemos dizer, a partir do que aqui vimos, que o transcen-
dental que funda o ético e o moral, em Paracelso, é a vontade di-
vina. A liberdade estaria no reconhecimento de nossa submissão
à vontade divina. O ético e o moral se situariam nesse "dever" de
se realizar a si mesmo, mediante a obediência à vontade divina,

© Ética II 63
UNIDADE 1 – A Concepção Ética do Renascimento

tendo em vista o que caracteriza o homem, tornando-o único:


o seu realizar-se está subordinado a uma instância superior que
o ultrapassa, mas que se impõe a ele incondicionalmente. Deus
fixa, na natureza do homem, a sua medida por meio dos dez
mandamentos. A liberdade do homem está em decidir sobre os
meios para obedecer ou não a essa vontade.
A sociedade é a oportunidade para o ser humano se trans-
formar (transmutação alquímica interior) e se elevar, desenvol-
vendo sua essência na vida social, mediante o respeito à sua ori-
gem como filho de Deus. Estamos, assim, diante de uma Ética de
natureza empírica cujo fundamento é a fé (JEAN-PIERRE, 2012).

8. Michel de Montaigne (1533-1592)


Michel de Montaigne nasceu em um château da região
francesa do Périgord. Recebeu educação esmerada e fez carreira
política. Viveu no período final da Renascença, quando o entu-
siasmo e a confiança nos homens já havia decrescido muito. Para
Montaigne, a ciência da qual o homem tanto se orgulha não pro-
picia um conhecimento certo, pois seu instrumento principal, a
razão abstrata, não tem maior valor que a imaginação, que está
sujeita às variações das impressões sensoriais.
A partir da leitura dos autores gregos e romanos, Montaigne
desenvolve uma análise crítica da razão humana. Referindo-se às
obras morais de Plutarco, mostra nelas a vaidade de pensar que
o homem é superior ao animal. Chega, assim, a um ceticismo fi-
losófico. Há sempre algo não passível de conhecimento, algo que
a razão humana jamais dominará. Mostra que a experiência an-
tropológica apresenta opiniões e costumes os mais diversos. Des-
creve um grande número de exemplos de experiências ou fatos,

64 © Ética II
UNIDADE 1 – A Concepção Ética do Renascimento

evidenciando o caráter ilimitado e misterioso da natureza, con-


trariando toda interpretação unilateral. Observa que, quando nos
abstemos de tomar partido em favor de uma determinada ideia
ou interpretação, nosso pensamento descobre, ao mesmo tempo,
a prodigiosa riqueza do real e a diversidade do espírito humano.
Montaigne expõe experiências humanas as mais diversas e
contraditórias que impossibilitam chegar a um conhecimento ge-
ral do ser humano. Chega, assim, a um universo móvel, incerto e
múltiplo. Não há, segundo Montaigne, nenhuma esperança para
nós de encontrarmos a causa das coisas em meio a essa confu-
são e profusão de fatos. Há que se meditar sobre a contingência
ou impossibilidade de nossa razão chegar a uma só verdade.
Montaigne é sensível à dimensão ética propriamente dita,
a do caráter, a do espaço existencial (morada interior) e do tem-
po (campo de possibilidades) de cada ser. Quer recuperar o ideal
humanista individualista da cultura antiga. Por meio dos ensi-
namentos dos clássicos, reconhece a limitação de nossa capa-
cidade de conhecer. É cético quanto à possibilidade de conheci-
mento metafísico. Volta-se para a arte de viver. Sob a influência
dos estoicos, busca o caminho da sabedoria para a solução dos
problemas da vida, sabedoria que consistia em saber deliberar
entre o bem e o mal para viver melhor. Dos estoicos traz também
o agir de acordo com a natureza para enfrentar as adversidades
e encontrar a paz.
O conhecimento generalizado é, para Montaigne, limitado.
Não há julgamento autônomo independente de uma consciên-
cia individual. Só nós mesmos somos capazes de nos conhecer.
De nós, o outro apenas consegue conjeturar a partir do que lhe
mostramos. O indivíduo carrega em si a essência da vida huma-
na, essência essa que deve ser captada na singularidade do indi-

© Ética II 65
UNIDADE 1 – A Concepção Ética do Renascimento

víduo e não submetida a regras e conceitos gerais. A orientação


deve ser buscada à luz das singularidades.
Para Montaigne, ser ético é, principalmente, cultivar a ami-
zade verdadeira, que só pode ser vivida. Segundo observação de
vários autores, a amizade, enquanto valor ético, não tem, para
ele, apenas uma dimensão individual, mas possui dimensão po-
lítica, na medida em que ela só é possível onde há igualdade,
liberdade e justiça (CALLADO, 2005).
Montaigne era muito amigo de Étienne de La Boétie (1530-
1563), um dos criadores da ideia moderna de democracia, a qual
chamava de república livre, pois, como observam muitos, essa
noção de democracia ainda não existia. Em sua obra Discurso
sobre a Servidão Voluntária, escrita a partir da observação dos
acontecimentos de seu tempo, rejeita todas as formas de dema-
gogia; defende a liberdade e a igualdade de todos os homens
no nível político; evidencia a força da opinião pública; prefere a
república, rejeitando a monarquia como forma de governo, pois
o poder de um só homem sobre os outros é ilegítimo.
A experiência da perda do amigo, com quem debatia lon-
gamente questões importantes, fez Montaigne confrontar-se
com a dor e a solidão, experiência que surge frequentemente em
sua obra Ensaios, que escreveu já afastado da vida pública na po-
lítica. Essa obra consiste em considerações humanistas sobre a
existência, próprias do fim do século 16, que vão desde temas da
vida corrente até os de religião e filosofia. Nela Montaigne ana-
lisa escritos de Lucrécio (95-53 a.C., datas prováveis) – poeta e
filósofo que escreveu o poema De Rerum Natura (Sobre a Natu-
reza das Coisas), um tratado de filosofia epicurista; Cícero (106-
43 a.C.) – advogado, orador, escritor romano e autor do célebre
discurso contra Catilina (patrício romano, conspirador sem es-

66 © Ética II
UNIDADE 1 – A Concepção Ética do Renascimento

crúpulos), recitado no Templo de Júpiter em 63 a.C.; Sêneca (65-


4 a.C.) – escritor, filósofo romano e importante representante do
estoicismo, que defendia a Ética e a vida simples; e sobretudo
Plutarco (120-45 a.C.) – filósofo grego que teve muita influência
sobre ensaios e biografias na literatura ocidental, cuja obra Bioi
paralleloi (Vida de homens ilustres) consiste em 64 biografias de
personagens gregos e romanos importantes e é considerada a
fonte mais importante de ideias tradicionais sobre a Antiguidade
greco-romana.
Visando ao homem comum, Montaigne busca liberar a fi-
losofia de abordagens estritamente metafísicas e dogmáticas,
concretizando a liberdade de apresentar diferentes perspectivas
ao mesmo tempo. Montaigne escreve em francês (é o primei-
ro pensador, na época, a se expressar em francês). Embora não
apresente o desenvolvimento sistemático de uma ideia, sua obra
é filosófica na medida em que situa suas considerações no nível
daquilo que funda as diferentes razões que constroem o pensa-
mento da época (ROUX-LANIER, 1995).
Indo do homem universal à condição humana, Montaigne,
em vez de partir de modelos morais como os dos sábios, prefere
proceder à observação concreta da variação que nos conduz ao
indivíduo único e singular. Preserva, assim, o caráter misterioso
e imprevisível de cada ser, mas não concebe esse caráter úni-
co de cada ser, coisa ou situação como uma verdade objetiva.
O que chama de "ciência moral" não consiste em uma doutrina
moral, concebida à maneira dos estoicos, para quem o universo
pode ser explicado racionalmente porque tem uma estrutura ra-
cionalmente organizada, consistindo a felicidade em ter fé nessa
racionalidade oculta, discernindo-a e aceitando-a plenamente,
alcançando, desta maneira, a perfeição. Para Montaigne, a hon-
ra, a fidelidade e a amizade são qualidades éticas importantes.

© Ética II 67
UNIDADE 1 – A Concepção Ética do Renascimento

Para ele, cujas obras tiveram grande influência sobre escritores


e filósofos dos séculos seguintes, é possível fazer o que atende
ao caráter de cada um e de cada situação e, assim, ser feliz. Viver
eticamente é viver o momento presente, é meditar sobre a mor-
te e a ela submeter a autenticidade de nossa vida.
No texto que se segue, Montaigne critica a pretensão hu-
mana de tudo conhecer e chegar a verdades absolutas ou dog-
máticas por meio da razão filosófica. Observa e analisa o fenô-
meno humano no seu caráter mais próprio.
Consideremos o homem só, sem qualquer ajuda a ele estranha,
armado somente com suas armas e desprovido da graça e co-
nhecimento divinos, os quais constituem toda a sua honorabili-
dade, sua força e o fundamento de seu ser. Vejamos quanto de
dignidade há nesse belo revestimento. Que ele me faça enten-
der, pelo esforço de seu discurso, sobre quais bases construiu as
vantagens que ele pensa ter sobre as outras criaturas. Quem o
persuadiu que esta dança admirável da abóbada celeste, que a
luz eterna destes clarões que voam orgulhosamente sobre sua
cabeça, os movimentos terríveis deste mar infinito foram esta-
belecidos e mantidos durante tantos séculos para a sua como-
didade e a seu serviço? É possível imaginar algo mais ridículo do
que esta criatura frágil, que nem mestre de si mesmo é, passível
de ser atingida pela ação violenta das coisas, se proclamar mes-
tre e senhor do universo, o qual não tem o poder de conhecer
minimamente, quanto mais de comandá-lo? E esse privilégio
que atribui a si mesmo, de ser único nesta construção do uni-
verso, de ser capaz de reconhecer sua beleza e partes, de ser
o único a dar graças ao seu arquiteto e entender a receita e a
criação do mundo, quem lhe concedeu esse privilégio? […]
A presunção é nossa doença natural e original. A mais cala-
mitosa e frágil de todas as criaturas é o homem e, ao mesmo
tempo, a mais orgulhosa. Ele se sente e se vê alojado aqui, em
meio à lama e aos dejetos do mundo, atado e pregado à pior,
à mais morta e vendida parte do universo, situado no último
lugar, afastado da abobada celeste, [...] e vai se colocando pela

68 © Ética II
UNIDADE 1 – A Concepção Ética do Renascimento

imaginação acima do círculo da lua e trazendo o céu para abai-


xo de seus pés. É pela vaidade dessa mesma imaginação que
ele se iguala a Deus, que se atribui condições divinas, que se
distingue e se separa da multidão das outras criaturas, classifica
os animais, seus irmãos e companheiros, atribuindo-lhes deter-
minadas quantidades de faculdades e de forças a seu bel prazer.
Como conhece ele, pela sua inteligência, as formas internas e
secretas dos animais? Por meio de qual comparação deles co-
nosco chega à conclusão pouco refletida e inteligente sobre tais
atribuições? (MONTAIGNE, 1995, p. 189-190, tradução nossa).

A natureza não opera por distinções:


Mas, quando estou em meio a opiniões mais moderadas, em
meio àqueles discursos que tentam mostrar a semelhança nos-
sa com os animais, e como eles têm como nós os maiores pri-
vilégios, e quanta semelhança possuem conosco, certamente
desconto muito dessa nossa pretensão, e me libero com prazer
dessa mistificação que nos atribui uma realeza imaginária em
relação às outras criaturas.
Quando tudo o que aqui foi falado não for considerado, que haja
um certo respeito e um dever geral de humanidade nos ligando
não apenas aos animais que têm vida e sentimento, mas também
às próprias árvores e às plantas. Nós devemos justiça aos homens
e a graça da clemência às outras criaturas capazes de bondade.
[...] os turcos dão esmolas e têm hospitais para os animais. Os Ro-
manos têm um cuidado público com o alimento das corujas, seu
Capitólio foi salvo graças à vigilância das corujas; os atenienses
ordenaram que as mulas e os jumentos que tivessem auxiliado a
construção do templo chamado Hecatompedon fossem deixados
livres e para pastar, sem impedimento, em qualquer lugar. [...] Os
egípcios enterravam os lobos, os ursos, os crocodilos, os cães e os
gatos em lugares sagrados, embalsamando seus corpos e guar-
dando luto (MONTAIGNE, 1995, p. 190-191, tradução nossa).

Veja, no texto transcrito a seguir, que Montaigne critica o


instrumento pelo qual o ser humano acredita ser a mais elevada

© Ética II 69
UNIDADE 1 – A Concepção Ética do Renascimento

das criaturas deste planeta, a razão enquanto faculdade de abs-


trair e generalizar:
Chamo sempre razão esta aparência de raciocínio que cada um
forja em si; essa razão com relação à qual podem existir outras
contrárias sobre o mesmo tema é um instrumento de chumbo
e de cera, prorrogável, maleável e acomodada a qualquer viés e
a todas as medidas, não resta senão a capacidade de contorná-
-la. Seja qual for o plano bem intencionado que tenha um juiz,
se ele não se ouve no seu íntimo, coisa que poucos gostam de
fazê-lo, a inclinação à amizade, ao parentesco, à beleza e à vin-
gança, e não somente a sentimentos tão dominantes, mas ain-
da a este instinto fortuito que nos faz favorecer mais a um do
que a outro, e que, na escolha de temas semelhantes, mesmo
estando presente a razão [...], podem se insinuar insensivel-
mente em seu julgamento favorecer ou desfavorecer [...].
Eu que me vejo de mais perto, que tenho os olhos incessante-
mente voltados para mim [...], mal ousaria dizer a vaidade e a
fraqueza que encontro em mim. Eu ando tão instável e tão mal
assentado, eu me acho tão susceptível de escorregar e de me
desequilibrar, e minha visão tão confusa, a ponto de quando
em jejum me sentir outro do que após me alimentar; se tenho
algo que me espeta os dedos do pé, eis me carrancudo, de mau
humor e inacessível (MONTAIGNE, 1995, p. 302-303, tradução
nossa).

Com relação a grupos humanos muito diferentes dos euro-


peus, os quais tem-se o hábito de denominar de "selvagens" ou
de "bárbaros", Montaigne faz uma reflexão sobre a precariedade
de tais julgamentos sobre o que é civilizado e o que não é.
Penso, voltando aos meus propósitos, que não existe nada de
bárbaro nem de selvagem naquilo que me relataram, senão que
cada um chama de bárbaro o que não corresponde a um costu-
me seu; verdadeiro também parece dizer que não temos outra
visão da verdade e da razão além daquela das opiniões e costu-
mes do país em que vivemos. No nosso país a religião é perfeita,
a polícia é perfeita, o uso de todas as coisas é perfeito. São selva-

70 © Ética II
UNIDADE 1 – A Concepção Ética do Renascimento

gens da mesma maneira que consideramos selvagens os frutos


que a natureza produz de si mesma e em seu desenvolvimento
natural: na verdade, são aqueles frutos que alteramos artificial-
mente, impedindo-os de se desenvolverem naturalmente, que
deveriam ser denominados selvagens. Nos primeiros, estão vivas
e vigorosas as verdadeiras e as mais úteis e naturais virtudes e
propriedades, as quais nós degeneramos e adaptamos de acordo
com o nosso paladar corrompido [...]. Não há por que a arte ser
mais considerada do que a mãe Natureza. Nós sobrecarregamos
de tal maneira a beleza e a riqueza das obras da natureza que a
sufocamos (MONTAIGNE, 1995, p. 305-306, tradução nossa).

Com a reflexão de Montaigne sobre o problema ético en-


volvido na problemática da reflexão filosófica, reflexão essa que
pretende abarcar todos os seres singulares, partindo de noções
gerais, ele chama a atenção para essa pretensão e aponta algu-
mas de suas falhas, o que reflete uma forte crítica ao dogma-
tismo filosófico, caracterizando o pensador com um autêntico
cético em relação a essas pretensões humanas. Chamamos a
atenção para a crítica que Montaigne desfere, nessa nossa últi-
ma citação, à sociedade europeia de sua época, que considera as
outras sociedades como "bárbaras". Essa crítica é bem avançada
para o seu tempo e encontrará adeptos em vários pensadores da
história da Filosofia.
Sugerimos que você procure responder, discutir e comen-
tar as questões a seguir, que tratam da temática desenvolvida
nesta unidade, ou seja, do contexto humanista e antropocentris-
ta em que se desenvolve o Renascimento, das implicações que
essa nova visão de mundo (que pretende explicar tudo a partir
do homem, e que busca uma divinização da Natureza) terá sobre
o pensamento moral e ético desse período. Tentamos salientar
aquilo que se fará presente em toda a nossa reflexão sobre o
ético nesta obra, ou seja, a busca por encontrar, na tradição fi-

© Ética II 71
UNIDADE 1 – A Concepção Ética do Renascimento

losófica, as possíveis reflexões que tentaram, de alguma forma,


tratar do "característico de", do "singular" ou do ético, como sa-
lientamos em nossa Abordagem Geral.

9. questões autoavaliativas
A autoavaliação pode ser uma ferramenta importante para
você testar o seu desempenho. Se você encontrar dificuldades
em responder a essas questões, procure revisar os conteúdos es-
tudados para sanar as suas dúvidas. Esse é o momento ideal para
que você faça uma revisão desta unidade. Lembre-se de que, na
Educação a Distância, a construção do conhecimento ocorre de
forma cooperativa e colaborativa; compartilhe, portanto, as suas
descobertas com os seus colegas.
Confira, a seguir, as questões propostas para verificar o seu
desempenho no estudo desta unidade:
1) Sobre a Ética na Renascença, é incorreto afirmar:
a) É uma ética naturalista.
b) É uma ética antropocêntrica.
c) É uma ética humanista.
d) É uma ética racionalista.
e) É uma ética pragmatista.

2) Assinale, dentre as seguintes afirmações, a única incorreta.


a) Montaigne é um cético com relação a todo conhecimento absoluto.
b) Segundo Montaigne, o conhecimento generalizado é limitado.
c) O comportamento ético com relação às pessoas e coisas fundamenta-
-se em um julgamento autônomo e universal independente de uma
consciência individual.
d) Podemos dizer que Montaigne propõe, como condição de toda condu-
ta ética, a consideração das nuances subjetivas e culturais de que se
revestem as diferentes situações e comportamentos.

72 © Ética II
UNIDADE 1 – A Concepção Ética do Renascimento

3) Por que a Ética do filosófo e pensador Giovanni Pico della Mirandola é


denominada de "Ética da nobreza humana"?

4) Faz sentido falar de uma Ética em Machiavel?

Gabarito
Confira, a seguir, as respostas corretas para as questões au-
toavaliativas propostas:
1) e.

2) c.

3) Giovanni Pico della Mirandola vê no homem um ser de dignidade, pois é


livre, reconhece-o como o ser que possui a perfectibilidade (capacidade
de aperfeiçoamento), e nisso consiste a sua "nobreza".

4) As considerações sobre a política, em Machiavel, procuram seu sentido


nos resultados obtidos pela ação de seus governantes, um misto de fortu-
na e virtù. Esses resultados serão a medida com a qual analisamos se uma
ação política foi bem-sucedida ou não. Como o ético procura o sentido
interno de cada fenômeno, seu caráter, a Ética está necessariamente fora
do entendimento de Machiavel sobre a política. Para que o ético fosse
contemplado em suas considerações sobre a ação política, seria necessá-
rio que a avaliação da ação política fosse feita a partir da própria ação, não
pelos seus resultados (a aquisição e a manutenção do poder).

10. Considerações
Para finalizar esta unidade, não poderíamos deixar de nos re-
ferir brevemente à chamada "Ética protestante", surgida com Lutero
(1484-1546), teólogo e reformador religioso alemão, e Jean Calvin
(João Calvino, 1509-1564), teólogo e reformador religioso francês.
Expondo a denominada "Ética protestante" em sua obra Ética
protestante e o espírito do capitalismo, Max Weber (1864-1920) so-

© Ética II 73
UNIDADE 1 – A Concepção Ética do Renascimento

ciólogo, historiador e político alemão, fala do surgimento na Renas-


cença, no século 16, de uma Ética da responsabilidade, à qual nos
referimos na introdução desse estudo e também na parte referen-
te a Machiavel, fundamentada em uma razão não mais advinda de
uma ordem preestabelecida, como no caso da Ética da virtude dos
antigos. Segundo Weber, tal Ética fornecerá as bases para o desen-
volvimento do sistema capitalista.

11. E-REFERÊNCIAS
CALLADO, T. C. A Ética em Michel de Montaigne (Análise do úti e do honesto).
Kalagatos, Fortaleza, v. 2, n. 4, p. 169-200, 2005. Disponível em: <http://www.uece.
br/kalagatos/dmdocuments/V2N4-A-etica-em-Michel-de-montaigne.pdf>. Acesso
em: 30 mar. 2015.
CHAUÍ, M. Filosofia moderna. Disponível em: <https://chasqueweb.ufrgs.br/~slomp/
filosofia/chaui-filosofia-moderna.htm>. Acesso em: 12 ago. 2015.
FÉLIX, L. O que confere dignidade ao homem? Disponível em: <http://www.esdc.com.
br/CSF/artigo_2009_09_dignidade.htm>. Acesso em: 13 ago. 2015.
JEAN-PIERRE. Paracelso Corpo Alma. Disponível em: <http://www.sophia.bem-vindo.
net/tiki-index.php?page=Paracelso+Corpo+Alma>. Acesso em: 8 mar. 2012.
RIBEIRO, R. J. Entrevista à Revista E, n. 54. Disponível em: <http://www.renatojanine.
pro.br/entrevistas/revistaE_54.html>. Acesso em: 14 ago. 2015.

12. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


MACHIAVEL, N. Discours sur la première décade de Tite-Live. In: ROUX-LANIER, C.
(Org.). Le temps des philosophes. Paris: Hatier, 1995a.
______. Le Prince. In: ROUX-LANIER, C. (Org.). Les temps des philosophes. Paris: Hatier,
1995b.
______. Príncipe e escritos políticos. 4 ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987. (Os
Pensadores).
MIRANDOLA, G, P. De la Dignité de l'homme. In: ROUX-LANIER, C. (Org.). Le temps des
philosophes. Paris: Hatier, 1995.

74 © Ética II
UNIDADE 1 – A Concepção Ética do Renascimento

______. Discurso sobre a dignidade do homem. Trad. Maria de Lurdes Sirgado Ganho.
Lisboa: Edições 70, 2001.
MONTAIGNE, M. Essais. In: ROUX-LANIER, C. (Org.). Les temps des Philosophes. Paris:
Hatier, 1995.
______. Ensaios. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987. (Os Pensadores).
ROUX-LANIER, C. (Org.). Le temps des philosophes. Paris: Hatier, 1995.

© Ética II 75
UNIDADE 2
Ética Moderna: Racionalismo e
Empirismo

1. objetivos
• Conhecer as mudanças epistemológicas da Modernida-
de e relacioná-las com as propostas da moral e da Ética
do racionalismo e do empirismo modernos.
• Compreender a proposta de uma moral de provisão em
René Descartes.
• Analisar os desdobramentos, na proposta de Spinoza,
de uma Ética puramente racional-intuitiva, demonstra-
da à maneira dos geômetras.
• A moral e o estado de direito em Thomas Hobbes e John
Locke.
• O empirismo e o início de uma moral utilitarista com
John Locke.

2. conteúdos
• René Descartes.
• Baruch Spinoza.
• Thomas Hobbes.
• John Locke.

77
UNIDADE 2 – Ética Moderna: Racionalismo e Empirismo

3. orientações para o estudo da unidade


Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que
você leia as orientações a seguir:
1) Para saber mais sobre a liberdade em Spinoza, sugeri-
mos que não deixe de ler o seguinte artigo:
• FRAGOSO, E. A. R. O conceito de liberdade na Éti-
ca de Benedictus de Spinoza. Revista Conatus –
Filosofia de Spinoza, v. 1, n. 1, p. 27-36, jul. 2007.
Disponível em: <http://benedictus.dominiotem-
porario.com/doc/Revista_Conatus_V1N1_Artigo_
Emanuel_Fragoso.pdf>. Acesso em: 31 mar. 2015.
2) O tema da liberdade em Spinoza é bastante interessan-
te; para aprofundá-lo, sugerimos que assista ao vídeo
do Prof. Claudio Ulpiano, Pensamento e Liberdade em
Espinosa. Disponível em: <http://www.youtube.com/
watch?v=KMhuVkSDQPs>. Acesso em: 18 ago. 2015.
3) Sobre Hobbes, assista ao vídeo do programa de TV
Café Pensamento, da Mackenzie, na entrevista com o
professor Marcelo Bueno sobre a filosofia de Thomas
Hobbes. Disponível em: <http://www.youtube.com/
watch?v=4-1WURiF0nM>. Acesso em: 18 ago. 2015.
4) Indicamos, também, os seguintes filmes:
• Sobre o século 17: Cromwell, O Chanceler de Ferro,
de 1970, direção de Ken Hugues (a revolução puri-
tana na Inglaterra).
• Sobre o século 18 (a Revolução Francesa): Danton, O
Processo da Revolução, de 1982, direção de Andrzej
Wajda.

78 © Ética II
UNIDADE 2 – Ética Moderna: Racionalismo e Empirismo

• Baseado na obra de mesmo nome, o filme Ponto


de Mutação, de 1983, com direção de Bernt Capra,
aborda questões sociais, políticas, econômicas e
mudanças de tendências (passagem do velho para
o novo e renovação do velho).

4. introdução
Dentro do que temos nos proposto a trabalhar, no que diz
respeito à distinção entre o ético e o moral, veremos, no século
17, tema desta unidade, o estabelecimento de uma estrutura de
saber favorável ao desenvolvimento da noção de moral que se
presta ao conceito de regras e princípios gerais, em detrimento
do que entendemos por ético propriamente dito.
De fato, no século 17, passa a predominar um interesse
cada vez maior em um saber racional-teórico, fundamentado em
um universal-geral, iniciando-se, assim, de maneira sistemáti-
ca, o pensamento chamado moderno, com suas características
específicas.
Veremos, a seguir, alguns pontos básicos desse novo para-
digma de saber, o conhecimento científico ou a ciência.
Iniciemos com a nova noção de mundo. Durante a Idade
Média, a ideia de mundo era a aristotélica, ou seja, um todo or-
denado (o cosmos) limitado e hierarquizado, onde cada coisa ti-
nha o seu lugar próprio, segundo sua natureza. Porém, descober-
tas significativas surgem no século 17 que parecem negar essa
visão. Um exemplo é a lei da inércia, inicialmente formulada por
Descartes e, posteriormente, por Newton, segundo a qual um
corpo uma vez em movimento conservará para sempre esse mo-
vimento, com a mesma velocidade, se não sofrer nenhuma outra

© Ética II 79
UNIDADE 2 – Ética Moderna: Racionalismo e Empirismo

ação, como acontece no vácuo. Essa lei significa que o univer-


so todo está em movimento e, portanto, em vez de um mundo
fechado, limitado e hierarquizado, como se pensava, temos um
universo sem limites. Essa visão, a partir de uma lei universal-
-geral, consiste em uma visão abstrata do universo.
O mundo passa a ser visto como uma grande máquina,
previsível e passível de ser conhecida racionalmente. Um todo
em movimento, movimento esse não em busca de um fim, mas
inteiramente decorrente de leis matemáticas. Em outras pala-
vras, ao contrário do cosmos antigo, em que, sob a inspiração
aristotélica, se explicavam as coisas pela finalidade, o universo
agora se apresenta reduzido a um puro mecanismo.
Não há lugares naturais, com leis próprias, como ensina-
va Aristóteles; o espaço é homogêneo, geométrico, nele reina a
identidade universal da lei ou a relação matemática constante. A
ordem cósmica dos antigos é substituída pela ordem rigorosa da
matemática que se torna o modelo do pensamento verdadeiro.
Das inúmeras substâncias concebidas pelo pensamento
greco-romano restam apenas três fundamentais: a extensão (res
extensa), o pensamento (res cogitans) e o infinito (a substância
divina).
No pensamento moderno, só é conhecimento aquele que
explica a partir da causa e apenas duas causas são admitidas:
a causa eficiente (relação direta da causa e de seu efeito) e a
causa final, que seria aquela existente entre Deus e os homens,
enquanto os gregos, romanos e medievais concebiam as causas
como sendo quatro (classificação de Aristóteles):
1) a causa material (aquilo de que algo é feito);
2) a causa formal (a coisa em si);

80 © Ética II
UNIDADE 2 – Ética Moderna: Racionalismo e Empirismo

3) a causa eficiente (o que dá origem ao processo do qual


algo surge);
4) a causa final (aquilo para o qual algo é feito).
Outra questão que dominará a Idade Moderna é a questão
do método. Para se chegar ao conhecimento pelas causas, faz-se
necessário um método ou um caminho. A opção é pelo método
da Matemática (ordem e medida), por ser este o caminho do
conhecimento completo, que domina inteiramente seu objeto.
No que diz respeito à nossa temática da Ética e da moral,
o surgimento do pensamento moderno, com exceção do pensa-
mento de Baruch Spinoza, foi, pelas características epistêmicas
aqui referidas, favorável à expansão da questão moral. É o que
veremos a seguir.

5. RENÉ DESCARTES (1596-1650) e uma "moral


de provisão"
Descartes, como sabemos, é o filósofo do "método" ou do
caminho para se chegar a verdades claras e exatas. Em 1619, es-
tando combatendo os espanhóis, no exército do príncipe holan-
dês Maurício de Nassau, Descartes tem três visões ou sonhos a
partir dos quais concebe "os fundamentos de uma ciência admi-
rável", sobre a qual, por volta de 1620, começa a redigir a obra
Regras para a direção do espírito, obra essa que só será publica-
da em 1701.
Considerado o grande fundador do pensamento racionalis-
ta moderno, sua marca inconfundível é o princípio da "dúvida":
tudo o que pensamos saber ou acreditamos existir deverá passar
pelo crivo da dúvida.

© Ética II 81
UNIDADE 2 – Ética Moderna: Racionalismo e Empirismo

Nesse sentido, em Meditações (Meditação 1), afirma:


1. Há algum tempo eu me apercebi de que, desde meus primei-
ros anos, recebera muitas falsas opiniões como verdadeiras, e de
que aquilo que depois fundei em princípios tão mal assegurados
não podia ser senão mui duvidoso e incerto; de modo que me era
necessário tentar seriamente, uma vez em minha vida, desfazer-
-me de todas as opiniões a que até então dera crédito, e começar
tudo novamente, desde os fundamentos, se quisesse estabelecer
algo de firme e de constante nas ciências. Mas, parecendo-me
ser muito grande essa empresa, aguardei atingir uma idade que
fosse tão madura que não pudesse esperar outra após ela, na
qual eu estivesse mais apto para executá-la; o que me fez diferi-
-la por tão longo tempo que doravante acreditaria cometer uma
falta se empregasse ainda em deliberar o tempo que me resta
para agir.
Agora, pois, que meu espírito está livre de todos os cuidados,
e que consegui um repouso assegurado numa pacífica solidão,
aplicar-me-ei seriamente e com liberdade a destruir em geral
todas minhas antigas opiniões. Ora, não será necessário, para
alcançar esse desígnio, provar que todas elas são falsas, o que
talvez nunca levasse a cabo; mas, uma vez que a razão já me
persuade de que não devo menos cuidadosamente impedir-me
de dar crédito às coisas que não são inteiramente certas e in-
dubitáveis, do que às que parecem manifestamente ser falsas,
o menor motivo de dúvida que eu nelas encontrar, bastará para
me levar a rejeitar todas (DESCARTES, 1973a, p. 93).

A questão da moral em Descartes: uma moral de "provisão"


Descartes propõe, inicialmente, em sua famosa obra Dis-
curso do Método, o que chamou de "moral de provisão", par-
tindo para o estabelecimento de normas ou máximas que nos
permitissem nos aproximar da verdadeira virtude – normas ou
máximas que são, no entanto, segundo o filósofo, imperfeitas,
necessitando de aperfeiçoamento. Trata-se de uma moral pro-

82 © Ética II
UNIDADE 2 – Ética Moderna: Racionalismo e Empirismo

visória, elaborada antes da construção das bases do edifício do


saber a que se propunha e que permitiria orientar a conduta até
que fosse possível a elaboração de uma moral definitiva, a qual
seria o ponto mais alto do referido edifício do saber.
São três as máximas por ele estabelecidas na obra citada:
1) a vida de cada um deve ser conforme os desígnios de
Deus e as leis e costumes de seu país;
2) a "prudência" é a atitude que supriria a imperfeição;
3) deve-se procurar vencer a si mesmo, mudando os pró-
prios desejos e não a ordem do mundo.

A primeira máxima
A vida de cada um deve ser não apenas conforme os desíg-
nios divinos, que seriam os mais justos, mas, ainda, conforme a
conduta daqueles que seguem as leis e os costumes de seu país
e que são os moderados e sensatos.
Referindo-se a essa primeira regra, diz Descartes:
A primeira era obedecer às leis e aos costumes de meu país,
retendo constantemente a religião em que Deus me concedeu
a graça de ser instruído desde a infância, e governando-me, em
tudo o mais, segundo as opiniões mais moderadas e as mais
distanciadas do excesso, que fossem comumente acolhidas em
prática pelos mais sensatos daqueles com os quais teria de vi-
ver. Pois, começando desde então a não contar para nada com
minhas próprias opiniões, porque eu as queria submeter todas
a exame, estava certo de que o melhor a fazer era seguir as dos
mais sensatos. E, embora haja talvez, entre os persas e chine-
ses, homens tão sensatos como entre nós, parecia que o mais
útil seria pautar-me por aqueles entre os quais teria de viver
(DESCARTES, 1973a, p. 49-50).

© Ética II 83
UNIDADE 2 – Ética Moderna: Racionalismo e Empirismo

A segunda máxima: a "prudência"


Em vez de adotarmos teimosamente uma decisão ou de
permanecermos indecisos, quando não possuímos todas as in-
formações necessárias, é prudente tomar a decisão de agir (re-
solução) em uma determinada direção.
Minha segunda máxima consistia em ser o mais firme e o mais
resoluto possível em minhas ações, e em não seguir menos
constantemente do que se fossem muito seguras as opiniões
mais duvidosas, sempre que eu me tivesse decidido a tanto.
Imitando nisso os viajantes que, vendo-se extraviados nalgu-
ma floresta, não devem errar volteando, ora para um lado, ora
para outro, nem menos ainda deter-se num sítio, mas caminhar
sempre o mais reto possível para um mesmo lado, e não mudá-
-lo por fracas razões, ainda que no começo só o acaso talvez
haja determinado sua escolha: pois, por este meio, se não vão
exatamente aonde desejam, ao menos chegarão no fim a al-
guma parte, onde verossimilmente estarão melhor do que no
meio de uma floresta. E, assim como as ações da vida não su-
portam às vezes qualquer delonga, é uma verdade muito certa
que, quando não está em nosso poder o discernir as opiniões
mais verdadeiras, devemos seguir as mais prováveis; e mesmo,
ainda que não notemos em umas mais probabilidades do que
em outras, devemos, não obstante, decidir-nos por algumas e
considerá-las depois não mais como duvidosas, na medida em
que se relacionam com a prática, mas como muito verdadei-
ras e muito certas, porquanto a razão que a isso nos decidiu se
apresenta como tal. E isto me permitiu, desde então, libertar-
-me de todos os arrependimentos e remorsos que costumam
agitar as consciências desses espíritos fracos e vacilantes que se
deixam levar inconstantemente a praticar, como boas, as coisas
que depois julgam más (DESCARTES, 1973a, p. 50-51).

84 © Ética II
UNIDADE 2 – Ética Moderna: Racionalismo e Empirismo

A terceira máxima: a conduta correta é aquela que respeita as


possibilidades de um mundo regido por leis imutáveis e acima
de nosso alcance
Descartes afirma que
Minha terceira máxima era a de procurar sempre antes vencer a
mim próprio do que à sorte, e de antes modificar os meus dese-
jos do que a ordem do mundo; e, em geral, a de acostumar-me
a crer que nada há que esteja inteiramente em nosso poder,
exceto os nossos pensamentos, de sorte que, depois de termos
feito o melhor possível no tocante às coisas que nos são exte-
riores, tudo em que deixamos de nos sair bem é, em relação a
nós, absolutamente impossível. E só isso me parecia suficiente
para impedir-me, no futuro, de desejar algo que não pudesse
adquirir, e, assim, me tornar contente. Pois, inclinando-se a
nossa vontade naturalmente a desejar só aquelas coisas que
nosso entendimento lhe representa de alguma forma como
possíveis, é certo que, se considerarmos todos os bens que se
acham fora de nós como igualmente afastados de nosso poder,
não lamentaremos mais a falta daqueles que parecem dever-se
ao nosso nascimento, quando deles formos privados sem culpa
nossa, do que lamentamos não possuir os reinos da China ou
do México; e que fazendo, como se diz, da necessidade virtude,
não desejaremos mais estar sãos, estando doentes, ou estar
livres, estando na prisão, do que desejamos ter agora corpos
de uma matéria tão pouco corruptível quanto os diamantes, ou
asas para voar como as aves (DESCARTES, 1973a, p. 51).

Tal conduta exigiria preparo:


Mas confesso que é preciso um longo adestramento e uma me-
ditação amiúde reiterada para nos acostumarmos a olhar por
este ângulo todas as coisas; e creio que é principalmente nisso
que consistia o segredo desses filósofos, que puderam outro-
ra subtrair-se ao império da fortuna e, malgrado as dores e a
pobreza, disputar felicidade aos seus deuses. Pois, ocupando-
-se incessantemente em considerar os limites que lhes eram
impostos pela natureza, persuadiram-se tão perfeitamente de

© Ética II 85
UNIDADE 2 – Ética Moderna: Racionalismo e Empirismo

que nada estava em seu poder além dos seus pensamentos,


que só isso bastava para impedi-los de sentir qualquer afecção
por outras coisas; e dispunham deles tão absolutamente, que
tinham neste particular certa razão de se julgarem mais ricos,
mais poderosos, mais livres e mais felizes que quaisquer outros
homens, que, não tendo esta filosofia, por mais favorecidos
que sejam pela natureza e pela fortuna, jamais dispõem assim
de tudo quanto querem (DESCARTES, 1973a, p. 51).

Porém, em suas demais obras, como Meditações, e parti-


cularmente em sua correspondência com a princesa do Palatino,
Isabel da Boêmia, a quem prometeu e escreveu o Tratado das
Paixões da Alma, sua última obra publicada em 1649, poucos
meses antes de sua morte, encontraremos mais subsídios para
a possível configuração de uma moral cartesiana. Nessas suas
últimas obras, Descartes procura elaborar uma moral mais per-
feita, retomando em novos contextos o que dissera na moral de
provisão.
Veremos, nesses seus escritos, que Descartes, no que
concerne à questão da conduta moral correta, fundamenta-se
em algumas verdades que considera essenciais: a existência de
Deus; o fenômeno da vontade ilimitada; a limitação do entendi-
mento; o recurso ao hábito; razão e liberdade; a "unidade" da
alma; a união da alma e do corpo e as paixões; a virtude como
soberano bem.

A existência de Deus: Ele existe, pois sua existência pode ser


demonstrada
Diz Descartes:
Entendo por Deus uma substância infinita, eterna, imutável,
independente, puro conhecimento, puro poder, pelo qual eu
próprio e tudo o que existe (se é verdade que há algo existen-

86 © Ética II
UNIDADE 2 – Ética Moderna: Racionalismo e Empirismo

te) foi criado e produzido. Ora, tais vantagens são tão grandes
e admiráveis que quanto mais atentamente eu as considero,
mais me convenço de que a ideia de Deus não pode se originar
unicamente de mim. E, consequentemente, se faz necessário
concluir que Deus existe: pois, embora a ideia de substância
exista em mim, uma vez que sou uma substância, não teria, en-
tretanto, a ideia de uma substância infinita, eu que sou um ser
finito, se tal ideia não tivesse sido colocada em mim por alguma
substância que não fosse verdadeiramente infinita.
E, não devo imaginar que tal concepção de infinito não seja
uma verdadeira ideia, mas somente resultado da negação do
que é finito, da mesma maneira que compreendo o repouso e
as trevas pela negação do movimento e da luz: isso porque vejo
claramente que existe mais realidade na substância infinita do
que na substância finita e, em consequência, tenho em mim a
noção de infinito e de Deus antes da noção de finito e de mim
mesmo. Pois, como seria possível que eu pudesse saber que
duvido e que desejo, isto é, que me falta algo e que não sou
perfeito, se não tivesse em mim a ideia de um ser mais perfeito
do que o meu ser, em comparação com o qual eu pudesse ter
o conhecimento dos defeitos de minha natureza? (DESCARTES
apud ROUX-LANIER; et al., 1995, p. 224, tradução nossa).

O fenômeno da vontade: temos todos uma vontade ilimitada


porque fomos criados à imagem e semelhança de Deus
E, sobre o fenômeno da vontade, Descartes conclui:
Não há senão a vontade que experimento em mim ser tão gran-
de, que não concebo nenhuma outra mais ampla e mais ex-
tensa: de maneira que é ela principalmente que me faz saber
que trago em mim a imagem e a semelhança de Deus. Pois,
ainda que ela seja incomparavelmente maior em Deus do que
em mim, seja em razão do conhecimento e do poder, que nele
se encontram unidos, tornando-a mais firme e mais eficaz, seja
em razão do objeto, uma vez que ela se refere e se estende a um
número infinitamente maior de coisas, ela não me parece, en-

© Ética II 87
UNIDADE 2 – Ética Moderna: Racionalismo e Empirismo

tretanto, maior, se eu a considero formalmente e precisamente


nela mesma. Pois ela consiste tão somente no fato de que po-
demos fazer algo, ou não (isto é, afirmar ou negar, perseguir ou
fugir) ou, antes, apenas afirmar ou negar, perseguir ou fugir das
coisas que o entendimento nos propõe, sem sentir que alguma
força exterior nos obrigue (DESCARTES in ROUX-LANIER, 1995,
p. 225, tradução nossa).

A questão da vontade e do entendimento: o erro


Vimos, no texto anteriormente citado, que a vontade hu-
mana é concebida por Descartes como sendo análoga à vontade
divina. Descartes afirma, nesse texto, a "infinitude" da vontade
humana quando diz que, embora a vontade divina seja "incom-
paravelmente mais firme e mais eficaz" do que a vontade huma-
na, quando considerada em si mesma, em sua forma, a vontade
divina "não me parece maior". Isso significa que a nossa vontade
é ilimitada como a vontade divina.
Mas, e o entendimento?
Em sua terceira máxima, como vimos, Descartes afirma
que o mundo é regido por leis imutáveis, acima de nosso alcan-
ce. Portanto, nosso entendimento é limitado.
Desse confronto entre uma vontade ilimitada e um enten-
dimento limitado surgiria a possibilidade de errar. Erramos, não
porque nossas ideias sejam falsas: o erro não estaria na ideia
ou na pura representação do objeto, mas no julgamento pelo
qual afirmamos ou negamos que o objeto seja isso ou aquilo.
E a vontade é justamente essa capacidade de afirmar ou negar
algo. Como a vontade é ilimitada e o entendimento, limitado, o
ser humano é capaz de não apenas julgar sobre o que ele pode
reconhecer com certeza, mas também aceitar como válido um

88 © Ética II
UNIDADE 2 – Ética Moderna: Racionalismo e Empirismo

conhecimento duvidoso, podendo, dessa maneira, cair no erro.


O erro decorre de um ato de nossa vontade quando esta não
é mantida nos limites do entendimento. O poder de dizer sim
ou não é infinito e nos permite pronunciar mesmo quando não
temos clareza de entendimento. Portanto, o conhecimento deve
sempre preceder à determinação da vontade, se não quisermos
errar.

No que concerne à conduta moral, nem sempre há certezas ab-


solutas, e sim apenas probabilidades
Embora toda conduta correta e verdadeiramente livre con-
sista em se basear em conhecimentos claros e evidentes, deve-
mos, na ausência de maiores conhecimentos, seguir as condutas
mais equilibradas, sensatas e de maior probabilidade de acerto,
porque nem sempre temos o tempo necessário para chegar a
conhecimentos claros a respeito de uma situação. É o que afirma
o filósofo, como vimos em sua primeira e segunda máximas.
Há, segundo Descartes, que "ir alcançando gradualmente
conhecimentos firmes sobre a correta natureza das coisas", re-
construindo opiniões de acordo com esses conhecimentos, por
meio da vivência com os outros.
E, como esperava chegar melhor ao cabo dessa tarefa conver-
sando com os homens do que prosseguindo por mais tempo
encerrado no quarto aquecido, onde me haviam ocorrido esses
pensamentos, recomecei a viajar quando o inverno ainda não
acabara. E, em todos os nove anos seguintes, não fiz outra coisa
senão rolar pelo mundo, daqui para ali, procurando ser mais
espectador do que ator em todas as comédias que nele se re-
presentam; e, efetuando particular reflexão, em cada matéria,
sobre o que podia torná-la suspeita e dar ocasião de nos equi-
vocarmos, desenraizava, entrementes, do meu espírito todos
os erros que até então nele se houvessem insinuado. Não que

© Ética II 89
UNIDADE 2 – Ética Moderna: Racionalismo e Empirismo

imitasse, para tanto, os céticos, que duvidam apenas por du-


vidar e afetam ser sempre irresolutos: pois, ao contrário, todo
o meu intuito tendia tão-somente a me certificar e remover a
terra movediça e a areia, para encontrar a rocha ou a argila.
O que consegui muito bem, parece-me, tanto mais que, pro-
curando descobrir a falsidade ou a incerteza das proposições
que examinava, não por fracas conjeturas, mas por raciocínios
claros e seguros, não me deparava com quaisquer tão duvidosa
que delas não tirasse sempre alguma conclusão bastante certa,
quando mais não fosse a de que não continha nada de certo.
E, como, ao demolir uma velha casa, reservam-se comumente
os escombros para servir à construção de outra nova, assim,
ao destruir todas as minhas opiniões que julgava mal fundadas,
fazia diversas observações e adquiria muitas experiências, que
me serviram depois para estabelecer outras mais certas (DES-
CARTES in ROUX-LANIER, 1995, p. 225, tradução nossa).

A liberdade está fundada no conhecimento, e não na vontade:


a liberdade não é uma escolha aleatória e indiferente, não de-
pende da vontade, pois esta é indiferente, mas se funda em
conhecimentos claros e evidentes
A indiferença é o mais baixo grau de liberdade, é a carên-
cia de conhecimento. Se tivéssemos sempre um conhecimento
claro daquilo que julgamos, seríamos completamente livres. A
vontade é livre quando não há limite externo, ou seja, quando
está sujeita a uma determinação interior ou quando se sente in-
clinada por um conhecimento certo e distinto ou, ainda, por uma
graça divina.
Pois para que eu seja livre, não é necessário que eu seja indi-
ferente a escolher um ou outro de dois contrários; mas quanto
mais tendo para um, seja porque conheço de maneira evidente
que nele se encontram o bem e o verdadeiro, seja porque Deus
assim dispõe o interior de meu pensamento, mais livremente
faço a escolha e a assumo. E, certamente, a graça divina e o

90 © Ética II
UNIDADE 2 – Ética Moderna: Racionalismo e Empirismo

conhecimento natural, longe de diminuir minha liberdade, a


aumentam e a fortificam. De maneira que esta indiferença que
sinto, quando não tendo nem para um lado nem para o outro,
por força de alguma razão, é o grau mais baixo de liberdade,
assemelhando-se mais a um defeito do conhecimento do que a
uma perfeição da vontade; pois se conheço sempre claramente
o que é verdadeiro e o que é bom, jamais teria dificuldade em
deliberar qual julgamento e qual escolha deveria fazer; e assim
eu seria inteiramente livre sem jamais ser indiferente (DESCAR-
TES in ROUX-LANIER, 1995, p. 225, tradução nossa).

A Alma: todo conhecimento se fundamenta na identidade


"una" da alma
A alma é uma "substância pensante" (do latim res cogitans).
A substância da alma é o pensamento, somos uma substância
cuja essência e natureza consiste em pensar. Deve ser atribuído
a nossa alma tudo o que existe em nós e que não concebemos
como passível de pertencer a um corpo, como os pensamentos.

A alma é "una", não extensa, indissolúvel e simples


É o que diz Descartes na obra Regras para a orientação do
espírito (Regra 1):
Os homens têm o hábito, cada vez que descobrem uma seme-
lhança entre duas coisas, de atribuir tanto a uma quanto à ou-
tra, mesmo naquilo que as distingue, o que reconheceram como
sendo verdadeiro em uma delas. Assim, fazendo uma compara-
ção falsa entre ciências, que se encontram inteiramente no co-
nhecimento que tem o espírito, e as artes, que requerem certo
exercício e certa disposição do corpo, e vendo, por outro lado,
que todas as artes não poderiam ser aprendidas ao mesmo tem-
po pelo mesmo homem, mas que aquele que cultiva uma única
arte torna-se mais facilmente um excelente artista, porque as
mesmas mãos não podem cultivar, ao mesmo tempo, os campos

© Ética II 91
UNIDADE 2 – Ética Moderna: Racionalismo e Empirismo

e tocar citara, ou cultivar várias artes diferentes tão facilmente


quanto uma só, acreditaram que o mesmo se passaria também
com as ciências e as distinguiram umas das outras de acordo com
a diversidade de seus objetos, pensaram que se fazia necessário
cultivar cada uma à parte, sem se ocupar de todas as outras. E,
nisto, se enganaram. Pois, tendo em vista que todas as ciências
não são outra coisa que sabedoria humana, que permanece una
e sempre a mesma, por mais diferentes que sejam os objetos
aos quais ela se aplique, e que não é modificada pela mudança
de seus objetos mais do que a luz do sol o é pela variedade das
coisas que ela ilumina, não há necessidade de impor limites ao
espírito: o conhecimento de uma verdade não nos impede de
descobrir outra, como o exercício de uma arte nos impede de
aprender outra arte, mas, pelo contrário, nos ajuda (DESCARTES
in ROUX-LANIER, 1995, p. 219-220, tradução nossa).

A união da alma e do corpo


A união da alma e do corpo resultaria, segundo Descartes,
de um ato de vontade de Deus e foge a uma compreensão clara
e evidente. Embora possamos conhecer separadamente a alma
e o corpo, da união entre eles só existem, diz o filósofo, ideias
confusas. Quando sentimos dor, fome, sede, por exemplo, não
percebemos essa dor, fome e sede pelo entendimento, de fora
para dentro, mas via sentimentos que são modos de pensar con-
fusos, porque procedem e dependem de uma interação de mo-
vimentos entre a alma e o corpo.
Diferentemente de Aristóteles, Descartes concebe a alma e
o corpo como duas substâncias de natureza diferente: uma é não
extensa (a alma) a outra é extensa (o corpo). Portanto, a união
da alma e do corpo, que em Aristóteles era essencial, passa a
não ser essencial em Descartes. São distintas, pois, de um lado,
tenho uma ideia clara de mim mesmo como uma coisa pensante

92 © Ética II
UNIDADE 2 – Ética Moderna: Racionalismo e Empirismo

e não extensa e, de outro, tenho uma ideia também clara de que


sou um corpo, uma coisa extensa que não pensa. Meu eu, isto é,
minha alma, pela qual eu sou o que sou, é inteiramente distinta
de meu corpo, podendo existir sem ele.
Os pensamentos são atribuídos pelo filósofo à alma; o mo-
vimento e o calor, na medida em que não dependem do pensa-
mento, são atribuídos ao corpo. O corpo é concebido como uma
máquina que obedece às leis da natureza. Todos os movimentos
que fazemos que não dependam de nossa vontade, como andar,
respirar, comer, enfim, todas as ações que são comuns a nós e
aos animais dependem da conformação de nossos membros e
do que chamou de "espíritos animais", entendendo por isso as
partes mais sutis e voláteis do sangue (os circuitos elétricos de
hoje, talvez), seguindo para o cérebro via nervos e músculos, tal
como o movimento de um relógio, movimento esse produzido
exclusivamente pela força da mola do relógio e da forma de suas
rodas.
A união da alma e do corpo é de tal maneira íntima, que
a ação de um é sempre referente ao- outro, porém não consiste
em uma ação "direta", porque a alma e o corpo permanecem
duas substâncias completas e opostas. O corpo humano, afeta-
do pelos eventos externos, faz com que a alma sinta, perceba.
Assim, as percepções, os conhecimentos em nós não são feitos
pela alma; são recebidos das coisas e representados pela alma,
por meio de suas ideias.
Descartes dá um exemplo, que se tornou célebre. Em Me-
ditações (Meditação 2), diz:
Tomemos como exemplo este pedaço de cera que acaba de ser
retirado da colmeia: ele ainda não perdeu a doçura do mel que
continha, continua a apresentar o odor das flores das quais foi
recolhido; sua cor, sua figura, seu tamanho são aparentes; é

© Ética II 93
UNIDADE 2 – Ética Moderna: Racionalismo e Empirismo

duro, frio, pode ser tocado e se nele batermos emitirá um som.


Enfim, tudo que nos permite constatar a existência de um corpo
nele se encontra.
Mas, eis que, enquanto falo, aproximo-o do fogo: o que nele
restava de sabor se exala, o odor desaparece, sua cor muda,
ele esquenta, mal posso tocá-lo e, embora nele bata, não emi-
tirá mais nenhum som. Trata-se da mesma cera, após essa mu-
dança? É preciso admitir que permanece o mesmo pedaço de
cera, ninguém pode negar. O que, então, neste pedaço de cera
é conhecido como tal? Certamente nada do que foi constatado
pelos sentidos, uma vez que tudo aquilo que veio pelo pala-
dar, pelo olfato, pela vista, pelo tato ou pelo ouvido se encontra
modificado e, no entanto, a cera permanece a mesma. Talvez,
penso agora, a cera não era nem essa doçura do mel, nem esse
agradável odor das flores, nem essa brancura, nem essa figura,
nem esse som, mas somente um corpo que um pouco antes me
era dado sob essas formas e que agora se apresenta sob outras
formas. Mas, o que exatamente imagino, quando a concebo
dessa maneira? Consideremos a cera atentamente, afastando
tudo o que não lhe pertence, e vejamos o que resta. O que é
certo é que não resta senão algo extenso, flexível e mutável.
Ora, o que é isto: flexível e mutável? Não seria o fato de que
imagino que esta cera, sendo redonda, pode vir a ser quadrada
e passar de quadrada a uma figura triangular? Não, certamen-
te, não seria isso, pois a concebo capaz de receber uma infinida-
de de semelhantes mudanças, mas não seria, entretanto, capaz
de percorrer essa infinidade de mudanças com a minha imagi-
nação, o que me faz concluir que essa concepção que tenho da
cera não se dá por meio da faculdade de imaginar (DESCARTES
in ROUX-LANIER, 1995, p. 223-224, tradução nossa).

A afirmação da permanência da cera nas diferentes modifi-


cações percebidas não resultaria nem da imaginação, pois somos
incapazes de percorrer com a imaginação a infinidade de mudan-
ças passíveis de serem recebidas pela cera, e nem da percepção,
uma vez que toda percepção é contemporânea do que percebe

94 © Ética II
UNIDADE 2 – Ética Moderna: Racionalismo e Empirismo

(cada modificação da cera é objeto de uma percepção) e a todo


instante ultrapassamos cada percepção de uma modificação,
afirmando a permanência da cera. A afirmação da permanên-
cia da cera nas diferentes modificações recebidas resultaria das
representações pela alma dessas modificações mediante uma
ideia, a de extensão.
Em outras palavras, todo corpo é conhecido como corpo,
(aquilo que permanece a despeito de modificações e variações),
por meio de uma ideia ou julgamento: a ideia de extensão, ideia
essa de um sujeito conhecedor, a alma. Só a ideia de extensão
torna possível a representação de um corpo como tal. Em outras
palavras, o que temos é a representação de um corpo, graças a
uma ideia, a ideia de extensão e esta, como já foi dito, é produto
da alma.

Ações e paixões
Quando a alma busca imaginar o que não existe ou conce-
be algo puramente inteligível, estaríamos diante de "ações", ou
seja, de percepções dependentes principalmente da vontade. As
"paixões", diferentemente, se situariam no domínio da união da
alma e do corpo.

As paixões
Os eventos externos causam na alma as paixões, que são,
assim, a mediação entre as duas substâncias: corpo e alma, res-
ponsáveis pela comunicação entre elas. Paixões seriam, portan-
to, percepções, sentimentos ou emoções que vêm à alma pelos
nervos (podem também vir, segundo Descartes, do movimento
dos "espíritos animais"). As que são vinculadas a objetos exterio-

© Ética II 95
UNIDADE 2 – Ética Moderna: Racionalismo e Empirismo

res se referem ao conhecimento das coisas exteriores que afe-


tam nossos sentidos, fazendo com que a alma os sinta. As que
são vinculadas ao corpo, como a fome, a sede, a dor etc., senti-
mos em nossos próprios membros e não em corpos externos. Há
ainda um terceiro tipo de percepções, sentimentos e emoções
que vinculamos à própria alma, como alegria, tristeza, cólera etc.

As paixões, segundo Descartes, são inseparáveis das ações que


as provocam; assim, o seu estudo também é inseparável do
estudo do corpo que é o agente dessas ações
Descartes elege a glândula pineal (situada entre os olhos)
como a sede da alma, por ser a única parte do corpo conhecida
na época que não seria dupla. Os olhos são duplos, os ouvidos
são duplos, mas o pensamento não é; por isso, a glândula pineal
seria a sede do pensamento ou da alma. Essa glândula é cercada
de pequenas ramificações das carótidas (as principais artérias do
pescoço), que trariam os "espíritos animais" ao cérebro.
O poder da vontade, ilimitado quanto à própria capacidade
de querer, não seria ilimitado com relação ao corpo e às
percepções da alma, porque a natureza estabelece uma ligação
entre cada vontade e o movimento da glândula com base na
conservação da união, não no arbítrio. Um exemplo é o fato
de que, se quisermos ver algo de perto, haverá uma redução
da pupila, porém, se simplesmente quisermos reduzi-la só por
querer, a redução não se dará.

As seis paixões primitivas


Descartes, na segunda parte de seu Tratado das Paixões
da Alma, enumera, segundo o efeito dos objetos em nós, seis

96 © Ética II
UNIDADE 2 – Ética Moderna: Racionalismo e Empirismo

paixões que considera como primitivas: admiração, amor, ódio,


alegria e tristeza.
• A admiração: constitui-se de uma súbita surpresa da
alma. É causada pela impressão que se tem no cérebro
representando o objeto como raro e extraordinário.
Ocorre antes de sabermos se o objeto é conveniente
ou não. É a primeira paixão, pois, sem uma admiração
inicial, isto é, sem um contemplar com surpresa e como-
ção, não seria possível surgirem paixões. A admiração é
positiva quando nos leva à aquisição de conhecimento;
pode, porém, ser nociva quando em excesso, como o
"espanto". No espanto, percebemos apenas a primeira
face apresentada pelo objeto, o que nos impede de ad-
quirir conhecimentos mais profundos. Por essa razão,
seria aconselhável, segundo Descartes, nos exercitar na
consideração das coisas que nos parecem estranhas.
• O amor e o ódio: tais paixões envolveriam o "unir-se
ou separar-se voluntariamente". No amor, unimo-nos
ao que amamos, como um todo do qual seríamos uma
parte e a coisa amada seria a outra parte. No ódio, dá-
-se o contrário, nos consideramos um todo totalmente
separado da coisa que repudiamos.
• Desejo: essa paixão se manifesta quando desejamos
que se apresentem em nosso futuro aquilo que nos é
conveniente e que não o temos, como aquilo que nos é
conveniente e temos no presente. Além disso, essa pai-
xão também se manifesta quando desejamos que um
mal atualmente existente não venha a continuar, como
algum mal eventual que possa vir a ocorrer no futuro.

© Ética II 97
UNIDADE 2 – Ética Moderna: Racionalismo e Empirismo

• A alegria e a tristeza: a alegria é o gozo do bem pre-


sente; a tristeza é o sentimento de algo incômodo que
buscamos repelir.
Todas essas paixões servem, segundo Descartes, à conser-
vação e ao aperfeiçoamento do corpo. A alma só é advertida das
coisas que a prejudicam pelo sentimento da dor que inicialmen-
te a entristece, em seguida a faz odiar e, finalmente, leva-a a
desejar se livrar daquele mal, repelindo o que a pode destruir.
Assim, para Descartes, todas as paixões são boas em si
mesmas. No entanto, é preciso e é possível regulamentá-las para
não pervertê-las. Como foram instituídas pela natureza, faz-se
necessário conhecer as leis dessa instituição para poder agir so-
bre elas. Busca, portanto, explorar racionalmente este obscuro
campo da união que são as paixões.

As paixões e a vida moral


Segundo Descartes, a vida moral se situa na união da alma
e do corpo, pois é por causa dessa união que a avaliação do que
é ou não bom é perturbada pelas paixões. As paixões são moral-
mente relevantes porque influenciam nossas ações por meio do
desejo, pelo qual regulam nossos costumes. A função da moral
seria regrar e controlar o desejo. Portanto, a moral cartesiana
se fundamenta no melhor conhecimento possível e no correto
manejo das paixões ou controle do "desejo".
As paixões dispõem a alma a querer as coisas para as quais
preparam o corpo. A vida moral colocará em questão certas
ações assim corroboradas pelas paixões, exigindo um redirecio-
namento destas pela razão. E, para tanto, é preciso distinguir as
coisas que dependem inteiramente de nós daquelas que não de-

98 © Ética II
UNIDADE 2 – Ética Moderna: Racionalismo e Empirismo

pendem. Portanto, segundo o filósofo, é preciso rejeitar a afir-


mação comum de que existe fora de nós uma espécie de sorte
que faz com que as coisas venham ou não a nós a seu bel prazer.
Tudo é conduzido pela providência divina e nada acontece que
não seja necessário. Desejar que acontecesse de outra forma é
cometer um erro. É necessário, pois, limitar o campo do possível,
regulando o desejo pelo conhecimento verdadeiro não do bem
em geral, mas do bem que depende de nós. É o que vimos em
essência na terceira máxima da moral provisória.
Ainda segundo Descartes, a alma pode dominar as paixões
menores, desviando o corpo para outros objetos. Nas paixões
muito violentas, não há como superá-las, porém pode-se sus-
pender os movimentos a que elas dispõem o corpo, por exem-
plo: não consigo deixar de sentir medo, mas, posso conter-me e
não correr.

O conceito de "virtude"
Por "virtude" entende o filósofo o hábito da alma que a
orienta para determinados pensamentos, pensamentos esses
gerados pela alma e muitas vezes fortalecidos por movimentos
dos "espíritos", o que faz com que sejam, ao mesmo tempo, "vir-
tudes" e "paixões". Trata-se da firme resolução de não nos des-
viarmos, pelo desejo, em direção ao que não depende de nós.
As almas fortes são virtuosas, têm poder sobre as paixões
com armas próprias, ou seja, com "juízos firmes e determinados
sobre o conhecimento do bem e do mal", à luz dos quais decidiu
conduzir suas ações.
A ação moral, para Descartes, não deve estar fundada ape-
nas no conhecimento possível, mas, também, no correto con-

© Ética II 99
UNIDADE 2 – Ética Moderna: Racionalismo e Empirismo

trole das paixões, pois são elas que, pelo "desejo", comandam a
passagem do pensamento à ação e esse comando, quando vol-
tado para o possível, dando-se à luz do livre-arbítrio, é a própria
"virtude", operando por meio da "generosidade".
Na terceira parte do Tratado sobre as Paixões da Alma,
Descartes apresenta as paixões derivadas das primitivas. Dentre
essas paixões, destaca-se a da "generosidade".

Virtude e hábito: a "generosidade"


A generosidade é o hábito que leva a alma a pensar no
sentido e na grandiosidade do "livre-arbítrio, gerando a firme re-
solução de usá-lo corretamente".
O homem cartesiano é o homem generoso, que valoriza
a sua liberdade, que soube descobrir em si o poder de duvidar,
que assume a responsabilidade pelos seus erros, que sabe agir
diante da obscuridade da vida (ROUX-LANIER, 1995, p. 218).
Podemos desenvolver, segundo Descartes, as virtudes. Se-
riam as próprias paixões, segundo o filósofo, que indicariam de
si mesmas a maneira segundo a qual podemos agir sobre elas.
Diz ele:
Nossas paixões [...] não podem ser provocadas nem eliminadas
por nossa vontade, mas podem ser indiretamente, pela repre-
sentação das coisas que habitualmente costumam se associar
às paixões que queremos ter e que são contrárias às que que-
remos rejeitar (DESCARTES in ROUX-LANIER, 1995, p. 228, tra-
dução nossa).

Assim, embora não possamos combater diretamente as


paixões, é possível fazê-lo indiretamente, criando hábitos basea-
dos nas ideias contrárias a determinadas paixões. Poderíamos,

100 © Ética II
UNIDADE 2 – Ética Moderna: Racionalismo e Empirismo

por exemplo, desenvolver a generosidade, buscando o que ha-


bitualmente costuma representá-la, como a sabedoria de que
todo louvor ou recriminação se refere unicamente ao uso que
fazemos do bem e do mal e o fato de, sentindo-nos capazes de
ações virtuosas, acreditarmos que, assim como nós, todos os ou-
tros também são capazes, pois isso não depende de circunstân-
cias alheias, mas somente da boa vontade. É o que diz Descartes:
Assim, creio que a verdadeira generosidade, que faz com que
um homem se estime no mais alto grau possível de se estimar
de maneira legítima, consiste simplesmente: em parte no fato
de saber que nada verdadeiramente lhe pertence a não ser essa
livre disposição de suas vontades, que não existe outra razão
para ser louvado ou recriminado a não ser pelo uso que faz do
bem ou do mal, e, em parte, no fato de sentir, em si mesmo, um
poder de decisão, firme e constante, de fazer bom uso de suas
capacidades, isto é, de nunca falhar na vontade de empreender
e executar todas as coisas que julgar serem as melhores; isto é
seguir perfeitamente a virtude.
Aqueles que têm esse conhecimento e sentimento de si mes-
mos são facilmente convencidos de que todos os outros ho-
mens os têm igualmente, porque não há nada em tal situação
que dependa do outro. É, por isso, que jamais desprezam al-
guém, e que, embora vejam frequentemente os outros come-
terem erros que revelam a sua fraqueza, tendem, entretanto,
a desculpá-los em vez de recriminá-los, e a acreditar que é
mais por desconhecimento do que por falta de vontade que
cometem tais faltas; e, como não pensam serem inferiores aos
que possuem mais bens ou honras, ou têm mais espírito, mais
saber, mais beleza, ou os superam em algumas outras perfei-
ções, não se consideram, da mesma maneira, superiores aos
que ultrapassam, porque todas essas coisas lhes parecem de
pouco valor, em comparação com o fato de se ter boa vontade,
única qualidade que possui, para eles, valor, qualidade que su-
põem também existir ou, pelo menos, poder existir, em todos
os homens (DESCARTES in ROUX-LANIER, 1995, p. 228, tradução
nossa).

© Ética II 101
UNIDADE 2 – Ética Moderna: Racionalismo e Empirismo

Considerações finais
Dentro da orientação básica do presente estudo, distin-
guindo essencialmente o ético do moral, gostaríamos de en-
fatizar, nestas considerações finais, as dificuldades do filósofo
francês em abarcar a questão da consciência moral em sua tota-
lidade, mediante o método por ele proposto.
De fato, encontramos, em Descartes, os pilares da consti-
tuição do que entendemos por "moral". São estes pilares: a no-
ção de uma razão generalizante cuja meta é o individual e o geral
(as máximas), os hábitos ou costumes e a noção de "bom senso".
Inspirado, segundo alguns, sobretudo em Aristóteles, concebe a
criação do hábito, como vimos, como uma das realidades funda-
mentais no que concerne à conduta moral.
Porém, embora configurando uma moral racional, não
chega Descartes a uma moral científica. Começa por distinguir
pensamento da ação: podemos pensar de uma maneira e agir
de outra. É na ação, porém, que residiria a dimensão moral da
conduta. Em contrapartida, podemos ser virtuosos mesmo não
possuindo um conhecimento claro e distinto, pois os juízos mo-
rais podem não ser absolutamente certos, embora devam ser
os melhores possíveis. A virtude, base de toda conduta moral,
consistiria no esforço para compreender o melhor possível e, de
acordo com isso, agir o melhor possível.
Reconhece, portanto, Descartes as dificuldades em esta-
belecer uma moral definitiva fundada na verdade e na ciência.
As decisões morais, segundo ele, estão baseadas em ideias con-
fusas, uma vez que a união da alma e do corpo foge às nossas
possibilidades de conhecimento. O conhecimento da consciên-
cia moral é obscuro, embora acredite o filósofo que seja possí-

102 © Ética II
UNIDADE 2 – Ética Moderna: Racionalismo e Empirismo

vel melhorar esse conhecimento gradualmente, estimulando o


entendimento.
Trabalharemos, a seguir, o cartesiano Spinoza, que irá to-
mar, diante das dificuldades presentes no pensamento de Des-
cartes, sobretudo no que diz respeito ao problema da consciência
moral, uma direção totalmente nova, optando por considerá-la
em sua dimensão eminentemente ética.
Veremos, com Spinoza, que, embora tudo pareça indicar
não ser possível a construção de uma moral baseada em um co-
nhecimento exato, como é o conhecimento científico, pode ser
possível pensar a consciência moral em sua dimensão ética, via
um saber rigoroso, que é o saber "compreensivo", rigoroso por-
que busca considerar todas as nuances possíveis constituintes
do objeto, trabalhado na sua "singularidade".

6. BARUCH SPINOZA (1632-1677)


Consta que Spinoza, como pessoa, era gentil, apaixonado
pelo conhecimento e pela cultura e cultivador de amizades. Sa-
be-se que foi perseguido e expulso da comunidade judaica, prin-
cipalmente por criticar o conceito judaico de Deus.
Dominava várias línguas, inclusive o português, idioma fa-
lado correntemente nas ruas de Amsterdam na época, onde ha-
via uma grande comunidade judaica de origem portuguesa.
Grande conhecedor do Velho Testamento, publicou, em
vida, duas obras: Os princípios da filosofia de Descartes, em
1663, e Tractatus Theologico-Politicus, em 1670, obra que proje-
tou Spinoza fora de seu país.

© Ética II 103
UNIDADE 2 – Ética Moderna: Racionalismo e Empirismo

A obra Ética, de Spinoza, da qual trataremos neste estudo,


foi escrita por Spinoza durante sua estadia em Rijinsburg, perto
de Leyde (cidade situada na Holanda do Sul), onde possuía mui-
tos amigos. Foi editada após a sua morte. Sobre ela, encontra-
mos o seguinte texto de uma carta de Spinoza escrita em 1665
para Guillaume de Blyenberg:
Entendo por um homem justo aquele que deseja constante-
mente que cada um possua o que lhe é devido e demonstro em
minha Ética (não ainda editada) que esse desejo nos homens
piedosos tem necessariamente sua origem no conhecimento
claro que possuem tanto de si mesmos quanto de Deus (SPINO-
ZA, 1965, prefácio, tradução nossa).

A escolha da Geometria como linguagem


O discurso de Spinoza, ao desenvolver sua concepção de
Ética, é o da Geometria. A linguagem geométrica é a linguagem
do "imaginário". O imaginário é um dado da reflexão, como
se pode dizer da Filosofia da Matemática. Foi trabalhado por
Gauss, que demonstrou sua importância na fundamentação da
Geometria.
Na linguagem do imaginário, a atenção e o interesse se
concentram não mais na diversidade do efetivamente dado, mas
na maneira segundo a qual os elementos procedem uns dos ou-
tros ou se relacionam uns com os outros. Tal linguagem não se
fecha nas limitações da representação, mas fixa-se na dedução
dos princípios que regem o encadeamento das condições orde-
nadoras do que é percebido, de maneira que os juízos e enuncia-
dos que decorrem desse processo de dedução constituem pro-
jeções, em estado puro, das relações nas quais se funda o que é
observado.

104 © Ética II
UNIDADE 2 – Ética Moderna: Racionalismo e Empirismo

Spinoza constrói seu discurso sob o modelo da Geome-


tria, mediante proposições seguidas rigorosamente das respec-
tivas demonstrações, explicações, axiomas etc. Deduz, assim
fundamentando, a existência de Deus como substância única e
singular; a beatitude como terceiro gênero de conhecimento (o
conhecimento libertador); a alma, o corpo; o segundo gênero
de conhecimento, que se dá pelas ideias comuns; o primeiro
gênero de conhecimento, constituído de ideias abstratas e da
imaginação.

Ética e razão intuitiva


Se quiséssemos sintetizar, em um único princípio, o pensa-
mento de Spinoza sobre a questão da Ética, talvez pudéssemos
fazê-lo repetindo suas próprias palavras: "O esforço para com-
preender é a primeira e única base da virtude".
O que é compreender segundo Spinoza?
Compreender é chegar ao conhecimento libertador, me-
diante uma razão intuitiva. É o que denomina de "beatitude" e
classifica como o terceiro gênero de conhecimento. Consiste es-
sencialmente em uma visão de toda existência como inseparável
da substância infinita e eterna, Deus. Em outras palavras, a bea-
titude é um perceber a si mesmo, a tudo e a todos como "parte
integrante e necessária da natureza de Deus". Essa percepção
intuitiva de que somos partes integrantes dessa substância única
e singular, que é Deus, é a compreensão de que fazemos parte da
essência de Deus e, como tal, somos uma extensão da potência
divina.

© Ética II 105
UNIDADE 2 – Ética Moderna: Racionalismo e Empirismo

Deus é uma substância singular e única


A substância, segundo Spinoza, não possui causa fora de si;
é uma causa não causada, ou seja, uma causa em si. A substância
é em si e é concebida por si, cujo conceito não é formado por
outro conceito.
Por substância compreendo aquilo que existe em si mesmo e
que por si mesmo é concebido, isto é, aquilo cujo conceito não
exige o conceito de outra coisa do qual deva ser formado (SPI-
NOZA, 2008, p. 13).

A substância, portanto, é singular a ponto de não poder


ser concebida por outra coisa que não ela mesma. Como não
pode ser produzida por outra substância, não existe nada que a
limite, sendo ela, portanto, infinita. Trata-se de uma substância
cuja essência é existir, pois, se pudesse não existir, haveria uma
divisão e seria, então, limitada por outra. Essa substância única e
absolutamente infinita é Deus ou a Natureza.
Não há, pois, "criação", mas produção imanente de uma
única substância: Deus ou a Natureza. Em outras palavras, não
existe a obra de um Deus transcendente, separado do mundo.

A beatitude ou compreensão libertadora


Essa compreensão intuitiva que é a "Beatitude" não é uma
experiência mística. O estado de beatitude é conseguido por
meio de um esforço árduo, contínuo e dedicado ao exercício de
uma captação pela razão intuitiva, por meio da qual vamos além
da percepção limitada da unidade dos sentidos e das imagens,
para nos perceber universais.
Para Spinoza, o mundo de Deus ou da Natureza é essen-
cialmente um mundo de rigor matemático. Vejamos, na quinta

106 © Ética II
UNIDADE 2 – Ética Moderna: Racionalismo e Empirismo

parte da Ética, o discurso de Spinoza sobre a beatitude, inspirado


nos princípios do discurso da Geometria.
Proposição 42. A beatitude não é o prêmio da virtude, mas a
própria virtude; e não a desfrutamos porque refreamos os ape-
tites lúbricos, mas, em vez disso, podemos refrear os apetites
lúbricos porque a desfrutamos.
Demonstração. A beatitude consiste no amor para com Deus
(pela prop. 36, juntamente com seu esc.), o qual provém, cer-
tamente, do terceiro gênero de conhecimento (pelo corol. da
prop. 32). Por isso, esse amor (pelas prop. 56 e 3 da p. 3) deve
estar referido à mente, à medida que esta age, e, portanto (pela
def. 8 da p. 4), ele é a própria virtude. Era este o primeiro pon-
to. Por outro lado, quanto mais a mente desfruta desse amor
divino ou dessa beatitude, tanto mais compreende (pela prop.
32), isto é (pelo corol. da prop. 3), tanto maior é o seu poder de
refrear os afetos e (pela prop. 38) tanto menos ela padece dos
afetos que são maus. Assim, porque a mente desfruta desse
amor divino ou dessa beatitude, ela tem o poder de refrear os
apetites lúbricos. E como a potência humana para refrear os
afetos consiste exclusivamente no intelecto, ninguém desfruta,
pois, dessa beatitude porque refreou os afetos, mas, em vez
disso, o poder de refrear os apetites lúbricos é que provém da
beatitude. C. Q. D.
Escólio. [...] Torna-se, com isso, evidente o quanto vale o sábio e
o quanto ele é superior ao ignorante, que se deixa levar apenas
pelo apetite lúbrico. Pois o ignorante, além de ser agitado, de
muitas maneiras, pelas causas exteriores, e de nunca gozar da
verdadeira satisfação de ânimo, vive, ainda, quase inconsciente
de si mesmo, de Deus e das coisas, e tão logo deixa de padecer,
deixa também de ser. Por outro lado, o sábio, enquanto con-
siderado como tal, dificilmente tem o ânimo perturbado. Em
vez disso, consciente de si mesmo, de Deus e das coisas, em
virtude de uma certa necessidade eterna, nunca deixa de ser,
mas desfruta, sempre, da verdadeira satisfação do ânimo. Se
o caminho, conforme já demonstrei, que conduz a isso parece
muito árduo, ele pode, entretanto, ser encontrado. E deve ser

© Ética II 107
UNIDADE 2 – Ética Moderna: Racionalismo e Empirismo

certamente árduo aquilo que tão raramente se encontra. Pois


se a salvação estivesse à disposição e pudesse ser encontrada
sem maior esforço, como explicar que ela seja negligenciada
por quase todos? Mas tudo o que é precioso é tão difícil como
raro (SPINOZA, 2008, p. 411).

Escólio: anotação em geral breve, com a finalidade de explicar,


esclarecer.

Essa busca das diferentes direções do tema considerado


(no caso, a beatitude) consiste essencialmente em um processo
rigoroso de produção de novas possibilidades. Ao exercer esse
terceiro gênero de conhecimento, o homem constitui-se a si
mesmo a partir de forças que vêm de dentro do próprio movi-
mento de todas as coisas existentes, à maneira de Deus ou da
Natureza e só nessa condição é livre.

A alma e o corpo
Continuando seu discurso dedutivo, diz Spinoza: não so-
frendo o conceito de "substância", em princípio, nenhuma limi-
tação, compreende uma infinidade de atributos, dos quais cada
um, não podendo ser limitado senão por ele mesmo, é infinito
em seu gênero. O atributo "é aquilo que, da substância, o intelec-
to percebe como constituindo a sua essência" (SPINOZA, 2008,
p. 23). O entendimento percebe, assim, a substância como ela é
na realidade (Ética, Primeira Parte, Proposição 10, Demonstra-
ção). Desses atributos, nosso entendimento, segundo Spinoza,
só pode conhecer o "pensamento" e a "extensão".
Em contrapartida, da mesma maneira que as propriedades
do triângulo decorrem geometricamente de sua essência, dos

108 © Ética II
UNIDADE 2 – Ética Moderna: Racionalismo e Empirismo

atributos da substância divina decorre uma infinidade de "mo-


dos", que são, segundo Spinoza, modificações ou afecções da
substância que se apresentam no real.
Por modo compreendo as afecções de uma substância, ou seja,
aquilo que existe em outra coisa, por meio da qual é também
concebido (SPINOZA, 2008, p. 13).

Essas modificações da substância ou "modos" são classifi-


cadas por Spinoza em cinco categorias:
1) Os modos infinitos imediatos do pensamento que é
todo o entendimento absolutamente infinito (o pró-
prio intelecto de Deus).
2) Os modos infinitos da extensão: que são as leis univer-
sais imutáveis.
3) Os modos infinitos mediatos que são a essência do
mundo físico.
4) Os modos finitos do pensamento que são as ideias,
mentes, almas.
5) Os modos finitos da extensão que são todo o universo
material: corpos, movimento, repouso.
A alma humana e o corpo humano são, pois, dois "modos" de
Deus, dois efeitos da substância única e infinita que é Deus. A alma
se refere ao atributo pensamento, o corpo ao atributo extensão.
Não podemos formar a ideia da alma humana senão nos referindo
ao atributo do pensamento, e a ideia do corpo humano senão nos
referindo ao atributo da extensão. Por isso, embora substanciais
(porque se referem a atributos da substância), alma e corpo não
são duas substâncias distintas (contrariando aqui Descartes).

© Ética II 109
UNIDADE 2 – Ética Moderna: Racionalismo e Empirismo

A união da alma e do corpo


A união da alma e do corpo não consistiria nem em uma
mistura, nem em uma ação recíproca de um sobre o outro. Di-
ferentemente do que afirma Descartes, Spinoza nega que possa
haver alguma forma de controle da mente sobre o corpo. Mente e
corpo não podem ser concebidos e nem existem um sem o outro
(Ética, Parte 3, Proposição 2, Escólio). Isso porque um é a manifes-
tação mesma do outro: nada afeta o corpo que a mente não capte.
Ainda que a natureza das coisas não permita duvidar sobre esta
questão, creio, entretanto, que a menos que se dê desta verdade
uma confirmação experimental, os homens dificilmente serão leva-
dos a examinar esse ponto com um espírito de isenção; de tal ma-
neira estão persuadidos que o Corpo ora se mexe, ora cessa de se
mover por um simples comando da Alma, e que realiza um grande
número de atos que dependem unicamente da vontade da alma e
de sua arte de pensar. Ninguém, é verdade, determinou até o pre-
sente momento o que pode o Corpo, isto é, a experiência não en-
sinou a ninguém até o momento o que, unicamente pelas leis da
Natureza, considerada enquanto corporal, o Corpo pode fazer e o
que não pode fazer a não ser determinado pela Alma. Ninguém de
fato conhece tão exatamente a estrutura do Corpo que fosse capaz
de explicar todas as suas funções, para não falar do que se observa
inúmeras vezes nos animais que ultrapassa de muito a sagacidade
humana, e do que fazem frequentemente os sonâmbulos durante o
sono que não ousariam fazer quando acordados e isso mostra sufi-
cientemente que o Corpo pode, só pelas leis de sua natureza, fazer
muitas coisas que causam surpresa à sua Alma. Ninguém sabe, por
outro lado, em qual condição ou por quais meios a Alma move o
Corpo, nem quantos graus de movimento ela pode lhe impor e com
qual rapidez ela pode movê-lo. De onde se conclui que, quando os
homens dizem que tal ou tal ação do Corpo vem da Alma, a qual tem
um domínio sobre o Corpo, não sabem o que dizem e não fazem
mais do que confessar em uma linguagem especial sua ignorância
da verdadeira causa de uma ação que não provoca neles espanto
(SPINOZA in ROUX-LANIER, 1995, p. 137-138, tradução nossa).

110 © Ética II
UNIDADE 2 – Ética Moderna: Racionalismo e Empirismo

É preciso, para compreender a união da alma e do corpo, con-


siderar a unicidade da potência divina, exprimindo-se por meio de
cada um de seus atributos. A potência divina implica, de um lado,
uma perfeita identidade entre a ordem e a conexão das coisas e, de
outro, a ordem e a conexão das ideias. A alma não é assim mais do
que a ideia do corpo, o corpo nada mais é do que o objeto da alma:
é o que se chama "paralelismo" da alma e do corpo.
Enquanto ideia do corpo existindo no tempo e no espaço, a
alma é, pela sua existência, uma parte perecível do entendimen-
to de Deus; enquanto ideia da essência eterna desse corpo, ela é,
por sua essência, uma parte eterna do entendimento de Deus. A
parte perecível da alma é constituída por sua imaginação e per-
cepção do que sofre o corpo humano em seus encontros com
outros corpos humanos. A parte eterna da alma é constituída
pelo seu entendimento, lugar do conhecimento verdadeiro.
No que concerne ao corpo, segundo Spinoza, ele se indivi-
dualizaria não em função de uma substância particular, mas por
meio do tempo e da mudança, devido ao movimento e ao repou-
so, à velocidade e à lentidão. Em outras palavras, como identida-
de individual, o corpo resultaria de um processo de manutenção
de suas partes em uma determinada proporção de movimento e
repouso, proporção essa que o corpo humano conseguiria man-
ter ao passar por uma série de modificações (afecções e afetos)
impostas pelo movimento e repouso de outros corpos.
Na parte sobre a natureza e a origem da alma de sua obra
Ética, Spinoza apresenta os seguintes postulados sobre o corpo:
I. O Corpo humano é composto de um grande número de in-
divíduos (de natureza diversa) e cada indivíduo é também
composto.

© Ética II 111
UNIDADE 2 – Ética Moderna: Racionalismo e Empirismo

II. Dos indivíduos dos quais o Corpo humano é composto alguns


são fluidos, alguns são moles, alguns, enfim, são duros.
III. Os indivíduos que compõem o Corpo humano são afetados,
e consequentemente o Corpo humano é ele próprio afetado, de
inúmeras maneiras diferentes advindas de corpos exteriores.
IV. O Corpo humano tem necessidade, para se conservar, de um
grande número de outros corpos, por meio dos quais ele é con-
tinuamente conservado.
V. Quando uma parte fluida do Corpo humano é afetada por um
corpo exterior de maneira a tocar frequentemente uma parte
mole, ela muda a superfície desta e imprime nela, por assim
dizer, certos vestígios do corpo exterior que a afeta.
VI. O Corpo humano pode mover de várias maneiras e dispor os
corpos exteriores de inúmeras formas (SPINOZA, 1965, p. 91,
tradução nossa).

Uma ética da alegria


Alegria e tristeza são afecções ou afetos. A alegria é o afe-
to que aumenta a capacidade do corpo de manter a sua potên-
cia de agir e pensar e, quando associada a uma causa exterior,
transforma-se em "amor". A tristeza, ao contrário, é sempre des-
trutiva e, quando associada a uma causa exterior, transforma-se
em "ódio". Por essa razão, a ética de Spinoza é denominada de
"ética da alegria".
Os indivíduos se esforçam para ter alegria, buscando man-
ter sua existência tanto quanto possível. Esse esforço é denomi-
nado, por Spinoza, de "desejo" ou conatus (palavra do latim que
significa esforço ou determinação para sobreviver).

112 © Ética II
UNIDADE 2 – Ética Moderna: Racionalismo e Empirismo

O segundo gênero de conhecimento: as noções comuns ou


ideias adequadas
Dentro desse contexto de pensamento sobre Deus, a alma
e o corpo, Spinoza classifica como segundo gênero de conheci-
mento as noções comuns ou ideias adequadas. Aqui se inicia o
exercício da razão enquanto conhecimento do que está fora de
nós, daquilo que existe.
Dessa maneira, devemos compreender nossos afetos e os
dos demais seres humanos por meio de noções comuns, obtidas
pela razão. Para tanto, faz-se necessário, de acordo com Spinoza,
viver em um meio humano buscando o útil em comum.
Nada mais útil ao homem do que o homem; os homens, digo,
não podem desejar nada de maior valor para a conservação de
seu ser do que concordarem todos sobre todas as coisas de ma-
neira que as Almas e os Corpos de todos componham uma só
Alma e um só Corpo, nada de maior valor do que se esforçarem
todos em conjunto para conservar seu ser e procurar tudo o
que lhes é útil em comum; do que se conclui que os homens
que são governados pela Razão, isto é, aqueles que procuram
o que lhes é útil conduzindo-se pela Razão, não desejam para
eles mesmos nada que não desejem também para os outros
homens, e são justos, de boa fé e honestos.
Tais são os comandos da Razão que tinha me proposto dar a
conhecer aqui, em poucas palavras, antes de começar a de-
monstrá-los em ordem, de maneira mais prolixa, e o meu moti-
vo para fazê-lo foi o de chamar, se possível, a atenção daqueles
que creem que este princípio: cada um deve procurar o que lhe
é útil, é a origem da imoralidade, não da virtude e da morali-
dade. Depois de ter mostrado brevemente que é exatamente
o contrário, continuo demonstrando-o com os mesmos argu-
mentos apresentados até aqui em nosso caminhar (SPINOZA in
ROUX-LANIER, 1995, p. 259, tradução nossa).

© Ética II 113
UNIDADE 2 – Ética Moderna: Racionalismo e Empirismo

Spinoza, em seu Tratado Político, dá como exemplo desse


segundo gênero de conhecimento pelas ideias comuns, conquis-
tadas pela razão, o "poder" da "cidade". O poder da "cidade"
vem do fato de que nela os homens têm desejos comuns e ela só
conserva esse poder na medida em que consegue unir os dese-
jos dos homens. A dimensão social da cidade oferece às paixões
individuais um lugar de coexistência, em que os homens podem
evitar os efeitos negativos da tristeza e do ódio.
Como no estado natural cada um é seu próprio mestre, en-
quanto não sofrer a opressão de outro, e no qual sozinho se
esforça para se proteger de todos, enquanto o direito natural
humano for determinado pelo poder de cada um, este direito
na realidade será inexistente, ou pelo menos não terá senão
uma existência puramente teórica, pois não se tem nenhum
meio seguro de conservá-lo. É certo também que cada um tem
menos poder e consequentemente menos direito na medida
em que tiver mais razões de temer. Acrescentemos que sem
auxílio mútuo os homens não podem manter sua vida e cultivar
sua alma. Chegamos, pois, a esta conclusão: o direito natural,
no que concerne propriamente ao gênero humano, dificilmente
pode ser concebido a não ser quando os homens têm direitos
comuns, terras que podem habitar e cultivar juntos, quando po-
dem velar pela manutenção de seu poder, proteger-se, repelir
toda violência e viver de acordo com uma vontade comum a
todos. Quanto maior for o número dos que assim se reunirem,
mais direito terão em comum (SPINOZA in ROUX-LANIER, 1995,
p. 260, tradução nossa).

E, um pouco mais adiante naquela mesma obra:


Conhece-se facilmente qual é a condição de qualquer Estado
considerando o fim em vista do qual um estado civil é fundado;
esse fim não é outro senão a paz e a segurança da vida. Conse-
quentemente, o melhor governo é aquele sob o qual os homens
passam sua vida na concórdia e cujas leis são observadas sem
violação. É certo, de fato, que as revoltas, as guerras e o despre-
zo ou transgressões das leis são imputáveis não tanto à malícia

114 © Ética II
UNIDADE 2 – Ética Moderna: Racionalismo e Empirismo

das pessoas, mas a um vício do regime instituído. Os homens, de


fato, não nascem cidadãos, mas tornam-se. As afecções naturais
que se encontram são, além disso, as mesmas em todo país; se,
pois, uma malícia maior reina em uma cidade e se ali se cometem
pecados em maior número do que em outras, isso provém do
fato de ela não ter obtido concórdia suficiente, de suas institui-
ções não serem suficientemente prudentes e de não ter, conse-
quentemente, estabelecido em absoluto um direito civil. [...]
Se em uma cidade as pessoas tomam armas porque estão sob o
império do terror, deve-se dizer não que ali a paz não reina, mas
que ali a guerra não reina. A paz, efetivamente, não é a ausên-
cia de guerra, é uma virtude que tem sua origem na força, pois a
obediência é uma vontade constante da alma de fazer o que, de
acordo com o direito comum da Cidade, deve ser feito. Uma ci-
dade é preciso ainda dizer, onde a paz é um efeito da inércia de
sujeitos conduzidos como um rebanho e educados unicamente
para servir, merece o nome de deserto em vez de cidade.
Quando dizemos que o melhor Estado é aquele em que os ho-
mens vivem na concórdia, entendo que eles vivem uma vida
propriamente humana, uma vida que não se define pela circu-
lação do sangue e pela realização das outras funções comuns a
todos os outros animais, mas que se define principalmente pela
razão, pela virtude da alma e pela vida verdadeira (SPINOZA in
ROUX-LANIER, 1995, p. 261, tradução nossa).

Segundo Spinoza, quanto mais a alma conhece à maneira


do terceiro gênero de conhecimento (beatitude) e desse segun-
do gênero de conhecimento (noções comuns e adequadas), mais
ela segue unicamente a necessidade de sua natureza.

O primeiro gênero de conhecimento: as ideias gerais e a ima-


ginação não nos permitem chegar ao conhecimento libertador
Os homens, observa o filósofo, partem das percepções
sensíveis e, incapazes de considerá-las isoladamente por não en-

© Ética II 115
UNIDADE 2 – Ética Moderna: Racionalismo e Empirismo

tenderem que as coisas se produzem de si mesmas (imanência


divina), formam "ideias gerais" daquilo que se repete frequen-
temente. Baseados na mesma ignorância da natureza divina,
os homens exercem a imaginação, que consiste em estabelecer
uma distância entre o "ser" e o "dever ser", desconhecendo que
não há nenhum "dever ser" que possa ser aplicado ao plano do
ser, pois esse é o plano, repetimos, da imanência divina.
Constituem ambas, as ideias gerais e a imaginação, o que
Spinoza denomina de conhecimento inadequado. Uma das con-
sequências desse conhecimento inadequado seriam as paixões.
Ao entendermos "inadequadamente" nossas afecções ou afetos,
estes se transformam em paixões. A paixão é "desapropriação
de si", ou seja, alienação. Isso acontece, segundo Spinoza, por
não compreendermos o "desejo" como sendo o efeito em nós do
poder eterno e infinito de Deus, acreditando tratar-se de uma ca-
rência. Daí a absorção do espírito na busca do prazer, da riqueza
e da honra para suprir essa carência enganosa.
As ocorrências mais frequentes na vida, aquelas que os homens,
como transparecem em todas as suas obras, tomam como sen-
do o soberano bem, se referem de fato a três objetos: riqueza,
honra, prazer dos sentidos. Ora, cada um destes distrai o espírito
de todo pensamento relativo a um outro bem; no prazer a alma
é suspensa como se ela tivesse encontrado um bem no qual pu-
desse descansar; ela se encontra no mais alto ponto impedida
de pensar em um outro bem: após o prazer, por outro lado, vem
uma extrema tristeza que, se não suspende o pensamento, o per-
turba e o enfraquece. A busca da honra e da riqueza não absor-
ve menos o espírito: a da riqueza, sobretudo quando é buscada
por si mesma, pois que lhe é dado um grau de soberano bem;
quanto à honra, absorve o espírito de uma maneira ainda bem
mais exclusiva, porque nunca se deixa de considerá-la uma coisa
boa em si mesma, e como um fim último em direção ao qual vão
todas as ações. Além disso, a honra e a riqueza não são seguidas
de arrependimento como o prazer; ao contrário, quanto mais se

116 © Ética II
UNIDADE 2 – Ética Moderna: Racionalismo e Empirismo

possui seja uma seja outra, mais a satisfação que se experimenta


é maior, daí a consequência de se sentir cada vez mais levado
a aumentá-las; mas, se em alguma ocasião nos enganamos em
nossa esperança, então surge uma tristeza extrema. A honra, en-
fim, é ainda um grande impedimento pelo fato de que para atin-
gi-la é necessário dirigir a própria vida de acordo com a maneira
de ver dos homens, isto é, fugir do que comumente eles fogem
e buscar o que eles buscam. A servidão passional nasce, assim,
da ignorância e a alimenta, dividindo o mundo em coisas boas
e coisas más, acreditando saber quais nos convêm e quais não
nos convêm. Trata-se de um pseudoconhecimento das "causas
finais", o que leva à superstição religiosa com a ideia de um Deus
arbitrário distribuindo intencionalmente o bem e o mal, em fun-
ção do culto que lhe rendemos (SPINOZA in ROUX-LANIER, 1995,
p. 251, tradução nossa).

Consequências do conhecimento inadequado

O preconceito natural ou crença nas causas finais é o princípio


de todos os nossos erros, diz Spinoza
Se tudo o que existe é emanação de uma substância única e
ilimitada, Deus como causa imanente da natureza, identificando-
-se, nesse sentido, com ela, estando totalmente nela presente,
não depende a natureza da afirmação ou negação de nenhuma
vontade outra, de nenhum princípio transcendente para ser o
que ela é (sua substancialidade).
Não há, pois, "vontade" entendida como o poder de afir-
mar ou negar o que é verdadeiro ou o que é falso, assim como
não há "finalidade" ou "causas finais", uma vez que não há uma
essência imóvel e transcendente em vista da qual foram as coisas
criadas.

© Ética II 117
UNIDADE 2 – Ética Moderna: Racionalismo e Empirismo

É suficiente no momento colocar em princípio o que todos de-


vem reconhecer: que todos os homens nascem sem nenhum
conhecimento das causas das coisas, e que todos são levados a
buscar o que lhes é útil e do qual têm consciência. Daí se segue
que: 1° os homens se imaginam livres, porque têm consciência
de seus desejos e do que lhes apetece e não pensam, nem em
sonho, sobre as causas que os levam a desejar e a querer, não
tendo sobre isso nenhum conhecimento. Daí se segue: 2° que
os homens agem sempre em vista de um fim, saber o útil que
os apetece. Disso resulta que se esforçam sempre unicamente
no sentido de conhecer as causas finais das coisas realizadas
e descansam quando são informados sobre elas, não existindo
para eles mais nenhuma razão de se inquietar. [...] Como, por
outro lado, encontram em si mesmos e fora de si mesmos um
grande número de meios que contribuem grandemente para
atingir o útil, assim, por exemplo, os olhos para ver, os dentes
para mastigar, as ervas e os animais para a alimentação, o sol
para clarear, o mar para alimentar os peixes, passam a conside-
rar todas essas coisas como sendo meios para seu uso. Sabendo
ter encontrado esses meios, mas não os tendo procurado, con-
cluem que alguém os providenciou para o seu uso. Não podem,
de fato, após considerar as coisas como meios, acreditar que
elas se produzem de si mesmas, mas, tirando sua conclusão dos
meios que costumam utilizar, se persuadem de que existem um
ou mais condutores da natureza, dotados da liberdade huma-
na, que suprem a todos as suas necessidades, fazendo tudo
para sua utilização (SPINOZA in ROUX-LANIER, 1995, p. 255, tra-
dução nossa).

Ao ignorar, assim, as razões ou causas das coisas, passa-


mos a ter do mundo uma visão fundada em milagres: crença em
deuses que conduzem a natureza para satisfazer nossos desejos;
crença de que as coisas naturais foram criadas tendo em vista o
homem. Como a experiência não valida tais crenças, os homens
são levados às superstições, buscando adivinhos para interpretar
os fenômenos.

118 © Ética II
UNIDADE 2 – Ética Moderna: Racionalismo e Empirismo

Por sua vez, essa servidão a causas finais


[...] favorece as "paixões tristes", o ódio da vida, a amargura com
relação a tudo o que é. [...] levando os homens a confrontar o
real com um ideal ilusório, proíbe amar o que é e conhecê-lo na
alegria. Acreditando na realidade do mal, lastimam sua sorte,
pensam que a perfeição não é deste mundo e que a verdadeira
vida está em outro lugar. Essa extensão da tristeza multiplica
as ocasiões de ódio entre os homens, os ódios os mais terríveis
como os que inspiram as diferentes superstições religiosas (SPI-
NOZA in ROUX-LANIER, 1995, p. 251, tradução nossa).

Não há livre arbítrio ou liberdade nas coisas e nos homens. Só


Deus é livre
Outra consequência do conhecimento inadequado seria a
crença no livre arbítrio. Vejamos o que diz Spinoza:
Chamo livre, no que me concerne, algo que é e age unicamente
segundo a necessidade da natureza: coagido é aquele que é deter-
minado por outro a existir e a agir de certa maneira determinada.
Deus, por exemplo, existe livremente, ainda que necessariamente,
porque existe unicamente em função da necessidade de sua na-
tureza. Também Deus conhece a si mesmo e todas as coisas livre-
mente, porque decorre de sua própria natureza de Deus conhecer
todas as coisas. Veja bem, não concebo a liberdade consistindo em
um livre decreto, mas em uma necessidade livre.
Mas, desçamos às coisas criadas que são todas determinadas a
existir e a agir de certa maneira definida. Para tornar isso claro e
inteligível, concebamos algo muito simples: uma pedra, por exem-
plo, recebe certa quantidade de movimento de uma causa exterior
que a move e, cessando o impulso da causa exterior, ela continuará
a se mover necessariamente. Essa persistência da pedra em seu
movimento é uma coerção, não por necessidade, mas se define
como um impulso de uma causa exterior. E o que é verdadeiro com
relação à pedra deve sê-lo no que se refere a toda coisa singular,
qualquer que seja a complexidade que se queira lhe atribuir, não

© Ética II 119
UNIDADE 2 – Ética Moderna: Racionalismo e Empirismo

importando quão numerosas forem suas aptidões, porque toda


coisa singular é necessariamente determinada a existir e a agir de
certa maneira determinada por uma causa exterior.
Concebamos agora que a pedra, enquanto continua a se mover,
pensa e sabe que ela faz esforço, tanto quanto pode, para se mover.
Essa pedra seguramente, pois que ela tem somente consciência de
seu esforço e que ela não é de maneira alguma indiferente, acredita-
rá que é muito livre e que não persevera em seu movimento porque
não quer. Tal é essa liberdade humana de que todos se vangloriam
de possuir e que consiste unicamente no fato de que os homens têm
consciência de seus apetites e ignoram as causas que os determi-
nam (SPINOZA in ROUX-LANIER, 1995, p. 261, tradução nossa).

Segundo Spinoza, tanto a decisão da mente quanto o ape-


tite e a determinação do corpo são uma só e mesma coisa: "as
decisões da mente nada mais são do que os próprios apetites"
(Ética, Parte 3, Proposição 2, Escólio).
Um homem embriagado também acredita que é pela livre de-
cisão de sua mente que fala aquilo sobre o qual, mais tarde, já
sóbrio, preferiria ter-se calado. Igualmente, o homem que diz
loucuras, a mulher que fala demais, a criança e muitos outros
do mesmo gênero acreditam que assim se expressam por uma
livre decisão da mente, quando, na verdade, não são capazes
de conter o impulso que os leva a falar. Assim, a própria ex-
periência ensina, não menos claramente que a razão, que os
homens se julgam livres apenas porque são conscientes de suas
ações, mas desconhecem as causas pelas quais são determina-
dos. Ensina também que as decisões da mente nada mais são
do que os próprios apetites: elas variam, portanto, de acordo
com a variável disposição do corpo. Assim, cada um regula tudo
de acordo com o seu próprio afeto e, além disso, aqueles que
são afligidos por afetos opostos não sabem o que querem, en-
quanto aqueles que não têm nenhum afeto são, pelo menor
impulso, arrastados de um lado para outro. Sem dúvida, tudo
isso mostra claramente que tanto a decisão da mente, quanto
o apetite e a determinação do corpo são, por natureza, coisas

120 © Ética II
UNIDADE 2 – Ética Moderna: Racionalismo e Empirismo

simultâneas, ou melhor, são uma só e mesma coisa, que cha-


mamos decisão quando considerada sob o atributo do pen-
samento e explicada por si mesma, e determinação, quando
considerada sob o atributo da extensão e deduzida das leis do
movimento e do repouso [...] (SPINOZA, 2008, p. 171).

Considerações finais
A obra de Spinoza se destaca das demais obras do século
17 em que viveu. É considerada uma admirável sistematização
do saber, o que é característico da Modernidade.
Da obra de Spinoza, diz o professor Marcos André Gleizer:
A filosofia de Baruch Espinosa (1632-1677) é uma das mais extraor-
dinárias produções do espírito humano. Sua obra principal, a "Ética
Demonstrada à Maneira dos Geômetras", ocupa uma posição ímpar
na história da filosofia. Sua forma dedutiva constitui a exemplifica-
ção mais perfeita do ideal de sistematização do saber, característico
da modernidade. Seu conteúdo, encadeado rigorosamente ao longo
das cinco partes que a compõem, constrói um espaço teórico inova-
dor que rompe radicalmente com o universo conceitual da tradição
metafísico-moral judaico-cristã. Partindo do conhecimento de Deus
e de sua relação imanente com a natureza, a "Ética" pretende "con-
duzir-nos, como que pela mão, ao conhecimento da alma humana e
de sua beatitude suprema" (GLEIZER, 2004).

Em contrapartida, como observam alguns estudiosos de


sua obra, Spinoza contraria princípios fundamentais que rege-
ram o pensamento moderno, como sua opção por temáticas re-
ferentes, hoje, às áreas da Antropologia, Psicologia, Sociologia,
Pedagogia e Política, em detrimento dos domínios pertencentes
à Física, à Metafísica e à Lógica.
Depois de sua morte, Spinoza foi, como observam seus bió-
grafos, um dos filósofos mais comentados e pouco lidos. Para mui-
tos, como John Locke (cujo pensamento será objeto da presente

© Ética II 121
UNIDADE 2 – Ética Moderna: Racionalismo e Empirismo

unidade) e David Hume (que estudaremos na Unidade 3 desta


obra), as ideias ateias de Spinoza eram tolas. O filósofo Immanuel
Kant (objeto de nosso estudo também na Unidade 3) o ignorou.
Foi apenas após Goethe (1749-1832, pensador e escritor
alemão), seu admirador, que suas obras passaram a ser lidas com
o devido cuidado.
Spinoza teve grande influência sobre o chamado Idealismo
Alemão, também denominado de Idealismo Absoluto, que é um
movimento de pensamento do século 18, segundo o qual o mundo
se identifica com o pensamento objetivo e não com o fluxo da ex-
periência, ou com o fenômeno de pensamento de cada indivíduo.
A influência de Spinoza se fez no sentido de dar a esse movimento
a direção de um monismo imanentista. Monismo imanentista por-
que, como vimos, concebe Deus e a natureza como sendo a mesma
realidade (monismo), um todo imanente e não transcendente: tudo
que existe, existe em Deus, é parte essencial de Deus. O mundo é
uma expressão necessária e absoluta de Deus (imanentismo).
A influência de Spinoza, não só sobre filósofos, mas igual-
mente sobre artistas e poetas, se estende até os dias de hoje.
Recentemente foi lançado o livro de Roberto Leon Ponczek (pro-
fessor da UFBA) intitulado Deus ou seja a natureza – Spinoza e
os novos paradigmas da física (2009), em que, entre outros as-
suntos, é descrita a grande influência de Spinoza sobre Albert
Einstein. Na contracapa desse livro, lê-se:
Certa vez, quando lhe perguntaram se acreditava em Deus,
Einstein teria respondido: "Sim, o Deus no qual eu acredito é
o Deus de Spinoza". De fato, Einstein entendeu como ninguém
que o Deus ou seja a Natureza de Spinoza, se reflete do mais
ínfimo spin eletrônico às mais extensas galáxias do universo.
Para Einstein, a ciência não poderia ser apenas uma útil conta
de chegada às aplicações tecnológicas, mas deveria ter uma di-

122 © Ética II
UNIDADE 2 – Ética Moderna: Racionalismo e Empirismo

mensão quase religiosa. Para ambos, Deus é a Natureza inteli-


gente e autoconsciente sempre muito mais ampla do que qual-
quer coisa que possa ser dita ou descrita por números. Deus é o
jardim que não carece de jardineiro, pois se faz por Si próprio. O
ser humano é tão somente um pequenino arbusto de limitada
existência plantado neste Jardim infinito que a ele se desvela
com mistério e espanto (PONCZEK, 2009, contracapa).

Sugestão de leitura!
PONCZEK, R. L. Deus ou seja a natureza: Spinoza e os novos
paradigmas da física. Salvador: EDUFBA, 2009. Disponível em:
<https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ufba/207/1/Deus%20
ou%20seja%20a%20natureza.pdf>. Acesso em: 21 ago. 2015.

No que se refere à orientação básica dada a esta obra, segun-


do a qual o ético distingue-se essencialmente do moral, a Ética de
Spinoza exemplifica admiravelmente, em muitos aspectos, o que se
espera de um discurso que se situe na instância do "singular" e que
seria eminentemente o discurso ético, distinguindo-o radicalmente
do moral. De fato, Spinoza se ocupa fundamentalmente do ético.
Diríamos que, quanto à moral, a saber "regras" e "dever normativo"
com base em ideias gerais e no "dever ser" imaginativo, o filósofo
entende que só imperarão, na medida em que essa razão intuitiva
(fundante, a nosso ver, da instância ética) ainda não dominar.
Embora os limites da presente obra não nos permita de-
senvolver suficientemente o que seria esse pensamento do "sin-
gular", solo, a nosso ver, do fenômeno ético, uma vez que para
isso seria necessário recorrer ao pensamento contemporâneo,
não objeto deste nosso trabalho, faremos aqui apenas a seguin-
te observação: encontramos, na filosofia de Spinoza, várias ca-
racterísticas básicas de um pensamento do "singular", tais como
uma visão à luz do "imaginário" (discurso da Geometria) e o fato

© Ética II 123
UNIDADE 2 – Ética Moderna: Racionalismo e Empirismo

de ser um discurso interessado em um pensamento objetivo das


"possibilidades" de um objeto, ação ou situação, e que, no caso
de Spinoza, tratou-se de uma substância única e singular (Deus);
uma concepção do "entendimento" como "compreensão", isto
é, como captação da unidade, a partir de seu próprio sentido ou
direção, considerando o não expresso ou subentendido, em vez
de julgá-lo de fora e, finalmente, uma concepção da razão como
intuitiva.

7. Thomas Hobbes (1588-1679)


O empirista Hobbes não apela para modelos a priori a se-
rem imitados, não invoca entidades metafísicas. Sua concepção
de moral não tem por base um transcendente, ou seja, um Deus
ou uma concepção metafísica do ser, mas está fundamentada no
que se poderia definir como a virtude da prudência, conquista-
da pela experiência ao longo dos tempos pelos seres humanos.
Prudência que leva a humanidade a passar do Direito Natural, ou
seja, da liberdade que cada ser humano tem de usar o próprio
poder para a conservação da vida, para a instituição do chama-
do Direito Positivo ou Contrato Social. Hobbes é considerado um
dos fundadores da teoria moderna do Estado, que é a da passa-
gem do Estado de Natureza ao Estado Civil, do Estado Apolítico
ao Estado Político.
Ao contrário da tradição aristotélica e tomista que situa
o fundamento da Ética e da Filosofia Política na Cosmologia e
na Teologia, Hobbes procura esse fundamento na Antropologia.
Nossa felicidade não estaria na satisfação de um Soberano Bem,
mas na satisfação contínua do próprio desejo.

124 © Ética II
UNIDADE 2 – Ética Moderna: Racionalismo e Empirismo

Por costumes não entendo aqui boas maneiras, por exemplo,


a maneira como devemos saudar uns aos outros, lavar a boca
e escovar os dentes perto dos outros, e todas as outras regras
do "saber viver", mas as qualidades dos homens que interes-
sam a uma coabitação pacífica e a reunião dos mesmos. Nessa
perspectiva é preciso considerar que a felicidade nesta vida não
consiste no repouso de um espírito satisfeito. Pois não exis-
tem, na realidade, nem "finis últimus" (ou meta final) nem este
"summum bonum" (ou bem supremo) de que falam as obras
dos antigos moralistas. Aquele cujos desejos atingiram seu fim
não viverá mais do que aquele no qual cessaram toda sensação
e toda imaginação. A felicidade é uma marcha contínua diante
do desejo, de um objeto a outro, sendo a satisfação do primeiro
o caminho que leva ao segundo. A razão disso é que o desejo do
homem não é o de usufruir uma única vez e durante um só ins-
tante, mas o de assegurar o caminho de seu desejo futuro. Da
mesma maneira as ações voluntárias e as inclinações de todos
os homens não buscam somente uma vida de satisfação, mas
também garanti-la. Diferem somente no caminho que tomam:
as que decorrem da diversidade das paixões nos diferentes in-
divíduos e as que decorrem da diferença no que diz respeito
ao conhecimento ou opinião que cada um tem das causas que
produzem o efeito desejado.
Assim, coloco no primeiro plano, a título de inclinação geral de
toda a humanidade, um desejo perpétuo e sem trégua de ad-
quirir poder e mais poder, desejo que não cessa senão com a
morte. A causa nem sempre é a de se esperar um prazer mais
intenso do que aquele que já se obteve, ou de não se conten-
tar com um poder moderado: mas a causa é que não se pode
tornar seguro, a não ser adquirindo mais, o poder ou os meios
dos quais dependem o bem-estar que se possui no presente
(HOBBES, 1983, p. 95-96, tradução nossa).

Essa satisfação contínua dos próprios desejos leva os ho-


mens, em seu estado natural, a viver em guerra uns com os ou-
tros. Vivem em constante angústia com o temor da morte vio-
lenta pelos outros. Guerreiam entre si porque a natureza os fez

© Ética II 125
UNIDADE 2 – Ética Moderna: Racionalismo e Empirismo

iguais e essa igualdade os leva a entender que cada um pode ter


o que o outro possui. As diferenças naturais entre os homens são
insignificantes e, portanto, insuficientes para levar o mais fraco a
pensar em poder derrotar o mais forte.
No capítulo XIII de sua obra Leviatã, Hobbes diz:
A natureza fez os homens tão iguais nas faculdades de corpo e
mente a ponto que, embora possa se encontrar algumas vezes
um homem de corpo manifestamente mais forte, ou de mente
mais rápida que outro, quando se leva em conta todo o conjun-
to, a diferença entre um homem e outro não é tão considerável
a ponto de que um deles possa, com base nela, reclamar para
si algum benefício ao qual o outro não possa pretender tanto
quanto ele (HOBBES, 1996, p. 86-87, tradução nossa).

A boa ação, segundo Hobbes, não é julgada pela boa intenção,


mas pela sua utilidade em trazer felicidade ao maior número de
pessoas possível
Essa felicidade do maior número possível de pessoas só
será viável, diz Hobbes, com a repressão da animalidade natu-
ral, o que só será possível a partir do momento em que cada
um abrir mão de seu direito natural em favor de um terceiro,
um Soberano (um representante de todos ou uma assembleia
de representantes).
A única maneira de erigir tal poder comum, apto a defender
as pessoas do ataque de estranhos, e do mal que poderiam fa-
zer uns aos outros, e, desse modo, protegê-las de forma que,
pelo seu trabalho e produção da terra, pudessem se alimentar
e viver satisfeitos, é confiar todo seu poder e toda sua força a
um só homem, ou a uma única assembleia, que pudesse reunir
suas vontades, pela regra da maioria, em uma só vontade. O
que significa dizer: designar um homem ou uma assembleia,
para assumir sua personalidade; e que cada um confesse e se
reconheça como autor de tudo que tal homem terá feito ou

126 © Ética II
UNIDADE 2 – Ética Moderna: Racionalismo e Empirismo

ordenar que se faça no que diz respeito às coisas que concer-


nem à paz e segurança comum [...] que cada um, consequen-
temente, submeta sua vontade e seu julgamento à vontade e
ao julgamento desse homem ou assembleia. Isso vai além do
consenso e da concórdia: trata-se de uma unidade real de todos
em uma só e mesma pessoa, unidade realizada por meio de um
acordo de cada um com cada um, feito de tal maneira que seria
como se cada um dissesse a cada um: "autorizo este homem ou
esta assembleia, e eu confiro a eles meu direito de me governar,
com a condição que abandone seu direito e autorize todas as
suas ações da mesma maneira". Feito isso, a multidão assim
unida em uma só pessoa é chamada de "república", em latim
"civitas". Tal é a geração deste grande Leviatã, ou falando com
mais reverência, deste "deus mortal", ao qual devemos, sob o
"deus imortal", nossa paz e proteção (HOBBES, 1983, p. 177-
178, tradução nossa).

A construção do Estado ou contrato social


É mediante um contrato social que uma multidão de ho-
mens passa a constituir um corpo de Estado. O Estado represen-
ta cada um de nós, decidindo e agindo por nós e, em consequên-
cia, devemos nos reconhecer como responsáveis e coautores de
tudo o que ele faz.
A civilização nasce desse contrato social. Essa nova situa-
ção, entretanto, só pode ser mantida com a existência de um
Leviatã. Leviatã é o nome de um animal monstruoso descrito em
detalhes no livro de Jó, que se expressa preferencialmente na
figura de um rei que gera em todos o medo da punição, garantin-
do assim a continuidade do Estado civil. A obra em que Hobbes
compara o poder absoluto de um comandante supremo à figura
de um Leviatã intitula-se Leviatã ou matéria, forma e poder de
um estado eclesiástico e civil, publicada em 1651.

© Ética II 127
UNIDADE 2 – Ética Moderna: Racionalismo e Empirismo

O poder soberano, baseado no contrato social, é absoluto


e inviolável. O Soberano (homem ou assembleia) é uma criação
nossa. Nós o obedecemos não por ser ele o mais forte, mas para
dar-lhe a força para manter a paz. É na obediência a um terceiro
que os homens cessam de formar uma multidão e se tornam um
povo ou o corpo de um Estado, tendo por alma o Soberano.
Esse absolutismo de Hobbes, enfatizam vários autores, não
significa apologia da monarquia absoluta ou defesa de um siste-
ma político. O "deus mortal", o Leviatã, como vimos, pode ser
um homem, um conselho ou uma assembleia. O que interessa é
a essência do poder, a obediência. A prosperidade de um povo
não depende da forma de seu governo, mas da concórdia e obe-
diência de todos.
Em contrapartida, como o poder político não pode aten-
der a todos os aspectos da vida, naquilo que a lei civil não se
pronuncia, existe, segundo Hobbes, espaço onde a liberdade das
pessoas pode se realizar. O que conta não é a extensão do poder,
mas o seu caráter imperioso de imposição.

Quais seriam os recursos da humanidade para chegar à consti-


tuição desse contrato social?
O homem, diz Hobbes, tem acesso ao tempo por meio
dos "sinais" que lhe permitem a memória e a antecipação do
futuro. A linguagem dos sinais torna, assim, possível a razão
e, consequentemente, a ciência, que é o conhecimento das
sucessões, associações e concatenações de sinais.
[...] a razão não nasce conosco como a sensação e a lembrança,
e também não se adquire só pela experiência, como a
prudência, mas se adquire pelo trabalho, primeiro atribuindo
corretamente as denominações, e em seguida indo, graças

128 © Ética II
UNIDADE 2 – Ética Moderna: Racionalismo e Empirismo

à aquisição de um método correto e ordenado, a partir


dos elementos que são as denominações, até as asserções,
formadas pela colocação de uma denominação em relação com
uma outra; e daí aos silogismos que são a colocação em relação
de uma asserção com uma outra, para chegar ao conhecimento
de todas as consecuções de denominações que concernem o
tema considerado; é isso que os homens chamam "ciência".
Enquanto a sensação e a lembrança não são senão um
conhecimento do fato, que é uma coisa passada e irrevogável,
a "ciência" é o conhecimento das consecuções, da dependência
de um fato de um outro fato; é por meio dessa dependência
que, a partir do que nós podemos produzir presentemente,
sabemos como produzir algo de outro se quisermos, ou repetir
algo semelhante mais uma vez, pois, vendo como uma coisa é
produzida, por quais causas e de que maneira, percebemos, no
caso de causas semelhantes se darem, como fazê-las produzir
efeitos semelhantes (HOBBES, 1983, p. 42-43, tradução nossa).

Tornando possível, assim, a razão e a ciência, a linguagem


tornaria igualmente possíveis os contratos sociais e o Estado – en-
fim, todos os recursos humanos de que trata a Filosofia Política.
Em sua concepção de moral, Hobbes, observa Yara Adario Fra-
teschi (2005), em seu trabalho Filosofia da natureza e filosofia moral
em hobbes, concebia a Filosofia Moral como fazendo parte da Filosofia
Natural, tal como a Física. Sua visão do comportamento humano seria
inspirada na teoria mecânica do movimento. Isso significa, basicamen-
te, que, segundo Hobbes, o homem tende a manter-se em movimen-
to, buscando não fins, mas meios para continuar vivo. O discurso de
Hobbes caracterizar-se-ia pela explicação mecânica: as paixões advi-
riam automaticamente das reações do homem às circunstâncias em
que se encontra, prevalecendo sempre a inclinação natural à autopre-
servação. Em outras palavras, Hobbes visualiza os costumes e hábitos
humanos não à luz de uma doutrina do bem e do mal, do justo ou do
injusto, mas sim à luz das leis naturais e da vontade humana.

© Ética II 129
UNIDADE 2 – Ética Moderna: Racionalismo e Empirismo

Considerações finais
A questão moral em Hobbes se encontra voltada essencial-
mente para a instância do Direito e, nesse sentido, sua obra tem
particular importância na área jurídica.
Sua obra tem sido muito trabalhada nesses últimos tem-
pos, no que concerne particularmente à questão da justiça. Al-
guns exemplos dessas discussões são:
• Segundo Hobbes, seria a natureza a fonte de um Direito
e de um Estado ideal e mais justo? Em outras palavras, a
obra de Hobbes leva-nos a afirmar a existência de uma or-
dem ou sistema ético subordinado a um conjunto de leis
universais e necessárias, decorrentes diretamente da na-
tureza humana, sendo o Direito expressão dessa ordem?
Isso é o que defendem os adeptos da corrente doutriná-
ria em Filosofia do Direito chamada "jusnaturalismo".
• Hobbes considera que os homens, independentemente de
sua natureza, criam normas para reger uma determinada
sociedade, em uma determinada época, visando à valida-
de dessas mesmas normas como decorrentes, não de leis
naturais, mas do próprio processo de ordenamento des-
sas normas, o que significaria que a lei não é natural, mas
de natureza "positiva" (escrita, gravada, codificada). Nesse
caso, estaria Hobbes fundamentando outra posição em Fi-
losofia do Direito, denominada "justapositivismo".
Essa discussão persiste até os dias de hoje.

8. John Locke (1632-1704)


John Locke viveu em fins do século 17 e início do século
18. É sua a famosa frase: "a mente é uma tábua rasa" (em que

130 © Ética II
UNIDADE 2 – Ética Moderna: Racionalismo e Empirismo

só a experiência escreve). É classificado como empirista por al-


guns e por outros como não propriamente um empirista, uma
vez que admite a existência de dois tipos de experiência: a expe-
riência externa e a experiência interna, assim como três tipos de
conhecimento:
• o direto, ou intuitivo, que garantiria um grau máximo
de certeza;
• o indireto, ou demonstrativo, como a Lógica e a
Matemática;
• o sensível, que seria o conhecimento da existência de
objetos exteriores.
Por sua vez, distingue um mundo em si, fundamentado nas
chamadas qualidades primárias (a solidez, a extensão etc.) e o
mundo para nós, baseado nas qualidades secundárias (cores,
sons, etc.).

O moral dentro de um contexto político


Como Hobbes, Locke concebe o moral em um contexto
politicamente constituído. Parte do mesmo ponto de Hobbes: o
estado da natureza seguido do surgimento da sociedade via um
"contrato social". Porém, a posição de Locke diverge, essencial-
mente, da de Hobbes no que concerne ao entendimento do que
seja esse estado da natureza.
Enquanto, para Hobbes, como vimos, o estado de direito
é algo feito para coibir a violência do estado da natureza, não
sendo o viver em sociedade uma disposição inata ao ser huma-
no, mas surgindo quando o homem se vê ameaçado, buscando,
então o acordo de um contrato social, e gerando, assim, a consti-
tuição do Estado, para Locke, diferentemente, o homem adquire

© Ética II 131
UNIDADE 2 – Ética Moderna: Racionalismo e Empirismo

direitos a partir do momento mesmo em que passa a existir. O


estado de natureza é o estado dos direitos naturais. O homem,
mesmo no estado da natureza, é dotado de razão, é senhor de si
mesmo, não sendo subordinado a ninguém.
O crescimento demográfico e a escassez de terra, segundo
Locke, tornaram necessário estabelecer leis, além da lei da nature-
za. Unindo-se uns aos outros para preservar vidas e a liberdade de
usufruto e conservação de propriedades conseguidas pelo traba-
lho, os homens constituíram a sociedade civil. A sociedade civil se
faz necessária quando a lei moral ou da natureza não é mais res-
peitada. Constitui-se, assim, um "pacto de conscientização" para
preservar os direitos que já existiam no estado da natureza.
Os homens tendo nascido iguais, como está provado, em uma
"liberdade" perfeita, e com o direito de usufruir tranquilamente
e sem contradição de todos os direitos e de todos os privilégios
das "leis da natureza"; cada um tem, pela natureza, o poder,
não somente de conservar seus próprios bens, isto é, sua vida,
sua "liberdade" e suas riquezas, contra todas as ações, todos
os atentados dos outros; mas ainda de julgar e de punir aque-
les que violam as "leis da natureza", quando considerar que a
ofensa merece, de punir mesmo com a morte, no caso de se
tratar de algum crime hediondo, que julgar merecer a morte.
Ora, porque não pode haver "sociedade política", e sobreviver
se ela não tem poder de conservar o que lhe pertence, e, por
essa razão, punir as faltas de seus membros; só existe "socie-
dade pública", quando cada um dos membros "abdicarem de
seu poder, colocando-o nas mãos da sociedade, para que ela
possa dispor dele em todas as espécies de causas, o que não
impede de recorrer às leis estabelecidas por ela". Através desse
meio, todo julgamento de particulares estando excluído, a "so-
ciedade" adquire o direito de soberania; e as leis sendo esta-
belecidas, e certos homens autorizados pela comunidade para
executá-las, acabam todas as diferenças que possam existir en-
tre os membros da sociedade em questão, referente a qualquer
matéria de direito, e punem-se as faltas cometidas por algum

132 © Ética II
UNIDADE 2 – Ética Moderna: Racionalismo e Empirismo

membro contra a "sociedade" em geral, ou contra alguém per-


tencente ao corpo de juízes, conforme as penas estabelecidas
pelas leis (LOCKE, 1992, p. 206, tradução nossa).

O contrato social
O contrato social, para Locke, diferentemente da visão de
Hobbes a respeito, não implica submissão ao governo. Este é
obrigado a respeitar as leis estabelecidas, tanto quanto cada in-
divíduo. O povo tem direito de rebelião contra o abuso de poder
das autoridades e, uma vez mantidos os direitos naturais, resul-
tado de um consenso, todo governo é limitado.
Um poder arbitrário e absoluto e um governo sem leis estabele-
cidas e estáveis não seriam capazes de atender aos "fins" da so-
ciedade e do governo. De fato, os homens deixariam a liberda-
de do "estado natural" para se submeter a um governo no qual
suas vidas, suas liberdades, seu descanso, seus bens não teriam
segurança? Não nos é possível supor que tenham a intenção,
ou mesmo o direito de conceder a um homem ou a vários um
poder absoluto e arbitrário sobre si mesmos e seus bens, e de
permitir ao magistrado ou ao príncipe fazer, em relação a eles,
tudo o que quisessem, arbitrariamente e sem limites, o que se-
ria seguramente se colocar em uma situação muito pior do que
aquela do estado natural, no qual se tem a liberdade de defen-
der seu direito contra as injúrias de outro, e de se manter, no
caso de se possuir força suficiente, contra a invasão do outro ou
de um grupo. De fato, na suposição de nos entregar ao poder
absoluto e à vontade arbitrária de um legislador, estaríamos de-
sarmando a nós mesmos e armando esse legislador, de maneira
que aqueles que lhe são submissos tornam-se sua presa, e são
tratados como ele assim o desejar (LOCKE, 1992, p. 245-246,
tradução nossa).

© Ética II 133
UNIDADE 2 – Ética Moderna: Racionalismo e Empirismo

O princípio constitutivo do Estado: Deus


Na obra de Locke, diferentemente da de Hobbes, há um
princípio constitutivo da moral e do Estado: Deus. Segundo a
teoria dos mandamentos divinos, a verdade ou falsidade dos juí-
zos morais dependem da vontade de Deus, o que significa dizer
que os fatos éticos e morais são simples convenções estabeleci-
das por Deus. Para Locke, os direitos naturais (o direito à vida, à
liberdade e à propriedade) estão fundados no fato de que a vida
é obra divina e pertence a Deus. Por exemplo:
• O direito à vida: Deus criou os homens como iguais e
independentes e, por isso, é proibida toda agressão à
vida humana – daí o direito à autodefesa.
• O direito à liberdade: se os homens nasceram iguais, ne-
nhum tem direito sobre o outro. Porém, existem limites
legítimos que impedem que os homens sejam sempre li-
vres. São os decretos naturais, como o direito segundo o
qual a liberdade não pode violar o direito à propriedade,
pois, se Deus criou os homens iguais, todos têm a mesma
chance de conquistar terras e de cultivá-las.
Neste sentido, afirma:
O "estado de Natureza" é regido por um direito natural que se impõe
a todos, e com respeito à razão, que é este direito, toda a humanida-
de aprende que, sendo todos iguais e independentes, ninguém deve
lesar o outro em sua vida, sua saúde, sua liberdade ou seus bens;
todos os homens são obra de um único Criador todo-poderoso e
infinitamente sábio, todos servindo a um único senhor soberano,
enviados ao mundo por sua ordem e a seu serviço; são portanto sua
propriedade, daquele que os fez e que os destinou a durar segundo
sua vontade e de mais ninguém. Dotados de faculdades similares,
dividindo tudo em uma única comunidade da natureza, não se pode
conceber que exista entre nós uma "hierarquia" que nos autorizaria
a nos destruir uns aos outros, como se tivéssemos sido feitos para

134 © Ética II
UNIDADE 2 – Ética Moderna: Racionalismo e Empirismo

servir de instrumento às necessidades uns dos outros, da mesma


maneira que as ordens inferiores da criação são destinadas a servir
de instrumento às nossas (LOCKE, 2015, p. 36).

Considerações finais
Do ponto de vista da distinção entre o moral e o ético, en-
contramos, na obra de Locke, além das normas de conduta moral
e de cidadania, a preocupação do filósofo com o ético propria-
mente dito, na medida em que escreveu várias obras em defesa
do "princípio de tolerância" como intrínseco ao que é singular-
mente próprio à questão da "liberdade". Trata-se especificamen-
te da tolerância religiosa, pois, em sua época, eram comuns as
guerras e perseguições religiosas.
Desenvolveu sua teoria da tolerância por meio de debates
com o teólogo de Oxford Jonas Proast, que defendia a tese con-
trária. Escreveu a respeito, sob o pseudônimo de "Philanthropus",
principalmente as chamadas Segunda Carta e Terceira Carta, pu-
blicadas respectivamente em 1690 e 1692.
Sua teoria da tolerância é eminentemente ética, na medida
em que procura estabelecer o sentido de uma liberdade espiri-
tual irrestrita. Em sua busca pela compreensão dos fundamentos
da opção religiosa, Locke expressa não apenas sua posição sobre
os limites da atividade do Estado, mas ainda procede a uma in-
vestigação da estrutura epistêmica do dogma religioso.
Para Locke, a tolerância é um bem para a sociedade e para
a própria religião, porque traz a paz e a ordem, tarefas do Estado.
Segundo o filósofo, "não temos outro guia que não seja a razão e
esta não aceita submissão cega à vontade e às ordens de outrem".

© Ética II 135
UNIDADE 2 – Ética Moderna: Racionalismo e Empirismo

9. questões autoavaliativas
Confira, a seguir, as questões propostas para verificar o seu
desempenho no estudo desta unidade:
1) Com relação à moral em Descartes, é incorreto afirmar:
a) Busca tranquilidade para o bem pensar, para estabelecer a melhor for-
ma de proceder diante dos fatos imediatos da vida, não se furtando à
prática, mas procurando, de maneira provisória, seguir aquilo que se
apresenta para a razão como a melhor forma de proceder.
b) É na noção de utilidade que se funda o pensamento de Descartes, pois
devemos procurar aquilo que nos torna mais felizes, mesmo que para
isso devamos desrespeitar as leis e os costumes de um povo – procu-
rando, assim, alterar a ordem do mundo, e não os nossos desejos.
c) Sempre agir de forma moderada, evitando os excessos, a fim de não se
distanciar demais da verdade por ter escolhido um dos excessos, bem
como por ser o excesso sempre prejudicial.
d) A fim de vencer os desejos por bens exteriores, procurar sempre ven-
cer a si mesmo, e não a ordem do mundo, procurando imitar nisso
aqueles filósofos que, mesmo não possuindo bens exteriores, pude-
ram disputar a felicidade aos seus deuses.

2) Sobre a relação da alma com o corpo para Spinoza, é incorreto afirmar:


a) Alma e corpo são modos dos atributos "pensamento" e "extensão", que,
por sua vez, são manifestações de uma mesma e única substância (Deus).
b) Diferentemente de Descartes, para quem o corpo seria apenas um me-
canismo, ou uma máquina, que obedece os mandamentos da alma ou
razão, para Spinoza alma e corpo tem o mesmo status ontológico, ou
seja, não há domínio da alma sobre o corpo, nem do corpo sobre a alma.
c) Assim como para Descartes, Spinoza, apesar de compreender a exis-
tência de uma única substância, que é infinita (Deus), acredita que a
alma é quem comanda o corpo, pois faz parte do atributo pensamento,
o qual se identifica de maneira mais perfeita com a substância divina.
d) Não há nada que não afete o corpo que não afete também a mente.
Proposição conversível. Ambos são manifestação de uma mesma subs-
tância infinita, efeitos de sua existência necessária.

136 © Ética II
UNIDADE 2 – Ética Moderna: Racionalismo e Empirismo

3) Pensando nos gêneros de conhecimento propostos por Spinoza, faça a re-


lação deles com a felicidade e a liberdade para esse pensador.
I - Primeiro gênero de conhecimento: a imaginação ou ideias
inadequadas.
II - Segundo gênero de conhecimento: noções comuns ou ideias
adequadas.
III - Terceiro gênero de conhecimento: a beatitude (visão das coisas singu-
lares do ponto de vista da eternidade).
( ) À medida que a mente compreende as coisas como necessárias, ela
tem um poder maior sobre seus afetos, ou seja, deles padece menos.
( ) A servidão passional nasce, assim, da ignorância e a alimenta, dividin-
do o mundo em coisas boas e coisas más, acreditando saber quais nos
convêm e quais não nos convêm. Trata-se de um pseudoconhecimento
das "causas finais", o que leva à superstição religiosa, com a ideia de
um Deus arbitrário distribuindo intencionalmente o bem e o mal, em
função do culto que lhe rendemos.
( ) Sem auxílio mútuo, os homens não podem manter sua vida e cultivar
sua alma. Chegamos, pois, a esta conclusão: o direito natural, no que
concerne propriamente ao gênero humano, dificilmente pode ser con-
cebido, a não ser quando os homens têm direitos comuns, terras que
podem habitar e cultivar juntos, quando podem velar pela manuten-
ção de seu poder, proteger-se, repelir toda violência e viver de acordo
com uma vontade comum a todos. Quanto maior for o número dos
que assim se reunirem, mais direito terão em comum.

4) Podemos afirmar que a diferença essencial entre o pensamento de Hobbes


de Locke consiste em que:
a) Para Hobbes, a moral só existe dentro de um Estado de direito, pois, no
Estado de natureza, todos têm poder ilimitado sobre tudo; ao contrá-
rio, para Locke, o homem já nasce com direitos inalienáveis, garantidos
pela razão e por seu criador (Deus).
b) Hobbes é um contratualista, enquanto Locke não o é.
c) Locke discorda de Hobbes no sentido de que não entende o Estado
de direito como sendo necessário para a vida em sociedade, podendo
cada um gerir a si mesmo e tomar conta de suas propriedades.

© Ética II 137
UNIDADE 2 – Ética Moderna: Racionalismo e Empirismo

d) Hobbes pensa que o Estado de natureza era melhor que o Estado de


direito, pois, naquele estado, o homem tem direito a todas as coisas,
enquanto Locke pensa no Estado de natureza como sendo um terri-
tório de ninguém, onde a vida do homem é breve, bruta e miserável.

Gabarito
Confira, a seguir, as respostas corretas para as questões au-
toavaliativas propostas:
1) b.

2) c.

3) III, I e II.

4) a.

10. considerações
Nesta unidade, vimos as principais mudanças e os pensado-
res que foram decisivos para uma nova Epistemologia, que será o
novo paradigma da Modernidade. Tal Epistemologia, fundada na ra-
zão matemática e na experimentação controlada, como se buscou
mostrar ao longo do estudo desta obra, não foi capaz de contemplar
o ético em sua dimensão própria, levando-nos a um significativo de-
senvolvimento da moral. No entanto, como veremos, em alguns dos
filósofos modernos, aqui e ali, a questão da Ética toma corpo e vai
delineando um anseio para o seu tratamento adequado.
Nesse sentido, é importante que você siga nesta obra, procu-
rando reconhecer em que medida a questão do ético aparece em
meio a uma Epistemologia nova, "moderna", razão teórica e experi-
mentação controlada, e o esforço dos filósofos em face dessa nova
Epistemologia para encontrar um fundamento para a moral.

138 © Ética II
UNIDADE 2 – Ética Moderna: Racionalismo e Empirismo

11. e-referência
FRATESCHI, Y. A. Filosofia da Natureza e Filosofia Moral em Hobbes. Cadernos de
História e Filosofia da Ciência, Campinas, v. 15, n. 1, p. 7-32, jan./jun. 2005. Disponível
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24 ago. 2015.
GLEIZER, M. A. A beatitude de Espinosa. Folha de S. Paulo. São Paulo, 30 maio 2004.
Disponível em: <http://escritonasestrelas.com/filosofar/index.php?option=content&t
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HOBBES, T. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Trad.
João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. Disponível em: <http://www.
dhnet.org.br/direitos/anthist/marcos/hdh_thomas_hobbes_leviatan.pdf>. Acesso
em: 28 ago. 2015.
LOCKE, J. Segundo tratado sobre o governo civil. Trad. Magda Lopes e Marisa Lobo da
Costa. Disponível em: <http://www.xr.pro.br/IF/LOCKE-Segundo_Tratado_Sobre_O_
Governo.pdf>. Acesso em: 24 ago. 2015.
PONCZEK, R. L. Deus ou seja a natureza: Spinoza e os novos paradigmas da física.
Salvador: EDUFBA, 2009. Disponível em: <https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/
ufba/207/1/Deus%20ou%20seja%20a%20natureza.pdf>. Acesso em: 21 ago. 2015.

12. referências bibliográficas


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Guinsburg e Bento Prado Junior. São Paulo: Abril S.A. Cultural e Editorial, 1973a.
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Trad. J. Guinsburg e Bento Prado Junior. São Paulo: Abril S.A. Cultural e Editorial, 1973b.
______. As paixões da alma. In: CIVITA, V. (Ed.). Os pensadores. Trad. J. Guinsburg e
Bento Prado Junior. São Paulo: Abril S.A. Cultural e Editorial, 1973c.
______. Cartas. In: CIVITA, V. (Ed.). Os pensadores. Trad. J. Guinsburg e Bento Prado
Junior. São Paulo: Abril S.A. Cultural e Editorial, 1973d.
______. Regras para a orientação do espírito. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
(Coleção Clássicos).
HOBBES, T. Léviathan. Paris: Silrey, 1983.
______. Leviathan. London: Cambridge University Press, 1996.

© Ética II 139
UNIDADE 2 – Ética Moderna: Racionalismo e Empirismo

______. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. 2 ed. São
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LOCKE, J. Traité du gouvernement civil. Paris: Garnier-Flammarion, 1992.
______. Carta acerca da tolerância; Segundo tratado sobre o governo; Ensaio acerca
do entendimento humano. 2 ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Os pensadores).
PONCZEK, R. L. Deus ou seja a natureza: Spinoza e os novos paradigmas da física.
Salvador: EDUFBA, 2009.
ROUX-LANIER, C. (Org.). Le temps des philosophes. Paris: Hatier, 1995.
SPINOZA, B. Ética. Trad. Tomaz Tadeu. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008.
______. Éthique. Paris: GF Flammarin, 1965.

140 © Ética II
UNIDADE 3
Ética Moderna: Hume e Kant

1. objetivos
• Compreender a proposta do empirista David Hume so-
bre a moral.
• Analisar a concepção de moral no criticismo de Immanuel
Kant.

2. conteúdos
• O método empirista de David Hume.
• O criticismo de Immanuel Kant.

3. orientações para o estudo da unidade


Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que
você leia as orientações a seguir:
1) Como forma de sensibilização ao conteúdo tratado nes-
ta unidade, indicamos que assista os seguintes filmes:
• Amadeus, de 1984, com direção de Milos Forman.
• Barry Lyndon, de 1975, com direção de Stanley
Kubrick.
• Danton, o processo da Revolução, de 1982, com di-
reção de Andrzej Wajda.

141
UNIDADE 3 – Ética Moderna: Hume e Kant

2) Para iniciar nossa especulação sobre Kant e Hume, in-


dicamos os vídeos a seguir:
• SAVATER, F. La Aventura del Pensamiento – Immanuel
Kant. Disponível em: <https://www.youtube.com/
watch?v=jNPRlhJlj2A>. Acesso em: 25 ago. 2015.
• ______. La Aventura del Pensamiento – David
Hume. Disponível em: <https://www.youtube.com/
watch?v=vHUNfRLZKhA>. Acesso em: 23 abr. 2015.
• GHIRALDELLI, P. Kant e a subjetividade moderna 1.
Disponível em: <http://www.youtube.com/watch
?v=SGPK7tGiXg0&feature=relmfu>. Acesso em: 25
ago. 2015.
• ______. Kant e a subjetividade moderna 2.
Disponível em: <http://www.youtube.com/
watch?v=3gQamHOPtn4>. Acesso em: 25 ago. 2015.

4. Introdução
Entre os anos de 1680 e 1715, verifica-se uma crise cultural
na Europa. Tudo que constituía a base da sociedade tradicional
será passado sob o crivo da razão. É o Século das Luzes (Iluminis-
mo), movimento intelectual, social e político de todas as classes
cultas.
São características desse movimento:
1) O método da observação controlada dos fatos em bus-
ca de leis universais, modelo de investigação inspirado
na construção da Física de Newton.
2) Crítica ao racionalismo dogmático que concebe a razão
como detentora de todo conhecimento. A razão pode
tudo conhecer, desde que bem conduzida.

142 © Ética II
UNIDADE 3 – Ética Moderna: Hume e Kant

3) Herança de Descartes: só o que for reconhecido legí-


timo pela razão do sujeito individual deve e pode ser
considerado como tal.
4) Início da era industrial, com o crescimento do interesse
pelos fenômenos econômicos.
5) A salvação passa a não mais depender de Deus, mas
da boa vontade de cada um: a origem do mal está na
intenção daquele que age; o homem, ao contrário do
que ensinava a religião, não é incapaz, por sua queda
ou pecado original, de chegar à verdade e ao bem.
6) Em política, a legitimidade do poder não é mais atri-
buída a uma ordem divina ou natural, mas fundada
na vontade dos indivíduos. Duas grandes revoluções,
a americana e a francesa, resultam desse processo de
emancipação.
7) A visão do ser humano, que, no século 16, se caracte-
rizava por uma profunda relação com a natureza, tor-
na-se predominantemente histórica. Cada vez mais, a
humanidade se volta para uma existência baseada em
projetos e não na repetição de ideias, hábitos e cos-
tumes tradicionais, visualizando-se como passível de
constante aperfeiçoamento, por meio da educação e
da história.
a) Na segunda metade do século 18, o progresso no
campo da difusão do conhecimento levará à for-
mação de uma opinião pública mais esclarecida, o
que permitirá reformas do estado social e político.
b) Grande progresso das ciências e técnicas.
c) A burguesia foi a principal responsável pelo movi-
mento resultou na globalização da economia.

© Ética II 143
UNIDADE 3 – Ética Moderna: Hume e Kant

d) Grande preocupação com o conhecimento, incidin-


do sobre ele a chamada interpretação fenomenista,
presente na história da Filosofia desde a Antiguida-
de (por exemplo, os céticos) e que, como já disse-
mos, consiste (no caso do conhecimento) em negar
a possibilidade de conhecimento de todo "em si".
8) No campo das questões filosóficas propriamente ditas,
temos o desenvolvimento do empirismo na Inglaterra,
sua introdução na França, o desenvolvimento do racio-
nalismo na Alemanha culminando com a superação de
si mesmo, tornando-se, como consequência do pen-
samento kantiano, uma filosofia transcendental (no
sentido de uma filosofia que submete tudo ao crivo da
razão).
9) No que diz respeito à moral, surgem inúmeras posi-
ções, pois o desenvolvimento do empirismo abala de
maneira significativa o caráter absoluto que era confe-
rido à moral até então, relativizando-a. Temos:
a) Jeremy Bentham (1748-1832), defensor de uma
moral utilitarista, segundo a qual o fundamento da
moral é a felicidade dos indivíduos sem prejuízo
para o bem-estar coletivo. Sistematizou o princípio
da utilidade. Trata-se de uma doutrina para a qual
toda ação ou inação deverá promover o bem-estar
de todos os seres. Observemos que tal posição já
se encontra na Filosofia Antiga em Epicuro.
• Importante para o utilitarismo não são os agen-
tes morais (se são bons, generosos ou não),
mas as consequências dos atos, uma vez que,
dentro de circunstâncias diferentes, um mesmo
ato pode ser moral ou imoral, dependendo de

144 © Ética II
UNIDADE 3 – Ética Moderna: Hume e Kant

suas consequências boas ou más. É o que se


denomina de "consequencialismo": agir sem-
pre de forma a produzir a maior quantidade de
bem-estar possível.
• O critério para classificar o ato como bom ou
mau seriam os resultados em todos os indiví-
duos afetados pela ação, ou seja, a quantidade
total de bem-estar produzida. Assim, é válido sa-
crificar uma minoria, pois o bem-estar de cada
indivíduo tem o mesmo peso, com relação ao
bem-estar geral. Em outras palavras, atribuem-
-se valores ao bem-estar, independentemente
de indivíduos e culturas. Há, dessa maneira, um
universalismo.
b) Temos, ainda, como representante da posição uti-
litarista, James Mill (1733-1836), filósofo e histo-
riador escocês.
c) Bernard de Mandeville (1670-1733), filósofo ho-
landês, segundo o qual não há princípios morais de
valor absoluto que fundamentem os atos sociais.
Os homens agem de acordo com seus interesses
individuais; portanto, a moral se basearia em fato-
res referentes aos interesses dos indivíduos, expe-
rimentalmente comprovados.
d) Adam Smith (1723-1790), filósofo e economista
escocês, concebe a moral também baseada na
experiência. Para ele, a "simpatia" seria o critério
da moralidade. Por simpatia entendia a comunica-
ção à nossa alma das emoções de outrem. Agimos
bem quando o que fazemos merece a simpatia a
mais universal possível.

© Ética II 145
UNIDADE 3 – Ética Moderna: Hume e Kant

10) Como reação ao empirismo, temos a chamada Escola


Escocesa. Origina-se na Sociedade Filosófica fundada
pelo filósofo escocês Thomas Reid (1710-1796). É tam-
bém chamada Escola do Senso Comum. Um de seus re-
presentantes principais foi Anthony A. C. Shaftesbury, fi-
lósofo inglês, cuja posição sobre a moral é denominada
de moral do sentimento. Baseia sua concepção de moral
nos juízos do senso comum e também na existência de
Deus, uma vez que o senso comum seria inspirado por
Deus. Para ele, embora a fonte comum do conhecimen-
to seja a experiência, existem algumas ideias peculiares
que acompanham as sensações, como as ideias do bem
e do belo, que são inatas, não resultam da experiência.
Surgem como uma disposição especial da alma. São
imediatas, universais, desinteressadas. Trata-se de uma
faculdade moral que tem por objeto a bondade moral.
Na presente unidade, selecionamos, para um estudo mais
aprofundado, dois dos mais influentes representantes das posi-
ções empirista e racionalista no século 18 e que são, respectiva-
mente, David Hume e Immanuel Kant.

5. David Hume (1711-1776)


Nascido em Edimburgo (Escócia), Hume lutou, desde o iní-
cio, para poder se dedicar à literatura e à Filosofia, opondo-se
à própria família, que desejava vê-lo seguir a carreira jurídica.
Também o sucesso demorou a acontecer.
Com o sucesso, porém, sua filosofia é ainda hoje consi-
derada como uma das grandes influências sobre o pensamen-
to contemporâneo, tanto no que concerne à chamada Filosofia

146 © Ética II
UNIDADE 3 – Ética Moderna: Hume e Kant

Analítica (que reduz a Filosofia a uma pesquisa sobre a lingua-


gem) quanto no que se refere a filosofias como a Fenomenologia
de Edmund Husserl, que busca levar a atitude de Descartes às
suas últimas consequências, visando a uma fundação radical do
conhecimento.
A primeira e mais detalhada explicação da teoria moral de
Hume encontra-se no livro 3, intitulado "Da Moral', de sua obra
Tratado da natureza humana.
O fenômeno da moralidade, segundo Hume, surge no rela-
cionamento dos indivíduos entre si. Para Hume, não é concebível
que todos os atos das pessoas sejam tidos como moralmente
equivalentes, que todos os atos sejam igualmente dignos de es-
tima e consideração. As distinções morais são para ele uma rea-
lidade. Seu objetivo é descobrir quais são os princípios univer-
sais dos quais deriva toda censura ou aprovação e quais tipos de
percepções nos permitem fazer distinções morais, como entre
o bem e o mal, entre o certo e o errado etc. Busca, igualmente,
saber em quais circunstâncias essas percepções surgem.
Hume entende a questão moral como uma questão de leis
e regras de funcionamento da natureza humana: nenhuma ação
pode ser virtuosa ou moralmente boa, a menos que haja na na-
tureza humana algum motivo que a produza.
A teoria moral de Hume não tem, pois, como referência um
transcendente independente da experiência dos sentidos, como
a vontade de Deus ou uma razão a priori. Volta sua reflexão para
a interioridade pura, pressupondo que a alma seja um campo
de percepções, impressões e ideias. Para o filósofo, nada existe
previamente no nosso pensamento. Tudo vem da experiência e
é, portanto, de natureza sensível.

© Ética II 147
UNIDADE 3 – Ética Moderna: Hume e Kant

A questão moral está fundada no movimento emotivo ou


"emoção" e não no entendimento
A primeira questão colocada por Hume é a de saber se as
distinções morais são derivadas da razão. Entende a razão como
um puro cálculo de meios, capaz apenas de avaliar os melhores
meios para um determinado fim, mas sem o poder de demons-
trar o caráter desejável ou não desses fins em si mesmos. Uma
ação não é virtuosa ou viciosa pelo fato de obedecer à razão,
mas pelo fato de nos proporcionar uma sensação agradável ou
desagradável.
Ao entender a razão teórica como um puro cálculo de
meios, Hume postula uma moral fundada inteiramente em uma
capacidade "emotiva", ou seja, na capacidade humana de agir
impulsionada por um "motivo", por "algo que move", ou "que
causa ou dá origem a algo".
Para Hume, a ação é apenas um sinal externo, pois a ava-
liação moral diz respeito ao motivo que produziu a ação. A ação
moralmente correta, segundo o filósofo, seria aquela na qual o
agente age movido por um motivo virtuoso, mesmo no caso de
não realização da ação em razão de outras causas. É o que vere-
mos no texto do filósofo a seguir:
2. É evidente que, quando elogiamos uma determinada ação,
consideramos apenas os motivos que a produziram, e tomamos
a ação como signo ou indicador de certos princípios da mente
e do caráter. A realização externa não tem nenhum mérito. Te-
mos de olhar para o interior da pessoa para encontrar a quali-
dade moral. Ora, como não podemos fazê-lo diretamente, fixa-
mos nossa atenção na ação, como signo externo. Mas a ação é
considerada apenas um signo; o objeto último de nosso elogio
e aprovação é o motivo que a produziu.

148 © Ética II
UNIDADE 3 – Ética Moderna: Hume e Kant

3. Do mesmo modo, sempre que exigimos que uma pessoa rea-


lize uma ação, ou a censuramos por não realizá-la, estamos su-
pondo que alguém nessa situação deveria ser influenciado pelo
motivo próprio dessa ação, e consideramos vicioso que o te-
nha desconsiderado. Se após investigarmos melhor a situação,
descobrimos que o motivo virtuoso estava presente em seu
coração, embora sua operação tenha sido impedida por algu-
ma circunstância que nos era desconsiderada, retiramos nossa
censura e passamos a ter pela pessoa a mesma estima que te-
ríamos se houvesse de fato realizado a ação que dela exigíamos
(HUME, 2009, Livro III, Parte 2, Seção 1).

Segundo Hume, portanto, a razão tem apenas um papel


instrumental, o papel de ser apenas guia da ação: a razão não
diz quais devem ser os nossos objetivos, apenas o que devemos
fazer para atingi-los; pode nos dizer em que acreditamos, mas
não pode nos dizer no que devemos acreditar.
A aprovação moral, logo, não é um juízo da razão sobre
conceitos ou fatos. Em outras palavras, não basta conhecer o ca-
ráter de virtude de uma ação, o sentido de sua dimensão moral;
é necessário agir movido por um motivo virtuoso. A ação moral-
mente virtuosa não é aquela em que o agente é simplesmente
movido pelo caráter de virtude da ação, mas, aquela em que o
agente é movido por um motivo virtuoso.
Vejamos um texto de Hume a esse respeito:
4. Vemos, portanto, que todas as ações virtuosas derivam seu
mérito unicamente de motivos virtuosos, sendo tidas apenas
como signos desses motivos. Desse princípio, concluo que o pri-
meiro motivo virtuoso, que confere mérito a uma ação, nunca
pode ser uma consideração pela virtude dessa ação, devendo
ser antes algum outro motivo ou princípio natural. Supor que
a mera consideração pela virtude da ação possa ser o primeiro
motivo que produziu a ação e a tornou virtuosa é um raciocínio
circular. Pra que possamos ter tal consideração, a ação tem de

© Ética II 149
UNIDADE 3 – Ética Moderna: Hume e Kant

ser realmente virtuosa; e essa virtude tem de ser derivada de


algum motivo virtuoso; conseqüentemente, o motivo virtuoso
precisa ser diferente da consideração pela virtude da ação. É
preciso um motivo virtuoso para que uma ação se torne vir-
tuosa. Uma ação tem de ser virtuosa para que possamos ter
consideração por sua virtude. Portanto, algum motivo virtuoso
tem de anteceder essa consideração. [...]
7. Em resumo, podemos estabelecer como uma máxima indu-
bitável que nenhuma ação pode ser virtuosa ou moralmente
boa, a menos que haja na natureza humana algum motivo que
a produza, distinto do sentido de sua moralidade (HUME, 2009,
Livro III, Parte 2, Seção 1).

Hume dá como exemplo uma ação de honestidade, e faz a dis-


tinção entre o simples conhecimento do caráter de virtude de uma
ação de honestidade e a existência ou não de um motivo virtuoso
propriamente dito. Mostra que não é simplesmente o agir por con-
siderar a honestidade uma virtude que torna a ação honesta, mas o
motivo virtuoso presente ou não no interior da natureza do agente.
9. Agora apliquemos tudo isso ao caso presente. Suponhamos
que uma pessoa tenha me emprestado uma soma em dinheiro,
sob a condição de que eu lhe restituísse essa soma em alguns
dias; suponhamos também que, no fim do prazo combinado,
ela me peça o dinheiro de volta. Pergunto: que razão ou motivo
tenho para devolver-lhe o dinheiro? Dir-se-á, talvez, que meu
respeito pela justiça e minha repulsa à vilania e à desonestida-
de são para mim razões suficientes, se possuo um mínimo de
honestidade ou sentido do dever e da obrigação. Sem dúvida,
essa resposta é correta e satisfatória para o homem em seu es-
tado de civilização, e quando formado segundo certa discipli-
na e educação. Mas, em sua condição rude e mais natural (se
quereis chamar de natural tal condição), essa resposta seria re-
jeitada como completamente ininteligível e sofística. Pois uma
pessoa que se encontrasse nessa situação imediatamente vos
perguntaria: em que consiste essa honestidade e justiça que
encontrais na restituição de um empréstimo e na abstenção da

150 © Ética II
UNIDADE 3 – Ética Moderna: Hume e Kant

propriedade alheia? Certamente não está na ação externa. Por


conseguinte, tem de estar no motivo de que essa externa foi
derivada. Esse motivo nunca poderia ser a consideração pela
honestidade da ação, pois é uma clara falácia dizer que é preci-
so um motivo virtuoso para tornar uma ação honesta, e ao mes-
mo tempo em que a consideração pela honestidade é o moti-
vo da ação. Só podemos ter consideração pela virtude de uma
ação se a ação for de antemão virtuosa. Ora, uma ação só pode
ser virtuosa se procede de um motivo virtuoso. Um motivo vir-
tuoso, portanto, deve anteceder a consideração pela virtude; é
impossível que o motivo virtuoso e a consideração pela virtude
sejam a mesma coisa (HUME, 2009, Livro III, Parte 2, Seção 1).

Quando o motivo de uma ação for tão somente o sentido


da moralidade ou do dever, ela pode estar expressando uma ca-
rência. É o que diz Hume:
8. Mas será que o sentido da moralidade ou do dever não pode
produzir uma ação sem qualquer outro motivo? Respondo que
sim, mas que isso não constitui uma objeção à presente doutri-
na. Quando um motivo ou princípio virtuoso é comum na na-
tureza humana, uma pessoa que sente seu coração desprovido
desse motivo pode odiar a si mesma por essa razão, e pode rea-
lizar a ação sem o motivo, apenas por certo sentido do dever, ao
menos para disfarçar para si mesma, tanto quanto possível, sua
carência. Um homem que não sente de fato nenhuma gratidão
em seu íntimo pode, apesar disso, ter prazer em praticar cer-
tos atos de gratidão, pensando desse modo ter realizado o seu
dever. As ações inicialmente são consideradas somente como
signos de motivos; mas o que costuma ocorrer, nesse caso e
em todos os demais, é que acabamos fixando nossa atenção
apenas nos signos, negligenciando em parte a coisa significada
(HUME, 2009, Livro III, Parte 2, Seção 1).

E Hume conclui:
10. É preciso encontrar, portanto, para os atos de justiça e ho-
nestidade, algum motivo distinto de nossa consideração pela
honestidade; e é nisso que está a grande dificuldade. Porque

© Ética II 151
UNIDADE 3 – Ética Moderna: Hume e Kant

se disséssemos que a preocupação com nosso interesse priva-


do ou com a nossa reputação é o motivo legítimo de todas as
ações honestas, seguir-se-ia que sempre que cessa tal preocu-
pação, a honestidade não poderia mais ter lugar. Mas, é certo
que o amor a si próprio, quando age livremente em vez de nos
levar a ações honestas, é fonte de toda injustiça e violência;
e ninguém pode corrigir esses vícios sem corrigir e restringir
os movimentos naturais desse apetite (HUME, 2009, Livro III,
Parte 2, Seção 1).

Essa capacidade "emotiva" que propicia ações moralmente vir-


tuosas é, para Hume, uma "percepção"
Por influência da "teoria do senso comum" dos moralistas
ingleses e escoceses (de que falamos na introdução desta unida-
de), Hume concebe essa capacidade emotiva como sendo uma
faculdade de percepção moral, imediata e desinteressada, simi-
lar às faculdades de percepção sensorial, uma faculdade que de-
tectaria qualidades morais em pessoas, ações, comportamentos
e situações, tal como nossos sentidos externos captam qualida-
des nos objetos externos. Ao examinar o que nos motiva a agir
de certa maneira, podemos determinar a natureza de uma virtu-
de, especificamente se ela é natural ou artificial.

Virtudes naturais e artificiais


As virtudes naturais seriam aquelas "naturalmente" apro-
vadas: a benevolência, a humildade, a caridade, a generosidade.
As virtudes artificiais, por sua vez, seriam as mais necessá-
rias, porque, segundo Hume, os valores morais mais importantes
são uma questão de convenção social. São elas: a justiça, o cum-
primento de promessas, a lealdade, a modéstia etc.

152 © Ética II
UNIDADE 3 – Ética Moderna: Hume e Kant

No homem, observa-se uma conjunção antinatural de fragilida-


de e de necessidade
Hume afirma:
2. De todos os animais que povoam nosso planeta, à primeira
vista parece ser o homem aquele contra o qual a natureza foi
mais cruel, dadas as inúmeras carências e necessidades com
que o cobriu e os escassos meios que lhe fornece para aliviar
essas necessidades. Em outras criaturas, esses dois pontos em
geral se compensam mutuamente. Se considerarmos que o
leão é um animal voraz e carnívoro, descobriremos que é cheio
de necessidades; mas se prestarmos atenção em sua constitui-
ção e temperamento, sua agilidade, sua coragem, suas armas
e sua força, veremos que nele as vantagens são proporcionais
às carências. O carneiro e o boi carecem de todas essas vanta-
gens, mas seus apetites são moderados e seu alimento é fácil
de obter. Apenas no homem se pode observar, em toda a sua
perfeição, essa conjunção antinatural de fragilidade e necessi-
dade. Não somente o alimento necessário para sua subsistência
escapa a seu cerco e aproximação, ou, ao menos, exige traba-
lho para ser produzido, como, além disso, o homem precisa de
roupas e abrigo para se defender das intempéries. Entretanto,
considerado apenas em si mesmo, ele não possui armas, força
ou qualquer outra habilidade natural que seja em algum grau
condizente com as necessidades (HUME, 2009, Livro III, Parte
2, Seção 2).

Pela sociedade e pela formação da família, o homem se torna


superior às demais criaturas
Para o filósofo:
3. Somente pela sociedade ele é capaz de suprir suas deficiên-
cias, igualando-se às demais criaturas, e até mesmo adquirindo
uma superioridade sobre elas. Pela sociedade, todas as suas de-
bilidades são compensadas; embora, nessa situação, suas ne-
cessidades se multipliquem a cada instante, suas capacidades

© Ética II 153
UNIDADE 3 – Ética Moderna: Hume e Kant

se ampliam ainda mais, deixando-o, em todos os aspectos, mais


satisfeito e mais feliz do que jamais poderia se tornar em sua
condição selvagem e solitária. Quando cada indivíduo trabalha
isoladamente, e apenas para si mesmo, sua força é limitada de-
mais para executar qualquer obra considerável; tem de empre-
gar seu trabalho para suprir as mais diferentes necessidades, e
sua força e seu sucesso não são iguais o tempo todo, a menor
falha em um dos dois deve inevitavelmente trazer a ruína e a
infelicidade. A sociedade fornece um remédio para esses três
inconvenientes. A conjunção de forças amplia nosso poder; a
divisão de trabalho aumenta nossa capacidade; e o auxílio mú-
tuo nos deixa menos expostos à sorte e aos acidentes. É por
essa força, capacidade e segurança adicionais que a sociedade
se torna vantajosa.
4. Mas para que a sociedade se forme, não basta que ela seja
vantajosa; os homens também têm de se dar conta de suas
vantagens. Entretanto, em seu estado selvagem e inculto [...] é
impossível que os homens alguma vez cheguem a adquirir esse
conhecimento. Felizmente, junto com essas necessidades cujos
remédios são remotos e obscuros existe uma outra necessida-
de, que, por ter um remédio mais imediato e evidente, pode ser
legitimamente considerada o princípio primeiro e original da
sociedade humana. Essa necessidade não é outra senão aquele
apetite natural que existe entre os sexos, unindo-os e preser-
vando sua união até o surgimento de um outro laço, ou seja,
a preocupação com sua prole comum. Essa nova preocupação
também se torna um princípio de união entre os pais e os filhos,
formando uma sociedade mais numerosa, em que os pais go-
vernam em virtude da superioridade de sua força e sabedoria,
e, ao mesmo tempo, têm o exercício de sua autoridade limitado
pela afeição natural que sentem por seus filhos. Em pouco tem-
po, o costume e o hábito, agindo sobre as tenras mentes dos
filhos, tornam-nos sensíveis às vantagens que podem extrair da
sociedade, além de gradualmente formá-los para essa socieda-
de, aparando as duras arestas e afetos adversos que impedem
sua coalizão (HUME, 2009, Livro III, Parte 2, Seção 2).

154 © Ética II
UNIDADE 3 – Ética Moderna: Hume e Kant

O poder das paixões pode ser um obstáculo ao exercício da ge-


nerosidade advinda do convívio social
Hume diz:
6. Entretanto, embora devamos reconhecer, em honra da na-
tureza humana, a existência dessa generosidade, podemos ao
mesmo tempo observar que essa paixão tão nobre, em vez
de preparar os homens para a vida em sociedades, é quase
tão contrária a estas quanto o mais acirrado egoísmo. Pois,
enquanto cada pessoa amar a si mesma mais que a qualquer
outro, e, em seu amor pelos demais, sentir maior afeição por
seus parentes e amigos, essa situação deve necessariamente
produzir uma oposição de paixões e, conseqüentemente, uma
oposição de ações; e, para uma união recém-estabelecida,
isso só pode ser perigoso.
7. Note-se, entretanto, que essa contrariedade de paixões se-
ria pouco perigosa se não coincidisse com uma peculiaridade
nas circunstâncias externas, que dá a ela oportunidade de se
exercer. Os bens que possuímos podem ser de três espécies
diferentes: a satisfação interior do espírito, as qualidades ex-
teriores de nosso corpo e a fruição dos bens que adquirimos
com o nosso trabalho e nossa boa sorte. Podemos usufruir
dos primeiros com plena segurança, os segundos podem nos
ser tomados, mas não beneficiam em nada a quem deles nos
priva. Apenas os últimos podem ser transferidos sem sofrer
alguma perda ou alteração; além disso, não existem em quan-
tidade suficiente para suprir os desejos e as necessidades de
todas as pessoas. Por isso, assim como o aperfeiçoamento
desses bens é a principal vantagem da sociedade, assim tam-
bém a instabilidade de sua posse, justamente com a sua es-
cassez, é seu maior impedimento (HUME, 2009, Livro III, Parte
2, Seção 2).

© Ética II 155
UNIDADE 3 – Ética Moderna: Hume e Kant

A solução são as virtudes artificiais: a necessidade de uma con-


venção social
O filósofo afirma:
9. O remédio, portanto, não vem da natureza, mas do artifício;
ou, mais corretamente falando, a natureza fornece, no juízo
e no entendimento, um remédio para o que há de irregular e
inconveniente nos afetos. Porque quando os homens, em sua
primeira educação na sociedade, tornam-se sensíveis às infi-
nitas vantagens que dela resultam, e, além disso, adquiriram
um novo gosto pelo convívio e pela conversação; e quando
observam que a principal perturbação da sociedade se deve a
esses bens que denominamos externos, a sua mobilidade e à
facilidade com que se transmitem de uma pessoa a outra, en-
tão precisam buscar um remédio que ponha esses bens, tanto
quanto possível, em pé de igualdade com as vantagens firmes
e constantes da mente e do corpo. Ora, o único meio de rea-
lizar isso é por uma convenção, de que participam todos os
membros da sociedade, para dar estabilidade à posse desses
bens externos, permitindo que todos gozem pacificamente da-
quilo que puderam adquirir por trabalho ou boa sorte. Desse
modo, cada qual sabe aquilo que pode possuir com segurança
e as paixões têm restringidos seus movimentos parciais e con-
traditórios. Tal restrição não é contrária às paixões; se o fosse,
jamais poderia ser feita, nem mantida. É contrária apenas a
seu movimento cego e impetuoso. Em vez de abrir mão de
nossos interesses próprios, ou do interesse de nossos amigos
mais próximos, abstendo-nos dos bens alheios, não há melhor
meio de atender a ambos que por essa convenção, porque é
desse modo que mantemos a sociedade, tão necessária a seu
bem-estar e subsistência, como também aos nossos (HUME,
2009, Livro III, Parte 2, Seção 2).

156 © Ética II
UNIDADE 3 – Ética Moderna: Hume e Kant

A ideia de justiça é uma virtude artificial, porque é obtida por


uma convenção social e funda e explica as ideias de proprieda-
de, de direito e de obrigação
Hume prossegue:
11. Uma vez firmada essa convenção sobre a abstinência dos bens
alheios, e uma vez todos tendo adquirido uma estabilidade em
suas posses, surgem imediatamente as idéias de justiça e de in-
justiça, bem como as de propriedade, direito e obrigação. Essas
últimas são absolutamente ininteligíveis sem a compreensão das
primeiras. Nossa propriedade não é senão aqueles bens cuja posse
constante é estabelecida pelas leis da sociedade, isto é, pelas leis
da justiça. Portanto, aqueles que utilizam as palavras propriedade,
direito ou obrigação sem ter antes explicado a origem da justiça,
ou que fazem uso daquelas para explicar essa última, estão come-
tendo uma falácia grosseira, mostrando-se incapazes de raciocinar
sobre um fundamento sólido. A propriedade de uma pessoa é um
objeto a ela relacionado; essa relação não é natural, mas moral, e
fundada na justiça. É absurdo, portanto, imaginar que podemos
ter uma idéia de propriedade sem compreender completamente a
natureza da justiça e mostrar sua origem no artifício e na invenção
humana. A origem da justiça explica a da propriedade. Ambas são
geradas pelo mesmo artifício. Como nosso primeiro e mais natural
sentimento moral está fundado na natureza de nossas paixões, e
dá preferência a nós e a nossos amigos sobre estranhos, é impos-
sível que exista naturalmente algo como um direito ou uma pro-
priedade estabelecida, enquanto as paixões opostas dos homens
impelem em direções contrárias e não são restringidas por nenhu-
ma convenção ou acordo (HUME, 2009, Livro III, Parte 2, Seção 2).

Um ato isolado de justiça não atinge a sua finalidade porque, sendo


isolado e único, é frequentemente contrário ao interesse público
Sendo a justiça produto de uma convenção social, tem
como fim o interesse público. Portanto, um ato isolado e privado
de justiça não atingiria a sua finalidade.

© Ética II 157
UNIDADE 3 – Ética Moderna: Hume e Kant

22. Quando um homem de mérito, dado à caridade restitui uma


grande fortuna a um avaro ou a um enganador desleal, ele agiu
de maneira justa e louvável, mas o grupo sofrerá as conseqüên-
cias. Todo ato isolado de justiça, considerado separadamente,
não contribui nem ao interesse privado nem ao interesse público
e poderemos facilmente conceber de que maneira alguém pode
empobrecer em conseqüência de um caso isolado de integridade
e em razão de desejar que por um só ato, as leis da justiça sejam,
em todo o universo, suspensas por um instante. Mas, embora
os atos isolados de justiça sejam contrários ao interesse públi-
co e privado, é certo que um plano ou esquema de vários atos
contribuem altamente, através da verdade, e são absolutamente
necessários à sustentação da sociedade e um benefício para cada
indivíduo. É impossível separar o bem do mal. [...] Ainda que um
grupo sofra em determinado caso, este mal temporário é grande-
mente compensado pela obediência constante à regra e pela paz
e ordem que ela institui na sociedade (HUME, 1991, p. 98-99).

Considerações finais
Finalizando, gostaríamos de assinalar que o afastamento
de uma razão abstrata e conceitual como fonte ética da ação
moral conduz Hume na direção do que entendemos como sen-
do uma das facetas essenciais do ético propriamente dito, tal
como o estamos compreendendo nesta obra, e que consiste em
contemplar o caráter intencional, singular de cada ato, compor-
tamento e situação. Contemplar o caráter intencional de uma
ação, comportamento ou situação é contemplar sua "morada
interior" e não a "morada exterior", ou o fato da ação em si: "A
realização externa não tem nenhum mérito", diz Hume.
Vimos como o filósofo descreve essa "morada interior",
fundamentando-a na "motivação". O que importa é o caráter
"emotivo" da ação, aquilo que a move e que a distingue da "mo-
rada exterior", que é a ação apenas como puro sinal.

158 © Ética II
UNIDADE 3 – Ética Moderna: Hume e Kant

No tópico seguinte a este, trabalharemos a posição do filóso-


fo Immanuel Kant, cujas reflexões sobre a moral receberam, como
ele mesmo diz, grande influência do pensamento de Hume, a quem
atribui o despertar do "sono dogmático" em que se encontrava.

6. Immanuel Kant (1724-1804)


Kant nasceu, viveu e morreu em Königsberg (Prússia Oriental,
atual Alemanha). Nasceu em uma família de poucos recursos finan-
ceiros. Recebeu uma educação, particularmente de sua mãe, fun-
dada nos princípios do pietismo (corrente radical do protestantismo
prussiano, originário de um movimento da Igreja Luterana alemã do
século 18), lutou sempre com dificuldades tanto materiais quanto
no que se refere à compreensão de sua proposta filosófica inovado-
ra. Manteve-se, porém, firme em seu trabalho de grande rigor.
A época em que viveu Kant, o século 18, como foi dito na
introdução desta unidade, é chamada de Século das Luzes ou Ilu-
minismo, ou ainda, Era da Razão, época da qual é um dos maio-
res representantes e que tinha por objetivo principal reformar a
sociedade contra a intolerância da Igreja e do Estado.
Kant não nega a importância da religião, que tem, segundo
ele, sua razão de ser, uma vez que existe todo um mundo que
escapa às capacidades da razão. Porém, quer mostrar que o fun-
damento do conhecimento e da moral pode ser encontrado fora
da religião, que até então dominara.
Segundo Kant, não podemos pretender conhecer realida-
des transcendentes, às quais não temos acesso. Devemos nos li-
mitar a buscar conhecer a realidade que é objeto de experiência
para nós. E, para tanto, faz-se necessário esclarecer qual seria a
estrutura de nossas capacidades cognitivas, aquelas que não de-

© Ética II 159
UNIDADE 3 – Ética Moderna: Hume e Kant

correm de experiências individuais e particulares, mas que dizem


respeito a toda a humanidade como tal.
A conclusão a que chega é que as duas fontes do conheci-
mento (sensibilidade e entendimento) estão no sujeito e não no
mundo (leia o tópico "Kant e o Iluminismo" desta mesma unidade).

Kant e a moral
As quatro principais obras de Kant em que a moral é trata-
da mais longamente são:
• Fundamentação da metafísica dos costumes (1785);
• Crítica da razão prática (1788);
• Crítica da faculdade de julgar (1790);
• A paz perpétua: um projeto filosófico (1795).

A teoria da "boa vontade"


Kant começa afirmando que a única coisa que merece a
denominação de "bem" e de "bom" é o que chamou de "boa
vontade". A "boa vontade" é, no dizer de Kant, o que é possí-
vel conceber no ou fora do mundo como bom, sem restrição.
Os diversos talentos do espírito, como inteligência, capacidade
de julgar, coragem, decisão, perseverança e temperança, serão
coisas boas ou ruins, dependendo das disposições próprias ou
do "caráter" da vontade que os esteja usando. Poderíamos dizer
o mesmo de dons como poder, riqueza, felicidade. Tais talentos
ou dons trazem, segundo o filósofo, uma confiança em si que,
frequentemente, na ausência de uma boa vontade, se conver-
tem em presunção.
NÃO É POSSÍVEL conceber coisa alguma no mundo, ou mesmo
fora do mundo, que sem restrição possa ser considerada boa, a

160 © Ética II
UNIDADE 3 – Ética Moderna: Hume e Kant

não ser uma só: uma BOA VONTADE. A inteligência, o dom de


apreender as semelhanças das coisas, a faculdade de julgar, e
os demais talentos do espírito, seja qual for o nome que se lhes
dê, ou a coragem, a decisão, a perseverança nos propósitos,
como qualidades do temperamento, são sem dúvida, sob múl-
tiplos respeitos, coisas boas e apetecíveis; podem, entretanto,
estes dons da natureza tornar-se extremamente maus e preju-
diciais, se não for boa vontade que deles deve servir-se e cuja
especial disposição se denomina caráter. O mesmo se diga dos
dons da fortuna. O poder, a riqueza, a honra, a própria saúde e
o completo bem-estar e satisfação do próprio estado, em resu-
mo o que se chama felicidade, geram uma confiança em si mes-
mo que muitas vezes se converte em presunção, quando falta a
boa vontade para moderar e fazer convergir para fins universais
tanto a imprudência que tais dons exercem sobre a alma como
também o princípio da ação. Isto, sem contar que um especta-
dor razoável e imparcial nunca lograria sentir satisfação em ver
que tudo corre ininterruptamente segundo os desejos de uma
pessoa que não ostenta nenhum vestígio de verdadeira boa
vontade; donde parece que a boa vontade constitui a condição
indispensável para ser feliz (KANT, 1994, p. 4).

A boa vontade é boa em si mesma, não está condicionada


a circunstâncias. O homem é regido por ele mesmo, é criador de
valores morais. Essa consciência moral não é nem instintiva nem
emotiva. É a própria razão.

Kant e Hume
Para Kant, a razão não tem apenas um papel instrumental,
como para Hume. Toda moralidade funda sua autoridade apenas
na razão. Só a razão determina se uma ação é boa ou má, inde-
pendentemente de nossos desejos.
Enquanto seres sensíveis, estamos submissos ao mecanis-
mo natural, porém, como seres dotados de inteligência, somos

© Ética II 161
UNIDADE 3 – Ética Moderna: Hume e Kant

capazes de pensar, conhecer a nós mesmos e emitir juízos mo-


rais, o que nos torna capazes de escapar ao determinismo da
natureza.
Apenas em alguns casos, nossas ações podem ser produ-
zidas por desejos e crenças. Isso acontece quando agimos por
inclinação. Quando nossas ações são guiadas por considerações
morais, a razão determina não apenas os meios, mas também
os fins de nossas ações. A questão que se coloca é, então, a se-
guinte: que razão é essa que, por si mesma, ordena "o que deve"
acontecer, independentemente de todo e qualquer fenômeno e,
portanto, universalmente, a todo ser humano?
Propõe Kant a si, então, a tarefa de circunscrever os limites
de possibilidade tanto da razão responsável pelo conhecimento
(a especulativa) quanto da razão responsável pela moral.

A razão responsável pela moral é a razão prática


Ao tentar fundamentar a moral, Kant é levado à proposi-
ção de uma razão distinta da razão especulativa. É a razão que
denominou de "prática". A consciência moral é a razão prática,
segundo Kant. Como observa García Morente, em Fundamentos
da filosofia (1980), Kant vai buscar em Aristóteles essa denomi-
nação, em cuja também a moral significa "razão prática". Razão
prática quer dizer que, na consciência moral, atua algo que se
assemelha à razão, mas não é a razão especulativa.
A consciência moral ou razão prática contém princípios
racionais, em virtude dos quais nós, seres humanos, regemos
nossa vida. É a razão aplicada à ação. Essa razão prática contém
qualificativos como bom, mal, moral, imoral etc. Não tendo a ra-
zão prática (como tem a razão especulativa, que rege o conheci-

162 © Ética II
UNIDADE 3 – Ética Moderna: Hume e Kant

mento) por meta determinar a essência das coisas, seus qualifi-


cativos não se aplicam a coisas (as coisas não são boas ou más,
morais ou imorais), mas só se aplicam ao homem. Os qualificati-
vos morais se aplicam ao que o homem "quer fazer", ou seja, ao
exercício da vontade. Assim, por exemplo, se alguém comete um
erro involuntariamente, não podemos qualificá-lo nem de bom,
nem de mau, nem de moral, nem de imoral, porque o ato não foi
cometido no exercício de sua vontade.

As três grandes dimensões da consciência moral ou razão


prática
Trabalharemos a noção de razão prática ou consciência
moral em Kant, a partir de três grandes dimensões a ela con-
feridas pelo filósofo. São elas: a dimensão da universalidade, a
dimensão da autonomia e a dimensão da liberdade.

A dimensão da universalidade: a razão pura prática ou


consciência moral determina a vontade a partir de imperativos
O critério fundamental racional para qualificar uma ação
como ação moral, isto é, como ação universalmente válida, se-
ria, segundo Kant, a existência dessa razão pura prática capaz de
estabelecer uma universalidade no que se refere à moral, assim
como a razão pura especulativa ou teórica estabelece uma uni-
versalidade no que diz respeito ao conhecimento. Temos, então,
uma razão pura universal que se diferencia em razão pura espe-
culativa e razão pura prática. A razão pura especulativa possuiria
a capacidade de determinar a priori o conhecimento do sujeito
cognoscitivo e a razão pura prática possuiria essa mesma capaci-
dade de determinar a priori a vontade do sujeito agente.

© Ética II 163
UNIDADE 3 – Ética Moderna: Hume e Kant

A razão pura prática daria à vontade de cada um (vontade


subjetiva particular) ordenamentos objetivos. Esses ordenamen-
tos seriam "imperativos". Diz Kant:
A representação de um princípio objectivo, enquanto obrigante
para uma vontade, chama-se um mandamento (da razão), e a fór-
mula do mandamento chama-se imperativo (KANT, 1960, p. 48).

Em outras palavras, todo ato voluntário se apresenta à ra-


zão na forma de um imperativo, ou seja, todo ato, ao se realizar,
aparece à consciência à maneira de um mandamento (faça isto;
não aja assim).
Os imperativos, diz Kant, podem ser hipotéticos ou cate-
góricos. Os imperativos hipotéticos sujeitam o mandamento em
questão a uma condição (se queres obter x, faça y). Nos impe-
rativos categóricos, ao contrário, o mandamento não está sob
nenhuma condição, impera de maneira absoluta. Vejamos, a res-
peito, um texto de Kant:
Ora todos os imperativos ordenam ou hipotética ou categori-
camente. Os hipotéticos representam a necessidade prática
de uma acção possível como meio de alcançar qualquer outra
coisa que se quer (ou que é possível que se queira). O impera-
tivo categórico seria aquele que nos representasse uma acção
como objectivamente necessária por si mesma, sem relação
com qualquer outra finalidade (KANT, 1960, p. 48-51).

O imperativo da moralidade é um imperativo categórico


Toda ação moral indica que a referida ação é objetivamen-
te necessária e boa em si mesma; portanto, o imperativo da
"moralidade" é um imperativo categórico.
Há por fim um imperativo que, sem se basear como condição
em qualquer outra intenção a atingir por um certo comporta-
mento, ordena imediatamente este comportamento. Este im-

164 © Ética II
UNIDADE 3 – Ética Moderna: Hume e Kant

perativo é categórico. Não se relaciona com a matéria da acção


e com o que dela deve resultar, mas com a forma e o princípio
de que ela mesma deriva; e o essencialmente bom na acção
reside na disposição Gesinnung, seja qual for o resultado. Este
imperativo pode-se chamar o imperativo da moralidade (KANT,
1960, p. 52, grifo nosso).

A lei moral, enquanto imperativo categórico, é universal


O imperativo categórico é universal porque contém, ao
mesmo tempo, a lei e o princípio da necessidade de se confor-
mar com essa lei. Como não há condição que limite a lei, todo
imperativo categórico é universal.
Vejamos o texto de Kant a esse respeito:
Quando penso um imperativo hipotético em geral, não sei de an-
temão o que ele poderá conter. Só o saberei quando a condição
me seja dada. Mas se pensar um imperativo categórico, então sei
imediatamente o que é que ele contém. Porque, não contendo
o imperativo, além da lei, senão a necessidade da máxima que
manda conformar-se com esta lei, e não contendo a lei nenhuma
condição que a limite, nada mais resta senão a universalidade de
uma lei em geral à qual a máxima da acção // deve ser conforme,
conformidade essa que só o imperativo nos representa propria-
mente como necessária (KANT, 1960, p. 58-59).

Consequentemente, a vontade divina e a vontade santa não são


passíveis de imperativos
Querer o bem ou a busca do bem não poderia, portanto,
segundo Kant, fazer parte da moralidade, pois o princípio moral
é, por sua própria natureza, independente de crenças, culturas
e tradições. Fundamenta-se em algo universal, a lei. Assim, uma
vontade perfeitamente boa, como seriam a vontade divina e a
vontade santa, não são passíveis de imperativos, não se apresen-
tam como obrigadas a leis. Diz Kant que:

© Ética II 165
UNIDADE 3 – Ética Moderna: Hume e Kant

Uma vontade perfeitamente boa estaria, portanto, igualmente


submetida a leis objectivas (do bem), mas não se poderia repre-
sentar como obrigada a acções conformes à lei, pois que pela
sua constituição subjectiva ela só pode ser determinada pela
representação do bem. Por isso os imperativos não valem para
a vontade divina nem, em geral, para uma vontade santa; o de-
ver (Sollen) não está aqui no seu lugar, porque o querer coincide
já por si necessariamente com a lei (KANT, 1960, p. 48-51).

A dimensão da autonomia: toda ação moral é uma ação


autônoma
As leis morais seriam, segundo Kant, destituídas de todo
valor moral se seu princípio determinante tivesse outra origem
que não fosse a lei que traz nela mesma essa certeza apodítica
(certeza evidente).
Assim, ao contrário da ação heterônoma, que é instintiva e
não decorre da vontade do agente, como seria o caso da moral
aristocrática, que depende de ideais transcendentes e da mo-
ral utilitarista (que depende de ideais que emanam de coisas), a
ação moral, segundo Kant, é uma ação autônoma.
Esse princípio de autonomia da ação moral consiste no fato
de as regras ou máximas serem compreendidas como leis univer-
sais, que não advêm da experiência, que são absolutamente in-
dependentes e necessárias, que comandam apoditicamente (de
maneira necessariamente verdadeira), opondo-se ao empírico (o
que vem da experiência), que é contingente e generalizável.
O indivíduo deve estar livre para agir, ou seja, não obede-
cer a outra lei senão àquela que ele mesmo simultaneamente se
dá, enquanto possuidor de uma vontade, e não em virtude de
qualquer outro motivo prático ou de qualquer vantagem futura.
Por essa razão, o princípio que rege a ação de uma vontade li-

166 © Ética II
UNIDADE 3 – Ética Moderna: Hume e Kant

vre legisladora universal, que é a ação moral, é, como vimos, um


imperativo categórico que, por ser universal, não se funda em
nenhuma condição, em nenhuma hipótese.
Assim o princípio, segundo o qual toda a vontade humana seria
uma vontade legisladora universal por meio de todas as suas má-
ximas, se fosse seguramente estabelecido, conviria perfeitamente
ao imperativo categórico no sentido de que, exactamente por cau-
sa da idéia da legislação universal, ele se não funda em nenhum
interesse, e portanto, de entre todos os imperativos possíveis, é o
único que pode ser incondicional; ou, melhor ainda, invertendo a
proposição: se há um imperativo categórico (isto é uma lei para a
vontade de todo o ser racional), ele só pode ordenar que tudo se
faça em obediência à máxima de uma vontade que simultanea-
mente se possa ter a si mesma por // objecto como legisladora
universal; pois só então é que o princípio prático e o imperativo a
que obedece podem ser incondicionais, porque não têm interesse
algum sobre que se fundem (KANT, 1960, p. 74).

Trata-se de uma Ética "deontológica"


A Ética de Kant é, portanto, "deontológica", ou seja, defen-
de que o valor moral de uma ação reside na própria ação e não
em suas consequências. É o que veremos, mais claramente, a
seguir a partir da noção kantiana de "Dever".
Deontologia é um termo criado pelo filósofo inglês Jeremy
Bentham (1748-1832) e se refere à ética como tendo por objeto
de estudo os fundamentos do dever e das normas enquanto de-
correntes de uma ação considerada em si mesma. Compreende,
por exemplo, o conjunto de princípios e regras de conduta ou
deveres decorrentes de uma determinada ação profissional. O
primeiro Código de Deontologia foi da área da medicina e foi fei-
to nos Estados Unidos da América do Norte. A palavra é formada
por "deon" (dever, obrigação em grego) e logos (ciência).

© Ética II 167
UNIDADE 3 – Ética Moderna: Hume e Kant

O Dever
Este agir sem qualquer motivação, livre de interesses, subordi-
nando a vontade a uma legislação universal, eis o "dever". Diz Kant:
Pois o dever deve ser a necessidade prática-incondicionada da ac-
ção; tem de valer portanto para todos os seres racionais (os únicos
aos quais se pode aplicar sempre um imperativo), e só por isso pode
ser lei também para toda a vontade humana (KANT, 1960, p. 64).

Na moralidade, o "dever" não é, porém, a mera conformidade


com o que prescreve a lei
Na moralidade, o dever é essencialmente impulso para o
dever, o dever pelo dever, inexiste qualquer outro motivo. O va-
lor moral de um ato funda-se na pureza de intenção, na medida
em que ela independe de qualquer outro motivo que não seja o
cumprimento do dever pelo dever.
Vejamos o que diz Kant:
É na verdade conforme ao dever que o merceeiro não suba os
preços ao comprador inexperiente, e, quando o movimento do
negócio é grande, o comerciante esperto também não faz se-
melhante coisa, mas mantém um preço fixo geral para toda a
gente, de forma que uma criança pode comprar na sua mer-
cearia tão bem como qualquer outra pessoa. É-se, pois, servido
honradamente; mas isso ainda não é bastante para acreditar
que o comerciante tenha assim procedido por dever e princí-
pios de honradez; o seu interesse assim o exigia; mas não é de
aceitar que ele além disso tenha tido uma inclinação imediata
para os seus fregueses, de maneira a não fazer, por amor deles,
preço mais vantajoso a um do que a outro. A acção não foi, por-
tanto, praticada nem por dever nem por inclinação imediata,
mas somente com intenção egoísta (KANT, 1960, p. 27).

168 © Ética II
UNIDADE 3 – Ética Moderna: Hume e Kant

E isto porque uma ação só é moral quando realizada "por dever"


e não "conforme ao dever"
Diz Kant:
Pelo contrário, conservar cada qual a sua vida é um dever, e é
além disso uma coisa para que toda a gente tem inclinação ime-
diata. Mas por isso mesmo é que o cuidado, por vezes ansioso,
que a maioria dos homens lhe dedicam não tem nenhum valor
intrínseco e a máxima que o exprime nenhum conteúdo moral.
Os homens conservam a sua vida conforme // ao dever, sem
dúvida, mas não por dever. Em contraposição, quando as con-
trariedades e o desgosto sem esperança roubaram totalmente
o gosto de viver; quando o infeliz, com fortaleza de alma, deseja
a morte, e conserva contudo a vida sem a amar, não por inclina-
ção ou medo, mas por dever, então a sua máxima tem conteúdo
moral (KANT, 1960, p. 27).

Fazer a caridade não por inclinação, mas "por dever"


O filósofo alemão afirma:
Ser caritativo quando se pode sê-lo é um dever, e há além disso
muitas almas de disposição tão compassiva que, mesmo sem ne-
nhum outro motivo de vaidade ou interesse, acham íntimo prazer
em espalhar alegria à sua volta e se podem alegrar com o conten-
tamento dos outros, enquanto este é obra sua. Eu afirmo porém
que neste caso uma tal acção, por conforme ao dever, por amável
que ela seja, não tem contudo nenhum verdadeiro valor moral,
mas vai emparelhar com outras inclinações, por exemplo o amor
das honras que, quando por feliz acaso topa aquilo que efectiva-
mente é de interesse geral e conforme ao dever, é consequente-
mente honroso e merece louvor e estímulo, mas não estima; pois
à sua máxima falta o conteúdo moral que manda que tais acções
se pratiquem, não por inclinação, mas por dever. Admitindo, pois,
que o ânimo desse filantropo estivesse velado pelo desgosto pes-
soal que apaga toda // a compaixão pela sorte alheia, e que ele
continuasse a ter a possibilidade de fazer bem aos desgraçados,

© Ética II 169
UNIDADE 3 – Ética Moderna: Hume e Kant

mas que a desgraça alheia o não tocava porque estava bastante


ocupado com a sua própria; se agora, que nenhuma inclinação o
estimula já, ele se arrancasse a esta mortal insensibilidade e prati-
casse a acção sem qualquer inclinação, simplesmente por dever, só
então é que ela teria o seu autêntico valor moral. Mais ainda: – Se
a natureza tivesse posto no coração deste ou daquele homem pou-
ca simpatia, se ele (homem honrado de resto) fosse por tempera-
mento frio e indiferente às dores dos outros por ser ele mesmo
dotado especialmente de paciência e capacidade de resistência às
suas próprias dores e por isso pressupor e exigir as mesmas quali-
dades dos outros; se a natureza não tivesse feito de um tal homem
(que em boa verdade não seria o seu pior produto) propriamente
um filantropo, – não poderia ele encontrar ainda dentro de si um
manancial que lhe pudesse dar um valor muito mais elevado do
que o dum temperamento bondoso? Sem dúvida! – É exactamen-
te aí é que começa o valor do carácter, que é moralmente sem
qualquer comparação o mais alto, e que consiste em fazer o bem,
não por inclinação, mas por dever (KANT, 1960, p. 28).

Portanto, a essência do cumprimento "por dever" estaria


na capacidade da vontade de contrariar as tendências naturais,
não se deixando causar por fatores externos, mas atender a im-
perativos como: agir como se o princípio de nossa ação pudesse
ser erigido em lei universal da natureza.

Essa autonomia da razão prática ou consciência moral é o fun-


damento da dignidade da natureza humana e de toda natureza
racional, tornando-as um fim e não um meio
Diz Kant:
Ora digo eu: – O homem, e, duma maneira geral, todo o ser racio-
nal, existe como fim em si mesmo, não só como meio para o uso
arbitrário desta ou daquela vontade. Pelo contrário, em todas as
suas acções, tanto nas que se dirigem a ele mesmo como nas que
se dirigem // a outros seres racionais, ele tem sempre de ser con-
siderado simultaneamente como fim (KANT, 1960, p. 68).

170 © Ética II
UNIDADE 3 – Ética Moderna: Hume e Kant

O imperativo é: aja de tal maneira que a humanidade seja


tratada tão bem na nossa pessoa como na pessoa de qualquer
outro e sempre como um fim e nunca como meio.

A terceira dimensão da ação moral: a da "liberdade"


A possibilidade da moral, segundo Kant, não depende nem
da ciência, nem da religião, nem da metafísica; ela está fundada
na ideia de uma vontade livre.
A vontade, segundo Kant, é um "poder agir" ou um "poder
causar", ou, ainda, um "poder querer" livres, porque possui justa-
mente esta propriedade de ser a sua própria lei, uma vez que não
é determinada por causas estranhas, como influências e interes-
ses sensíveis; do contrário, não se trataria de um ato de vontade.
A liberdade, portanto, embora não seja uma propriedade
da vontade segundo leis naturais (na natureza, nos seres irracio-
nais, impera e domina a necessidade), é propriedade da vontade
nos seres racionais.
Sobre a vontade enquanto "poder causador", próprio aos
seres racionais, e a liberdade como propriedade desse mesmo
"poder causador", independentemente de causas estranhas, diz
Kant:
[...] é uma espécie de causalidade dos seres vivos, enquanto ra-
cionais, e liberdade seria a propriedade desta causalidade, pela
qual ela pode ser eficiente, independentemente de causas estra-
nhas que a determinem; assim como a necessidade é a proprie-
dade dos seres irracionais de serem determinados à atividade
pela influência de causas estranhas (KANT, 1960, p. 93-94, grifo
nosso).

© Ética II 171
UNIDADE 3 – Ética Moderna: Hume e Kant

Mas a liberdade, enquanto propriedade da vontade, não seria


desprovida de lei
A liberdade não seria desprovida de lei, pois é a proprieda-
de de um "poder causador" (vontade), ou seja, de uma relação
de causa e efeito e, como tal, é baseada em leis imutáveis.
Diz Kant:
Como o conceito de uma causalidade traz consigo o de leis se-
gundo as quais, por meio de uma coisa a que chamamos causa,
tem de ser posta outra // coisa que se chama efeito, assim a
liberdade, se bem que não seja uma propriedade da vontade
segundo leis naturais, não é por isso desprovida de lei, mas tem
antes de ser uma causalidade segundo leis imutáveis, ainda que
de uma espécie particular; pois de outro modo uma vontade
livre seria absurdo (KANT, 1960, p. 93-94).

Isso porque uma vontade só é livre quando regida por leis


imutáveis, independentes de circunstâncias particulares.
Trata-se, portanto, de uma "liberdade transcendental", se-
gundo a expressão de Kant, em que o "poder querer" ou a von-
tade antecede a experiência e independe dela.

A moral kantiana é uma moral não eudaimônica, ou seja, não


tem por meta a "felicidade"

Eudaimonia: palara de origem grega (eu = bem + daimon = es-


pírito), significando "felicidade" não no sentido de uma emoção
ou de uma visão utilitarista, mas no sentido em que foi empre-
gada no pensamento grego antigo: "bem-viver", "prosperidade".

Embora Kant considere que o fim do homem seja a procura


da felicidade (como Platão e Aristóteles), distingue felicidade de
moralidade. A razão prática não nos pode ensinar e nem defi-

172 © Ética II
UNIDADE 3 – Ética Moderna: Hume e Kant

nir o que é a felicidade, apesar desta ser a finalidade dos seres


racionais.
Observa que, embora "estar bem" não se oponha a "fa-
zer bem", o fato de "se estar bem", não significa "fazer bem". A
moral nos ensina ou nos leva a ser merecedores da felicidade,
porém não nos torna felizes.
O caminho para a felicidade, segundo Kant, é o dever. O
cumprimento do dever, embora consista em obediência incondi-
cional, não significa renunciar à felicidade, porém também não
significa subordinação à procura da felicidade.
Na obra Crítica da Razão Prática, Kant observa que a feli-
cidade não seria o objetivo e fundamento da moralidade, pois é
um conceito empírico, consistindo em um sentimento do agen-
te. Para Kant, a felicidade provém da satisfação dos nossos dese-
jos, e, por essa razão, ela não depende de nós, uma vez que esse
satisfazer nossos desejos se subordina a circunstâncias externas
à nossa vontade. O homem é um ser que pertence à natureza,
sua felicidade escapa à sua vontade. E, se escapa à vontade do
agente, como poderia ser um objetivo da moralidade?
Relacionada à alegria e aos prazeres, a felicidade não dis-
tingue entre prazeres superiores e inferiores. Em outras palavras,
não é possível definir racionalmente a felicidade, independente-
mente da experiência. A felicidade de cada um depende de sua
sensibilidade aos diferentes prazeres da vida. Assim, pode-se ser
feliz com a riqueza, beleza, inteligência etc.
Não há conexão necessária no homem entre a moralidade
e a felicidade, uma vez que a felicidade é dependente de bens
contingentes. O cumprimento das exigências da lei moral não

© Ética II 173
UNIDADE 3 – Ética Moderna: Hume e Kant

nos concederá, por si só, nenhuma felicidade, a não ser em uma


situação absolutamente contingente. Diz Kant:
A felicidade é o estado no mundo de um ser racional para o qual,
na totalidade da sua existência, tudo corre segundo o seu desejo
e a sua vontade e funda-se, pois, na harmonia da natureza com
o fim integral desse ser e igualmente com o principio determi-
nante essencial da sua vontade. Ora, a lei moral, enquanto lei da
liberdade, ordena por princípios determinantes que devem ser
totalmente independentes da natureza e da sua harmonia com
a nossa faculdade de desejar (como móbeis); mas o ser racional
agente no mundo não é, contudo, simultaneamente causa do
mundo e da própria natureza. Portanto, não existe na lei moral
a menor conexão necessária entre moralidade e felicidade a ela
proporcionada de um ser que, fazendo parte do mundo e, por-
tanto, dele dependendo, não pode por isso mesmo ser pela sua
vontade causa desta natureza e fazê-la por suas próprias forças
coadunar-se inteiramente [...] (KANT, 1994, p. 143).

A razão é contrária à felicidade


Segundo Kant, podemos mesmo dizer que a razão é con-
trária à felicidade.
[...] quanto mais uma razão cultivada se consagra ao gozo da
vida e da felicidade, tanto mais o homem se afasta do verda-
deiro contentamento; e daí provém que em muitas pessoas, e
nomeadamente nas mais experimentadas no uso da razão, se
elas quiserem ter a sinceridade de o // confessar, surja um cer-
to grau de misologia, quer dizer de ódio à razão. E isto porque,
uma vez feito o balanço de todas as vantagens que elas tiram,
não digo já da invenção de todas as artes do luxo vulgar, mas
ainda das ciências (que a elas lhes parecem no fim e ao cabo
serem também um luxo do entendimento), descobrem contu-
do que mais se sobrecarregaram de fadigas do que ganharam
em felicidade, e que por isso finalmente invejam mais do que
desprezam os homens de condição inferior que estão mais pró-
ximos do puro instinto natural e não permitem à razão grande

174 © Ética II
UNIDADE 3 – Ética Moderna: Hume e Kant

influência sobre o que fazem ou deixam de fazer (KANT, 1960,


p. 24-26).

Enfim, o supremo destino da razão prática é a fundação de uma


vontade e não da felicidade
Kant afirma:
[...] Portanto, se a razão não é apta bastante para guiar com
segurança a vontade no que respeita aos seus objectos // e à
satisfação de todas as nossas necessidades (que ela mesma – a
razão – em parte multiplica), visto que um instinto natural inato
levaria com muito maior certeza a este fim, e se, no entanto, a
razão nos foi dada como faculdade prática, isto é, como facul-
dade que deve exercer influência sobre a vontade, então o seu
verdadeiro destino deverá ser produzir uma vontade, não só
boa quiçá como meio para outra intenção, mas uma vontade
boa em si mesma, para o que a razão era absolutamente neces-
sária, uma vez que a natureza de resto agiu em tudo com acerto
na repartição das suas faculdades e talentos. Esta vontade não
será na verdade o único bem nem o bem total, mas terá de ser
contudo o bem supremo e a condição de tudo o mais, mesmo
de toda a aspiração de felicidade. E neste caso é fácil de conci-
liar com a sabedoria da natureza o facto de observarmos que a
cultura da razão, que é necessária para a primeira e incondicio-
nal intenção, de muitas maneiras restringe, pelo menos nesta
vida, a consecução da segunda, que é sempre condicionada,
quer dizer, da felicidade, e pode mesmo reduzi-la a menos de
nada, sem que com isto a natureza falte à sua finalidade, por-
que a razão, que reconhece o seu supremo destino prático na
fundação duma boa vontade, ao alcançar esta intenção é capaz
duma só satisfação conforme à sua própria índole, isto é a que
pode achar ao atingir um fim que só ela (a razão) // determina,
ainda que isto possa estar ligado a muito dano causado aos fins
da inclinação (KANT, 1960, p. 24-26).

© Ética II 175
UNIDADE 3 – Ética Moderna: Hume e Kant

Kant e o Iluminismo
Em seu texto sobre o Iluminismo, respondendo, em 1784,
à pergunta de uma revista alemã de Berlim, Kant expõe seu ideal
de apelo ao exercício autônomo da razão aqui descrito.
Reflete sobre o momento social e político de sua época,
visando à elevação do homem à sua condição singular e única
de ser livre. Cada um é responsável por essa liberação da "me-
noridade". Somente cada um, com liberdade, pode dela se livrar.
Essa liberação só é possível com o esclarecimento do próprio
pensar, esclarecimento que deve ser contínuo, de maneira a po-
der ver o mundo com outros olhos, livres de conceitos e normas
estabelecidos.
A liberdade de fazer uso público do pensar esclarecido per-
mite, por sua vez, a discussão e o intercâmbio de ideias, o qual
fundamentará a realização da ação transformadora.
Ético é, pois, para Kant, conquistar deliberadamente a pró-
pria liberdade incondicionada, servindo-se de sua capacidade ra-
cional. Este seria o caráter singular e único de toda ação humana.

Observação: a palavra alemã Aufklärung é traduzida por escla-


recimento, ilustração, Iluminismo.

Diz Kant (2015, p. 1-2):


lluminismo é a saída do homem da sua menoridade de que ele
próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de se servir
do entendimento sem a orientação de outrem. Tal menorida-
de é por culpa própria, se a sua causa não residir na carência
de entendimento, mas na falta de decisão e de coragem em se
servir de si mesmo, sem a guia de outrem. Sapere aude! Tem
a coragem de te servires do teu próprio entendimento! Eis a
palavra de ordem do Iluminismo.

176 © Ética II
UNIDADE 3 – Ética Moderna: Hume e Kant

A preguiça e a cobardia são as causas de os homens em tão


grande parte, após a natureza os ter há muito libertado do con-
trole alheio (naturaliter maiorennes), [482] continuarem, toda-
via, de bom grado menores durante toda a vida; e também de
a outros se tornar tão fácil assumir-se como seus tutores. É tão
cómodo ser menor. Se eu tiver um livro que tem entendimento
por mim, um director espiritual que em vez de mim tem cons-
ciência moral, um médico que por mim decide da dieta, etc.,
então não preciso de eu próprio me esforçar. Não me é forçoso
pensar, quando posso simplesmente pagar; outros empreende-
rão por mim essa tarefa aborrecida. Porque a imensa maioria
dos homens (inclusive todo o belo sexo) considera a passagem
à maioridade difícil e também muito perigosa é que os tutores
de bom grado tomaram a seu cargo a superintendência deles.
Depois de terem, primeiro, embrutecido os seus animais do-
mésticos e evitado cuidadosamente que estas criaturas pací-
ficas ousassem dar um passo para fora da carroça em que as
encerraram, mostram-lhes em seguida o perigo que as ameaça,
se tentarem andar sozinhas. Ora, este perigo não é assim tão
grande, pois acabariam por aprender muito bem a andar. Só
que um tal exemplo intimida e, em geral, gera pavor perante
todas as tentativas ulteriores.
É, pois, difícil a cada homem desprender-se da menoridade que
para ele se tomou [483] quase uma natureza. Até lhe ganhou
amor e é por agora realmente incapaz de se servir do seu pró-
prio entendimento, porque nunca se lhe permitiu fazer seme-
lhante tentativa.

Regras e fórmulas "são laços de uma menoridade eterna":


Preceitos e fórmulas, instrumentos mecânicos do uso racional,
ou antes, do mau uso dos seus dons naturais são os grilhões
de uma menoridade perpétua. Mesmo quem deles se soltasse
só daria um salto inseguro sobre o mais pequeno fosso, por-
que não está habituado ao movimento livre. São, pois, muito
poucos apenas os que conseguiram mediante a transformação
do seu espírito arrancar-se à menoridade e encetar então um
andamento seguro (KANT, 2015, p. 2).

© Ética II 177
UNIDADE 3 – Ética Moderna: Hume e Kant

Com liberdade é possível sair do estado de "menoridade":


Mas é perfeitamente possível que um público a si mesmo se
esclareça. Mais ainda, é quase inevitável, se para tal lhe for con-
cedida a liberdade. Sempre haverá, de facto, alguns que pen-
sam por si, mesmo entre os tutores estabelecidos da grande
massa que, após terem arrojado de si o jugo da menoridade,
espalharão à sua volta o espírito de uma estimativa racional do
próprio valor e da vocação de cada homem para pensar por si
mesmo. Importante aqui é que o público, antes por eles sujeito
a este jugo, os obriga doravante a permanecer sob ele quando
por alguns dos seus tutores, pessoalmente incapazes de qual-
quer ilustração, é a isso [484] incitado. Semear preconceitos é
muito danoso, porque acabam por se vingar dos que pessoal-
mente, ou os seus predecessores foram os seus autores. Por
conseguinte, um público só muito lentamente consegue chegar
à ilustração. Por meio de uma revolução talvez se possa levar a
cabo a queda do despotismo pessoal e da opressão gananciosa
ou dominadora, mas nunca uma verdadeira reforma do modo
de pensar. Novos preconceitos, justamente como os antigos,
servirão de rédeas à grande massa destituída de pensamento
(KANT, 2015, p. 2).

A liberdade em que se funda a ação moral é aquela que faz


uso público da própria razão em todos os campos.
Mas, para esta ilustração [leia-se esclarecimento], nada mais se
exige do que a liberdade; e, claro está, a mais inofensiva entre
tudo o que se pode chamar liberdade, a saber, a de fazer um
uso público da sua razão em todos os elementos. Agora, po-
rém, de todos os lados ouço gritar: não raciocines! Diz o oficial:
não raciocines, mas faz exercícios! Diz o funcionário de Finan-
ças: não raciocines, paga! E o clérigo: não raciocines, acredita!
(Apenas um único senhor no mundo diz: raciocinai tanto quan-
to quiserdes e sobre o que quiserdes, mas obedecei!) Por toda
a parte se depara com a restrição da liberdade. Mas qual é a
restrição que se opõe ao Iluminismo? Qual a restrição que o
não impede, antes o fomenta?

178 © Ética II
UNIDADE 3 – Ética Moderna: Hume e Kant

Respondo: o uso público da própria razão deve sempre ser livre


e só ele pode, entre os homens, levar a cabo a ilustração [485];
mas o uso privado da razão pode, muitas vezes, coarctar-se
[restringir-se] fortemente sem que, no entanto, se entrave as-
sim notavelmente o progresso da ilustração (KANT, 2015, p. 3).

Kant (2015, p. 3-4) distingue o uso público do uso privado


da razão:
Por uso público da própria razão entendo aquele que qualquer
um, enquanto erudito, dela faz perante o grande público do
mundo letrado. Chamo uso privado àquele que alguém pode
fazer da sua razão num certo cargo público ou função a ele con-
fiado. Ora, em muitos assuntos que têm a ver com o interesse
da comunidade, é necessário um certo mecanismo em virtude
do qual alguns membros da comunidade se comportarão de um
modo puramente passivo com o propósito de, mediante uma
unanimidade artificial, serem orientados pelo governo para
fins públicos ou de, pelo menos, serem impedidos de destruir
tais fins. Neste caso, não é decerto permitido raciocinar, mas
tem de se obedecer. Na medida, porém, em que esta parte
da máquina se considera também como elemento de uma co-
munidade total, e até da sociedade civil mundial, portanto, na
qualidade de um erudito que se dirige por escrito a um público
em entendimento genuíno, pode certamente raciocinar sem
que assim sofram qualquer dano os negócios a que, em parte,
como membro passivo, se encontra sujeito. Seria, pois, muito
pernicioso se um oficial, a quem o seu superior ordenou algo,
quisesse em serviço sofismar em voz alta [486] acerca da incon-
veniência ou utilidade dessa ordem; tem de obedecer, mas não
se lhe pode impedir de um modo justo, enquanto perito, fazer
observações sobre os erros do serviço militar e expô-las ao seu
público para que as julgue. O cidadão não pode recusar-se a
pagar os impostos que lhe são exigidos; e uma censura imperti-
nente de tais obrigações, se por ele devem ser cumpridas, pode
mesmo punir-se como um escândalo (que poderia causar uma
insubordinação geral). Mas, apesar disso, não age contra o de-
ver de um cidadão se, como erudito, ele expuser as suas idéias

© Ética II 179
UNIDADE 3 – Ética Moderna: Hume e Kant

contra a inconveniência ou também a injustiça de tais prescri-


ções. Do mesmo modo, um clérigo está obrigado a ensinar os
instruídos de catecismo e a sua comunidade em conformidade
com o símbolo da Igreja, a cujo serviço se encontra, pois ele
foi admitido com esta condição. Mas, como erudito, tem plena
liberdade e até a missão de participar ao público todos os seus
pensamentos cuidadosamente examinados e bem-intenciona-
dos sobre o que de erróneo há naquele símbolo, e as propostas
para uma melhor regulamentação das matérias que respeitam
à religião e à Igreja. Nada aqui existe que possa constituir um
peso na consciência. Com efeito, o que ele ensina em virtude
da sua função, como ministro da Igreja, expõe-no como algo em
relação [487] ao qual não tem o livre poder de ensinar segun-
do a sua opinião própria, mas está obrigado a expor segundo
a prescrição e em nome de outrem. Dirá: a nossa Igreja ensina
isto ou aquilo; são estes os argumentos comprovativos de que
ela se serve. Em seguida, ele extrai toda a utilidade prática para
a sua comunidade de preceitos que ele próprio não subscre-
veria com plena convicção, mas a cuja exposição se pode, no
entanto, comprometer, porque não é de todo impossível que
neles resida alguma verdade oculta. De qualquer modo, porém,
não deve neles haver coisa alguma que se oponha à religião
interior, pois se julgasse encontrar aí semelhante contradição,
então não poderia em consciência desempenhar o seu ministé-
rio; teria de renunciar. Por conseguinte, o uso que um professor
contratado faz da sua razão perante a sua comunidade é apenas
um uso privado, porque ela, por maior que seja, é sempre ape-
nas uma assembleia doméstica; e no tocante a tal uso, ele como
sacerdote não é livre e também o não pode ser, porque exerce
uma incumbência alheia. Em contrapartida, como erudito que,
mediante escritos, fala a um público genuíno, a saber, ao mun-
do, por conseguinte, o clérigo, no uso público da sua razão, goza
de uma liberdade ilimitada de se servir da própria razão e de
falar em seu nome próprio.

180 © Ética II
UNIDADE 3 – Ética Moderna: Hume e Kant

O avanço progressivo no esclarecimento é uma deter-


minação original da natureza humana e um sagrado direito da
humanidade.
A pedra de toque [489] de tudo o que se pode decretar como
lei sobre um povo reside na pergunta: poderia um povo impor
a si próprio essa lei? Seria decerto possível, na expectativa, por
assim dizer, de uma lei melhor, por um determinado e curto
prazo, para introduzir uma certa ordem. Ao mesmo tempo,
facultar-se-ia a cada cidadão, em especial ao clérigo, na qua-
lidade de erudito, fazer publicamente, isto é, por escritos, as
suas observações sobre o que há de erróneo nas instituições
anteriores; entretanto, a ordem introduzida continuaria em vi-
gência até que o discernimento da natureza de tais coisas se
tivesse de tal modo difundido e testado publicamente que os
cidadãos, unindo as suas vozes (embora não todas), poderiam
apresentar a sua proposta diante do trono a fim de protegerem
as comunidades que, de acordo com o seu conceito do melhor
discernimento, se teriam coadunado numa organização religio-
sa modificada, sem todavia impedir os que quisessem ater-se à
antiga. Mas é de todo interdito coadunar-se numa constituição
religiosa pertinaz, por ninguém posta publicamente em dúvi-
da, mesmo só durante o tempo de vida de um homem e deste
modo aniquilar, por assim dizer, um período de tempo no pro-
gresso da humanidade para o melhor e torná-lo infecundo e
prejudicial para a posteridade. Um homem, para a sua pessoa,
[490] e mesmo então só por algum tempo, pode, no que lhe
incumbe saber, adiar a ilustração; mas renunciar a ela, quer seja
para si, quer ainda mais para a descendência, significa lesar e
calcar aos pés o sagrado direito da humanidade. O que não é
lícito a um povo decidir em relação a si mesmo menos o pode
ainda um monarca decidir sobre o povo, pois a sua autorida-
de legislativa assenta precisamente no facto de na sua vontade
unificar a vontade conjunta do povo. Quando ele vê que toda
a melhoria verdadeira ou presumida coincide com a ordem ci-
vil, pode então permitir que em tudo o mais os seus súbditos
façam por si mesmos o que julguem necessário fazer para a sal-
vação da sua alma. Não é isso que lhe importa, mas compete-

© Ética II 181
UNIDADE 3 – Ética Moderna: Hume e Kant

-lhe obstar a que alguém impeça à força outrem de trabalhar


segundo toda a sua capacidade na determinação e fomento da
mesma (KANT, 2015, p. 5).

Considerações finais
Vimos que Kant, ao se ocupar do fundamento da moral, é
levado a postular outra razão distinta da razão teórica ou espe-
culativa (própria do conhecimento científico), razão que chamou
de "razão prática". A moralidade não decorreria das regras de
um código de conduta, não se limitaria em agir de acordo com
normas. Para Kant, regras morais se identificam facilmente com
causas exteriores à razão. São do domínio das leis enquanto con-
venções sociais e do Direito positivo. Variam segundo as culturas
e épocas.
Não são os hábitos de conduta e de comportamento que
nos levam a optar pelo cumprimento do dever ou decisões con-
duzidas pela boa vontade. Em outras palavras, não são a trans-
missão e o respeito a um código de conduta que nos levarão a
um comportamento moral.
Propõe, assim, uma moralidade autônoma, fundada na
teoria dos imperativos categóricos essencialmente universais.
Daí o nome de "universalismo ético", dado à posição kantiana.
Uma moralidade dependente inteiramente de uma razão práti-
ca, ou seja, independente de condicionamentos externos, sejam
eles históricos, étnicos, sociais etc.
A razão prática é a razão que guia a ação. É uma forma
pura que pode ser aplicada a qualquer situação. Tem a validade
universal das leis que regem a natureza. Assumida como algo ab-
soluto, não pode ser exercida sob condições. Sua inteligibilidade
pode ser alcançada, porém não pela razão teórica.

182 © Ética II
UNIDADE 3 – Ética Moderna: Hume e Kant

A razão prática não depende de nada, a não ser de si mes-


ma, é absolutamente livre e nisso é o contrário da natureza: esta
atua segundo leis; a razão prática, que é a vontade racional hu-
mana, "atua segundo a ideia de lei", ultrapassando tudo o que
seja sensível para ser ela mesma. Causa incondicionada de si
mesma, é a manifestação da "razão" como tal, em toda a sua
força e superioridade.
Embora considere as leis morais semelhantes às leis cien-
tíficas, porque, como estas, são igualmente universais e im-
pessoais (não se referem a pessoas, lugares ou épocas), Kant
assinala uma diferença essencial entre esses dois tipos de leis:
enquanto o conceito científico se funda em uma universalidade
"mediata", ou seja, é construído "mediante" uma generalização
de conteúdos advindos da experiência empírica, a máxima em
que se baseia a lei moral não decorre de nenhum processo de
generalização, não contém conteúdo empírico, mas é de nature-
za imediata.
Reencontramos aqui o que temos buscado mostrar, por
meio do pensamento de diferentes filósofos, a presença de uma
dimensão ética propriamente dita, não passível de ser trabalha-
da à luz da razão especulativa generalizante. Um saber daquela
"morada interior" singular e única, e nem por isso menos uni-
versal, provida de uma inteligibilidade pura, isenta de conteúdos
sensíveis, saber que nos põe em contato com uma dimensão hu-
mana não cognoscitiva, mas de natureza "valorizadora".

7. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS
Confira, a seguir, as questões propostas para verificar o seu
desempenho no estudo desta unidade:

© Ética II 183
UNIDADE 3 – Ética Moderna: Hume e Kant

1) Com base no trecho de Hume a seguir, presente em sua célebre obra in-
titulada Tratado da natureza humana, redija um comentário, procuran-
do sinalizar em que medida está presente na reflexão humeana o ético,
"morada interior", e o moral, "morada exterior", na forma como estamos
tentando encontrar essa distinção na História da Filosofia.
2. É evidente que, quando elogiamos uma determinada ação,
consideramos apenas os motivos que a produziram, e tomamos
a ação como signo ou indicador de certos princípios da mente
e do caráter. A realização externa não tem nenhum mérito. Te-
mos de olhar para o interior da pessoa para encontrar a quali-
dade moral. Ora, como não podemos fazê-lo diretamente, fixa-
mos nossa atenção na ação, como signo externo. Mas a ação é
considerada apenas um signo; o objeto último de nosso elogio
e aprovação é o motivo que a produziu.
3. Do mesmo modo, sempre que exigimos que uma pessoa re-
alize uma ação, ou a censuramos por não realizá-la, estamos
supondo que alguém nessa situação deveria ser influenciado
pelo motivo próprio dessa ação, e consideramos vicioso que o
tenha desconsiderado. Se após investigarmos melhor a situa-
ção, descobrimos que o motivo virtuoso estava presente em
seu coração, embora sua operação tenha sido impedida por
alguma circunstância que nos era desconsiderada, retiramos
nossa censura e passamos a ter pela pessoa a mesma estima
que teríamos se houvesse de fato realizado a ação que dela exi-
gíamos (HUME, 2009, Livro III, Parte 2, Seção 1).

2) De que forma Kant une a vontade livre a uma causalidade da vontade?


a) Para Kant, a causalidade é uma propriedade apenas da natureza, em
que um objeto determina o outro necessariamente. Nesse sentido, a
causalidade da vontade determinaria um outro objeto a agir de uma
determinada forma, nisso consistindo a liberdade.
b) A liberdade da vontade é uma propriedade dos seres humanos racio-
nais. A vontade é livre para se autodeterminar, ou seja, sua autodetermi-
nação é uma causalidade interna própria dos seres racionais. Mas essa
autodeterminação segue necessariamente leis causais que, embora não
sejam naturais, são imutáveis, pois o conceito de causalidade já traz
consigo o de lei. Sendo assim, uma vontade livre, que não pudesse se
autodeterminar segundo suas próprias leis universais, seria um absurdo.

184 © Ética II
UNIDADE 3 – Ética Moderna: Hume e Kant

c) Não pode haver causalidade na vontade livre, pois, para Kant, a liber-
dade não pode ser autodeterminada por meio de leis universais. Nesse
sentido, seria absurdo propor uma causalidade para a liberdade, sen-
do esta isenta de toda a lei.
d) Todas as respostas anteriores estão corretas.

Gabarito
Confira, a seguir, as respostas corretas para as questões au-
toavaliativas propostas:
1) Nesta questão, você deve levar em consideração o signo exterior da ação
como sendo constitutivo da morada exterior e o motivo virtuoso interno
como o objeto de investigação da morada interior.

2) b.

8. CONSIDERAÇÕES
Vimos que Kant, ao se ocupar do fundamento da moral, é
levado a postular outra razão distinta da razão teórica ou espe-
culativa, própria do conhecimento científico, razão que chamou
de "razão prática".
Embora considere as leis morais semelhantes às leis cien-
tíficas, porque, como estas, são igualmente universais e im-
pessoais (não se referem a pessoas, lugares ou épocas), Kant
assinala uma diferença essencial entre esses dois tipos de leis:
enquanto o conceito científico se funda em uma universalidade
"mediata", ou seja, é construído "mediante" uma generalização
de conteúdos advindos da experiência empírica, a máxima em
que se baseia a lei moral não decorre de nenhum processo de
generalização, não contém conteúdo empírico, mas é de nature-
za imediata.

© Ética II 185
UNIDADE 3 – Ética Moderna: Hume e Kant

Reencontramos aqui o que temos buscado mostrar, por meio


do pensamento de diferentes filósofos: a presença de uma dimen-
são ética propriamente dita, não passível de ser trabalhada à luz da
razão especulativa generalizante. Um saber daquela "morada inte-
rior" singular e única, e nem por isso menos universal, provida de
uma inteligibilidade pura, isenta de conteúdos sensíveis – saber que
nos põe em contato com outra dimensão humana, uma dimensão
não cognoscitiva, mas, de natureza estimativa e valorizadora.

9. E-REFERÊNCIAS
CONTE, J. A natureza da moral de Hume. 2004. Tese (Doutorado em Filosofia) –
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2004. Disponível em: <http://www.tede.ufsc.br/teses/USP1019-T.pdf>. Acesso
em: 31 ago. 2015.
GARCÍA MORENTE, M. Fundamentos de filosofia: lições preliminares. Trad. Guilhermo
de la Cruz Coronado. 8. ed. São Paulo: Mestre Jou, 1980. Disponível em: <http://
copyfight.me/Acervo/livros/MORENTE,%20Manuel%20Garcia.%20Fundamentos%20
de%20Filosofia.pdf>. Acesso em: 26 ago. 2015.
KANT, I. Resposta à pergunta: "o que é o Iluminismo?". Tradução de Athur Mourão.
Disponível em: <http://www.lusosofia.net/textos/kant_o_iluminismo_1784.pdf>.
Acesso em: 28 ago. 2015.

10. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


HUME, D. Tratado da natureza humana: uma tentativa de introduzir o método
experimental de raciocínio nos assuntos morais. Trad. Débora Danowski. 2. ed. São
Paulo: Unesp, 2009.
______. Traité de la nature humaine. Paris: Garnier-Flammarion, 1991.
KANT, I. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. Paulo Quintela. Lisboa:
Edições 70, 1960. (Textos Filosóficos).
______. Crítica da razão prática. Trad. Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1994. (Textos
Filosóficos).
ROUX-LANIER, C. (Org.). Le temps des philosophes. Paris: Hatier, 1995.

186 © Ética II
UNIDADE 4
Primórdios da Pós-Modernidade:
Schopenhauer e Nietzsche

1. objetivo
• Verificar a acentuação da preocupação ética em detri-
mento da moral no pensamento de Schopenhauer e
Nietzsche.

2. conteúdos
• A ética da compaixão em Arthur Schopenhauer.
• O problema da valoração moral em Nietzsche.

3. orientações para o estudo da unidade


Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que
você leia as orientações a seguir:
1) A fim de se ambientar com o pensamento de Arthur
Schopenhauer indicamos o vídeo (dividido em par-
tes) do Prof. Dr. José Thomaz Brum Observações sobre
Schopenhauer:
• BRUM, J. T. Observações sobre Schopenhauer – Par-
te 1. Disponível em: <http://www.youtube.com/
watch?v=P4Px9zajVXE>. Acesso em: 31 ago. 2015.

187
UNIDADE 4 – Primórdios da Pós-Modernidade: Schopenhauer e Nietzsche

• ______. Observações sobre Schopenhauer – Parte


2. Disponível em: <http://www.youtube.com/wa
tch?v=ufkcJ0MrnBs&feature=endscreen&NR=1>.
Acesso em: 31 ago. 2015.
• ______. Observações sobre Schopenhauer – Parte
3. Disponível em: <http://www.youtube.com/wat
ch?feature=endscreen&NR=1&v=8kvUCPtgUiw>.
Acesso em: 31 ago. 2015.
• ______. Observações sobre Schopenhauer – Parte
4. Disponível em: <http://www.youtube.com/wat
ch?feature=endscreen&NR=1&v=UCjQcIBU9Ak>.
Acesso em: 31 ago. 2015.
• ______. Observações sobre Schopenhauer – Parte
5. Disponível em: <http://www.youtube.com/wat
ch?feature=endscreen&NR=1&v=Tvd59opNEjU>.
Acesso em: 31 ago. 2015.
• ______. Observações sobre Schopenhauer – Parte
6. Disponível em: <http://www.youtube.com/wat
ch?NR=1&feature=endscreen&v=La5qBut9Mw0>.
Acesso em: 31 ago. 2015.
• ______. Observações sobre Schopenhauer – Parte
7. Disponível em: <http://www.youtube.com/wa
tch?NR=1&feature=endscreen&v=ds7Jf-LGtGk>.
Acesso em: 31 ago. 2015.
• ______. Observações sobre Schopenhauer – Parte
8. Disponível em: <http://www.youtube.com/wat
ch?v=UD6iAUXBdyc&feature=endscreen&NR=1>.
Acesso em: 31 ago. 2015.

188 © Ética II
UNIDADE 4 – Primórdios da Pós-Modernidade: Schopenhauer e Nietzsche

• ______. Observações sobre Schopenhauer – Parte


9. Disponível em: <http://www.youtube.com/wat
ch?v=ak3rp3sp4e4&feature=endscreen>. Acesso
em: 31 ago. 2015.
• ______. Observações sobre Schopenhauer – Par-
te 10. Disponível em: <http://www.youtube.com/
watch?v=Di-JA0gpwt8>. Acesso em: 31 ago. 2015.
• ______. Observações sobre Schopenhauer – Fi-
nal. Disponível em: <http://www.youtube.com/
watch?v=6VJxgpSFrdM>. Acesso em: 31 ago. 2015.
2) Sobre a Filosofia de Nietzsche, sugerimos que você
assista ao episódio do Café Filosófico da TV Cultura
com palestra da Profª. Viviane Mosé. Disponível em:
<http://www.youtube.com/watch?v=wszgKT2zS-c>.
Acesso em: 31 ago. 2015.
3) No decorrer de seus estudos, talvez você sinta a neces-
sidade de conhecer mais a respeito de determinado
assunto. Por isso, seria interessante que você adqui-
risse o hábito de consultar dicionários específicos da
filosofia. Sugerimos, a seguir, dois dos dicionários mais
utilizados por aqueles que se interessam por Filosofia
(talvez você os encontre em versões mais atualizadas):
• ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. 5. ed. Trad.
Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fon-
tes, 2007.
• LALANDE, A. Vocabulário técnico e crítico da Filoso-
fia. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

© Ética II 189
UNIDADE 4 – Primórdios da Pós-Modernidade: Schopenhauer e Nietzsche

4. introdução
A modernidade preparou uma espécie de otimismo em re-
lação ao desenvolvimento da ciência e, atrelado a ele, a crença
de que a ciência seria responsável por uma constante melhoria
da situação existencial da vida humana. De Descartes a Kant, te-
mos uma valorização da razão que se pretende como a única ca-
paz de levar a cabo o projeto de uma humanidade esclarecida.
Tal projeto encarna-se como movimento histórico do chamado
"século das luzes" com o Iluminismo. No entanto, sorrateiramen-
te, a mesma modernidade vai fazendo brotar uma compreensão
pessimista com relação a esse mesmo projeto futurístico, uma
desconfiança de que os rumos traçados pela razão não levarão
ao fim desejado.
Os valores iluministas, a crença na razão, acabam levan-
do a um esgotamento de suas possibilidades. A metafísica ra-
cional chega ao seu ápice com o pensamento de Hegel, para o
qual "todo o real é racional" e, ao mesmo tempo, esgota suas
possibilidades. Schopenhauer e Nietzsche, mais do que filósofos
que integram, em suas filosofias, a questão do irracional, da von-
tade, do pessimismo etc., são os filósofos que deixam emergir
os problemas que apareciam como questões de segunda ordem
na modernidade, e vislumbram novas possibilidades de filosofar
mesmo disparando duros golpes à razão. A questão ética, "o ca-
ráter", começa a aparecer no primeiro plano das preocupações
desses filósofos, enquanto o problema moral vai perdendo es-
paço. Assim, convidamos você a acompanhar os pensamentos
desses dois grandes expoentes da Filosofia. Vamos lá?

190 © Ética II
UNIDADE 4 – Primórdios da Pós-Modernidade: Schopenhauer e Nietzsche

5. Arthur Schopenhauer (1788-1860)


Schopenhauer pertencia a uma família de ricos comercian-
tes e estava destinado a se dedicar ao comércio. Das inúmeras
viagens na companhia de seu pai, fica-lhe a certeza do caráter
trágico da vida humana. Decide, então, mergulhar no estudo das
obras de Kant.
Inscreve-se na Universidade alemã de Göttingen para es-
tudar Medicina e Ciências Exatas, porém seu interesse pela Filo-
sofia é maior. Assiste, em Berlim, aos cursos de Fichte (discípulo
de Kant, cujo entendimento do criticismo kantiano consiste em
um idealismo imanentista, ou seja, movimento de pensamento
para o qual as coisas não existem em si; todo conhecimento é
representação).
Retira-se para Rudolstadt (cidade alemã fundada em 776),
onde medita e escreve durante cinco anos. Sua obra O mundo
como vontade e como representação é publicada em Leipzig em
1818. Após tentar e não conseguir se dedicar ao ensino na Uni-
versidade de Berlim, instala-se em 1831 na cidade de Frankfurt.
Com a publicação, em 1851, da obra Parerga e paralipome-
na, que significa trabalhos menores e que consiste em uma série
de pensamentos ordenados sobre diversos assuntos, inclusive os
famosos Aforismos para a sabedoria e vida, torna-se conhecido.

Uma Ética da compaixão


O fundamento da moral em Schopenhauer é a "compai-
xão" – do latim "compassione", que significa uma compreensão
do estado emocional de outrem, colocando-se no seu lugar, bus-
cando minorar o seu sofrimento. O princípio ético fundamental

© Ética II 191
UNIDADE 4 – Primórdios da Pós-Modernidade: Schopenhauer e Nietzsche

para Schopenhauer é: não faças mal a ninguém, mas ajudes a


todos que puderes.
Dentro do contexto do pensamento de Schopenhauer, a
compaixão implicaria a negação do "querer viver" (nichtwollen).
Vejamos o porquê no próximo tópico.

Vontade e representação
Para Schopenhauer, tudo no mundo é vontade e
representação.

Vontade
Toda existência seria a manifestação de um "querer" es-
sencial. O conceito de vontade tem, no pensamento do filósofo,
uma extensão muito mais ampla do que aquela em que é comu-
mente entendido, pois a vontade é, para Schopenhauer, o que
funda toda a realidade. Conhecida de imediato, nada é mais bem
compreendido por nós do que a vontade, diz o filósofo.
Na segunda parte de sua obra O mundo como vontade e
como representação, Schopenhauer diz que a solução do enigma
do mundo deve ser buscada no homem, uma vez que é a expe-
riência interior que nos levará à essência do mundo. Na reflexão
sobre si mesmo, o sujeito surge como "querer" e não como en-
tendimento. A vontade não é como o conhecimento, comandada
pelo cérebro; é uma força original que cria e mantém o corpo
com suas funções conscientes e inconscientes.
A vontade é o que está na origem de todas as forças inor-
gânicas da natureza. "Substância" íntima e original, é idêntica
quanto à matéria em todas as mudanças e movimentos dos cor-

192 © Ética II
UNIDADE 4 – Primórdios da Pós-Modernidade: Schopenhauer e Nietzsche

pos, em todas as suas variações, nos minerais, nos vegetais, nos


animais e nos humanos. Faz germinar e crescer a planta, dá a
forma regular ao cristal, manifesta-se na matéria mais bruta sob
a forma de peso. Embora todas essas coisas se deem a nós dis-
tintas umas das outras, na realidade são individuações de uma
mesma vontade. O mundo em si, desde o inorgânico ao ser hu-
mano, seria um "querer viver", um fluxo perpétuo e eterno de
afirmação da vida, sua origem e seu fim.
Continuando, o filósofo diz que o conhecimento preciso
e imediato nos é fornecido pelos movimentos de nosso próprio
corpo e a isso chamamos vontade. A força que age e move a na-
tureza e se manifesta nos fenômenos de maneira cada vez mais
perfeita eleva-se bastante alto para que o conhecimento a escla-
reça por meio de uma luz direta. Em outras palavras, essa força
que age e move a natureza apresenta-se de maneira cada vez
mais perfeita, até se tornar passível de conhecimento. Chegada
essa força ao estado de consciência de si, revela-se propriamen-
te como "vontade", noção da qual temos conhecimento preciso
e que, por isso mesmo, longe de ser explicada por qualquer ou-
tro elemento estranho, explica-se a si mesma.
A "vontade" é, pois, o que se expressa das mais variadas
maneiras, em tudo o que existe no mundo; é a essência do mun-
do e a substância de todos os fenômenos.

Representação
Por sua vez, o mundo existe apenas como "representação",
ou seja, na relação com um ser que percebe. A realidade (seja ela
o que for) não seria separável das formas de apreensão de um
sujeito, formas como:

© Ética II 193
UNIDADE 4 – Primórdios da Pós-Modernidade: Schopenhauer e Nietzsche

• a do tempo (responsável pela finitude do mundo);


• a do espaço (responsável pela multiplicidade);
• a da causalidade (responsável pela necessidade).
A vontade, diferentemente do mundo dos fenômenos ou
do mundo como "representação", não seria determinada pe-
las três formas a priori citadas, pois a vontade não depende do
tempo, porque é eterna; nem do espaço, porque é una; nem da
causalidade, porque é livre. Enfim, a base ou fundamento cons-
titutivo de toda realidade se inscreve na falta de determinação
temporal, espacial e causal.
Segundo o filósofo, o mundo fenomênico ou da represen-
tação é o espelho da vontade de vida.
A Vontade que, considerada puramente em si, destituída de
conhecimento é apenas um ímpeto cego e irresistível – como
a vemos entrar em cena na natureza inorgânica e na natureza
vegetal, assim como na parte vegetativa da nossa própria vida
– atinge, pela entrada em cena do mundo como representação
desenvolvida para o seu serviço, o conhecimento de sua volição
e daquilo que ela quer, a saber, nada senão este mundo, a vida,
justamente como esta existe. Por isso denominamos o mundo
fenomênico seu espelho, sua objetidade; // e, como o que a
Vontade sempre quer é a vida, precisamente porque esta nada
é senão a exposição daquele querer para a representação, é in-
diferente e tão somente um pleonasmo se, em vez de simples-
mente dizermos "a Vontade", dizemos "a Vontade de vida". [...]
Onde existe Vontade, existirá vida, mundo. Portanto, à Vontade
de vida a vida é certa, e pelo tempo em que estivermos preen-
chidos de Vontade de vida, não precisamos temer por nossa exis-
tência, nem pela visão da morte (SCHOPENHAUER, 2005, p. 358).

O fundo de todas as formas vivas é, assim, constituído desse


esforço incessante, o qual, ao alcançar o ponto alto de suas mani-
festações objetivas, seu princípio verdadeiro e mais geral, revela-

194 © Ética II
UNIDADE 4 – Primórdios da Pós-Modernidade: Schopenhauer e Nietzsche

-se a si mesmo como vontade encarnada em um corpo que lhe


impõe suas leis, tornado este corpo a própria vontade de viver.

O "querer" é a condição do surgimento do "eu"


Os atos de nosso corpo ocorrem no tempo e no espaço,
ligados pela lei da causalidade. Ao surgir nossa condição de sujei-
tos cognoscentes, devido ao princípio de individuação (como dis-
tintos uns dos outros), passamos a nos perceber imediatamente
como sujeitos volitivos. O sujeito cognoscente ilumina o sujei-
to volitivo, e o primeiro sinal de consciência de nossa existência
surge como o "querer", pois, no momento em que queremos,
temos consciência de que "o ser que conhece" é o mesmo "ser
que quer". Portanto, o querer é a condição do surgimento do
"eu". O "querer" não é "substância" autônoma, individual, mas é
o próprio corpo e suas ações.

A condição humana: todo querer tem por princípio uma neces-


sidade, uma carência e, portanto, uma dor
Schopenhauer descreve a existência humana como trágica
e dolorosa, como um pêndulo que oscila, sem cessar, entre o so-
frimento e o tédio. Seu horizonte é a morte. Já na matéria bruta,
encontramos um esforço contínuo, sem fim e sem repouso, os
animais e os homens apresentam uma sede insaciável de que-
rer. Somos todos prisioneiros da dor pela própria natureza, pois
todo querer tem por princípio uma necessidade, uma carência,
portanto, uma dor. Se a vontade não é satisfeita ou o desejo não
é atendido, os homens caem no tédio e suas existências tornam-
-se intoleráveis.

© Ética II 195
UNIDADE 4 – Primórdios da Pós-Modernidade: Schopenhauer e Nietzsche

Sendo o homem a mais perfeita das formas objetivas da


vontade, é também de todos os seres o mais atormentado pelas
necessidades de se manter vivo. Ele é inteiramente "vontade",
colocado na Terra, incerto de tudo, salvo de sua escravidão às
necessidades, necessidades estas difíceis de satisfazer e, a cada
vez, renovadas.
Há ainda outra necessidade trazida pela exigência de con-
servação da vida e que é a perpetuação da espécie. Para a gran-
de maioria dos homens, a vida é um combate perpétuo pela so-
brevivência. De acordo com o filósofo, o que faz o ser humano
lutar não é propriamente o amor à vida, mas a angústia e o medo
da morte, sempre à espreita em qualquer lugar e em qualquer
tempo.
Se a nossa existência não tem por fim imediato a dor, pode
dizer-se que não tem razão alguma de ser no mundo. Porque é
absurdo admitir que a dor sem fim, que nasce da miséria ine-
rente à vida e enche o mundo, seja apenas um puro acidente,
e não o próprio fim. Cada desgraça particular parece, é certo,
uma exceção, mas a desgraça geral é a regra. [...]
Assim como um regato corre sem ímpetos, enquanto não encon-
tra obstáculos, do mesmo modo na natureza humana, como na
natureza animal, a vida corre inconsciente e cuidadosa, quando
coisa alguma se lhe opõe à vontade. Se a atenção desperta, é
porque a vontade não era livre e se produziu algum choque. Tudo
o que se ergue em frente da nossa vontade, tudo o que a contra-
ria ou a resiste, isto é, tudo o que há desagradável e de doloroso,
sentimo-lo ato contínuo e muito nitidamente. Não atentamos na
saúde geral do nosso corpo, mas notamos o ponto ligeiro onde
o sapato nos molesta; não apreciamos o conjunto próspero dos
nossos negócios, e só pensamos numa ninharia insignificante
que nos desgosta. – O bem-estar e a felicidade são, portanto,
negativos, só a dor é positiva (SCHOPENHAUER, s/d., p. 21-22).

196 © Ética II
UNIDADE 4 – Primórdios da Pós-Modernidade: Schopenhauer e Nietzsche

A experiência do desejo, a morte e a vontade de viver


Em sua obra O mundo como vontade e como representa-
ção, Schopenhauer diz que a experiência do desejo é a ausência
de algo que falta, e a vida consiste em tentar preencher essa fal-
ta. Corre-se de objeto em objeto, em uma perseguição insaciável,
indo da privação (sofrimento) para a experiência do tédio, após a
posse ou realização do desejo. Enfim, aos seres vivos pesam suas
naturezas e suas existências de maneira intolerável. As angústias
do medo da morte, os sofrimentos e as mágoas chegam a tal
grau, que a morte se torna desejável.
Esse esforço incessante que constitui o fundo de todas as
formas visíveis, revestidas de vontade, chegando ao ponto mais
alto de suas manifestações objetivas, encontra seu princípio ver-
dadeiro e mais geral. A vontade, então, se revela a ela mesma em
um corpo vivo, que lhe impõe uma lei de ferro, o de se alimentar,
e esse corpo passa a ser a própria vontade de viver encarnada.

Quais motivos nos levam a transformar um "querer" em "ação"


O egoísmo é, segundo Schopenhauer, a potência mais
determinante do agir humano. Caracteriza-se por privilegiar a
realização do querer individual. É a potência moral intrínseca à
vontade de viver.
Faz parte da natureza da vontade dominar, se apropriar,
buscar o próprio prazer e isso significa provocar dor no outro. O
bem-estar de alguns, diz o filósofo, significa o mal-estar de ou-
tros: o lucro desmedido de patrões custa suor e lágrimas de ou-
tros; em benefício de alguns, impõe-se trabalho duro a crianças,
e há ainda a escravidão do ser humano pelo próprio ser humano;

© Ética II 197
UNIDADE 4 – Primórdios da Pós-Modernidade: Schopenhauer e Nietzsche

acrescenta-se a isso o fato da alimentação da espécie humana


custar a morte de outros animais, e assim por diante.
Outro motivo que nos leva a transformar um "querer" em
"ação" é a crueldade. Enquanto, no egoísmo, agimos com vistas
ao nosso próprio bem, na crueldade, agimos visando ao mal do
outro, seja um ser humano ou outros seres, como o animal, por
exemplo.
A pior feição da natureza humana permanece sendo o deleite
pela desgraça alheia, porque estreitamente aparentada à cruel-
dade, se distingue propriamente desta apenas como a teoria
da prática, e localizando-se precisamente onde deveria ser o
lugar da compaixão, que, como seu oposto, constitui a verda-
deira fonte de toda genuína justiça e amor pela humanidade
(SCHOPENHAUER, 1974, p. 104).

A compaixão (Mitleid) seria um terceiro motivo para agir –


nesse caso, agir pelo bem do outro. No ser humano, o egoísmo e
a crueldade superam em muito a compaixão.
Na compaixão, negamos essa pulsão da vontade, esse
nosso "querer viver", agindo pelo bem de outrem; diminuímos
a distância entre nós mesmos e o outro, nos identificando com
ele. Esse é, segundo Schopenhauer, o nosso único ato de liber-
dade expresso no mundo da representação, pois, compreenden-
do que o outro sou eu, eliminamos as ilusões do mundo da re-
presentação: a infinitude e a liberdade. Liberdade e compaixão
consistem, pois, para Schopenhauer, em negar esta pulsão da
vontade.

Liberdade e negação do livre-arbítrio


A posição de Schopenhauer sobre a liberdade é essencial-
mente original. Segundo ele, as ações humanas são regidas por

198 © Ética II
UNIDADE 4 – Primórdios da Pós-Modernidade: Schopenhauer e Nietzsche

rigoroso determinismo, determinismo esse que se deve à ação,


vimos, dos "motivos" (do egoísmo, da crueldade) sobre o caráter.
Tendo em vista esse determinismo, o uso prático da razão
não é decisivo na moralidade. Em outras palavras, o fundamen-
to de toda moral é a vontade, um suprassensível inatingível por
uma razão prática.
A autêntica bondade de disposição, a virtude desinteressada e
a pureza não se originam do conhecimento abstrato, embora
sem dúvida se originem do conhecimento, a saber, de um co-
nhecimento imediato e intuitivo que não pode ser adquirido ou
eliminado via raciocínio. Ora, precisamente por não ser abstra-
to, não pode ser comunicado mas tem de brotar em cada um de
nós (SCHOPENHAUER, 2005, p. 470-471).

A justiça e a caridade
As virtudes da justiça e da caridade são as manifestações
do ato de negar a pulsão da vontade, pois são movimentos que
contrariam o sentido fundamental do "querer viver" que, como
vimos, é essencialmente um voltar-se para si mesmo, para o pró-
prio bem-estar.
[...] quem reconhece e aceita voluntariamente o limite moral
entre o justo e o injusto, mesmo ali onde o Estado ou outro
poder não se imponha, quem, conseqüentemente [...] jamais,
na afirmação da própria vontade, vai até a negação da vontade
que se expõe em outro indivíduo – é JUSTO. Portanto, não infli-
girá sofrimento a outrem para aumentar o próprio bem-estar,
vale dizer, não cometerá crimes, respeitará o direito e a proprie-
dade alheios. [...]
Vimos que a justiça voluntária tem sua origem mais íntima num
certo grau de visão através do principii individuationis; enquan-
to o injusto, ao contrário, permanece completamente envolto
neste princípio. Um tal olhar-através-de se dá não apenas no
grau exigido pela justiça, mas também em graus mais elevados,

© Ética II 199
UNIDADE 4 – Primórdios da Pós-Modernidade: Schopenhauer e Nietzsche

os quais impulsionam à benevolência, à beneficência positiva, à


caridade: e isso é algo que pode acontecer não importa o quão
vigorosa e enérgica é em si mesma a vontade que aparece em
um semelhante indivíduo (SCHOPENHAUER, 2005, p. 471-473).

Todos os seres vivos somos a expressão de uma única vontade


de viver
Todo indivíduo, sentindo a vontade de viver intensamente,
tende a se considerar como o centro do mundo e, assim, há tan-
tos centros do mundo quanto há indivíduos, centros esses que se
afrontam mutuamente. É a luta de todos contra todos.
No entanto, tal luta é uma agressão a si mesmo, uma vez
que "todos" é a expressão de uma única e mesma vontade de
viver. Quando o véu de Maya (o que representa, no pensamento
hindu, a aparência ilusória que esconde a realidade propriamen-
te dita) é levantado diante dos olhos de um ser humano, este
não faz mais nenhuma distinção entre si mesmo e o outro. É,
então, capaz de tomar as dores do outro como suas e sacrificar
sua pessoa pelo outro.
Reconhece a si mesmo em cada ser, considera as infinitas
dores de todo ser vivo como sendo suas próprias dores, toman-
do para si a miséria do mundo. Para tal homem, não existe mais
essa alternância de bem e de mal, na qual consiste a visão da
grande maioria dos homens, ainda escravos do egoísmo. Tal ho-
mem passa a conhecer a essência de todas as coisas e perceber
que elas consistem em um fluxo perpétuo, em um esforço esté-
ril, em uma contradição íntima e em um sofrimento contínuo.
Schopenhauer, então, pergunta: como, conhecendo assim
o mundo, pode tal homem, por meio de incessantes atos de von-
tade, afirmar a vida, ligando-se a ela cada vez mais estreitamen-

200 © Ética II
UNIDADE 4 – Primórdios da Pós-Modernidade: Schopenhauer e Nietzsche

te, aliviando o seu peso? O filósofo responde que, quando isso


acontece, a vontade se desliga da vida e tal homem alcança o
estado de abnegação voluntária, resignando-se e vivenciando a
verdadeira calma e o término do querer.
Se, como exceção rara, encontramos um homem dotado de
uma considerável fortuna, mas que usufruiu muito pouco dela,
doando todo o resto aos necessitados, enquanto ele mesmo re-
nuncia a muitos gozos, ao conforto, se, a partir disso, tentamos
elucidar para nós mesmos o seus atos, notaremos que, tirante
no todo os dogmas pelos quais ele mesmo quer tornar conce-
bível seus atos à sua razão, em verdade, a expressão simples e
geral e o caráter essencial de sua conduta é que ele ESTABELE-
CE MENOS DIFERÊNÇA DO QUE A USUALMENTE ESTABELECIDA
ENTRE SI MESMO E OS OUTROS. Se esta diferença mesma, aos
olhos de muitos, é tão grande que o sofrimento alheio se tor-
na para o malvado uma alegria imediata e para o injusto um
meio bem-vindo ao próprio bem-estar; e, ainda, se o homem
// justo se furta a provocar semelhante sofrimento; por fim, se
em geral a maioria dos homens sabe e conhece em sua proxi-
midade inumeráveis sofrimentos de outros seres sem entretan-
to se decidirem a aliviá-los, visto que assim sofreriam alguma
privação; se portanto, em todos esses casos, parece instituir-se
em diferença poderosa entre o eu pessoal e o eu alheio – ao
contrário, naquele homem nobre que temos em mente tal dife-
rença é insignificante. O principii individuationis, a forma do fe-
nômeno não mais o enreda tão firmemente, mas o sofrimento
visto em outros o afeta quase tanto como se fosse seu; procura,
então, restabelecer o equilíbrio: renuncia aos gozos, aceita pro-
vações para aliviar o sofrimento alheio. O homem nobre nota
que a diferença entre si e outrem, que para o mau é um grande
abismo, pertence apenas a um fenômeno passageiro e ilusório;
reconhece imediatamente, sem cálculos, que o Em-si do seu fe-
nômeno é também o Em-si do fenômeno alheio, a saber, aquela
Vontade de vida constitutiva da essência de qualquer coisa, que
vive em tudo; sim, que ela se estende até mesmo aos animais
e à toda a natureza, logo, ele também não causará tormento a
animal algum (SCHOPENHAUER, 2005, p. 473-474).

© Ética II 201
UNIDADE 4 – Primórdios da Pós-Modernidade: Schopenhauer e Nietzsche

A completa inversão da negação da vontade: o suicídio


O suicídio é, para Schopenhauer, a inversão completa des-
sa negação da vontade descrita anteriormente.
§ 69
Nada mais difere tão amplamente da negação da Vontade de
vida exposta suficientemente nos limites do nosso modo de con-
sideração, e que constitui o único ato de liberdade da Vontade
a entrar em cena no fenômeno, [...] do que a afetiva supressão
de seu fenômeno individual, na efetividade, pelo SUICÍDIO. [...]
O suicida quer a vida; porém está insatisfeito com as condições
sob as quais a vive. Quando destrói o fenômeno individual, ele de
maneira alguma renuncia à Vontade de vida, mas tão-somente à
vida. Ele ainda quer a vida, quer a existência e a afirmação sem
obstáculos do corpo, porém, como a combinação das circunstân-
cias não o permite, o resultado é um grande sofrimento. O suicí-
dio, em realidade, é a obra-prima de Maia na forma do mais gri-
tante índice de contradição da Vontade de vida consigo mesma.
[...] O sofrimento se aproxima e, enquanto tal, abre-lhe a possi-
bilidade de negação da Vontade, porém ele a rejeita ao destruir
o fenômeno da Vontade, o corpo, de tal forma que a Vontade
permanece inquebrantável (SCHOPENHAUER, 2005, p. 504).

O único caminho de salvação é conhecer a própria essência da


vontade para suprimi-la
A salvação só se daria com a supressão da vontade, pois
esta é a razão do sofrimento e da dor. E, para suprimi-la, é neces-
sário que a vontade apareça livremente como tal. Livremente e
não por violência. Isso só acontece quando a vontade alcança o
conhecimento de si mesma, libertando-se do mundo dos fenô-
menos e de toda motivação, verificando-se, assim, o que os cris-
tãos chamam de recebimento da "Graça" e renascimento. Esse
estado, em que "o desejo se detém e se cala", Schopenhauer
chama de "bem absoluto" e seria o único que nos liberta.

202 © Ética II
UNIDADE 4 – Primórdios da Pós-Modernidade: Schopenhauer e Nietzsche

A Vontade não pode ser suprimida por nada senão o CONHECI-


MENTO. Por isso o único caminho de salvação é este: que a Von-
tade apareça livremente, a fim de, neste fenômeno, CONHECER
a sua essência. Só em conseqüência deste conhecimento pode
suprimir a si mesma e, assim, também pôr fim ao sofrimento in-
separável de seu fenômeno. Isso, entretanto, não é possível por
violência, como a destruição do embrião, a morte do recém-nas-
cido, o suicídio. A natureza conduz a Vontade à luz, porque só na
luz a Vontade pode encontrar a sua redenção. Eis por que se deve
fomentar de todas as formas os fins da natureza, desde que a
Vontade de vida, o seu íntimo, tenha decidido (SCHOPENHAUER,
2005, p. 506).
§ 70
Pois exatamente aquilo que os místicos cristãos denominam
EFEITO DA GRAÇA e RENASCIMENTO é para nós a única e ime-
diata exteriorização da LIBERDADE DA VONTADE. Esta só entra
em cena quando a Vontade, após alcançar o conhecimento de
sua essência em si, obter dele um QUIETIVO, quando então é
removido o efeito dos MOTIVOS, os quais residem em outro do-
mínio de conhecimento cujos objetos são apenas fenômenos.
(SCHOPENHAUER, 2005, p. 515-516).

Só o conhecimento da essência do mundo como vontade


permite a resignação, o desprendimento e a serenidade. O ódio
e a maldade partem do egoísmo e este advém da sujeição da
inteligência ao princípio da individuação. O critério de uma ação
verdadeiramente boa, dotada de valor moral seria a ausência de
toda motivação egoísta.
Em um grau superior de desenvolvimento, a justiça, a do-
çura e a generosidade, no que elas têm de mais elevado, se ori-
ginam na inteligência, que compreende o princípio de que, su-
primindo toda diferença entre nós como indivíduos e os outros,
torna-se possível a intenção perfeitamente boa.

© Ética II 203
UNIDADE 4 – Primórdios da Pós-Modernidade: Schopenhauer e Nietzsche

Na medida em que se dá a compreensão desse princípio,


diz Schopenhauer, nossa influência sobre a vontade cresce. O
desvelamento do princípio de individuação libera o homem da
distinção egoísta entre ele e o outro. Esse homem que reconhece
em cada ser o que há de mais íntimo e verdadeiro em si mesmo
é capaz de tomar para si a miséria do mundo inteiro. A partir de
então, nenhum sofrimento lhe é alheio e desconhecido. Todas
as dores dos outros, todos os sofrimentos que ele vê e que rara-
mente pode sanar, todos os sofrimentos que ele sabe possíveis
pesam sobre seu coração como se fossem seus. Tudo o toca de
perto. Passa a perceber a essência das coisas como sendo o per-
pétuo desenrolar do sofrimento contínuo de uma humanidade
miserável e de um universo que desaparece se transformando.
A Vontade então se desliga da vida, o homem chega "ao es-
tado de abnegação voluntária, de resignação, de verdadeira cal-
ma e de parada total e absoluta do 'querer'". (SCHOPENHAUER,
1956, p. 203-204).

A negação e a supressão do "querer" abririam uma passagem


para o nada
A supressão do "querer" levaria ao nada, entendendo por
nada, como observa Schopenhauer, não uma negação absoluta,
mas uma negação relativa ao mundo como representação, mun-
do este que é o espelho da vontade, e que é nós mesmos e tudo
o que existe. Não mirando mais a vontade nesse seu espelho que
é o mundo, a vontade se perde no nada.
Após a nossa consideração finalmente ter chegado ao ponto em
que a negação e supressão do querer apresentam-se diante de
nossos olhos de um mundo cuja existência inteira se apresenta
como sofrimento, daí se abriria uma passagem para o NADA
vazio. // Mas, sobre isso, tenho antes de observar que o con-

204 © Ética II
UNIDADE 4 – Primórdios da Pós-Modernidade: Schopenhauer e Nietzsche

ceito de NADA é essencialmente relativo e sempre se refere a


algo determinado, que ele nega. [...] Porém, numa considera-
ção mais acurada, não existe o nada absoluto, não existe o nihil
negativum propriamente dito, nem sequer ele é pensável; mas,
de qualquer nada deste gênero, considerado de um ponto de
vista superior, ou subsumido em um conceito mais amplo, é
sempre apenas o nihil privativum. Qualquer nada o é apenas
quando pensado em relação a outro. Até mesmo uma contradi-
ção lógica é um nada relativo: embora não seja um pensamento
da razão, nem por isso é um nada absoluto. Trata-se ali de uma
combinação de palavras, de um exemplo do não pensável, ne-
cessariamente requerido na lógica para demonstrar as leis do
pensamento [...].// O universalmente tomado como positivo, o
qual denominamos SER, e cuja negação é expressa pelo concei-
to NADA na sua significação mais geral, é exatamente o mundo
como representação, que demonstrei como a objetividade, o
espelho da Vontade. Esta Vontade e este mundo são justamente
nós mesmos, e ele pertence a representação em geral como um
de seus lados. A forma desta representação é espaço e tempo;
e assim, deste ponto de vista, tudo o que existe tem de estar em
algum lugar, num dado tempo. Negação, supressão, viragem da
Vontade é também supressão e desaparecimento do mundo,
seu espelho. Se não miramos mais a Vontade neste espelho,
então perguntamos debalde para que direção ela se virou, e em
seguida, já não há mais onde e quando, lamentamos que ela se
perdeu no nada (SCHOPENHAEUR, 2005, p. 515-517).

O recurso à arte e à contemplação estética


Schopenhauer vê, na contemplação estética, a oportuni-
dade de um desapego das coisas do mundo, do egoísmo e do
desejo, uma vez que o conhecimento do belo é uma representa-
ção que não está submissa ao princípio da razão. Trata-se de um
saber intuitivo, não empírico, desvinculado de qualquer conhe-
cimento interessado.

© Ética II 205
UNIDADE 4 – Primórdios da Pós-Modernidade: Schopenhauer e Nietzsche

Em sua obra, já citada, O mundo como vontade e como re-


presentação e na obra Metafísica do belo, Schopenhauer expõe
sua filosofia da arte.
Vimos que, para o filósofo, os objetos do mundo são re-
presentações e, como tais, estão sujeitas às formas do princípio
da razão suficiente, ou seja, o tempo, o espaço e a causalidade,
representações que são elaboradas pelo sujeito. O próprio corpo
é um objeto e os órgãos dotados de sensibilidade são os objetos
imediatos.
Vimos, também, que a Vontade é a coisa-em-si, cuja exis-
tência não depende do sujeito e que todos os objetos são mani-
festações da vontade. O acesso à natureza da coisa-em-si é feito
pelo sujeito e não pelos objetos.
O primeiro estágio de objetivação da vontade, em que ela
se manifesta como fenômeno, é, segundo Schopenhauer, consti-
tuído do que Platão denominou "ideias", ou seja, os arquétipos
eternos de tudo o que existe no mundo. A arte seria a repre-
sentação dessas ideias. Assim, a arquitetura representa as leis
físicas, a pintura as formas dos objetos.
Em alguns homens, o conhecimento pode libertar-se da
escravidão da vontade, permanecendo ele mesmo, independen-
temente de todo alvo voluntário, como puro e claro espelho do
mundo. Esses são os homens capazes de produzir arte. A genia-
lidade do artista consiste em reproduzir a ideia por trás de um
objeto do mundo; assim, um retrato representa a ideia única e
eterna do caráter da pessoa.
A obra de arte permite que as pessoas comuns percebam
essas ideias eternas, mesmo não tendo a genialidade do artista.
O saber do artista procede da vontade e pertence à essência dos

206 © Ética II
UNIDADE 4 – Primórdios da Pós-Modernidade: Schopenhauer e Nietzsche

graus mais elevados de seu processo de objetivação. Compara


a existência da maior parte dos homens a uma espera tola, ple-
na de sofrimentos inúteis, "uma marcha titubeante pelas quatro
idades de vida, funcionam sem saber por que". A arte possui-
ria o poder de suprimir, ainda que por um tempo limitado, essa
submissão do conhecimento à vontade. Na experiência estética,
absorvido em contemplação profunda, o sujeito, antes domina-
do pelo querer, torna-se "sujeito puro do conhecer", isento de
vontade.
O princípio de individuação torna-se, então, inoperante;
esquecemo-nos de nossa individualidade, de nossa vontade e
subsistimos como puro sujeito, como claro espelho do objeto,
como se só o objeto existisse, sem ninguém que o percebesse,
sujeito e intuição confundindo-se no mesmo ser.
O sujeito, na obra de arte, forma com os objetos represen-
tados uma unidade da essência comum de que compartilham, a
vontade. A vontade passa a ser uma só no indivíduo e no objeto
contemplado. Ao elevar-se a tal contemplação, dá-se a consciên-
cia de si mesmo como puro sujeito, tornando-se a vontade que
se conhece a si mesma.
O conhecimento, originariamente servidor da vontade,
passa a ser desinteressado, pois, com a supressão da individuali-
dade, a vontade renuncia a seus fins.
O "belo" é, para Schopenhauer, tudo o que na arte e na na-
tureza é capaz de causar um estado contemplativo que escape à
ditadura do "querer". Todo objeto pode se tornar belo, caso um
gênio veja nele suas ideias, fixando-as em sua obra, tornando-as
acessíveis aos demais. O grande gênio da arte é um professor
de resignação, um mestre a guiar a humanidade no caminho do
conhecimento e da renúncia à vontade tirânica.

© Ética II 207
UNIDADE 4 – Primórdios da Pós-Modernidade: Schopenhauer e Nietzsche

O gênio da arte é um contemplador das ideias eternas, li-


bertando o conhecimento originariamente submisso à vontade.
A essência do gênio é essa aptidão para a contemplação absorvi-
da no objeto, exigindo esquecimento completo da personalidade
e de suas relações, aptidão que permite manter-se na intuição
pura, aí se perdendo, libertando o conhecimento originariamen-
te submisso à vontade.
O objeto é belo quando consegue despertar no observa-
dor um estado contemplativo, de intuição pura, durante o qual
se calam temores, esperanças, ânsias e preocupações. Dentre as
artes, a música é, para Schopenhauer, a que melhor pode preen-
cher essa função; é a linguagem universal que penetra a intimi-
dade do indivíduo.

Observação: existem excelentes trabalhos acessíveis na internet


sobre essa relação da Ética e da estética em Schopenhauer.
Dentre outros, citamos o de João Coviello, intitulado O vínculo
entre Ética e estética no pensamento de Schopenhauer com
um olhar especial sobre a arte contemporânea. Disponível
em: <http://www.biblioteca.pucpr.br/tede//tde_busca/arquivo.
php?codArquivo=477>. Acesso em: 1 set. 2015.

Schopenhauer, hinduísmo e budismo


Três são as principais influências recebidas por Schopenhauer,
e por ele reconhecidas, na elaboração de seu pensamento: os
Upanishads (uma das partes do Vedanta), Platão e Kant.
A filosofia de KANT, portanto, é a única cuja familiaridade ínti-
ma é requerida para o que aqui será exposto. – Se, no entanto,
o leitor já freqüentou a escola do divino PLATÃO, estará ainda
mais preparado e receptivo para me ouvir. Mas se, além disso,
iniciou-se no pensamento dos Veda (cujo acesso permitido pela
Upanixad, aos meus olhos, é a grande vantagem que este século

208 © Ética II
UNIDADE 4 – Primórdios da Pós-Modernidade: Schopenhauer e Nietzsche

ainda jovem tem a mostrar aos anteriores, pois penso que a in-
fluência da literatura sânscrita não será menos impactante que
o renascimento da literatura grega no século XV), e se recebeu
e assimilou o espírito da milenar sabedoria indiana, então estará
preparado da melhor maneira possível para ouvir o que tenho a
dizer. Não lhe soará, como a muitos, estranho ou mesmo hostil.
Gostaria até de afirmar, caso não soe muito orgulhoso, que cada
aforismo isolado e disperso que constitui as Upanixad pode ser
deduzido como conseqüência do pensamento comunicado por
mim, embora este, inversamente, não esteja lá de modo algum
contido (SCHOPENHAUER, 2005, p. 23).

O pensamento de Schopenhauer se estrutura dentro da-


quele contexto do pensamento oriental hindu, fundamentado
na meta do encontro de uma sabedoria que se define essencial-
mente como um "mergulhar" em si mesmo, em busca do princí-
pio mesmo de nossos desejos, sofrimentos, prazeres (karma) e
virtudes (Dharma). Uma sabedoria que "transforma", Uma sabe-
doria que não pode ser atingida pelo esforço intelectual.
Schopenhauer tomou contato com os Upanishads por
meio da leitura da obra em latim Oupnek'hat. Pode-se dizer que
Schopenhauer é o único grande filósofo ocidental a assimilar
ideias do pensamento oriental em seu sistema filosófico.
Diz Schopenhauer:
Os leitores da minha Ética sabem que para mim o fundamento
da moral repousa em última instância sobre aquela verdade que
está expressa no Veda e Vedanta pela fórmula mística tat twam
asi (isto és tu), que é afirmada com referência a todo ser vivo,
seja homem ou animal, denominando-se então o Mahavakya, o
grande verbo (SCHOPENHAUER, 1974, p. 107).

"Vedas" é uma palavra sânscrita (o sânscrito é uma das


línguas oficiais da Índia, usada por várias religiões) que significa
"conhecimento". Os Vedas são constituídos dos livros sagrados

© Ética II 209
UNIDADE 4 – Primórdios da Pós-Modernidade: Schopenhauer e Nietzsche

do Hinduísmo. Vedanta, por sua vez, significa o último dos Vedas


e é a essência do que entendemos, hoje, por Hinduísmo.
Sobre a frase tat twam asi ("isto és tu"), alguns dos maio-
res especialistas no pensamento da Índia, como Zimmer, assim
interpreta o seu significado:
• "tat" significaria a essência eterna, ilimitada e imutável
do universo;
• "twam" (ou tvam) significa "tu", é o indivíduo, ser limi-
tado, temporal e mutável;
• "asi" (és) verbo.
Trata-se da afirmação da unidade do universo. A essência
do pensamento dos Vedas seria, segundo Zimmer, a busca dessa
"unidade" na "multiplicidade". Zimmer (1991, p. 18) diz que:
A principal motivação da filosofia védica, desde o período dos
mais remotos hinos filosóficos (preservados nas partes mais re-
centes do Rig-Veda) tem sido, sem alteração, a busca de uma uni-
dade básica que fundamente a multiplicidade.

Essa teimosa persistência em buscar uma unidade na mul-


tiplicidade dos seres do universo vem de uma consciência mís-
tica de que tudo e todos pertencem, em essência, a algo Uno,
gerador de toda multiplicidade. Um sentir-se parte do Cosmo,
uma experiência de si mesmo como presença e não simplesmen-
te como presente, ou seja, a sensibilidade ao fato de, apesar das
diferenças dos seres entre si, estarmos todos presentes, ao mes-
mo tempo, em comunhão existencial.
No indivíduo limitado, temporal e mutável, encontra-se o
Ãtman (o Eu, não o ego), fundado na eterna imutabilidade que
comanda o universo. O texto a seguir ilustra essa ideia da unida-
de na multiplicidade no pensamento védico:

210 © Ética II
UNIDADE 4 – Primórdios da Pós-Modernidade: Schopenhauer e Nietzsche

Diz o velho sábio brâmane Aruni a seu filho:


[...] Traze-me um figo de lá.
Aqui está, senhor.
Divide-o.
Está dividido.
Que vês aí?
Estas sementes muito pequenas.
Divide uma delas, por favor.
Está dividida.
Que vês, aí?
Absolutamente nada, senhor.
Então, disse-lhe, [o pai]: Em verdade, meu querido, esta suti-
líssima essência que tu não percebes, em verdade, meu queri-
do, dessa sutilíssima essência é que surge esta grande figueira
sagrada.
Acredita-me, meu querido – disse ele – isso que é a essência
mais sutil, este mundo inteiro tem isso como seu Eu. Isso é a
Realidade. Isso é ãtman. Aquilo és tu.
Poderias, senhor, poderias instruir-me ainda mais!
Assim seja, meu querido – disse ele. Coloca este sal na água.
Pela manhã vem ter comigo.
Assim o fez.
Então disse-lhe o pai: O sal que puseste na água ontem à noite,
traga-me aqui, por favor.
Então ele quis pegá-lo, mas não o encontrou porque estava
completamente dissolvido.
Por favor, sorve a água deste lado – disse-lhe {o pai}. Como
está?
Salgada.

© Ética II 211
UNIDADE 4 – Primórdios da Pós-Modernidade: Schopenhauer e Nietzsche

Sorve deste lado – disse-lhe. Como está?


Salgada.
Deixe-a de lado. Logo, vem ter comigo.
Ele assim o fez, dizendo: Ela é sempre a mesma!
Então, disse-lhe {o pai}: Em verdade, na realidade, meu queri-
do, tu não podes perceber o Ser aqui. Em verdade, na realida-
de, meu querido, Ele está aqui.
Aquilo que é a essência sutilíssima, este mundo inteiro tem.
Aquilo como seu Eu. Aquilo é a Realidade. Aquilo é ãtman.
Tu, Svetaketu, és Aquilo (ZIMMER, 1991, p. 239-240).

Schopenhauer dá a essa máxima da unidade imutável e


única uma dimensão ética e moral. Para ele, ela expressa a ideia
de compaixão, já vista por nós, porque, compreendendo que a
essência do universo é única, o homem passa a amar seu próxi-
mo, pois ambos são um só.
Conceitos do hinduísmo e do budismo surgem em toda a
obra do filósofo. No segundo parágrafo de sua obra Parerga e
paralipomena, diz:
Eis Sansara, e tudo em seu interior o anuncia: mais do que
tudo, porém, o mundo dos homens, em que moralmente do-
minam a maldade e a infâmia, intelectualmente a incapacidade
e a estupidez, em medidas assustadoras. Contudo nela se apre-
sentam, embora esporadicamente, mas sempre de novo a nos
surpreender, manifestações da franqueza, da bondade e mes-
mo da generosidade, e também do entendimento abrangente,
do espírito pensante, e mesmo do gênio. Estas nunca se extin-
guem completamente: brilham ao nosso encontro quais pontos
luminosos isolados da grande massa obscura. Devemos tomá-
-las como garantia de que existe um princípio bom e redentor
neste Sansara, que pode atingir o rompimento, e preencher e
libertar o todo (SCHOPENHAUER, 1974, p. 106-107).

212 © Ética II
UNIDADE 4 – Primórdios da Pós-Modernidade: Schopenhauer e Nietzsche

"Sansara" significa, em sânscrito, "perambulação" ou o flu-


xo de renascimentos através dos mundos materiais. No Vedan-
ta, é a transmigração do "Ãtman" (alma individual ou verdadei-
ro "Eu", o mais elevado princípio humano, a Essência divina) na
matéria. O ego ignorante e iludido, considerando-se distinto de
tudo e de todos, peregrina por várias existências até compreen-
der que, na verdade, ele e a Essência divina são "Um só".
Ao falar da Vontade de vida, diz Schopenhauer:
A Vontade de vida aparece // tanto na morte auto-imposta
(Shiva), quanto no prazer da conservação pessoal (Vishinu) e
na volúpia da procriação (Brahma). Essa é a significação íntima
da UNIDADE DO TRIMURTI, que cada homem é por inteiro, em-
bora no tempo seja destacada ora uma, ora outra de suas três
cabeças (SCHOPENHAUER, 2005, p. 504).

O "Trimurti" é a Trindade hindu. É constituída de:


• "Brahma": primeira divindade do Trimurti. É o Deus (ener-
gia) de todos os seres, tem o poder de criar por emana-
ção. É a origem, a causa, a essência de todo o universo.
• "Vishinu": segunda divindade do Trimurti. É o Deus
(energia) redentor, preservador e mantenedor do
universo.
• "Shiva": terceira divindade do Trimurti. É a energia des-
truidora e, ao mesmo tempo, construtora, pois a des-
truição aqui é uma exigência da própria criação. A dança
de Shiva, bastante conhecida, representa as cinco ativi-
dades divinas: a criação, a conservação, a destruição, a
encarnação e a liberação das almas.
Outra influência do hinduísmo no pensamento de
Schopenhauer é certamente a noção de Maya (Deusa da ilusão).
Nos textos indianos mais antigos, Maya significa "arte, sabedoria,

© Ética II 213
UNIDADE 4 – Primórdios da Pós-Modernidade: Schopenhauer e Nietzsche

poder extraordinário". Nos textos indianos mais recentes, adquiriu


os significados de ilusão, irrealidade, magia, imagem ilusória e se
torna o maior obstáculo para o desapego das seduções do mundo
sensorial. Maya é a base do mundo objetivo criado pelo Absoluto
(Brachman), mas dele se distingue.
Vimos que Schopenhauer concebe o mundo fenomênico,
da representação, como ilusório. Para o filósofo, o mundo re-
presentado pode criar a ilusão de que a causa última dos fenô-
menos ou a essência do mundo representado esteja na própria
representação e que, consequentemente, nada mais existe além
da representação. Cria-se, assim, uma realidade ilusória. Porém,
como o caráter ilusório da representação dela não advém, mas
sim da vontade que governa tudo o que existe (da vontade, vi-
mos, advém toda objetividade, aparência, o mundo como repre-
sentação), o homem poderá romper com essa ilusão e refletir
sobre a Vontade. Portanto, é Maya acreditar que se possa ces-
sar o desejo que atormenta e traz dor, consumando-o, ou seja,
objetivando-o.
§ 68
Se aquele Véu de Maia, o principii individuationis, é de tal ma-
neira retirado aos olhos de um homem que este não faz mais di-
ferença egoística entre a sua pessoa e a de outrem, no entanto
compartilha em tal intensidade dos sofrimentos alheios como
se fossem os seus próprios e assim é não apenas benevolente
no mais elevado grau, mas está até mesmo pronto a sacrificar
o próprio indivíduo tão logo muitos outros precisem ser salvos;
então, daí, segue-se automaticamente que esse homem reco-
nhece em todos esses seres o próprio íntimo, o seu verdadeiro
si-mesmo, e desse modo tem de considerar também os sofri-
mentos infinitos de todos os seres viventes como se fossem
seus: assim toma para si mesmo as dores de todo o mundo;
nenhum sofrimento lhe é estranho.

214 © Ética II
UNIDADE 4 – Primórdios da Pós-Modernidade: Schopenhauer e Nietzsche

[...] o homem que vê através do principii individuationis e reconhece


a essência em si das coisas, portanto o todo, não é mais suscetível a
um semelhante consolo. Vê a si em todos os lugares ao mesmo tem-
po, e se retira. – Sua Vontade se vira; ela não mais afirma a própria
essência espelhada no fenômeno, mas a nega. O acontecimento,
pelo qual isso se anuncia, é a transição da virtude à ASCESE. [...] não
mais adianta amar os outros como a si mesmo, por eles fazer tanto,
como se fosse por si, mas nasce uma repulsa pela essência da qual
seu fenômeno é expressão, vale dizer, uma repulsa pela Vontade de
vida, núcleo e essência de um mundo reconhecido como povoado
de penúrias (SCHOPENHAUER, 2005, p. 481-482).

Schopenhauer e Kant
São vários os temas e posições que Schopenhauer herda
de Kant sobre a temática da moral. Começa por elogiar Kant por
ter "purificado a ética de todo eudemonismo" (eudemonismo
ou eudaimonismo, do grego eudaimonia, significa felicidade – os
filósofos da Antiguidade concebiam a felicidade como meta e cri-
tério supremo da Ética).
Diz Schopenhauer:
O grande mérito de Kant na ética foi tê-la purificado de todo Eu-
demonismo. A ética dos antigos era eudemonista, e a dos moder-
nos, na maioria das vezes, uma doutrina da salvação. Os antigos
queriam demonstrar virtude e felicidade como idênticas; estas,
porém, eram como duas figuras que não se recobrem, não impor-
ta o modo como as coloquemos. Os modernos querem colocá-las
numa ligação, não de acordo com o princípio de identidade, mas
com o de razão suficiente, fazendo, portanto da felicidade a conse-
qüência da virtude. No que, entretanto, tiveram de recorrer, quer
a um outro mundo que não conhecido de modo possível, quer a
sofismas. Apenas Platão faz exceção entre os antigos: sua ética não
é eudemonista, por isso, contudo torna-se mística. Em contrapar-
tida, até mesmo a ética dos cínicos e dos estóicos é tão-somente
um eudemonismo de tipo especial (SCHOPENHAUER, 1995, p. 17).

© Ética II 215
UNIDADE 4 – Primórdios da Pós-Modernidade: Schopenhauer e Nietzsche

No que diz respeito à questão da Ética e da moral,


Schopenhauer, à semelhança de Kant, sentiu a necessidade
de manter uma instância transcendental (a instância de um
princípio "a priori"). Segundo Kant, o determinismo da ciência é
incompatível com a responsabilidade moral; esta só poderia ser
pensada via um saber transcendental.
Para Kant, sabemos, só podemos conhecer a coisa em nós,
não a coisa-em-si. Esta é "independente do conhecimento que
temos dela", desligada de qualquer subjetividade. Distingue o fe-
nômeno (a coisa em nós, a interpretação, o mundo da represen-
tação) e a coisa-em-si. Schopenhauer assimila a noção kantiana
de coisa em si.
A instância da coisa em si seria, em ambos, a instância
transcendental. Buscaram, dessa maneira, salvaguardar a in-
dependência da dimensão ética e moral de toda ingerência da
Teologia e do conhecimento especulativo, pensando a realida-
de do mundo e a idealidade (conhecimento especulativo) como
distintas entre si, uma vez que, com o conceito de "coisa-em-si",
mantém-se a existência de um real distinto da instância da ideia
e, consequentemente, de todo conhecimento especulativo. Por
sua vez, o conceito de "coisa-em-si" possibilitaria limitar o co-
nhecimento ao fenômeno, abrindo espaço para a moralidade,
isto é, para a possibilidade de postular a liberdade (Kant) ou de
negá-la (Schopenhauer).
Reencontramos, pois, em Schopenhauer o que já vimos
em Kant: a presença de uma dimensão ética propriamente dita,
uma dimensão transcendental, não passível de ser trabalhada à
luz de uma razão abstrata generalizante, o que viria a corroborar,
mais uma vez, a linha mestra desta obra, que é mostrar a existên-
cia de uma distinção essencial entre o ethos com "e" longo que

216 © Ética II
UNIDADE 4 – Primórdios da Pós-Modernidade: Schopenhauer e Nietzsche

define a instância de uma "morada interior" da realidade, de ní-


vel transcendental, do ethos com "e" breve, referente à "morada
exterior", dos fenômenos e fatos.
Porém, Schopenhauer irá discordar de Kant em pontos fun-
damentais. Assim, por exemplo, vimos que Kant procurou mos-
trar que existe, no campo transcendental, uma ordem superior
capaz de responder pela dimensão ética e moral do ser humano
e que essa ordem é a de uma razão prática. Tal razão é autônoma
e independente de qualquer capacidade cognitiva, não necessi-
tando igualmente dos dados da sensibilidade. Sendo o princípio
da moral puro, a priori, não se apoiando em nada empírico ou
em algo objetivo do mundo exterior ou mesmo subjetivo (senti-
mento, impulso ou inclinação), Kant fundamenta a lei moral na
sua própria forma, que é a da legalidade, universal para todos.
Embora Schopenhauer concorde com a distinção kantia-
na entre fenômeno e coisa-em-si, essa concepção kantiana da
dimensão transcendental como sendo a de uma razão prática,
porém, significará para Schopenhauer uma recaída no dogmatis-
mo. Segundo ele, o imperativo categórico, base da razão prática
ou moral em Kant, não contemplaria o sentido moral da ação
humana, uma vez que a razão não é fator decisivo na moralida-
de, ou seja, ser dotado de razão e utilizá-la adequadamente não
é ser necessariamente moral. Muitos indivíduos, observa, usam
corretamente a razão e, no entanto, cometem ações não morais.
Para Schopenhauer, a razão, pelo contrário, aprimora os recursos
imorais, por meio dos quais os homens abusam e exploram uns
aos outros.
Ainda, em sua crítica à Kant, Schopenhauer observa que
cabe à reflexão filosófica sobre o ético buscar o esclarecimento

© Ética II 217
UNIDADE 4 – Primórdios da Pós-Modernidade: Schopenhauer e Nietzsche

do dado, isto é, daquilo que o comportamento ou a ação éticos


são e não de como deveriam ser, como o faz Kant.
O "próton pseudós" [primeiro passo em falso de Kant] está no
seu conceito da própria ética que encontramos exposto de modo
mais claro (p. 62): "numa filosofia prática não se trata de dar
fundamentos daquilo que acontece, mas leis daquilo que deve
acontecer, mesmo que nunca aconteça". Isto já é uma "petitio
principii" [petição de princípio] decisiva. Quem nos diz que há leis
às quais nossas ações devem submeter-se? Quem vos diz que
deve acontecer o que nunca acontece? O que vos dá o direito de
antecipá-lo e logo impor uma ética na forma legislativo-imperati-
va como a única para nós possível? Digo, contrapondo-me a Kant,
que em geral tanto o ético quanto o filosófico têm de contentar-se
com o esclarecimento do dado, portanto com o que é, com o que
acontece realmente, para chegarem ao seu entendimento, e que
eles aí têm muito o que fazer, muito mais do que foi feito desde
há séculos até hoje. De acordo com a acima citada "petitio princi-
pii" kantiana, admite-se no Prefácio referente ao tema, antes de
qualquer investigação, que existem leis morais puras; depois, tal
suposição continua firme e é a mais profunda fundamentação de
todo o sistema. No entanto, queremos antes investigar o concei-
to de uma lei. O seu significado próprio e originário limita-se à lei
civil ("lex", "nomos"), uma instituição humana que repousa sobre
o arbítrio humano. O conceito de lei tem um significado segundo,
tropológico (figurativo) e metafórico, quando aplicado à nature-
za, cujos modos de proceder conhecidos em parte "a priori", em
parte dela apreendidos "a posteriori", que se mantêm sempre
constantes, nós os chamamos metaforicamente leis da natureza.
É apenas uma parte bem pequena dessas leis da natureza que
se dá a ver "a priori", e é isto que constitui o que Kant isolou de
modo perspicaz e excelente e reuniu sob o nome de Metafísica
da natureza. Para a vontade humana existe também por certo
uma lei, desde que o homem pertence à natureza, e mesmo uma
lei estritamente demonstrável, inviolável, sem exceções, irrevo-
gável, que não traz consigo nenhuma necessidade "vel quase"
(de uma certa maneira) como o imperativo categórico, mas uma
necessidade efetiva (SCHOPENHAUER, 1995, §4, p. 23).

218 © Ética II
UNIDADE 4 – Primórdios da Pós-Modernidade: Schopenhauer e Nietzsche

É essencial à Ética como filosofia manter uma atitude con-


templativa e não prática, inquirindo e não prescrevendo regras
ou buscando moldar o caráter.
§ 53
Na minha opinião, contudo, toda a filosofia é sempre teórica,
já que lhe é sempre essencial manter uma atitude puramente
contemplativa [...], e sempre inquirir, em vez de prescrever re-
gras. Tornar-se prática, conduzir a ação, moldar o caráter: eis aí
pretensões antigas que uma intelecção mais perspicaz fará por
fim a filosofia abandoná-las. Pois aqui, quando se trata do valor
ou da ausência de valor da existência, da salvação ou da perdi-
ção, os mortos não decidem, e sim a essência mais íntima do
homem: seu demônio que o conduz e que ele mesmo escolheu
(como diz Platão) em vez de ser escolhido, seu caráter inteligí-
vel, como // Kant se expressa. A virtude é tão pouco ensinada
quanto o gênio; sim, para ela o conceito é tão infrutífero quanto
para a arte e em ambos os casos deve ser usado apenas como
instrumento. Por conseguinte, seria tão tolo esperar que nossos
sistemas morais e éticos criassem caracteres virtuosos, nobres
e santos, quanto que nossas estéticas produzissem poetas, ar-
tistas plásticos e músicos (SCHOPENHAUER, 2005, p. 354).

Considerações
Schopenhauer foi um dos mais influentes pensadores, so-
bretudo até a segunda metade do século 20. Porta-voz do irra-
cionalismo (corrente filosófica que sustenta que, quanto mais
supera os limites do racional, mais o homem é capaz de apreen-
der a realidade), combateu o racionalismo absoluto do idealismo
de Hegel (1770-1831), segundo o qual a contradição entre racio-
nal e irracional não é senão aparente, pois a razão se realiza no e
pelo seu contrário, o irracional.

© Ética II 219
UNIDADE 4 – Primórdios da Pós-Modernidade: Schopenhauer e Nietzsche

Alguns se referem a Schopenhauer como o "filósofo sem


público". De fato, o reconhecimento de sua obra demorou bas-
tante a chegar. Talvez essa demora se deva ao fato de que sua
obra, como muitos observam, não se enquadra em nenhuma das
filosofias vigentes. Porém, sua influência foi grande:
• Freud (1856-1939, médico neurologista judeu-austría-
co) reconheceu que a análise da repressão (processo de
fuga e condenação de impulsos do instinto no conscien-
te) fora feita antes dele por Schopenhauer;
• nas artes, particularmente na música, o famoso Richard
Wagner (1813-1883, compositor alemão) declarou ter
escrito a ópera Tristão e Isolda como reação à leitura de
Schopenhauer;
• na literatura, influenciou Léon Tolstoi (1828-1910, escri-
tor russo), Anton Tcheckov (1860-1904, escritor russo),
Émile Zola (1840-1902, escritor francês) e outros, inclu-
sive o nosso Machado de Assis, no que concerne sobre-
tudo ao sentimento de uma inexorabilidade do destino,
como observa Eugênio Gomes (1897-1972, crítico lite-
rário brasileiro).
E Nietzsche, o filósofo que estudaremos a seguir, na segun-
da parte desta Unidade 4, disse tornar-se filósofo devido à leitu-
ra de Schopenhauer, a quem chamava de "cavaleiro solitário".

6. Wilhelm Friedrich Nietzsche (1844-1900)


Nietzsche nasceu de uma família de clérigos, sendo seu pai
ministro protestante; ficou órfão de pai ainda bem jovem e foi
educado por sua mãe e por sua irmã mais velha.

220 © Ética II
UNIDADE 4 – Primórdios da Pós-Modernidade: Schopenhauer e Nietzsche

Aos 25 anos, após estudos brilhantes de Filologia e Teo-


logia, é nomeado professor na Universidade de Basiléia (Suíça),
na fronteira com a Alemanha e França, onde lecionou de 1869 a
1879.
Dois acontecimentos influenciaram grandemente Nietzsche
em sua maneira de pensar: a leitura, quando estudante, da obra O
mundo como vontade e como representação, de Schopenhauer, e
sua amizade com o grande compositor Richard Wagner.
Segundo estudiosos, Schopenhauer influenciou Nietzsche
de diversas maneiras – por exemplo, no sentido de:
• buscar uma nova maneira de ver o mundo, diferente
dos valores morais escravos de uma visão metafísica;
• pensar sob o modelo da vida;
• subordinar o intelecto à vontade;
• considerar a vontade como cega e arbitrária e, em con-
sequência, o mundo como caótico e despojado de todo
e qualquer caráter divino;
• considerar a arte como sendo, em sua essência, uma li-
beração ou afastamento de todo processo racional.
Alguns autores observam, ainda, que o fato de Schopenhauer,
como os gregos antigos, estabelecer uma relação entre o gênio e
a loucura levará Nietzsche a uma atitude particular com relação à
sua própria condição de doente com distúrbios mentais. Possuía
uma visão de toda doença como sendo apenas um exagero
dos fenômenos normais da vida. Não haveria, dessa maneira,
diferença de essência entre o normal e o patológico – a diferença
seria apenas de grau. Chega a conceber como consequência de sua
vivência de distúrbios mentais sua visão da vida como "vontade de
potência".

© Ética II 221
UNIDADE 4 – Primórdios da Pós-Modernidade: Schopenhauer e Nietzsche

Para Schopenhauer, vimos, a capacidade de captar o es-


sencial e torná-lo objeto da arte é uma característica do gênio.
Associa essa capacidade ao fato do intelecto sair do âmbito das
coisas particulares e apreender o universal no que existe (O mun-
do como vontade e como representação, Tomos I e II). Essa carac-
terística do gênio seria contrária à própria natureza humana, na
qual, segundo Schopenhauer, a razão ou intelecto está a serviço
da vontade e, por essa razão, o gênio seria muito mais susceptí-
vel a um desequilíbrio diante dos afetos e paixões.

Nietzsche e a questão da moral


Em sua obra La généalogie de la morale (1971, p. 56, tra-
dução nossa), Nietzsche expressa o quanto considera importante
e central a questão da moral para os filósofos e cientistas.
Observação. Aproveito a ocasião que me dá esta dissertação
para formular publicamente e expressar um desejo que não ex-
pus até o momento presente senão eventualmente em meus
diálogos com os cientistas: que uma faculdade de Filosofia ad-
quire mérito ao encorajar, por meio de concursos acadêmicos,
os estudos de história da moral: quem sabe este livro possa dar
um rigoroso impulso nesse sentido. Em vista de tal eventua-
lidade, proponho a questão seguinte, merecedora da atenção
não apenas dos filósofos propriamente ditos, mas também dos
filólogos e historiadores.
Quais indicações a linguística e, sobretudo, a etimologia nos
fornecem para a história da avaliação dos conceitos morais?
Por outro lado, não é certamente menos interessante obter a
participação de fisiologistas e de médicos no estudo desses pro-
blemas (concernentes ao valor das avaliações que se deram até
o momento presente). [...] De fato todo o repertório de valo-
res, todos os "tu deves" que a história ou a etnologia conhecem
teriam necessidade antes de mais nada de ser esclarecidos e
interpretados pela fisiologia mais ainda do que pela psicolo-

222 © Ética II
UNIDADE 4 – Primórdios da Pós-Modernidade: Schopenhauer e Nietzsche

gia; todos reclamam também a crítica das ciências médicas. A


questão de saber o que vale tal ou tal lista de valores, esta ou
aquela moral, demanda que sejam colocadas sob as perspecti-
vas as mais diversas; principalmente, não se analisará com su-
ficiente escrúpulo a questão "bom por quê?". [...] O bem-estar
da maioria e o bem-estar da minoria são critérios de avaliação
opostos: acreditar que o primeiro possui em si um valor supe-
rior é o que deixaremos à ingenuidade dos biologistas ingleses.
Todas as ciências a partir de agora têm a preparar a tarefa do
filósofo, entendendo por esta tarefa o seguinte: ao filósofo cabe
resolver o problema do valor, cabe determinar a hierarquia dos
valores.

O "espírito histórico" escaparia aos historiadores e aos filósofos


Nietzsche acusa a filosofia de até então considerar a reali-
dade desprovida da dimensão histórica, do "vir a ser". Descon-
siderando a dimensão histórica, tornam a realidade uma "sub
specie aeterni" (uma subespécie do eterno). Toda mudança é por
eles refutada, diz o filósofo, "o que é não vem a ser; o que vem
a ser não é".
Tomando como exemplo o conceito de "bom", Nietzsche
procura mostrar que a origem do conceito moral de "bom", apre-
sentada por historiadores e filósofos, contém sinais de reações
pessoais ou características dos psicólogos ingleses, os quais atri-
buem à "utilidade", ao "esquecimento", ao "hábito" e ao "erro"
a condição de base de um valor, no caso, o valor moral "bom".
Na origem, decretam eles, as ações desinteressadas foram
louvadas e denominadas boas por aqueles em favor dos quais
elas tinham sido realizadas, consequentemente para aqueles
aos quais tinham sido úteis; mais tarde, esquecendo que ti-
nham provindo do elogio, simplesmente sentiu-se como boas
as ações não egoístas porque tinham sido por hábito sempre

© Ética II 223
UNIDADE 4 – Primórdios da Pós-Modernidade: Schopenhauer e Nietzsche

louvadas como tais, como se elas fossem algo de bom em si


(NIETZSCHE, 1971, p. 21, tradução nossa).

Argumenta que tal teoria vai buscar onde não se encontra a


verdadeira morada do conceito de "bom", geneticamente falando.
[...] o julgamento de "bom" não vem daquilo com relação ao
qual manifesta-se a "bondade". São os próprios "bons", isto é,
os nobres, os poderosos, os homens de condição superior e de
alma elevada, que se sentiram eles mesmos bons e considera-
ram seus atos bons, ou seja, de primeira ordem, em oposição
a tudo que é baixo, mesquinho, comum e vulgar (NIETZSCHE,
1971, p. 21, tradução nossa).

A formação universitária básica de Nietzsche foi a Filologia


(ciência que estuda uma língua, literatura, cultura ou civilização sob
uma visão histórica). Para ele, o verdadeiro método para encontrar
o surgimento dos conceitos de "bom" e "mau" é o da etimologia.
Referindo-se às expressões de bom e mau em diversas línguas, diz:
[...] encontrei que todas remetem à mesma transformação dos
conceitos, em todas elas "distinto", "nobre", no sentido de clas-
se social, é o conceito fundamental de onde nascem e se desen-
volvem necessariamente as ideias de "bom" significando "alma
distinta" e "nobre" no sentido de "alma superior", de "alma
privilegiada". Essa evolução se faz paralelamente àquela que
acaba por transformar as ideias de "comum", "popular", "vil",
na de "mau" (NIETZSCHE, 1971, p. 24, tradução nossa).

Diante de tais fatos que mostram a origem de julgamentos


de valor destinados a estabelecer hierarquias, falar de utilidade,
conclui Nietzsche, seria apresentar a sensibilidade pobre de uma
inteligência calculadora.
Como acabo de dizer, o pathos da nobreza e da distância, senti-
mento geral tão fundamental, tão preponderante, tão vivaz em
uma espécie superior e dominante em suas relações com uma
espécie inferior, com algo "embaixo" – eis a origem da oposição
entre "bom" e "mau" (NIETZSCHE, 1971, p. 22, tradução nossa).

224 © Ética II
UNIDADE 4 – Primórdios da Pós-Modernidade: Schopenhauer e Nietzsche

Observação: pathos é uma palavra grega que significa paixão,


assujeitamento. Esse conceito foi cunhado por Descartes para
designar algo que acontece ou o que é passivo de um aconteci-
mento. Nietzsche quer significar, com essa palavra, a distância
e o domínio que acontece entre a classe nobre e a classe baixa
e inferior dos seres humanos.

Na origem da oposição "bom e mau", portanto, não haveria,


"a priori", ligação necessária entre a palavra "bom" e as ações não
egoístas, como querem os genealogistas da moral. É apenas quan-
do os julgamentos de valor aristocráticos declinam que se impõe,
pouco a pouco, a famosa oposição "egoísta"/"não egoísta".

Não há fatos morais, todo julgamento moral é falso


De sua análise etimológica de valores como a origem do
"bom" e do "mau", Nietzsche conclui que não existem fatos mo-
rais, porém todo julgamento moral é um "sintoma" – sintoma
aqui não no sentido médico da palavra, mas no sentido de um
significante (o que significa) sem nenhum significado fixo. Cabe
ao filósofo situar-se além do bem e do mal, colocar-se acima da
ilusão do julgamento moral. O julgamento moral e o religioso
têm em comum o fato de crerem em realidades que não existem.
Sabe-se o que exijo do filósofo: colocar-se além do bem e do
mal – colocar abaixo a ilusão do julgamento moral. Essa exigên-
cia é o resultado de um exame que realizei pela primeira vez:
cheguei à conclusão de que "não há fatos morais". O juízo mo-
ral tem em comum com o juízo religioso crer em realidades que
não existem. A moral não é senão a interpretação de certos fe-
nômenos, mas uma falsa interpretação. O juízo moral pertence,
como o juízo religioso, a um grau de ignorância em que a noção
de realidade, a distinção entre o geral e o imaginário nem mes-
mo existem; de maneira que, em um tal grau, a "verdade" de-

© Ética II 225
UNIDADE 4 – Primórdios da Pós-Modernidade: Schopenhauer e Nietzsche

signa coisas que chamamos hoje de "imaginação". Eis porque o


juízo moral não deve nunca ser tomado ao pé da letra: literal-
mente ele seria sempre um contrassenso. Mas como "lingua-
gem" permanece inestimável: revela, pelo menos para aquele
que sabe, as realidades mais preciosas sobre culturas e talentos
de gênio que não "sabiam" o bastante para "compreender" a
eles mesmos. A moral não é senão a linguagem dos sinais, uma
sintomatologia: é preciso saber do "que" se trata para poder
se beneficiar (NIETZSCHE, 1952a, §17, p. 126, tradução nossa).

Não há consciência moral, toda consciência nada mais é do que


um acidente
Segundo Descartes, a consciência é o centro do "eu", seu
núcleo substancial, e o "eu" subjetivo é o "eu" pensante. A cons-
ciência, para Nietzsche, é um acidente, não é o essencial da sub-
jetividade. De acordo com Nietzsche, nós nos deixamos enganar
quando achamos que é o nosso "eu" que pensa e, mais, que o
sujeito da frase "eu penso" seja uma substância ou algo em si.
Em seu livro Além do bem e do mal, observa que um pensamen-
to não vem senão quando quer e não porque é o eu quem quer:
"Alguma coisa pensa, mas acreditar que esta coisa seja o 'eu' é
pura suposição".
Além disso, observa que o caráter "geral" do conceito não
é capaz de expressar a singularidade da subjetividade e esta, por
sua vez, jamais coincide com ela mesma: quando digo "eu", ex-
presso o que tenho em comum com todos os outros "eu".
De fato, o projeto genealógico de Nietzsche destrói a noção
do "eu" como sujeito autoconsciente e uno (ver, no tópico E-refe-
rências, o texto A noção da dissolução do sujeito em Nietzsche, de
Ângela Zamora).

226 © Ética II
UNIDADE 4 – Primórdios da Pós-Modernidade: Schopenhauer e Nietzsche

Investigando a história da humanidade, Nietzsche procura


mostrar que o surgimento da autoconsciência, do pensamento
e da linguagem é de natureza histórica. Para sobreviver, o ser
humano teve que se reunir a outros seres humanos, formando
agrupamentos. Surgiu, então, a necessidade de se comunicar
com o outro e, para tanto, faz-se necessário saber quem se é,
o que se quer. É dessa relação do humano com o humano que
decorreriam a consciência, o pensamento e a linguagem.
Consequentemente, a consciência faz parte da existência
em comunidade, da existência à maneira "de rebanho" e a subje-
tividade não mais se identifica com uma natureza humana imu-
tável; pelo contrário, o processo de conscientização no homem
está em constante mobilidade, sendo que essa conscientização
é cada vez maior.

O critério para a busca de valores é a "vida" e a vida é "vontade


de poder"
Os valores reais, para Nietzsche, não decorrem de algo,
são "inventados". Há que buscá-los em seu emergir, em sua pro-
veniência através da história e o critério é a "vida" e a vida é
"vontade de poder". Uma vontade de poder que é orgânica e
própria a todo ser vivo, uma busca constante por mais vida, por
apropriar-se, dominar.
Uma vontade de poder que se estrutura em uma relação
de mandar e obedecer. A vida é apropriação e sujeição daquele
que é o mais fraco. É opressão, dureza, exploração. Todo com-
portamento humano é motivado pela busca do poder e tal poder
se manifesta como independência, criatividade e originalidade
no "além-do-homem", super-homem, conforme expressão cria-
da pelo filósofo.

© Ética II 227
UNIDADE 4 – Primórdios da Pós-Modernidade: Schopenhauer e Nietzsche

A vida é um jogo de forças, é vontade de poder, desejo perma-


nente de intensificação, de ultrapassagem em direção a mais
poder, seja na oposição entre duas forças, seja no interior de
uma mesma força. Essa vontade de crescimento não se reduz
ao instinto de conservação, pois a afirmação de sua força pode
levar um ser vivo a colocar em causa sua própria conservação,
o que Nietzsche interpreta como uma limitação da vontade
de viver. Dentre essas forças, umas são ativas, capazes de se
afirmar sem se opor a outras forças, outras são reativas, só se
opõem mutilando as demais. O ideal de Nietzsche consiste em
afirmar seus valores sem a preocupação de justificação. Sócra-
tes, ao contrário, é o protótipo do homem reativo, pois que ao
erro opõe o verdadeiro; ao mal, o bem, etc. (ROUX-LANIER,
1995, p. 473, tradução nossa).

Nenhum juízo pró ou contra a vida pode ser verdadeiro.


Juízos, apreciações pró ou contra a vida, não podem em últi-
ma instância ser verdadeiros: não têm outro valor senão o de
ser sintomas, não contam senão como sintomas – em si tais
juízos são estupidez. É preciso alcançar esta "sutileza" de com-
preender que "o valor da vida não pode ser apreciado". Nem
por aquele dotado de vida, porque ele é parte, é mesmo objeto
de litígio e não de julgamento: nem por um morto, por outra
razão. Da parte de um filósofo, ver um problema no "valor" da
vida consiste em uma contradição, em um ponto de interroga-
ção com relação ao seu saber, uma falta de sabedoria. Como? E
todos estes grandes sábios – teriam eles sido não somente "de-
cadentes", mas ainda teriam eles sido verdadeiramente sábios?
(NIETZSCHE, 1952a, p. 96-98, tradução nossa).

Contra toda dialética


Em sua obra Crepúsculo dos ídolos, Nietzsche ataca a for-
ma de pensamento que predominou no pensamento ocidental e
que se inicia com Sócrates. Sócrates, para Nietzsche, é o inventor
do homem teórico ou dialético, que se contrapõe ao aristocrata

228 © Ética II
UNIDADE 4 – Primórdios da Pós-Modernidade: Schopenhauer e Nietzsche

grego cuja nobreza se impunha de si mesma, sem justificativa. O


homem dialético reclama sempre a prova de tudo que se afirma.
Toda deliberação argumentada é condenada pelo filósofo,
porque nela se daria o desaparecimento da solidariedade tra-
dicional, instintiva nos antigos helenos (gregos), responsável
por sua força e saúde. A origem dessa decadência que leva ao
mundo moderno estaria na vitória da dialética socrática sobre
o sentido do trágico dos antigos gregos. Vitória de Sócrates que
Nietzsche atribui ao triunfo das forças reativas sobre as forças
ativas. É, portanto, um sintoma da decadência. Antes de Sócra-
tes, observa, a sociedade grega considerava falta de boas manei-
ras buscar, justificar, argumentando dialeticamente, pois o que
precisa ser demonstrado não têm valor. Aquele que, em vez de
comandar, usa da dialética para demonstrar suas razões seria,
segundo Nietzsche, um "polichinelo", isto é, alguém que não é
levado a sério. "Sócrates foi o polichinelo que se tomou a sério".
Com Sócrates, a tendência do pensamento grego se altera em
favor da dialética: o que é que se passa exatamente? Antes de
mais nada trata-se de uma vitória sobre uma tendência nobre;
com a dialética o povo alcança a posição mais alta. Antes de Só-
crates, discursos dialéticos eram eliminados da boa sociedade:
eram considerados como capazes de corromper a juventude.
Desconfiavam também de todos aqueles que argumentassem
de tal maneira. [...] O que precisa ser demonstrado, não vale
grande coisa. Em todo lugar onde a autoridade ainda está de
acordo com as normas sociais, em todo lugar onde não se "dis-
cute", mas se comanda, aquele que exerce a dialética é uma
espécie de polichinelo; é motivo de riso, não é tomado a sério
– Sócrates foi o polichinelo que "conseguiu ser tomado a sério"
(NIETZSCHE, 1952a, p. 96-98, tradução nossa).

© Ética II 229
UNIDADE 4 – Primórdios da Pós-Modernidade: Schopenhauer e Nietzsche

A moral vigente corresponde ao instinto de rebanho no


indivíduo
Os valores tradicionais representam, para Nietzsche, uma
moralidade escrava, uma moralidade criada por indivíduos fracos
e ressentidos que, por interesse, estimularam comportamentos
bondosos.
Nietzsche distingue duas classes de seres humanos: a dos
senhores e a dos escravos. A classe dos senhores compreende a
dos guerreiros (aristocrática) e a sacerdotal. A classe sacerdotal
deriva da classe guerreira ou aristocrática, caracterizando-se, po-
rém, pela impotência: em vez de praticar as virtudes do corpo,
como a classe aristocrática, inventa virtudes.
Da rivalidade destas duas classes surgem dois tipos de mo-
ral: a dos senhores e a dos escravos. A classe dos guerreiros é
dominante, a sacerdotal é débil e enferma. A classe sacerdotal
reage invertendo os valores aristocráticos, criando uma moral
escrava que teve início com o povo judeu e foi herdada e assumi-
da pelo cristianismo.
É a moral surgida do ressentimento, segundo a qual a força
que o forte, sendo livre, exterioriza, é algo ruim, pois destrói os
mais fracos. Nesse processo de "transvalorização", transformam
impotência em bondade; baixeza em humildade; covardia em
paciência; miséria em prova bem-aventurada dos eleitos e cria-
-se a noção de "justiça". A "invenção" da moral foi uma defesa
contra os poderosos.
Os valores tradicionais representam, assim, para Nietzsche,
uma moralidade escrava, uma moralidade criada por indivíduos
fracos e ressentidos que, por interesse, estimularam comporta-
mentos bondosos.

230 © Ética II
UNIDADE 4 – Primórdios da Pós-Modernidade: Schopenhauer e Nietzsche

O mundo chamado pela filosofia de "verdadeiro" não passa de


uma ilusão de ordem moral
Estamos habituados, diz Nietzsche, a considerar como ver-
dadeiro só o estável, o que permanece uno, idêntico a si mesmo.
Dá como exemplo Platão, que situa a verdadeira realidade no do-
mínio inteligível, o mundo das Ideias, em oposição à diversidade
sensível, sempre mutante, considerando esta como aparência.
Essa determinação da essência da verdade, que se apre-
senta como evidente, não o é, diz Nietzsche; supõe uma sepa-
ração e uma avaliação (julgamento moral) que implica uma re-
jeição do sensível e do múltiplo, ou seja, da vida em toda a sua
riqueza.

O problema da ciência é um problema moral


Em sua obra A Gaia Ciência, Nietzsche diz que, no domínio
da ciência, as convicções não têm lugar. Só quando assumem a
forma de hipótese experimental conseguem acessar o domínio
do conhecimento. Isso significaria dizer que a convicção só ad-
quire o direito de pertencer à ciência quando deixa de ser uma
convicção. Acontece, observa o filósofo, que a ciência ou discipli-
na do espírito começa sempre a partir de convicções. Podemos
concluir que a própria ciência se baseia em uma crença, a da
necessidade de postular, e a necessidade de se fazer ciência se
funda em outro postulado: "nada é mais necessário do que a
verdade".
Mas, "o que é esta vontade absoluta de verdade"? Querer
a verdade, observa Nietzsche, pode ser secretamente querer a
morte; quem quer intensamente a verdade, afirmando sua fé na
ciência, afirma por isso mesmo a existência de outro mundo que

© Ética II 231
UNIDADE 4 – Primórdios da Pós-Modernidade: Schopenhauer e Nietzsche

não é o da vida, o da natureza e o da história, o que significaria


necessariamente negá-los. O problema da ciência seria, então,
um problema moral.
É dito com justa razão que no domínio da ciência as convicções
não têm direito de ser consideradas, somente quando submeti-
das às formas provisórias da hipótese, do ponto de vista expe-
rimental, da ficção reguladora, podemos conceder-lhes acesso
ao domínio do conhecimento e reconhecer nelas um certo va-
lor – com a condição de que permaneçam, porém, sob vigilân-
cia policial, sob o controle da suspeita. Mas, isso não significa
no fundo dizer que é unicamente quando a convicção "cessa"
de ser convicção, que ela pode adquirir direito de cidadania na
ciência? A disciplina do espírito científico não começaria so-
mente com a recusa de toda convicção? [...] É provável; res-
ta saber se a existência de uma convicção não é indispensável
para que essa disciplina possa ela mesma começar, e se a exis-
tência de uma convicção não seja tão imperiosa, tão absoluta
que obrigue todas as outras a se sacrificar a ela? Vê-se, por isso,
que a própria ciência se baseia em uma crença; não há ciência
sem postulado. "A ciência é necessária?". É preciso, para que
ela pudesse vir a existir, que essa questão fosse antes respondi-
da não apenas afirmativamente, mas afirmativa a tal ponto que
ela expressasse este princípio, esta fé, esta convicção: "Nada é
mais necessário do que o verdadeiro"; nada, em seu valor, tem
importância senão secundária. "O que é esta vontade absoluta
de verdade?". [...]
"Querer o verdadeiro" poderia ser, secretamente, querer a mor-
te. [...] Sem nenhuma dúvida, quem vê o verdadeiro, no sentido
intrépido e supremo que supõe a fé na ciência, "afirma por esta
mesma vontade outro mundo" que não o da vida, da natureza,
da história; e na medida em que afirma este "outro mundo" não
nega necessariamente, por este fato mesmo, o seu antípoda:
este mundo, o nosso? (NIETZSCHE, 1950, § 344, p. 286-289, tra-
dução nossa).

232 © Ética II
UNIDADE 4 – Primórdios da Pós-Modernidade: Schopenhauer e Nietzsche

A crítica ao cristianismo e à democracia


Ao criticar toda argumentação, Nietzsche se opõe igual-
mente à democracia. Segundo ele, esse regime político seria a
última etapa da decadência histórica que se iniciou com Sócrates
e, conduzida pelo judaísmo e pelo cristianismo, chega às ideias
presentes na Revolução Francesa.
Na obra Crepúsculo dos ídolos, o filósofo elabora uma
crítica do cristianismo como origem da democracia. A ideia de
imortalidade pessoal destrói toda razão e toda natureza do ins-
tinto, ou seja, tudo que é vital. O cristianismo deve sua vitória
a essa lamentável adulação da vaidade pessoal: a "salvação da
alma", isto é, "o mundo gira ao redor de mim". A doutrina cristã
da igualdade de direitos, de que a salvação é para todos, consis-
te, para Nietzsche, no maior e mais malvado atentado contra a
humanidade "nobre". Ninguém mais tem coragem de reivindicar
privilégios e o poder de dominação.
Transmitida ao longo das gerações a partir de Sócrates e
via cristianismo, os direitos dos homens, o liberalismo e o socia-
lismo, essa preocupação de igualdade é uma vontade reativa que
mutila a vida, negando as diferenças.
Quando o centro de gravidade da vida é colocado, não nela
mesma, mas no "além" – no nada –, então se retirou da vida
o seu centro de gravidade. A grande mentira da imortalidade
pessoal destrói toda razão, todo instinto natural – tudo que
há nos instintos que seja benéfico, vivificante, que assegure o
futuro, agora é causa de desconfiança. Viver de modo que a
vida não tenha sentido: agora esse é o "sentido" da vida [...]
Para que o espírito público? Para que se orgulhar pela origem
e antepassados? Para que cooperar, confiar, preocupar-se com
o bem-estar geral e servir a ele? [...] Outras tantas "tentações",
outros tantos desvios do "bom caminho". – "Somente uma coi-
sa é necessária" [...] Que todo homem, por possuir uma "alma

© Ética II 233
UNIDADE 4 – Primórdios da Pós-Modernidade: Schopenhauer e Nietzsche

imortal", tenha tanto valor quanto qualquer outro homem; que


na totalidade dos seres a "salvação" de todo indivíduo possa
reivindicar uma importância eterna; que beatos insignificantes
e desequilibrados possam imaginar que as leis da natureza são
constantemente transgredidas em seu favor – não há como ex-
pressar desprezo suficiente por tamanha intensificação de toda
espécie de egoísmos ad infinitum, até a insolência. E, contudo,
o cristianismo deve o seu triunfo precisamente a essa deplorá-
vel bajulação de vaidade pessoal – foi assim que seduziu ao seu
lado todos os malogrados, os insatisfeitos, os vencidos, todo o
refugo e vômito da humanidade. A "salvação da alma" – em
outras palavras: "o mundo gira ao meu redor" [...] A venenosa
doutrina dos "direitos iguais para todos" foi propagada como
um princípio cristão: a partir dos recônditos mais secretos dos
maus instintos o cristianismo travou uma guerra de morte con-
tra todos os sentimentos de reverência e distância entre os ho-
mens, ou seja, contra o primeiro pré-requisito de toda evolu-
ção, de todo desenvolvimento da civilização – do ressentimento
das massas forjou sua principal arma contra nós, contra tudo
que é nobre, alegre, magnânimo sobre a terra, contra nossa
felicidade na Terra [...] Conceder a "imortalidade" a qualquer
Pedro e Paulo foi a maior e mais viciosa afronta à humanidade
nobre já perpetrada. – E não subestimemos a funesta influência
que o cristianismo exerceu mesmo na política! Atualmente nin-
guém mais possui coragem para os privilégios, para o direito de
dominar, para os sentimentos de veneração por si e seus iguais
– para o pathos da distância [...] Nossa política está debilitada
por essa falta de coragem! – Os sentimentos aristocráticos fo-
ram subterraneamente carcomidos pela mentira da igualdade
das almas; e se a crença nos "privilégios da maioria" faz e con-
tinuará a fazer revoluções – é o cristianismo, não duvidemos
disso, são as valorações cristãs que convertem toda revolução
em um carnaval de sangue e crime! (NIETZSCHE, 1989, § LXIII).

É necessário, entretanto, observar que Nietzsche, em mui-


tos momentos de sua obra, distingue com clareza a mensagem

234 © Ética II
UNIDADE 4 – Primórdios da Pós-Modernidade: Schopenhauer e Nietzsche

de Jesus de Nazaré do cristianismo. Vejamos, a respeito, alguns


extratos da obra O anticristo:
[...] toda a história do cristianismo – da morte na cruz em diante
– é a história de uma incompreensão progressivamente grosseira
de um simbolismo original. Com toda a difusão do cristianismo
entre massas mais vastas e incultas, até mesmo incapazes de
compreender os princípios dos quais nasceu, surgiu a necessida-
de de torná-lo mais vulgar e bárbaro – absorveu os ensinamentos
e rituais de todos cultos subterrâneos do imperium Romanum e
as absurdidades engendradas por todo tipo de raciocínio doentio
(NIETZSCHE, 1989, § XXXVII).

Mais adiante, naquela mesma obra, diz:


Farei uma pequena regressão para explicar a autêntica histó-
ria do cristianismo. A própria palavra "cristianismo" é um mal-
-entendido – no fundo só existiu um cristão, e ele morreu na
cruz. O "Evangelho" morreu na cruz. O que desse momento
em diante, chamou-se "Evangelho" era exatamente o oposto
do que ele viveu: "más novas", um Dysangelium (NIETZSCHE,
1989, § XXXIX).

Dysangelium: um dos muitos neologismos de Nietzsche. Ele


compõe esse vocábulo de "angelium" (cuja origem vem do grego
e que significa "nova", "notícia"), fazendo oposição com os pre-
fixos "dys" (mau, infeliz – "notícia má") e "eu" (bom, feliz – "boa
nova", "boa notícia").

E, mais adiante:
E a partir desse momento surgiu um problema absurdo: "Como
pôde Deus permiti-lo?". Para o qual a perturbada lógica da pe-
quena comunidade formulou uma resposta assustadoramente
absurda: Deus deu seu filho em sacrifício para a remissão dos
pecados. De uma vez acabaram com o Evangelho! O sacrifício
pelos pecados, e em sua forma mais obnóxia e bárbara: o sa-
crifício do inocente pelo pecado dos culpados! Que paganismo
apavorante! – O próprio Jesus havia suprimido o conceito de

© Ética II 235
UNIDADE 4 – Primórdios da Pós-Modernidade: Schopenhauer e Nietzsche

"culpa", negava a existência de um abismo entre Deus e o ho-


mem; ele viveu essa unidade entre Deus e o homem, que era
precisamente a sua "boa nova" [...] (NIETZSCHE, 1989, § XLI).

A crença é sinal de vontade fraca


De acordo com Nietzsche, em A Gaia Ciência, a fé surge
quando falta vontade, pois a vontade, sendo a energia do co-
mando, é o sinal da dominação e da força. Quanto menos sabe-
mos comandar, mais aspiramos por um ser, seja um deus, um
príncipe, uma classe, um dogma etc.
O budismo e o cristianismo teriam nascido de uma extraor-
dinária "anemia da vontade". Levaram os homens ao fanatismo,
dando-lhes uma nova possibilidade de querer. O fanatismo é a
"força de vontade" própria dos fracos. Hipnotiza todo o sistema
sensitivo e intelectual das pessoas com um único ponto de vista,
que, no caso dos cristãos, é a fé. Quando alguém se convence de
que deve ser comandado, ele se torna um crente. Um espírito
livre, ao contrário, experimenta o prazer de se governar, de rejei-
tar, segundo sua vontade, toda necessidade de certeza.
É sempre lá onde mais falta vontade que a fé é mais desejada,
mais necessária: pois a vontade, sendo a energia do comando,
é o sinal diferenciador do domínio e da força. Quanto menos se
sabe comandar, mais se aspira ao ser, e ao ser rigorosamente,
seja ele um deus, um príncipe, uma classe, um médico, um con-
fessor, um dogma, uma consciência de partido. O que autorizaria
a concluir que as duas grandes religiões do mundo, o budismo e
o cristianismo, poderiam ter nascido de uma extraordinária "ane-
mia da vontade", que explicaria ainda melhor a rapidez de sua
propagação. E de fato assim é: essas duas religiões encontraram
uma necessidade imperativa exaltada até a loucura, o desespero,
pela anemia da vontade; todas as duas ensinaram o fanatismo
em uma época de apatia, e propuseram a uma multidão incal-
culável um ponto de apoio, uma nova possibilidade de querer,

236 © Ética II
UNIDADE 4 – Primórdios da Pós-Modernidade: Schopenhauer e Nietzsche

um prazer a ser realizado. O fanatismo é de fato a única "força


de vontade" a qual é possível atribuir aos fracos e indecisos, pois
ele hipnotiza todo o sistema sensitivo e intelectual em benefício
da assimilação abundante de um só ponto de vista, de um senti-
mento único – o cristão o chama sua fé – o qual, a partir de en-
tão, hipertrofiado, domina. Quando um homem se convence de
que "deve" ser comandado, ele é "crente"; ao contrário, pode-se
imaginar certo prazer de se governar, certo poder no exercício do
predomínio individual, certa liberdade de querer que permitam
a um espírito rejeitar, de acordo com sua vontade, toda fé, toda
necessidade de certeza; pode-se imaginá-lo viver mantido pelas
correntes as mais leves, pelas possibilidades as mais diminutas, a
dançar até às bordas dos abismos. Este seria "o espírito livre" por
excelência (NIETZSCHE, 1950, § 347, p. 294-295, tradução nossa).

O ideal do ascetismo
Em sua obra, já citada, A genealogia da moral, Nietzsche
pergunta: "Por que sofrer?". O homem não rejeita o sofrimento
em si, ele até busca o sofrimento, desde que lhe seja mostrado
a razão deste. A ausência de sentido da dor é "a maldição que
tem pesado sobre a humanidade". O "ideal ascético lhe dá um
sentido!". Graças a ele, o sofrimento é explicado, o vazio imen-
so parece preenchido. Porém, a interpretação que se dá à vida,
nesse caso, traria um novo sofrimento, "mais profundo, mais ín-
timo, mais envenenado, mais mortal", o sofrimento do castigo
por causa do "pecado".
"Por que sofrer?" – O homem, o mais valente, o mais apto ao
sofrimento de todos os animais, não rejeita o sofrimento em si:
ele o procura mesmo, desde que lhe seja mostrada a razão de
ser deste, o "porquê" deste sofrimento. A ausência de sentido
da dor e não a própria dor é a maldição que até hoje pesou so-
bre a humanidade – "ora, o ideal ascético lhe deu um sentido!".
Era até então o único sentido que lhe foi dado; não importa qual
seja o sentido, este vale mais do que nenhum sentido; o ideal

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UNIDADE 4 – Primórdios da Pós-Modernidade: Schopenhauer e Nietzsche

ascético não era, sob todo ponto de vista, senão a "ausência de


um sentido melhor", e "por excelência", a sua única peculiari-
dade. Graças a ele o sofrimento foi explicado: o vazio imenso
parecia preenchido, a porta se fechava diante de toda espécie
de niilismo, de todo o desejo de acabamento. A interpretação
que se dava à vida levava inconfundivelmente a um novo so-
frimento, mais profundo, mais íntimo, mais envenenado, mais
mortal: fez ver todo sofrimento como o castigo de um "pecado"
[...] Mas, apesar de tudo, trazia ao homem a "salvação", o ho-
mem tinha um "sentido", não era mais a folha arrastada pelo
vento, o jogo sem razão, da "ausência de sentido", ele poderia
a partir de então querer algo – não importando o que quisesse:
"a própria vontade estava pelo menos salva" (NIETZSCHE, 1968,
p. 244-246, tradução nossa).

O mundo é um caos: visão perspectivista


O mundo é um caos eterno; sobre ele podemos ter múl-
tiplas perspectivas, ou seja, ele é passível de uma infinidade de
interpretações. A partir da "morte de Deus", a ideia de mundo,
segundo Nietzsche, desaparece, ou como diz o filósofo: "o mun-
do torna-se novamente infinito".
Deus está morto! Deus permanece morto! E quem o matou
fomos nós! Como haveremos de nos consolar, nós os algozes
dos algozes? O que o mundo possuiu, até agora, de mais sa-
grado e mais poderoso sucumbiu exangue aos golpes das nos-
sas lâminas. Quem nos limpará desse sangue? Qual a água que
nos lavará? Que solenidades de desagravo, que jogos sagrados
haveremos de inventar? A grandiosidade desse ato não será
demasiada para nós? Não teremos de nos tornar nós próprios
deuses, para parecermos apenas dignos dele? Nunca existiu ato
mais grandioso, e quem quer que nasça depois de nós passará
a fazer parte, mercê desse ato, de uma história superior a toda
a história até hoje! (NIETZSCHE, 1950, §125, tradução nossa).

238 © Ética II
UNIDADE 4 – Primórdios da Pós-Modernidade: Schopenhauer e Nietzsche

O que Nietzsche quer significar com


a famosa frase: "Deus está morto"? –––––––––––––––––––
"Deus está morto" é talvez uma das frases mais mal interpretadas de toda
a filosofia. Entendê-la literalmente, como se Deus pudesse estar fisicamente
morto, ou como se fosse uma referência à morte de Jesus Cristo na cruz, ou
ainda como uma simples declaração de ateísmo são ideias oriundas de uma
análise descontextualizada da frase, que se acha profundamente enraizada
na obra nietzscheana. O dito anuncia o fim dos fundamentos transcendentais
da existência, de Deus como justificativa e fonte de valoração para o mundo,
tanto na civilização quanto na vida das pessoas – segundo o filósofo, mesmo
que estas não o queiram admitir. Nietzsche não se coloca como o assassino
de Deus, como o tom provocador pode dar a entender: o filósofo enfatiza um
acontecimento cultural, e diz "fomos nós que o matamos".
A frase não é nem uma exaltação nem uma lamentação, mas uma constatação
a partir da qual Nietzsche traçará o seu projeto filosófico de superar Deus e as
dicotomias assentes em preconceitos metafísicos que julgam o nosso mundo –
na opinião do filósofo, o único existente – a partir de um outro mundo superior e
além deste. A morte de Deus metaforiza o facto de os homens não mais serem
capazes de crer numa ordenação cósmica transcendente, o que os levaria
a uma rejeição dos valores absolutos e, por fim, à descrença em quaisquer
valores. Isso conduziria ao niilismo, que Nietzsche considerava um sintoma
de decadência associada ao facto de ainda mantermos uma "sombra", um tro-
no vazio, um lugar reservado ao princípio transcendente agora destruído, que
não podemos voltar a ocupar. Para isso ele procurou, com o seu projecto da
"transmutação dos valores", reformular os fundamentos dos valores humanos
em bases, segundo ele, mais profundas do que as crenças do cristianismo
(WIKIPEDIA, 2012).
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
A ideia metafísica de mundo desaparece, dando lugar a
uma infinidade de perspectivas. Nietzsche pergunta, ainda em
sua obra A Gaia Ciência, até onde vai o caráter perspectivo da
existência. Há uma "existência" sem razão? Toda existência não é
essencialmente explicativa? Não há análise do intelecto, por mais
cuidadosa que seja, que possa decidir isso, porque o espírito hu-
mano não pode deixar de ver à luz de sua própria perspectiva.
[...] uma existência sem explicação, sem "razão" não se torna
uma "loucura"? Por outro lado, toda existência não é essencial-

© Ética II 239
UNIDADE 4 – Primórdios da Pós-Modernidade: Schopenhauer e Nietzsche

mente passível de "explicação"? É o que não conseguem deci-


dir as análises mais cuidadas do intelecto, as mais pacientes e
minuciosas introspecções: pois, o espírito do homem, em suas
análises, não pode se impedir de se ver segundo sua própria
perspectiva e não pode se ver "senão" e de acordo com ela.
Não podemos ver a não ser com nossos olhos; é uma curio-
sidade sem esperança de sucesso buscar saber quais outras
espécies de intelectos e de perspectivas podem existir; se, por
exemplo, existem seres que sentem passar o tempo em outro
sentido, ou sucessivamente em direção para frente e para trás
(o que mudaria a direção da vida e inverteria a concepção da
causa e do efeito). Espero, entretanto, que estejamos hoje lon-
ge da ridícula pretensão de decretar que nosso pequeno ângulo
de visão seja o único do qual se tem o direito de ter uma pers-
pectiva. Ao contrário, o mundo para nós voltou a ser infinito,
no sentido de que não podemos lhe recusar a possibilidade de
ser disponível a uma infinidade de interpretações (NIETZSCHE
in ROUX-LANIER, 1995, p. 477, tradução nossa).

A solução, segundo Nietzsche, não é recuar para o estado de


pré-modernidade, mas ir além da modernidade: o eterno retorno.
Tudo o que acontece, segundo Nietzsche, já aconteceu em
um número infinito de vezes e acontecerá novamente infinitas
vezes. É o seu célebre conceito do "eterno retorno". O aforismo
341 de sua obra A Gaia Ciência é frequentemente citado:
E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua
mais solitária solidão e te dissesse: "Esta vida, assim como tu a vi-
ves agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda
inúmeras vezes; e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada
prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indizivel-
mente pequeno e de grande em tua vida há de retornar, e tudo
na mesma ordem e sequência – e do mesmo modo esta aranha
e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e
eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada
outra vez – e tu com ela, poeirinha da poeira!". Não te lançarias
ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te

240 © Ética II
UNIDADE 4 – Primórdios da Pós-Modernidade: Schopenhauer e Nietzsche

falasse assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal,


em que responderias: "Tu és um deus, e nunca ouvi nada mais
divino!". Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim
como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse; a pergunta,
diante de tudo e de cada coisa: "Quero isto ainda uma vez e ainda
inúmeras vezes?". Pesaria como o mais pesado dos pesos sobre
teu agir! Ou então, como terias de ficar de bem contigo mesmo e
com a vida, para não desejar nada mais do que essa última, eter-
na confirmação e chancela? (NIETZSCHE apud WIKIPEDIA, 2015).

É preciso esclarecer que a noção de "eterno retorno" não


corresponde a uma concepção cíclica do tempo, pois o conceito
de história do filósofo não é o de um tempo cíclico. O "eterno
retorno" diz respeito, observam vários estudiosos, ao fato de es-
tarmos sempre vivenciando um número determinado de aconte-
cimentos que se repetiram no passado, se repetem no presente
e se repetirão no futuro, como guerras, crises econômicas, epi-
demias etc. Isso porque o mundo é uma realidade múltipla, mas
única, que não tem meta ou finalidade.
Com o Eterno Retorno Nietzsche questiona a ordem das coisas.
Indica um mundo não feito de pólos opostos e inconciliáveis,
mas de faces complementares de uma mesma – múltipla, mas
única – realidade. Logo, bem e mal, angústia e prazer, são instân-
cias complementares da realidade – instâncias que se alternam
eternamente. Como a realidade não tem objetivo, ou finalidade
(pois se tivesse já a teria alcançado), a alternância nunca finda.
Ou seja, considerando-se o tempo infinito e as combinações de
forças em conflito que formam cada instante finitas, em algum
momento futuro tudo se repetirá infinitas vezes. Assim, vemos
sempre os mesmos fatos retornarem indefinidamente (WIKIPE-
DIA, 2015).

Nessa doutrina do "eterno retorno", o mundo não resulta-


ria de uma intenção e nem perseguiria um fim. Nega-se o sujeito
humano como origem dos acontecimentos. Toda ideia de corri-

© Ética II 241
UNIDADE 4 – Primórdios da Pós-Modernidade: Schopenhauer e Nietzsche

gir um período passado (no caso, o pensamento moderno) não


poderia ser entendida como um retorno ao passado, mas seria
a própria evolução da modernidade e de suas conquistas, que
trariam as condições de um retorno ao universo tradicional.

O caminho do "grande estilo"


Esse retorno ao universo tradicional não consiste, segundo
Nietzsche, em voltar à "aristocracia natural" dos habitantes da
Grécia Antiga, denominada Hélade, os chamados grandes hele-
nos, mas, para além do caminho ascético inaugurado por Sócra-
tes e continuado pelo cristianismo, o qual consiste em submeter
as forças instintivas à tirania da razão e da verdade, mutilando a
vida, abre-se uma outra possibilidade.
Ela não consiste em negar os instintos, mas em hierarqui-
zar o conjunto dessas forças vitais, inclusive as forças da razão
e da lógica desenvolvidas por Sócrates e seus discípulos. Esse
caminho, representado pelos antigos helenos, enriquecido com
aquisições da modernidade, é o que Nietzsche chama de "gran-
de estilo". Essa hierarquização e, apenas ela, nos permitirá esca-
par do ascetismo de maneira não reativa. Apenas negar a razão
nos deixaria ainda prisioneiros da atitude reativa inaugurada por
Sócrates. A hierarquização harmoniosa de todas as forças vitais,
inclusive da razão, nos permitiria uma intensificação da vida.
O Retorno eterno integra, no decorrer de seu ciclo, as forças
que a vida desenvolveu progressivamente. Os grandes helenos
eram, no fundo, inconscientes de sua nobreza moral. Como diz
Nietzsche, eles eram espontaneamente virtuosos "sem se per-
guntar por quê". Representavam um tipo de humanidade frágil,
destinada a sucumbir sob as interrogações de Sócrates (ROUX-
-LANIER, 1995, p. 475, tradução nossa).

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UNIDADE 4 – Primórdios da Pós-Modernidade: Schopenhauer e Nietzsche

O "grande estilo", portanto, é o estilo clássico que expressa


um imenso fluir e refluir de paixão sublime, sobre-humana, que
liberta os "instintos capitais" e a "vontade de potência" e nos
capacita a "dominar o caos que nós somos".

Sugestão de leitura: NASSER, E. O romantismo em Nietzsche


enquanto um problema temporal, estético e ético. Revista Trá-
gica: estudos sobre Nietzsche, v. 2, n. 2, p. 31-46, 2009. Dispo-
nível em: <http://tragica.org/artigos/04/03-eduardo.pdf>. Acesso
em: 4 set. 2015.

A filosofia como estética


Muito mais verdadeira do que a ciência e a filosofia, para
Nietzsche, seria a arte. Isso porque se adéqua à multiplicidade
da vida e ao seu processo constante de diferenciação. O artista
é o único que não possui a pretensão de expressar uma verdade
absoluta, mas sua obra se limita a uma "perspectiva". Por essa
razão, Nietzsche acreditava que o filósofo e a filosofia deveriam
se transformar em estética.
O professor Miguel Angel de Barrenechea observa, em
seu artigo Nietzsche e o discurso filosófico: uma "linguagem
pessoal" (2011), que o Nietzsche jovem buscava, em sua obra
O nascimento da tragédia, "uma metafísica de artista". Trata-se
de uma explicação estética do universo, assim como do próprio
devir da cultura. Orienta-se pelas imagens da tradição helênica,
valorizando particularmente a tragédia e a música, que conside-
rava como expressões da própria essência da realidade. Sob a
inspiração de Schopenhauer e do compositor Richard Wagner,
desenvolve, naquela obra, uma visão da realidade onde ainda se
mantém ligado aos dualismos da tradição filosófica, tais como:

© Ética II 243
UNIDADE 4 – Primórdios da Pós-Modernidade: Schopenhauer e Nietzsche

fenômeno e coisa-em-si; aparência e essência; vontade e repre-


sentação. É assim que, naquela obra, Nietzsche vê, nas figuras de
Apolo (divindade da mitologia greco-romana identificado como
o sol e como a luz da verdade) e de Dionísio (em Nietzsche, sim-
bolizando a vontade de viver) representantes, respectivamente,
do aspecto fenomenal da realidade e das forças provindas de um
fundo primordial, da essência do mundo. Posteriormente, ao es-
crever Assim falava Zaratrusta, Nietzsche vai à busca de uma lin-
guagem essencialmente não conceitual, mas artística e literária,
por meio de imagens e metáforas.

Considerações
O professor Jelson Oliveira, da PUC do Rio de Janeiro, em
seu artigo intitulado A grande Ética de Nietzsche, propõe que se
possa falar de uma "grande Ética" em Nietzsche. Diz ele:
Trataremos de avaliar a possibilidade de pensar o problema da
ética em Nietzsche a partir da compreensão do uso instrumen-
tal do adjetivo grosse (grande). [...] Consideraremos, a título de
exemplo, o uso feito pelo filósofo do adjetivo grosse em expres-
sões como "grande saúde", "grande política", "grande razão"
e "grande homem", pelo qual se pode descobrir "pistas" que
remetem às noções de auto-supressão, diferença, conflito e
hierarquia. Essas noções se ligam à idéia de uma grande ética,
cuja referência passa a ser o pathos e não mais simplesmente o
ethos (OLIVEIRA, 2011a, p. 1).

Observa que o terreno dessa "grande Ética" seria o "pathos",


ao contrário do terreno da moral vigente, a do "ethos", fundado
na conduta guiada pela universalidade dos imperativos, ligado ao
duradouro via a racionalidade. Pathos é entendido por Nietzsche
como aquilo que diz respeito à conduta do "nobre", ou seja, a de
um distanciamento gerador da diferença, do conflito e da hierar-

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UNIDADE 4 – Primórdios da Pós-Modernidade: Schopenhauer e Nietzsche

quia, terreno de uma ética que não se fundamenta em princípios


universais à luz de uma "vontade de sistema".
Como características dessa "grande Ética", desse "ir além"
de toda moralidade vigente, Nietzsche fala de uma ética "aris-
tocrática" e de uma ética da "amizade". Uma ética aristocráti-
ca, uma vez que, segundo Nietzsche, só o nobre seria capaz de
vivenciar esse "ir além", essa "transvalorização", esse recriar e
reinventar valores, por meio de um jogo de perspectivas, sem
definhar. Uma ética da amizade significa, no caso, uma "revalori-
zação dos afetos".
No prefácio ao livro Para uma ética da amizade em Nietzsche,
do professor Jelson Oliveira, Oswaldo Giacóia Junior diz, citando
Nietzsche:
É certo que Nietzsche, mesmo em cerrada oposição ao seu mes-
tre Arthur Schopenhauer, não se propõe a depor completamente
uma ética da compaixão, substituindo-a por um ethos da felici-
dade compartilhada, pura e simplesmente, em termos de uma
oposição absoluta; mas não é menos certo que, tal como cons-
tatamos na citação abaixo transcrita, ele contrapõe Mitfreude
(alegrar-se com) a Mitleiden (compaixão). E esse sentimento po-
sitivo de alegrar-se com só é plenamente possível entre amigos.
"Aqueles que podem sentir alegria conosco, são mais elevados
e próximos do que aqueles que sofrem conosco. Alegria com-
partilhada faz o 'amigo' (aquele que se alegra-com); compaixão
faz o companheiro de sofrimento. – Uma ética da compaixão
carece de um complemento por meio de uma ética da amiza-
de, ainda mais elevada" (NIETZSCHE, F. Fragmento póstumo nu-
merado como 19 [9]. In: Nachgelassene Fragmente. In: Kritische
Studienausgabe (ksa). Ed. G. Colli e M. Montinari. Berlin, New
York, München: de Gruyter, dtv. 1980, vol. 8, p. 333). Nietzsche
faz aqui um jogo de palavras, irresgatável em português, entre
'Freude' (alegria) e 'Freunde' (amigo); transitando entre alegria
e amizade, ele opõe amigo-alegria (por meio dos verbos freuen
[alegrar-se] e do neologismo cunhado por ele mesmo freuenden

© Ética II 245
UNIDADE 4 – Primórdios da Pós-Modernidade: Schopenhauer e Nietzsche

[alegrar-se amistosamente]) a uma ética da compaixão (Mitleid


– sofrer com). A ética da amizade seria, ao mesmo tempo, uma
complementação (Ergänzung) e um patamar ético mais elevado
que a ética da compaixão (GIACÓIA JR., in OLIVEIRA, 2011b).

Quanto à Ética, conforme a estamos considerando nesta


obra, ou seja, como saber do singular, distinguindo-se da moral
na medida em que esta se funda em um saber abstrato, genera-
lizante, podemos dizer que ela literalmente se manifesta de ma-
neira "explosiva" no pensamento de Nietzsche.
Isso porque, como vimos, ao tratar a moral vigente no pen-
samento ocidental como algo falso e ilusório, por ter por fun-
damento uma razão abstraída da vida, coloca a nu um domínio
de saber que é o de uma universalidade não do "geral", não do
"igual", mas do "singular", da "diferença".
E, nesse sentido, várias são as questões de ordem filosófica
polêmicas no que concerne ao pensamento do filósofo alemão,
com implicações no tema da Ética. Assim, por exemplo, para não
citar senão algumas: a questão da existência no pensamento de
Nietzsche de um transcendental não transcendente; a de um
saber da "singularidade"; a da distinção entre "singularidade" e
"individualidade"; a da "subjetividade".
Relembremos que os sentidos de transcendental, de trans-
cendente e de imanente assumem nuances diversas no pen-
samento de alguns filósofos. Aqui, estamos entendendo como
transcendental a concepção de um princípio da realidade que
pode ser visto como transcendente, no caso de significar a exis-
tência de uma ordem especial de realidades que não se encon-
tram no nível dos sentidos (é o caso de uma posição metafísica)
ou pode ser concebido como imanente, no caso de significar a

246 © Ética II
UNIDADE 4 – Primórdios da Pós-Modernidade: Schopenhauer e Nietzsche

existência de uma causa do mundo real fechada no próprio uni-


verso, não regulada por um princípio superior, distinto e exterior.
São questões debatidas atualmente, dentro de visões mui-
tas vezes paradigmaticamente diferentes e que compõem o qua-
dro de reflexões contemporâneas sobre o tema da ética – ques-
tões que se situam além dos limites estritos da presente obra.
Sugerimos que você procure responder, discutir e comen-
tar as questões a seguir, que tratam da temática desenvolvida
nesta unidade, ou seja, o emergir de uma desconfiança nos po-
deres da razão especulativa para o tratamento das questões éti-
cas, da busca por um novo recurso de conhecimento, do recurso
à arte e à intuição como fontes de conhecimento da realidade.

7. questões autoavaliativas
Confira, a seguir, as questões propostas para verificar o seu
desempenho no estudo desta unidade:
1) Qual seria o fundamento do agir ético para Schopenhauer?
a) A justiça.
b) A razão prática.
c) A amizade.
d) A compaixão.
e) O respeito.

2) Schopenhauer identifica uma incapacidade de formar santos ou artistas,


por meio de educação teórica sobre a arte ou sobre a Ética. Nesse sentido,
ele afirma:
§ 53
Na minha opinião, contudo, toda a filosofia é sempre teórica,
já que lhe é sempre essencial manter uma atitude puramente
contemplativa [...], e sempre inquirir, em vez de prescrever re-
gras. Tornar-se prática, conduzir a ação, moldar o caráter: eis aí

© Ética II 247
UNIDADE 4 – Primórdios da Pós-Modernidade: Schopenhauer e Nietzsche

pretensões antigas que uma intelecção mais perspicaz fará por


fim a filosofia abandoná-las. Pois aqui, quando se trata do valor
ou da ausência de valor da existência, da salvação ou da perdi-
ção, os mortos não decidem, e sim a essência mais íntima do
homem: seu demônio que o conduz e que ele mesmo escolheu
(como diz Platão) em vez de ser escolhido, seu caráter inteligí-
vel, como // Kant se expressa. A virtude é tão pouco ensinada
quanto o gênio; sim, para ela o conceito é tão infrutífero quanto
para a arte e em ambos os casos deve ser usado apenas como
instrumento. Por conseguinte, seria tão tolo esperar que nossos
sistemas morais e éticos criassem caracteres virtuosos, nobres
e santos, quanto que nossas estéticas produzissem poetas, ar-
tistas plásticos e músicos (SCHOPENHAUER, 2005, p. 354).

Dessa forma de compreender o ético, podemos afirmar que:


a) Schopenhauer identifica Ética e estética em seu pensamento, impon-
do limites à razão enquanto pretensão de impor regras racionais ao
comportamento humano, assim como de impor regras à produção do
gênio.
b) No pensamento de Schopenhauer, não há uma ética propriamente
dita, visto que não apresenta valores racionais que possam nortear o
comportamento humano.
c) A filosofia deve moldar as regras de conduta, assim como também
deve preparar a produção artística, sendo tanto santos quanto gênios
devedores da especulação filosófica.
d) Schopenhauer propõe uma ética fundada em valores aceitos pela so-
ciedade, e empreende uma defesa dos valores iluministas.

3) Segundo Nietzsche, faltou aos filósofos buscar uma genealogia para os


conceitos de bom e mau. Na sua gênese, segundo o filósofo, qual era o
significado desses conceitos? Como eles trocaram de papel? O que passa-
ram a significar?

4) Podemos constatar o esforço intelectual de Nietzsche para o desenvolvi-


mento de um saber da singularidade e da diferença. Isso se pode notar
em várias passagens, dentre as quais achamos relevante retomar uma, já
citada.
Quando o centro de gravidade da vida é colocado, não nela
mesma, mas no "além" – no nada –, então se retirou da vida
o seu centro de gravidade. A grande mentira da imortalidade

248 © Ética II
UNIDADE 4 – Primórdios da Pós-Modernidade: Schopenhauer e Nietzsche

pessoal destrói toda razão, todo instinto natural – tudo que


há nos instintos que seja benéfico, vivificante, que assegure o
futuro, agora é causa de desconfiança. Viver de modo que a
vida não tenha sentido: agora esse é o "sentido" da vida [...]
Para que o espírito público? Para que se orgulhar pela origem
e antepassados? Para que cooperar, confiar, preocupar-se com
o bem-estar geral e servir a ele? [...] Outras tantas "tentações",
outros tantos desvios do "bom caminho". – "Somente uma coi-
sa é necessária" [...] Que todo homem, por possuir uma "alma
imortal", tenha tanto valor quanto qualquer outro homem; que
na totalidade dos seres a "salvação" de todo indivíduo possa
reivindicar uma importância eterna; que beatos insignificantes
e desequilibrados possam imaginar que as leis da natureza são
constantemente transgredidas em seu favor – não há como ex-
pressar desprezo suficiente por tamanha intensificação de toda
espécie de egoísmos ad infinitum, até a insolência. E, contudo,
o cristianismo deve o seu triunfo precisamente a essa deplorá-
vel bajulação de vaidade pessoal – foi assim que seduziu ao seu
lado todos os malogrados, os insatisfeitos, os vencidos, todo o
refugo e vômito da humanidade. A "salvação da alma" – em
outras palavras: "o mundo gira ao meu redor" [...] A venenosa
doutrina dos "direitos iguais para todos" foi propagada como
um princípio cristão: a partir dos recônditos mais secretos dos
maus instintos o cristianismo travou uma guerra de morte con-
tra todos os sentimentos de reverência e distância entre os ho-
mens, ou seja, contra o primeiro pré-requisito de toda evolu-
ção, de todo desenvolvimento da civilização – do ressentimento
das massas forjou sua principal arma contra nós, contra tudo
que é nobre, alegre, magnânimo sobre a terra, contra nossa
felicidade na Terra [...] Conceder a "imortalidade" a qualquer
Pedro e Paulo foi a maior e mais viciosa afronta à humanidade
nobre já perpetrada. – E não subestimemos a funesta influência
que o cristianismo exerceu mesmo na política! Atualmente nin-
guém mais possui coragem para os privilégios, para o direito de
dominar, para os sentimentos de veneração por si e seus iguais
– para o pathos da distância [...] Nossa política está debilitada
por essa falta de coragem! – Os sentimentos aristocráticos fo-
ram subterraneamente carcomidos pela mentira da igualdade

© Ética II 249
UNIDADE 4 – Primórdios da Pós-Modernidade: Schopenhauer e Nietzsche

das almas; e se a crença nos "privilégios da maioria" faz e con-


tinuará a fazer revoluções – é o cristianismo, não duvidemos
disso, são as valorações cristãs que convertem toda revolução
em um carnaval de sangue e crime (NIETZSCHE, 1989, § LXIII).

A partir dessa passagem, podemos dizer:


a) Nietzsche coloca em questão a homogeneização das condutas huma-
nas pretendidas pelos dogmas religiosos e propõe uma Ética que ad-
mita as singularidades, não como exceção à regra, mas como a própria
regra da vida.
b) Nietzsche critica qualquer ideia de salvação que não nos encaminhe
para um além-mundo.
c) Nietzsche retoma uma posição aristotélica em relação aos valores tra-
dicionais, propondo uma Ética que não só nos encaminhe para uma
igualdade, mas que aceita um meio termo em relação às atitudes de
senhores e escravos, para que estes convivam em paz.
d) Nenhuma das alternativas anteriores está correta.

5) Segundo os conteúdos aqui tratados, porque podemos dizer que tanto


para Nietzsche como para Schopenhauer, a razão teórica não deve se tor-
nar prática? E, por que podemos dizer que, no pensamento desses filó-
sofos, a questão moral começa a perder força e a questão ética se impõe
com mais força do que nos pensadores anteriores?

Gabarito
Confira, a seguir, as respostas corretas para as questões au-
toavaliativas propostas:
1) d.

2) a.

3) Bom era o conceito que designava os grandes homens, as suas ações. Es-
ses homens seriam os nobres capazes de guerrear e conquistar. Homens
capazes de aumento de força e poder. Tais ações de homens nobres eram
as ações boas e justas e não careciam de justificações. Más seriam as
ações dos fracos, os que se deixam escravizar e dominar. A casta sacerdo-
tal também pertencia aos nobres, mas não tinham a força para guerrear e

250 © Ética II
UNIDADE 4 – Primórdios da Pós-Modernidade: Schopenhauer e Nietzsche

conquistar. Então, por um exercício de retórica e justificação, poderíamos


dizer que fizeram valer uma nova visão sobre as ações virtuosas, colocan-
do-as a seu favor. A partir de então, sua condição foi aceita como a atitude
correta, digna de respeito e admiração, que conduz ao céu. Então, a impo-
tência dos sacerdotes, assim como a dos que se deixam dominar, passou a
significar as atitudes verdadeiramente boas e justas.

4) a.

5) Em Schopenhauer e Nietzsche, as pretensões iluministas de se formar


uma sociedade esclarecida pela razão, ou dialeticamente, como o próprio
Nietzsche se refere, está fadada ao fracasso, pois se trata sempre de refor-
mular o que já se deve crer de antemão, ou seja, que a razão ou "verda-
de racional" é a única capaz de compreender a realidade. Pelo descrédito
desses filósofos no tocante ao alcance da razão, abre-se caminho para
novas abordagens sobre a realidade. A intuição, a arte e a compreensão
passam a figurar entre as possibilidades de se alcançar novas formas de
pensamento. Com isso, a moral, desenvolvida dialeticamente e historica-
mente acompanhada e entrelaçada ao próprio desenvolvimento da razão,
perde força. Assim, a Ética, o conhecimento do singular, do caráter, apare-
ce no horizonte desses filósofos com muito mais força, e podemos arriscar
a pensar que isso se deve, de fato, à mudança que estes operam no campo
epistêmico, sendo algo decisivo para a construção do pensamento de am-
bos os filósofos, guardadas as divergências entre eles.

8. Considerações finais
Vimos, em Ética II, que, quando buscamos entender a ação
ou comportamento éticos propriamente ditos, defrontamo-nos
com um saber que tem por objeto a capacidade humana de
"transcendência", que nos leva além de nós mesmos, de nossos
hábitos, costumes e interesses pessoais, mergulhando-nos no
caráter ou na singularidade de uma situação, de um comporta-
mento, de uma ação.
Assim, dentro dessa visão aqui apresentada, podemos
dizer que o ético não depende do "moral", embora o "moral"

© Ética II 251
UNIDADE 4 – Primórdios da Pós-Modernidade: Schopenhauer e Nietzsche

ou a "moralidade" também se deva a uma capacidade de trans-


cendência. Diríamos que o "moral" decorre daquela capacidade
humana de, transcendendo o "individual", estabelecer regras
gerais de ação dentro de contextos específicos, tais como os de
uma época, civilização, cultura, um grupo profissional, por exem-
plo. Nesse sentido, consideramos inadequada a designação de
"código de ética profissional". No nosso entender, trata-se de
uma "moralidade" estabelecida por um determinado grupo
profissional.
A diferenciação básica entre essas duas capacidades de
transcendência se daria, a nosso ver, no fato de a moral, diferen-
temente da Ética, consistir em um transcender o "individual" em
busca de regras gerais. E, por isso, por se realizar à luz do "indi-
vidual" e do "universal geral", frequentemente o "moral" entra
em conflito com o "ético", uma vez que este último, como já foi
dito, trabalha no nível da "singularidade". E "individualidade" e
"singularidade" são essencialmente diferentes.
É assim que, exemplificando:
• diante dos valores culturais (moral) da civilização islâ-
mica com relação às mulheres, nos sentimos, enquanto
seres éticos, indignados;
• temos enormes dificuldades em aceitar os valores (a
moral) de grupos neo-nazistas, da Klu-Klux-Klan, da Má-
fia etc.
• revoltamo-nos diante de costumes culturais como o do
infanticídio entre os índios.
No decorrer deste nosso estudo, tivemos a oportunidade
de encontrar, ao estudarmos as obras de alguns dos filósofos
mais representativos, questões relativas a essas duas "trans-
cendências", com predominância da questão da "moral", uma

252 © Ética II
UNIDADE 4 – Primórdios da Pós-Modernidade: Schopenhauer e Nietzsche

vez que, como assinalamos na introdução a esta obra, o período


analisado, do Renascimento ao chamado pensamento moder-
no, consiste essencialmente no desenvolvimento de uma razão
teórico-especulativa, ou seja, geral e abstrata, que é a base da
moralidade.
Ao nos depararmos, no século 19, com os pensamentos de
Schopenhauer e Nietzsche, vemos surgir, com maior clareza, a
distinção entre o ético e o moral, com predominância da preocu-
pação com o ético propriamente dito. É o que vamos ver acon-
tecer no pensamento contemporâneo chamado pós-moderno,
com inúmeros e diversos posicionamentos a respeito da Ética.
Não constituindo a filosofia contemporânea matéria da
presente obra, damos aqui por encerrado esse nosso estudo, na
esperança de ter contribuído, até certo ponto, para uma reflexão
sobre a Ética e a moral, por meio de um histórico do que consi-
deramos um lento emergir de suas diferenças.

9. e-referência
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UNIDADE 4 – Primórdios da Pós-Modernidade: Schopenhauer e Nietzsche

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10. referências bibliogrÁficas


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