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Filosofia Política III

Filosofia Política III


Alessandro Pinzani

Governo
Federal

Florianópolis, 2011.
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S007d
SOBRENOME, Nome.
Título do livro/Nome e Sobrenome do autor. Florianópolis: Universidade
Federal de Santa Catarina, 2009. 007p. ilust.
inclui bibliografia.
ISBN:07.007.007-7
1.Temática 2.Temática - subtema 3.Temática I.Tema II.Tema
CDU 007.07

Catalogação na fonte elaborada na DECTI da Biblioteca Universitária da


Universidade Federal de Santa Catarina.
Sumário
Apresentação.......................................................................9

Introdução - Características fundamentais


da filosofia política contemporânea............... 11
Introdução................................................................................... 13

1 O pensamento político do século xix........................19


1.1 A herança hegeliana: hegelianos de direita e
de esquerda e o jovem Marx....................................................................21
1.2 O socialismo utópico e Proudhon......................................... 24
1.3 Marx e a crítica da economia política................................... 28
1.3.1 Os escritos políticos ................................................................. 28
1.3.2 O Capital.................................................................................. 37
1.4 Anarquismo ............................................................................. 45
1.5 Conservadorismo.................................................................... 50
Leituras recomendadas........................................................... 53
Reflita sobre............................................................................... 54

2 O surgimento da Sociologia Moderna......................55


2.1 Introdução................................................................................ 57
2.2 Auguste Comte......................................................................... 57
2.2.1 A sociologia como física social................................................. 58
2.2.2 Natureza humana e dinâmica social ..................................... 60
2.3 Émile Durkheim...................................................................... 62
2.3.1 As regras do método sociológico ............................................. 62
2.3.2 A divisão do trabalho e a sociedade moderna........................ 63
2.4 Max Weber................................................................................ 65
2.4.1 Os tipos ideais e a teoria do poder.......................................... 66
2.4.2 Uma teoria da modernidade .................................................. 67
2.4.3 A política e o político .............................................................. 70
Leituras recomendadas........................................................... 72
Reflita sobre............................................................................... 72

3 A primeira metade do século XX:


o triunfo das massas.....................................................73
3.1 Introdução................................................................................ 75
3.2 O marxismo e o problema da falta
de consciência de classe ......................................................... 77
3.2.1 Lênin: entre teoria e ação revolucionária .............................. 78
3.2.2 Gramsci e a teoria da hegemonia cultural . ........................... 80
3.2.3 Lukács e a Escola de Frankfurt............................................... 86
3.3 Conservadorismo e fascismo ................................................ 97
3.3.1 O Estado totalitário: Gentile como teórico do fascismo......... 98
3.3.2 Civilização X cultura: o antidemocratismo
alemão entre as guerras......................................................... 100
3.4 Carl Schmitt............................................................................ 102
3.4.1 Teologia política, soberania, estado de exceção..................... 103
3.4.2 As categorias de “amigo” e “inimigo”
e a crítica à democracia liberal . ........................................... 105
3.4.3 Direito e ordem internacional .............................................. 107
3.5 Hannah Arendt...................................................................... 111
3.5.1 O totalitarismo e a banalidade do mal................................. 111
3.5.2 A condição humana............................................................... 115
Leituras recomendadas.........................................................119
Reflita sobre.............................................................................119

4 A segunda metade do Século XX................................121


4.1 John Rawls: justiça como equidade .................................... 123
4.1.1 O objeto de uma teoria da justiça......................................... 124
4.1.2 A posição originária............................................................... 126
4.1.3 Os dois princípios . ................................................................ 128
4.1.4 O pluralismo razoável . ........................................................ 132
4.1.5 As críticas dos comunitaristas ao liberalismo de Rawls....... 133
4.2 Jürgen Habermas................................................................... 136
4.2.1 Entre sociologia e filosofia..................................................... 137
4.2.2 Direito e democracia.............................................................. 140
4.3 Michel Foucault...................................................................... 146
4.3.1 O poder como relação entre forças........................................ 147
4.3.2 Soberania, governamentalidade, biopolítica......................... 150
4.4 A filosofia política perante os desafios do século XXI...... 153
4.4.1 Multiculturalismo e teorias do reconhecimento................... 154
4.5 Globalização e cosmopolitismo normativo........................ 162
Leituras recomendadas.........................................................170
Reflita sobre.............................................................................170

Referências ......................................................................171
Apresentação
A disciplina Filosofia Política III tem como objetivo principal ofe-
recer uma visão geral das mais importantes teorias políticas con-
temporâneas, de Marx aos nossos dias. A disciplina se ocupará de
mostrar como, nesse espaço de tempo, o pensamento político se di-
versificou, quer do ponto de vista metodológico (com o surgimento
de novas disciplinas, como a Sociologia) quer do ponto de vista do
seu objeto (além de refletir sobre as instituições estritamente políti-
cas ou sobre o direito; os pensadores começam a ocupar-se dos efei-
tos da economia na política e passam a considerar a sociedade civil
como um sujeito político tão importante quanto o Estado).
Nossa disciplina abarca um período extremamente rico do ponto
de vista teórico e histórico: é como se a história humana tivesse sofri-
do uma aceleração nos últimos dois séculos, dando lugar a transfor-
mações mais rápidas e profundas do que nunca. Isso complica muito
a tarefa de expor a história do pensamento político desse período.
Contudo, tentaremos oferecer um panorama geral dela procedendo
a uma análise mais aprofundada de alguns autores fundamentais
ou paradigmáticos, como já fizemos no livro-texto da disciplina Fi-
losofia Política II. Como naquele texto, aqui também incluímos uma
bibliografia para o leitor aprofundar os estudos nos argumentos e
autores que mais lhe interessarem.
A intenção principal da disciplina é fornecer um quadro bastante
amplo das posições e das tradições teóricas mais relevantes da histó-
ria do pensamento político contemporâneo. O enfoque é basicamente
histórico, já que se trata de contextualizar tais posições e tradições. Ao
mesmo tempo, porém, serão apresentadas as problemáticas que ainda
hoje estão no centro da discussão política, seja no nível mais especifi-
camente teórico, seja naquele mais prático da esfera pública. Portanto,
o conhecimento oferecido por esta disciplina se torna central para a
formação do professor de Filosofia, em qualquer nível de ensino.
O autor
■ Introdução ■
Características
fundamentais da filosofia
política contemporânea

O objetivo desta introdução é fornecer a


você um apanhado geral das questões cen-
trais da filosofia política contemporânea.
Para tal fim, você verá as principais tradições
teóricas contemporâneas (liberalismo, socia-
lismo, fascismo e multiculturalismo). Além
disso, você compreenderá a discussão sobre
o estatuto normativo de tais teorias e, final-
mente, o seu contexto histórico geral.
Introdução ◆ 13

Introdução

Características fundamentais da filosofia


política contemporânea
Na Introdução ao livro-texto Filosofia Política II, discutimos a
questão da definição do próprio conceito de filosofia política. Su-
gerimos ao leitor que volte a lê-la antes de começar seus estudos
no novo texto.
Foi a partir do século XIX que a ciência política e a sociologia
se afirmaram como disciplinas independentes da filosofia política
propriamente dita. Contudo, há cientistas políticos ou sociólogos
cujo pensamento deixa de ser meramente empírico e entra em
questões filosóficas ou que adquirem relevância no pensamento
de filósofos contemporâneos ou sucessivos. Por essa razão, neste
livro, consideraremos brevemente a obra de alguns deles, como
Comte, Durkheim e Weber.
Enquanto o pensamento político moderno, de Maquiavel a Hegel,
se caracteriza pela tentativa de responder a questão da legitimidade
do poder do Estado, a partir da metade do século XIX o foco prin-
cipal da teoria política é a difícil relação entre política por um lado e
sociedade e economia por outro. Essa relação é vista frequentemen-
te de maneira crítica: os autores que, apesar das diferenças, podem
ser chamados de liberais lamentam a ingerência e o peso excessivo
da primeira sobre as outras; outros autores, num leque que vai dos
14 ◆ Filosofia Política III

socialistas aos republicanos, lamentam antes o domínio mais ou me-


nos aberto da esfera da economia sobre a da política.
Em geral, do ponto de vista estreitamente teórico-político, a
questão central é menos a de justificar a existência do Estado (ex-
ceção notável: os anarquistas, que a rejeitam incondicionalmente)
e antes a de considerar os limites do poder estatal e sua imparcia-
lidade perante os cidadãos. Em outras palavras: a questão agora
é pensar num Estado que realize suas promessas de garantir li-
berdade e igualdade política, ainda que não econômica.
Ao mesmo tempo, surgem teorias críticas que consideram tais
promessas como tentativas de esconder as verdadeiras finalidades
do Estado: defender os interesses parciais das classes dominantes.
Tais teorias não necessariamente criticam o Estado em si (com a
mencionada exceção do anarquismo), antes o Estado burguês que
nasceu com a Revolução Francesa e que parece alcançar sua defini-
tiva realização com a Revolução de Julho de 1830, acontecida tam-
bém na França e que levou ao surgimento duma monarquia consti-
tucional na qual o poder do rei era controlado exclusivamente pelos
cidadãos proprietários (e não também pela aristocracia tradicional,
como na Inglaterra), a tal ponto que – a partir de tal data –, em to-
dos os países europeus, houve uma luta por parte da burguesia para
obter uma constituição análoga àquela francesa. O Estado burguês
prometia a abolição dos privilégios aristocráticos e a igualdade polí-
tica dos cidadãos, mas ao mesmo tempo garantia o direito de parti-
cipação política somente aos proprietários. Destarte, a igualdade dos
cidadãos terminava perante as urnas eleitorais (sem contar a exclu-
são política das mulheres, que continuará até o século XX).
Outra importante herança da Revolução Francesa é o concei-
to de nação. Contra a aristocracia, que representava somente a si
mesma, o Terceiro Estado (a burguesia) tinha afirmado represen-
tar ou até mesmo de ser a nação na sua totalidade (ver a seção
4.4 do livro-texto Filosofia Política II). Se, antes de 1789, ser um
francês significava basicamente ser um súdito do legítimo rei de
França, membro da família dos Bourbons, a partir da Revolução,
passou a indicar o fato de ter nascido na França e de comparti-
lhar com os concidadãos algo mais profundo do que um dever
individual de obediência. O tradicional vínculo pessoal de cada
Introdução ◆ 15

Oximoro súdito com seu monarca tinha sido substituído pelo vínculo de
Um oximoro é uma figura
retórica que junta dois
cada habitante do país com o corpo da nação, vínculo de sangue
conceitos opostos numa análogo àqueles familiares (o país de nascimento passa a ser cha-
expressão única, por mado de Pátria Mãe, com um bizarro oximoro) e que compre-
exemplo, “culpa inocente”;
nesse caso a pátria, termo ende uma identidade de história, língua, cultura e costumes. Ao
que remete ao latim pater = nacionalismo francês se contrapõe, durante a era napoleônica, o de
pai, é chamada de mãe.
outros países, particularmente o alemão, mobilizado na luta contra
Bonaparte. Os Discursos à nação alemã (1806) do filósofo idealista
Johann Gottlieb Fichte, que tinha sido anteriormente um defen-
sor da Revolução Francesa, visavam justamente levar os alemães
a revoltar-se contra os ocupantes franceses. Para esse fim, Fichte
salientava o caráter nacional alemão como sendo oposto àquele
francês: ao Esclarecimento francês, materialista e racional, era con-
traposto o Romantismo alemão, idealista e sentimental; à crença
na igualdade de todos os homens defendida pelos revolucionários
era contraposto o senso da tradição e o amor à autoridade presu-
midamente típicos dos alemães; ao ideal da civilização, com sua
visão cosmopolita duma comunidade humana reunida ao redor
Johann Gottlieb Fichte (1762-
1814) Fonte: http://tinyurl. de valores universais, era contraposto o ideal da cultura nacional.
com/JohannG Essa contraposição marcou o início do “caminho peculiar” alemão
que levou a Alemanha a considerar-se espiritualmente diferente
do resto da Europa e a ver com suspeita os ideais universais dos
direitos humanos e os princípios do liberalismo, considerados ex-
pressões respectivamente da cultura nacional francesa e inglesa e,
portanto, alheios à cultura nacional alemã. Os germes que levaram
à Primeira Guerra Mundial estavam brotando.
Os movimentos patrióticos que surgiram em toda Europa pos-
suem um duplo caráter: são idealistas e são interesseiros. O ide-
alismo consiste na tentativa de realizar o princípio de autodeter-
minação dos povos, pelo qual cada povo deveria ser livre para
constituir-se num Estado nacional. Essa ideia encontra sucesso
particularmente entre povos ainda não reunidos num Estado
unitário (como no caso da Alemanha), submetidos à dominação
estrangeira (como no caso da Polônia e, em parte, da Itália) ou
incluídos em impérios supranacionais (como no caso do Império
dos Habsburgos e dos seus tantos povos). O elemento interesseiro
é presente no apoio da burguesia, que vê, na existência dum Estado
nacional unitário, a possibilidade de melhorar sua situação.
16 ◆ Filosofia Política III

Para a burguesia alemã ou italiana, um Estado unificado signi-


ficaria, em primeiro lugar, a eliminação de fronteiras e impostos
aduaneiros e a criação dum grande mercado interno; ao mesmo
tempo, tal Estado seria capaz de defender os interesses dela contra
o exterior, como já acontecia na França e na Inglaterra, adotando
medidas protecionistas, se fosse o caso (e também abrindo pela
força novos mercados e criando um império colonial). O patriotis-
mo idealista de um Mazzini transforma-se assim – com o passar Giuseppe Mazzini (1805-
do tempo e o surgimento de uma forte competição internacional 1872) foi um pensador e
político italiano que, além
entre indústrias nacionais cada vez mais desenvolvidas – em na- de lutar pela unificação da
cionalismo e em imperialismo. Os resultados práticos foram ter- Itália e pela instauração
dum governo republicano,
ríveis: o colonialismo europeu resultou na exploração de conti- teorizou o princípio de
nentes inteiros que, como no caso da África, até hoje sofrem as autodeterminação dos
consequências da dominação estrangeira; e o nacionalismo levou povos, os quais, no projeto
cosmopolita mazziniano,
à eclosão da Primeira Guerra Mundial e, junto a outras causas, da deveriam dar lugar a um
Segunda, com seus horrores. “banquete de nações irmãs”.
Fonte: http://tinyurl.com/
A Guerra Fria viu o surgimento do Estado de bem-estar (Wel- GiuzeppeMazzini
fare State), que seria teorizado por alguns (Rawls) e criticado por
outros (Habermas). A queda do Socialismo Real marcou o início
duma fase em que as conquistas das classes trabalhadoras eram
postas em questão e paulatinamente desmontadas. O prevalecer
da visão neoliberal, para a qual cada indivíduo é responsável por
sua vida e deve geri-la como se fosse uma empresa (calculando os
riscos, tomando providências etc.) sem esperar ajuda do Estado,
contribuiu a esse processo.
Segundo a ideologia dominante, não há problema social que
não possa ser resolvido pelo mercado, com o Estado que deveria
limitar-se a garantir a moldura jurídica para o bom funcionamen-
to deste último. Fenômenos como a crise de 2008-2009 mostraram
os limites dessa visão e a importância que o Estado segue manten-
do também no que diz respeito à vida econômica e aos mercados.
Contudo, hoje em dia, na era da globalização, a relação entre eco-
nomia e política permanece uma relação de tensão ou de aberto
conflito. A própria globalização é, em primeiro lugar, um fenôme-
no econômico, e os tradicionais atores políticos, como os estados,
parecem ser incapazes de lidar eficazmente com ele, apesar de os
mercados dependerem da atividade dos governos. O pensamento
Introdução ◆ 17

político tenta refletir sobre esses fenômenos, mas o cenário mun-


dial é extremamente complexo e tal operação parece ser impossí-
vel sem o recurso de uma perspectiva interdisciplinar.
Além disso, nas últimas décadas, surgiram novos âmbitos de re-
flexão política: aos tradicionais conflitos sociais se juntaram novos
conflitos identitários e a filosofia política já não se ocupa somente
de questões de justiça distributiva, mas também das exigências de
reconhecimento, avançadas por culturas e grupos.
No último capítulo do livro, tentaremos apontar para esses as-
pectos e mostrar quais são os âmbitos nos quais a teoria política
contemporânea está movendo-se.

Leituras recomendadas
Sobre a filosofia política contemporânea em geral:
KYMLICKA, Will. Filosofia política contemporânea. São Paulo:
Martins Fontes, 2006.
OLIVEIRA, Manfredo et al. (Org.). Filosofia política contempo-
rânea. Petrópolis: Vozes, 2003.
RENAUT, Alain (Org.). História da filosofia política: as críticas
da modernidade política. Lisboa: Instituto Piaget, 2002. 4 v.
TOUCHARD, Jean. História das idéias políticas: do liberalismo
aos nossos dias. Mem-Martins: Publicações Europa-América,
1991. 4 v.
Sobre a sociologia moderna, ainda pode ser utilizado o texto
clássico:
ARON, Raymond. As etapas do pensamento sociológico. São
Paulo: Martins Fontes, 1997.
■ Capítulo 1 ■
O pensamento político
do século xix

Neste capítulo, você compreenderá a in-


fluência do pensamento de Hegel nas déca-
das imediatamente sucessivas à sua morte;
o pensamento de Marx (nosso autor funda-
mental neste capítulo) no seu trajeto de críti-
co de Hegel para crítico da economia política;
outras importantes correntes do pensamento
político do século XIX, como o socialismo
utópico, o anarquismo e o conservadorismo.
O pensamento político do século xix ◆ 21

1.1 A herança hegeliana: hegelianos


de direita e de esquerda e o jovem
Marx
Ainda que suas aulas de filosofia do direito fossem frequentadas
por muitos estudantes e não obstante a posição semioficial de “filóso-
fo de Estado”, o pensamento político de Hegel acabou não exercendo
uma grande influência direta sobre os pensadores políticos do século
XIX. Como vimos no livro-texto Filosofia Política II, os grandes teó-
ricos liberais, como Mill e Tocqueville, parecem não levar em conta
tal pensamento, e a atmosfera espiritual geral do século é bem mais
impregnada pelo positivismo e por um historismo que não é idealis-
ta como aquele hegeliano, antes se baseia num estudo “científico” da
história, inspirado pelos métodos das ciências naturais.
Contudo, nos anos imediatamente sucessi-
vos à morte de Hegel, surgiu, na Alemanha,
um debate vivíssimo sobre sua herança filosó-
fica e sobre o “verdadeiro” sentido do seu pen-
samento. Os protagonistas de tal debate eram
em parte ex-alunos do filósofo, mas também
jovens pensadores que procuravam, no ide-
Os termos de “direita” e “esquerda” aparecem pela primeira vez alismo hegeliano, instrumentos para criticar
na Assembleia Nacional Francesa, logo depois da Revolução, uma realidade que lhes parecia inaceitável.
quando os partidários do rei sentavam à direita do Presidente
da Assembleia e os revolucionários à esquerda. A história
Tradicionalmente se fala neste contexto de
dos termos pode ser consultada na Wikipédia; os verbetes uma “direita” e de uma “esquerda hegeliana”,
correspondentes: http://tinyurl.com/5ter2jx retomando um vocabulário originariamente
22 ◆ Filosofia Política III

político para indicar a posição dos autores no debate. Os autores


da “direita hegeliana” se servem do pensamento do mestre a fim de
legitimar as formas jurídicas específicas tomadas pelo estado prus-
siano; em suma, eles tentam fazer o que Hegel nunca quis fazer, isto
é, justificar o existente como racional.
Há também autores como o primeiro biógrafo de Hegel, Karl
Rosenkranz, que procuram manter vivo o pensamento de Hegel
sem utilizá-lo para fins políticos imediatos (às vezes são chama-
dos de “centro hegeliano”, sempre por analogia com a linguagem
política); mas os autores que mais foram relevantes para a história
da filosofia são os membros da “esquerda hegeliana”, como Ludwig
Feuerbach, Bruno Bauer, Arnold Ruge, Moses Hess e Karl Marx. Ludwig Andreas Feuerbach
(1804-1872). Fonte: http://
Ludwig Feuerbach aplica os instrumentos críticos aprontados tinyurl.com/LudwigAndreas
por Hegel à crítica da religião. Ele considera a religião uma forma
de autoalienação do ser humano que coloca todos seus ideais num
ser supremo. Deus é, portanto, uma criação humana, uma projeção
da própria essência humana em algo externo a ela: ele é “o espe- A frase se encontra na
lho do homem”, sua “interioridade revelada”. O ponto de partida de resenha do livro Doutrina da
qualquer filosofia deve, antes, ser o homem em sua materialidade alimentação para o povo, de
Molenschott, e parece mais
(célebre é a expressão feuerbachiana “o homem é o que ele come”). uma brincadeira linguística do
Marx criticará em Feuerbach a tendência a negligenciar a política que expressão duma doutrina
filosófica, já que o original
e a considerar a natureza humana como algo dado e não como o alemão soa: “Der Mensch ist,
resultado da própria atividade humana; contudo, a influência de was er isst”.
Feuerbach sobre o jovem Marx é inegável.
Em seus primeiros escritos teóricos, Karl Marx tenta operar
uma crítica da realidade política alemã do seu tempo servindo-
se de categorias conceituais hegelianas; ao mesmo tempo, porém,
acha que, para esse fim, seja necessário mudar radicalmente o pen-
samento de Hegel virando de cabeça para baixo o seu sistema. Na
Crítica da Filosofia do Direito de Hegel – obra inacabada, Marx
crítica Hegel por ter colocado o verdadeiro sujeito da política, os
indivíduos, na posição de meros acidentes do Estado que, como
realização do espírito, é para Hegel o sujeito-substância. Nesse tex-
to, Marx parece considerar a filosofia hegeliana do Estado como a
tentativa de dar valor filosófico e necessário à constituição prus- Karl Heinrich Marx
(1818-1883). Fonte: http://
siana, mero fruto de contingências históricas. Marx acusa Hegel de tinyurl.com/KarlHMarx
não ter entendido que o Estado, longe de representar a instância na
O pensamento político do século xix ◆ 23

qual a sociedade civil encontra sua suprassunção (ver livro-texto


Filosofia Política II, seção 6.4) é simplesmente o instrumento pelo
qual a burguesia implementa seus interesses. Nosso autor recorre
aos termos franceses bourgeois (burguês), citoyen (cidadão) e hom-
me (homem) para afirmar que o burguês, o homem real com sua
posição específica na sociedade (capitalista ou trabalhador), triun-
Esta crítica é apresentada fou sobre o cidadão, que permanece uma abstração sem conteúdo,
no breve texto Sobre a e que o homem – o presumido titular dos direitos humanos – é
questão judaica, de 1843,
em relação ao qual se somente uma ficção ideológica. Marx vê, nos direitos humanos,
falou impropriamente dum simplesmente, o instrumento pelo qual o bourgeois afirma sua in-
presumido antissemitismo de
Marx.
dividualidade egoísta e tenta defender sua propriedade.
Nos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844 (igualmente ina-
cabados), Marx começa a ocupar-se daqueles filósofos e econo-
mistas que, primeiro, tinham pretendido oferecer uma descrição e,
Marxiano às vezes, uma justificação do nascente capitalismo (MARX, 2004).
O termo é utilizado para Nessa obra, vislumbra-se, pela primeira vez, o projeto marxiano
indicar algo que é próprio
do pensamento de Karl de uma crítica da economia política, isto é, não da economia em
Marx, enquanto “marxista” geral, ou do capitalismo, mas das maneiras nas quais o capitalismo
se refere a algo próprio
da tradição que se origina é teorizado (criticado ou exaltado) pelos economistas. As páginas
de tal pensamento e que mais conhecidas desse escrito são aquelas que Marx dedica à noção
pode inclusive distanciar-se
bastante dele.
de alienação ou de trabalho alienado. O modo de produção capi-
talista, centrado na divisão do trabalho, faz com que o trabalhador
participe somente de parte da produção das mercadorias (contra-
riamente ao artesão, que produz o objeto na sua integridade).

Operários (1933), de Tarsila do Amaral.


24 ◆ Filosofia Política III

Assim, as formas de alienação se dão da seguinte maneira:


1. O trabalhador é alienado em relação ao processo produtivo
(ele não controla nem os meios de produção, que são pro-
priedade do capitalista, nem os objetivos da produção, deci-
didos também pelo proprietário da fábrica);
2. Ele é alienado em relação ao produto do seu trabalho, já que
este se torna propriedade do capitalista;
3. O modo de produção capitalista aliena o ser humano da
natureza que, longe de ser o lugar onde ele pode chegar à
autorrealização através do trabalho, transforma-se em mero
material para a produção de mercadorias;
4. O trabalhador se aliena em relação a si mesmo, já que sua
atividade de trabalho não é mais uma maneira para realizar
sua natureza humana (inspirado por Feuerbach e, indireta-
mente, por Aristóteles; Marx acha que o que caracteriza o
ser humano, sua atividade específica, é precisamente o tra-
balho), mas simplesmente um meio para garantir a sobrevi-
vência (neste ponto, Marx antecipa as análises de Hannah
Arendt: ver seção 3.4); O termo “proletariado” foi
usado, pela primeira vez, num
5. Finalmente, o modo de produção capitalista cria alienação en- artigo publicado em 1835, por
tre os seres humanos, dividindo-os em duas classes contrapos- um pensador conservador:
Franz von Baader (OTTMANN,
tas (capitalistas e proletários) e transformando em mercadoria 2008, p. 40).
qualquer relação humana (tudo possui um preço, na sociedade
capitalista, inclusive o amor ou a solidariedade). Os Manus-
critos foram publicados somente em 1932, mas, a partir dessa
data, a teoria da alienação influenciou muitos pensadores.

1.2 O socialismo utópico e Proudhon


Os anos sucessivos à Revolução Industrial, isto é, os anos que
veem nascer o capitalismo moderno, são caracterizados pelo
surgimento de movimentos de oposição a ele ou aos seus efeitos
negativos mais contundentes. Contudo, os autores chamados de
socialistas utópicos não são críticos do capitalismo em si, muito
pelo contrário: vários entre eles são donos de fábricas e todos acre-
O pensamento político do século xix ◆ 25

ditam nos aspectos positivos da revolução industrial, começando


pela promessa duma maior qualidade de vida graças ao progres-
so tecnológico. Eles desejam simplesmente modificar os “erros” do
capitalismo de seu tempo, que se caracteriza por uma exploração
implacável dos operários, inclusive mulheres e crianças, e por uma
baixíssima qualidade de vida da classe trabalhadora, com altos ín-
dices de mortalidade e de doenças (assim como de embrutecimen-
to e de alcoolismo). O inglês Robert Owen modificou sua fábrica
de tecidos em Lanark, na Escócia, a fim de fazer dela uma comu-
Robert Owen (1771-1858). nidade ideal, na qual os trabalhadores pudessem viver de maneira
Fonte: http://tinyurl.com/ humana, e não como escravos. Ele aboliu nela o trabalho infantil
RobertOwen
e reduziu o tempo de trabalho de 18 horas para 10 horas e meia.
Construiu edifícios públicos nos quais os trabalhadores podiam
passar as horas de lazer e introduziu um sistema de assistência
para doentes e idosos. Em suma: tomou iniciativas que antecipa-
ram as políticas públicas do Estado de bem-estar social do século
XX. Contudo, o exemplo de Lanark ficou isolado e outras tentati-
vas que Owen fez nos EUA fracassaram. A teoria que sustenta suas
reformas foi formulada em Uma nova visão da sociedade (texto
acabado em 1814) e no Relato à comarca de Lanark (1820). Nesses
escritos, Owen defende a ideia de que são as circunstâncias ex-
ternas que determinam o caráter do indivíduo e que, portanto, a
educação desempenha um papel fundamental. Ao mesmo tem-
po, somente a possibilidade de viver num ambiente saudável e
numa moradia digna permite ao homem procurar sua felicidade.
Experimentos análogos aos de Owen foram realizados também
pelo francês Etienne Cabet, cujo romance utópico Viagem em Icá-
ria (1839) teve um enorme sucesso. Cabet imaginava uma socie-
dade na qual tudo seria regulamentado a fim de alcançar uma
absoluta igualdade entre os homens: desde a maneira de vestir até
os horários de trabalho e de lazer. Em Icária, a propriedade priva-
da, fonte de todos os males, foi abolida e com elas desapareceram
os crimes. A educação recebida nas escolas públicas fazia com que
Etienne Cabet (1788-1856). ninguém fosse ocioso e com que todos recebessem o que precisa-
Fonte: http://tinyurl.com/ vam para sobreviver e contribua para a riqueza geral na medida
EtienneCabet
de suas capacidades. Cabet fez várias tentativas para realizar con-
cretamente uma sociedade desse tipo (todas nos EUA, na época
26 ◆ Filosofia Política III

ainda terra virgem e semideserta), mas todas elas fracassaram de-


pois de poucos anos.
Francês era também Charles Fourier, autor de uma crítica feroz
ao comércio (os comerciantes eram considerados por ele parasi-
tas que aumentam desnecessariamente o preço das mercadorias)
e duma visão utópica baseada numa teoria das paixões relativa-
mente complexa.
Fourier elaborou uma verdadeira taxonomia das paixões (divi-
François Marie Charles
didas em três grupos fundamentais: o “luxismo”, que compreen- Fourier (1772-1837).
de as paixões ligadas aos sentidos; o “grupismo”, que compreende Fonte: http://tinyurl.com/
CharlesFourier
as paixões ligadas aos afetos pessoais como amor, amizade etc.;
e o “seriismo”, que compreende as paixões mais criadoras e indi-
viduais) e dos caracteres (ele identifica 810 caracteres humanos
fundamentais).
Essa taxonomia o levava a imaginar que os homens deveriam
viver em comunidades chamadas falanstérios, compostas cada
uma de 1.620 indivíduos (dois para cada caráter fundamental)
e nas quais cada um se dedicaria à atividade que mais lhe con-
dissesse e na qual poderia realizar sua criatividade. Célebre é a
atitude emancipatória de Fourier em relação às mulheres: elas fi- 1
Pierre-Joseph Proudhon
cariam livres para decidir se devem viver nos falanstérios como (1809-1865). Fonte: http://
www.marxists.org/glossary/
“esposas” (numa vida monogâmica), como “senhoritas” (com uma people/p/pics/proudhon.jpg
pluralidade de relações) ou como “mulheres galantes” (em plena
liberdade amorosa e sexual). As poucas tentativas de criar falans- 2
Todavia, a definição da
térios se deram – como era de se esperar – nos EUA, mas todas propriedade privada como
fracassaram rapidamente. roubo foi dada, pela primeira
vez, pelo escritor e homem
Bem diferente se apresenta a crítica ao capitalismo operada por político francês Jacques Pierre
Brissot de Warville nas suas
Pierre-Joseph Proudhon1 conhecido sobretudo pela seu ataque ra- Investigações filosóficas sobre
dical à propriedade privada (célebre sua afirmação pela qual “a pro- o direito de propriedade, de
1780.
priedade é um roubo”2). Contudo, seu pensamento não se limita
a este aspecto e abarca importantes questões teóricas, tais como a
relação entre política e economia ou a essência do Estado. Ele pode 3
A definição em questão
aparece no escrito
ser considerado um dos fundadores do anarquismo (foi o primei- As confissões de um
ro a chamar-se de anarquista e a definir a anarquia como “a ordem revolucionário para servir
para a história da Revolução
sem o poder”3), mas sua posição se distingue bastante daquelas de de Fevereiro, de 1849.
autores como Kropotkin ou Bakunin (ver a seguir 1.4).
O pensamento político do século xix ◆ 27

No livro O que é a propriedade?, de 1840, Proudhon afirma


A tradução brasileira usa como
título a sentença mais célebre
que a existência da propriedade privada não pode ser legitimada
do livro: A propriedade é um de maneira nenhuma, criticando as tradicionais justificativas que
roubo (PROUDHON, 1998).
viam nela o resultado de uma originária ocupação do solo ou do
trabalho (como exemplo, em Kant e em Locke). As capacidades
individuais que, segundo a visão tradicional, fundamentariam a
propriedade são, na realidade, o fruto da sociedade, já que somente
nesta o indivíduo consegue desenvolver seus talentos. Isto, contu-
do, não significa que toda propriedade seja injusta: o que deriva de
fato do trabalho individual poder ser trocado pelo fruto do traba-
lho de outrem (o próprio Proudhon abriu um banco de troca que
chegou a ter mais de 10.000 clientes e que fechou somente quando
o fundador teve que ficar três anos na prisão por “insulto” ao pre-
sidente Luís Napoleão, futuro Napoleão III). Nesse primeiro livro
de Proudhon, a anarquia é vista como a forma de governo mais
adequada ao progressivo triunfo do intelecto e da razão.
A ideia de um sistema de trocas que substituísse o atual sistema
de mercado está no centro do texto Sistema das contradições eco-
nômicas ou Filosofia da miséria. Recorrendo à noção hegeliana
Marx fez uma paródia desse de contradição (que ele conheceu através de Marx, encontrado em
título ao chamar a crítica de
Proudhon e dos socialistas Paris em 1844), Proudhon afirma que a história é movida por opo-
utópicos de A miséria da sições contínuas, que deveriam cessar só quando se estabelecesse
filosofia (1847).
um sistema de justa troca, chamado por ele de mutualismo. Com
base neste conceito, ele coloca no centro do seu pensamento polí-
tico a noção de contrato. Contrariamente ao contratualismo tradi-
cional, porém, ele acha que o verdadeiro contrato social não se dá
entre indivíduos e Estado ou entre indivíduos em prol do Estado
(como em Hobbes ou Rousseau). A vida em sociedade não precisa
da autoridade do Estado, mas somente da vontade das partes que,
por meio de contratos “sinalagmáticos” e “comutativos”, estabele-
cem respectivamente deveres recíprocos e equivalentes.
Contudo, para que a vida comunitária funcione sem Estado, é
necessário que os indivíduos se organizem em pequenas entidades
menores do que os estados atuais. Por isso, na sua obra Do prin-
cípio federativo (1863), Proudhon defende a ideia duma transfor-
mação desses últimos em federações (PROUDHON, 2001). Isso
não significa que Proudhon defenda a democracia direta no sen-
28 ◆ Filosofia Política III

tido de Rousseau, que também pensava que a democracia só seria


possível em comunidades políticas de pequenas dimensões. Muito
pelo contrário: na sua Idéia geral da revolução, de 1851, Proudhon
critica não somente o sufrágio universal e o princípio da represen-
tação (que substituem, por meio duma ficção, a vontade concreta
dos indivíduos pelo poder de poucos), mas também a democracia
direta, já que nesta também há o domínio duma maioria sobre a
minoria. Por isso, toda convivência civil deveria basear-se somen-
te em contratos entre indivíduos. Apesar das óbvias dificuldades
desse modelo, o pensamento de Proudhon manteve uma grande
influência sobre o movimento anárquico (particularmente sobre a
corrente anarco-individualista), mas também sobre alguns sindi-
calistas como Sorel e até sobre libertários contemporâneos.

1.3 Marx e a crítica da economia


política
Como vimos na seção 1.1, Marx elaborou o projeto de uma crítica
da economia política. Ao lado dessa atividade teórica, contudo, ele
se dedicou à atividade política concreta junto ao amigo Friedrich
Engels, com o qual ele formou uma das duplas intelectuais mais
conhecidas da história.
É preciso, portanto, distinguir as obras estritamente políticas de
Marx (do célebre Manifesto do Partido Comunista a O 18 Brumá-
rio de Luís Bonaparte e à Crítica do Programa de Gotha) daque-
las mais teóricas dedicadas ao projeto anteriormente mencionado
(por exemplo, Para uma crítica da economia política, os Grundrisse Friedrich Engels (1820-1895).
Fonte: http://tinyurl.com/
ou Linhas Fundamentais de uma crítica da economia política, os FriedrichEngels
escritos sobre a mais-valia e, finalmente, o próprio O Capital: obras
estas que ficaram todas inacabadas).

1.3.1 Os escritos políticos


O Manifesto do partido comunista (1848) é com certeza o mais
conhecido dos escritos políticos de Marx. Redigido com Engels a
pedido da Liga dos Comunistas, esse texto é mais um panfleto do
que um livro teórico propriamente dito, como resulta já do título.
O pensamento político do século xix ◆ 29

Contudo, representa uma boa exposição, ainda que bastante dog-


mática (um panfleto não é o lugar para longas análises históricas
ou filosóficas) daquele que Engels definiu em seguida Materialis-
mo Histórico (um termo nunca utilizado por Marx, que falou an-
tes em “concepção materialista da História”).
O materialismo de Marx consiste em colocar as relações de pro-
dução, isto é, o aspecto econômico como base de todo o resto. Para
Hegel, o materialismo consistia na realidade verdadeira, o mundo
das ideias ou do espírito, que se articula na religião, na filosofia e na
própria política (inclusive nas leis), e representa a superestrutura,
cuja função é a de esconder a base econômica ou de legitimar as
relações de produção que a constituem (como no caso do direito).
Na obra Contribuição à crítica da economia política (1859), ele for-
mula sua teoria materialista numa passagem que se tornou célebre:
Na produção social da própria existência, os homens entram em rela-
ções determinadas, necessárias, independentes de sua vontade; essas
relações de produção correspondem a um grau determinado de desen-
volvimento de suas forças produtivas materiais. A totalidade dessas rela-
ções de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base
real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual
correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo
de produção da vida material condiciona o processo de vida social, po-
lítica e intelectual. Não é a consciência dos homens que determina o
seu ser; ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência.
(MARX, 2007, p. 45).

Para Marx (como para Hegel), toda realidade é o


resultado dum incessante processo histórico, toda a
realidade é história. A sociedade atual é a expressão
dum determinado momento histórico, não de re-
lações sociais eternas ou de uma natureza humana
imutável. A história é, contudo, marcada pelas dife-
rentes relações de produção. A modificação destas
constitui o motor daquela. Tal modificação se dá
inevitavelmente, já que é consequência do aumento
das forças produtivas. A essência específica do ser
Fenômeno ligado à própria relação que une o humano, o que caracteriza a espécie homo sapiens, é
homem à natureza. (A nós a liberdade, filme de precisamente o fato de relacionar-se com a natureza
1921, de René Clair).
30 ◆ Filosofia Política III

através do trabalho, como já tinham afirmado Hegel e Feuerbach.


Ora, a própria atividade de transformação da natureza fornece ao
homem uma sempre maior habilidade técnica e esta, por sua vez,
aumenta a produtividade.
Destarte, crescem as forças produtivas, isto é, o conjunto de
capacidades teóricas e práticas, de saberes e de técnicas que per-
mitem a transformação da natureza. Quanto mais complexas se
tornam as forças produtivas (por exemplo, ao exigir a divisão do
trabalho), tanto mais complexas se tornam também as formas de
organização social, isto é, as relações de produção, termo com o
qual Marx indica a maneira em que são organizadas a produção e
a distribuição dos bens numa sociedade.
Na história da civilização ocidental (Marx considera em outras
obras também outras civilizações, chegando a falar, por exemplo,
num modo de produção asiático, mas nunca aprofundará o assun-
to), deram-se pelo menos dois momentos nos quais a relação en-
tre forças produtivas, por um lado, e relações de produção, por
outro, tornou-se instável por causa do aumento das primeiras e
do enrijecimento das segundas e, em ambos os casos, o resultado
foi uma revolução social e política: foi quando a sociedade escra-
vocrata antiga deu lugar à ordem feudal e quando esta última deu
lugar à ordem burguesa capitalista.
Por isso, Marx pensa que haja na história um movimento dialé-
tico no qual cada momento nega e supera o precedente. Esse mo-
vimento é de caráter não pacífico, e Marx o denomina de luta de
classes. Em cada sociedade, existe uma polaridade entre duas clas-
ses: a que produz a riqueza, mas não a controla, e que é dominada
politicamente, por um lado, e a que exerce o controle da riqueza e
do poder político, por outro lado. Isso não significa que não exis-
tam outras classes, cuja posição em relação às duas principais pode
variar; mas a luta sempre se trava entre as duas classes principais,
a dos opressores e a dos oprimidos. A revolução burguesa se deu
quando a classe burguesa, produtora da riqueza da sociedade, não
aceitou permanecer numa situação de inferioridade política e de
substancial exploração em relação à classe aristocrática. No capi-
talismo atual, a luta de classe se trava entre burguesia (classe for-
mada pelos proprietários dos meios de produção) e proletariado
O pensamento político do século xix ◆ 31

(classe formada pelos trabalhadores que dispõem somente da sua


força de trabalho, contudo, é a classe que produz a riqueza).
A história de todas as sociedades até hoje existentes é a história da luta
de classes. […] Entretanto, a nossa época, a época da burguesia, carac-
teriza-se por ter simplificado os antagonismos de classes. A sociedade
divide-se cada vez mais em dois vastos campos opostos, em duas gran-
des classes em confronto direto: a burguesia e o proletariado. (MARX;
ENGELS, 1998, p. 40).

Das lições do passado, Marx forneceu um


diagnóstico para o futuro: o proletariado fará
uma revolução, exatamente como a burguesia
antes dele. Contudo, desta vez será uma revo-
lução diferente, pois o proletariado possui a
característica de ser uma classe peculiar: ele
é a classe universal, isto é, seus interesses não
são específicos de classe, como no caso da bur-
guesia, mas são interesses humanos, comuns a
todos os homens. O proletariado não procura
Foto de Jewgeni Chaldej, tirada do Reichtag de Berlim, em
simplesmente substituir a burguesia na explo-
1945, símbolo do triunfo russo no fim da Segunda Guerra ração de outrem, mas visa à abolição da explo-
Mundial.
ração e da opressão em si.
Marx reconhece, portanto, a importância histórica da burguesia
e seu papel fundamental na saída do feudalismo e do absolutismo
(“A burguesia desempenhou na história um papel eminentemente
revolucionário. Onde quer que tenha conquistado o Poder, a bur-
guesia destruiu as relações feudais, patriarcais e idílicas” (MARX;
ENGELS, 1998, p. 42)); contudo, justamente seu caráter revolucio-
nário obriga a burguesia a instaurar um regime social, econômico
e político altamente instável que, segundo Marx, levará inevitavel-
mente à revolução proletária. Ao mesmo tempo, Marx individua
uma característica do capitalismo, a de tender a uma expansão
global dos mercados, que assumirá particular importância nos
cento e cinquenta anos que nos separam do Manifesto e que expli-
ca o que nas décadas mais recentes foi chamado de “globalização”,
da qual Marx identifica aqui os traços fundamentais. Cabe citar
um longo trecho deste escrito, pois ele resume bem este ponto da
teoria marxiana:
32 ◆ Filosofia Política III

A burguesia não pode existir sem revolucionar incessantemente os ins-


trumentos de produção, por conseguinte, as relações de produção e,
com isso, todas as relações sociais. A conservação inalterada do antigo
modo de produção era, pelo contrário, a primeira condição de existên-
cia de todas as classes industriais anteriores. Essa subversão contínua da
produção, esse abalo constante de todo o sistema social, essa agitação
permanente e essa falta de segurança distinguem a época burguesa de
todas as precedentes.

Dissolvem-se todas as relações sociais antigas e cristalizadas, com seu


cortejo de concepções e de idéias secularmente veneradas; as relações
que as substituem tornam-se antiquadas antes de se consolidarem.
Tudo que era sólido e estável se desmancha no ar, tudo o que era sagra-
do é profanado e os homens são obrigados finalmente a encarar sem
ilusões a sua posição social e as suas relações com os outros homens.

Impelida pela necessidade de mercados sempre novos, a burguesia


invade todo o globo terrestre. Necessita estabelecer-se em toda parte,
explorar em toda parte, criar vínculos em toda parte.

Pela exploração do mercado mundial, a burguesia imprime um caráter


cosmopolita à produção e ao consumo em todos os países. Para de-
sespero dos reacionários, ela roubou da indústria sua base nacional. As
velhas indústrias nacionais foram destruídas e continuam a sê-lo dia-
riamente. São suplantadas por novas indústrias, cuja introdução se tor-
na uma questão vital para todas as nações civilizadas – indústrias que
já não empregam matérias primas nacionais, mas sim matérias primas
vindas das regiões mais distantes, e cujos produtos se consomem não
somente no próprio país mas em todas as partes do mundo. Ao invés
das antigas necessidades, satisfeitas pelos produtos nacionais, nascem
novas demandas, que reclamam para sua satisfação os produtos das re-
giões mais longínquas e de climas os mais diversos. No lugar do antigo
isolamento de regiões e nações autossuficientes, desenvolvem-se um
intercâmbio universal e uma universal interdependência das nações. E
isto se refere tanto à produção material como à produção intelectual.
As criações intelectuais de uma nação tornam-se patrimônio comum. A
estreiteza e a unilateralidade nacionais tornam-se cada vez mais impos-
síveis; das numerosas literaturas nacionais e locais nasce uma literatura
universal. (MARX; ENGELS, 1998, p. 43).

Segundo Marx, a revolução proletária acontecerá no momento


em que a classe proletária deixar de ser uma mera “classe em si” e
O pensamento político do século xix ◆ 33

se tornar “classe para si”: com esses termos hegelianos, se quer in-
dicar o fato de os proletários tomarem consciência (nisto consiste
o momento do “para si”) de ser uma classe unida por uma sorte
comum (a de ser explorada pela burguesia) e por um interesse co-
mum (a cessação da exploração). Tarefa dos teóricos é justamente
ajudar os proletários a desenvolver essa consciência de classe. Por
isso, a filosofia crítica deixa de ser mera teoria e se torna práxis.
Marx expressa essa ideia na celebérrima tese décima primei-
ra das Teses sobre Feuerbach: “Os filósofos apenas interpretaram
o mundo de diferentes maneiras; agora é preciso transformá-lo”.
Isso significa o resultado da revolução proletária, a última da his-
tória: da pré-história (já que a verdadeira história deveria começar
a partir daquele momento) será uma sociedade sem classes, a so-
ciedade comunista, precedida por uma breve fase transitória (a
sociedade socialista).
Marx nunca descreveu detalhadamente tal sociedade em seus
escritos. Isso pode significar o desejo de evitar cair nos erros dos
socialistas utópicos (criticados ferozmente por ele); outra pode ser
a imprevisibilidade das formas que uma sociedade comunista po-
deria assumir. Num certo sentido, é como se a revolução final es-
tivesse dando vida a um novo tipo de homem, não imediatamente
o proletário (ou burguês), não já o bourgeois egoísta ou citoyen
abstrato, mas, pela primeira vez, finalmente, o homme concreto,
para o qual o trabalho deixará de ser exploração ou instrumento
de sobrevivência e se tornará o meio pelo qual poderá realizar sua
natureza humana e sua criatividade. Numa sociedade desse tipo, o
critério de distribuição do trabalho e da riqueza por ele produzida
será: “De cada um segundo as suas capacidades, a cada um segun-
do as suas necessidades” (MARX, 1873).
Contudo, a história dos movimentos revolucionários imedia-
tamente sucessivos à publicação do Manifesto parece contradizer
o diagnóstico marxiano: os proletários chegam a apoiar até dita-
dores, como aconteceu na França; por este motivo se torna para
Marx objeto privilegiado de análise. No escrito As lutas de classes
em França (1850), ele constata como as classes que fizeram uma
revolução em nome de ideais universais sempre ficaram presas
em seus interesses particulares, inclusive o proletariado depois da
34 ◆ Filosofia Política III

revolução de 1848: ele se contentou em obter melhorias na sua Marx parece aqui prever um
fenômeno que se tornará
condição (melhorias ilusórias, como se viu em seguida) em vez de comum nos anos da segunda
operar uma renovação completa da sociedade. pós-guerra e que muitos
teóricos marxistas deplorarão:
Nesse sentido, ele se tinha comportado como a burguesia: “Em a “burguesização” do
proletariado, isto é, o fato de
França [...] o operário executa as tarefas que caberiam normalmen-
os proletários comportarem-
te ao pequeno-burguês; e as tarefas do operário, quem as executa?” se como pequeno-burgueses,
(apud RENAUT, 2002, p. 180). na tentativa de assegurar
e melhorar seu bem-estar
No ensaio O 18 de Brumário de Luís Bonaparte (1851), Marx ana- individual, em vez de lutar
pela emancipação de todos
lisa o golpe de estado atuado pelo sobrinho de Napoleão, que, depois na luta contra a exploração
de ter sido eleito presidente da república francesa, instaurou uma di- capitalista.
tadura atribuindo-se o título de imperador (com o nome de Napo-
leão III) e inaugurando o chamado Segundo Império. O problema
que se apresenta a Marx é justamente o apoio que Luís Bonaparte
recebeu de todas as classes: quer da burgue-
sia, quer do proletariado, quer dos camponeses.
Marx se depara aqui com uma dificuldade: o
golpe de Luís Bonaparte parece não apoiar-se
nos interesses econômicos de nenhuma classe
específica, ainda que de fato sirva àqueles da bur-
guesia: por isso o golpe recebeu o consenso dos
proletários e dos camponeses num plebiscito.
Destarte, a primazia da economia sobre o
político (ideia central do pensamento marxia-
No título do ensaio, Marx se refere ao golpe de estado,
no) parece colocada em questão. A resposta de que o primeiro Napoleão tinha efetuado no dia 9 de
Marx consiste, primeiramente, em salientar a novembro de 1799, ou seja, no dia 18 de Brumário do ano
peculiaridade da realidade francesa: a situação VIII, conforme o calendário revolucionário. (Caricatura de
James Gillray, representa o golpe de Napoleão).
de bloqueio instaurada na luta de classe entre
burgueses e proletários permitiu a um indivíduo sem escrúpulos e
sem talentos particulares tomar o poder. Além disso, Marx é obri-
gado a levar em consideração outras classes que não a burguesia e
o proletariado, a saber, os camponeses (que constituíam a maioria
da população não somente na França, mas em toda a Europa) e o
Lumpenproletariat. Justamente essas duas classes constituíram a
base do consenso de Luís Bonaparte, segundo Marx: o Lumpen- Um subproletariado
formado por miseráveis,
proletariat, por ter cedido às promessas de reformas sociais; os desempregados crônicos,
camponeses, por possuírem ainda uma espécie de veneração pelo vagabundos etc.

nome de Bonaparte e pelo tio de Luís, Napoleão.


O pensamento político do século xix ◆ 35

Além disso, os membros das duas classes são incapazes de desen-


volver uma consciência de classe, contrariamente à burguesia e ao
proletariado: quer os subproletários, quer os camponeses, são indi-
víduos isolados (às vezes fisicamente, como no caso dos pequenos
proprietários de terra), incapazes de se solidarizar com os demais
membros de sua classe (Marx usa o termo de classes inorgânicas para
distingui-las das classes orgânicas da burguesia e do proletariado).
Contudo, em sua análise dos acontecimentos na França, Marx se
vê obrigado a reconhecer que a política possui uma lógica própria
e que o poder do governo, do executivo, persegue interesses pró-
prios, não necessariamente coincidentes com os das classes que o
apoiam (por exemplo, da burguesia).
Na leitura de Marx, deparamo-nos com uma nova forma de Es-
tado, diferente do Estado burguês surgido da Revolução Francesa
e triunfador da revolução liberal de 1830 (que tinha instaurado na
França uma monarquia constitucional na qual a burguesia podia
tranquilamente implementar seus interesses graças à exclusão das
massas da representação política).
Em 1848, a revolução, que aboliu a monarquia, levou inicialmen-
te a um regime democrático: o parlamento foi eleito por sufrágio
universal masculino e nele estavam presentes também represen-
tantes das classes populares. Destarte, o Estado não era mais um
instrumento nas mãos dos interesses econômicos mais poderosos.
Marx reconheceu que estávamos perante uma etapa ulterior do
processo de emancipação do poder político daquele econômico.
O Estado prosseguiu um caminho iniciado já no absolutismo:
graças às sempre novas tarefas de controle e regulamentação im-
postas pelo poder feudal antes e pela própria burguesia depois, o
aparelho estatal se tornou sempre mais complexo e começou a se-
guir uma própria lógica interna, a duma burocracia pública que
se tornou quase que autônoma e que criava regras internas de au-
torreprodução (Marx antecipou aqui algumas conclusões de Max
Weber: ver 2.3).
Já o Estado de 1851 não era o Estado liberal burguês de 1830:
era um Estado burocrático cujo poder administrativo podia en-
trar em contraste com o poder econômico da burguesia. Quando
36 ◆ Filosofia Política III

esta última tentava servir-se do poder estatal para excluir as classes


populares da Assembleia Nacional com uma série de leis específi-
cas, ela acabava solapando o próprio poder, pois esvaziava o poder
do parlamento e contribuía assim à primazia do poder executi-
vo. Destarte, até um indivíduo absolutamente insignificante e sem
qualidades como Luís Bonaparte conseguiu dar um golpe e derro-
tar o sistema parlamentar.
A análise que Marx faz dos acontecimentos entre a revolução
democrática de 1848 e o golpe bonapartista, de 1851, oferece vários
pontos de reflexão. O primeiro diz respeito à posição do próprio
Marx em relação às forças que determinam o curso da história.
Não somente a esfera da política parece possuir uma autonomia
perante a esfera da economia, redimensionando fortemente a teo-
ria da determinação da superestrutura jurídico-política pela base
econômica. O próprio processo histórico parece não depender so-
mente de forças impessoais e necessárias, mas também da ação
intencional de indivíduos ou grupos: se os representantes da bur-
guesia na Assembleia Nacional não tivessem usado todas as suas
energias para expulsar os representantes das classes populares, a
história teria tomado outro rumo.
Por outro lado, isso não significa que a história seja somente o
produto da livre ação individual. Marx deixa claro que os indiví-
duos são movidos em suas ações por interesses e forças sobre os
quais eles mesmos não têm controle.
Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem;
não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com
que se defrontam diretamente, ligadas e transmitidas pelo passado. A
tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cé-
rebro dos vivos. (MARX, s. d., p. 203).

O segundo ponto diz respeito ao surgimento do Estado bu-


rocrático moderno como algo diferente do Estado burguês de
direito. Enquanto este último representa o instrumento para a
implementação de interesses econômicos específicos, o primeiro
persegue finalidades próprias, a saber, a reprodução autônoma de
seus aparelhos. O presumido interesse comum da sociedade que a
burguesia afirmava encarnar foi substituído pelo “interesse geral”
do Estado, que não coincidia com aquele da sociedade, mas repre-
O pensamento político do século xix ◆ 37

sentava, por sua vez, um interesse particular (para usar a termino-


logia de Rousseau: ver o livro-texto Filosofia Política II, seção 4.2).
O sistema burocrático público se tornou autônomo do sistema de
produção capitalista, chegando a constituir uma fonte de poder
independente (o poder administrativo) que se colocava ao lado
daquele econômico. Veremos a importância dessa ideia para pen-
sadores como Max Weber ou Jürgen Habermas.
Finalmente, a luta entre representantes burgueses e populares
na Assembleia Nacional deixou vir à tona o conflito inevitável en-
tre capitalismo e democracia e desmascarou a ficção ideológica
dos ideais burgueses da liberdade e da igualdade. No momento em
que a igualdade política foi realizada de fato, permitindo às classes
populares participar no processo decisório, a burguesia se sentiu
ameaçada, pois temia que os representantes populares criassem
leis que atacassem seus privilégios e seus interesses específicos.

A tensão entre igualdade política e desigualdade socioeconô-


mica levou os burgueses a renunciar à primeira para defender a
segunda: os representantes populares foram paulatinamente ex-
cluídos do parlamento. A mesma tensão levou, em muitos países,
a burguesia a apoiar as ditaduras fascistas no século XX: perante o
risco de que a democracia afetasse seus interesses, ela preferira re-
nunciar à democracia e entregar o poder a novos e mais perigosos
imitadores de Luís Bonaparte, como Mussolini, Salazar, Franco,
Hitler ou os militares golpistas sul-americanos.

1.3.2 O Capital
O subtítulo de O Capital expressa claramente as intenções de
Marx ao escrevê-lo: Crítica da economia política. Como vimos, a
intenção de Marx não é – contrariamente a outros autores – a de
criticar o capitalismo a partir dum ponto de vista externo (duma
certa teoria da sociedade justa por exemplo), antes de mostrar suas
contradições internas e de apontar para os efeitos negativos delas.
A maior dificuldade em entender o pensamento de Marx con-
siste precisamente no fato de que nele se entrelaçam três diferentes
38 ◆ Filosofia Política III

perspectivas críticas, a partir das quais ele considera o capitalis-


mo: uma funcionalista (Marx quer mostrar os problemas ima-
nentes do sistema capitalista), uma moral (Marx aponta para o
fenômeno da injusta exploração dos trabalhadores pelos capitalis-
tas) e uma ética (a vida dos indivíduos sob o sistema capitalístico
é caracterizada pela alienação). Tal dificuldade aparece evidente
quando se enfrente o primeiro capítulo do primeiro livro, que é
dedicado à mercadoria. Trata-se talvez do trecho mais conhecido
da obra, que deu lugar a muitas leituras contrastantes e que foi
considerado, até por marxistas ortodoxos, um exercício metafísi-
co, mais do que uma rigorosa análise econômica. De fato, Marx
não se limita a descrever a maneira na qual as mercadorias são
produzidas e trocadas no sistema capitalístico, mas oferece uma
interpretação filosófica da própria noção de mercadoria.
Uma das maiores dificuldades na leitura desse capítulo consiste
precisamente em entender o que Marx indica com o termo “mer-
cadoria”. Nosso autor começa recorrendo a uma distinção pre-
sente em outros economistas e (se não nos termos, ao menos nos
conceitos) até em Aristóteles: os objetos produzidos pelo trabalho
humano possuem um valor de uso, isto é, servem para satisfazer
determinadas finalidades (um sapato serve para proteger os pés,
uma camisa para proteger o corpo etc.); mas eles podem também
possuir um valor de troca, ou seja, podem ser trocados por outras
mercadorias com base numa certa relação. Se o indivíduo A pro-
duz sapatos, mas não sabe costurar camisas, e o indivíduo B, pelo
contrário, sabe fazer camisas, mas não sapatos, os dois se acorda-
rão para trocar os produtos de seu trabalho. Isso significa que A fa-
bricará um par de sapatos não para calçá-los ele mesmo (não pelo
seu valor de uso), mas para cedê-los a B em troca duma camisa que
B terá costurado, por sua vez, não para si, mas diretamente para A
(então pelo seu valor de troca). Não é claro se isto é suficiente para
dizer que A e B estão produzindo mercadorias, ou se mercadorias
são somente os objetos produzidos numa sociedade capitalista,
pois o que A e B estão fazendo não corresponde ainda à lógica
capitalista, mas à tradicional lógica da troca. Ora, no mecanismo
da troca, há duas dificuldades óbvias: a primeira é a de tornar mais
viável a troca quando não há necessidade imediata de certos pro-
dutos. Pode ser que o padeiro C não precise de um par de sapatos,
O pensamento político do século xix ◆ 39

mas o sapateiro A precisa de pão. Como pode A obter pão de C se


este não quer seus sapatos? A solução é encontrar uma mercadoria
que possa ser trocada por todas as outras, uma espécie de equiva-
lente universal que permita a troca também quando a serem tro-
cados não são diretamente sapatos e pão, isto é, que permita ao A
dar a C em troca de pão algo que não seja um par de sapatos, mas
que ele recebeu num outro momento em troca de sapatos (não
importa se de C, de B ou de outrem). Este equivalente universal é o
dinheiro, a única mercadoria cujo valor de uso corresponde a seu
valor de troca. Qualquer objeto pode funcionar como dinheiro, já
¹Adam Smith (1723- que a equivalência é o resultado duma convenção e, historicamen-
1790). Tentou mostrar a te, vários materiais foram usados como dinheiro: conchas, metais
superioridade do capitalismo
sobre os outros sistemas de vários tipos etc.
econômicos, por ser mais
correspondente à natureza Isso remete à segunda e bem mais forte dificuldade do mecanis-
humana e por produzir mo de troca, a saber, a de estabelecer a equivalência entre os produ-
mais bem-estar e riqueza
para todos (ainda que, no
tos do trabalho. Um par de sapatos equivale exatamente a uma ca-
começo, ele possa produzir misa? Quantos pães valem uma cadeira? Em termos do equivalente
desigualdade e pobreza). Sua universal: quanto dinheiro vale um par de sapatos ou um quilo de
obra principal, nesse sentido,
é A riqueza das nações, de pão? E como se estabelece a equivalência em dinheiro de um com o
1776 (SMITH, 1996). Fonte: outro? Em outras palavras, a questão é estabelecer o valor de troca
http://tinyurl.com/65dthm4
dos dois produtos (que, ao final, determinará também seu preço
no mercado, junto a outros fatores como a oferta e a demanda). A
resposta a essa pergunta foi dada por dois economistas clássicos;
Smith1e Ricardo2, (dois dos primeiros teóricos do capitalismo (e dois
dos alvos polêmicos principais de Marx)), ou seja: a quantidade de
trabalho presente neles é a quantidade de trabalho necessária para
produzi-los. Essa teoria é chamada de teoria do valor-trabalho.
Marx aceita tal teoria, mas questiona ulteriormente a resposta
dos dois economistas: como é possível medir tal quantidade de
trabalho? Como pode o trabalho dum sapateiro ser comparado
àquele dum padeiro ou dum alfaiate? Na realidade – afirma Marx
²David Ricardo (1772-1823). – estamos perante uma abstração: o trabalho real do sapateiro, do
Foi o primeiro a formular padeiro e do alfaiate é reduzido a uma quantidade abstrata de ho-
expressamente a teoria do
valor-trabalho, em seus ras de trabalho genérico, sem ter em conta as habilidades indivi-
Princípios da economia duais exigidas para realizar o produto em questão. O trabalho é
política e da taxação, de
1817. Fonte: http://tinyurl. medido quantitativamente em horas, e não qualitativamente pela
com/DavidRicardo dificuldade dele ou pela habilidade do trabalhador. Mais precisa-
40 ◆ Filosofia Política III

mente a ser medida é a quantidade média daquilo que Marx de-


nomina de “trabalho socialmente necessário”. Este último é o
trabalho necessário para produzir todos os fatores que entram na
produção das mercadorias: da matéria-prima à fábrica, das má-
quinas à força-trabalho. A força-trabalho é uma mercadoria en-
tre outras e possui um valor de troca, que corresponde ao salário
que o trabalhador recebe do capitalista. Este último, por sua vez, é
determinado pela quantidade de trabalho socialmente necessário
para produzir a própria força-trabalho, isto é: para garantir a sub-
sistência dos trabalhadores. O custo da força-trabalho é o custo
necessário para que o trabalhador se mantenha capaz de trabalhar
no ritmo atual.

Até agora foram descritos mecanismos que não são peculiares


do capitalismo, mas que são próprios de qualquer economia de
mercado. A lógica inerente ao sistema clássico de troca no merca-
do é: M-D-M, ou seja: mercadoria-dinheiro-mercadoria. O indi-
víduo A leva para o mercado a mercadoria X para vendê-la a um
determinado preço e, com aquele dinheiro, comprar a mercado-
ria Y da qual ele precisa: enquanto X possui para ele só valor de
troca (lhe serve para obter dinheiro para comprar algo diferente),
Y possui para ele valor de uso (ele utilizará Y para satisfazer certas
finalidades). O sistema capitalista inverte essa lógica e a transfor-
ma na fórmula: D-M-D.

O capitalista investe seu dinheiro (o capital) para produzir mer-


cadorias que ele leva para o mercado, a fim de ganhar uma quantia
de dinheiro superior àquela inicial. O fim do processo produtivo O capital representa a quantia
não são as mercadorias (com seus valores de uso), mas é o aumen- de dinheiro que o capitalista é
to do capital inicial, a acumulação dele. Como isso é possível se, no obrigado a investir para produzir
mercadorias. Tal dinheiro é
mercado, acontece uma simples troca de produtos por produtos investido em diferentes coisas:
equivalentes por meio do dinheiro? na construção da fábrica, na
aquisição das máquinas, na
A resposta a essa pergunta se encontra naquela que representa aquisição da matéria-prima e,
finalmente, na contratação da
a contribuição original de Marx à teoria do valor-trabalho, a sa- força-trabalho. No valor duma
ber, a teoria da mais-valia. O capitalista contrata força-trabalho e mercadoria estão presentes
todos estes fatores, cada um em
paga o salário necessário para permitir a reprodução dessa força- maneira proporcional. Fonte:
trabalho. Ora, a força-trabalho tem uma peculiaridade em relação http://tinyurl.com/65uoozl
O pensamento político do século xix ◆ 41

às outras mercadorias livremente adquiríveis no mercado: quando


empregada, quando “consumida”, ela não se gasta, mas produz ou-
tras mercadorias, produz valor. O valor que um trabalhador pro-
duz no seu dia de trabalho é, contudo, superior ao valor que ele
recebe em forma de salário. Se ele recebe por um dia de trabalho
a quantia de dinheiro X, ele produz mercadorias equivalentes a
uma quantia de dinheiro X + Y. Esse Y é a mais-valia, que é apro-
priada pelo capitalista – indevidamente, já que ele não paga por
ela. A apropriação da mais-valia permite ao capitalista aumentar
seu capital inicial e tem consequências importantes para toda a
sociedade, já que leva à criação de amplas faixas populacionais
sub ou desempregadas.
No capítulo 23 do primeiro livro, Marx apresenta aquela que
denomina de “lei geral da acumulação capitalista”:
Quanto maiores a riqueza social, o capital em funcionamento, o volume
e a energia de seu crescimento, portanto também a grandeza absoluta
do proletariado e a força produtiva de seu trabalho, tanto maior o exér-
cito industrial de reserva. A força de trabalho disponível é desenvolvi-
da pelas mesmas causas que a força expansiva do capital. A grandeza
proporcional do exército industrial de reserva cresce, portanto, com as
potências da riqueza. Mas quanto maior esse exército de reserva em
relação ao exército ativo de trabalhadores, tanto mais maciça a super-
população consolidada, cuja miséria está em razão inversa do suplício
de seu trabalho. Quanto maior, finalmente, a camada lazarenta da classe
trabalhadora e o exército industrial de reserva, tanto maior o pauperis-
mo oficial. Essa é a lei absoluta geral, da acumulação capitalista. Como
todas as outras leis, é modificada em sua realização por variegadas cir-
cunstâncias, cuja análise não cabe aqui. (MARX, 1996, p. 274).

O capitalismo gera, assim, invariavelmente, um exército de de-


sempregados, do qual os capitalistas se servem para pressionar os
trabalhadores e obrigá-los a aceitar condições de trabalho desfa-
voráveis, aumentando assim a mais-valia e, portanto, a expropria-
ção. Além disso, o modo de produção capitalista está preso numa
tensão. Por um lado, ele aproveita a competição entre produtores,
que serve como estímulo à produção; por outro lado, ele tende à
centralização e à formação de monopólios. Os próprios capitalistas
acabam sendo “vítimas” do sistema de exploração e expropriação.
42 ◆ Filosofia Política III

Tão logo o modo de produção capitalista se sustente sobre seus pró-


prios pés, a socialização ulterior do trabalho e a transformação ulterior
da terra e de outros meios de produção em meios de produção social-
mente explorados, portanto, coletivos, a conseqüente expropriação ul-
terior dos proprietários privados ganha nova forma. O que está agora
para ser expropriado já não é o trabalhador economicamente autôno-
mo, mas o capitalista que explora muitos trabalhadores.

Essa expropriação se faz por meio do jogo das leis imanentes da pró-
pria produção capitalista, por meio da centralização dos capitais. Cada
capitalista mata muitos outros. Paralelamente a essa centralização ou à
expropriação de muitos outros capitalistas por poucos se desenvolve
a forma cooperativa do processo de trabalho em escala sempre cres-
cente, a aplicação técnica consciente da ciência, a exploração planejada
da terra, a transformação dos meios de trabalho em meios de trabalho
utilizáveis apenas coletivamente, a economia de todos os meios de pro-
dução mediante uso como meios de produção de um trabalho social
combinado, o entrelaçamento de todos os povos na rede do mercado
mundial e, com isso, o caráter internacional do regime capitalista. Com
a diminuição constante do número dos magnatas do capital, os quais
usurpam e monopolizam todas as vantagens desse processo de trans-
formação, aumenta a extensão da miséria, da opressão, da servidão, da
degeneração, da exploração, mas também a revolta da classe trabalha-
dora, sempre numerosa, educada, unida e organizada pelo próprio me-
canismo do processo de produção capitalista. O monopólio do capital
torna-se um entrave para o modo de produção que floresceu com ele
e sob ele. A centralização dos meios de produção e a socialização do
trabalho atingem um ponto em que se tornam incompatíveis com seu
invólucro capitalista. Ele é arrebentado. Soa a hora final da propriedade
privada capitalista. Os expropriadores são expropriados.

O sistema de apropriação capitalista surgido do modo de produção ca-


pitalista, ou seja, a propriedade privada capitalista, é a primeira negação
da propriedade privada individual, baseada no trabalho próprio. Mas
a produção capitalista produz, com a inexorabilidade de um processo
natural, sua própria negação. É a negação da negação. Esta não restabe-
lece a propriedade privada, mas a propriedade individual sobre o funda-
mento do conquistado na era capitalista: a cooperação e a propriedade
comum da terra e dos meios de produção produzidos pelo próprio tra-
balho. (MARX, 1996, p. 380).
O pensamento político do século xix ◆ 43

Mas o aspecto filosoficamente mais interessante da análise


marxiana do capitalismo consiste talvez na análise do fetichismo
da mercadoria (ainda no primeiro capítulo da obra). A abstra-
ção necessária para estabelecer o valor de troca das mercadorias
faz com que elas assumam, aos olhos dos envolvidos, uma vida
autônoma em relação a eles. Ela é percebida por eles não como
o produto do seu trabalho, mas como uma coisa que existe au-
tonomamente e que possui um valor em si.
Dessa maneira, ficam ocultados não somente
o trabalho presente nela (isto é, a relação en-
tre o homem e a natureza), mas também as
relações sociais (ou seja, as relações entre os
indivíduos envolvidos no processo de pro-
dução e de troca). Esse fenômeno é descri-
to por Marx recorrendo à noção de fetiche.
Como no caso dum fetiche (ou de Deus, segundo
Feuerbach e o próprio Marx), os homens proje-
O cheiro do ralo: no filme de Heitor Dhalia, o cheiro-fetiche
é associado às relações de compra e venda de objetos.
tam, no objeto, qualidades que, na realidade, são
Fonte: http://tinyurl.com/65fycdc deles e se submetem depois a ele, deixando que
Imagem: http://br4.in/Fwgo6 governe suas vidas.
A forma-mercadoria esconde, assim, a realidade das relações
Fetiche sociais, isto é, a atividade de trabalho presente nas mercadorias e
Um fetiche é um objeto ao as relações de propriedade sobre as quais se funda a produção de-
qual é atribuído um poder
sobrenatural ou mágico: por las. Isso faz com que todas as relações humanas (inclusive as mais
exemplo, uma estátua (um íntimas, como o amor) tendam a assumir a forma da produção
totem).
e troca de mercadorias. O mesmo processo se dá em relação ao
próprio capital, pois, na sociedade capitalista, os indivíduos desa-
parecem e o próprio capitalista não passa dum títere nas mãos do
capital, que se serve dele para reproduzir-se: se o capitalista não se
dobram às “inexoráveis” leis do mercado, perderá tudo em prol de
outros capitalistas.
Em suma, podemos dizer que, na leitura de Marx, o sistema ca-
pitalista produz riqueza e bem-estar, mas possui consequências
negativas pesadas. Em primeiro lugar, o capitalismo transforma
os indivíduos em meros apêndices do capital, como acabamos de
ver. Em segundo lugar, o capitalismo provoca uma acumulação
de riqueza fortemente desigual e, portanto, acaba criando pobreza
44 ◆ Filosofia Política III

ou aumentando aquela já existente. Em terceiro lugar, serve-se do


progresso tecnológico para aumentar a produção, mas disso não
resulta um melhoramento das condições de vidas das pessoas.
O capitalista substitui os trabalhadores por máquinas, mas não
de maneira que os primeiros tenham mais tempo livre para seu la-
zer ou para outras atividades que não o trabalho, antes: o trabalho
se torna ainda mais alienado e alienante, já que o operário se trans-
forma num apêndice da máquina, cuja função é servir à máquina,
adaptando-se aos ritmos dela para que esta faça o trabalho. Ao mes-
mo tempo, a substituição dos trabalhadores por máquinas leva a um
aumento do desemprego, dividindo o proletariado em dois grupos
às vezes em conflito entre si: os empregados e os desempregados.
Em quarto lugar, o capitalismo passa inevitavelmente e regu-
larmente por crises de supraprodução e, portanto, de estagnação.
O progresso tecnológico que permite a produção de mais merca-
dorias com menos trabalho humano faz com que, por um lado, se
produzam mais produtos do que necessário e, por outro lado, o po-
der aquisitivo das classes populares caia, ao diminuir o emprego. As
fábricas são obrigadas a diminuir a produção ou a demitir trabalha-
dores. Finalmente, há uma inevitável mudança de equilíbrio em prol
do capitalismo financeiro (que não produz mercadorias, mas vive de
especulações parasitárias) aos custos do capitalismo produtivo.

O capitalismo financeiro é uma consequência natural do capi-


talismo: em vez de D-M-D há diretamente D-D, o dinheiro cria
mais dinheiro sem precisar passar pela produção e venda de mer-
cadorias. Contudo, já que o capital financeiro especula sobre o
próprio mecanismo produtivo (quer na forma de créditos para
empresas produtivas, quer na forma de especulação na bolsa), ele
acaba solapando suas próprias bases materiais (a tendência é a de
subtrair capital à produção de mercadorias para investi-lo em es-
peculações financeiras cada vez mais autônomas do processo pro-
dutivo real, mas também sem relação com o potencial econômico
efetivo das empresas) e criando bolhas especulativas como as que
provocaram as grandes crises financeiras de 1929 e de 2008/09.
O pensamento político do século xix ◆ 45

O pensamento de Marx teve uma influência enorme na segunda


metade do século XIX e em todo o século XX, dando vida a toda
uma família de teorias. Contudo, o termo “marxismo” utilizado
para designá-las não deve levar a negligenciar as importantes dife-
renças entre elas. Na seção 3.1, analisaremos brevemente algumas
de tais teorias

1.4 Anarquismo
Ao lado do socialismo utópico e daquele “científico” de Marx,
afirma-se, no século XIX, uma forma radical de crítica ao capi-
talismo e ao Estado burguês que usualmente é chamada de anar-
quismo. O termo anarquia, que, como vimos, foi usado positiva-
mente pela primeira vez por Proudhon, deriva do grego e indica a
ausência dum chefe ou dum governo. Ainda que existam diferen-
tes variantes do anarquismo, comum a todas é a ideia de que seja
possível organizar a sociedade sem recorrer ao Estado e à violên-
cia policial. A convivência pacífica deveria ser garantida ou por
contratos e acordos individuais, como afirma Proudhon, ou pela
ausência de propriedade privada (a principal causa de conflito).
Quase todos os anarquistas teorizam a existência de comunidades
de pequeno tamanho, mais ou menos autárquicas (isto é, capazes
de garantir sozinhas a sobrevivência dos membros sem depender
de importações etc.), nas quais os indivíduos consigam resolver
eventuais conflitos pacificamente (ou, caso isso não seja possível,
possam ir embora em busca de outra comunidade).
O maior representante do anarquismo individualista junto a
Proudhon é o alemão Johann Caspar Schmidt, mais conhecido
pelo pseudônimo de Max Stirner (1806-1856). A importância do
seu pensamento na sua época pode ser constatada observando o
enorme espaço que Marx e Engels lhe dedicaram no livro A ide-
ologia alemã (1846), que representa um acerto de contas com a
filosofia alemã de seu tempo.
No centro da reflexão de Stirner está o indivíduo, como fica cla-
ro já no título da sua obra principal: O único e sua propriedade
(1844; tradução portuguesa em STIRNER, 2009). Segundo Stirner,
46 ◆ Filosofia Política III

conceitos como humanidade, verdade, liberdade ou justiça são


somente fantasias criadas para escravizar o indivíduo. Particular-
mente relevante para nós é sua crítica ao liberalismo, do qual ele
distingue três variantes, todas condenadas por ele.
A primeira é o liberalismo político ou burguês, que se afirmou
com a Revolução Francesa. Seus ideais são os direitos humanos, a
nação e o Estado, a constituição e a propriedade privada. Segundo
Stirner, ele não passa dum despotismo, pois a revolução aboliu um
senhor (a monarquia absolutista do Antigo Regime), para substi-
tuí-lo por outro: o Estado.
A segunda forma de liberalismo é o social, isto é, o socialismo
ou comunismo, que substitui a propriedade privada do liberalis-
mo burguês pela propriedade coletiva da sociedade. Nessa expro-
priação, a vítima é mais uma vez o indivíduo. Sem contar que o
comunismo obriga os indivíduos a trabalhar, não lhes permitindo
ficar inativos e improdutivos, mas exigindo que trabalhem para a
sociedade.
Finalmente, o liberalismo humano tem como finalidade a
emancipação do homem, não do burguês ou do trabalhador. Esta
só será possível quando o trabalho for humano, isto é, quando ele
servir à humanidade inteira (e não para acumular riqueza ou para
garantir a sobrevivência animal do indivíduo) e quando for o resul-
tado da atividade espontânea do ser humano. Também esta forma
de liberalismo representa para Stirner uma tentativa de escravizar o
indivíduo em nome do coletivo (da humanidade, neste caso).
Para Stirner, o indivíduo, o único, vive em completo isolamento
dos outros, que representam aos seus olhos meros instrumentos
para alcançar seus fins egoístas. O único pensa somente no gozo
da própria vida (Lebensgenuss) e quando se reúne com outros não
faz isto seguindo um instinto natural (isto faria dele um exemplar
da espécie, despossuído de unicidade) ou espiritual (renunciando
com isto ao seu legítimo egoísmo), mas somente a fim de aumentar
sua força juntando-a com a de outros, analogamente ao que acon-
tece no Estado espinoziano (cf. o livro-texto Filosofia Política II,
seção 2.4). Não há comunidade ou sociedade natural, mas somen-
O pensamento político do século xix ◆ 47

Frequentemente se trata de te associações voluntárias e interesseiras.


representações negativas,
como nos romances O agente Ao anarquismo individualista (e até egoísta) de Proudhon e
secreto (1907) de Joseph Stirner se opõe o anarquismo coletivista de pensadores como
Conrad e O homem que foi
quinta-feira (1908) de Gilbert Bakunin e Kropotkin, dois aristocratas russos que, em sua época,
K. Chesterton. tornaram-se a verdadeira encarnação do anarquismo revolucio-
nário e da figura do anarquista como agitador profissional, meio
terrorista, meio herói romântico, conhecida em tantas obras lite-
rárias.1 Michail Bakunin2 é, nesse sentido, a figura mais român-
tica: envolvido em dezenas de iniciativas revolucionárias de vário
porte em vários países, obrigado a fugir da polícia de toda Europa,
enclausurado nas prisões russas e austríacas, viajou (ou melhor,
fugiu) pelo mundo inteiro, inclusive Japão e EUA, até finalmente
estabelecer-se na Suíça, na cidade de Lugano, que se tornou uma
espécie de paraíso para anarquistas de todos os países.
Seus escritos mais conhecido são Deus e o Estado (acabado em
Michail Bakunin (1814-1876). 1871, publicado em 1882) e Estado e anarquia (1873). No primeiro,
Fonte: http://tinyurl.com/
MichailBakunin ele opera uma crítica radical da religião, cuja história é a história
duma “loucura coletiva” e cuja essência são “o empobrecimento,
a escravização e a aniquilação do homem em prol da divindade”
(apud OTTMANN, 2004, p. 217). Ela é fruto da ignorância dos
povos primitivos relativamente às leis da natureza e consegue so-
breviver só graças ao fato de que amplas faixas de população per-
manecem nessa ignorância até hoje. O cristianismo, em particular,
é condenado por Bakunin por transformar os indivíduos em ego-
ístas, preocupados unicamente com a salvação de sua alma, e não
com o bem-estar e a felicidade dos outros.
O outro alvo das críticas de Bakunin é o Estado, que, para ele,
não é nem sequer o instrumento pelo qual a burguesia implemen-
ta seus interesses, mas representa simplesmente a aniquilação da
liberdade individual. O Estado é o inimigo a ser derrubado para
instaurar uma sociedade na qual os indivíduos se organizem au-
tonomamente (como já em Proudhon). Dessa posição derivou o
principal conflito com Marx, que, pelo contrário, achava que o
proletariado devesse empossar-se do Estado antes de operar a re-
volução social definitiva. Bakunin condena essa visão sem apelo:
Todo Estado, mesmo o mais republicano e mais democrático, mesmo
48 ◆ Filosofia Política III

pseudo-popular como o Estado imaginado pelo Sr. Marx, não é outra


coisa, em sua essência, senão o governo das massas de cima para baixo,
com uma minoria intelectual, e por isto mesmo privilegiada, dizendo
compreender melhor os verdadeiros interesses do povo, mais do que o
próprio povo. (BAKUNIN, 2000).

Apesar de suas críticas a Marx, Bakunin compartilha com ele


a ideia de que o caminho para mudar a sociedade passa por uma
compreensão científica dela. Nas primeiras linhas de Estado e
anarquia, ele afirma:
Não há caminho que leve da metafísica à realidade da vida. Teoria e fatos
são separados por um abismo. É impossível pular em cima dele com
aquele que Hegel chamou de ‘salto qualitativo’ do mundo da lógica ao
mundo da natureza e da vida real. O caminho que leva dos fatos concre-
tos à teoria e vice versa é o método da ciência e é o caminho verdadeiro.
No mundo prático é o movimento da sociedade rumo a formas de orga-
nização que refletirão quanto mais for possível a própria vida em todos
seus aspectos e em toda sua complexidade. (BAKUNIN, 2000).

Apesar de sua atitude crítica perante a sociedade de seu tempo,


ambos – Marx e Bakunin – compartilham com esta a confiança na
ciência como único caminho para a verdade e como instrumento
de progresso social e político: esta parece ser uma característica do
pensamento político do século XIX (com a exceção do conserva-
dorismo). Nesse sentido, Piotr Kropotkin representa, de maneira
exemplar, a ligação entre ciências naturais e pensamento político.
Kropotkin pretende fundar o anarquismo sobre os resultados
Piotr Kropotkin (1842-1921).
das primeiras, tentando mostrar como na natureza domina não a Fonte: http://tinyurl.
luta pela existência, como se acreditava muito na sua época (e, em com/63dcm9v

parte, ainda hoje se acredita), antes a cooperação recíproca. Por


isso, o título do seu livro mais conhecido, saído em 1902, é A ajuda
mútua um fator da evolução. Na visão de Kropotkin, cada espécie
se baseia na ajuda recíproca entre seus membros para sobreviver.
Para sustentar sua tese, o autor remete a observações empíricas
sobre o comportamento dos animais (das formigas, das abelhas,
dos primatas etc.) e de populações “primitivas” (os esquimós, os
aborígenes australianos), assim como as considerações históricas.
A tese da ajuda mútua como fator natural, leva Kropotkin a
pensar num sistema ético baseado em sentimentos naturais (o re-
O pensamento político do século xix ◆ 49

sultado deveria ter sido uma obra de amplo porte chamada Ética,
da qual saiu somente o primeiro volume, em 1921). Do ponto de
vista sócio-político, também Kropotkin defende a ideia de peque-
nas comunidades autossuficientes, capazes de viver sem Estado,
com base no acordo e na ajuda recíprocos de seus membros (no
seu livro A conquista do pão, de 1892).
O último autor que mencionaremos nesta seção sobre o anar-
quismo é George Sorel, que é considerado o principal teórico do
“sindicalismo revolucionário” ou do “anarco-sindicalismo”.

Georges Eugène Sorel Contra o determinismo de certos marxistas e, até certo ponto, do
(1847-1922). Fonte: http:// mesmo Marx (determinismo para o qual a revolução irá acontecer
tinyurl.com/6dcwoqf
inevitavelmente, como um evento natural), Sorel defende a ideia
de que a revolução só se daria pela iniciativa violenta de parte do
proletariado, a saber, daquela parte que já tinha alcançado o nível
necessário de consciência de classe. Essa elite revolucionária não
seria formada por intelectuais organizados num partido, mas pe-
los próprios trabalhadores reunidos em sindicatos. O instrumento
pelo qual prepararia a revolução seria a greve geral. Esta última
não poderia levar à própria revolução sozinha, mas serviria para
despertar as massas e para fornecer um modelo quase mitológico
para a ação revolucionária propriamente dita. Por isso, seu texto
principal, Reflexões sobre a violência (publicado na versão definiti-
va em 1908; trad. portuguesa em SOREL, 1992), contém uma ver-
dadeira teoria do mito político. O liberalismo possui mitos pode-
rosos: o progresso, a liberdade, a igualdade (ainda que meramente
formal). Foi mister criar mitos revolucionários para opô-los àque-
les liberais, e a greve geral representou precisamente um mito que
uniu os trabalhadores criando uma profunda identidade unitária.
Sorel não apoiou seu socialismo sobre as ciências naturais ou
sobre teorias filosóficas racionais, antes apelou para o lado irra-
cional e emocional da identificação com mitos cheios de sugestão.
Nesse sentido, ele se distinguiu bastante dos outros autores socia-
listas ou anarquistas e recorreu a conceitos típicos do pensamento
conservador (o irracionalismo, a exaltação das paixões contra a
razão, o recurso a uma visão emocional de identidade coletiva, a
justificação da violência irracional contra o diálogo e a polêmica a
pacíficos), ainda que para finalidades revolucionárias.
50 ◆ Filosofia Política III

1.5 Conservadorismo
De todas as correntes políticas, aquela cuja definição resulta
mais difícil é a chamada normalmente de conservadorismo. Isso
porque o termo parece indicar menos uma posição política e mais
uma atitude subjetiva: o desejo de conservar a realidade assim
como ela é ou como ela foi até agora. Na realidade, atrás desse ter-
mo, escondem-se posições muito diferentes que aqui serão apre-
sentadas brevemente.
Embora o conservadorismo, no sentido anteriormente mencio-
nado, seja tão antigo quanto à própria atividade política, foi so-
mente no século XIX que o termo passou a indicar uma posição
política propriamente dita, oposta à esquerda e ao seu progressis-
Retomo essa distinção de
mo. Há pelo menos quatro grandes correntes conservadoras que Ottmann (2008).
se diferenciam bastante umas das outras: o conservadorismo libe-
ral, o conservadorismo romântico, o conservadorismo contrarre-
volucionário e o conservadorismo social.
Comum a todas elas é a ideia de que qualquer tentativa de mo-
dificar a realidade em nome de ideais abstratos representa um erro
cujas consequências práticas podem ser terríveis, como demons-
trado pelo terror revolucionário. Não é por acaso que o “pai” do
conservadorismo moderno, o inglês Edmund Burke, foi um dos
mais ferozes críticos da Revolução Francesa.
Em suas Reflexões sobre a revolução em França (1790), ele con-
dena os revolucionários pelas suas teorias abstratas e pela ideia de
que fosse possível começar do zero a reorganização da sociedade
francesa, sem levar em conta toda a história e a tradição do país Edmund Burke (1730-1797).
(BURKE, 1982). Segundo Burke, tudo isso leva inevitavelmente Fonte: http://br4.in/qeVvl

ao fanatismo político, que, desse ponto de vista, não se diferencia


daquele religioso que provocou inúmeros conflitos na história da
Europa. A religião representa, antes, o melhor meio para conciliar
liberdade individual e respeito das leis, ainda que não seja claro
em que sentido Burke entenda isso. Encontramos nesse escrito os
caracteres principais do conservadorismo: a convicção de que, na
política, a experiência e a práxis contém mais do que a teoria (isto
é, uma forte desconfiança perante as ideias abstratas: ao raciona-
O pensamento político do século xix ◆ 51

lismo abstrato é oposto o realismo pragmático) e a exaltação da


tradição (inclusive ou principalmente da tradição religiosa).
Os conservadores liberais, entre os quais pode ser incluído o
próprio Burke, merecem este adjetivo não por insistir sobre os di-
reitos individuais (como o faz o liberalismo tradicional de Locke
a Mill), antes por opor-se ao despotismo arbitrário da monarquia
absoluta em nome dum governo representativo e moderado. Ain-
da que condenem a Revolução Francesa pelo seu extremismo, eles
1
Georg Philipp Friedrich von apreciam a Revolução Americana, na qual veem a restauração dos
Hardenberg, mais conhecido antigos direitos de autogoverno das províncias da Nova Inglater-
como Novalis (1772-1801).
Fonte: http://tinyurl. ra contra a coroa inglesa (e, portanto, uma volta ao passado e à
com/6f94lnz tradição).
O conservadorismo romântico, influenciado entre outros pe-
las Investigações filosóficas sobre as origens de nossas idéias do Su-
blime e do Belo do próprio Burke (1757), opõe ao racionalismo
iluminista e ao entusiasmo pelo futuro e pelo progresso humano,
o sentimentalismo e o apego à tradição, em particular à tradição
literária popular (baladas, contos, canções, lendas etc.). Na Ale-
manha, isso se traduz numa exaltação da Idade Média e do Sacro
Romano Império como uma época e uma forma política em que
a comunidade nacional vivia em plena harmonia, obedecendo ao
poder temporal do Imperador e àquele espiritual da Igreja (na re-
2
Thomas Carlyle (1795-1881).
alidade, trata-se duma visão idealizada, pois a Idade Média é ca-
Fonte: http://br4.in/RGRz7 racterizada precisamente pelo conflito entre os dois poderes). Os
românticos como Novalis1 (no seu O Cristianismo ou Europa, de
1799, publicado em 1826) esperam que à revitalização da religião
cristã corresponda uma renovação política e espiritual. Na Ingla-
terra, Thomas Carlyle2 desenvolve sistematicamente uma ideia ti-
picamente conservadora, já presente em Burke: a história é feita
por indivíduos excepcionais, por heróis, não por ideias abstratas
ou por forças impessoais. No seu livro Sobre os heróis, o culto dos
heróis e o heróico na história (1840), ele chega a escrever que “a his-
tória do mundo [...] é a biografia dos grandes homens”.
O conservadorismo contrarrevolucionário ou reacionário sur-
giu, como diz o nome, em reação à Revolução Francesa. Suas figu-
3
Joseph de Maistre
(1753-1821). Fonte: ras mais relevantes são o francês de Maistre e o espanhol Cortés.
http://br4.in/rG8fS Joseph de Maistre3 considera a Revolução uma punição divina em
52 ◆ Filosofia Política III

virtude da decadência moral do povo francês, e a República uma


mera fase transitória, pois a monarquia representa a única forma
natural de governo (Considerações sobre a França, de 1796). Maistre
está convencido de que a natureza humana é corrupta e só pode
ser controlada por um poder absoluto (mais uma ideia tipicamente
conservadora).
No escrito Sobre o papa (1819), o filósofo comenta que seu mo-
delo de soberano é o papa, no qual ele afirma a infalibilidade dele,
antes que essa ideia se tornasse um dogma da Igreja (isto aconte-
ceria somente em 1870). Segundo De Maistre, a soberania deriva
de Deus, como ensinavam os teóricos medievais, e não do homem;
ela é única e indivisível e só pode ser exercida por um indivíduo e
de forma absoluta, como o papa o faz sobre a Igreja (Estudo sobre a
soberania, 1794). Juan Donoso Cortés representa uma interessan-
te evolução do conservadorismo. Enquanto o conservador deveria
Juan Donoso Cortés, Marqués
defender a ordem existente contra qualquer tentativa de revolução, de Valdegamas (1809-1853).
considerada ilegítima por definição, Cortés afirma que, quando a Fonte: http://br4.in/uR8mh
ordem legítima for ameaçada por uma revolução, é oportuno de-
fendê-la por meios ilegais. Ele defende, portanto, a ditadura como
instrumento para manter intata a ordem legítima, ainda que se tra-
te de fazer isso agindo fora da legalidade (Discurso sobre a ditadu-
ra, 1849). Enorme foi a influência dessa posição, quer na teoria (a
encontraremos de novo em Carl Schmitt, que foi grande admira-
dor de Cortés), quer na prática (esta foi a justificativa de inúmeros
golpes de Estado, inclusive o de 1964, no Brasil).
Outra ideia que teve uma grande influência na história do pen-
samento político (de novo, particularmente em Schmitt) foi a de
que há uma relação entre política e teologia. Na sua teologia polí-
tica, Cortés distingue quatro fases:
1. Naquela do teísmo e do absolutismo, à crença num Deus-
pessoa corresponde uma monarquia individual e absoluta;
2. Na fase do deísmo e da monarquia constitucional, Deus se
torna simplesmente o criador do mundo, não seu gover-
nante; correspondentemente, “o rei reina, mas não governa”,
como dizia o político francês Thiers, já que o governo é con-
trolado pelo parlamento;
O pensamento político do século xix ◆ 53

3. Na fase do panteísmo e do republicanismo, Deus se torna


uma instância impessoal e onipresente, assim como impes-
soal e onipresente é o poder político;
4. Na quarta e última fase, a do ateísmo e do anarquismo, não
há crença em Deus nenhum, nem obediência a senhor algum
(conforme o lema anárquico francês “ni Dieu, ni maître”, isto
é: “nem Deus, nem senhor”). Segundo Cortés, a civilização
europeia se dirigiu, irresistivelmente, para esta última fase e
para o caos (Ensaio sobre o catolicismo, o liberalismo e o so-
cialismo, 1851).
Finalmente, o conservadorismo social se preocupa, contraria-
mente às outras formas de conservadorismo, com questões sociais,
começando pela pobreza de boa parte da população. Alguns dos
autores em questão, como Lorenz von Stein, antecipam em suas te-
ses o Estado de bem-estar social, insistindo na necessidade de assis-
tir os cidadãos mais pobres para que a sociedade permaneça estável
e sejam evitados os riscos duma revolução que só levaria ao caos.
Lorenz von Stein (1815-1890).
Fonte: http://tinyurl. Em geral, podemos dizer que o conservadorismo – apesar de
com/6fkejh5 representar uma posição política geralmente majoritária – não
apresenta muitos traços originais e, historicamente, não contri-
buiu muito à evolução do pensamento político, com a exceção
dum pensador como Cortés, que, contudo, merece mais o título de
autor reacionário do que conservador. Não é por acaso que, como
antecipamos, ele representará uma fonte inspiradora para um pen-
sador como Schmitt (ver a seção 3.3).

Leituras recomendadas
Leia, de Marx e Engels, o Manifesto do partido comunista (do
qual existem muitas edições portuguesas) e, de Marx, os seguintes
capítulos do primeiro livro de O Capital (na edição da coleção Os
Economistas da Abril Cultural ou na edição publicada pela editora
Civilização Brasileira): I: A mercadoria; II: O processo de troca;
XXV: A teoria moderna da colonização.
54 ◆ Filosofia Política III

Reflita sobre
1. Quais são as diferenças entre o socialismo utópico e o anar-
quismo em reagir aos problemas colocados pela sociedade
capitalista?
2. Em que consiste o fetichismo da mercadoria analisado por
Marx?
3. Qual é a diferença entre a noção de trabalho alienado, ex-
posta nos Manuscritos Econômico-Filosóficos, e a noção de
exploração introduzida no Capital ao discutir a mais-valia?
4. Como se modifica a visão marxiana da relação entre base
econômica e superestrutura jurídico-política entre o Mani-
festo de 1848 e o 18 Brumário de 1851?
5. Todos os autores apresentados neste capítulo, inclusive os
conservadores, criticam a modernidade em algum aspecto.
Quais são os aspectos que cada um dos movimentos (socia-
lismo utópico, anarquismo, conservadorismo, marxismo de
Marx) critica na sociedade moderna?
■ Capítulo 2 ■
O surgimento da
Sociologia Moderna

O objetivo deste capítulo é apresentar a


você, brevemente, aqueles sociólogos moder-
nos cuja obra maiormente influenciou a his-
tória das ideias políticas. Ao fazer isso, serão
salientadas também as diferenças entre o
método próprio das ciências sociais e aquele
da filosofia política.
O surgimento da Sociologia Moderna ◆ 57

2.1 Introdução
O século XVIII tinha visto surgir várias novas disciplinas que
reclamavam para si o estatuto de ciência: a antropologia, a econo-
mia política, a psicologia. Já no século XIX surgiu uma nova disci-
Sobre a importância de plina que avançou com essa pretensão. Ela pretendia oferecer uma
Montesquieu e Tocqueville imagem científica da sociedade e chamava a si mesma de socio-
para a Sociologia ver:
Aron (1997).
logia. Na realidade, podemos encontrar, na obra de Montesquieu
e Tocqueville (ver o livro texto Filosofia Política II), as primeiras
tentativas de uma análise “científica” da sociedade.
Contudo, foi somente com Comte que se afirmou a ideia de
uma ciência da sociedade, cujo método e rigor fossem análogos
àqueles das ciências naturais. Enquanto, porém, o próprio Comte
se limitou a oferecer uma teoria filosófica mais do que científica
da sociedade, a aplicação do método quantitativo à observação de
fenômenos sociais aconteceu com autores como Durkheim. Por
fim, Weber ofereceu um diagnóstico crítico da sociedade moderna
que se propôs como uma alternativa “burguesa” àquele marxiano e
que salientou aspectos que o próprio Marx tinha negligenciado ou
considerado não relevantes.

2.2 Auguste Comte


Nenhum pensador encarnou melhor a convicção de que as ci-
ências naturais deveriam servir de modelo para qualquer outra
58 ◆ Filosofia Política III

disciplina do que o francês Auguste Comte, (Sobre Comte ver


ARON, 1997), fundador duma corrente de pensamento chamada
de positivismo.

Positivismo
O positivismo se caracteriza pela crença no poder das ciências exatas, em
solucionar qualquer tipo de problema, inclusive os que ainda são insolú-
veis. Portanto, a confiança na ciência está acompanhada da crença no pro-
gresso dela e, em consequência disso, no progresso do gênero humano. Na Isidore Auguste Marie
ótica positivista, somente a ciência (sempre entendida como ciência exata) François Xavier Comte
pode aspirar ao conhecimento da verdade. Por essa razão, qualquer discipli- (1798-1857) Fonte: http://
na que pretenda conhecer verdadeiramente seu objeto deverá ser científica, tinyurl.com/AugusteComte
ou seja, adotar o método próprio das ciências exatas: da física e da matemá-
tica. Isso vale também para o estudo dos fenômenos sociais ou da sociologia
(foi o próprio Comte que introduziu primeiramente este termo).

Segundo Comte, o espírito humano e, com ele, as ciências pas-


sam por três etapas sucessivas de desenvolvimento: o estado teo-
lógico, o estado metafísico e o estado positivo. Enquanto as ciên-
cias exatas já alcançaram o terceiro estado (ainda que em épocas
diferentes: a matemática antes do que a física, esta antes do que a
química e esta antes do que a biologia), a ciência da sociedade ain-
da se encontra nos estados anteriores, pois ainda oscila entre uma
explicação teológica dos fatos sociais (como pelo recurso à noção
de direito divino) e uma metafísica (por exemplo, recorrendo ao
conceito de soberania popular, ao qual não corresponde nenhum
fato cientificamente observável). É preciso, então, que a sociolo-
gia se transforme finalmente numa ciência exata ou positiva a
fim de descobrir as leis sociais que permitam a edificação do
melhor regime político, que não será, portanto, o que mais cor-
responde a um ideal abstrato e metafísico, mas o mais próximo
à verdade das coisas.

2.2.1 A sociologia como física social


A sociologia deve, então, ser uma física social e, como a física,
divide-se em duas áreas principais: estática e dinâmica. A estática
social estuda a ordem própria do organismo social e suas leis es-
O surgimento da Sociologia Moderna ◆ 59

truturais, enquanto a dinâmica social estuda o progresso social e


suas leis. Ordem e progresso constituem, portanto, os objetos prin-
cipais de tal ciência.
A estática social parte da ideia de que cada sociedade possui
uma ordem fundamental que pode ser reconhecida atrás de todos
os diferentes ordenamentos jurídicos e políticos. Isso pressupõe,
por sua vez, que a natureza humana é única e imutável. Por isso,
(Selo nacional do Brasil) Comte dedica a primeira parte do seu Sistema de política positiva
O pensamento de Comte
teve bastante influência (1851-1854) à descrição das funções cerebrais, ou seja, das ativida-
no Brasil no fim do século des características do ser humano, e a segunda parte à tentativa de
XIX; daí a presença do lema
“Ordem e progresso” na identificar a ordem social fundamental, enquanto a terceira parte
bandeira brasileira. Fonte: descreve as leis da dinâmica social que deveriam levar ao estabele-
http://pt.wikipedia.org/wiki/
Ficheiro:National_Seal_of_ cimento da ordem social fundamental, em todas as sociedades e ao
Brazil.svg pleno desenvolvimento das faculdades mentais humanas.
O primeiro passo em direção à verdadeira física social consis-
te em abandonar as ilusões metafísicas que ainda caracterizam a
teoria social, começando pela ideia de que os indivíduos existem
separadamente do organismo social. É necessário “subordinar a
pessoa à sociabilidade” e abandonar a noção (metafísica e “antis-
social”) dos direitos individuais ou humanos, substituindo estes
últimos pelos deveres, pois “todos têm deveres, e para com todos,
mas ninguém tem qualquer direito propriamente dito” (COMTE,
1851-1854 apud RENAUT, 2002, p. 234).
Comte polemiza, portanto, com o liberalismo sobre este ponto.
Ainda que defenda a importância da propriedade privada em asse-
gurar o progresso humano (já que este se identifica com o aumen-
to da riqueza e da produção de bens e é possível somente se cada
geração produzir mais riqueza e bens do que consegue consumir
A ideia de que cada geração e os deixar à sucessiva), Comte afirma que não existe um direito
aproveitar dos resultados das
gerações que a precederam
individual de propriedade, mas que há um exercício individual da
leva Comte à célebre posse de bens em nome do bem-estar coletivo. A seu ver, o fato
afirmação pela qual “os
de o sistema econômico capitalista criar pobreza e estar sujeito a
mortos governam cada vez
mais sobre os vivos”. Fonte: crises recorrentes é algo contingente, o resultado duma má organi-
http://tinyurl.com/29bv2dn zação que pode ser reformada.
60 ◆ Filosofia Política III

A principal diferença entre Comte, Marx e outros críticos da


sociedade moderna consiste precisamente nesta confiança na
possibilidade de reformar o capitalismo e, assim, de eliminar
suas consequências mais negativas sem abandoná-lo.

A reforma da sociedade capitalista ou industrial (como a cha-


ma Comte) se deu numa revolução espiritual e moral, não mo-
dificando as relações de propriedade. Na sociedade moderna, os
indivíduos visam obter poder, a ocupar um lugar o mais elevado
possível na hierarquia social e econômica, isto é, na ordem mate-
rial; mas eles deveriam tentar ascender numa outra hierarquia, a
ordem espiritual dos méritos morais: nesta um operário pode estar
acima do seu chefe.
Somente uma sociedade organizada com base na hierarquia es-
piritual dos méritos morais pode alcançar estabilidade e realizar
plenamente a ordem social fundamental. A reforma espiritual e
moral da sociedade é tarefa dos filósofos e dos intelectuais, desti-
nados a substituir os sacerdotes neste ponto (assim como, na or-
dem material, os empresários capitalistas da sociedade industrial
substituíram a aristocracia militar da sociedade feudal). Daí a im-
portância crescente, no pensamento de Comte, da religião, mas
duma religião de inspiração positivista, na qual o lugar de Deus é
tomado pela própria humanidade. Esta, o “Grande Ser”, é formada
por todos aqueles seres humanos que deixaram um marco na his-
tória, quer pelo bom exemplo, quer pelas suas obras. A religião é
considerada por Comte somente do ponto de vista da sua função,
que é dupla: no caso do indivíduo, fornece-lhe um objeto de de-
voção superior a ele, a saber, a humanidade; no caso da sociedade,
representa uma fonte de poder espiritual, necessário para moderar
e regulamentar o poder temporal da hierarquia sócio-política.

2.2.2 Natureza humana e dinâmica social


No momento em que afirma que a sociedade humana deveria
ser organizada de maneira a corresponder à natureza humana e
em que passa a descrever tal natureza, Comte deixa de ser um so-
ciólogo e se torna um filósofo no sentido tradicional ou “metafí-
O surgimento da Sociologia Moderna ◆ 61

sico”, como ele mesmo diria. Sua visão da natureza humana, sua
classificação dos sentimentos (em mais ou menos egoístas e em
altruístas), suas visões sobre a família etc. são menos o resultado
duma rigorosa observação científica e representam antes uma vi-
são filosófica quase platônica – começando pela própria distinção
na natureza humana de dois aspectos: a inteligência, por um lado,
e o coração, por outro. Este último se divide, por sua vez, em sen-
timento e atividade.
O homem é, portanto, por sua natureza, um ser sentimental,
ativo e inteligente. Correspondentemente, todos os fenômenos so-
ciais podem ser interpretados à luz dessa tripartição. Por exemplo:
a família corresponde ao lado sentimental, enquanto a divisão do
trabalho, típica da sociedade industrial, corresponde ao lato ativo e
a ciência da sociedade, ao lado inteligente. E ainda: a propriedade
privada resulta da atividade humana, a linguagem da inteligência, e
ambas obedecem à mesma lei, a saber, a lei da acumulação (de bens
e riquezas num caso, de conhecimentos e conceitos no outro).
A tripartição em questão volta na parte da obra dedicada à di-
nâmica social, isto é, à história da sociedade. Esta pode ser lida,
à luz dos três princípios fundamentais da natureza humana, como
história da inteligência (isto é, como história do espírito humano
e de sua evolução através das etapas anteriormente mencionadas
até o estádio positivista), como história da atividade (na passa-
gem do domínio da atividade militar para aquele da atividade in-
dustrial) e como história do sentimento (isto é, como descrição
dos modos em que os sentimentos altruístas acabam prevalecendo
sobre os egoístas, embora sem eliminá-los completamente).

Na visão de Comte, a história de todas as civilizações tende


para o mesmo ponto de chegada, isto é, para o surgimento duma
sociedade organizada conforme a ordem fundamental, na qual
prevalecerão as ciências positivas e o sistema industrial e a or-
dem temporal será mitigada pela ordem espiritual, sustentada
pela religião positiva.

Estamos aqui perante uma verdadeira crença; mas, sobretudo,


perante uma hipótese de fundo que permanece indemonstrável
62 ◆ Filosofia Política III

empiricamente, a saber, a ideia duma união profunda da humani-


dade, que vai além da presença duma natureza humana única (ou-
tro pressuposto questionável, pelo menos no que diz respeito às
características que vão além do nível meramente animal) e que se
refere à história do gênero humano. Justamente esses pressupostos
são os que tornam a teoria comtiana uma mera filosofia social,
mais do que uma ciência social. A tarefa de atribuir à observação
da sociedade uma base metodológica científica, e não filosófica,
caberá a outro pensador: Émile Durkheim.

2.3 Émile Durkheim


O pensador que fundou a sociologia como ciência propria-
mente dita foi o francês Émile Durkheim (Sobre Durkheim, ver
ARON, 1997). Guiado por uma forte confiança nas ciências exatas
e em seus métodos, Durkheim esperava de uma ciência social as
respostas aos maiores problemas da sociedade moderna, primei-
ramente àquele da integração social.
O fim da sociedade tradicional liberou os indivíduos dos laços
que uma rígida estrutura social e política lhes colocava, mas, ao pro-
vocar o surgimento dum individualismo acentuado (na sociedade
tradicional, o indivíduo se via primariamente como membro duma Émile Durkheim (1858-1917)
Fonte: http://tinyurl.com/
família, duma corporação, duma comunidade religiosa, duma ci-
Durkheim
dade etc.) e dum conflito exasperado entre as classes (na sociedade
feudal, cada grupo social aceitava sua posição como parte duma
ordem natural ou divina), desencadeou um processo de desagre-
gação social que ameaçava a integridade da sociedade. Coube à
sociologia indicar os remédios possíveis para evitar tal perigo.

2.3.1 As regras do método sociológico


A obra na qual Durkheim apresenta sua ideia de ciência social
é As regras do método sociológico, de 1895 (DURKHEIM, 2007).
Na visão de Durkheim, a sociologia deve ser uma ciência exata
capaz de formular as leis que regulamentam a vida da sociedade,
exatamente como a física formula as leis que regem os corpos ma-
teriais. Objeto de suas análises são os fatos sociais (faits sociaux).
O surgimento da Sociologia Moderna ◆ 63

Para entender o que é um fato social, é preciso considerar que,


para Durkheim, o homem é composto por uma parte animal e por
uma social. Por sua vez, a primeira é composta pelos impulsos e
necessidades que motivam sua ação. A segunda é composta pelas
normas e regras culturais e sociais que, uma vez interiorizadas, co-
locam limites à influência da parte animal. Ora, a questão é justa-
mente encontrar as instituições sociais que coloquem tais limites.
A sociedade exerce, em suma, uma coerção sobre os indivídu-
os, obrigando-os a adotar determinadas linhas de ação, ainda que
contrárias aos impulsos e desejos pessoais. Um fato social é precisa-
mente uma forma de agir que se impõe ao indivíduo exteriormen-
te (isto é, antes de ser interiorizada); ela independe, portanto, da
vontade individual (Durkheim é contrário à tentativa de explicar
os fatos sociais recorrendo à psicologia) e possui caráter geral. As
regras da moral ou do direito, os hábitos, mas também os valores
são exemplos de fatos sociais que determinam a ação dos membros
duma sociedade conforme leis similares àquelas da física (por isso,
Durkheim considera sua teoria uma verdadeira “física moral”).
A análise dos fatos sociais é dupla. No plano causal, eles são
explicados pela influência de outros fatos sociais. No plano fun-
cional, eles são explicados recorrendo à sua função no contexto da
sociedade. Um bom exemplo dessa dupla análise pode ser encon-
trado no estudo sobre a divisão do trabalho.

2.3.2 A divisão do trabalho e a sociedade


moderna
O estudo A divisão do trabalho social, de 1893 (DURKHEIM,
2010), ocupa-se das diferenças entre a sociedade tradicional e a
moderna. A primeira é organizada em segmentos fechados (tribos,
clãs etc.), em cada um dos quais os membros compartilham vi-
sões do mundo e sentimentos religiosos e morais. A totalidade das
convicções e dos sentimentos compartilhados numa sociedade é
denominada, por Durkheim, de consciência coletiva.
Do ponto de vista da análise causal, Durkheim explica a passa-
gem da sociedade tradicional à moderna com o aumento da popu-
lação e com a crescente interação entre as comunidades originárias,
que provocaram a tendência à especialização na produção e troca de
64 ◆ Filosofia Política III

mercadorias – quer no nível individual, quer no nível comunitário


(os grupos se especializaram em produzir certos bens para trocá-
los por bens produzidos por outros grupos, enquanto indivíduos no
interior de um grupo começaram a fazer o mesmo). Nasceu assim
uma divisão do trabalho no seio das comunidades originárias.
Do ponto de vista da análise funcional, a divisão do trabalho re-
sulta num aumento do individualismo, mas também numa maior
integração social, isto é, num aumento da solidariedade, que
constitui o cimento da fábrica social. Na sociedade tradicional, a
solidariedade é mecânica e se funda na igualdade dos membros,
isto é, no fato de eles compartilharem uma consciência coletiva
muito forte. Eles possuem as mesmas convicções e regras de ação;
portanto, suas vidas são muito semelhantes.
Nessa ótica, o crime representa uma violação da consciência
coletiva e provoca uma reação de ira por parte dos membros da
comunidade, que procuram vingar-se. A forma de direito carac-
terística dessa sociedade é, portanto, o direito penal: nele a pena
representa a vingança da comunidade contra o indivíduo que vio-
lou as regras comuns. Na sociedade moderna, caracterizada pela
divisão do trabalho, há uma maior independência dos indivíduos
da comunidade e da consciência coletiva. A solidariedade nasce da
necessidade de recorrer ao trabalho dos outros para satisfazer suas
carências. Essa solidariedade baseada na integração é chamada,
por Durkheim, de orgânica: ela é mais forte que a mecânica, pois
os indivíduos dependem mais fortemente dos outros por causa da
divisão do trabalho. Esta última implica numa integração das dife-
rentes profissões; portanto, a integração do indivíduo na sociedade
se dá não de maneira direta, como nas comunidades tradicionais,
mas pela pertença a um determinado grupo profissional. A forma
de direito mais típica da sociedade moderna é o direito contratual,
na ótica do qual o crime representa uma violação de um contra-
to entre indivíduos e a punição serve ao cumprimento dele ou à
reconstituição do status quo. Isso não significa, obviamente, que
o direito penal não exista nas sociedades modernas, mas que ele
perdeu sua preeminência (como demonstrado pelo prevalecer da
ideia de que ele não deveria possuir caráter retaliatório, mas pre-
ventivo, ou até servir à ressocialização do criminoso).
O surgimento da Sociologia Moderna ◆ 65

Apesar de a solidariedade orgânica ser mais forte do que a me-


cânica, as sociedades modernas podem apresentar graves proble-
mas de integração. Os mais relevantes derivam duma divisão do
trabalho ou pouco ou excessivamente regulamentada. No primei-
Anomia ro caso, cria-se uma situação de anomia, na qual os membros da
A palavra deriva do grego e sociedade não reconhecem a função social de seu trabalho ou não
indica a ausência de regras
são capazes de orientar-se pelas exigências da sociedade (como no
ou leis (nomos).
caso de um empresário que não preste atenção às exigências do
mercado). No segundo caso, pode produzir-se uma divisão força-
da do trabalho, na qual os indivíduos são obrigados a assumir uma
posição, e não podem sair dela, como no caso em que as classes
sociais sejam particularmente rígidas e os indivíduos não consi-
gam sair da sua posição para tentar avançar na hierarquia social.
O resultado é uma luta de classe acirrada e potencialmente desa-
gregante para a sociedade.
Durkheim vê uma possível solução desses problemas no papel
das associações profissionais e dos sindicatos, que deveriam permi-
tir o fortalecimento da solidariedade orgânica entre seus membros.
Permanece, contudo, a dúvida relativa à possibilidade de resolver
o conflito entre individualismo (força sempre potencialmente de-
sagregadora) e solidariedade, entre indivíduo e coletividade. Este
é o tema dominante de muitas teorias sociológicas, algumas das
quais (por exemplo, as teorias dos alemães Helmut Schelsky e Ni-
klas Luhmann) levam a ideia durkheimiana duma ciência social ao
ponto de teorizar a sociologia como verdadeira técnica social capaz
de prever e, portanto, dirigir o comportamento humano.

2.4 Max Weber


O alemão Max Weber (Sobre Weber, ver Aron, 1997) é às vezes
chamado de “Marx da burguesia”. A razão disso está no fato de ele
ter colocado, no centro de seus estudos, a sociedade capitalista e
de ter considerado a afirmação do sistema econômico capitalista
Maximillian Weber como o acontecimento central da modernidade.
(1864-1920) Fonte:
http://tinyurl.com/ Contudo, contrariamente a Marx, Weber não acredita na prima-
MaximillianWeber zia da esfera econômica sobre as outras (ainda que, como vimos, o
66 ◆ Filosofia Política III

próprio Marx não defenda um determinismo econômico rigoro-


so). Pelo contrário, ele tende a explicar as atitudes e os comporta-
mentos individuais numa determinada sociedade, apontando para
os valores nela dominantes. De certa maneira, ele coloca a teoria
marxiana da base econômica e da superestrutura ideológica de
cabeça para baixo: o triunfo de um sistema econômico como o
sistema capitalista é explicado pelo predomínio de determinados
valores (éticos ou religiosos) favoráveis a tal desenvolvimento, e
não vice-versa (os marxistas ortodoxos diriam que a afirmação
desses valores é consequência de certas relações de produção).
Particular importância é atribuída, nesse contexto, às visões do
mundo e aos valores religiosos: um dos livros mais conhecidos de
Weber é A ética protestante e o espírito do capitalismo (WEBER,
2004), mas, em geral, os estudos sobre a sociologia da religião, ou
melhor, sobre as diferentes religiões e sua influência nas respectivas
sociedades, representam uma parte considerável da obra deste autor.

2.4.1 Os tipos ideais e a teoria do poder


Dois pontos merecem ser salientados no que diz respeito à ques-
tão da metodologia utilizada por Weber. O primeiro é a ideia de
que uma teoria científica deve ser livre de valores (wertfrei). Isso
não significa que o teórico, ao descrever seu objeto, faça isso sem
ser influenciado pelos seus valores individuais ou pelos valores tí-
picos da sua cultura. Muito pelo contrário, Weber considera a so-
ciologia uma ciência hermenêutica, isto é, voltada à compreensão
de objetos através dum processo de contextualização deles. Falácia naturalística
Uma falácia naturalística
Ao falar numa ciência livre de valores, ele quer afirmar que a se dá quando se deriva
ciência não pode ser dirigida por nenhum tipo de ideologia ou um “dever ser” de um “ser”,
de visão normativa do mundo. O cientista deve enfrentar e des- ou seja, uma conclusão
normativa de uma premissa
crever os fatos independentemente da circunstância deles estarem descritiva. O fato de algo
de acordo com suas convicções ou com seus valores. Ao mesmo “ser”, de uma certa maneira,
não significa que este algo
tempo, não podemos fundamentar pretensões normativas a partir “deva ser” sempre desta
da observação científica da realidade, pois isso representaria uma maneira.
falácia naturalística.
O segundo ponto diz respeito ao conceito de tipo ideal. Ao ana-
lisar a realidade, pode ser útil servir-se de categorizações abstratas
O surgimento da Sociologia Moderna ◆ 67

e gerais. Nesse sentido, o termo ideal se contrapõe a real e não


indica nenhum tipo de superioridade normativa. Os tipos ideais
permitem ao cientista comparar entre si vários fenômenos sociais.
Normalmente, estes últimos não correspondem plenamente a um
tipo ideal só, mas apresentam elementos de vários tipos ideais.
Isso permite observar as mudanças internas a tais fenômenos, por
exemplo, a passagem de certas formas de poder para outras.
Em analisar as várias encarnações que o poder pode assumir,
Weber utiliza três tipos ideais. O primeiro é o poder carismático,
que se apoia na crença dos que lhe estão submetidos na superio-
ridade do detentor do poder. Nas sociedades pré-modernas, tal
crença se expressa na ideia da derivação divina do poder do rei ou
na ideia de que o poder cabe ao soberano por uma espécie de aura
supranatural. Esse poder, cuja legitimação é de tipo religioso ou
carismático, é substituído historicamente pelo segundo tipo ideal,
isto é, pelo poder tradicional, cuja legitimação consiste justamen-
te no apelo à tradição e à história.
Finalmente, na sociedade moderna, este é substituído pelo po-
der racional e legal, cuja legitimação se dá pelo fato de apoiar-se
sobre uma base jurídica positiva, isto é, sobre um ordenamento de
direito positivo construído racionalmente. O poder legítimo é atri-
buído neste caso por um processo regulamentado juridicamente.
Contudo, também nas sociedades modernas há momentos em que
certos indivíduos recebem o poder pelo seu carisma, mais do que
pela legitimação formal (pense-se nos ditadores que alcançaram o
poder graças ao apoio popular, do já mencionado Luís Bonaparte
a Mussolini e Hitler – que parecem confirmar o diagnóstico webe-
riano poucos anos depois dele ter sido formulado).

2.4.2 Uma teoria da modernidade


Como no caso de Durkheim, Weber parte da ideia de que a
sociedade moderna, por um lado, permitiu uma maior liberdade
individual, mas, por outro lado, confronta-se, precisamente por
essa razão, com problemas peculiares que as sociedades tradicio-
nais não conheciam. Enquanto Durkheim reconstrói a passagem
destas últimas para a modernidade por meio de uma análise es-
68 ◆ Filosofia Política III

sencialmente funcional, em cujo centro está a noção de divisão de


trabalho, Weber prefere ressaltar o papel dos valores e das visões
do mundo no processo de formação do mundo moderno. O que
caracteriza tal processo é, em primeiro lugar, o triunfo de certo
tipo de racionalidade, a racionalidade finalística (Zweckrationa-
lität): antes de agir, o indivíduo considera as possíveis alternativas
de ação, os fins a serem atingidos, os meios para tais fins e as con-
sequências da adoção duma certa linha de conduta.
Tal racionalidade é própria duma maneira de pensar as relações
entre homens e natureza, por um lado, e homens entre si, por ou-
tro. Essa maneira de pensar visa principalmente à dominação da
natureza e ao acrescimento do saber e da riqueza (ou seja, das duas
formas fundamentais de relação com a natureza individuadas já
por Hegel: trabalho intelectual e trabalho material).

A modernidade se caracteriza, por um lado, pela tentativa de


conhecimento total da natureza e, por outro, pela exploração to-
tal dela. Por isso, nela a ciência se põe a serviço da economia,
oferecendo os instrumentos tecnológicos para a dominação da
natureza e para um aumento sempre maior da produção e da
produtividade.

Ora, para Weber, o que caracteriza o sistema econômico típico


da sociedade moderna, isto é, o capitalismo, não é somente esse Ascese intramundana
aumento da produção e da produtividade, mas, sobretudo, a ideia Ascese é uma atitude
de renúncia ao mundo
de que a riqueza criada por tal processo deva ser imediatamente e seus prazeres, tomada
reinvestida a fim de criar nova riqueza. Longe de aproveitar sua habitualmente visando a
uma redenção de caráter
riqueza, o capitalista deve – pelas regras do capitalismo – dedicar- religioso (como no caso
se somente à reprodução do capital e obrigar os trabalhadores a do budismo ou do próprio
cristianismo). Tal atitude é
investir todas as suas forças nessa empreitada. intramundana se o asceta,
em vez de afastar-se dos
Desse ponto de vista, o modelo de vida dominante no capita- outros (como no caso dos
lismo é uma forma de ascese intramundana, cujas raízes Weber eremitas ou de certos gurus
encontra no protestantismo e, particularmente, no calvinismo. ou sábios budistas), segue
vivendo normalmente,
O etos luterano e calvinista leva os indivíduos a exercer um con- mas com uma atitude de
destaque perante todos
trole incessante sobre si mesmos, não somente do ponto de vis- os prazeres e sucessos
ta espiritual, mas também daquele da conduta de vida cotidiana. mundanos.
O surgimento da Sociologia Moderna ◆ 69

O fiel calvinista conduz uma rigorosa contabilidade da alma, fa-


zendo cada noite um balanço do seu dia nos moldes da contabi-
lidade dos negócios: ele presta conta de cada ação no contexto da
economia da salvação. Além disso, o exercício da própria profis-
são é a maneira na qual o indivíduo realiza sua vocação (o termo
alemão Beruf significa ao mesmo tempo “profissão” e “vocação”) e
glorifica Deus. Na ótica calvinista de predestinação, Deus já deci-
diu quem será salvo e quem será danado; os indivíduos podem só
esperar encontrar indícios do favor divino em sua vida; o sucesso
mundano nos negócios é um deles. Portanto, a riqueza é um signo
da graça divina e a pobreza, da danação.
Esse etos contribui de maneira decisiva, segundo Weber, ao
nascimento do capitalismo moderno. Enquanto Durkheim insis-
te sobre a organização externa da produção e da troca capitalista,
Weber coloca, no centro da sua explicação, o espírito capitalista
oriundo daquele protestante. É esse novo espírito que caracteriza o
processo de racionalização típico do capitalismo: racionalização
do tempo e da vida cotidiana (na ótica do ditado “o tempo é di-
nheiro”: os indivíduos devem aproveitar o seu tempo em maneira
produtiva, sem abandonar-se ao ócio e ao lazer), racionalização da
ciência (possuem valor científico somente as hipóteses demons-
tráveis empiricamente), racionalização da relação com a natureza
(objeto de exploração por meio das novas tecnologias) e até da
imagem de Deus (que deixa de ser visto como um ser que inter-
vém diretamente no mundo e é relegado a uma dimensão pura-
mente transcendente e inalcançável).
Isso leva a um processo que Weber denomina de “desencanta-
mento do mundo”: este último é visto somente do ponto de vista
racional-instrumental do conhecimento científico, da dominação
técnica e da exploração econômica; e perde seus aspectos mágicos,
poéticos e misteriosos. Dessa maneira, porém, ele perde o sentido
para os indivíduos. Com a perda do elemento religioso originário
e com o consequente desencantamento do mundo, a dominação
deste último se torna um fim em si mesmo, e o processo de racio-
nalização atinge todas as esferas e todos os aspectos da vida huma-
na: ciência, economia, técnica, política.
70 ◆ Filosofia Política III

Weber observa, como já o Marx de O 18 Bru-


mário (ver anteriormente 1.3.1), que o Estado
se transformou num aparelho burocrático cada
vez mais autônomo, que obedece às suas pró-
prias regras, incompreensíveis para os indivídu-
os comuns, os quais se encontram presos assim
em “gaiolas de aço” que limitam sua liberdade.
O processo de racionalização ameaça resul-
tar, portanto, numa perda de liberdade e num
aumento da irracionalidade, já que os instru-
mentos pelos quais os indivíduos pensavam al- Cena do filme Tempos Modernos, de Charlie Chaplin
(1936)
cançar seus fins (o sistema econômico, o Esta-
do, a técnica, a ciência) se tornam autônomos e obedecem a lógicas
contrárias àquela individual. Em suma: os instrumentos se tornam
fins em si mesmos e impossibilitam aos indivíduos realizar os fins
originários. Não é claro qual possa ser, para Weber, a solução para
esse problema. Em certos momentos, ele parece optar pela ideia de
que líderes políticos dotados de carisma possam provocar uma re-
volução nos valores e, portanto, dar um novo rumo aos caminhos
humanos (uma ideia clamorosamente desmentida pelos aconteci-
mentos sucessivos na Europa e no mundo). Ao fazer isso, ele releva
como o homem político contemporâneo deve obedecer a valores
diferentes dos tradicionais.

2.4.3 A política e o político


Na conferência Política como vocação (ou Política como profissão,
dependendo de como se traduza o termo Beruf), de 1919, Weber
analisa a figura do político como profissional da política. Ele co-
meça por definir o Estado moderno como “uma comunidade hu-
mana que, dentro dos limites de determinado território [...], reivin-
dica o monopólio do uso legítimo da força física” (WEBER, 1993, p.
56). O Estado é a fonte do direito à violência e, portanto, a política
pode ser definida como “o conjunto de esforços feitos com vista a
participar do poder”, de usar a força física (WEBER, 1993, p. 56).
Em consequência dessa definição, o homem político é aquele
indivíduo que “aspira ao poder – seja porque o considere como
instrumento a serviço da consecução de outros fins, ideais ou ego-
O surgimento da Sociologia Moderna ◆ 71

ístas, seja porque deseja o poder ‘pelo poder’, para gozar do senti-
mento de prestígio que ele confere” (WEBER, 1993, p. 57). Ora, há
políticos que se “entregam” à política não meramente em busca de
interesses pessoais, mas porque se sentem “chamados” a realizar
uma obra e a viver para tal profissão (Weber alude mais uma vez à
ambiguidade do termo Beruf).
Weber reconstrói a história da formação do Estado moderno
precisamente a partir da tentativa, por parte de homens políticos
ambiciosos (reis e príncipes), de eliminar os poderes “privados”,
independentes (os aristocratas, as livres cidades, a Igreja) e de re-
duzi-los sob o seu poder. Nosso autor estabelece um paralelo en-
tre esse processo de monopolização do poder político com o sur-
gimento do capitalismo (que, por sua vez, implica a formação de
monopólios econômicos). Ora, é verdade que tal processo acaba
na formação dum Estado burocrático que exerce um poder impes-
soal (contrariamente ao poder pessoal dos monarcas absolutos da
primeira modernidade); mas os homens políticos que exercem a
atividade da política como vocação/profissão sabem servir-se des-
te poder impessoal para seus fins, graças a seu carisma.
Weber distingue o viver para a política do viver da política.
No primeiro caso, a política se torna o fim da vida do político, seja
porque este tem prazer em tal atividade, seja porque ele pode, por
meio dela, dedicar-se a uma causa que dá sentido à sua vida. No
segundo caso, a política é vista como uma fonte de renda, uma pro-
fissão como as outras. Ora, se exigimos que os políticos vivam ex-
clusivamente para e não da política, é inevitável que eles se recru-
tarão entre os indivíduos economicamente mais independentes e
mais ricos. Para evitar isso, assim como para evitar que os políticos
pensem somente em garantir seu bem-estar pessoal, é necessário
que a política lhes garanta “ganhos regulares e garantidos” (WE-
BER, 1993, p. 67). Em uma palavra: é necessário que os políticos
vivam da política, ainda que isso possa parecer uma degradação da
atividade política a mero trabalho.
Finalmente, Weber aponta três características do homem po-
lítico: paixão, sentimento de responsabilidade e senso da pro-
porção. Paixão significa aqui desejo de realizar algo, “dedicação
apaixonada a uma causa”. Para evitar que esta se transforme numa
72 ◆ Filosofia Política III

“excitação estéril”, ela deve ser acompanhada por um senso de res-


ponsabilidade e de proporção. Weber defende, portanto, uma ética
da responsabilidade contraposta a uma ética da intenção: o que
importa na ação política não é tanto a intenção, mas são as conse-
quências. O político não pode agir com base em ideais ou valores
abstratos sem levar em conta as consequências práticas da sua ação
sobre as pessoas governadas por ele. Também no âmbito moral We-
ber se revela, então, um realista preocupado com as consequências
da aplicação à práxis política e à realidade social de valores e ideais,
os quais – como vimos – constituem para ele os principais elemen-
tos que determinam a vida dos indivíduos e da sociedade.

Leituras recomendadas
Leia, de Max Weber, os dois escritos – Ciência como profissão e
Política como profissão. Como leitura complementar, recomenda-
mos A ética protestante e o espírito do capitalismo. De todos esses
escritos existem várias edições em português.

Reflita sobre
1. As diferentes atitudes dos três autores analisados neste capí-
tulo perante a sociedade industrial capitalista e seus proble-
mas. Quais são os aspectos de tal sociedade que suscitam seu
otimismo e quais os que suscitam seu pessimismo?
2. O século XIX é o século da confiança quase cega nas ciên-
cias exatas. Quais são as dificuldades em aplicar os métodos
destas à observação dos fenômenos sociais? Como nossos
autores tentam evitar tais dificuldades? Você acha que eles
conseguem fazer isso?
3. Quais aspectos do pensamento dos nossos autores os aproxi-
mam à filosofia política?
■ Capítulo 3 ■
A primeira metade do século
XX: o triunfo das massas

O objetivo deste capítulo é apresentar a


você a confrontação ideológica entre mar-
xismo e fascismo que dominou a primeira
metade do século XX. Particular atenção re-
ceberão alguns pensadores marxistas (Lênin,
Gramsci, Lukács, Escola de Frankfurt) e, so-
bretudo, Carl Schmitt, por causa da influên-
cia que ele ainda exerce sobre o pensamento
jurídico e político contemporâneo. Finalmen-
te, será apresentada a você a obra de Hannah
Arendt, que – embora se situe temporalmente
na segunda metade do século – constitui uma
reflexão sobre os acontecimentos terríveis que
abalaram a Europa e o mundo neste período.
A primeira metade do século XX ◆ 75

3.1 Introdução
Um exemplo disso se deu na A primeira metade do século XX foi marcada na Europa pela
Itália, onde Benedetto Croce,
representante do liberalismo
eclosão de duas guerras mundiais e pelos horrores do totalitarismo
clássico e burguês, foi preso nazista e staliniano. Do ponto de vista do pensamento político,
entre as duas partes em luta
à confrontação prática entre fascismo e comunismo corresponde
no seu país: o comunismo
(encarnado na figura de uma igual confrontação teórica, que acaba pondo praticamente de
Gramsci) e o fascismo, cujo lado os teóricos liberais. A causa principal disso deveria ser iden-
maior teórico, Giovanni
Gentile, apesar das diferenças tificada na pouca ou nula capacidade de o liberalismo oferecer res-
políticas, foi muito próximo postas aos problemas sociais que dominam esse período e de ele
do próprio Croce do ponto
de vista filosófico (ambos dirigir-se mais a uma elite burguesa culta e cosmopolita do que às
tentaram “revitalizar” o massas ou aos círculos nacionalistas (ainda que haja, sem dúvida,
idealismo hegeliano por
meio de sistemas filosóficos
um liberalismo nacionalista).
historicistas); como resultado,
Do ponto de vista da história política e do pensamento político,
na acirrada luta política
travada entre comunismo e porém, a época entre o final do século XIX e o começo do século
fascismo, a voz de Croce e dos XX foi marcada principalmente pela ascensão dum novo sujeito
autores liberais ficou
quase inaudível. político: a multidão ou massa. Até agora, as classes populares fo-
ram principalmente objetos de políticas decididas sem consultá-
las e instrumentos manipulados por outros atores (o monarca,
a Igreja, a aristocracia, a burguesia), que se serviram delas para
alcançar seus fins. Também quando a “plebe” pareceu conseguir
vitórias importantes (como em certas fases da Revolução Francesa
ou na Revolução de 1848) seu triunfo foi só aparente e resultou, na
realidade, no triunfo da burguesia. Na segunda metade do século
XIX, contudo, houve um processo de organização dos trabalhado-
res – figura na página a seguir – (em sindicatos antes, em partidos
76 ◆ Filosofia Política III

socialistas depois) – que tornou as classes populares um sujeito


político autônomo e um perigoso rival da burguesia na competi-
ção pelo poder político.

Tornou-se comum falar a


esse respeito de diferentes
gerações de direitos. Os
direitos de primeira e segunda
geração seriam os direitos
Imagem da greve geral de 1917, no Brasil. Essa greve estava relacionada ao movimento civis e políticos reclamados
anarquista, com o apoio da imprensa libertária. Essa manifestação dos operários, em São pelas revoluções burguesas
Paulo, foi considerada a mais longa e de maior alcance nacional. (da revolução inglesa de 1640
às revoluções francesas de
Os trabalhadores avançaram reivindicações importantes: por 1789, 1830 e 1848) e os de
terceira geração, os direitos
um lado, exigiam para si aqueles direitos civis e políticos que a bur- sociais (sobre esta distinção
guesia tinha proclamado como universais em suas revoluções, mas clássica, ver: MARSHALL,
do gozo dos quais ela tinha excluído a maioria da população; por 1967). Hoje há quem fale em
direitos de quarta geração, a
outro lado, reclamavam direitos que iam além das liberdades tradi- saber, os direitos ambientais
cionais e do direito de participação política: direitos que hoje são ou os direitos à paridade entre
os gêneros, à inclusão dos
chamados de direitos sociais e que dizem respeito às possibilidades diversamente hábeis etc.
de gozar concretamente dos direitos formais garantidos pela lei.
As lutas sociais tiveram importantes consequências práticas e
teóricas. Por um lado, a reação da burguesia foi a de oscilar entre
repressão violenta (às vezes sangrenta, como no caso das revoltas
populares de 1848 ou da Comuna de Paris em 1871) e concessões
até amplas (como no caso da política social do chanceler alemão
Bismarck, que preferiu pôr a mão ele mesmo nas reformas sociais,
a fim de “domesticar” os movimentos operários).
Quando a ameaça de uma revolução socialista se tornou mais
concreta (no primeiro pós-guerra, depois do sucesso da revolução,
A primeira metade do século XX ◆ 77

na Rússia), a burguesia passou decididamente a apoiar movimen-


tos políticos de extrema direita com função antissocialista. Por ou-
tro lado, os teóricos e líderes marxistas se depararam com uma
classe trabalhadora interessada mais em melhorar suas condições
de vida e de trabalho atuais do que em revolucionar a sociedade.
Em consequência disso, surgiu, no seio do marxismo, uma divi-
são entre revolucionários e reformistas, como veremos. Nessa óti-
ca, contudo, os trabalhadores foram considerados mais uma vez
uma massa a ser manipulada para alcançar o poder: isso vale para
Lênin e sua teoria do partido como vanguarda (ver abaixo 3.1.1)
como para Mussolini ou Hitler. O triunfo da massa não significa,
então, a vitória do proletariado, muito pelo contrário. Ao mesmo
tempo, esse fenômeno mudou radicalmente a maneira de se fazer
e de se pensar a política, como salienta Hannah Arendt (ver 3.4).

3.2 O marxismo e o problema da falta


de consciência de classe
Na segunda metade do século XIX, a teoria marxiana acabou
por tornar-se a teoria dominante no contexto dos vários movi-
mentos revolucionários e operários, relegando, a segundo plano, o
anarquismo e outras teorias socialistas. O pensamento de Marx foi
objeto duma série de interpretações e de adaptações da doutrina
básica às diferentes realidades nacionais ou aos novos tempos.
Podemos, portanto, dizer que a teoria marxiana deu lugar a
uma corrente de pensamento autônomo, o marxismo, que abrigou
pensadores e ideias diferentes, ainda que ligados pela aceitação de
alguns pressupostos teóricos básicos como: a divisão fundamental
da sociedade em capitalistas e proletários, a visão da história como
história da luta entre as classes, a teoria da mais-valia, a crítica do
capitalismo e das formas de vida por ele criadas, o ideal da substi-
tuição da sociedade capitalista por uma comunista. Há, contudo,
divergências importantes sobre a maneira pela qual este último
fim deveria ser atingido.
As divergências se manifestaram quando Marx ainda estava
em vida, por exemplo, em ocasião da fundação na Alemanha do
78 ◆ Filosofia Política III

partido social-democrático (1875), cujos líderes defendiam posi-


ções que o próprio Marx considerava excessivamente moderadas
e cripto-burguesas (MARX, 1875). O debate sucessivo se desen-
volveu principalmente entre os revolucionários e os reformistas
(como podemos observar na polêmica entre Karl Kautsky e Edu-
ard Bernstein), ou seja, entre os que seguiam acariciando a ideia
de uma revolução proletária iminente e os que preferiam chegar
a uma sociedade socialista por meio de reformas graduais, come-
çando pela extensão do direito de voto e por uma legislação traba-
lhista mais simpática com as exigências dos proletários.
Ao longo do tempo, contudo, veio à tona claramente, no proleta-
riado, a falta daquela consciência de classe que Marx e os marxistas
consideravam condição necessária para qualquer mudança social,
revolucionária ou gradual. Uma das causas disso residiu, com cer-
teza, na própria natureza do capitalismo, que, apesar de suas crises
(inclusive gravíssimas, como a de 1929), demonstrava-se mais vital
do que Marx tinha pensado, tornando mais improvável seu fracas-
so final e mais remota a possibilidade duma revolução social.
A falta duma consciência de classe e as transformações do ca-
pitalismo na era do imperialismo passaram, portanto, a estar no
centro da reflexão teórica marxista, já que elas colocavam novos
desafios para o movimento socialista. Veremos como os diferentes
autores que serão considerados aqui oferecem diferentes respostas
a essas duas questões.

3.2.1 Lênin: entre teoria e ação


revolucionária
O russo Vladimir Ilitch Ulianov, mais conhecido pelo apelido
de Lênin (de e sobre Lênin, ver ZIZEK, 2005), tomou posição so-
bre ambas estas questões. No escrito Que fazer?, de 1902 (LÊNIN,
1902), Lênin reconhece que o proletariado está ainda longe de ter
desenvolvido uma consciência de classe que o possa levar a fazer a
revolução. Na leitura de Lênin, as lutas operárias da época eram, em
primeiro lugar, lutas sindicais que visavam a um melhoramento das The Announcement of
condições de vida e de trabalho, mas não a uma revolução social. the Soviet Government
(O anúncio do governo
Isso resulta num progressivo emburguesamento do proletariado, o soviético) de Vladimir Serov,
de 1918.
A primeira metade do século XX ◆ 79

qual deixa de perceber seus interesses como sendo radicalmente


opostos àqueles dos capitalistas. A consciência política de classe
trabalhadora só poderia ser trazida de fora, já que não era realista
esperar que os proletários a desenvolvessem autonomamente. Essa
tarefa cabia, então, não ao sindicato (que, como vimos, só pensava
em melhorar a situação dos trabalhadores, não em transformar a
sociedade), mas a um partido revolucionário. Este representaria a
vanguarda da classe operária e deveria guiar as massas na luta pelo
1
A transformação do
capitalismo nacional em
poder e pelo estabelecimento da sociedade comunista.
capitalismo imperialista foi
considerada também por Rosa
Sobre a questão das transformações do capitalismo e do surgi-
Luxemburg, conhecida, no mento do imperialismo, Lênin oferece uma contribuição clássica
Brasil, como Rosa Luxemburgo na obra O imperialismo, fase superior do capitalismo,1 de 1916.
(1870-1919), na sua obra A
transformação do capital, de Ele parte de um duplo diagnóstico relativo ao capitalismo de seus
1913 (LUXEMBURG, 1983). tempos: em primeiro lugar, ele constata como o mecanismo da
livre concorrência tenha resultado paradoxalmente na formação
2
“Não nos encontramos de enormes monopólios2 (o paradoxo, na realidade, é só aparente,
já em presença da luta da já que este fenômeno é consequência direta do espírito concorren-
concorrência entre pequenas
e grandes empresas,
cial e da lógica capitalista); em segundo lugar, ele aponta para a
entre estabelecimentos primazia do capitalismo financeiro sobre o produtivo3 (isto tam-
tecnicamente atrasados e
bém é consequência da própria lógica capitalista, já que nela o que
estabelecimentos de técnica
avançada. Encontramo-nos interessa é o aumento do capital, não da produção de mercadorias,
perante o estrangulamento, que é vista como instrumento do primeiro).
pelos monopolistas, de todos
aqueles que não se submetem Ora, uma vez chegado à sua fase monopolista, o capitalismo se
ao monopólio, ao seu jugo, à
sua arbitrariedade” transformou em imperialismo: os capitais procuraram novos mer-
(LÊNIN, 1916, p. 17) cados e novas áreas de expansão e isto levou a uma divisão do
globo entre os grandes atores globais, isto é, os cartéis internacio-
3
“O desenvolvimento do nais e os estados mais poderosos. A consequência foi a formação
capitalismo chegou a tal de uma classe de rentiers, de pessoas que vivem de rendas graça à
ponto que, ainda que a
produção mercantil continue
especulação financeira e à exploração das colônias, sem produzir
‘reinando’ como antes, e seja nada, mas fazendo com que enormes riquezas confluam no seu
considerada a base de toda país. Portanto, no final, não são somente os rentiers que vivem de
a economia, na realidade
encontra-se já minada e os maneira parasitária, mas inteiras nações, a saber, os países colo-
lucros principais vão parar nialistas, com o resultado de que o mundo inteiro fique “dividido
nas mãos dos ‘gênios’ das
maquinações financeiras” num punhado de Estados usurários e numa maioria gigantesca de
(LÊNIN, 1916). Estados devedores” (LÊNIN, 1916, p. 90).
80 ◆ Filosofia Política III

Podemos afirmar, portanto, que a análise de Lênin representa


uma atualização e uma integração do diagnóstico marxiano rela-
tivamente à expansão do capitalismo no nível global.

Mais discutíveis são suas considerações acerca do papel do par-


tido como vanguarda e acerca da falta duma verdadeira consciên-
cia de classe no proletariado. Esses assuntos são os objetos de re-
flexão entre os autores marxistas depois da tão esperada revolução
comunista ter finalmente acontecido na Rússia (justamente com a
contribuição fundamental de Lênin e em conformidade com sua
teoria da ação partidária) e ter levado a uma ditadura de partido.
Entre os autores principais que se puseram a questão do desenvol-
vimento duma consciência de classe por parte do proletariado (e
das dificuldades ligadas a esse processo) estão o italiano Antonio
Gramsci e o húngaro György Lukács.

3.2.2 Gramsci e a teoria da hegemonia


cultural
Antonio Gramsci foi o fundador do Partido Comunista Italia-
no, que, no pós-guerra, foi o maior partido comunista do Oci-
dente. Perseguido pelo regime de Mussolini, morreu em conse-
quência das debilitações sofridas nas prisões fascistas, sem deixar
obras sistemáticas, mas um conjunto de escritos sobre vários as-
suntos (entre outros: o Risorgimento italiano (figura da próxima
página), o papel dos intelectuais, Maquiavel, o papel da literatura
na vida política dum país).
Tais escritos foram reunidos e editados entre 1948 e 1951 pela
editora italiana Einaudi, com o título Cadernos do cárcere. (Novas
Antonio Gramsci (1891-1937)
edições foram editadas em 1975 e em 2007, sob a organização de Fonte: http://tinyurl.com/
Valentino Giarratana (tradução portuguesa em GRAMSCI, 1999- AntonioGramsci
2002, sobre Gramsci, ver COUTINHO, 1999 e GRUPPI, 2000).
Também por causa do contexto em que foi escrita, essa obra de
Gramsci não apresenta uma teoria sistemática, mas trata muitas
vezes de questões ligadas à situação política do momento ou à pró-
pria prática política. Daí a definição do pensamento gramsciano
como “marxismo aberto” (The Open Marxism of Antonio Gramsci
A primeira metade do século XX ◆ 81

Os Estados italianos em 1859: em


preto o Reino de Sardenha, em Reino de Sardenha (em preto) em
branco o Reino das Duas Sicílias, em O Reino de Sardenha depois da
1860 depois da anexação da
cinza os Estados Pontifícios, em Expedição dos Mil, depois denomi-
Lombardia, do Grão-ducado da
verde escuro o Reino Lombardo- nado Reino de Itália (1861).
Toscana, dos Ducados emilianos e
Vêneto e em verde claro o Grão- da Romanha pontifícia.
ducado da Toscana e os Ducados de
Parma e de Modena.

O Reino de Itália em 1866 depois da O Reino de Itália em 1870 depois da O Reino de Itália em 1919 depois da
Terceira Guerra de Independência. conquista de Roma. Primeira Guerra Mundial.

(Mapas do processo de unificação da Itália) Com o termo Risorgimento se indica o período entre 1815 e 1870 no qual se deu a
gradual unificação da Itália como Estado nacional.

foi o título de uma das primeiras traduções de escritos gramscia-


nos para o inglês, publicada em 1957 com a organização de Carl
Marzani (MARZANI, 1957; ver também HALL, 1986.)) com refe-
rência a este caráter assistemático da obra gramsciana, mas tam-
bém ao fato de nosso autor ter-se deixado inspirar não somente
por Marx, mas também por outros autores marxistas (Labriola) e
não marxistas (Hegel, Sorel, o próprio Croce).
82 ◆ Filosofia Política III

O objeto central do pensamento gramsciano é o fato de as


classes trabalhadoras terem se deixado seduzir pela propaganda
fascista: um assunto que estará no centro também da reflexão de
Adorno e Horkheimer, como veremos. Não se trata dum mero
“emburguesamento” do proletariado, como aquele denunciado
por Lênin (ver 3.1.1), mas duma tomada de posição contrária aos
próprios interesses, na ótica marxista. O problema, mais uma vez,
é a dificuldade de o proletariado desenvolver uma consciência de
classe adequada. A análise gramsciana se caracteriza pela renún-
cia a uma visão meramente econômica nos moldes da ortodoxia
marxista encarnada pela Segunda Internacional. Desse ponto de
vista, podemos identificar dois elementos nos quais emerge a dis-
tância entre Gramsci e o marxismo ortodoxo.
O primeiro diz respeito à teoria do conhecimento. Segundo
Gramsci, nosso conhecimento da realidade é sempre determinado
historicamente e resulta duma competição entre diferentes inter-
pretações e visões de mundo. Não é possível, em outras palavras,
assumir um ponto de vista neutro (o de um observador externo)
para descrever uma realidade objetiva, como o supunham as ciên-
cias exatas (Este pressuposto hoje não é mantido nem sequer para
estas últimas, ou os defensores da ideia dum marxismo científico
em sentido positivista). Para nosso autor, conhecemos a realidade
somente pondo-a em relação ao ser humano, o qual é um sujeito
histórico em devir; o conhecimento da realidade e a própria reali-
dade estão sempre em devir. O próprio marxismo não representa
uma exceção nesse sentido: ele também, como todas as outras teo-
rias, é expressão dum contexto social e histórico particular.
Na visão de Gramsci, diferentes teorias oferecem diferentes in-
terpretações do mundo; estas podem resultar numa crítica das re-
lações de poder existentes (como no caso do marxismo) ou numa
defesa delas (ou podem ignorar simplesmente tais relações, fingin-
do que não sejam relevantes para ela). Essa ideia duma luta entre
diferentes teorias ou interpretações da realidade é fundamental
para entender o papel central que Gramsci atribui aos intelectuais
e para entender seu conceito de hegemonia.
Para nosso autor, um intelectual não é simplesmente alguém que
exerce uma atividade intelectual (assim como quem sabe cozinhar
A primeira metade do século XX ◆ 83

dois ovos ou remendar um rasgo dum casaco não é, por isso, um


cozinheiro ou um alfaiate, para citar dois exemplos oferecidos pelo
próprio Gramsci), mas se define com base na função que ele exerce
na sociedade (por exemplo, um cientista ou um jornalista etc.).
Em primeiro lugar, cada intelectual possui uma relação (que
Gramsci denomina de “orgânica”) com uma classe social, ainda
que haja alguns que negam isto: estes são os intelectuais tradicio-
nais (como os eclesiásticos ou os outros grupos que, no passado,
foram ligados à classe aristocrática, no gozo de certos privilégios e
do poder), os quais se consideram independentes. Mas, como no
caso das teorias neutras mencionadas anteriormente, a presumida
neutralidade representa quase sempre uma maneira de apoiar o
status quo, ainda que sem a consciência de está-lo fazendo.
Em segundo lugar, cabe distinguir entre intelectuais que exer-
cem uma atividade criadora nas ciências, nas artes, na filosofia etc. e
intelectuais que se limitam a “administrar” o patrimônio intelectu-
al existente (por exemplo, professores ou divulgadores científicos).
Ora, os intelectuais orgânicos podem ter uma dupla função: eles
podem contribuir e manter a hegemonia social duma certa classe,
ou podem criticar tal hegemonia (neste sentido, Gramsci consi-
dera o partido comunista como um “intelectual coletivo”, anti-he-
gemônico, que deveria operar pela educação política da massa).
O conceito de hegemonia apresenta vários níveis. Em primeiro
lugar, ele se refere à hegemonia econômica e política duma classe
social; como da burguesia. Em segundo lugar, refere-se aos apare-
lhos ideológicos que asseguram tal hegemonia em termos de jus-
tificação e legitimação. Os dois níveis nem sempre vão juntos: é
possível uma transformação nas relações econômicas de base sem
que haja mudanças no nível ideológico, ou uma transformação das
superestruturas sem mudanças nas relações da base econômica
(Gramsci introduz, neste contexto, a noção de revolução passiva).
A luta pela hegemonia pode resultar num conflito explosivo, como
no caso da revolução russa, ou num conflito demorado, no qual as
frentes parecem quase imóveis (Gramsci utiliza, neste contexto, os
termos de guerra de movimento e guerra de posição, referindo-se
à experiência da Primeira Guerra Mundial).
84 ◆ Filosofia Política III

O conceito de hegemonia serve a Gramsci para oferecer uma


leitura da relação entre sociedade civil e Estado, mais diferenciada
daquela do marxismo ortodoxo (este é o segundo elemento de di-
ferença anteriormente mencionada). Longe de ser meramente um
instrumento para a realização dos interesses da burguesia, o Esta-
do possui sua autonomia (como em parte já tinha reconhecido o
Marx de O 18 Brumário).
Ao mesmo tempo, contudo, o Estado tende a invadir âmbitos
próprios da sociedade civil, em particular a intervir pesadamente
na esfera econômica; a sociedade civil, por sua parte, se apoia em
medida sempre maior sobre esta ação de intervenção do Estado,
interiorizando as estruturas de poder estatais. Gramsci introduz o
conceito de Estado integral para indicar essa penetração recíproca
das duas esferas (que pertencem à superestrutura: a sociedade civil
em questão não é a base econômica das relações de propriedade).
O Estado é, sim, primeiramente, o conjunto de instituições que se
ocupam em criar leis e implementá-las, mas, para manter seu po-
der, ele não se baseia somente no uso da força, mas também duma
hegemonia cultural que vai além da simples legitimação (demo-
crática ou não). A própria sociedade civil, por sua vez, interioriza
elementos repressivos e de coação próprios do Estado (como a co-
erção exercida pela opinião pública ou pelas convenções).
A classe dominante, portanto, não se serve
meramente dos aparelhos repressivos do Es-
tado para manter seu poder, mas também de
instituições que lhe garantem a hegemonia
cultural: a escola, a universidade, a mídia etc.
(Gramsci cita até a toponomástica).
Para os intelectuais contra-hegemônicos, in-
clusive para o partido enquanto intelectual co-
letivo, a luta pela hegemonia passa por todos es-
tes lugares e, no caso duma “guerra de posição”, O fato de ruas ou praças (ou escolas, teatros etc.) terem
implica um lento processo de ocupação deles, o nome de determinadas figuras públicas, torna estas
últimas respeitáveis e dignas de memória e, portanto,
mas deve acompanhar-se de uma análise cui- aceitáveis suas ações (pensem nas cidades que, no Brasil,
dadosa da situação social: da estrutura objetiva trazem o nome de ditadores militares: de Castelo Branco a
Médici, mas também a própria Florianópolis; não admira
(as relações de propriedade, o nível de desen- que neste contexto seja possível minimizar publicamente
volvimento das forças de produção etc.), das re- os crimes da ditadura e chamá-la até de “ditabranda”).
A primeira metade do século XX ◆ 85

lações de força no âmbito político (a ausência ou a presença duma


consciência de classe entre os trabalhadores) e até das relações de
força no âmbito militar, já que, quando o domínio hegemônico aca-
bar, a classe dominante ainda pode dispor do aparelho repressivo
do Estado. Por isso, Gramsci denomina sua posição de filosofia da
práxis, já que nela teoria e práxis estão indissoluvelmente ligadas.
As experiências do fascismo e do nazismo demonstraram que o
proletariado estava ainda longe de ter desenvolvido a consciência
de classe necessária para compreender que seus interesses se opu-
nham de maneira essencial àqueles da burguesia e que a luta não
poderia reduzir-se a ter como objetivo somente melhorias salariais.
Além disso, também nos países onde não surgiu uma ditadura
de direita, a burguesia conseguiu manter sua hegemonia cultural
convencendo os trabalhadores de que a democracia representativa
seria a mais justa forma de governo e que estaria no interesse de
todos os cidadãos mantê-la forte. Um clássico exemplo de estraté-
gia hegemônica burguesa consiste em convencer as outras classes
Traços dessa estratégia se de que os interesses dela são, “na realidade”, os interesses de todos
encontram ainda hoje na
ideia de que os interesses ou representam o verdadeiro interesse comum. A questão domi-
dos empresários e da nante do pensamento político contemporâneo, a da relação entre
indústria coincidem com
os interesses do país inteiro Estado e sociedade civil, encontra em Gramsci uma das respostas
quando a realidade nem mais originais.
sempre comprova isto (se é
verdade que uma política A teoria do Estado integral permite repensar tal relação sem cair
de incentivos à indústria
e à economia privada em
numa dicotomia que impeça de entendê-la corretamente e que po-
geral pode criar emprego e deria até possuir um caráter ideológico (como no caso dos teóricos
bem-estar difuso, é também
neoliberais que minimizam o papel do Estado para a economia, re-
verdade que, frequentemente,
o Estado é chamado a cobrir duzindo-o a mero guardião de contratos quando, na realidade, não
economicamente os gastos há sistema econômico complexo que possa sustentar-se sem ele).
provocados pela empresa
privada, sem participar de Ao mesmo tempo, tal teoria mostra como a luta pela conquista
seus ganhos, como aconteceu
em muitos países em ocasião do poder não passa somente pela violência (pelo ataque ao palácio
da crise de 2008/2009). de Inverno, para usar uma expressão gramsciana que alude à revo-
lução russa), mas também pela conquista das cidadelas nas quais a
classe dominante exerce seu predomínio ideológico. A ideia de que
essa luta possa ser longa (uma guerra de posição) obriga a repensar
o papel do partido operário, que não pode ser somente um partido
revolucionário, mas deve ser capaz de oferecer às classes populares
86 ◆ Filosofia Política III

uma ideologia alternativa àquela burguesa dominante e de produzir


intelectuais orgânicos próprios (possivelmente provenientes do seio
da própria classe operária, e não meros burgueses “convertidos”).
O rígido determinismo economicista do marxismo ortodoxo é
recusado em nome duma visão mais complexa (e mais próxima
à realidade) do papel das superestruturas institucionais e ideoló-
gicas e de sua relativa autonomia perante a base das relações de
propriedade. O interesse da análise se desloca da mera dimensão
econômica para aquela das formas de vida características da so-
ciedade capitalista. Este é o centro da obra do jovem Lukács e da
Escola de Frankfurt.

3.2.3 Lukács e a Escola de Frankfurt


A trajetória intelectual de György Lukács se estende por muitas
décadas, passando por diferentes posições teóricas e políticas. Nes-
te contexto, consideraremos unicamente a obra História e consci-
ência de classe, de 1923. Outros textos relevantes desse autor são as
obras de teoria e crítica literária, como A alma e as formas (1911) e
Teoria do romance (1916); as obras dedicadas à análise das relações
da filosofia clássica alemã com o contexto econômico, social e po-
lítico de seu tempo e da época sucessiva (por exemplo, de sua in-
fluência no surgimento do nazismo), como O jovem Hegel (1948)
György Lukács (1885-1971)
e A destruição da razão (1954); assim como a extensa e inacabada Fonte: http://tinyurl.com/
Ontologia do ser social (sobre Lukács, ver ANTUNES; REGO, 1996 gyorgylukacs

e NOBRE, 2001). A obra em análise aqui exerceu uma influência


profunda sobre muitos autores marxistas (em particular sobre os
membros da Escola de Frankfurt, inclusive sobre Habermas, que
pertence à “segunda geração” de tal Escola) e já que é nela que
Lukács introduz o conceito de reificação, que até hoje é usado por
muitos teóricos (por exemplo, ver HONNETH, 2005).
O ponto de partida de Lukács é uma polêmica distinção en-
tre o método presumidamente científico das ciências positivas
e o método dialético. Enquanto as primeiras afirmam basear-se
sobre uma descrição neutra dos fatos, o método dialético parte da
ideia de que não existem fatos puros, dados desde sempre, mas
de que eles possuem um caráter histórico, mais precisamente (so-
A primeira metade do século XX ◆ 87

bretudo no caso dos fatos econômicos e sociais) de que eles são


“produtos de uma época histórica determinada: a do capitalismo”
(LUKÁCS, 2003, p. 74).
O método dialético enxerga justamente esse caráter histórico e
o processo de formação dos fatos: “no método dialético a rigidez
dos conceitos (e dos objetos que lhes correspondem) é dissolvida”
(LUKÁCS, 2003, p. 67). Para explicar o caráter histórico dos fenô-
menos sociais e de sua conceitualização, Lukács cita aqui Marx:
“Um negro é um negro. Somente em certas condições torna-se um
escravo. Uma máquina de tecer algodão é uma máquina de tecer
algodão. Somente em certas condições ela se torna capital” (apud
LUKÁCS, 2003, p. 85).
A tentativa de descrever tais fatos como algo imutável ou natu-
ral implica num fetichismo próximo ao da mercadoria descrito por
Marx. Tal fetichismo é dominante na sociedade capitalista e impe-
de que as relações econômicas, que formam a base dela, sejam vis-
tas como relações entre homens, passando a ser consideradas como
relações necessárias e naturais, entre coisas. Destarte, as categorias
econômicas estarrecem e perdem seu caráter histórico e dinâmico.

Somente os conceitos tornados “fluidos” pelo método dialético


permitem a compreensão da realidade como totalidade historica-
mente determinada, pela ação recíproca de objeto e sujeito, e não
como dimensão objetiva imutável – externa ao sujeito, como que-
rem as ciências naturais tradicionais, que – contrariamente à visão
dialética – recusam-se em reconhecer as contradições inerentes à
realidade como algo essencial a ela (apud LUKÁCS, 2003, p. 78).

O conceito de totalidade não aponta, portanto, a uma elimina-


ção dos contrários na unidade, a uma identidade indiferenciada,
mas mantém em si as oposições e as considera no contexto histó-
rico (trata-se, portanto, duma totalidade determinada nos moldes
da dialética hegeliana). Para que a totalidade da sociedade se torne
visível, é necessário, contudo, que entre em cena um sujeito cole-
tivo específico, a saber, o proletariado, pois tal conhecimento da
totalidade é irrenunciável para ele:
88 ◆ Filosofia Política III

Para o proletariado, conhecer com a máxima clareza sua situação de clas-


se é uma necessidade vital, uma questão de vida ou morte; porque sua
situação de classe só é compreensível quando toda a sociedade pode ser
compreendida [...]. Do ponto de vista do proletariado, o autoconhecimen-
to coincide com o conhecimento da totalidade; ele é, ao mesmo tempo,
sujeito e objeto do seu próprio conhecimento. (LUKÁCS, 2003, p. 97).

Mas o proletariado não é um sujeito meramente passivo do


conhecimento da totalidade social. Ao conhecer tal totalidade e,
portanto, ao ganhar consciência de sua situação (isto é, ao ganhar
consciência de classe), ele se torna sujeito consciente da transfor-
mação dela, sujeito da revolução social.
O fato de as relações econômicas aparecerem no capitalismo
como algo natural e como relações entre coisas, e não entre pesso-
as, leva Lukács a introduzir o conceito de reificação. O ponto de
partida de Lukács é a análise do fetichismo da mercadoria efetuada
por Marx (ver 1.3.2) e ecoam as páginas que o jovem Marx ti-
nha dedicado ao conceito de trabalho alienado nos Manuscritos de
1844 (ver 1.1), que Lukács não conhecia, já que foram publicados
apenas em 1932.
Na moderna sociedade capitalista, a dominação da forma-mer-
cadoria chega a penetrar “no conjunto das manifestações vitais da
sociedade e a remodelar tais manifestações à sua própria imagem”
(LUKÁCS, 2003, p. 196), ao ponto que a mercadoria se torna a “cate-
goria universal de todo o ser social” (LUKÁCS, 2003, p. 198). Qual-
quer aspecto da vida social acaba sendo dominado pela lógica da
troca, tudo se torna mercadoria; portanto, tudo se torna coisa (em
latim: res, daí o termo português “reificação”), objeto possível de
troca, inclusive as relações humanas e a própria atividade humana,
que se apresenta ao ser humano como algo objetivo, separado dele.
Tudo é submetido a uma racionalidade calculadora que abstrai dos
momentos subjetivos e peculiares de tal atividade, operando a redu-
ção dela a trabalho abstrato objetivamente quantificável (LUKÁCS,
2003, p. 202). O homem aparece assim como máquina, não como
sujeito, “como parte mecanizada dum sistema mecânico que já se
encontra pronto e funcionando de modo totalmente independente
dele, e cujas leis ele deve se submeter” (LUKÁCS, 2003, p. 203).
A primeira metade do século XX ◆ 89

O resultado é uma atomização dos indivíduos que, além de


não se reconhecerem como sujeitos de sua atividade, perdem de
vista as relações humanas que subjazem a ela e a toda a realidade
social. Esse processo de reificação marca a sociedade capitalista e
a vida dos indivíduos nela.

A obra de Lukács influenciou profundamente a reflexão do gru-


po de pesquisadores reunidos no Instituto de Pesquisa Social de
Frankfurt (fundado em 1923), que se dedicou à análise de fenôme-
nos que podem ser definidos como fenômenos de reificação, em-
bora nem sempre estes autores utilizem o termo. Os membros do
Instituto provinham de diferentes âmbitos de pesquisa (entre eles,
havia sociólogos, economistas, juristas, filósofos, críticos literários
ou de arte) e o objeto de seus estudos era, numa palavra, a vida
na era do capitalismo moderno, isto é, a vida “reificada”, sujeita à
lógica da mercadoria. Nesse sentido, a análise que autores como
Adorno ou Horkheimer fazem de tal vida pode ser considerada
como uma forma de crítica ética do capitalismo (ver 1.3.2).
O projeto originário do Instituto de Frankfurt, mantido tam-
bém depois de o filósofo Max Horkheimer ter assumido sua dire-
ção em 1930, era inspirado por um materialismo interdisciplinar.
Também neste caso, como já aconteceu com Gramsci e Lukács,
assistimos a uma reação contra o economicismo dominante no
marxismo ortodoxo. Objeto de crítica é, novamente, a visão pela
qual a base econômica determinaria, de maneira automática, a su-
perestrutura (isto é, o direito, o Estado, a cultura duma sociedade).
Não somente Horkheimer reconhece uma maior autonomia da
superestrutura relativamente à base econômica, mas ele acrescenta
uma terceira instância, a saber, a estrutura da personalidade, que
opera como mediadora entre a base e a superestrutura.
As relações econômicas não se traduzem diretamente em fe-
nômenos culturais ou em normas jurídicas; a forma em que isso
acontece depende, antes, da maneira como os indivíduos se socia-
lizam e formam sua personalidade. Para dar um exemplo: a atitude
de conformismo e obediência passiva que caracterizava a popula-
ção nos estados totalitários é explicada pelos frankfurtianos, que
90 ◆ Filosofia Política III

recorrem a Freud e à sua teoria psicológica, como expressão dum


Eu fraco, que, por sua vez, é consequência duma educação autori-
tária que suscita, nas crianças, temor e dependência dos pais.
Nessa ótica, não é possível reduzir todos os fenômenos sociais
às relações econômicas que lhes subjazem, mas é necessário levar
em conta vários aspectos (econômicos, psicológicos, educacionais
etc.). Por isso, segundo Horkheimer, é necessário que “filósofos,
sociólogos, economistas, historiadores, psicólogos se reúnam em
grupos de trabalho permanentes” a fim de elaborar novos métodos
de pesquisa social. (HORKHEIMER, 1988, p. 29)
A questão central a ser analisada dessa perspectiva interdiscipli-
nar é a relação
(...) entre a vida econômica da sociedade, o desenvolvimento psíquico
dos indivíduos e as transformações nos âmbitos culturais em sentido
estrito, dos quais fazem parte não somente os conteúdos espirituais das
ciências, da arte e da religião, mas também o direito, os costumes, a
moda, a opinião pública, o esporte, as formas de diversão, o estilo de
vida, etc. (HORKHEIMER, 1988, p. 29).

Conforme esse programa, os membros do Instituto de Pesquisa


Social efetuaram inúmeras pesquisas empíricas, particularmente
sobre a relação entre família e autoridade e sobre o caráter auto-
ritário como consequência dum certo tipo de educação. Também
depois de sua emigração para os EUA, em consequência da to-
mada de poder pelos nazistas, os frankfurtianos não deixaram de
realizar pesquisas desse tipo (por exemplo, sobre a nova mídia, em
particular sobre rádio e cinema). Mas, com o passar do tempo, a
atenção de Adorno e Horkheimer, que eram as figuras centrais do
Instituto, dirigiram-se a questões não imediatamente empíricas,
mas teóricas e filosóficas, em sentido estrito.
Nos anos de exílio nos EUA, os dois pensadores escreveram jun- Sobre a Escola de Frankfurt,
tos sua obra mais conhecida, Dialética do Esclarecimento, publica- ver JAY, 2008, NOBRE, 2004, e
WIGGERSHAUS, 2002; sobre
da em 1947, que representa um ponto de chegada de suas pesqui- Adorno, ver SELIGMANN-SILVA,
sas e (para Adorno) um ponto de partida para novos caminhos 2003, e TIBURI, 1995; sobre a
Dialética do Esclarecimento,
teóricos que, contudo, não serão discutidos aqui. A questão da ver DUARTE, 2002.
qual nossos autores partem é “descobrir por que a humanidade,
em vez de entrar em um estado verdadeiramente humano, está se
A primeira metade do século XX ◆ 91

afundando em uma nova espécie de barbárie” (HORKHEIMER;


ADORNO, 1985, p. 11).
Os avanços técnicos deveriam ter tornado possível uma huma-
nização da produção e uma vida melhor para todos, mas acabou
tornando o homem ainda mais escravo do seu trabalho (um traba-
lho, aliás, que o embrutece cada vez mais); e tal avanço tecnológico
não corresponde a um avanço moral ou político, já que os homens
parecem incapazes de sair do antigo mecanismo perverso da guer-
ra e do ódio (ou do antissemitismo).
Em seu diagnóstico, os dois autores juntam, por assim dizer,
Weber com Lukács. Do filósofo húngaro, retomam a noção de rei-
ficação, do primeiro a noção de uma razão finalisticamente inte-
ressada na dominação da natureza, que eles denominam de razão
instrumental.
Contrariamente a Weber, contudo, eles não consideram o triunfo
desta última como sendo uma característica exclusiva da moder-
nidade; Horkheimer e Adorno procuram antes, na antiguidade, a
origem da racionalidade instrumental e da dominação da natureza.
Esta última se apresenta ao homem como algo externo e ameaçador
que ele tenta reduzir sob o seu controle ao torná-la uma coisa, um
objeto do seu trabalho, mas também do seu saber. O mito representa
precisamente uma tentativa de explicar, de forma coerente, a nature-
za e seus mistérios assombradores; portanto, ele é já esclarecimento
e tentativa de racionalização. Ao mesmo tempo, o esclarecimento,
que se apresenta como uma tentativa de superar a arbitrariedade e
irracionalidade do mito, acaba, por sua vez, tornando-se mito: “o
mito já é esclarecimento e o esclarecimento acaba por reverter à mi-
tologia” (HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p. 15).
A tentativa de substituir a imaginação do mito pelo saber do
entendimento leva ao triunfo da técnica, que é “a essência deste
saber” e que acaba submetendo o próprio homem, pois a única
coisa que lhe importa é dominar completamente a natureza, não
dar um sentido ao mundo e à vida humana (como em parte ainda
acontecia no mito): “o que não se submete ao critério da calcula-
bilidade e da utilidade torna-se suspeito para o esclarecimento”
(HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p. 21).
92 ◆ Filosofia Política III

Assim, o esclarecimento, ao pretender reduzir tudo a essas duas


categorias, ao não admitir que algo escape de sua lógica, torna-se
“totalitário” (HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p. 22). Mas, se o
esclarecimento é totalitário, isso vale para qualquer doutrina ou
sistema de pensamento:
O esclarecimento é totalitário como qualquer outro sistema. Sua inverda-
de não está naquilo que seus inimigos românticos sempre lhe censura-
ram: o método analítico, o retorno aos elementos, a decomposição pela
reflexão, mas sim no fato de que para ele o processo está decidido de
antemão. [...] Através da identificação antecipatória do mundo totalmen-
te matematizado com a verdade, o esclarecimento acredita estar a salvo
do retorno do mítico. [...] O pensar reifica-se num processo automático
e autônomo, emulando a máquina que ele próprio produz para que ela
possa finalmente substituí-lo. (HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p. 37).

O próprio pensamento se transforma assim “em coisa, em ins-


trumento” com fins que visam à dominação do mundo. O proces-
so de reificação descrito por Lukács se torna aqui total e perpassa
toda relação do homem com a natureza, com o pensamento e con-
sigo mesmo:
o preço da dominação não é meramente a alienação dos homens em
relação aos objetos dominados; com a coisificação do espírito, as pró-
prias relações dos homens foram enfeitiçadas, inclusive as relações de
cada indivíduo consigo mesmo (HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p. 40).

Não se há somente a dominação do homem sobre os outros ho-


mens, mas também sobre si mesmo: o indivíduo se torna, aos pró-
prios olhos, um objeto separado, um instrumento para a realização
de fins impostos exteriormente pela lógica da razão calculadora
e utilitária, que invade assim cada espaço, rechaçando qualquer
outra lógica. O próprio processo de formação do Eu é marcado
por essa tentativa de dominação de si, quer historicamente (o pa-
radigma mitológico desse doloroso processo é Ulisses com suas
peregrinações, analisadas no “Excurso I: Ulisses ou Mito e Escla-
recimento”), quer no nível da formação pessoal, na infância dos
indivíduos, que repete, de certa forma, tal processo (emerge aqui e
ao longo do texto a influência de Freud).
Dessa maneira, “o espírito torna-se de fato o aparelho da domi-
A primeira metade do século XX ◆ 93

nação e do autodomínio” (HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p.


46). Numa página que antecipa toda a obra de Foucault e as análi-
ses de Hannah Arendt sobre a sociedade de massa, os dois autores
concluem:
Quanto mais complicada e mais refinada a aparelhagem social, econô-
mica e científica, para cujo manejo o corpo já há muito foi ajustado pelo
sistema de produção, tanto mais empobrecidas as vivências de que ele
é capaz. [...] Pela mediação da sociedade total, que engloba todas as re-
lações e emoções, os homens se reconvertem exatamente naquilo con-
tra o que se voltara a lei evolutiva da sociedade, o princípio do Eu: meros
seres genéricos, iguais uns aos outros pelo isolamento na coletividade
O economista Friedrich governada pela força. [...] São as condições concretas do trabalho na so-
Pollock, que colaborou ciedade que forçam o conformismo [...]. A impotência dos trabalhadores
com o Instituto de Pesquisa
Social, utilizou na posição não é mero pretexto dos dominantes, mas a conseqüência lógica da
dos monopólios o termo sociedade industrial. (HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p. 47).
“capitalismo de Estado” e
o conceito de “economia Expressão mais adequada da lógica de domínio própria da ra-
planificada”, que, em seguida,
cionalidade instrumental é, portanto, o capitalismo, em particular
foram aplicados somente
em relação aos países do o capitalismo monopolístico, no qual o mercado e o Estado são tão
chamado Socialismo Real. Na profundamente entrelaçados a ponto de formar um único comple-
leitura de Pollock, contudo,
também nos países ocidentais xo todo-dominante, que lembra o Estado integral de Gramsci: o
é necessário que o Estado “Estado autoritário”, que se ocupa de regulamentar as inevitáveis
intervenha pesadamente na
economia para garantir o crises do sistema capitalista, intervindo, por um lado, nos merca-
funcionamento do sistema. dos, e fortalecendo, por outro, a posição dos monopólios.
O Estado autoritário se baseia no uso da força, mas também no
fato de que os indivíduos submetidos ao seu domínio não somente
não se revoltam, mas não veem razão alguma para a revolta, pois
sua visão do mundo é manipulada pela mídia e por aquilo que
nossos dois autores denominam de indústria cultural, cuja tarefa
principal é, portanto, criar no público certa atitude que, ainda que
seja “parte do sistema”, é apresentada como uma “desculpa” pela or-
ganização deste último (HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p. 115).
O resultado, além da padronização e da produção em série dos
produtos culturais (das obras de arte às de diversão), é o de formar
sujeitos padronizados, que compartilham os mesmos gostos e a
mesma maneira de desfrutar seu lazer (assistindo todos aos mes-
mos filmes, ouvindo as mesmas canções de sucesso, admirando as
mesmas celebridades do cinema etc.).
94 ◆ Filosofia Política III

Os produtos culturais padronizados (aos quais hoje poderíamos


acrescentar as novelas, os programas televisivos, os jogos para com-
putador) têm a função de apresentar ao espectador uma visão do
mundo pré-estabelecida e que não deixa espaço à fantasia ou a refle-
xão. O espectador é adestrado a “curtir” o produto e a não pensar, de
tal modo que se chega a uma “atrofia da imaginação e da espontanei-
dade do consumidor cultural [...]. Os próprios produtos [...] parali-
sam essas capacidades [...], proíbem a atividade intelectual do espec-
tador” (HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p. 119), particularmente
usando uma linguagem rápida (como aquela das propagandas ou de
muitos filmes atuais), que não deixa tempo para refletir e transforma
o espectador em consumidor passivo de imagens e sons.
Até a cultura “elevada” se torna mera ocasião de diversão: a mú-
sica erudita é adaptada como música popular (um bom exemplo
disso hoje são os músicos que fazem easy listening ou cross-over,
como Andrea Bocelli, André Rieu ou Keith Garrett), a arte concei-
tual ou de difícil compreensão é abandonada em prol duma arte
de fácil consumo ou da arte clássica reduzida a mero evento (por
exemplo, nas grandes exposições que atraem milhares de visita-
dores, que, contudo, nem sempre dispõem dos instrumentos con-
ceituais para entender as obras que estão admirando). O contato
com a cultura é reduzido a ocasião de lazer e diversão, em vez de
representar, para o sujeito, uma experiência estética genuína que

Easy listening
Easy listening é o nome inglês para o estilo de música orquestrada, que
surgiu na década de 50 e que teve como precursores Ray Conniff, Burt
Bacharach, Paul Mauriat, Percy Faith, Annunzio Paolo Mantovani, Franck
Pourcel, Bradley Joseph, entre outros. Também conhecida como “lounge
music”, é geralmente vista por parte dos críticos como música estritamen-
te comercial e de fácil audição, por seu estilo melodioso – daí sua denomi-
nação “easy listening”, que pode ser traduzido como audição fácil. Desse
modo, sempre fez enorme sucesso junto ao público, vendendo milhões de
discos, e suas apresentações públicas chegavam a lotar as casas de espe-
táculos, além de influenciar inúmeros músicos de gerações posteriores e
o próprio desenvolvimento dos estilos musicais. Suas raízes estão nas Big
Bands dos anos 30 e 40, de onde se originou a maioria de seus intérpretes,
onde atuavam como instrumentistas ou como arranjadores.
A primeira metade do século XX ◆ 95

lhe dê um diferente acesso ao mundo. Esse processo de banaliza-


ção da cultura é até indicado como democratização dela, já que,
para entender uma canção de sucesso ou uma obra de arte trivial,
por exemplo, uma sonata de piano de Beethoven ou Schönberg,
uma pintura de Kandinsky ou de Iberé Camargo não é necessária
a competência técnica e cultural.
A ideologia da indústria cultural é o negócio;
qualquer produto cultural se torna, portanto,
objeto de comércio, inclusive os produtos que
criticam a própria indústria cultural e a lógica
da sociedade capitalista e consumista (pense
no enorme êxito comercial de artistas críticos
do sistema, como Damien Hirst ou os rappers).
A força da indústria cultural é a de submeter à
sua lógica também os que pretendem subtrair-
se a ela. Nesse sentido, ela também tende a ser
The Physical Impossibility Of Death In the Mind Of Someone
Living (A impossibilidade física da morte na mente de totalitária, pois tende a englobar qualquer ma-
alguém vivo), de Darmien Hirst. A imagem é a de um nifestação cultural.
enorme tubarão numa vitrine cheia de formaldeído. Essa
obra foi vendida em 2004 como a segunda obra mais cara Ora, o fato de a diversão apresentar o caráter
de um artista em vida, custando dez milhões de dólares.
Fonte: http://tinyurl.com/2d8eb69 duma reprodução padronizada dos mesmos
produtos culturais faz com que ela se torne um
prolongamento do trabalho, já que reproduz o caráter mecânico e
alienante deste:
Ela é procurada por quem quer escapar ao processo de trabalho meca-
nizado, para se pôr de novo em condição de enfrentá-lo. Mas, ao mes-
mo tempo, a mecanização atingiu um tal poderio sobre a pessoa em
seu lazer e sobre a sua felicidade, ela determina tão profundamente a
fabricação das mercadorias destinadas à diversão, que esta pessoa não
pode mais perceber outra coisa senão as cópias que reproduzem o pró-
prio processo de trabalho. [...] O espectador não deve ter necessidade
de nenhum pensamento próprio, o produto prescreve toda reação [...].
Toda ligação lógica que pressuponha um esforço intelectual é escrupu-
losamente evitada (HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p. 128).

A indústria cultural leva, portanto, o espectador (o consumidor)


a não pensar em alternativas possíveis e lhe apresenta seu mundo
como o único mundo possível, quando não como um paraíso (na
propaganda, nos seriados televisivos, em muitos filmes). Ela é uma
96 ◆ Filosofia Política III

“apologia da sociedade”, já que “divertir-se significa estar de acor-


do” (HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p. 135). Nela o indivíduo é
ilusório, “o que domina é a pseudo-individualidade” (HORKHEI-
MER; ADORNO, 1985, p. 144), pois qualquer tentativa de opor-se
à sociedade é condenada ou, como se disse, imediatamente engoli-
da pela própria indústria cultural.
Nessa negação da individualidade, contudo, a indústria cultural
desvela “o caráter fictício que a forma do indivíduo sempre exibiu
na era da burguesia”, já que “todo personagem burguês exprimia,
apesar de seu desvio e graças justamente a ele, a mesma coisa: a
dureza da sociedade competitiva”. A liberdade era só aparente e se
reduzia à liberdade de perseguir seus fins privados numa ótica de
competição com os outros. O sujeito burguês está “afinal dispen-
sado do esforço da individuação pelo esforço [...] da imitação”, e a
indústria cultural oferece justamente os modelos a serem imitados
(HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p. 145). Daí ao fascismo e ao
nazismo o passo é curto e simples demais.

A sociedade capitalista é, portanto, uma sociedade totalitária,


apesar da fachada das instituições liberais e democráticas, já que
não permite ao indivíduo viver outra vida que a proposta pela
indústria cultural. Na sociedade totalitária, falta aos sujeitos a
consciência de que as coisas poderiam ser diferentes; nela do-
mina a ideia que hoje em dia é indicada pelo acrônimo T.I.N.A.
(“There Is No Alternative”, ou seja, “Não há alternativa”).

Desse ponto de vista, as análises de Horkheimer e Adorno man-


têm uma atualidade assustadora. Não devemos, contudo, inter-
pretar sua crítica à razão instrumental e ao esclarecimento como
uma crítica à racionalidade tout-court. O problema é, antes, que o
racionalismo do esclarecimento se converte no seu contrário: na
irracionalidade da barbárie fascista, que se serve das mais avan-
çadas tecnologias para praticar seus crimes, e na irracionalidade
duma sociedade capitalista, na qual os avanços tecnológicos, longe
de aliviar a vida das pessoas, tornam o trabalho e a vida privada
cada vez mais alienados.
A primeira metade do século XX ◆ 97

3.3 Conservadorismo e fascismo


O fim da Primeira Guerra Mundial foi marcado na Alemanha
e na Itália por graves transtornos sociais. A Itália tinha saído ven-
cedora da guerra, mas teve que renunciar a boa parte dos ganhos
territoriais prometidos pelos seus aliados, levando os nacionalistas
a reclamar da “traição” por parte das democracias liberais (França
e Inglaterra) e a falar em “vitória mutilada”. Nos anos sucessivos
ao fim da guerra, os movimentos operários travaram lutas áspe-
ras contra os padrões, levando a uma série quase ininterrupta de
greves (não é por acaso que Sorel se tornou um dos autores mais
estudados pelos teóricos esquerdistas da época). Chegou-se rapi-
damente a violentas confrontações entre milícias comunistas e na-
cionalistas que levaram o país à beira da guerra civil.
Nesse contexto de descontentamento nacionalista e de violên-
cia política, Benito Mussolini (um ex-socialista) fundou o Partido
Fascista, que, em poucos anos, recebeu o apoio dos industriais (que
se serviam das milícias fascistas para reprimir violentamente as
greves), assim como dos pequenos burgueses e dos proprietários
da terra (que temiam uma revolução social e uma redistribuição
das terras). Com o apoio decisivo da monarquia, Mussolini tomou
o poder e instaurou a primeira ditadura fascista da história; outras
lhe seguiram no resto da Europa (Hungria, Áustria, Espanha, Por-
tugal e, naturalmente, Alemanha) e no Mundo (Perón, na Argenti-
na, e Vargas, no Brasil, admiravam Mussolini e se inspiraram nele
para suas políticas populistas).
Mas a crise mais violenta depois da guerra se deu na Alemanha,
onde, em consequência da deposição do Kaiser e da proclamação
da república, houve várias revoluções comunistas. A de Berlim foi
reprimida sangrentamente pelo exército a pedido do novo governo
republicano social-democrático (nessa ocasião, Rosa Luxemburg
foi barbaramente morta pelos nacionalistas, junto a Karl Liebk-
necht e outros políticos esquerdistas). Aqui, como sucessivamente
em Munique (onde a revolução teve, por um breve tempo, êxito
melhor e levou à criação duma república soviética), as tropas regu-
lares foram auxiliadas por milícias de extrema direita, verdadeiras
antecipações das SA e das SS nazistas. A república liberal instaura-
98 ◆ Filosofia Política III

da durante essa fase tumultuada da história alemã (a chamada Re-


pública de Weimar; nome da cidade na qual se reuniu a assembleia
constituinte) nasceu fraca, tendo que enfrentar a hostilidade da
direita nacionalista (convicta de que a guerra tivesse sido perdida
por causa da covardia dos burgueses e da traição dos operários) e
da esquerda revolucionária (que esperava imitar os bolcheviques
russos), mas também da burguesia que deveria apoiá-la.
A crise econômica e o altíssimo nível de desemprego que per-
turbaram o país no final dos anos 20 criaram o chão ideal para o
populismo nacionalista de Hitler, que mobilizou o antissemitismo
presente na sociedade alemã, apontando os judeus como a única
causa dos males da Alemanha. O resto é tristemente conhecido.

3.3.1 O Estado totalitário: Gentile como


teórico do fascismo 1
Giovanni Gentile (1875-
1944) Fonte: http://tinyurl.
O fascismo italiano encontrou seu maior teórico no filósofo com/GiovanniGentile
neo-hegeliano Giovanni Gentile1. Conforme ele afirma no escrito
A doutrina do fascismo2, esse movimento tem caráter espiritual e 2
O escrito foi publicado
na Enciclopédia Italiana,
antimaterialista, já que considera o indivíduo como sendo inseri- em 1932, como se fosse de
do num “contexto maior” do que ele, a saber, a nação – que forma Mussolini, mas de fato foi
uma unidade espiritual que inclui também as gerações passadas. redigido por Gentile.

Na visão de Gentile, o fascismo “vê a vida como luta, pensando


que cabe ao homem conquistar algo que seja digno dele [...]. Daí
o grande valor da cultura em todas suas formas – arte, religião,
ciência – e a importância enorme da educação. Daí também o va-
lor essencial do trabalho, com o qual o homem vence a natureza e Gentile foi ministro da
educação do governo fascista
cria o mundo humano (econômico, político, moral e intelectual)” e autor duma importante
(GENTILE, 1932). O fascismo não acredita “na felicidade neste reforma do currículo escolar.

mundo” e é “contra a vida confortável”. O hegelismo de Genti-


le aparece claro no momento em que ele considera o indivíduo
como essencialmente ligado à família, à sociedade, à nação (que
aqui coincide com o Estado) e à história. Em relação a esta última,
Gentile afirma que “fora da história o homem é nada”.
O fascismo é explicitamente anti-individualista e, portanto, an-
tiliberal; é antidemocrático (ao recusar a noção de igualdade po-
lítica dos cidadãos) e antissocialista (já que, para ele, nada existe
A primeira metade do século XX ◆ 99

fora do Estado, nem indivíduos, nem grupos particulares, menos


ainda classes). Como escreve Gentile, “para o fascista, tudo é no
Estado e nada de humano e espiritual existe ou tem valor fora do
Estado. Neste sentido, o fascismo é totalitário”; e ainda: “para o
fascismo, o Estado é um absoluto, perante o qual indivíduos e gru-
pos são o relativo” (GENTILE, 1932). Eis teorizado o totalitarismo
O termo foi usado, pela como ideologia dum Estado que penetra em todos os aspectos da
primeira vez, por um opositor
do regime fascista, o político vida individual e social, privada e pública, material e espiritual;
Giovanni Amendola (que que, em suma, é “Estado ético”, para usar a expressão de Gentile:
morreu em consequência das
violências fascistas), o qual O Estado, assim como o fascismo o concebe e realiza, é um fato espiritu-
usou a expressão “sistema
totalitário” para referir-se al e moral, pois torna concreta a organização política, jurídica, econômi-
ao fascismo (num artigo ca da nação, e tal organização é, em seu nascimento e desenvolvimento,
publicado no jornal Il Mondo uma manifestação do Espírito. O Estado garante a segurança interior e
em 12 de maio de 1923).
exterior, mas é também quem guarda e transmite o espírito do povo
assim como este foi elaborado pelos séculos na língua, nos costumes,
na fé. O Estado não é somente presente, mas também passado e princi-
palmente futuro. [...] É o Estado que educa os cidadãos à virtude civil, os
torna conscientes de sua missão, os solicita à união; harmoniza seus in-
teresses na justiça; transmite as conquistas do pensamento nas ciências,
nas artes, no direito, na solidariedade humana; leva os homens da vida
elementar da tribo à máxima expressão humana de potência, a saber, ao
império. (GENTILE, 1932).

Esta última referência ao império aponta para outro ponto cen-


Mussolini era obcecado tral: o fascismo é contrário à ideia duma paz perpétua e recusa o
pela ideia de restaurar o
império romano; sua política pacifismo, “que esconde somente uma renúncia perante a luta e
expansiva levou à anexação uma covardia perante o sacrifício”. À recusa do pacifismo segue a
da Albânia e à conquista
da Abissínia depois duma exaltação da guerra: “Somente a guerra leva ao máximo nível de
guerra feroz, na qual as tensão todas as energias humanas e coloca um selo de nobreza aos
tropas italianas usaram
armas químicas (proibidas povos que possuem a virtude de enfrentá-la” (GENTILE, 1932).
pelo direito internacional) e
operaram chacinas entre a
Já que o Estado não admite o individualismo liberal, nem a ideia
população civil. de classes com interesses opostos, defendida pelo socialismo, e já
que recusa os princípios liberais, ele impede a formação de sindica-
tos autônomos que representem interesses de classe. É um Estado
corporativista, no qual os cidadãos são divididos em corporações
ligadas a determinadas atividades econômicas, no modelo das cor-
porações medievais e das associações profissionais hegelianas (ver
livro-texto Filosofia Política II).
100 ◆ Filosofia Política III

Na realidade, o Estado fascista italiano foi, em primeiro lugar,


uma potência imperialista, cujo governo apoiou os interesses dos
grandes capitalistas (começando pela família Agnelli, proprietária
da FIAT) e que, ao mesmo tempo em que introduzia uma legis-
lação trabalhista que fazia concessões relevantes para a vida dos
trabalhadores, negava a estes a possibilidade de organizar-se auto-
nomamente e perseguia com violência os opositores (com o exílio,
a prisão ou a morte). Como no caso do nazismo, apesar de definir-
se como movimento espiritual, o fascismo teve um efeito nefasto
sobre a cultura nacional, já que o regime não tolerava nenhuma
expressão cultural que não se adequasse aos ideais estéticos e polí-
ticos por ele impostos.

3.3.2 Civilização X cultura:


o antidemocratismo alemão entre
as guerras
A filosofia acadêmica alemã, anterior à Primeira Guerra Mun-
dial, é caracterizada pela insistência sobre questões como a contra-
posição entre materialismo ou positivismo, por um lado, e filosofia
dos valores, por outro; entre ciências naturais e ciências do espírito,
1
Thomas Mann (1875-
entre Zivilisation e Kultur – entendida, a primeira, como resultado 1955). Mann se tornou
da atividade esclarecedora da razão identificada com o Iluminismo um feroz opositor do
francês, e a segunda, como a expressão de forças espirituais profun- nazismo e foi obrigado a
deixar a Alemanha (mais
das e não racionais enraizadas na história de um povo. precisamente: foi impedido
de voltar depois duma
Essa contraposição culminou na adesão entusiástica da maio- viagem no exterior) Fonte:
ria dos intelectuais alemães à empreitada bélica de 1914, saudada http://tinyurl.com/2edh5ft
por muitos deles como o definitivo acerto de contas entre os dois
2
A referência aqui é ao
mundos espirituais encarnados pela França e pela Alemanha. Até seu irmão Heinrich Mann,
um escritor como Thomas Mann1, num escrito inacabado sobre autor, entre outras coisas de
polêmicos romances sobre a
Espírito e Arte, redigido nos anos de 1909 a 1912, escreveu com Alemanha depois de 1870,
respeito ao “espírito alemão”: como Professor Unrat e O
súdito, e de um polêmico
Este espírito, contudo, se afirmou e mostrou seu valor em poderosas ensaio sobre Zola em que
ações bélicas (na selva de Teutoburgo, a Wittenberg, nas Guerras de Li- exaltava esta típica figura de
intelectual engajado social e
bertação) contra o espírito romano-gaulês invasor. Negar isto, como o politicamente contrapondo-o
fazem certos radicais2, e exigir que a Alemanha se torne política e es- aos intelectuais alemães
piritualmente francesa, e que a essência alemã [deutsches Wesen] de- presos em sua torre de marfim.
A primeira metade do século XX ◆ 101

sapareça da face da terra em prol da humanité e da raison; fazer como


se o espírito alemão fosse o mais preguiçoso e menos revolucionário
do mundo e como se Lutero e Kant não valessem no mínimo quanto a
Revolução Francesa (alguns radicais acham isto mesmo) – é absurdo, já
não é política, mas ódio e xenofilia. (MANN, 2005, p. 40).

Emerge aqui a ideia de um Sonderweg, de um caminho peculiar


alemão, que levaria a Alemanha numa outra direção, inversamente
a outros países europeus, in primis (latim; significa “em primeiro
lugar”) a França, mas também a Inglaterra. Enquanto nestes países
triunfavam o liberalismo e a democracia representativa, o espírito
universalista da humanité e da raison iluministas, assim como fi-
losofias pragmáticas e materialistas, na Alemanha, a primazia foi a
1
Richard Wagner (1813-1883) filosofias mais idealistas (como o próprio Idealismo ou a mencio-
Fonte: http://tinyurl.com/ nada filosofia dos valores) e à ideia de uma comunidade popular e
RichardWagner
nacional originária, contraposta ao individualismo liberal e demo-
crático. Expressão característica desses ideais é o Romantismo na
sua versão alemã, que, para Mann, encontrou seu resultado sumo
em Richard Wagner1, o grande compositor de óperas que tinham
por inspiração a história e a mitologia alemãs.
De fato, se considerarmos as concepções políticas que Wagner
defendeu durante a chamada revolução liberal de 1848 (que, na Ale-
manha, fracassou completamente), encontramos a ideia de uma co-
munidade popular fortemente coesa e reunida ao redor da figura
de um monarca absoluto que encarna a unidade nacional. A coinci-
dência com a sucessiva visão schmittiana de democracia identidária,
com o povo reunido numa unidade compacta sob o mando de um
2
Frederico I da Germânia
(1122-1190) – também chefe que representa a totalidade da nação, não é casual e nos mos-
conhecido por Frederico tra, antes, de que tradição intelectual são filhos os próprios Wagner
Barba-roxa, Frederico
Barbarossa (ou simplesmente
e Schmitt, a saber, um certo tipo de Romantismo, mencionado ante-
o Barbarossa) e sob a forma riormente (ver 1.5). É o Romantismo que retoma em suas canções a
aportuguesada de Frederico
lenda popular do imperador Frederico Barba-Ruiva2, que, longe de
Barba-Ruiva – foi imperador
do Sacro Império Romano- ter morrido na cruzada, estaria dormindo no interior duma monta-
Germânico (1152-1190), rei nha encantada com seu exército, pronto a despertar quando chegar
da Itália (1155-1190) e, com
nome de Frederico III, duque o momento de defender o Império Alemão contra seus inimigos –
da Suábia (1147-1152, 1167- uma espécie de Sebastianismo de cunho alemão, em suma.
1168). Pertencia à poderosa
família dos Hohenstaufen Realmente, há uma continuidade entre o Fichte dos Discursos
(Staufen). Fonte: http://
tinyurl.com/BarbaRuiva à nação alemã, pronunciados para levantar o povo alemão con-
102 ◆ Filosofia Política III

tra o invasor francês, em nome da sua peculiar natureza espiritual,


e os teóricos do Sonderweg: democráticos alemães nacionalistas
do século XIX, como August von Fallersleben (o autor da letra
do Deutschlandslied, o hino que começa com o famigerado verso
Deutschland, Deutschland über Alles) e Rudolph Heym e conser-
vadores reacionários do século XX, como Carl Schmitt. O nacional-liberal Heym
criticava ferozmente Hegel
Em suma, a atmosfera espiritual da Alemanha ao longo do sé- por ser excessivamente
francês na sua teorização
culo XIX (a partir da invasão napoleônica e das Guerras de Liber- de um Estado burguês de
tação de 1813-1814) e na véspera da Primeira Guerra Mundial foi direito, preocupado em
garantir direitos que – na
marcada por uma forte hostilidade contra a França e a Inglaterra visão de Heym – fariam de
– hostilidade que tem suas raízes não tanto nos diferentes interes- cada alemão um indivíduo
separado da comunidade
ses políticos, econômicos e militares (embora no nível das rela-
do povo.
ções diplomáticas estes sejam naturalmente os únicos aspectos que
contém) quanto na mencionada contraposição entre o deutsches
Wesen, com seu Sonderweg, e o espírito das Luzes, particularmente
nos seus êxitos liberais.
Ora, a Constituição da República de Weimar representa, aos olhos
dos círculos políticos e intelectuais conservadores e nacionalistas,
uma concessão a tal espírito. Enquanto expressão dos valores libe-
rais identificados com as potências vencedoras da guerra, ela é vista
como uma imposição de valores não alemães ou até antialemães.
Nesse sentido, a feroz crítica schmittiana ao liberalismo representa,
mais do que uma obra de cunho teórico, um duro ataque político
às potências ocidentais e à própria constituição de Weimar. Quando
a frágil república weimariana cai, será justamente Carl Schmitt a
tornar-se um dos maiores teóricos e juristas do regime nazista.

3.4 Carl Schmitt


A figura de Carl Schmitt é uma das mais controvertidas da his-
tória do pensamento político, principalmente pelo seu apoio ao
regime nazista e por ter oferecido a base teórica para a reforma
do direito e do Estado, efetuada por este regime. Por essa razão,
depois da guerra, Schmitt foi afastado de qualquer atividade de
Carl Schmitt (1888-1985)
ensino, como Heidegger. Contudo, contrariamente a este último, Fonte: http://tinyurl.com/
Schmitt nunca recebeu a permissão para voltar ao ensino. CarlSchmitt
A primeira metade do século XX ◆ 103

Por outro lado, ele nunca deplorou publicamente seu compro-


metimento com o regime, antes: em seus escritos, atacou os Alia-
dos pelo processo de Nuremberg, no qual os chefes do regime ti-
nham sido condenados, já que, aos olhos de Schmitt, tal processo
seria somente um exemplo de “justiça dos vencedores”.
Apesar disso, Schmitt manteve uma grande influência no pensa-
mento jurídico alemão e internacional. Numa certa altura, houve
até uma “recuperação” do pensamento dele por parte da esquerda;
contudo, o interesse dos esquerdistas ia ao pensamento do últi-
mo Schmitt e a textos como O nomos da terra, no qual havia uma
tentativa de ler, de forma realista, o direito internacional, e não
ao Schmitt do período pré-guerra e a textos como O conceito do
político ou Teologia política, nos quais nosso autor criticava feroz-
mente a democracia liberal.
Cabe, portanto, distinguir pelo menos três períodos do pensa-
mento schmittiano: o do tradicionalismo católico e da teologia po-
lítica, o da crítica vitalista e existencial à democracia liberal e o do
realismo desencantado da teoria da nova ordem mundial.

3.4.1 Teologia política, soberania, estado


de exceção
O católico Schmitt se inseriu na tradição reacionária franco-ale-
mã de De Maistre ou Novalis. Na obra Catolicismo romano e forma
política, de 1923, ele apresenta a Igreja católica como sendo carac-
terizada pela forma política da representação: o papa representa a
unidade de todos os fiéis e suas decisões devem ser consideradas
como decisões da Igreja como totalidade. Encontram-se aqui duas
ideias centrais no pensamento sucessivo de Schmitt. Pela primei-
ra, um povo alcança unidade política ao ser representado por um
indivíduo, cujas decisões são eo ipso expressão da vontade popular
(no nazismo, isso se expressa no chamado Führerprinzip, pelo qual
cada decisão do Führer é lei). A segunda ideia é a de que “todos
os conceitos expressivos da moderna doutrina do Estado [como o
de representação – nota de A.P.] são conceitos teológicos seculari-
zados”, como afirma Schmitt em Teologia política, de 1921 (SCH-
MITT, 1996, p. 109). Isso significa que, para entender a organização
104 ◆ Filosofia Política III

política e jurídica duma época, é necessário analisar a imagem me-


tafísica do mundo por ela criada (SCHMITT, 1996, p. 116), como,
nos séculos XVI e XVII, à ideia dum Deus criador e construtor do
mundo correspondia a dum monarca legislador absoluto.
Destarte, há uma coincidência entre a afirmação, no século XIX,
duma metafísica sem Deus, inspirada numa ideia positiva de ci-
ência e de verdade; na recusa de qualquer ótica transcendente, e
duma concepção política, pela qual a legitimação do poder polí-
tico é imanente ao próprio povo. Todo conflito deve ser resolvido
pelo recurso ao direito positivo, e a soberania pessoal do rei é subs-
tituída por aquela impessoal, de cargos públicos eletivos. Schmitt
recupera aqui o pensamento de Donoso Córtés (ver 1.5) sobre a
necessidade de se opor contra qualquer instrumento de triunfo do
materialismo “metafísico e político”, de travar uma “batalha san-
grenta decisiva [...] entre o catolicismo e o socialismo ateu” (SCH-
MITT, 1996, p. 125). Esse autor compartilha essa visão e, como
Cortés, critica o liberalismo por “não se decidir nesta luta”. Daí a
ideia de que seja necessário recorrer a instrumentos excepcionais e
liberais para defender o Estado do ataque dos socialistas.
Inspirado pelo pensador espanhol, no livro A ditadura, de 1921,
Schmitt defende a ideia de que, quando o Estado se depara com ad-
versários que o ameacem, o recurso à ditadura se torna não somen-
te necessário, mas juridicamente legítimo. Nesse caos, o paradoxo
da violação da lei (pela ditadura) em nome justamente da defesa da
lei é somente aparente. Destarte, Schmitt pode chegar, em Teologia
política, à sua célebre definição de soberania, pela qual “soberano é
aquele que decide sobre o estado de exceção” (SCHMITT, 1996, p.
87). Nesse sentido, o conceito de soberania é um conceito-limite, já
que o estado de exceção não representa a normalidade. Por outro
lado, é justamente nesse caso-limite que se manifesta o traço essen-
cial do poder soberano, a saber, seu caráter decisório.
No Estado de direito não há como definir formalmente em
quais circunstâncias ocorre um caso emergencial; tal decisão cabe
precisamente ao soberano que, portanto, “se situa externamen-
te à ordem legal vigente, mas mesmo assim pertence a ela, pois
é competente para decidir sobre a suspensão total da Constitui-
ção” (SCHMITT, 1996, p. 88). Ora, segundo Schmitt, “todas as
A primeira metade do século XX ◆ 105

tendências do desenvolvimento do moderno Estado de direito são


no sentido de eliminar o soberano”, isto é, de formalizar a decisão
sobre o estado de exceção, determinando com clareza quando ela
deve ser tomada (SCHMITT, 1996, p. 88).
Contra essa visão formalista, na qual “quem deve deter o po-
der é o direito, não o Estado” (SCHMITT, 1996, p. 100), Schmitt
afirma que a ordem jurídica “baseia-se numa decisão e não numa
norma” (SCHMITT, 1996, p. 90) e que a decisão se distingue da
norma jurídica porque “para criar a justiça, ela não precisa ter jus-
tiça” (SCHMITT, 1996, p. 90).
No caso de situações excepcionais, nas quais não seja possível
aplicar as normas (“não existe norma aplicável no caos”, admoesta
Schmitt (1996, p. 90)), é preciso implantar de novo a ordem por
uma decisão que escapa às normas vigentes e não depende delas.
Soberano é justamente quem decide quando se dá tal situação ex-
cepcional. Portanto, a essência da soberania estatal não consiste
no monopólio da força ou do domínio, como acreditam muitos,
mas no monopólio da decisão (SCHMITT, 1996, p. 93). Em conse-
quência dessa visão, é possível suspender a constituição formal
para manter a constituição material, isto é, o Estado como unidade
de órgãos políticos e jurídicos.

3.4.2 As categorias de “amigo” e “inimigo” e


a crítica à democracia liberal
A crítica à visão formal de soberania leva Schmitt a criticar a
visão liberal do Estado. Ainda que, nessa fase, ele insista na centra-
lidade do Estado e de suas prerrogativas, Schmitt individua uma
dimensão precedente à existência dele como sendo decisiva. Por
isso, a obra O conceito do político (1a edição em 1927, 2a edição
em 1932) começa com a afirmação pela qual “o conceito de Estado
pressupõe o conceito do político” (SCHMITT, 1992, p. 43).
Para compreender o Estado, portanto, é necessário partir do po-
lítico. Com esse termo, referimo-nos a um âmbito determinado
por categorias específicas, como no caso da estética, da moral ou da
economia. Nestes últimos âmbitos, as categorias últimas específicas
são respectivamente belo e feio, bom e mau, útil e prejudicial (ou
106 ◆ Filosofia Política III

rentável e não rentável). No âmbito do político, a distinção especí-


fica é entre amigo e inimigo; nele, portanto, formam-se grupos de
associados que se definem ao diferenciar-se de outros grupos ou
indivíduos: “A diferenciação entre amigo e inimigo tem o sentido
de designar o grau de intensidade extrema de uma ligação ou sepa-
ração, de uma associação ou dissociação” (SCHMITT, 1992, p. 52).
A decisão sobre quem deve ser considerado inimigo é tomada
pelos próprios associados a fim de preservar sua associação. Trata-
se duma questão existencial: o que está em jogo aqui, para eles, é
“a preservação da própria forma de vida”; o inimigo “representa
a negação da sua própria forma de existência” e deve, portanto,
“ser repelido e combatido” (SCHMITT, 1996, p. 52). Não se tra-
ta, portanto, de conceitos metafóricos: eles devem ser tomados em
sentido existencial, pois eles implicam a “possibilidade real de ani-
quilamento físico” (SCHMITT, 1996, p. 52).
Nesse sentido, “a guerra decorre da inimizade, pois esta é a ne-
gação ontológica de outro ser” (SCHMITT, 1996, p. 59). Isso não
significa, contudo, que o político leve necessariamente à guerra.
“O político não reside na luta em si”, escreve Schmitt, mas “num
comportamento determinado por esta possibilidade real” (SCH-
MITT, 1996, p. 63).
Ora, ainda que aparentemente o político designe um âmbito ao
lado dos outros, de fato qualquer um dos outros âmbitos pode ser
marcado por contraposições que se deixam descrever recorrendo
à dupla categorial “amigo/inimigo”. Em outras palavras, conflitos
religiosos, econômicos, morais, podem tornar-se conflitos políti-
cos. Nesse sentido, tudo pode tornar-se político, e o Estado tornar-
se total, como já tinham salientado outros pensadores analisados
anteriormente.
A visão existencial do político, defendida por Schmitt, leva-o na-
turalmente a criticar a democracia parlamentar liberal, baseada na
ideia de que a política consiste na busca do consenso ou dum acordo
entre as partes. Segundo ele, “a evolução da moderna democracia de
massas transformou a discussão pública, argumentativa, numa sim-
ples formalidade vazia” (SCHMITT, 1996, p. 68), já que os partidos
modernos são na realidade “grupos de poder sociais ou econômi-
A primeira metade do século XX ◆ 107

cos” (SCHMITT, 1996, p. 68), que tentam impor seus interesses par-
ticulares (que são os dos seus eleitores). O argumento é substituído
pela “contabilização calculista dos interesses e das chances de poder”
(SCHMITT, 1996, p. 68) e a finalidade não é mais a “de convencer
o opositor de uma verdade ou de uma atitude correta, mas sim de
conquistar a maioria, para poder exercer o poder” (SCHMITT, 1996,
p. 68). As próprias massas dos eleitores são conquistadas por meio
duma propaganda, que apela a interesses e paixões imediatas, não a
argumentos racionais (SCHMITT, 1996, p. 68).
À democracia parlamentar liberal, Schmitt contrapõe uma vi-
são de democracia, que pode ser denominada de identidária, isto
Para uma crítica da é, a ideia de que a verdadeira democracia se dá quando o povo
democracia identidária, ver
AZZARITI, 2005. forma uma unidade étnica, política e culturalmente homogênea,
representada por um chefe. Se a democracia liberal leva à criação
dum Estado total, no qual a economia se serve da política para re-
solver seus problemas, a democracia identidária leva a outra forma
de Estado total, no qual a política toma o controle da economia.
Ingeborg Maus fala, nesse
respeito, de Estado total O Estado total é aquele que sabe distinguir amigo e inimigo
quantitativo, no primeiro caso, e não tolera divisões internas. Ele é expressão dum povo que se
e qualitativo, no segundo caso
(MAUS, 1976). caracteriza por uma homogeneidade substancial, que, contudo,
Schmitt não define claramente (em geral, Schmitt é muito eficaz
em suas críticas, menos na parte propositiva), fora a alusão a qua-
lidades físicas e morais não especificadas, mas que parecem re-
meter a uma visão étnico-racial da comunidade nacional altamen-
te problemática (sem considerar as consequências práticas de tal
visão, tragicamente visíveis na política nazista contra os judeus).
Em suma, Schmitt defende a ideia de que a comunidade política
se define com base numa presumida homogeneidade substancial e
pela distinção entre amigo e inimigo. Essa posição o leva a recusar
o legalismo das normas, a democracia parlamentar liberal e, natu-
ralmente, o pacifismo, como veremos.

3.4.3 Direito e ordem internacional


Já que as categorias específicas do político dizem respeito à di-
mensão existencial da sobrevivência duma comunidade, a guer-
ra (entendida como luta pela sobrevivência) possui, aos olhos de
108 ◆ Filosofia Política III

Schmitt, um caráter meramente existencial; não há, em outras pa-


lavras, guerras com caráter normativo, guerras justas ou moral-
mente justificadas.
Não há nenhuma meta racional, nenhuma norma, por correta que seja,
nenhum programa, por exemplar que seja, nenhum ideal social, ainda
que tão belo, nenhuma legitimidade ou legalidade que possam justi-
ficar que homens se matem mutuamente por eles. [...] Também não
se pode fundamentar nenhuma guerra com normas éticas e jurídicas.
(SCHMITT, 1992, p. 75).

Isso não implica uma recusa da guerra, antes leva à sua justifi-
cação como tentativa de afirmação duma “forma de existência” pe-
rante outra. A negação da justificação jurídica ou moral da guerra
significa, nesse caso, atribuir-lhe um caráter existencial e, finalmen-
te, decisionista, conforme a primazia que Schmitt atribui ao gesto
da decisão perante qualquer formalismo normativo. Se não existem
guerras justas, todas são justificadas enquanto formas de autoafir-
mação das comunidades que as iniciam. Nessa ótica, Schmitt nega
a possibilidade duma guerra que tenha a finalidade de punir um
inimigo injusto ou criminoso, assim como de qualquer intervenção
humanitária. Cabe citar a passagem em questão, pois ela oferece uma
argumentação ainda hoje usada pelos adversários desse conceito.
O conceito de humanidade exclui o conceito de inimigo, porque também
o inimigo não deixa de ser homem [...]. Quando um Estado luta contra seu
inimigo em nome da humanidade, não se trata de uma guerra da huma-
nidade e sim de uma guerra para a qual um determinado Estado procura
ocupar um conceito universal frente ao seu inimigo, para (às custas do
adversário) identificar-se com tal conceito, assim como se pode abusar da
paz, justiça, progresso e civilização, para reivindicá-los para si e negar que
existam no lado do inimigo. “Humanidade” é um instrumento ideológico,
especialmente útil, das expansões imperialistas, e em sua forma ético-
humanitária um veículo específico do imperialismo econômico. Aqui se
aplica, com uma modificação óbvia, uma palavra forjada por Proudhon:
“Quem diz humanidade, pretende enganar”. O emprego do nome da hu-
manidade, a apelação à humanidade, a confiscação desta palavra, tudo
isso só poderia [...] manifestar a terrível pretensão de que se deve denegar
ao inimigo a qualidade de homem. (SCHMITT, 1992, p. 81).

Schmitt reconstrói a maneira em que, na história europeia, a


guerra assumiu um caráter jurídico formal regulamentado por
A primeira metade do século XX ◆ 109

Ius ad bellum normas que estabeleciam não somente em que casos ela era legíti-
Ius in bello
As expressões ius ad bellum
ma (ius ad bellum), mas distinguiam também entre combatentes
e ius in bello indicam, e não combatentes, protegendo estes últimos da violência injustifi-
respectivamente, o conjunto cada e atribuindo direitos aos primeiros, em caso de rendição etc.
de regras e normas jurídicas
que estabelecem os casos em (ius in bello).
que uma guerra é legítima
formalmente (por exemplo, Ora, a Primeira Guerra Mundial marcou uma quebra com essa
estabelecendo a maneira em tradição, já que nela houve uma criminalização do inimigo, por
que ela deve ser declarada) e
materialmente (por exemplo, parte dos vencedores, e já que foi abolida (também pelos alemães)
estabelecendo que é legítimo a distinção entre combatente e não combatente (SCHMITT, 1992,
atacar preventivamente um
inimigo que se prepare a
p. 137). Isso aponta para uma transformação que investe não so-
atacar ou que a guerra só é mente a maneira de se fazer guerras, mas o próprio Estado e, ao
legítima como instrumento final, o mundo. Esse foi até agora um “pluriverso de estados”, isto é,
de defesa etc.) e que
regulamentam a conduta um mundo organizado em unidades territoriais. Os estados eram
das partes beligerantes, instâncias de ordem espacial que dividiam entre si a terra. Agora
inclusive dos soldados,
durante o conflito (por as coisas mudam.
exemplo, proibindo que seja
feita violência à população No livro Terra e mar (1942), escrito em forma de conto para
civil, que sejam usados sua filha Anima, Schmitt apresenta uma visão da história mundial
determinados tipos de
armas etc.).
como história do conflito entre potências marítimas e potências
terrestres. Não se trata, então, de estados que se contrapõem, mas
de diferentes formas de ordenar o espaço, cada uma das quais re-
Nomos presenta um diverso nomos, uma diversa ordem. Schmitt se refere
O termo grego nomos explicitamente à hegemonia inglesa sobre o mar, que tinha levado
significa lei, ordem.
à formação do império britânico. A ela se contrapõe a tentativa
alemã de alcançar a hegemonia sobre a terra, no continente euro-
peu (lembre-se de que o texto foi escrito durante a Segunda Guer-
ra Mundial, na qual Alemanha e Inglaterra se enfrentavam numa
luta total). Mas, na época atual, com as novas tecnologias, até a
distinção entre mar e terra perdeu sentido.
A nova ordem mundial marcou o desaparecimento do Estado
entendido como instância territorial, cuja função era justamente
ordenar o espaço. A forma-Estado chegou ao fim, a velha ordem,
simbolizada pelo império marítimo britânico, cedeu à nova or-
dem, que, no texto de 1942, foi simbolizada pelo Reich nazista e, no
livro O nomos da terra (publicado em 1950, depois da guerra e da
derrota alemã), por áreas supranacionais que Schmitt denomina
de Grossräume, de macroespaços, que substituíram, na substância
(ainda que não necessariamente na forma), os estados nacionais.
110 ◆ Filosofia Política III

O pluriverso de estados foi substituído, então, por um pluriver- Seria o caso de perguntar-se
so de macroespaços, que estabeleceram relações jurídicas entre se Schmitt teria recusado essa
possibilidade também no
si (as alternativas seriam a sobrevivência do direito internacio- caso em que a Alemanha
nal tradicional – que, contudo, tornou-se impossível pelo fim da tivesse vencido a guerra,
tornando-se de fato a
forma-Estado – ou a hegemonia duma potência mundial – que potência hegemônica.
Schmitt recusou).
O fim da ordem tradicional significou também o fim da guerra
tradicional. No pluriverso de macroespaços, o inimigo deixou de
ser somente representado por um exército de combatentes e assu-
miu a forma de combatentes irregulares, de guerrilheiros (ou, em
nossos dias, de terroristas), que geralmente praticam uma guer-
ra defensiva e são enraizados num território específico (por isso,
Schmitt fala de guerrilheiros “autóctones”, dotados dum caráter Com esse termo, indica-se
“telúrico”), mas que podem tornar-se agressivos no nível mundial, a posição de autores (por
exemplo, Thomas Pogge,
como – exemplo dado por Schmitt – no caso dos revolucionários Otfried Höffe ou o próprio
bolcheviques (ou dos terroristas contemporâneos). Não é possível Jürgen Habermas) que
defendem a ideia de que seria
fazer uma guerra tradicional contra esse tipo de guerrilheiros, já necessário fundamentar o
que ele incorpora perfeitamente a categoria ontológica do inimigo direito internacional (em geral:
com o qual nenhuma paz é possível. as relações internacionais)
sobre normas morais
As considerações de Schmitt sobre a figura do guerrilheiro, universais e sobre valores
como aqueles expressados
sobre a ideia de macroespaços e sobre a intervenção humanitá- nos direitos humanos (daí
ria foram retomadas por muitos autores contemporâneos, par- a eventual justificação de
intervenções que visem a
ticularmente numa ótica polêmica contra o cosmopolitismo proteger tais direitos).
normativo.
Em geral, contudo, a redução da política à dimensão existen-
cial e à contraposição entre amigo e inimigo é insatisfatória, pois
parece considerar somente um aspecto do fenômeno político. Fi-
nalmente, a polêmica contra a democracia parlamentar, em nome
duma concepção identidária da democracia, baseia-se sobre uma
visão duvidosa da comunidade política (o conceito de homogenia
substancial é bastante vago e, fundamentalmente, vazio).
Desse ponto de vista, admira bastante o sucesso que a obra de
Schmitt ainda encontra, quer no âmbito da teoria política, quer no
âmbito da teoria jurídica. Por outro lado, esse sucesso demonstra
que o pensador alemão conseguiu apontar para questões centrais e
ainda irresolutas (como a definição de soberania, a teoria do esta-
do de exceção e da ditadura, as novas formas de guerra).
A primeira metade do século XX ◆ 111

3.5 Hannah Arendt


Na história das teorias políticas, Hannah Arendt aparece como
uma pensadora que não se encaixa em nenhuma das tantas cor-
rentes teóricas (liberalismo, republicanismo, socialismo etc.), ain-
da que seu pensamento apresente características republicanas.
De família judaica, depois de ter estudado com Heidegger, dei-
xou a Alemanha quando os nazistas tomaram o poder. Depois
de ter passado alguns anos em Paris trabalhando numa organi-
Hannah Arendt (1906-1975) zação que ajudava os judeus a sair da Alemanha, emigrou para
Fonte: http://tinyurl.com/
hannaharendt1 os EUA, onde ficou até sua morte, tendo adquirido a cidadania
estadunidense.
Arendt não gostava de ser chamada de “filósofa” política e pre-
feria denominar-se cientista política, ainda que sua obra não siga
a metodologia típica da ciência política contemporânea e se insira
de fato na tradição política “realista” que nasce com Aristóteles.
Contudo, a recusa da denominação de “filósofa” corresponde à
polêmica arendtiana com aquele que, usualmente, é chamado de
platonismo político, a saber, com toda aquela tradição de pensa-
mento político que contrapõe, à realidade, modelos ideais que nela
deveriam ser realizados de maneira categórica (ver a introdução
ao livro-texto Filosofia Política II). O pensamento de Arendt se ca-
racteriza, pelo contrário, por uma grande atenção pela empiria,
pela realidade concreta da vida política, por seus mecanismos e
pela história política de sociedades reais.

3.5.1 O totalitarismo e a banalidade do mal


A experiência dos horrores nazistas foi objeto de muitos es-
tudos, logo após o fim da guerra. Sociólogos tentaram pesquisar
as causas sociais do sucesso do nazismo entre os alemães (como
William S. Allen, autor de A tomada nazista do poder, estudo base-
ado sobre uma pequena cidade alemã (ver ALLEN, 1965)); outros
pesquisadores recorreram à psicologia e à teoria freudiana para
explicar os mecanismos psicológicos que levaram pessoas nor-
mais a tornarem-se cúmplices de crimes horríveis (é esse o caso de
Adorno e Horkheimer, com seus estudos sobre o antissemitismo).
112 ◆ Filosofia Política III

Em seu livro As origens do totalitarismo, de 1951 (ARENDT,


1989), Arendt não pretende explicar as causas de tal fenômeno,
apesar do título, mas analisar seus traços característicos. Para ela, o
totalitarismo representa uma novidade em relação às formas tra-
dicionais de governo despótico e tirânico: ele não se limita a privar
os indivíduos da liberdade e a governá-los por meio do medo e da
força, mas lhes subtrai sua individualidade e sua personalidade,
reduzindo-os a membros duma multidão indiferenciada. Desse
ponto de vista, o totalitarismo representa a tentativa de tornar
supérflua a humanidade.
Arendt identifica três elementos do totalitarismo (aos quais são
dedicadas as três partes do livro). O primeiro é o antissemitismo,
que anula precisamente a individualidade de suas vítimas: o sim-
ples fato de ser judeus as torna “culpáveis”, independentemente de
qualquer ação ou característica pessoal.
O segundo elemento é o imperialismo na sua versão moderna
(colonialismo), particularmente quando for justificado por razões
raciais e racistas (necessidade de “civilizar” povos inferiores, natu-
ralidade do domínio da raça “superior”). Na parte dedicada à aná-
lise do imperialismo (no capítulo, sobre o fim do Estado-nação),
Arendt se ocupa da questão dos direitos humanos.
As guerras mundiais deixaram milhões de pessoas sem status
político (prófugos e apátridas). Ora, justamente por não serem ci-
dadãos de nenhum estado, mas simplesmente seres humanos, eles
deveriam ser titulares de direitos humanos; porém, na realidade, os
mesmos estados que reconheciam direitos aos próprios cidadãos
não estiveram dispostos a fazer o mesmo com esses indivíduos.
Contra a posição desses países, Arendt afirma que existe pelo me-
nos um direito humano, a saber, o direito a ter direitos – um direi-
Sobre esse tema,
to que, contudo, Arendt não consegue fundamentar de maneira ver LAFER, 1988.
convincente.
O terceiro elemento do totalitarismo é a específica forma de
dominação, que substitui a capacidade de agir autonomamente
pela obediência cega, o pluralismo dos indivíduos pelo coletivis-
mo da multidão. Essa forma de dominação é caracterizada pelo
uso do terror, que perpassa todos os aspectos da vida dos indiví-
A primeira metade do século XX ◆ 113

duos (num regime totalitário, as pessoas têm medo de todos: dos


vizinhos, dos amigos e até dos familiares; qualquer ação, qualquer
palavra, pode pôr a pessoa à mercê da violência do Estado).

O triunfo do totalitarismo se torna possível, contudo, graças à


afirmação das ideologias. Uma ideologia representa a pretensão
de explicar, de forma definitiva, a realidade (natural ou histórica).
Nesse sentido, ela oferece juízos que só esperam ser realizados
na prática (por exemplo, aquele que afirma que os judeus são um
corpo estranho na nação e, portanto, devem ser eliminados). A
ideologia é dogmática e não admite ser desmentida pela experiên-
cia ou pelos fatos (por exemplo, pelo fato de que não existem ra-
ças no sentido em que os teóricos racistas as definem; ou pelo fato
de que nem todos os judeus são poderosos e ricos, e nem todos
os homens poderosos e ricos são judeus). Um exemplo típico dos
efeitos da ideologia sobre os indivíduos foi descrito por Arendt,
alguns anos depois da publicação de As origens do totalitarismo.

Em 1961, em Israel, foi celebrado o processo contra Adolf Eich-


mann, um dos principais responsáveis pela organização material
da shoah, o extermínio dos judeus europeus pelos nazistas. Arendt
seguiu o processo como enviada da revista The New Yorker; suas
reportagens confluíram num livro que provocou muitas polêmi-
cas (sobre as quais, contudo, não falaremos aqui): Eichmann em
Jerusalém. Um relato sobre a banalidade do mal, publicado em 1963
(ARENDT, 1999).
No livro sobre o totalitarismo, Hannah Arendt tinha recorrido
ao conceito de mal totalitário, que se distingue do mal radical te-
orizado por Kant, pelo fato de não servir ao amor próprio ou às
inclinações humanas, mas de ter, como seu alvo, a humanidade – e
isso num duplo sentido: por um lado, porque ele destrói qualquer
possibilidade de interação entre os homens; por outro lado, porque
ele tenta destruir fisicamente os seres humanos, como demonstrado
pela Shoah. O aparelho mortífero dos campos de extermínios visava
justamente uma tal destruição. Seu objetivo não era o simples homi-
cídio em massa, mas a transformação das vítimas num material que
pudesse ser indiferentemente eliminado, queimado, sepultado ou
114 ◆ Filosofia Política III

transformado em sabão e em botões. A condição que permitiu aos


responsáveis por esse crime enorme perpetrá-lo era, segundo Aren-
dt, justamente essa desumanização, a transformação da pessoa em
coisa, a eliminação de qualquer característica humana nas vítimas.
Arendt censura os carrascos justamente pela sua incapacidade de
reconhecer a humanidade das suas vítimas, de colocar-se no lugar
delas, em suma, pela sua falta de imaginação. O problema de pesso-
as como Eichmann (e dos alemães em geral) foi o de não terem sido
capazes de achar errado o comportamento que deles se exigia por
parte do regime. Não foram capazes de reconhecer o mal que lhes
era comandado praticar. Isso não significa, contudo, que os alemães
tivessem se tornado repentinamente tolos. Como salienta Arendt,
Eichmann não era tolo, mas meramente privado de ideias.
Arendt censura Eichmann e os alemães pelo fato de eles te-
rem abdicado da capacidade de pensar – aquela capacidade que
nos permite assumir a perspectiva do outro e que, portanto, im-
possibilita-nos de considerá-lo como um não humano ou como
uma coisa. Essa incapacidade de pensar pode ser considerada a
marca característica do mal. A causa do mal não é, como achava
Platão, a ignorância do bem, mas antes, como achava Sócrates (o
Sócrates dos primeiros diálogos platônicos), a incapacidade de
formar-se pessoalmente um juízo sobre o bem.
Nesse sentido, Eichmann (não somente ele, mas todos os inú-
meros Eichmanns que houve no nazismo) representa o clássico
caso duma pessoa caída na ideologia segundo a qual o indivíduo
não possui o direito de elaborar um juízo moral autônomo, sem
levar em consideração a opinião de uma autoridade superior. A
ideologia segundo a qual o indivíduo é nada e a comunidade, o
Estado, o Führer, o partido, ou certa igreja, são tudo. A ideologia
que nega ao indivíduo a capacidade de pensar e o obriga a ficar à
superfície das coisas, a orientar-se, por exemplo, na sua ação por
uma coisa tão contingente como a pertença a um determinado
grupo humano.
Essa superficialidade é a razão pela qual Arendt não quis mais
falar de mal radical. Numa célebre carta ao filósofo Gershom Sho-
lem, ela escreveu:
A primeira metade do século XX ◆ 115

(...) De fato a minha opinião é que o mal nunca é ‘radical’,


que ele só é extremo e que não possui profundidade,
e nem sequer qualquer dimensão demoníaca. Pode
destruir o mundo, justamente porque se espalha como
um fungo sobre a superfície dele. É resistente ao pen-
samento, como afirmei outrora, porque o pensamen-
to se esforça para atingir profundidade [...]. Só o bem
possui profundidade e pode ser radical” (apud YOUNG-
BRUEHL, 1986, p. 507).

Por isso, Arendt fala de banalidade do mal:


Morte (1942) do artista Lasar Segall.
não porque Eichmann fosse uma pessoa banal
(embora também isto seja verdade), mas porque o mal que ele fez
era justamente privado de profundidade, era somente destruição
estúpida da humanidade nos outros e em si.

3.5.2 A condição humana


O livro sobre o totalitarismo se ocupava somente do nazismo.
Perante a crítica, segundo a qual ela teria deixado de lado o sta-
linismo, Arendt resolveu dedicar-se ao estudo do marxismo. O
resultado não foi uma análise dos elementos totalitários do so-
cialismo real, mas a exposição duma teoria que se concebe como
uma resposta ao marxismo e ao capitalismo “total”, denunciado
por autores como Horkheimer e Adorno. Tal teoria é exposta em
A condição humana, de 1958.
Esse livro não é propriamente uma obra de teoria política, mas
representa a tentativa de pensar a situação do homem contempo-
râneo no pano de fundo duma teoria geral do agir humano e duma
filosofia da história, ainda que Arendt provavelmente não a teria
chamado assim. O título precisa duma explicação. Segundo a au-
tora, o homem não possui uma natureza, contrariamente ao que
muitos filósofos pensaram; sua vida deve ser descrita antes em ter-
mos das condições, nas quais lhe é dado viver sobre a Terra.
Segundo Arendt, existem três tipos fundamentais de atividade
humana (da vita activa, que ela – seguindo a tradição – contra-
põe à vita contemplativa), a cada um deles corresponde “uma das
condições básicas mediante as quais a vida foi dada ao homem na
Terra” (ARENDT, 2007, p. 15). A primeira forma de atividade é o
116 ◆ Filosofia Política III

labor, que visa à subsistência do indivíduo e, portanto, diz respeito


à sua animalidade; a ele corresponde como condição a vida enten-
dida como vida animal.
A segunda forma de atividade é o trabalho, que cria um mundo
compartilhado de objetos (que vão das cidades, com seus prédios e
suas ruas, aos objetos de uso cotidiano, como uma cadeira ou um
lápis) e remete à existência de outros indivíduos; sua condição é a
mundanidade.
Finalmente, a terceira forma de atividade é a ação, que se ex-
pressa em palavras e atos públicos e só é possível na condição da
pluralidade, isto é, graças ao fato de que “homens, e não o Ho-
mem, vivem na Terra e habitam o mundo” (ARENDT, 2007, p. 15).
Vida, mundanidade e pluralidade não são as únicas condições
da existência humana; outras são: a própria Terra (segundo Aren-
dt, se o gênero humano fosse habitar outro planeta, teria que viver
sob condições diferentes e, portanto, labor, trabalho e ação pode-
riam perder ou mudar radicalmente seu sentido), a mortalidade
e a natalidade. O fato de eles serem mortais faz com que os hu-
manos tentem “vencer” sua morte: criando artefatos ou obras que Emerge aqui a influência de
lhes sobrevivam, aspirando à imortalidade por suas façanhas (no Heidegger (ver o livro-texto de
História da Filosofia IV), do
mundo antigo) ou à eternidade pelas suas ações (no cristianismo). qual Arendt foi aluna.
O fato de nascer implica que cada vida representa um novo início e
demonstra, portanto, que sempre é possível um novo começo, que
sempre há liberdade para os homens.
A dimensão mais relevante do ponto de vista político é a plura-
lidade. Tomando como caso paradigmático a polis grega e referin-
do-se às celebres definições aristotélicas do homem como animal
político (zoon politikón) e como animal dotado de palavra/razão
(zoon logon echon), Arendt salienta um aspecto essencial da po-
lítica: “o ser político, o viver numa polis, significava que tudo era
decidido mediante palavras e persuasões, e não mediante força e
violência” (ARENDT, 2007, p. 35).
A polis representa, para Arendt, uma espécie de pedra de toque
para entender o mundo contemporâneo (embora se trate mais da
polis na descrição ideal-típica que Aristóteles deu dela e menos
da polis como ela realmente era). Na cidade grega, havia uma dis-
A primeira metade do século XX ◆ 117

tinção clara entre esfera privada e esfera pública, entre família e


cidade, entre oikia e agorá (ver livro-texto Filosofia Política I) e,
portanto, entre economia e política. Enquanto a casa era o reino da
necessidade (onde se satisfaziam as carências e as exigências vitais
por meio do labor e do trabalho), a praça pública era o reino da
liberdade, onde os cidadãos deliberavam e discutiam livremente.
No mundo moderno, tal distinção desapareceu: a esfera da eco-
nomia e a da política se aproximam e, finalmente, o âmbito da políti-
ca é invadido pelas questões sociais, isto é, o social prevalece sobre o
político. O ser humano deixa de ser zoon politikón para ser somente
homo faber (produtor de artefatos pelo seu trabalho) e animal labo-
rans (cuja atividade é visada unicamente a garantir a sobrevivência).
A sociedade contemporânea vê justamente o triunfo deste úl-
timo: qualquer atividade humana (inclusive as mais intelectuais
ou espirituais) acontece no signo da mera reprodução biológica,
já que sua finalidade não é a livre afirmação duma comunidade
humana (como no caso da ação), nem a construção dum mundo
comum (como no caso do trabalho), mas garantir, ao indivíduo, os
instrumentos necessários para sobreviver (habitualmente, na for-
ma dum salário).
O livro se conclui num tom pessimista e na constatação de que
o mundo contemporâneo viu o triunfo da sociedade de massa e do
labor. Sob essas condições, as ocasiões para a ação estão extrema-
mente reduzidas e esta é possível somente em circunstâncias excep-
cionais. Algumas delas serão objeto do livro, Sobre a revolução, de
1963, no qual Arendt compara e contrapõe entre si as duas grandes
revoluções que marcam o surgimento do Estado moderno: a Revo-
lução Americana e a Revolução Francesa (ARENDT, 1990).
Na visão da autora, a primeira é uma revolução genuinamente
política, já que visa ao estabelecimento dum novo regime político
em substituição do existente, enquanto a segunda é uma revolução
eminentemente social, pois seu objetivo é a transformação radical
da ordem social. As simpatias de Arendt vão todas para a primei-
ra, como é de se imaginar, considerando a centralidade que ela
atribui à ação política na vida humana e o correspondente papel
negativo que ela atribui à dimensão social.
118 ◆ Filosofia Política III

Embora seus textos mais conhecidos pareçam representar mais


uma análise crítica e negativa do mundo moderno e, às vezes, até
um elogio nostálgico do mundo antigo, Arendt não se limita so-
mente a descrever e a lamentar o desaparecimento da política na
época contemporânea, mas tenta oferecer também soluções práti-
cas para fazer política no mundo de hoje. A referência à maneira
em que a política era concebida na antiguidade lhe serve para rea-
firmar a dignidade da própria política, num momento histórico no
qual, como relevava Constant (ver livro-texto Filosofia Política II,
seção 6.1), ela é percebida como um peso do qual livrar-se.
Mas o sentido da política é justamente a liberdade, afirma Aren-
dt (ARENDT, 2004, p. 38), já que ela consiste na capacidade de
iniciar algo completamente novo. Para referir-se a este “poder-co-
meçar”, ela fala de “milagre da liberdade”, já que esta consiste pre-
cisamente na possibilidade de realizar algo que parecia impossível
ou improvável (ARENDT, 2004, p. 43), como no caso das revo-
luções anteriormente mencionadas ou de outros acontecimentos
análogos (Arendt menciona explicitamente a revolução húngara
de 1956, na qual pareceu possível praticar formas de democracia
direta por meio dum sistema de conselhos ou soviets – um experi-
mento que, paradoxalmente, foi terminado com a força pelas tro-
pas soviéticas).
A transformação da nossa sociedade em sociedade de massa e
o império do animal laborans não implica, em suma, uma renún-
cia definitiva aos espaços de liberdade que a ação política ainda
pode abrir. Com certeza, porém, tais espaços ficam sempre mais
dificilmente acessíveis sob as condições atuais nas quais o homem
existe e habita o mundo. O conflito entre sociedade e Estado, do
qual tinham partido os teóricos do século XIX, transforma-se no
pensamento de Arendt na erosão da esfera da política pela esfera
do social. Veremos, agora, como, na segunda metade do século XX,
assiste-se – na teoria política – a um renascimento do político e da
política perante o social e a economia.
A primeira metade do século XX ◆ 119

Leituras recomendadas
Os capítulos “O conceito de esclarecimento” e “A indústria cul-
tural” do livro Dialética do Esclarecimento de Horkheimer e Ador-
no (HORKHEIMER; ADORNO, 1985).
O livro O conceito do político de Schmitt (SCHMITT, 1992).
Os capítulos I e II de A condição humana, de Arendt (ARENDT,
2007).

Reflita sobre
1. Em que diferem as concepções de Estado, próprias do fascis-
mo e do marxismo?
2. A reflexão sobre a falta de consciência de classe no proleta-
riado leva os autores marxistas a diferentes conclusões. Quais
os diversos diagnósticos? Quais os diversos tipos de solução?
3. Quase todos os principais autores analisados, neste capítulo,
tentam oferecer uma definição da relação entre política e so-
ciedade (ou economia). Tente compará-las entre si.
4. Que relação há entre o fenômeno da banalidade do mal, ana-
lisado por Arendt, e as análises sobre a indústria cultural, de
Horkheimer e Adorno?
5. Em que medida o conceito de pluriverso de macroespaços,
usado por Schmitt, responde ao critério que, segundo este
autor, define a esfera do político, isto é, a dupla categorial
amigo/inimigo?
■ Capítulo 4 ■
A segunda metade
do Século XX

O objetivo deste capítulo é apresentar a


você a obra dos pensadores contemporâneos
mais importantes e das temáticas mais rele-
vantes. O primeiro autor, John Rawls, rein-
troduziu a perspectiva normativa na teoria
política, revitalizando assim a filosofia polí-
tica propriamente dita. O segundo pensador,
Jürgen Habermas, tentou conciliar a perspec-
tiva normativa com uma funcionalista, man-
tendo-se na tradição da Escola de Frankfurt.
O terceiro, Michel Foucault, influenciou não
somente a teoria política, mas as ciências so-
ciais e humanas em geral, com sua crítica do
poder. Finalmente, serão apresentados a você
os debates mais recentes sobre o multicultu-
ralismo, reconhecimento e globalização.
A segunda metade do Século XX ◆ 123

4.1 John Rawls: justiça como equidade

O filósofo norte-americano John Rawls é considerado o primei-


ro pensador que, depois de Hegel, voltou a fazer filosofia política
no sentido tradicional do termo. (Sobre Rawls, ver FELIPE, 1998;
MAGALHÃES, 2003; e OLIVEIRA N., 2003.) De fato, ele reintro-
duziu questões normativas que, ao longo do século XIX e da pri-
meira metade do XX, tinham permanecido negligenciadas pelos
teóricos políticos, mais preocupados em entender a sociedade ca-
pitalista do que em colocar questões de legitimação política ou de
John Bordley Rawls justiça social.
(1921-2001).
Fonte: http://tinyurl.com/ É verdade que este último tema teve um papel central no mar-
JohnBRawls
xismo e até em certas correntes conservadoras (até fascistas);
contudo, nenhuma dessas teorias tinha tentado colocar a questão
duma sociedade justa a partir duma moldura teórica puramente
normativa. Criticava-se o capitalismo por não manter suas pro-
messas ou por basear-se na exploração dos trabalhadores, mas não
na base de princípios normativos universais, como os que Rawls
introduziu em sua obra.
Num certo sentido, poderíamos dizer que Rawls é o autor duma
obra só, a saber, Uma teoria da justiça (1971, segunda edição com
revisões, 1975; tradução portuguesa Rawls (1997)), já que os en-
saios e os livros sucessivos, como Liberalismo político (1993; tra-
dução portuguesa Rawls (2000)), Justiça como equidade (2001;
tradução portuguesa Rawls (2003)) e O direito dos povos (1999;
124 ◆ Filosofia Política III

tradução portuguesa Rawls (2001)) podem ser considerados, res-


pectivamente, como tentativas de defender ou parcialmente rever
as teses avançadas no texto de 1971, de reformulá-las de maneira a
escapar das críticas que lhes foram movidas, ou de aplicá-las num
contexto internacional. Contudo, algumas das revisões em ques-
tão são bastante relevantes e levam muitos intérpretes a falar num
primeiro e num segundo Rawls. Em seguida, analisaremos, prin-
cipalmente, Uma teoria da justiça, e nos limitaremos a mencionar
brevemente os traços fundamentais da chamada segunda fase do
pensamento rawlsiano.

4.1.1 O objeto de uma teoria da justiça


Antes de passar às teses defendidas neste livro, deveríamos pres-
tar atenção ao título: o autor pretende oferecer uma teoria da justi-
ça, não a (única e verdadeira) teoria. Apesar do seu normativismo,
Rawls acha que não existe uma teoria da justiça válida para todas
as sociedades e todos os tempos, baseada em princípios imutáveis e
universais (isto, contudo, não significa que ele esteja pensando so-
mente na sociedade norte-americana, como acham alguns comen-
tadores). Nesse sentido, sua teoria é decididamente antiplatônica,
antinaturalista e antirrealista (o próprio Rawls nomeia o termo de Rawls distingui entre
“conceito” e “concepção” de
construtivismo kantiano para descrever seu método: voltaremos a justiça. Numa sociedade como
esse ponto mais adiante) e representa a tentativa de refletir sobre a descrita no livro, os cidadãos
os valores presentes na cultura política duma sociedade liberal e possuem um conceito de
justiça, isto é, pensam que
democrática, na busca dum consenso público sobre os princípios suas instituições devam ser
que subjazem tal cultura. justas; mas podem discordar
sobre a definição concreta do
O que Rawls almeja em Uma teoria da justiça é, então, encontrar termo “justo”, já que possuem
diferentes concepções de
uma concepção liberal e igualitária de justiça social. Essa concep- justiça.
ção diz respeito à estrutura básica da sociedade, não aos indivídu-
os particulares, isto é: a finalidade é a de organizar a estrutura bási-
ca da sociedade de maneira justa, não de fornecer, aos indivíduos,
princípios para organizar sua vida; ainda que Rawls reconheça
que, para a estabilidade da sociedade, é necessário que os cidadãos
interiorizem tais princípios e cheguem pelo menos a desejar agir
conforme os princípios de justiça.
Já que pode ter conflito sobre a concepção de justiça mais ade-
quada para uma sociedade que pretenda ser bem-ordenada (vere-
A segunda metade do Século XX ◆ 125

mos imediatamente o que isso significa), é necessário que os mem-


bros dela cheguem a um consenso sobre sua definição. Emerge
aqui um elemento essencial do pensamento de Rawls (que, como
veremos, suscitou as críticas dos chamados comunitaristas), a sa-
ber, a prioridade do justo sobre o bom.
As instituições públicas e, em geral, a atividade política (as deli-
berações públicas etc.) devem orientar-se por princípios de justiça,
não por concepções substantivas do que seria bom para os indiví-
duos ou para a sociedade, já que a tentativa de realizar uma con-
cepção específica de bom pode resultar (e frequentemente resulta)
na violação dos princípios de justiça. Isso aparece evidente nos ca-
sos em que, por exemplo, uma determinada visão religiosa, própria
duma parte (até majoritária) da sociedade, seja imposta a todos os
seus membros em nome da salvação das almas ou do respeito da
vontade de Deus. Ou quando se sacrifica, injustamente, indivíduos,
em nome do bem-estar dos outros, como poderia defender certo
utilitarismo (Rawls é expressamente antiutilitarista e dedica muito
espaço à polêmica contra o utilitarismo, que, na época, era a posi-
ção majoritária entre os teóricos sociais e políticos).
A concepção de justiça em questão se refere, então, às insti-
tuições que formam a estrutura básica duma sociedade bem-or-
denada. Cabe introduzir aqui algumas definições centrais. Rawls
define a sociedade como uma empreitada cooperativa que visa
promover o bem-estar de seus membros. Uma sociedade é bem-
ordenada quando, além disso, “é também efetivamente regulada
por uma concepção pública da justiça” (RAWLS, 1997, p. 79). Isso
significa que, nessa sociedade, “(1) todos aceitam e sabem que to-
dos os outros aceitam os mesmos princípios de justiça, e (2) as
instituições sociais básicas geralmente satisfazem e geralmente se
sabe que satisfazem esses princípios” (RAWLS, 1997, p. 79).
Note como o autor insiste sobre o caráter público da concepção
de justiça (“todos sabem [...]”, “geralmente se sabe que [...]”). Por
instituição, Rawls entende “um sistema público de regras que defi-
ne cargos e posições com seus direitos e deveres, poderes e imuni-
dades etc.” (RAWLS, 1997, p. 58). A estrutura básica da sociedade
compreende as instituições mais importantes (“a constituição polí-
tica e os principais acordos econômicos e sociais”) e a maneira em
126 ◆ Filosofia Política III

que tais instituições “distribuem direitos e deveres fundamentais


e determinam a divisão de vantagens provenientes da cooperação
social” (RAWLS, 1997, p. 25).

4.1.2 A posição originária


Os princípios de justiça são, portanto, o objeto do consenso al-
cançado pelos membros duma sociedade definida como acima
(isso exclui, portanto, sociedades que não sejam organizadas de
maneira a promover o bem-estar de todos, mas somente o de al-
guns, ou sociedades em que os bens sejam distribuídos de maneira
excessivamente injusta – um ponto que questiona a aplicabilidade
da teoria rawlsiana a uma sociedade como a brasileira ou até a
estadunidense).
Nesse sentido, Rawls afirma mover-se no sulco da tradição con-
tratualista, ainda que, no seu caso, o objeto do acordo originário
não seja a existência do Estado, mas os princípios organizadores da
estrutura básica. Como no caso do contratualismo clássico, o con-
senso é alcançado com base num experimento mental; portanto,
trata-se dum consenso ideal, não real. O papel que, na tradicional
argumentação contratualista, é desempenhado pelo estado de natu-
reza é tomado no experimento mental de Rawls pela posição ori-
ginária. Nela os princípios de justiça deveriam ser escolhidos pelas
partes, isto é, por representantes, como pessoas livres e iguais (não
por todos os cidadãos: isso, obviamente, suscitou muitas críticas).
Nosso autor elenca vários elementos constitutivos dessa posi-
ção. Em primeiro lugar, é necessário que os representantes pos-
sam escolher os princípios a partir dum leque de alternativas. Por
isso, ele menciona algumas teorias de justiça bastante difundidas,
como o utilitarismo, o intuicionismo, o egoísmo etc. (outras, como
o marxismo ou o libertarianismo, ficam negligenciadas). De fato,
a escolha das alternativas apresentadas por Rawls é bastante ques-
tionável, já que os princípios são tais que, sob as outras condições
que serão mencionadas agora, os representantes não podem deixar
de escolher os princípios rawlsianos.
Em segundo lugar, Rawls menciona as circunstâncias de justiça,
que são: escassez moderada (não há uma disponibilidade infinita
de bens a serem distribuídos e, portanto, faz-se mister encontrar
A segunda metade do Século XX ◆ 127

critérios para sua divisão) e desinteresse mútuo (os representan-


tes, ao fazer sua escolha, pensam na melhor maneira para alcançar
seus fins, sem interessar-se com os fins dos outros).
Em terceiro lugar, há vínculos formais: os princípios devem ser
gerais (não podem ser referidos a indivíduos específicos), univer-
sais (devem valer para todos), públicos (devem ser reconhecidos
e conhecidos publicamente), devem permitir uma ordenação (de-
vem consentir resolver possíveis conflitos, estabelecendo quais de-
les tem prioridade sobre os outros) e devem possuir caráter ter-
minativo (é a última instância de apelação do raciocínio prático).
O quarto elemento é dado pelo véu de ignorância, cuja função
é a de garantir a justiça procedimental ao “anular os efeitos das
contingências específicas”. Atrás desse véu, os representantes não
conhecem
qual é o seu lugar na sociedade, a sua posição de classe ou seu status
social; além disso, ninguém conhece a sua sorte na distribuição de do-
tes naturais e habilidades, sua inteligência e força, e assim por diante.
Também ninguém conhece a sua concepção do bem, as particularida-
Este último ponto servirá des de seu plano de vida racional, e nem mesmo os traços caracterís-
a Rawls para introduzir o ticos de sua psicologia, como, por exemplo, a sua aversão ao risco ou
maximin como regra de
escolha. sua tendência ao otimismo ou ao pessimismo. Mais ainda, admito que
as partes não conhecem as circunstâncias particulares de sua própria
sociedade. Ou seja, elas não conhecem a posição econômica e política
desta sociedade, ou o nível de civilização e cultura que ela foi capaz de
atingir. As pessoas, na posição originária, não têm informação sobre a
qual geração pertencem. (RAWLS, 1997, p. 147).

A abstração desse tipo de informações deveria garantir que, em


sua escolha, os representantes (as partes) não se deixem conduzir
por seu interesse pessoal, já que não sabem em que esse interesse
consiste. Ao não saber que posição ocuparão na sociedade, suas
decisões serão objetivamente voltadas a garantir uma solução justa
para todos.
Finalmente, o quinto elemento da posição originária é dado
pela racionalidade das partes. A racionalidade à qual se refere
Rawls aqui é a capacidade de porem-se finalidades no contexto
duma concepção de bem e de escolher os meios necessários para
realizá-las. Sujeitos racionais possuem “um conjunto de preferên-
128 ◆ Filosofia Política III

cias entre as opções que estão a seu dispor” e classificam tais op-
ções “de acordo com sua efetividade em promover seus propósi-
tos” (RAWLS, 1997, p. 154).
Para decidir entre os princípios alternativos, as partes se ser-
vem duma regra, o maximin, que eles escolhem primeiramente
por não conhecer sua propensão ao risco. O maximin (o máximo
do mínimo) impõe escolher a opção na qual o resultado pior é o
melhor se comparado com os resultados piores das outras opções.
Imaginemos três possíveis opções, nas quais três pessoas (A, B, C)
vão receber uma quantidade diferente de bens (expressados pelos
números):

A B C
Opção 1 13 12 10
Opção 2 10 14 6
Opção 3 40 25 15

A regra do maximin impõe a escolha da opção, na qual o menos


favorecido (por simplicidade aqui é sempre C) obtém um êxito
melhor do que nas outras opções; independentemente dos resulta-
dos dos outros. Nesse caso, a opção a ser escolhida será a 3, ainda
que nela a desigualdade entre C e A seja maior do que nas outras
opções, que são mais igualitárias.

4.1.3 Os dois princípios


Agora que foram estabelecidas as condições nas quais as partes
devem escolher, assim como a regra para a escolha (o maximin),
é possível analisar os vários princípios de justiça e chegar a uma
conclusão. Segundo Rawls, as partes não poderão deixar de esco-
lher os dois princípios de justiça que ele tinha apresentado logo no
começo da obra, que são os seguintes:
Primeiro: cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sis-
tema de liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema
semelhante de liberdades para os outros.

Em Liberalismo político, Rawls reformulará esse princípio na


forma seguinte:
A segunda metade do Século XX ◆ 129

cada pessoa é igualmente intitulada a um sistema plenamente adequa-


do de direitos e liberdades fundamentais iguais; a atribuição deste siste-
ma a uma pessoa é compatível com a sua atribuição a todos, e ele deve
garantir o justo valor das iguais liberdades políticas.

O segundo princípio de justiça diz o seguinte:


[...] As desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de tal
modo que sejam ao mesmo tempo (a) consideradas como vantajosas
para todos dentro dos limites do razoável, e (b) vinculadas a posições e
cargos acessíveis a todos. (RAWLS, 1997, p. 64)

Este segundo princípio recebe, em seguida, uma interpretação


que representa uma sua melhor especificação:
As desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de modo a
serem ao mesmo tempo (a) para o maior benefício esperado dos menos
favorecidos, e (b) vinculadas a cargos e posições abertos a todos em con-
dições de igualdade equitativa de oportunidades. (RAWLS, 1997, p. 88).

Os dois princípios são ordenados no sentido de que o primeiro


é prioritário em relação ao segundo (as liberdades e os direitos
precedem o bem-estar e não podem ser sacrificados a este últi-
mo). No contexto do segundo princípio, o ponto (b) é prioritário
relativamente a (a). Vamos analisar melhor o que isso significa. As
liberdades e os direitos do primeiro princípio compreendem os
direitos e as liberdades garantidos no Estado de direito, inclusive
a liberdade de consciência, de opinião, os direitos civis e políticos
etc.; são inalienáveis, ainda que não absolutos (podem ser restrin-
gidos quando colidirem com outros direitos e liberdades).
No que diz respeito ao segundo princípio, a primeira parte, que
Rawls denomina de princípio de diferença, afirma basicamente
que são legítimas somente as desigualdades sociais e econômicas
que são necessárias para assegurar, aos menos favorecidos, uma
posição melhor do que aconteceria em outras opções de distribui-
ção dos bens primários (conforme a regra do maximin). O concei-
to de bens primários é bastante vago, e o próprio Rawls se limita
a defini-los como as “coisas que todo homem racional presumivel-
mente quer” (RAWLS, 1997, p. 66).
Em Liberalismo político, ele oferece uma lista que inclui: direitos
e liberdades fundamentais (que, conforme o primeiro princípio,
130 ◆ Filosofia Política III

devem ser distribuídos de forma igual); liberdade de escolher a


profissão e de ir e vir; prerrogativas derivantes de cargos e posições
de responsabilidade nas instituições da estrutura de base; renda e
riqueza; as bases sociais do respeito de si.
Como vimos, é uma lista bastante genérica e alguns bens não
são claramente definidos (particularmente as bases sociais do res-
peito de si); além disso, trata-se de bens primários sociais, isto é,
distribuídos pelas instituições da estrutura básica, e não de bens
primários naturais, como talentos, inteligência, beleza etc. Estes úl-
timos não podem ser objetos diretos duma teoria da justiça que
se ocupa da estrutura básica da sociedade, ainda que seja possível
– uma vez organizada tal estrutura com base nos princípios de
justiça rawlsianos – tentar corrigir as desigualdades na distribui-
ção natural desses bens, já que se trata de desigualdades arbitrárias
pelas quais os indivíduos não são responsáveis.

Ora, o princípio da diferença parte da ideia de que uma situa-


ção de distribuição estritamente igualitária (na qual todos rece-
bem exatamente a mesma quantidade de bens primários sociais)
resultaria num sistema ineficiente, já que os mais talentosos não
teriam incentivos para empenhar suas energias em produzir mais
riqueza e bem-estar para a sociedade.

Em outras palavras: se os preguiçosos ou os indivíduos sem ta-


lento receberem a mesma quantidade de bens primários do que
os indivíduos ativos e talentosos, estes últimos – sendo racionais
– deveriam deixar de usar seus talentos e de engajar-se em suas
atividades. Emerge aqui uma antropologia implícita, pela qual os
indivíduos só se empenhariam numa atividade ou desenvolveriam
seus talentos numa ótica de racionalidade instrumental e calcu-
lista: uma antropologia tipicamente liberal e neoliberal. Sob esse
pressuposto, um sistema que concedesse incentivos aos mais ativos
e talentosos poderia resultar num aumento da riqueza e do bem-
estar geral, inclusive dos indivíduos que seriam os menos favore-
cidos no novo sistema de distribuição desigual. Tal sistema seria
mais eficiente e mais justo se analisado pelo princípio de diferença.
A segunda metade do Século XX ◆ 131

Ao mesmo tempo, se as desigualdades fizessem com que a situ-


ação dos menos favorecidos ficasse pior do que numa situação de
distribuição estritamente igualitária, tais desigualdades deveriam
ser consideradas injustas, apesar de produzir mais riqueza agregada.
A dificuldade consiste em identificar a categoria dos menos favo-
recidos: já que a distribuição em questão concerne uma plurali-
dade de bens, não é suficiente escolher como critério um só entre
eles (por exemplo, a renda). Rawls diz que podemos escolher uma
categoria representativa (desempregados, trabalhadores não qualifi-
cados etc.), estabelecer um parâmetro quantitativo suficientemente
amplo (todos os que possuem uma renda inferior à metade da renda
média do país por exemplo) ou usar três parâmetros corresponden-
tes a três tipos de contingência, a saber, familiar, natural e biográfica:
Esse grupo inclui pessoas cuja origem familiar e de classe é menos favo-
recida que a de outros, cujos dotes naturais (na medida em que estão
desenvolvidos) lhes permitem um bem-estar menor, e cuja sorte ao lon-
go da vida acaba por revelar-se menos feliz. (RAWLS, 1997, p. 103).

A segunda parte do segundo princípio é chamada de princípio


da igualdade equitativa de oportunidades. O sentido desse prin-
cípio é declarar inaceitáveis, no contexto da busca de cargos ins-
titucionais, não somente as discriminações formais (por exemplo,
como na sociedade feudal, que atribuía certos cargos somente aos
aristocratas), mas também discriminações substantivas. Por exem-
plo, ainda que não haja vínculos formais no acesso às profissões,
somente quem tiver realizado certos estudos pode exercer algumas
delas; ora, se o acesso a tais estudos for limitado não formalmen-
te, mas praticamente (por exemplo, se o estudo não for gratuito e
acessível também aos mais pobres, em paridade de qualificação e
talentos), não há igualdade de oportunidades:
As oportunidades de se atingir conhecimento cultural e qualificações
não deveriam depender da posição de classe duma pessoa, e assim o
sistema escolar, seja público ou privado, deveria destinar-se a eliminar as
barreiras de classe. (RAWLS, 1997, p. 77).

Na segunda parte da obra, Rawls discute a maneira na qual os


princípios de justiça podem ser institucionalizados, passando de
fato a modelar a estrutura de base duma sociedade. Isso acontece
132 ◆ Filosofia Política III

em quatro fases. A primeira é a posição originária, na qual são es-


colhidos os dois princípios. Nas outras três fases, o véu de ignorân-
cia é progressivamente levantado, consentindo às partes um maior
conhecimento das condições concretas nas quais os princípios são
aplicados. As três fases são: a da criação duma constituição, a do
processo legislativo e a da aplicação e administração das leis. Na
terceira parte, Rawls discute as finalidades que os indivíduos se
colocam e suas concepções do bem. Já que esses temas tomaram
um papel central no “segundo” Rawls, passamos a considerá-los
no contexto duma breve análise de Liberalismo político e de outros
escritos sucessivos a Uma teoria da justiça.

4.1.4 O pluralismo razoável


Como já foi dito, Rawls utiliza a expressão construtivismo kan-
tiano para referir-se ao seu próprio método, mas não faz isso em
Uma teoria da justiça, antes num ciclo de aulas de 1980, intitula-
do Construtivismo kantiano na teoria da moral. Nelas, Rawls afirma
servir-se, em sua teoria, dum conceito de pessoa próximo daquele
de Kant. As pessoas possuem duas características morais fundamen-
tais: um senso da justiça e uma concepção do bem. Elas são au-
tônomas e se consideram reciprocamente como livres e iguais. Em
vez de aceitar princípios pré-existentes (como no intuicionismo ou
no realismo, que são os alvos contra os quais Rawls polemiza aqui),
elas constroem os princípios de justiça por meio dum procedimento
(conforme a ideia de justiça procedimental, pela qual o resultado
dum procedimento deve ser considerado justo se o procedimento
acontecer sob condições consideradas justas pelos participantes).
A questão de como os indivíduos podem chegar a um consenso
sobre princípios morais e sobre valores está no centro de Liberalis-
mo político, de 1993, já que nem sempre é possível e necessário re-
correr ao experimento mental da posição originária, que – como
vimos – serve somente para escolher os princípios de justiça que de-
vem orientar a estrutura básica. Rawls parte da constatação de que,
nas sociedades contemporâneas, há um pluralismo de concepções
abrangentes do bem, isto é, concepções que representam um con-
junto amplo e coerente de valores e princípios, pelo qual as pessoas
orientam sua vida (por exemplo, doutrinas morais ou religiosas).
A segunda metade do Século XX ◆ 133

Ora, também partindo do pressuposto de que se trata de concep-


ções razoáveis, isto é, de concepções que levam em conta as razões
dos outros e que, portanto, na sociedade, há um pluralismo razoá-
vel, põe-se o problema de chegar a um consenso quando há um de-
sacordo sobre questões políticas moralmente relevantes (por exem-
plo, o casamento entre gays ou a prática do aborto). As decisões
relativas a questões desse tipo devem ser justificadas publicamente.
Em primeiro lugar, essa justificação pública pressupõe (e visa
a reforçar) um consenso sobreposto (overlapping consent) entre
as várias concepções abrangentes, que devem compartilhar um
núcleo de valores e princípios, sem os quais não é possível que a
sociedade permaneça estável.
Em segundo lugar, ela se baseia sobre o uso da razão pública,
isto é: os cidadãos apresentam argumentos que podem ser enten-
didos e eventualmente aceitos por todos os outros, renunciando
a servir-se de argumentos compreensíveis e aceitáveis somente a
partir de sua concepção de bem (por exemplo, na discussão sobre
o aborto, apelar à vontade de Deus não corresponde a um uso cor-
reto da razão pública, já que pressupõe a crença na existência de
Deus e na revelação de sua vontade; o apelo à dignidade intrínseca
da vida humana pode, pelo contrário, ser entendido – ainda que
não necessariamente aceito – por todos).
Isso leva à necessidade de excluir determinadas questões da jus-
tificação pública pela impossibilidade de chegar a um consenso
razoável (por exemplo, questões relativas à racionalidade de certas
crenças religiosas ou à moralidade de certos estilos de vida). Trata-
se, como se pode imaginar, de teses problemáticas, que foram e
ainda são objeto de inúmeros debates entre os filósofos políticos.

4.1.5 As críticas dos comunitaristas ao


liberalismo de Rawls
Quando, em 1982, foi publicado o livro O liberalismo e os limites
da justiça, de Michael Sandel, começou um debate que dominou
Michael Sandel (1953- ). por uma década o mundo da filosofia política: a polêmica entre
Fonte: http://tinyurl.
com/6hvqt2h comunitaristas e liberais (SANDEL, 2005).
134 ◆ Filosofia Política III

Contudo, cabe observar que, enquanto o liberalismo admite


uma definição bastante unívoca, o mesmo não acontece com o co-
munitarismo. Com o termo communitarians, que deriva da com-
munity (comunidade), foram indicados autores que, em polêmica
com o liberalismo, queriam contrapor o ponto de vista da comu-
nidade àquele do indivíduo e substituir a gramática dos direitos
com aquela dos valores. Um papel importante nessa controvérsia
foi desempenhado por um fenômeno típico da sociedade estadu-
nidense: a existência de minorias que são praticamente obrigadas a
obter, por meio de ações legais, um espaço de liberdade e de direi-
tos que, de outra maneira, não poderiam obter por causa da falta de
reconhecimento e aceitação da parte majoritária da sociedade (por
exemplo, os negros nos anos 60 ou os gays em anos mais recentes).
Na realidade, essas minorias se limitam a insistir sobre os direi-
tos que a constituição lhes garante formalmente; os críticos, contu-
do, afirmam que as iniciativas legais em questão abrem uma fenda
na sociedade, já que acabam solapando os valores desta última ao
impor, de forma jurídica, a aceitação das minorias. Segundo esses
críticos, esse processo é consequência da ideologia liberal.
Portanto, o debate surge num contexto especificamente norte-
americano, quer do ponto de vista teórico (os protagonistas são
norte-americanos), quer do ponto de vista prático e político. Uma Liberal
Indica, nos EUA, uma pessoa
dificuldade ulterior deriva do fato de que os comunitaristas de- com posições progressistas,
fendem posições políticas muito diferentes entre si, já que ao lado comparáveis àquelas dos
social-democratas europeus
de pensadores conservadores como Alasdair MacIntyre se en- ou da esquerda moderada
contram também pensadores liberais, ou seja, esquerdistas, como latino-americana.
Charles Taylor (ver 4.4.1).
No seu livro, Sandel acusava o liberalismo e, em particular, Ra- Mônada
wls de oferecer uma imagem distorcida do homem, da qual re- O termo é usado por Leibniz
para indicar as formas mais
sultariam consequências indesejáveis para a sociedade. Segundo simples do ser, comparáveis
Sandel, os liberais veriam o ser humano como um ser que vive aos átomos, para usar uma
metáfora. Elas são fechadas
numa espécie de vácuo. No liberalismo, haveria somente indivídu- em si e não interagem entre
os-mônadas, saídos do nada e que desenvolvem – sempre do nada si, são “sem janelas”, diz
– interesses e preferências que os levam a viver uma vida egoística, Leibniz.

na qual a comunidade representa, no máximo, uma moldura para


perseguir seus interesses particulares. Sandel se refere a esse tipo
de sujeito como um “Eu desligado” (unencumbered self), ao qual,
A segunda metade do Século XX ◆ 135

na realidade, não corresponde nada, já que os indivíduos existem


sempre e somente como membros duma comunidade concreta, na
qual se criam, da qual compartilham história, convicções e valores,
e da qual não podem escapar, por assim dizer.
O liberalismo representaria, em suma, uma má abstração que
possui a consequência indesejável de levar os indivíduos a isolar-se
da comunidade e a comportar-se egoisticamente perante os outros
membros dela. Trata-se, então, duma tripla objeção. Em primeiro
lugar, o conceito de indivíduo do liberalismo é confrontado com a
acusação de reduzir os seres humanos a mônadas, em vez de consi-
derá-los na sua dimensão social. Em segundo lugar, aponta-se para
as consequências desse reducionismo para a vida política e social:
falta de solidariedade, egoísmo, falta de senso da comunidade. Em
terceiro lugar, a prioridade do justo pressuporia um mundo moral
vazio, sem valores e concepções de bem.
Rawls e outros teóricos liberais ofereceram a essas críticas, que
não foram avançadas somente por Sandel, mas, em parte, também
por outros autores (Amitai Etzioni, Michael Walzer, os menciona-
dos Taylor e MacIntyre), dois tipos de respostas. O primeiro tipo
de resposta consistiu numa crítica do próprio comunitarismo. A
acusação de reducionismo implica em duas alternativas: ou os
comunitaristas se interessam pela comunidade, e não pelos indi-
víduos (cometendo assim um erro especular àquele dos liberais,
por ele denunciado), ou eles partem da convicção de que o sujeito
político deve ser considerado ao mesmo tempo como indivíduo e
como membro da comunidade, já que os dois aspectos são indivi-
síveis. A segunda resposta, mais propositiva (que é a oferecida por
Rawls), aponta justamente para esse último aspecto e afirma que o
liberalismo possui justamente uma concepção desse tipo. O sujei-
to, nessa visão, não possui somente uma biografia individual, mas
também uma história compartilhada com outros indivíduos; ele
forma sua identidade, seu Eu, numa comunidade específica. Por
isso, ele não existe num vácuo moral (contra a terceira objeção
anteriormente mencionada) e não é necessariamente um sujeito
egoísta (contra a segunda objeção).
A teoria do pluralismo razoável e da justificação pública de-
senvolvida por Rawls em Liberalismo político pode, portanto, ser
136 ◆ Filosofia Política III

considerada uma resposta às objeções de Sandel e mostra a im-


portância das críticas comunitaristas para o desenvolvimento do
pensamento do nosso autor.
Atualmente, críticas análogas àquelas dos comunitaristas são
avançadas por teóricos neorrepublicanos como Philip Pettit ou
Maurizio Viroli (ver Pettit, (1997) e Viroli (1999); sobre o debate
entre republicanos e liberais, ver Pinzani, (2007, 2010). Trata-se,
nesse caso, de críticas ligadas mais diretamente à dimensão polí-
tica e da cidadania: ao indivíduo liberal faltaria a motivação para
ser um bom cidadão e interessar-se seriamente pelo bem comum.
O próprio conceito de liberdade liberal se reduziria a uma mera
ausência de obstáculos (liberdade negativa), enquanto a liberdade
republicana se refere à ausência de dominação e, portanto, à ideia
de autogoverno.
Contudo, nenhum pensador liberal defende uma visão de liber-
dade como mera ausência de obstáculos (com a exceção de Hob-
bes, que pode ser um liberal nas premissas, com seu individualis-
mo metodológico, mas não nos êxitos). Todos os autores liberais
insistem na necessidade do autogoverno e alguns deles, como Ri-
chard Dagger, Stephen Macedo e em parte o próprio Rawls, afir-
mam até que os cidadãos de democracias liberais deveriam desen-
volver certas virtudes cívicas (MACEDO, 1990; DAGGER, 1997).
Portanto, a impressão é a de que o debate entre neorrepublica-
nismo e liberalismo acaba sendo um falso debate, contrariamente
ao que aconteceu com o debate entre comunitarismo e liberalis-
mo. Contudo, os autores neorrepublicanos têm o mérito de ter
trazido novamente à tona temas que, na filosofia política contem-
porânea, ficavam negligenciados (como aqueles das virtudes cívi-
cas, do senso cívico, do bem comum, da importância das institui-
ções republicanas).

4.2 Jürgen Habermas


O alemão Jürgen Habermas é considerado, por muitos, um
Jürgen Habermas (1929-
membro da segunda geração da Escola de Frankfurt. De fato, em
). Fonte: http://tinyurl.
1956, Habermas se tornou assistente de Adorno no Instituto de com/639696p
A segunda metade do Século XX ◆ 137

Pesquisa Social de Frankfurt. Isso não significa que ele tenha se


aproximado imediatamente das posições da Teoria Crítica. Con-
tudo, nesse período, ele participou, com alguns colegas, de um
projeto de pesquisa sobre estudantes universitários e políticas, que
lembra muito as antigas pesquisas do Instituto. A conjunção entre
filosofia por um lado e ciências sociais e humanas empíricas (so-
ciologia, psicologia, antropologia) por outro representa um traço
característico do pensamento de Habermas até os anos 80 (Sobre
Habermas, ver Araújo (2010); Dutra (2005); Pinzani (2009) – so-
bre o qual é baseado o texto deste capítulo).

4.2.1 Entre sociologia e filosofia


O pensamento de Habermas é caracterizado por um enfoque
interdisciplinar que o leva, particularmente nas primeiras décadas
de atividade, a oscilar entre filosofia e sociologia, com incursões no
campo da história das ideias, da psicologia individual e social, da
teoria do direito. Na sua tese de livre-docência, intitulada Mudan-
ça estrutural da esfera pública e publicada em 1962, Habermas des-
creveu o processo de formação da esfera pública na moderna so-
ciedade burguesa e apontou para os riscos aos quais a democracia
contemporânea estava exposta, por causa da lógica do mercado.
Até a maneira em que a mídia apresenta as informações “acar-
reta uma peculiar distorção da realidade”, que tende a substituir a
percepção correta do real “por aquilo que está pronto para o con-
sumo e que mais desvia para o consumo impessoal de estímulos
destinados a distrair do que leva para o uso público da razão” (HA-
BERMAS, 1984, p. 201). Ela leva, em outras palavras, àquilo que
hoje é chamado de infotainment, fazendo com que a esfera pública
não cumpra mais sua função de controle crítico sobre a esfera da
política e, em geral, sobre os fenômenos sociais.
Em 1961, o filósofo participou ativamente da chamada “polêmi-
ca sobre o positivismo nas ciências sociais”, que sacudiu o mundo
da sociologia alemã. Nela (e na sucessiva polêmica com Niklas Luh-
mann, do começo dos anos 70) ele tomou posição contra uma con-
cepção objetivante das ciências sociais, à qual ele contrapôs a ideia
de uma teoria da sociedade com intenções crítico-emancipátorias.
138 ◆ Filosofia Política III

Nos anos seguintes, ele tentou desenvolver tal teoria, cujos fun-
damentos teóricos foram expostos numa obra publicada em 1968
e que se tornou imediatamente um clássico: Conhecimento e inte-
resse. A tese principal do livro é que, atrás das ciências empírico-
analíticas, há um interesse técnico que visa à transformação ou
manipulação da realidade (como no caso da tecnologia ou das
ciências humanas que pretendem prever e controlar o compor-
tamento humano no nível individual – behaviorismo – ou social
– sócio-tecnologia à la Luhmann); atrás das ciências históricas e
hermenêuticas há um interesse prático de compreensão; e atrás
das ciências com pretensões críticas (como a psicanálise freudiana
e a teoria social que o próprio Habermas gostaria de desenvolver)
há um interesse emancipatório. Destarte, Habermas já traçou o
plano de uma teoria crítica da sociedade – plano que perseguiu até
a publicação da Teoria do agir comunicativo, em 1981.
No livro A crise de legitimação no capitalismo tardio, publica-
do em 1973, Habermas analisa a sociedade capitalista liberal e sua
evolução como sociedade tardo-capitalista. Na sociedade capitalis-
ta liberal, o Estado se limita à proteção do comércio, à proteção do
mecanismo do mercado, à garantia dos pré-requisitos da produção
(educação, transporte e comunicação) e à adaptação do sistema de
direito civil às exigências do processo de acumulação capitalista
(HABERMAS, 1980, p. 35).
Dessa maneira, ele garante os pressupostos materiais para a ma-
nutenção do modo de produção capitalista. No capitalismo tardio,
essa relação muda, já que o Estado não se limita a assegurar as
condições gerais para tal modo de produção, mas intervém direta-
mente no processo econômico (Estado intervencionista) e, preci-
samente, de dupla maneira: “através do planejamento global, regu-
la o ciclo econômico enquanto um todo” e, através de medidas de
política monetária e fiscal, procura amenizar as consequências co-
laterais negativas do modo de produção capitalista (HABERMAS,
1980, p. 49).
Correspondentemente, a questão da legitimação é solucionada
de maneira diferente da que se observa no capitalismo liberal. É
verdade que, formalmente, os cidadãos participam dos processos
políticos de decisão (democracia formal), mas, materialmente, eles
A segunda metade do Século XX ◆ 139

quase não têm influência nenhuma sobre o sistema administrati-


vo, que permanece “suficientemente independente da formação da
vontade legitimante” (HABERMAS, 1980, p. 51).
Esse sistema toma suas decisões de maneira amplamente autô-
noma da vontade concreta dos cidadãos. Há uma vaga lealdade
das massas, mas não há participação política propriamente dita.
Os cidadãos se tornam sempre mais passivos e avançam perante o
Estado – exigências meramente egoísticas que este último satisfaz
com medidas de bem-estar social. No Estado de bem-estar, os ci-
dadãos se tornam meros clientes, na espera de receber serviços e
prestações públicas.
Em 1981, apareceu uma obra que foi considerada, por muitos co-
mentadores, a mais importante do autor: Teoria do agir comunica-
tivo. Seu ponto de partida é a distinção fundamental (distinção que
já aparecia, ainda que nem sempre nestes termos, nos escritos dos
anos 70) entre racionalidade comunicativa e instrumental, às quais
correspondem duas formas de agir: comunicativo e instrumental.
O primeiro se caracteriza pelo fato de ser orientado pelo entendi-
mento: sujeitos que agem comunicativamente querem entender-se
sobre algo. Contudo, o ator pode também visar simplesmente impor
sua opinião subjetiva ou a manipular outros atores usando-os para
seus fins (agir estratégico) ou para alcançar um determinado fim
(agir instrumental). Os problemas surgem quando a lógica que diri-
ge o agir instrumental ou estratégico se torna dominante também em
âmbitos que deveriam ser próprios da racionalidade comunicativa.
Isso leva Habermas a operar uma segunda distinção fundamen-
tal: aquela entre sistema e mundo da vida. Este último (um con-
ceito derivado de Husserl) é constituído por determinados valores
e convicções fundamentais que formam o horizonte de cada agir:
os sujeitos agentes se movimentam sempre no horizonte do seu
mundo da vida e não podem sair dele.
No interior da sociedade, formam-se também sistemas auto-
poiéticos e autorreferenciais que se servem de uma racionalidade
instrumental para manter-se, tais como o mercado, o direito etc.
(essa noção de sistema é retomada por Habermas da teoria sistê-
mica de Luhmann).
140 ◆ Filosofia Política III

Nas sociedades complexas contemporâneas, o mundo da vida


corre o risco de ser “colonizado” pelos sistemas da economia e do
poder administrativo: a lógica econômica e a burocrática preva-
lecem sobre a racionalidade comunicativa. Essa colonização do
mundo da vida é um fenômeno inevitável na sociedade moderna,
já que é uma consequência dos processos de racionalização ligados
à modernização capitalista, como mostrado por Weber, que repre-
senta uma grande fonte de inspiração nessa obra habermasiana,
junto com outros sociólogos como Luhmann, Talcot Parsons, Emi-
le Durkheim; com psicólogos sociais como Mead e com filósofos
como Lukács, Adorno e Horkheimer – autores aos quais Haber-
mas dedica amplas partes do livro.
A importância de Weber na teoria social de Habermas tem
a ver com a sua tentativa de repensar o materialismo dialético
em seu interesse emancipatório. Caso Weber tivesse razão no seu
diagnóstico anteriormente mencionado, segundo o qual o processo
de racionalização é inevitável, não haveria praticamente chances de
superar os fenômenos de alienação que caracterizam a sociedade
capitalista e que foram descritos por Marx. Tanto Lukács, Adorno
e Horkheimer quanto Habermas pretendem reformular a posição
do marxismo fazendo justiça à tese de Weber. Habermas visa àquilo
que ele chama de “reconciliação consigo mesma da modernidade
dilacerada”. Um papel central nesse processo de reconciliação é de-
sempenhado pela moral e pelo direito, que, nas sociedades moder-
nas, são constituídos com base em princípios universais e aos quais
Habermas dedicou suas obras principais nos anos 80 e 90.

4.2.2 Direito e democracia


Em Direito e democracia, de 1992, Habermas parte da ideia de
que o ordenamento jurídico do Estado constitucional democrá-
tico incorpora um conteúdo normativo que ele pretende trazer à
tona. O procedimento democrático da legislação depende, por sua
vez, de cidadãos ativos, cujas motivações não podem ser impostas
juridicamente. Habermas tenta colocar, no centro da sua reflexão,
esse concurso de instituições e esfera pública a fim de salientar o
potencial emancipatório de ordenamentos jurídicos democráticos.
Ao mesmo tempo, o livro marca a despedida definitiva das posições
A segunda metade do Século XX ◆ 141

marxistas anteriores em prol de uma atitude de liberalismo político,


na qual os direitos sociais não são primários e que, finalmente, ba-
seia-se numa concepção de democracia liberal mais do que radical.
O livro não pretende, de maneira nenhuma, desenvolver uma
teoria sistemática do direito. A teoria jurídica de Habermas quer,
em primeiro lugar, definir o papel do direito dentro da sociedade
moderna. A perspectiva não é meramente filosófica, mas ao mes-
mo tempo sócio-teórica. Nosso autor define o objeto das suas aná-
lises como sendo o direito positivo posto de maneira democrática.
O direito moderno positivo se apresenta como uma ordem nor-
mativa que é justificada não – como o direito pré-moderno – pela
autoridade carismática ou religiosa, mas somente apelando para
um sistema coerente que possibilita a produção de normas segun-
do um procedimento exatamente determinado por regras precisas
(HABERMAS, 1997, p. 112).
O título do original alemão (Facticidade e validade) diz respeito
à tensão entre o momento fático e o momento normativo do direi-
to. A tensão em questão não é somente uma contraposição, mas ao
mesmo tempo um encontro, um misturar-se dos dois conceitos. O
que é fático esconde sempre um componente de normatividade ou
de idealidade; e o que é ideal tem sempre também uma manifesta-
ção fática na realidade (no caso do direito: na realidade das ordens
jurídicas particulares).
Segundo Habermas, ao direito cabe uma tríplice função. Ele é,
em primeiro lugar, o lugar da mediação entre facticidade e valida-
de. Em segundo lugar, ele é o meio da integração social que é ame-
açada pelo processo de modernização. Finalmente, ele é o meio de
uma integração social que já não pode ser alcançada por forças
morais. Deste último ponto de vista, o direito complementa ou até
substitui a moral.
Um papel central é desempenhado nisso pela solidariedade,
que é um consenso de fundo prévio relativo a valores compar-
tilhados intersubjetivamente pelos quais os atores se orientam.
Ela nasce num contexto ético de hábitos, lealdades e confiança
recíproca, com base no qual podem ser solucionados os conflitos
que surgem em contextos de interação.
142 ◆ Filosofia Política III

A solidariedade é um dos três recursos a partir dos quais as


sociedades modernas satisfazem suas necessidades de integração
social; os outros dois recursos são o dinheiro e o poder adminis-
trativo. A oposição entre mundo da vida e sistema emerge aqui no-
vamente; dessa vez como a oposição entre solidariedade, por um
lado, e dinheiro e poder administrativo, por outro.
Das três forças de integração social, a solidariedade parece ser
a mais fraca. Abre-se uma “lacuna de solidariedade” que pode ser
preenchida somente pelo direito. Em reação ao processo de racio-
nalização, característico da modernidade, o direito recebe, portan-
to, uma dupla função: por um lado, ele assegura um tipo específico
de solidariedade, que é formalizada numa espécie de lealdade pro-
cedimental; por outro lado, ele deve opor-se à colonização do mun-
do da vida por parte dos sistemas da economia e da administração.
Relativamente a esta última função, o direito oferece provavel-
mente a única saída dos problemas surgidos por tal colonização.
Visto que ele só é legítimo quando for produzido em processos de
legislação democrática, tais processos servem, por sua vez, à redu-
ção da complexidade social, ainda que prima facie pareça que eles
são impotentes em relação a esta última.
A democracia não é, então, de maneira nenhuma, somente
uma entre as possíveis formas de Estado e uma entre as possíveis
formas que uma ordem jurídica pode tomar. Ela é antes a úni-
ca forma que uma ordem jurídica legítima pode tomar. Não há
direito democrático sem democracia. Isso fica particularmente
claro se observarmos mais de perto o paradigma jurídico procedi-
mental desenvolvido por Habermas.
Em consequência da sua concepção do direito como meio de
integração social e de mediação entre mundo da vida e sistemas,
entre validade e facticidade, Habermas defende um paradigma jurí-
dico procedimentalista contra aquilo que ele chama de “paradigma
liberal” e de “paradigma do Estado de direito”. O primeiro salien-
ta a autonomia privada e vê, no direito, um instrumento para defen-
dê-la; o segundo atribui grande importância à autonomia pública e
considera o direito como o meio no qual ela pode desenvolver-se.
A segunda metade do Século XX ◆ 143

Contrariamente a esses dois paradigmas, a visão procedimen-


talista do direito parte da ideia de que os cidadãos são, ao mesmo
tempo, os destinatários e os criadores das normas de uma ordem
jurídica. Habermas considera os outros dois paradigmas, expres-
são de uma visão do homem e da sociedade que corresponde à
sociedade da economia capitalista. Contudo, enquanto na leitura
liberal, a sociedade capitalista “preenche a expectativa de justiça
social através da defesa autônoma e privada de interesses próprios”,
no paradigma do Estado social, essa expectativa é negada (HA-
BERMAS, 2007, p. 145). Para ambos os paradigmas, os indivíduos
são meramente destinatários do direito.
O paradigma procedimentalista parte de uma visão da socie-
dade, segundo a qual não há somente processos produtivos, mas
também comunicativos. “O jogo de gangorra entre os sujeitos de
ação privados e estatais é substituído pelas formas de comunicação
mais ou menos intactas das esferas privadas e públicas do mundo
da vida, de um lado, e pelo sistema político, de outro lado” (HA-
BERMAS, 2007, p. 146).
A fim de poder exercer plenamente sua função sociointegrativa,
o direito deve ser legítimo, visto que, afinal, um direito ilegítimo
não seria capaz de impor-se. O direito só é legítimo quando seus
destinatários são ao mesmo tempo seus autores. A legitimidade do
direito se apoia
num arranjo comunicativo: enquanto participantes de discursos racio-
nais, os parceiros de direito devem poder examinar se uma norma con-
trovertida encontra ou poderia encontrar o assentimento de todos os
possíveis atingidos. (HABERMAS, 2007, p. 138).

A ordem jurídica pressupõe a cooperação de sujeitos que – como


na teoria de Rawls – reconhecem-se reciprocamente como parcei-
ros de direito (isto é; membros de uma comunidade jurídica) livres
e iguais (HABERMAS, 2007, p. 121). Isso significa que a autonomia
pública dos parceiros de direito é cooriginária à sua autonomia
privada: cada um possui o direito de participar do processo legis-
lativo, senão o direito criado não é legítimo. Ora, a participação de
cada parceiro de direito no processo legislativo é possível somente
numa democracia. Direito legítimo e democracia estão interliga-
144 ◆ Filosofia Política III

dos. Entre as instâncias legislativas legítimas (cuja atividade é, por


sua vez, regulamentada juridicamente) e a esfera pública (que, pelo
contrário, é livre de tal regulamentação) se instaura assim uma re-
lação de feedback: “No paradigma procedimentalista do direito, a
esfera pública é tida como a ante-sala do complexo parlamentar e
como a periferia que inclui o centro político [e na qual] se origi-
nam os impulsos” (HABERMAS, 2007, p. 186).
A ideia de base do paradigma jurídico procedimental, a saber,
a cooriginariedade de autonomia privada e pública, torna-se
particularmente eficaz na concepção habermasiana dos direitos
fundamentais. Nosso autor salienta o caráter intersubjetivo dos di-
reitos subjetivos: eles possuem um status diferente do das teorias
clássicas (por exemplo, no contratualismo de Locke ou de Kant), já
que não são direitos inatos, mas direitos que se apoiam “no reco-
nhecimento recíproco de sujeitos de direito que cooperam” (HA-
BERMAS, 2007, p. 120).
No terceiro capítulo de Direito e democracia, Habermas em-
preende uma reconstrução do sistema dos direitos, que resulta da
aplicação do princípio do discurso (pelo qual é legítima somente
a norma sobre a qual foi alcançado, através duma argumentação
racional, um consenso entre as pessoas afetadas pela aplicação da
norma em questão) à forma do direito. Ao fazer isso, ele individua
cinco grupos de direitos sem pormenorizar seu conteúdo concreto
(isso cabe às concretas comunidades jurídicas).
Habermas procede em dois passos, que são separados somente
por razões de apresentação, visto que representam “um processo
circular” – correspondentemente à ideia de uma cooriginariedade
da autonomia privada e da pública. O primeiro passo consiste na
aplicação do princípio do discurso ao meio do direito como tal;
disto surgem três categorias de direitos: (1) direitos “à maior me-
dida possível de iguais liberdades subjetivas de ação”, (2) direitos
ligados ao “status de um membro numa associação voluntária de
parceiros do direito” e (3) direitos à “proteção jurídica individual”
(HABERMAS, 2007, p. 159).
Esses três grupos de direitos pertencem ao âmbito da autonomia
privada. Somente no passo sucessivo são introduzidos (4) direitos
A segunda metade do Século XX ◆ 145

“à participação, em igualdade de chances, em processos de forma-


ção da opinião e da vontade” que têm a ver com a autonomia pú-
blica dos cidadãos (HABERMAS, 2007, p. 159). Todos esses direitos
implicam, finalmente, (5) direitos à garantia de condições de vida
necessárias “para um aproveitamento, em igualdade de chances, dos
direitos elencados de (1) até (4)” (HABERMAS, 2007, p. 160).
Habermas não dedica ulterior atenção aos direitos desse quinto
grupo, embora eles possuam uma função importante. Mas eles não
se situam nem no âmbito da autonomia privada nem no da auto-
nomia pública dos sujeitos de direito. Trata-se de direitos sociais e
culturais que concernem antes à relação dos cidadãos com o Esta-
do e não a dos cidadãos entre si.
Esses direitos fundamentais precisam da criação de um poder
estatal para serem garantidos a longo prazo. Direito e poder po-
lítico são cooriginários: o primeiro necessita do segundo para ter
uma eficácia duradora; o poder político executivo, de organiza-
ção e de sanção deve, por sua vez, ser regulado juridicamente para
ser legítimo:
O Estado é necessário como poder de organização, de sanção e de exe-
cução, porque os direitos têm que ser implantados, porque a comunida-
de de direito necessita de uma jurisdição organizada e de uma força para
estabilizar a identidade, e porque a formação da vontade política cria
programas que têm que ser implementados. (HABERMAS, 2007, p. 170).

O processo horizontal, pelo qual os cidadãos formam uma co-


munidade jurídica, transforma-se, portanto, na organização vertical
do Estado, por meio da qual a práxis de autodeterminação dos cida-
dãos é institucionalizada. Ao mesmo tempo, essa institucionalização
cria o espaço para a formação informal da opinião na esfera pública
política, para a participação política dentro e fora dos partidos etc.
Habermas fala aqui do poder comunicativamente diluído de foros
e corporações que podem “ligar o poder administrativo do aparelho
estatal à vontade dos cidadãos” (HABERMAS, 2007, p. 171).
A soberania popular não se manifesta, assim, num coletivo (no
povo como grupo concreto de indivíduos), mas em círculos co-
municativos anônimos, “na circulação de consultas e de decisões
estruturadas racionalmente” (HABERMAS, 2007, p. 173). A esfera
146 ◆ Filosofia Política III

pública em questão não é, de modo algum, um simples fórum de


opiniões, mas um componente essencial da democracia – contra
uma concepção meramente institucional dela, segundo a qual a de-
mocracia se definiria in primis, através de determinadas instituições.
Numa teoria desse tipo, a opinião dos cidadãos torna-se poder
político somente por meio dos instrumentos institucionais pre-
vistos, como eleições, plebiscitos etc. Na teoria de Habermas, pelo
contrário, o processo de tradução das opiniões públicas em poder
político acontece continuamente. A verdadeira democracia pres-
supõe uma esfera pública funcionante e uma cultura política de
cunho democrático, visto que, “instituições jurídicas da liberdade
decompõem-se quando inexistem iniciativas de uma população
acostumada à liberdade” (HABERMAS, 2007, p. 168).
Há, portanto, no pensamento de Habermas, uma continuidade
entre as primeiras obras e as últimas: uma continuidade no signo
da centralidade da noção de esfera pública e da ideia de uma co-
municação livre e aberta. Contudo, há também a consciência de
quão frágil e ameaçada é tal comunicação e de quão perigosa é a
colonização do mundo da vida pela economia e pela administra-
ção (outro fio condutor do pensamento do nosso autor).
A capacidade de contrabalançar os elementos mais normativos
de sua teoria com a atenção para a realidade social faz de Haber-
mas um dos pensadores mais interessantes de nossa época, capaz
de fascinar filósofos, sociólogos e juristas. Uma característica que
ele compartilha com um pensador muito diferente dele, a saber,
Michel Foucault.

4.3 Michel Foucault


Ainda que o fenômeno do poder desempenhe um papel central
no pensamento do francês Michel Foucault (sobre Foucault, ver
Billouet (2003), Deleuze (1988), Gros (2004) e Revel (2005)), esse
autor não quer (e não pode, do seu ponto de vista) oferecer uma
teoria dele: cada saber é historicamente determinado, cada teoria
Michel Foucault (1926-
é provisória e acidental, ainda mais quando se ocupe dum objeto 1984). Fonte: http://tinyurl.
complexo como o poder. O poder não é uma coisa, mas uma prática com/4e6lqn2
A segunda metade do Século XX ◆ 147

social e, portanto, Foucault não oferece dele uma teoria, mas uma
analítica, isto é, uma análise de seus dispositivos, de maneira a mos-
trar seus mecanismos e seus efeitos. Não é possível reconstruir, nesse
contexto, as complexas análises foucaultianas das manifestações do
poder, inclusive as cotidianas e menos óbvias (por isso, ele fala duma
“microfísica do poder” em Foucault (1979)), pois isso significaria
reconstruir o pensamento de Foucault na sua integridade.
Simplificando, podemos dizer que, numa primeira fase de seu
pensamento, Foucault se ocupa principalmente da história do
sujeito moderno: quer no sentido de fazer uma história das teo-
rias do sujeito, quer no sentido dum estudo (1) das instituições que
tornam certos indivíduos objetos de saber e de dominação (a clí-
nica psiquiátrica, a escola, a prisão, o quartel etc.) e (2) das formas
de saber que permitem a criação de tais instituições.
Da análise das disciplinas, Foucault passa a uma análise de for-
mas de poder mais tradicionais, introduzindo uma distinção fun-
damental entre os conceitos de soberania e de governo. Contudo,
ao estudar o fenômeno da sexualidade (e da construção social do
fenômeno), ele percebe que existem, além de formas de domina-
ção externas, também técnicas interiores, adotadas pelo próprio
indivíduo e visadas a operar modificações nele; no seu corpo, na
sua alma, nos pensamentos, na conduta etc. Esse conjunto de téc-
nicas é resumido por Foucault na expressão “técnicas de si” e sua
análise ocupa os últimos anos de vida do pensador francês.

4.3.1 O poder como relação entre forças


As teorias tradicionais do poder pressupõem sempre um sujeito
dotado de consciência, do qual o poder tomaria posse. Nessa visão,
existem, de um lado, o poder legislador, dominador e controlador
e, do outro lado, o sujeito obediente e submetido. Em Vigiar e punir
e A vontade de saber, Foucault recusa alguns postulados que carac-
Inspiro-me aqui em Deleuze
(1988). terizam essa maneira de pensar o poder.
•• Em primeiro lugar, o poder não é um privilégio adquirido
pela classe dominante (os chamados “detentores do poder”);
não é uma propriedade (algo que se possui), mas uma estra-
tégia (algo que se exerce).
148 ◆ Filosofia Política III

•• Em segundo lugar, o poder não pode ser localizado no Esta-


do ou em outras instituições. O próprio Estado é o resultado
duma multiplicidade de mecanismos de poder. Não há, em
suma, um lugar privilegiado do poder ou que represente a
fonte dele. O poder, em qualquer lugar, perpassa todas as re-
lações sociais (que são, justamente, relações de poder) sendo
exercido em microâmbitos.
•• Em terceiro lugar, o poder não é subordinado a um certo
modo de produção, como o capitalista. Foucault rejeita, em
outras palavras, qualquer tentativa de explicar o fenômeno
do poder em termos de determinismo econômico, como o
faz o marxismo ortodoxo.
•• Em quarto lugar, o poder não possui uma essência, nem é
um atribuição de alguém, já que é uma relação entre forças
(voltaremos logo sobre este ponto).
•• Em quinto lugar, enquanto relação entre forças, o poder não
possui uma modalidade exclusivamente repressiva, mas tam-
bém uma produtiva: não se limita a proibir ou impedir, mas
incita, suscita, articula etc. O poder produz corpos dóceis e
úteis, provoca o prazer (como fica claro nas análises da sexu-
alidade em A vontade de saber), cria saberes e discursos.
•• Finalmente, o poder não se expressa primariamente em for-
ma de lei jurídica, pois esta representa somente uma forma
de gerir e formalizar atividades ilegais, que são permitidas a
alguns e proibidas a outros.
Ao contestar a concepção jurídica do poder, Foucault constata
o fato de que, numa sociedade como a nossa, em que os aparelhos
de poder são tão numerosos, os dispositivos de poder se reduzem
meramente às leis de proibição (FOUCAULT, 1988). Há duas ra-
zões para isso: Banco Central do Brasil. Como
no caso dos bancos que podem
•• A primeira é uma razão “geral e tática”: o poder é tolerá- imprimir dinheiro através do
vel à condição de dissimular uma parte importante de si, de Banco Central, do qual são – em
muitos países – acionários, ou
dissimular, pelo menos em parte, seu ser cínico. Quem lhe é aplicar juros elevados sobre
submetido o aceita na crença de encontrar nele não somente os empréstimos: atividades
proibidas ao indivíduo
um limite saudável aos seus apetites, mas até um elemento de particular. Fonte: http://tinyurl.
liberdade (como em Rousseau, Kant e os teóricos clássicos, com/4q29f62
A segunda metade do Século XX ◆ 149

que justificam a submissão ao poder do Estado como expres-


são da liberdade dos cidadãos).
•• A segunda razão é de caráter histórico: a partir da Idade Mé-
dia, nas sociedades ocidentais, o exercício do poder sempre
se deu em termos de direito. Até a crítica mais radical, que
vê no direito somente uma forma de violência, funda-se na
ideia de que o poder deveria ser exercido de forma mais justa,
ou seja, deveria tomar as formas dum direito diferente. Nesse
contexto, Foucault afirma que “é preciso cortar a cabeça do
rei”, ou seja, liberar-se duma certa imagem do poder como
lei ou ordem jurídica e construir uma analítica do poder, que
não tenha como modelo o direito (FOUCAULT, 1988).
O termo “poder” indica, na realidade, uma multiplicidade de
relações de força. Portanto, ele é onipresente, já que “se produz
a cada instante, em cada ponto, antes, em cada relação entre um
ponto e outro. O poder é em cada lugar, não porque englobe tudo,
mas porque vem de cada lugar” (FOUCAULT, 1988, p. 90). É algo
que se exerce “a partir de inúmeros pontos” (FOUCAULT, 1988,
p. 90), é imanente a cada tipo de relação (processos econômicos,
relações sexuais etc.) e vem “de baixo”. Com essa expressão, Fou-
cault quer dizer que não se baseia na oposição entre dominantes
e dominados; as relações de poder se formam, antes, em todos os
níveis do corpo social e o perpassam.
Finalmente, “onde há poder, há resistência” (FOUCAULT, 1988,
p. 91). No enredo do poder, na rede de relações que une entre si
os pontos de força, sempre há pontos de resistência que desem-
penham o papel “de adversário, de alvo, de apoio” (FOUCAULT,
1988, p. 91). Podem ser resistências de vários tipos (“possíveis,
necessárias, improváveis, espontâneas, selvagens, solitárias” etc.)
(FOUCAULT, 1988, p. 91) e às vezes se traduzem em grandes rup-
turas radicais; mais frequentemente se manifestam em “pontos de
resistência móveis e transitórios” (FOUCAULT, 1988, p. 91), que,
porém, podem tornar possível até uma revolução.
150 ◆ Filosofia Política III

Cabe salientar a diferença entre poder e dominação. Enquanto


o primeiro remete a uma constelação mutável, a um campo de for-
ças em contínua transformação (e justamente isto torna inevitável
o surgimento de pontos de resistência), a segunda implica numa
situação fixa e imutável, na qual não é possível modificar a relação
entre as forças envolvidas. A relação de poder é pluridimensional,
a de dominação não.

Ora, é desta última que devemos liberar-nos, não das relações


de poder, já que estes são constitutivos para a formação do pró-
prio sujeito, ou melhor: para os processos de sujeitivação, como
diz Foucault.
As relações de poder ligam, entre si, as singularidades e determi-
nam assim a existência dum campo de forças. As instituições não
são “detentoras” do poder, mas são práticas que se limitam a repro-
duzir as relações de poder, sem produzi-las. Estudar uma institui-
ção significa estudar as relações de poder que ela fixa e integra. Até
no caso do Estado dever-se-ia falar numa “estatalização contínua”,
num processo ininterrupto de fixação de certas relações de poder
(DELEUZE, 1988). O Estado pressupõe, então, a existência de tais
relações que não são sua fonte. Por isso, Foucault atribui priori-
dade ao conceito de governo sobre o de Estado.

4.3.2 Soberania, governamentalidade,


biopolítica
Na célebre aula sobre a governamentalidade, de 1 de fevereiro
de 1978, Foucault contrapõe à concepção maquiaveliana (para a
qual, o objetivo da arte de governar consiste em “manter o estado”,
isto é, na capacidade do príncipe em manter sua soberania sobre
um território e uma população) uma concepção segundo a qual o
governo do príncipe é somente uma entre as várias formas de go-
verno possíveis, todas internas à sociedade ou ao Estado.
Os autores citados por Foucault, nesse contexto, distinguem
pelo menos três tipos de governo: o governo de si mesmos, que
diz respeito à moral; o da família, que diz respeito à economia; e
A segunda metade do Século XX ◆ 151

o do Estado, que diz respeito à política. Entre essas três formas de


governo, há uma
(...) continuidade ascendente, no sentido de que, quem quiser ser capaz
de governar o Estado primeiro precisa saber governar a si mesmo; de-
pois, num outro nível, governar sua família, seu bem, seu fim; por fim,
chegará a governar o Estado” (FOUCAULT, 2008, p. 125).

Enquanto, para Maquiavel, o objeto do poder soberano são o


território e seus habitantes (os súditos do príncipe ou os cidadãos
da república), o objeto do governo é o “complexo constituído pelos
homens e pelas coisas”, ou seja,
as riquezas, os recursos, os meios de subsistência, o território, é claro,
em suas fronteiras, com suas qualidades, seu clima, sua sequidão, sua
fecundidade. São os homens em suas relações com estas outras coisas
que são os costumes, os hábitos, as maneiras de pensar. E, enfim, são os
homens nestas outras coisas que podem ser os acidentes ou as calami-
dades, como a fome, as epidemias, a morte. (FOUCAULT, 2008, p. 128).

O fim do soberano é a obediência dos súditos (isto é, o respei-


to da soberania) e seu principal instrumento é a lei, enquanto o
governo se coloca uma pluralidade de finalidades específicas e, a
fim de realizá-las, deve servir-se não de leis, mas de táticas (FOU-
CAULT, 2008, p. 132).
A partir desse momento, o critério para julgar a ação do gover-
no será o sucesso ou o fracasso dessas táticas, não sua legitimida-
de. O baricentro da ação política se desloca para o âmbito econômi-
co, o governo se torna, em primeiro lugar, governo da economia. Por
isso, no curso intitulado Nascimento da biopolítica, (FOUCAULT,
2008a), Foucault opera uma análise minuciosa do neoliberalismo
norte-americano e europeu, o qual julga a atividade de governo com
base em critérios meramente econômicos: é o mercado que agora
permite decidir se um governo é bom governo ou não.
A passagem da ideia tradicional de soberania, àquela de gover-
no, não é somente teórica, mas acontece também na prática, ainda
que não em coincidência com a mudança de paradigma teórico.
Certo modo de pensar e exercer o poder é substituído por outro,
num processo que Foucault descreve também em A vontade de sa-
ber e no curso Em defesa da sociedade (FOUCAULT, 2005). O po-
152 ◆ Filosofia Política III

der tradicional é exercido essencialmente na forma da apropriação


(de produtos, de bens, de serviços, de trabalho, de sangue) imposta
aos súditos, pelo soberano. Este último se caracteriza pelo seu po-
der de vida e morte, que, na realidade, é, fundamentalmente, mero
poder de morte, isto é, o direito de matar os súditos a fim de garan-
tir a sobrevivência da própria soberania (executando os rebeldes
ou enviando soldados a morrer por ele). O poder é exercido, então,
negativamente, como subtração de bens ou da vida.
Porém, no curso dos séculos XVII e XVIII, algo muda. O poder
começa a ser exercido positivamente sobre a vida, e essa mudança
se dá seguindo duas linhas principais, cada uma com seu obje-
to, respectivamente: o corpo e a população. No primeiro caso, o
corpo é tornado dócil e útil por meio das disciplinas analisadas
pelo próprio Foucault nos escritos dos anos 60. Trata-se daquela
que ele denomina de “anatomo-política”. No segundo caso, trata- 1
Este conceito ocupou Foucault
se de intervir sobre a população e de regulamentar seus processos em seus últimos anos, quer no
sentido de existência biológica
biológicos (morte, reprodução etc.) por meio de táticas ligadas a (isto o levou a desenvolver
saberes específicos: controle dos nascimentos, medidas de saúde ulteriormente a noção de
pública, levantamentos estatísticos de dados relativos às taxas de biopolítica), quer em relação
à dimensão da existência
natalidade, mortalidade, longevidade etc. Nasce aquela que Fou- individual (para este fim ele se
cault denomina de “biopolítica”. dedicou a estudar a ética do
cuidado de si, que caracteriza
Objeto da biopolítica é, então, a população considerada não a cultura grega e romana).
como o conjunto dos súditos submetidos à lei (como acontecia na
visão jurídica tradicional do poder), mas como um dado biológico
que deve ser controlado, medido, regulamentado. A vida biológica
se torna um elemento político central. A tradicional visão jurídica
do poder nos impede de ver essa mudança essencial e é por isso
que Foucault exorta a “cortar a cabeça do rei”, isto é, a não colocar
a questão do poder em termos de soberania, em termos jurídicos,
mas em termos de existência1.
O tema da biopolítica conhece um grande sucesso atualmente e
é analisado por vários autores. O mais conhecido deles é o italiano
Giorgio Agamben,2 que se serve dele para descrever a situação 2
Giorgio Agamben (1942-).
política e jurídica atual. Os dois textos mais conhecido deste autor Fonte: http://tinyurl.
são Homo Sacer, de 1998, e Estado de exceção, de 2005 (AGAM- com/5uhec6c
BEN, 2004a).
A segunda metade do Século XX ◆ 153

Agamben junta, de maneira original, temas presentes no pen-


samento de Aristóteles, Carl Schmitt, Hannah Arendt e Foucault.
Recuperando a antiga figura jurídica romana do Homo Sacer (um
indivíduo fora da proteção da lei, que, para a lei, praticamente não
existia) e a noção schmittiana do estado de exceção, ele aponta para
o fato de que, no mundo contemporâneo, o indivíduo corre o risco
de cair num estado de indeterminação jurídica, no qual não possui
direito nenhum perante o aparelho legal do Estado (um exemplo
disso são os presos da baia de Guantánamo).
Nesse contexto, o indivíduo é considerado mero sujeito vivo,
que não possui nada mais do que sua “vida nua”, entendida como
zoe (termo grego que indica a vida biológica) e não como bios (ter-
mo grego que indica a vida além da mera dimensão biológica, por
exemplo, como vida ativa ou contemplativa, como vida ética etc.).
A biopolítica consiste precisamente no governo da vida nua, sem
considerar minimamente outras dimensões que a mera sobrevi-
vência biológica (por exemplo, garantindo a segurança em preço
da liberdade).

4.4 A filosofia política perante os


desafios do século XXI
O século XXI apresenta um quadro bastante diferente daquele
do começo do século XIX, do qual este livro-texto tinha partido. A
globalização e a crescente interdependência entre os países levou a
uma internacionalização de problemas tão diferentes entre si como
as crises financeiras ou o aquecimento global – problemas para os
quais não somente não foram encontradas soluções na prática, mas
perante os quais, até a teoria permanece muda ou reticente.
Veremos aqui, em seguida, algumas das correntes e das temáticas
mais relevantes no atual debate filosófico-político. Nenhuma delas
consegue oferecer uma resposta definitiva aos desafios do novo sé-
culo, mas, pelo menos, elas apontam para possíveis caminhos teóri-
cos e práticos que podem ser percorridos na busca de tais soluções.
154 ◆ Filosofia Política III

4.4.1 Multiculturalismo e teorias do


reconhecimento
Segundo Will Kymlicka, nos últimos anos, o debate teórico-po-
lítico tem sido dominado pelo tema do multiculturalismo (Kymli-
cka, 2001, p. 17). Poderíamos acusar Kymlicka de parcialidade, já
que ele é, com certeza, um dos principais responsáveis pela “onda”
multiculturalista que tomou posse da filosofia política contempo-
rânea – e não somente no mundo anglo-saxônico (KYMLICKA,
1995). Contudo, quase não há pensadores políticos de primeiro
plano que, de fato, não tenham tomado posição sobre o assunto,
ainda que fosse para negar sua relevância. Embora não seja possí-
vel fazer justiça à complexidade do assunto nesse contexto, ofere-
ceremos uma rápida caracterização do problema.
O termo multiculturalismo indica uma posição teórica e políti-
ca que aponta para a circunstância de que, em muitas sociedades,
convivem no mesmo espaço geopolítico (isso significa no mesmo
Estado) várias culturas ou grupos identificáveis culturalmente (ou
seja, com base em elementos que os diferenciam de outros grupos
e que podem ser a língua, a religião etc.). O multiculturalismo exi-
ge o reconhecimento político e jurídico das diferenças culturais
e luta contra qualquer tentativa de assimilação forçada (violenta
ou não). Ele celebra, portanto, tais diferenças como algo de po-
sitivo que merece ser mantido. Normalmente
se distinguem os casos em que a convivência
entre as culturas tem raízes históricas antigas
(como no caso da Espanha e das culturas cata-
lã e basca) e os casos em que tal convivência é
a consequência de fluxos migratórios recentes
(como no caso das minorias muçulmanas na
Europa contemporânea).
O multiculturalismo não se ocupa, então,
com a questão do diálogo entre culturas dis-
O multiculturalismo exige o reconhecimento político e
tantes, mas com a questão da convivência de jurídico das diferenças culturais e luta contra qualquer
culturas diversas num espaço comum. Em se- tentativa de assimilação forçada (violenta ou não). Ele
celebra, portanto, tais diferenças como algo de positivo
guida, deixaremos implícito, portanto, que as que merece ser mantido. Fonte: http://html.rincondelvago.
culturas nas quais estaremos falando são cultu- com/000489140.jpg
A segunda metade do Século XX ◆ 155

ras que compartilham um mesmo espaço geopolítico, não culturas


que pertencem a diferentes espaços.
Essa definição de multiculturalismo é muito geral, já que exis-
tem vários tipos de multiculturalismo. M. M. Slaughter, por exem-
plo, identifica dois tipos de multiculturalismo: o pluralista e o se-
paratista (Slaughter, 1994, p. 370).
O primeiro reconhece as diferenças entre culturas, mas procura
uma base comum sobre a qual elas possam organizar sua convi-
vência, como na ideia dos EUA como “uma nação de minorias”.
Esta é a célebre fórmula Os separatistas, pelo contrário, insistem na necessidade de um re-
usada pelo juiz Powell na
fundamentação de sua conhecimento público e jurídico da fragmentação cultural. Slau-
posição na causa University ghter recorre à metáfora do mosaico para explicar a diferença en-
of California vs. Bakke, (apud
Slaughter, 1994, p. 370). tre as duas posições: os pluralistas apontam para o fato de que as
peças do mosaico (as culturas) formam uma unidade (o desenho
do mosaico), enquanto os separatistas insistem sobre o fato de que
as peças são discretas e autossuficientes e que só foram juntadas
com outras, pré-existindo, então, ao mosaico.
Seyla Benhabib recorre também a essa metáfora, mas para re-
cusar a posição daquele que ela denomina de “multiculturalismo a
mosaico” (mosaic multiculturalism). A crítica principal de Benha-
bib concerne à visão de que os grupos e as culturas seriam entida-
des claramente delineadas e identificáveis, cada uma com limites
claros e imutáveis (Benhabib, 2002, p. 8). A essa visão, ela contra-
põe a ideia de que as culturas humanas são “criações, recriações
e negociações contínuas de limites imaginários entre ‘nós’ e o(s)
‘outro(s)’” (Benhabib, 2002, p. 8).
Os defensores do “multiculturalismo a mosaico” tentariam, em
suma, negar o Outro como algo inevitavelmente presente em cada
cultura e objetivariam uma integridade cultural inatingível. Eles
fundamentariam sua posição sobre uma ficção, que James Tully
denomina de “billiard-ball conception” (TULLY, 1995, p. 10), a sa-
ber, a ideia de que um grupo (cultura, minoria) seja algo clara-
mente identificado e fechado em si mesmo (como uma mônada ou
uma peça de mosaico).
Ao “multiculturalismo a mosaico”, Benhabib contrapõe a visão
de um diálogo entre culturas definidas por narrativas sempre mu-
156 ◆ Filosofia Política III

táveis e Tully uma noção de reconhecimento constitucional que


foge dos esquemas rígidos da concepção “bola de bilhar”. Ambos
autores colocam, no centro da sua reflexão, a difícil relação entre
grupo (incluídas as culturas) e indivíduo.
As tensões internas a essa relação se manifestam de forma cla-
ra se considerarmos a questão do surgimento da identidade in-
dividual e da coletiva. A formação da identidade individual só é
possível no contexto de uma cultura, através da apropriação, por
parte do indivíduo, dos “códigos” linguísticos, morais etc., próprios
de uma comunidade. Contudo, esse processo acontece em termo
simbólico, isto é, no âmbito da narrativa que constitui aquela cul-
tura (e, portanto, sua identidade coletiva) e da narrativa individual,
através da qual cada um se define como sujeito. O processo não
acontece num nível ontológico, por assim dizer, pois, em caso con-
trário, ninguém poderia sair da própria cultura e afastar-se dela.
Ora, cada narrativa (coletiva ou individual) está sujeita a mudan-
ças e pode ser modificada em várias circunstâncias.
A ideia de que a identidade coletiva é definida com base em nar-
rativas mutáveis é retomada em parte por Charles Taylor, o filóso-
fo canadense que escreveu um dos manifestos do multiculturalis-
mo, a saber, O multiculturalismo e a política do reconhecimento, de
1984 (TAYLOR, 1998). Nesse texto clássico, Taylor defende, contra
os críticos do multiculturalismo, a importância de dar valor às cul-
turas e de estudá-las, já que não podemos entender a nós mesmos
se não considerarmos o contexto cultural no qual desenvolvemos
nossa identidade; ao mesmo tempo, afirma, contra os multicultu-
ralistas mais radicais, que o estudo das culturas pode nos levar a
dar juízos legítimos sobre elas e não nos obriga a considerá-las
todas iguais ou dignas de igual respeito.
Ora, tendo-se distanciado dos dois extremos, Taylor apresenta
um multiculturalismo moderado, centrado sobre a noção de reco-
nhecimento jurídico. O que está em questão são direitos culturais
específicos de grupos culturais definidos com base em critérios,
quanto mais objetivos possíveis (para evitar que qualquer grupo
possa reclamar o estatuto de minoria cultural).
A segunda metade do Século XX ◆ 157

Na ótica de Taylor, portanto, grupos podem ser titulares de di-


reitos como os indivíduos. Existem, em outras palavras, direitos
coletivos. Essa ideia foi criticada (inclusive pelos comentadores,
cujos textos estão incluídos no livro em questão) por não escla-
recer o estatuto de tais direitos, particularmente em relação aos
direitos individuais: em caso de conflito, deveriam prevalecer uns
ou outros? E como definir exatamente as culturas que merecem
reconhecimento jurídico? O exemplo de Taylor (os québecois fran-
cófonos do Canadá) é simples demais: o que fazer com grupos de
imigrados? Até que ponto uma cultura pode mudar para aceitar
elementos de outras culturas?
Justamente o tema da mudança numa cultura está no centro
dum outro livro de Taylor. Em Modern Social Imaginaries, de 2004,
nosso autor defende a posição de que cada sociedade se funda-
menta num determinado “imaginário social”. Com esse termo, ele
entende que
(...) as maneiras nas quais as pessoas imaginam sua existência social, o
modo como elas se acomodam com os outros, o modo como funcio-
nam as coisas entre elas e seus semelhantes, as expectativas que são
satisfeitas normalmente, e as noções e imagens normativas mais pro-
fundas que fundamentam tais expectativas (TAYLOR, 2004, p. 23).

Esse imaginário é compartilhado pelos membros de uma socie-


dade e possibilita a existência de práticas comuns e de um senso de
legitimidade relativo a tais práticas: “possuímos um senso de como
as coisas vão habitualmente, mas isto é entrelaçado com a ideia de
como elas deveriam ir” (TAYLOR, 2004, p. 24).
Por isso, é possível identificar certo repertório de ações coleti-
vas disponíveis para uma determinada sociedade que compreende
as ações que os membros daquela sociedade sabem como prati-
car e aceitam como legítimas. Tais ações variam, desde a maneira
de celebrar eleições gerais, por exemplo, até a maneira de man-
ter “uma conversa social com desconhecidos no hall de um hotel”
(TAYLOR, 2004, p. 24). É como se os membros de uma sociedade
trouxessem sempre consigo um “mapa implícito do espaço social”
(TAYLOR, 2004, p. 24), sabendo (sempre de forma implícita) com
158 ◆ Filosofia Política III

que tipo de pessoas eles podem associar-se, em que formas e em


que circunstâncias (TAYLOR, 2004, p. 25).
Ora, um imaginário social pode mudar. Novas práticas podem
ser reconhecidas como legítimas e até substituir as antigas. Segun-
do Taylor, isso acontece através de longos processos começados ge-
ralmente por iniciativas de grupos menores no interior da socieda-
de, e o resultado final é o surgimento de um novo imaginário social.

Se aplicássemos o conceito de imaginário social ao conceito de


cultura, chegaríamos à posição (defendida por Tully e Benhabib,
entre outros) segundo a qual uma cultura é definida não com base
em elementos substanciais, como história comum, língua, religião
etc., mas com base numa visão compartilhada de tais elementos.

Na opinião de Benhabib,“as próprias culturas, assim como as socie-


dades, são sistemas de ação e de atribuição de sentido não holísticos,
mas polifônicos, que possuem vários níveis, são descentralizados e
percorridos por fraturas” (BENHABIB, 2002, p. 25, grifo nosso).
Desse ponto de vista, falar em identidade coletiva de um grupo,
de uma cultura ou de uma sociedade significa simplesmente utili-
zar uma metáfora modelada sobre o conceito de identidade indi-
vidual – uma metáfora, contudo, que (como todas as metáforas)
não descreve uma realidade, mas chama a atenção para uma seme-
lhança entre dois objetos, nesse caso, o indivíduo e o coletivo. Ora,
no caso em questão, essa semelhança não parece suficientemente
forte para justificar o uso do termo “identidade” no sentido mais
próprio, quando aplicado a um coletivo (sem contar que, talvez, ele
seja impróprio até quando aplicado a um indivíduo).
A própria noção de identidade coletiva deveria, portanto, ser re-
vista, na opinião de autores como Benhabib e Tully, ainda que isso
não signifique a negação da existência e do valor de culturas diferen-
tes: o que é posto em questão é sua prioridade, no que diz respeito
aos indivíduos que nelas vivem e que, no final, as mantêm vivas. Mas
não podemos impor aos indivíduos manter viva uma cultura se eles
não quiserem, ou impor que vivam conforme os ditados da tradição
se eles preferirem modificá-la. Tal modificação, longe de representar
A segunda metade do Século XX ◆ 159

uma ameaça à presumida identidade coletiva do grupo, demonstra-


ria a vitalidade da cultura em questão, segundo tais autores.
Numa direção análoga àquela dos teóricos do multiculturalismo,
movimentam-se aqueles autores que pretendem desenvolver uma
teoria do reconhecimento. O principal entre eles é o alemão Axel
Honneth. Em Luta por reconhecimento, Honneth recorre ao pensa-
mento de Hegel, em particular ao fragmento Sistema da eticidade
(de 1802, mas publicado póstumo) e à Fenomenologia do Espírito
(1806), mas também à Filosofia do direito (1821), para construir
uma tríade de formas de relacionamento inter-humano que possui
uma estrutura dialética (ainda que o próprio Honneth não chame
a atenção para esse ponto – talvez para não dar a impressão de fi-
car numa ótica exclusivamente hegeliana, em vez de usar o modelo
hegeliano somente como uma base para uma teoria ancorada nos
resultados de pesquisas científicas empíricas, como ele pretende).
Axel Honneth (1949- ). Em Hegel, os três momentos que constituem a eticidade são a
Fonte: http://www.
cccb.org/en/autor-axel_ família, a sociedade civil e o Estado: neles os indivíduos entram em
honneth-28719 diferentes tipos de relações entre si e assumem diferentes atitudes
(ver o livro-texto Filosofia Política II, seção 6.4). Honneth descre-
ve a tríade amor, direito e solidariedade, na qual é presente uma
dialética análoga àquela que determina as relações entre os três
momentos da eticidade hegeliana.
Se as relações amorosas (que são relações primárias, já que le-
vam à constituição do próprio sujeito e lhe dão autoconfiança)
representam o momento do imediato (como no caso da família
em Hegel), as relações jurídicas (que atribuem direitos aos indi-
víduos e lhes dão autorrespeito) consideram os sujeitos como in-
divíduos isolados, meras pessoas jurídicas detentoras de direitos
e deveres (como acontece na sociedade civil hegeliana), enquanto
– finalmente –, nas relações comunitárias (que dão aos indivíduos
autoestima), a exterioridade das relações jurídicas é suprassumida
(termo que Honneth, obviamente, não utiliza) numa relação soli-
dária de cuidado ativo entre os membros da comunidade (como
no Estado hegeliano). Destarte, a solidariedade se apresenta como
uma atitude dotada de uma tonalidade emotiva impensável nas re-
lações jurídicas. Vale a pena considerar a passagem central na qual
Honneth expõe essa diferença:
160 ◆ Filosofia Política III

Relações dessa espécie podem se chamar “solidárias” porque elas não


despertam somente a tolerância [passiva] para com a particularidade
individual da outra pessoa, mas também o interesse afetivo por essa
particularidade: só na medida em que eu cuido ativamente de que suas
propriedades, estranhas a mim, possam se desdobrar, os objetivos que
nos são comuns passam a ser realizáveis. (HONNETH, 2003, p. 210).

A solidariedade se traduz num cuidado ativo direto para com o


bem-estar alheio – cuidado baseado num interesse afetivo, e não
meramente racional. Somente dessa maneira será possível realizar
os objetivos comuns que definem, hegelianamente, a comunida-
de política (ainda que Honneth não exija dos indivíduos que eles
façam de tais objetivos comuns seus objetivos individuais –esta é,
com certeza, uma importante diferença entre ele e Hegel).
Numa sociedade pós-tradicional, o objetivo comum é o de ga-
rantir a todos os membros a possibilidade de desdobrar suas qua-
lidades para realizar planos de vida boa, cuja determinação, con-
tudo, é operada pelos próprios indivíduos, e não pela comunidade,
como numa sociedade tradicional. Em tal contexto, afirma Honne-
th, “o conceito de eticidade refere-se agora ao todo das condições
intersubjetivas das quais se pode demonstrar que servem à autor-
realização individual na qualidade de pressupostos normativos”
(HONNETH, 2003, p. 271). Tais condições devem ser o mais am-
plas e formais possíveis para evitar impor aos indivíduos modelos
de vida boa que eles não escolheram.
Desse ponto de vista, um papel fundamental é desempenhado
pelos direitos individuais e, portanto, pelo reconhecimento jurídi-
co. Isso leva Honneth a afirmar que “a questão sobre em que me-
dida a solidariedade tem de entrar no contexto das condições de
uma eticidade pós-tradicional não pode ser explicada sem uma
referência aos princípios jurídicos” (HONNETH, 2003, p. 278).
Permanece aberta, então, a questão de quais são os valores ma-
teriais que a solidariedade pós-tradicional deveria tentar realizar.
O próprio Honneth se recusa a dar uma resposta a tal questão, já
que “isso não é mais assunto da teoria, mas sim do futuro das lutas
sociais” (HONNETH, 2003, p. 280).
A teoria do reconhecimento de Honneth é parcialmente critica-
da por autores que pensam que ela represente uma psicologização
A segunda metade do Século XX ◆ 161

da injustiça social (esta última seria reduzida ao mero sentimento


de injustiça; com o seguinte resultado: quem não se sentir vítima
dela, de fato não o seria, apesar de viver em circunstâncias objeti-
vamente injustas) e uma redução das questões sociais a uma ques-
tão de autoestima ou de respeito.
Na tentativa de encontrar um meio-termo, Nancy Fraser defen-
de a ideia de que questões de justiça social são, ao mesmo tempo,
questões de reconhecimento e de redistribuição, ainda que esses
dois pontos possam possuir um peso diverso, em casos diferen-
tes. Por exemplo, no caso das reivindicações dos trabalhadores, é
inegável que o lado redistributivo (por exemplo, o fato de exigir
salários mais altos) seja dominante, mas há também uma busca
implícita de reconhecimento (reconhecimento da própria digni-
dade de trabalhadores contra certo classicismo, mas também da
própria atividade, já que salários baixos indicam que tal atividade
Nancy Fraser (1947- ).
Fonte: http://tinyurl.com/ não possui muito valor aos olhos dos empregadores).
NancyFraser
Da mesma maneira, as exigências de igual tratamento, avança-
das pelas mulheres, não devem esconder o fato de que, atrás da
discriminação social e jurídica, há muitas vezes uma discrimina-
ção econômica (as mulheres recebem, em muitos países, salários
menores do que os homens, para o mesmo trabalho, e são mais
frequentemente vítimas do desemprego). Por isso, Fraser defende
um enfoque que tenha em conta os dois lados do reconhecimento
e da redistribuição e que ela denomina de dualismo perspectivís-
tico (FRASER, 2001).
Como se vê, o paradigma do reconhecimento, introduzido por
Taylor no contexto do debate sobre o multiculturalismo, acaba sen-
do utilizado também para discutir questões de justiça social mais
tradicionais, como as ligadas à justa distribuição de bens sociais.
Não há praticamente teoria filosófico-política contemporânea que
não trate de tais questões, demonstrando que os problemas que
incomodavam os pensadores do século XIX, com os quais este
livro-texto tinha começado, ainda estão longe de ser resolvidos.
Contudo, há pelo menos uma questão que parece ser peculiar do
século XXI (ainda que seja possível encontrar em Marx considera-
ções que apontam para ela): a questão da globalização.
162 ◆ Filosofia Política III

4.5 Globalização e cosmopolitismo


normativo
O conjunto de fenômenos associado ao termo globalização põe
problemas de novo gênero à filosofia política. Essa última trata ha-
bitualmente de questões que se supõem limitadas ao âmbito na-
cional, embora sejam questões gerais ou até universais, como a da
justiça distributiva. Quando se ocupa das relações internacionais,
a reflexão filosófica parte da existência de estados nacionais, dos
quais se esperam as soluções para os problemas em questão. Só nos
últimos anos, alguns filósofos começaram a falar de “constelação
pós-nacional” (Habermas) ou até de “república mundial” (Höffe).
Mas o primeiro problema é chegar a uma definição compartilhada
de globalização.
Não é fácil definir a globalização, embora todos possam indicar
fenômenos, cujas raízes são reconhecidas precisamente na globa-
lização. A globalização parece ser a causa de uma quantidade im-
pressionante e impressionantemente variada de efeitos positivos e
negativos: crises econômicas e financeiras e recuperações econô-
micas e financeiras; desemprego e criação de novos empregos e até
de novos gêneros de emprego; maiores garantias para os consu-
midores e menores garantias para os consumidores; aumento da
poluição e novas possibilidades para uma luta global contra a po-
luição, e assim por diante. Enfim, a globalização acabou tornando-
se um espantalho do qual os sujeitos políticos e econômicos mais
poderosos (políticos, industriais, banqueiros, especuladores etc.)
como também os intelectuais, servem-se, a fim de ocultar os pró-
prios erros e deficiências, as próprias responsabilidades, a própria
incompetência e até a própria ignorância: não sabendo como ex-
plicar um fenômeno, pode-se sempre recorrer à globalização.
De outro lado, há quem negue a existência da própria globa-
lização, como os economistas Hirst e Thompson, e não sem ar-
gumentos plausíveis (HIRST & THOMPSON, 1998). A formação
de um mercado global não constituiria uma novidade, além disso,
o mercado não seria de modo nenhum global: a maior parte do
comércio mundial se dá entre os Estados Unidos, o Japão e a Euro-
pa. Sem considerar que cerca de quarenta por cento do comércio
A segunda metade do Século XX ◆ 163

mundial consiste, na realidade, de transações internas às empresas,


na maior parte às empresas transnacionais. Finalmente, a queda
das barreiras nacionais no âmbito de organismos como a União
Europeia ou o Mercosul, longe de significar uma maior abertura
do comércio entre as nações, só deslocaria essas barreiras, que, em-
bora não coincidam mais com os limites nacionais, ainda existem,
como demonstrariam as dificuldades nas negociações sobre o co-
mércio internacional, por exemplo na WTO.

World Trade Organization (Organização Mundial do Comércio). Países-membros da


Organização (em cinza escuro) . Fonte: http://www.revistaportuaria.com.br/arquivos/
noticia_1215779019487750cb6ea1c.png

O diagnóstico de Hirst e Thompson, contudo, considera a glo-


balização somente como fenômeno comercial. A globalização
em questão é somente a globalização dos mercados de gêneros e
produtos. Os seus sujeitos são as empresas e os estados, o Banco
Mundial enquanto fonte de capital e a Organização Mundial do
Comércio. Até a União Europeia é tratada por eles apenas como
união econômica e comercial, não como entidade política. Contu-
do, a globalização não se reduz ao aumento do comércio mundial
ou da produção de gêneros em escala global.

O aspecto talvez mais inquietante da globalização é o da espe-


culação financeira. Sujeitos econômicos particulares, sejam eles
indivíduos, grupos ou bancos, têm a capacidade de causar uma
crise na economia nacional de um grande número de países em
poucas horas.
164 ◆ Filosofia Política III

A crise de 2008/2009 demonstrou, de forma dramática, o pre-


domínio do capitalismo financeiro sobre aquele produtivo e, por- Para banalizar isso: uma
tanto, do mercado financeiro sobre o mercado de bens e produtos. verdadeira globalização
cultural ocorreria se, em
Poder-se-ia sustentar que a globalização não se limita a ser um todo o mundo, comessem-
se hambúrgueres feitos em
fenômeno eminentemente econômico, que haja antes uma globali- restaurantes particulares
zação no plural: econômica, financeira, social, cultural e, de modo e locais. Mas se, em todo
cada vez maior, como globalização jurídica. o mundo, comem-se os
hambúrgueres do McDonald’s,
Na realidade, todas essas formas de globalização só têm ou tive- isso não é globalização
cultural, mas somente a
ram lugar na perspectiva de uma globalização econômica. A jurí- difusão, em nível mundial,
dica limita-se, significativamente, sobretudo ao direito comercial e de uma empresa particular
comercial, a saber: de uma
societário internacional, enquanto o direito público internacional cadeia de lanchonetes. Até
segue correndo atrás e salvaguardando a soberania nacional dos a difusão do inglês como
língua franca responde
estados muito mais do que acontece no direito privado internacio- mais a exigências de caráter
nal. A globalização cultural limita-se à difusão em escala mundial econômico do que cultural,
dos mesmos produtos, sejam eles filmes, best-sellers, programas te- embora tenha também
um importante efeito no
levisivos, música ou até alimentos. intercâmbio cultural.

Um dos aspectos mais problemáticos da globalização é sua sele-


tividade. Trata-se duma seletividade dupla: de um lado, uma maio-
ria de países ficam excluídos dele; e, doutro lado, há grandes massas
de indivíduos que podem ser considerados os perdedores da globa-
lização. Além dos dados sobre o comércio mundial,já mencionados,
há diferenças e desequilíbrios enormes em quase todos os campos, Know-how
particularmente nos da informação, da cultura e do desenvolvimen- Literalmente, “saber-como”.
Significa o conhecimento
to tecnológico e da pesquisa científica. Podemos dizer até que o pro- de como realizar uma tarefa
blema mais grave é o aumento da diferença de know-how, de saber qualquer.
tecnológico e científico, entre os países do norte e os do sul.
O resultado é um desenvolvimento econômico a duas velocida-
des: no norte, nascem novas formas de emprego, particularmente
no setor terciário, enquanto o sul vai transformando-se numa re-
serva de mão-de-obra industrial barata e, portanto, proletarizando-
se ou até subproletarizando-se. Dessa forma, a tesoura entre o norte
rico e o sul pobre vai alargando-se. Ao mesmo tempo, nos países
industrializados do norte, vai alargando-se a tesoura, não somente
entre as classes altas e as classes baixas, mas também entre empre-
gados e desempregados, e entre trabalhadores qualificados e não
qualificados. Aumentou também a concorrência entre países dota-
A segunda metade do Século XX ◆ 165

dos de normas sociais avançadas e países socialmente retrógrados,


Bretton-Wood com a consequência que os primeiros ficaram prejudicados em re-
As conferências de Bret-
lação aos segundos, vendo-se levados a modificar as suas normas
ton Woods estabelece- sociais em direção a um desmantelamento do estado social.
ram, em julho de 1944,
Esses fenômenos chamam a atenção para a relação peculiar
as regras para as relações
comerciais e financeiras e problemática que se dá entre política e economia na época da
entre os países mais in- globalização. Em primeiro lugar, cabe lembrar que a própria glo-
dustrializados do mundo. balização, assim como ela está acontecendo, é a consequência de
O sistema Bretton Woods
escolhas políticas, algumas clamorosas como a desmontagem do
foi o primeiro exemplo,
na história mundial, de sistema de Bretton-Wood ou a deregulation, sob as administra-
uma ordem monetária ções de Reagan e Thatcher, e ainda outras administrações menos
totalmente negociada, conhecidas e aparentemente inofensivas.
tendo como objetivo go-
vernar as relações mone- Em segundo lugar, há uma certa gestão política da globaliza-
tárias entre Nações-Esta- ção. Os sujeitos econômicos, sejam empresas, bancos, companhias
do independentes. Fon- financeiras etc., precisam de molduras jurídicas e políticas para
te: http://wikipedia.org/
poder perseguir os seus interesses e fazer os seus negócios, transa-
wiki/Acordos_de_Bret-
ton_Woods ções, comércios etc. Essas molduras são ainda postas pela política.
Isso significa que não há razão para não pensar numa gestão po-
liticamente controlada do fenômeno da globalização. Se essa ges-
Deregulation
tão até agora não aconteceu, é por causa do fato de que os sujeitos
(Desregulamentação) é a políticos, na esfera internacional, isto é, os estados, ficaram numa
remoção ou a simplificação ótica tradicional, enquanto que os sujeitos econômicos tomaram
das regras e regulamentações
governamentais que uma perspectiva nova, global, o famoso “Think global!” (Pensar
restringem a operação das global!), ou seja, precisamente o que os estados não estão fazendo.
forças de mercado. Fonte:
http://en.wikipedia.org/wiki/ Enquanto que os sujeitos econômicos se afastam da originária
Deregulation
dimensão nacional, atingindo uma transnacional, os estados se-
guem tratando-os como se eles fossem ainda empresas nacionais.
Eles seguem identificando o interesse nacional com o interesse de
empresas que já não estão mais ligadas com os interesses do país
em que elas, todavia, têm, formalmente, a sua sede (também esse
processo não é tão novo; novas são as proporções tomadas por ele).
Os estados, portanto, manifestam-se míopes e incapazes de dar
conta da mudança da realidade internacional. Eles são animais
presos aos seus hábitos e preferem ficar no modelo ao qual estão
acostumados, isto é, o modelo da concorrência entre estados dota-
dos de soberania absoluta.
166 ◆ Filosofia Política III

Depois dessa análise, parece não ficar muito espaço para solu-
ções ao problema duma gestão política da globalização. As alter-
nativas praticáveis são aparentemente duas: ou tudo segue como
agora, sem gestão política unitária da globalização; ou uma gestão
parcial vai se realizar por estados cronicamente incapazes de con-
trolar eficazmente a economia e por grupos minoritários capazes
de obter talvez sucessos parciais, mas não de incidir seriamente
sobre o fenômeno total.
Porém há outra alternativa, que parece, no momento, irrealizá-
vel, mas que parece também ser a única moralmente satisfatória: a
tão discutida criação dum estado mundial. Essa solução é discuti-
da entre os teóricos daquele que podemos chamar de cosmopoli-
tismo normativo. Eles geralmente, ao apoiar essa ideia, referem-se
menos a um estado verdadeiro e antes a um ordenamento jurídico
mundial limitado à organização e ao controle de um número limi-
tado de questões, principalmente questões de natureza econômica
e financeira, assim como de política ecológica e humanitária em
relação a massivas violações dos direitos humanos fixados no di-
reito internacional vigente.
Entre os autores que, nos últimos anos, apoiaram a ideia de cria-
ção de um tal ordenamento jurídico, há dois dos maiores pensa-
dores alemães contemporâneos, isto é, Jürgen Habermas e Otfried
Höffe (1943- ). Habermas defende a existência de um Weltbürger-
recht, de um direito cosmopolita, em substituição do tradicional
Völkerrecht, do direito dos povos ou direito público internacional.
Essa substituição já aconteceu de facto, segundo Habermas, devido
à institucionalização e à positivização dos direitos humanos em
numerosas convenções internacionais.
Através dessas convenções, os direitos humanos, de simples di-
reitos morais, tornaram-se parte integrante do direito internacio-
nal vigente. Portanto, cada intervenção orientada à sua defesa é
justificada ainda sem a autorização formal de instâncias como as
Nações Unidas, diz Habermas no escrito; no qual ele justifica a
intervenção armada em Kosovo pela OTAN. Além disso, ele con-
sidera que o papel tradicionalmente desempenhado pelo estado
nacional mostrou-se limitado a algumas questões de organização
interna e de redistribuição dos bens sociais, mais que as tarefas
A segunda metade do Século XX ◆ 167

mais importantes, ou seja, a garantia dos direitos individuais, e,


portanto, a garantia da segurança dos cidadãos e, em parte, a polí-
tica econômica só podem ser cumpridas em uma dimensão supra-
nacional, seja em forma de entidades continentais como a União
Europeia, seja em forma de instâncias globais como a ONU, cuja
reforma é considerada por Habermas um passo irrenunciável no
caminho em direção ao ordenamento jurídico global (ver HA-
BERMAS, 2001). Ao insistir na importância do tema da garantia
estatal ou até superestatal dos direitos individuais, Habermas se
situa muito perto do seu colega Otfried Höffe.
Em A democracia no mundo de hoje (HÖFFE, 2005), o filósofo
tenta dar uma fundamentação mais elaborada e sistemática para a
necessidade de um ordenamento jurídico mundial, articulada em
três passos. O primeiro consiste em mostrar a necessidade de rela-
ções jurídicas entre os indivíduos. O argumento de Höffe asseme-
lha-se muito àqueles clássicos como Hobbes ou outros pensadores
da corrente contratualista. Na ausência de tais relações, os homens
não podem ser verdadeiramente livres, pois eles são continuamen-
te ameaçados pelos outros indivíduos. Também quem não conside-
re – como Hobbes – a vida como o bem supremo deve reconhecer
que, nesse estado, caracterizado pela violência recíproca, embora
essa violência exista somente em potencial, ele não consegue deci-
dir livremente o que fazer dela, ainda que se tratasse de sacrificá-la.
Os indivíduos têm um interesse que Höffe denomina de trans-
cendental na sua liberdade de ação, pois, sem essa liberdade, eles
não poderiam afirmar a sua realidade de atores, não seriam verda-
deiros sujeitos agentes. O interesse, em suma, é transcendental na
medida em que diz respeito às condições necessárias para que os
indivíduos possam agir verdadeiramente. Isso leva os indivíduos
a operar uma troca, também denominada por Höffe como trans-
cendental: eles renunciam à utilização da força contra os outros
em troca de uma análoga renúncia por parte dos seus similares. O
segundo passo de Höffe consiste em mostrar como essa troca só
pode ser definitiva ao ser garantida por uma autoridade estatal.
Portanto, os indivíduos são levados a organizar a sua convivên-
cia em forma de estado – ainda no nível dos estados particulares.
O terceiro passo consiste em mostrar que os indivíduos aceitarão
168 ◆ Filosofia Política III

constituir um estado que, além de garantir a troca inicial, limita a


liberdade deles com vistas a permitir a pacífica convivência dos
arbítrios individuais, só sob a condição de que sejam eles mesmos
quem decidem sobre essa limitação. Isso significa que a única for-
ma legítima de organização estatal é a democracia.
Aplicados à dimensão global, esses três passos nos conduziriam
à necessidade de criar uma democracia mundial. Porém, Höffe
afirma que há razões de princípio para não dar a essa democracia
mundial um caráter estatal, no mesmo sentido dos estados par-
ticulares. A principal consiste no fato de que muitas das decisões
concretas que dizem respeito à vida dos indivíduos só podem ser
tomadas num nível restrito a uma comunidade política particular.
Sobre essa ideia, funda-se o bem conhecido princípio de subsida-
riedade, segundo o qual as decisões políticas têm que ser tomadas
por instâncias organizadas em escalões, num sistema que pode-
mos definir como federal.
Isso significa que, no modelo de Höffe, a maioria das competên-
cias ficam nos estados singulares, enquanto as instâncias interna-
cionais podem legislar somente sobre alguns assuntos bem defini-
dos, dos quais ficam excluídos, por exemplo, a política cultural, a
pesquisa científica, o esporte etc. A legislação global limita-se, por-
tanto, a assuntos como a política econômica, financeira e comer-
cial na sua dimensão internacional, a defesa dos direitos humanos
e a salvaguarda do meio ambiente.
Dessa maneira, seria possível, por exemplo, impedir as mencio-
nadas especulações financeiras selvagens ou a existência de para-
ísos fiscais, ou que um estado tenha uma política destruidora do
meio ambiente (como atualmente os EUA), ou que um estado ga-
ranta a impunidade a criminosos autores de atos contra os direitos
humanos ou contra as próprias leis antiespeculações.
Com o fim de que esse ordenamento jurídico mundial possa
sempre ser atualizado segundo as novas condições que segura-
mente se criariam e possa reagir a situações que necessitam de
uma intervenção do legislativo (sem dúvida os sujeitos econômi-
cos tentaram sempre encontrar escapatórias), é necessária a exis-
tência de uma assembleia permanente, encarregada de atualizar as
leis, e de um poder judicial para sancionar as violações.
A segunda metade do Século XX ◆ 169

Em relação à composição da assembleia legislativa, existem vá-


rios modelos, entre os quais o mais apreciado entre os autores pa-
rece ser o de uma dupla câmara, com um parlamento em que os
deputados sejam eleitos em proporção ao número de habitantes
das nações, como agora no parlamento europeu, e um congres-
so formado pelos representantes nacionais, um para cada estado,
como agora na assembleia plenária das Nações Unidas. O poder
executivo ficaria nas mãos dos estados, devidamente controlados
pelo poder judicial internacional.
Ao mesmo tempo, poderiam ser criadas agências internacionais
encarregadas de executar aquelas medidas decididas pelo legislativo
e cuja atuação não pode ser deixada aos estados mesmos, por exem-
plo, o recolhimento da taxa sobre o consumo das riquezas naturais
proposta pelo filósofo norte-americano Thomas Pogge e a redistri-
buição dos fundos assim atingidos entre os países mais pobres.
Finalmente, um sistema de tribunais internacionais deveria re-
solver os conflitos jurídicos entre os países e entre estes e a assem-
bleia legislativa. Ainda que soluções desse tipo pareçam fortemen-
te idealísticas, elas oferecem importantes ideais regulativos para
pensar questões de justiça internacional e até para reorganizar
concretamente instituições como as Nações Unidas ou os tribu-
nais internacionais existentes.
O antigo problema da relação entre sociedade e Estado, colo-
cado por Hegel e transformado pelos pensadores socialistas no
problema da relação entre economia e política, coloca-se agora
em escala mundial. Os filósofos tentam, mais uma vez, oferecer
uma leitura de tal relação que não seja meramente descritiva, mas
proponha um modelo normativo a ser realizado. Os cosmopoli-
tas apontam para o ideal da república mundial. O quanto tal ideal
possa ser realizável ou até desejável é uma questão ainda em aberto
e com certeza nos ocupará ainda por muito tempo.
170 ◆ Filosofia Política III

Leituras recomendadas
As seguintes partes de Uma teoria da justiça de Rawls (RAWLS,
1997): cap. I, §§ 1-4; cap. II §§ 10-16, cap. III §§ 20-26 e 29.
Os capítulos III e IV de Direito e democracia de Habermas (HA-
BERMAS, 2007).
A aula de 1 de fevereiro de 1978 em Segurança, território, popu-
lação de Foucault (FOUCAULT, 2008, p. 117-143).
O artigo de Nancy Fraser: Da distribuição ao reconhecimento?
Dilemas da justiça na era pós-socialista (FRASER, 2001).

Reflita sobre
1. Qual é o sentido do experimento mental da posição origi-
nária? Qual é a relação entre tal experimento e a noção de
justificação pública do segundo Rawls?
2. Em que sentido o pensamento de Habermas oferece uma so-
lução aos problemas identificados por Max Weber relativos à
racionalização e burocratização do mundo moderno?
3. Há uma relação entre o conceito de solidariedade de Ha-
bermas, o de Honneth e entre os dois e aquele usado por
Durkheim (ver 2.2)?
4. Tente aplicar o conceito de biopolítica a um caso concreto de
“governamentalidade”.
5. Qual é a relação entre as exigências avançadas pelos teóri-
cos do multiculturalismo e as críticas comunitaristas ao
liberalismo?
6. Pensando nos autores e nas correntes analisadas neste li-
vro-texto, quais poderiam ser as alternativas ao cosmopo-
litismo normativo se quisermos lidar com o fenômeno da
globalização?
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