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Florianópolis, 2011.
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Curso de Licenciatura em Filosofia na
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Coordenação de Ambiente Virtual LAED/CFM
S007d
SOBRENOME, Nome.
Título do livro/Nome e Sobrenome do autor. Florianópolis: Universidade
Federal de Santa Catarina, 2009. 007p. ilust.
inclui bibliografia.
ISBN:07.007.007-7
1.Temática 2.Temática - subtema 3.Temática I.Tema II.Tema
CDU 007.07
Referências ......................................................................171
Apresentação
A disciplina Filosofia Política III tem como objetivo principal ofe-
recer uma visão geral das mais importantes teorias políticas con-
temporâneas, de Marx aos nossos dias. A disciplina se ocupará de
mostrar como, nesse espaço de tempo, o pensamento político se di-
versificou, quer do ponto de vista metodológico (com o surgimento
de novas disciplinas, como a Sociologia) quer do ponto de vista do
seu objeto (além de refletir sobre as instituições estritamente políti-
cas ou sobre o direito; os pensadores começam a ocupar-se dos efei-
tos da economia na política e passam a considerar a sociedade civil
como um sujeito político tão importante quanto o Estado).
Nossa disciplina abarca um período extremamente rico do ponto
de vista teórico e histórico: é como se a história humana tivesse sofri-
do uma aceleração nos últimos dois séculos, dando lugar a transfor-
mações mais rápidas e profundas do que nunca. Isso complica muito
a tarefa de expor a história do pensamento político desse período.
Contudo, tentaremos oferecer um panorama geral dela procedendo
a uma análise mais aprofundada de alguns autores fundamentais
ou paradigmáticos, como já fizemos no livro-texto da disciplina Fi-
losofia Política II. Como naquele texto, aqui também incluímos uma
bibliografia para o leitor aprofundar os estudos nos argumentos e
autores que mais lhe interessarem.
A intenção principal da disciplina é fornecer um quadro bastante
amplo das posições e das tradições teóricas mais relevantes da histó-
ria do pensamento político contemporâneo. O enfoque é basicamente
histórico, já que se trata de contextualizar tais posições e tradições. Ao
mesmo tempo, porém, serão apresentadas as problemáticas que ainda
hoje estão no centro da discussão política, seja no nível mais especifi-
camente teórico, seja naquele mais prático da esfera pública. Portanto,
o conhecimento oferecido por esta disciplina se torna central para a
formação do professor de Filosofia, em qualquer nível de ensino.
O autor
■ Introdução ■
Características
fundamentais da filosofia
política contemporânea
Introdução
Oximoro súdito com seu monarca tinha sido substituído pelo vínculo de
Um oximoro é uma figura
retórica que junta dois
cada habitante do país com o corpo da nação, vínculo de sangue
conceitos opostos numa análogo àqueles familiares (o país de nascimento passa a ser cha-
expressão única, por mado de Pátria Mãe, com um bizarro oximoro) e que compre-
exemplo, “culpa inocente”;
nesse caso a pátria, termo ende uma identidade de história, língua, cultura e costumes. Ao
que remete ao latim pater = nacionalismo francês se contrapõe, durante a era napoleônica, o de
pai, é chamada de mãe.
outros países, particularmente o alemão, mobilizado na luta contra
Bonaparte. Os Discursos à nação alemã (1806) do filósofo idealista
Johann Gottlieb Fichte, que tinha sido anteriormente um defen-
sor da Revolução Francesa, visavam justamente levar os alemães
a revoltar-se contra os ocupantes franceses. Para esse fim, Fichte
salientava o caráter nacional alemão como sendo oposto àquele
francês: ao Esclarecimento francês, materialista e racional, era con-
traposto o Romantismo alemão, idealista e sentimental; à crença
na igualdade de todos os homens defendida pelos revolucionários
era contraposto o senso da tradição e o amor à autoridade presu-
midamente típicos dos alemães; ao ideal da civilização, com sua
visão cosmopolita duma comunidade humana reunida ao redor
Johann Gottlieb Fichte (1762-
1814) Fonte: http://tinyurl. de valores universais, era contraposto o ideal da cultura nacional.
com/JohannG Essa contraposição marcou o início do “caminho peculiar” alemão
que levou a Alemanha a considerar-se espiritualmente diferente
do resto da Europa e a ver com suspeita os ideais universais dos
direitos humanos e os princípios do liberalismo, considerados ex-
pressões respectivamente da cultura nacional francesa e inglesa e,
portanto, alheios à cultura nacional alemã. Os germes que levaram
à Primeira Guerra Mundial estavam brotando.
Os movimentos patrióticos que surgiram em toda Europa pos-
suem um duplo caráter: são idealistas e são interesseiros. O ide-
alismo consiste na tentativa de realizar o princípio de autodeter-
minação dos povos, pelo qual cada povo deveria ser livre para
constituir-se num Estado nacional. Essa ideia encontra sucesso
particularmente entre povos ainda não reunidos num Estado
unitário (como no caso da Alemanha), submetidos à dominação
estrangeira (como no caso da Polônia e, em parte, da Itália) ou
incluídos em impérios supranacionais (como no caso do Império
dos Habsburgos e dos seus tantos povos). O elemento interesseiro
é presente no apoio da burguesia, que vê, na existência dum Estado
nacional unitário, a possibilidade de melhorar sua situação.
16 ◆ Filosofia Política III
Leituras recomendadas
Sobre a filosofia política contemporânea em geral:
KYMLICKA, Will. Filosofia política contemporânea. São Paulo:
Martins Fontes, 2006.
OLIVEIRA, Manfredo et al. (Org.). Filosofia política contempo-
rânea. Petrópolis: Vozes, 2003.
RENAUT, Alain (Org.). História da filosofia política: as críticas
da modernidade política. Lisboa: Instituto Piaget, 2002. 4 v.
TOUCHARD, Jean. História das idéias políticas: do liberalismo
aos nossos dias. Mem-Martins: Publicações Europa-América,
1991. 4 v.
Sobre a sociologia moderna, ainda pode ser utilizado o texto
clássico:
ARON, Raymond. As etapas do pensamento sociológico. São
Paulo: Martins Fontes, 1997.
■ Capítulo 1 ■
O pensamento político
do século xix
se tornar “classe para si”: com esses termos hegelianos, se quer in-
dicar o fato de os proletários tomarem consciência (nisto consiste
o momento do “para si”) de ser uma classe unida por uma sorte
comum (a de ser explorada pela burguesia) e por um interesse co-
mum (a cessação da exploração). Tarefa dos teóricos é justamente
ajudar os proletários a desenvolver essa consciência de classe. Por
isso, a filosofia crítica deixa de ser mera teoria e se torna práxis.
Marx expressa essa ideia na celebérrima tese décima primei-
ra das Teses sobre Feuerbach: “Os filósofos apenas interpretaram
o mundo de diferentes maneiras; agora é preciso transformá-lo”.
Isso significa o resultado da revolução proletária, a última da his-
tória: da pré-história (já que a verdadeira história deveria começar
a partir daquele momento) será uma sociedade sem classes, a so-
ciedade comunista, precedida por uma breve fase transitória (a
sociedade socialista).
Marx nunca descreveu detalhadamente tal sociedade em seus
escritos. Isso pode significar o desejo de evitar cair nos erros dos
socialistas utópicos (criticados ferozmente por ele); outra pode ser
a imprevisibilidade das formas que uma sociedade comunista po-
deria assumir. Num certo sentido, é como se a revolução final es-
tivesse dando vida a um novo tipo de homem, não imediatamente
o proletário (ou burguês), não já o bourgeois egoísta ou citoyen
abstrato, mas, pela primeira vez, finalmente, o homme concreto,
para o qual o trabalho deixará de ser exploração ou instrumento
de sobrevivência e se tornará o meio pelo qual poderá realizar sua
natureza humana e sua criatividade. Numa sociedade desse tipo, o
critério de distribuição do trabalho e da riqueza por ele produzida
será: “De cada um segundo as suas capacidades, a cada um segun-
do as suas necessidades” (MARX, 1873).
Contudo, a história dos movimentos revolucionários imedia-
tamente sucessivos à publicação do Manifesto parece contradizer
o diagnóstico marxiano: os proletários chegam a apoiar até dita-
dores, como aconteceu na França; por este motivo se torna para
Marx objeto privilegiado de análise. No escrito As lutas de classes
em França (1850), ele constata como as classes que fizeram uma
revolução em nome de ideais universais sempre ficaram presas
em seus interesses particulares, inclusive o proletariado depois da
34 ◆ Filosofia Política III
revolução de 1848: ele se contentou em obter melhorias na sua Marx parece aqui prever um
fenômeno que se tornará
condição (melhorias ilusórias, como se viu em seguida) em vez de comum nos anos da segunda
operar uma renovação completa da sociedade. pós-guerra e que muitos
teóricos marxistas deplorarão:
Nesse sentido, ele se tinha comportado como a burguesia: “Em a “burguesização” do
proletariado, isto é, o fato de
França [...] o operário executa as tarefas que caberiam normalmen-
os proletários comportarem-
te ao pequeno-burguês; e as tarefas do operário, quem as executa?” se como pequeno-burgueses,
(apud RENAUT, 2002, p. 180). na tentativa de assegurar
e melhorar seu bem-estar
No ensaio O 18 de Brumário de Luís Bonaparte (1851), Marx ana- individual, em vez de lutar
pela emancipação de todos
lisa o golpe de estado atuado pelo sobrinho de Napoleão, que, depois na luta contra a exploração
de ter sido eleito presidente da república francesa, instaurou uma di- capitalista.
tadura atribuindo-se o título de imperador (com o nome de Napo-
leão III) e inaugurando o chamado Segundo Império. O problema
que se apresenta a Marx é justamente o apoio que Luís Bonaparte
recebeu de todas as classes: quer da burgue-
sia, quer do proletariado, quer dos camponeses.
Marx se depara aqui com uma dificuldade: o
golpe de Luís Bonaparte parece não apoiar-se
nos interesses econômicos de nenhuma classe
específica, ainda que de fato sirva àqueles da bur-
guesia: por isso o golpe recebeu o consenso dos
proletários e dos camponeses num plebiscito.
Destarte, a primazia da economia sobre o
político (ideia central do pensamento marxia-
No título do ensaio, Marx se refere ao golpe de estado,
no) parece colocada em questão. A resposta de que o primeiro Napoleão tinha efetuado no dia 9 de
Marx consiste, primeiramente, em salientar a novembro de 1799, ou seja, no dia 18 de Brumário do ano
peculiaridade da realidade francesa: a situação VIII, conforme o calendário revolucionário. (Caricatura de
James Gillray, representa o golpe de Napoleão).
de bloqueio instaurada na luta de classe entre
burgueses e proletários permitiu a um indivíduo sem escrúpulos e
sem talentos particulares tomar o poder. Além disso, Marx é obri-
gado a levar em consideração outras classes que não a burguesia e
o proletariado, a saber, os camponeses (que constituíam a maioria
da população não somente na França, mas em toda a Europa) e o
Lumpenproletariat. Justamente essas duas classes constituíram a
base do consenso de Luís Bonaparte, segundo Marx: o Lumpen- Um subproletariado
formado por miseráveis,
proletariat, por ter cedido às promessas de reformas sociais; os desempregados crônicos,
camponeses, por possuírem ainda uma espécie de veneração pelo vagabundos etc.
1.3.2 O Capital
O subtítulo de O Capital expressa claramente as intenções de
Marx ao escrevê-lo: Crítica da economia política. Como vimos, a
intenção de Marx não é – contrariamente a outros autores – a de
criticar o capitalismo a partir dum ponto de vista externo (duma
certa teoria da sociedade justa por exemplo), antes de mostrar suas
contradições internas e de apontar para os efeitos negativos delas.
A maior dificuldade em entender o pensamento de Marx con-
siste precisamente no fato de que nele se entrelaçam três diferentes
38 ◆ Filosofia Política III
Essa expropriação se faz por meio do jogo das leis imanentes da pró-
pria produção capitalista, por meio da centralização dos capitais. Cada
capitalista mata muitos outros. Paralelamente a essa centralização ou à
expropriação de muitos outros capitalistas por poucos se desenvolve
a forma cooperativa do processo de trabalho em escala sempre cres-
cente, a aplicação técnica consciente da ciência, a exploração planejada
da terra, a transformação dos meios de trabalho em meios de trabalho
utilizáveis apenas coletivamente, a economia de todos os meios de pro-
dução mediante uso como meios de produção de um trabalho social
combinado, o entrelaçamento de todos os povos na rede do mercado
mundial e, com isso, o caráter internacional do regime capitalista. Com
a diminuição constante do número dos magnatas do capital, os quais
usurpam e monopolizam todas as vantagens desse processo de trans-
formação, aumenta a extensão da miséria, da opressão, da servidão, da
degeneração, da exploração, mas também a revolta da classe trabalha-
dora, sempre numerosa, educada, unida e organizada pelo próprio me-
canismo do processo de produção capitalista. O monopólio do capital
torna-se um entrave para o modo de produção que floresceu com ele
e sob ele. A centralização dos meios de produção e a socialização do
trabalho atingem um ponto em que se tornam incompatíveis com seu
invólucro capitalista. Ele é arrebentado. Soa a hora final da propriedade
privada capitalista. Os expropriadores são expropriados.
1.4 Anarquismo
Ao lado do socialismo utópico e daquele “científico” de Marx,
afirma-se, no século XIX, uma forma radical de crítica ao capi-
talismo e ao Estado burguês que usualmente é chamada de anar-
quismo. O termo anarquia, que, como vimos, foi usado positiva-
mente pela primeira vez por Proudhon, deriva do grego e indica a
ausência dum chefe ou dum governo. Ainda que existam diferen-
tes variantes do anarquismo, comum a todas é a ideia de que seja
possível organizar a sociedade sem recorrer ao Estado e à violên-
cia policial. A convivência pacífica deveria ser garantida ou por
contratos e acordos individuais, como afirma Proudhon, ou pela
ausência de propriedade privada (a principal causa de conflito).
Quase todos os anarquistas teorizam a existência de comunidades
de pequeno tamanho, mais ou menos autárquicas (isto é, capazes
de garantir sozinhas a sobrevivência dos membros sem depender
de importações etc.), nas quais os indivíduos consigam resolver
eventuais conflitos pacificamente (ou, caso isso não seja possível,
possam ir embora em busca de outra comunidade).
O maior representante do anarquismo individualista junto a
Proudhon é o alemão Johann Caspar Schmidt, mais conhecido
pelo pseudônimo de Max Stirner (1806-1856). A importância do
seu pensamento na sua época pode ser constatada observando o
enorme espaço que Marx e Engels lhe dedicaram no livro A ide-
ologia alemã (1846), que representa um acerto de contas com a
filosofia alemã de seu tempo.
No centro da reflexão de Stirner está o indivíduo, como fica cla-
ro já no título da sua obra principal: O único e sua propriedade
(1844; tradução portuguesa em STIRNER, 2009). Segundo Stirner,
46 ◆ Filosofia Política III
sultado deveria ter sido uma obra de amplo porte chamada Ética,
da qual saiu somente o primeiro volume, em 1921). Do ponto de
vista sócio-político, também Kropotkin defende a ideia de peque-
nas comunidades autossuficientes, capazes de viver sem Estado,
com base no acordo e na ajuda recíprocos de seus membros (no
seu livro A conquista do pão, de 1892).
O último autor que mencionaremos nesta seção sobre o anar-
quismo é George Sorel, que é considerado o principal teórico do
“sindicalismo revolucionário” ou do “anarco-sindicalismo”.
Georges Eugène Sorel Contra o determinismo de certos marxistas e, até certo ponto, do
(1847-1922). Fonte: http:// mesmo Marx (determinismo para o qual a revolução irá acontecer
tinyurl.com/6dcwoqf
inevitavelmente, como um evento natural), Sorel defende a ideia
de que a revolução só se daria pela iniciativa violenta de parte do
proletariado, a saber, daquela parte que já tinha alcançado o nível
necessário de consciência de classe. Essa elite revolucionária não
seria formada por intelectuais organizados num partido, mas pe-
los próprios trabalhadores reunidos em sindicatos. O instrumento
pelo qual prepararia a revolução seria a greve geral. Esta última
não poderia levar à própria revolução sozinha, mas serviria para
despertar as massas e para fornecer um modelo quase mitológico
para a ação revolucionária propriamente dita. Por isso, seu texto
principal, Reflexões sobre a violência (publicado na versão definiti-
va em 1908; trad. portuguesa em SOREL, 1992), contém uma ver-
dadeira teoria do mito político. O liberalismo possui mitos pode-
rosos: o progresso, a liberdade, a igualdade (ainda que meramente
formal). Foi mister criar mitos revolucionários para opô-los àque-
les liberais, e a greve geral representou precisamente um mito que
uniu os trabalhadores criando uma profunda identidade unitária.
Sorel não apoiou seu socialismo sobre as ciências naturais ou
sobre teorias filosóficas racionais, antes apelou para o lado irra-
cional e emocional da identificação com mitos cheios de sugestão.
Nesse sentido, ele se distinguiu bastante dos outros autores socia-
listas ou anarquistas e recorreu a conceitos típicos do pensamento
conservador (o irracionalismo, a exaltação das paixões contra a
razão, o recurso a uma visão emocional de identidade coletiva, a
justificação da violência irracional contra o diálogo e a polêmica a
pacíficos), ainda que para finalidades revolucionárias.
50 ◆ Filosofia Política III
1.5 Conservadorismo
De todas as correntes políticas, aquela cuja definição resulta
mais difícil é a chamada normalmente de conservadorismo. Isso
porque o termo parece indicar menos uma posição política e mais
uma atitude subjetiva: o desejo de conservar a realidade assim
como ela é ou como ela foi até agora. Na realidade, atrás desse ter-
mo, escondem-se posições muito diferentes que aqui serão apre-
sentadas brevemente.
Embora o conservadorismo, no sentido anteriormente mencio-
nado, seja tão antigo quanto à própria atividade política, foi so-
mente no século XIX que o termo passou a indicar uma posição
política propriamente dita, oposta à esquerda e ao seu progressis-
Retomo essa distinção de
mo. Há pelo menos quatro grandes correntes conservadoras que Ottmann (2008).
se diferenciam bastante umas das outras: o conservadorismo libe-
ral, o conservadorismo romântico, o conservadorismo contrarre-
volucionário e o conservadorismo social.
Comum a todas elas é a ideia de que qualquer tentativa de mo-
dificar a realidade em nome de ideais abstratos representa um erro
cujas consequências práticas podem ser terríveis, como demons-
trado pelo terror revolucionário. Não é por acaso que o “pai” do
conservadorismo moderno, o inglês Edmund Burke, foi um dos
mais ferozes críticos da Revolução Francesa.
Em suas Reflexões sobre a revolução em França (1790), ele con-
dena os revolucionários pelas suas teorias abstratas e pela ideia de
que fosse possível começar do zero a reorganização da sociedade
francesa, sem levar em conta toda a história e a tradição do país Edmund Burke (1730-1797).
(BURKE, 1982). Segundo Burke, tudo isso leva inevitavelmente Fonte: http://br4.in/qeVvl
Leituras recomendadas
Leia, de Marx e Engels, o Manifesto do partido comunista (do
qual existem muitas edições portuguesas) e, de Marx, os seguintes
capítulos do primeiro livro de O Capital (na edição da coleção Os
Economistas da Abril Cultural ou na edição publicada pela editora
Civilização Brasileira): I: A mercadoria; II: O processo de troca;
XXV: A teoria moderna da colonização.
54 ◆ Filosofia Política III
Reflita sobre
1. Quais são as diferenças entre o socialismo utópico e o anar-
quismo em reagir aos problemas colocados pela sociedade
capitalista?
2. Em que consiste o fetichismo da mercadoria analisado por
Marx?
3. Qual é a diferença entre a noção de trabalho alienado, ex-
posta nos Manuscritos Econômico-Filosóficos, e a noção de
exploração introduzida no Capital ao discutir a mais-valia?
4. Como se modifica a visão marxiana da relação entre base
econômica e superestrutura jurídico-política entre o Mani-
festo de 1848 e o 18 Brumário de 1851?
5. Todos os autores apresentados neste capítulo, inclusive os
conservadores, criticam a modernidade em algum aspecto.
Quais são os aspectos que cada um dos movimentos (socia-
lismo utópico, anarquismo, conservadorismo, marxismo de
Marx) critica na sociedade moderna?
■ Capítulo 2 ■
O surgimento da
Sociologia Moderna
2.1 Introdução
O século XVIII tinha visto surgir várias novas disciplinas que
reclamavam para si o estatuto de ciência: a antropologia, a econo-
mia política, a psicologia. Já no século XIX surgiu uma nova disci-
Sobre a importância de plina que avançou com essa pretensão. Ela pretendia oferecer uma
Montesquieu e Tocqueville imagem científica da sociedade e chamava a si mesma de socio-
para a Sociologia ver:
Aron (1997).
logia. Na realidade, podemos encontrar, na obra de Montesquieu
e Tocqueville (ver o livro texto Filosofia Política II), as primeiras
tentativas de uma análise “científica” da sociedade.
Contudo, foi somente com Comte que se afirmou a ideia de
uma ciência da sociedade, cujo método e rigor fossem análogos
àqueles das ciências naturais. Enquanto, porém, o próprio Comte
se limitou a oferecer uma teoria filosófica mais do que científica
da sociedade, a aplicação do método quantitativo à observação de
fenômenos sociais aconteceu com autores como Durkheim. Por
fim, Weber ofereceu um diagnóstico crítico da sociedade moderna
que se propôs como uma alternativa “burguesa” àquele marxiano e
que salientou aspectos que o próprio Marx tinha negligenciado ou
considerado não relevantes.
Positivismo
O positivismo se caracteriza pela crença no poder das ciências exatas, em
solucionar qualquer tipo de problema, inclusive os que ainda são insolú-
veis. Portanto, a confiança na ciência está acompanhada da crença no pro-
gresso dela e, em consequência disso, no progresso do gênero humano. Na Isidore Auguste Marie
ótica positivista, somente a ciência (sempre entendida como ciência exata) François Xavier Comte
pode aspirar ao conhecimento da verdade. Por essa razão, qualquer discipli- (1798-1857) Fonte: http://
na que pretenda conhecer verdadeiramente seu objeto deverá ser científica, tinyurl.com/AugusteComte
ou seja, adotar o método próprio das ciências exatas: da física e da matemá-
tica. Isso vale também para o estudo dos fenômenos sociais ou da sociologia
(foi o próprio Comte que introduziu primeiramente este termo).
sico”, como ele mesmo diria. Sua visão da natureza humana, sua
classificação dos sentimentos (em mais ou menos egoístas e em
altruístas), suas visões sobre a família etc. são menos o resultado
duma rigorosa observação científica e representam antes uma vi-
são filosófica quase platônica – começando pela própria distinção
na natureza humana de dois aspectos: a inteligência, por um lado,
e o coração, por outro. Este último se divide, por sua vez, em sen-
timento e atividade.
O homem é, portanto, por sua natureza, um ser sentimental,
ativo e inteligente. Correspondentemente, todos os fenômenos so-
ciais podem ser interpretados à luz dessa tripartição. Por exemplo:
a família corresponde ao lado sentimental, enquanto a divisão do
trabalho, típica da sociedade industrial, corresponde ao lato ativo e
a ciência da sociedade, ao lado inteligente. E ainda: a propriedade
privada resulta da atividade humana, a linguagem da inteligência, e
ambas obedecem à mesma lei, a saber, a lei da acumulação (de bens
e riquezas num caso, de conhecimentos e conceitos no outro).
A tripartição em questão volta na parte da obra dedicada à di-
nâmica social, isto é, à história da sociedade. Esta pode ser lida,
à luz dos três princípios fundamentais da natureza humana, como
história da inteligência (isto é, como história do espírito humano
e de sua evolução através das etapas anteriormente mencionadas
até o estádio positivista), como história da atividade (na passa-
gem do domínio da atividade militar para aquele da atividade in-
dustrial) e como história do sentimento (isto é, como descrição
dos modos em que os sentimentos altruístas acabam prevalecendo
sobre os egoístas, embora sem eliminá-los completamente).
ístas, seja porque deseja o poder ‘pelo poder’, para gozar do senti-
mento de prestígio que ele confere” (WEBER, 1993, p. 57). Ora, há
políticos que se “entregam” à política não meramente em busca de
interesses pessoais, mas porque se sentem “chamados” a realizar
uma obra e a viver para tal profissão (Weber alude mais uma vez à
ambiguidade do termo Beruf).
Weber reconstrói a história da formação do Estado moderno
precisamente a partir da tentativa, por parte de homens políticos
ambiciosos (reis e príncipes), de eliminar os poderes “privados”,
independentes (os aristocratas, as livres cidades, a Igreja) e de re-
duzi-los sob o seu poder. Nosso autor estabelece um paralelo en-
tre esse processo de monopolização do poder político com o sur-
gimento do capitalismo (que, por sua vez, implica a formação de
monopólios econômicos). Ora, é verdade que tal processo acaba
na formação dum Estado burocrático que exerce um poder impes-
soal (contrariamente ao poder pessoal dos monarcas absolutos da
primeira modernidade); mas os homens políticos que exercem a
atividade da política como vocação/profissão sabem servir-se des-
te poder impessoal para seus fins, graças a seu carisma.
Weber distingue o viver para a política do viver da política.
No primeiro caso, a política se torna o fim da vida do político, seja
porque este tem prazer em tal atividade, seja porque ele pode, por
meio dela, dedicar-se a uma causa que dá sentido à sua vida. No
segundo caso, a política é vista como uma fonte de renda, uma pro-
fissão como as outras. Ora, se exigimos que os políticos vivam ex-
clusivamente para e não da política, é inevitável que eles se recru-
tarão entre os indivíduos economicamente mais independentes e
mais ricos. Para evitar isso, assim como para evitar que os políticos
pensem somente em garantir seu bem-estar pessoal, é necessário
que a política lhes garanta “ganhos regulares e garantidos” (WE-
BER, 1993, p. 67). Em uma palavra: é necessário que os políticos
vivam da política, ainda que isso possa parecer uma degradação da
atividade política a mero trabalho.
Finalmente, Weber aponta três características do homem po-
lítico: paixão, sentimento de responsabilidade e senso da pro-
porção. Paixão significa aqui desejo de realizar algo, “dedicação
apaixonada a uma causa”. Para evitar que esta se transforme numa
72 ◆ Filosofia Política III
Leituras recomendadas
Leia, de Max Weber, os dois escritos – Ciência como profissão e
Política como profissão. Como leitura complementar, recomenda-
mos A ética protestante e o espírito do capitalismo. De todos esses
escritos existem várias edições em português.
Reflita sobre
1. As diferentes atitudes dos três autores analisados neste capí-
tulo perante a sociedade industrial capitalista e seus proble-
mas. Quais são os aspectos de tal sociedade que suscitam seu
otimismo e quais os que suscitam seu pessimismo?
2. O século XIX é o século da confiança quase cega nas ciên-
cias exatas. Quais são as dificuldades em aplicar os métodos
destas à observação dos fenômenos sociais? Como nossos
autores tentam evitar tais dificuldades? Você acha que eles
conseguem fazer isso?
3. Quais aspectos do pensamento dos nossos autores os aproxi-
mam à filosofia política?
■ Capítulo 3 ■
A primeira metade do século
XX: o triunfo das massas
3.1 Introdução
Um exemplo disso se deu na A primeira metade do século XX foi marcada na Europa pela
Itália, onde Benedetto Croce,
representante do liberalismo
eclosão de duas guerras mundiais e pelos horrores do totalitarismo
clássico e burguês, foi preso nazista e staliniano. Do ponto de vista do pensamento político,
entre as duas partes em luta
à confrontação prática entre fascismo e comunismo corresponde
no seu país: o comunismo
(encarnado na figura de uma igual confrontação teórica, que acaba pondo praticamente de
Gramsci) e o fascismo, cujo lado os teóricos liberais. A causa principal disso deveria ser iden-
maior teórico, Giovanni
Gentile, apesar das diferenças tificada na pouca ou nula capacidade de o liberalismo oferecer res-
políticas, foi muito próximo postas aos problemas sociais que dominam esse período e de ele
do próprio Croce do ponto
de vista filosófico (ambos dirigir-se mais a uma elite burguesa culta e cosmopolita do que às
tentaram “revitalizar” o massas ou aos círculos nacionalistas (ainda que haja, sem dúvida,
idealismo hegeliano por
meio de sistemas filosóficos
um liberalismo nacionalista).
historicistas); como resultado,
Do ponto de vista da história política e do pensamento político,
na acirrada luta política
travada entre comunismo e porém, a época entre o final do século XIX e o começo do século
fascismo, a voz de Croce e dos XX foi marcada principalmente pela ascensão dum novo sujeito
autores liberais ficou
quase inaudível. político: a multidão ou massa. Até agora, as classes populares fo-
ram principalmente objetos de políticas decididas sem consultá-
las e instrumentos manipulados por outros atores (o monarca,
a Igreja, a aristocracia, a burguesia), que se serviram delas para
alcançar seus fins. Também quando a “plebe” pareceu conseguir
vitórias importantes (como em certas fases da Revolução Francesa
ou na Revolução de 1848) seu triunfo foi só aparente e resultou, na
realidade, no triunfo da burguesia. Na segunda metade do século
XIX, contudo, houve um processo de organização dos trabalhado-
res – figura na página a seguir – (em sindicatos antes, em partidos
76 ◆ Filosofia Política III
O Reino de Itália em 1866 depois da O Reino de Itália em 1870 depois da O Reino de Itália em 1919 depois da
Terceira Guerra de Independência. conquista de Roma. Primeira Guerra Mundial.
(Mapas do processo de unificação da Itália) Com o termo Risorgimento se indica o período entre 1815 e 1870 no qual se deu a
gradual unificação da Itália como Estado nacional.
Easy listening
Easy listening é o nome inglês para o estilo de música orquestrada, que
surgiu na década de 50 e que teve como precursores Ray Conniff, Burt
Bacharach, Paul Mauriat, Percy Faith, Annunzio Paolo Mantovani, Franck
Pourcel, Bradley Joseph, entre outros. Também conhecida como “lounge
music”, é geralmente vista por parte dos críticos como música estritamen-
te comercial e de fácil audição, por seu estilo melodioso – daí sua denomi-
nação “easy listening”, que pode ser traduzido como audição fácil. Desse
modo, sempre fez enorme sucesso junto ao público, vendendo milhões de
discos, e suas apresentações públicas chegavam a lotar as casas de espe-
táculos, além de influenciar inúmeros músicos de gerações posteriores e
o próprio desenvolvimento dos estilos musicais. Suas raízes estão nas Big
Bands dos anos 30 e 40, de onde se originou a maioria de seus intérpretes,
onde atuavam como instrumentistas ou como arranjadores.
A primeira metade do século XX ◆ 95
cos” (SCHMITT, 1996, p. 68), que tentam impor seus interesses par-
ticulares (que são os dos seus eleitores). O argumento é substituído
pela “contabilização calculista dos interesses e das chances de poder”
(SCHMITT, 1996, p. 68) e a finalidade não é mais a “de convencer
o opositor de uma verdade ou de uma atitude correta, mas sim de
conquistar a maioria, para poder exercer o poder” (SCHMITT, 1996,
p. 68). As próprias massas dos eleitores são conquistadas por meio
duma propaganda, que apela a interesses e paixões imediatas, não a
argumentos racionais (SCHMITT, 1996, p. 68).
À democracia parlamentar liberal, Schmitt contrapõe uma vi-
são de democracia, que pode ser denominada de identidária, isto
Para uma crítica da é, a ideia de que a verdadeira democracia se dá quando o povo
democracia identidária, ver
AZZARITI, 2005. forma uma unidade étnica, política e culturalmente homogênea,
representada por um chefe. Se a democracia liberal leva à criação
dum Estado total, no qual a economia se serve da política para re-
solver seus problemas, a democracia identidária leva a outra forma
de Estado total, no qual a política toma o controle da economia.
Ingeborg Maus fala, nesse
respeito, de Estado total O Estado total é aquele que sabe distinguir amigo e inimigo
quantitativo, no primeiro caso, e não tolera divisões internas. Ele é expressão dum povo que se
e qualitativo, no segundo caso
(MAUS, 1976). caracteriza por uma homogeneidade substancial, que, contudo,
Schmitt não define claramente (em geral, Schmitt é muito eficaz
em suas críticas, menos na parte propositiva), fora a alusão a qua-
lidades físicas e morais não especificadas, mas que parecem re-
meter a uma visão étnico-racial da comunidade nacional altamen-
te problemática (sem considerar as consequências práticas de tal
visão, tragicamente visíveis na política nazista contra os judeus).
Em suma, Schmitt defende a ideia de que a comunidade política
se define com base numa presumida homogeneidade substancial e
pela distinção entre amigo e inimigo. Essa posição o leva a recusar
o legalismo das normas, a democracia parlamentar liberal e, natu-
ralmente, o pacifismo, como veremos.
Isso não implica uma recusa da guerra, antes leva à sua justifi-
cação como tentativa de afirmação duma “forma de existência” pe-
rante outra. A negação da justificação jurídica ou moral da guerra
significa, nesse caso, atribuir-lhe um caráter existencial e, finalmen-
te, decisionista, conforme a primazia que Schmitt atribui ao gesto
da decisão perante qualquer formalismo normativo. Se não existem
guerras justas, todas são justificadas enquanto formas de autoafir-
mação das comunidades que as iniciam. Nessa ótica, Schmitt nega
a possibilidade duma guerra que tenha a finalidade de punir um
inimigo injusto ou criminoso, assim como de qualquer intervenção
humanitária. Cabe citar a passagem em questão, pois ela oferece uma
argumentação ainda hoje usada pelos adversários desse conceito.
O conceito de humanidade exclui o conceito de inimigo, porque também
o inimigo não deixa de ser homem [...]. Quando um Estado luta contra seu
inimigo em nome da humanidade, não se trata de uma guerra da huma-
nidade e sim de uma guerra para a qual um determinado Estado procura
ocupar um conceito universal frente ao seu inimigo, para (às custas do
adversário) identificar-se com tal conceito, assim como se pode abusar da
paz, justiça, progresso e civilização, para reivindicá-los para si e negar que
existam no lado do inimigo. “Humanidade” é um instrumento ideológico,
especialmente útil, das expansões imperialistas, e em sua forma ético-
humanitária um veículo específico do imperialismo econômico. Aqui se
aplica, com uma modificação óbvia, uma palavra forjada por Proudhon:
“Quem diz humanidade, pretende enganar”. O emprego do nome da hu-
manidade, a apelação à humanidade, a confiscação desta palavra, tudo
isso só poderia [...] manifestar a terrível pretensão de que se deve denegar
ao inimigo a qualidade de homem. (SCHMITT, 1992, p. 81).
Ius ad bellum normas que estabeleciam não somente em que casos ela era legíti-
Ius in bello
As expressões ius ad bellum
ma (ius ad bellum), mas distinguiam também entre combatentes
e ius in bello indicam, e não combatentes, protegendo estes últimos da violência injustifi-
respectivamente, o conjunto cada e atribuindo direitos aos primeiros, em caso de rendição etc.
de regras e normas jurídicas
que estabelecem os casos em (ius in bello).
que uma guerra é legítima
formalmente (por exemplo, Ora, a Primeira Guerra Mundial marcou uma quebra com essa
estabelecendo a maneira em tradição, já que nela houve uma criminalização do inimigo, por
que ela deve ser declarada) e
materialmente (por exemplo, parte dos vencedores, e já que foi abolida (também pelos alemães)
estabelecendo que é legítimo a distinção entre combatente e não combatente (SCHMITT, 1992,
atacar preventivamente um
inimigo que se prepare a
p. 137). Isso aponta para uma transformação que investe não so-
atacar ou que a guerra só é mente a maneira de se fazer guerras, mas o próprio Estado e, ao
legítima como instrumento final, o mundo. Esse foi até agora um “pluriverso de estados”, isto é,
de defesa etc.) e que
regulamentam a conduta um mundo organizado em unidades territoriais. Os estados eram
das partes beligerantes, instâncias de ordem espacial que dividiam entre si a terra. Agora
inclusive dos soldados,
durante o conflito (por as coisas mudam.
exemplo, proibindo que seja
feita violência à população No livro Terra e mar (1942), escrito em forma de conto para
civil, que sejam usados sua filha Anima, Schmitt apresenta uma visão da história mundial
determinados tipos de
armas etc.).
como história do conflito entre potências marítimas e potências
terrestres. Não se trata, então, de estados que se contrapõem, mas
de diferentes formas de ordenar o espaço, cada uma das quais re-
Nomos presenta um diverso nomos, uma diversa ordem. Schmitt se refere
O termo grego nomos explicitamente à hegemonia inglesa sobre o mar, que tinha levado
significa lei, ordem.
à formação do império britânico. A ela se contrapõe a tentativa
alemã de alcançar a hegemonia sobre a terra, no continente euro-
peu (lembre-se de que o texto foi escrito durante a Segunda Guer-
ra Mundial, na qual Alemanha e Inglaterra se enfrentavam numa
luta total). Mas, na época atual, com as novas tecnologias, até a
distinção entre mar e terra perdeu sentido.
A nova ordem mundial marcou o desaparecimento do Estado
entendido como instância territorial, cuja função era justamente
ordenar o espaço. A forma-Estado chegou ao fim, a velha ordem,
simbolizada pelo império marítimo britânico, cedeu à nova or-
dem, que, no texto de 1942, foi simbolizada pelo Reich nazista e, no
livro O nomos da terra (publicado em 1950, depois da guerra e da
derrota alemã), por áreas supranacionais que Schmitt denomina
de Grossräume, de macroespaços, que substituíram, na substância
(ainda que não necessariamente na forma), os estados nacionais.
110 ◆ Filosofia Política III
O pluriverso de estados foi substituído, então, por um pluriver- Seria o caso de perguntar-se
so de macroespaços, que estabeleceram relações jurídicas entre se Schmitt teria recusado essa
possibilidade também no
si (as alternativas seriam a sobrevivência do direito internacio- caso em que a Alemanha
nal tradicional – que, contudo, tornou-se impossível pelo fim da tivesse vencido a guerra,
tornando-se de fato a
forma-Estado – ou a hegemonia duma potência mundial – que potência hegemônica.
Schmitt recusou).
O fim da ordem tradicional significou também o fim da guerra
tradicional. No pluriverso de macroespaços, o inimigo deixou de
ser somente representado por um exército de combatentes e assu-
miu a forma de combatentes irregulares, de guerrilheiros (ou, em
nossos dias, de terroristas), que geralmente praticam uma guer-
ra defensiva e são enraizados num território específico (por isso,
Schmitt fala de guerrilheiros “autóctones”, dotados dum caráter Com esse termo, indica-se
“telúrico”), mas que podem tornar-se agressivos no nível mundial, a posição de autores (por
exemplo, Thomas Pogge,
como – exemplo dado por Schmitt – no caso dos revolucionários Otfried Höffe ou o próprio
bolcheviques (ou dos terroristas contemporâneos). Não é possível Jürgen Habermas) que
defendem a ideia de que seria
fazer uma guerra tradicional contra esse tipo de guerrilheiros, já necessário fundamentar o
que ele incorpora perfeitamente a categoria ontológica do inimigo direito internacional (em geral:
com o qual nenhuma paz é possível. as relações internacionais)
sobre normas morais
As considerações de Schmitt sobre a figura do guerrilheiro, universais e sobre valores
como aqueles expressados
sobre a ideia de macroespaços e sobre a intervenção humanitá- nos direitos humanos (daí
ria foram retomadas por muitos autores contemporâneos, par- a eventual justificação de
intervenções que visem a
ticularmente numa ótica polêmica contra o cosmopolitismo proteger tais direitos).
normativo.
Em geral, contudo, a redução da política à dimensão existen-
cial e à contraposição entre amigo e inimigo é insatisfatória, pois
parece considerar somente um aspecto do fenômeno político. Fi-
nalmente, a polêmica contra a democracia parlamentar, em nome
duma concepção identidária da democracia, baseia-se sobre uma
visão duvidosa da comunidade política (o conceito de homogenia
substancial é bastante vago e, fundamentalmente, vazio).
Desse ponto de vista, admira bastante o sucesso que a obra de
Schmitt ainda encontra, quer no âmbito da teoria política, quer no
âmbito da teoria jurídica. Por outro lado, esse sucesso demonstra
que o pensador alemão conseguiu apontar para questões centrais e
ainda irresolutas (como a definição de soberania, a teoria do esta-
do de exceção e da ditadura, as novas formas de guerra).
A primeira metade do século XX ◆ 111
Leituras recomendadas
Os capítulos “O conceito de esclarecimento” e “A indústria cul-
tural” do livro Dialética do Esclarecimento de Horkheimer e Ador-
no (HORKHEIMER; ADORNO, 1985).
O livro O conceito do político de Schmitt (SCHMITT, 1992).
Os capítulos I e II de A condição humana, de Arendt (ARENDT,
2007).
Reflita sobre
1. Em que diferem as concepções de Estado, próprias do fascis-
mo e do marxismo?
2. A reflexão sobre a falta de consciência de classe no proleta-
riado leva os autores marxistas a diferentes conclusões. Quais
os diversos diagnósticos? Quais os diversos tipos de solução?
3. Quase todos os principais autores analisados, neste capítulo,
tentam oferecer uma definição da relação entre política e so-
ciedade (ou economia). Tente compará-las entre si.
4. Que relação há entre o fenômeno da banalidade do mal, ana-
lisado por Arendt, e as análises sobre a indústria cultural, de
Horkheimer e Adorno?
5. Em que medida o conceito de pluriverso de macroespaços,
usado por Schmitt, responde ao critério que, segundo este
autor, define a esfera do político, isto é, a dupla categorial
amigo/inimigo?
■ Capítulo 4 ■
A segunda metade
do Século XX
cias entre as opções que estão a seu dispor” e classificam tais op-
ções “de acordo com sua efetividade em promover seus propósi-
tos” (RAWLS, 1997, p. 154).
Para decidir entre os princípios alternativos, as partes se ser-
vem duma regra, o maximin, que eles escolhem primeiramente
por não conhecer sua propensão ao risco. O maximin (o máximo
do mínimo) impõe escolher a opção na qual o resultado pior é o
melhor se comparado com os resultados piores das outras opções.
Imaginemos três possíveis opções, nas quais três pessoas (A, B, C)
vão receber uma quantidade diferente de bens (expressados pelos
números):
A B C
Opção 1 13 12 10
Opção 2 10 14 6
Opção 3 40 25 15
Nos anos seguintes, ele tentou desenvolver tal teoria, cujos fun-
damentos teóricos foram expostos numa obra publicada em 1968
e que se tornou imediatamente um clássico: Conhecimento e inte-
resse. A tese principal do livro é que, atrás das ciências empírico-
analíticas, há um interesse técnico que visa à transformação ou
manipulação da realidade (como no caso da tecnologia ou das
ciências humanas que pretendem prever e controlar o compor-
tamento humano no nível individual – behaviorismo – ou social
– sócio-tecnologia à la Luhmann); atrás das ciências históricas e
hermenêuticas há um interesse prático de compreensão; e atrás
das ciências com pretensões críticas (como a psicanálise freudiana
e a teoria social que o próprio Habermas gostaria de desenvolver)
há um interesse emancipatório. Destarte, Habermas já traçou o
plano de uma teoria crítica da sociedade – plano que perseguiu até
a publicação da Teoria do agir comunicativo, em 1981.
No livro A crise de legitimação no capitalismo tardio, publica-
do em 1973, Habermas analisa a sociedade capitalista liberal e sua
evolução como sociedade tardo-capitalista. Na sociedade capitalis-
ta liberal, o Estado se limita à proteção do comércio, à proteção do
mecanismo do mercado, à garantia dos pré-requisitos da produção
(educação, transporte e comunicação) e à adaptação do sistema de
direito civil às exigências do processo de acumulação capitalista
(HABERMAS, 1980, p. 35).
Dessa maneira, ele garante os pressupostos materiais para a ma-
nutenção do modo de produção capitalista. No capitalismo tardio,
essa relação muda, já que o Estado não se limita a assegurar as
condições gerais para tal modo de produção, mas intervém direta-
mente no processo econômico (Estado intervencionista) e, preci-
samente, de dupla maneira: “através do planejamento global, regu-
la o ciclo econômico enquanto um todo” e, através de medidas de
política monetária e fiscal, procura amenizar as consequências co-
laterais negativas do modo de produção capitalista (HABERMAS,
1980, p. 49).
Correspondentemente, a questão da legitimação é solucionada
de maneira diferente da que se observa no capitalismo liberal. É
verdade que, formalmente, os cidadãos participam dos processos
políticos de decisão (democracia formal), mas, materialmente, eles
A segunda metade do Século XX ◆ 139
social e, portanto, Foucault não oferece dele uma teoria, mas uma
analítica, isto é, uma análise de seus dispositivos, de maneira a mos-
trar seus mecanismos e seus efeitos. Não é possível reconstruir, nesse
contexto, as complexas análises foucaultianas das manifestações do
poder, inclusive as cotidianas e menos óbvias (por isso, ele fala duma
“microfísica do poder” em Foucault (1979)), pois isso significaria
reconstruir o pensamento de Foucault na sua integridade.
Simplificando, podemos dizer que, numa primeira fase de seu
pensamento, Foucault se ocupa principalmente da história do
sujeito moderno: quer no sentido de fazer uma história das teo-
rias do sujeito, quer no sentido dum estudo (1) das instituições que
tornam certos indivíduos objetos de saber e de dominação (a clí-
nica psiquiátrica, a escola, a prisão, o quartel etc.) e (2) das formas
de saber que permitem a criação de tais instituições.
Da análise das disciplinas, Foucault passa a uma análise de for-
mas de poder mais tradicionais, introduzindo uma distinção fun-
damental entre os conceitos de soberania e de governo. Contudo,
ao estudar o fenômeno da sexualidade (e da construção social do
fenômeno), ele percebe que existem, além de formas de domina-
ção externas, também técnicas interiores, adotadas pelo próprio
indivíduo e visadas a operar modificações nele; no seu corpo, na
sua alma, nos pensamentos, na conduta etc. Esse conjunto de téc-
nicas é resumido por Foucault na expressão “técnicas de si” e sua
análise ocupa os últimos anos de vida do pensador francês.
Depois dessa análise, parece não ficar muito espaço para solu-
ções ao problema duma gestão política da globalização. As alter-
nativas praticáveis são aparentemente duas: ou tudo segue como
agora, sem gestão política unitária da globalização; ou uma gestão
parcial vai se realizar por estados cronicamente incapazes de con-
trolar eficazmente a economia e por grupos minoritários capazes
de obter talvez sucessos parciais, mas não de incidir seriamente
sobre o fenômeno total.
Porém há outra alternativa, que parece, no momento, irrealizá-
vel, mas que parece também ser a única moralmente satisfatória: a
tão discutida criação dum estado mundial. Essa solução é discuti-
da entre os teóricos daquele que podemos chamar de cosmopoli-
tismo normativo. Eles geralmente, ao apoiar essa ideia, referem-se
menos a um estado verdadeiro e antes a um ordenamento jurídico
mundial limitado à organização e ao controle de um número limi-
tado de questões, principalmente questões de natureza econômica
e financeira, assim como de política ecológica e humanitária em
relação a massivas violações dos direitos humanos fixados no di-
reito internacional vigente.
Entre os autores que, nos últimos anos, apoiaram a ideia de cria-
ção de um tal ordenamento jurídico, há dois dos maiores pensa-
dores alemães contemporâneos, isto é, Jürgen Habermas e Otfried
Höffe (1943- ). Habermas defende a existência de um Weltbürger-
recht, de um direito cosmopolita, em substituição do tradicional
Völkerrecht, do direito dos povos ou direito público internacional.
Essa substituição já aconteceu de facto, segundo Habermas, devido
à institucionalização e à positivização dos direitos humanos em
numerosas convenções internacionais.
Através dessas convenções, os direitos humanos, de simples di-
reitos morais, tornaram-se parte integrante do direito internacio-
nal vigente. Portanto, cada intervenção orientada à sua defesa é
justificada ainda sem a autorização formal de instâncias como as
Nações Unidas, diz Habermas no escrito; no qual ele justifica a
intervenção armada em Kosovo pela OTAN. Além disso, ele con-
sidera que o papel tradicionalmente desempenhado pelo estado
nacional mostrou-se limitado a algumas questões de organização
interna e de redistribuição dos bens sociais, mais que as tarefas
A segunda metade do Século XX ◆ 167
Leituras recomendadas
As seguintes partes de Uma teoria da justiça de Rawls (RAWLS,
1997): cap. I, §§ 1-4; cap. II §§ 10-16, cap. III §§ 20-26 e 29.
Os capítulos III e IV de Direito e democracia de Habermas (HA-
BERMAS, 2007).
A aula de 1 de fevereiro de 1978 em Segurança, território, popu-
lação de Foucault (FOUCAULT, 2008, p. 117-143).
O artigo de Nancy Fraser: Da distribuição ao reconhecimento?
Dilemas da justiça na era pós-socialista (FRASER, 2001).
Reflita sobre
1. Qual é o sentido do experimento mental da posição origi-
nária? Qual é a relação entre tal experimento e a noção de
justificação pública do segundo Rawls?
2. Em que sentido o pensamento de Habermas oferece uma so-
lução aos problemas identificados por Max Weber relativos à
racionalização e burocratização do mundo moderno?
3. Há uma relação entre o conceito de solidariedade de Ha-
bermas, o de Honneth e entre os dois e aquele usado por
Durkheim (ver 2.2)?
4. Tente aplicar o conceito de biopolítica a um caso concreto de
“governamentalidade”.
5. Qual é a relação entre as exigências avançadas pelos teóri-
cos do multiculturalismo e as críticas comunitaristas ao
liberalismo?
6. Pensando nos autores e nas correntes analisadas neste li-
vro-texto, quais poderiam ser as alternativas ao cosmopo-
litismo normativo se quisermos lidar com o fenômeno da
globalização?
Referências ◆ 171
Referências
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172 ◆ Filosofia Política III