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Sílvio Gallo**
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Publicado em Educação Brasileira e(m) Tempo Integral. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 13-42.
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Professor da Faculdade de Filosofia, História e Letras - Unimep e da Faculdade de Educação - Unicamp.
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não posso invadir o espaço do outro em nome dessa liberdade. Mas poderíamos então
perguntar: uma liberdade que tem limites é mesmo liberdade? Se a liberdade do meu
vizinho limita a minha e a minha limita a dele, é mais lógico pensar que somos
prisioneiros, vizinhos de cela, e não dois indivíduos livres!
Tal confusão é decorrente do fato de se entender a liberdade numa perspectiva
individual, veiculada pela filosofia política burguesa clássica, com a qual nosso contato
é mais freqüente. O filósofo genebrino do século dezoito Jean-Jacques Rousseau
definia a liberdade como uma característica natural do homem, isto é, todos nós
somos livres desde que nascemos. Mas ele também dizia que a sociedade nos
aprisiona e que era então preciso que construíssemos uma nova sociedade, na qual os
indivíduos pudessem ser livres. Essa é a essência do que chamamos liberalismo e
também de seu irmão mais novo, o neo-liberalismo. Se a liberdade é uma
característica, uma dádiva natural de cada um de nós, basta que a sociedade - uma
criação humana e artificial, portanto - não interfira nela, através de um excesso de leis e
regulamentações. Mas ficamos sempre presos a esse paradoxo: como podem todos os
indivíduos serem livres, sem interferirem uns nas liberdades dos outros?
Os anarquistas vão trabalhar com um conceito diferente de liberdade, que
procura superar esse paradoxo do liberalismo. Segundo Pierre-Joseph Proudhon,
filósofo francês do século dezenove, a liberdade é resultante de uma oposição de
forças, uma de afirmação, a necessidade e outra de negação, a espontaneidade.
Quanto mais simples um ser vivo qualquer, mais ele é regido pela necessidade; quanto
mais complexo, mais ele é influenciado pela força da espontaneidade. Essa força da
espontaneidade, ainda segundo Proudhon, atinge seu grau máximo no ser humano,
justamente sob o nome de liberdade. Mas o homem não é pura espontaneidade e sim
o resultado de uma composição de forças da natureza, só podendo ser livre por causa
da síntese dessa pluralidade de forças.
Para o filósofo francês, todo composto deve produzir uma resultante; o homem é
um composto formado por corpo, espírito e vida, cada um deles subdividindo-se em
outras faculdades, gerando uma multiplicidade de forças que vão se resolver numa
resultante que é superior a todas elas, por abarcá-las: aquilo a que chamamos livre-
arbítrio, ou liberdade. E quanto mais o homem associa-se a outros homens, no convívio
social, maior a multiplicidade de forças envolvidas e mais poderosa a resultante, o que
ele chama de “liberdade do ser social”.
Como vemos, Proudhon desenvolve uma “dialética pluralista”: a liberdade é
resultante de uma síntese de diversos componentes, antagônicos ou complementares,
sendo que a síntese é sempre mais forte, mais complexa que suas componentes
iniciais. Mas ele vai ainda mais longe, realmente afastando-se das concepções
clássicas e burguesas, quando afirma a existência de dois tipos de liberdade. O
primeiro tipo seria a liberdade simples, que é experimentada pelos bárbaros, que não
têm uma sociedade desenvolvida, e mesmo por aqueles que, ainda que vivendo em
sociedade, não são conscientes deste seu estado, achando que eles próprios bastam-
se a si mesmos. O segundo tipo, por outro lado, seria uma liberdade composta,
constituindo a verdadeira liberdade, aquela vivida em sociedade. Esta liberdade social
pressupõe, para sua existência, a convergência de várias outras liberdades, que se
complementam, resultando numa liberdade maior para toda a sociedade.
Para Proudhon, na perspectiva bárbara o máximo de liberdade corresponde ao
máximo de isolamento, quando não há ninguém mais para limitar a liberdade do
indivíduo. Por outro lado, do ponto de vista social, quando liberdade e solidariedade se
eqüivalem, o máximo de liberdade significaria o máximo de relacionamento possível
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com outros homens, pois desta perspectiva as liberdades não se limitam, mas se
auxiliam, se complementam. Ao contrário do ditado citado acima, minha liberdade não
termina onde começa a do outro, mas ela começa junto com a do outro, e juntas são
mais fortes. Liberdade é, assim, comunhão com o outro e não oposição ao outro. A
liberdade é também a própria condição de existência da sociedade: é porque são livres
que os homens escolhem viver juntos para auxiliarem-se mutuamente e vencer com
maior facilidade as vicissitudes naturais. E por viverem em sociedade, os homens
tornam-se mais livres!
Mikhail Bakunin, anarquista russo que foi discípulo de Proudhon, parte desta
concepção e a aprofunda. À idéia rousseauniana de liberdade como uma característica
natural do homem, ele opõe a idéia de liberdade como uma construção eminentemente
social, possível apenas em sociedade. Para ele, a liberdade é o ponto de chegada do
homem e não o ponto de partida, como queria Rousseau, pois na aurora da
humanidade, estando o homem ainda inconsciente de si, ele não era mais do que uma
marionete nas mãos das forças naturais. Sua vida regia-se pelo princípio da
necessidade, fazia aquilo que era necessário para garantir sua sobrevivência, vivia sob
o jugo da fatalidade. Com o processo cultural e o desenvolvimento da civilização, o
homem vai aos poucos se libertando das fatalidades naturais, construindo seu mundo e
conquistando a liberdade.
A concepção materialista de Bakunin mostra que a liberdade, embora seja uma
das facetas fundamentais do homem, não é um fato natural, mas produzido pela
cultura, pela civilização. Em outras palavras, enquanto o homem produz cultura, ou
seja, se autoproduz, ele conquista também a liberdade. Deste modo, o homem e a
liberdade nascem juntos: um é criação do outro, um só existe pelo outro. É um
processo de dupla ação: quanto mais o homem se “humaniza”, mais livre ele fica e,
quanto mais livre, mais humano. Conclui-se então que ao assumir-se totalmente
homem, conquista-se o máximo de liberdade. Mas o máximo de liberdade, como já
vimos com Proudhon, ocorre quando todos os indivíduos são livres, pois as liberdades
se completam, se auxiliam. Uma sociedade socialista libertária - anarquista - seria
então a realização do homem completo, livre e senhor de suas habilidades.
Retomando a perspectiva coletivista de Proudhon, Bakunin procura mostrar que
a liberdade, além de ser um produto social, é também um produto coletivo. Diz ele
que “a liberdade dos indivíduos não é um fato individual, é um fato, um produto coletivo.
Nenhum homem poderia ser livre fora e sem o concurso de toda a sociedade humana”,
pois ser livre é também ser reconhecido pelo outro como livre; se não há ninguém mais
que me reconheça como tal, não tenho também como adquirir consciência dela. Por
outro lado, só posso considerar-me verdadeiramente livre em meio a homens livres,
pois uma liberdade que se sustente sobre a opressão - não liberdade do outro - não
pode ser verdadeira. Para o anarquista russo a escravidão do outro é uma barreira para
minha liberdade, pois é uma animalidade que diminui minha humanidade. Resumindo,
a liberdade individual, a capacidade que cada um deve ter de não obedecer a mais
ninguém e determinar seus atos através de suas próprias convicções, só é válida
quando reconhecida por outras consciências igualmente livres. Nas palavras de
Bakunin, “só sou verdadeiramente livre quando todos os seres humanos que me
cercam, homens e mulheres, são igualmente livres... Minha liberdade pessoal, assim
confirmada pela liberdade de todos se estende ao infinito”.
Bakunin mostra, assim, que na sociedade capitalista o homem nunca poderá ser
livre, pois esta sociedade baseia-se na exploração, na desigualdade, em manter boa
parte da população em condições subumanas, para que outra parcela da população
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possa realizar-se. No entanto, mesmo essa parcela dominante, a rigor, não se realiza
como homem, pois esta concepção de homem calcada na exploração é anti-social e
anti-humana, portanto. Se o explorado não é livre, tampouco o explorador o é. O
homem vive um processo histórico de auto-construção, de auto-realização, que se
completará com a extinção das desigualdades e da exploração, quando todos os
homens tiverem condições de desenvolver livremente todas as suas faculdades. O
projeto socialista traduz-se então na contínua luta pela conquista da liberdade, pois
quanto mais livre mais o homem realiza sua condição humana.
É nesta concepção de liberdade que a educação anarquista vai basear seus
projetos de uma pedagogia libertária, e não na concepção individualista e naturalista de
Rousseau e seus seguidores, que por sua vez fundamenta as propostas pedagógicas
do movimento da escola nova e das pedagogias não-diretivas.
Na concepção anarquista de Bakunin a educação e a instrução são de
fundamental importância para a conquista da liberdade, pois é através da educação -
seja aquela institucional, realizada nas escolas, seja aquela informal, realizada pela
família e pela sociedade como um todo - que as pessoas entram em contato com toda
a cultura já produzida pela humanidade, desde seus primórdios. Ele já percebe que a
educação pode assumir um importante papel de desalienação e ser de grande
importância na luta pela liberdade. E, como veremos daqui por diante, o conceito de
liberdade representa um papel central nos projetos pedagógicos libertários.
de colocar uma máquina tão poderosa nas mãos de um agente tão ambíguo,
cumpre examinar bem o que estamos fazendo. Certamente que o governo não
deixará de usá-la para reforçar sua imagem, e suas instituições (...) Sua visão
como criadores de um sistema de educação não poderá deixar de ser
semelhante àquela que adotam como políticos, e os mesmos dados que utilizam
para levar adiante a sua atuação de homens de Estado serão utilizados como
base para o ensino patrocinado por eles.”(in George WOODCOCK, Os Grandes
Escritos Anarquistas, p. 248-249).
Isto é, parte-se do princípio de que todo indivíduo nasce com uma série de
possibilidades e a educação ou está organizada de modo a fazer aflorar e atualizar tais
potencialidades, harmonizando-as, ou então está preparada para selecionar quais
dessas possibilidades devem ser atualizadas e quais devem ser estirpadas, de acordo
com o modelo de indivíduo que aquela sociedade em questão concebe. A primeira
posição assume que a sociedade deverá ser a expressão dos indivíduos que a
compõem; a segunda, ao contrário, que os indivíduos devem ter a expressão dada pela
sociedade.
Educar a pessoa para que ela seja o que não é: objetivo claro, mas nunca
confesso, da educação burguesa. Essa educação sempre procurou formar as pessoas
de acordo com as necessidades da sociedade, servindo operários conformados para o
serviço braçal e formando filhos da burguesia para a gestão social, mas ainda assim de
acordo com os interesses da sociedade que vão gerir. A educação burguesa é, ao
mesmo tempo, reflexo e fonte da desigualdade social, disseminando uma visão de
mundo que garante a acomodação, e ensinando ricos e pobres a conformarem-se com
a estrutura social, que deve ser percebida como inevitável e imutável. A educação
burguesa existe para adaptar os indivíduos à sociedade, educando-os para que sejam
como devem ser socialmente, espalhando e concretizando a “mesmice”. A diferença, a
singularidade é perigosa, pois coloca em risco a “imutabilidade” do sistema social. A
educação burguesa constitui uma pedagogia da segurança, pois adapta o indivíduo
às instituições, ensinando o medo ao novo e também porque, com esta sistemática,
garante da segurança da estrutura social.
Com um giro de cento e oitenta graus encontramos, no lado oposto da reta, o
objetivo da educação libertária: educar a pessoa para que ela seja o que é. Livre,
consciente de suas diferenças e da importância de sua relação com o social. Herbert
Read alerta que, mesmo centrando o objetivo da educação no desenvolvimento da
singularidade de cada indivíduo, a pedagogia anarquista não é individualista. Trata-se,
na verdade, de um processo paralelo de individualização e de integração: ao mesmo
tempo em que o indivíduo singulariza-se, ganha consciência de que sua diferença só
faz sentido no contexto coletivo, harmonizando-se com as diferenças dos demais.
Educar é, então, dar condições a cada pessoa para que ela se descubra, enquanto
indivíduo livre e enquanto ser social, é dar condições para que ela possa perceber e
realizar, na justa medida, a dialética do indivíduo social, a sua liberdade na liberdade
do outro. E, neste sentido, a educação anarquista constitui-se numa pedagogia do
risco, por instigar a liberdade de arriscar nas pessoas, por ousar acreditar na mudança,
na transformação, e em sua possibilidade prática.
Resumindo, a educação burguesa teria por objetivo disseminar a ideologia de
perpetuação e manutenção do sistema social, ensinar a ver o mundo de uma maneira
socialmente aceita, a agir de acordo com estes parâmetros. A educação anarquista, por
sua vez, teria por objetivo desestruturar esta ideologia social e ensinar a liberdade, para
que cada um pense e aja à sua maneira, criando sua própria ideologia, assumindo sua
singularidade, sem fechar-se à amplitude do meio social. Tarefa difícil? Talvez, mas
mesmo por isso muito instigante.
“Gratuita! Queres dizer paga pelo Estado. Mas quem pagará ao Estado?
O povo. Já vês por aí que a educação não é gratuita. Mas isto não é tudo. Quem
se aproveitará mais da educação gratuita, o rico ou o pobre? Evidentemente o
rico: o pobre está condenado ao trabalho desde o berço.” (apud Dommanget,
Los Grandes Socialistas y la Educación, p. 266).
simultaneamente: é óbvio que uma sociedade libertária deve educar para a liberdade,
mas uma sociedade destas só pode existir se as massas lutarem para sua construção,
o que só farão se estiverem conscientes, consciência esta que se adquire através da
educação (via instrução ou não). Opositor feroz do autoritarismo, o anarquista russo
não acredita que a revolução possa ser feita através do trabalho de uma vanguarda
que dirija as massas. A revolução deve brotar do próprio povo, como desejo e
necessidade do povo. Acredita ele que uma vanguarda pode apenas lançar as
sementes, mas só as massas podem fazê-las germinar e crescer. E uma planta não é a
semente, simplesmente. Para Bakunin, essa vanguarda tem então apenas o papel da
propaganda, ou da instrução, de mostrar as injustiças e suas fontes. O povo é quem
decide se deseja ou não a revolução. E, desejando, a faz.
A educação tem um papel fundamental neste processo, pois é a própria
semente. Mas, segundo ele, a educação não prepara a revolução; a educação já é um
dos aspectos da própria revolução. À partir do momento que educamos para a
liberdade e a igualdade, numa sociedade de exploração e desigualdade, já estamos
realmente fazendo a revolução: estamos começando a mudar as consciências,
estamos ajudando a que vejam o mundo de maneira diferente. E ver o mundo de outro
modo é o primeiro passo para a transformação, pois ninguém transforma nada se não
consegue ver as coisas de outra maneira.
Sendo a conscientização das massas um ponto fundamental para o sucesso de
uma revolução social, Bakunin vê na educação uma poderosa arma para derrubar as
injustiças. Mas não apenas a educação formal é importante: além das escolas há toda
uma vida, e ele trabalha muito com a possibilidade de se trabalhar nos círculos
operários, nas uniões de trabalhadores que viriam a ser, mais tarde, os sindicatos como
os conhecemos hoje, através de textos publicados em jornais revolucionários,
palestras, debates etc. A educação para ele é então um todo complexo que tem na
escola seu ponto central e fundamental, mas não o único.
Ao trabalhar teoricamente a questão da educação, Bakunin procura verificar
como ela se processa em seu mundo conhecido, a sociedade burguesa do século
dezenove, para depois poder discutir e planificar as características essenciais que a
educação deveria assumir para contribuir no processo de transformação da sociedade,
e como seria a escola numa sociedade socialista. Seu ponto de partida é, pois, uma
análise crítica da educação burguesa.
Para Bakunin, a educação burguesa tem por objetivo legitimar e perpetuar a
estrutura de classes e as injustiças sociais, sendo ela própria injusta e classista. Suas
palavras são duras:
necessário que ela se conheça, se conheça por inteiro: se descubra como um corpo,
como uma consciência, como um ser social, tudo isso integrado e articulado. E é por
isso que uma educação para a liberdade deve ser também uma educação integral, em
que o homem se perceba e se conheça em todas as suas facetas e características.
Bakunin fala ostensivamente na educação das crianças, mas é óbvio que as
massas trabalhadoras devem também ser instruídas na perspectiva da educação
libertadora, que lhes retirará os preconceitos que lhes foram inculcados pela educação
burguesa. Mas não se trata de mandar as massas para a escola: tal instituição não
estaria preparada e aparelhada para absorvê-las. É necessário então que se criem
espaços alternativos onde possam ser difundidos e distribuídos os conhecimentos que
foram negados para estas grandes parcelas da população. Mas nessas “academias
populares”, para usar suas próprias palavras, o princípio de autoridade já não pode
mais ser utilizado: entre adultos, o saber não pode ser instrumento de poder; a
atividade pedagógica seria um “ensinamento mútuo, um ato de fraternidade intelectual
entre a juventude instruída e o povo”.
A educação integral e libertadora de Bakunin visa ainda a uma integração do
trabalho manual e do trabalho intelectual, superando essa histórica dicotomia. E a
realização desta educação, sua aplicação prática no mundo da produção, significará a
superação da alienação: todo trabalhador terá plena consciência de seu trabalho e todo
planificador também dominará as técnicas manuais de produção. O produto não
escapará ao produtor.
“Está claro que a indústria, assim como as ciências, não pode ser dividida,
nem reduzida à rotina, sob pena de perecer: o homem, cujo gênio circunscrito a
uma profissão não saiba nada das demais e que, por acréscimo, seja incapaz de
reduzir seu ofício a suas noções elementares e dar sua teoria, é como aquele
que, tendo aprendido a firmar seu nome como quem faz uma rubrica, não sabe
nada sobre o restante do alfabeto.” (apud Dommanget, Los Grandes Socialistas
y la Educación, p. 271)
“Todo homem deve ser considerado sob dois pontos de vista: como ser
isolado, independente, completo por si só, e como membro da coletividade.
Nenhuma delas pode ser sacrificada pela outra. Como ser distinto e completo,
ele tem direito ao desenvolvimento total das suas faculdades; como membro da
coletividades, ele deve contribuir com sua parte de trabalho íntegro e
necessário.” (in Moriyón, Educação Libertária, p. 89)
espere suas perguntas, responda a elas sobriamente, para que seu espírito continue
seus próprios esforços, não imponha de modo algum idéias feitas, vulgares,
transmitidas pela rotina irreflexiva e embrutecedora” (apud Dommanget, op. cit., p.
364).
Também Ferrer i Guàrdia, ao refletir sobre a experiência da Escola Moderna de
Barcelona, destaca que a educação intelectual não deve ficar restrita ao intelectual. É
necessário, para que o aprendizado seja de fato significativo, que haja uma relação
afetiva com o saber:
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A esse respeito ver, por exemplo, Maria Alice Nogueira, Educação, Saber, Produção em Marx e Engels. São
Paulo: Cortez, 1990.
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nossa Educação Moral e Cívica de triste lembrança, que alguns parecem querer
reeditar quando se fala no tema transversal de ética e cidadania. A educação integral
no contexto da educação integral anarquista organizava-se em torno da vivência
cotidiana da comunidade escolar escola através da solidariedade e da liberdade, como
forma de organizar uma nova prática social.
Arautos de uma nova estrutura social, que implica necessariamente numa forma
de vida diferente, os anarquistas concebiam a escola como uma comunidade que
deveria estar organizada segundo os valores fundamentais de uma sociedade
libertária. Dessa forma, igualdade, liberdade e solidariedade deveriam ser os pilares da
comunidade escolar. E as relações travadas entre os alunos, entre esses e os
educadores e assim por diante, deveriam ser relações fundadas nesses valores e
princípios. Para dizer de forma justa, a intenção com a educação moral era a de criar,
na prática das relações cotidianas, uma nova moralidade, que privilegiasse o exercício
da liberdade e da solidariedade, além do respeito e da igualdade.
Finalizando, podemos dizer com Sébastien Faure que a educação moral, como
educação para a liberdade,
“prepara a criança, desde o uso da razão, para o exercício das faculdades mais
nobres, acostuma-se à responsabilidade, ilumina o juízo, enobrece o coração,
fortalece a vontade, exercita os esforços mais fecundos, estimula os impulsos
mais generosos, atrai sua atenção para as conseqüências de seus atos,
favorece o espírito de iniciativa, multiplica as atividades, centuplica as energias,
desenvolve maravilhosamente a personalidade. Constrói lentamente, porém de
forma segura, um ser digno, sem arrogância, orgulho e altivez, um ser
apaixonado pela independência tanto dos outros como dele, respeitoso da
vontade do próximo da mesma maneira que quer ser respeitado, zeloso de seus
direitos e disposto a protegê-los.” (in Moriyón, Educação Libertária, p. 138)
a vida, a outra prefere a segurança de viver num mundo sem mistérios, de reações
padronizadas e, ao escolher essa apatia, privilegia a morte.
Escrevendo há quase trinta anos, Henri Arvon destacou elementos que já
atestavam a contemporaneidade dessa pedagogia do risco:
Penso que as considerações de Arvon são, hoje, ainda mais atuais. As teses
básicas sobre educação que freqüentam os congressos e publicações da área,
voltadas para um processo educativo que seja capaz de atender às necessidades de
uma sociedade e de uma cultura onde as alterações são muito rápidas, poderiam ser
bem atendidas com o projeto anarquista de educação.
Uma educação integral é fundamental em nossos dias, para que as escolas
possam abandonar o modelo até então hegemônico de transmissão de informações.
Aqui continuam válidas as críticas dos anarquistas e suas propostas de alteração de
rota. Uma educação intelectual voltada para o processo e não para o produto, que
privilegie a curiosidade, a busca, a construção de saberes pode formar indivíduos muito
mais “antenados” com as necessidades contemporâneas.
Em termos de formação profissional, alguns poderiam objetar que hoje
transitamos para uma civilização do não-trabalho, em que o trabalho torna-se obsoleto;
no entanto, em termos de países emergentes essa realidade está ainda muito longe de
se manifestar, se é que no jogo da geopolítica mundial poderá um dia manifestar-se
entre nós. Por outro lado, a necessidade de profissionais flexíveis, dinâmicos e sempre
em evolução pode ser atendida pela politecnia. Claro que as oficinas do século
dezenove hoje precisariam ser muito diferentes; as técnicas e habilidades hoje
necessárias são completamente outras. Mas o princípio é tão ou mais atual do que
antes.
Para finalizar, a educação moral. Em nossos dias não se cessa de dizer que
vivemos uma crise de valores, e que a educação não tem sabido lidar com isso. Pois
bem: não é exatamente dessa crise de valores e da busca de alternativas que tratava a
educação moral nas experiências libertárias?
Uma educação contemporânea comprometida com a transformação dos valores,
com a construção da liberdade, da autonomia, da solidariedade, com a formação de
seres humanos plenos, saudáveis, conscientes e ativos tem muito a resgatar da
educação integral em moldes anarquistas.
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