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A EDUCAÇÃO INTEGRAL NUMA PERSPECTIVA ANARQUISTA*

À memória de Francesc Ferrer i Guàrdia, que em outubro de


1909 foi fuzilado, nos fossos do Castelo de Montjuic -
Barcelona, por ter ousado pensar, defender e por em prática
uma educação integral.

Sílvio Gallo**

O século dezenove, como ápice do que se convencionou chamar de


modernidade, teve como utopia fundamental a emancipação humana. O positivismo viu
nas conquistas científicas e tecnológicas a possibilidade desta emancipação; o
socialismo, em seus diversos matizes, a localizou numa revolução social que pusesse
fim à exploração e dominação capitalistas. No contexto dessa emancipação humana do
jugo de todas as imposições, seja a da natureza, sejam aquelas decorrentes da
dominação do homem pelo homem, surgiu o conceito de uma educação integral. Esse
conceito obteve ecos e interpretações diferenciadas pelas mais distintas correntes de
pensamento educacional, dos reformistas católicos aos socialistas anti-clericais. Esse
artigo apresentará uma visão geral e introdutória de como os anarquistas, em suas
concepções teóricas e em suas experiências pedagógicas, desenvolveram o conceito e
a prática de uma educação integral.
Desde a Revolução Francesa, com a instituição de uma sociedade burguesa,
que a massa assalariada dos trabalhadores vem lutando para conseguir que o Estado
forneça um sistema educacional que propicie maiores e melhores oportunidades para o
operariado e para seus filhos. Assim, os partidos políticos, em especial aqueles
considerados “de esquerda”, sempre trazem em seus programas propostas para a
educação, e nos movimentos sociais é constante a crítica à educação burguesa e uma
gama de sugestões para a realização de uma educação renovadora e até mesmo
revolucionária.
No bojo do movimento socialista, o Anarquismo também trouxe suas propostas
ao campo educacional. A perspectiva anarquista, no entanto, diferenciou-se
radicalmente das demais teorias educacionais socialistas, que de modo geral ou
exigiam do Estado burguês uma reforma educacional que beneficiasse o proletariado,
ou propunham métodos de trabalho revolucionário no próprio sistema escolar burguês,
levando-o a uma gradual transformação. O projeto anarquista, coerente com a idéia de
que o proletário deve conquistar ele próprio sua liberdade, com o princípio
proudhoniano de que a emancipação dos trabalhadores só pode ser obra deles
mesmos, criticou implacavelmente a perspectiva ideológica da educação burguesa,
rejeitando sumariamente qualquer proposta de educação oferecida pelo governo, ou
que devesse em última instância ser mantida por ele. A proposta anarquista
desenvolveu-se em torno da idéia de que os trabalhadores deveriam criar suas próprias
escolas, bem diferentes daquelas estatais ou religiosas.
A educação anarquista também é chamada de educação libertária ou pedagogia
libertária, pois os anarquistas vêem na liberdade o princípio básico da vivência social.
Mas a palavra liberdade dá origem às mais diversas interpretações. Conhecemos
aquele ditado que diz que “a minha liberdade termina onde começa a do outro”, que
tenta colocar o problema do convívio social: em outras palavras, mesmo que seja livre,

*
Publicado em Educação Brasileira e(m) Tempo Integral. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 13-42.
**
Professor da Faculdade de Filosofia, História e Letras - Unimep e da Faculdade de Educação - Unicamp.
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não posso invadir o espaço do outro em nome dessa liberdade. Mas poderíamos então
perguntar: uma liberdade que tem limites é mesmo liberdade? Se a liberdade do meu
vizinho limita a minha e a minha limita a dele, é mais lógico pensar que somos
prisioneiros, vizinhos de cela, e não dois indivíduos livres!
Tal confusão é decorrente do fato de se entender a liberdade numa perspectiva
individual, veiculada pela filosofia política burguesa clássica, com a qual nosso contato
é mais freqüente. O filósofo genebrino do século dezoito Jean-Jacques Rousseau
definia a liberdade como uma característica natural do homem, isto é, todos nós
somos livres desde que nascemos. Mas ele também dizia que a sociedade nos
aprisiona e que era então preciso que construíssemos uma nova sociedade, na qual os
indivíduos pudessem ser livres. Essa é a essência do que chamamos liberalismo e
também de seu irmão mais novo, o neo-liberalismo. Se a liberdade é uma
característica, uma dádiva natural de cada um de nós, basta que a sociedade - uma
criação humana e artificial, portanto - não interfira nela, através de um excesso de leis e
regulamentações. Mas ficamos sempre presos a esse paradoxo: como podem todos os
indivíduos serem livres, sem interferirem uns nas liberdades dos outros?
Os anarquistas vão trabalhar com um conceito diferente de liberdade, que
procura superar esse paradoxo do liberalismo. Segundo Pierre-Joseph Proudhon,
filósofo francês do século dezenove, a liberdade é resultante de uma oposição de
forças, uma de afirmação, a necessidade e outra de negação, a espontaneidade.
Quanto mais simples um ser vivo qualquer, mais ele é regido pela necessidade; quanto
mais complexo, mais ele é influenciado pela força da espontaneidade. Essa força da
espontaneidade, ainda segundo Proudhon, atinge seu grau máximo no ser humano,
justamente sob o nome de liberdade. Mas o homem não é pura espontaneidade e sim
o resultado de uma composição de forças da natureza, só podendo ser livre por causa
da síntese dessa pluralidade de forças.
Para o filósofo francês, todo composto deve produzir uma resultante; o homem é
um composto formado por corpo, espírito e vida, cada um deles subdividindo-se em
outras faculdades, gerando uma multiplicidade de forças que vão se resolver numa
resultante que é superior a todas elas, por abarcá-las: aquilo a que chamamos livre-
arbítrio, ou liberdade. E quanto mais o homem associa-se a outros homens, no convívio
social, maior a multiplicidade de forças envolvidas e mais poderosa a resultante, o que
ele chama de “liberdade do ser social”.
Como vemos, Proudhon desenvolve uma “dialética pluralista”: a liberdade é
resultante de uma síntese de diversos componentes, antagônicos ou complementares,
sendo que a síntese é sempre mais forte, mais complexa que suas componentes
iniciais. Mas ele vai ainda mais longe, realmente afastando-se das concepções
clássicas e burguesas, quando afirma a existência de dois tipos de liberdade. O
primeiro tipo seria a liberdade simples, que é experimentada pelos bárbaros, que não
têm uma sociedade desenvolvida, e mesmo por aqueles que, ainda que vivendo em
sociedade, não são conscientes deste seu estado, achando que eles próprios bastam-
se a si mesmos. O segundo tipo, por outro lado, seria uma liberdade composta,
constituindo a verdadeira liberdade, aquela vivida em sociedade. Esta liberdade social
pressupõe, para sua existência, a convergência de várias outras liberdades, que se
complementam, resultando numa liberdade maior para toda a sociedade.
Para Proudhon, na perspectiva bárbara o máximo de liberdade corresponde ao
máximo de isolamento, quando não há ninguém mais para limitar a liberdade do
indivíduo. Por outro lado, do ponto de vista social, quando liberdade e solidariedade se
eqüivalem, o máximo de liberdade significaria o máximo de relacionamento possível
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com outros homens, pois desta perspectiva as liberdades não se limitam, mas se
auxiliam, se complementam. Ao contrário do ditado citado acima, minha liberdade não
termina onde começa a do outro, mas ela começa junto com a do outro, e juntas são
mais fortes. Liberdade é, assim, comunhão com o outro e não oposição ao outro. A
liberdade é também a própria condição de existência da sociedade: é porque são livres
que os homens escolhem viver juntos para auxiliarem-se mutuamente e vencer com
maior facilidade as vicissitudes naturais. E por viverem em sociedade, os homens
tornam-se mais livres!
Mikhail Bakunin, anarquista russo que foi discípulo de Proudhon, parte desta
concepção e a aprofunda. À idéia rousseauniana de liberdade como uma característica
natural do homem, ele opõe a idéia de liberdade como uma construção eminentemente
social, possível apenas em sociedade. Para ele, a liberdade é o ponto de chegada do
homem e não o ponto de partida, como queria Rousseau, pois na aurora da
humanidade, estando o homem ainda inconsciente de si, ele não era mais do que uma
marionete nas mãos das forças naturais. Sua vida regia-se pelo princípio da
necessidade, fazia aquilo que era necessário para garantir sua sobrevivência, vivia sob
o jugo da fatalidade. Com o processo cultural e o desenvolvimento da civilização, o
homem vai aos poucos se libertando das fatalidades naturais, construindo seu mundo e
conquistando a liberdade.
A concepção materialista de Bakunin mostra que a liberdade, embora seja uma
das facetas fundamentais do homem, não é um fato natural, mas produzido pela
cultura, pela civilização. Em outras palavras, enquanto o homem produz cultura, ou
seja, se autoproduz, ele conquista também a liberdade. Deste modo, o homem e a
liberdade nascem juntos: um é criação do outro, um só existe pelo outro. É um
processo de dupla ação: quanto mais o homem se “humaniza”, mais livre ele fica e,
quanto mais livre, mais humano. Conclui-se então que ao assumir-se totalmente
homem, conquista-se o máximo de liberdade. Mas o máximo de liberdade, como já
vimos com Proudhon, ocorre quando todos os indivíduos são livres, pois as liberdades
se completam, se auxiliam. Uma sociedade socialista libertária - anarquista - seria
então a realização do homem completo, livre e senhor de suas habilidades.
Retomando a perspectiva coletivista de Proudhon, Bakunin procura mostrar que
a liberdade, além de ser um produto social, é também um produto coletivo. Diz ele
que “a liberdade dos indivíduos não é um fato individual, é um fato, um produto coletivo.
Nenhum homem poderia ser livre fora e sem o concurso de toda a sociedade humana”,
pois ser livre é também ser reconhecido pelo outro como livre; se não há ninguém mais
que me reconheça como tal, não tenho também como adquirir consciência dela. Por
outro lado, só posso considerar-me verdadeiramente livre em meio a homens livres,
pois uma liberdade que se sustente sobre a opressão - não liberdade do outro - não
pode ser verdadeira. Para o anarquista russo a escravidão do outro é uma barreira para
minha liberdade, pois é uma animalidade que diminui minha humanidade. Resumindo,
a liberdade individual, a capacidade que cada um deve ter de não obedecer a mais
ninguém e determinar seus atos através de suas próprias convicções, só é válida
quando reconhecida por outras consciências igualmente livres. Nas palavras de
Bakunin, “só sou verdadeiramente livre quando todos os seres humanos que me
cercam, homens e mulheres, são igualmente livres... Minha liberdade pessoal, assim
confirmada pela liberdade de todos se estende ao infinito”.
Bakunin mostra, assim, que na sociedade capitalista o homem nunca poderá ser
livre, pois esta sociedade baseia-se na exploração, na desigualdade, em manter boa
parte da população em condições subumanas, para que outra parcela da população
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possa realizar-se. No entanto, mesmo essa parcela dominante, a rigor, não se realiza
como homem, pois esta concepção de homem calcada na exploração é anti-social e
anti-humana, portanto. Se o explorado não é livre, tampouco o explorador o é. O
homem vive um processo histórico de auto-construção, de auto-realização, que se
completará com a extinção das desigualdades e da exploração, quando todos os
homens tiverem condições de desenvolver livremente todas as suas faculdades. O
projeto socialista traduz-se então na contínua luta pela conquista da liberdade, pois
quanto mais livre mais o homem realiza sua condição humana.
É nesta concepção de liberdade que a educação anarquista vai basear seus
projetos de uma pedagogia libertária, e não na concepção individualista e naturalista de
Rousseau e seus seguidores, que por sua vez fundamenta as propostas pedagógicas
do movimento da escola nova e das pedagogias não-diretivas.
Na concepção anarquista de Bakunin a educação e a instrução são de
fundamental importância para a conquista da liberdade, pois é através da educação -
seja aquela institucional, realizada nas escolas, seja aquela informal, realizada pela
família e pela sociedade como um todo - que as pessoas entram em contato com toda
a cultura já produzida pela humanidade, desde seus primórdios. Ele já percebe que a
educação pode assumir um importante papel de desalienação e ser de grande
importância na luta pela liberdade. E, como veremos daqui por diante, o conceito de
liberdade representa um papel central nos projetos pedagógicos libertários.

EDUCAÇÃO ANARQUISTA: crítica e prospectiva

Os escritos anarquistas acerca da educação abrem-se em duas perspectivas:


por um lado, temos a crítica do sistema burguês de ensino; por outro, temos a
colocação de novas bases e objetivos libertários para a educação. A primeira questão
está presente em praticamente todos os grandes teóricos do Anarquismo, como
Proudhon, Bakunin, Kropotkin ou Malatesta, por exemplo. A segunda, em educadores
libertários como Robin ou Ferrer i Guàrdia.
Quando, no início dos anos setenta do século vinte, o filósofo francês Louis
Althusser denunciou a escola como um dos principais aparelhos ideológicos do
Estado, encarregada de difundir e perpetuar a ideologia burguesa, garantindo a
reprodução do sistema, houve um certo furor nos meios intelectuais, que foram
“acordados” para sua condição de reprodutores. Entretanto, os anarquistas já vinham
denunciando o caráter ideológico da educação há quase duzentos anos, desde a
tomada do poder político pelos burgueses com a Revolução Francesa. Num texto
datado de 1793 - em pleno momento de consolidação da Revolução - e intitulado
Investigação sobre a Justiça Política, o inglês William Godwin, tido como um dos
precursores do Anarquismo do século dezenove, já alertava para os perigos de um
sistema público de ensino controlado pelo governo, o grande projeto da República
Francesa. Segundo ele, o ensino nestas escolas está sempre voltado para a defesa
dos preconceitos, a justificação das doutrinas e não o seu exame crítico e consciente.
Com esse ensino, o Estado pretenderia controlar o aprendizado de forma que lhe fosse
conveniente. Vejamos as palavras do próprio Godwin:

“...todo projeto nacional de ensino deveria ser combatido em qualquer


circunstância, pelas suas óbvias ligações com o governo, uma ligação mais
temível do que a velha e muito contestada aliança da Igreja com o Estado. Antes
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de colocar uma máquina tão poderosa nas mãos de um agente tão ambíguo,
cumpre examinar bem o que estamos fazendo. Certamente que o governo não
deixará de usá-la para reforçar sua imagem, e suas instituições (...) Sua visão
como criadores de um sistema de educação não poderá deixar de ser
semelhante àquela que adotam como políticos, e os mesmos dados que utilizam
para levar adiante a sua atuação de homens de Estado serão utilizados como
base para o ensino patrocinado por eles.”(in George WOODCOCK, Os Grandes
Escritos Anarquistas, p. 248-249).

Estas idéias de Godwin foram retomadas pelos anarquistas do século dezenove


e a instrução pública estatal - então já consolidada - foi atacada de diversos ângulos
por Proudhon e Bakunin, por exemplo, como veremos adiante. No movimento
anarquista brasileiro, forte e atuante nas primeiras décadas do século vinte, a coisa não
foi diferente. Enquanto algumas correntes do socialismo tentavam pressionar o governo
no sentido de aumentar o número e melhorar a qualidade das escolas, os anarquistas
denunciavam, através de livros, jornais, revistas, conferências, os males de um ensino
oferecido pelo Estado.
Em 1925 José Oiticica, figura proeminente do movimento, escreveu um livreto
intitulado A Doutrina Anarquista ao Alcance de Todos, com o objetivo de disseminar as
idéias libertárias entre o operariado, onde afirma que “compreende-se que, para os
possuidores, é de toda importância manter os cidadãos, mormente os trabalhadores
proletários, com tal mentalidade que aceitem, sem revolta, e defendam convencidos o
regime social vigente. Por isso, o Estado assume as funções do pedagogo, sobretudo
das classes primárias, do povo” (p. 30). E prossegue mostrando que, através do
preconceito, o Estado trata de introjetar nos indivíduos a idolatria política, os
deveres cívicos e a obediência às instituições, às leis, aos superiores, à propriedade,
à pátria, às forças armadas etc., buscando assim garantir o respeito e a conformação a
uma estrutura social que se pretende absoluta e imutável.
Do ponto de vista libertário, a educação existente na época, seja a estatal, seja a
particular - que, com muita freqüência, não ia além das escolas confessionais,
religiosas - era veiculadora de erros e preconceitos. Tal educação não preparava as
pessoas para pensar, para estar de prontidão com relação ao conhecimento, para
desvendar o mundo. Apresentava, por outro lado, uma noção de homem e uma visão
de mundo já pronta e acabada, elaborada com base em pressupostos totalmente
falsos, no intuito de perpetuar o estado das coisas. Em outras palavras, não se
ensinava a conhecer o mundo mas, mais propriamente, era ensinado um certo
conhecimento do mundo, conhecimento este que dava a segurança de viver num
mundo sem mistérios, mas que levava ao medo do risco, à morte da criatividade, da
originalidade, da liberdade...
Esta discussão nos remete para uma questão central, a dos objetivos da
educação. Qual é o objetivo - ou objetivos - da educação? Parece-me que já vai ficando
claro que a educação tradicional - burguesa - e a educação anarquista pautam-se por
objetivos bastante diferenciados ou, para utilizar uma expressão mais radical mas
também mais precisa, estas duas perspectivas pedagógicas colocam-se objetivos
antagônicos. O filósofo Herbert Read, ao tratar do assunto em A Educação pela Arte
coloca a questão nos seguintes termos: existem duas possibilidades irreconciliáveis
quanto ao objetivo da educação; uma afirma que o indivíduo deve ser educado para ser
aquilo que é; a outra, que o indivíduo deve ser educado para ser aquilo que não é.
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Isto é, parte-se do princípio de que todo indivíduo nasce com uma série de
possibilidades e a educação ou está organizada de modo a fazer aflorar e atualizar tais
potencialidades, harmonizando-as, ou então está preparada para selecionar quais
dessas possibilidades devem ser atualizadas e quais devem ser estirpadas, de acordo
com o modelo de indivíduo que aquela sociedade em questão concebe. A primeira
posição assume que a sociedade deverá ser a expressão dos indivíduos que a
compõem; a segunda, ao contrário, que os indivíduos devem ter a expressão dada pela
sociedade.
Educar a pessoa para que ela seja o que não é: objetivo claro, mas nunca
confesso, da educação burguesa. Essa educação sempre procurou formar as pessoas
de acordo com as necessidades da sociedade, servindo operários conformados para o
serviço braçal e formando filhos da burguesia para a gestão social, mas ainda assim de
acordo com os interesses da sociedade que vão gerir. A educação burguesa é, ao
mesmo tempo, reflexo e fonte da desigualdade social, disseminando uma visão de
mundo que garante a acomodação, e ensinando ricos e pobres a conformarem-se com
a estrutura social, que deve ser percebida como inevitável e imutável. A educação
burguesa existe para adaptar os indivíduos à sociedade, educando-os para que sejam
como devem ser socialmente, espalhando e concretizando a “mesmice”. A diferença, a
singularidade é perigosa, pois coloca em risco a “imutabilidade” do sistema social. A
educação burguesa constitui uma pedagogia da segurança, pois adapta o indivíduo
às instituições, ensinando o medo ao novo e também porque, com esta sistemática,
garante da segurança da estrutura social.
Com um giro de cento e oitenta graus encontramos, no lado oposto da reta, o
objetivo da educação libertária: educar a pessoa para que ela seja o que é. Livre,
consciente de suas diferenças e da importância de sua relação com o social. Herbert
Read alerta que, mesmo centrando o objetivo da educação no desenvolvimento da
singularidade de cada indivíduo, a pedagogia anarquista não é individualista. Trata-se,
na verdade, de um processo paralelo de individualização e de integração: ao mesmo
tempo em que o indivíduo singulariza-se, ganha consciência de que sua diferença só
faz sentido no contexto coletivo, harmonizando-se com as diferenças dos demais.
Educar é, então, dar condições a cada pessoa para que ela se descubra, enquanto
indivíduo livre e enquanto ser social, é dar condições para que ela possa perceber e
realizar, na justa medida, a dialética do indivíduo social, a sua liberdade na liberdade
do outro. E, neste sentido, a educação anarquista constitui-se numa pedagogia do
risco, por instigar a liberdade de arriscar nas pessoas, por ousar acreditar na mudança,
na transformação, e em sua possibilidade prática.
Resumindo, a educação burguesa teria por objetivo disseminar a ideologia de
perpetuação e manutenção do sistema social, ensinar a ver o mundo de uma maneira
socialmente aceita, a agir de acordo com estes parâmetros. A educação anarquista, por
sua vez, teria por objetivo desestruturar esta ideologia social e ensinar a liberdade, para
que cada um pense e aja à sua maneira, criando sua própria ideologia, assumindo sua
singularidade, sem fechar-se à amplitude do meio social. Tarefa difícil? Talvez, mas
mesmo por isso muito instigante.

PROUDHON: educação, politecnia e superação da alienação


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O primeiro revolucionário a reivindicar para si o título de “anarquista” foi o gráfico


autodidata francês Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865). Em seu livro O Que é a
Propriedade?, publicado em 1840, este filho de camponeses que aprendeu a ler
trabalhando numa tipografia e estudando por conta própria, tornou-se um dos mais
importantes, fecundos e criativos filósofos sociais da primeira metade do século
dezenove, ao se definir politicamente retomando o termo “anarquista”, usado na época
da Revolução Francesa de forma pejorativa, resgatando seu sentido original: a
negação da autoridade instituída.
Proudhon procura explicar que a autoridade, o governo, é uma deturpação da
sociedade natural, que deve ser necessariamente igualitária e justa: se existe uma ou
mais pessoas que tenham poder sobre as demais, esta sociedade não é justa nem
igualitária. A igualdade, segundo ele, assenta-se na liberdade. A sociedade histórica é
um processo dialético que levará ao advento da sociedade justa, a sociedade
anarquista, livre e soberana. Aos que relacionam anarquia com desordem, o filósofo
responde que a ordem, de fato, só pode existir a partir da liberdade, e não da
intervenção: em liberdade a sociedade constrói uma ordem duradoura, por ser
expressão dela mesma. Essa ordem artificial, imposta de fora pelos governos está
fadada a desaparecer; escreveu ele que “a propriedade e a realeza estão em
demolição desde o início do mundo; assim como o homem procura a justiça na
igualdade, a sociedade procura a ordem na anarquia.
Diversas teorias proudhonianas seriam incorporadas definitivamente ao
movimento operário, como por exemplo a idéia de que a emancipação político-social
dos trabalhadores só pode ser uma conquista deles próprios, nunca será oferecida e
doada pelas classes dominantes, sem luta e muito trabalho. Economicamente,
Proudhon defendia a tese de que os operários deveriam organizar a produção através
de cooperativas de trabalho, que seriam administradas em regime de autogestão.
Essas cooperativas relacionar-se-iam todas entre si, como em uma outra grande
cooperativa, também autogerida, que estaria encarregada da circulação das
mercadorias. Assim o organismo econômico da sociedade seria comporto por uma rede
de cooperativas de produção, circulação e consumo, todas elas controladas e
administradas pelos próprios trabalhadores, segundo seus desejos e necessidades.
Para não ser confundido com o cooperativismo burguês, esse sistema ficou conhecido
como mutualismo.
No campo político, Proudhon trabalha com o princípio do federalismo, que
segue uma estruturação análoga à estrutura econômica das cooperativas. Segundo tal
princípio, cada bairro, cada fábrica, cada escola, cada comunidade ou seja, cada
estrutura básica da sociedade conceberia uma associação política cujos objetivos,
necessidades, prioridades etc., seriam decididos pelos cidadãos nela envolvidos. A
união, por exemplo, das diversas associações e bairro, comporia uma associação a
nível municipal, cuja associação com as demais comporia uma associação a nível
estadual e assim por diante, até todos os segmentos da população estarem
devidamente organizados e articulados, compondo uma verdadeira rede de tráfego de
informações e decisões, o que tiraria as decisões sobre os destinos da nação das mãos
de umas poucas pessoas. Proudhon defende a necessidade da existência de uma
democracia direta, participativa e não de uma democracia representativa, na qual as
pessoas abdicam de sua liberdade em nome de outra pessoa, que passará a decidir
sobre os destinos de suas vidas. Seu princípio fundamental é sempre a autogestão, a
participação: toda a sociedade participando de sua administração, assumindo os
direitos e as responsabilidades da liberdade e da justiça.
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Mas o que pensava Proudhon acerca da educação? Qual o papel


desempenhado por ela na sociedade?
Como William Godwin já havia salientado, no final do século dezoito, a educação
é utilizada pelo Estado para formar as pessoas segundo determinados padrões,
preestabelecidos. Proudhon também coloca a questão por este prisma, mas a seu
modo. Para ele, a educação tem a função de produzir o homem como uma
representação das relações sociais e é, portanto, a função mais importante da
sociedade, pois é uma das condições básicas de sua manutenção e da perpetuação de
sua existência. Deste modo, já se pode iniciar uma análise da educação fornecida pelo
capitalismo, pela sociedade burguesa. É óbvio que essa sociedade hierarquizada
preconizará uma educação hierarquizada. A classe dominante precisará receber, por
intermédio da educação, os meios e os conhecimentos necessários para dominar todo
o processo de produção, circulação e consumo, podendo manter-se na posição de
proprietária e gerente dos meios de produção. As classes operárias, por outro lado,
devem receber apenas a instrução necessária para a realização das tarefas às quais
estão destinadas. Uma educação popular mais abrangente e de melhor qualidade traria
problemas sérios para o sistema, pois o trabalhador que dominasse o conhecimento
sobre o processo geral de produção muito provavelmente não mais submeter-se-ia à
dominação burguesa.
No princípio, Proudhon defendia a idéia de que o Estado deveria fornecer a toda
a população uma educação séria, abrangente, de qualidade e gratuita. Educar o povo
seria uma função do Estado. “Queremos trabalhadores civilizados e livres”, escreveu
ele. Aos poucos, no entanto, vai percebendo que essa gratuidade da instrução pública
não passa de uma grande mistificação, passando a criticá-la veementemente:

“Gratuita! Queres dizer paga pelo Estado. Mas quem pagará ao Estado?
O povo. Já vês por aí que a educação não é gratuita. Mas isto não é tudo. Quem
se aproveitará mais da educação gratuita, o rico ou o pobre? Evidentemente o
rico: o pobre está condenado ao trabalho desde o berço.” (apud Dommanget,
Los Grandes Socialistas y la Educación, p. 266).

À medida em que estuda a sociedade, Proudhon vai percebendo que a


educação que ele deseja nunca será oferecida pelo sistema capitalista, pois uma
educação que tenha por base a liberdade, a justiça e a igualdade é completamente
contrária às bases deste sistema, que são a dominação e a exploração. Por este
motivo o capitalismo nunca educará nem ao povo nem a ninguém, a não ser àquela
camada da burguesia que será destinada ao gerenciamento da sociedade, que a
manterá sempre de acordo com a mesma estrutura. E o povo receberá o mínimo de
instrução e consciência necessários para ser reconhecido como pertencente ao gênero
humano.
Resumindo, a educação popular capitalista é, muito propriamente, uma
“educação servil”, que procura manter as massas na ignorância, ensinando-as a
obedecer e a servir, para manter a supremacia das classes dominantes. Como já foi
colocado anteriormente, para Proudhon a função da educação é formar o homem
segundo os interesses sociais. Não se pode esperar, portanto, que uma sociedade
possa fornecer uma educação que forme homens que venham mais tarde a questioná-
la, e mesmo a destruí-la, minando suas bases político-econômico-sociais. Como
também é de se esperar, uma sociedade revolucionária, por sua vez, deverá investir na
formação de homens revolucionários, capazes de criar e de manter uma nova
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sociedade; Proudhon afirma que “nenhuma revolução será fecunda, se a instrução


pública recriada não se tornar a sua coroação”.
O filósofo anarquista parte da crítica à educação burguesa para a teorização de
como deveria ser uma educação revolucionária, libertária e justa. Essa educação
deveria ser utilizada tanto para o auxílio na emancipação das classes operárias, sendo
trabalhada por elas próprias, visto que o capitalismo nunca a apoiaria mas, ao
contrário, lançaria todas as suas armas contra ela, quanto para a formação dos
homens da nova sociedade, com o advento da revolução social.
Alguns pontos básicos desta educação revolucionária são a justiça na igualdade
de oportunidades, a democracia em sua direção, o trabalho como instrumento de
aprendizagem e a generalidade precedendo a especialização. Vejamos cada um deles.
Todos os níveis de ensino devem estar abertos e ser oferecidos a toda a
população. Cada trabalhador deve conhecer a fundo seu trabalho, mas deve também
dominar os demais conhecimentos produzidos pela humanidade, conhecendo a
organização geral da sociedade e participando ativamente de sua gestão.
Para que a instituição de ensina seja o veículo da vivência da liberdade e da
autonomia, seria inconcebível que sua estrutura fosse burocrática e autoritária, o que
seria uma contradição com os conteúdos trabalhados, realizando mais uma des-
educação do que uma educação. Uma escola que queira ser o caminho para a
liberdade deve ser, necessariamente, autogerida. Sua administração deve ser libertária,
realizada pela própria comunidade e não hierarquizada. Proudhon dizia que “é preciso
democratizar o ensino e fazer intervir... todo o corpo dos professores na administração
dos colégios e na direção do ensino”.
Via ainda o anarquista francês que uma das facetas da dominação burguesa era
a dicotomia entre trabalho manual e trabalho intelectual. Nota-se que no processo de
divisão social das atividades produtivas o trabalho intelectual, de planejamento,
supervisão e gerência é sempre realizado pelos burgueses, enquanto que o trabalho
manual, o cansativo, desgastante e embrutecedor é realizado pelos operários. No
entanto, qualquer trabalho será muito mais gratificante para quem o realiza se o
trabalhador dominar todas as fases do processo, da planificação até a realização
prática; mas, em nome da produtividade o trabalho é dividido e quem pode mais fica
com a melhor fatia. Proudhon, defensor do trabalho artesanal, é um ferrenho adversário
da industrialização e sua organização da produção através da divisão, posto que ela
institui um trabalho alienado, paradigma do capitalismo, em que o trabalhador não
domina o objeto que produz, por não conhecê-lo por inteiro e por não controlá-lo
economicamente.
É neste contexto que ele propõe que a educação revolucionária tome o trabalho
manual como um instrumento de aprendizagem; tem-se, assim, uma educação muito
mais completa, que não dicotomizará a realidade em duas facetas irreais, se tomadas
inarticuladamente: o racional e o físico. Por outro lado, a pessoa que domina tanto o
conhecimento teórico quanto o conhecimento prático é uma pessoa completa, que não
é deficiente em nenhum dos dois aspectos.
A educação revolucionária partiria, pois, da vivência prática dos conteúdos para
chegar à sua conceituação teórica. Mas não seria uma educação especializada: para
Proudhon, o primeiro passo é fornecer a todos uma instrução geral, base necessária
para que qualquer especialização escolhida posteriormente possa ser exercida sem
prejuízo para o domínio do conhecimento do geral. Um trabalhador especializado na
produção de tijolos, por exemplo, não deixaria de conhecer a estrutura geral da
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sociedade e de sua economia, suas leis, suas condições, seu desenvolvimento,


estando apto para a participação ativa em sua gestão.
Para que a escolha por uma profissão especializada seja feita de forma
consciente e não sob a pressão das circunstâncias, ele propõe que a educação pelo
trabalho, além de ser geral, seja também politécnica, isto é, que o indivíduo aprenda
as mais diversas técnicas de produção num contexto mais generalizado, podendo
depois especializar-se em qualquer uma delas. Mas esta é também uma atitude
política, não podemos nos esquecer; Proudhon deixa claro: “em duas palavras, a
aprendizagem politécnica e o acesso a todos os graus: eis em que consiste a
emancipação do trabalhador”.
Mas como realizar uma educação politécnica tão abrangente, tanto a nível de
conteúdo de ensino quanto de público? Para isso Proudhon prevê que as próprias
fábricas deveriam ser escolas, seja onde se aprende a prática que será depois
teorizada, seja o local de se aplicar as teorias anteriormente aprendidas. O sistema de
educação revolucionária na ótica proudhoniana pressupõe uma integração muito
grande entre as escolas e as fábricas.
Estas duas características da educação revolucionária, partir do conhecimento
prático para a posterior teorização e partir do conhecimento geral para a especialidade,
são esforços realizados na tentativa de conseguir uma superação da alienação,
condição fundamental do trabalhador no sistema capitalista de produção. Vencer a
alienação é o primeiro passo no caminho da liberdade. O homem consciente de si
mesmo, senhor de seus atos e de seu saber, capaz de manter uma relação fraterna e
autônoma com todas as demais pessoas, sem tentar submetê-las, subjugá-las ou
dominá-las, nem se deixando submeter, é o homem a ser formado para a nova
sociedade, para a sociedade socialista e libertária. Para Proudhon, a educação é um
dos seus principais caminhos.

BAKUNIN: educação e conscientização

Mikhail Bakunin (1814-1876), filho de grandes proprietários de terra arruinados


na Rússia, desistiu de seguir a carreira militar para se dedicar ao estudo da filosofia,
dirigindo-se para a Alemanha. Lá, tomou contato com a filosofia de Hegel e fez parte do
grupo dos “jovens hegelianos”. Sempre aturdido e perplexo frente à situação social da
Europa, às injustiças e à opressão, sua filosofia voltou-se para o socialismo, para a
transformação da sociedade.
Homem muito ativo, Bakunin não se limitou ao trabalho teórico: correu mundo
participando de revoltas e batalhas e disseminando as idéias socialistas entre os meios
operários. Foi preso por diversas vezes, sendo mandado inclusive para a Sibéria, mas
sempre consegui fugir da prisão.
Homem de muito pouco método, os escritos de Bakunin são em sua maioria
“escritos de propaganda”: artigos de jornais e revistas, cartas, panfletos. Suas obras de
maior porte estão na maior parte incompletas ou inconclusas. No entanto, a infinidade
de “fragmentos” de que dispomos é suficiente para que se conheçam as
revolucionárias idéias que este socialista libertário procurou colocar em prática,
correndo toda a Europa, da França à Rússia.
Para Bakunin, a educação tem um papel fundamental na revolução social. Não
se trata de discutir se a revolução educará as massas, ou se as mesmas deverão ser
educadas para a revolução. Para ele, as duas coisas estão juntas e acontecem
11

simultaneamente: é óbvio que uma sociedade libertária deve educar para a liberdade,
mas uma sociedade destas só pode existir se as massas lutarem para sua construção,
o que só farão se estiverem conscientes, consciência esta que se adquire através da
educação (via instrução ou não). Opositor feroz do autoritarismo, o anarquista russo
não acredita que a revolução possa ser feita através do trabalho de uma vanguarda
que dirija as massas. A revolução deve brotar do próprio povo, como desejo e
necessidade do povo. Acredita ele que uma vanguarda pode apenas lançar as
sementes, mas só as massas podem fazê-las germinar e crescer. E uma planta não é a
semente, simplesmente. Para Bakunin, essa vanguarda tem então apenas o papel da
propaganda, ou da instrução, de mostrar as injustiças e suas fontes. O povo é quem
decide se deseja ou não a revolução. E, desejando, a faz.
A educação tem um papel fundamental neste processo, pois é a própria
semente. Mas, segundo ele, a educação não prepara a revolução; a educação já é um
dos aspectos da própria revolução. À partir do momento que educamos para a
liberdade e a igualdade, numa sociedade de exploração e desigualdade, já estamos
realmente fazendo a revolução: estamos começando a mudar as consciências,
estamos ajudando a que vejam o mundo de maneira diferente. E ver o mundo de outro
modo é o primeiro passo para a transformação, pois ninguém transforma nada se não
consegue ver as coisas de outra maneira.
Sendo a conscientização das massas um ponto fundamental para o sucesso de
uma revolução social, Bakunin vê na educação uma poderosa arma para derrubar as
injustiças. Mas não apenas a educação formal é importante: além das escolas há toda
uma vida, e ele trabalha muito com a possibilidade de se trabalhar nos círculos
operários, nas uniões de trabalhadores que viriam a ser, mais tarde, os sindicatos como
os conhecemos hoje, através de textos publicados em jornais revolucionários,
palestras, debates etc. A educação para ele é então um todo complexo que tem na
escola seu ponto central e fundamental, mas não o único.
Ao trabalhar teoricamente a questão da educação, Bakunin procura verificar
como ela se processa em seu mundo conhecido, a sociedade burguesa do século
dezenove, para depois poder discutir e planificar as características essenciais que a
educação deveria assumir para contribuir no processo de transformação da sociedade,
e como seria a escola numa sociedade socialista. Seu ponto de partida é, pois, uma
análise crítica da educação burguesa.
Para Bakunin, a educação burguesa tem por objetivo legitimar e perpetuar a
estrutura de classes e as injustiças sociais, sendo ela própria injusta e classista. Suas
palavras são duras:

“Poderá a emancipação das massas operárias ser completa, enquanto a


educação que as massas recebem for inferior àquela dada aos burgueses, ou
enquanto houver uma classe qualquer em geral, numerosa ou não, mas que,
pelo seu nascimento, seja chamada aos privilégios duma educação superior e
duma instrução mais completa?” (O Socialismo Libertário, p. 32).

O saber é compreendido então como um dos sustentáculos do poder. O domínio


do conhecimento é a base do domínio econômico. Manter as massas na ignorância é
mantê-las na miséria, por não terem condições práticas de auto-organização, de
reivindicação dos direitos dos quais nem tomam conhecimento. Logicamente, então,
para se acabar com as desigualdades é necessário que o saber seja distribuído integral
12

e igualitariamente para toda a sociedade. É necessário que todos dominem todo o


conhecimento disponível.
O discurso burguês, entretanto, coloca as desigualdades sociais como naturais:
todos os homens são naturalmente diferentes; sendo assim, o sucesso ou o fracasso,
o domínio ou não do saber, a riqueza ou a miséria são simplesmente o fruto do
trabalho deste homem no mundo, trabalho este que se processa de acordo com as
características e “aptidões naturais” deste homem. Naturalmente, então, a sociedade
será desigual pois os homens são desiguais: um é rico porque teve aptidão suficiente
para aproveitar as oportunidades que lhe apareceram; outro é um miserável operário
porque suas características naturais assim o determinaram. A sociedade e a cultura
são, em outras palavras, apenas um simples reflexo da natureza.
Bakunin se insurge contra estas afirmações. Para ele o homem é um produto
social e não natural. É a sociedade que molda os homens, segundo suas
necessidades, através da educação. E se a sociedade é desigual, os homens serão
todos diferentes e viverão na desigualdade e na injustiça, não por um problema de
aptidões mas, mais propriamente, por uma questão de oportunidades. Não podemos
mudar a “natureza humana”, mas podemos mudar aquilo que o homem faz dela na
sociedade: se a desigualdade é natural, estamos condenados a ela; mas se é social,
podemos transformar a sociedade, proporcionando uma vida mais justa para todos os
seus membros. E uma sociedade justa produzirá, por sua vez, homens mais justos e
felizes. Novamente, fica claro aqui o princípio de que a educação completa para todos
e o processo de transformação social estão de tal forma amarrados que um não pode
ocorrer sem o outro.
Assim como Proudhon, Bakunin reconhece na educação a função de formar as
pessoas de acordo com as necessidades sociais, o que chamamos hoje de dimensão
ideológica da educação. E é isso que ele ataca na educação burguesa, que tem por
objetivo perpetuar a sociedade de exploração: ela ensina os burgueses a explorar,
dominando todos os conhecimentos disponíveis e não vendo outro modo de vida
possível; e ensina as massas proletárias a permanecerem dóceis à exploração, não se
rebelando. A escola passa então por uma instituição perversa, um aparelho de tortura
que mutila alguns membros para moldar o homem segundo seus injustos propósitos.
Mas nem por isso ele deixa de reconhecer que a educação também pode ser
trabalhada de outra maneira, com um objetivo oposto ao objetivo burguês:

“Será preciso, pois, eliminar da sociedade toda a educação e todas as


escolas? Não, de modo algum; é preciso dispersar a mãos cheias a instrução
nas massas, e transformar todas as igrejas, todos esses templos dedicados à
glória de Deus e à submissão dos homens, em outras tantas escolas de
emancipação humana. Mas, antes de tudo, entendâmo-nos: as escolas
propriamente ditas, em uma sociedade normal, fundada sobre a igualdade e o
respeito à liberdade humana, deverão existir apenas para as crianças, não para
os adultos; e para que se convertam em escolas de emancipação e não de
submissão, terão que eliminar toda essa ficção de Deus, o eterno e absoluto
escravizador, e deverá fundamentar toda a educação das crianças e a instrução
no desenvolvimento científico da razão, não sobre a fé; sobre o desenvolvimento
da dignidade e da independência pessoais, e não o da piedade e da obediência;
sobre o culto à verdade e à justiça, e antes de tudo sobre o respeito humano,
que deve substituir em tudo e por tudo o culto divino.”( Dios y el Estado, p. 74-
75, em nota de pé de página).
13

Bakunin está plenamente consciente das dificuldades de se trabalhar a


educação nesta perspectiva, por um lado devido ao movimento contrário que
certamente a sociedade burguesa levaria adiante, pois tentaria ao máximo resguardar-
se não permitindo que fossem formadas pessoas críticas e conscientes, capazes de
colocá-la em xeque; por outro lado, pelo efeito maléfico que esta sociedade exerceria
sobre as próprias pessoas egressas das escolas que trabalhassem nessa perspectiva
crítica. E como a educação não se processa apenas na instituição escola, mas na
sociedade como um todo, uma escola revolucionária não lograria alcançar plenamente
seus objetivos numa sociedade reacionária.
O anarquista russo alerta que a sociedade é sempre mais forte do que os
indivíduos, e uma sociedade corrompida não tardaria em desmoralizar os indivíduos
educados à sua margem. Assim ele tenta mostrar que, apesar de ter uma participação
fundamental no processo revolucionário, a escola não pode jamais fazer sozinha a
revolução. A sociedade não é mecânica. Se existe exploração porque não há
consciência, não basta que aos poucos eduquemos e conscientizemos as pessoas
para que a sociedade se transforme. Os caminhos sociais são mais complexos e
obscuros. A educação revolucionária e os trabalhos revolucionários de base, como a
organização, por exemplo, devem ser articulados, devem ser processados
simultaneamente, para que se possa ter esperanças de, aos poucos, conseguir dar
alguns passos no sentido da revolução social que destruirá as bases da antiga
sociedade.
Sobre as características da educação revolucionária, Bakunin aponta duas
facetas fundamentais: educar integralmente ao homem, e educar para a liberdade. As
questões levantadas por ele serão depois trabalhadas mais a fundo, como veremos
mais adiante, por pedagogos e educadores libertários, como o francês Paul Robin e o
catalão Francesc Ferrer i Guàrdia, que chegarão a aplicá-las em suas experiências
pedagógicas. Mas o ponto central para Bakunin é a educação para a liberdade.
Ora, estamos afirmando constantemente que não vivemos numa sociedade livre;
os indivíduos não estão, assim, acostumados a viver em liberdade, e precisam
aprender a fazer isso. Na mesma obra já citada aqui, Deus e o Estado, Bakunin afirma
que a educação anarquista deve tomar a liberdade como fim da educação e não como
meio; em outras palavras, a liberdade não é uma opção metodológica, mas de objetivo
geral da educação. Apenas se considerasse a liberdade como uma característica
natural do homem é que poderia falar na liberdade como método de ensino; mas trata-
se, por outro lado, de partir da autoridade que o adulto tem sobre a criança, autoridade
legítima e necessária para que ela possa desenvolver sua inteligência. Mas o
desenvolvimento, diz ele, implica na negação do ponto de partida, e a educação deve
progressivamente negar a autoridade, à medida em que a criança desenvolve-se e vai
tornando-se cada vez mais igual ao adulto. Entre iguais, o uso da autoridade já não é
lícito, e só a liberdade pode fundamentar a relação.
Bakunin diz que o primeiro dia da criança na escola deve ser aquele em que ela
está mais sujeita à autoridade é menos livre; em contrapartida, seu último dia na escola
é aquele em que ela é mais livre e não mais sujeita-se à autoridade. Temos assim uma
noção de liberdade como conquista e construção progressiva, em meio a outros
indivíduos.
Uma educação libertadora é então uma educação em que na própria atividade
pedagógica os alunos e os professores são iniciados num gradativo processo de
convivência livre e autêntica. Mas para que uma pessoa possa assumir sua liberdade é
14

necessário que ela se conheça, se conheça por inteiro: se descubra como um corpo,
como uma consciência, como um ser social, tudo isso integrado e articulado. E é por
isso que uma educação para a liberdade deve ser também uma educação integral, em
que o homem se perceba e se conheça em todas as suas facetas e características.
Bakunin fala ostensivamente na educação das crianças, mas é óbvio que as
massas trabalhadoras devem também ser instruídas na perspectiva da educação
libertadora, que lhes retirará os preconceitos que lhes foram inculcados pela educação
burguesa. Mas não se trata de mandar as massas para a escola: tal instituição não
estaria preparada e aparelhada para absorvê-las. É necessário então que se criem
espaços alternativos onde possam ser difundidos e distribuídos os conhecimentos que
foram negados para estas grandes parcelas da população. Mas nessas “academias
populares”, para usar suas próprias palavras, o princípio de autoridade já não pode
mais ser utilizado: entre adultos, o saber não pode ser instrumento de poder; a
atividade pedagógica seria um “ensinamento mútuo, um ato de fraternidade intelectual
entre a juventude instruída e o povo”.
A educação integral e libertadora de Bakunin visa ainda a uma integração do
trabalho manual e do trabalho intelectual, superando essa histórica dicotomia. E a
realização desta educação, sua aplicação prática no mundo da produção, significará a
superação da alienação: todo trabalhador terá plena consciência de seu trabalho e todo
planificador também dominará as técnicas manuais de produção. O produto não
escapará ao produtor.

“Mas estamos convencidos de que no homem vivo e completo, cada uma


destas duas atividades, muscular e nervosa, deve ser igualmente desenvolvida e
que, longe de se anularem mutuamente, cada uma delas deve apoiar, alargar e
reforçar a outra; a ciência do sábio se tornará mais fecunda, mais útil e mais
vasta quando o sábio deixar de ignorar o trabalho manual, e o trabalho do
operário instruído será mais produtivo que o do operário ignorante. Donde se
conclui que, no próprio interesse tanto do trabalho como da ciência, é necessário
que não haja mais operários nem sábios, mas apenas homens.”( O Socialismo
Libertário, p. 38).

Concluindo, nos escritos de Mikhail Bakunin a educação anarquista aparece


fundamentalmente como o trabalho de destruir através da ciência e de seu exercício
democrático as falsas idéias e os preconceitos criados pela burguesia para manter a
estrutura social de exploração. Este tipo de atividade, desenvolvido junto às massas
operárias, sendo distribuído igualitariamente por toda a sociedade, vai além da divisão
de classes e da dicotomia entre trabalho intelectual e trabalho manual, levando as
pessoas a um processo de conscientização e libertação, que culmina na luta por uma
sociedade justa e livre. Muito propriamente, pode ser caracterizada como uma
educação para a liberdade.

EDUCAÇÃO INTEGRAL: princípios e fundamentos

O conceito de educação integral foi sendo desenvolvido no seio do movimento


operário. Coube a um pedagogo de formação e experiência, militante no movimento,
Paul Robin, sistematizá-lo e conseguir estruturar uma prática pedagógica com base
nesse conceito. A educação integral seria tema de uma moção aprovada por
15

unanimidade no Congresso da Associação Internacional dos Trabalhadores de 1868,


na cidade de Bruxelas. Essa moção foi escrita pelo próprio Robin, que viria inclusive a
ser secretário do Conselho Geral da A.I.T., a convite de seu presidente, Karl Marx.
Em 1880, Robin foi nomeado diretor do Orfanato Prévost em Cempuis, França.
Ficaria na direção desta instituição até 1894. Essa experiência foi fundamental para a
própria construção da educação integral, uma vez que os conceitos puderam ser
testados na prática e a prática levou a novos conceitos.
Antes de passarmos a trabalhar a prática da educação integral, vejamos
brevemente os princípios filosóficos, políticos, sociais, epistemológicos que a
fundamentam.
O primeiro deles é que a educação integral é um processo de formação humana.
Sobre isso, Bakunin escreveu que “para que os homens sejam morais, isto é, homens
completos no sentido mais lato do termo, são necessárias três coisas: um nascimento
higiênico, uma instrução racional e integral, acompanhada de uma educação baseada
no respeito pelo trabalho, pela razão, pela igualdade e pela liberdade, e um meio social
em que cada indivíduo, gozando de plena liberdade, seja realmente, de direito e de
fato, igual a todos os outros" (O Socialismo Libertário, p. 50). Dessa forma, fica
evidente que para a educação integral numa perspectiva libertária o processo educativo
é parte de algo mais amplo, que envolve também necessariamente a sociedade e uma
estreita e ativa interrelação entre as partes. E que a educação deve ser um processo
de formação: é por ela que o homem se faz plenamente humano, desde que ela seja
integral.
A educação integral deve ser também permanente. Não se pode conceber um
processo educativo integral que tenha um término, uma vez que o ser humano é um ser
em constante mutação e construção. Como veremos adiante, a formação profissional é
um dos elementos-chave na educação integral, e os anarquistas do século dezenove já
tinham clareza em relação ao fato de que tal formação nunca estaria completa, pois
também a profissão, seja qual for, é dinâmica, e o bom profissional, para manter-se
atualizado, precisa continuamente do estudo.
O processo educativo deve contribuir para uma superação da alienação; isto é, o
conhecimento é fundamental para que o indivíduo se conscientize de si mesmo e de
tudo a sua volta, sendo capaz de perceber as interrelações. Não basta, portanto, o
saber pelo saber; o fundamental é o saber compreendido em toda sua dimensão.
Proudhon, por exemplo, deixou isso claro:

“Está claro que a indústria, assim como as ciências, não pode ser dividida,
nem reduzida à rotina, sob pena de perecer: o homem, cujo gênio circunscrito a
uma profissão não saiba nada das demais e que, por acréscimo, seja incapaz de
reduzir seu ofício a suas noções elementares e dar sua teoria, é como aquele
que, tendo aprendido a firmar seu nome como quem faz uma rubrica, não sabe
nada sobre o restante do alfabeto.” (apud Dommanget, Los Grandes Socialistas
y la Educación, p. 271)

Também poderíamos dizer que, para os anarquistas, conhecimento eqüivale a


poder e, logo, a educação é também uma tática de luta, na medida em que pode
igualar, ao menos em termos de saber, explorados e exploradores. Dessa forma, se a
educação é justa, o conhecimento deixa de ser mais um fator de dominação. E mais
ainda: na medida em que há a possibilidade na igualdade de saberes, eles podem
também ser utilizados para a superação da dominação historicamente construída.
16

Por fim, outro princípio básico da educação integral é o de que individualidade e


coletividade devem ser instâncias plenamente articuladas. Herbert Read mostrou, em A
Educação pela Arte, que diferentemente do que se pensa, essas duas instâncias não
são mutuamente excludentes; ao contrário, uma coletividade é formada
necessariamente de indivíduos que se relacionam e que uns complementam as
características e necessidades dos outros. Já em Paul Robin vemos que:

“Todo homem deve ser considerado sob dois pontos de vista: como ser
isolado, independente, completo por si só, e como membro da coletividade.
Nenhuma delas pode ser sacrificada pela outra. Como ser distinto e completo,
ele tem direito ao desenvolvimento total das suas faculdades; como membro da
coletividades, ele deve contribuir com sua parte de trabalho íntegro e
necessário.” (in Moriyón, Educação Libertária, p. 89)

Podemos, agora, passar à concepção e à prática da educação integral. Na


perspectiva anarquista, ela desenha-se como uma articulação de três instâncias
básicas: a educação intelectual, a educação física (que se subdivide em esportiva,
manual e profissional) e a educação moral.
Comecemos pela educação intelectual. Uma das principais críticas dos
anarquistas à educação tradicional refere-se ao seu “intelectualismo”. Está claro que a
educação não pode ser resumida ao aprendizado intelectual do patrimônio cultural
produzido pela humanidade, mas tampouco esse aprendizado pode ser desprezado, ou
mesmo relegado a um segundo plano. No contexto de uma educação integral, aquelas
três instâncias acima colocadas devem ser tomadas todas no mesmo plano. A
educação intelectual é fundamental para garantir a todos um acesso ao patrimônio
cultural humano, que é coletivo, foi produzido socialmente e, portanto, nada mais justo
do que ser disseminado por todos os indivíduos.
Na visão de Robin,

“A educação intelectual merece, por si mesma, o título de integral quando


tem como fim o desenvolvimento proporcional de todas as faculdades do
homem, que existem na criança como gérmen; não temos o direito de deixar que
se atrofiem, nem reprimir nenhuma, seja a imaginação, o juízo ou a memória.
Por instrução integral entendemos que o aluno deve adquirir, não como se dizia
antigamente ‘luzes’ de tudo, um banho superficial, mas sim sólidas noções,
justas, claras e positivas, ainda que muito elementares, de todas as ciências e
de todas as artes. O método de educação correspondente a tal programa terá
também o caráter integral, empregando em uma proporção equilibrada todos os
meios de exercitar as faculdades, de fazer nascer as idéias e de comunicar as
noções.” (apud Dommanget, op. cit., p. 358)

Em termos metodológicos, podemos afirmar que a educação intelectual deve


privilegiar a construção pessoal do conhecimento. Profundamente influenciados pelas
teses positivistas, os anarquistas defendiam um processo educativo que partisse da
inquietação natural das crianças e encorajasse cada vez mais essa inquietação e a
curiosidade. Dessa forma, teríamos o que seria possível chamar de uma “pedagogia da
pergunta”: estimular muito mais a colocação de boas questões e a busca de respostas,
em lugar de ditar as lições, respondendo antes mesmo que as crianças pensem em
perguntar. Robin recomendava: “deixe que a criança faça ela mesma suas descobertas,
17

espere suas perguntas, responda a elas sobriamente, para que seu espírito continue
seus próprios esforços, não imponha de modo algum idéias feitas, vulgares,
transmitidas pela rotina irreflexiva e embrutecedora” (apud Dommanget, op. cit., p.
364).
Também Ferrer i Guàrdia, ao refletir sobre a experiência da Escola Moderna de
Barcelona, destaca que a educação intelectual não deve ficar restrita ao intelectual. É
necessário, para que o aprendizado seja de fato significativo, que haja uma relação
afetiva com o saber:

“Não se educa integralmente ao homem disciplinando sua inteligência,


fazendo caso omisso do coração e relegando a vontade. O homem, na unidade
de seu funcionamento cerebral, é um complexo; tem várias facetas
fundamentais, é uma energia que vê, afeto que rechaça ou adere ao concebido
e vontade que faz ato o percebido e amado /.../ Faremos com que as
representações intelectuais, que sugerem a ciência ao educando, sejam
convertidas em um complexo de sentimentos, que ele intensamente as ame.
Porque o sentimento, quando é forte, penetra e se difunde pelo mais fundo do
organismo do homem, perfilando e colorindo o caráter das pessoas.” (Ferrer i
Guàrdia, La Escuela Moderna, p. 27-8)

Desta forma, a educação intelectual, no contexto da integralidade da pedagogia


libertária, significa uma profunda transformação de base, se tomamos como exemplo a
educação tradicional. Vejamos novamente Ferrer:

“Serão renovadas, pois, por completo as bases da educação atual; no


lugar de fundar tudo sobre a instrução teórica, sobre a aquisição de
conhecimentos que não têm significação para a criança, se partirá da instrução
prática, aquela cujo objeto lhe seja mostrado claramente, quer dizer, se
começará pelo ensino do trabalho manual. A razão disso é lógica. A instrução
por si não tem utilidade para a criança. Ela não compreende por que é ensinada
a ler, a escrever e por que lhe enchem a cabeça de física, de geografia ou de
história. Tudo isso lhe parece completamente inútil, e ela o demonstra resistindo
ao ensino com todas as suas forças. Enchem-na de ciência, e desejam que, o
mais rápido possível - e em todas as partes, tanto na educação moral e física
quanto na educação intelectual - a razão natural ausente seja substituída pela
razão artificial.” (Ferrer i Guàrdia, La Escuela Moderna, p. 126-7)

Passemos agora à educação física. Antes de qualquer coisa é importante


ressaltar que nas décadas finais do século dezenove falar-se em educação física nas
escolas era uma grande novidade. Os socialistas, em geral, preocupados com a saúde
física dos trabalhadores, muitas vezes submetidos a situações extremamente
desgastantes, sempre deram importância ao físico, quando trataram da educação dos
trabalhadores. Vemos em Marx, por exemplo, que a educação física deveria ser
desenvolvida através de exercícios ginásticos e militares. 1 Já os anarquistas não se
contentaram com isso; no contexto da educação integral libertária, a educação física

1
A esse respeito ver, por exemplo, Maria Alice Nogueira, Educação, Saber, Produção em Marx e Engels. São
Paulo: Cortez, 1990.
18

compreenderia três aspectos: uma educação recreativa e esportiva, uma educação


manual e uma educação profissional.
A recreativa e esportiva teria como funções básicas a socialização e os
exercícios corporais, para melhor conhecimento do corpo e seus limites, além do
amadurecimento físico. Os exercícios e jogos deveriam ser sempre coletivos e, em
lugar de visar a competição pura e simples, estariam voltados para a solidariedade. Um
exemplo: numa partida de futebol, seria ressaltado que o time que vence é aquele em
que os jogadores melhor sabem cooperar entre si, visando um objetivo comum.
Já a educação manual seria voltada para aquilo que hoje, em bom “pedagogês”,
chamamos de refinamento sensório-motor. Mas mesmo ela não tratava com exercícios
sem outra finalidade que não apenas tal refinamento. Com as crianças menores, a
prática era levá-las para os laboratórios e oficinas, para que fossem se familiarizando
com objetos, equipamentos etc. e, ao mesmo tempo, fossem cada vez mais afinando
sua percepção sensorial e desenvolvendo habilidades manuais.
Por fim a educação profissional. Aqui o conceito de politecnia, defendido por
Proudhon, chega à prática. Se por um lado é importante a formação profissional do
futuro trabalhador, para que ele possa encontrar uma boa colocação no mundo do
trabalho, também é importante que ele conheça as mais diversas profissões. Tanto
porque é fundamental que ela possa escolher dedicar-se a uma atividade que lhe dê
prazer e que ele possa desenvolver competentemente, quanto porque só o
conhecimento do universo da produção em seu sentido global pode possibilitar a
superação da alienação do trabalho parcelado capitalista.
Para cumprir essa finalidade, o Orfanato de Cempuis, quando dirigido por Robin;
a comunidade-escola de La Ruche, dirigida por Sébastien Faure; a Escuela Moderna
de Barcelona, de Ferrer i Guàrdia, assim como outras escolas libertárias, eram sempre
equipadas com as mais diversas oficinas. No caso de Cempuis, com Robin, havia uma
granja, uma lavanderia e oficinas de sapataria, imprensa e encadernação, forja,
carpintaria, costura. As crianças, em sistema de rodízio, passavam - semana a semana
- por todas essas atividades. Isso sem distinção de sexo e de idade. Reproduzimos
abaixo o quadro de rodízio entre as atividades produtivas utilizado por ele.

semana 1ª seção 2ª seção 3ª seção 4ª seção 5ª seção 6ª seção


1 agricultura encadernação costura madeira metais limpeza/vários
2 encadernação costura madeira metais limpeza/vários agricultura
3 costura madeira metais limpeza/vários agricultura encadernação
4 madeira metais limpeza/vários agricultura encadernação costura
5 metais limpeza/vários agricultura encadernação costura madeira
6 limpeza/vários agricultura encadernação costura madeira metais

Importante ainda ressaltar que as atividades produtivas eram de fato produtivas.


O trabalho dos estudantes era voltado para as necessidades cotidianas da escola,
chegando também a fazer trabalhos para outrem sob encomenda. Apenas dois
exemplos: as roupas por eles utilizadas eram produzidas na oficina de costura, também
encarregada dos consertos necessários; a oficina de imprensa e encadernação, por
sua vez, além de produzir o boletim da escola e mesmo alguns livros, prestava serviços
de imprensa para várias instituições ligadas ao meio operário europeu.
A educação integral em moldes anarquistas completa-se com a educação
moral, a meu ver o mais importante dos três aspectos. Não podemos ceder à tentação
de imaginar a educação moral libertária como aulas de moral, ou algo parecido com a
19

nossa Educação Moral e Cívica de triste lembrança, que alguns parecem querer
reeditar quando se fala no tema transversal de ética e cidadania. A educação integral
no contexto da educação integral anarquista organizava-se em torno da vivência
cotidiana da comunidade escolar escola através da solidariedade e da liberdade, como
forma de organizar uma nova prática social.
Arautos de uma nova estrutura social, que implica necessariamente numa forma
de vida diferente, os anarquistas concebiam a escola como uma comunidade que
deveria estar organizada segundo os valores fundamentais de uma sociedade
libertária. Dessa forma, igualdade, liberdade e solidariedade deveriam ser os pilares da
comunidade escolar. E as relações travadas entre os alunos, entre esses e os
educadores e assim por diante, deveriam ser relações fundadas nesses valores e
princípios. Para dizer de forma justa, a intenção com a educação moral era a de criar,
na prática das relações cotidianas, uma nova moralidade, que privilegiasse o exercício
da liberdade e da solidariedade, além do respeito e da igualdade.
Finalizando, podemos dizer com Sébastien Faure que a educação moral, como
educação para a liberdade,

“prepara a criança, desde o uso da razão, para o exercício das faculdades mais
nobres, acostuma-se à responsabilidade, ilumina o juízo, enobrece o coração,
fortalece a vontade, exercita os esforços mais fecundos, estimula os impulsos
mais generosos, atrai sua atenção para as conseqüências de seus atos,
favorece o espírito de iniciativa, multiplica as atividades, centuplica as energias,
desenvolve maravilhosamente a personalidade. Constrói lentamente, porém de
forma segura, um ser digno, sem arrogância, orgulho e altivez, um ser
apaixonado pela independência tanto dos outros como dele, respeitoso da
vontade do próximo da mesma maneira que quer ser respeitado, zeloso de seus
direitos e disposto a protegê-los.” (in Moriyón, Educação Libertária, p. 138)

EDUCAÇÃO INTEGRAL: perspectivas contemporâneas

Teriam essas experiências libertárias com uma educação integral do final do


século dezenove e início do vinte algo a nos propor de concreto, quando atravessamos
as portas do século vinte e um?
Penso que sim. E para justificar isso, farei uma comparação rápida da pedagogia
libertária com as pedagogias burguesas de forma geral. Enquanto essas estão
preocupadas em ajustar o indivíduo à sociedade e estão, portanto, preocupadas com a
segurança, tanto do indivíduo quanto da sociedade, a pedagogia libertária está voltada
para o não-ajustamento a essa estrutura social, e sim para uma abertura ao novo.
Dessa forma, ela está aberta ao risco, às múltiplas possibilidades. Por isso gosto de
chamar a pedagogia libertária de uma pedagogia do risco; por comparação, as
pedagogias burguesas seriam uma pedagogia da segurança.
Enquanto a pedagogia do risco tem por objetivo a singularização, isto é, formar o
indivíduo para ser o que é, a pedagogia da segurança tem por objetivo a subjetivação,
ou seja, formar o indivíduo para ser o que não é; enquanto a primeira busca a
construção de uma estrutura social que respeite e harmonize as diferenças, a outra
opta pela garantia de manutenção de uma estrutura de dominação. Em suma,
enquanto a primeira procura uma liberação para o prazer e a criatividade, privilegiando
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a vida, a outra prefere a segurança de viver num mundo sem mistérios, de reações
padronizadas e, ao escolher essa apatia, privilegia a morte.
Escrevendo há quase trinta anos, Henri Arvon destacou elementos que já
atestavam a contemporaneidade dessa pedagogia do risco:

“Enquanto a humanidade sofre apenas lentas mudanças, a educação


pode limitar-se, sem demasiado dano para a sociedade, à transmissão
autoritária dos modelos tradicionais. Mas em uma civilização como a da segunda
metade do século XX, que sofre transformações rápidas, a educação erra o
caminho quando se limita à transmissão autoritária de alguns conhecimentos
que são superados em pouco tempo ou que, de toda maneira, parecem
revogáveis em seguida. O essencial de um ensinamento que queira permanecer
de acordo com os tempos é fazer com que o aluno esteja em condições de
rechaçar, de inovar, de quer dizer, de servir-se de sua liberdade de pensamento
e de decisão. O projeto educacional anarquista é o que melhor parece responder
a essas novas exigências; sem dúvida, no domínio da escola o anarquismo pode
prevalecer-se de uma atualidade maior e menos discutível.” (El Anarquismo en el
Siglo XX, p. 161).

Penso que as considerações de Arvon são, hoje, ainda mais atuais. As teses
básicas sobre educação que freqüentam os congressos e publicações da área,
voltadas para um processo educativo que seja capaz de atender às necessidades de
uma sociedade e de uma cultura onde as alterações são muito rápidas, poderiam ser
bem atendidas com o projeto anarquista de educação.
Uma educação integral é fundamental em nossos dias, para que as escolas
possam abandonar o modelo até então hegemônico de transmissão de informações.
Aqui continuam válidas as críticas dos anarquistas e suas propostas de alteração de
rota. Uma educação intelectual voltada para o processo e não para o produto, que
privilegie a curiosidade, a busca, a construção de saberes pode formar indivíduos muito
mais “antenados” com as necessidades contemporâneas.
Em termos de formação profissional, alguns poderiam objetar que hoje
transitamos para uma civilização do não-trabalho, em que o trabalho torna-se obsoleto;
no entanto, em termos de países emergentes essa realidade está ainda muito longe de
se manifestar, se é que no jogo da geopolítica mundial poderá um dia manifestar-se
entre nós. Por outro lado, a necessidade de profissionais flexíveis, dinâmicos e sempre
em evolução pode ser atendida pela politecnia. Claro que as oficinas do século
dezenove hoje precisariam ser muito diferentes; as técnicas e habilidades hoje
necessárias são completamente outras. Mas o princípio é tão ou mais atual do que
antes.
Para finalizar, a educação moral. Em nossos dias não se cessa de dizer que
vivemos uma crise de valores, e que a educação não tem sabido lidar com isso. Pois
bem: não é exatamente dessa crise de valores e da busca de alternativas que tratava a
educação moral nas experiências libertárias?
Uma educação contemporânea comprometida com a transformação dos valores,
com a construção da liberdade, da autonomia, da solidariedade, com a formação de
seres humanos plenos, saudáveis, conscientes e ativos tem muito a resgatar da
educação integral em moldes anarquistas.
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