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A Escola Moderna de Francisco Ferrer y Guardia como uma experiência

de Educação Libertária

Andressa Lopes de Oliveira


Universidade Federal do Paraná

Resumo: A Escola Moderna de Barcelona, idealizada pelo educador catalão Francisco Ferrer y
Guardia, consiste em uma das principais experiências educacionais do início do século XX e é
uma das grandes referências de educação libertária. Em contraposição ao ensino religioso e
estatal, a Escola Moderna foi fundada em 1901 com uma proposta pautada no racionalismo
científico e em ideais anarquistas. O enfrentamento ao status quo representado tanto pela escola
quanto pela figura do próprio Ferrer resultou em perseguições políticas, culminando no
fechamento da instituição, em 1906, e no assassinato de seu idealizador, em 1909, pelo Estado
espanhol. O presente artigo tem como objetivo demonstrar de que maneira os pensamentos
acerca de uma Instrução Integral teorizados, sobretudo, por Pierre-Joseph Proudhon e Mikhail
Bakunin, foram colocados em prática na educação das crianças atendidas pela Escola Moderna.
Aqui, se coloca também a importância de resgatar a memória desta experiência, tendo em vista
o apagamento sofrido por esta e outras práticas libertárias nos currículos universitários, na
produção científica e nos debates em torno da educação. Por fim, é igualmente válido promover
uma discussão em torno das contribuições de Ferrer, e do círculo de pensadores e educadores
anarquistas do qual ele participava, bem como refletir sobre os ensinamentos das experiências
libertárias para a educação na atualidade.

Palavras-chave: Francisco Ferrer y Guardia; Escola Moderna; Educação Libertária.

A Escola Moderna foi idealizada e fundada por Francisco Ferrer y Guardia


em 1901, estando ativa até 19061 e localizada em Barcelona. Seu programa
pedagógico encontrou embasamento no racionalismo científico e numa instrução
integral voltada à construção da liberdade. Desde muito jovem, Ferrer esteve em
contato com a política e acabou se aproximando de pensadores e militantes
anarquistas ao buscar exílio na França. Sua atuação como educador está
diretamente relacionada à sua trajetória política e ao círculo de intelectuais-
militantes que mobilizou a fim de colocar em funcionamento seu projeto escolar.
Neste artigo será apresentada a base teórica para o desenvolvimento da
educação dita libertária, tendo Pierre-Joseph Proudhon e Mikhail Bakunin como
principais referenciais, bem como as primeiras sistematizações metodológicas,
empreendidas por Paul Robin e que orientaram Ferrer em seu trabalho frente à
Escola Moderna. Serão discutidos os conceitos de liberdade, a partir de uma
perspectiva anarquista, e de instrução integral, que são fundamentais para o
entendimento da orientação de Guardia e da importância da educação dentro do

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Com exceção de 1904.
pensamento libertário. Ao apresentar as principais propostas da Escola
Moderna, pretende-se demonstrar como estas estavam em consonância com a
teoria e com os primeiros desdobramentos práticos dos ideais anarquistas em
torno da educação.
Nos anos finais do século XIX e nas primeiras décadas do XX houve uma
intensa produção escrita e de práticas atreladas ao pensamento libertário na
educação, em que estão inseridas as experiências em torno da Escola Moderna.
Embora as contribuições anarquistas sejam valorosas e permaneçam atuais,
continuam relativamente desconhecidas, ocultas e pouco exploradas. De acordo
com Rodrigo Silva, existe uma espécie de “esquecimento voluntário”, um
apagamento intencional de certos nomes tanto nas obras que tratam da história
da educação quanto nos currículos universitários, sobretudo nos cursos de
Pedagogia. O autor considera Francisco Ferrer y Guardia uma “vítima do
desprezo da academia por questões notadamente políticas” (SILVA, 2017, p. 9;
11).
Como mostra Silvio Gallo, o debate em torno do caráter ideológico da
educação segue sendo de grande importância, pois mesmo que novas propostas
tenham surgido ao longo do século XX, em que se destaca o movimento da
Escola Nova, a estrutura de reprodução de desigualdades continua fortalecida.
Segundo o autor, escolanovismo trabalhou a liberdade em um contexto
individualista, de modo que não representasse um risco à manutenção da
sociedade capitalista. Acrescenta ainda que o viés ideológico se apresenta de
forma mais velada hoje, envolto pelo laicicismo e uma suposta liberdade
individual que dificultam a consciência da dominação (GALLO, 1992, p. 22).
Partindo de uma educação para a liberdade, que para os anarquistas é
construída coletivamente, também é realizada a desconstrução paulatina da
autoridade. Em outras palavras, assim como no meio social, no âmbito escolar
o ponto de partida também é a autoridade, que vai sendo diluída conforme a
emancipação dos indivíduos acontece. Portanto, no processo de instrução, nos
moldes de uma pedagogia libertária de orientação anarquista, a liberdade
também deve ser vista como um fim e não como meio (GALLO, 2007, p. 26; 49).
Uma educação para a liberdade pressupõe a formação de indivíduos que sejam
capazes de romper com as estruturas que impedem a construção de uma nova
sociedade, desse modo, as contribuições de Francisco Ferrer podem ser de
grande relevância para pensar o cenário educacional atual.
O pensamento anarquista é fundamentado em torno do conceito de
liberdade. Inclusive, é por este motivo que nasceu a denominação “Socialismo
Libertário”, estando ligada à ideia de que “a faceta fundamental do homem é a
liberdade, que deve ser construída socialmente” (GALLO, 1990, p. 22). Cabe
ressaltar que não se trata da interpretação burguesa, com origem no Iluminismo,
na qual a liberdade é vista como um fato natural da essência humana, atrelada
à necessidade de criação de leis que permitam a coexistência das liberdades
individuais numa dada sociedade. Na perspectiva dos anarquistas, a liberdade é
vista como um fato social, não sendo intrínseca ao ser humano, mas construída
por meio da experiência comunitária. Neste sentido, a liberdade não é tomada
como um ponto de partida, mas um ponto de chegada, uma vez que sua
conquista se dá pelo contato com a cultura acumulada pela humanidade e pela
experiência coletiva, uma conquista de todos e para todos. A liberdade de um
não termina onde começa a do outro, como no imaginário burguês, ambas
começam juntas e uma legitima a existência da outra (GALLO,1992, p. 15; 17).
Apesar de o filósofo iluminista Jean-Jacques Rousseau ter uma produção
marcada pela defesa de uma perspectiva pautada pelos interesses burgueses,
que encontraram solo fértil nos desdobramentos da Revolução Francesa, é um
referencial importante na elaboração do pensamento pedagógico libertário. O
ponto de convergência entre eles está calcado na necessidade de criação de um
novo homem, para que fosse possível construção uma nova sociedade (GALLO,
1992, p. 15). Para compreender de que maneira este novo homem deve ser
gestado, é preciso tratar do conceito de instrução integral.
Entre os anarquistas, a educação sempre esteve presente nos debates e
projetos para uma nova sociedade, pois consiste em uma das bases de
construção da emancipação moral2 do indivíduo e da própria revolução social.
Estes enxergam a instrução integral como meio de superação da alienação das

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Termo empregado no sentido da construção de “uma nova moral humana”, que ultrapassa a
mera “conscientização” do indivíduo (BAKUNIN, 1979, p. 46).
classes populares, que é o que dá sustentação à desigualdade, à exploração e
à escravidão de muitos em detrimento do enriquecimento de poucos. Fica claro
que a crítica não se limita ao campo ensino tradicional, imposto pela Igreja e pelo
poder estatal, mas à sociedade capitalista como um todo, que faz da educação
um instrumento de controle e dominação das camadas populares (BAKUNIN,
1979, p. 32; 52).
Em meados do século XIX, Pierre-Joseph Proudhon iniciou a discussão
em torno de uma proposta de educação capaz de agregar atividades manuais e
intelectuais a fim de extinguir a dicotomia colocada entre os que pensam e os
que labutam (MORAES, 2015, p. 198). O trabalho artesanal, aquele em que
existe o domínio de todo o processo, não apenas de uma ou outra parte, é
defendido como instrumento para uma educação mais completa, que articule o
exercício racional e físico. Aquele que fosse capaz de dominar os conhecimentos
teóricos e práticos, de um dado processo de produção, seria uma pessoa
completa (GALLO, 2007, p. 37). Complementando o seu corpo de ideias,
Proudhon propôs uma aprendizagem politécnica que contemplasse o ensino de
técnicas manuais e uma formação cultural pautada no desenvolvimento das
faculdades físicas, intelectuais e morais (GALLO, 2007, p. 37). No seu ponto de
vista, a politecnia na produção agrícola e industrial permitiria a união entre
trabalho e estudo, enquanto as fábricas-escolas seriam o espaço destinado às
ações teórico-práticas (MORAES, 2015, p. 197).
Sem abandonar a defesa da união entre trabalho manual e intelectual
como uma solução para a alienação dos trabalhadores, Mikhail Bakunin avança
na proposta de uma instrução integral. Crendo que os indivíduos são moldados
pela sociedade, de acordo com as suas necessidades e por meio da educação,
na segunda metade do século XIX apresentou uma concepção de homem como
produto social. Entendia que uma sociedade desigual, só poderia gerar
desigualdade e injustiça entre seus integrantes e o problema estaria na falta de
oportunidade. Ainda que algumas características humanas fossem naturais,
acreditava que elas poderiam ser dominadas, através do conhecimento
científico, enquanto as demais seriam transformadas socialmente (GALO, 2007,
p. 39; 40).
O entendimento acerca de uma educação integral, entre os anarquismos
do século XIX e início do XX, perpassa pela formação do indivíduo em três
aspectos: moral, físico e manual. A moralidade é sustentada pela solidariedade
e pela construção social da liberdade. O aspecto físico estaria ligado ao
aprimoramento das percepções sensório-motoras, corroborando para o
desenvolvimento coletivo sem alimentar a competitividade. A questão manual,
por fim, teria como base a educação profissional, a formação para o trabalho
livre de divisões.
Robin foi o primeiro pedagogo a sistematizar metodologicamente a
proposta anarquista em ambiente escolar. Assim como Proudhon e Bakunin,
aponta a necessidade de uma revolução social e de uma instrução integral, justa
e igualitária, que permitisse tirar a exclusividade do acesso à ciência das mãos
do Estado e da burguesia:

La distinción de clases, que es hoy fundamento de la organización


social, se sostiene sobre todo por la desigualdad frente a los medios
educativos. Para la burguesia, que tiene el capital, la ciencia; para el
pueblo, que no posee más que la miseria, el trabajo. La ciencia y el
trabajo unidos liberarían el mundo. Su separación prolonga nuestra
esclavitud moral y material (ROBIN, 2016, p. 33).

Contudo, é preciso ressaltar que o educador francês não condenava a


divisão do trabalho, pois via na especialização um elemento positivo para do
desempenho individual, desde que houvesse o desenvolvimento equilibrado
entre todos os membros da sociedade. Primeiramente, seria necessário que o
aluno adquirisse uma base cultural, para depois seguir em uma especialização
funcional. A dita educação racional ou científica estaria orientada pelos princípios
da ciência, tendo caráter universal, ou seja, comum a todos, e integral, por ser
completa e preparar para o ensino profissional (ROBIN, 2016, p. 42; 44).
Mikhail Bakunin já havia sinalizado a relevância de uma “filosofia positiva”,
baseada nos conhecimentos da natureza e da sociologia, na destruição das
“fábulas religiosas” e dos “sonhos metafísicos” disseminados pelos métodos
tradicionais. Considerando a impossibilidade de dominar todos os campos da
ciência simultaneamente, apresenta a divisão do ensino em duas partes: geral e
especial. A primeira proporcionaria a aprendizagem aprofundada dos principais
elementos do conhecimento científico, por conseguinte, o indivíduo estaria apto
a escolher uma especialidade entre os vários grupos ou faculdades que se
complementam e formam as ciências. Sem deixar de lado o papel do trabalho
no processo educativo, traz a noção de ensino industrial ou prático, que
aconteceria paralelamente ao científico ou teórico e também seria dividido em
dois momentos: de exploração de generalidades sobre as questões industriais e
dos aspectos materiais da civilização e, por outro lado, a parte de especialização,
contemplando os grupos de indústrias ligados entre si (BAKUNIN, 1979, 43; 44).
Em 1893, Robin escreveu o Manifesto aos Partidários da Educação
Integral, onde tratou de definir e sistematizar a aplicação prática da proposta de
integralidade para o ensino infantil. Foi sua experiência como diretor do Orfanato
Prévost, entre 1800 e 1914, que lhe permitiu colocar à prova toda a teoria. O
manifesto é direcionado a todos aqueles que estivessem preocupados com o
grande problema da regeneração social e compartilhassem de seus desejos e
esperanças (ROBIN, 2016, p. 53; 54). Como se sabe, Ferrer y Guardia foi um
partidário da educação integral, que conheceu o orfanato quando esteve na
França, tornando-lhe uma das principais referenciais para a configuração do seu
projeto.
Ferrer também criticava o monopólio do conhecimento, vendo na
educação um caminho para a renovação da sociedade. A ciência, a liberdade e
a solidariedade eram os pilares de seu ideário pedagógico, enquanto tinha como
meta o combate à rotina e ao atavismo. Substituindo os estudos dogmáticos pela
orientação racional, pautada nas ciências naturais, pretendia formar pessoas
instruídas, justas e livres de todo preconceito. A base de seu projeto estava na
abordagem racionalista3, que deveria permitir ao aluno uma análise crítica dos
juízos e a valorização do pensamento científico, educando integralmente com
afetividade e racionalidade (TRAGTENBERG,1978, p. 26; 27).
Ambos os educadores libertários contavam com materiais auxiliares como
lupa, microscópio, aparelhos de medida e laboratórios que colocava os alunos
em contato com a experimentação e as várias fases do método científico,
podendo desvendar os mistérios do mundo partindo da prática, para depois

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A Escola Moderna também ficou conhecida como “Escola Racionalista”.
chegar à teoria. O método dedutivo, comum no ensino tradicional, daria lugar ao
método indutivo (GALLO, 1990, p. 200; 203).
Outro fator comum entre os dois projetos pedagógicos é a coeducação
dos sexos e das classes, ou seja, meninos e meninas de das mais diversas
camadas sociais estudando juntos. De acordo com Ferrer, toda vez que alguém
solicitava a matrícula de um aluno, ele perguntava se havia meninas na família,
para que pudessem estudar também e, ao que indica, este trabalho foi frutífero.
Do seu ponto de vista, as mulheres não deveriam permanecer recolhidas ao lar,
mas receber os mesmos conhecimentos que os homens, para que pudessem
exercer ação em meio à sociedade (FERRER i GUÀRDIA, 2010, p. 12; 15).
No que se refere ao ensino misto de classes, o idealizador da Escola
Moderna expõe que se tivesse fundado uma escola para crianças pobres, esta
não poderia ser racional, pois se não reproduzisse a credulidade e submissão
como nas demais escolas, automaticamente estaria inclinando-lhes à rebeldia e
ao ódio.

[...] os oprimidos, os espoliados, os explorados devem ser rebeldes,


porque devem reclamar seus direitos até conseguir sua completa e
perfeita participação no patrimônio universal.
Mas a Escola Moderna opera sobre as crianças a quem pela educação
e pela instrução prepara para serem homens, e não antecipa amores
nem ódios, adesões nem rebeldias, que são deveres e sentimentos
próprios dos adultos; em outros termos, não quer colher o fruto antes
de tê-lo cultivado, nem quer atribuir uma responsabilidade sem ter
dotado a consciência das condições que devem constituir seu
fundamento: que as crianças aprendam a ser homens, e quando o
forem declarem-se em rebeldia em boa hora (FERRER i GUÀRDIA,
2010, p. 16).

Do mesmo modo, uma escola para crianças ricas também não seria
racional, pois não precisaria de muito esforço para demonstrar-lhes seus
privilégios. Sendo assim, a coeducação de pobres e ricos promove o contado na
inocente igualdade da infância, sendo capaz de consolidar uma educação
reparadora (FERRER i GUÀRDIA, 2010, p. 16).
Em seu manifesto, Robin levanta a necessidade de se pensar em um
“regime geral higiênico”, que tratava, basicamente, dos cuidados empreendidos
para manter a saúde dos alunos equilibrada. Entre outras coisas, se destacam a
organização proporcional do tempo destinado para cada tipo de atividade, física
e intelectual, além do período destinado ao sono. Os cuidados com a
alimentação, além de banhos e limpeza adequada do uniforme se somam aos
exercícios ao ar livre, viagens, passeios e esportes na gama de proposições
(ROBIN, 2016, p. 45; 46).
Na Escola Moderna também há uma preocupação com a higiene, mas
está mais ligada à possibilidade de disseminação de doenças entre os alunos
durante o convívio escolar. Males como difteria, sarampo, escarlatina e
tuberculose eram comuns, dada a aglomeração, o uso de um único banheiro e
a troca de materiais e lanches de boca em boca, a que estavam sujeitas as
crianças, podendo levar as enfermidades para o ambiente familiar. A proteção e
a instrução higiênica, combinadas a salas amplas, luz abundante e ar puro são
colocadas como medidas suficientes para amenizar o risco. Além da
reformulação do espaço e da estrutura do edifício, os alunos passavam por
inspeções médicas, eram medidos e pesados com frequência e anotavam suas
moléstias em um caderno biológico (FERRER i GUÀRDIA, 2010, p. 19; 21).
Sem deixar de lado a estruturação física, moral e intelectual, Paul Robin
pensa a educação infantil em duas etapas. A primeira diz respeito à fase em que
a criança começa a interpretar o mundo, que deve acontecer espontaneamente
e de maneira aleatória. Na segunda, ela começa a produzir e entrar em contato
com os ofícios. A curiosidade e a criatividade devem ser valorizadas em ambas,
bem como o desenvolvimento dos sentidos e das habilidades individuais. A
possibilidade de trabalhar com jogos e atividades práticas, além de acabar com
a imobilidade traria uma série de benefícios tanto do ponto de vista sensório-
motor, como no aprendizado da leitura e escrita (GALLO, 1990, 199; 207).
Ferrer também considerava os jogos e as brincadeiras elementos
indispensáveis para o desenvolvimento dos alunos, tratando, sobretudo,
daqueles que trabalhavam as capacidades físicas. Ressalta que, além de
permitir que a criança manifeste seus desejos e compartilhe-os com os colegas,
tornam o ambiente de aprendizado menos monótono. As brincadeiras consistem,
muitas vezes, em momentos de imitação da vida adulta e contribuem na
construção do caráter, do altruísmo e da vida em grupo. Ao citar o trabalho do
pedagogo alemão Friedrich Froebel como referencial, conclui que “toda
brincadeira bem dirigida é convertida em trabalho, assim como trabalho em
brincadeira” (FERRER i GUÀRDIA, 2010, p. 22; 24).
Tratando mais especificamente da Escola Moderna, cabe destacar a
dificuldade que Francisco Ferrer relata ter tido para encontrar professores que
estivessem de alinhados com o ensino racional e científico. Foi necessária a
preparação e a adaptação dos mesmos dentro da própria instituição, conforme
o trabalho era desenvolvido, além da fundação de uma Escola Normal
racionalista voltada à formação de professores de ambos os sexos, que acabou
sendo fechada por pressões externas. As primeiras versões do Boletim da
Escola Moderna traziam alguns anúncios de engajamento:

AO PROFESSORADO LIVRE
Os professores e jovens de ambos os sexos que desejarem se dedicar
ao ensino racional e científico e se encontram despojados de
preocupações, superstições e crenças tradicionais absurdas, podem
se comunicar com o Diretor da Escola Moderna para a provisão de
vagas em várias escolas (FERRER i GUÀRDIA, 2010, p. 28).

Além do ensino misto dos sexos e das classes, outra medida que visava
extinguir as desigualdades e também a competitividade foi a abolição de provas,
de prêmios e castigos. Não caberia à escola decretar a aptidão de uns e nem a
incapacidade de outros, até porque seu objetivo era desenvolver amplamente as
faculdades da infância sem sujeição a nenhum padrão dogmático. Sendo assim,
não haveria nada de positivo nestes procedimentos que, inclusive, poderiam
levar a doenças de ordem mental devido à pressão imposta sobre as crianças.
Alguns pais e mães contestaram a ausência de tais métodos, que para Ferrer,
não passava de uma necessidade absurda para a satisfação deles mesmos e
não dos filhos. Apesar das reclamações, os exames, recompensas e punições
nunca foram aderidos ao plano, que tinha como prioridade promover o benefício
do estudante (FERRER i GUÀRDIA, 2010, p. 33; 35).
Ainda que o foco da Escola Moderna estivesse na ação pedagógica,
também esteve dedicada à instrução popular, organizando conferências
dominicais públicas em que participavam alunos, seus familiares e todos os
trabalhadores que tivessem o desejo de aprender. Com o sucesso da abertura
ao público, Ferrer estabeleceu um convênio com os doutores D. Andrés Martínez
Vargas e D. Odón de Buen, catedrático da Universidade de Barcelona, para
fundar uma universidade popular. No entanto, após alguns encontros, o projeto
foi sufocado por aqueles que se viam afrontados pela proposta inovadora
(FERRER i GUÀRDIA, 2010, p. 49; 50).
As experiências pedagógicas libertárias, pautadas por um viés anarquista,
trazem o conceito de autogestão em seu funcionamento, uma vez que além de
romper com o ensino religioso, não estabelecem nenhum tipo de ligação com o
Estado. Trata-se de organizações escolares autônomas, regidas e sustentadas
por aqueles que participam da comunidade escolar. As críticas tecidas por Ferrer
sinalizam que os governantes, ao reconhecerem que os progressos científicos
revolucionaram as condições de trabalho e produção, compreenderam a
inviabilidade de manter o povo na ignorância, pois a instrução se fazia
fundamental para o desenvolvimento econômico. Assim sendo, seria necessário
pensar em outras formas de dominação, sobretudo que pudessem sufocar
qualquer sinal de conscientização e emancipação. É neste momento que os
líderes políticos, que até então deixavam a educação nas mãos dos clérigos,
tomaram a direção da organização do aparato escolar. Ainda que empregassem
conhecimentos científicos, a instrução estatal nada mais era que um poderoso
meio de manter a servidão e a desigualdade (FERRER i GUÀRDIA, 2010, p. 28;
30).
O pedagogo catalão define o ensino administrado pelos governos como
violento, visto que dirigia o desenvolvimento das faculdades da criança de acordo
com seus interesses, privando-a de do contato com a natureza e não levando
em conta suas vontades e suas particularidades. Este modelo significava o
fracasso das esperanças daqueles que lutavam por liberdade. Cabe ressaltar
que, para Ferrer, o ideal seria educar o aluno de modo a favorecer seu
aprimoramento pela satisfação de suas necessidades à medida que estas forem
manifestadas e de maneira espontânea (FERRER i GUÀRDIA, 2010, p. 30; 31).
Tomando como base as propostas analisadas, trabalhar com uma postura
libertária não significaria abandonar as crianças a uma liberdade abstrata. É
necessário estabelecer metas e objetivos, aplicados de acordo com as
circunstâncias e as especificidades, de modo que a educação seja voltada para
a conquista da liberdade. Em outras palavras, exige um direcionamento do
educador (GALLO, 1990, p. 195). Neste ponto, recuperamos Bakunin para
enfatizar a liberdade como uma construção social, entendendo que os alunos
precisam ser orientados neste processo.

[...] não quer dizer que abandonaremos a criança, em seus princípios


educativos, a formar seus conceitos por conta própria. O procedimento
socrático é errôneo se for tomado ao pé da letra. A mesma constituição
da mente, ao começar seu desenvolvimento, pede que a educação
nessa primeira idade da vida seja receptiva. O professor semeia as
sementes das ideias, e estas, quando com a idade o cérebro se vigora,
então geram a flor e o fruto correspondentes, em consonância com o
grau de iniciativa e com a fisionomia característica da inteligência do
educando (FERRER i GUÀRDIA, 2010, p.10).

Ao passo que a liberdade é construída coletivamente, também é realizada


a desconstrução paulatina da autoridade. Em outras palavras, assim como no
meio social, no âmbito escolar o ponto de partida também é a autoridade, que
vai sendo diluída conforme a emancipação dos indivíduos acontece. Portanto,
no processo de instrução, nos moldes de uma pedagogia libertária de orientação
anarquista, a liberdade também deve ser vista como um fim e não como meio
(GALLO, 2007, p. 26; 49).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Recuperando parte da experiência de Francisco Ferrer y Guardia em


torno da Escola Moderna de Barcelona, muitas vezes mantida em um suposto
esquecimento, buscou-se demonstrar de que maneira o arcabouço teórico de
dois dos principais pensadores anarquistas, Proudhon e Bakunin, serviu como
base para o desenvolvimento do projeto educacional concebido pelo professor
catalão. Do mesmo modo, o trabalho de sistematização prática dos princípios
anarquistas de instrução integral, englobando a educação moral, física e
intelectual, empreendido por Robin, pôde ser apresentado como uma das
principais referências de Ferrer. Assim sendo, foi possível demonstrar de que
maneira a Escola Moderna se configura como uma experiência de educação
libertária.
Ainda que o tema em questão remonte à segunda metade do século XIX
e a primeira década do século XX, muitas das questões levantadas e dos
pensamentos voltados à construção de uma nova sociedade permanecem atuais
e podem servir como um convite para refletirmos sobre a educação na conjuntura
atual.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Fontes:
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