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OS SONS COMO LINGUAGENS ESPACIAIS

Article  in  Espaço e Cultura · June 2019


DOI: 10.12957/espacoecultura.2019.48532

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Alessandro Dozena
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
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OS SONS COMO
LINGUAGENS ESPACIAIS

◼ ALESSANDRO DOZENA*

Resumo: Nossa experiência espacial envolve a escuta de fontes sonoras musicais e não musicais (naturais ou
artificiais), sendo essa experiência subjetivamente apropriada a partir do ordenamento dos sons e dos ruídos no
âmbito de nossos padrões de racionalidade. Os ruídos, sons e músicas têm cada vez mais feito parte dos estudos
geográficos, sendo que a escuta ativa torna-se valiosa nesse processo, da mesma forma que a visão. O objetivo do
presente artigo é evidenciar o fato de que os sons se constituem linguagens espaciais, um meio de comunicar ideias
ou sentimentos a partir de fontes sonoras. Essa proposição infere que ao ouvir músicas um indivíduo também "ouve
o território", na medida em que características musicais como melodia, harmonia, escala e ritmo, relacionam-se a
condicionamentos espaciais específicos.
Palavras-Chave: sons; músicas; geografia; linguagem; espacial.

Ecos na Geografia __________________ Há décadas a Geografia brasileira


vem considerando os trabalhos realizados
Definir o olhar com a linguagem do som, sobre as dimensões musicais e sonoras, em
é mais fácil de afinar especial os escritos em francês e inglês, que
Olhar com escuta, é deixar a sonoridade saltitar, foram publicados principalmente após a
Geografando com solfejar "virada cultural" na década de 1980,
Conhecendo-se o som, muda-se o tom aparecendo com destaque no debate
Para maior ou menor, na métrica certa,
acadêmico internacional. No Brasil, essa
A música desperta, redefine o que é o olhar.
discussão intensificou-se nos últimos anos,
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alicerçada em questões que envolvem "ouve o território", na medida em que
territórios musicais1, percepções e características musicais como melodia,
representações espaciais dos sons e das harmonia, escalas e ritmos relacionam-se a
músicas, paisagens sonoras, cenas condicionamentos espaciais específicos
musicais, identidades territoriais musicais, (por exemplo, o frevo recifense guarda uma
a dimensão espacial dos sons e das músicas; relação intrínseca com os locais de sua
além do uso das letras de músicas como produção), ou ainda quando o contato com
ferramenta didática no ensino de geografia. a paisagem é inspirado por uma canção ou
Igualmente, a abordagem dos imaginários ritmo musical, e incita imaginários
geográficos promovidos pelos sons e pelas geográficos (a exemplo da bossa nova ou do
músicas ganha destaque na atualidade funk, e a relação imediata que
(Lindón; Hiernaux, 2012), propondo estabelecemos com a cidade do Rio de
territorialidades conformadas pela fluidez Janeiro). Conforme sugere Raul
sonora e pelos processos musicais. Borges, as musicalidades estão associadas a
Dando continuidade aos trabalhos sociedades espacializadas em momentos
precursores, a exemplo dos realizados pelo específicos:
francês Georges de Gironcourt (1932), os
(as) geógrafos (as) brasileiros (as) têm A música pode ser percebida como uma
posto suas pesquisas em movimento, linguagem viva de um contexto

inserindo os sons e as músicas no cerne das histórico-geográfico, assim como nas

suas abordagens geográficas e ampliando articulações escalares particulares de


cada lugar há implícita uma certa
os diálogos com outras disciplinas e
musicalidade (BORGES, 2008, p. 289).
perspectivas de compreensão da realidade,
a exemplo da Antropologia, Psicologia,
Nossa experiência espacial também
Filosofia, Musicologia, História,
abarca a escuta de fontes sonoras não
Etnomusicologia, Sociologia e Pedagogia
musicais (naturais ou artificiais), sendo essa
(Canova; Raibaud, 2017).
experiência subjetivamente apropriada a
Buscamos com o presente artigo
partir do ordenamento dos sons e dos
evidenciar o fato de que os sons constituem
ruídos no cerne de nossos padrões racionais
linguagens espaciais, um meio capaz de
de pensamento.
comunicar ideias ou sentimentos a partir de
Essa experiência auditiva do espaço
fontes sonoras. Essa proposição considera
abrange a escuta das emissões sonoras e a
que ao ouvir música um indivíduo também
possibilidade de localizá-las e organizá-las
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em termos de timbres e outros aspectos
sonoros, a exemplo da percepção de vazio Por isso, o poema que abre o artigo
ou preenchimento ao chacoalharmos um sugere que ao definirmos o olhar com a
recipiente de madeira com moedas dentro, linguagem do som, redefinimos o próprio
ou uma lata com feijões transformada em ato de olhar. Tal premissa dialoga como a
um ganzá. Evidentemente, a acuidade da definição de linguagem encontrada no mais
audição não se equivale à da visão, mas é importante dicionário da língua
igualmente necessária para a percepção portuguesa, o Dicionário Houaiss, ao
espacial: asseverar que se trata de "qualquer meio
sistemático de comunicar ideias ou
No âmbito sensorial e fisiológico, sentimentos através de signos
apesar do campo visual aberto, a visão convencionais, sonoros, gráficos e
é focada em um ponto de maior gestuais".
acuidade designado fóvea. Mas a
Vale lembrar que música é a
audição apreende o espaço sem um
combinação harmoniosa e expressiva de
centro ou sem um foco tão nítido. A
sons, um conjunto de sons vocais,
audição permite a capacidade de
instrumentais ou mecânicos com ritmo,
localização, mas de modo diferente da
harmonia e melodia. A música é uma
visão central, não existe uma “audição
central”. Isto deve-se a um fator manifestação artística que se revela por
fisiológico em parte explicado pela meio de sons, seguindo regras variáveis
topografia do sistema visual conforme a época, a civilização, os modos
prolongando a informação do espaço de vida e o ambiente natural. Daí a
observado nos tecidos corticais, em importância de estarmos sempre nos
oposição à ausência de topografia da referindo a sons e músicas, com a intenção
‘membrana basilar’ onde se localizam
de abarcar a plenitude de possibilidades
os sensores de som no interior do
sonoras (desde os muzaks2 ouvidos nas lojas
ouvido. Nesse sentido, e tal como
comerciais, até as músicas de caráter
acontece com a visão, é importante ter
religioso que são reverberadas em espaços
dois ouvidos para estabelecer posições
no espaço. A diferença de tempo na distintos).

recepção de um som permite localizar a Em outros termos, as músicas


sua origem e criar uma representação podem ser definidas como sons
tridimensional das fontes sonoras humanamente organizados, relacionados a
(MATLIN; FOLEY, 1996, p. 298 padrões de organização humana e de sons
citados por ALMEIDA, 2018, p. 166).
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produzidos como resultados de interações pelas musicalidades presentes nos lugares.
sociais (Blacking, 1973). Deste modo, dá-se um diálogo com o lugar,
Assim sendo, a materialidade que se apresenta no corpo, a partir de
espacial também desempenha um elementos do contexto espacial. Não é à toa
importante papel nas experiências que dos diferentes modos de apropriação
musicais: seja na arquitetura do teatro, criam-se subjetivações territoriais que se
permitindo uma maior projeção sonora, na reproduzem nas músicas, nas melodias, nos
posição dos músicos em uma ritmos, nas danças, nas letras e nas
orquestra/banda musical em relação ao harmonias.
público, ou com relação aos efeitos Há uma relação entre o corpo e o
acústicos advindos da reverberação natural contexto espacial em que este se insere, e
a partir da reflexão sonora. cada sociedade se expressa distintamente
segundo os corpos e suas construções
Sons, condicionamentos espaciais e a culturais diferenciadas. Inserida em seu
escuta ativa ________________________ contexto espacial particular, cada
sociedade produz sua cultura e dela é o
Desde o início do século XXI resultado.
muitas composições musicais tratam a Dialogando com o pensamento de
dimensão espacial como um elemento Merleau-Ponty (1964) podemos considerar
proeminente. Esse é o caso da música que o corpo constrói processos de
eletrônica, em que o espaço tem sido identificação entre o mundo pessoal e o
explorado não apenas em relação à posição mundo público e, na interação com o outro,
dos músicos, do público e ao uso da reafirmam-se ou mesmo se descobrem
reverberação, mas também no que diz alguns aspectos da própria identidade. Pelo
respeito aos efeitos provocados pelo ato de dançar ou tocar, o corpo articula
movimento do som acompanhado de uma uma linguagem que coloca os sujeitos em
evidente dispersão sonora. grupos territorialmente localizáveis,
O corpo também traz as marcas da grupos que guardam relações ancestrais
cultura no contexto espacial em que está em que a experiência corporal fixa o
inserido, apontando caminhos para a território na existência, na medida em que
compreensão de uma performatividade que o corpo é o ser no território.
parte do próprio corpo e envolve os Podemos ampliar essa reflexão se
movimentos realizados e influenciados consideramos que a questão da

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corporeidade está diretamente associada a contexto cultural demarcado por
questão da musicalidade, que por sua vez, características pós-modernas (Bell;
relaciona-se com a riqueza de sons Johansson, 2009).
provenientes dos cantos, dos rituais O fenômeno mundial das "músicas
religiosos e da dança. Desse modo, a de massa" dialoga com o nosso tempo,
musicalidade pode ser vista como um álibi interagindo com narrativas locais e globais,
para se atingir alguns fatos geográficos, integrando gostos musicais
sobretudo ao constatarmos que as letras e desterritorializados e ao mesmo tempo
as sonoridades trazem consigo uma territorializados por intermédio das
historicidade que usa metáforas identificações locacionais, que se conectam
importantes para a desconstrução ou com as lógicas comunitárias e o apego
construção de conceitos e pré-conceitos individual e coletivo aos lugares. Assim
socialmente estabelecidos. sendo, os territórios musicais não se
Outro fato interessante é a caracterizam como conservatórios
percepção, nas pesquisas geográficas, de musicais, mas revelam recriações
que os sons e as músicas atuam como constantes e uma das faces mais evidentes
motivadores existenciais e estão da globalização: o contato cultural.
intrinsecamente conectados aos processos Nesse contexto, os sons e as
de territorializações, enraizamentos músicas geram espacialidades, situadas
identitários e migrações populacionais. entre a mobilidade e a fixidez, entre a
Tais processos são acompanhados por fluidez e a ancoragem territorial. Nele, a
ambiguidades na constituição das utopia é criada pelas sensações sonoras
identidades espaciais e musicais (Crozat, promovidas em festas raves, festivais,
2016). apresentações musicais ou batucadas
Um dos principais efeitos da (Dozena, 2017). Muitas interpretações
globalização foi a divulgação dos sons e geográficas dos fatos musicais procuram
estilos musicais de diferentes localidades, compreender a recomposição dos
contribuindo com a configuração de territórios musicais diante das narrativas
territórios musicais híbridos. Há inclusive atuais, e atualizar os discursos históricos
uma significativa tendência pelo presentes nas letras de músicas,
revivalismo, com a predisposição e a replicando-os especialmente nas novas
intenção de reviver estilos musicais e redes sociais e suas mídias digitais (De
músicas do passado, atualizando-as em um Nora, 2005). Vale destacar que ao redor dos

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sons e das músicas se estruturam nesse processo, complementarmente a
cosmovisões que agem como operatrizes visão.
das ações sociais. Essa musicalidade pode ser trazida
Esse debate tem como consequência ancestralmente pelas coletividades,
direta a amplificação dos horizontes atendendo não somente às vontades de
teóricos e metodológicos sobre as reprodução material e às necessidades de
dimensões geográficas dos fenômenos sobrevivência, mas também expressando
sonoros e musicais. Embora a Geografia muitas especificidades culturais que
ainda seja uma ciência primordialmente efetivamente mobilizam e animam os
visual, a escuta ativa passou a ter, no século agrupamentos sociais; ao mesmo tempo em
XXI, um papel essencial nas pesquisas que revelam histórias não – oficiais que
geográficas (Canova; Raibaud, 2017). passam a ser contadas pelas ruas e áreas
Nesse sentido, muitos pesquisas têm diversas das cidades brasileiras.
buscado a importância dessa escuta ativa na Igualmente, as músicas contribuem
interpretação geográfica dos territórios para a criação e fortalecimento de laços
musicais em sua significação e sentido emotivos e humanos com os lugares, além
social, tangenciando temas relacionados a de demarcarem corporeidades,
globalização e territórios musicais, ruídos e territorialidades e relações sócio- espaciais;
sons das e nas cidades, músicas e espaços sendo produzidas a partir de estímulos
públicos, eventos musicais urbanos e colocados pelos lugares e por isso mesmo
fenômenos sonoros, percepções musicais evidenciando o sentido desses lugares.
individuais e coletivas, paisagens sonoras, Algumas características de lugares
oralidades e discursos musicais. específicos oferecem pré-condições às
Nossa experiência espacial também novas ideias musicais. Até mesmo alguns
passa pela escuta de fontes sonoras não instrumentos musicais são criados
musicais (naturais ou artificiais), sendo essa conforme as condições propiciadas pelos
experiência subjetivamente apropriada, a lugares, condições retomadas e
partir do ordenamento dos sons e dos reverberadas a partir do repertório cultural
ruídos no âmbito de nossos padrões de próprio de cada agrupamento social. Em
racionalidade. Os ruídos, sons e músicas outras palavras, há uma condição espacial
podem se conectar nos estudos geográficos, que influencia a criação musical nos
sendo que a escuta ativa torna-se valiosa diferentes lugares do mundo.

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Considerações finais: Identidades identidades de base territorial. Um
musicais, identidades dos lugares e exemplo claro, no âmbito musical, é a
novos horizontes geográfico-sonoros__ própria estrutura rítmica e melódica que
emerge como uma construção do processo
A noção de territorialidade de representação social, uma representação
considera a apropriação e o controle estabelecida cultural, ideológica e
exercido no território pelos humanos, a tecnicamente. Como já assinalamos,
partir de mediações espaciais de poder que existem características de lugares
podem ser simbólicas e/ou concretas. Essa específicos que oferecem pré-condições às
noção muito se desenvolveu pelo contato novas ideias musicais.
com os antropólogos, intercambiando Não só a música, mas tudo o que é
questões referidas a simbolismos, heranças artístico é transversal à vida humana em
e gêneros de vida. As territorialidades são, suas múltiplas dimensões, exerce fascínio e
assim, as ações estratégicas de demarcação, influência sobre os humanos. São
de prática de poder, controle e vivência dimensões que envolvem criações e que
territorial exercidas pelos humanos, em um fascinam os humanos: música, literatura,
contexto de criação de regras para o acesso, dança, teatro, criações sonoras, desenho
os usos, os comportamentos e a circulação animado, arquitetura, escultura, pintura,
territorial. cinema, design, gastronomia, fotografia,
As territorialidades forjadas por vídeos, cartografia entre outras
aspectos sonoros podem fomentar manifestações. Tudo isso encanta os
identidades com base territorial, trazendo humanos por apresentar possibilidades de
conexões com padrões passados e presentes diálogos possíveis entre práticas que
de povoamento, migração, etnicidades, enredam as nossas experiências cotidianas
heranças musicais, estilos de vida e com experiências vividas espaço-
condições socioeconômicas. Torna-se artisticamente; e por demonstrar o melhor
relevante atentar para o fato de que além de que o ser humano pode produzir.
um corpo fisiológico existe um corpo Como deixamos claro nas linhas
social, criador de uma musicalidade que se precedentes, a música amplia a
ratifica na existência individual e coletiva. possibilidade de harmonização com nós
Há muitas evidências de que mesmos e com as pessoas ao nosso redor.
algumas habilidades sensório-motoras dos Ela aciona os nossos imaginários, nossas
sujeitos são ativadas nesta construção de percepções, sensações, nos motiva,

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promove a valorização das identidades a acompanham. Considerando tudo
locais e amplia as sensações de isso, a paisagem passa a ser aquilo que o
pertencimento. olhar abarca, a mente concebe e os ouvidos
Além da racionalidade hegemônica captam. E a geografia se abre para um
existem outras racionalidades, universo de temas de pesquisas a se
configuradas em territórios musicais explorar.
simbólicos e materiais. Torna-se cada vez Ao considerar que geografia e
mais indispensável a reflexão sobre os música são campos científicos e/ou
mecanismos e táticas cotidianas artísticos complementares, julgamos que
valorizadoras das experiências sonoras ambos expressam a possibilidade de se
existentes no interior desses territórios. constituírem em experimentações que
Presenciamos na atualidade um transcendem os limites das disciplinas
movimento etnogeográfico que vem se acadêmicas formalmente estabelecidas;
adensando nos últimos anos, voltando-se tornando-se campos que podem dialogar
para a descrição e explicação dos entre si, de modo plural e motivador.
significados espaciais das experiências Assim sendo, ao perceber que as
sonoras e musicais. Tal movimento, fronteiras disciplinares podem ser
evidencia que os territórios musicais são momentaneamente rompidas com
capazes de estreitar as interações sociais, articulações não hierárquicas, as temáticas
fortalecer os vínculos comunitários e as comuns entre os dois campos emergem
práticas de sociabilidade, revigorando os vigorosas e desprovidas de intolerâncias e
sentimentos de pertencimento a eles. argumentos acerca da falta de rigor
A partir da leitura do artigo, científico; argumentos que, aliás,
constata-se que vale o esforço de contribuem para a consolidação das
interpretar os discursos e códigos espaciais disciplinas científicas como instituições de
de nosso tempo, a partir de reflexões poder.
geográficas empregadas em perspectivas Acreditamos que o olhar geográfico
múltiplas. O artigo evidenciou a sobre o fato sonoro e musical deve estar
necessidade da diversidade temática, diretamente relacionado a preocupação em
metodológica e conceitual como um acionar os princípios clássicos da
fundamento ao diálogo necessário para a Geografia, a exemplo dos princípios da
compreensão da complexidade do mundo causalidade, da localização, da extensão, da
contemporâneo e dos novos processos que diferenciação de áreas, da conexão, da

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unidade e da atividade. Ao acioná-los, a Há hoje o convite para uma
dimensão espacial dos fatos sonoros e aproximação criativa das manifestações
musicais tornar-se-á evidente. artísticas pelos professores (as),
O inesgotável manancial musical evidenciando-se as potencialidades dessas
brasileiro solicita não só aos pesquisadores aproximações. No caso da música,
(as) mas também aos professores (as) a sua explorando os ritmos e os instrumentos
constante compreensão geográfico- musicais, por exemplo, e associando-os ao
musical. Em outras palavras, as seu contexto de surgimento e reprodução.
sonoridades "vivas" presentes nos Ou ainda, construindo instrumentos
territórios musicais brasileiros solicitam a musicais com sucatas, realizando jogos de
sua "leitura musical" e a compreensão das improvisação a partir dos elementos
heranças musicais presentes no universo culturais locais (emboladas, rap, repente,
melódico e rítmico nacional. catira, tambores, danças de roda, uso de
Exemplarmente, o samba, o afoxé, o rock, o mamulengos, literatura de cordel, entre
funk e o maracatu atuam como alicerces da outros).
música popular brasileira, acrescentado da E para construir essa nova forma de
plêiade de ritmos, sonoridades e estilos ouvir o mundo, precisamos igualmente
encontrados no Brasil, e dos que chegam a usar as cantigas folclóricas regionais, os
nossos alunos pela internet e nos convidam ritmos e as danças locais), a fim de
a uma abertura para novos procedimentos avançarmos em outras propostas
didático-pedagógicos. relacionadas ao processo de ensino e
Os professores (as) precisam ir além aprendizagem. Em uma experiência
do uso da letra de músicas em suas aulas anterior com a Orquestra Orgânica
como ferramenta didática no ensino de Performática (em São Paulo capital),
geografia, embora saibamos que esse uso experimentamos a potencialidade da
continua tendo a sua validade e relevância. percussão corporal e da produção de sons
Como professores (as) somos convidados a múltiplos (como a tentativa de reprodução
ouvir as músicas com um caráter lúdico e dos sons da natureza) envolvendo o corpo
vívido, colocando em movimento o e instrumentos musicais construídos com
exercício da desconstrução dos campos materiais recicláveis. Esse é um tipo de
científicos mais afeitos às regras e padrões prática que pode motivar os professores a
normativos que aprisionam as suas experimentar novos procedimentos
sonoridades. didáticos, interessando-se por mais de uma

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área do conhecimento, e explorando a sua já realizam nas escolas em que trabalham.
criatividade científica e artística. Noto um estranhamento inicial com
Obviamente é muito importante relação a essa abordagem geográfica dos
que esse tipo de conhecimento seja posto na sons e músicas, com posterior
formação universitária dos professores (as), encantamento, pois elas percebem que os
para que por exemplo, mesmo sem ter tido conteúdos de caráter geográfico e histórico
qualquer tipo de formação musical, os potencializam a expansão dessas
professores (as) possam ter o conhecimento capacidades de realização de mapeamentos,
básico dos tipos de instrumentos musicais, inventários de paisagens imaginadas,
dos jogos de improvisação e outras mapas mentais, percussão corporal como
estratégias didáticas amplificadoras da algo que contribui com a ritmicidade das
aprendizagem por meio das músicas e dos crianças e jovens, além de músicas e
sons. cantigas resgatadas da cultura local e que
Alguns professores (as) têm tocam profundamente os estudantes.
inserido músicas em suas aulas e vêm Há hoje uma melhor articulação e
ampliando as discussões com outras expansão das reflexões teóricas que
disciplinas e perspectivas de compreensão envolvem as relações entre ensino de
da realidade, a exemplo das interações que geografia e música. No ambiente acadêmico
acontecem entre Geografia, Filosofia, alguns autores (as) se inserem em um
História, Português, Matemática e debate vigoroso, tanto no plano nacional
Educação Artística. Isso é muito salutar, na quanto internacional, o que tem
medida em que amplia os horizontes do reverberado na produção de livros e
pensar. Materiais interativos, como o que é artigos, além de ter influenciado a inserção
utilizado no ensino a distância do curso de de temáticas culturais nos
graduação em Geografia da UFRN3, encaminhamentos presentes em livros
evidenciam a tentativa de exploração de didáticos e paradidáticos. Esse interesse
recursos artísticos como músicas, renovado pela pesquisa sobre as interfaces
documentários e fotografias; pelo diálogo entre geografia, sons e música no Brasil
com os outros campos do saber. reflete de certo modo a criatividade dos
Nos ateliês realizados com pesquisadores, professores e o próprio
pedagogas e professoras (es) de Geografia potencial advindo da música brasileira.
no estado do Rio Grande do Norte, recebo Vale lembrar que esse percurso
muitos depoimentos sobre o que estas (es) temático não se iniciou agora, mas vem

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sendo construído nos últimos anos por 2 Segundo o Cambridge Dictionary, "um nome de
marca para música gravada que é tocada
dezenas de contribuições, e que tendem a
continuamente em locais públicos, como aeroportos,
ganhar mais propulsão. Fica o convite para
hotéis e lojas, para que as pessoas se sintam
adentrarmos nesses novos horizontes relaxadas" (a brand name for recorded music that is
geográfico-sonoros que se anunciam. played quietly and continuously in public places,
such as airports, hotels, and shops, to make people
NOTAS __________________________________ feel relaxed). Tradução nossa. Disponível em:
https://dictionary.cambridge.org/pt/dicionario/in
* Tornou-se geógrafo pela Universidade Estadual gles/muzak
Paulista (UNESP-Rio Claro) e músico pela 3 Material disponível em:
Universidade Livre de Música (ULM-São Paulo). É bibliotecadigital.sedis.ufrn.br › interativos ›
geografia-cultural › base
Professor Associado do Departamento e do
Programa de Pós-Graduação em Geografia da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS _________
(PPGE-UFRN), onde dirige o grupo de pesquisa
Festas, Identidades e Territorialidades (FIT- ALMEIDA, Paulo Freire de. Paisagem e
Visualidade na Música: Lugares e Universos
CNPq), e professor do Mestrado Profissional em
Paralelos. In: AZEVEDO, FURLANETTO e
Geografia (GEOPROF-UFRN). Realizou mestrado DUARTE (org.). Geografias Culturais da Música.
Braga, 2018.
e doutorado em Geografia Humana na
Universidade de São Paulo (USP-São Paulo), com BELL, Thomas L; JOHANSSON, Ola. Sound, society
doutorado-sanduíche na Universidad de Barcelona and the geography of popular music. Ashgate; Har/Dig
edition, 2009.
(UB). Realizou estágio pós-doutoral na Université
Paul-Valéry Montpellier (UPV) como bolsista da BLAKING, John ¿Hay Musica en el Hombre? Alianza
Editorial, 1973, p. 63.
CAPES, e foi convidado para atuar como Professor
Visitante na mesma universidade em 2020. BORGES, Raul. Escala geográfica e partitura
musical: considerações acerca do sistema modal e
Organizou e publicou os livros: Geografia e Música: tonal. In: Zeny Rosendahl; Roberto Lobato Corrêa.
Diálogos (2016), Espaço-Tempo: Enredos entre (Org.). Espaço e cultura: pluralidade temática. 1a. ed.
Rio de Janeiro: EDUERJ, 2008, v. 1, p. 279-296.
Geografia e História (2015), A Geografia do Samba
na Cidade de São Paulo (2012) e São Carlos e seu CANOVA, Nicolas; RAIBAUD, Yves. Les figures
d’attachement dans la géomusique. L'Information
Desenvolvimento: Contradições Urbanas de um géographique. Vol. 81, 2017/1, p. 8-19.
Polo Tecnológico (2008). É Tutor do Programa de
CROZAT, Dominique. Jeux et Ambigüités de la
Educação Tutorial - PET Geografia (UFRN), Construction Musicale des Identités Spatiales. In:
integrante do Grupo Vocal Octo Voci da Escola de DOZENA, Alessandro. (Org.). Geografia e Música:
Diálogos. Natal: Edufrn, 2016, p. 49-83.
Música da UFRN (EMUFRN), e membro do
Comitê Géographies Culturelles vinculado ao DE NORA, Tia. Music and Social Experience. In:
Jacobs, M. D. and Weiss Hanrahan. The Blackwell
Comitê Nacional Francês de Geografia (CNFG). companion to the sociology of culture, Oxford,
1 Para uma abordagem teórica sobre territórios Blackwell Publishing, 2005, p. 147-162.
musicais, ver: L'Information géographique - DOZENA, Alessandro. L'imaginaire utopique
Géomusique. Armand Colin, vol.4, 2018, 152p. brésilien dans les pratiques festives européennes. Confins

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42:
– Revue franco-brésilienne de géographie, Número
33, 2017. MERLEAU-PONTY Maurice. Le Visible et
l’Invisible suivi de notes de travail. Paris, Gallimard,
GIRONCOURT, Georges de. Une science nouvelle : 1964.
la géographie musicale. Université de Nancy, 1932.
SCHAFER, Raymond M. A afinação do mundo. São
LINDÓN, Alícia; HIERNAUX, Daniel. Geografías Paulo: EdUNESP, 1977.
de lo imaginario. Barcelona: Anthropos Editorial,
2012, 251p.

MATLIN, Margaret W; FOLEY, Hugh. J.


Sensacion y Percepcion. Naucalpan de Juárez:
Prentice Hall Hispano Americana, 1996.

SONS COMME LANGAGE SPATIAL


RESUMÉ: NOTRE EXPÉRIENCE SPATIALE CONSISTE À ÉCOUTER DES SOURCES SONORES MUSICALES ET NON MUSICALES
(NATURELLES OU ARTIFICIELLES), ÉTANT CETTE EXPÉRIENCE SUBJECTIVEMENT APPROPRIÉE À PARTIR DE L'ORDRE DES
SONS ET DES BRUITS DANS LE CADRE DE NOS STANDARDS DE RATIONALITÉ. LES BRUITS, LES SONS ET LA MUSIQUE FONT
DE PLUS EN PLUS PARTIE DES ÉTUDES GÉOGRAPHIQUES, ET L'ÉCOUTE ACTIVE DEVIENT PRÉCIEUSE DANS CE PROCESSUS,
AINSI QUE LA VISION. LE BUT DE CET ARTICLE EST DE METTRE EN ÉVIDENCE LE FAIT QUE LES SONS SONT DES LANGAGES
SPATIAUX, UN MOYEN DE COMMUNIQUER DES IDÉES OU DES SENTIMENTS À PARTIR DE SOURCES SONORES. CETTE
PROPOSITION LAISSE ENTENDRE QU'EN ÉCOUTANT DE LA MUSIQUE, UN INDIVIDU "ENTEND ÉGALEMENT LE TERRITOIRE",
DANS LA MESURE OÙ LES CARACTÉRISTIQUES MUSICALES TELLES QUE LA MÉLODIE, L'HARMONIE, L'ÉCHELLE ET LE RYTHME,
SONT LIÉES À DES CONDITIONS SPATIALES SPÉCIFIQUES.
MOTS-CLÉS: SONS; MUSIQUE; GÉOGRAPHIE; LANGAGE; SPATIAL

SOUNDS AS SPATIAL LANGUAGE


ABSTRACT: OUR SPATIAL EXPERIENCE INVOLVES LISTENING TO MUSICAL AND NON-MUSICAL SOUND SOURCES (NATURAL OR
ARTIFICIAL), THIS EXPERIENCE BEING SUBJECTIVELY APPROPRIATE FROM THE ORDERING OF SOUNDS AND NOISES WITHIN
THE SCOPE OF OUR STANDARDS OF RATIONALITY. NOISES, SOUNDS AND MUSIC HAVE INCREASINGLY BEEN PART OF
GEOGRAPHIC STUDIES, AND ACTIVE LISTENING BECOMES VALUABLE IN THIS PROCESS, AS WELL AS VISION. THE PURPOSE
OF THIS ARTICLE IS TO HIGHLIGHT THE FACT THAT SOUNDS ARE SPATIAL LANGUAGES, A MEANS OF COMMUNICATING
IDEAS OR FEELINGS FROM SOUND SOURCES. THIS PROPOSITION INFERS THAT WHEN LISTENING TO MUSIC AN INDIVIDUAL
ALSO "HEARS THE TERRITORY", INSOFAR AS THE MUSICAL CHARACTERISTICS SUCH AS MELODY, HARMONY, SCALE AND
RHYTHM, ARE RELATED TO SPECIFIC SPATIAL CONDITIONS.
KEYWORDS: SOUNDS; MUSIC; GEOGRAPHY; LANGUAGE; SPATIAL.
ESPAÇO E CULTURA, UERJ, RJ, N. 45, P.31-42, JAN./JUN. DE 2019
http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/espacoecultura/

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