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Doi: 10.5212/Uniletras.v.38i1.

0005

A expressividade dos fonemas da língua


portuguesa

The expressiveness of the portuguese


languages phonemes
Donizeth Aparecido dos Santos*

Resumo: Este artigo apresenta, primeiramente, um estudo introdutório da Estilística


Fônica, no qual é abordada a sua definição, os elementos que ela comporta e um
pequeno histórico, destacando o trabalho pioneiro de Charles Bally no reconhecimento
da potencialidade expressiva dos fonemas; seguido de um estudo sobre a potencialidade
expressiva dos fonemas da língua portuguesa, observando as possíveis sugestões
sonoras que vogais e consoantes possuem nesse idioma, baseando-se nos trabalhos de
abordagem estilística de José Lemos Monteiro, Mattoso Câmara Jr., Nilce Sant’Anna
Martins e Silveira Bueno. A parte final apresenta uma análise estilística da letra da
música “Meu bem-querer”, do cantor e compositor Djavan, onde são analisadas as
sugestões fônicas presentes em alguns dos principais vocábulos do texto, procurando
associá-las ao significado semântico dos mesmos e também à mensagem que a canção
transmite.
Palavras-chave: Estilística; Sugestões fônicas; Fonemas da língua portuguesa

Abstract: This article presents, first of all, an introductory study on phonic stylism,
adressing its definition, the elements involved and a brief history detailing the
pioneering work of Charles Bally in recognizing the expressive potential of phonemes.
This is followed by a study on the expressive potential of phonemes in Portuguese,
observing the possible acoustic suggestions which vowels and consonants possess in
this language, based on the works of José Lemos Monteiro, Mattoso Câmara Jr., Nilce
Sant’Anna Martins and Silveira Bueno regarding stylistic approach. The final part
consists of a statistical analysis of the lyrics to the song “Meu bem-querer”, by singer
and composer Djavan, wherein phonic suggestions present in some of the main terms
used are analyzed, seeking to associate them with their respective semantic meanings
and to the greater message conveyed in the song as a whole.
Keywords: Stylism; Phonic suggestions, Portuguese language phonemes

*
Doutor em Letras (Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa) pela Universidade de São Paulo (USP)
e professor de Língua Portuguesa da Faculdade de Telêmaco Borba (FATEB). Email: donizeth.santos@hotmail.com.

Uniletras, Ponta Grossa, v. 38, n. 1, p. 71-81, jan/jun. 2016


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A Estilística Fônica melodía, intensidade, duração dos


sons, repetições, assonâncias e alite-
A Estilística Fônica, ou Fonoestilística rações, silêncios, etc. (…)
como é chamada por alguns, é um segmento Assim, junto à fonología propriamente
da Estilística que, conforme a definição de dita há lugar para uma fonología ex-
Nilce Sant’Anna Martins (1997, p. 149), “trata pressiva, que pode trazer muita luz à
dos valores expressivos de natureza sonora primeira, analisando o que já o ins-
observáveis nas palavras e nos enunciados”. tinto nos diz muito bem: que há uma
Segundo a autora, fonemas e prosodemas correspondencia entre os sentimentos
(acento, entoação, altura e ritmo) consti- e os efeitos sensoriais produzidos pela
linguagem. (BALLY, 1969, p. 96)1
tuem um complexo sonoro de extraordiná-
ria importância na função emotiva e poética. No Brasil, Silveira Bueno, Mattoso
Dessa forma, ela abarca quaisquer que sejam Câmara Jr., José Lemos Monteiro e Nilce
os elementos sonoros de uma palavra, desde Sant’Anna Martins foram os principais lin-
a expressividade de uma vogal, passando pelo guístas que se ocuparam do estudo da ex-
som macio sugerido por uma consoante, até pressividade sonora da Língua Portuguesa.
a entoação do falante, que possam sugerir e Para o professor Silveira Bueno:
exprimir estados emotivos e poéticos.
O aspecto sonoro de uma língua, seja
Maria Luiza Ramos (1972, p. 45) comenta
qual for, é o que mais vivamente nos
a utilização do aspecto sonoro da linguagem
impressiona. Ainda quando não co-
com esses fins, afirmando que “é sabido que nhecemos tal ou tal idioma, ao ouvi-lo
muitos autores, desde René Ghil, Mallarmé e falar, imediatamente, fazemos o nos-
Rimbaud, se têm preocupado em estabelecer so juízo estético, segundo nos soam as
a relação som-sentido na poesia de diferentes palavras, segundo seu aspecto sonoro.
idiomas.” O estilista, embora escrevendo, está
Charles Bally, discípulo de Ferdinand sob o domínio da construção fonética
de Saussure, foi um dos primeiros a reconhe- dos termos que emprega porque, ain-
da quando silenciosamente compõe a
cer a potencialidade expressiva da matéria
sua página, o seu livro, o seu artigo de
fônica, antevendo todas as possibilidades
jornal, está ouvindo mentalmente os
possíveis de extração de significado através vocábulos que a pena vai debuxando
da sonoridade das palavras ou enunciados, no papel. (BUENO, 1964, p. 62)
não poupando, inclusive, o próprio silêncio.
Nesse sentido, ele argumenta: Para o linguista Mattoso Câmara Jr.
(1977), cabe à Estilística Fônica da língua
Não há dúvida de que na matéria fôni- portuguesa apreciar o caráter espontâneo
ca se escondem posibilidades expres-
e expressivo das suas vogais e consoantes,
sivas. E há que entender por tal modo
aproveitando-se as contribuições de outras
o que produza sensações musculares e
acústicas: sons articulados e suas com-
binações, jogos de timbres vocálicos, 1
Tradução do autor.

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línguas a respeito dos sons da fala similares (algazarra), tagarelice (blá-blá-blá, maitaca),
aos do português. Nesse sentido, José Lemos batidas audíveis (pá, pá, pá, plaft, craque),
Monteiro (1991) observa que os sons vocáli- ideias de claridade e brancura (alvorada, pra-
cos da língua portuguesa intensificam as su- ta, claro, madrugada, luar), amplitude (mar,
gestões visuais (forma, cor etc.) e os traços vasto, colossal, imensidade ) e sentimentos
afetivos que delas decorrem, enquanto que positivos (felicidade, formidável, paz, calma
sons consonantais se relacionam às espécies e tranquilidade).
auditivas, cinéticas, táteis etc... Dessa forma,
conforme afirma Nilce Sant’Anna Martins Vogal orais / e / e / é /
(1997,26), “os sons da língua podem provocar-
-nos uma sensação de agrado ou desagrado e A vogal / e / (fechada) é neutra, discreta
ainda sugerir ideias, impressões.” e oferece pouca expressividade significativa.
Com base nos estudos desses quatro lin- No entanto, Silveira Bueno (1964, p. 76), por
guistas brasileiros (Silveira Bueno, Câmara considerá-la cinzenta, surda e indecisa, ob-
Jr, Monteiro e Martins), abordaremos a ex- serva que ela “fica bem nas descrições dos
pressividade dos fonemas vocálicos e conso- crepúsculos, dos estados interiores de almas
nantais da língua portuguesa, observando as crepusculares, dos momentos cinzentos da
principais sugestões que eles oferecem e não vida humana”.
se esquecendo da ressalva feita por Martins Já vogal / é / (aberta) possui mais ex-
(1997, p. 38) de que a matéria fônica de uma pressividade. Para Nilce Sant’Anna Martins
língua “é extremamente subjetiva, imprecisa, (1997), ela produz um excelente efeito na
dificilmente classificável com certa exatidão, indicação da estrudência, conforme em “...
sendo preciso evitar excessos imaginativos pajés em poracés batendo os pés”, verso de
sem apoio nas qualidades físicas dos sons.” um poema de Cassiano Ricardo.

A expressividade dos fonemas da língua Vogal oral / i /


portuguesa
A vogal / i / é uma das vogais mais ex-
Vogal oral / a / ploradas estilisticamente. Ela exprime e su-
A vogal / a /, segundo Nilce Sant’Anna gere sons agudos e estridentes como: grito,
Martins (1997, p. 29) é “o fonema mais sonoro, apito, pio, tinir, assobio, tinido, estrídulo,
mais livre, de todo o nosso sistema fonoló- grilo, buzina, sino, bem-te-vi e violino. Para
gico” e “traduz sons fortes, nítidos e reforça Silveira Bueno (1964), o i é frio, penetrante,
a impressão auditiva das consoantes que agudo como espinho. Nesse sentido, Nilce
acompanha”. Conforme a autora, esse valor Sant’Anna Martins explica a relação existente
pode ser sentido em interjeições, onomato- entre a articulação da vogal com suas suges-
peias e palavras que sugerem: risadas (quá- tões sonoras e semânticas:
-quá-quá, ah, ah, ah, gargalhada), vozes altas

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– O estreitamento do conduto bucal na baseando-se em um inventário elaborado


produção do / i / se coaduna com a ex- por Alfredo Bosi sobre os traços semânticos
pressão de pequenez, estreiteza, agu- de palavras que contêm a vogal / u /:
dez: mínimo, mini, estrito, fio, fino,
espinho, formiga. Alguns dos valores I) Obscuridade (material ou espiritual)
expressos pelo diminutivo (em –inho, – escuro, fundo, turvo, gruta, negrume,
-im, -ito, -ilho ) se relacionam com a cafuso, crepúsculo, furna, fusco, túnel,
vogal tônica do sufixo. A agudez pode penumbra, noturno, bruma etc.
ser de ordem moral, intelectual: ironia, II) Fechamento – apertura, caramujo,
agonia, perfídia, malícia, sutil, mesqui- casulo, cumbuca, conduto, cuca, oclu-
nho, cainho”. (MARTINS, 1997, p. 33) so, oculto, recluso, tubo, urna, útero,
vulva etc.
III) Tristeza e desgraça – agrura, amar-
Vogais orais / o / e /ó/
gura, angústia, azedume, carrancudo,
Como as ideias que sugerem são as mes- casmurro, infortúnio, lamúria, quei-
mas, abordamos as vogais / o / (fechada) e xume, soturno, taciturno, urubu etc.
/ ó / (aberta) conjuntamente. Elas são clas- IV) Sujeira, podridão, morbidez – chu-
sificadas como vogais posteriores, médias e lo, corrupto, culpa, estupro, imundo,
arredondadas, podendo sugerir ruídos sur- monturo, pus, pústula, putrido etc. O
dos (estrondo, estouro, bomba, rouco) e for- Diabo é Belzebu, Cafuçu, Cujo, Exu.
mas arredondadas (globo, sol, ovo, redondo, V) Pesar total, morte – ataúde, cata-
roda, gordo, balofo, olho, bola). Segundo o cumba, defunto, fúnebre, luto, lúgubre,
professor Silveira Bueno (1964, p. 77), “a vogal moribundo, múmia, sepulcro, túmulo,
o indica opulência, grandeza, majestade, mas tumba, sepultura etc.” (MONTEIRO,
1991, p. 132)
também calor, mormaço. Basta ler, em voz
alta, as palavras: ouro, calor, morno, trono,
bomba, estrondo, balofo, fofo, redondo, etc.”
Vogais nasais

Vogal oral / u / De acordo com Nilce Sant’ Anna


Martins (1997, p. 32-3), a ressonância nasal
A vogal / u / sugere ideias de fechamen- torna as vogais aptas a exprimir sons velados
to e escuridão (tubo, gruta, furna, cafua), tris- e prolongados (zumzum, zumbido, ron-ron,
teza e morte (túmulo, urubu, fúnebre, luto, gongo, trim-trim, tanger, planger) e suge-
viúvo, sepultura, jururu, sepulcro), e ruídos rir distância, lentidão, moleza, melancolia
surdos (marulho, bufo, murmúrio, barulho, (longe, longínquo, distante, bambo, brando,
queixume, sussurro, gluglu, urro e zurro). manso, langue, pranto, lamento).
Por ser um dos fonemas mais expres-
sivos da língua portuguesa, José Lemos
Monteiro fez a seguinte classificação,

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Fonemas consonantais Ex: luz, brilho, livre, flutuar, rolar, cor-


rer, tremor, tremeluzir, tremelique,
Segundo José Lemos Monteiro, as con- frio, calafrio, relâmpago, voar, fugir,
soantes se relacionam às espécies auditivas, veloz, etc.
cinéticas e tácteis. Nesse sentido, ele esque- SENSAÇÕES TÁCTEIS
matizou seus principais valores da seguinte
/ l / / L / - leveza
forma:
/ p / / b / - pesadume
SENSAÇÕES AUDITIVAS
/ t / / R / - aspereza
/ p / /b / - explosões, ruídos abafados
/ s / / z / / m / - suavidade
/ t / / d / - ruídos secos e violentos,
percussões Ex: leve, fluído, mole, floco, áspero,
duro, macio, suave, rapar, ríspido,
/ k / / g / - rachaduras, ruídos demorados paquiderme, etc. (MONTEIRO, 1997,
Ex: bomba, pancada, tombar, retum- p. 102)
bar, estampido, estrépido, estrondo,
grito, brado, estalo, tambor, palpitar, O esquema elaborado por Monteiro re-
borbulhar, pipocar, catarata, matraca, sume muito bem a expressividade dos fone-
etc. mas consonantais da língua portuguesa. No
/ f / / v / - sopros
entanto, como nem todos os fonemas con-
sonantais possuem expressividade, e muitos
/ x / / j / - cochichos, chios, gemidos
deles sugerem as mesmas ideias, definire-
/ s / / z / - assobios, sibilos prolongados mos seus respectivos valores expressivos pe-
Ex: vento, vendaval, furacão, tufão, los grupos oclusivos, constritivos e nasais,
voz, chiado, chuva, silvo, ciciar, zum- que abarcam todas as consoantes expressivas
bir, sussurro, etc. da língua portuguesa.
/ r / / R / - vibrações, rasgos, percussões
demoradas Consoantes oclusivas
/ m / / n / / N / - roncos fracos, zum-
O grupo oclusivo comporta as consoan-
bos, mugidos, prolongamentos de
tes: / p / (bilabial surda), / b / (bilabial sonora),
zumbidos
/ t / (linguodental surda), / d / (linguodental
Ex: rugir, urrar, pororoca, rosnar, es- sonora), / k / ( velar surda) e / g / (velar sono-
traçalhar, fremir, bramir, murmúrio,
ra). Sobre esse grupo de fonemas consonan-
bronze, burburinho, murmurejar, etc.
tais, Nilce Sant’Anna Martins observa que:
SENSAÇÕES CINÉTICAS
As consoantes oclusivas, pelo seu traço
/ l / / L / - fluência, deslizamento explosivo, momentâneo, prestam-se a
/ r / / R / - rapidez, tremor reproduzir ruídos duros, secos, de ba-
tidas, pancadas, passos pesados, ( ... ).
/ f / / v / - escapamento, fuga
Saliente-se que as surdas ( / p /, / t /,

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/ k / ) dão uma impressão mais forte, labiodental sonora), / s / (fricativa alveolar


violenta, do que as sonoras ( / b /, / d surda), / z / (fricativa alveolar sonora), / x /
/, / g / ). Várias palavras iniciadas por (fricativa palatal surda), / j / (fricativa palatal
consoante oclusiva bilabial são empre- sonora), as laterais / l / (alveolar sonora) e / lh/
gadas como interjeições, exprimindo
(palatal sonora), e as vibrantes / r / (alveolar
uma explosão de surpresa, espanto,
raiva, indignação: Papagaio! Ora bo-
sonora) e / R / (velar sonora).
las! Pipocas! Porra! Pô! Puxa! Em vo- Em relação à expressividade dessas
cábulos depreciativos a oclusiva pode consoantes, Nilce Sant’Anna Martins faz as
ter uma explosão mais acentuada por seguintes afirmações:
conta do estado emocional do falante:
- As consoantes constritivas, pelo seu
burro, besta, bandido, pateta, paspa-
caráter contínuo, sugerem sons de
lho, bruto, estúpido, tonto (bb, pp, tt).
certa duração, bem como as coisas e
fenômenos que os produzem.
(...)
- As labiodentais / f / e / v / imitam so-
pros, podendo ter valor expressivo em
Além de sugerir ruídos ou objetos que
vocábulos com voz, vento, fala, fofoca,
os produzem (estalo, estrépido, es-
flaflo...
tampido, trote, pancada, grito: chico-
te, taca, porrete, estadulho, trabuco); - Os sons sibilantes podem ser imita-
as oclusivas surdas, conforme Morier, dos também pelas labiodentais (fium!),
convêm à evocação de seres, coisas, mas o são sobretudo pelas alveolares /
atos, qualidades e sentimentos ligados s / e / z /: sibilo, assovio, silvo, cicio,
às ideias de força e intensidade: dés- soluço, suspiro, zunir, zumbir...
pota, tirano, ditador, Titã, potestade, - As fricativas palatais recebem tam-
prepotência, prepotente, possante, bém a denominação de chiantes pela
bruto, implacável, tempestade, trovão, sugestão de chiado: chua, xixi, cochi-
furação, tapa, bofetão, etc. ( MARTINS, cho, esguicho, repuxo, lixa, chusma,
1997, p. 34 ) enxame. (MARTINS, 1997, p. 35)
A combinação da bilabial sonora / b / Quanto às consoantes laterais / l / e /
e da linguodental surda / t /, com a vibran- lh /, elas podem sugerir ideias de fluência e
te simples / r /, exprime rupturas, quebras deslizamento por causa do ar que escoa pe-
e fragmentações (trovão, trincar, quebrar, los lados da boca no momento da fonação.
brotar); e afeição e ternura são sugeridas em A fluência da luz é a mais comum (brilho,
palavras iniciadas pela bilabial sonora / b / claro, lua).
(beijo, bem, bondade). Sobre as constritivas vibrantes / r / e
/ R /, elas podem exprimir sentimentos de
Consoantes constritivas cólera, medo e violência (ira, furor, horror,
raiva, tiro, guerra, terror), e segundo Nilce
Faz parte desse grupo as consoantes: / f
Sant’Anna Martins (1997, p.37), “- A vibrante
/ (fricativa labiodental surda), / v / (fricativa

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dupla / R /, sozinha ou em grupo com oclu- larga escala por poetas como Olavo Bilac,
sivas, se ajusta à noção de vibração, atrito, Guilherme de Almeida, Manuel Bandeira,
rompimento, abalo, como se pode sentir nos Cecília Meireles e Eugênio de Castro, entre
vocábulos rachar, ranger, rasgar, romper, outros, muitas vezes é utilizado inconscien-
roer, ruir, arranhar, arrancar, estropiar, es- temente na poesia e na composição da letra
traçalhar, troar, etc.” de música. Por isso, nem sempre a expres-
sividade sonora de um vocábulo é usada de
Consoantes nasais forma intencional pelo autor.
Nesse sentido, considerando-se que os
As consoantes nasais portuguesas / m / sons vocálicos e consonantais podem sugerir
(bilabial sonora), / n / (linguodental sonora) e ideias e impressões, expressar sentimentos e
/ h / (palatal sonora) são consideradas “moles, provocar sensações de agrado ou desagrado
doces, e se harmonizam com as palavras e (MARTINS, 1997), apresentamos uma análise
enunciados em que prevalece a ideia de sua- das sugestões fônicas identificadas na letra
vidade, doçura, delicadeza” (MARTINS, 1997, da música “Meu bem-querer”, do cantor/
p. 37), como em: ameno, manso, mole, mi- compositor Djavan, tendo por base os ele-
moso, amor, meigo, murmúrio, mel, meni- mentos teóricos da Estilística Fônica apre-
no, ninar, harmonia, melodia, musgo, ninho, sentados na primeira parte desse trabalho.
sonho, etc. Muito expressiva é a consoante
bilabial nasal / m /, que pode sugerir sen- Meu bem-querer
timentos de afeição e ternura em palavras É segredo, é sagrado
como mãe, mimar, amor e meigo. Está sacramentado
Em meu coração
As sugestões fônicas presentes na letra
da música “Meu bem-querer”, de Djavan Meu bem-querer
Tem um quê de pecado
As letras de músicas são textos poé-
Acariciado pela emoção
ticos e emotivos se analisadas sob a luz
das funções da linguagem concebidas por Meu bem-querer, meu encanto
Roman Jakobson (1969), e dessa forma são Tô sofrendo tanto
constituídas por recursos estilísticos que
visam despertar fantasias e emoções no ou- Amor
vinte. Dentre esses recursos estilísticos está E o que é o sofrer
a sugestão fônica, que na grande maioria das Para mim que estou
vezes não é percebida pelo ouvinte devido Jurado pra morrer de amor? (DJAVAN,
às peculiaridades da música e a supremacia 1980)
que as figuras de linguagem possuem no
Em “Meu bem-querer”, talvez a música
texto musical. Também é importante obser-
mais conhecida de Djavan, logo no primeiro
var que esse recurso estilístico utilizado em

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verso da estrofe inicial, “Meu bem-querer”, coisa), constata-se que essa sequência da si-
há a combinação da consoante bilabial nasal bilante provoca uma “harmonia imitativa”3,
/ m / e da vogal / e / no pronome possessivo sugerindo a ideia de um sussurro, de alguém
“meu”, e destas com a consoante bilabial oclu- que tem medo que suas palavras possam ser
siva / b / no primeiro termo do substantivo ouvidas, pois o que está por trás delas é algo
composto “bem-querer”. A vogal / e /, segun- extremamente sigiloso para ele: o “bem-que-
do Nilce Sant’Anna Martins (1997), é neutra, rer” está “sacramentado” porque lhe foi dado
discreta e não oferece nenhuma expressivi- caráter “sagrado”, e sendo “sagrado” é algo
dade marcante, mas as bilabiais / m / e / b /, que não deve ser violado, e assim, é um “se-
de acordo com a autora, podem sugerir sen- gredo” que não se pode revelar. O “segredo”
timentos de afeição e ternura. Considerando- é a identidade do “bem-querer”, o que nos
se que “bem-querer” significa amor ou pessoa explica a sugestão de sussurro e silêncio em
amada, alguém que se ama muito, a suges- torno do enunciado.
tão fônica das duas consoantes ajusta-se ao Mas, ao mesmo tempo em que os vo-
significado semântico, expressando afeição cábulos segredo, sagrado e sacramentado
e ternura por esse “bem-querer” afirmado expressam esse pedido de silêncio em razão
possessivamente devido à presença do pro- da presença da sibilante / s / nas sílabas ini-
nome “meu”. ciais, eles possuem também em suas estru-
No segundo, terceiro e quarto versos, turas morfológicas as consoantes oclusivas
“É segredo, é sagrado/ Está sacramentado/ / g / e / k / associadas à vibrante simples / r /
Em meu coração”, ocorre a aliteração2 da con- nas sílabas intermediárias, e as oclusivas / t
soante constritiva sibilante / s / que integra / e / d / nas sílabas finais, o que teoricamen-
as sílabas iniciais dos vocábulos “segredo, te destrói a sugestão de silêncio das iniciais,
sagrado, sacramentado, está”, e a sílaba fi- pois, segundo José Lemos Monteiro (1991),
nal de “coração”. De acordo com José Lemos as oclusivas / k / e / g / sugerem rachaduras
Monteiro (1991), a sibilante / s /, evoca a inter- e ruídos demorados, enquanto que / t / e /
jeição psiu, um pedido de silêncio, e “partici- d /sugerem ruídos secos e violentos, e / r /,
pa dos exemplos de imitação sonora quando vibrações, rasgos e percussões demoradas.
se fala dos assobios, dos sussurros, do ciciar Relembremos também a observação feita
dos pássaros”. Levando-se em consideração por Nilce Sant’Anna Martins sobre essas
o significado de “segredo” (sigilo, confidên- consoantes oclusivas.
cia, discrição, mistério, algo que não se deve
... pelo seu traço explosivo, momentâ-
revelar), “sagrado” (algo divino, venerável, neo, prestam-se a reproduzir ruídos
que não dever ser violado) e “sacramentado” duros, secos, de batidas, pancadas,
(quando é dado caráter sagrado a alguma passos pesados, ( ... ) Saliente-se que
as surdas (/ p /, / t /, / k / ) dão uma

2
Repetição de uma mesma consoante nas sílabas iniciais,
tônicas, e também átonas das palavras que formam um 3
A “harmonia imitativa” consiste numa aproximação dos
verso, uma frase ou oração. sons físicos através de sons linguísticos.

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impressão mais forte, violenta do que provoca casa-se perfeitamente com o aspecto
as sonoras (/b /, / d /, / g /, ao passo fônico das consoantes. Vejamos: o / p / da
que a vibrante / r / sozinha ou em gru- sílaba inicial sugere uma explosão, o / k / da
po com oclusivas, se ajusta à noção de intermediária sugere a ruptura provocada
vibração, atrito, rompimento, abalo.
pelo som explosivo anterior e o / d / átono,
(MARTINS, 1997, p. 34)
abranda a violência das consoantes anterio-
Como essas combinações consonantais res, como se diminuísse de intensidade após
vêm após a sibilante / s /, elas quebram a su- o abalo provocado. Também é interessante
gestão de silêncio e sugerem, no contexto da salientar que “pecado” remete seu sentido aos
letra da música, ruídos que escapam ao con- vocábulos da primeira estrofe “segredo, sa-
trole do sujeito poético. É como se ele cami- grado, sacramentado”, revelando-nos o por-
nhasse na ponta dos pés tentando não fazer quê do “bem-querer” ser segredo, sagrado e
barulho e não conseguisse evitar que soasse sacramentado.
o som dos seus passos. Uma vez que a canção No verso seguinte, “Acariciado pela
fala de um amor secreto e proibido, essa su- emoção”, a sonoridade dura e seca do ver-
gestão exprime a dificuldade e os obstáculos so anterior, provocado pela predominância
que o sujeito poético enfrenta para manter das consoantes oclusivas, é substituída pela
em sigilo esse sentimento e a impossibilida- suavidade e maciez que o fonema constriti-
de de se calar algo sobre o qual já não se tem vo sibilante / s / e o nasal / m / dão ao verso,
mais controle. quando combinados com a vibrante sim-
Na segunda estrofe, o vocábulo “pe- ples / r / e a vogal / a /. De acordo com Nilce
cado”, que realmente o “bem-querer” tem, Sant’Anna Martins (1997), a consoante nasal
pois o “quê” é a primeira sílaba de “que- / m /, considerada mole e doce, se harmoniza
rer”, é formado pelas consoantes oclusivas com as palavras e enunciados em que preva-
/ p /, / k/ e / d /, que, conforme afirmamos lece a ideia de suavidade, doçura e delicade-
anteriormente, sugerem explosões, racha- za. Desse modo, essa associação de fonemas
duras, pancadas e ruídos secos e violentos. expressa também, além das já citadas, ideias
Analisando-se o significado semântico do de paz, afeição, ternura e felicidade.
termo, constatamos que “pecado” é uma No quarto e quinto versos, ”Meu bem-
transgressão, uma quebra, o rompimento -querer, meu encanto/Tô sofrendo tanto”,
de um preceito religioso (e se é religioso é há a predominância dos fonemas vocálicos
sagrado), e ajustando-se esse significado à nasais / ã / e / ê /. A ressonância nasal, se-
sugestão fônica das consoantes, verifica-se gundo Nilce Sant’Anna Martins (1997), torna
que há um equilíbrio entre ambos, pois o ato as vogais aptas a sugerir distância, lentidão,
de romper, quebrar alguma coisa está liga- moleza e melancolia. Assim a nasalização
do ao som que essa ação provoca (explosões, dá um tom melancólico ao substantivo “en-
ruídos secos, geralmente violentos), e sendo canto”, ao verbo “sofrendo” e ao advérbio
assim a rachadura (a ruptura) que o “pecado” de intensidade “tanto”. O caráter secreto e

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Donizeth Aparecido dos Santos

proibido dos primeiros versos da letra da E todo esse potencial sonoro é aproveitado
música e esses últimos versos melancólicos por poetas, cantores, compositores musicais
dão a impressão que a suavidade, a doçura e atores que dominam esse recurso estilístico
e a paz do terceiro verso foram apenas um que o idioma oferece para o enriquecimento
lampejo de felicidade. expressivo de seus trabalhos. E a partir daí,
A terceira e última estrofe da letra da entendemos a grande importância que a
música, composta por quatro versos que for- expressividade fônica possui e, mais ainda,
mam um período interrogativo, contém dois o quanto é importante adquirir este conhe-
vocábulos foneticamente muito expressivos: cimento que é uma das chaves para a com-
os verbos “sofrer” e “morrer”. O primeiro pos- preensão e interpretação de textos literários
sui em sua estrutura morfológica a ocorrên- (principalmente a poesia) e letras de músicas
cia por duas vezes da vibrante simples /r/ que em língua portuguesa.
sugere tremor e medo; e o segundo, além da Também se faz necessário aqui, relem-
vibrante simples em seu final, tem em seu brar a grande evidência que a relação som-
centro a vibrante dupla /R/ que pode sugerir -sentido tem na maior parte das sugestões
medo, vibração, rompimento e abalo. A su- dos vocábulos em português, como a suges-
gestão fônica dessas duas consoantes reforça tão fina e aguda da vogal / i /, de redondez da
o significado que os dois verbos possuem: o vogal / o /, os ruídos duros e explosivos das
tremor e o medo fazem parte da dor e do so- consoantes oclusivas, o chiado das fricativas,
frimento, e o medo, a vibração e o abalo se e o sopro das consoantes / f / e / v /, entre
ajustam à ideia de morte. muitos outros exemplos.
Essa análise foi pautada somente nas
possíveis sugestões sonoras que os fonemas Referências Bibliográficas
em língua portuguesa oferecem, sem nos de-
termos nas figuras de linguagem (semânti- BALLY, Charles. El lenguaje y la vida. Trad.
cas e sintáticas) que o texto possui. Com isso, Amado Alonso. 5 ed. Buenos Aires: Editorial
Losada, S.A., 1967.
pretendemos mostrar que a sugestão sono-
ra dos fonemas que constituem alguns dos BUENO, Silveira. Estilística brasileira. São
principais vocábulos de “Meu bem-querer” Paulo: Saraiva, 1964.
confirma o significado semântico da letra DJAVAN. Meu bem-querer. Rio de Janeiro:
da música. Tapajós, 1980. disponível em www.djavan.com.
br. Acesso em: 20 out. 2001.
JAKOBSON, R. Lingüística e poética. In.:
À guisa de conclusão
Lingüística e comunicação. Trad. Isidoro
Como acabamos de ver, os fonemas da Blinkstein e José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix,
língua portuguesa oferecem inúmeras pos- 1969.
sibilidades expressivas, sugerindo os mais MARTINS, Nilce Sant’Anna. Introdução
variados sentimentos, impressões, sons, a estilística: expressividade na língua
expressões, formas e estados psicológicos.

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80 Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras>
A expressividade dos fonemas da língua portuguesa

portuguesa. 2 ed. ver. e aum. São Paulo: T.A.


Queiroz, 1997.
MATTOSO CÂMARA JR, Joaquim. Contribuição
à estilística portuguesa. 3 ed. ver. Rio de
Janeiro: Ao Livro Técnico S/A, 1977.
MONTEIRO, José Lemos. A estilística. São
Paulo: Ática, 1991.
RAMOS, Maria Luiza. Fenomenologia da obra
literária. 2 ed. São Paulo: Forense, 1972.

Recebido para publicação em 16 jan. 2016.


Aceito para publicação em 08 set. 2016.

Uniletras, Ponta Grossa, v. 38, n. 1, p. 71-81, jan/jun. 2016


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