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QUETZAL.

Ave trepadora da América Central,

que morre quando privada de liberdade;

raiz e origem de Qyetzalcoatl (serpente

emplumada com penas de quetzal), divindade

dos Toltecas, cuja alma, segundo reza a lenda, teria

subido ao céu sob a forma de Estrela da Manhã.


Gloria in Excelsis
As Mais Belas Histórias Portuguesas de Natal

Ô QUETZAL língua comum


Título: Gloria in Excelsis

As Mais Belas Histórias Portuguesas de Natal

Autor: AA.VV.
Recolha e selecção de Vasco Graça Moura

1." edição: Novembro de 2008


3." edição: Novembro de 2016
Revisão: João Assis Gomes

Design da capa: Rui Rodrigues · Qyetzal Editores

Fotografia da capa: © Guillaume Pazat/Kameraphoto

Pré-impressão: Fotocompográfica

Execução gráfica: Bloco Gráfico. Unidade Industrial da Maia

© 2016 Vasco Graça Moura e Qyetzal Editores


[Todos os direitos para a publicação desta obra em Língua
Portuguesa, excepto Brasil, reservados por Qyetzal Editores]

ISBN: 978-989-722-340-2
Depós;to legal: 417 316/16

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Por expresso desejo manifestado por Vasco Graça Moura, as suas obras
são publicadas com a ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.

Nota do editor:
O licenciamento para a utilização dos contos na l.ª edição desta obra
foi efectuado directa e pessoalmente por Vasco Graça Moura,
tendo o editor, em todos os casos em que tal se afigurou possível,
confirmado tal licenciamento para a presente edição.
O conto de Natal em Portugal

COMO É NATIJRAL, AS REFERÊNCIAS AO NATAL na nossa litera­


tura começam por registos de uma intensa devoção e só muito
mais tarde se preocupam com a transposição da celebração reli­
giosa e do seu sentido transcendente para o plano civil de uma
comunhão festiva, familiar e universal, necessariamente ligada
à ideia de paz na terra e reconciliação entre os homens. É na poesia
e no teatro que desponta literariamente aquela exaltação religio­
sa, com mestre André Dias (1348-1437) e depois nalguns autos
vicentinos de devoção, para não mais parar, até ao nosso tempo:
no Maneirismo, no Barroco, no Romantismo e daí em diante,
até hoje. Basta recordar, mais ou menos ao acaso, poetas como
António Ferreira, Frei Agostinho da Cruz, Diogo Bernardes,
Rodrigues Lobo, D. Francisco Manuel de Melo, Jerónimo Baía,
Correia Garção, Reis Qyita, Cruz e Silva, Bocage, Almeida Gar­
rett, Castilho, António Nobre, Gomes Leal, Fernando Pessoa,
Vitorino Nemésio, Miguel Torga, Álvaro Feijó, António Ge­
deão, David Mourão-Ferreira e tantos outros . . . para se ver que
o «cancioneiro de Natal» lusitano é muito abundante e variadís­
simo. Por sinal que é provavelmente com um célebre soneto de
D. Francisco Manuel de Melo, «De consoada a uma sua prima»,
que o lado da celebração familiar e afectiva da quadra natalícia,
8 VASCO GRA(:A MOURA

acompanhada da troca de presentes, surge na nossa literatura,


com a particularidade de ser escrito da prisão e, portanto, de con­
trapor um estado de afastamento, de solidão e de tristeza («Man­
dara-vos o sol, se desta cova / mo deixaram tomar» . . . ), a uma
época do ano que era tradicionalmente de jubilosa reunião da fa­
mília. Mas ainda no século anterior, a pós-vicentina Prática dos
Compadres, de António Ribeiro Chiado, j á descreve de modo
muito colorido, no pitoresco diálogo entre o Cavaleiro e o Com­
padre, os usos e folguedos entre familiares e vizinhos, a propósito
da ceia de Natal e da missa do Galo.
Isto tinha raízes muito antigas. O Padre Mário Martins ex­
plica a dramatização popular da liturgia do Natal a partir de uma
ideia de presépio que «vinha de longe, muito antes de S. Francis­
co de Assis» e observa que «na Idade Média [ ... ] nem tudo era
edificante, pela festa do nascimento de Jesus. Em 1473, um con­
cílio de Aranda [ ... ] fala-nos de representações, mascaradas, figu­
ras monstruosas e versos indecentes - ludi theatrales, larvae,
monstra spectacula. .. turpia carmina- que vinham a público, nas
igrejas, por ocasião do Natal, da festa dos SS. Inocentes, S. João
Baptista, etc. Estes males, e videntemente, não paravam nas fron­
teiras portuguesas». Acrescentemos que essa tradição, de algum
modo, vem ainda ecoar na muito mais tardia ficção literária rela­
tiva ao Na tal.
Com pouco desfasamento em relação à poesia e ao teatro
(e também às artes plásticas, do Vasco Fernandes da Adoração dos
Pastores até ao Machado de Castro dos presépios), na nossa tradi­
ção cultural as referências i mportantes ao Natal, em prosa litera­
riamente consistente, podem ser detectadas já em fins do século XV,
n' O Livro de Vita Christi em Lingoagem Português, tradução da
obra de Ludolfo de Saxónia mandada fazer por D. João II e por
sua mulher, a rainha D. Leonor. Nesse incunábulo de 1495, o Ca­
pítulo IX do Livro Primeiro é dedicado à «nacença do Salvador»
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 9

e aí se encontram os principais ingredientes relativos à festa do


Natal (presépio, alvoroço e adoração dos pastores, pobreza do
nascimento do Menino) em relação aos quais vão sendo feitas as
inevitáveis transposições alegóricas, tal como virá a acontecer ao
longo do século XVI, sempre em textos de natureza religiosa, espi­
ritual ou apologética. Elas afloram, por exemplo, em contempo­
râneos de Camões, como em Frei Heitor Pinto (1528?-1584?),
na parte final do Capítulo XXIV do «Diálogo dos verdadeiros e
falsos bens», da Imagem da Vida Cristã, ou numa bela página do
Capítulo LII do Diálogo décimo de Amador Arrais (1530?-1600):
«Üuvi a Crisóstomo: Ó se me fora dado ver aquele presépio, em
que jouve o Senhor. Nós os Cristãos tirámos-lhe o barro, e puse­
mos-lhe prata; mas pera mim mais precioso é o que foi tirado,
que o que de novo foi posto» . . . Por seu turno, em Frei Tomé de
Jesus (1529?-1582?), o tema da gravidez e do parto da Virgem dá
lugar a exaustivas variações, já prenunciadoras do Barroco: nos
seus Trabalhos de jesus, encontramos secções (ou «trabalhos»)
como «Ü aperto do lugar em que [o Senhor] andou nove meses»,
«Ter nove meses represada a força de seu amor», «Ü duro trata­
mento que deu Cristo Senhor Nosso a seu corpo em nascendo»,
«Lágrimas de Deus nascido por nossos pecados», «Desabrigo das
asperezas do tempo em um portal». Também Frei Pantaleão de
Aveiro, no seu Itinerário da Terra Santa (1593), dedica um co­
movido capítulo (o LII) ao «lugar onde naceu nosso Senhor Jesu
Cristo e do Santo Presépio aonde foi reclinado», entremeando
as suas descrições de viajante peregrino pelos lugares santos da
Palestina com considerações de índole religiosa e contemplativa.
De destacar ainda, nesta sequência de textos em prosa relativos
ao Natal, e cerca de um século mais tarde, dois sermões do Padre
António Vieira, o «do nascimento do Menino Deus» e o «da
Epifania», o primeiro de data desconhecida e o segundo pregado
na capela real em 1662.
10 V ASCO GRAÇA MOURA

Em todos esses textos se busca um sentido teológico, trans­


cendente e exemplar, para o mistério da Encarnação, quase sem­
pre inevitavelmente articulado com a subsequente paixão de Cris­
to e com as considerações expiatórias e penitenciais a que esta dá
lugar, mas trata-se de prosa em que não se aborda uma signifi­
cação por assim dizer mais projectada na esfera do social e do
popular, nem a alegre convivialidade da festa natalícia, como
acontecia com os já citados de António Ribeiro Chiado e D. Fran­
cisco Manuel de Melo. Nessa matéria, o verso precedeu a prosa.
E bem mais tarde, na ficção, a articulação do Natal passa, muitas
vezes, a fazer-se com o sofrimento humano, que assim vem subs­
tituir as alusões ao Calvário.
É com o Herculano das Cenas de Um Ano da Minha Vida que
as coisas começam a mudar. Aí, em «A vida soldadesca», inicial­
mente publicada n'O Panorama (1841), tenta-se uma «autêntica»
poética da missa do Galo e da noite de Natal: «A noite da missa
do Galo gera a poesia em corações que no outro dia ela não sabe­
ria agitar», mas conclui-se com uma nota de angustiada melanco­
lia sobre uma família cujo ente querido desapareceu na voragem
da guerra civil: «Tinham um irmão: - mas a sociedade amarrou
essa rês e arrastou-a para o grande açougue nacional chamado
exército.» Mas ainda se está longe daquilo a que se possa chamar
ficção. Vitorino Nemésio chama-lhe «meditação moral». Como,
mais tarde, em Ramalho Ortigão, também virá a acontecer com
o Natal minhoto (As Farpas, I), embora outro dos seus textos, o do
volume V de As Farpas, apresente um embrião de narrativa, razão
por que aqui foi incluído («A festa de Natal - A festa das crian­
ças e a história de uma que não se divertiu»). Em Camilo Castelo
Branco, o Natal não tem, em si, um relevo por aí além. Não nos
ficaram na memória, como referência, páginas suas dedicadas a
essa quadra, não obstante um dos seus melhores romances, Amor
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 11

de Salvação, começar lapidarmente: «Estava claro o céu, tépido


o ar, e as bouças e montes floridos. O mês era de Dezembro, de
1863, em véspera de Natal»; e a verdade é que o narrador, que
percorria o Minho nessa data, «benquisto apenas de uns cães»,
e tem a consciência de estar completamente só «naquele festivo
dia da nossa terra», vem a escutar a história do seu amigo Afonso
de Teive contada por este durante a noite de Natal. . . Em Daqui
Houve Nome Portugal, Eugénio de Andrade recolhe uma curta
e impaciente página camiliana sobre o Natal no Porto, «selvageria
de cafres cristãos» que recorda os estridentes folguedos populares
medievais a que Mário Martins faz referência e que é objecto da
contundência camiliana no terceiro dos raramente lidos Ecos Hu­
morísticos do Minho.
Sendo sempre possível que existam, na ficção esquecida do
século XIX, alguns casos anteriores, o primeiro que encontrei foi
o do hoje completamente ignorado Andrade Ferreira, num conto
intitulado «A noite do Natal», publicado em vários números do
primeiro volume do Archivo Pittoresco (1858) e que, com os fortes
laivos românticos introdutórios de cada uma das suas secções,
narra uma tragédia aldeã de vingança, morte e loucura, na atmos­
fera rural e patriarcal da noite de consoada. E neste ensejo são de
recordar aqui as célebres páginas que, dez anos mais tarde, Júlio
Dinis dedica ao presépio, à ceia de Na tal e à missa do Galo,
n' A Morgadinha dos Canaviais (1868), mas que, por se tratar de um
segmento de romance, não cabem aqui. O calor humano delas já
tem porventura alguma coisa a ver com a própria substância da
observação de Dickens, a preceder os seus Christmas Books:
«O meu propósito foi, numa caprichosa espécie de máscara que
a boa disposição da quadra justificava, despertar alguns pensamen­
tos de amor e tolerância, nunca deslocados numa terra de Natal».
12 V ASCO GRAÇA MOURA

No conto português de finais do século XIX, será preciso espe­


rar pela grande realização que é «Ü suave milagre», de Eça de
Qieirós, cuja primeira versão, com outro título, é de 1885 e que,
sem se forçar muito a nota, pode ser considerado um conto de
Natal e mensagem cristã de exaltação dos mais humildes. O Na­
tal propriamente dito, abordara-o Eça (na sua versão inglesa
e sem ficção) uns anos antes, numa das suas peças depois postuma­
mente reunidas sob o título de Cartas de Inglaterra (por sinal que
aí, o Pai Natal, ainda não imigrado nem institucionalizado cá pe­
las nossas paragens, é ainda o Father Christmas - papá Natal. . . ).

Vitorino Nemésio observa que «O Natal de Ramalho e de Eça


é um Natal de sociólogos conscientes do empobrecimento de
uma sociedade que "faz" por "ter visto fazer"; ou (o que é pior!)
que "faz" por "saber que se fazia"», e di-lo depois de ter já notado
que, «à medida que a história nos afasta das condições do viver
patriarcal, a literatura vai depositando, sob a forma de evocação,
os resíduos do Natal como centro da vida religiosa de um povo
que, outrora fechado num âmbito de crenças puras, emigra pouco
a pouco para regiões sentimentais cada vez menos firmes». Essa
«emigração» fica, segundo creio, razoavelmente documentada pela
presente antologia.
A Eça de Qieirós seguem-se «A consoada» (Mulheres da Bei­
ra, 1891), de Abel Botelho, uma breve e muito simples narrativa
do regresso a casa em noite de Natal de um marido expatriado
em Lourenço Marques para ganhar a vida, e o «Conto do Natal»,
de Fialho de Almeida (O País das Uvas, 1893), história violentíssi­
ma de parto clandestino e assassínio brutal de um recém-nascido
na noite de Natal pelo próprio homem que assiste a parturiente,
provavelmente o amante e pai da criança (alguém que a desgra­
çada trata por tu) , entre ruínas inóspitas, tudo presenciado por
uma velha mulher que regressa à aldeia depois de longa ausência;
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 13

de notar a utilização sistemática do presente d o indicativo na


primeira parte do conto, para os efeitos quase cinematográficos
e fantasmagóricos da paisagem agreste durante a caminhada da
velha. Mas a história é de tal modo horrível que me pergunto se
Fialho, ele que falava da «cidade do vício», à sua maneira, não
se terá proposto parafrasear os versículos :finais do Salmo 136, incre­
padores de Babilónia e da sua vida em pecado: «Bem-aventurado
o que tomar os teus filhinhos e os esmagar contra uma pedra!»
No entanto, Fialho também incluiu n' O País das Uvas «O Menino
Jesus do Paraíso», história bem-humorada dos maus costumes de
uma freira e da substituição do Menino Jesus do presépio pelo re­
cém-nascido, em carne e osso, fruto daqueles, e que talvez pre­
nuncie aspectos de um dos contos de Tomaz de Figueiredo aqui
incluído.
«As Janeiras», de Brito Camacho (de 1925, mas reportado
à infância do narrador, nascido em 1862), que incluí na presen­
te colectânea pelo seu poder evocativo entre o memorialístico e
o anedótico e digressivo, volta a não ser propriamente um conto, o
que poderia dizer-se também, mas por outras razões, de «Natal
dos pobres», de Raul Brandão, sucessão narrativa entrecortada de
exclamações e visualizações de amargura sobre a degradação da
condição humana no seu volume de humilhados e ofendidos que
é Os Pobres (1906), diferentemente das alucinações consecutivas
de um velho reduzido ao abandono e à solidão em «A lenda de
Natal», de Júlio Brandão (1917), e de «A consoada» (em A Venci­
da, 1907), de Carlos Malheiro Dias, breve sketch de um episódio
de inquietação e ansiedade familiares, geradas pelo tardar do re­
gresso do pai que vai comprar as arrecadas que serão a consoada
da filha pequena e é transportado para casa quase morto devido
a uma agressão de ladrões, mas trazendo a prenda prometida bem
segura na mão fechada.
14 V ASCO GRAÇA MOURA

Com Aquilino Ribeiro é mais frequente a preocupação com


o Natal. Um dia, escreveu a este respeito: «Ü homem traz no
subconsciente a história da longa caminhada que fez. Por isso
o fogo, que foi a sua grande invenção e o alumiou na tenebrosidade
das cavernas, é para ele de essência divina. É porém um deus,
cujo culto foi postergado por outro culto, mais espiritual ou de
símbolo mais amplo, que todavia persiste no fundo da psique hu­
mana bem lembrada.» Na obra de Aquilino, para além das páginas
que, em Terras do Demo, dedica à quadra natalícia, avultam o
conto «D. Qyixote contra Herodes» (Estrada de Santiago, 1922),
aqui seleccionado pela sua bem-humorada paródia pós-cervanti­
na de D. Qyixote aceitar não acometer os gigantes, para ficar de
guarda ao Menino Jesus do presépio contra as anunciadas malfei­
torias do rei Herodes, e toda uma série de esplêndidas sequências
de O Livro do Menino Deus (1945), de que seleccionei, por afinal
se tratar de um pequeno conto, «A missa do Galo», com a sua sa­
borosa discussão, teológica e não só, entre um velho fidalgo cép­
tico e o abade da freguesia.
Pina de Morais, outro autor completamente esquecido, com
«Ü Pai Natal» ( Vidas e Sombras, 1949), um divertido exercício em
que o Pai Natal, a caminho do Porto, recusa a companhia de vá­
rios santos da corte celestial, para descer à terra apenas acompa­
nhado pelo Menino Jesus que acaba a trocar de lugar com uma
criança de berço, e João de Araújo Correia, com o seu «Conto de
Natal» ( Contos Bárbaros, 1939), uma variação com happy end so­
bre o tema da criança enjeitada, e «Noite de Natal», sobre a ex­
travagante travessia nocturna de duas irmãs que vão cear com
uma terceira, encerram a secção de matriz mais ou menos natura­
lista desta antologia, a que acrescentei, como contraponto, um
breve texto de Ferreira de Castro, «Ü Natal em Ossela», que,
sem ser propriamente um conto, cria uma atmosfera que é, por si,
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 15

quase narrativa, com as suas onomatopeias lúgubres da ventania,


o seu olhar sobre a paisagem e a sua melancólica contemplação
da proximidade da morte.
Os prosadores da Presença, ou a ela ligados, ou ainda os que
pertencem à mesma geração, escreveram quase todos sobre o Na­
tal: seleccionei, de Vitorino Nemésio, o conto «Üs Reis Magos»
(segunda versão), de O Mistério do Paço do Milhafre (1949), histó­
ria colorida e de pasmar contada pela avó do narrador, apoiada
em constantes referências a figurações da infância açoriana do au­
tor; de José Régio, o «Conto do Natal», igualmente em segunda
versão (Há mais Mundos, 1962), falando das pesadas estranhezas
do lobisomem morto em noite de Natal, e retomando, a seu modo,
a linha das figuras monstruosas que Mário Martins assinala
na Idade Média; de José Rodrigues Miguéis, (também autor de
«Ü viajante clandestino», publicado sob outro título em 1957 e
incluído em Gente de Terceira Classe, 1962), «Ü Natal do doutor
Crosby», de Léah e Outras Histórias (1958), uma das poucas narra­
tivas de Natal passadas em meio urbano, com incursões no mun­
do de um, para a vizinhança, insuportável melómano gay de
Nova Iorque, e, noutro registo, «Natal branco», de Gente de Tercei­
ra Classe, 1962, sobre o calor comovido da evocação da terra natal
pela emigração portuguesa nos Estados Unidos; de Tomaz de Fi­
gueiredo, os contos insertos (1970 e 1966) em A Outra Cidade
(«Gente de paz», uma singular história de regresso à terra de ori­
gem, que é uma aldeia inundada - Vilarinho das Furnas? -,
sobre a qual o principal protagonista vai evocando o passado, a
partir de um fundo do tempo a coincidir agora com o fundo das
águas) e em Tiros de Espingarda («0 conto de Natal», este uma
irónica deambulação pelos processos da escrita de histórias de
Natal por encomenda de revistas, de mistura com algumas piadas
sibilinas à literatura dita de preocupação social); de João Gaspar
16 V ASCO GRAÇA MOURA

Simões, «Meia-noite» (A Unha Quebrada, 1941), retomando me­


lancolicamente o tema do regresso a casa e aos vestígios degrada­
dos de um tempo perdido; de Domingos Monteiro, autor de
nada menos de seis contos de Natal (1964), «Ü regresso», a seu
modo também uma variação desalentada do tema já abordado
por Abel Botelho, e «Um recado para o céu», tratando do pio ex­
pediente de uma mulher de virtude já in articulo mortis para fazer
valer lá no alto os pedidos que lhe eram transmitidos.
Miguel Torga, além d e u m a c o n h e c i d a p a s s agem de
«Ü quarto dia» de A Criação do Mundo, sobre a noite de Natal em
França, incluiu «Jesus», com a sua doce alusão final à Natividade,
em Bichos (1940) , e «Natal», em Novos Contos da Montanha
(1944), curta narrativa em que um mendigo acaba a contracenar
pitorescamente com as imagens de Nossa Senhora e do Menino
na sua modesta ceia de Natal à porta da igreja, fazendo ele de
S. José, à volta da fogueira que, para resistir ao frio, ateou com
um andor de procissão.
Os neo-realistas não fugiram à regra: Manuel da Fonseca,
Alves Redol, Fernando Namora, dão o seu contributo completa­
mente laico - et pour cause!
- a este tema com, respectivamen­
te, «Noite de Natal» (O Fogo e as Cinzas, 1951), uma cena noctur­
na de bebedeira e sangue entre três soldados, enquanto a jovem
mãe que os atendera na taberna lhes consegue fechar a porta e
resguardar o filho pequeno dos seus desmandos, «A festa de Na­
tal» (Histórias Afluentes, 1963), como irónico pretexto para ilustrar
a luta de classes por uma caricatura do Natal das empresas,
e «Reputação» (Retalhos da Vida de Um Médico, 1949),foit-divers
da vida do jovem médico em começo de carreira, que, aliás, só
por uma coincidência de calendário tem a ver com o Natal.
Jorge de Sena aborda o tema em três contos, um em Andan­
ças do Demónio (1960), «Razão de o Pai Natal ter barbas bran­
cas», aqui incluído, espécie de divertimento algo surrrealizante
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PO RTUGUESAS DE NATAL 17

para crianças grandes, e dois em Novas Andanças do Demónio


(1966), sendo um deles «Ü Urso, a pantufa, o quadro e o coro­
nel» e outro o portentoso «A noite que fora de Natal», que tam­
bém seleccionei e é talvez o mais original conto de Natal de toda
a literatura portuguesa, num registo menos evocativo e descritivo
desta quadra do que eticamente problematizante de uma relação do
homem com o seu destino e com os caminhos da História e da
redenção. Sophia de Mello Breyner Andresen fá-lo num conto
para crianças, «A noite de Natal», e sobretudo em «Üs três reis
do Oriente» ( Contos Exemplares, 1962), de que é de destacar a ex­
traordinária cena borgesiana de interpretação de uma placazinha
em argila no episódio central, e ainda o bem conseguido registo
de uma linguagem oscilando entre uma entoação quase biblica­
mente versicular e uma simplicidade poeticamente coloquial,
convergindo ambas numa luminosa mensagem de esperança na­
talícia.
Na secção final desta antologia, a violência e a crueldade da
tragédia de uma filha que mata o pai alcoólico, em defesa da mãe,
regressam com o conto pungente de Maria Judite de Carvalho,
«Noite de Natal» (Tanta Gente, Mariana, 1959). Depois, o ecfras­
ticamente enlevado «Ü pezinho de Nossa Senhora», de Natália
Nunes (Da Natureza das Coisas, 1985, mas publicado em 1971), e
a crítica mordaz da tacanhez pequeno-burguesa de «A samarra»,
de Urbano Tavares Rodrigues (Imitação da Felicidade, 1960). José
Saramago, com «História de um muro branco e de uma neve
preta», cuja versão final aparece pela primeira vez em língua por­
tuguesa nesta antologia, articula dois episódios singelos, o segun­
do de uma pungência surda, num tratamento da infância que não
vai sem recordar o arquétipo junguiano da «criança divina». Por
sua vez, aos tão bizarros quanto sardonicamente corrosivos
«Exercícios de auto-apoucamento» (Uma Coisa emforma de assim,
18 VASCO GRAÇA MOURA

1980), de Alexandre O'Neill, seguem-se <<Já não há Salomão», de


Isabel da Nóbrega (Estúdios Cor, 1966), com o seu fundo desa­
lento a partir do quotidiano humilde de uma mãe dolorosamente
separada da filha adolescente. E temos ainda o melancólico «Se­
renidade», de Graça Pina de Morais (publicado, sem data, pelo
Instituto Fármaco); o subtil encontro/desencontro de culturas, na
oposição da cristã Virgem Maria à oriental Deusa da Fecundida­
de, de «Natal chinês», de Maria Ondina Braga (1968); o desfe­
cho perturbante, efeito talvez reforçado pelo acumular dos por­
menores realistas e anódinos do diálogo, de «Noite de Consoada»
(Os Putos, 1964), de Altino do Tojal; e, a concluir, «A noite em
que prenderam o Pai Natal» (Fronteiras Perdidas, 1999), de José
Eduardo Agualusa, história de um tratador de piscinas que acaba
contratado para fazer de Pai Natal e a repetir em termos angola­
nos e perante um polícia . . . o milagre das rosas!
Sem curar de estabelecer uma tipologia rigorosa, tentativa
que só seria possível ante um corpus muito mais vasto, podem
agora ser traçadas algumas das grandes linhas que caracterizam
a história ou conto de Natal na nossa literatura de ficção: a festi­
vidade religiosa (do presépio à missa do Galo) e a sua paralela ce­
lebração secular e jubilante quase sempre no plano da família;
o contraste mais ou menos chocante entre Graça e desgraça, ou en­
tre grupos e condições sociais; o regresso de alguém que, regra
geral, estava ausente havia muito; a evocação do tempo e das vi­
vências do passado; a reconciliação entre os homens; por vezes
o sofrimento, a tragédia ou a violência numa quadra que não de­
veria comportá-los; quase sempre a ruralidade do meio em que
a acção decorre (nesta colectânea, todavia, com algumas excepções
nítidas); como cenário de fundo, é frequente a contraposição do
mau tempo (chuva, frio, neve, ventania) a um ambiente aconche­
gado e familiar. Por sinal que estes ingredientes se encontram
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 19

quase todos reunidos no conto de Andrade Ferreira com que abre


este volume. (hianto aos Reis Magos, constituem uma subtipolo­
gia à parte. A parábola ou quase parábola também pode funcio­
nar, caso de «Ü suave milagre», de Eça de (hieirós, ou mesmo de
<<Jesus», nos Bichos, de Miguel Torga, tal como o divertimento,
como em «Razão de o Pai Natal ter barbas brancas», de Jorge de
Sena, ou no «Conto de Natal», de Tomaz de Figueiredo, ou nos
«Exercícios» de Alexandre O'Neill, ou em «A noite em que pren­
deram o Pai Natal», de Agualusa. É de notar que, pelo menos a
partir de meados do século XX, se generalizou a dada altura o cos­
tume de ser publicado um conto de Natal por jornais, ou revistas,
como a Eva, nos seus números de Dezembro, e mesmo por edi­
toras, como a Estúdios Cor, para fins de plaquette de brinde nata­
lício aos leitores. Tais encomendas podem explicar uma parte da
produção específica dos contos e histórias de Natal surgidos nesse
período. Já as «Sin�aridades de uma rapariga loira», de Eça, ti­
nham sido publicadas pelo Diário de Notícias pelo Natal de 1873,
como «brinde aos seus assinantes». O processo é caricaturado por
Tomaz de Figueiredo e teve intervenientes ilustres, como José
Régio, Domingos Monteiro, José Rodrigues Miguéis, Jorge de
Sena, Natália Nunes e outros.
Enfim, se os contos que seleccionei para esta antologia, orde­
nando-os de acordo com a cronologia das datas de nascimento
dos seus autores, têm os seus méritos muito diferenciados e as
suas regras de escola literária mais ou menos explícitas, não es­
condo a minha preferência muito pessoal por quatro deles, que
me parecem verdadeiras obras-primas: «Ü suave milagre», de Eça
de (hieirós, «A noite que fora de Natal», de Jorge de Sena, «Três
reis do Oriente», de Sophia de Mello Breyner Andresen e «Exer­
cícios de auto-apoucamento», de Alexandre O'Neill .
Possa este conjunto proporcionar aos leitores o prazer e as
surpresas que eu mesmo tive ao reler e organizar sequencialmente
20 V ASCO GRAÇA MOURA

textos em que nunca tinha pensado na perspectiva de uma anto­


logia a qual, nesta edição, integra nada menos de quinze textos
que, não obstante seleccionados desde o início, não tinha sido
possível incluir na primeira.

Vasco Graça Moura


A noite do Natal
José Maria de Andrade Ferreira

O desconhecido

Fria e escura vem descendo a noite: as nuvens amontoam-se


sobre as colinas: oculta num manto de névoa a Lua despede seu
pálido luar... Eu lobrigo um fantasma na planície... Ouve-se um
cão ladrar numa cabana distante.

ÜSSIAN - Cena de Uma Noite de Outubro

CORRIA A NOITE DE VINTE E QUATRO DE DEZEMBRO, e dez


horas acabavam de soar na freguesia de uma aldeia da província
do Minho.
Era uma destas noites como as produz Dezembro nas pro­
víncias do Norte de Portugal; serena, mas fria de regelar: a geada
caía a flocos em abundância.
De além das cumeadas da serrania, sobranceira à aldeia, lá
começa a aparecer uma claridade alvacenta, como véu diáfano
que se dilata, e que pouco a pouco envolve o baço fulgor das es­
trelas.
É a Lua que vai nascer.
A pálida e melancólica rainha da noite ergue a custo a fronte,
anuviada pelos gélidos vapores que o Inverno depositara nos
cumes da serra. É como um espírito aéreo de Ossian, percorren­
do em níveas vestes as montanhas de Morven.
Olião sublime é o nascer da Lua, quando a noite já vai adian­
tada! É nessa hora de tranquilidade profunda e meditação solene,
que a alma, animada por essa centelha que ao mundo desferiu a
22 VASCO GRAÇA MOURA

Divindade - a poesia, solta voos temerários, sendo-lhe estreita


a imensidade do espaço para dar largas aos pensamentos que ins­
pira o astro melancólico da noite.
Sereno e modesto planeta, quanto simpatizo contigo! É s o
meu enlevo nas belas noites estivas, em que brilhas no nosso tão
poético hemisfério, desferindo um olhar cheio de mistérios. Sem
o querer, por teu aspecto acho-me embevecido, sem de ti desfitar.
Olhando-te, minha alma parece desprender-se das suas ligações
terrenas e voar pelo espaço, engolfando-se na deslumbrante cópia
de maravilhas, que o silêncio imperturbável da noite nos paten­
teia, e que tu, como um facho inextinguível que luz entre o ho­
mem e Deus, alumias e esclareces! Tu és como um fanal miste­
rio s o , que, nas horas em que tudo j az adormecido, fazes
resplandecer as páginas do livro da sabedoria eterna - a na -
tureza! . . .
O nordeste começara d e soprar rijo, varrendo com a s suas
asas da amplidão do espaço os ténues nevoeiros que a noite acu­
mulara; e açoitando em rajadas a encosta da montanha, enverga­
va os pinheirais, que, erguidos na lombada das colinas, se projec­
tavam no horizonte como fantasmas negros que, ao som do
vento, que, gemebundo, percorria pelos vales, dançassem danças
grotescas e bárbaras.
A noite foi alimpando, pondo-se bela e clara com a saída da
Lua, que, já desassombrada de vapores no seio da atmosfera, pura
e serena, fulgurava como broche de oiro no meio de um vasto
manto de cetim. À sua claridade os objectos confusos e indistin­
tos, pelas sombras da noite, haviam-se estremado e tornado per­
ceptíveis. No pendor da serra, quase a dependurar-se por entre os
ramais verde-negro dos arvoredos frondosos, começara a surgir,
alvejando ao luar, a aldeia, cujo campanário, ainda havia pouco,
fizera soar dez horas.
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 23

Entre nós, gente da corte, dez horas é apenas o começo da


noite: é a hora de dar entrada num baile; é a hora em que um pe­
ralta vai para o teatro; é a hora em que se faz a abertura de um sa­
rau, segundo as prescrições do código do bom-tom; é, enfim,
a hora destinada, nos ritos da tafularia, para se começar tudo o que
respeita ao mundo elegante, depois que o Sol deixa de nos alu­
miar. Mas, no campo, dez horas é uma hora adiantada: é a hora
em que um honrado e positivo lavrador tem já dormido o seu
sono, e muito bem estirada; porque os habitantes do campo, como
lapónios e pouco ilustrados que são - coitados! - preferem a
luz de um belo Sol, que os alumie e lhes dê vigor e energia, à luz
artificial de alguns resplandecentes lustres de gás; e por isso se
deitam ao anoitecer, e erguem-se com a aurora, gozando do inex­
plicável espectáculo do acordar da natureza. São gostos. Pois fi­
que cada qual com o seu, que eu, apesar das pinturas dos poetas
e das descrições lisonjeiras da gente da província, nunca morri de
amores por madrugar. Prefiro antes que o Sol me veja erguer a
mim, do que eu o veja erguer a ele. Há nisto talvez até descorte­
sia para com o rei dos astros; mas que querem? Uma madrugada,
acompanhada do seu cortejo de gelos e calafrios, foi sempre para
mim mais assunto de muito bocejo e espreguiçamento, do que de
encantadoras e atractivas seduções. O mau gosto é de certo da
minha parte; mas antes assim. Suporte-se ainda mesmo a reputa­
ção de sensaborão, contanto que não se troque uma cama, fofa
e quente, por uma madrugada fria e áspera.
No campo, como íamos dizendo, dez horas, que são horas de
tudo jazer já adormecido, nesta noite, porém, parecia ter excep­
ção, a atentar bem na nossa aldeia, por cujas fisgas das portas e ja­
nelas de algumas habitações, bruxuleavam luzes, como pirilampos
fulgurando num brejo, ouvindo-se, interrompido e intermitente
24 V ASCO GRAÇA MOURA

de vez em quando, o ruído confuso de um vozear alegre, como


cantares, ao que parece, de gente que folgava.
E folgava, sim; porque esta era uma das noites de excepção
por excelência para aquelas boas gentes: esta era a noite de 24 de
Dezembro; era véspera do dia de Natal, em que tudo na provín­
cia folga, risonha, tange, canta, come e bebe, já se sabe, devota­
mente, depois de ter ido ouvir a missa do Galo. Esta era a razão
da novidade que ocorria na aldeia, cujos habitantes já ansiosos e
folgazões suspiravam pela duodécima badalada do sino da fregue­
sia, para envergarem capotes e gibões, e porem-se a caminho para
a igrep.
De repente o sussurro de vozes, que era trazido ou levado
pelas esfuziadas do vento que assobiava pelos estevais, dobrando
as piteiras dos valados, foi cortado pelos latidos agudos de um
cão, o qual parecia estar dentro de uma casa de melhor aparência,
que ficava afastada da aldeia, para a baixa da serra.
Os latidos do cão vinham com efeito do interior desta casa;
e o motivo parecia a aproximação de um vulto negro, como de ho­
mem embuçado, que saíra detrás de um grupo de choupos, e se
acercara da porta da casa, como pondo-se à escuta. O ladrar do
cão ao princípio não atraiu o reparo da gente que lá dentro anda­
va acesa em folguedos; mas tanto que este avançou à porta, ras­
pando nela, como que entrevendo o vulto que estava de fora, que
uma voz de homem bradou de dentro:
- Ó Francisco, vê porque ladra aquele cão.
Ao soar da voz,. o embuçado desaferrou da porta, e correu
a esconder-se com os choupos.
A porta abriu-se; e um homem, tendo mão num formidável
rafeiro, que, sacudindo a cauda, tudo era querer partir para o lado
onde o faro lhe denunciava o estranho, apareceu, deitando a ca­
beça de fora.
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 25

- Ora o que há de ser! - diz o moço - não é nada: é o


Diamante, que sentiu bulir a porta com o vento, e por isso ladrou.
- Qyal carapuça! - exclamou o outro homem de dentro.
- Se ele ladra, é porque anda por aí gente.
«0 Diamante não se engana assim. Anda gente, e gente
a quem ele tem gana: essa também eu te juro.
- Eu cá não enxergo vivalma, tio Jerónimo - replicou
Francisco. - Ouço o vento que assobia nos valados, e mais nada.
Pois olhe que a noite está clara como de dia.
- É verdade; que bela noite! - exclamou uma voz femini­
na, sonora e meiga. - Parece uma noite de Estio; ora que nem
de propósito se pôs assim.
A esta fala, o cão soltou-se das mãos do moço, e voltou-se
para a recém-chegada, que era uma camponesa, jovem e gentil,
segundo da parte de fora se podia ver, e se pôs a lambê-la e a afa­
gá-la.
- Acomoda-te, Diamante: tens andado hoje tão inquieto!
Terá fome, talvez. Vai dar-lhe de comer, Francisco, anda - disse
ela desenvencilhando-se do cão, e indo para dentro.
Neste comenos, os choupos tremeram, e Diamante, pilhando
Francisco desapercebido, avançou ladrando com a fúria de um
leão. Nisto as árvores buliram mais, e uma pancada surda, como
de arma que erra fogo, fez-se ouvir.
- Qye é lá isso? . . . Foge, Diamante, que te matam! - grita
o moço, correndo a desviar o cão.
A esta exclamação do criado, toda a gente da casa chegou
à porta, alvoroçada.
- Qyem é que me quer matar o cão? - bradou um homem
que vinha à frente, adiantando-se, e brandindo um varapau com
uma choupa numa das pontas.
26 V ASCO GRAÇA MOURA

A resposta foi o lampejo de escorva que ardeu, sem disparar


a arma, entre os choupos.
- Tira-te, António, que foi espingarda que dispararam dali
- grita a camponesa, que já tinha aparecido, empecendo ao ho-
mem do varapau de prosseguir na direcção das árvores; mas este,
desembaraçando-se dela, replicou-lhe com brandura:
- Não tenhas medo, Emília. Sempre quero ver quem é
o gatuno, que assim me quer matar o cão: hei-de lhe arrancar
as barbas, uma por uma!
O homem que assim falava era um rapaz de vinte e oito anos
para trinta: alto, robusto e bem posto. Ainda que não fosse belo,
o seu todo era simpático, e tinha umas maneiras em que se reve­
lava a franqueza aldeã, espontânea e incuidosa, mas acompanha­
da da resolução do homem decidido.
Com ele haviam saído mais alguns rapazes camponeses, uns
poucos de lapónios, que eram os moços do casal, e um homem já
de idade avançada.
- Olie fazes? - gritou este, dirigindo-se a António. - Não
te arrisques assim. Sabe-se lá o que será!
- Ora o que há de ser? - retrucou o mancebo aldeão. -
Algum ratoneiro, que está à espreita· que vamos para a freguesia,
para nos entrar em casa.
- Dizes bem, nem é outra coisa - acrescenta o velho, dan­
do alguns passos para o meio da viela.
- Sim, mas deixem-se estar - insistiu Emília, segurando
pelo braço António.
- Olial! Hei-de ver-lhe a cara - ateimou este, adiantando-
-se para os choupos e mais alguns aldeões. Mas ainda não tinha
chegado próximo, quando uma sombra se escoou por detrás das
árvores, e se viu distintamente o vulto de um homem de capote
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 27

escuro saltar o valado com a ligeireza de um gamo, e desaparecer


súbito.
- A ele, Diamante, vai-te a ele! - brada António, arremes­
sando o cajado ao vulto que fugia, e correndo após ele com a im­
petuosidade de um tigre.
O cão, enraivado à voz do dono, correu com a velocidade do
raio, galgando o valado de um pulo. 01iase todos os homens
avançaram para o lado por onde fora António, e em breve desa­
pareceram também.
- Vão-me buscar a minha caçadeira! - bradou o velho para
os moços, que estavam espavoridos e estupefactos, enquanto que
as mulheres rompiam em alaridos. - Vocês não ouvem, gente
do diabo? Vão-me buscar a minha espingarda, ou não? - tornou
o velho agastado.
- Aonde queres tu ir, Jerónimo? Tu enlouqueceste? . . . Tu
perdeste a cabeça? ... - grita uma velha, de voz rouquenha e gri­
tadeira, excessivamente gorda, mas desembaraçada e resoluta,
saindo da mesma casa, e travando com o braço o tio Jerónimo,
a quem o risco da aventura estimulava ainda os brios de rapaz.
O empuxão da velha, forte como a abalroação de uma char­
rua dinamarquesa, deteve nos seus ímpetos o tio Jerónimo.
- Aonde quero eu ir? - replica ele. - 01iero saber quem
é o patife que, escondido naquelas moitas, teve a fraqueza de des­
fechar à queima-roupa sobre o bom do nosso António.
- Olhe, minha mãe, indo o pai armado, não tem dúvida . . .
- i a dizendo Emília, quando a velha, arregalando o s olhos, com
as faces acesas em ira e as palavras atropelando-se pela cólera, lhe
bradou num tom atroador:
- 01ie dizes tu, tola? . . . Tens medo que te bulam no macha­
caz, e por isso queres meter também o pai na alhada? Vai tu. Tu
28 V ASCO GRAÇA MOURA

não me fazes falta; ele sim. Qye me dizem à rapariga! Qyer que
lhe guardem o bonifrate! Qye se defenda ele. Já tem idade para
isso. E que me importa a mim o cão do António? . . . É o que fal­
tam são cães. E, demais, o cão não é nosso.
- Mas é como se o fora, porque é de António, e é muito seu
estimado - respondeu Emília com interesse.
- E que tenho eu que ele o estime, ou não? - continua a
velha, cada vez mais incendiada, e dispondo-se a arremeter para
Emília.
- O caso é outro - atalhou Jerónimo, metendo-se de per­
meio. - Agora não se trata de cães, nem meios cães; o caso
é mais sério. Trata-se de saber quem foi o melro que estava posto à
capa detrás dos choupos, e que depois se esgueirou lá para a que­
brada da serra. Não era para matar um cão que ele ali estava. Este
é que é o caso.
- É verdade; este é que é o caso - acudiu Emília, fazendo
coro com o pai.
- Será esse o caso, senhora espevitada; mas se o cão não es­
tivesse a farejar e a arranhar na porta, já não era nada disto - re­
torquiu a velha, que era uma espécie de deputado de oposição sis­
temática.
- Eles lá vêm! Eles lá vêm! - disseram os moços que ti­
nham ficado.
Efectivamente assim era.
António chegou, e os mais camponeses e criados que o ha­
viam seguido, todos cansados e esbaforidos.
- Então que era? - foi a pergunta que saiu da boca de
todos.
- O que era? . . . Era um homem - respondeu António com
ar taciturno -; mas agora quem! ... Aí é que está o busílis. Vão lá
perguntar-lho.
AS MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 29

- Vão lá perguntar-lho! ! . . . Ora essa! Pois não viram, indo-


-lhe quase na peugada?!. .. - exclamou Catarina pasmada.
- Qyal! - tornou António com um sorriso sardónico. -
Parece que ia montado no diabo! Pois Diamante galga terreno,
mas não foi para o seu dente podê-lo apanhar.
- E que direcção tomou? - pergunta o tio Jerónimo, toma­
do de pasmo.
- Atravessou as terras do moinho: galgou a lombada da ser­
ra, e depois meteu-se na vinha do André da Charneca. Daí por
diante ninguém mais lhe pôs a vista em cima.
Isto respondeu um camponês, porque António estava entre­
gue a cogitações profundas, como alheio do que se passava.
- Está bom; como não aconteceu desgraça, Deus louvado,
ainda o caso foi bem. Ora andem, agora vamos para dentro -
diz Catarina. - Parece que querem ficar aqui . . . Não pensem
mais nisso. Isso era algum larápio, ou, agora me lembra, talvez
fosse o abegão em que nos falou a Josefa da Horta; porque, bem
pensado, estarem-lhe aqui quase com as mãos em cima, e nin­
guém lhe poder ser bom, manda obra do demo. Eu te arrenego,
Satanás! - exclamou a velha fazendo o sinal da cruz. - Então
isto já é de mais: vamos para dentro, ou não? ... Parece que fica­
ram todos apegados ao chão.
E assim era. A estranheza da aventura tinha infundido o es­
panto em todos.
António, com os olhos pregados no chão, encostado ao vara­
pau, e verrumando a terra com ele, parecia entregue a um pensar
penoso; ou, para melhor dizer, lidava para combinar factos que
a memória lhe esquivava.
Um pressentimento indecifrável lhe escurecia as ideias, po­
voando-lhe de imagens tristes todo o seu imaginar. O apareci­
mento do estranho acordava-lhe pensamentos confusos, mas
30 V ASCO GRAÇA MOURA

através dos quais lhe parecia ver despontar lembranças, que bem
amargamente lhe haviam dilacerado a alma noutra época.
Emília chegara-se para ele, e mostrava que as mesmas sensa­
ções a atenuavam; estava triste e pensativa como ele.
O tio Jerónimo também cismava, mas o seu cismar era outro.
Reflexões nascidas das circunstâncias singulares do acontecimen­
to, e influídas pela superstição, feição proeminente do carácter
camponês, lhe faziam encarar o ocorrido pelo lado maravilhoso.
Um lobisomem não se atrevia a afirmar que fosse o desconheci­
do, porque a configuração era humana, e não assentava as quatro
patas no chão; mas coisa boa não a reputava ele de certo.
Assim estavam todos, quando um sonoro repique de sinos,
travando os ares e repercutindo-se em todos os montes e vales vi­
zinhos, acordou os ecos da serrania, e arrancou os vales desta es­
pécie de letargo.
- Ai! que já toca à missa, e nós aqui! - exclamou Catarina,
saltando como tocada da pilha voltaica.
- É verdade - dizem todos em chusma.
- Toca para a missa, rapaziada - bradou Jerónimo. -
Deixemos os maus pensamentos. Não nos lembremos mais disto.
O que for soará. Anda, António: pareces uma estátua.
- Eu cá não vou à missa - resmungou António.
n, ·;i1. . . . Tu nao vais a missa.;i . . . O ra essa tm
- '-.@e. . ha que ver. J'a
-
· ,
·

para a freguesia, meu pachola! - brada Catarina dando-lhe uma


palmada nas costas, capaz de fazer aluir uma torre. - Ora era o
que faltava, se tu não ias à missa do Galo! Vai-te daí, tolo, que
estás a parafusar? Pareces-me um piegas. Já a ninguém lembra tal
coisa, e ainda tu estás com os olhos cravados no chão, que pareces
um estafermo. Anda, vamos daí.
- Anda, António - disse Emília em tom meigo. - Então
não queres ir connosco à missa do Galo?
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 31

- Pois vamos lá - respondeu enfim ele, que a esta voz pa­


receu desagarrar-se do seu ruminar.
- Toca a aprontar tudo, rapazes, para irmos para a missa! -
grita o tio Jerónimo; o que foi respondido pela frase geral:
- Vamos para a missa.
Toda a família entrou para dentro da casa, e depois de alguns
momentos saíram todos, mas j á amantalhados e encapotados,
e tomaram o caminho da freguesia.
- Fecha bem a porta - disse Catarina a um dos moços que
dava volta à chave -, visto que temos quem nos ronde a casa.
O rancho alongou-se.
As vozes, em práticas folgazãs, por entre as quais surdiam as
gargalhadas esganiçadas e estridentes das raparigas, foram res­
soando ao longe por algum tempo, deixando de se distinguir,
e formando por último um alarido confuso, que se perdia ou
multiplicava à proporção das anfractuosidades da encosta que iam
correndo.
Em breve não se ouviu já senão o som surdo e compassado
dos tamancos dos moços nas calçadas das quelhas da aldeia: este
mesmo ruído extinguiu-se pouco a pouco; mas foi substituído
por outro, semelhante à restolhada que fazem as folhas secas pi­
sadas.
Eram passos de alguém que se aproximava cauteloso.
O vulto negro do embuçado apareceu de novo; mas desta vez
vinha da traseira da casa; e cosendo-se com a parede dela, tomou
também o caminho da freguesia, porém sempre esquivando-se,
retraindo-se ou cosendo-se com a sombra, até que desapareceu
de todo.
II

A missa do Galo

Oliem é aquela donzela, que, cantando, desce a montanha,


radiosa como o arco-íris quando coroa as colinas verdejantes de
Lena? Éa virgem, cuja voz inspira amor; é a formosa filha
de Toscar.

ÜSSIAN - Fingal - Canto IV

A missa do Galo é uma das boas instituições religiosas do cato­


licismo, bem como todas as instituições que são propriamente na­
cionais, e em que o povo pode tomar o seu quinhão de alegria, sem
sair do seu verdadeiro carácter. São estas festividades o relevo, ou es­
malte da monótona vida das classes laboriosas: é por elas que o
homem do povo mede os horizontes da sua existência, que marca
os capítulos de ventura da sua história íntima, os quais fuma e con­
sagra com as afeições sinceras da sua alma, tomando estas épocas
como balizas ou marcos miliários que avultam no caminho dos anos
decorridos ou por decorrer, fazendo-lhes anexar, aos já passados, a
lembrança penosa de suas afeições, ou das saudades que o coração
desflorara sobre a memória de um ente querido; aos futuros um de­
sejo de bem ou uma esperança que poucas vezes a sorte enflora.
Estas e outras festividades, umas originais da religião, outras
derivadas de usanças e tradições imemoriais, são as verdadeiras
flores do mundo ideal de qualquer povo; são as circunstâncias que
concorrem para lhe dar um carácter próprio, uma fisionomia par­
ticular, e um aspecto distinto; são as origens que lhe suscitam as
crenças, as usanças e tradições de que matiza, de que inspira e
anima o seu viver íntimo e as suas convicções morais e religiosas.
Delas nascem formosas lendas, em que a poesia da supersti­
ção popular engrandece o culto religioso, firmando-o com a fé,
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 33

na memória dos velhos, e com o mistério, na imaginação juvenil.


Os hábitos e crenças do povo recebem destes factos, consagrados
pela igreja, ou solenizados pela tradição, um distintivo, que im­
porta conservar e perpetuar, porque nisso é que residem as suas
feições nacionais.
A literatura, a verdadeira expressão da sociedade, na concisa
frase de Bonald, bebe nestas fontes as suas mais nativas e puras
inspirações.
A unidade e conservação do carácter moral de um povo sub­
sistem nas suas convicções religiosas e populares. Tirai a qualquer
nação as suas crenças e superstições, seus usos e costumes, e ve­
reis o que fica. Um conjunto de homens de um viver excêntrico,
positivo, e bisonho, sem mundo ideal, que brilhe e ria à fantasia,
sem perspectivas de atractivo encanto que inspirem a alma e a
convidem a largos voos por horizontes sem fim. Seria a aridez
moral, sem uma saudade, mas também sem uma esperança que,
vecejante e virente, reflorisse perpetuamente voltada para o futuro
de nossos desejos.
É por estas razões que, se despirdes os anos das suas galas
e louçanias, as épocas festivas; se arraigardes estas de suas práticas e
costumes; e se, enfim, lançardes tudo no olvido, e desprezardes
tais práticas e costumes, fica a existência social reduzida a uma
série de dias, insuportavelmente uniformes, insípidos, monóto­
nos, estirados, apenas preenchidos de fadigas e trabalhos, e dis­
tintos por um terramoto, por um aguaceiro ou por um eclipse.
Valternos agora à nossa aldeia.
O repique dos sinos, que fora como toque de rebate para a fa­
mília do bom do nosso tio Jerónimo, tivera a virtude da voz do
anjo, bradando das alturas aos adormecidos pastores de Belém:
Erguei-vos, que nasceu o Filho de Deus. Todas os habitantes da
aldeia se puseram em movimento. Por toda a parte começaram
34 V ASCO GRAÇA MOURA

a aparecer e desaparecer luzinhas, e o ruído de fechar e abrir portas


fez-se ouvir em todas as habitações. Em breve os aldeões, entre
risadas e folguedos, com a alegria e a esperança no íntimo, o sor­
riso nos lábios e o fervor no coração, se dirigiram à freguesia.
Pudéramos agora narrar mil episódios ocorridos, e peculiares
a estas tão almejadas noites de Natal: mas não o faremos. A dis­
crição cerra-nos a boca; e a pena, mais discreta que a própria dis­
crição, pára, recusando-se à tarefa de perscrutar amores, e analisar
muitas cenas de picante sainete cómico. Continue o mistério a
envolver todas essas anedotas, historietas e lances, em que todos,
mais ou menos, temos figurado de heróis. Calemos por interesse
próprio. Agora tomemos o fio da narração de mais alto, para boa
inteligência dela, começando por dizer quem era o tio Jerónimo,
e a sua família.
O nosso tio Jerónimo era o que se pode chamar um verdadei­
ro tipo dos nossos aldeões de província. Era um homem que ti­
nha o peito franco e a bolsa descerrada para todos; que só via ca­
ras e não corações; que acreditava nas palavras sem descortinar
interiores. Mas sentido com ele em não lhe pregar a primeira,
que então ia tudo em vaza-barris, e não lhe pregavam a segunda;
porque ainda que lhe fossem depois pregar evangelhos, era ma­
lhar em ferro frio, pois que ele seguia o adágio: cesteiro que faz
um cesto, faz um cento.
Na sua mocidade, o tio Jerónimo fora moleiro, porque a per­
da de seus pais, sendo ainda pequeno, o obrigou a tomar este
rumo: porém, pela morte do padrinho, que era o casal que ele no
presente possuía e com quem habitava, ficaram-lhe umas vinhas
e umas terras de pão, que se estendiam por toda a serra do lado,
que entestava o nascente. Já se vê que senhor de tão rica proprie­
dade, o nosso tio Jerónimo tratou de se estabelecer e de tomar es­
tado. Efectivamente fez-se lavrador, e chegou em pouco a ser
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 35

o mais abastado d o sítio. Olianto a estado, Jerónimo já andava de


amores, havia tempo, com Catarina, filha de um carpinteiro
de carros da aldeia; o que não era bem olhado pelo pai da moçoila,
que não queria que a sua Catarina casasse com um moço de mu­
las, como ele chamava a Jerónimo. Todavia tanto que este, por
morte do padrinho, tomou posse dos bens, o negócio mudou de
face, e o moço de mulas começou a ser tratado com urbanidade
pelo futuro sogro. Em fim, o casamento efectuou-se; e depois de
dois anos, o amor e esperanças dos dois esposos foram coroados
pelo nascimento de uma filha, a quem puseram o nome de Emí­
lia, por ser o da mãe de Catarina, sendo padrinho de baptismo
o cura da aldeia.
Emília logo desde criança foi o enlevo de seu pai; e conquan­
to sua mãe, na aparência, a tratasse de repelão, ela fazia o que
queria de Catarina; porque Catarina tinha o terrível defeito de
estar em oposição com todos; de pôr tudo a ferro e fogo em a fa­
zendo encanzinar; de não suportar contrariedade de espécie algu­
ma sem romper em berreiros atroadores, realçados por um ges­
ticular petulante e ameaçador; mas ao cabo de tudo, a pobre
mulher era uma pomba sem fel, e afadigava-se por fazer bem
a todos, não querendo mal a ninguém.
Os tempos correram, e Emília foi crescendo em gentileza
e formosura. Todos na aldeia simpatizavam com ela: os velhos
viam nela um anjo de paz; a indigência contemplava-a como
o seu esteio; e a juventude adorava-a vendo nela a sua esperança;
enfim chegou a tanto o entusiasmo dos mancebos aldeões, que
lhe puseram o nome de F1or da Serra.
Emília, porém, pagava com gratidão estas demonstrações ter­
nas, mas seu peito ainda não palpitava de amor.
Entre os mancebos da terra, que a requestavam, havia um
chamado Pedro, filho do cirurgião da aldeia, o qual mais se fazia
36 VASCO GRAÇA MOURA

notar pela insistência dos seus extremos e declarações; e que lhe


parecia impossível que a indiferença de Emília o compreendesse,
porque se julgava com direito ao seu amor em consequência de
ser filho de uma das notabilidades da terra.
Este Pedro era um rapaz de carácter impetuoso e vingativo;
de um temperamento ardente e irascível. Ele calava no fundo da
alma o desprew com que Emília o tratava; mas quem nele aten­
tasse perceberia, pelo torvo de seu aspecto e maneiras retraídas,
que naquele coração, a par de muito amor, existia outro senti­
mento, não menos forte, que não era a resignação; sentimento
que, à medida que seu amor lhe era repulsado pela indiferença
constante da filha de Jerónimo, recrescia e se ateava de dia para
dia. O peito de Pedro era comparável a um vulcão; aguardava só
pela boca predestinada para rebentar em explosão.
Um acontecimento veio livrar Emília deste amante, que ela
mais temia que prezava. A obrigação em que estava a aldeia de
dar um homem para o recrutamento, fez com que Pedro fosse
sorteado, e que nele caísse a sorte; sendo por conseguinte obriga­
do a ausentar-se da terra, e ir para o regimento que lhe foi des­
tinado.
Passados dois anos, apareceu de novo na aldeia, já feito se­
gundo-sargento; e sem consultar Emília, atreveu-se a pedi-la a
seus pais. Catarina, deslumbrada pelo posto do jovem militar, es­
teve quase tentada a dar o seu assentimento; mas Jerónimo quis
que sua filha fosse ouvida, visto que o negócio lhe dizia directa-
mente respeito; esta recusou imediatamente. O novo militar, res­
pirando mais raiva do que amor, despediu-se da família; e aper­
tando a mão de Emília, disse-lhe com um acento terrível estas
palavras, que sempre lhe ficaram gravadas na memória: Emília,
pensa bem quanto pode um amor desprezado; e fica certa que Pedro,
assim como te soube amar, também saberá vingar-se.
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 37

Assim iam a s coisas, quando aconteceu morrer u m irmão a


Jerónimo na província da Beira. Este irmão era um lavrador abas­
tado e solteiro, mas que tinha um rapaz em sua companhia, que
criara de pequeno, e a quem queria como a um filho. As más-lín­
guas asseveravam que ele verdadeiramente o era, o que nós não
sabemos ao certo; o que sabemos é que o bom velho o chamou
à hora da sua morte, e lhe disse:
- António - que assim se chamava o rapaz -, tanto que
eu feche os olhos, trata de pôr tudo que me pertence em arranjo;
e depois irás procurar meu irmão Jerónimo, que tu aqui já viste
por várias vezes, e lhe entregarás um maço de papéis, que está
dentro daquele bufete, e esta carta. Meu irmão é um homem
honrado; tu tens sido sempre bom rapaz: creio que não hás-de fi­
car mal com ele.
No dia seguinte o .bom do homem morreu; e António, depois
de chorar sinceramente a sua morte, fez as suas disposições, e
pôs-se a caminho para a aldeia do tio Jerónimo, ao qual se apre­
sentou. Este recebeu António como o seu bom natural lho pedia;
e tendo mutuamente lamentado, um a perda de um irmão, outro
a de um homem de quem recebera os extremos de pai, Jerónimo
leu a carta e os demais papéis, dizendo depois:
- É a ideia que ele sempre teve; ela não é má; o caso está
que não fique só em desejos!
- E porque há-de ficar só em desejos, tio Jerónimo? - per­
gunta António, sem saber de que se tratava -; se é uma ideia
boa, e é, de mais a mais, de seu irmão, que nos há-de empecer de
a levar avante?
- O tempo te dará a resposta, meu António -, volveu Jeró­
nimo. - Por enquanto contenta-te de saber que ficas na nossa
companhia, que não podes ficar melhor, porque neste particular
não hás-de sentir a falta de meu irmão.
38 VASCO GRAÇA MOURA

António, que efectivamente era um bom rapaz, esteve por


tudo; e em breve, por suas qualidades estimáveis, granjeou a esti­
ma de toda a família.
Todavia, António, decorrido tempo, principiou a andar de
modo preocupado e cabisbaixo. Todos o estranhavam; ele que era
tão jovial e folgazão; que sempre fora o primeiro nas danças da
aldeia, e o mais afamado improvisador ao desafio ! E para que lhe
havia de dar? Para andar desviado da mais gente, como ovelha
tresmalhada; ou para se ir assentar ao pé do poço que estava junto
do moinho do tio Jerónimo, e aí levar horas esquecidas a pensar,
de olhos fitos num rosal, para onde Emília, ao pôr-do-sol, costu­
mava ir refocilar da lida do dia.
Uma tarde, em que António estava no seu posto do costume,
mais embevecido do que nunca no seu cogitar profundo, foi des­
pertado de súbito por uma pequena pancada no ombro; virou-se,
e deu com Emília, que com um papel na mão, entre sorrindo-se,
lhe disse:
- Estás sempre tão pensativo, António. A modo que dantes
não eras tão triste. Isso são por certo saudades da tua terra, não é
assim?
- Saudades? - retorquiu António, olhando-a com prazer.
- De quem as hei-de eu ter, a não ser daquele que me tratou
sempre como pai?
- Não; essas saudades, que te trazem tão pesaroso, não são
de gente morta - tornou Emília com malignidade.
- Pois de outrem não as tenho - respondeu António com
decisão.
- Então é outro sentimento que te consome; porque, se fos­
se saudade de meu tio, devia diminuir com o tempo, que tudo
gasta, e não aumentar; salvo se cá em casa te quisessem mal; mas
tu és tão bem tratado como eu; não é assim?
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 39

- Oh! por certo.


- Então é outro motivo.
- E bem diverso.
- Bem diverso? . . . - replica Emília com curiosidade. -
Então porque te não abres connosco, António? Não seremos nós
capazes de te guardar um segredo, e de te minorar qualquer mal,
quando esteja em nossa mão?
António pareceu lutar consigo mesmo; entreabriu os lábios,
como para articular uma resposta, mas depois ficou silencioso.
Emília quase que entreviu o que nele se passava; e com um
tom meigo e gesto afável, lhe disse:
- Ora diz, António, diz o que tens.
- O que é, sabe-lo tu melhor que ninguém - disse ele por
fim, como arrancando a si uma confissão, que lhe enleava a alma.
- Eu?! - exclama a ingénua camponesa maravilhada. - Se
nunca ninguém mo disse; tu também nunca mo disseste, como
o hei-de eu saber?
- Diz-to a minha perturbação; dizem-to os meus olhos;
diz-to esse próprio papel, que tens na mão; e tenho-to eu dito
muitas vezes, por minhas maneiras e palavras; tu é que não me
queres entender - clamou António com energia, por fim, er­
guendo-se.
- Pois foste tu que escreveste este papel? - perguntou
Emília, sorrindo.
- Fui sim - respondeu o mancebo entusiasmado.
- E que diz ele - atalhou uma voz, dentre o arvoredo pró-
ximo, que se conheceu logo ser a do tio Jerónimo, o qual apare­
ceu de súbito entre os dois jovens camponeses, lançando mão do
papel, e lendo o que se segue:

De entre as rosas do rosal


É s Emília, a mais formosa;
40 VASCO GRAÇA MOURA

Respiras o seu perfume,


É s como elas viçosa.

�em dera poder colher-te


Já que meu peito ferido
De tua negra esquivança
A ti já está rendido.

- Cáspite! Mais claro só água - acrescentou Jerónimo, de­


pois de haver lido, olhando para os dois com uma expressão ga­
lhofeira. - Uma declaração de amor, e em verso magnífico! . . .
Então onde achaste tu este papel, Emília? - pergunta-lhe ele
com um sorriso sardónico.
António e Emília, conquanto soubessem que Jerónimo não
era pessoa capaz de supor mal deles, porque a fundo conhecia a
probidade de um e a virtude da outra, no primeiro instante fica­
ram estupefactos e corridos de se verem apanhados num lance in­
teiramente novo para eles.
- Então não me respondes, Emília? - repetiu o velho. -
Estás com os olhos cravados no chão, e vermelha como uma ro­
mã. Achar um papel não é crime. Em que lugar o achaste, diz?
- Naquele rosal, onde me costumo sentar às tardes - res­
pondeu por fim a bela camponesa, sem erguer a vista.
- E foste tu que o escreveste, António? - continuou Jeró­
mmo.
- Fui, tio Jerónimo - acudiu o mancebo com resolução.
O velho, a esta afirmativa, rompe numa gargalhada estrondosa;
os dois ficaram cheios de pasmo; mas ele os tirou deste embaraço,
falando assim a António:
- Não te disse eu, que a ideia de meu irmão havia de ser
o tempo que ta revelasse, hein?
- Assim é, tio Jerónimo - respondeu aquele, quase adivi­
nhando já.
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 41

- Pois aí está o tempo, que ta revelou. Meus filhos - conti­


nuou o bom do aldeão, estendendo-lhes a mão -, vocês estimam­
-se, e não hei-de ser eu, nem tão-pouco Catarina, que levemos
a mal isso. Meu irmão, que para ti foi pai - prosseguiu ele viran­
do-se para António que o ouvia absorto -, assim o desejava. Ele
não quis prejudicar a amizade, nem o parentesco; porque, fazen­
do-te seu herdeiro, era eu lesado; não dispondo as coisas a teu fa­
vor, mal terminava a sua amizade para contigo, pois te deixava ao
deus-dará: assim combinou tudo, desejando que vocês se unissem,
porque era a única maneira de tudo ficar em casa. Eu, porém,
é que não quis que isso se fizesse à virga-férrea; porque, ainda que
se diz, que o casamento e a mortalha no céu se talha, eu cá digo
que é uma coisa que deve ser muito da livre vontade de cada um;
e por isso quis espreitar primeiro a sua inclinação. Agora já sei
qual é. Confesso que fiz um papel avesso ao meu génio, e feio,
em estar à escuta por detrás daquelas árvores; mas como foi para
bom fim, não me arrependo. Ora, pois, meus filhos, alegrem-se
que brevemente serão um do outro.
Emília e António saltaram ao pescoço do velho aos abraços,
na maior efusão de ternura, a que ele correspondeu com afecto,
acabando assim este colóquio. Em seguida foram todos dali dar
parte do acontecido a Catarina, que, desta vez, não fez oposição.
Mas eis que os aldeões já vêm saindo da freguesia. Pois quê!
Acabaria já a missa do Galo? Parece impossível. Ou o cura a dis­
se muito depressa, ou nós nos demorámos excessivamente a es­
miuçar os particulares da família do nosso tio Jerónimo. Há-de
ser uma das coisas, porque efectivamente os camponeses já en­
chem as quelhas da aldeia, e clareiras da serra, em demanda de
suas casas, ledos e ansiosos por se irem lançar à consoada que os
aguarda.
III

A traição

Nós estávamos nessa noite assistindo à festa de Filgal. Os


ventos desenfreados faziam estalar os carvalhos. Ouvia-se gemer
o fantasma da montanha. Um turbilhão de vento atravessou
a sala e fez vibrar as cordas da minha harpa; ela soltou um som
lúgubre, como canto de funeral.

OssIAN - Darthula

Estamos numa vasta quadra, coberta de telha vã, a que o pai


de Emília tem concedido a honra cumulativa de sala, antessala,
câmara, casa de jantar e saleta de espera. A um lado vê-se uma
ampla lareira, com um bom fogo, onde arde, crepitando em esta­
lidos intermitentes, o cepo-do-natal
O cepo-do-natal é uma antiga e devota usança adoptada pelos
povos de algumas das nossas províncias: e não é só nossa, porque
Christien, no seu estudo crítico sobre os costumes dos caledó­
nios, diz que os antigos escoceses queimavam, em todas as suas
festas, um grande carvalho, a que chamavam o tronco-da-festa.
Em Portugal, esta usança pratica-se da maneira seguinte.
Pelas vésperas do Na tal, os lavradores abastados e devotos
mandam cortar do pinheiro mais virente e robusto, que avulta em
seus pinheirais, um tronco, que é solene e festivamente trazido à
sua morada, e depositado sobre a lareira. Na noite do Natal acen­
de-se e arde até pela manhã, guardando-se devotamente o que
escapa das chamas; pois, segundo crêem os bons camponeses,
tem o condão de afugentar os raios e preservar deles, e muitas
outras miríficas propriedades e virtudes, como a palma benta,
as campainhas de Roma e os círios das endoenças.
O cepo-do-natal, que ardia sobre a lareira do tio Jerónimo,
havia-o cortado António, na véspera, de um ingente e frondoso
AS MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 43

pinheiro, que altivo campeava na assomada da serra, à sombra do


qual muitas vezes o mesmo António se assentara com a sua que­
rida Emília. Tinha sido o confidente dos seus amores; era bem
que assistisse às suas bodas. A rapaziada da aldeia havia-o ajuda­
do a trazer ao casal, o que para ela fora grande folguedo; e a boa
tia Catarina já se achava abarbada de pedidos, feitos pelas aldeãs,
que queriam que o ramo milagroso se repartisse por elas, à laia de
santo-lenho, porque estavam quase certas de que o tronco miste­
rioso, que fora guarida de amores, sacrário de segredos de ternu­
ra, e agora cepo-do-natal, teria mais virtude ainda de atrair cora­
ções, do que de afugentar raios.
Mas ponhamos de banda os desejos femininos da aldeia,
e continuemos o esboço da casa do velho Jerónimo.
Em roda da lareira está o bom do velho, folgando em tecer
apoteoses aos passados tempos, com o cura da aldeia, ancião res­
peitável, querido de todos pelos dotes do seu carácter verdadeira­
mente apostólico, e o boticário da terra, a quem o dono da casa
havia convidado parafazerem a meia-noite com ele, como pessoas
muito da sua particular estima. Junto deles vê-se Diamante estira­
da, aquecendo-se ao calor da lareira, seguindo com os olhos os
menores gestos dos três; e ora espetando as orelhas, ora açoutan­
do as ancas com a cauda, resmoneia, olhando de lado o boticário,
criatura com quem embirra figadalmente. Do tecto pende um
lampião de ferro, projectando uma claridade vacilante e baça em
todo o recinto, que está apinhado de raparigas da aldeia, muito
guapas e garridas, com suas galas e donaires estreados de novo;
e da flor dos mancebos aldeões, amigos de António, com quem
travam práticas folgazãs, brincam, chacoteiam e riem, formando
diversos grupos, os quais, exagerados pelos lampejos intermiten­
tes da lareira, que, ora aclarando a casa toda, os diminui como
pigmeus, ora, quase extinguindo-se os aumenta, tomam formas
rasgadas, descomunais, grotescas e fantásticas.
44 V ASCO GRAÇA MOURA

A alegria transuda nos semblantes de todos; mas uma alegria


franca e sincera, sem retracção nem embaimentos. Cada boca
é um intérprete de alma; cada olhar um reflexo de sensações ín­
timas; cada palavra a manifestação singela de um pensamento
puro; e essas expressões, conquanto enérgicas, veementes e até
mesmo rudes, são, contudo, ingénuas e chãs, como a existência
simples e laboriosa daquelas pobres gentes. Pode-se dizer que a
cena que se passa em casa do tio Jerónimo é um verdadeiro epi­
sódio da folgazã e honrada vida campestre, com toda a sua apa­
rência tosca, simples, lhana, e primitiva, mas com o verdadeiro
fundo que distingue um entretenimento desta ordem - a since­
ridade, de um sarau hipócrita de gente palaciana. Enfim, é um
quadro como nunca o produzira o pincel flamengo nas suas ins­
pirações mais naturais e animadas da vida patriarcal dos campos.
Teniers enriquecera ali a fantasia de episódios, que só a existên­
cia, compreendida nos seus acidentes, pode revelar; e Hogarth
folgara de poder reproduzir com a mesma vida e colorido o con­
junto que lhe se oferecia à vista.
Este contentamento, porém, já de si tão buliçoso e expansivo,
era ainda mais atiçado pela substanciosa consoada, que fumegava
em cima de uma grande banca, a um canto da casa, para a qual
olhava de vez em quando, com vistas ávidas, o boticário, mais
forte na gastromania do que na farmácia, e que, ao cabo de longo
cogitar, tinha assentado de si para si que o primeiro e mais cabal
princípio higiénico era comer bem, e sobretudo à custa alheia.
Catarina, por seu lado, não cabia em si de contente; o que ela de­
monstrava pela maneira, nada equívoca, de variados e infindos
berreiros, dirigidos em todos os tons, desde o mais roufenho até
ao mais gritadeira e espevitado, contra os malaios dos criados,
que a faziam levar da breca por desazados e broncos. António, já
esquecido da aparição do desconhecido, estava também entregue
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 45

à geral folgança: só Emília lidava por simular semblante prazen­


teiro; mas conhecia-se que dentro a ralava pesar, que ela mal po­
dia reprimir. Emília efectivamente tinha saído mais satisfeita do
que viera da missa do Galo; e o motivo parecia ser um pequeno
bilhete, que ela já por mais vezes lera furtivamente à claridade da
lareira. Mas isto, na confusão, não era notado, nem até o seria
por António, a não sobrevir um acidente.
Mais por comprazer com as aldeãs, suas amigas, do que por
boa vontade, Emília entretinha-se a bailar com algumas delas: no
conflito do brinquedo saltou-lhe do seio o misterioso papel, que
tão preocupada a trazia: as camponesas julgando ser alguma carta
de António, lançaram-se sobre ele de roldão querendo-o tomar
nas mãos; porém Emília com presteza o apanhou; mas não tão
rápido, que não fosse vista por António, que, chegando-se a ela,
lhe disse:
- Parece-me que saíste mais alegre do que entraste. Terás
acaso algum feitiço que te dessem nesse papel?
- Feitiço?! Ora tens coisas, António! Isto é . . . é . . . - E Emí­
lia balbuciou algumas palavras, sem que atinasse com resposta. -
Olha, António - continuou ela, puxando-o de parte -: eu devo
estar certa de que confias no meu amor, não é assim?
- E quem o duvida? - acudiu António, agastado pela es­
tranheza da pergunta.
� Pois então asseguro-te que este papel em nada pode alte­
rar a nossa estima; mas peço-te só que o não queiras ver antes de
nos recebermos . . .
- Antes de nos recebermos! . . . E porque m o não deixas ver
hoje, agora mesmo? - porfiou António, levado da singularidade
da exigência.
- E dizes tu que não duvide eu de que me estimas?! Se as­
sim fosse, não teimarias em ver o papel. É que desconfias de mim
46 VASCO GRAÇA MOURA

- continuou Emília, tomando um ar pesaroso, e pregando os olhos


no chão.
- Não, minha Emília; não é desconfiança, é só curiosidade,
mas nem essa já tenho - acrescentou com ternura o camponês,
lançando-lhe um braço em torno da cintura -; já até nem quero
ver esse maldito papel que foi a causa de tu te agastares comigo.
- Agastar-me contigo? Estás a brincar - replicou-lhe Emí­
lia, dando-lhe a mão que apertou com afecto.
- Vamos para a mesa, rapazes - grita a velha Catarina,
com voz de estentor -: toca a consoar. Aqui não há guisados,
mas o que há é de boa vontade. Só padre-cura . . . Ó Jerónimo!,
conduz o só padre-cura.
Aos gritos de Catarina, Diamante empinou-se, e todos se di­
rigem para a mesa.
Jerónimo conduziu o cura e o boticário, os quais tomaram as­
sento; e os demais, a seu exemplo, fizeram o mesmo.
A mesa vergava com o peso de uma taleiga ingente, atolada
de chispes de porco e nabiças, que estavam que os anjos os po­
diam comer, segundo a frase da boa da dona da casa: ao lado
campeavam dois avultados canjirões de vinho da lavra do tio Je­
rónimo, que amiúde se foram despejando nos canecos parciais,
que giravam em contradança sucessiva pelas mãos dos convivas.
Uma ampla escudela, cheia de bolos de festa, completava a guar­
nição e atiçava os olhares do boticário, que já se fazia com terra
de engolir a sua meia dúzia, e sepultar outra meia nas amplas al­
gibeiras do sobretudo.
- Cá os bolos de festa são obra de Emília, padre-cura -
disse Jerónimo, oferecendo-os ao cura, e revendo-se na filha.
- Deus a abençoe, e faça tão feliz com António, como têm
sido seus pais, já que têm as boas qualidades deles - respondeu
o cura, afagando a jovem camponesa, que lhe retribuiu, beijan­
do-lhe a mão.
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 47

António, durante a ceia, não desfitara dela, mal podendo dei­


xar de lhe dar cuidado a sua visível tristeza. Emília bem o tinha
percebido, e por isso lutava consigo por aparentar de distraída e
satisfeita; mas debalde porque o pesar oculto, que lhe confrangia
o peito, transpirava manifestamente em seu semblante. António
conhecia a fundo a pureza daquela alma, e amava-a como se pode
amar uma mulher; todavia, não lhe querer ela mostrar aquele si­
nistro papel, estar triste e preocupada na véspera do seu noivado,
quando importava estar mais alegre do que nunca, era uma coisa
cuja explicação ele não achava, por mais que ruminasse: e ainda
estaria a pensar nisto, se não fosse um berro estrondoso da tia
Catarina, que se dirigia aos aldeões nestes termos:
- Então, rapazes, parece que estão mais para dormir do que
para comer. Fortes piscos, não bolem com os queixos senão para
dar à taramela. Eu bem sei o que vocês querem ... não estejam a
olhar para mim de boca aberta, que eu bem os entendo ... Aposto
que querem ir à brincadeira ?! Hein?
- É verdade, tia Catarina; queremos, queremos - prorom­
peram todos os aldeões, erguendo-se, como maioria de câmaras
legislativas ao aceno ministerial.
- Pois dancem e brinquem com a breca; mas olhem que eu
ainda quero um resto da noite para dormir, ouviram? - disse o
tio Jerónimo, erguendo-se da mesa, depois de ter dado graças,
e haver recebido a bênção, que o cura deitou a todos.
Os aldeões, acesos em alegria, saltaram para o meio da casa,
e dispuseram-se a formar danças buscando os seus pares válidos.
António travou do braço de Emília, dizendo-lhe:
- Isso é mentira.
- O quê, António?
- O que estás a pensar.
- Assim Deus o quisesse - exclamou ela, volvendo um
olhar a António, onde se pintava a angústia.
48 VASCO GRAÇA MOURA

- Mas que tens tu, Emília? Olha que me fazes cismar, ainda
que eu o não queira - replica-lhe o mancebo aflito.
- Pois não falemos mais nisto. Sabes que mais, vamos dan­
çar - diz ela desviando adrede o fio da conversa; e nisto lhe en­
fiou o braço, esforçando-se por se mostrar contente e incitando-o
a dançar.
António quase que compelido por Emília chegou-se com ela
para junto dos aldeões, que formavam rodas, ou coreias, bailando
em círculo, de mãos dadas, as quais soltavam, tomando o braço
aos pares, e andando assim em volta, quando em chusma respon­
diam, cantando, a quadra, que um, a solo, havia entoado.
À chegada dos noivos, uma aldeã mocetona, gentil e morena,
que tentara seus requebras a respeito do amante de Emília, rom­
peu nesta cantiga:

Janelas avarandadas
Longe deitam as biqueiras:
Não há vida mais feliz
�e a das moças solteiras.

Os camponeses andando em roda, responderam em chusma:

Ó giralda, giraldinha,
Toca, toca o giraldar,
Meia volta, uma volta
Outra volta eu quero dar.

A primeira quadra era uma luva lançada a terreiro: Emília logo


percebeu onde ia bater a pedrada, e por isso respondeu:

Ó que pinheiro tão alto,


Ó que pinhas tão doiradas;
As MAIS BELAS H ISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 49

Não há vida mais feliz


Qge a das moças casadas.

A resposta foi acolhida com aplausos; porque quase todos


percebiam a alusão; e António, que a percebia melhor do que
ninguém, olhando Emília, entoou a seguinte copla:

A laranja, quando nasce,


Logo nasce redondinha:
Também tu, quando nasceste,
Logo foi para ser minha. . .

Um uivo agudíssimo, lúgubre e prolongado, cortou a toada.


Fora Diamante que o soltara, erguendo-se de um salto de ao pé
da lareira, fitando a porta, com o pêlo hirto, os olhos em fogo,
e açoitando as espáduas com a cauda, como que preparando-se
a arremeter um inimigo invisível.
No mesmo instante uma voz rouca e cava, mais infernal do
que humana, entoou, da parte de fora da casa, esta quadra, que
parecia responder à de António:

O limão tira o fastio:


A laranja o bem-querer
Tira tu dela o sentido,
Qge tua não pode ser.

� Isto é demais! - brada António, aceso em cólera, arreme­


tendo ao canto da casa, onde estava o seu varapau.
- Jesus! Santo nome de Jesus - exclamaram as mulheres.
A porta foi aberta, e todos os homens, menos o cura e o boti­
cário, saíram armados do que acharam à mão. António os prece­
dia, levando-lhes grande dianteira; e Diamante, espumando de
sanha, pulava-lhes na frente.
Catarina, enfiada, agarrou-se ao cura gritando-lhe:
50 VASCO GRAÇA MOURA

- Em nome do bento Jesus, sô padre-cura; detenha o meu


Jerónimo - mas o cura, desembaraçando-se dela, correu para
Emília, que baqueava no chão, sem sentidos.
- Algum espírito para esta pequena cheirar - brada o boti­
cário, dirigindo-se às aldeãs, que aterradas cercavam Emília.
- Ai! a minha filha, que está morta! - exclamou a tia Cata­
rina, lançando-se sobre ela.
- Olhe que a sufoca, tia Catarina - diz-lhe o cura, sepa­
rando-as. - Está só desmaiada. O melhor é desapertá-la.
- Desapertem-lhe as roupinhas, que eu não sei de mim -
diz Catarina às raparigas, que esfregavam os pulsos e as fontes a
Emília com vinagre sete-ladrões, e lhe faziam respirar mostarda.
- 01ie papel é esse? - continuou ela, pegando no misterioso
bilhete, que saltara do seio de Emília ao desapertarem-na. - Ve­
ja lá, sô padre-cura, que eu disso nada entendo.
O cura tirou os óculos, e dispunha-se a lê-lo, quando um cla­
mor de vozes, vindo da parte de fora, distraiu a atenção a todos.
- 01ie desgraça! 01ie desgraça! - exclamou o tio Jerónimo
entrando, e atirando consigo para cima de um banco, e depois
desatando a chorar, como uma criança.
- 01ie foi? - pergunta Catarina, toda cheia de espanto -
01ie foi que aconteceu, Jerónimo?
- Assassinaram o nosso António!
Um grito de terror saiu da boca de todos.
- Assassinaram António?! . . . E quem foi o assassino?! . . . -
pergunta o cura, tomado da mais viva aflição - Onde está? Não
o prenderam?
- 01ial prender! Isso é bom de dizer - respondeu um dos
rapazes da aldeia. - Vá lá prendê-lo à corrente onde ele se atirou
da quebrada da serra.
- Mas como foi isso? - interroga o boticário.
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 51

- Ora como foi? - continua o mesmo rapaz. - António


saiu daqui, e adiantou-se de nós: lá em baixo ao voltar, quase ao
pé da encruzilhada, aí é que me parece que foi que o meliante o
assaltou, pois foi aí que o encontrámos estirado com a cabeça
aberta, e o corpo feito num crivo de facadas.
- Santo nome de Jesus! - gritaram todos.
- Qye fatalidade! - disse o cura, erguendo as mãos ao céu.
- E como souberam que o malfeitor se despenhou na corrente?
- continuou o cura.
- Porque Diamante se lançou a ele com unhas e dentes -
prosseguiu o aldeão. - Nós ainda o vimos, na subida da encosta
a lutar com o matador de António; mas não pudemos ser bons
para aquele patife; porque, assim que nos acercámos mais, vimos
cair o pobre do cão, e o homem a seguir para o lado da quebrada.
Diamante estava cosido a facadas. Nós, quando vimos tanta mal­
dade, seguimos todos aquela alma danada dispostos a arrancar­
-lhe as entranhas pela boca, ainda que fosse o demo em pessoa;
mas ele tirou-nos este trabalho; porque, ao chegar à quebrada,
lançou-se à corrente ...
Uma risada esganiçada, estridente, nervosa e aguda, inter­
rompeu o aldeão.
Era Emília que, tornando a si, entreouvira a narração da
morte de António; e que, desvairada pelos terríveis acontecimen­
tos daquela noite, soltara aquela gargalhada.
T.odos espavoridos e pasmados a rodearam.
- Foste tu! - clama ela, pálida, convulsa, e enviesando os
olhos. - Foste tu, malvado, que o mataste? E porquê?! ... Porque
sempre te tive ódio ... ódio! Sim, ódio, e muito ódio!. .. Meu cora-
ção já o adivinhava . . . Mas porque não avisei eu António?!. .. Tu já
me tinhas dito neste papel que o havias de matar. . . Oh! Neste
papel, que tu me entregaste, por entre o tumulto, ao sair da fre­
guesia! . . . E eu aceitei-o!. . . Julgando que era António, que me
52 VASCO GRAÇA MOURA

apertava a mão!. .. Mas ele ali está! ... Está ali a devorar-me com
os olhos! . . . - continuou ela com um tom de indizível raiva,
apontando para o velho Jerónimo, que a soluçar a olhava, debu­
lhado em lágrimas; depois contorcendo-se, como possessa de es­
pírito mau, caiu em novo desmaio.
- Minha filha! Minha querida filha! - clamou Catarina de
joelhos, junto dela.
- Mas que papel é esse, de que fala ela? - diz Jerónimo.
- Talvez seja o que o cura tem na mão, que foi achado no
seio de Emília - responde uma aldeã.
- Ai! Nem de tal me lembrava já - diz o cura. - Estou
como fora de mim. Vamos a ver se o papel explica alguma coisa.
- O cura leu o seguinte:
«Emília, pensa bem quanto pode um amor desprezado; efica certa
de que Pedro, assim como te soube amar, também saberá vingar-se.»
Eram as terríveis palavras que Pedro, o militar, proferiu ao
despedir-se de Emília, quando a fora pedir para esposa a seus
pais, e ela o recusara.
O seu infernal protesto de vingança fora cumprido.

Epílogo

Haviam decorrido dois anos, o aspecto da aldeia tinha muda­


do: era triste e árido. A família de Jerónimo, que fora o centro da
alegria, em torno da qual gravitavam os pobres camponeses, esta­
va curtida de pesares e angústias.
Era uma tarde ao pôr-do-sol: o tio Jerónimo, encanecido
e curvado, estava sentado à porta da sua habitação, olhando fito o
horizonte, onde ele contemplava o astro do dia findando a sua
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 53

carreira, como para ele já tinha findado a sua ventura. Era a ima­
gem da sua sorte! Duas lágrimas deslizavam pelas faces do pobre
velho.
Catarina, magra, dobrada, e como demente, rezava ao pé do
seu marido.
No meio da estrada, junto de uma encruzilhada, via-se uma
camponesa de poucos anos, sentadinha num valado, próximo de
uma cruz tosca de madeira, que se erguia de entre as piteiras.
Uma palidez mortal, como véu mortuário, cobria-lhe o rosto.
Seus olhos, posto que formosos, divagavam errantes e sem inten­
ção. Os olhos são os núncios da inteligência; neles não havia ex­
pressão, porque na mísera aldeã não havia entendimento. Era a
louca da aldeia; a mal-aventurada Emília; aquela que dantes fora
chamada Flor da Serra e o sítio onde ela estava, o lugar em que
tinham assassinado António, o esposo do seu coração.
Seis horas soaram no campanário da freguesia. O som triste
e pesado do sino pareceu arrancar dolorosas recordações à pobre
doida; levantou a cabeça e ergueu-se, olhou a aldeia, e depois to­
mou pela estrada, para o lado da freguesia, e desapareceu.
Deram sete horas, deram oito, e Emília ainda não aparecia
em casa; deram oito e meia; deram em fim nove, e ela sem apa­
recer.
- Vão-me procurar a minha filha! A minha querida Emília!
- gi:ita Jerónimo, cheio de inquietação.
- Ela aqui está - lhe respondem uns aldeões que traziam
Emília em braços, pálida e fria. - Foi encontrada no cemitério,
sobre uma sepultura semeada de flores.
Era a sepultura de António.
Emília tinha voado para ele.
A festa do Natal A festa das crianças
-

e a história de uma que se não divertiu


José Duarte &malho Ortigão

LISBOA PREPARA NESTE MOMENTO A FESTA DO NATAL.


Grandes rebanhos de perus, enrabeirados de lama, espalham
no macadame as suas manchas movediças e escuras, de reflexos
de aço, adornadas das florescências brancas e vermelhas dos
moncos. Pessoas idóneas pastoreiam esses galináceos guiando-os
a golpes de cana por entre as rodas dos trens e por entre as pernas
dos viandantes. Na compra destes perus convém escolher os mais
teimosos: à força de cana são esses os mais tenros.
Porcos gordos transitam igualmente pela via, mas em número
inferior ao dos perus, de rabo torcido em saca-rolhas, focinho
baixo, orelha caída sobre os olhos, meditabundos, resignados na
profunda convicção filosófica de que, ou seja para já, ou seja para
o Entrudo, o destino da espécie é acabar em postas, esfregadas
a alh<;>, acamadas na salgadeira.
Por isso, no caminho da vida, enquanto os outros se mexem
em destinos vários, os porcos preferem deitar-se na rua ao com­
prido.
Mais senhoras do que é costume ver em Lisboa fora da hora
das missas ao domingo percorrem as ruas, em compras, de loja
para loja, atravessando de um passeio para o outro, com embru­
lhos, levantando o vestido da lama, caminhando depressa para
56 V ASCO GRAÇA MOURA

evitar o encontro das carruagens, ao fundo das quais toilettes de


Inverno bem abotoadas e pequenos toques de castor ou de lontra
destacam entre cartões apertados com fitilhos de seda azul ou
cor-de-rosa.
Pela manhã os cangalheiros trazem mais pejados os seus ca­
bazes suspensos no ombro aos dois extremos de uma vara, ou os
caixões das suas garranas peludas e escadeiradas, de cujas cargas
os ramos festivos das violetas, envoltos de couve e atados em pa­
lha, sobressaem das mãos de nabos, dos molhos das cenouras cor
de ouro, das verduras de salada, das espumas da couve-flor e dos
feixes das beterrabas escuras arranhadas em laivos de um verme­
lho de sangue vivo.
Galegos transportam casais de perus ou de patos, caixotes de
vinho, ou cestos etiquetados do caminho-de-ferro, cobertos de
uma capa de pano cosido e sobrescritado, contendo os presentes
da província, em ovos, em caça, em capões e em pão-podre.
As confeitarias exibem toda a sua colecção completa de doces
de ovos: as queijadas, os morgados, os fartos e as lampreias espa­
padas, de grandes olhos de ginja e de línguas de cidrão saindo
para fora de bocas de caramelo e de chocolate. Torrentes de ovos
de fio brotam de rochedos de nogada, cobertos de chalets de mas­
sa, sobre tanques de torrão-de-alicante, em que se abeberaram
pombas de rebuçado e boizinhos de pão-de-ló com chavelhos de
açúcar e entranhas de creme.
Nas grandes mercearias galos de figo, malhados de amêndoa,
estendem o seu bico discreto, de pinhão, para os bambolins de
chouriços de Arraiolos enastrados de louro. Bocetas abertas pa­
tenteiam através da trabalhosa renda de papel os discos compac­
tos da laranja recheada de Setúbal e da ameixa de Elvas coberta
de açúcar e marchetada de estrelas de fio de prata. Novas bola­
chas denominadas António Maria representam em massa de bis­
coito de água e sal as cabeças de todos os personagens célebres da
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 57

política contemporânea. Caixas de figos do Algarve, bordadas


a pita, barrilinhos de azeitonas de Sevilha e latas esmaltadas de
sardinhas de Nantes, de corned-beef americano, de atum de Mar­
selha e de faie gras de Estrasburgo, preenchem o quadro no
primeiro plano das montras. Na prateleira de cima cintilam na
transparência da luz os potes das geleias e das conservas de legu­
mes, os boiões das compotas, os frascos e as garrafas brancas, ver­
des, azuis, amarelas, dos diferentes xaropes e dos vários licores
eclesiásticos da Cartuxa, do padre Kermann, dos Beneditinos,
etc., e nos bojos reluzentes das vasilhas graves etiquetas sacerdo­
tais retratam velhos monges de grandes barbas meditando no
meio de retortas, de livros e de caveiras, sobre os seus fundos de
aguardente de todas as cores. Ao lado dos rótulos ascetas das be­
bidas espirituosas, os rótulos profanos dos molhos ingleses, em
que gordos nebabos cor de fogo riem nos seus bigodes brancos
a grandes peixes hidrópicos de tempero picante. Dentro das ten­
das, no chão, nos lotes em evidência, ao balcão, as grandes peças
sem aparato pitoresco: as mós sobrepostas dos queijos de Gruyere,
os bolos chatos do Brie, os pequenos cilindros de Bondou, os
Neuchâtel, os Camembert, os Roquefart, os Flamengos, os da Serra,
os do Rabaçal,· as caixas das uvas passas de Alicante; as barricas
dos arenques, da julienne e da choucroute; as línguas secas; os pre­
suntos de Iorque; os cestos do champanhe; as bilhas de mel, e os
mont?es das batatas, dos ovos e das ostras de Montijo.
Nas vitrinas das salsicharias o chouriço de sangue enrola-se
em círculos sobrepostos como as roscas da serpentina num alam­
bique de ébano. Entre as formas marmoreadas da cabeça de por­
co com geleia e os pãezinhos de manteiga fresca, ostentam-se os
fiambres de empunhadura de papel com topes recortados, as ga­
lantinas cercadas de verdura, e as pirâmides louras dos chispes
panados, dos pesunhos de recheios, dos cervelas e das linguiças.
58 VASCO GRAÇA MOURA

Os restaurantes empilham em exposição as perdizes, as gali­


nholas, os patos-bravos, os pastelões de presunto e vitela, os tim­
bales de frango misturados de champignons e de rabiolos, e os
ventres lourejantes e amanteigados dos perus embutidos de tru­
fas, no meio dos gargalos de prata do champanhe e das garrafas
pretas do Borgonha lacradas de verde.
As padarias francesas exibem provisões extraordinárias de
brioches e de pain d'épices.
As padarias inglesas instalam a grande exposição especial dos
christmas-cakes, dos mince-pies, dos plum-puddings e de tudo mais
quanto o estômago inglês precisa far keeping a meny Christmas.
Na Praça da Figueira, num movimento extraordinário de
apetites em circulação, grunhem os leitões, cacarejam os galos e
berram alvoroçados os marrecos e as galinhas, erguidos pelas asas
e arrepiados nas penas do peito pelo sopro dos compradores.
A caça pende em bambolins ao longo das barracas, e enquanto
coelhos mansos, suspensos pelas pernas, expiram fulminados com
a pancada seca dada com a mão de trave sobre as orelhas, cordei­
ros e cabritos esfolados enxugam ao ar, abertos de cima a baixo,
com um caniço em cruz metido no ventre. Na zona dos legumes,
por baixo dos enormes chapéus-de-sol de lona branca, as hortali­
ceiras de brincos de festa nas orelhas e de lenços novos meneiam­
-se com ligeireza por detrás das suas bancas de pinho, oferecendo
a fazenda, discutindo, barafustando, fazendo trocos, no meio do
círculo fechado dos moços de compras que regateiam com o di­
nheiro nos dedos e o cabaz no braço.
Nas lojas de quinquilharias estão armadas as árvores do Na­
tal, e além dos bonitos, pendentes do pinheiro, vê-se em expo­
sição toda uma infinidade dos brinquedos modernos: os quadros
e os pequenos teatrinhos mecânicos em que há orquestras de
macacos, bailados de dançarinas, jogos de acrobatas e de presti­
digitadores e verdadeiras representações de pequenas comédias:
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTIJGUESAS DE NATAL 59

- a castelã que abre o balcão ao ouvir o pajem que atravessa numa


gôndola tocando um bandolim; o Fígaro sevilhano, que trepa
com a guitarra aos telhados, onde trapeiras se abrem, raparigas de
olhos pretos envoltas em mantilhas fazem sinais, até que um
D. Bártolo de barrete de dormir e de robe-de-chambre de rama­
gens rebenta a um postigo, as gelosias fecham-se, o guitarrista
desaparece, e dois gatos pretos atravessam a cena fugindo pelo te­
lhado. A secção das bonecas é porém a mais interessante porque
não há criança . . . quase dizia: não há mulher, que estas colecções
não deslumbrem. A antiga boneca de pau com engonços, que se
trazia para casa embrulhada num papel e que se vestia com uma
sobra de fazenda qualquer, deixou de existir como brinquedo de
meninas de boa sociedade.
As bonecas hoje têm as suas casas, os seus pequenos móveis
de sândalo ou de pau-rosa, uma cama imperial coberta por um
cortinado de cetim azul, um salão, uma casa de jantar e um gabi­
netinho de toilette com todos os seus acessórios microscópicos,
escovas, esponjas, pentes, sabões, potes de cosmético e frascos de
perfumaria. Os armários e as cómodas são verdadeiras cómodas
e verdadeiros armários, com o enxoval completo, com a toilette da
boneca: as meias de seda, as luvas, as rendas, as botinas de passeio
e os sapatos de baile, camisas de batiste bordadas para de dia, ca­
misas de faulard para dormir, segundo o corte inventado por
Grévin; uma ou duas dúzias de vestidos todos de cetim ou de ve­
ludo> guarnecidos de malines ou de point-d'Alençon, decotados ou
subidos, com os seus paletots ou os seus manteletes respectivos, os
chapéus a dizerem, os leques, as sombrinhas e os monchons Oh!
. . .

quanto estamos longe da boneca de que fala Michelet e que as


crianças faziam antigamente ajudadas por suas mães, com um ta­
pulho de pano branco em que se punham dois olhos de contas
azuis, a que se bordava uma boca com linha vermelha de marca,
e a que se cosia uma cabeleira de retrós!
60 VASCO GRAÇA MOURA

A boneca antiga era uma escola de pequenas mães; a de hoje


é um manual de pequenas cocottes. Com a boneca aprendia-se en­
tão a vestir e a embalar os filhos; com a boneca aprende-se hoje
a arruinar os maridos. Os lindos anjinhos de narizinhos cor-de­
-rosa e de moita de cabelo louro frisado na testa, vestidos à inglesa
com as suas túnicas estreitas e curtas, em largos machos de flanela
ou de cheviote, que eu andei a ver esta manhã por casa do Seixas,
por casa de Elie Bénard, no Centro Comercial e no Armazém de
Berlim, em bicos de pés aos mostradores, apontando com os seus
dedinhos papudos para os bonitos em exposição, parecem-me
bastante espertos para aprenderem depressa estas lições de coisas
únicas que por enquanto ministra à infância a pedagogia portu­
guesa. Amiguinhas queridas! eu vos abençoo do fundo da minha
alma e só uma coisa vos peço: piedadezita quando fordes cresci­
das para os meus netos, se eles chegarem a grandes!
O Diário de Notícias, que é o grande espelho da vida burguesa
em Lisboa, traz hoje cerca de oitenta anúncios de brindes para o
Natal. Há-os nesta colecção de todas as espécies: jóias, bonecos,
livros, cromolitografias inglesas, flores, perfumarias, faianças,
charutos da Havana, etc. Mas o que predomina é a comida. To­
das as especialidades culinárias se anunciam em grandes doses:
os paios de Castelo de Vide, os presuntos de Melgaço, os vinhos
da Fuseta e de Borba, as arrufadas de Coimbra, os biscoitos de
Oeiras, as queijadas de Sintra, a marmelada de Odivelas, os mexi­
lhões de Aveiro, as frutas secas de Elvas e de Setúbal, o pão-de-ló
de Margaride, o maçapão da Espanha, o caviar da Rússia, a mor­
tadela da Itália, as pralines e os marrons glacés de Paris, o salmão
da Escócia, a choucroute da Alemanha, as enchovas da Suécia,
o curaçau e os arenques da Holanda. Dir-se-ia que uma indiges­
tão nacional se prepara e que o estômago de Lisboa vai rebentar
de fartura amanhã.
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 61

Do meio da grande orquestração pantagruélica dos anúncios


gastronómicos do Diário de Notícias destacam-se todavia, como
notas agudas de pífanos desafinados, vozes soluçantes de uma
meia dúzia de anunciantes, aos quais parece faltar um pouco o
apetite. Um deles, por exemplo, exprime-se aos seguintes termos:
«Dolorosa recordação! Foi no dia de hoje que a fouce implacável
da morte cortou os dias a Maria José . . . É triste e horrível... A re­
ligião cristã tem para estes transes aflitivos a resignação. Oremos
por ela!» Armado da competente resignação que o cristianismo
lhe ministra é ainda possível que esse anónimo, depois de se ha­
ver lançado no seio da prece, acabe por se lançar ao do peru.
Parece-me mais crítica a situação de um outro que logo abai­
xo, na mesma coluna, declara que está doente, que tem quatro
filhos e que carece de um bocado de pão para os alimentar. Este
dá o nome e a morada.
Duas colunas adiante figuram os casos de uma mulher tísica
em último grau; o de um homem com uma lesão de coração, pa­
ralítico e hidrópico, e o de um rapaz aleijado coberto de escrófu­
las abertas. Nenhum deles tem que comer. Pedem-se esmolas.
Mas é-lhes dada ao menos essa esperança e esse desafogo: anun­
ciam-se.
Não, decididamente, os mais lastimáveis de todos os infelizes
são os pequenos pobres que têm ainda um resto de saúde onde
levar pancada e não têm jornal a que enxugar as lágrimas a vin­
tém por linha.
Ainda esta manhã eu encontrei uma dessas crianças de quem
preciso falar-lhes. Vou queixar-me por ela.
Vi-a na Rua Formosa às três horas da tarde. Era uma rapariga
de nove a dez anos, magra, pálida, boca murcha, um vestidinho
de alpaca preta, muito justo, curto de mais, descobrindo quase até
ao joelho umas pernas delgadas, sem feitio como dois cabos de
62 VASCO GRAÇA MOURA

vassoura enfiados numas meias de algodão branco em pregas


e nos cabos de umas botinas velhas e tristes, de couro sem graxa.
O cabelo, seco e baço, arrepiado e penteado para dentro de um
pequeno chapéu desbotado, seguro por um elástico à cabeça em
que não servia. Suspensa da mão, uma trouxinha segura pelas
pontas de um lenço, apertadas em nó. Ao lado caminhava com
ela, balançando-se compassadamente para a direita e para a es­
querda, uma mulher de quarenta anos, feia e presumida com pó­
-de-arroz na cara, um chapéu em forma de boné de prato, de ve­
ludilho , com pluma, um vestido de guarnições avivadas de
magenta, e uma franja de cabelos torcidos a ferro, duros como
aparas de pau-preto, caindo na testa.
Precisamente no momento em que eu me aproximava do pa­
cote que a rapariga trazia na mão, este caiu na calçada com um
estrépito semelhante ao de um grande ovo de louça esborrachado
no chão. As duas pararam.
A rapariga, com os pulsos descarnados sobressaindo muito
das mangas, as mãos, vermelhas do frio, apertadas uma na outra,
junto do queixo trémulo, os cotovelos muito cingidos ao corpo,
olhou para a mulher com a expressão angustiada de uma catás­
trofe suprema . . . A tragédia com dez anos de idade!
A mulher tirou uma das mãos de dentro do regalo de pele cor
de castanha, forrado de seda encarnada, olhou para mim, procu­
rou reprimir-se, e com os dedos cerrados:
- Em casa, minha menina! Em casa, falaremos!
- Juro que não foi por querer. . . Não foi por querer! . . . - dis-
se a rapariga, trémula e convicta.
- Cale a boca, ou rebento-a aqui mesmo . . . sua besta!
E as odiosas farripas da grande tremiam-lhe de cólera sobre
o osso da testa.
Eu tinha continuado o meu caminho para o Calhariz; elas
iam na direcção oposta, para o lado da Patriarcal. A fisionomia
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTLGUESAS DE NATAL 63

desgraçada e lacrimosa daquela pobre pequena começou a ator­


mentar-me, como o remorso de um crime em que eu era cúmpli­
ce. Voltei para trás, pensando em pedir compaixão à mulher das
farripas. E a lembrança dessa criatura detestável, tão reles, tão
chinfrim, de uma expressão tão implacável no seu ódio, enchia­
-me de um rancor enorme por ela, de uma piedade profunda pela
rapariga. Convencê-la-ei de que lhe não toque - pensava eu.
E coordenava palavras de brandura para lhe dirigir, não me ocor­
rendo todavia senão um único movimento oratório, demosténico
talvez de mais: - o de a elevar à compreensão da justiça suspen­
dendo-a pelas orelhas, que eu me lembrava de ter visto destaca­
das de cada lado das farripas por debaixo do boné de veludilho
posto à banda.
Corri toda a rua. A mulher e a rapariga tinham desaparecido.
Procurei informar-me. Um aguadeiro tinha-as visto passar um
momento antes à esquina da Rua do Arco. Não pude saber para
onde tinham ido.
À hora a que lhes escrevo, aquela rapariga magra, de beiços
descorados, de pernas esqueléticas, metendo os pés um pouco
para dentro, tirou o chapéu, tirou o xalinho em que ia embrulha­
da, levou talvez já uma dúzia de palmatoadas em cada uma das
suas mãos com frieiras, e ainda há-de levar mais com uma escova
pelos braços, pelas costas e pela cabeça, se for tão bruta que con­
tinue a dizer que não foi por querer que deixou cair o embrulho,
º
escacando tudo o que ia dentro, na Rua Formosa.
Resigna-te, pobre mártir! Tu és a ave triste que nasceu no
ruim ninho. Como tu, há centenas de crianças que passarão a
chorar, fechadas em casa, o dia de hoje, em que uma larga vibra­
ção de festa e de banquete palpita no ar, envolta com a alegria do
sol, impregnada no perfume das violetas e dos jasmins em corbeil­
le nas casas de jantar. Tu és a filha legítima desta mãe descarada
64 V ASCO GRAÇA MOURA

e estúpida que se chama Lisboa, e que nunca jamais, nem uma só


vez na sua vida, pensou por um momento sequer em dar uma
pouca de alegria às suas crianças.
Todas as grandes cidades da Europa, Paris, Londres, Viena,
Berlim, Bruxelas, estão cheias de divertimentos públicos infantis.
Lisboa não tem um único desses espectáculos em que o público
aprenda a respeitar os direitos da infância à participação dos pra­
zeres do povo.
A Árvore do Natal, recentemente importada dos costumes es­
trangeiros, é uma especulação do comércio; não é ainda um uso
da família.
Nos países do Norte, nas pequenas nações amoráveis, como
a Holanda e a Bélgica, as festas das crianças, em que as pessoas
adultas se lhes sacrificam inteiramente, repetem-se várias vezes
no ano.
Nada mais comovente nem mais poético do que a festa da
Páscoa na Holanda, em que toda a gente troca entre si o bolo
pascal, enquanto os velhos com os seus netos pela mão, de manhã
cedo, procuram nos jardins, por entre os jacintos, os alecrins e as
túlipas, os ovos cozidos, cobertos de desenhos que a lebre da len­
da deveria ter vindo pôr durante a noite nos canteiros floridos
e orvalhados!
Além da Páscoa e do Natal, há ainda, a de 6 de Dezembro,
a festa de S. Nicolau, o grande e simpático padroeiro dos meninos.
No dia 5, todas as crianças escrevem ao santo pedidos de
brinquedos, nessas belas cartas de letra bastarda, em que os signa­
tários empregam toda a força e toda a tinta de que podem dispor.
Esta correspondência, metida dentro dos sapatos dos suplicantes,
é colocada na chaminé, onde o santo deve vir lê-la e despachá-la
durante a noite. Na madrugada do dia 6, os peticionários vão em
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 65

camisa visitar a chaminé, onde se acham os bonecos enviados pelo


santo, juntamente com as suas cartas de resposta, algumas verbe­
rantes e terríveis, quase de descompostura, aos pequenos maus,
prometendo-lhes açoites em vez de brinquedos, para o São Nico­
lau seguinte, se eles até lá não reformarem a sua conduta de pro­
cedimento, no sentido das prescrições que de viva voz lhes serão
feitas pela mamã.
Em algumas famílias São Nicolau vem pessoalmente respon­
der aos meninos, e para essa solenidade se convidam as crianças
de todos os parentes e de todos os amigos a comparecer numa
reunião magna.
O santo vem de noite, e a sala da casa em que ele resolve dar
audiência distingue-se das outras pela profusão de luzes acesas
por sua ordem. A de ordinário a casa de jantar, onde as crianças
esperam.
As coisas estão devidamente preparadas no bastidor para esse
grande espectáculo. Um papá de boa vontade encarrega-se do pa­
pel do santo, e veste-se e caracteriza-se condignamente para esse
fim com umas grandes barbas brancas, os indispensáveis óculos,
a respectiva mitra, a grande capa rica feita de uma colcha ornada
de belas estrelas de papel dourado, e o báculo do pau da vassoura
todo coberto de topes e de laços de fita. Um tio faz de Hauscrouff,
o fiel criado do santo, incumbido de trazer o grande cesto das dá­
divas. Um outro parente faz de burro, porque em todas as lendas
dos bjspos santos na Flandres e na Holanda há sempre um ju­
mento obrigatório e complementar.
A chegada do santo é anunciada da escada pelo ornejar do
burro, a pedir vinho quente com açúcar e canela, no patamar.
Depois ouve-se o bater do báculo nos degraus e no corredor,
até que o santo, seguido de Hauscrouff, aparece imponente e ma­
jestático. As crianças escutam-no, e ele, apoiado ao báculo, com
uma das mãos estendida, bota fala.
66 VASCO GRAÇA MOURA

Esse discurso é uma espécie de revista dos sucessos infantis


do ano, em que os espectadores vêem passar sucessivamente a re­
lação dos seus feitos vários, acompanhados dos respectivos co­
mentários, nos quais o santo se permite jogar algumas biscas a
determinados membros da assembleia. Depois do que, se passa
à distribuição dos brinquedos, debaixo de uma grande chuva de
rebuçados e de pastilhas.
Terminada a cerimónia, São Nicolau usa pela última vez da
palavra, dirigindo-se ao auditório, pouco mais ou menos pelos se­
guintes termos:
«Minhas pequenas senhoras! Meus pequenos senhores! Têm
encarecido muito as coisas no Paraíso durante os últimos anos.
Os géneros de primeira necessidade estão pela hora da morte.
O preço do maná tem dobrado pés com cabeça. As rendas de
casa das estrelas têm subido muito, e ainda o outro dia, conversan­
do sobre este assunto com o meu compadre e amigo São Pedro,
porteiro, ele me contava que se não tem hoje uma pequena água­
-furtada senão pelo dobro do preço por que antigamente se alu­
gava um bom primeiro andar na Via Láctea. A mão-de-obra das
asas dos serafins tem encarecido na mesma proporção, e há san­
tas, boas menageres, que têm despedido muitos querubins das suas
peanhas por não os poderem sustentar, ficando apenas com um
anj o para todo o serviço ou tomando um querubim a dias .
O Mafarrico, com quem me encontrei há dias numa excursão de
recreio, referiu-me que as coisas não corriam melhor no Averno.
Têm ali afluído nos últimos anos muitos banhistas de enxofre.
O número das almas em tratamento sulfüreo é enorme, gasta-se
imenso combustível, o que tem feito encarecer tudo. Acrescentou
o Mafarrico que só na verba cabeleireiro gastava ele hoje dez ve­
zes o que gastava dantes para lhe pentearem o rabo e para lhe fri­
sarem os chavelhos, aos sábados. De modo que, meus pequenos
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 67

senhores e minhas pequenas senhoras, não é só neste mundo que


é preciso economia; ela é indispensável em toda parte. Para o fim
de responder liberalmente às cartas que vós ontem me dirigistes,
e que eu oportunamente mandei buscar aos vossos sapatos pelo
meu escudeiro Hauscrouff, que ora vedes presente neste recinto,
eu gastei todos os meus bens da mitra, e ainda está uma boneca
- essa, maior - que ficou na conta para ser paga em prestações
ao mês. De forma que, enquanto vós ides brincar alegres e satis­
feitos com os bonitos que vos trouxe, uma grande infinidade de
meninos se acham por esse mundo a chorar por não terem brin­
quedos nenhuns . Peço-vos pois que, para fazer deste dia dos
meus anos um dia de alegria completa e geral, me deis todos os
vossos bonitos velhos, a fim de que eu presenteie com eles as
criancinhas menos felizes, que não podem ter como vós bonitos
novos. Hauscrouffl Aproximai o cesto!»
E as crianças, orgulhosas e satisfeitas em poderem retribuir
favor por favor as bondades de São Nicolau, metem no grande
cesto do escudeiro Hauscrouff todos os brinquedos antigos que se
podem encontrar.
Uma grande comissão de mamãs é incumbida, nos dias
seguintes, de distribuir equitativamente esses presentes por todos
os pequeninos pobres, que São Nicolau não visitou, pela razão
de não haver em casa deles bastantes velas para acender a um
tão ilustre pontífice.
Ora, eu não sou tão excessivamente exigente que pretenda
que se invente um São Nicolau e um escudeiro Hauscrouff nas
sociedades em que eles não existem. Mas, que diabo! - se não
há por toda a parte um bom velho bispo, carinhoso e amável, que
vem de noite, sob as geadas de Dezembro, pôr bonecos e beijos
sobre os adoráveis sapatinhos papudos que as crianças foram de
véspera, com os pés nus colocar ao pé da borralheira; se não há
68 VASCO GRAÇA MOURA

por toda a parte um escudeiro fiel, que siga o bispo, carregado


com um giga e com um alforje de dádivas: - há em toda a parte,
pelo menos, um asno guloso de vinho quente com mel, que orne­
je nos patamares das casas, e há senhoras caridosas que poderiam,
uma vez por ano pelo menos, fazer uma festa geral de bolos e de
bonecos aos miseráveis pequeninos tristes que choram no dia
de Natal.
Pois bem! É a essas, senhoras, e é a esse asno - todos bene­
méritos - que eu recomendo as duas criaturas que encontrei
hoje pela manhã na Rua Formosa: às senhoras, a mais pequena,
para que a consolem, para que a livrem de levar mais pancadas, e
para que lhe dêem uma caixa de bonitos; ao asno, a maior - para
que lhe zurre às orelhas, e lhe dê coices.
O suave milagre
José Maria de Eça de Queirós

NESSE TEMPO JESUS AINDA SE NÃO AFASTARA DA GALILEIA


e das doces, luminosas margens do lago de Tiberíade: - mas a
nova dos seus milagres penetrara já até Enganim, cidade rica,
de muralhas fortes, entre olivais e vinhedos, no país de Issacar.
Uma tarde um homem de olhos ardentes e deslumbrados
passou no fresco vale, e anunciou que um novo profeta, um rabi
formoso, percorria os campos e as aldeias da Galileia, predizendo
a chegada do Reino de Deus, curando todos os males humanos.
E, enquanto descansava, sentado à beira da Fonte dos Vergéis,
contou ainda que esse rabi, na estrada de Magdala, sarara da le­
pra o servo de um decurião romano, só com estender sobre ele
a sombra das suas mãos; e que noutra manhã, atravessando numa
barca para a terra dos Gerasenos, onde começava a colheita do
bálsamo, ressuscitara a filha de Jairo, homem considerável e dou­
to que comentava os livros na sinagoga. E como em redor,
assombrados, seareiros, pastores, e as mulheres trigueiras com
a bilha no ombro, lhe perguntassem se esse era, em verdade, o
Messias da Judeia, e se diante dele refulgia a espada de fogo, e se
o ladeavam, caminhando como as sombras de duas torres, as
sombras de Gog e de Magog - o homem, sem mesmo beber
daquela água tão fria de que bebera Josué, apanhou o cajado,
70 VASCO GRAÇA MOURA

sacudiu os cabelos, e meteu pensativamente por sob o aqueduto,


logo sumido na espessura das amendoeiras em flor. Mas uma es­
perança, deliciosa como o orvalho nos meses em que canta a ci­
garra, refrescou as almas simples: logo, por toda a campina que
verdeja até Áscalon, o arado pareceu mais brando de enterrar,
mais leve de mover a pedra do lagar: as crianças, colhendo ramos
de anémonas, espreitavam pelos caminhos se além da esquina do
muro, ou de sob o sicómoro, não surgiria uma claridade, e nos
bancos de pedra, às portas da cidade, os velhos, correndo os de­
dos pelos fios das barbas, já não desenrolavam, com tão sapiente
certeza, os ditames antigos.
Ora então vivia em Enganim um velho, por nome Obed,
de uma família pontifical de Samaria, que sacrificara nas aras
do monte Ebal, senhor de fartos rebanhos e de fartas vinhas e com
o coração tão cheio de orgulho como seu celeiro de trigo. Mas um
vento árido e abrasado, esse vento de desolação que ao mando do
Senhor sopra das torvas terras de Assur, matara as reses mais gor­
das das suas manadas, e pelas encostas onde as suas vinhas se en­
roscavam ao olmo, e se estiravam na latada airosa, só deixara, em
torno dos olmos e pilares despidos, sarmentos de cepas mirradas,
e a parra roída de crespa ferrugem. E Obed, agachado à soleira
da sua porta, com a ponta do manto sobre a face, palpava a poei­
ra, lamentava a velhice, ruminava queixumes contra Deus cruel.
Apenas ouvira falar desse novo rabi da Galileia que alimenta­
va as multidões, amedrontava os demónios, emendava todas as
desventuras - Obed, homem lido, que viajara na Fenícia, logo
pensou que Jesus seria um desses feiticeiros, tão costumados na
Palestina, como Apolónio, ou rabi Ben-Dossa, ou Simão, o Subtil
Esses, mesmo nas noites tenebrosas, conversam com as estrelas,
para eles sempre claras e fáceis nos seus segredos; com uma vara
afugentam de sobre as searas os moscardos gerados nos lodos do
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 71

Egipto; e agarram entre o s dedos a s sombras das árvores, que


conduzem, como toldos benéficos, para cima das eiras, à hora da
sesta. Jesus da Galileia, mais novo, com magias mais viçosas de­
certo, se ele largamente o pagasse, sustaria a mortandade dos seus
gados, reverdeceria os seus vinhedos. Então Obed ordenou aos
seus servos que partissem, procurassem por toda a Galileia o rabi
novo, e com promessa de dinheiros ou alfaias o trouxessem a En­
ganim, no país de lssacar.
Os servos apertaram os cinturões de couro e largaram pela es­
trada das caravanas, que, costeando o lago, se estende até Damas­
co. Uma tarde, avistaram sobre o poente, vermelho como uma
romã muito madura, as neves eternas do monte Hérmon. De­
pois, na frescura de uma manhã macia, o lago de Tiberíade res­
plandeceu diante deles, transparente, coberto de silêncio, mais
azul que o céu, todo orlado de prados floridos, de densos vergéis,
de rochas de pórfiro, e de alvos terraços por entre os palmares,
sob o voo das rolas. Um pescador que desamarrava preguiçosa­
mente a sua barca de uma ponta de relva, assombreada de aloen­
dros, escutou, sorrindo, os servos. O rabi de Nazaré? Oh! desde o
mês de Ijar, o rabi descera, com os seus discípulos, para os lados
para onde o Jordão leva as águas.
Os servos correndo, seguiram pelas margens do rio, até
adiante do vau, onde ele se estira num largo remanso, e descansa,
e u� instante dorme, imóvel e verde, à sombra dos tamarindos.
Um homem da tribo dos Essénios, todo vestido de linho branco,
apanhava lentamente ervas salutares, pela beira da água, com um
cordeirinho branco ao colo. Os servos humildemente saudaram­
-no, porque o povo ama aqueles homens de coração tão limpo, e
claro, e cândido como as suas vestes cada manhã lavadas em tan­
ques purificados. E sabia ele da passagem do novo rabi da Gali­
leia que, como os Essénios, ensinava a doçura, e curava as gentes
72 VASCO GRAÇA MOURA

e os gados? O essénio murmurou que o rabi atravessara o oásis de


Engaddi, depois se adiantara para além . . . - Mas onde, além? -
Movendo um ramo de flores roxas que colhera, o essénio mos­
trou as terras de além-Jordão, a planície de Moab. Os servos va­
dearam o rio - e debalde procuravam Jesus, arquejando pelos
rudes trilhos, até às fragas onde se ergue a cidadela sinistra de
Makaur ... No Poço de Jacob repousava uma larga caravana, que
conduzia para o Egipto mirra, especiarias e bálsamos de Gilead, e
os cameleiros, tirando a água com os baldes de couro, contaram
aos servos de Obed que em Gadara, pela Lua nova, um rabi ma­
ravilhoso, maior que David ou Isaías, arrancara sete demónios do
peito de uma tecedeira, e que, à sua voz, um homem degolado
pelo salteador Barrabás se erguera da sua sepultura e recolhera ao
seu horto. Os servos, esperançados, subiram logo açodadamente
pelo caminho dos peregrinos até Gadara, cidade de altas torres,
e ainda mais longe até às nascentes de Amalha ... Mas Jesus, nessa
madrugada, seguido por um povo que cantava e sacudia ramos de
mimosa, embarcara no lago, num batel de pesca, e à vela navega­
ra para Magdala. E os servos de Obed, descoroçoados, de novo
passavam o Jordão na Ponte das Filhas de Jacob. Um dia, já com
as sandálias rotas dos longos caminhos, pisando já as terras da Ju­
deia Romana, cruzaram um fariseu sombrio , que recolhia a
Efraim, montado na sua mula. Com devota reverência detiveram
o homem da Lei. Encontrara ele, por acaso, esse profeta novo da
Galileia que, como um deus passeando na Terra, semeava mila­
gres? A adunca face do fariseu escureceu enrugada e a sua cólera
retumbou como um tambor orgulhoso:
- Oh escravos pagãos! Oh blasfemos! Onde ouvistes que
existissem profetas ou milagres fora de Jerusalém? Só Jeová tem
força no seu Templo. De Galileia surjem os néscios e os impos­
tores ...
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 73

E como os servos recuavam ante o seu punho erguido, todo


enrodilhado de dísticos sagrados - o furioso doutor saltou da
mula e, com as pedras da estrada, apedrejou os servos de Obed,
uivando: «Racca! Racca!» e todos os anátemas rituais. Os servos
fugiram para Enganim. E grande foi a desconsolação de Obed,
porque os seus gados morriam, as suas vinhas secavam e todavia,
radiantemente, como uma alvorada por detrás de serras, crescia,
consoladora e cheia de promessas divinas, a fama de Jesus da
Galileia.
Por esse tempo, um centurião romano, Públio Sétimo, co­
mandava o forte que domina o vale de Cesareia, até à cidade e ao
mar. Públio, homem áspero, veterano da campanha de Tibério
contra os Partos, enriquecera durante a revolta de Samaria com
presas e saques, possuía minas na Ática e gozava, como favor su­
premo dos deuses, a amizade de F1aco, legado imperial da Síria.
Mas uma dor roía a sua prosperidade muito poderosa como um
verme rói um fruto muito suculento. Sua filha única, para ele
mais amada que vida ou bens, definhava com um mal subtil e
lento, estranho mesmo ao saber dos esculápios e mágicos que ele
mandara consultar a Sídon e a Tiro. Branca e triste como a Lua
num cemitério, sem um queixume, sorrindo palidamente a seu
pai, definhava, sentada na alta esplanada do forte, sob um velório,
alongando saudosamente os negros olhos tristes pelo azul do mar
de Tiro, por onde ela navegara de Itália, numa galera enfestoada.
Ao seu lado, por vezes, um legionário, entre as ameias, apontava
vagarosamente ao alto a flecha, e varava uma grande águia, voan­
do de asa serena, no céu rutilante. A filha de Sétimo seguia um
momento a ave torneando até bater morta sobre as rochas: - de­
pois, mais triste, com um suspiro, e mais pálida, recomeçava
a olhar para o mar.
Então Sétimo, ouvindo contar, a mercadores de Corazim,
deste rabi admirável, tão potente sobre os espíritos, que sarava
74 VASCO GRAÇA MOURA

os males tenebrosos da alma, destacou três decúrias de soldados pa­


ra que o procurassem por Galileia, e por todas as cidades da Decá­
pole, até à costa e até Áscalon. Os soldados enfiaram os escudos
nos sacos de lona, espetaram nos elmos ramos de oliveira - e as
suas sandálias ferradas apressadamente se afastaram, ressoando
sobre as lajes de basalto da estrada romana que desde Cesareia até
ao lago corta toda a tetrarquia de Herodes. As suas armas de noi­
te, brilhavam no topo das colinas, por entre a chama ondeante
dos archotes erguidos. De dia invadiam os casais, rebuscavam
a espessura dos pomares, esfuracavam com a ponta das lanças a
palha das medas: e as mulheres, assustadas, para os amansar, logo
acudiam com bolos de mel, figos novos, e malgas cheias de vi­
nho, que eles bebiam de um trago, sentados à sombra dos sicó­
moros. Assim correram a Baixa Galileia e, do rabi, só encontra­
ram o sulco luminoso nos corações. Enfastiados com as inúteis
marchas, desconfiando que os judeus sonegassem o seu feiticeiro
para que os Romanos não aproveitassem do superior feitiço, der­
ramavam com tumulto a sua cólera, através da piedosa terra sub­
missa. À entrada das aldeias pobres detinham os peregrinos, gri­
tando o nome do rabi, rasgando os véus às virgens: e, à hora em
que os cântaros se enchem nas cisternas, invadiam as ruas estrei­
tas dos burgos, penetravam nas sinagogas, e batiam sacrilega­
mente com os punhos das espadas nas Thebahs, os santos armá­
rios de cedro que continham os Livros Sagrados. Nas cercanias
de Hebron arrastaram os solitários pelas barbas para fora das gru­
tas, para lhes arrancar o nome do deserto ou do palmar em que se
ocultava o rabi: - e dois mercadores ferúcios que vinham de Jope
com uma carga de malóbatro, e a quem nunca chegara o nome
de Jesus, pagaram por esse delito cem dracmas a cada decurião.
Já a gente dos campos, mesmos os bravios pastores de Idumeia,
que levam as reses brancas para o Templo, fugiam espavoridos para
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 75

as serranias, apenas luziam, nalguma volta do caminho, as armas do


bando violento. E da beira dos eirados, as velhas sacudiam como
taleigos a ponta dos cabelos desgrenhados, e arrogavam sobre eles
as Más Sortes, invocando a vingança de Elias. Assim tumul­
tuosamente erraram até Áscalon: não encontraram Jesus; e re­
trocederam ao longo da costa enterrando as sandálias nas areias
ardentes.
Uma madrugada, perto de Cesareia, marchando num vale,
avistaram sobre um outeiro um verde-negro bosque de loureiros,
onde alvejava, recolhidamente, o fino e claro pórtico de um tem­
plo. Um velho, de compridas barbas brancas, coroado de folhas
de louro, vestido com uma túnica cor de açafrão, segurando uma
curta lira de três cordas, esperava gravemente, sobre os degraus de
mármore, a aparição do Sol. Debaixo, agitando um ramo de oli­
veira, os soldados bradaram pelo sacerdote. Conhecia ele um
novo profeta que surgira na Galileia, e tão destro em milagres que
ressuscitava os mortos e mudava a água em vinho? Serenamente,
alargando os braços, o sereno velho exclamou por sobre a rociada
verdura do vale:
- Oh romanos! pois acreditais que em Galileia ou Judeia
apareçam profetas consumando milagres? Como pode um bárba­
ro alterar a ordem instituída por Zeus? ... Mágicos e feiticeiros são
vendilhões, que murmuram palavras ocas, para arrebatar a espór­
.
tula dos simples. .. Sem a permissão dos imortais nem um galho
seco pode tombar da árvore, nem seca folha pode ser sacudida na
árvore. Não há profetas, não há milagres . . . Só Apolo Délfico
conhece o segredo das coisas!
Então, devagar, com a cabeça derrubada, como numa tarde
de derrota, os soldados recolheram à fortaleza de Cesareia.
E grande foi o desespero de Sétimo, porque sua filha morria, sem
76 VASCO GRAÇA MOURA

um queixume, olhando o mar de Tiro - e todavia a fama de Je­


sus, curador dos lânguidos males, crescia, sempre mais consola­
dora e fresca, como a aragem da tarde que sopra do Hérmon
e, através dos hortos reanima e levanta as açucenas pendidas.
Ora entre Enganim e Cesareia, num casebre desgarrado, su­
mido na prega de um cerro, vivia a esse tempo uma viúva, mais
desgraçada mulher que todas as mulheres de Israel. O seu filhi­
nho único, todo aleijado, passara do magro peito a que ela o cria­
ra para os farrapos de enxerga apodrecida, onde jazera, sete anos
passados, mirrando e gemendo. Também a ela a doença a enge­
lhara dentro dos trapos nunca mudados, mais escura e torcida
que uma cepa arrancada. E, sobre ambos espessamente a miséria
cresceu como o bolor sobre cacos perdidos num ermo. Até na
lâmpada de barro vermelho secara há muito o azeite. Dentro da
arca pintada não restava grão ou côdea. No Estio, sem pasto, a
cabra morrera. Depois, no quinteiro, secara a figueira. Tão longe
do povoado, nunca esmola de pão ou mel entrava no portal. E só
ervas apanhadas nas fendas das rochas, cozidas sem sal, nutriam
aquelas criaturas de Deus na Terra Escolhida, onde até às aves
maléficas sobrava o sustento!
Um dia um mendigo entrou no casebre, repartiu do seu far­
nel com a mãe amargurada, e um momento sentado na pedra da
lareira, coçando as feridas das pernas, contou dessa grande espe­
rança dos tristes, esse rabi que aparecera na Galileia, e de um pão
no mesmo cesto fazia sete, e amava todas as criancinhas, e enxu­
gava todos os prantos, e prometia aos pobres um grande e lumi­
noso reino, de abundância maior que a corte de Salomão. A mu­
lher escutava, com olhos famintos. E esse doce rabi, esperança
dos tristes, onde se encontrava? O mendigo suspirou. Ah esse
doce rabi! quantos o desejavam, que se desesperançavam! A sua
fama andava por sobre toda a Judeia, como o sol que até por
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 77

qualquer velho muro se estende e se goza; mas para enxergar


a claridade do seu rosto, só aqueles ditosos que o seu desejo esco­
lhia. Obed, tão rico, mandara os seus servos por toda a Galileia
para que procurassem Jesus, o chamassem com promessas a En­
ganim; Sétimo, tão soberano, destacara os seus soldados até
à costa do mar, para que buscassem Jesus, o conduzissem, por seu
mando a Cesareia. Errando esmolando por tantas estradas, ele
topara os servos de Obed, depois os legionários de Sétimo. E to­
dos voltavam, como derrotados, com as sandálias rotas sem ter
descoberto em que mata ou cidade, em que toca ou palácio, se es­
condia Jesus.
A tarde caía. O mendigo apanhou o seu bordão, desceu pelo
duro trilho, entre a urze e a rocha. A mãe retomou o seu canto
mais vergada, mais abandonada. E então o filhinho, num murmú­
rio mais débil que o roçar de uma asa, pediu à mãe que lhe trou­
xesse esse rabi que amava as criancinhas, ainda as mais pobres,
sarava os males ainda os mais antigos. A mãe apertou a cabeça
esguedelhada:
- Oh filho! E como queres que te deixe, e me meta aos ca­
minhos à procura do rabi da Galileia? Obed é rico e tem servos,
e debalde buscaram Jesus, por areais e colinas, desde Corazim até
ao país de Moab. Sétimo é forte e tem soldados, e debalde corre­
ram por Jesus, desde o Hebron até ao mar! Como queres que te
de�e! Jesus anda por muito longe e a nossa dor mora connosco,
dentro destas paredes, e dentro delas nos prende. E mesmo que
o encontrasse, como convenceria eu o rabi tão desej ado, por
quem ricos e fortes suspiram, a que descesse através das cidades
até este ermo, para sarar um entrevadinho tão pobre, sobre enxer­
ga tão rota?
A criança, com duas longas lágrimas na face magrinha, mur­
murou:
78 VASCO GRAÇA MOURA

- Oh mãe! Jesus ama todos os pequenos. E eu ainda tão pe­


queno, e com um mal tão pesado, e que tanto queria sarar!
E a mãe, em soluços:
- Oh meu filho, como te posso deixar? Longas são as estra­
das da Galileia, e curta a piedade dos homens. Tão rota, tão trô­
pega, tão triste, até os cães me ladrariam da porta dos casais.
Ninguém atenderia o meu recado, e me apontaria a morada do
doce rabi. Oh filho! Talvez Jesus morresse ... Nem mesmo os ri­
cos e os fortes o encontram. O Céu o trouxe, o Céu o levou.
E com ele para sempre morreu a esperança dos tristes.
De entre os negros trapos, erguendo as suas pobres mãozi­
nhas que tremiam, a criança murmurou:
- Mãe, eu queria ver Jesus ...
E logo , abrindo devagar a porta e sorrindo, Jesus disse
à criança:
- Aqui estou.
O presépio
D. João da Câmara

HAVIA QUASE UM ANO QUE ESTAVA NA LOJA, mercearia num


bairro escuro, em que mal entrava de esguelha, como espreitando
a medo, um raio de sol, entre as casarias muito altas da rua tor­
tuosa.
Com doze anos, que saudades tinha da aldeia, da família, dos
antigos companheiros de escola, dos cães amigos que ladravam
de noite a vigiar a casa!
Tudo lá tão longe! Ah! Se ele soubesse! ...
Pois nem uma lágrima lhe viera anuviar o último adeus,
quando a diligência dera volta na estrada e ele vira sumirem-se os
choupos da ribeira e o lenço que mão saudosa sacudia no alto do
cabeço.
É que o deslumbrava a ideia de Lisboa, de que tantas maravi­
lhas grandes lhe contavam. Ainda agora partia, e já se via de volta
_
na aldeia, de relógio e cadeia de oiro, a falar de alto, a puxar o bi­
gode, a dar enchente, como o Januário, que lhe arranjara o lugar.
Com o seu examezinho de instrução primária, marçano de
uma tenda ... Não, que os pais não o queriam para cavador.
Tinham sido consultados o mestre-escola, o prior, o senhor
Freitas, lavrador muito importante que arrastava tudo nas eleições,
o Custódio, velhote de muito bom conselho, e todos se haviam
80 V ASCO GRAÇA MOURA

mostrado de acordo: não havia como Lisboa para fazer um ho­


mem. Era ver o Januário que tinha casado com a viúva do patrão.
A loja era de um cunhado dele, bom homem, áspero mas bom
homem. Os olhos baixos do Manuelzito, fitas no chão, viam no
tijolo resplandecer auréolas, que giravam como o fogo de vistas
pelas festas.
Ali estava, havia quase um ano; e no desvão da escada, onde
às dez horas o mandavam deitar, a morrer de calor no Verão, no
Inverno a morrer de frio, punha-se a rever os campos e a casa
deixados sem as lágrimas, que lhe corriam agora em grossos fios
pelas faces.
Os primeiros dias tinham passado muito lentos.
A conselho do Januário, um biscoito ou outro da mão papuda
e oleosa do merceeiro haviam-no ajudado na tarefa. Assim é que
ele havia de ser homem, um dia. Mas o patrão mostrava maior
pressa.
Pai, mãe e mestre-escola nunca lhe haviam batido. Atreveu­
-se uma vez a declará-lo. Foi pior. Chegou o Verão. As festas de
São João e São Pedro aumentaram-lhe a tristeza. Reviu nesses
dias mais intensamente a alegria da aldeia, os bailes à noite em
volta da fogueira, a ida à fonte pela manhã, o sino a tocar à missa,
e ele a pensar que, quando fosse crescido, havia de ter uma na­
morada por quem queimasse uma alcachofra, a quem cantasse
umas quadras falando de estrelas e de flores.
A bulha nas ruas, nessas noites, não o deixara dormir. Cada
bomba era uma pancada no coração. Um sol-e-dó que passou to­
cando arrancou-lhe lágrimas de imensa saudade.
Pelos Santos, com a melancolia do tempo, ainda foi pior.
Depois veio o Inverno, começaram os dias de chuva. O mau
tempo irritava o patrão, porque lhe afugentava fregueses. Na loja,
com recantos muito negros, acendiam-se muito cedo os candeei­
ros, e o Manuelzito tinha pena da sombra em que se acolhia com
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 81

maior amor. Pasmava o s olhos, fugia com o pensamento para


muito longe.
- Acorda, ralaço! - gritava-lhe o patrão.
Estava a chegar o Natal.
Qye lindo era o Natal lá na aldeia!
Andavam na rua a abrir um cano; quase ninguém ali passava;
os passeios eram cheios de lama. O patrão andava furioso.
Então o pequeno teve uma ideia.

Lembrou-se de fazer muito misteriosamente um presépio.


O segredo em que havia de trabalhar mais o animava na tarefa.
Todos os dias, muito a medo, enquanto o patrão almoçava ou
saía da loja algum instante, vinha à porta, se não havia freguês a
servir, espreitava, corria, apanhava um nadinha de barro nas esca­
vações do cano. Escondia-o, e debaixo do balcão, quase às apal­
padelas, ia fazendo as figurinhas.
Assim modelou o Menino Jesus, que deitou num berço de
caixa de fósforos, Nossa Senhora de mãos postas, São José
de grandes barbas, os três Reis Magos a cavalo, e os pastores, um
a tocar gaita de foles, outro com um cordeirinho às costas, e uma
mulher com uma bilha. Não se pareceriam lá muito; mas ele deu
provas de que sabia puxar pela imaginação.
Sempre lhe faltava alguma coisa. Havia problemas difíceis de
resolver.
Um dia, engraxando as botas do patrão, lembrou-se de en­
graxar um dos reis, e pôs-lhe depois umas bolinhas brancas, de
papel a fingir os olhos.
Aos anjos fez asas com as penas de uma galinha que depenou
para um jantar de festa que não comeu. Moeu vidro para fingir as
águas do rio, e no papel de embrulho recortou um moinho que só
havia de armar à última hora.
82 VASCO GRAÇA MOURA

Levou nisso parte de Novembro e Dezembro todo, até ao


Natal.
Escondia os materiais debaixo da enxerga e, de quando em
quando, revia-se na obra.
O que mais o encantava era o Menino Jesus, com a cabeça do
tamanho de um grão de milho, com buraquinhos a fingirem
olhos, ouvidos, nariz e boca. Tinha mãos com cinco dedos risca­
dos a canivete e dois pezinhos que ele achava um encanto.
Com tiras de papel azul havia de fazer o céu e, como o não
tinha doirado onde recortasse a estrela, fez em papel branco uma
meia Lua; vinha quase a dar na mesma.
Aquele mês passou correndo.
Era a véspera do Natal. Às dez e meia, o patrão mandou-o
deitar e saiu.
Qye alegria estar só!
Não lhe deixavam luz; mas que importava? Às escuras arma­
ria o presépio. E logo principiou. Enrolou o moinho, pôs-lhe as
velas; esticou o papel azul que fingia o céu e pregou nele com um
alfinete a meia Lua; espalhou o vidro moído, num «S» em volta
das palhas; dispôs as figurinhas, suspendeu os anjos. Depois fez
uma carreira de fósforos de cera, que todos se haviam de acender
ao mesmo tempo, num deslumbramento, quando desse meia­
-noite.
Deram onze e três quartos.
Ajoelhou.
Batia-lhe o coração, que lhe parecia que deviam de ser mila­
grosas as figurinhas, que delas lhe viria algum bem, consolação de
sua vida triste.
Qye seria quando ele iluminasse o desvão da escada e os santi­
nhos se pusessem todos a luzir quase tanto como os verdadeiros?
AS MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 83

Rezava-lhes ... rezava-lhes ... Àquela hora, lá na aldeia, tocavam


os sinos alegres e iam ranchos contentes a caminho da igreja. Lá
dentro reluzia o trono, e o sacristão muito atarefado ia, vinha . . .
Meia-noite!
Acendeu os fósforos e ficou embasbacado!
Nunca assim vira coisa tão perfeita. Os anjos voavam deveras,
os cavalos dos reis galopavam, o rio corria, as velas giravam no
moinho e os pontinhos do Menino Jesus sorriam-lhe no rosto
a São José e a Nossa Senhora!
Pôs-se a cantar, como lá na aldeia:

Andava nessas campinas,


Esta noite, um querubim.

Tão enlevado cantava, que nem ouviu o patrão abrir a porta,


entrar na loja, chegar ao desvão.
Acordou-o do êxtase um pontapé.
- Isso . . . Agora larga-me fogo à escada! . .. Varre-me já esse
lixo!
E ele, a chorar, levantou-se, foi buscar a vassoura.
O bruto continuava aos pontapés.
- Vá? ... Vá!
Mas quando se deitou, encontrou na enxerga uma figurinha.
Apalpou-a, conheceu-a logo: era a do Menino Jesus. Beijou-a
muito. Pior vida levara do que ele . . .
Sentiu d e repente u m dó muito grande d o patrão, que não
vira nada, nem que era tão bonito aquele Menino, com um olhar
tão meigo nos seus olhinhos picados.
A consoada
Abel Acácio de Almeida Botelho

TINHAM CHEGADO, HAVIA UM INSTANTE, DA IGREJA.


No silêncio álgido da noite retinia ainda alegre o bimbalhar
dos sinos. A mesa estava posta - velhos candelabros de cobre,
acesos sobre a alva toalha imaculada, e em volta de cogulo fume­
gando as iguarias. Na cal fendilhada da parede resplandecia, esta
noite carinhosamente festoada de flores, uma grande oleografia,
em retábulo dourado, de uma das celebradas Virgens de Murillo,
fresca, menineira, a alma toda nos olhos, e em volta pelas nuvens
sua graciosa farândola de amorinhos cor-de-rosa. O ar estava tépi­
do, embalsamado. E no rectângulo negro das vidraças a opaca ra­
diação da noite, basto rasgada pelos farrapos da neve que caía, rea­
lizava visualizações fantásticas, luarentos contrastes de diorama.
Toca de arrimar na cozinha, ao canto da chaminé, os guarda­
-ch�vas pingando, largam-se as capas, descalçam-se as galochas,
ruidosamente sacodem-se os vestidos; enquanto de rodilhão inva­
de a sala a tropeada cantante das crianças; e erguendo-se de salto
do escabelo, a esfregar os olhos, a velha serva Leonor, perdida de
sono, resmoneia num alívio:
- Ora louvado seja Deus!
E já à mesa o bom do Simeão se dirigia, direito à grande pol­
trona de couro. Toma-lhe a direita sua mulher - irrepreensível
86 V ASCO GRAÇA MOURA

companheira de cinquenta anos -, uma pequenina e interessante


nonagenária, de vagos olhos espirituais e longas mãos de cera; e
à esquerda senta-se-lhe a sua boa e paciente Eugénia, a filha mais
nova, de preto, fisionomia macerada e longa, repassada toda desta
austera diafanidade tranquila que é feita de castidade e abstenção,
de isolamento e saudade. Seguia a variegada profusão de toda
a mais parentela - os filhos que vieram de longe, empregados
no comércio, na magistratura, no Governo Civil em Viseu; um
cunhado, capitão do 14; as respectivas esposas, tias, sobrinhas,
primas - ao todo trinta e tantos comensais, afora a galhofeira e
turbulenta assistência das crianças, que redonditas e chilreantes
se aninhavam sobre almofadas postas nas cadeiras, avançando
o queixo, cotovelos na toalha, e abrindo para as travessas com
os doces uns grandes olhos ávidos.
Nos primeiros minutos, um guloso silêncio se intervalou, cor­
tado apenas do discreto tinir de louças e metais. Só o velho pa­
triarca de carinho insinuou à filha:
- Eugénia, então! Vá de pesares hoje ...
E ela, com infinita tristeza:
- Eu não lhe dizia, pai? . . .
E esmorecida arredava de diante de s i o prato, para melhor
apoiar na mesa o cotovelo, de antebraço ao alto, e de peso o rosto
afogado no lenço, a breve trecho empapado de lágrimas.
Casada ia para sete anos.
Casada com o José Ventura, um honrado e perfeito rapaz,
vizinho seu na cidade, cuja garbosa imagem logo os seus olhos
infantes se haviam acostumado a ver inseparável dos brinquedos.
Depois, na adolescência, a mesma comunicativa e franca liberda­
de afeiçoara-lhes os corações, irmanando-lhes os destinos. Falado
o casamento - o rapaz era sério, honesto, trabalhador, tinha
bens bastantes -, os pais da Eugénia consentiram. Em boa hora,
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 87

mercê d e Deus! Ao cabo de três anos de inalterável bonança con­


jugal, três inocentes eram o vivo penhor do seu afecto.
Mas as coisas da vida iam mal ... Pegara brava a moléstia nas
oliveiras e nos castanheiros, o «míldio» acabava de lhe devastar
a vinha, já os estrangeiros lhe não visitavam a adega, o «pulgão»
comia-lhe as searas. A continuarem as coisas por aquele pendor,
era uma fatalidade! - Tinha ali assim três anjinhos ... e o mais
que viria... Tinha obrigação de lhes deixar que comer!
Depois de muita hesitação, muita tormentosa luta interior,
muita lágrima represada - não havia remédio... dolorosamente
concertou com a mulher e partiu para Lourenço Marques. E ela,
a pobre, ficou-se em casa dos pais, paralelamente morta para
o exterior, para a luz, para a alegria, arrastando, como um burel,
a sua resignada saudade, paresiada na mansidão de uma irreme­
diável tristeza.
Com uma resignação de freira, alheia por completo ao mun­
do, vivendo na perpétua lembrança do marido, na exclusiva preo­
cupação dos filhos, passou anos Eugénia sem sair de casa, levan­
do uma vida toda crepuscular, na inteira abdicação do seu querer,
colada ao dever como a lapa ao rochedo, alumiada e forte sempre
a alma do alimento ázimo do Passado, o seu fino rosto austero
idealizado por uma transcendente, uma inabalável expressão de
confiança e de doçura. . . Sem um queixume, sem uma revolta,
sem _uma indignada apóstrofe ao Destino, ela sofria mas esperava,
esperava sempre . . . forte dessa poética submissão, dessa fidelidade
sem termo, essa irredutível e santa conformidade de que a nossa
província ainda conserva o segredo. Embalde vinham as amigas
desafiá-la: «que estava dando cabo de si . . . não tinha jeito ne­
nhum ... que faria se fosse viúva!» Esquivava-se invariável às mais
inocentes diversões. Ouvia, ouvia tudo, num desdenhoso silêncio,
e ao cabo abanava negativamente a cabeça, cerrando as pálpebras.
88 VASCO GRAÇA MOURA

Escrevia amiúde o marido. Sempre cartas consoladoras, ainda


era o que valia! Passados os dois primeiros anos, estava fazendo
rapidamente fortuna. Tivera uma hospedaria; agora era já senhor
de prédios, tomava empreitadas de construções, era grande accio­
nista de uma companhia mineira.
O Simeão esfregava as mãos, contente, e exclamava, descen­
do aos netos os olhos húmidos:
- Abençoada resolução!
Eugénia, porém, nas suas cartas, extensos e adoráveis breviá­
rios de coisas de família - a saúde dos pais, a saudade que a rala­
va, os progressos, as graças, as doenças dos filhinhos -, passava
sempre de alto, num leve roçagar de desdém, pela questão de in­
teresses, e invariavelmente terminava com esta frase:
- Qiando te tornarei eu a ver? ...
Ultimamente anunciara ele uma próxima vinda à metrópole
- para matar saudades, para revigorar a saúde. Dizia o paquete
em que vinha, designava o dia da partida. Foi então na modesta
casa do rossio de Pinhel uma alegria doida ... Não se falava noutra
coisa; aos quatro ventos da cidade se confiou a consoladora notí­
cia. Dia por dia com alvoroço se contava o tempo de viagem do
vapor. Liam-se com avidez no Século os telegramas marítimos,
a ver quando davam conta das sucessivas estações da sua rota.
Sem entender nada de geografia, arranjou no entanto Eugénia
um mapa, e aí, de olhos húmidos, como de instinto ia seguindo o
progressivo e moroso avançar do ídolo da sua alma. Fez roupitas
novas aos pequenos, para aparecerem ao pai. Dava repetidas
acções de graças ao Céu; o seu entusiasmo, a sua fé, o seu amor
não conheciam limites.
Pela mais feliz das coincidências, acontecia que o seu José de­
via ter desembarcado na véspera em Lisboa, e chegaria a casa
portanto exactamente naquela mesma noite de Natal! Eugénia
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 89

queria de força ir, com o s filhos, esperá-lo abaixo, à estação, a Vila


Franca das Naves. Entretanto, frustrou-lhe a resolução a incle­
mência do tempo. A família opôs-se. - Sempre eram dewito
quilómetros de mau caminho, desabrigado, ínvio . . . E a chuva,
o vento, a neve. . . Uma imprudência! Seria o mesmo José o pri-
meiro a censurar ... - Resignou-se portanto a ficar. Mandaram-
-lhe à estação a melhor alimária de cavalaria que havia na terra,
a mula do senhor abade, cedida com a mais pronta decisão; e para
o espírito inquieto, para a alma ansiosa de Eugénia se foram então
fechando interminavelmente as horas. Repercutia-lhe doloroso
o bater da pêndula no pulsar do coração, e o seu adorado marido
não vinha!
Por fim, perdera já por completo a esperança. E agora à mesa
ante a ingénua e comunicativa alegria do momento, a dolorida
tristeza da sua alma cerrava-se cada vez mais intensa e mais pro­
funda.

Entretanto, continuava meigamente o pai a querer animá-la:


- É que o vapor não entraria a barra ontem, filha ... Isso que
admira, com o mau tempo que faz? . . .
- Sei lá o que foi!
- É isto. Não podia ser outra coisa ... Se tivesse entrado, bem
vês ... o comboio passa em Vila Franca às oito ... depois, pra cima,
a mula do senhor abade desunha bem . . . são três horas da esta­
ção aqui.
- Ora! nem que viesse a pé . . . - corroborou o capitão - já
estava farto de cá estar!
- Tudo isto é assim, tudo muito belo... - redarguiu, apreen­
siva, Eugénia - mas é que eu não faço senão pensar ... - E de re­
pente, depois duma hesitação, com ar aflito: - Ai, Deus do Céu!
receio muito que lhe tenha sucedido alguma coisa...
90 VASCO GRAÇA MOURA

- Então porquê? . . . - interrogou mansamente, com uma


bondosa doçura incrédula, do outro lado do Simeão, a espiritual
velhinha.
- Ora, a mãezinha bem sabe . . . as mulas diz que são amaldi­
çoadas. Antes queria que lhe tivessem mandado outro animal!
Porque não pediram ao médico?
- Está sempre a precisar ... - aclarou o pai. - Isso são his­
tórias!
- Não são tal! - insistiu Eugénia com vigor. - No Presé­
pio a vaca chegava palhinhas ao Menino, para o agasalhar, e vai
a mula comia-as. Por isso a Senhora a amaldiçoou.
- É verdade! É verdade! Assim diz a mestra ... - Aqui acu­
diu com interesse o filho mais velho, o Josezito, abrindo em cla­
ras convicções os olhos.
- Pois sim, filha ... - insistia com amor o velho a derivar -
mas come ...
- Não tenho vontade ...
- Estes bolos de bacalhau ... estão óptimos!
- A mim amargavam-me como piorno!
E o bom do pai, largando a travessa, desistia.
- Valha-te Deus ! - E, sempre no empenho de espertar
a animação, arredando daquela festa as sombras, agora interro­
gava o neto: - Então que histórias foram essas que te ensinou a
mestra?
- Sim senhor! - acudiu pronta a criança, com o mesmo
tom de convicção escampe. - Sei essa história toda da fugida
pro Egipto. Ainda há mais coisas . . . Ao atravessar a burrinha um
tremoçal, quase seco, as ervas faziam muito barulho, dando sinal
aos perseguidores ... e vai a Senhora amaldiçoou-as também.
- Meu anjinho! - exclamou com ternura a avó desvanecida.
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 91

- E também está amaldiçoada a perdiz - continuou muito


sério o rapaz. - Só a pena . . .
- Conta lá... - disse-lhe a mãe, momentaneamente distraída.
- Foi assim . . . Qyando Nossa Senhora fugia, um bando de
perdizes, levantando-se-lhe na frente, assustadas, espantou-lhe a
burrinha e deu sinal ao inimigo. Vai a Senhora exclamou: «Mal­
ditas sejais!» São José perguntou: «Por inteiro, carne e tudo?» E a
Virgem respondeu: «Não, coitadas! a carne, não ... Só as penas.»
Aplaudiram todos, encantados, o pequenino narrador, cujos
lábios de cereja a mãe comia de beijos.
Súbito - que estranho estrupido é este?! - no pleno sossego
daquela hora alta, áspero e vibrante ressoou no pátio um signifi­
cativo tropear de ferraduras. Logo um trinado silvo familiar, num
segundo, quando, à instantânea impulsão do espanto, mal ha­
viam tido ainda os convivas tempo de se erguer da mesa, já o José
Ventura invadia de rompão a sala e estrangulava a mulher de co­
moção nos braços, balbuciando entre soluços de escachoante
amor:
- A Geneta! a minha querida Geneta!
Enquanto, pequeninos e dobrados, todos em lágrimas, dele
se abeiravam os pais, trémulos na ansiosa suplicação de uma carí­
cia; e aturdida, boquiaberta, a velha Leonor exclamava, limpando
os olhos à serguilha do avental:
-·- Parece mentira!
- Mentira me parece a mim mas é eu estar de volta outra
vez! - bradava na veemência da sua ardente emoção o rapaz. -
Aqui assim na nossa casa . . . junto da minha mulher, dos meus
filhos, dos meus velhos, dos amigos!. . .
E i a e vinha, a um e outro lado, irrequieto, gárrulo, feliz. . . da­
va abraços, palmadas, beijos, entregava-se, dispersava-se . . . num
92 VASCO GRAÇA MOURA

trasbordar suave de efusão prodigalizava o melhor e o mais ínti­


mo do seu ser, irreprimivelmente expandia a sua sentimentalida­
de represa de tantos anos.
- Mas que horas são estas de aparecer? ...
- Com efeito!
- Já ninguém fazia conta de ti!
- Qie ralações aqui iam! . . .
- Faço ideia . . . bem me lembrou! - disse o José Ventura,
olhando com amor a mulher. - Mas que querem? ... O comboio
vinha atrasado, os caminhos estão péssimos!
- Louvado seja Deus Nosso Senhor! - murmurou de mãos
postas a santa velhinha, considerando o filho.
- Como tudo isto me parece bem! - exclamou num ímpe­
to o recém-chegado, sentando-se, com todos os mais, à mesa. -
Qie bela compensação a todas as minhas penas e trabalhos! Qie
saúde ao corpo, que refrigério à alma!
- Comes? - perguntou-lhe o pai.
- Ai, não! Trago uma fome de pedras . . . Vou já começar
aqui por estes ovos verdes.
- Agora também eu como! - rompeu, sentando-se junto
dele, a mulher.
E reatando conversa, patriarcalmente, como se de princípio
também ali estivesse, como se nada de anormal, desde o começo
da ceia, se houvera ali passado, disse ainda, todo natural, o José:
- Mas que conversa era essa então com que estavam, de
maldições?... Eu ainda ouvi ...
- Falava-se de quando foi da fuga de Nossa Senhora, com
São José e o Menino. Diz que ela amaldiçoara então a mulinha
do Presépio, os tremoços, as perdizes...
- E então dos noitibós e das cotovias, não sabem? ... - disse
o José, sorrindo.
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 93

- O quê!?
- Ainda me lembro!
- Sabes mais do que nós . . .
- Pois então ! Contava-me aquela nossa criadita velha,
a Emília... Ora espera, como era? . . . Ah! Qiando Nossa Senhora
ia a caminho, os bisbilhoteiros dos noitibós iam na frente, a gritar:
«Ela aqui vai! ela aqui vai!» E atrás as cotovias, apagando as pega­
das da burra com as patitas, diziam: «Mentira! Mentira!» Por isso
Nossa Senhora abençoou estas e amaldiçoou aqueles.
- É verdade, mamã? - perguntou com interesse o Josezito.
- O papá nunca mente.
E a cada instante o papá, radiante, cheio de si, na amorosa
incidência da atenção de todos, e com os filhos pendurados em
cacho dos ombros, do colo, do pescoço, demandava a mulher
com os olhos rasos de água, numa expressão fundente de ternura:
- A minha Geneta!

Maio, 1 891.
Conto do Natal
Fialho de Almeida

HÁ-DE PASSAR TALVEZ DAS ONZE HORAS. A noite afinal pôs-se


serena, não bole vento, as solidões escutam ... - é como se a Terra
inteira estivesse à espreita de ouvir tocar o sino para a missa. Pela
estrada que passa entre Vila de Frades e Vidigueira vem descendo
uma velha arrumada ao seu bordão de pobrezinha. O rastejo dos
passos dir-me-ia porventura a idade dela: o luaceiro entanto, nu­
verinhado em céu de bruma, apenas deixa aperceber a silhueta
curvada para a terra, com um pedaço de manta sobre os ombros,
o saco às costas, e as canelas sem meias, entrapadas em ligaduras
repelentes. Ao pé da ponte, a mulher pára. Por detrás daqueles
choupos, lá em baixo, à beira-rio, havia noutro tempo um forno
de tijolo, agora pelo Inverno abandonado. Ela adianta-se, procu­
ra . . . E a estrada passa de alto, ladeada de acácias e eucaliptos.
E derredor, nos plainas baixos, as escavações do barro espapam­
-se rias águas da cheia, em lúgubres lameiros, cujo ervançum dá
residência a uma colónia rouca de sapos.
A velha estende o bordão para a barreira, procurando vereda
num chão firme, em cujo barro os seus pobres sapatos rotos não
mergulhem.
Malgrado o embrutecimento da idade, o frio, a fome e o de­
sejo de amosendar para ali, no forno de tijolo, longe das apupadas
96 V ASCO GRAÇA MOURA

dos cães e dos rapazes, uma nostalgia poética ergue-lhe a vista,


e então recorda-se, e quer circunvagar os seus cansados olhos para
o largo. E uma esquelética paisagem de Dezembro, nua e cansa­
da, quando já a natureza se alquebra toda em desalentos e os
troncos das árvores parece que estrebucham, como os famintos de
Londres, numa bebedeira de ódio, truculenta. No primeiro plano
há terras de vinha, olivais muito negros e colinas redondas com
moinhos. Para as bandas da Vidigueira risca a neblina um traço
negro, que deve ser a torre do relógio - depois, à direita, uma
mancha de cal, o cemitério. Lentamente, à medida que o raio de
visão se prolonga no horizonte, os outeiros complicam-se, as for­
mas perdem a sua delineação traço por traço, e toda a cordilheira
dir-se-ia pintada numa sucessão de panos de teatro, a cinza-claro,
e gradações mais e mais desvanecidas.
Oh, que sossego! Uma divina essência, abstracta, etérea, vem
oscular as urzes e as levadas. Doseio das negridões de quando em
quando, brotam suspeitas de formas vagabundas, a branco-cinza:
esboços de sonhos, almas erráticas que debandam, noitibós que
se acolhem, friorentos na noite, às pedras das ruínas ... Vem um
acorde triste dos cardos secos da margem dos alqueives, dos pilri­
teiros sem folhas e dos zambujos frugais das ribanceiras. E as
águas do ribeiro troam nas pedras, por entre as canas e os chou­
pos, cujas varas se esfalripam nos ares, tísicas e brancas, com um
ou outro corvo por folhagem.
Da outra banda são semicírculos de terras e valados, com frei­
xos altos em silhueta no tom madrepérola da Lua, e alternativas
de negro e zonas claras, que dir-se-iam feitas num desenho a car­
vão, com lápis prateado.
Todas aquelas brancuras vêm do extremo horizonte aos olhos
da mendiga, por suspeitas, desagregadas das formas, abstraídas
do resto da paisagem, e todas poderiam interpretar-se como efei­
tos de neve, de luar, de água dormente, tanto a neblina enche de
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 97

fantasmagorias a noite e presta uma alma incoerente àquela ceno­


grafia de balada.
Há porém no sopé daqueles montes um ponto que a velha
ansiosamente procura. É o pequenino convento de capuchos que
alvej a da banda de Vila de Frades, derrocado, entre oliveiras.
Lá corre o muro da cerca, té se perder num grupo de ciprestes.
Naquela cerca, já depois de profanado o conventinho, era antiga­
mente o cemitério: um cemiteriozinho de aldeia, com malme­
queres e figueiras bravas, crânios à solta, e nenhuma cruz ou
mausoléu comemorando a jazida de qualquer. Ali repousam os
parentes e amigos da pedinte, pais e irmãos, filhos e netos: só ela,
errante de povo em povo, sem um afecto que a proteja, sem uma
boca amiga que a console, vai pelo mundo a mendigar de porta
em porta!
Vinte e dois anos passaram depois que ela abalou da sua terra,
e quatro ou cinco vezes lhe sucedeu passar ali como estrangeira,
com os olhos no chão, corrida de vergonha, vendo a igreja aberta
e tendo medo de entrar, passando ao resvés das casas ricas, e arre­
ceando-se de pedir esmola à criadagem: e depois, ao toque das
trindades, noite fechada, detendo-se a escutar de longe os conhe­
cidos rumores do lugarejo. Oh, essa chafranafra da volta do tra­
balho, com guizadas de mulas tintinando, estrupidas de carros
desferrados, e as boas-noites trocadas, os cavadores cantando em
coro pelos caminhos, a crepitação da lenha nas lareiras - e de­
pois, no bocal das fontes, o mulherio que pousa os cântaros e en­
tre risotas comenta as picarescas histórias da semana!
É quando numa melancolia doce o dia morre e grandes nu­
vens esmagam no poente as vermelhidões crepusculares. É quan­
do uma exalação envolve as cúpulas das árvores, e das terras mo­
lhadas claridades efémeras fosforejam, e uma voz corre e suspira
à flor das ervas.
98 VASCO GRAÇA MOURA

Pois acabou-se, acabou-se! E a triste da mulher desce a bar­


reira, agredida por tudo, as recordações, a noite, o frio, a fome ...
Não, não repousará entre os demais, no pobre cemitério da sua
aldeia, em que avoejam corujas e francelhos; a casa onde nasceu
foi demolida; arrancaram a vinha que o marido plantara, há cin­
quenta anos, com solicitudes de bom cultivador; e ninguém na
vila já se recorda da Josefa, da viúva do Pratas, mãe duma filha
bonita que anda agora nas feiras, de cigarro, e passa o Inverno em
braços de soldados, numa viela infame de Estremoz. Ao cercar-se
do forno, uma claridade viva a surpreende. O alpendre ficava do
outro lado, numa descaída brusca do montículo, e ali está gente,
há falas de homem ... - ai pobre velha!, aonde há-de ela ir passar
a noite àquela hora?
Por um momento ainda ela faz um passo para costear o forno
e ir pedir agasalho à fogueira de quem quer se acoite no telheiro.
Mas logo em seguida reflecte. Qie qualidade de gente será? Re­
ce bê-la-ão com caridade? Um vago terror se apossa dos seus
membros: pé ante pé busca afastar-se ... Mas como tem as pernas
e os braços regelados! Um torpor lhe paralisa os movimentos,
anestesia-lhe os dedos e pesa-lhe nas pálpebras com sonolências
de chumbo. Nos campos paira um sossego terrível e perverso, em
cuja abóbada só respondem os latidos dos cães, pelas malhadas.
A geada branqueia o alqueive das courelas, queima os favais. E a
claridade no alpendre é cada vez mais confortante, milhares de
faúlhas sobem pelos ares, na fumarada da lenha húmida de oli­
veira, que estala e arde em flamazinhas rápidas e alegres. Ela en­
tão cede, resolvida a entrar na wna iluminada e a pedir agasalho
aos forasteiros que a anteciparam.
Chegara quase à boca do telheiro, oculta ainda por trás dum
grupo de árvores, perto do rio - quando de repente estruge um
grito largo, começado em surdina e sacudido depois em frenéticas
uivadas, com uma expressão de sofrer dilacerante.
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 99

* * *

Ao primeiro berro, um homem que estava acocorado por


diante da fogueira salta de golpe e fica um instante secado, à es­
cuta da noite, bebendo os rumores do largo, enquanto desenrola
a cinta da cintura. Aquele berro, a velha conhece-o, é horrível
e terno, angustioso e deliciado, e toda a mulher que o solte prin­
cipia esposa e acaba mãe.
Havia pois no alpendre uma parturiente a reclamar os seus
cuidados. O desejo da velha era correr, mas do seu canto de som­
bra a pobre hesita, vendo homem girar pelo telheiro a passos fu­
riosos, ir, voltar, acachapar-se instantes sobre o vulto que bole lá
no fundo do alpendre, em estremeções aflitos: e enfim, jurar, bra­
mar, ordenar-lhe silêncio, prometer-lhe pancada, exasperado ca­
da vez mais, por aquela algazarra que pode deitar tudo a perder.
Há um momento em que eles cuidam ouvir um murmúrio de
rodas , afastado , talvez uma sege que passa, levando alguém
à missa de Natal. Aqui a raiva do homem não conhece limites,
e ei-lo corre à mulher de punho armado, prestes a dar-lhe, caso
prossiga o berreiro escandaloso. Vem com efeito na estrada uma
berlinda, com guinadas nas mulas e vermelhidões de lanternas
entre as árvores. E o homem precipita-se, enclavinha os polegares
assassinos sobre a garganta da mulher.
- Calas-te ou morres!
E a sua voz surda, pequena, sacudida, humilde quase, vem
explodindo e crescendo, té bravej ar num rouquejo de cólera
exaustinada.
- Cala-te, diabo! Cala-te, estafermo!
A mãe, coitada, mal pode estrangular os urros que a expulsão
lhe arranca, em dores medonhas, como se trinta mãos brutais
lhe estivessem arrancando as vísceras, ligamento a ligamento. Já
1 00 VASCO GRAÇA MOURA

a berlinda passa, ao trote rápido das suas quatro mulas espanho­


las ... um ou outro corvo solta nas faias o seu grasnido estremu­
nhado, e outra vez a paisagem fica muda, entre as brumas e as
sombras, o fragor da ribeira e a uivada dos cães pelos currais.
É esse o instante de a mendiga fazer um passo, abandonando o
círculo da sombra, prestes a dar-se, toda cheia de celestes com­
paixões por essa mísera mulher que a desgraça forçou a vir parir
numa ruína, sem ao menos ter a aquentá-la, como a Virgem, o
hálito da vaca e da jumenta e as solicitudes ideais do carpinteiro.
Mas tudo aquilo é rápido e fugace. Os gritos da mulher ti­
nham cessado: lento e sinistro, o homem voltara a acocorar-se
perto da fogueira, com uma expressão de campónio perverso,
meio animal, meio humana, onde o brilho dos olhos punha uma
sagacidade extraordinária. Ele despira a jaqueta, tem as mangas
da camisola arregaçadas, as mãos sujas de sangue.
- É rapariga ou rapaz? - disse a mulher.
Ele estivera algum tempo a ligar-lhe coa cinta o ventre dolo­
rido: não retrucou. Dera na torre da Vidigueira a meia-noite,
e em Vila de Frades logo começou a tocar para a missa do Galo.
O cerraceiro morrera pelos campos e as cumeadas do céu, azuis
e vastas, refulgiam de estrelas e luar. Mas nem por isso a paisa­
gem tinha ficado cristalina. Coisas opacas brotavam dos terrenos,
formas dormentes, que pareciam vaguear nas ouvielas moles dos
farrejais.
Perto, nos choupos, havia gestos de angústia e imploração:
saíam vozes da água, preguiçosas e místicas como trenos, e certas
troncagens tinham expressões humanas na noite, que perturba­
vam de morte o arregaçado.
Outra vez então aquele homem se ergueu com modos lentos,
veio escutar. Os sapos tinham-se afinal calado nos algares, paira­
vam no sossego as asas áfonas dos mochos dando espirais de roda
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 101

ao forno de tijolo. E , malgrado o frio, aquela noite de Natal vi­


nha suave, com poucas cores mas delicadas, e cambiantes de céu,
que o vento uma após outra transmutava.
- Dá-me a criança - disse a mulher. - Qyero-lhe dar
mama, não me morra de frio a pobrezinha!
Ele tinha nas mãos o pequeno ensanguentado, que vagia de
frio, conjugando os beicitos numa sucção de instinto, que devera
ter feito sorrir de enternecido um outro pai. E saiu do telheiro,
o pequeno pendente da manápula, o cento torvo, o ar facinoroso.
A velha, vendo-o, estendera-lhe os braços do seu canto: e ele
vagueou assim por aqui, por além, entre os troncos das faias e os
silvados, atascado na lama, mas sem poder estar quieto em parte
alguma, e como se pela marcha desse vazante ao frenesi mental
que o devorava.
Havia à beira de água um pedregulho. Ele deteve-se. Instan­
taneamente a sua cara envelhecera, leques de rugas radiavam-lhe
os cantos das pálpebras, sobre a pele da testa e da faceira, e a lívi­
da boca, agora seca, súplice quase, tinha sombras de angústia às
comissuras e convulsivos tremores nos beiços desbotados.
Mais uma vez lançou a vista ao derredor, numa suspeita atroz
de o estarem vendo, e ergueu o braço, com o pequeno seguro pe­
los pés, como um coelho ... Porém, a luz do luar incomodava-o.
Tornara para trás, desalentado, furibundo consigo e resmun­
gand? alto imprecações. Mas veio-lhe de repente uma veneta e
bruscamente, com um resfolgar de bezerro, escavacou o pequeno
contra a rocha. A pancada dera na pedra um som de melancia
podre, esborrachada em surdina, baça e turgente. Foi um mo­
mento, aquilo, e todas as coisas voltaram ao êxtase hibernal de
instantes antes.
O homem ainda esteve curvado um pouco de tempo sobre os
atasqueiros glácidos do rio - uma solenidade pairava ao fundo
1 02 VASCO GRAÇA MOURA

do espaço -, té que afinal saiu das ervas, com o cadáver suspenso


pelos pés, todo sangrento, um cadaverzinho de infante recém-na­
do, roliço e roxo, cuja boquinha ria de inocência e cuja alma de­
vera estar-se incorporando àquela hora no cortejo de eleitos que
todos os anos vem, com o Menino Deus, refazer na crença dos
simples a suavíssima lenda do Natal.
O Menino Jesus do Paraíso
Fialho de Almeida

UM DOS CONVENTOS PITORESCOS DE É VORA é sem dúvida


alguma o Paraíso. O aspecto externo simula o duma dessas casas
de Tânger, misteriosas, de altas paredes encostadas umas às ou­
tras, sustadas a cunhais, caiadas, esfoladas, sem o menor sinal de
vida de relação, nem portas, nem fachadas, nem mirantes, e só
com umas gaiolas de ferro ressaindo em mucharabieh junto de
tecto, a cobrir, como máscaras de esgrima, minúsculas lucarnas
que provavelmente dão luz para dentro daquele cárcere inquie­
tante.
Vai o mosteiro entre as ruas de Mendo Estevens e de Ma­
chede, que o delimitam, convergindo, té lá diante se fundirem
numa só, cujo título não sei; de sorte que observando a edificação
do alto desta, tem-se a sensação dum poliedro tortuoso de três
face�, truncado no vértice e coberto de decrépitos telhados, que
alteiam e amosendam de traves podres, a cada passo. Sob um céu
de Verão alentejano, azul candente, radiando ofi:almias em cada
corda solar zimbrada de alto, este sinistro casarão vedado ao bur­
burinho da rua por muralhas, descendo a rua aos tropos-galho­
pos, em socalcos internos, expansões, retraimentos, avoca efecti­
vamente estampas de cidades marroquinas, se não fora a ausência
de certos detalhes clássicos daquelas. . . uma palmeira no fundo
1 04 VASCO GRAÇA MOURA

e um minarete, camelos por debaixo dum arco, e o inevitável ára­


be no primeiro plano, rebuçado fleumaticamente num albomós.
Com o camelo e o árabe, seria uma paisagem tangerina.
Substituindo porém o dromedário por um cónego, e o árabe por
um aguadeiro vestido de saragoça, gritando quem merca a água.'
adiante dum burro com cântaros de cobre, numas cangalhas de
azinho, inesperadamente a feição muda, e não há Alentejo mais
típico, nem gravura eborense mais avant la lettre. Entanto o Pa­
raíso de Évora é principalmente notável por três coisas: pelo seu
aspecto exterior, pelo seu refeitório, e pelos doces.
O refeitório é um espécimen de salão Renascença, único em
Évora, único porventura no país, e sumptuoso em toda a parte.
É vasto, oblongo, o tecto de carvalho esculpido, com pilastras de
mármore branco, sustendo-o. Estas pilastras são um modelo de
graça arquitectural, aladas, leves, com uma base relevada de me­
dalhões e figurinhas, e meias canas abertas no corpo, para irem
morrer ao fim num elegantíssimo capitel.
Os doces do Paraíso são no Alentejo tão célebres, como entre
o Douro e Beiras, os de Celas; tão célebres como as rezas das suas
freiras e os milagres do seus santos; tão célebres como a tradição
dos seus bordados. Há-os de todas as frutas, massas, combina­
ções, formas e espécies. Grandes, enchendo prato, feitos duma
espécie de pão-de-ló de amêndoa e ovos, ligeiro como esponja,
olorante ao olfacto, e vaporoso e fresco ao paladar - cobertos de
açúcar, com granulações vermelhas e rosadas, e chama-se bolo
real, centro de mesa de todas as bodas ricas e pobres da província.
Há-os pequenos, de amêndoa de açúcar, com um filão de com­
pota, ou uma surpresa de licor escondida no bojo, e que imitam
queijos (queijinhos do céu), presuntos, conchas, frutas, emblemas,
ferramentas e edifícios.
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTIJGUESAS DE NATAL 1 05

Com estas três drogas simples do açúcar, farinha e ovo, pica­


das dum ou outro extra de especiaria, ninguém sinfoniza o pala­
dar mais finamente, ou sabe tirar desta efémera sensação maior
prodígio de delícias imortais.
Porque singular segredo a clausura, que proibia à mulher
o convívio de todas as lubricidades, só esta do doce lhe deixou
aberta, como a válvula de segurança contra mais tinhosas práticas,
e contaminadoras distracções?
Porque não é necessário ser adivinho arguto, para em certos
doces diagnosticar receitas do demónio. No ano de 1470, relata
o obituário da Misericórdia de Évora, nada menos de que quatro
cónegos mortos de indigestão por trouxas de ovos. No mosteiro
de Santa Mónica havia, pelos fins do século XVI, uma freira pos­
sessa, cujos bolos podres lançavam chamas de noite, vendo-se­
-lhes demoniozinhos a bailar por cima do tostado. As fatias de
parida de São Bento, deram à abadessa D. Joana Peres Ferreirim,
quatro anos antes da sua afrontosa morte, às mãos do povo, visões
reveladoras quanto ao sinistro fim que havia de ter. E como diz
um livro de milagres: «a todos sirva isto de lição e ensinamento».
A indústria de doçaria é, nos claustros de freiras portuguesas,
remotíssima, mas depurou-se e refinou de guloseima com as pri­
meiras especiarias e receitas do Oriente té atingir, nos reinados de
D. João V e D. José, subtilezas e apuros que lhe valeram foros
univ�rsais. Em Janeiro de 1 729, passando D. João em Évora, na
ida e na volta da sua j ornada ao Caia, para receber a infanta
D. Maria Ana Vitória de Bourbon, filha dos reis de Espanha,
como esposa de seu primogénito D. José, e entregar a infanta
D. Maria Bárbara de Portugal, para consorte do príncipe das As­
túrias, D. Fernando, mandou o senado eborense de presente aos
monarcas um rebanho de 24 vitelas com fitas nos cornos, 24 car­
gas de perus, galinhas, capões, pombos, leitões, perdizes, e outras
1 06 VASCO GRAÇA MOURA

caças; e assim um rancho de 24 meninas, levando caixas de exce­


lentes doces «fabricados de tal forma que pareciam as mesmas
frutas de que se fizeram». Estes doces foram fabricados todos nos
conventos, e há razões para supor que viesse do Paraíso a maior
parte, atento o arremedarem frutas, e se conservar florescente
ainda naquele claustro a tradição da doçaria artística, reproduzin­
do toda a casta de pomos e frutedos.
Qyem ainda não viu as caixas do Paraíso, que ainda agora vão
de volante às feiras e povoações do Alentejo, renegue a pretensio­
sa confeitaria francesa, insípida, mesquinha, sem variantes, e ab­
sorva-se devotamente nas gulodices geniais daquela santa casa!
Não é só a excelência das caldas, pastas e cristalizações sacari­
nas dos doces mosteirais de Portugal, que cumpre lisonjear, mas
a gracilidade mimosa de cada bom bocado e cada peça, a arte
de exposição que leva os olhos, a quantidade de talento inventivo,
de fantasia, de observação humorística e de ternura, que todas
aquelas pequenas coisas ressumbram, restituindo ao mundo escul­
turas de ameixas, uvas, maçãs, bananas, pomos, feitas de amêndoa
e açúcar, ovo e baunilha, farinha e cheirosos sumos, a porção de
alma amorosa, de feminilidade esquecida, que as boas freiras não
puderam gastar cá fora, no santo mister de mães e esposas.
Cá fora na rua, apontando uma casinha térrea onde trabalhava
um sapateiro, o meu cicerone objectou-me: repare neste velhote!
Uma figureta japónica, gorducha, já um pouco brada pelos
anos, mas com o seu olho azul muito expressivo e uma boca hu­
morística, onde alguns dentes riam satisfeitos. Vendo-se notado,
convidou-nos a entrar cordialmente, acrescentando:
- Já agora, até morrer, hei-de ser sempre uma das curiosida­
des do convento. Qyeiram-se cobrir e estar a seu gosto. O que
me pesa é recebê-los em casa tão pobre e desguarnecida. Ali,
naquele cadeirão, esteve o senhor Herculano sentado duas vezes,
As MAIS BELAS H ISTÓRIAS PORTIJGUESAS DE NATAL 107

e o senhor José Estêvão além, com o senhor Joaquim Filipe, em


Janeiro de 1 8 3 8 .
Fez uma pausa é sorrindo:
- Pois é verdade, sou eu mesmo, Joaquim Constâncio,
o Menino Jesus do Paraíso. O caso foi soado, e até D. Pedro e
D. Luís quiseram ver um Menino Jesus que se aposentou em
sapateiro. Mas nem um nem outro parece que acharam mores
diferenças, e a prova é que nem Menino Jesus da Casa Real fui
nomeado. E a propósito: querem V. Senhorias uma pingoleta de
aguardente?
Veio a pingoleta, e talharam-se os cigarros, e sem dar tempo
a perguntas, o velhote, adivinhando o fim da nossa estada, come­
çou logo a fazer a história do seu título.
- Aqui no convento há um presepe, que até há quatro anos
era o enlevo de Évora, e armava-se no claustro em todas as vés­
peras de Natal. As figuras são todas de barro, maiores que huma­
nas, mas expressivas que se alguma delas falasse, estou que nin­
guém levaria isso à conta de milagre, tanto parece estarem vivas,
e respirando como qualquer criatura de Nosso Senhor. As freiras
já não querem mostrar aos visitantes o presepe, desde que um
barrote fez em bocados o rei preto, e deitou meia faceira abaixo
ao São José; mas acho que nem assim deviam ocultar obra tão
rica, privando os entendidos dum gow que nem parece não tem
igual cá na cidade.
.
Em 1 826, veio de Montemor para o Paraíso uma freira des­
terrada, diziam por se entregar mais aos amores dos homens,
do que a Deus, e o certo foi que com a reputação e beleza trazia
ela outra estroinice, de tal maneira grave, que a abadessa mandou
reforçar as gelosias das janelas, interdizer a grade à recém-chega­
da, e acautelar com ferrolhos novos todas as portas da cerca e
mais serventias do mosteiro. Como a freira nova era riquíssima,
108 VASCO GRAÇA MOURA

e oriunda duma das melhores famílias da comarca, foi-lhe admiti­


do um trem de cela por demasia ostentosa para a regra penitente
da casa, e neste trem vinha uma aia, açafata, ou confidente, que
logo começou a ser notada por suas prendas de mãos, e engenhos
de compor e armar toda a sorte de altares e painéis religiosos.
Ao contrário do que se esperava, a freira nova, apenas entrada
no mosteiro, pretextando doença, nunca mais abandonou a sua
cela; comia pouco, teimava em não ver a luz do dia, de sorte que
vivia às escuras, levando horas a dar gemidos que enterneciam
a comunidade e pouco a pouco lhe foram criando lendas de mar­
tírio.
Véspera de Natal, ao cair da noite, enquanto as monjas se
afadigavam a engalanar a igreja, a cobrir os altares de flores e cea­
rinhas, e a dispor no claustro as grandes figuras do presepe, os
gritos e gemidos da desterrada exprimiam, lá do fundo da cela,
um sofrimento excruciante, entre palavras de lástima que as mais
beatas diziam passadas de intensidade mística e contrição.
A poder dos grandes rogos da criada, deixaram-lhe ir o Me­
nino do presepe, para que a sua ama o vestisse, conforme pro­
messa feita a Nossa Senhora - e o presepe já pronto, velas ace­
sas, missa tocada, gente no adro, e o Menino Jesus nada de vir da
cela da madre Ana!
Já o caso ia parecendo desusado à comunidade, várias noviças
tinham chinelado nos corredores, com recados da prioresa, quan­
do finalmente a reclusa se resolveu a deixar vir o bambino, vesti­
do e deitado por ela no bercinho doirado que havia de figurar no
centro do presepe. Era o que se chamava uma obra de preceito.
Ele travesseiro de cetim com fronhas de Veneza, guarda-cama
bordado, com entremeios e abertos da finura duma teia de ara­
nhiço, e quanto à coberta, era um artigo brocado de oiro e viole­
ta, recamado a matiz, com toda a sorte de pássaros e arvoredos...
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 109

A respeito de anáguas e mantilhas do inocente, não deixou a aça­


fata ver o que lá ia por baixo das roupas, e pressurosa, como a se­
nhora abadessa já começava a zangar-se da demora, ei-la depondo
a preciosa camilha ao centro do presepe, entre Nossa Senhora,
São José, o rei preto ofertante, e os animais do estábulo de Belém.
Abriu-se a igreja para o sacrifício da meia-noite, velas ao cen­
tro nos altares, nas serpentinas doiradas das paredes, em lustres
caindo a par dos lampadários das capelas, e era povo de morrer
naquela nave, e os coros das freiras acompanhavam-se ao órgão,
que era ouvi-los e viver num céu aberto.
Ditas as missas, abriu-se a gradaria que dava para o claustro,
o povo invadiu à bruta o caminho do presepe ao tempo em que já
o capelão, de capa de asperges, véu de ombros, tomara o menino
do berço, para o dar a beijar aos circunstantes. Mas caiu de joe­
lhos fulminado: o Menino Jesus mexia os braços, e desatara a
berrar como um cabrito! Foi uma balbúrdia no claustro, indescri­
tível, de todas as bandas gritavam por milagre, as mulheres des­
maiavam, enquanto outros nas pias de água benta iam banhar as
regiões do corpo, mais aflitas - do que houveram prodigiosas
catarreiras. Em balde o capelão, velho sabido, mui pouco atreito
a acreditar em prodígios que metessem enjeitadinhos, em balde
ele procurava furtar o crianço às arremetidas beatas da gentana:
a turba crescia cada vez mais de roda do presepe, atulhando as ar­
cad�s e jardim da quadra perto, ululando na rua e insistindo num
fanatismo furioso, em arrancar relíquias ao «Deus vivo». A nova
correra por toda a cidade, atordoara os palácios, e entrando aos
paços do arcebispo, pusera em xeque a autoridade do prelado, ir­
resoluto do escândalo, e não sabendo se transigir com o fanatis­
mo estúpido da canalha se com a provável indignação da classe
culta, que era natural exigisse uma devassa impiedosa à moralida­
de das monjas do Paraíso.
1 10 VASCO GRAÇA MOURA

Logo pela manhãzinha foi o chantre, Diogo Paim Cisneiros


de Villugas, por ordem do prelado pedir à senhora abadessa
entrevista. A dona veio, ainda com os olhos inchados dum mau
sono, amparada à bengala, receber sua ilustríssima com todos os
tiques da mais cerimoniosa deferência. Falou de diversas coisas,
muito de leve aludiu aos tabuleiros de ovos tostados que tinha
enviado na véspera ao arcebispo, e quando D. Diogo poisou no
milagre, redarguiu-lhe que ainda o achara pequeno dada a quali­
dade de ovelhas com que todos os dias a autoridade eclesiástica
lhe estava gafando o seu rebanho.
Varado daquele aprumo, o cónego pediu então secamente
a história do milagre, e ela sem lhe atenuar as arestas, disse-a toda,
concluindo que atenta a penumbra de que a criminosa se cercava,
nunca pudera suspeitar do seu estado, e filiara os gritos do parto
enfim, nalguma dessas crises dolorosas frequentes em mulheres
tolhidas de histeria. A troca do Menino Jesus pelo criança fora
um rompante de escândalo, que se por um lado merecia castigo,
por outro estava a pedir um exame sério às faculdades de razão da
inculpada. Qyanto ao efeito moral do milagre, lastimava-o com
todo o pudor da sua alma; forçoso era que a comunidade sofresse
a abominação que ele continha, e soubesse resistir virtuosamente
aos chascos e desdéns das línguas viperinas, que já tinham come­
çado a apontar o mosteiro como um lugar de luxúria e danação.
- É freira ou noviça, a criminosa?
- Freira professa, senhor chantre.
- Professa deste claustro?
- Se assim fosse, responderia por ela, como por mim. A cri-
minosa veio de Montemor-o-Novo há quatro meses.
- Jesus, que vai dizer?!
- É tarde para lho ocultar. A autora do abominável sacrilé-
gio é efectivamente a irmã de V. Senhoria.
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 111

- Tio do Menino Jesus, eu! nesta idade! - dizia D. Diogo,


largando do Paraíso esbaforido.
Ao cabo de grandes discussões e manejos diplomáticos, tem­
peram-se as coisas por maneiras de se fazer uma procissão con­
gratulatória, da catedral para o mosteiro, e se cantarem Te-Deuns
- nunca ninguém soube dizer por gratidão de quais favores ce­
lestiais. Para evitar piores escândalos, deixou-se o Menino Jesus
do Paraíso entregue aos cuidados da mulher do hortelão, que
todos os dias o levava à madre Ana de Villugas, sua madrinha e
generosa protectora, acostumando-se o pequeno a viver entre
as saias das madres, como vergôntea da casa, e a ir medrando
na suasão de o fazerem algum dia cónego regrante, ou arcebispo.
Infelizmente, madre Ana de Villugas veio a morrer muito cedo,
e não acautelou a sorte do pequeno; e quanto ao chantre, tinha
em casa sobrinhos mais chegados, por quem espargir os considerá­
veis haveres do seu remanescente. De sorte que nascido em berço
doirado, tive as homenagens do povo, como os filhos dos reis,
mas tanto pode o capricho da fortuna, que vim a cair de Menino
Deus, em sapateiro . Não me lastimo! Foi quanto meus pais
adoptivos, hortelões no convento, puderam fazer de melhor em
meu favor, e por aí tenho vindo a remontar sapatos e a beber pin­
goletas, vendo o meu trabalho medrar, e com ele sete rapagões
como umas torres, que renunciaram aos seus direitos na sagrada
fam�a, já se vê, visto saberem cá neste mundo o nome todo de
seus pais.
As Janeiras
Brito Camacho

As JANEIRAS!
Se já restava pouco do madeiro do Natal, quando os ganhões
chegavam do trabalho, arrumada a copa e a apeiragem, iam bus­
car um madeiro que meu pai tinha escolhido no monturo da le­
nha grossa, e colocavam-no na chaminé, arrumado à parede. Este
frete era geralmente pago com um copo de vinho, e bem o mere­
ciam os desgraçados, porque alombavam com um madeiro pesan­
do umas poucas de arrobas. Cozia-se sempre neste dia, e a última
fornada de pão tirava-se já noite escura, às vezes com a ganharia
à mesa para a ceia.
A cada janeireiro, homem ou mulher, dava-se um pão; aos
moços dava-se metade ou um quarto, conforme o seu tamanho,
e às vezes, já no clarear da madrugada, havia necessidade de redu­
zir a �smola, pois não chegava para tanta gente o pão cozido. Tal
havia que apanhava duas, três ou quatro esmolas, incorporando­
-se em diferentes ranchos, e o mesmo rancho chegava a cantar
duas vezes, mudando as vozes.
- São os mesmos que cantaram há bocadinho.
Qyem ia levar a esmola, geralmente era uma criança, não
se dispensava de dizer, mesmo que lhe não encomendassem o
sermão:
1 14 VASCO GRAÇA MOURA

- Vossemecês ainda não há nada de tempo que aqui estive­


ram. Se cá voltarem, não levam esmola.
Qye não; vossemecê está enganada, a gente chegou agora
mesmo da vila, e ainda não cantámos em mais monte nenhum.
Se quer ver o que trazemos ...
Nenhum rancho denunciava outro rancho, embora nem to­
dos fizessem a mesma coisa, a muitos repugnando uma tão des­
carada fraude, tanto mais que nela se envolvia Deus Nosso Pai,
invocado a cada instante:

Lá vai uma, lá vão duas


Por cima do seu telhado.
Deus lhe dê muita fortuna
Ao pão que tiver semeado.

Se a noite estava escura, não se distinguiam as caras, e se ha­


via um luar discreto, os homens escondiam a cabeça na manta, as
mulheres no xaile ou na mantilha, e assim realizavam a mistifica­
ção. Qyando o criado que distribuía as esmolas avisava de que o
pão, em menos de nada, estaria acabado, meu pai ordenava que
dois ganhões dessem uma volta à roda do Monte, fiscalizando os
ranchos, e era como se aparecessem guardas fiscais num campo
onde manobrassem contrabandistas.
Lembro-me como se fosse ontem, e vão passadas umas pou­
cas de dúzias de anos . . .
O compadre Cara-Rota, que era o abegão da casa, deixara-se
ficar no Monte, para cantar as janeiras, e como aparecessem, já
noite cerrada, os vizinhos da Bispa, o compadre João Catarino,
o primo Francisco Manuel, que era um grande tocador de viola,
e o lavrador da Granja, que era um grande tocador. .. de garrafa,
armou-se uma mesa de jogo, à pedida, perdendo-se, nominal­
mente, as melhores herdades do concelho.
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 1 15

Acerta altura o maricas do Narciso, que andava no serviço


das esmolas, declara que estavam cantando uns homens que já ti­
nham cantado duas vezes, e como ele lhes dissesse que escusavam
de cantar porque não apanhavam mais nada, eles ameaçaram­
-no de lhe bater, chegando um deles a atirar-lhe um sopapo, que
por sorte o não apanhou.
- Estão bêbedos, com certeza.
Disse meu pai ao compadre Cara-Rota:
- Tenha paciência, compadre, dê uma voltinha lá por fora,
a ver o que há.
O compadre Cara-Rota saiu, levando na mão um fueiro, e
quando chegou à porta do Monte ainda os homens cantavam.
Eram quatro, um já entrado em anos.
- Por os modos vocês tomaram as j aneiras de empreita­
da, hem?
Os homens ouviram, mas não fizeram caso, e continuaram
a cantar.
O compadre Cara-Rota foi-se aproximando, e como vissem
que ele não estava com as mãos abanando, calcularam que podia
armar-se sarilho se continuassem a cantar, e que, em todo o caso,
mais esmola não apanhavam. Um deles, o mais pimpão, desenro­
lando-se da manta, e pondo ao ombro o bordão, disse para os
companheiros:
-:-- O melhor é a gente ir-se embora. A esmola que nos ha­
viam dar, que a metam ...
Já fora da calçada do Monte, virando-se para trás, disse ao
compadre Cara-Rota, desafiando-o com insolência:
- O amigo não canta, mas pode ser que tenha as goelas se­
cas. Se as quiser molhar, venha com a gente até ali à estrada, que
ninguém lhe faz mal.
- Vão lá andando que eu já os apanho.
116 VASCO GRAÇA MOURA

Entrou na casa dos ganhões, trocou o fueiro pelo cacete mais


forte que lá encontrou, e ainda os janeireiros não tinham chegado
à estrada, já ele lhes falava desta sorte:
- Qial de vocês é que tem a borracha?
- Somos nós todos - respondeu o que o desafiara.
Palavras não eram ditas, cai-lhe na cabeça uma bordoada que
o fez ir a terra. Entraram todos na refrega, está bem de ver, mas
o compadre Cara-Rota, ágil como um palhaço, não se deixava
tocar, e das cacetadas que despedia nenhuma caía no chão. Durou
a luta poucos minutos, saindo dela um dos janeireiros com a ca­
beça rachada, outro com braço partido, e os outros muito bem
zurzidos, mas sem nada quebrado.
- Então os homens, compadre Francisco?
- Fui-lhes levar a esmola ali à estrada, e lá se foram na paz
do Senhor.

Era uma figura original, o compadre Cara-Rota, meu com­


padre de verdade, compadre de águas-bentas. Ninguém era mais
desembaraçado do que ele no seu ofício - nem mais desembara­
çado nem mais perfeito. Por este motivo tinha uma grande fre­
guesia, chamado para todos os Montes, e na Vila, trabalhando
em sua casa ou na casa dos outros, nunca se lhe acabava que
fazer.
Era alto, desempenado, forte como as armas, multiplicando
a força pela agilidade, de uma rara agilidade, o que lhe permitia
brincar numa praça, com os touros, que eram quase sempre vacas,
por forma a entusiasmar a família. Tourada em que ele trabalhas­
se e o Esbandalha, era tourada de sucesso - como quando traba­
lhavam em Lisboa, na Praça de Sant'Ana, os manos Robertos.
As vacas eram corridas desembaladas, e bandarilhas não se usa­
vam no toureio da Província.
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 117

A sorte mestre, aquela em que o compadre Cara-Rota era


exímio, na opinião de muitos inexcedível, era a do emplastro, que
consistia em pegar à testa da rês, com mel, um quarto de papel,
como se fosse um escrito num vidro. Corria como um gamo, e
dava saltos como um ginasta de circo. Gostava da pândega, mas
não era homem de bebedeiras, sempre lembrado de que tinha lá
em casa uma filharada de que era o amparo e sustento. A sua
grande paixão, dominante, avassaladora, era a caça.
Dizia meu pai:
- Homem invicionado na caça como o compadre Cara-Ro­
ta, não quero que haja outro.
Era muito rara a tarde em que ele não largava cedo o trabalho
para ir matar um coelho, à espera, e pelo dia adiante, se ouvia ti­
ros no Cabeço ou via passarem os caçadores, não se importava
mais com o que estava fazendo; metia as ferramentas na alcofa,
e às escondidas, se podia ser, tirava de casa a espingarda, e polva­
rinho, a patrona, e pernas para que vos quero, até se meter na
linha.
- Ora compadre Francisco, tudo o que é de mais não presta.
Então vossemecê vê que tenho aí uma parelha à boa vida, e abala
prà caça deixando o trabalho em meio? ...
- Não se apoquente o sr. compadre que tudo se há-de fazer
a tempo e horas.
� fazia. Um bocadinho de serão, um bocadinho de madruga­
da e o compadre Cara-Rota tinha o serviço feito como se tivesse
trabalhado sem descontinuidade.

Olier fosse às perdizes, no ar, quer fosse às lebres, na terra


limpa, quer fosse aos coelhos, na charneca, poucos se explicavam
como ele - peça visada era peça morta. Gostava muito de caçar
1 18 V ASCO GRAÇA MOURA

nas pontas, e ordinariamente, em jolda, as pontas eram feitas pe­


los melhores atiradores, sempre um bocadinho adiantadas, quase
à espera da caça que se safava.
De uma vez, caçando na Daroeira, ia ele numa ponta e eu na
sobreponta respectiva, pouco distante da orla do mato. Um mitra,
empurrado pela linha, sai do mato, sorrateiramente, enfia para
a terra limpa, correndo como um danado. O compadre Cara­
-Rota desfecha-lhe um tiro, e o coelho, se muito corria, muito
mais passou a correr, mudando de rumo, enfiando por uma vere­
da, que marginava o mato. Lobrigo o figurão lá muito longe,
e largo-lhe um tiro, sem grande confiança em que o chumbo lá
chegasse. Ouviu-se o tiro, e viu-se o coelho, ao mesmo tempo,
enrolar as patinhas, morto no meio da vereda. Fui buscar o coe­
lho, muito satisfeito, tanto mais que destas me aconteciam
poucas.
- Bem feita, sr. compadre!. .. Se eu tivesse vergonha não tor­
nava a pegar numa espingarda.
Estava eu a empiolar o mitra quando o compadre Cara-Rota,
como se lhe desse uma veneta, avança para mim, e diz com o ar
de quem procura responder a uma interrogação interior, ao mes­
mo tempo dolorosa e vexatória:
- Ó sr. compadre, faça favor, deixe-me ver uma coisa.
Pegou no coelho, mirou-o, tornou a mirá-lo, apalpando-o
muito bem apalpado, quase polegada por polegada, e com ele
suspenso pelas orelhas, e espingarda encostada a uma carrasquei­
ra, disse-me pausadamente, como se estivesse a desenvolver um
raciocínio complicado:
- O sr. compadre atirou ao coelho um pouco de rabo, mas
do lado esquerdo; eu atirei-lhe de atravessado, pelo lado direito,
ia ele correndo, fora do mato, nesta direcção . . . Só um podão que
nunca tivesse pegado numa arma, erraria num caso destes. A ver­
dade é que ele não ficou no meu tiro; meteu-se na vereda, e só
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 119

quando o sr. compadre desfechou com ele, é que enrolou a copa


e nunca mais se mexeu. Mas faça o sr. compadre favor de ver -
o coelho não tem um bago de chumbo do seu lado e do meu lado
tem uns poucos.
Era verdade. O coelho fora morto pelo compadre Cara-Rota
e perante a evidência irrecusável eu dei sinais de mágoa embora
não desabafasse em lamentações.
- Isto na caça, sucedem coisas que só vendo se acreditam.
De uma vez, naquelas chapadas do Monte Grande que vão bater
em Vale de Leitão, os cães ergueram uma lebre, muito adiante da
linha de caçadores. Corria que parecia que tinha asas nas patas,
o bicho do diabo. Cada vez os cães lhe ficavam mais para trás, e
quando ia chegando ao fim da ladeira, o João da Baroa larga-lhe
um tiro, e a lebre fica estendida como uma pescada. O primeiro
cão que lhe chega ao pé foi um podengo, atravessado de galgo,
que tinha o António Joaquim, do correio, e que era um barra para
trazer à mão.
- Foi um bago de chumbo desgarrado, que lhe deu num sí-
tio mortal.
Passou-se vistoria ao bicho, e qual chumbo nem qual carapuça.
- Tinha morrido de susto?
- Não, senhor; tinha morrido de esfalfamento, com os bofes
arrebentados.

A última vez que vi o compadre Cara-Rota já ele deitara os


oitenta para trás das costas mas andava com desembaraço, apru­
mado como um rapaz. Recordei, mentalmente, os afastados tem­
pos em que ele ia trabalhar às Mesas, ainda novo e eu criança,
e pareceu-me vê-lo de machado nas unhas, falquejando à esquina
1 20 VASCO GRAÇA MOURA

do Monte, largando tudo, a inchó ou o machado, se ouvia tiros


no Cabeço.
Era muito alegre, muito folgazão sempre de bom humor, como
se a vida lhe corresse em todos os momentos fácil e vantajosa.
Não era desordeiro, mas gostava de dar a sua castanha quan­
do se lhe oferecia a ocasião.
De uma vez, logo no dia seguinte à feira de Santo António,
apareceu no Monte um maltês, homem forte, de meia-idade,
surdo-mudo de nascença. Para estes desgraçados a esmola era
sempre mais avultada, por expressa ordem de minha mãe. Dava­
-se-lhes umas sopas, se as pediam, e levavam sempre um pão
e conduto, geralmente um queijinho ou azeitonas.
- É uma grande infelicidade não ver, mas não ouvir nem fa­
lar é infelicidade ainda maior.
Qyando a criada dava a esmola ao pobrezinho, o compadre
Cara-Rota apareceu, em mangas de camisa, porque era assim que
ele, mesmo no inverno, trabalhava no ofício. Viu o maltês, esta­
cou, e como ele se dispusesse, recebida a esmola, a ir-se embora,
desfechou-lhe esta pergunta:
- Há quanto tempo é que você é mudo?
O homem não se deu por achado, e a criada, rindo, comenta
a pergunta.
- O sr. Francisco sempre tem cada uma! Se o homem ou­
visse, e fosse capaz de responder não era surdo-mudo ...
O compadre Cara-Rota, não se importando com as filosofias
da moça, repetiu a pergunta:
- Há quanto tempo é que você é mudo?
Ouvindo altercação à porta do Monte, acudiu minha mãe,
a inquirir do que se passava.
- Não é nada, senhora comadre. Este desgraçado perdeu a
fala, e eu vou-lha restituir com uma untura de marmelo no lombo.
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 121

Palavras não eram ditas, deita a mão a uma vara que estava ali
perto, menos grossa que um bordão, e vá de zurzir o maltês,
como se batesse em centeio verde. Minha mãe, espavorida, queria
acudir ao infeliz, mas o compadre Cara-Rota, não atendia os seus
rogos, e o maltês levava e encolhia-se, queixando-se por gestos
e por guinchos.
- Ah ele é isso! Não queres falar? . . . Espera que eu já te ar­
ranjo.
Sacou da algibeira uma navalha, que abriu dando três estali­
nhos, e como fizesse aceno de avançar para o homem, disposto
a cravar-lha no fole das migas, o maltês caiu de joelhos, a pedir
misericórdia.
- Não me mate, pelo amor de Deus, que eu não fiz mal
a ninguém.
- Ora esta! - dizia minha mãe, mal acreditando no que
ouvia. - Qyem havia de dizer...
- Dizia eu, senhora comadre, porque ainda ontem à noite vi
este pardal numa barraca da feira, muito bêbedo, ameaçando toda
a gente, e desenrolando um palavreado que até envergonhava as
pessoas.

Nos maus anos cerealíferos, todos os que eram capazes de


perder uma noite, homens e mulheres, em romaria pelos Montes,
saíam a cantar as janeiras, fazendo-se acompanhar dos moços pe­
quenos, os que os tinham, para maior colheita.
Ou porque chovesse muito e as terras se encharcassem, afo­
gando as sementes, ou porque chovesse pouco e as sementes
murchassem, apenas salpicando a terra de manchas verdes punc­
tiformes, quando o ano agrícola se mostrava assim, nada prome­
tedor, dizia meu pai, nas vésperas do Ano Bom: - Temos ano
de Janeiras, a não ser que chova a cântaros.
1 22 VASCO GRAÇA MOURA

Mesmo chovendo, e às vezes com um frio de bater o queixo,


nos anos que se anunciavam maus, o gado a morrer de fome, a
família sem trabalho, porque nem sequer havia erva nas searas,
tornando necessária a monda, em anos tais, a concorrência de ja­
neireiros era enorme, sobretudo não havendo barrancos a passar,
que fossem cheios.
Os criados eram os primeiros a cantar as janeiras, à porta do
Monte, e para eles a esmola era especial - pão alvo, chouriço
para assar no espeto ou carne para uma friginada e vinho numa
garrafa ou numa borracha, segundo o número.
Era quase certo que debutavam por esta cantiga:

Esta casa está caiada


Do telhado até ao chão;
Os senhores que nela moram
Deus lhes dê a salvação.

Também nós, eu e meus irmãos, cantávamos as j aneiras,


e minha mãe mandava-nos dar a esmola pelo postigo, como aos
outros janeireiros, o que muito nos lisonjeava. Consistia a esmola
em guloseimas, já divididas em porções, para evitar lutas fraticidas.
A gente de Messejana era a que chegava mais cedo, em ran­
chos, os homens enrolados nas suas mantas, as mulheres nas suas
mantilhas, havendo geralmente em cada rancho uma cantadeira
de fama, a Sofia, que era a mais pimpona de todas, a Bárbara Bo­
nita, que por sinal era muito feia, mas trinava como um rouxi­
nol... que apitasse como os comboios.
A Sofia, que era poetisa a valer, repentista como o Bocage, não
garganteava as habituais quadrinhas, de uma tão charra banalidade,
a maior parte, que dificilmente se encontraria na grosseira urdidura
de qualquer delas uma centelha de inspiração. Improvisava à porta
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTIJGUESAS DE NATAL 123

dos Montes, de modo que cantava só, e isso fazia com que a esmo­
la do seu rancho fosse mais avultada. No despique ninguém lhe
ganhava, a cantar uma noite inteira, nos arraiais, às vezes tendo de
bater-se ao mesmo tempo com dois e três cantadores de reputação
concelhia, mestres na desgarrada.
Tenho pena de não ter escrito algumas das quadras e deci­
mais que a Sofia arquitectava sobre mote, dizendo-as sem hesita­
ção, como se as tirasse da memória. Instruída e educada, a Sofia
de Messejana estou que marcaria na literatura feminina do nosso
país um lugar de relevo e distinção.

A Musa popular alentejana é pouco imaginosa; falta-lhe ge­


ralmente elevação de pensamento; falta-lhe elegância na expres­
são; falta-lhe correcção na forma. A inspirar os janeireiros, pelo
menos os que iam cantar às Mezas, nunca entalhava na música
arrastada dos seus cantares uma quadrinha que tivesse o recorte
simples mas elegante do junquilho, a fragrância quase doce do
mantrasto, a leveza pouco menos de imponderável da papoila.
É ver por estas amostras:

Ó senhor lavrador
Vestido de saragoça;
Mande-me dar a esmola
Pela sua filha mais moça.

Quando eu aqui cheguei


Dei um tope num cortiço:
Logo o coração me disse
Que me dariam um chouriço.

Venho-lhe dar os bons anos


Que as boas-fostas não pude;
1 24 VASCO GRAÇA MOURA

Venho a fim de saber


Novas da sua saúde.

O sr. Manuel de Brito


Cordão de ouro no chapéu;
Quando vai para a Igreja
Parece um anjo do céu.

Era pequeno o rol das cantigas j aneireiras, de modo que


o rancho que chegava, às vezes sem lhe alterar a ordem, repetia
as do rancho que imediatamente o antecedera. Esta monotonia
só era quebrada pela variedade das vozes, cada rancho formando
um coro desafinado, em que seria difícil, senão impossível, uma
classificação.
Se o frio era dos que enregelam, chegava-nos à chaminé,
onde havia um lume que enchia de calor a casa toda, a tremura
das cantadeiras, mal enroupadas, parecendo que o seu delgado fio
de voz coalharia no ar, se não se calassem depressa.
Acudia minha mãe:
- Vão levar a esmola, e digam que não cantem mais.
Obtinha sempre um grande sucesso o rancho que cantava os
três do oriente - os três desorientes - diziam os janeireiros,
lenga-lenga que eu sabia de cor, e que se me varreu, quase por
completo, da memória.
Principiava assim:

Quem são os três cavaleiros


Que fazem sombra no mar?
São os três desorientes
Que a jesus vêm buscar.
Não procuram por pousada
Nem onde o irão achar;
Procuram o Deus menino
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 125

�e nasceu para nos salvar.


Foram-no achar em Roma
Revestido no altar;
Missa nova quer dizer,
Missa nova quer cantar,
S. Pedro ajuda à missa,
S. João muda o missal.

O tio Rosa explicava que os três cavaleiros eram os três reis


do Oriente, uma terra lá para os fins do mundo, os quais tendo
notícia de que nascera Jesus, se puseram a caminho, para o adora­
rem. Como eram muito grandes, e montavam cavalos do tama­
nho de torres, faziam sombra no mar. Chegados à arramada onde
Nossa Senhora dera à luz, aí souberam que o menino fora levado
para Roma, porque Herodes era um grande malvado, e tinha
dado ordens para o matarem. S. Pedro e S. João acompanhavam
Jesus, e uma vez chegados a Roma perguntou-lhes o Papa o que
desejavam. Vai então Jesus respondeu que desejava dizer missa na
Igreja matriz, ao que o Papa anuiu, e como o sacristão tinha ido
fazer um recado, S. Pedro e S. João ajudaram ao oficio divino.
Veio Herodes a saber onde Jesus estava, e mandou lá buscá-lo,
entregando-o aos judeus, que o levaram à presença de Pilatos,
pedindo a sua morte. Pilatos disse-lhes que não havia motivo
nem razão para semelhante feito, mas que se o quisessem matar,
o ma!assem, que ele lavava daí as suas mãos. Foi o Senhor prega­
do numa cruz, entre dois ladrões, e ressuscitou ao terceiro dia de­
pois da morte, para nos remir e salvar.
Sucesso ainda maior alcançava o rancho que cantava a cha­
mada oração das almas, lamúria fiínebre que era entoada muito
lentamente, nenhuma voz excedendo o regime médio, e no coro
predominando o baixo profundo, dando a impressão de vir a can­
toria do interior das sepulturas, a coar-se por entre túmulos.
126 VASCO GRAÇA MOURA

Só me recordo do começo desta oração:

Acordai, ó acordai,
Desse sono tão pro.fUndo;
Que vos estão batendo à porta
As almas do outro mundo.

Esta oração era sempre ouvida em religioso silêncio, e dizia


meu pai que uns homens de Ervidel a cantavam tão bem e com
tanto sentimento, que não era fácil ouvi-los sem chorar.

As Janeiras!
Até à meia-noite ainda estava tudo a pé, no Monte, para ou­
vir os janeireiros, contrariando o velho hábito, raramente inter­
rompido, de ir tudo para a sossega, mal engolida a ceia, e engo­
lia-se a ceia ao acender as luzes. Meu pai, em algum dos filhos
cabeceando, ordenava-lhe que se fosse deitar - na cama é que se
dorme - o que punha logo o dorminhoco gazil como um furão.
De quando em quando vinha uma roda de café, um copinho
de aguardente, um cálice de vinho abafado, para espertar, sendo
estas bebidas acompanhadas de alguma trincadeira - bolos fei­
tos naquele dia, nozes e figos comprados na feira de Castro, bo­
lotas que tinham avelado numa alcofa, ao canto da chaminé, es­
colhidas umas no Poço Seco pelo compadre Rabino, escolhidas
outras no Sabugueiro pelo compadre Bugado.
Amos e criados, destes os mais antigos na casa, os compa­
dres, os afilhados, fraternizavam naquelas noites de festa; empar­
ceiravam no jogo; comiam do mesmo prato; quase bebiam pelo
mesmo copo; fumavam na mesma onça de tabaco. E não havia
uma desatenção, uma falta de respeito, todos juntos e cada um no
seu lugar, a mesma alegria ingénua e franca iluminando todos os
AS MAIS BELAS H ISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 127

olhares, a mesma paz interior reflectindo-se em todas as palavras


e gestos.
Ficavam sempre dois criados de vela, até pela manhã, para
darem as esmolas, e eu ficava com eles, rebelde ao sono, como se
fosse atacado de espertina. Por minha conta e risco - o risco era
nenhum - cortava-se um chouriço já curado, e toca de o assar
no espeto. Abria-se um pão alvo, pelo rebordo, e o pingo do
chouriço ia embebendo o miolo, dando-lhe um gosto muito
apreciável. Minha mãe, num descuido propositado, deixava algu­
mas garrafas de vinho no armário aberto, e eu nenhuma hesitação
tinha em ir buscar uma ou duas para que o pão e o chouriço não
arranhassem as goelas dos meus convivas. Ia chamar alguns cria­
dos de quem era mais amigo, e durava o bródio enquanto havia
de comer.
- A minha mãe é capaz de me ralhar . . .
- Ora! O sr. compadre diz que foram o s ratos que beberam
o vinho enquanto a gente estava a escutar os janeireiros . . .
Os dias que medeiam entre a s Janeiras e o s Reis passava-os
eu num alvoroto, que me valia alguns puxões de orelhas, pois
nada ouvia do que me diziam, e nada fazia do que me mandavam
fazer.
Nunca obtive licença para ir cantar as Janeiras ou os Reis à
Bispa ou às Refróias. Montes próximos e de gente amiga, nem
mesmo oferecendo-se o compadre Rosa, para ir na minha com­
panhia, garantindo que muito antes da meia-noite estaríamos de
volta.
- Fiquem os senhores compadres descansados que não há-
-de haver novidade.
Morro com este desgosto, dos maiores da minha vida. . . de
menino!
128 VASCO GRAÇA MOURA

* * *

As Janeiras! Os Reis!
Poucos, muito poucos são os Montes em que ainda hoje se
dá esmola aos janeireiros, e por isso mesmo, além de várias razões
doutra ordem, são cada vez menos os janeireiros que passam uma
noite de Monte em Monte, cantando aquelas tradicionais quadri­
nhas que o leitor já conhece, e outras de igual valor poético, que
se me varreram da memória.
Os tempos andam tão mudados do que foram!
Eu sinto-me tão diferente do que fui!
Estou a evocar estas recordações numa noite de j aneiras, de
vento fustigante e frio alpino, e precisamente quando suspendo
a pena e fecho os olhos para que seja mais perfeita a evocação, a
Otília, minha sobrinha, grita-me da porta do quarto, aos salti­
nhos, como uma rola na eira: - Tio! O chá está na mesa.
O chá, que naquelas eras, entre rurais pobres e abastados, só
era tomado como remédio, para suar, e era de flores de sabugueiro!
Natal dos pobres
Raul Brandão

NATAL ...

Está um dia fosco de neblina incerta e tristeza. Para lá as ár­


vores despidas não bolem. A vida parou. As nuvens andam a esta
hora a rastro pelas encostas pedregosas dos montes. Não se ouve
um grito. Tudo na natureza se concentra e sonha. Há no entanto
um grande rio envolto que nunca cessa de correr . . .

Longe pelos caminhos, através d e pinheirais cismáticos e ca­


lados, vão velhinhas tristes, de saia pelos ombros, para consoar
nessa noite com os filhos. Andam trôpegas léguas e léguas. As
suas mãos calosas, as caras enrugadas, onde as lágrimas abriram
sulcos, os olhos tristes, contam o que elas têm passado na vida,
dias sem pão, suor de aflições, desamparos, maus-tratos ...
O s cavadores deixaram os arados mortos nos campos, que a
chuva alaga. 01ie tudo repouse. O vinho de hoje conforta, como
as lágrimas choradas pelas nossas desgraças, o lume de hoje aque­
ce como o amor de nossas mães.

Nos soutos, sob a chuva que cai mansa e contínua, andam


pobres que não têm lenha, a arrancar uma raiz esquecida, para se
1 30 VASCO GRAÇA MOURA

aquecerem. Deus os tenha na sua mão de pai. Partem, chegam,


vêm de muito longe, para verem os seus meninos, matando sau­
dades. Qyase não comem e sustentam filhos, sustentam netos.
Os velhos, que têm atrás de si uma vida de martírio e fomes,
dizem:
- É hoje o maior dia do ano ... Na lareira arde um canhoto.
Cai o nevão. A cozinha é negra, de telha-vã, é negro o frio, mas
as almas sentem-se agasalhadas. Por um buraco avistam-se as es­
trelas e uma pedra serve de lar. Ao estalido das pinhas, abafadas
na cinza, repartem um pão que é o suor do seu rosto, bebem o vi­
nho aquecido em árvores que as suas mãos cortaram ...
Sentados ao lume não falam. As brasas vão-se extinguin­
do como um poente, ou como uma alma que vai deixar-nos.
A Morte passa. No buraco do telhado a estrela reluz, o nevão cai
com um ruído das flores desfolhadas, e cada um cisma em algu­
ma coisa de indeterminado e vago, de longínquo; em certa hora
da vida, na mãe, num filho ausente, naquela morta que passou
seus dias a sacrificar-se por nós ...
- O lume apaga-se . . .
- Deitai-lhe canhotos.
O lume apaga-se e as sombras da noite, em revoadas, vêm es­
cutar-nos atentas.

Os pobres são como os rios. Estancam a sede da terra, fazem


inchar as raízes e crescer as árvores; acarretam; moem o pão nos
moinhos. Ei-la a vida da terra. Todas as catedrais se construíram
da sua dor; sem eles a vida pararia.
Natal dos pobres! natal dos pobres! . .. Porque é que criaturas
misérrimas encontram ainda na sua gélida nudez horas para re­
cordar e amar? Pobres repartem o seu pão; espezinhados dão-nos
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 131

das suas lágrimas. Vinho quente! vinho quente e amargo, que sa­
be a aflição! Chegam-se uns aos outros para se aquecerem. Nas
enfermarias, nos sítios onde se sofre, os míseros e os doentes que­
dam-se muito tempo a cismar. Os pobres pensam que existem
seres ainda mais pobres, lares desamparados, onde nem o lume se
acende; cuidam numa velhinha, que, a essa mesma hora, cisma,
abandonada, e sozinha, ao pé de brasas extintas no filho doente,
no filho ausente. . . Há cabanas nuas, lares rotos, almas mais géli­
das que o nevão.

As lágrimas que se choram e se não vêem são as melhores:


caem sobre a alma.

Sofia sobe as escadas com uma caneca de vinho quente, para


repartir com o Cebo. Na sua fisionomia há um cansaço enorme.
A chorar, misturando-lhe lágrimas, o velho, mais gordo e
todo branco, bebe o azedo vinho quente das prostitutas. Depois
abraçados soluçam na trapeira fria. Fora não se ouve rumor: as
coisas ingeridas escutam. Põem-se a cismar na mãe que descansa
na terra encharcada. Tudo tão triste, dias sem pão, e o amor a
prendê-los, a uni-los, mais forte que a desgraça. Não protestam,
não têm forças para gritar. Baixinho o velho Cebo e a filha cho­
ram aquela que a terra primeiro tragou.
- Se o Senhor também nos levasse . . .
E Sofia bebendo do mesmo copo:
- Tenha paciência, tenha paciência ...
- Se o Senhor nos levasse juntos, na mesma hora. .. Cuido
que não tinha tanto frio.
- Aí tem pão.
1 32 VASCO GRAÇA MOURA

- Sabes? Eu tenho medo de morrer. Se morresse contigo,


minha filha, não tinha tanto medo.
- A mãe lá nos espera. Na cova acabam-se as precisões e as
lágrimas . . .
- Tudo s e acaba n a cova. Chegada a nossa hora, acaba-se
também a desgraça.
- Aqui tem o vinho.
Natal dos pobres, noite de comunhão, noite de lágrimas e
saudades! Não é chuva que cai sem ruído, são lágrimas. O Gebo
abre a janela e põe-se a falar para a escuridão com palavras que
a noite escuta, com palavras que a noite leva.

Em torno da mesa de pinho ceiam as mulheres. Com os co­


tovelos fincados nas tábuas, olham o vinho quente e cismam . . .
Ceia de natal! Ceia de natal! . . . Até a s prostitutas s e querem lem­
brar... Moídas de pancadas, têm más palavras, gritos, e um sorri­
so humilde. Fazem-se pequeninas para que lhes perdoem uma
vida infame.
Falam! falam! . . . Parece que a mesma primavera negra fez dar
emoção a estas criaturas exploradas e servidas. Lembram-se da
sua vida, sempre lágrimas, risos sem piedade. . . Uma começa:
- Ninguém canta?
E logo outra, como se as palavras lhe saíssem de golfão:
- Eu cá foi por fome que me desfrutaram. Ninguém queria
saber de mim e a minha madrasta calcava-me aos pés.
- Eu não sei como foi . . .
- E eu então - continua - fo i por fome. O pai estava en-
carangado e a minha madrasta era tão má, que, por eu me demo­
rar num recado, partiu-me um braço.
- Pois eu foi assim de repente . . . - diz outra. - la pela rua
.
fora. Vinha da fábrica, começou a chover e uma lama! . . . Tinha
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 133

frio e u m homem pôs-se a falar-me ao ouvido e a levar-me. Eu


nem sei como aquilo foi . . . E a falar, a falar, até me doía o cora­
ção! E nunca mais o vi. Se o vir acho que nem o conheço.
- Enganam e nunca mais querem saber.
- A mim minha mãe bem me pregava, mas a gente que há-
-de fazer?
- Ontem os soldados puseram-me o corpo negro - diz uma.
E mostra a triste carne magoada, os seios murchas e com nó-
doas. No ombro os ossos furam-lhe a pele.
- Qyando eu morrer. . . oh quando eu morrer! . . .
- Tola!
- Qye tem? Tenho ali a roupa apartada.
- A mim, enganaram-me, levaram-me . . . Eu não sabia nada.
Depois comecei a servir. Enganavam-me e punham-me fora . . .
Depois não tinha mais para onde ir ...
- Eu cá tive um filho. . .
Uma que estava calada soluçou n o escuro. E como todas se
voltassem pôs-se a rir e a ajeitar os cabelos.
- Eu tive um filho e pus-me a criá-lo. Depois disso o meu
amigo nunca mais quis saber. Qyando eu o procurava ria-se.
Mostrava-lhe o inocente e ele punha-se a rir. - Mulheres não
faltam, dizia-me. Vai-te! - E a gente fica feia. Vai um dia e dis­
se-me: - Se cá tornas chamo a polícia. - Eu chorei até não ter
mais lágrimas e acabou-se tudo. São todos o mesmo. Noutro dia
vi-o, mas ele fingiu que não me conheceu.
- E o teu filho era bonito?
- Era um anjinho do céu. Tanto chorei que secou-se-me
o leite de chorar. A gente sempre é mais tola! . . . Pôs-se muito
chupadinho e morreu.
- A Maria já deitou um à roda.
1 34 VASCO GRAÇA MOURA

- Eu cá se tivesse um filhinho acho que morria por ele. Não


tinha coração para o dar a criar.
- A gente não podemos ter filhos.
- Eu cá era uma inocente. Até me dá riso! Tinha treze anos
e foi logo ao entrar para a fábrica. O mestre foi quem me desfru­
tou. Agarrou-me, mas eu não sabia e pus-me a chorar. - Cala­
-te! se dizes, vais para a rua! - Abandonou-me, outros vieram ...
A gente há-de cumprir o seu fado.
- Eu cá fui um miminho. Meu pai tinha de seu ... Depois
tudo esqueci, porque senão a gente morria. Meu pai era muito
meu amigo. Era preciso não ter coração para o enganar. Nem ele
podia supor mal de mim, nem do outro que entrava na nossa
casa. Meu pai era também muito amigo dele e tinha-lhe valido
sempre. Ainda me lembro, quando meu pai comigo no colo me
dizia: - Tu és o meu coraçãozinho . . . - Eu sempre tive um
colo! Olhai: embalava-me como às crianças. - Falta-te a tua
mãe, mas eu sou a tua mãe, queres? - Era uma dor do coração
enganá-lo e nós enganámo-lo ambos. E eu bem sabia que ele era
casado, mas mentia-me ...
- Porque será que os homens mentem sempre?
- Mentia-me sempre, e eu era inocente. Mentiu-me e men-
tia a meu pai. O pior é que um dia fiquei grávida. Começou o
meu castigo. - Vou-lhe dizer tudo. - Diz - disse ele. Mata­
-lo. Se queres diz... - Eu calei-me. - E agora? - Agora... -
Eu já lhe não queria, acho mesmo que nunca lhe quis deveras.
Foi uma desgraça. Já estava escrito que fosse desgraçada, acabou­
-se!. .. Depois não podia esconder o meu erro. Só meu pai não re­
parava... E ele que me imaginava uma inocente! ... Esperai ... -
E agora? agora? ... - perguntei-lhe. Então arranjei com que meu
pai me deixasse ir com ele e a mulher para uma quinta. Se vós
vísseis! A pobre da mulher! Batia-lhe sempre, tratava-a pior que
As MAIS BELAS H ISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 135

a u m cão. - Cala-te! e ela calava-se, a pobre. - Fala! - e ela


falava. - Ó estupor, tu não te calarás! - Ela tinha os cabelos to­
dos brancos e vai eu um dia perguntei-lhe quantos anos tinha. -
Trinta - respondeu-me, e calou-se. Fiquei passada. O homem
diante dela dava-me beijos para a ver chorar. Dizia-lhe: - Vou
dormir com ela, ouves, velha? - E dormia comigo. A senhora
não dizia palavra. Chorava e punha em mim uns olhos tão tristes,
que faziam aflição. Um dia que ficámos sozinhas, ela disse-me:
- A menina há-de ser uma infeliz. - Eu chorei; e ela com a
mão nos meus cabelos, a fazer-me festas! - Coitada! coitada,
que sorte a sua tão negra! . . . Ainda eu ... - Porque não o deixa?
- perguntei-lhe. - Já me tinha deitado ao rio se não fossem
os meus filhos.
- Ele sempre há desgraças! Às vezes mais vale ser mulher
da vida.
- Esperai pelo resto. Tive as dores uma noite no Verão, em
Agosto, e a pobre da senhora é que me tratou. Ele levou-me logo
o filho. Na outra sala ouvi gritos. Vai e atirei-me pela cama fora,
sem saber o que fazia. - Onde está o meu filho? - Fui mesmo
de rastos e pus-me à porta a escutar. Eles berravam. - Se falas
esgano-te! - dizia o malvado à mulher. - Mata-me! - tornava
ela. - Tu queres a minha desgraça? Estorcego-te! - Depois
ouvi um grande grito e fiquei como morta. - O nosso filho?
o meu filho? - Nasceu morto. - A mulher a um canto chorou.
Chorou sempre depois.
- Tinha-o matado, o malvado? ...
- Tinha. Afogou-o na latrina. Depois veio a polícia. Espe-
rai ... A criada ouvira os gritos. Sabe-se sempre tudo, o diabo tapa
dum lado e descobre do outro. Ele fugiu para o Brasil, eu fui pre­
sa, e meu pai diante duma ingratidão tão negra - quereis crer?
- estalou-lhe o coração. Depois ... depois ... A gente quando nas­
ce já tem a sua sina escrita.
136 VASCO GRAÇA MOURA

- E a ti? ... Não falas? - perguntam a uma sumida no escuro.


-A mim enganaram-me. Foi há tanto tempo que já me não
lembra. Tudo perdi.
- E a tua família?
-A gente não tem família.

Na noite, a um canto do Hospital o velho banco de tábuas


puídas, dá-lhe também para cismar. A ventania parou. Duma
fresta tomba luar. A treva amontoa-se ao fundo, e, para além, nos
corredores abobadados, arde um lampião. Direis que o negrume
remexe: pedaços de escuridão destacam-se, escoam-se sem ruído
pelas muralhas húmidas e espessas. Mais para o fundo há como
um abismo, vala comum de treva empastada. Os gritos redo­
bram; depois, por momentos o silêncio sufoca, como o dum se­
pulcro.
- Se é luar que cai daquela fresta . . . - cuida o banco. - Se
fosse luar! Pela escada vê-se a enfermaria onde os lampiões em
fila dão uma claridade triste, que mostra os corpos moldados em
branco, caídos nos leitos: parece uma necrópole subterrânea
e imensa. - Se fosse luar ... - Há que tempos que não sinto o
luar. Era como um ruído branco que me envolvia outrora na flo­
resta. Neva às vezes luar. E havia ainda outras vozes . . . Sempre se
sonha, quando certas noites nascem! Era diferente . . . Havia rumor
nas folhas e o vento dizia aos ramos histórias acontecidas nou­
tros montes. Há épocas em que o vento traz noivados, ais de sa­
pos, frangalhos arrancados às flores . . . Se aquela poeira fosse
luar ... E se o luar se pusesse a correr sobre mim, aquecendo-me
como outrora, quando em mim subia não sei o quê de misterioso
e forte?
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 137

Redobram o s gemidos, o s estertores, o s gritos. Os últimos


lampiões apagam-se um a um, como se alguém lhe soprasse. É a
Morte seguindo o seu caminho. Sombras esvoaçam. E a cova,
negra, toma corpo, vive, mais calada, maior, vala infinita, a que
uma luzinha dá alma. E o banco cisma:
- Há que tempos que não sinto em mim a luz da manhã,
que traz consigo a vida de tudo o que existe, dos rios, das outras
árvores, nem o Sol a crescer em vagas de oiro, nem a água verde,
melancólica, e tão mansa entre os choupos que parece ir vogando
já morta ... Sinto-me transido . . . Transido? Isto é como fogo, mas
trespassa-me de frio. E não há nevão, mas ouço sempre gritos,
ais, dores ... Oh se fosse luar! . .. Destas enfermarias corre também
um sonho parecido com luar. . . Será uma fonte? ... As fontes! nem
te lembres das fontes! . .. Aqui parece que as minhas fibras mer­
gulham num mar revolvido, que eu ignoro, mas que é feito de
gritos.
Baixo a pedra começa também a lembrar-se e àquela hora
perdida da noite toda a alma inconsciente do Hospital estremece.
Qier recordar, palpita e logo esquece ... Os sonhos dos doentes,
dos pobres, dos tristes, materializam-se e são como nuvens: são
de fogo, são de luar. Sombras aos bandos dissolvem-se, para ou­
tra vez se criarem.
- Acho que sempre é luar ... E quando havia Sol? Torrentes
corriam pelo meu tronco, inundavam a minha roupa cascosa e
em volta numa poeira azul andava um turbilhão de bichos. Ou­
tras árvores flutuavam na mesma poalha e as suas folhas ou eram
de sol ou todas de prata. Longe - e que encanto aquela compa­
nhia sempre presente e amiga! - o fio do rio chalrava. Folhas
caíam e iam devagarinho viajar sobre a água verde. Para onde? ...
Debaixo de mim, até ao mais fundo das minhas raízes quantas
vidas protegi e defendi!. .. As minhas raízes tocavam na vida! . . .
138 VASCO GRAÇA MOURA

Às vezes caía um pé de água, mas depois vinham sempre teias de


sol, fios de sol, para me enredar - e o Sol traz consigo um chei­
ro a terra e renovo que consola, o hálito dos montes e dos pinhei­
ros meus amigos.
Nas temporadas fúnebres em que a água cai a golfões, a gente
concentra-se e fica meio adormecida. Os montes envolvem-se
em nuvens, os bichos na terra tremem de frio sob as raízes e as
folhas secas estalam e gemem com saudades ao deixarem-nos. Se
por instantes se descerra a névoa, os montes são mendigos, com
um grande manto remendado. Ao fim da tarde levanta-se dos
campos um lindo luar azulado que sobe e se dispersa. É a névoa.
Baba de oiro luz na água e os choupos são sombras. Ao longe ha­
via um biombo verde de pinheiros, depois montes, e depois
poentes doirados ... Porque é que . me ponho a pensar e a cismar?
Há tanto tempo que dormia! As minhas fibras esta noite estre­
mecem. Há-de ser do luar . . . Oh se ainda houvesse luar!

As mulheres calaram-se. Não há ruído. Elas próprias so­


nham. Em torno da mesa, na cozinha saqueada, bebem sem pa­
lavra o vinho quente. Algumas pensam decerto num lar e bebem
as lágrimas que caem no vinho e o gelam.
- A esta hora a minha mãezinha há-de por força pensar em
mim . . . - começa uma.
- E tu porque não foste consoar com ela?
- Punham-me fora! queriam-me lá! . . . Meu pai, meus ir-
mãos . . .
- E m minha casa faz-se uma consoada muito grande. As­
sam-se pinhas no lar, e minhas irmãs pequeninas . . . oh minhas ir­
mãs pequeninas! . ..
E sufocada desata d e repente a chorar. As outras não se riem
como de costume. Só uma, sentindo que iam todas chorar, canta:
AS MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 139

S e vires a mulher perdida. . .

- Raparigas, é o fado . . . D e que serve agora chorar? Nin­


guém foge ao seu fado.
-
À noite a minha mãe aquecia vinho e dava-mo na cama.
Sempre a gente é criada para uma vida! Qiem adivinha?
- Cala-te!
- Eu era o miminho de todos, eu ...
- Só eu nunca tive mãe, de mim ninguém se importa! Aca-
bou-se! Cala-te! cala-te! ...

Na escuridão as cinzas que restam num lar fazem tristeza


e saudade. Brilham, esmorecem, vão-se apagar: são vidas que se
extinguem, a alma da treva que em redor sufoca. Assim o Prédio
ao abandono, sob a enxurrada, parecia cismar, como um rescaldo
coberto de cinzas. Parara trágico defronte do Hospital, e cansado,
tal como um pobre ao fim da vida, contempla o seu destino.

Natal dos pobres! Natal amargo dos que não têm pão e se
juntam friorentos em torno dum lume que não aquece; Natal dos
seres que a desgraça usou . . . O vinho enregela, o pão é duro, mas
resta ainda este lume, que jamais se apaga: - Amanhã! amanhã!. ..
Qie poesia tão triste não vai caindo como um choro sobre
aquelas almas de misérrimos, de gebos, de prostitutas, de desgra­
çados!
Numa trapeira o gato-pingado quer dizer: - Amo-te! -
mas foi sempre tão nu que não sabe exprimir o que sente.
Na alma daquela criatura humilde, despida e escarnecida, que
tinha medo de sonhar e até de chorar, fizera-se um clarão. Tal
1 40 VASCO GRAÇA MOURA

o espanto enternecido duma pedra a que uma raiz se apega e que


a olha deitar flor na primeira Primavera. - Fui eu, apesar da mi­
nha secura, pensa o calhau, que a trouxe no ventre.
Sem falar, bebem juntos, ele e a pobre, o mesmo vinho .
Ele diz:
- Ambos somos desgraçados e sozinhos.
O vinho que havia aquecido dá-lho com um pedaço de pão.
Ela olha-o, tendo sempre crescido por acaso e piedade, rota
e triste. Havia pois alguém que a amasse? ...
- Bebe.
- É tão bom a gente estar junta.
- Não se tem frio.
- Esta noite, sabes? ... Lembro-me de minha mãe ... Porque
seria que ela me enjeitou?
Fora choram. Ela ergue-se e vê no corredor uma raparigui­
nha que a mãe pôs fora da porta e que chora e pensa.
- E se eu me deitasse a afogar?
Dá-lhe do seu pão, reparte do seu vinho e, mísera, rota, res­
sequida, diz, pondo-lhe a mão na cabeça:
- Deus te crie para boa sorte ...
Na terra só os pobres sabem ser desgraçados.

Meia-noite! meia-noite!. . . Para que tudo se crie, para que o


pó se transforme em vida, que é necessário? Torrentes de chuva,
oceanos de água. Eis a vida ... Para que do que é matéria algo de
radioso irrompa, que é preciso? Um atlântico de lágrimas.
Da matéria tem nascido à custa de gritos, de fibras torcidas,
o imorredoiro espírito. Através das idades ele se criou, através da
dor veio surgindo. O mundo espiritual é já hoje mais vasto que
o mundo material. A dor é a primavera da vida. Para se entrar
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 141

n a vida o u para s e entrar n a morte h á sempre gritos. A dor ara


o céu cheio de estrelas e os seres humildes.
Qie se cria de tudo isto? que é que se alimenta no infinito?
Destes pobres espezinhados, revolvidos, nascem as coisas eternas
- húmus, amálgama, protoplasma, espírito lácteo, com que se
constroem os mundos. Na vala comum os seus corpos, cansados
de sofrer, são a vida da terra: as árvores, o pão, as formas, a seiva
esplendente. No infinito é da sua dor que se sustenta Deus.

Maio de 1899 - janeiro de 1 900.


Lenda do Natal
Júlio Brandão

A Bulhão Pato

CERTO HOMEM, JÁ VELHO, VIU CHEGAR O NATAL, e pôs-se


a pensar na melancolia, no desamparo da sua vida. Dos filhos,
uns tinham-lhe morrido, outros tinham-no abandonado . . . Estava
só no mundo, com os pés para a cova, e cheio de desilusões, de
ingratidões e de pobreza. Entretanto não havia ambições vis nem
rancores no seu coração. Tinha saudades. Por esse lento caminho
da vida, hoje ermo de afectos, algumas consolações tivera a sua
alma. Recordava-se, às vezes com os olhos orvalhados, postos no
horiwnte esfumado do dia triste. Agora era um farrapo, que ha­
viam de levar os redemoinhos da morte.
À noite (era a nostálgica noite de Consoada) sentiu duas lon­
gas lágrimas a molharem-lhe o rosto. Ele mesmo foi amanhar
um caldo para a ceia. Os piornos ardiam na lareira do casebre
esburacado. O velho encolheu-se ao lume, com os olhos muito
fitos na labareda avermelhada.
Todos estavam, àquela hora, nos lares amoráveis. Ele alem­
brava-se do riso das crianças, desse amoroso e cândido florir de
venturas; avivava-se-lhe o passado, claro e benéfico, cuja árvore
do Natal era cheia de estrelas, cantada de esperanças, e agora, há
quantos anos, um negro e frio cipreste! Para ali estava, sem uma
fala amiga, sem um rosto amado, ouvindo a ventania nos soutos.
1 44 V ASCO GRAÇA MOURA

E cismava que era como esses troncos velhos e partidos, por cima
dos quais o enxurro espumava, e onde nunca mais nasceria flor,
ou cantaria ave . . .
Fez um exame de consciência: fora bom, fora simples. A mu­
lher morrera-lhe ainda na flor da vida; a filha fugira-lhe para a
mãe, quando estava noiva. Antes assim, pensava. A filha era uma
santa, e o mundo era ruim. . . Mais tarde, já trôpego, dois filhos
roubaram-no, e nunca mais apareceram. Como ele se lembrava!
Fora numa noite como aquela, negra e ventosa. Os dois, quando
ele dormia, arrombaram-lhe a arca, e levaram-lhe a meia dúzia de
peças que tinha guardadas no escaninho, para algum ano sáfaro,
de mais negra fome. Afinal tudo era para os filhos, dizia consigo;
os filhos lho levaram . . . Mas nem roupa lhe deixaram, no Inverno
impiedoso, para o cobrir. Tinham sido perversos, os filhos que
ele tanto amara! Depois começou de entrevecer; os braços não
podiam; e onde o trabalho mingua, vai crescendo a miséria. Fi­
cou com uma horta, donde comia o caldo, onde colhia uma cesta
de fruta. Pouco lhe bastava, afinal. O compadre, a quem ele tanto
ajudara, por quem tantos sacrifícios fizera, fora para o Brasil. Por
lá acabara, certamente ...
Estava escorraçado como um cão, pobre como Job. Apesar
disso, na consciência não se apagara a claridade que sempre lha
alumiara. Ela era semelhante a um suave rio bucólico, cuja trans­
parência deixa ver na areia loira a sombra dum cardume prateado.
Ele sentia-se bem naquela miséria, naquele abandono - com
essa leveza e essa graça dos que olhando para a vida inteira não
têm nunca a desviar os olhos duma torpeza ou duma mentira.
Curvado sobre as brasas crepitantes, o velho lançou os olhos
para o banco chamuscado, que lhe ficava defronte. E de repente
ficou extático. O queixo tremia-lhe fortemente. Santo Deus! que
As MAIS BELAS H ISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 145

via ele?! Era inacreditável! A filha e a mulher, a fiarem nas suas


rocas, com um sorriso tão suave, uma serenidade tão bela! Jesus,
Jesus, eram elas! Qye alegria a sua! O velho estremeceu, o cora­
ção bateu-lhe como em moço, balbuciou:
- Ó Maria, ó Luísa, vocês vieram?!
Elas sorriram-se mais docemente, sempre a fiar nas suas ro­
cas. E o velho, com os olhos pregados nelas, sentia as pálpebras
humedecidas duma felicidade extra-humana.
- Ó Maria, ó Luísa! . . .
Assim correram alguns instantes celestes. Ele olhava-as em­
bevecido . Elas resplandeciam, como envoltas num vago luar.
Nunca as vira tão lindas, com mais lindo sorriso. E como não fa­
lavam, o velho calou-se também num êxtase.
Elas continuavam a sorrir, continuavam a fiar. O vento, fora,
soprava rijo nos sobras, assobiava. A noite ia passando a uivar,
feia e longa; mas as horas voavam para aquele velho embelezado
nas visões.
As duas já tinham espiado as rocas. À porta ouviram-se três
pancadas.
Truz, truz, truz!
- Qyem me procura?! - tartamudeou o velho, como des­
pertando dum sonho imenso.
Truz, truz, truz!
Arrastou-se trôpego, abriu a porta. As duas tinham desapare­
cido. Na treva espessa e lúgubre, distinguiu a figura doutro velho
de grandes barbas, com uma sacola ao ombro.
- Sou eu, compadre, sou eu!
- Será possível! Qye felicidade!
E abraçaram-se, num antigo e comovente abraço.
O viandante pousou a sacola, sacudiu a neve do capote, e foi­
-se aquentar ao lume.
146 VASCO GRAÇA MOURA

- Hás-de vir gelado, Manuel!


Vinha, na verdade. Tinha andado muito, a noite estava má,
nevava. Mas há quantos anos ele tinha querido vir passar ali o
N atai! E contou, ao estalar das raízes secas no lume, naquela paz
religiosa e bíblica, a sua crua sorte.
Os velhos sentaram-se um defronte do outro. Enquanto o ca­
minheiro espalmava as mãos sobre o brasido, ia narrando a sua
vida dura, por terras longínquas e ásperas, à busca de fortuna.
Trabalhara muito, sofrera muito. E sempre, através de tormen­
tos, a saudade do seu velho amigo lhe aparecia . . . A vida tinha-lhe
ensinado muitas coisas; mas sobretudo que a felicidade está den­
tro de nós, vive connosco, e que todo aquele que semeia o bem,
há-de colher o bem . . .
O outro escutava-o silencioso, com a vista húmida.
- Acredita que toda a minha pena, compadre, era não poder
abraçar-te!
- E eu cuidava que tu, por tão longe, nunca mais te lem­
brarias . . .
- Pode l á esquecer quem é santo, compadre!
E contou que na volta, mar alto, começou, em pleno dia,
a escurecer o céu. A maruja adivinhara a tormenta. Amainaram
as velas, fecharam escotilhas, preveniram tudo. Minutos depois o
vento rugia, o mar bramia. O navio dançava nos abismos revol­
tos, fulgentes de relâmpagos. Andaram perdidos, com o leme
despedaçado, na água brava. Tiveram fome e sede - e a tempes­
tade a jogar com eles, como com um grão de areia. Nos lábios
das crianças, das mulheres, de todos, abrira a flor divina duma
oração. E a dele pedia a Deus que o deixasse vir à sua terra, para
ver ainda o seu velho companheiro sem arrimo.
- E Deus ouviu-me. Aqui estou.
AS MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 147

* * *

O velho atiçou o braseiro, deitou mais lenha ao fogo. O via­


jante ergueu-se, abriu a sacola, e foi tirando, para cima da massei­
ra velha e carunchosa, as vitualhas que trazia, as ameixas, as pas­
sas, uma garrafa de vinho loiro.
- Não me esqueci da ceia, compadre.
- Assim vejo, Manuel. Deus to pague!
E cearam, como tantos anos antes, quando no casal havia ale­
gria e fartura. Foram conversando, pela noite dentro, com a alma
abrindo numa inflorescência misteriosa. Depois o viandante per­
guntou por todos, por tudo. E vieram as tristezas, as recordações
pungentes: os filhos maus, a filha amada, a mulher morta! . . .
D e novo o velho olhou para o banco d a lareira, e quedou-se
extático, com o olhos alumiados.
- Qye tens, compadre?
- Olha, estão ali!
- Ah! . . . - disse o outro, sem surpresa, olhando em torno.
- Também vieram, Manuel, também vieram!. . .
D e feito, o velho l á vi a d e novo as duas, sorrindo-lhe angeli­
camente, cheias de graça. Uma trança de lírios luminosos touca­
va-as, o mesmo luar de há pouco as envolvia, como se emergis­
sem, pálidas, dum grande sonho místico.
- A Maria, a Luísa, tão lindas! . . . - balbuciou o velho.
O viandante respondeu simplesmente:
- Os que se amam nunca nos abandonam. Estão dentro de
nós, vivem connosco.
O velho nem comia, enlevado nas aparições suaves. Via os
cabelos loiros da filha, o seu ar virgem e esbelto; a mulher, como
no dia em que partira, com os fundos olhos tristes, a boca airosa,
onde jamais houvera o veneno da mentira.
148 V ASCO GRAÇA MOURA

- Vê tu que de mais longe vieram elas fazer-te companhia;


não fui eu só, compadre.
A fronte do viandante estava aureolada agora duma irradia­
ção magnética.
Seguiu-se um diálogo de velhos que padeceram, que nobre­
mente souberam amar, e que em certa hora suprema dizem, num
murmúrio de almas, as suas confissões. Parábolas que lembram
o mar, lembram estrelas . . . Belas e tristes como sepulcros, onde
puseram flores, à lua cheia. É a lenda dos homens - sombras
vagas, que uma luz vaga para sempre desfaz. . .
- Agora, compadre, vamos descansar. Venho quebrado de
fadiga. Dormiremos juntos.
- Pois sim, eu não tenho outra enxerga.
As visões tinham fugido. E os dois adormeceram, noite alta,
quando um galo cantava, como arauto da luz.

Mas de madrugada, quando pelas frestas entrava um fulgor


doirado, o velho perguntou:
- Onde estás, compadre?
Ninguém respondeu. Uma grande paz enchia a casa. O velho
procurou com os olhos, sentou-se na cama. Ninguém! Apenas na
enxerga e no travesseiro de estopa ficara resplandecendo doce­
mente a figura do compadre, como se fosse um brilho de nebu­
losas . . .
O velho ergueu-se, rezou d e mãos postas. O dia d e festa
alvoreceu sem nuvens. Um sol pálido e terno enchia toda a terra
de oiro. Da horta emperlada de orvalho reluzente, o velho veio
ainda contemplar longamente a concha azul do céu misterioso
e plácido . . .
A consoada
Carlos Malheiro Dias

a D. João da Câmara

- As ARGOLAS, MÃE? perguntou, do catrezinho de bancos,


-

a voz estremunhada da criança, que acordara ao rangido da porta.


- Dorme; rapariga . . . Não ficas sem a consoada . . . Teu pai
ainda não chegou da feira.
A criança voltou-se no catre, ficou com os olhos abertos, en­
colhida e emudecida, fitando o fogo da caruma, quase extinto no
lar, onde requentava a ceia do Natal.
Acocorada na soleira da porta, a mãe, embrulhada num xale,
está à espreita, atenta ao menor rumor que vem da estrada.
Já por duas vezes, com o ramalhar das carvalhas ao vento, ela
cuidou ouvir tropear ao longe a cavalgadura.
Não se enxerga um palmo na escuridão da noite de Lua nova.
Um mar de nuvens cobrira os céus, ao fim da tarde. Nem um lu­
zeiro de estrela trespassa agora aquele negrume denso que enche
os espaços e por onde o vento anda à solta, varejando as carva­
lheiras das bouças e assobiando nas agulhas dos pinhais como
uma orquestra de flautas.
- Valha-me Deus! o que atém lá por fora aquele homem,
a estas horas da noite! - murmura a mulher, sucumbida.
- Ó mãe, não haveria argolas na feira e terá o pai ido por
elas à vila. . .
1 50 VASCO GRAÇA MOURA

- Dorme, rapariga! Amanhã já tens as argolas nas orelhas . . .


Por 'mor delas desandou teu pai, sozinho n a égua, por essa serra,
que mete medo!
Eram a consoada da filha. A colheita em pão e vinho fora de
dar graças a Deus. Não havia a pequena de ficar sem as argolas
por mais tempo. Logo ao clarear da manhã, o Manuel da Eira
selara a égua, entalara o varapau debaixo da coxa, lembrado da
quadrilha de Redemoinhos, e pusera-se a caminho para a feira de
Lanhoso, prometendo estar de volta ao amortecer do sol, para
consoar.
Ainda a mulher advertira, receosa:
- Mete-te a caminho cedo. Torna tento com a ladroagem
de Redemoinhos!
E o Manuel da Eira, destemido, voltara-se no selim:
- Hoje é o dia em que nasceu o Salvador. Os ladrões tam­
bém são gente cristã!
E picando a égua com a espora, abalara, afoito, pela estrada.
Já ao longe, na igreja da freguesia, os sinos tinham tocado
para a missa do galo. Rajadas mais fortes de vento enchiam os
céus de um burburinho sibilante e agitavam no alpendre os sar­
mentos das vides ainda por podar.
Súbito, a criança e a mãe erguem-se no catre e no poial da
porta.
Uma voz chama, de entre o negrume da noite:
- Ó se Maria da Eira!
Sobre as traves, o vento parece que arrasta as telhas. Na corte,
os porcos grunhem. Uma nuvem de cinzas ergue-se e rodopia no
lar, sobre a caruma.
Sem pinga de sangue, a mulher grita, numa ansiedade aflita,
empurrando a cancela:
As MAIS BELAS H ISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 151

- Qyem me chama?
E entre o rumor do vento distingue a tropeada da égua, os
passos vagarosos de dois homens.
- Traga a candeia . . . - torna a voz, na estrada.
A criança está já fora do catre, à espera das argolas, esfregan­
do nas costas da mão os olhos piscos de sono.
Tropeçando na saia, a mulher desengancha a candeia da pa­
rede, e à luz mortiça, saindo ao terreiro, vê o seu homem, trazido
a braços, como morto. Atrás do grupo fúnebre avança a égua
trôpega.
Os homens param. O da frente, encarando com o desatino
da mulher, resmoneia, esbaforido:
- Tome conta na luz! Não vamos agora aqui ficar neste ne­
grume! O seu homem. vem vivo.
Só então ela parece acordar do seu doloroso espanto e soluça,
erguendo para o céu ventoso os braços, deixando fugir o xale.
- Nossa Senhora! Divino amor de Deus, que estou des­
graçada!
- Cale-se, mulher! Derreados vimos nós com este peso! De­
mos com ele numa vala, caído ao pé da égua. Foi pancada que
lhe atiraram à falsa fé para o roubar.
Em altos gritos, ela empurra a porta, ajuda a deitar o seu ho­
mem no catre. A criança soluça, refugiada a um canto, sufocada
pelo medo, e enquanto a mulher rasga, com a violência do terror,
uma camisa de linho para ligaduras, os dois homens lavam as
mãos ensanguentadas num alguidar e atiçam o lume da lareira
com um graveto de tojo.
Debalde a mulher agora esparge de vinagre o rosto desfigura­
do do ferido. Com o braço pendente e as unhas cravadas na pal­
ma da mão direita, enlameado e lívido, o Manuel da Eira parece
morto, estendido no catre.
1 52 V ASCO GRAÇA MOURA

- Ele já não tem vida! - clama, num alarido de lágrimas,


a viúva, desanimando de abrir aquela mão crispada de defunto.
Os homens deixam de atiçar o braseiro, amparam-na e er­
guem-na do chão, onde ela se deixou cair desanimada, arrancan­
do os cabelos, com um escarcéu de gritos e soluços.
- Os mortos não fecham as mãos. Isto é cousa que ele tem
escondida.
Então, novamente, reconfortada por uma última esperança,
ela se esforça, mais do que em estancar o sangue das feridas, em
abrir o punho obstinadamente fechado do seu homem.
Mas desfalece depressa e de novo abate, com a voz estrangu­
lada de soluços maiores.
Por sua vez, os dois homens tentam, inutilmente, desunir da
palma sangrenta os dedos inflexíveis.
- Pai, abre a mão! - geme também a criança, aterrada
e aflita.
As suas mãozinhas molhadas de lágrimas imaginam ter a for­
ça, que aos outros falta, para despegar aquela garra.
- Abre a mão, pai!
E de repente, obedecendo à vozita implorante, a mão abre-se
e duas argolas de oiro, pequeninas, aparecem, reluzem e tilintam
no soalho.
Dom Qgixote contra Herodes
Aquilino Ribeiro

MUITO BOA GENTE FAZ REPARO QUE, ATRAVÉS DA CAUDALOSA cró­


nica de Dom Quixote, nunca se diga que o engenhoso fidalgo guar­
dasse domingo ou dia santo, .fosse alguma vez à missa, bem como ofiel
escudeiro Sancho Pança, embora ambos stjam e se declarem cristãos­
-velhos. E, todavia, quantas vezes, nas suas andanças por terras
nunca vistas nem sonhadas, deviam topar aberta a casa do Senhor, as
velas acesas cintilando, ao fundo, contra o oiro dos altares, e o sino da
noitinha ou da aurora, às almas ou às Trindades, a bradar-lhes com
sua goela de bronze: Reza, Dom Quixote! Reza, Sancho Pança! Não
se verem rezar amo nem escudeiro num país tão profundamente devo­
to como é a velha terra de Castela, onde a Santa Inquisição não dor­
mia nem tolerava que alguém deixasse de cumprir os mandamentos
da Igreja, era caso. Como .foi possível?
Depois de muito .franzir as sobrancelhas, depois de muito matu­
tar, decidi-me consultar a Academia de Argamasilha, douta agremia­
ção, que no canónico leva as lampas a Salamanca e a Coimbra. E a
resposta mandou-ma o magnífico reitor, breve, quase indignada:
«O senhor não repara que Cide Hamete Benengeli, autor da verídica
história que Cervantes verteu para romance, é muçulmano e, como
tal, avesso a tudo o que se aparte do culto de Alá?» E, em refõrço e
abono da observância cultural de Dom Quixote, deu-me a conhecer
1 54 V ASCO GRAÇA MOURA

o teor de um documento, muito provavelmente descoberto nos arqui­


vos de Toboso, que acabava de ser objecto de comunicação em sessão
pública daquela douta Academia. Como oferece outras garantias de
fidelidade que não tinha El Buscapié, ainda pelo respeito que me me­
rece o ilustre Cachidiabo, signatário da mensagem, aqui o reproduzo,
traduzido com a devida vénia.

Encontrava-se Dom Qyixote a caminho de Santiago de


Compostela por lhe terem dito que toda a alma cristã que não vai
lá em vida, vai lá em morte, e porque a estrada dos peregrinos,
insolitamente, era a cada passo balizada de crimes inomináveis:
romeirinhas violentadas por senhoritos, impetuosos e contempto­
res da lei divina e humana, ao atravessar os bosques, passageiros
chacinados no sono para os roubarem, envenenamentos das águas
e dos petiscos nas estalagens. O Guia dos Peregrinos é elucidativo:
ln Ispania et Gallecia nunquam commederis, sine dubio aut proxime
morieris aut cegrotaveris. Em Espanha e Galiza livra-te de comer e
beber do que te puserem, se não queres morrer ou quando menos ficar
combalido para toda a vida. Pareceu-lhe que tal rota, trilhada de
santo e ladrão, vindos de todos os cambais da Europa, requeria o
socorro do seu justiceiro braço. Ei-lo pois, subindo da Mancha
para o reino de Leão, daí, Astorga fora, a caminho de Vilafranca
na fronteira galaica, direito por Triacastela para a cidade do
Apóstolo.
Era no mês de Dezembro e, quando não nevava, pela noite
caía um codo que tornava aqueles caminhos de poceiros sonoras
calçadas de laje, onde os cascos de Rocinante e Ruço faziam um
banzé que alvoroçava as gralhas pelas matas e ecoava pelos cam­
pos de restolho e ferregiais numa toada de guerra. Sancho, enca­
badas as mãos nos canhões do tabardo, nariz pingão, batia o den­
te, dobrado sobre a albarda do asno. O engenhoso fidalgo lá ia
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 155

à frente, tupa que tupa, teso que nem um pinheiro ou manequim


de museu de guerra, aquecido ao lume interior de seu fatacaz por
Dulcineia, esse lume que derrete as próprias pedras. Onde se er­
guesse coluna de fumo, Sancho picava o begueiro e, passando
à frente, a pretexto de explorar terreno, em realidade com mira na
casa liberal que os acolhesse ou desse uma parva, contra as ordens
do amo, porque um nobre castelhano morre à fome, é capaz de
aceitar uma esmola, mas não estende a mão. Àquela altura os
camponeses, em seus lares acesos, comiam o cerdo da salgadeira
e já tinham furado o pipinho.
Qiando atravessavam os poviléus, o rescendor da olha fami­
liar afagava a venta de Sancho, que a tinha esperta e voluptuosa.
Mas aqueles vizinhos, batidos e escarmentados na função de es­
moleres, nem sempre estavam dispostos a aboletá-los. Tinham
então que acolher-se à enxerga ingrata das estalagens, que Dom
Qiixote, tendo alienado mais uma courela, possuía maravedis
bastantes com que mandar vir e pagar. Mas tal agasalho era-lhes
francamente detestado. Sancho não tinha vergonha em pedir e
remoer, sempre às espaldas do amo, uma lengalenga que às vezes
pegava:
- Ó meus ricos senhores, dêem uma tigelinha de caldo aos
romeiros que vão para Santiago! Vimos sem comer desde ontem.
Tenham caridade ... O Apóstolo os recompensará no céu...
- Donde são?
- Somos do cabo do mundo, dum pueblo à beira de Cidade
Real. Sabem onde é? Vamos a Compostela num grande voto e a
alimpar o caminho de ladrões e gigantes. Meu amo é o grande e
invencível cavaleiro da Triste Figura que restituiu o reino à prin­
cesa Micomicoa e matou o gigante Caraculiambo. Vai andando e
remetendo tortos e fazendo justiça direita. Traz vestidas todas as
armas consoante o voto e lhe manda o mester de acudir presto
156 VASCO GRAÇA MOURA

a quem precisa. Agora, por desgraça nossa, levamos os alforges


vazios!
Começavam por escutá-lo, curiosos primeiro, depois assara­
pantados, àqueles dizeres: «alimpar o caminho de ladrões e gi­
gantes» e «fazer justiça direita», julgando-o investido de tal mis­
são pelo braço real, e, punham-lhes mesa e mesmo cama. Mas
também havia quem os mandasse ao Diabo, grunhindo por entre
dentes o pãozinho, que lhes custava muito a granjear para agora
sustentarem uns calaceiros que a levavam direita vadiando pelo
mundo. Mesmo assim, os simples e timoratos, depois de medi­
rem aquele homem dos pés à cabeça, couraçado de ferro, com
lança e espada, que a uns lembrava os salteadores antigos, a ou­
tros os soldados de Santa Hermandad com novo farricoco, ou es­
birros da Inquisição, chamavam-nos para casa e lá recebiam a
malga bem migada com o salpicão do lombo e o verdeal nos pú­
caros, à roda da fogueira, e cama vá que escape. A vida de escu­
deiro assim não parecia a Sancho pior que qualquer outra, ainda
para mais com o governo da ilha a sorrir-lhe no meio não de um
claro mar mas de um esmeraldino campo de trigo e cevada.
Depois de darem graças, de as bestas comerem o seu molho
de feno ou erva dos prados, recomeçavam a jornada para a Jerusa­
lém galega, sem grandes eventos, salvo em Astorga onde Dom
Qrixote cometeu o despropósito de atacar uma parea de quadri­
lheiros que levavam um preso. Valeu-lhes o alcaide ter lido a Pri­
meira Parte do Dom Quixote de la Mancha, que circulava também
já pela Galiza muito anteriormente aos acontecimentos de que
ora se dá sucinta notícia:
- O quê?! Estou em presença do invicto cavaleiro da Triste
Figura? Em carne e osso? Não é contrafacção ou efígie usurpada
ao vero cavaleiro por algum encantador?
- Está na vossa presença, senhor alcaide, o autêntico e invic­
to cavaleiro da Triste Figura e mal sorteado amante da sem par
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTLGUESAS DE NATAL 157

Dulcineia d e Toboso. A quem disser o contrário, estou pronto


a provar-lho pelas armas. Pois sou eu esse desventurado cavaleiro
e, se tendes dúvidas, perguntai-o aqui ao meu fiel criado Sancho
Pança, o mais cândido, verecundo e exacto homem que há debai­
xo da rosa do sol.
Sancho tirou o carapuço e disse:
- Senhor, é bem verdade ser este meu amo o nunca visto ca­
valeiro da Triste Figura, o grande Dom Qyixote de la Mancha, e
eu Sancho Pança, Pança de três gerações de pais para filhos, tão
certo como São Tiago combater ao lado dos cristãos contra os
mouros. Nenhum encantador nem encantadora, desde o sábio
Merdelim . . .
- Merlim, queres tu dizer ... - corrigiu Dom Qyixote.
- Merdelim, Malandrim ou Mandolim, dá tudo no mesmo.
Nenhum encantador me trocou no berço, na pia, e agora ao ser­
viço do mais alcançado brigadeiro que veio à luz nas Espanhas.
E, como a mim, nenhum feiticeiro, que eu saiba, o trocou por
outro. Assucedeu isso à minha senhora Dulcineia que fui um dia
encontrar a crivar rabos de centeio.
E, por aqui fora, foi preciso que Dom Qyixote lhe mandasse
calar a caixa, com o que se deu a conhecer, ainda que viesse com
outra cara, outro pelote, a cavalo numa horsa em vez do orelhudo
e pacífico onagro.

Leva que leva; chegou a véspera da Natividade. Fazia tanto


frio que se despegavam as orelhas na cara de um santo, e as árvo­
res encandiladas eram lustres pasmosos de cristal. Foi com desa­
fogo que se viram à entrada de um lugar em que lavrava grande
animação. Gente ia, gente vinha, e no largo os vizinhos acendiam
uma grande fogueira com troncos e grossíssimos ramos. Ante a
fumarada e algazarra, Dom Qyixote parou a distância com o leal
158 VASCO GRAÇA MOURA

escudeiro à banda, para a hipótese de que houvesse aw a puxar


da espada. Ninguém, porém, fez reparo neles, pois que, passando
por ali a rota que das desvairadas partes do mundo levava à cida­
de do Apóstolo, estavam habituados a todos os trajos, desde o gi­
bão golpeado à valona de alamares, do penitente de saco ao gen­
til-homem de gola de canudos e a luzir plumas de garça no
sombrero.
Qyando a chama crepitou, Sancho, que levava as mãos enga­
danhadas e várias vezes lhes soprara, fez jeito de se aproximar.
- Chegue-se adiante, patrãozinho, e aqueça-se ... Aqueça-se ...
Dom Qyi:xote quedou hirto no Rocinante, que olhava melan­
colicamente para os pastos de verde relva, que se estendiam por
ali abaixo viçosos e esmaltados pela chuva, trespassado de frio,
mas aquecido ao lume espiritual do amor, que costuma derreter
o próprio gelo.
- Como se chama este povo? - perguntou Sancho.
- Santiago de Boente ...
- Pois têm por aqui taró para rachar penedos. Taró e neve.
Mas, louvores a Deus, ano de neve paga o rendeiro o que deve.
- Sim, senhor, temos mais gelo que dinheiro. Vão então de
romaria ao Apóstolo? . . .
- Para l á caminhamos, s e Deus quiser.
- Amanhã em Castanola, não se esqueçam de pegar duma
pedra bem taluda e levá-la às costas. Chamam-lhe a pedra da de­
voção. Sem ela, São Tiago não lhes toma em conta as passadas . . .
- Antes fosse u m saco d e nozes, mas e m suma já que é cos­
tume . . .
Puseram-se a atiçar a fogueira, e como Sancho falasse que era
tarde para deitarem a Ferreiros , onde lhes tinham inculcado
como boa a estalagem, um senhor que chegou, e a quem os cir­
cunstantes abriram respeitosas alas, proferiu:
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 159

- Aqui e m Boente também h á estalagem . . . e nada má.


Hoje, por sinal, tem marrã ...
Sancho que tal ouviu, deitou a correr para o amo:
- Senhor Dom Qyixote de la Mancha, aqui nesta santa ter­
rinha há pousada! Esta é das abençoadas pelo Pai dos viandantes!
Venha daí.. .
Dom Qyixote pareceu não ter ouvido, e repetiu mais alto:
- Senhor Dom Qyixote, senhor cavaleiro da Triste Figura,
temos pousada! ...
O amo não deu mais sinal, pelo que Sancho se pôs a sacudi­
-lo por uma perna. Tanto sacudiu que ele se desaprumou na sela.
Mas, em vez de cair abaixo, ficou tombado em sua rigidez, como
um tronco que não acaba de desabar seguro pelo espigão.
Reparou logo que Dom Qyixote regelara dentro da armadu­
ra, que era assim, ao mesmo tempo, ataúde e esteio. E aos seus
gritos desapoderados acudiram os homens da fogueira e o senhor
circunspecto:
- Leva-se para a estalagem. . . Está morto de frio!
- Coitado do homem, tragam-no para minha casa! - disse
o bom senhor. - Está inteiriçado. E preciso acudir-lhe já, por
dentro e por fora. Como é homem de poucas carnes, coitadinho,
gelou-se-lhe o sangue nas veias.
Conduziram o cavaleiro em braços para a casa próxima e
acenderam um bom lume de achas de carvalho; uma mulheraça
compassiva, com ares de dona, deu-lhe um caldo bem quente, e
Dom Qyixote enguichou. Sancho, que a tudo assistia com o pes­
coço dobrado, ia rezando, pela alma dele, muitos padre-nossos e
ave-marias, que são fruta que não apodrece no chão, estivesse ele
morto, vivo ou a passar as alpoldras para o outro mundo. Uma
menina, que ali apareceu e devia ser da família, espreitava muito
atenta com olhos floridos e o seu papinho de anjo.
1 60 V ASCO GRAÇA MOURA

- Qiem é o ilustre e honrado castelão - balbuciou afinal


Dom Qiixote - que me deu a honra, e a tem, por sua vez, de
receber em seus paços o cavaleiro que soube resistir aos ataques
de todos os Ferrabrases e caiu prostrado às inclemências da natu­
reza? Boa mãe lhe chamam, e o é, sim senhor, quando lhe não dá
para ser má. Mas ainda quando o é - as bocas perversas lhe cha­
mam porca madre - ela se corrige com a ajuda do céu, que depara
aos necessitados tão boas almas como o ilustre samaritano que me
acolheu no seu alcáçar. Como é o nome de Vossa Mercê que que­
ro pôr a minha espada ao seu serviço e acrescentamento?
- Senhor cavaleiro, eu sou o cura deste povo, o licenciado
Pablo de Taramundi, mas tenho-me por homem pacífico e dou
graças ao céu que não preciso de quem terce armas por mim.
- Pois, senhor licenciado Dom Pablo de Taramundi, aqui
estou peito feito para justar com os seus inimigos, se os tem -
insistiu Dom Qiixote.
- Meu amo - disse Sancho - é capaz de meter em copas
um exército de Malandrinos.
Já o licenciado Pablo Taramundi dera conta de que faltava
uma aduela ao estranho cavaleiro e não menos ao criado, se bem
que neste fosse por deficiência que não por desarranjo de parafu­
sos. Tendo ao cavaleiro por uma espécie de fantasma do passado,
absurdamente ressurrecto, prometeu-se tirar nabos da púcara de
Sancho, que era o menos hermético dos dois, pois se limitava a
esconder, como também já apurara, no fundo dos alforges, o seu
chouriço e naco de presunto que lhe davam as almas santas.
Sentaram-se à mesa da consoada, com certo melindre de
Dom Qiixote, que de modo algum queria ser importuno, e gran­
de relambório de Sancho, que estava pilando por untar a barbela.
Trinca trincando do bom e à farta, falou-se na grande festa que
haveria na terra, depois da missa do Galo. Caía ali o peso das
aldeias com seus descantes e folguedos. Mas Dom Qiixote mal
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 161

ouvia, enlevado o seu pensamento em Dulcineia, flor de formo­


sura. Sancho encheu a búsera, depois do que se pôs a jogar o rapa
com a menina da casa. À sua hora foram todos ouvir a missa do
galo; que a celebrava o próprio licenciado, e passa em toda a vas­
tidão galega por ser a mais santa na roda do ano. Dom Qyixote,
quando, diante do presépio, viu o Menino Jesus deitado no seu
bercinho de palhas; a rir, com as pernocas no ar, ao lado da san­
tíssima Mãe, não se conteve que não arrancasse da espada:
- Havia de eu lá estar, príncipe do mundo, havia de eu lá
estar, que Herodes não lançava contra ti e os meninos a ordem
nefanda! Primeiramente lhe havia eu de torcer o pescoço a ele, a
seus pretorianos e a quantos legionários saíam da Roma pagã
para as terrinhas nazarenas!
O licenciado pretendeu fazer-lhe ver que o presépio não pas­
sava de uma representação. Ele, porém, não prestava sentido ao
que lhe diziam, levado no voo da imaginação para fora do tempo
e do espaço. E rangia os dentes e suspirava. Persuadido de que
aquela cabeça não governava e que semelhante estado de exalta­
ção poderia ser efeito dos grandes trabalhos que padecera na jor­
nada através das províncias agrestes de Castela e de Leão, ora
com a barriga a dar horas, ora com as agulhas de cacimba ferra­
das na carne até os ossos, mormente sem dormir ou dormir em
maus lençóis, tratou de o acomodar em sua casa, bem como a
Sancho Pança. Mas deixou-os em dormitórios diferentes, o cava­
leiro no primeiro piso soalhado, que a casa era de torre, e o criado
a um canto da manjedoura da égua, o que não estranhou como
bom labrego que era. E foi esperluxar o criado, após o que ficou
a saber o que precisava saber e mais do que isso.
Sancho deitou-se, mas muito cedo, ainda refocilava no sono
deleitável da alba, sentiu-se sacudido por um vendaval:
1 62 VASCO GRAÇA MOURA

- Levanta-te, Sancho, hoje é o grande dia destinado aos


meus incríveis feitos! Hoje é que te conquisto a ilha, ou nunca
mais te sentas no trono ...
- Mas então que há?
- Esta noite, antes de me deitar, fui à janela espreitar se aca-
so algum cavaleiro inimigo se propunha atravessar a ponte levadi­
ça. Porque, não sei se sabes, os nigromantes transformaram este
castelo em presbitério e o castelão no reverendo Pablo de Tara­
mundi. Nada mais falacioso que as aparências! Mas sem que ele o
saiba, que é homem confiado, ouvi a palavra de passe e a traça do
ataque. Diziam eles com voz regozijada: Seis gigantones e outros
tantos cabezudos hão-de-se ajuntar em Mellid à espera dos gaiteiros
de Agrón, Linares e Abeancos. Ao nascer do sol temo-los aí botados!
Qye me dizes?
- Digo-lhe, senhor Dom Qyixote, que volte para a cama
e se deixe de tais danças. Gigantones, marmitones, capadones,
são termos que não dizem nada de nada na fala da nossa Mancha.
Mas cheira-me a negócio de foliones.
- São mais que gigantes, supergigantes! Mas, deixa, vão ver
quem lhes toca a pavana bem tocada da tola para baixo! Só te
digo que me seles o Rocinante. Qyando eles assomarem na estra­
da que se avista do balcão correndo das bandas de nascente, quero
cair sobre eles e desbaratá-los. Nem hão-de ter tempo para saber
que foi Dom Qyixote de la Mancha que desabou sobre eles como
um raio, e os devolveu às profundas do Inferno.
Sancho coçou a cabeça, reflectiu, o que nele era piramidal,
e à socapa foi avisar o licenciado. Este não ficou menos perplexo,
sem saber como atalhar à loucura bélica do cavaleiro, que seria de
incalculável risco quando pelo caminho se avistasse a comitiva
de gigantones e cabezudos, com quantos gaiteiros havia nos pue­
blos à volta para abrilhantar - assim se expressa o reitor magnífico
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 163

d a Academia e eu consetvo o vocábulo para que não s e diga que


atraiçoei o texto - a festa de Natal, de particular solenidade na
freguesia de Boente. Sancho viu-o, antes de despedir a cochichar
com a ama, que ficou muito sobressaltada e em voz que se foi al­
teando tomava a Santa Virgem como testemunha para que visse
bem que o seu mano fazia de gigantone. Notou ainda que puxa­
vam a afilhadinha de parte e se afadigavam a dar-lhe uma grande
lição, um que a instruía nisto, outro naquilo.
Dom Qyixote postara-se, de ponto em branco, à janela, olhos
fitos na estrada de Mellid por onde devia romper a cavalhada.
Nasceu o sol, e ele, em cima como um falcão, em baixo Rocinante
com o Ruço, manu a manu como sempre, entretidos a apanhar as
palhinhas úteis que tapetavam aquele caminho rural, e Sancho a
roer as unhas. O tempo foi passando e nada! Subitamente, no céu
estralejaram os foguetes - a pólvora, informa em nota o acadé­
mico de Argamasilha, chegou à Galiza trazida por um peregrino
chinês em tempos de rainha Dona Urrara, e desde esse dia os ga­
legos e os minhotos, seus vizinhos, pegaram-se de desafio, quan­
to a artes pirotécnicas: uns inventavam o morteiro e logo outros o
foguete de três respostas, uns o foguete de lágrimas e logo, em
contraste, os outros o foguete de assobio, a bicha de rabear e, pa­
ra cúmulo, o fogo-preso com o amolador a amolar tesoiras - es­
tralejaram os foguetes, como reza o prolixo documento, funga­
ram as gaitas de foles, e alcandoraram-se muitos côvados cima do
solo os gigantones no meio de grande grita e com seus faxinas ao
lado, os cabezudos.
De um salto, Dom Qyixote pulou abaixo, e ia a montar Roci­
nante, que o já bem aprendido escudeiro lhe segurava o estribo,
quando acudiu o licenciado ofegante e com ar alvoroçado:
- Senhor Dom Qyixote de la Mancha, acuda por quem é!
Acuda! O Menino Deus chora, chora que se mata, e chama pelo
1 64 VASCO GRAÇA MOURA

cavaleiro da Triste Figura! Disseram-lhe que Herodes está perto


e não tem quem o defenda. Corra lá, senhor cavaleiro!
Interdito entre lançar-se contra o exército dos gigantes e acu­
dir ao Salvador do Mundo, prevaleceu o seu fundo cristão de cas­
telhano. Largou Rocinante e arremeteu pela igreja dentro de es­
pada em punho.
Mal se abeirou do presépio, uma voz cristalina, com as suas
fífias e síncopes, como se estivesse a papaguear um recitativo, e
bem compreendeu que assim fosse pois o Menino a língua que
bebera de leite era o arameu, dizia:
- Senhor Dom Qyixote de la Mancha, invicto cavaleiro,
ficai aqui a meu lado! Qyem avança pela estrada de Mellid são
falsos gigantes, gigantes de papelão, que não fazem mal a uma
mosca, para vos distrair do fero Herodes que tomou escusa vereda.
Esses outros são fantasia pura! Foram os nigromantes às ordens
do rei da Judeia, como receio de encontrarem este passo defendi­
do por vosso invencível braço, que criaram semelhante ilusão.
O que não é ilusão, segundo anunciam os profetas, desde Haba­
cuc a Zebedeu, é Herodes, o Grande estar aí a romper para me
degolar como já fez a quantos inocentes de mama houve na Terra
Santa. Se não vier, então é porque se enganou no caminho ou
desconfia que vós o esperais a pé firme com o leal escudeiro San­
cho Pança ao vosso lado. Mas vós, ínclito cavaleiro, não me de­
sampareis ...
Sancho tinha-se chegado muito ronceiro e ouviu o resto da
súplica do Menino. E, embora lhe parecesse aquela voz a da afi­
lhada do cura com quem jogara o rapa, acreditou no milagre,
e, deitando-se de joelhos, exarou por sua vez:
- Senhor meu amo, atenda o que lhe diz o Deus Menino,
se não quer perder a honra de cavaleiro e a alma! Dom Qyixote
eu fosse e já daqui nãe arredava um passo!
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 1 65

Respondeu Dom Qyixote de la Mancha:


- Pois se o Príncipe do Mundo assim o quer, não tem o di­
reito de fazer o contrário um cavaleiro andante. Vai, Sancho,
recolher Rocinante que pode estramontar com as gaitas de foles
e foguetes, se lhe dá para se meter nas danças. E eu aqui fico.
E venha Herodes que lhe hei-de decepar o malvado braço!
A missa do Galo
Aquilino Ribeiro

L'abbé:
- Voilà d'excellent café, madame: c'est du Moka tout pur.
La comtesse:
- Oui, il vient du pays des musulmans, n' est-ce pas grand
dommage?
L'abbé:
- Raillerie à part, madame, il faut une religion aux hommes.

VOLTAIRE. Dialogues. Paris, 1 825.

As BODAS DE OIRO TINHA-AS CELEBRADO O SENHOR TIMÓTEO


na casa dos oitenta. Uma década decorrida, estava ainda rijo e fero.
Era o primeiro que se levantava na aldeia e, se não estivesse a
chover, invariavelmente pegava do sachinho e ia mondar as ervas
para o quintal. Se o tempo estava mau, punha os óculos, uns ócu­
los de aro fino de prata como se usavam antigamente, e com eles
a escorregar da ponta do nariz enfronhava-se pela décima centé­
sima vez numa página de Camilo. Então a Zezinha, antes de en­
trar, espreitava o avô. Sucedia amiúde soltarem-se-lhe as lágrimas
dos olhos e ele tinha vergonha que lhas vissem.
O senhor Timóteo pertencia à geração que fez o 31 de Janei­
ro e em conformidade era republicano de gema, e professava um
liberalismo romântico e generoso. Era bastante culto, pouco de­
voto, à missa só ia à do Galo, e todavia sabiam-no muito mano­
-a-mano com o padre. Como o seu patrício Leite de Vasconce­
los, costumava dizer: Façam-me o enterro em sagrado porque, além
de ser essa a lei de meus pais, etnograficamente é muito mais interes­
sante que a civil
168 V ASCO GRAÇA MOURA

À primeira missa do dia de Natal é que não faltaria por nada


deste mundo. Fechavam-se as portas na casa e ia tudo. Ele cami­
nhava atrás, mais devagar que os filhos, mas em regra não preci­
sava doutro amparo além do braço da Zezinha. E era ainda mais
para se guiar, porque já não enxergava bem, do que para ter arri­
mo, posto não faltasse um criado adiante com o lampião. A sua
chegada, mesmo que a igreja estivesse coalhada de povo, abriam­
-se alas. E prostrado no genuflexório, que à Qiinta Grande era
dado ter estrado próprio na imediação do púlpito, viam-no assis­
tir com suma gravidade ao acto di� no e chorar.
- O fidalgo traz a lágrima muito à flor do rosto! Está a alçá-
-las - comentava o Fandinga, que era da malta cinegética do se-
nhor Danielzinho e ia pechinchando as suas calças usadas, as suas
botas e não raro a teca com que se compram os melões e com que
ele, ano por ano, atabafava a conta aflitiva da décima. Há mais de
cinco, qual, há mais de dez anos que o bebedola deitava aquele
epitáfio e o senhor Timóteo continuava sem uma dor de cabeça
a ler o seu autor favorito e a cortar as margaças na horta.
O senhor Timóteo tinha enterrados debaixo das lajes na igre­
ja os seus avós e era mormente por causa deles que vinha ali na
santa noite do Natal. Vinha procurá-los, mas não os encontrava.
Haviam-se desvanecido até o eflúvio mais rarefacto na terra mi­
seranda e no ar malcheiroso da lã azeitada que se condensava no
templo. E como os não achasse presentes, seus olhos de nonage­
nário, propensos à apiedação sobre si e o próximo, choravam.
Aquela igreja com o Espírito Santo ao alto da charola sob
a figura dum ancião atarracado, vestido com um capindó de oiro
e tendo à frente de asa desembainhada uma pombinha de bico
vermelho, fazia como que parte do seu induzo terreno. Ali fora
baptizado e baptizara os seus; ali jaziam os seus maiores até uma
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 169

linha remota; santos e santas tinham sido as testemunhas e confi­


dentes destas efemérides sentimentais. Estes, mais que encarna­
ção do agiológio, eram como os seus deuses lares. Sobretudo, oh,
sobretudo, tinham praça assente de guardiões às cinzas dos seus
antepassados.
O pai do senhor Timóteo, que Deus haja, fora ainda do tem­
po em que se sepultavam os defuntos nas igrejas. Assistira mes­
mo a muitas inumações debaixo do lajedo. O último corpo que
ali fora dado à terra - ouvira-lhe contar há que ror de anos! -
acompanhara-o já homenzinho, quando começava a usar navalha
na cara. Era a lei geral irem dormir os mortos a noite eterna à
sombra da cruz. Em regra erguia-se uma laje, duas lajes, confor­
me, e inumava-se o cadáver no subsolo, tantas vezes, se o chão
era de rocha ou saibro ruim de descoser, sob uma delgada camada
de terra. A química da consumpção operava a dois palmos dos
órgãos respiratórios dos vivos. Os templos eram locais empesta­
dos de miasmas e sombras funéreas. Pois bem, o fedor dos mor­
tos, saudosamente estremecidos, alimentava o sentimento da sua
presença junto dos viventes, o que não podia deixar de ser-lhes
sumamente grato. Não era pouco uma criatura ajoelhar todos os
dias ou uma vez por semana em cima da lousa que cobria a sua
mãe; aspirar-lhe as emanações do corpo - e o pútrido contava
pouco para a pituitária do bárbaro - era um processo seguro de
a trazer à sua presença e ao mesmo tempo o coadjutório poderoso
ao transporte místico para o Além. Todo o comércio dos mortos
com os vivos efectuava-se eficazmente por este canal no recinto
sagrado, na presença cénica de Deus, e era ao mundo criado pelo
espírito religioso que se reportavam as esperanças de comunhão
futura. Como se podia deixar de ser cristão, temente, ter fé, fre­
quentar aquele estupendo teatro, se era lá que se encontravam os
que eram queridos? Ignoravam que as igrejas fossem o inçadoiro
1 70 VASCO GRAÇA MOURA

privilegiado da peste - a pestenencia que Deus mandava e que


ocupa, depois da guerra, o lugar preeminente na história da Idade
Média - e ainda por este lado, por este flagelo biológico que
passava incompreendido dos homens, a religião tinha empolga­
dura nas almas. As epidemias varriam os lugares, devastavam as ci­
dades, dizimavam os reinos, e era o açoite de Deus caindo de alto,
às cegas, como parece próprio do seu estigma «castigando os justos
pelos pecadores». Mas todos esses himalaias de mortos torna­
vam-se ainda pábulo sacerdotal, «tempero cristão».
Nos seus bons tempos, jogando o voltarete, o wilo do senhor
Timóteo e o velho abade - destes eclesiásticos de que em pouco
não resta um para amostra, tolerantes, humanos, com um ou dois
filhos nos estudos - turravam. Em volta juntavam-se os ociosos
da vila, gente de letras gordas mas pretensiosa ao último grau, fa­
lando de tudo com suficiência e nas contendas entre os dois ca­
turras aplaudindo não segundo a preponderância do raciocínio
mas, sim, ao sabor da queda política de cada ponto. Fornecia
tema à disputa qualquer facto situado na wna mista do religioso
e do laico, quando excrescia do ramerrão quotidiano.
Para o senhor Timóteo a maré montante da descrença, em
envolvimento concêntrico, breve afogaria o rochedo divino, figu­
rando-se-lhe que era já tarde para tentar o salvatério. O assalto
não partia apenas da filosofia, a antiga ancila rebelada contra a
ama, que saíra a terçar as armas aristotélicas provadas no combate
ao cisma e à heresia. Partia de mil e um inimigos surdos, ignora­
dos uns, disfarçados outros, até involuntários não poucos, interes­
sados na obra de sapa, que se denotava contínua, teimosa, infil­
tradora, perigosa ao extremo como a das térmitas. Acaso reparara
o abade, como a penumbra e as meias-tintas constituíam o am­
biente grato à ordem eclesiástica? Penumbra nas naves das cate­
drais depois da penumbra nas catacumbas; penumbra no mental
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 171

com o Syllabus depois d a penumbra basilar dos Evangelhos: Feli­


zes os pobres do espírito porque deles é o reino dos céus. Dir-se-ia que
a Santa Madre Igreja tinha a premonição de que a claridade lhe
era contrária, tanto a astral como a lógica, daí a sua aversão pelo
ar livre, o céu aberto, o campo franco das ideias, e o refugiar-se
litúrgica e teologalmente no fusco-fusco dos templos e da metafí­
sica. Qye melhor exemplo que as práticas rituais remetidas à hora
dúbia, a reza das Trindades no crepúsculo vespertino, às Almas
no arrebol da manhã, pelo ano fora a Festa da Senhora das Can­
deias, a Semana Santa, o dia de Finados, o mês das Alminhas do
Purgatório no frígido e nevoento Janeiro, a missa do Galo, o pró­
prio sacrifício da missa celebrado em língua estranha, cheia de
cabalística e de simbólica?! A religião nesta sua feição reservada,
esotérica, coadunava-se ao limbo intelectual em que jazeu séculos
e séculos o género humano. E dizia jazeu porque em seu entendi­
mento a idade infantil acabava de ter o ocaso com a descoberta
e aplicação pluriforme da electricidade. O vago, o indeciso, nada
mais que a fímbria do mistério exerciam mais presa nas almas in­
cipientes do que o categórico lógico ou simplesmente determina­
tivo. A prova estava no que ocorrera nas aldeias e lhe parecia dig­
no de meditação.
Nesta altura argumentava o senhor Timóteo com o enterro
em sagrado e o descondensar da mística rural resultante da trans­
ferência de cemitérios para fora dos templos. O abade olhava para
o contendor cerrando as pálpebras, como se estivesse a dormir,
mas de tempos a tempos pela frestazinha diminuta de suas pupi­
las azuladas, reparando bem, fuzilavam na baça atmosfera do
anoitecer chispas de luz, que eram como que descargas do seu
entendimento pacífico, mas copiosamente municiado de razões.
- Não podemos dizer - proferia ele depois de o deixar falar
e repetir-se - que se esteja numa fase do mundo em que o espí­
rito substitua ou tenda a substituir os valores morais admitidos
1 72 V ASCO GRAÇA MOURA

até agora como bons e como a melhor regra da vida humana.


A que título? Se algum dia os homens construírem o bem-estar
material sem outras bases que não sejam as que lhes venham a
proporcionar as suas descobertas científicas, que, sim, reputo pro­
digiosas, encontrar-se-ão num deserto árido e vazio, como hoje é
o Sara. E, quer saber, será na ilharga de Cristo, ferido pela lança­
da do centurião, que poderão encontrar a fonte que mata a sede.
Não me diga que a religião católica, com os seus narizes de cera
poéticos, Maria e o Menino, e os narizes de cera trágicos, Jeová
maquillé ora de Padre Eterno, ora de Criador dos melros, o Dia­
bo e sua mãe, a imortalidade da alma e a ressurreição dos corpos
no vale de Josafá (para empregar a patusca fraseologia do meu
amigo aprendida nos livros de Teófilo e de Junqueiro), corres­
ponde no estado de crescimento do homem à idade infantil.
Tudo isto, meu prezado senhor, é o fundo, o fundo tumultuoso e
reversível nunc et semper da alma humana. Da alma humana, que
lho digo eu. Escarafunche bem na sua e lá os encontrará. Por isso
mesmo são a verdade, a divina verdade revelada!
Respondia o senhor Timóteo:
- Lá que esse bazar de figurações e símbolos corresponde a
uma idade que passou, idade que eu chamei infantil, está em que
se vão desfigurando, desvanecendo, não perdurando senão a cor,
o atavio externo, como dum foguete de lágrimas a representação
cromática na retina visual. Vê o meu abade, o cristianismo gowu
duma longevidade que preleva à duração de organismos, igual­
mente complexos, cujo evolucionado nos escapa, mas que decorre
diante de nossos olhos e abarcamos pelos cadáveres que pejam
a História, e são as nacionalidades e até os povos. OlJantos a reli­
gião de que Paulo de Samósata foi o longínquo fundador não viu
nascer e morrer? Para ela como para tantas outras criações do es­
pírito o mal está na árvore da ciência. Desde Volta para cá, acele­
radamente desde Marconi, sem se saber como nem porquê, sem
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 1 73

que o pensamento da industrialização eléctrica se tenha tornado


um caso de objectividade total, o metafísico levou o seu golpe de
misericórdia. Sim, senhor! Chegamos a esta ilação de ordem prá­
tica: acertamos atinar com o essencial das coisas sem conseguir­
mos defibrar-lhes a trama. O importante é que saibamos tirar
proveito delas e as dominemos. Ora são essas aquisições da inteli­
gência, digamos premissas do problema do conhecimento, que
por simetria lógica tomam parte no assalto ao rochedo divino.
E a meu ver não é gratuito afirmar-se que o assédio é contínuo.
Na cidade a religião quando não implica uma associação de inte­
resses é um snobismo como o anel com besantes. Na aldeia, que­
brado o contacto místico com o passado por meio dos mortos,
esgotado por conseguinte o poder de hipóstase com o sobrenatu­
ral, bem fátua é a sua supervivência. O padre está a dormir . . . ?
Bom sinal para as minhas razões!
- Não, não estou a dormir - redarguia o abade com acento
benévolo, bambaleando a cabeça. - Ouvi, ouvi perfeitamente
com estes que a terra há-de comer os seus delírios tão pitorescos
de livre-pensadeiro. Amigo e senhor Timóteo, ponha lá na sua
que o rochedo é eterno. É eterno e todo o vosso desespero de
ateus e heresiarcas está aí. De pé, para a eternidade, como ele
nem a serra da Nave! A vossa dialéctica não passa de borbotões
de espuma à volta da sua petribilidade. Pois então? Aceito que
a aldeia se está descristianizando e é possível que uma das razões
seja essa que Vossa Excelência indicou. Sim, é possível. Olhe,
aqui na vila existiam ainda, quando eu era minorista, dois ferros
empregados no enterramento dentro da igreja. Um deles parecia­
-se com uma vareta, uma vareta de espingarda de carregar pela
boca; apenas um poucochinho mais grosso e talvez mais compri­
do; o outro consistia numa verga espalmada num dos extremos
1 74 V ASCO GRAÇA MOURA

e com um pequeno arrebite. Andavam aqueles ferros a um canto


na casa da fábrica, e confesso que me intrigavam. «Ande cá que
eu lhe explico», disse-me um belo dia o juiz da igreja, que passava
por um dos homens mais idosos da terra. Levou-me abaixo do
altar-mor e, apontando o furo que as lousas mostravam ao meio,
disse: «0 ferro redondo, a tenta, era para este buraquinho. Me­
tia-se pela campa abaixo, dava-se-lhe uma martelada caso topasse
resistência, e arrancava-se para fora. Se o defunto estivesse ainda
no estado de incorrupto, o ferro o dizia. Bastava olhar para ele;
para maior certeza, cheirava-se. Se o cadáver estivesse consumi­
do, podia então abrir-se a sepultura e dar jazida a outro defunto.
Com as Minas que lavravam naqueles tempos, era-se obrigado
a dispensar esta sondagem e os coveiros serviam-se das covas em
quaisquer condições.» - «E o outro ferro?» - «0 outro ferro
era a alçaprema. Empancava-se num destes buracos», e indicava­
-me os orifícios oblongos, três polegadas por uma e meia, «e num
rufo prantava-se a lousa de pé». Agora, o que ponho em dúvida
é esse estado de fedorentina com que Vossa Excelência, amigo e
senhor, se aprouve pintar a casa de Deus no tempo dos nos­
sos avós.
- Pois não tem que duvidar. Olhe à sua volta por esses que­
lhas e pode ajuizar do que era a higiene pública no passado e do
recinto infecto em que se tornavam os templos. Li não sei onde
que à volta de 1 800, em plena Lisboa, os cadáveres dos escravos
apodreciam aos cantos das ruas. É verdade. Também ainda vi
os macabros instrumentos em que o abade falou. Deviam ser os
mesmos por toda a parte. Os cemitérios trouxeram a profilaxia
dos templos, e a profilaxia a descristianização dos rústicos. Ponha
São Tomás a falar pela sua boca, mas o facto insofismável é este.
Bem sei que os seus colegas, mormente os missionários, a filiam
As MAIS BELAS H ISTÓRIAS PORTIJGUESAS DE NATAL 1 75

no voltaireanismo crescente, nos ventos malsãos da cidade, nas


más leituras, etc., etc. Qial!? A população dos campos continua
igualmente bárbara, sofredora, apta portanto à sementeira sobre­
natural. A potra na raiz da árvore é doutra natureza.
Naquela noite de consoada só quando tocou para a missa do
Galo é que suspenderam a discussão. O senhor abade, segundo as
disposições da Congregação dos Ritos, podia empanzinar-se até
à meia-noite. Da meia-noite até receber o corpo e sangue euca­
rísticos obrigava-o à dieta o seu múnus eclesiástico. Pois que lhe
era permitido e em harmonia com a lei universal ia cheio como
um pato na engorda. De bom humor, grato ao anfitrião, procla­
mava com certo patético:
- Dê-lhe as voltas que quiser; peça as asas da aurora; vá
de pólo a pólo descendo aos vales profundos e guindando-se aos
altos montes; a voz do Deus-Menino corre (desculpe o descon­
chavo ao pároco de aldeia) hertzianamente pelas almas e lança-as
para fora do seu álveo de miséria. Hoje, amanhã e pelos séculos
dos séculos. Glória, amigo e senhor Timóteo, glória a Deus nas
alturas!
O Pai Natal
Pina de Morais

0 PAI NATAL ANDAVA ATAREFADÍSSIMO. E compreendia-se


muito bem. Tratava-se da viagem à Terra e da distribuição de bi­
liões de presentes a todos os mortais deste heróico planeta.
O suor caía-lhe às bagadas e o lenço de Alcobaça, recordação que
levara da visita do ano anterior, estava todo molhado das contí­
nuas limpezas à sua respeitável calva.
O Menino Jesus tolhia-lhe os movimentos, constantemente
a mexericar nos brinquedos mais vistosos, que o pobre Menino
Jesus também quereria para si. Já lhe tinha dado algumas sapata­
das nas mãozinhas, mas isso nenhum resultado deu em benefício
da ordem.
Gostava de ser pontual; era uma das suas glórias, essa, de em
milhares de anos chegar à Terra à meia-noite, ouvir os sinos de
todo o planeta tocar festivos e os salmos elevarem-se das sombras
das catedrais. Continuadamente arredava as barbas imensas com
a mão de fortes cordoveias, e pela abertura do gibão vermelho,
orlado de branco, procurava o grande relógio de oiro que consul­
tava numa justificada inquietação. As impertinências infantis e
adoráveis do Menino não eram nada, não o incomodavam. Havia
outros embaraços e, estes sim, de certa importância. É que o Pai
1 78 VASCO GRAÇA MOURA

Natal era assediado com incríveis pedidos, duma insistência que


lhe fazia perder a bonomia.
Imensa gente queria ir com ele. S. Francisco de Assis lamen­
tava-se profundamente, com humildade enternecedora, servindo­
-se da sua voz mais comovente. Com suavidade, pousando a mão
de longos dedos descarnados sobre a manga farta do gibão ver­
melho do Pai Natal, ia dizendo:
- Sabes lá que saudades eu tenho da Terra! Aqui, bem vês,
a minha alma não tem violências a combater, nem ódios a apla­
car. Qye queres que eu faça no infinito da bem-aventurança?
Não tenho feras a quem arranque os abrolhos, não posso conti­
nuar a minha sina de fazer os corações tão puros que se pudessem
irmanar todos, como um só coração, para o mundo. Bem sei que
não tenho irmão lobo para afagar - ai de mim! Também não te­
nho a gratidão infinita dos homens, dos animais e das coisas.
A medo, vagamente esperançado que as suas palavras lhe ti­
vessem tocado na alma, insistiu ciciando:
- Tu podias deixar-me ir! Bem sabes que quero a minha po­
breza, quero vê-la com a mesma alegria do avarento pelo seu oiro.
Bem sei que a ordem é terminante, mas a minha graça e a tua
podem bem com um pequeno contrabando. Deixa-me ir no fun­
do do saco, o S. Pedro de ti não desconfia - acrescentou incli­
nando-se ao ouvido do Barbaças, convidando-o à cumplicidade.
- A palavras loucas, orelhas moucas, isso é o que se diz lá na
minha terra, lá em Portugal - respondeu o barba branca, impas­
sível, enchendo, apressado, de brinquedos o saco infinito.
- Olha, não sejas impiedoso, bem vês, que houve uma gran­
de injustiça que felizmente não creio irremediável, mas isto de
não deixar vir os animais para aqui, é imperdoável.
E, com ar desolado, abrindo os braços.
- Nem sequer as avezinhas! Deixa-me ir ver a minha rica
bicharada ...
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 1 79

- Não há filosofia que me faça sair dos meus deveres - vol­


veu o Pai Natal, um pouco agastado. E suspendendo um mo­
mento a sua fala para tomar o ar concentrado de quem espevita
a memória:
- Já aqui há pouco tempo, coisa de uns mil anos, gastaste
uma cera enorme sem resultado aliás, com aquela tua ideia de que
no céu a bem-aventurança era um prémio excessivo para tão pe­
queno sacrifício feito lá em baixo; quase que me ias convencendo,
mas desta vez não há pão quente. Está dito, está dito - rematou
o Pai Natal terminante.
São Francisco lança mão de mais um apelo, como quem
queima o último cartucho. E como se não tivesse ouvido a ordem
terminante do Pai Natal, largou com insistência e energia:
- Os homens não me chegaram a entender. Entenderam-
-me, sim, na sua bondade amada, a irmã Lua, a irmã Água e o ir-
mão Fogo, mas os homens nunca se me entregaram totalmente.
E contudo o meu misticismo era mais doce e forte que a mais
sólida razão, e abarcava tudo até o próprio infinito. Chegava
até aqui onde nos encontramos porque é feito de almas e cons­
ciências.
O Pai Natal pôs as barbas em riste, o que era sinal da maior
impaciência. Porém São Francisco, sem se dar por achado, con­
tinuou:
- Pensas que quero ir fazer milagres? Isso não me interessa,
acredita meu amigo. O milagre não chega para resolver o meu
problema. O que eu quero, bondoso amigo, é espalhar a minha
mística e a minha alegria por todo o mundo. Oh! era por isso que
eu tanto falava às aves como aos homens, às fragas como aos deu­
ses. Tudo tem alma, a alma imensa que dá a luz universal e liga
os mundos.
O Barbaçanas suspendeu o serviço e, com surpresa do santo,
atirou-lhe à queima-roupa:
1 80 VASCO GRAÇA MOURA

- Então tu estiveste outro dia ao serão a contar os sofrimen­


tos que te magoaram quando te deu, com o delírio deambulató­
rio, para meteres a eito e só, por umas serranias fora, onde ias
deixando a pele . . . e também encareceste as dores que te afligiram
na tua doença e ainda querias voltar para tal peste . . . hã?!
São Francisco ia a falar, mas o Barbaçanas, rematou em voz
mais alta:
- Já sei o que me vais dizer. Vais dizer que a carne é um
embaraço terrível, que nos diminui e perde, vais dizer que agora
desprezarias totalmente a carne . . . mas para cá vens de carrinho!
São Francisco tem o ar mais doloroso que se pode imaginar.
Nos seus olhos cintilam lágrimas amargas e numa voz sombria
e ardente, magoada de soluços, disse ainda:
- Peço-te que me acudas, porque de contrário acaba para
mim a bem-aventurança. Porque o que me aflige - é esta cons­
ciência a clamar dentro de mim, sem se fatigar como um oceano,
a clamar imperiosa e irrespondível contra esta quietação, contra
esta minha dolorosa inutilidade, contra a minha trágica, conde­
nada e desprezível inércia.
O Pai Natal comoveu-se por momentos mas . . . nada disse.
Em face desta teimosia, quem teria o ousio de insistir? Cala­
do, ali se ficou o São Francisco, as mãos que as feras não podiam
mais lamber carinhosamente, metidas nas largas mangas do hábi­
to sombrio, com que o vestiu El Greco, assistindo triste aos pre­
parativos da viagem. Porém, a bondade infinita com que conse­
guia meter as mãos nos colmilhos indefesos das feras perdurava
no seu coração e, lançando recurso da sua última possibilidade,
com uma voz de rosas, foi dizendo, como se fora a monologar.
- É para sofrer ainda que quero ir! As chagas de Cristo que
se abriram no meu corpo já me não doem e quero vê-las sangrar
de novo!
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 181

O Pai Natal suspendeu o seu trabalho visivelmente comovi­


do. Mas, de repente, como quem tem uma ideia inesperada, bate
na testa com força e exclama:
- E se queres ficar lá em baixo? Hem? Qiem é que te ar­
ranca outra vez para o céu? Nada! isso são responsabilidades de
mais. Aqui não se pode mentir, como tu sabes, isso seria um cú­
mulo nestes santos lugares, pensa nisto por amor de Deus!
E rematou inflexível:
- Não me comprometas!
Qiando ia a meter no saco um comboio, a que nada faltava,
locomotiva a trabalhar, passageiros, gares, sinaleiros, etc., ouve-se
o Pai Natal resmungar.
- Lá vem outro! E então aquele que é todo efes-e-erres.
Era S. Jorge: armadura reluzente, lança primorosa.
- Deixa-me ir contigo! Tenho saudades dos dias de batalha.
Esta lança é que disse as minhas melhores orações. Sabes lá a ale­
gria de esquartejar dragões e, na noite silente, cavalgar no próprio
campo de batalha onde o inimigo j az destroçado para sempre!
A Bem-Aventurança - disse-lhe baixinho, curvando-se para o
ouvido, receoso de que alguém ouvisse - não é nada ao lado do
triunfo deslumbrante com que a multidão me recebia quando re­
gressava vitorioso no meu ginete de sangue ardente, galopando . . .
Para que quero e u este elmo brilhante, esta viseira inútil e este
peitoral recamado de glória e alegorias, onde resvalaram milhares
de lanças? - disse o santo, batendo com o guante nas abas do vo­
lante, que tocou como um sino. Para quê a minha espada de aço
de Livomo?
- O S. Francisco tem mais vagar que eu para te responder,
vês ainda o que tenho para meter no saco? - e apontou com o
braço ilimitados quilómetros de brinquedos, que às braçadas ia
engolfando no saco sem fim.
1 82 V ASCO GRAÇA MOURA

S. Jorge quedou-se absorto, envolvido na luz doirada, onde


a sua armadura brilhava como fogo. Parecia pensar. Subitamente,
como quem toma uma decisão, puxa o braço do Pai Natal e diz­
-lhe à orelha:
- Já que me não deixas ir, queria pedir-te um grande favor.
- Às tuas ordens! - exclamou o Pai Natal desembaraçado.
- Podias trazer o meu retrato que Ticiano fez duma maneira
assombrosa. Não há cores mais ricas, nem sonho mais profundo.
Avalias a alegria que me daria ao ver o meu cavalo de guerra, no­
bre como se lhe girasse nas veias sangue azul. Este teu criado ca­
valgando, nimbado de luz, jovem e amado! Qye bem ficava aqui
tamanha obra de arte! Ficaria a ser o teu escravo para sempre!
O Pai Na tal passou a mão pela barba branca e, em seguida,
cruzando os braços como quem tira satisfações:
- Ora o menino! Pensas que nasci ontem? Qyerias meter-
-me em boa! Qyerias que eu roubasse? Essa nem parece tua, a
pequenada à espera dos brinquedos e eu por tua causa às voltas
com a polícia!
E rematou, com desdém:
- Juízo, meu amigo, juízo! - e batia com o indicador na
fronte, liquidando enérgico:
- A lei é a lei! Já sabes que não vais!
O Pai Natal vendo muitos santos da Corte Celestial assistin­
do impassíveis ao seu trabalho, irritou-se e exclamou, censurando
com ironia:
- Mãos à obra, amigos! Ajudem-me! Se eu mandasse, vocês
haviam de saber quanto custa o suor que se perde a ganhar o pão
de cada dia!
Os santos começaram logo afanosamente a encher o saco mi­
lagroso, e a montanha de brinquedos diminuía a olhos vistos.
O S. Roque com aquela solenidade que toda a gente lhe conhe­
cia, aproximou-se do Pai Natal e ciciou:
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 1 83

- Estás arranjado! Vem ali a linda Maria Madalena!


- Deus me acuda! Isto com mulheres é mil vezes pior; o ano
passado tive de me zangar a valer.
Maria Madalena aproximava-se naquele seu passo divino, tão
leve, tão leve, que nem roçava nas tapeçarias, o cabelo negro
como a noite, solto em onda que se dispersava nos ombros e de­
pois em catadupa caía descendo das espáduas, vestindo a cintura e
rodando os quadris. O vestido de luar tecido, revelava desde o ga­
lho da perna à beleza do seio. De mãos cruzadas e de olhar imen­
so, belo da ternura humana com que chorou as dores de Jesus,
parou junto do homem do gibão, com os lábios finos emudecidos
num beijo eterno. O do gibão fez de conta que não era nada com
ele e continuou a engolfar a sua preciosa mercadoria, deitando
o rabo do olho suspicaz a espiar a visita.
Até que, numa voz onde à doçura da vida eterna se misturava
ainda o fluxo ardente da paixão terrena, fluiu:
- Caridade sem amor, ofende. Os mártires morrem hoje
sem compaixão e sem glória. Os crucificados não têm lágrimas
ardentes, nem beijos sagrados para lhe caírem como jóias sobre os
pés doloridos e chagados. Morrem no seio da multidão como
num deserto. Não chega nenhum soluçar ao seu ouvido a dizer­
-lhe amor, nem sequer os embalam como a crianças, as palavras
magoadas e exangues que a dor vai esmagando nos meus lábios
feridos. Não há linho mais fino que o das minhas tranças, o linho
é inerte e nas minhas tranças corre impetuosa a vida da minha
alma, que faz esquecer todos os sofrimentos. A cruz do Nazareno
era tão alta e os meus pecados levaram-me para tão fundo que
não havia milagre que me deixasse aproximar das chagas das
mãos e do rosto divino e sentir o travor do fel que os fariseus lhe
tinham deixado nos lábios. Mas foi melhor assim, pois foi a der­
radeira das humildades para uma pecadora, enxugar de rojo aos
1 84 V ASCO GRAÇA MOURA

pés da cruz o sangue divino com minhas tranças e beijar os seus


santíssimos pés.
- Qyero ir, ouviste! - disse a santa inesperadamente e com
energia.
O Pai Natal, delicadamente, tirou da cabeça o barrete pontia­
gudo de lã vermelha, gentileza raríssima no Barbaçana e, confuso,
desculpou-se. Qye não podia ser, que seria um desgosto inconso­
lável ter naquela idade de ser repreendido, que pensasse bem
e que lhe perdoasse.
Na imensidade reboavam moldando-se pelo infinito os acor­
des da 5. ª Sinfonia de Beethoven, desdobrando o clamar angus­
tioso do homem no céu imenso, angustioso e trágico, mas ao
mesmo tempo heróico na sua afirmação de vida - viver! oh! vi­
ver mesmo no mistério. Dá vontade de fechar os ouvidos para
não sofrer com aquela interrogação mortificada a que ninguém
responde e que penso ser um protesto contra a limitação que
Deus impôs ao homem. Certas voltas de som parecem erguer o
calvário de Apolo ... onde a beleza fosse crucificada ... e o som foi­
-se pouco a pouco perdendo...
Santa Maria Madalena retirou-se suavemente como tinha
chegado, mas com os olhos cheios de lágrimas.
O Pai Natal encolhia os ombros com pena, mas ia resmun­
gando:
- Uma tragédia! sempre estes incómodos!
E, depois, aborrecido, olhando em redor com receio de ser
ouvido, exclamou:
- Mas que grandíssimo canudo!
Depois, ao longe, um vulto solene, mitrado, as longas vestes
do seu hábito caindo majestosas, as longas barbas alvíssimas, o
olhar duma profundidade sem limites, como se abandonasse por
momentos o quadro de Vieira Portuense, vem caminhando nim­
bado de luz, em direcção ao burburinho que cerca o Pai Natal.
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 1 85

Este, que o declina ainda longe, exclama sentencioso:


- Respeito meus amigos, muito respeito! reparem só quem
ali vem - Aurelianus Augustinus - disse com ar superior dos
seus conhecimentos de latim.
Todos olharam e emudeceram.
Santo Agostinho aproveitou este silêncio e disse ao Pai Natal,
que tirara o barrete pontiagudo com humildade e interrompera
o serviço:
- Ando muito triste - disse o maior doutor da cristanda­
de -, ando muito triste porque o mundo se desligou das virtudes
platónicas que criam a vida moral que são a própria vida. Os Es­
tados transformaram-se em máquinas ferozes e actuam como
monstros esmagando tudo, triturando tudo implacavelmente, no
desprezo total das ideias vivas e eternas que dão alma ao mundo.
Com o desprezo da razão, perde-se a lei e a moral, que servem
de única estrutura à República das gentes. - E depois, num
desabafo:
- A consciência e o Estado só podem viver felizes sob a
mesma lei moral. Compreendes agora como o vasto mundo
é triste!
As mãos do santo estremeciam e o seu olhar profundo tomou
uma amargura tão impressionante, que o Barbaças se comoveu,
embora não entendesse o que o santo lhe queria dizer.
Com respeito, continuou a ouvir:
- Convidei Platão e Descartes para virem comigo, para nos
levares, mas estão descrentes da cruzada que procuro empreen­
der... disseram-me que não valia a pena, o que me magoou. Bem
lhes disse que o idealismo e o espiritualismo rolam na tempestade
brutal que é a vida de cada um e de milhões, que as almas endu­
recem e se perdem inexoravelmente, num mar de agrores ilimita­
do. Platão ainda me disse: «Üs homens acabarão por me entender
1 86 VASCO GRAÇA MOURA

e amar» - resposta dolorosa como vês. O resgate das almas mal


começa. É preciso resgatar as almas para que o Estado as não de­
vore. Entretanto devora-lhes a vida.
Nesta altura é que o Pai Natal atingiu onde queriam chegar
as filosofias e sem perder o respeito, continuando de cabeça des­
coberta, audacioso, mas sem ocultar de todo a sua rebentina, foi
dizendo:
- Divino santo perdoai-me! mas a viagem é arriscada e a
vossa idade merece todos os cuidados. Como vós sabeis, santo e
sábio, logo se daria conta da vossa ausência e que havia de ser
de mim, meu augusto santo?
O Pai Natal convencido de que estava a ganhar a partida,
pediu licença para dizer:
- Se me permitis, meu senhor, um conselho de ignorante,
rogava de joelhos, que espereis um momento, coisa de mil anos
e se então - o que não creio - ainda não tiver aparecido a tal lei
ou razão, ireis comigo, dar-me-eis essa honra.
O santo pareceu aquiescer e o Barba Branca recomeçou de
gibão arremangado a encher a sacaria. Oliando S. Agostinho já
ia longe disse para S. Tomás que estava ao lado e ouvira parte
da conversa:
- Deus me perdoe, mas não há nada mais simples do que
entrujar um sábio. E era com estas que ele queria ir? Estava bem
arranjado, bem se vê que não sabe onde se ia meter . . . aquilo só
por a chaminé como eu!
Continuou a encher os sacos e resmungou:
- Estou mas é para aqui a encher-me de pecados por causa
destes senhores . . . arranjo-a fresca!
Já tinha tudo pronto e passava a última inspecção com o
olhar, quando São Francisco de Assis chegou correndo, com um
grande saco.
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 187

- Qye temos - disse o Pai Natal, intrigado -, hã?


- Já que me dão deixas ir, queria pedir-te para levares esta
encomendinha.
O Pai Natal relanceou os olhos pelo saco e cofiando a barba:
- Encomendinha lhe chamas tu a essa bizarma!
- Toma-lhe o peso - disse o santo confundido com o re-
ceio de não lhe fazerem a vontade.
O Pai Natal deu o chão ao saco e verificou que pesava tanto
como uma pluma.
- É extraordinário, S. Francisco, estou admirado para a mi­
nha vida, não pesa nada! Olha, S. Francisco, já agora desculpa,
mas dize-me o que leva o saco, gostava de saber.
São Francisco, compungido, explicou:
- É muito grande, pois é para deitares à terra inteira essas
sementes que levas. Não tens nada que te enganar, porque eu es­
crevi aqui o que o saco guarda.
E apontou com o dedo longo e marfinado para os grandes
caracteres da palavra «Bondade».
- Boa ideia, oxalá germine - disse o Barbaçana.
Como não havia tempo a perder, pegou na mão do Menino
Jesus e meteu-se a caminho com grande inveja da Corte Celes­
tial, que viera em peso ao bota-fora. Acenavam com os lenços
enquanto se avistou o Pai Natal, com o Menino a reboque, até
dobrar o ramo da parábola no espaço sem fim. Logo as estrelas se
afastaram com donaire e a Via Láctea, como passadeira sideral,
começou a desdobrar-se diante dos passos do Pai Natal, ajoujado
de brinquedos e sorridente de ilimitada felicidade. O Menino
Jesus tinha de correr a bom correr pela galáxia fora, para acompa­
nhar o Pai Natal que, finalmente, deixara de responder à infini­
dade de perguntas que o Menino lhe ia formulando sem descanso.
188 VASCO GRAÇA MOURA

O espectáculo era assombroso. Embora o visse todos os anos,


o Pai Natal estacava sempre dominado por este prodígio sem
nome. A Terra rolava com uma velocidade incalculável e as gran­
des cidades com miríades de luzes voltejavam num enxame loiro
de endoidecer. A água dos oceanos reflectia o céu estrelado, luci­
lando milhões e milhões de sóis em superfícies imensas que, já de
si, eram brilhantes. Os rios arqueavam de prata fundida os conti­
nentes como belas cinturas. Um Sol maior, o nosso, de todos os
dias, envolvia meia Terra lanceolando-lhe um meridiano fantástico
de golpes de luz que se perdiam no infinito.
O Menino Jesus espetou o dedinho e perguntou que bola era
aquela.
O Barbaças, visivelmente arreliado com a dificuldade da res­
posta, disse-lhe:
- Qye há-de ser? Um girassol cá do jardim, tu não vês?
Tudo isto se passava num silêncio verdadeiramente infinito,
irreal. Mundos que se moviam nas trajectórias mais fantásticas,
sem contudo perderem o sincronismo no espaço inacreditável
e com velocidades astronómicas. Só as sapatorras do Pai Natal
faziam, no pasmoso silêncio astral, um barulho dos diabos, que
ele não podia remediar.
- Esta chiadeira dos borzeguins é que me pode compro­
meter!
O Menino Jesus não deu conta da observação. Pestanej ava
quando mais cerca, no silêncio eterno, algum cometa passava
inundando tudo duma luz ardente e tão veloz que a vista não o
podia acompanhar. A Lua branca e serena era a única nota de ter­
nura calma naquela fantasmagoria sem nome. O silêncio trans­
formava-se numa angústia, como se fora a alma inacessível da
misteriosa imensidade.
Qyando chegaram, caíam as doze badaladas na Torre dos
Clérigos. Qyem se afirmasse bem, veria pelos telhados da cidade
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 189

passar o gibão vermelho do Pai N atal, apressado, levando a rebo­


que o Menino Jesus. De longe o gibão era uma nuvem rosada,
que a brisa fosse rolando, como vela de barco, no mar ondulado
dos telhados.
A alegria do Pai Natal! Ele sabia que os seus presentes reali­
zavam o sonho - o sonho que só a divindade podia milagrosa­
mente tocar - de tantos corações! Para os pequeninos, ao me­
nos, naquele dia dava-lhes a certeza de que não havia sonhos vãos
e que a existência é plena quando a um sonho se segue outro so­
nho, e das cinzas de um se erguem as asas para outro e sempre
assim.
- E tão barato, afinal - verificava o santo com os seus
botões.
O saco tinha de tudo: globos brilhantes, bonecos de mil for­
mas, o mais vasto e fantástico j ardim wológico feito de peluches,
tecidos e cartolina; comboios e aeroplanos, gramofones e relógios,
lanternas mágicas e guiws prateados; pontes e viadutos, móveis
de meio palmo e flores de papel; chocolates e caixas de música;
polichinelos sempre gentis de cara de alvaiade e pierrots de alma
apaixonada e face dolorida; jóias de belo oiro, pulseiras e ocarinas;
livros com as mais belas histórias do mundo e bailarinas leves
como borboletas. E tão barato afinal!
O Menino Jesus ajudava como podia, acumulando os sapatos
mais pequeninos que eram os da forma do seu pé.
Qyando chegaram ao Barredo, desceram por uma chaminé
a prumo e com dificuldade. O Pai Natal pôs-se a coçar a barba,
intrigado, pois não via sapatos, nem presépio, nem árvore do Natal.
O fogão, apagado, de tijolos desconjuntados, era como uma cha­
ga. Há muito não queimara lenha. Em pregos, pendurada, roupa
pobre e rota e as paredes escorrendo negra humidade.
1 90 VASCO GRAÇA MOURA

O Pai Natal ficou angustiado, de mãos cheias de brinquedos


rutilantes e as longas barbas trémulas de comoção, com tanta mi­
séria. Relanceou os olhos pela pobre quadra, para os abrir desme­
suradamente ao dar com um berço feito de duas tábuas em meia­
-lua, onde a roupa desenhava o pequenino volume dum corpo de
cnança.
O Menino Jesus ia a correr para o berço, mas o Pai Natal,
pondo o indicador sobre o nariz, disse-lhe baixinho:
- Chiu! Não o acordes!
E foi ele, aliviado dos brinquedos, pé ante pé, até junto do
berço. Desviou carinhosamente, com mil cuidados, o cobertor
velhíssimo que cobria a criança. E apareceu-lhe, linda como os
anjos, a figurinha doce de um menino de anéis loiros, profusos
em toda a cabeça, invadindo as fontes até se espalharem um pou­
co pelo rosto, as pálpebras descidas sobre olheiras fundas e a bo­
quinha exangue e impassível. Passa a sua larga mão a apartar o
cabelo doirado do pequeno, para se afirmar melhor, e esta encon­
tra a algidez do mármore nas breves feições.
A luz amanhecente desenha já os quadros da vidraça, são
mais que horas de regresso. Mas o Pai Natal não cessa de soluçar,
a alma alanceada por tanta desgraça, caído de rodo sobre o chão.
Ouve-se uma vozinha suave mas decidida.
- Fico eu e leva esse menino para o céu!
E dizendo isto o Menino Jesus bateu as mãozinhas de alegria
e deitou-se no berço.
- Leva-o para o céu, eu fico na Terra de onde nunca devia
ter saído.
Qiando o Pai Na tal chegou ao céu, ao abrir o saco, saiu um
lindo querubim, batendo as asas brancas, hesitantes como as das
aves quando ensaiam voo ao abandonar o ninho.
O Natal em Ossela
Ferreira de Castro

0 VALE AMPLIOU-SE COM A NOITE. Não se vê, lá ao fundo, a


Felgueira, que de dia cerra o horizonte com a sua lomba enor­
me. Não se vêem os contrafortes de Santo António, bordados
de pinheiros, nem os da Frágua, com as suas casuchas, nem os
do Crasso, onde se ergue uma capelita branca. Sumiu-se tudo
no negrume. E o vale aumentou em extensão e profundidade.
Parece que todo o mundo está aqui, na sombra imensa. Almas,
desesperos, ambições, impotências - e a trégua desta noite,
em volta da lareira. Parece que não há mais nada.
Mas o vale chora, clama, geme sempre. Vu-vu-vuuu, a ven­
tania fustiga o esqueleto das árvores, os pomares despidos de
folhagem, os choupos esgrouviados, os amieiros que debruam
o Caima. Sopra na telha-vã, arrepia os colmados, passa e torna
a vir - vu-vu-vuuu - como uma obsessão. A concha trouxe
consigo toda a orquestra do mar.
Deve haver neve na Felgueira. E também cá para trás, para
as bandas de São Martinho, os caminhos devem estar cobertos
de códão, estralej ando sob as chancas de quem se meta pela
noite negra. Mas a treva não deixa ver a neve. Traço branco, só
o da estrada que golpeia, a meia encosta, aqui pertinho, o grande
1 92 VASCO GRAÇA MOURA

fundo preto. Às vezes passa, veloz, um automóvel. Mal se dis­


tingue. O ru-ru do motor é rapidamente integrado na lúgubre
barulheira geral. Parece uma lufada mais forte do vento que
está carpindo, no vale inteiro, a sorte de não se sabe quem.
Antigamente os carros, puxados por cavalos, tinham outro
mistério. Ouvia-se à distância o seu rodar e só se deixava de
ouvir quando já iam muito longe. De passagem, se o vento não
era forte, enchiam de ecos o vale. E enquanto se escutava o ruí­
do das ferraduras nas pearas da via e a cantilena das rodas, ficá­
vamos todos a pensar na figura que alarmava a noite, muito
embrulhada e metida no canto do «coupé». De onde seria o
ramo que ia em procura do tronco familiar? De Castelões? Da
Gandra? De Arouca? Viria do Porto, de Estarreja, de Lisboa?
Em todo o vale flutuava, então, o segredo. Hoje, com os auto­
móveis, quem passa, passa; a sua vinda não lembra sacrifício;
tudo vai depressa, já não há distâncias e anda-se pouco ao frio.
Lá em baixo, corre o Caima, mas também a ventania lhe
assimila o rumor da água nas suas quedas e serpenteias, por en­
tre pedras limosas, enormes como ovos de ave mitológica.
Só o vento existe. Anda a branca nos pinheiros das declivi­
dades, nos castanheiros da Felgueira, nos rochedos, nas locas,
por toda a parte. Nem da coruj a que mora na igreja velha, es­
corropichadora de lâmpadas há um ror de anos, ele deixa hoje
ouvir o sinistro uuu-gru-gru-gru. O vento domina tudo. O vale
inteiro está transido pelo seu uivar. Qyem ousa pôr a cabeça
fora de porta numa noite destas, que é, ademais, para ser vivida
em casa?
Nas velhas cozinhas, em redor da mesa e ao fulgor da larei­
ra, agrupa-se a família. Os velhos e as velhas, remotas escultu­
ras enegrecidas e cariadas pelo tempo; os filhos que estavam
ausentes e que puderam vir e os que ainda andam fraldiqueiros
As MAIS BELAS H ISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 1 93

a crescer. O fiel amigo, com couves e batatas, é da tradição;


quem tem mais posses, frita, também, a sua rabanada. O vinho
corre , ros ado , transparente, sobretudo à hora do magusto,
quando as castanhas estalam no fogo.
Cada lar parece viver isolado do mundo, sozinho no mun­
do, como se para lá das paredes negras de fuligem nada mais
existisse. Veio, este ano, o António da Zefa, que anda no peixe,
em Lisboa; veio o Arturinho, que está de caixeiro no Porto, e
veio o filho do Soares lavrador, que estuda, em Coimbra, para
que a freguesia tenha a honra de dar também um doutor a Portu­
gal. Mas, logo que chegaram, meteram-se na sua toca. Só o Ar­
turinho passeou ao fim da tarde, na estrada, em frente da venda,
o sobretudo novo.
A esta hora, cada um pensa especialmente nos seus. Qyase
todos pobres, não têm remorsos de comer mais do que os ou­
tros. Os velhos fazem grandes silêncios e extraem, com os de­
dos, as fêveras de bacalhau que ficaram presas nos poucos den­
tes que o tempo lhes conservou. São bocas mais escuras do que
o rosto, são buracos onde as línguas parecem répteis viscosos.
Lume da lareira e luz da candeia, com três minúsculos e rú­
bidos cogumelos no pavio, mal definem as figuras. Estão ape­
nas esboçadas na idade e nas feições. A que é mãe, se há silên­
cio de jeito, solta:
- Por onde andará ele a esta hora?
Ninguém responde e dir- se-á que as palavras ecoam na
alma da família inteira. «Por onde andará ele àquela hora!» Até
os garotos se aquietam perante a emoção dos maiores. Depois,
o pai ou o filho j á adulto, que não saiu de Portugal, tenta dar
consolo:
- Em toda a parte se vive . . .
1 94 VASCO GRAÇA MOURA

Calam-se outra vez. Raro é o tecto que não tenha o seu au­
sente. E o Brasil porque está fora do vale, parece, às mães, estar
fora do Mundo.
- Por onde andará ele a esta hora?
As canecas passam de mão em mão e o vinho gorgoleja, va­
garoso, nas gargantas. A garotada já largou da mesa e procura,
irrequieta, tirar da fogueira as castanhas. O vento canta na cha­
miné e vem agitar, de leve, a crista do lume.
As figuras movem-se lentamente em direcção ao pedaço de
laje onde há fogo e a candeia fica a alumiar, sobre a mesa, a tra­
vessa vazia com um fio de azeite no fundo e um farrapo de cou­
ve nos bordos.
Lá fora continua o vento, o frio e a negridão. No vale, po­
rém, todas as casas estão despertas, com luzitas laminadas sain­
do pelas frinchas das portas ou emoldurando os humildes jane­
licos, que não se divisam de longe. O povo deita-se, hoje, mais
tarde. O Menino Jesus merece um quartilho de petróleo.
Mas não se vê vivalma, nem se ouve coisa alguma além do
vento. Só ele anda por aqui, chorando a sua ária nos pobres ca­
sebres de quatro paredes baixas, musgosas e suando humidade,
nas janelas dos lavradores que já têm primeiro piso, nas árvores,
nos caminhos, nos barrotais, juntando ao seu ritmo o das fon­
tes, dos regatos e de algum coração humano que se tenha per­
dido na serra, com gritos que ninguém ouve . Por quem este
choro intérmino? Por aqueles que se descarnaram ao sol, após
a grande batalha de que fala a tradição e cujos ossos, cobrindo
picotos e veigas, teriam dado ao vale o nome que hoje ele tem?
Ou chora, o vento, pela Margarida, que fez chorar os sinos na
semana passada; pelo Alfredo, tão novito, que cerrou as pálpe­
bras em Agosto; ou por todos os outros que morreram desde
que no vale se ergueu a primeira arribana? Ou chorará pelos
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 1 95

que estão vivos, mas ausentes? Pelos que habitam no Brasil, em


Lisboa, no Porto e não puderam vir sentar-se hoje ao lume,
completando a família? Ninguém sabe. Essa zoada que enche
o vale inteiro parece ter por único obj ectivo aconchegar mais
uns aos outros em redor da lareira, à beirinha do fogo que
amorna os corpos até a hora do sono e vai atenuando na alma
dos velhos o efeito da pergunta que fazem a si próprios: «Ainda
estarei cá no Natal que vem?»
Conto de Natal
João de Araújo Correia

NESSE ANO, O MENINO JESUS, QUE O PADRE DEU A BEIJAR no


dia de Natal, na arruinada capela do lugar, foi um menino vivo,
um menino de carne e osso. Eu conto . . . A D. Rita de Cássia,
governanta do comendador Clarimundo, andava pejada, como
sucedia em cada Inverno. Mais do que isso, desde meado de
Dezembro que a boa da cuvilheira andava para cada hora.
Na véspera do Natal, à noite, cansada de enganar o mundo com
o ventre cilhado por de mais, caiu à cama com uma dor de cruzes.
Mandou chamar a parteira, e, vamos a isto, deitou cá para fora
um rapagão loiro e rosado como quem o fizera - por enquanto
não se diz nada . . . Nasceu o menino quando o galo cantou pela
primeira vez. A parteira, uma comadrona mais velha do que a Sé
de Braga, já sabia que tinha de embrulhar o menino muito bem
embrulhado num xale e levá-lo para longe do povo para o enjei­
tar. Era o costume. Fizera isto, de malhoada com a governanta,
aí umas dez ou doze vezes.
O comendador era rico, mas, avarento. Dera de uma assenta­
da muito dinheiro aos pobres quando era novo, mas, isso foi só
para ser comendador. Nunca mais gastou cinco réis em caridades
e até jurou a si mesmo nunca se casar para não ter encargos de fa­
mília. Portanto, se a governanta gravidava, isso era lá com ela.
1 98 VASCO GRAÇA MOURA

Bastardos de portas dentro é que não queria. De maneira nenhu­


ma! Tanto mais, que ele sabia guardar decoras à parentela, umas
vergônteas, disseminadas pela província, aqui e acolá, de velha
haste apodrecida - o tronco dos Mongroivas. Essas vergônteas
lisonjeavam-no como parente honrado desde a pele até o tutano
dos ossos. Qyeriam-lhe todos muito e à porfia. Visitavam-no a
miúdo, embora ele se esquecesse sempre de lhes oferecer um cáli­
ce de vinho ou uma pinga de chá. Iam-se embasbacados, mas, daí
a uma semana ou duas, voltavam restabelecidos da encavacadela.
Podia muito bem com eles o cheiro do ouro, que o comendador
exalava. Era uma atracção . . . Na noite de Natal, não lhes digo
nada, vinham todos, porque o comendador, nessa noite, dava-lhes
mesa franca. Havia quem dissesse que poupava dinheiro na roda
do ano para o gastar numa ceia, com primos e primas. Era um
esbanjar de iguarias, que só visto! Depois, tudo aquilo regado de
bons vinhos - malvasia, alvarelhão e muito vinho velho para
abafar os doces.
Na memorável consoada a que me reporto, enquanto a go­
vernanta gemia, num cabo da casa, com as dores do parto, a pa­
rentela do comendador, com o freio bem tirado, caía em peso na
sala de jantar. Qyem animava os novos a comer eram as velhas,
pois diziam, com muita convicção e muita experiência: na noite
de Natal, nada faz mal. Enquanto a governanta, num cabo da
casa, gemia com as dores do parto, os Mongroivas comiam e be­
biam com fome e sede de três dias. E claro que nunca suspeita­
vam da gravidez da governanta. Como suspeitariam do parto?
Qyando souberam que ela estava muito doente, romperam a
chorar - ternura que muito agradou ao primo comendador. Ai!,
aquela governanta era uma santa. No fim da ceia, rezaram pela
saúde dela um padre-nosso e uma ave-maria.
Qyando a parteira, com a criança embrulhada no xale, saiu de
casa para a enjeitar, a noite estava escura como devia ser o mundo
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 1 99

antes de haver luz. A velha, para não cair, coseu-se com as pare­
des das casas. Sem medo nenhum, porque era animosa de seu na­
tural e andava afeita àqueles errores nocturnos, procurou, com o
embrulho ao colo, uma das quatro saídas do povoado. Em certo
sítio, não teve outro remédio senão abandonar o corrimão das pa­
redes para atravessar um largo. E então é que foram elas! Come­
çou a caminhar às cegas. Enterrou os pés em lama. Perdeu as
chinelas. Deixou-as ficar sepultadas no lodo. Sentiu aluir-se-lhe o
chão num rego de água. Gritou. Lembrando-se porém da enor­
me responsabilidade da sua missão secreta, amarfanhou a boca na
concha cadavérica da mão. Foi-se arrastando. Como porém hou­
vesse perdido de todo a tramontana, era-lhe difícil, senão impos­
sível, sair do largo. Resolveu alijar o pacote de carne recém-nasci­
da e fugir até encontrar de novo uma parede que lhe servisse de
guia. Nesse momento, deu tento de uma lumieira baça que saía
de um buraco e se alastrava na escuridão como nódoa de azeite
num vestido preto. Era a lâmpada do altar-mor da capelinha do
povo - ruína que voltava para o largo uma das faces negras.
A parteira sentiu refrigerar-se-lhe a alma à vista dessa luz. Viu
nela um aviso de Deus para meditar um momento nas contas que
lhe havia de prestar quando morresse. Encarou em si própria e
sentiu-se repelente. Já todos os cantos lhe cheiravam à campa.
No entanto, era ainda sem pejo que aparava nas mãos encarqui­
lhadas um menino caído do ventre de sua mãe para o expor, no
limiar de qualquer porta, à mercê dos caprichos do demo e da
fortuna. Fazia isso para ganhar dinheiro. Não podia ter amnistia
celeste o acervo dos seus crimes. Qye poderia tentar para que
Nosso Senhor se condoesse dela? Naquela noite, em que Jesus
nascia numas palhas, já com o perdão expresso nos lábios inocen­
tes, que podia ela fazer para se mostrar arrependida de haver pe­
cado tanto? Naquela hora, com aquele inocentinho ao colo, que
200 VASCO GRAÇA MOURA

boa acção poderia ela executar merecedora do reparo de um deus,


que mal abria ainda os olhos para abarcar num relance o mundo
corrompido? Aproximou-se da capela, empurrou a carunchosa
porta lateral, que dava para o largo, sumiu-se no templo, e depo­
sitou o menino sobre o degrau cimeiro dum altar, cujo tampo se
abria todos os anos, pelo Natal, para mostrar às criancinhas ató­
nicas e curiosas as maravilhas ingénuas do presépio.
- Deixai estar, que o Menino este ano há-de ser de carne
e osso! - exclamou a velhinha, já um pouco jubilosa da sua pró­
pria graça e contentíssima por haver praticado uma acção, que lhe
parecia boa. - Deixai estar, que este ano o Menino há-de ser
de carne e osso . . .
Qyando a velhinha saiu d a capela, já o céu s e tinha esclareci­
do um tudo-nada. Tanto, que a pobre criatura encontrou as chi­
nelas e atinou com o caminho que a levou à toca onde vivia. Fe­
lizmente que não topou vivalma! Deitou-se e dormiu sossegada.
No dia seguinte, pela manhã cedo, à hora da missa, rezada
na capelinha vetusta pelo mais desbocado e caritativo padre que
a freguesia tem tido, sucedeu que o celebrante, com o menino
ao colo e lágrimas na face de oitenta anos, vociferava:
- Este ano, o Menino é de carne e osso. Beijai-o nos pezi­
nhos, que já o fiz cristão. Qyem sabe se algum de vós será o pai
dele? Qyem me dera apanhar aqui a cadela que o enjeitou!
Muito descomposto, o padre subiu ao altar e aí pregou um
lindo sermão. Esmaltou-o de obscenidades, mas, como chorava e
tremia, todo o auditório de fiéis chorou e tremeu como ele. Ain­
da não tinha acabado, quando o comendador saiu do seu canto
e avançou para o arco-cruzeiro. Virado para o sacerdote, disse:
- Esse menino é meu filho, e a mãe é a minha governanta.
Diante de Deus e dos homens, aqui prometo adoptar a crianci­
nha e receber a mãe como legítima esposa.
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 201

Os parentes do comendador fugiram como se os enxotassem


à pedrada. O povo levou em charola o comendador. Deu muitos
vivas. O recém-nascido, a quem hoje chamam o Menino Jesus,
fez das suas no regaço de todas as senhoras. Deram-lhe tanto
beijo, que o iam desfazendo. O padre chegou a injuriá-las pela
maneira sôfrega como disputavam o inocentinho. Uma delas,
mulher espirituosa, ainda vive, voltou-se para ele e replicou-lhe:
- Vossa Reverência, aos anos que conta e ao bem que tem
feito, já estava no céu, se não fosse tão malcriado. . .
Noite de Natal
João de Araújo Correia

ERA COSTUME CEAREM CEDO PARA MELHOR DIGERIREM ,


à lareira, pela noite dentro, comezainas e gulodices. Iriam ou não
iriam à missa do Galo. É possível que não fossem, que lhes desse
a preguiça. Mas, no dia seguinte, seriam certas na igreja, para ver
o presépio e beijar o Menino. Tinham, desde crianças, essa de­
voção.
Já estavam à mesa quando se puseram a considerar que esta­
vam sós, naquela quinta e naquela casa, tudo tão grande para
duas pessoas. Já nos últimos anos, àquela hora, tinham pensado
nisso. Mas, naquela noite, o pensamento agravou-se-lhes numa
espécie de dor. Eram duas irmãs já velhas, que andavam de mal
com a mais nova, a troco de partilhas. Iam envelhecendo, cada
vez mais, sem ver a irmã.
- Nosso Senhor nem sequer nos deu manos. Foi bem mau­
zinho. Podíamos ter sobrinhos, mana! Podíamos ter maridos,
mana! Podíamos ter . . . filhos, mana!
Acabou estas exclamações, corando. Era a mais velha, tão
culpada como as outras de não ter marido. Em nova, escorraçava
os namoros ao mínimo capricho. Seguiu-lhe as pisadas a irmã do
meio como à do meio a tressorinha. Eram um pouco excêntricas.
Se fossem à vila, faziam rir os vilões com os chapéus que levavam.
204 VA S C O GRAÇA MOURA

- São as Meireles! São de morrer . . .


E eram. Eram d e morrer de riso.
Já tinham levado à boca a primeira garfada de couve troncha,
estrugida com um pouquinho de alho, quando, à uma, fitando-se
e refitando-se, perguntaram: se fôssemos ter com ela?
Ela . . . era a irmã, que vivia do outro lado do rio, noutra quin-
ta, com duas criadas e um cavalariça.
- Vamos lá, mana?
- Vamos lá, mana.
- E levamos a ceia!
- E levamos a ceia, mana!
Como era disparate, ficou decidido que o executassem. Em
menos de um amém, encheu-se um roupeiro com as vitualhas
e um açafate com as doçarias.
- V amos consoar com a mana Gertrudes! - berraram à go­
vernanta, que ouvia pouco, desde que apanhara, quarenta anos
antes, uma constipação. - Vamos consoar com a mana Ger­
trudes!
- Vão com Deus e com Santa Maria! As meninas, quando
se lhes mete uma coisa em cabeça, não há ninguém que lha tire.
Vão com Deus e com Santa Maria. 01te lhes hei-de eu fazer?
Chamaram o José, criado dos cavalos tão antigo como a go­
vernanta.
- Olha, José, aparelha o meu e o da mana. Vamos cear com
a mana Gertrudes. Hás-de gostar de a ver.
- Já devia ter sido, mas, a esta hora, com um escuro destes . . .
L á fora, é u m breu, meninas! Vamos esmurrar, por a í abaixo,
com licença, as ventas . . .
- As tuas, malcriado! Deixa-te de lérias. Aparelha o s cavalos.
- É já. O meu oficio é aparelhar e desaparelhar.
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 205

Tiveram de descer, para o rio, um caminho excomungado,


mas não esmurraram, com licença, as ventas. O José ia na frente
com um lampião e acomodava ao caminho aquela espécie de
fuga. Mereciam-lhe cuidado especial as moças, que levavam à ca­
beça, no roupeiro e no açafate, a consoada.
- Cuidado aí, ó Genoveva! Olha que aí há um salto. Por
aqui, Violante . . .
A s duas bestas, com a s duas senhoras, iam entregues a um
paquete, rapaz timorato, mas confiado numa grande navalha, que
levava no bolso, e numa pistola de cavalaria, que o tio José tinha
escondido na faixa. Vira-lha escorvar, dizendo: isto é para o que
der e vier, rapaz! Em noite santa, não haverá azar, mas, sabe­
-se lá?
Chegados ao rio, tiveram de ir acordar o barqueiro, já com a
ceia comida, ao lado da barqueira.
- Francisco, põe-te a pé, que estão aqui as senhoras . . . Qie­
rem passar para o lado de lá.
- Qie senhoras?
- As minhas amas, diabo! Tu não me conheces? Sou o José
da Rita, criado das meninas.
- Eu logo vi. Numa noite destas, só aquelas almas . . . Falas
a sério?
- Tão sério como estarmos aqui. Mexe-te . . .
- J á aí vou, homem.
- Anda, que não te arrependes.
- Isso sei eu . . .
O barqueiro, para cortar a corrente, furiosa àquela hora, des­
creveu com a proa uma espécie de i, com a ponta virada para
a nascente do rio.
- Pensei que nos ias levar para Espanha. Se soubesses a
pressa que temos, metias a direito - disse a menina mais velha.
206 V ASCO GRAÇA MOURA

- Fazia-as frescas. A menina pensa que é Verão? Isto, de


Inverno, tem de ser assim. Acompanha-se o pego, como quem o
namora, para melhor o vencer. Mas, perdoará a menina, para
onde é a ida?
- Consoar com a mana Gertrudes. Se tudo correr bem, da-
mos-te uma roupa.
- Já a sinto no corpo. Esta, menina, está um frangalho.
- Coitado! Pega ...
- Ó menina, rais me parta se já algum dia enxerguei tanto
dinheiro junto.
Subiram, do outro lado do rio, um caminho igual ao que ti­
nham descido antes de chegar ao barco. Aí a meia encosta, alar­
gou-se o escabroso trilho, para mostrar, ao abrigo de duas olivei­
ras, uma capela tão silenciosa, tão lôbrega, que o José comentou:
- Ninguém dirá que esta capela é de Nosso Senhor, que
nasce esta noite.
Depois de cruzarem uma estrada real, o caminho amainou,
tomando-se quase plano. Seguiu a sua derrotina por entre casta­
nheiros, cujas raízes, meio descobertas, pareciam cobras, com ca­
ras humanas, à luz do lampião.
- Ó Violante, olha esta . . . Parece o teu namorado.
- Será a sua mulher, tio José. Não vê que lhe faltam os
dentes?
Neste e noutros remoques se entretiveram até avistarem ao
longe, por entre a ramaria das árvores, meio desfolhada, uma es­
pécie de clarão, que, a pouco e pouco, se foi polarizando, até pa­
recer uma estrela.
- Será a dos Reis Magos? - perguntou a menina mais nova.
- Aquilo que ali vem é gente como nós - respondeu o José.
- Serão ladrões?
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 207

- Olha, ladrões! Esta noite, não há ladrões, menina!


- Qye será então? Estou aflita!
- A ver vamos, menina. . . Seja lá quem for. Consoante nós
vamos de cá para lá, não faltará quem venha de lá para cá. O que
mais há no mundo é quem ande fora dos eixos.
- Qyeres tu dizer que nós? ... Atrevido! A culpa foi do Papá,
que ...
- Foi um grande homem. Depois que ele morreu, findou
a graça na terra.
Caminharam para a luz como a luz caminhou para eles. Ta­
param-se numa clareira, donde partiam caminhos para os quatro
ventos e onde, a meio, se erguia uma cruz de pedra muito alta
com um crucificado muito pequenino. Aí se travou a seguinte
conversa:
- Ora, quem havia de dizer? A mana!
- Ora, quem havia de dizer? As manas!
- Aquando, aquando, mana!
- Aquando, aquando, manas!
E ali foram beijos, abraços, gritos de parte a parte, vivório da
criadagem, até que o José lembrou a ceia.
- Tens razão ... A ceia! Aqui, aos pés de Nosso Senhor!
Serviram os degraus da cruz de mesa posta. Ali se estenderam
e ali se comeram iguarias e guloseimas de duas casas ricas. Bebe­
ram-se consumos pela medida grande e, pela pequena, os vinhos
finos.
- E não está frio nenhum! Qye milagre, mana!
- Qye milagre, manas!
- Junto de Nosso Senhor, mana!
- Junto de Nosso Senhor, manas!
Beijaram-se mais vezes, até que o José recomendou:
- Vamo-nos embora, meninas. Já se beijaram bastante...
208 VASCO GRAÇA MOURA

- Cala-te, bruto!
- Porquê?
- Não ouves Nosso Senhor falar? São para nós as suas san-
tas palavras. Nosso Senhor disse: «amai-vos umas às outras». Se
falasse para ti, diria: amai-vos uns aos outros . . . Percebes?
- Percebo. Nosso Senhor, a mim, também me disse: cuida-
do com elas, José, que o aroma dos vinhos já me chegou aqui.
- Herege!
- Leva arriba, meninas!
Cantaram os galos para fora dos soutos. Nosso Senhor desa­
pareceu. Ia nascer para se mostrar no dia seguinte às criancinhas,
num âmbito de mil aldeias.
Os Reis Magos
Vitorino Nemésio

POIS SE COMERES AS SOPAS, CONTO-TE . . . Foi o que disse a


Avó. E, porque as comi todas, até chorar por mais, e não deixei
nada na tigela, e fui muito bonito para ser ainda mais gordo,
sempre contou.
Contou que, noutros tempos (ainda os burros falavam!), lá
por uma estrada fora iam andando três senhores. Cada qual o de
mais teres, logo os vereis! - não eram pimpões nem soberbões.
Traj avam de imperadores, com grandes mantos de pelúcia,
cheios de anéis de pedras finas e de coroas à cabeça. Tinha cada
um seu ceptro com que espertava a mula (pois iam escanchados),
e na ponta de cada um daqueles pauzinhos de prata uma pomba
poisava o pé leve, cortado no puro oiro.
Só te digo que em riqueza ninguém lhes passava a perna -
pois só visto aquele asseio e tenteado ao pé pelo Sr. Matos (que é
um ourives dos primeiros) se podia dizer quanto valiam. Mas
nem por terem tantos cabedais e aquelas honras todas (o seu dá­
-se a seu dono) aqueles grandes figuros eram toleirões. Não! Eles,
que tanto podiam, e tinham baraço e cutelo, e às portas de palá­
cio árvores de galho rijo para enforcar os salteadores; eles, que
eram abaixo de Deus, e, assim, podiam matar e ferir sem apelação
210 V ASCO GRAÇA MOURA

nem agravo, e intimarem os pobres a porem para ali o seu dinhei­


ro, a novidade e a honra das virgens (hein?!. . . ), pelo contrário,
eram mansos e tinham falas de mansos.
Nas noites frias de gelo em que os telhados voavam, se pu­
nham pingando as borralheiras e um vento forte sacudia as arcas
do pão sem migalha, desciam os três Reis de seus tronos, talha­
dos na pedra-mármore, e lá iam de rota batida . . . A lama enla­
meava os seus saiotes guarnecidos. A chuva, basta e impertinente,
dava-lhes bofetadas na cara. Atrás, pingando, iam os serventes
carregados. E então, parando às portas dos ceguinhos, dos rotos,
dos que tiravam uma esmola, e dos cavadores que tinham a enxa­
da e o alvião desencavados, faziam as reais mesuras dando boa­
-noite a todos:
- Deus esteja e Deus venha!
- Deus esteja nesta casa!
Um dia, um aleijado atrevido, uma espécie de Tintaleis, res­
pondeu com uma graçola:
- ... E o Diabo em casa dos frades! (pois já nesse tempo ha­
via frades).
Então os criados, que marchavam à cernelha das mulas, ali­
viavam-se dos presentes e enxugavam o suor debaixo dos barre­
tes. Tiravam as colchas de seda de riba dos cestos e a verdura dos
alguidares. E, por suas próprias mãos, os Reis davam bodo de
brindeiras e repartiam cobertores à pobreza.
Isto enchia a casa ao prove como um pegão de vento enche
o portal da Matriz. E era um regalo! Era como se, duma caixa
fechada, muitas pombas juntas levantassem voo à uma e ficassem
poisadas nos tirantes ... Até parecia que os céus também gostavam
daquilo! Ao longe fugiam as nuvens como latas de água às costas
duma fiada de papões, e a armação do céu punha o seu toldo
azul, todo pregado de estrelinhas.
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 211

Era debaixo deste pálio que os Reis tornavam a palácio, can­


sados da caminhada. Cada passada real atirava um respingo ao
real manto. E em grande estadão, com uma procissão de velhi­
nhas atrás, entravam por aqueles portões de ouro, que se abriam
de par em par enquanto um criado ia acordar o sineiro da capela
para repicar dobrado.
Estas coisas sucediam em Oriente, que era o reino dos Reis.
Ora um dia (por tal sinal, uma noite em que chovia a potes), os
três Reis encontraram-se num grande salão com paredes que
nem muralhas. De roda havia tamboretes de coiro e de pregaria
amarela, como o cadeirão carunchoso em que o mestre Francisco
da Cadeia bate sola e põe tacões. Somente os do palácio real
eram tão lindos, tão lindos, que pareciam pregados para os assen­
tos celestes das Potestades e dos Anjos!
Nestes bancos se assentavam os Reis e a corte de seus senho­
res. Os Reis tinham artes e mandingas, por isso lhes chamavam
Magos. Senhoras lindas como o sol bordavam-lhes os xairéis das
muares. Tocadores de muita fama repenicavam-lhes nas violas.
Cantadores, de garganta tratada a gema de ovo, cantavam-lhes
trovas ao despique. E uns afilhados que eles tinham, filhos de
gente pobre mas vestidos de «infantes suavíssimos», brincavam
com piões de marfim, atados com fieiras de seda. (Podiam jogar
à vontade, que o chão era de pedra: não lhe faziam furos) .
A parede mestre da sala tinha uma parte em falso, defumada
das cozeduras, onde os clarões das lavaredas dançavam a chamar­
rita acompanhados de estalinhos. Aquilo dava ali um santo sabor,
minado de cepos e de achas cobertos de flocos de resina como te­
tas de cabra ordenhada. Todos gostavam muito daquele borralho
brando e estavam para ali quietinhos, a esfregar as mãos de con­
tentes.
Eis senão quando começam a repenicar as toeiras das violas
e um dos reis põe-se a pé e vai espairecer à janela. Era um janelão
212 V ASCO GRAÇA MOURA

cortado na parede, funda de um metro e meio, com duas copeiras


enfeitadas de rosmaninho e de alfazema. Um grande alegra-cam­
pos arregalava o olho vermelho como besugo. E o Rei, arredando
os cortinados e abrindo uma gretinha, meteu a cabeça coroada da
sua coroa de bicos como a de São Luís, Rei de França. Era o pró­
prio Melchior. Outro chamava-se Gaspar, dono duma ladeira . . .
O outro, negrinho de todo, assinava-se - Baltasar.
Então, abrindo muito os olhos, vivos e azuis como o céu, pa­
rando um pouco, depois recuando um bocado como se achasse
uma prenda ou visse, chinchinho, um brinquedo, El-Rei Mel­
chior pôs as mãos, abriu-as devagar e ficou como o padre a meio
da missa, com os olhos muito abertos.
Lá dentro, as violas repicavam. Cá fora, estiara um poucochi­
nho. Da tapada, toda coberta de arvoredo, começaram a sair e a
cantarolar os tentilhões namoradeiros, os canarinhos afitados,
mais « O ladrão do melro preto onde foi fazer o ninho» ... Um
quarto de lua, doce, como uma foice de roçar, estava estampado a
primor na página azul do firmamento. E, no sobredito, a tremer,
a luzir e a arrefiar como um olho, uma estrela pingava, qual brin­
co numa orelha de menina.
El-Rei Melchior ficou o que se chama palristo! Pois que logo,
estendendo de lá seu braço de oiro, a estrela escreveu, mesmo sem
pauta, as seis palavras seguintes nos vidros suados da janela:

Eu sou a estrela de Deus.

Melchior curvou a cabeça e entendeu o resto, que era simples:

Segue-me como um cão!

Gaspar acompanhou-o, e o outro também. Partiram os três


em três mulas, levando três cofres e três pajens, direitinhos por aí
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 213

fora. E então, até que chegassem a um sítio chamado Jerusalém,


apanharam, coitados, a geada e o frio todo deste mundo!
A pé e calados, os pajens carregavam com os cofres onde iam
as prendas de valia. Como naquele tempo não havia estradas
- nem sequer para reis! - os caminhos eram regos abertos e
acalcados entre as terras. À beira deles debruçavam-se as árvores
chocalheiras. Como as canadas de Santo António, os atalhos
tinham relheiras onde as mulinhas entalavam as suas fracas ferra­
duras. Mas, mesmo assim, no meio de tantos tormentos e traba­
lhos, Suas Majestades caridosas escorregavam dos albardões para
escancharem caminhantes. Uns eram velhos sem poderem; ou­
tros, capengas, como o Francisco Cambadinho. Uma tia torta,
outra cambada, outra cega, sem orelhas, abalaram a trote, repim­
padas, nem que fossem rainhas!
Até que Jerusalém, lá longe, se avistou. Aí, os Reis disseram a
Herodes - que era da igualha deles, Rei de Espadas e de Oi­
ros! - queriam saber onde estava o Rei dos judeus que era nasci­
do. E, como Herodes não sabia de nada, chamou a si os escre­
ventes do seu povo e os príncipes dos seus sacerdotes.
Esta gente usava a barba toda (uns mais rala, outros mais bas­
ta), e guardavam, em arcas encoiradas, medas e medas de livros
cheios de traça e de sabença. Molhando o dedinho, os escribas
iam virando aquelas folhas amareladas - quando um deles, lá do
canto, muito invernizadinho e de óculos quadrados, levantou
o dedo ao ar, feito bicho saltão. Parecia mesmo empregado na
Conservatória! Um pândego!
Enfim, tinha achado! Ele cá estava! Um profeta escrevera
a folhas tantas, verso, do Livro da Nova e do Destino, que em
Belém de Judá viria ao mundo o Cristo Nosso Senhor. Ora, isto
foi tal qual como deitar o bando para se achar um tesoiro . . .
214 V ASCO GRAÇA MOURA

Os Reis Magos então disseram adeus a Herodes, que lhes


pediu que mandassem a direcção do Deus Menino. E, nas três
mulas, que já suavam em bica amarradas às argolas e estraçoando
fardada e luzerna, alçaram as pernas e partiram.
Então a estrela dependurou-se-lhes na dianteira como um
pobre lampião, e guiou-os. Pôs-se a chover outra vez. Seguiam
por valados e por hortas, encharcados até às virilhas. De vez em
quando encontravam peregrinos enregelados que diziam mal da
vida; e Gaspar, que era velhote e gebo, gemia do alto do albardão
para Baltasar ou o outro:
- Faltará muito, seu Melchior?! . . .
El-Rei Melchior olhava, coitado, para a estrela, que luzia
sempre e ia baixando pouco a pouco, como o ponteiro dum reló­
gio todo cravejado a safiras. Mas vinha um dos pajens, forte moço,
com um alento de gigante, e dava uma arroxadinha nas ancas
da mula de Gaspar com o seu pingalim de espadana. Eles, tontos
de sono, despertavam. E assim calados, tuca, tuca, foram indo . . .
Mas já a s bocas d o céu ao p é d a terra, a que alguns chamam
horiwntes, se iam abrindo devagar para engolir a noite e se tor­
navam cor-de-rosa. Devagar, sobre silvados em flor, passarinhos
sem medo daqueles piques punham seus pés mimosos. As poças
de chuva espalhadas, que tinham espelhado as estrelas, agora cla­
reavam, clareavam como quem vai acender-se. Urzes, giestas e
roseiras esgalhavam os seus ramos cheios de flores pelas pontas.
Rompia a madrugada.
O pajem de Melchior (que ou eu estou enganada ou era o da
naveta de incenso) ia a fumar o seu cigarro quando empeçou
numa cancela de pinho, ao pé dum molho de palha. A tampa da
naveta abriu-se, caiu-lhe uma brasa dentro, e foi preciso borrifar
o incenso com água, senão ardia tudo. (Como vês, meu menino,
iam todos seis cheirosos.) Depois, com o subir da manhã, come­
çaram a topar muita gente.
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 215

- Gaspar! Vês aquilo acolá, aqueles pontinhos, ali? -


A Gaspar pareciam mexer. Melchior tornava:
- Será gente que ali vai, Gaspar?
O velho encolhia os ombros, fartinho de cavalgar. Mas era.
Foram-se aproximando e viram que era verdade. Eram pastores
com cordeiros escarranchados ao pescoço; velhas, como a Jaleca,
com cestas de ovos grossos, de pata marreca e de galinha; rapari­
gas frescalhoiças com rosquilhas enfiadas nos braços. Um homem
calvo e negrinho, que nem o Manuel de Borba, tocava um guexo
lavrado que revirava o focinho e berrava como quem se despede
deste mundo. Tinham-no tirado da tetinha da mãe, coitadinho!
Agora, em lugar de leite, tinha que mamar num molho de erva
da casta que o velho levava de braçado!
Mais adiante, um pescador, que parecia o Manuel Vesgan­
te, ia todo prezado com duas ricas bocas-negras enfiadinhas
num junco. E, numa bandej a forrada de rendas e de mimo-de­
-estudante, um pequeno que nem o da Segunda levava um ser­
viço de alfenim, todo de pombas de açúcar com olhos de grão
de ervilhaca.
Todo aquele povaredo ia saltando de contente pelos cami­
nhos fora. E, topando-os, a passo, El-Rei Melchior, mais traseiro
que os outros, perguntou a um cabreiro:
- Sempre quero que me digais aonde ides com essa pressa
e com tanta recolaria . . .
- A Belém! A Belém d e Judá! Ver o Infante!
- Eia pois, que é nascido?
- Entre as bestas, vós o dizeis! - respondeu o criador do
bezerro.
E gritaram em coro:
- A Belém! Ao Deus Menino!
216 VASCO GRAÇA MOURA

Então um cego como o Pacheco tirou a rabeca do sovaco;


Jé António enroscou o clarinete; Jé Cardoso Patinho escorreu o
cuspo dos pistons, e, levando o bocal do cornetim ao bigode, ar­
maram ali logo um Pezinho que nem o do boda das Tronqueiras.
Uma rapariga, que levava um açafate de pão alvo e tinha uma
garganta de prata, botou a sua cantiga:

- Ó meu Menino Jesus,


Qye é da vossa camisinha?
- Ficou-me lá em Belém
No colo duma freirinha.

Melchior, Gaspar e o outro rei puxaram das suas patronas


e atiraram punhados de dinheirama em prata e em cobre ao po­
vo. Os pastores bradaram, à uma:
- Vivam Suas Majestades! A Belém! A Belém!
Estavam já todos no presépio. Ali parou a estrela e derreteu­
-se no céu azul, azul que eu sei cá! . . . Da banda de fora do portão
as três mulas roíam erva, com os estribos encruzados nos albar­
dões, dando ao rabo. Qyando, muito contentinhos, os Reis co­
meçaram a bailar como quem se despede deste mundo. Já tinham
dado os presentes: o oiro, o incenso e a mirra. Os pastores já ti­
nham entregado as suas ofertas. E todos, de joelhos, tinham ado­
rado o Menino com tanto fervor, tão de dentro, cheios de tanta
alegria, que a vaca e a burrinha em Tabernáculo largaram-se
a berrar e a zurrar de puro contentamento.
Os velhos Reis dançavam, dançavam! ... Era um bater de sa­
patilhas - taquetã! taquetã - que ... ai! ricas solas da minha al­
ma! iam-se os pontos e as palmilhas . . . Os mantos régios caíam
para trás das costas, rasgados. As coroas ficaram de banda; e mes­
mo uma delas, a do velho Gaspar da Ladeira, rolou para o pé da
bezerra, que a enfiou nos galhinhos, a inocente!
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 217

Desempenados e altos, de trunfas nas traves do tecto, o s Reis


manobravam de ceptro com toda a delicadeza.
(Eu: - E depois? E depois?!
A Avó: Espera, homem! Lá vamos . . . )
-

Tangia cada um no seu tacho (coisa, talvez, da vizinhança ... )


com um rebate de gozo que zoava muito longe e se sumia como
o eco que tu tiras a gritar à porta da cisterna. E assim estiveram
os três reis dançando e fazendo matinada, sem maldade nem sa­
crilégio, que nem os foliões da Serra em dia de coroação.
Nisto, o homem que levava a cambada de peixe ao Menino,
e que parecia ali o nosso Vesgante, vai, atreve-se e diz:
- Saberão Vossas Reais Majestades que uma coisa assim,
nunca eu vi! Em panelas velhas tocarem os Reis! . .. O quê. . . !?
Melchior, Baltasar e o nosso Gaspar da Ladeira fizeram-se
muito vermelhos, todos de pé no ar. Então, por milagre de Jesus
Infante, cada tatarino daqueles se tomou numa campainha de oiro,
a badalar, a badalar... E os Reis voltaram de rota batida a suas terras
e palácios, furtando a volta a Herodes Antipas, o grandessíssimo
carrasco, que queria degolar o Menino Jesus para nos não salvar!

Qiando a Avó se calou, fiquei escoroçoado:


- E o resto, Avó? E o resto? . . .
- Acabou-se o que era doce e o que era mel derramou-se . . .
- disse ela apanhando a tigela das sopas vazia. Saltei-lhe do colo
e fui para a rua. Os meus amigalhaços jogavam o eixo-rebaldeixo.
Iam n'«as cinco» («- Na rua da Palha perdi um brinco»).
- Ala às seis! - gritou Tiàzé saltando o costado a . . . Alo
Branco.
Aproveitei a deixa e lá me estanhei também, glosando:
- Panelas velhas não tocam os Reis!
Conto do Natal
José Régio

DECERTO MAL CHEGAVA A SER HOMEM, um homem como os


outros, aquele estranho ser todavia com formas claramente hu­
manas. Por vários aspectos, antes se diria da raça dos bichos.
Como os dos bichos da floresta, se apresentava coberto de pêlos o
seu rude corpo gigantesco. De igual para igual brigavam pela
conquista duma presa comum, ele e os bichos. Por uma natural
solidariedade acamaradavam em certas horas de perigo: aquelas,
por exemplo, em que, desencadeadas, as misteriosas forças da
Natureza tanto ameaçam bichos como homens. À semelhança
dos bichos se deitava a dormir na terra estreme, e qualquer chão
ou pedra lhe servia de mesa para os brutos festins. Nada, pois, se­
não essa rivalidade a que os obrigava a urgência de satisfazerem
comuns necessidades primárias, (entre quais, talvez a do amor)
impedia que só amigos tivesse ele nas variadas classes das bestas:
das bestas-feras, das bestas mansas. Não as compreendia perfei­
tissimamente nos seus costumes e caracteres, moléstias e até lin­
guagem? Desde o espantoso rugir do leão, que assusta todos os
outros animais, ao diamantino trilo das aves; desde o pungente,
longo, humorístico ronco do asno ao roçagante war confidencial
dos insectos - hábil conhecedor se tornara das suas várias lín­
guas, que na perfeição imitava. Afastar-se-ia muito dessas a sua
220 VASCO GRAÇA MOURA

própria? A verdade é que também os bichos o entendiam, pa -


reem.
Noutras particularidades talvez de mais subida ordem, logra­
vam, ainda, irmanar-se. Como eles farejava de longe as ameaças
e os riscos, as tempestades iminentes, as catástrofes distantes, as
variações do tempo, a sucessão das estações, os fenómenos que
decorrem lá por cima entre os astros. Como alguns se afundava
em longas meditações sem objecto; talvez por mera influência do
clarão da Lua, dos silêncios do céu, porventura da simples névoa
que flutua nos horiwntes. E noutras ocasiões se mostrava sujeito
a furores, pavores, agitações, amolecimentos, cujas causas não po­
deriam ser conhecidas dos homens: É que só o instinto primitivo,
ainda virgem, nele agia e o alterava.
Assim camarada das bestas, como se não tornariam difíceis as
suas relações com os humanos? Haveria, sequer, o que se diz re­
lações? Muito raras; muito incompletas; e só por inesperados
e fugidias encontros, por surpresa de parte a parte. Aos homens,
simultaneamente os assombrava, os apavorava, os humilh ava, ou
inspirava turvos sentimentos de curiosidade e ódio. Seria fácil
perdoarem-lhe aquela aparência humana? a um monstro assim?
Não obstante, que homens eram esses, aqueles com quem
poderia ter, pudera haver tido, quaisquer fugidias contactos? Bru­
tos pastores de inacessíveis pastos, criminosos foragidos a outros
climas, vagabundos loucos ou semiloucos, ásperos caçadores da
serra misteriosa. Às paragens por onde ele vagueava, só homens
destes se arriscariam; e muito raramente. Claro, menor se tornava
ainda qualquer sua possibilidade de convívio com os habitantes
das póvoas circunvizinhas. Tristes póvoas enterradas nos refegas
da região bravia, toda eriçada de penhascos abruptos, entre a ser­
ra e a floresta! Porque para um lado era a serra inexplorada, e
para outro se prolongavam sombrios bosques formando uma flo­
resta que ainda ninguém devassara. Assim como isolados do resto
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 221

do mundo, estariam muito longe do monstro peludo os toscos


habitantes de tais póvoas? tão longe como o supunham?
Talvez por isso mesmo se sentiam tão profundamente vexa­
dos com apresentar ele o seu mesmo contorno humano. Ah, que
o detestavam! E em sarcasmos se desafogavam, quando, certas
noites, os ecos das encostas repercutiam ora os seus uivos lúgu­
bres, mais soturnos que os dos cães e lobos, ora sons que, vindos
de outro ser, quase seriam tidos por musicais; quase lembrariam
uma cantilena entrecortada, fragmentos dum canto lamentoso.
Algumas vezes, porém, lhes saíam contrafeitos os sarcasmos. Se­
ria o pavor? seria a superstição que lhos regelava na boca? seria
mal se pode supor que respeito despropositado? O caso é que às
vezes chegavam a ficar estarrecidos, ou não continuavam zom­
bando senão com esforço, por jactância, quando, a negro sobre
o clarão da Lua cheia, viam passar a gigantesca silhueta do bicho
de forma igual à sua; ou, sendo a Lua já um delgado minguante,
divisavam, numa espécie de névoa, aquela massa longamente
imóvel sob as estrelas.
Para qualquer pavor pessoal, haveria razão? Nunca ele provo­
cara ninguém; não havia notícia. Mas uma vez - viera isto con­
tado de pais a filhos, de avós a netos -, haviam organizado uma
expedição para o capturarem. Seguros do bom resultado, já os
projectos variavam para depois da sua captura: matá-lo-iam?
Contentar-se-iam com o mutilarem? Encerrá-lo-iam numa jaula
de pedra, tapada a grossos varões de ferro, para, depois, se diver­
tirem a acirrá-lo? Mas não derrubaria ele os muros? não torceria
os mais grossos varões? Das suas mãos se dizia que eram pesadas
como a pata do leão, e terminavam em garra como as das aves de
rapina. Decidiram que, podendo capturá-lo vivo como espera­
vam, o trariam encadeado. Depois o passeariam, carregado de
grilhões, pelas redondezas - e assim os povos pusilânimes exul­
tariam de se verem libertos daquele pesadelo do monstro. Porque
222 VA S C O GRAÇA MOURA

lá que fosse ele capaz de abater paredes de rocha, ou estorcer va­


rões de ferro, ou vencer uma dúzia de valentes (antigos salteado­
res, aventureiros, familiares do crime e da luta, caçadores de feras
em florestas nocturnas), não podiam crer os que partiram na ex­
pedição. Jovialmente partiram. Jovialmente partiram com os seus
estadulhos eriçados de pregos, as suas facas de mato, as suas alge­
mas primitivas. E até dois ou três dos mais novos, por escárnio
ou precaução, levavam de roda do pescoço coleiras com picos
acerados, como se põem à garganta dos cães para os defender dos
dentes dos lobos.
Ora até nas regiões mais inóspitas, em brutas paragens per­
didas do mundo, pode pulsar um ou outro coração mais brando.
Já um ou outro coração mais brando aventara uma palavra com­
padecida em favor do monstro. No fim de contas, também era
uma criatura humana! segundo várias probabilidades. E não fora
ele que se fizera tão monstruoso, pois não? Tivessem algum dó
do infeliz! Pelo menos o não mutilassem de modo a ficar sofren­
do irremediavelmente ...
Durante dois, três, quatro dias, foram confiadamente espe­
rados os que tinham partido. Mas os dias passaram uns após
outros. E daquela dúzia de afoitas, cépticos, galhofeiros, que
jovialmente partira, nunca mais voltou nenhum. Mais tarde se
encontraram os seus restos mortais. De cadáveres já nem fora
próprio falar, pois as feras e as aves sinistras (se não, também,
o monstro carniceiro) lhes haviam esburgado os ossos. Um boato
correu então de que alguém ouvira noites a fio, trazidos pelo ven­
to, gritos de socorro e pungentes alaridos, coisas de se porem os
cabelos em pé. Qie vinham dos lados da serra - dizia-se ainda.
Não passou dum boato: porque, se alguém os ouviu, nunca direc­
tamente o declarou, talvez com pudor de confessar que todo se
encolhera nas suas tábuas e palhas.
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 223

Acontecera isto há muito! há muito tempo. Mas sempre viera


contado de pais a filhos, de avós a netos. Assim, com excepção
dos tais corações mais brandos, piedade para com o monstro, não
a havia. Ninguém parecia ter pensado que dos outros, não dele,
partira a primeira intenção agressiva, agravada por ferozes projec­
tos. Se fora ele a trucidar aquela dúzia de aventureiros, não agira
no que se chama legítima defesa? Isto, se alguém o pensara, pru­
dentemente recolhera a língua: será de boa política afrontar um
ódio público? uma opinião geral?
Não tanto por caridade como por divertimento, só algum
pastor mais jovem ia, às vezes, deixar sobre uma rocha um animal
que lhe morrera de morte maligna. Sabia que o cheiro atrairia o
monstro. E era, para ele, uma curiosidade, uma espécie de triun­
fo, conseguir divisar a forma peluda e gigantesca, movendo-se na
semiclaridade do céu nocturno; escutar o seu uivo repercutido de
eco em eco pelas encostas longínquas. Homem, aquilo?! Mas que
pais o poderiam ter gerado? Qye monstruoso, lubrido amor teria
sido capaz de tal fruto? E como deveria ser velho, se já os bisavós
afirmavam terem ouvido nomeá-lo aos pais de seus pais! Talvez
dos tempos do dilúvio. Talvez dos princípios do mundo. Talvez de
quando havia sobre a terra - contava o sábio que vivia na sua ca­
verna forrada de musgos, à entrada da floresta - espantosos se­
res cuja espécie desaparecera no rolar dos séculos. A verdade é
que ninguém estaria muito longe de o julgar imortal.
Por isso foi um espanto, um alívio, uma decepção, quando,
certa manhã, apareceu morto. Bem verdade que, durante a noite
(por acaso uma fria noite de Dezembro), dera o monstro sinais
de extraordinária agitação. Já a noite não fora qualquer. Durante
toda ela caíra silenciosamente uma neve miudinha, cujos tenuíssi­
mos flocos dançavam no ar como imponderáveis penugens de
ave; e depois se pegavam aos galhos secos das árvores, fazendo-os
224 VASCO GRAÇA MOURA

florir, ou iam cobrindo tudo, aos poucos, do seu imaculado tapete


fofo. Pois essa noite não só dera o monstro sinais de extraordiná­
ria agitação, como parecera, até, haver querido aproximar-se mais
que nunca dos aglomerados humanos circunvizinhos. Doutra
forma se não teria dado pela sua morte logo no dia seguinte! Lá
nesses píncaros, desfiladeiros, moitas cerradas que eram seus do­
mínios próprios, bem o seu cadáver teria tempo de se liquefazer
ignorado! Bem o teriam esfacelado as aves sinistras, roído as bes­
tas-feras. Porém essa noite, pastores que velavam o tinham visto
quase perto, com os grossos braços atirados ao ar, e gestos que
bem poderiam ser de quem chama ou pede socorro; talvez de
quem algo tem a comunicar aos seus semelhantes. Qyais seus se­
melhantes? Por isso os pastores haviam passado a noite na defen­
siva: sabiam como poderia não ser ele menos perigoso para seus
rebanhos que os lobos famintos. Ora por acaso, essa noite, os
seus costumados uivos e gritos nem eram gritos nem uivos. Me­
lhor se diria tentarem modulações desconhecidas. Seria lamentar­
-se, aquilo? seria cantar? celebrar o quer que fosse? Como que en­
toavam as suas vozes fragmentos de estranhos hinos selvagens!
selvagens; mas porventura comovedores; e intercalados de puras
manifestações de entusiasmo, ou alegria, se não melancolia - se­
ria alegria? melancolia? - para as quais não havia nomenclatura
na pobre linguagem dos sítios. Os mais sensíveis dos que, na fria
noite de Dezembro, tinham ouvido tais vozes (mas a neve a cair
como que fora aquecendo a noite . . . ) chegaram a ficar impressio­
nados. E um pastorzito que tocava flauta, e mais de uma vez lhe
fora pôr no alto das rochas qualquer animal morto, pensara ao es­
cutá-lo: «Se eu soubesse tirar na flauta ... »
Hábil tocador, na sua flauta primitiva apanhava todas as árias
que ouvia. Simples, muito simples essas árias, como não podiam
deixar de ser as daqueles povos. Mas até, por vezes, já na mesma
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 225

flauta ensaiava o nosso juvenil tocador outras que se não lembrava


de ter ouvido. Talvez menos simples, estas. «Qyando eu for gran­
de . . . » pensara ainda «quando eu for grande . . . ». Sonhava que, che­
gado à idade em que os homens estão mais ou menos seguros dos
seus dons, seria capaz de musicar na sua flauta, porventura numa
flauta mais apurada, não só as árias que apreendia com os ouvidos
de fora, mas todas, também, que lhe vinham de dentro. E então
se lembraria daqueles fragmentos de cânticos entreouvidos ao
monstro - na fria noite de Dezembro que a neve aquecera . . .
. . . Qye o monstro alarmara com a sua extraordinária agitação.
Até que por fim, o silêncio. Aí pela antemanhã, o silêncio. Já ne­
nhum grito; nenhum som de loa ou lástima. O grave e misterioso
silêncio agora supremo; o frio que dá uma impressão de cortante
pureza; o irresistível sono dos fins duma noite de vigília; a bran­
cura incorruptível da neve nos píncaros da serra, ou estendal dos
plainos; a imensa, a majestosa placidez do firmamento aberto; já
nem o roçar imperceptível dum último flocozinho de neve num
galho nu; só muito longe, algures, muito longe, num vago hori­
wnte que tanto poderia ser ainda terra como já céu, uma clarida­
de primeiro despontando como um arrepio de luz, com não sei
quê de sobrenatural; depois colorindo-se, aproximando-se, alas­
trando em subtis ou luxuosos matizes pela incerta imensidão.
Simplesmente o raiar dum novo dia.
Então foram dar com ele morto, ia já alto o Sol desse dia ma­
ravilhoso. Muito perto dos povoados. Claro que, tendo avistado o
seu grande vulto estendido, ninguém se lhe acercara sem grandes
cautelas. Não poderia ser aquela imobilidade uma cilada? Todos
iam armados para qualquer eventualidade - os estadulhos em
riste. Ninguém poderia esquecer aquele morticínio contado atra­
vés de gerações, e sempre aumentado com pormenores que se
não sabia como haviam sido averiguados. Mas foi um espanto,
um alívio, uma decepção . . . Estava morto, não havia dúvida.
226 VASCO GRAÇA MOURA

O espanto, porém; sobrelevava quaisquer outros sentimentos ou


impressões! Porque era inexplicável: Os gigantescos membros do
monstro, que sempre tinham sido vistos, ou imaginados, cobertos
de pêlos como os dos bichos, agora se apresentavam lisos, bran­
cos, polidos , como talhados em pedra-mármore . Só os seus
membros? Todo o seu corpo! Todo o seu corpo era agora liso,
branco, proporcionado, perfeito, como ninguém vira outro; só
percorrido, em vários pontos, por uma penugem doirada, como
um sinal de vida que aliás se extinguira. Isto é: como para se dis­
tinguir dum perfeito corpo de estátua, diria quem já houvesse ad­
mirado belas estátuas. Mas não se julgara ter ele um focinho bes­
tial? orelhas e ventas bestiais? sanguíneos olhos bestiais? Não era
assim que o descrevia quem, por temível acaso, alguma vez lhe
passara perto? Não o representara sempre assim a tradição ou a
lenda? Pois nada disso! nada: as feições do seu rosto eram não só
correctas mas delicadas - duma delicadeza muito rara em fei­
ções de homem; única, afoitamente se pode afirmar, em rosto
humano daqueles sítios. Um toque de infantilidade apontava na
sua boca de sinuosas linhas, semidescerrada como para qualquer
palavra ainda não dita. Os seus olhos grandes, claros, abertos, so­
bre quais só a morte espalhara leve uma névoa brilhante como
um esmalte fino, olhavam fixos para donde rompera no céu
aquela facha sobrenatural. E uma expressão de inefável serenida­
de, aliada a uma dignidade imponente e simples, resplandecia
nesse rosto afinal verdadeiramente belo: como se, antes de mor­
rer, tivera ele tido qualquer extraordinária Visão, ou recebido
qualquer extraordinário Recado.
Bravos e rudes eram os que, tendo-o !obrigado estendido nas
rochas, primeiro se lhe haviam acercado: brutos pastores de ina­
cessíveis pastos, aventureiros, criminosos foragidos a outros
climas, vagabundos loucos ou semiloucos, ásperos caçadores da
serra misteriosa . . . Pois até estes ficaram tolhidos - ao mesmo
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 227

tempo ali como estarrecidos e profundamente embaraçados -


pelo inesperado espectáculo da formosura do monstro. Encanta­
va-os, ou feria-os, aquilo?
Ora entre os mais se atrevera a ir o pastorzito da flauta; e esse
era o mais agitado! Em primeiro lugar porque, chegando ao pé
do monstro, não vira logo o que os outros viam. Como dizer . . . ?
não é fácil! O que, chegando, vira, é que o monstro era efectiva­
mente um monstro todo coberto de espessos pêlos; com uma es­
pécie de focinho, orelhas desmesuradas, olhos de besta-fera, os
membros tortos, possantes e brutos. Mas . . . (e o difícil é agora)
esses membros e esse focinho, essas orelhas e esses olhos, assim
bestiais como se apresentavam eram belos! todo esse corpo se tornara
belo apesar de, na verdade, continuar sendo como sempre o ti­
nham descrito. Pode isto compreender-se?! expor-se de modo
a aceitar-se? Pois foi o que, durante um momento, primeiro vira
o pastorzito da flauta! Só a uma segunda visão pôde ver que, de
facto, não havia pêlos, nem focinho, nem ventas, nem nada de
bestial naquele grande mas perfeito corpo como talhado em
pedra-mármore. Qiem o entenderia, pretendendo ele expor coi­
sas que assim fogem à razão? E quem lhe dera ouvidos? Afora o
jeito para a música, mostrava pouco senso na maior parte do que
dizia. Essa manhã, pior! Nessa manhã pretendia ainda que, du­
rante a noite, fora visitado por Alguém que não chegara a ver, co­
mo a gente não chega a ver o Sol. O que lhe parecera é que tinha
asas! maiores do que as das águias! E falara. Ele é que estava
ofuscado pelo clarão, estremunhado do sono, estonteado e apavo­
rado por tudo aquilo, e certamente não percebera, não sabia se
chegara a perceber . . . em todo o caso, não seria capaz de repetir,
tão esquisitas eram as coisas que afinal nem saberia dizer se che­
gara bem a ouvir. ..
Nenhum dos companheiros aparentou dar crédito a estes di­
tos sem nexo . As notícias do resto do mundo não chegavam
228 VASCO GRAÇA MOURA

àquelas póvoas ocultas nos refegos da região ignota; ou só muito


incompletas e atrasadas. Os dias, as noites, os meses, os anos, as
estações, quase só eram aí assinalados pelos fenómenos da natu­
reza. Mas uma correcção deve ser feita: nem todos - principian­
do pelo velho sábio que vivia na sua caverna forrada de musgos à
entrada da floresta - ficaram inteiramente indiferentes ao que
repetia o pastorzito da flauta. Parece que também outros, poucos,
e embora calando-se, tinham sentido que algo acontecera de ex­
traordinário naquela noite de Dezembro. Talvez por tibieza, aca­
nhamento ou pudor se calaram; talvez por íntimas razões só deles
conhecidas. E o tempo foi rolando. Qiem quiser saber a conti­
nuação da história do pastorzito da flauta, espere que algum poe­
ta qualquer dia lha conte. Qianto ao monstro, não esqueceu. Até
lhe haviam dado sepultura no seio da terra. E o lugar lá ficou
marcado por uma alta rocha que levara dias a ser arrastada, e um
engenhoso do sítio trabalhara. Na verdade, era homem de grande
engenho. Por isso mesmo, nem ele entendia como, pretendendo
talhar nessa rocha uma figuração do ex-monstro sepulto, lhe fu­
gira a mão para coisa diversa. A figura resultou muito imperfeita:
quase só tinha um tronco alongado, enterrado no chão, com dois
grossos braços abertos.
O Natal do doutor Crosby
José Rodrigues Miguéis

(- de Novembro)

A CASA AGRADOU-NOS LOGO - VELHA, DUAS SALAS AMPLAS,


tectos altos, chaminés antigas, e a varanda toda envidraçada para
o quintal, um autêntico solário onde vai ser bom trabalhar. A rua,
a dois passos das docas, entronca à esquerda na West Street: ta­
bernas, lojas soturnas, hospedarias manhosas, negros armazéns,
cheiro de alcatrão, fumaça de navios, sereias, manobras de com­
boios, ranger de guindastes, o enxurro incessante de gente e de
mercadorias. De noite um silêncio vazio, de cansaço, mascara­
do de paz campestre. Lá para o outro lado, a leste, tudo se trans­
figura: casas de classe média, sobretudo de tijolo, comércio, bares,
cinemas de frequência mista. Já me tem sucedido passar ali de
noite e ser abordado por homens de má catadura e bom corpo,
duma arrogância pouco tranquilizadora, que me pedem um «ní­
quel» para um café ou o subway.
A meio deste contraste a leste e oeste, a ilha verde e vermelha
do seminário presbiteriano ocupa todo o «bloco» em frente: rel­
vados de veludo, grandes árvores frondosas, agora nuas, a graça
austera do gótico inglês de imitação, na pedra e tijolo com a pati­
ne de Nova Iorque - grande massa de edifícios harmoniosos na
230 VASCO GRAÇA MOURA

sua irregularidade estudadamente livre, dominada por uma alta


torre severa, de universidade rural. Em pleno caroço de Manhat­
tan, dá-me a grata impressão de estar do outro lado. (Qieremos
sempre estar do «outro lado» . . . ) A igreja volta-se para a Nona
Avenida, a leste. Alheio à fé, agradam-me estas manchas de si­
lêncio e verdura, de recolhimento e gravidade arquitectónica em
pleno tumulto da cidade cancerosa. Vidas alheias, ensimesmadas,
todas volvidas para o grande vazio da Eternidade. Moram por
aqui professores, artistas, leitores de livros, gente pacata e pro­
gressista que leva uma vida espartana. Longe do luxo e do gla­
mour. Tudo isto me atrai no sítio. Foi o Nathan que nos deu o

endereço. E a renda em conta, um achado. Até parece mentira,


bom de mais. A Betsy bate palmas de contente, dança uns com­
passos de swing no parquê moreno. Resolvemos ficar. Mudança
depois de amanhã.

(
- de Novembro)

Com a meia dúzia dos trastes modestos, a casa, seminua, fica


enorme. Um estúdio, o que eu precisava. Como vou ficar aqui
metido quase todo o dia, tenho bem por onde esticar as pernas.
Blusa de trabalho, alpergatas, dum lado a mesa, do outro, na va­
randa, o cavalete de amador. O parquê estala por todas as costu­
ras. Na lareira da sala da frente pode-se acender um bom lume:
o aquecimento não presta para nada. A Mina, que já hoje cá este­
ve, disse logo: « Vocês até aqui podem dar festas, reuniões!»
Ambas as salas têm porta para o vestíbulo, chão de losangos
de mármore preto e branco; a entrada geral do prédio faz-se pela
porta ao alto duma escadaria. Isto chama-se por cá o «primeiro
andar»; o andar inferior, rés-do-chão, um pé abaixo do nível da
As MAIS BELAS H ISTÓRIAS PORTIJGUESAS DE NATAL 23 1

rua, tem duas janelas gradeadas para o relvado exíguo da frente,


e uma porta de ferro, privativa, oculta sob a escadaria. Em frente,
uma balaustrada, também de ferro fundido, separa o relvado do
passeio. Por cima de nós, no segundo, vive um advogado celiba­
tário; no terceiro não sabemos quem vive; e no quarto, três janeli­
nhas rentes à cimalha, quase uma mansarda, mora um «casal de
artistas». Foi o que nos disse o janitor. Como tantas casas de
Nova Iorque, esta foi dantes moradia de uma só família desafo­
gada: é hoje um prédio de rendimento, com uns cinco inquilinos.
Mas conserva a atmosfera de intimidade, que o haff acentua, com
o seu espelho embaciado por cima da consola onde o carteiro de­
posita todas as manhãs a correspondência dos moradores.
O cubículo que nos serve de sala de banho (sem banheira)
tem outra portinha para o fundo do vestíbulo onde descubro uma
escada estreita que leva ao andar térreo. (Os vizinhos de baixo
têm, pois, duas entradas.) A cozinha é na varanda, ao canto, em
frente da porta, com uma escadinha de madeira que dá para o
quintal, só ervas à toa e cordas para secar a roupa. Já sonho fazer
daquilo uma horta! O conforto não é grande, mas sem ele, tam­
bém se vive. O importante é trabalhar.
Arrumados os papéis, meia dúzia de livros nas prateleiras, os
quadrinhos modestos nas paredes imensas, o telefone - sinto
que as coisas me vão correr em cima de esferas. Já não é sem
tempo. Sinto-me ansioso de meter mãos à obra.

(
- de Dezembro)

Esta manhã, assim que abri os olhos, ouvi um piano que en­
chia a casa de sonoridade: Chopin, uma mazurca, e tocada por
mão de mestre. Foi uma coisa que sempre me dispôs bem para
232 V ASCO GRAÇA MOURA

todo o dia, acordar a ouvir música. Eu, que passei a infância e


a mocidade entre harmonias, tenho vivido aqui tão sedento delas
(se nem rádio pudemos ainda comprar!), que, ao ouvir aqueles
acordes vigorosos, senti os olhos rasos de água. Assaltou-me logo
o desejo de dançar, de cantar, de fazer versos. A Betsy, madruga­
dora, veio da cozinha a sorrir, com um ovo na mão Qá cheirava
a café):
- Bonito, há? Mas um bocado «forte».
- Será cá do prédio?
- Deve ser a pequena do quarto andar. É pianista e faz ballet.
Vejo luzir o Sol ainda fresco nas traseiras dos prédios para lá
do quintal. A Betsy faz correr a grande porta de mogno que se­
para as duas salas, e levanta os estores das janelas da frente: o Sol
entra num jorro vivo e alegre, que atravessa a casa de lado a lado.
Avisto a massa dum vermelho-escuro do seminário. Uma
grande paz enche a rua, e esta amplidão tépida e vazia alegra-me
o coração exilado. Qyando penso no quartinho escuro do Village,
onde nos inaugurámos! Tudo isto é obra dela. Qyerida! Levanto­
-me e beijo-a com amor e gratidão.
A meio da tarde vejo entrar cá para baixo, pela porta gradea­
da sob a escada, um sujeito magro e lívido, que arrasta um pouco
a perna. Olha-me com estranheza, nem corresponde ao meu leve
cumprimento de cabeça. (Idiota, que tenho eu que estar a cum­
primentar!) Qyem será o bicho? - Dia de actividade intensa,
pôr ordem nas minhas coisas, arrumar papéis. À uma saio para
almoçar ao balcão dum coffee-shop, e regresso ao trabalho. Pela
tarde vou esperar a Betsy. Voltamos para dar à casa os pequenos
retoques necessários à nossa mais do que sóbria felicidade.
Seis, seis e meia, torno a ouvir música e apuro o ouvido: desta
vez é cá em baixo. Uma voz quente, grave e sugestiva, lamento de
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTLGUESAS DE NATAL 233

mulher sem lágrimas, acompanhada ao piano. «Uma torch-sin­


ger!», diz a Betsy arregalando os olhos e soltando um assobio.
E de truz que ela é, com o seu queixume e desafio um nada vicio­
so, de macha com cabelo na venta ou faca na liga. É a canção dos
bas-fands cá da terra. Nada mau, gozamos a ouvi-la. A casa cheia
duma branda e surda vibração. Ainda não sabemos quem mora
cá em baixo. Volta-me a imagem antipática do homem pálido:
fiquei despeitado, mal comigo por ter cumprimentado sem co­
nhecer.
À noite aparece por aqui o janitor, de óculos e poucas pala­
vras, alemão, ares de juiz de paz. Indagamos a respeito dos vizi­
nhos: diz vagamente que são professores, artistas ... Imaginamos
logo que são gente que ganha a vida a tocar e a cantar nos caba­
rés. Aquilo estavam a ensaiar-se para o floor-show desta noite.
Qye sorte, hã! Vamos ter de graça, ao vivo, um género que ainda
conserva para mim a irresistível atracção do novo, embora um
quase nada louche. Nova Iorque excita-me com a sua trágica e
convulsiva agitação. Oxalá isto dure ... Vamos cedo para a cama.
A Betsy, com bom senso: «Não se entusiasme de mais, que esta
gente dos night-clubs às vezes tem uns hábitos um bocado . . . »
E não termina a frase.

(
- de Dezembro)

Às duas da manhã acordo, sobressaltado: que é isto, ouço


uma orquestra? Sento-me na cama a escutar, de boca aberta.
A Betsy dorme; esta pequena tem um sono capaz de resistir a um
terramoto, é da consciência tranquila. O som vem de baixo, fir­
me, grave, abafado, forte o bastante para me ter despertado.
A casa vibra surdamente. Diacho, parece-me um bocado cedo
234 V ASCO GRAÇA MOURA

(ou demasiado tarde) para este género de ensaios. Terão voltado


do ... ? Mas espera, isto é Wagner! Diabo, artistas de cabaré e to­
cam Wagner? Hum, talvez para variar... Artistas com outras as­
pirações. Mas senhor, quantos são precisos, para produzir assim
o efeito duma orquestra? A casa é vasta, cabem nela vinte ou mais
pessoas à vontade. Uma orquestra pode tocar, mas é positivo que
não pode morar num apartamento deste tamanho! Não sei que
pensar. O concerto dura até às três e tal da madrugada, depois
a música extingue-se e fico a ouvir um murmúrio de vozes: estão
a discutir talvez a execução. Adormeço sem conseguir saber se
saiu alguém da casa. Lá que eles tocam na perfeição, disso não há
dúvida.

(- de Dezembro)

Estamos a dois passos do Natal. O céu toldou-se, foi-se em­


bora o Sol que gozámos quase durante duas semanas, mas em
compensação o frio abateu. Veio a chuva, e os dias, mais curtos,
estão fuscos. No lento escurecer destas tardes grisalhas, vejo os
transeuntes apressados que voltam das docas ou do emprego, a
caminho das sopas, sombras anónimas curvadas debaixo do vento
e do aguaceiro. Uma paz irreal parece escorrer do céu, misto de
azul-pálido e rosa-diluído, com a chuva. O seminário cresce,
avulta no crepúsculo; e de súbito os vitrais da igreja acendem-se
lá em baixo, luz frouxa, de caleidoscópio, com predomínios de
ouro. Dão quase a ilusão . . . No silêncio atapetado de verdura
e humidade, por entre o sussurro distante e ameaçador da metró­
pole, chega até mim a ressonância grave dos cânticos e a voz aba­
fada do órgão. Lá adiante, na Nona Avenida, acendem-se as in­
sígnias a gás néon das tabernas e bares, que enchem a névoa dum
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 235

fulgor de lareiras acesas. Mais longe são os cinemas que espalham


no ar uma trepidação multicor. E só agora eu compreendo a
atracção de todos estes ópios sobre a gente que passa nas ruas
molhadas e hostis, sob o peso dum dia de fadigas e na perspectiva
talvez dum serão solitário e angustioso. Os homens procuram os
seus narcóticos.
Altas horas da noite, findo o meu trabalho, ergo-me da mesa
e vou até à janela olhar a grande massa escura do seminário: te­
lhados, torres, coruchéus, recortam-se na névoa ensanguentada
de clarões. A paz de Deus no tumulto incessante. Vejo uma luz
acender-se numa distante mansarda Túdor: alguém que estuda
ou reza. Os grandes olmeiros da cerca recortam-se até aos rami­
nhos mais altos, todos nus, com a precisão duma miniatura japo­
nesa na laca do céu de incêndio. Os troncos enormes escorrem
água, reluzem sinistramente à passagem dos faróis dum auto. E a
cidade exala de repente uma solidão que me sufoca. Sinto o dese­
jo de fugir antes que isto se apodere de mim . . . só poderia libertar­
-me se escrevesse um poema.

(- de Dezembro)

Hoje, em plena tarde, Grieg. Sentado à mesa, a pôr em or­


dem as minhas notas, dei um pulo. Grieg! Se ao menos fosse a
torch-singer! Devem talvez achar o Grieg adequado à estação fes­
tiva. A casa vibra e estremece, ecoa como uma caixa de ressonân­
cia à «Marcha dos Anões», tocada com fôlego, como se estivésse­
mos num concerto popular do Hipódro m o . Agora que eu
começava a enfronhar-me no Espinosa! Assim é impossível a
gente concentrar-se, trabalhar. Grieg. Não há nada que eu adore
236 V ASCO GRAÇA MOURA

tanto como a música, mas nada pode perturbar tanto a minha


atenção, paralisando-me para qualquer esforço mental. É outro
ópio. Começo a andar inquieto com isto. Há três ou quatro dias
que pouco faço. Música, música ... Nem sempre galinha! E depois
há as preferências de cada um, ou a disposição que é necessária
para a gente se concentrar a ouvir Beethoven ou a «Maria Cachu­
cha». A música, tão profundamente subjectiva nos seus efeitos, só
se ouve bem colectivamente: uma coisa é ouvir uma sinfonia en­
terrado numa poltrona, ou empoleirado no galinheiro duma sala
de concertos, e outra, muito diferente, é teimar em pensar, dor­
mir ou trabalhar (ou mesmo ouvir música!) sentado em cima
dum órgão gigantesco, com esta comichão nas solas dos sapatos e
o corpo todo numa espécie de dança-de-são-vito ou paralisia agi­
tante. É -me impossível meditar esta passagem da Ética com a ca­
sa inteira a trepidar debaixo dos pés, tomada do divino fervor
sensual de Schubert . ..
Sim, porque agora é Schubert! Suspendo o trabalho e vou-me
deitar de papo para o ar, até que isto passe. Tchaikóvski, Brahms,
Vila-Lobos ...
Resultado: não fiz mais nada. Fumei, dei voltas pela casa, saí
danado para tomar um whisky abominável num bar da Nona.
Uma tarde tão boa, tão disposta ao trabalho, vejam lá vocês que
estragos pode fazer o génio (mau) da música. Ao sair cruzei-me
com a vizinha do último andar: cumprimentos muito efusivos, ela
subiu assobiando, em passo de dança, com uma ligeireza de ave.
(Estou a ter umas imagens bem originais!) Bonita perna. Não a
tenho ouvido tocar piano. Talvez ela não queira entrar em con­
corrência com a gente cá de baixo. O que mais me intriga é ainda
não ter dado de cara com estes vizinhos. Só o dono da casa, de
fugida, o tal que arrasta a perna, Crosley ou Crosby, não sei ao
certo.
(- de Dezembro)

Enquanto eu grelhava o bife do jantar, a Betsy foi lá baixo re­


clamar cortesmente contra a inflação musical que nos está dando
uma existência de pombos de coreto; e indagar se não seria possí­
vel tocarem um pouco mais de manso e a horas menos desuma­
nas. (Nesta terra são sempre as mulheres que se encarregam des­
tas missões espinhosas; os homens, rudes entre si, são atenciosos
e galantes com elas, e isso, evitando os conflitos, ajuda a resolver
muita coisa.) A Betsy volta com uma expressão de espanto di­
vertido.
- E então?
Ela fecha a porta e sussurra:
- Surpresa!
Em resumo: o Crosley ou Crosby mandou-a logo entrar,
com um sorriso de enguia, e explicou que não há tal «orquestra»
nem «cantores» na casa: é tudo música de conserva! Bem me que­
ria parecer. Mostrou-lhe as duas salas completamente forradas
duma discoteca fabulosa, até dois terços de altura das paredes.
«Música para cem anos!», diz ela. Têm no fundo da casa uns apa­
relhos de lâmpadas, complicados, pick-ups, e alto-falantes monta­
dos pela casa toda. Uma destas instalações capazes de encher de
sons uma catedral ou um estádio. Parece um estúdio de rádio.
O Crosby (afinal é Crosby, como o Bing) é professor dum liceu
da vizinhança, e vive na companhia dum rapaz mais novo do que
ele, loiro e rosado, o Gaylord, verdadeiro play-boy saído como ele
da madre Princeton. Não há mais ninguém na casa, a não ser os
dois gatos siameses que nos espreitam da marquise.
- Vê-se logo que são um casal de pombinhos! - diz a Betsy
com uma careta e metendo a faca no bife. - O Gaylord parece
238 V ASCO GRAÇA MOURA

amável; mas o Crosby é azedo e escarninho. O!.iando fala torce


a boca, não sei se é tique se desdém. Devem-se ter rido à nossa
custa.
- Fala mais baixo, filha. Eles podem-te ouvir.
- O!.ie lhe importa a você? Não estamos na terra da liber-
dade? O Crosby irritou-se logo, declarou que está na sua casa,
é amador de boa música, e quem não gostar que se mude. Os que
cá moravam antes de nós foram-se embora por causa disso.
O outro ainda quis deitar água na fervura, mas nada feito. Ouvis­
te-o bater com a porta?
- Estamos fritos. Por que diabo é que o janitor não nos pre­
veniu?
Fico mal-humorado, amargado, parece que nem o bife me
assenta. Desato logo a pensar em represálias: bater com os pés,
entornar águas, fazer barulho às horas a que eles dormem, se dor­
mem . . . O curioso é que, enquanto julguei que eram músicos a va­
ler, isto foi-me tolerável e até gostei; mas agora, quando penso
que em vez duma torch-singer era um disco, sinto-me vexado, lo­
grado, como se me tivessem impingido o conto do vigário. Onde
a gente se veio meter! No antro dum melómano, e além disso
maricas. - Furioso, agarro o Pirilau (é o meu gato amarelo) pelo
cachaço e atiro com ele para o quintal, a miar de desespero.
Por sinal, a noite pôs-se de chuva, e ele só reapareceu depois
das onze : acompanhado de outro gato amarelo, exactamente
igual, ambos com o pêlo empastado de água. Correram juntos
para o prato da comida. De começo não fui capaz de os distin­
guir: foi preciso a Betsy mostrar-me que o Pirilau tem os olhos
verdes, e o outro tem-nos dourados. Deve haver uma solidarieda­
de misteriosa entre os tarecos amarelos, talvez repudiados como
«inferiores» pela sociedade dos gatos de boa família!
(- de Dezembro)

Parece que a reclamação, feita nos termos da melhor vizi­


nhança, teve resultado contraproducente: agora tocam a todas as
horas, sem programa definido, e com mais Juoco do que nunca.
Vê-se perfeitamente que estão no propósito de nos irritar. E ain­
da a Betsy não quer que eu lhe vá para a cara! Este homem estra­
nho, lívido, com a perna arrastada, ainda nos vai dar que fazer.
Sinto que põe em perigo os meus planos de trabalho. Detesto vi­
ver em guerra surda seja com quem for, prefiro o conflito declara­
do. Habitualmente, ou me submeto ou dou pancada. «Manias»,
diz a Betsy. « É por ser tão tímido, um atado, que você vai logo às
do cabo. Aguenta tudo, rói-se lá por dentro, deixa-se humilhar,
e quando não pode mais consigo mesmo, então quer partir caras.
Faça como eu, leve isto a rir. Deixe-se de cumprimentos, para
que é que você quer viver de bem com os vizinhos? Cada um na
sua casa. Se eles teimarem, vamos para a Justiça.»
Mas eu é que não quero nada com a justiça, não quero com­
plicações. Qiero a minha paz. E quem tem que meditar o Espi­
nosa, e aturar esta sinfonia a todas as horas sou eu. Alta noite,
quando eles fazem música e eu dou voltas na cama sem poder
conciliar o sono, você dorme como um anjo que é! - e beijo-a.
Também é o que nos vale: unidos.
A noite passada, música até depois das três. Conversa em al­
tos brados, tinir de copos, cheiro de café fervido, fumo de cigar­
ros a sair por todas as fendas e buracos, e grande iluminação a
jorrar para o quintal. Até houve berros da vizinhança lá daquele
lado, arremessaram garrafas vazias cá para o quintal, como no
Village. Ando a dormir mal, o Na tal à porta, e o meu trabalho
quase parado. Desconfio que já criei um complexo (tudo agora
por cá são «complexos»): quando ouço os passos do professor no
240 VA S C O GRAÇA MOURA

mosaico do hall, um tacão irritado, o outro a arrastar, sinto ganas


de ir lá fora insultá-lo, empalideço, tenho palpitações, vivo enfim
na expectativa da agressão. Mas que remédio senão aguentar e
calar. Um estrangeiro . . . O sujeito deve ser bom psicólogo: sabe
que cheguei há pouco tempo e que me exprimo com dificuldade,
e tira partido, abusa, procura intimidar-me. É um chauvinista.
Já por cá tenho visto outros . . .
É u m homem estranho e furtivo, cuj a presença basta para
criar um constrangimento. Tenho a impressão de que o Gaylord,
o amigo, quando entra em casa pelo fim da tarde, abaixa o registo
do som. Depois ouço discussões abafadas, brados irritados - é o
Crosby -, um bater exasperado de portas, passos rápidos na es­
cada. Corro à j anela e vejo-o sair: atira-me um olhar de ódio.
Coxeia um pouco, arrasta a perna, bate os tacões sem borracha.
Não tenho dúvida de que as represálias vêm dele.
O seminário continua a guardar a sua impassibilidade. Em
tudo isto uma subtil contradição . . . Há dias (passou-me registá-lo)
houve grande cerimónia, talvez encerramento de aulas: muitos
automóveis na rua, convidados em trajos de gala, música sacra e
cantoria, paramentos solenes, procissão no relvado com pálio
e cruzes alçadas, até parecia uma festa lá na minha aldeia. Veio
a chuva afugentá-los para dentro do edifício.

(- de Dezembro)

Tivemos esta tarde cá em casa. a vizinha do último andar,


Swissabelle ou coisa assim; a Betsy encontrou-a à porta e convi­
dou-a a entrar. Sem ser bonita, é um amor de rapariga. Grandes
olhos escuros, redondos e expressivos na cara branca sem maqui­
lhagem, a boca saliente e cheia de movimento. Um pouquinho
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 241

cheia, nada de americana standard, só osso e sex-appea!, mas a


cintura duma delgadeza quase inverosímil, entre os seios afirma­
tivos e as ancas robustas. Pernas fortes, admiravelmente tornea­
das, pernas de danseuse que ela não esconde, ao contrário.
Exuberante, impulsiva, à primeira vista um quase nada de
pancada na mola: conversa (ou representa?) sentada, em pé, er­
guendo-se nos bicos dos sapatos rasos, fazendo piruetas, e caindo
escanchada no parquê. Abre os olhos redondos e as mãos espal­
madas. Parece que está no tablado, e no entanto encontro nela
a naturalidade e a candura duma infância madura e extrovertida.
Rimo-nos a perder com a história do Crosby, que ela nos
conta com muitos pormenores edificantes e grande poder mími­
co: parece que os hábitos do sujeito, «OS musicais e os outros»,
datam de longe, do tempo da Princeton. Até já foi corrido dum
college onde ensinava. A gente que aqui morava antes de nós mu­
dou-se por não poder aturar mais o escândalo. «Mas porque é
que não chamam a polícia?», pergunto. Nem falar nisso. Casa
onde entra a polícia fica desacreditada. Só mesmo em caso de
morte, crime ou incêndio. Essa agora! Mas ultimamente isto tem
piorado imenso. O homem parece querer viver em guerra aberta
com todo o mundo. Além de misógino, é misantropo. Estamos
servidos! Olho para a Betsy: onde nós nos viemos meter! Parece
que não há remédio senão recorrer aos tribunais. Com as Festas
vai ser o bonito!
Com este meu jeito de transfigurar em humor tudo o que me
faz doer, conto-lhe no meu inglês atrapalhado as experiências
destes primeiros tempos, e ela ri coreograficamente, quer dizer,
com o corpo inteiro. Ficamos muito amigos. (Aqui as amizades
fazem-se e desfazem-se depressa.) Como a Betsy está fora todo o
dia, a Swissabelle promete vir fazer-me companhia uma vez por
outra. Escusado será dizer que aceito com alvoroço, e acrescento:
242 VASCO GRAÇA MOURA

«Pode vir dançar aqui quando os vizinhos fizerem música: espaço


não falta!» A querida Betsy olha-me com fingida severidade. Mas
ela bem sabe que a minha curiosidade tem tanto de honesta
como de ilimitada. É um anjo duma pequena, nada ciumenta. -
Ficou tudo combinado: se as coisas continuam assim por mais al­
guns dias, vamos todos unir-nos. Ou ele entra nos eixos, ou vai
para a rua. O advogado cá de cima toma conta do caso.

(
- de Dezembro)

O que vale é que o meu i nglês melhora a olhos visto s .


O Nathan tem-me sido muito dedicado. Para estarmos mais per­
to um do outro, mudou-se para um quarto quase aqui ao lado.
Agora, quando volta do serviço, pelas quatro e meia, bate-me ao
ferrolho. Eu faço café de saco (diz ele que não se bebe outro as­
sim, nem no Village) e ficamos a dar à língua. Conto-lhe histó­
rias, falo-lhe dos meus projectos, fazemos planos. Sinto-me feliz
e ele fica contente. Disse-me há dias: «Esqueça que fala outra
língua, e atire-se já a escrever isso tudo em inglês, esta mesma
noite. Não altere uma palavra, conserve-lhe o sabor da esponta­
neidade. Vá, que eu depois dou-lhe uma ajuda, tempo não me
falta - infelizmente!» Sim, mas há que ganhar o pão de cada
dia, e depois o Espinosa, e eu ando mal dormido . . . Desculpas de
mau pagador. A vida ainda exerce sobre mim uma fascinação de­
masiado grande para me permitir consagrar-me com paciência
beneditina a uma «obra» . . . O facto é que, graças ao Nathan, nes­
tes últimos dias o meu inglês desabrochou: parece que se rompeu
cá por dentro uma casquinha de ovo, e que a expressão me saiu
toda feita, como um pinto!
Nevou a noite inteira, e o seminário está lindo. Os relvados
são um tapete de alvura deslumbrante, e as árvores, carregadas
AS MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 243

deste cimento imponderável que brandamente cai do céu, pare­


cem de bronze negro. A neve dá um relevo, uma pureza e um re­
colhimento indescritíveis a todas as coisas. As cornijas e saliências
dos edifícios, com a sua sobrecarga de neve, ganham outro poder
decorativo. Redobra o silêncio, há no ar um não-sei-quê de festi­
vo. A alvura dos telhados reflecte o azul do céu, mas onde o sol
bate é tudo rosado e espumoso. A neve faz literatura . . . Acendo
um lume na lareira, e é um regalo ficar aqui a trabalhar. Ah, será
possível ser pobre e viver contente? - Não tenho ouvido os vizi­
nhos de baixo, talvez estejam para fora a gozar férias. Se por lá fi­
cassem! Só lá em cima a Swissabelle toca o seu Debussy com apli­
cação e compreensão: «La neige tombe» . . . Mesmo próprio para
esta atmosfera irreal, quase de submersão. Há momentos em que
todos os homens sentem a necessidade dum refúgio, dum mo­
mentâneo escape: talvez para melhor se concentrarem na luta? Se
isto durasse, seria bom de mais, quase mentira, o Paraíso! - En­
tretanto, trabalho mecanicamente pelo ganha-pão. Com as idas
à Biblioteca, as voltas a dar, ver gente, o tempo vai-se. Acabarei
por me resignar a tudo isto? Há uma coisa mais alta ou profunda
que nos prende em toda a parte . . .
Seis d a tarde, nem tanto, truz-truz: vou abrir e empalideço.
É o vizinho de baixo! Calculou apanhar-me sozinho em casa,
e prega-me a surpresa. Mas então sempre cá estava! Tão calado,
aqui há coisa. Olho-o da cabeça aos pés, na sua elegância descui­
dada de anglo-saxão, que não me esconde seja o que for de in­
quietante. E eu que hoje ainda nem fiz a barba! Fita-me com mal
disfarçado desdém, e torce a boca no tal sorriso que a Betsy cha­
mou de «enguia»: sorriso amarelo, que pretende passar por cor­
recto e cordial. Faz um gesto como se tencionasse entrar, mas eu
finjo que não percebo e atravesso-me na abertura da porta, com a
mão direita no alizar. Fale aqui mesmo, se quiser. Ele fica lívido.
244 VASCO GRAÇA MOURA

Depois, fazendo esforços visíveis para manter o aprumo e o sorri­


so, falsos ambos como Judas, declara ao que vem: se não haveria
maneira de chegarmos a acordo, as minhas «represálias» estão-no
incomodando. E porque é que eu não mando forrar o parquê
com tapetes, para abafar o rumor dos passos!
Esta dos tapetes faz-me transbordar as medidas . Como a
Betsy está fora, aproveito o ensejo e faço o gosto ao dedo: «Não
há nada a conversar. Ou o senhor modera o seu monstro musical,
e passa a tocar a horas mais humanas, ou vamos para a frente com
a queixa colectiva. Na guerra como na guerra. Já temos advogado.
O resto é consigo.»
Vinha pedir batatinhas, levou pelas ventas. Erguemos a voz,
ele recuou um passo, verde, já com espuma aos cantos da boca, as
mãos em garra, e a certa altura tratou-me de «estrangeiro» e «hi­
pocondríaco». Dominei-me para não lhe ir aos queixos ali mes­
mo e, pensando que os outros vizinhos deviam estar lá em cima a
gozar a cena, ri-me: «Eu é que não preciso de lhe dizer o bonito
nome que todos aqui lhe dão!» Foi um arraial no vestíbulo. Ele
não quis ouvir mais: disparou por ali fora, arrastando a perna
odiosa no mosaico, e de longe ainda me xingou de <�udeU>> e ou­
tras finezas. (Ol:iando querem ofender um estranho chamam-lhe
logo judeu.) Fechei a porta, com o pulso acelerado, mas gozei o
meu migalho. Vê-se logo que a conversa com o Nathan me tem
desenferrujado a língua. judeu. Deixa que hei-de contar esta ao
Nathan. Ele é que diz que por cá não há anti-semitismo! Se
o Crosby não dá o fora tão depressa, tinha havido banzé.
A Betsy volta e alarma-se com a minha narração do inciden­
te: «Olhe que estes sujeitos às vezes têm impulsos criminosos.
Capaz é ele de pegar fogo à casa!» Não te rales, filha: ele tem de­
masiado amor à sua discoteca.
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 245

À noite vamos a casa da Swissabelle. Serão bem passado.


Conversamos e rimos até às onze e meia. Ela tocou, depois dan­
çou para nós ao som da grafonola. O marido, um rapaz seco, ar­
ruivado e simples, mostrou-nos os seus cartões; comerciais, é cla­
ro, que remédio senão ganhar a vida. Mas nada maus. Voltei para
baixo contente. Qye genuíno e gostoso é por vezes o convívio
desta gente que trabalha duro pelo pão: tão sem veneno, sem fal­
sas complicações de estetas nem má-fé! Uma independência toca­
da de responsabilidade, uma exuberância restringida na disciplina
da criação. Se todos fossem assim, se não houvesse os Crosby
e os outros!

(- de Dezembro)

Há dias que nem tomo notas. Música de dia e de noite. Te­


nho os nervos num rolo de arame farpado. Nunca vou tranquilo
para a cama: se a música não vem, impaciento-me como um con­
denado à morte que espera a descarga eléctrica; se ela vem, irrito­
-me, salto da cama abaixo, faço um barulho dos demónios .
A Betsy, coitada, esforça-se por conservar a calma. Mas nestas
condições é difícil; já não tem o mesmo sono sossegado. Serei eu
a causa disto? Às vezes penso nas dificuldades que lhe vim trazer,
e assalta-me uma espécie de remorso.
Mas ainda temos algumas consolações: a Mina e o N athan
jantaram ontem connosco, à noite veio o poeta I. com a mulher
e um jornalista amigo. O nosso pequeno círculo vai-se alargando,
sinto-me apesar de tudo mais optimista e confiante. Esta manhã,
no fervor do ambiente cheio de antecipações de tragédia, acordei
com um poema na boca e corri a escrevê-lo . . . Ainda não secou
de todo a minha fonte!
(Dia de Natal)

Agora sim, agora é que vale a pena continuar este Diário. -


Ontem fomos jantar com a família da Betsy. A pretexto de fadi­
ga, voltámos cedo para casa, resolvidos a dormir como dois jus­
tos, enquanto a Virgem sofre as suas bentas dores. Como dois
condenados é que eu devia dizer.
Chegados à nossa rua, o sossego é completo, dir-se-ia que es­
tamos fora do mundo; o seminário, todo escuro, dorme no seu
leito de alvura. Só a igreja, lá adiante, tem luz: provavelmente para
a missa do Galo. Perto já de casa, noto que a luz jorra através das
cortinas das janelas do vizinho. No silêncio fatigado em que a
neve parece forrar o mundo (nevou todo o dia), só desta casa sai
uma trepidação de música, de vozes, de risadas. Festa de arrom­
ba. O meu primeiro impulso é não entrar. Para que diabo viemos
nós tão cedo! O!,ie noite de insónia rancorosa nos espera, com este
inferno debaixo dos pés a envenenar-nos a paciência! Temos até
de madrugada. «Disparate!», diz a Betsy. «O!,ie lhe importa a você
que eles façam música ou barulho, ou estejam quietos? Feche os
ouvidos da consciência e durma!» Olho-a quase irritado com
tamanho optimismo ou bom senso.
Dentro de casa, percebemos que o cume do escarcéu é por
baixo do quarto onde dormimos: então, laboriosamente, muda­
mos o divã para a sala da frente e instalamo-lo o mais perto pos­
sível das janelas, ou seja, tão longe quanto podemos do foco do
festim. Acendemos um bonito lume na grelha da chaminé, a casa
fica confortável e quente. Muito antes da meia-noite estamos
deitados, e eu leio ou faço esforços para ler um livro: na verdade
pouco mais faço do que seguir mentalmente, com raiva e maldi­
ções, o que vai lá em baixo: batucada, correrias, brados roucos, ti­
nir de louças e vidros. Um autêntico night-club do Village! Tinha
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 247

razão a Swissabelle quando há dias nos segredou que a casa do


professor tem a reputação dum clube de «imorais».
Como de costume, a Betsy não tarda a adormecer serena­
mente. Como eu lhe invejo os nervos delicados e tão rijos. Mas
pouco a pouco lá consigo acalmar também. A verdade é que a
gente se habitua a muita coisa, e só quando se rebela e protesta,
quando tem um conflito de consciência ou vontade, e luta inte­
riormente, é que sofre: por isso nos ensinaram a resignação. (Mas
uma coisa é sofrer pelo que se sonha, um ideal, e se espera alcan­
çar, e outra é sofrer para que os outros gozem a nossa custa.) Qye
hei-de eu fazer? Ponho-me a imaginar que estou lá em baixo,
a «gozar» na companhia dos vizinhos, do que Deus me livre.
Já bem depois de ouvir tocar o sino para a missa da meia-noite,
apago a luz e adormeço também, angelicamente embalado pelo
temporal que sacode a casa até aos alicerces.
E nisto desperto, alarmado, a um ruído que vem de fora, da
rua, e destoa do rumor frenético em que adormeci. Na lareira
o fogo extingue-se, só brasas vermelhas na penumbra. Fico a es­
cutar com o coração acelerado. Alguém bate com força na porta
gradeada dos vizinhos, debaixo da escadaria. Calou-se a música,
não há um rumor. Uma campainha trepida demoradamente al­
gures, premida por mão impaciente. Depois a porta bate nos en­
gonços como queixadas de ferro, e uma voz de homem, colérica
e imperativa, brada:
- Abram esta porta! Abram esta porta!
A Betsy acordou, e ergue-se num cotovelo a escutar, de olhos
arregalados. Murmuro: «Há complicação. É à porta do Crosby.»
Saltamos do divã e, embrulhados em cobertores, de joelhos no
parquê, ficamos a espreitar para fora, por baixo do estore corrido.
Ninguém nos pode ver. Em frente da casa, com a portinhola es­
cancarada e uma roda em cima do passeio, está um roadster claro:
248 VASCO GRAÇA MOURA

percebo agora que foi a travagem brusca, o guinchar dos pneus


que me despertaram. Uma curva apertada deixou sulcos profun­
dos na neve do pavimento, grossa de umas quatro polegadas. Os
vizinhos apagaram as luzes. Mas enxergo perfeitamente o vulto
do homem que abana com raiva a porta de grade e continua a
bradar: «Abram esta porta! Jimmy, abre a porta ao teu pai!» De
dentro, uma voz mansa responde, tenta talvez apaziguá-lo. « É o
Gaylord que fala!», diz a Betsy com um hálito de excitação no
meu ouvido. Aperto-lhe a mão sem responder. Aquele homem é
então o pai do professor . . . Vamos ter corpo de delito! «Mas abra
a porta!», grita o velho. «Isto é uma vergonha, como se atreve ele
a recusar entrada ao pai na noite de Natal? . . . Diga-lhe que venha
aqui falar comigo. Jimmy! JIMMY! . . . » Repete-se o murmúrio
abafado, o velho sacode a porta com violência, cospe insultos para
dentro. Já não lhe respondem. Ouço bater a porta interior, e se­
gue-se um silêncio.
Então, o sujeito recua até junto da grade, cambaleando um
pouco, e fica a olhar a fachada do prédio. À luz do lampião vizi­
nho e no fulgor da neve posso vê-lo à vontade: é um homem de
uns sessenta anos, robusto e sanguíneo, de meia estatura, com o
cabelo todo de prata. De sobretudo claro, cachecol, e sem cha­
péu, tem o ar de quem saiu agora mesmo duma soirée. Percebo
que procura descobrir no prédio alguém a quem possa falar, pedir
que lhe abra a porta. Tenso, lembra um mastim ao qual a presa
escapou. Da sombra do prédio surge uma personagem até agora
invisível: um rapaz de gabardine, alto, delgado e pálido, em cabe­
lo, aproxima-se do velho e murmura: «Daddy, daddy, vamos em­
bora pelo amor de Deus!» O velho repele-o com dureza, e o ra­
paz vai-se encostar à portinhola aberta do carro. Qye contraste
entre ele e o pai apopléctico! Adivinho neste um autocrata.
O velho parece ter de súbito uma ideia: sobe a correr a esca­
daria, e daí a momentos um rondo de campainhadas faz vibrar
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 249

a casa de alto a baixo: mas ninguém abre. Uns estão fora, outros
dormem, ou fazem como nós, espreitam esta cena de Natividade
malograda. O velho rosna palavras ininteligíveis, depois grita:
«Abram esta porta, eu sou o doutor Crosby!» Ninguém faz caso.
Ele volta a descer a escada, arrebatado, transpõe o passeio dando
um empurrão ao rapaz, que tenta detê-lo, corre para o meio da
rua, pára, e no silêncio branco que forra a noite põe-se a gritar:
- Ninguém se atreve a aparecer, a abrir uma porta ou uma
janela ... Mas eu sei que estão todos a escutar por detrás das corti­
nas! Pois então ouçam: eu sou o pai desse miserável que mora ali.
É noite de Natal, vim para ver o meu filho, sou um pai que quer
ver o seu filho numa noite de festa, e ele não me deixa entrar em
casa. Não abre a porta ao pai! Desde que a mãe morreu, há três
anos, nenhum dos meus filhos me tornou a visitar! Mas não é só
isso ... Este meu filho é a vergonha da minha cara! É um pederas­
ta. Um pe-de-ras-ta! Esta casa é um clube de invertidos e traves­
tis! e ele não quer que o pai veja ... Qiero que todos saibam! Os
meus filhos são uma corja de imorais ...
O velho, rubro e sufocado de furor, cambaleia na neve, cala­
-se um momento, fica especado à espera de resposta. Mas só os
torrões de neve que tombam surdamente dos beirais parecem res­
ponder-lhe. A Betsy aperta-me o braço com terror, vergonha ou
piedade. Vermelho, desenfreado, com os cabelos de prata soltos
na noite fria, o velho arremete de novo contra o prédio como se
viesse demoli-lo. O seu vigor assombra. À passagem dele, o ra­
paz, que chora com a cabeça apoiada no carro, diz numa voz
de súplica: «Daddy, por favor, vamos embora . Daddy!» O velho
. .

vira-se e atira-lhe à cara um vago murro de bêbedo, que o não


atinge. Depois agarra-o como se quisesse forçá-lo a entrar no
automóvel.
Alguma coisa, um rumor o interrompe: são três homens que
se aproximam, três vagabundos mal enroupados que vêm do lado
250 V ASCO GRAÇA MOURA

das docas, de mãos nos bolsos, e param a ver a cena. O doutor


Crosby larga o filho, aborda-os resolutamente e põe-se a falar em
voz baixa com eles, agarrando-os pelas lapelas: não ouço o que
diz, mas pelos seus gestos enérgicos percebo que lhes conta e ex­
plica o que se passa na casa. Dá-lhes instruções, talvez. Mete
a mão num bolso e começa a distribuir dinheiro aos noctívagos,
que o aceitam com sofreguidão. No fim recua dois passos e ouço­
-o dizer: «Fiquem aqui! Desta casa não sai ninguém!» Os três
bums assentem e postam-se em frente da grade. O velho empurra
o filho para dentro do carro, corre em volta a tomar assento ao
volante, põe o motor em marcha com fragor, e parte, derrapando
e patinando na neve, perigosamente. O tapete branco da rua fica
todo sulcado e revolvido. O silêncio fecha-se. A Betsy murmura:
«Foi chamar a polícia ... » E eu respondo: «Com que direito é que
estes mariolas me guardam a porta?» Sinto vontade de ir lá fora,
agora até era capaz de armar em defensor do vizinho. A Betsy
aperta-me mais o braço, retém-me.
Os três noctívagos olham a casa e parlamentam entre si no si­
lêncio da rua. Um deles aproxima-se da cancela, hesita, depois
entra. Ouço ranger uma fechadura, a porta de grades guincha nos
gonws, e o Gaylord, em cabelo e sem casaco, sai e põe-se a falar
com eles. Todos acenam enérgicas afirmativas à explicação que
ele lhes dá: e de novo estendem as mãos às notas. O Gaylord de­
saparece, e eles vão postar-se a distância, separados, como vede­
tas. Percebo tudo. Dentro de casa, onde há pouco era um silêncio
de túmulo, vai agora uma agitação de preparativos: ouço correr,
batem portas, há apelos sussurrados. «Vão sair por cima, pela es­
cada - murmura a Betsy. - Para que ninguém diga que os viu
sair cá de baixo!» Com efeito, não tarda que ouçamos um tropel
de passos abafados na escada interior, ao fundo do hall, e depois
nos mosaicos. A porta da frente abre-se, e um a um, cautelosa­
mente, olhando para a esquerda e para a direita, os convidados do
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 25 1

meu vizinho descem a escadaria, detêm-se um instante em frente


da grade, depois, com um breve adeus, afastam-se rapidamente,
dispersam para leste e oeste, carregando embrulhos ... Homens e
mulheres (sei eu lá se são mulheres?), alguns aos pares, outros em
grupos, não tenho tempo de contá-los, talvez dewito, vinte pes­
soas. «Üs embrulhos são as roupas dos travestis!», explica a Betsy,
rindo. Tudo isto durou instantes. A porta volta a fechar-se, a luz
acende-se em baixo, e o Gaylord reaparece, faz um sinal aos
bums, que se aproximam: dá-lhes uma garrafa, genebra ou whisky,
com certeza. Boas-festas, Natal feliz! Despede-os, eles agradecem
com efusão, vão-se embora. A porta range de novo, gira a chave
na fechadura, a porta de dentro bate, correm ferrolhos - a paz
reina enfim na rua deserta! Só a neve guarda os sinais do inci­
dente.
«Achas que se acabou o show?», pergunto à Betsy. «Qyal!
O velho não tarda aí com a polícia . . . Vai começar o segundo
acto!» Agarra-me num frenesim de excitação, ansiosa por saber
no que a coisa vai dar. «Fica aqui à espreita enquanto eu vou fazer
café», digo-lhe. A casa esfriou - passa das duas da manhã e isto
está a pedir um reconforto; corro à cozinha, e mal acabo de pôr
a água em cima do gás, ouço um silvo de cobra - é o sinal da
Betsy! Volto ao nosso posto de observação a tempo de ver o dou­
tor Crosby travar o roadster com um solavanco tremendo em
frente da cancela. Salta a correr, seguido do filho vagaroso. A rua
deserta, o velho olha em volta: «Onde estão esses vadios?». Furio­
so, de punhos cerrados: «Não há um polícia! A polícia só aparece
quando não é precisa!».
Lança às fachadas um olhar desvairado, corre para a porta,
rosnando palavras incoerentes, e desata de novo a sacudir a grade:
«Abre esta porta, canalha, maricas, pederasta! Abre a porta ao teu
pai ! » Capaz de rebentar com os ferros! A minha vontade era
252 V ASCO GRAÇA MOURA

abrir a janela, dizer alguma coisa . . . «Nem penses nisso!» Oh se­


nhor, toda esta gente, a vizinhança a ouvir, e ninguém faz nada?
Nisto, reconheço a voz do meu vizinho, que grita lá de den­
tro, histérico:
- Vá-se embora, doutor Crosby! Vá-se embora! ou ainda
se há-de arrepender! - Há uma ameaça parricida, enregelante,
na voz do pederasta.
- Abre a porta, miserável, degenerado!
O velho deixa a porta, e atira-se às janelas por baixo das nos­
sas: ouço um estilhaçar de vidros. Através das grades, ele parte as
vidraças todas a murro. Sinto-me empalidecer. A Betsy já treme,
tem as mãos geladas, bate os pés, de impaciência. «Meu Deus,
isto vai acabar mal. . . » Dentro de casa há gritos agudos. O rapaz
vem correndo da rua para agarrar o pai, detê-lo ou arrastá-lo con­
sigo: o velho atira-o de costas contra a grade. Ouço a voz perdida
do professor, em baixo: «Deixa-me! Deixa-me! Eu faço-o pagar!
Larga-me . . . »
Pressinto tudo: o Gaylord tentando agarrar o amigo, que
quer vir à janela para. . . E nisto ouço um estilhaçar de louça, o ba­
que dum corpo, um ronco sufocado: «Anda, miserável, pederasta!
Vem cá para fora, vem bater no teu pai!» - Travam luta através
das grades! De fora, o rapaz voltou à carga, tenta prender os bra­
ços do pai, que se aferram às grades. «Daddy, daddy, veja o que
faz!» Pelas sombras na neve vejo agora o que se passa. A Betsy
torce as mãos de terror . . . Levanto a janela com um puxão e cur­
vo-me para fora. O velho, com os braços enfiados pelas grades,
sacode furiosamente alguém que está dentro da casa: ouço uma
voz abafada, um estertor - deitou talvez as mãos ao pescoço do
filho, e vai esganá-lo! Uma voz brada, «Socorro! Socorro!». O ra­
paz tenta desesperadamente arrancar o pai dali . . . Já me preparo
para saltar da janela assim mesmo, quando vejo um braço que sai
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 253

pelas grades agitando um objecto escuro. O velho solta um ron­


co, e recua cambaleando, amparado pelo filho. A Betsy puxa-me
para dentro: «Fecha a janela, pelo amor de Deus!»
Ao fim da rua o berro duma sereia rasga o silêncio, depois
outro e outro. Carros da polícia convergem de todos os lados,
num smorzando de sereias. Dum instante para o outro, o passeio
e o espaço em frente da casa ficaram cheios de polícia e de gente.
(No seminário não há uma luz: tudo voltado para a Eternidade!)
Os faróis enchem a rua de clarões e a neve de sombras alongadas.
O doutor Crosby ficou estendido, inanimado. Parece roxo, e de
repente empalidece ... Abrem-se as portas, os agentes entram na
casa. São quase três horas, chega a ambulância. O interno faz um
exame sumário do corpo, enquanto a polícia mantém a distância
os curiosos (entre eles avisto, dissimulados, os três bums das do­
cas, que voltaram). Levantam o corpo na padiola, a porta da am­
bulância bate, o filho mais novo, esquecido, soluça encostado ao
gradeamento. E nisto vejo o Crosby sair de baixo, amparado no
amigo, choroso, com o pescoço amarrado, arrastando a perna . . .
E tenho pena dele. Bonito Natal nós vamos ter. Esta noite já não
prego olho!
Sentados a tomar café, digo eu: «Tenho o pressentimento de
que não vou conseguir fazer o meu trabalho sobre o Espinosa
nesta casa.» «Trabalho? Espinosa? Você vai ver, um dia destes vai
tudo para a rua. Casa onde entre a polícia ... »

(
- de Dezembro)

Afinal o velho escapou: ameaço de congestão e laceração


do couro cabeludo. Qyem ficou no Bellevue foi o meu vizinho,
254 VASCO GRAÇA MOURA

a tratar-se dum «ataque de nervos» e duma inexplicável lesão da


traqueia (esganação, digo eu).
A Betsy tinha razão: recebemos hoje uma nota da agência de
alugueres: no fim de Janeiro vai tudo para a rua, começam obras
grandes no prédio. E eu que estava aqui tão bem!
Até quando, meu Espinosa!
Natal branco
José Rodrigues Miguéis

«VENHA ATÉ LÁ CASA NO DIA DE NATAL», tinha-me dito aque­


le compatriota. «Passa-se um bom rato. Temos polvo guisado
à portuguesa, e um arroz de amêijoas que o prepara Don Ru­
fas. Vai ver que não se arrepende. Aquilo o que tem é ser casa de
pobres . . . »
Não faltei ao convite, e não me arrependi.
Nunca perco o ensejo de ver como vive a nossa gente cá por
estas bandas. Como vivem os da Nova Inglaterra já eu sei. Mas
por aqui é diferente.
A casa é ali no East Side, na Rua 29, entre os italianos, num
terceiro andar. Em quase todas as janelas há coroas de azevinho
e buxo, por vezes uma vela acesa, em mensagem de paz e alegria
a quem passa na rua. Ao entrar, deixamos lá fora, na azulada luz
do entardecer precoce, um resto de neve encarvoada, e a solidão
que invade as ruas de todas as grandes cidades nestes dias de festa
e de frio.
Subimos. De todos os apartamentos vêm gritos, música, risa­
das, aromas culinários. Uma subtil nostalgia de exilado despolari­
za-me: desejo, nestes dias de memórias festivas, estar por toda a
parte onde fui deixando o coração em pedaços. Oliero que ele esteja
aqui, todo presente, inteiro e caloroso, e ele foge-me, dispersa-se ...
256 V ASCO GRAÇA MOURA

Foge para os que amo do outro lado do oceano - minha mãe,


amigos meus, amores perdidos - ou para lá do Hudson, no lar
dum amigo, fiel, onde eu gostaria de ficar hoje a gozar em silên­
cio a paz do dia santo, cachimbando diante dum bom lume.
Nunca eu sofro tanto, como nestes dias, do absurdo, impossí­
vel desejo de ver reunidos comigo todos os seres, tantos deles in­
conciliáveis, que tenho amado e continuo a amar através de tudo,
os vivos e os mortos. O meu coração, insaciável de receber e dar
carinhos, alegria e fervor, dilata-se e palpita até me doer no peito.
Este amor difuso, fragmentário, polivalente, dilacera-me: tenho
de fazer um esforço, sacudir-me e condensar-me, para não ficar
de todo triste, e estar aqui presente, em vez de me esvair em fumo
de solidão, de renúncia total. Não podendo ter tudo e todos,
ser de tudo e todos, prefiro não ter nada, ninguém, e ficar só -
para me dar melhor . . .
Dora, a dona d a casa, vem à porta num riso, e ajuda-nos a ti­
rar os abafos, as galochas que pingam neve derretida.
- Meny Christmas! Meny Christmas!
Abre-se diante de mim um pequeno mundo caloroso a que
me acolho, dorido do frio de alma lá de fora, e de mim mesmo.
Sinto que, de me integrar, as lágrimas me vão subindo aos olhos.
Já intimamente os estreito ao coração.
Tony, o meu amigo, acorre de braços abertos, feliz de nos ver
aparecer. Dois garotos enleiam-me as pernas - «Merry Xmas!
Meny Xmas!» - o mais pequeno, ainda sob a impressão do ani­
versário que há dias festejou, pula em volta de mim, a repetir:
«Happy birthday to you!»
Entregamos as lembranças modestas que trouxemos, e sinto­
-me logo aconchegado e quente, feliz.
A cozinha tem uma janela para o pátio estreito, ou caixa-de­
-ar, que nos separa do prédio contíguo. Pelas vidraças embaciadas
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 257

de vapor entrevejo vultos, pares que dançam, árvores de Natal


iluminadas . Num parapeito, quatro vasos de flores, suspiram
pelo sol.
Don Rufas, rubicundo e lustroso, de óculos e avental de ris­
cado, mangas arregaçadas, charlando com o mulherio, prepara
entre rolos de vapor um colossal e rescendente arroz de almejas.
O meu anfitrião destapa uma panela fumegante, e revela-me o
prometido polvo, chegado há dias de Portugal, no gelo. O estô­
mago dos expatriados tem destas fidelidades.
A esta visão, a fome estorcega-me as entranhas, e confesso
com sinceridade: «Não almocei, na fé de que isto era para come­
çar às quatro!» Em resposta, metem-me nas mãos uma grossa en­
talada de presunto curado da Virgínia, quente, a escorrer molho,
e um copo de cerveja:
- Vá-se remediando! Isto é pra entreter a fome.
O rumor da festa que vem da sala excita-me, acelera-me,
solidariza-me com esta boa gente. Vamos andando lá para dian­
te, sim?
As divisões são todas de enfiada, a isto chamam por cá rail­
road apartment. Atravessamos um quartinho estreito onde se
amontoam os abafos das visitas numerosas. Aqui dormem os pe­
quenos. Segue-se o quarto do casal - bons móveis, espelhos,
colcha de seda na cama, rendas, cortinas floridas nas janelas, uma
imagem da Senhora de Guadalupe, padroeira (creio eu) da Amé­
rica Espanhola.
Chegamos à sala, que transborda de gente. O rádio-consola,
enorme, marcha a toda a força, abafando e confundindo as vozes,
e criando uma forma de embriaguez. As moças dançam - uma
flor rubra nos cabelos negros, ondulados - ao som de invisível
orquestra antilhana. Da sua moldura do tempo da NRA - « We
258 VASCO GRAÇA MOURA

do Our Part»1 - já desbotado e verdoso como a memória da cri­


se, o Presidente Roosevelt ainda nos sorri de confiança. Fala-se
espanhol, inglês e português, e para nos entendermos é preciso
gritar: How do you do, Servidor, um seu criado. . .
O fogão a petróleo, aerodinâmico, chama azul sem cheiro,
aquece o ar até à sufocação. Móveis confortáveis, oleado reluzen­
te no soalho, tapetes e almofadas - a casa garrida e modesta do
trabalhador. Tudo brilha de asseio. Tony explica-me que é quase
tudo novo, só o rádio tem dez anos, até pensam em comprar ou­
tro a prestações. Um pinheirinho exilado estremece e estiola-se
com saudades da neve neste antro de luz e calor, plantado numa
pirâmide de caixas de presentes que serão abertas mais logo, de­
pois da ceia, entre gritos de surpresa. O que isto há poucos anos
ainda me chocava! Chamava-lhe eu o «Paraíso dos Objectos» . . .
A adoração d o Objecto estendeu-se hoje ao mundo inteiro.
- Y donde está la nena? - pergunta minha mulher.
Além dos dois garotos, morenos, de olhos rasgados e mansos,
com a ternura e seriedade precoce da raça materna, ainda há la
nena: num canto da sala, na sua caminha de grades, alta, fresca e
fofa, está deitado um bebé de poucos meses, delicado e perfeito
como todos os meninos das raças latinas e tropicais. (Serei eu ra­
cista? Sou-o na beleza . . . ) Os seus grandes olhos negros fitam-nos
com calma e gravidade. Depois sorri . . . Curvo-me a dizer-lhe des­
tas palavras ternas que aprendi entre os hispanos: Guágua, Chi­
quitita, Bunitica ...
Indiferente ao rumor, à agitação, ao calor e fumo que enchem
a casa, a nena segue a sua trajectória, como se do berço fosse
aprendendo a escudar os nervos de futura trabalhadora contra

1 Cumprimos a nossa quota-parte - slogan da era rooseveltiana. NRA, ini­


ciais de Nacional Reconstruction Act, pedra angular da legislação com que
F. D. Roosevelt enfrentou a crise.
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 259

os estrépitos do seu mundo. Agarra-me um dedo, procura mordê­


-lo nas gengivas rosadas e nuas, palrando, e agita no ar as per­
ninhas, que parecem modeladas num barro trigueiro e macio.
A mãe, ao lado, na sua voz arrastada e branda de antilhana, conta
das três semanas que passou no hospital:
- Ay, que descanso que fue, qué vacacione má buena! Me salí
de allá reposada, mire lo que engordé yo allí!
A vida é dura, uma casa deste tamanho, a cozinha, marido e
três filhos, só a roupa que ele suja, compras a fazer. . . Ao pé disto
o hospital é o paraíso.
Tony leva-me junto da escrivaninha-estante, estilo «Colonial»,
e mostra-me os seus livros: entre eles avisto, com orgulho, a capa
laranja-ouro dum folheto meu: Casa de Ricos.
- Já o li três vezes! E vendi muitos! Isto que aqui está é a vida
do trabalhador . . .
Tony é trasmontano, l á de cima das arestas d e Chaves, pe­
queno, robusto, de grandes olhos sonhadores na face pálida, os­
suda e cavada; português até ao cerne no carácter, nos impulsos
de génio (que em geral sabe conter), na bondade, no amor, casou
com uma doce morena de Porto Rico, de lindos olhos e poucas
falas. Já os tenho surpreendido, no meio de muita gente, a en­
treolhar-se com ternura. . . Os olhos dele têm uma bondade viva
e actuante; os dela, a doçura risonha e maliciosa da sua raça.
Amam-se. São pobres, cinco bocas a comer, quase sempre uma
tia dela, e nunca faltam os amigos, mas Dora não trabalha fora da
sua casa.
Ele é lavador de janelas, window-washer, mas sabe onde tem
o nariz: conhece de leis e organizações, direitos e deveres. Lê os
jornais, é membro de sociedades, e está sempre ao corrente do
que vai por esse mundo. É um português «integrado». Trabalha
das oito às quatro, todos os dias menos ao domingo, e não falta,
260 V ASCO GRAÇA MOURA

apesar disso, a uma reunião, a uma festa de solidariedade. Fala


um inglês superior ao comum, e o seu português, cortado aqui­
-além de um castelhanismo, por uma espécie de lei de massas ou
gravitação linguística, inevitável em quem vive entre estranhos,
guarda um forte sabor serrano. Emigrou aos vinte e um, e tem
hoje trinta e seis. É um coração generoso, que os excessos e es­
crúpulos de consciência fatigaram talvez cedo demais. O cabelo já
começa a embranquecer-lhe nas têmperas. Os impulsos da alma,
nesta terra, pagam-se caro . . .
Sentados a u m canto, ele, o seu compadre e eu falamos então
da vida e do trabalho.
- Este ladrão - diz o compadre, grosso e robusto como um
touro de castanheiro, e também window-washer - já em peque­
no não havia nada que lhe metesse medo! Trepava ao raminho
mais alto dum carvalho, a gente cá de baixo, com uma corda, pu­
xávamos a pernada até ao chão, largávamo-la como uma fisga,
e ele aí vai por ares, e ventos! Ia cair da outra banda do riacho,
como um gato montês, e nunca se trilhava! Qyando trabalhou
no Chrysler Building, lavava as janelas todas do trinta-e-quatro
andar sem nunca pôr o cinto . . .
- Ah, era solteiro! - diz o Tony, como escusa d a teme­
ridade.
- Depois que casou e fez filhos é que tomou juíw. Olhe que
nem no pino do Inverno este ladrão veste a jaqueta!
- E não tem frio?
- Frio? Se você tivesse que lavar e limpar numa tarde todas
as janelas de dois andares do Park-Central Hotel, já veria o que é
ter calor! Aquele ventinho lá em cima até regala a gente.
Às vezes são quinze e vinte graus abaixo de zero . . .
Cerca d e trinta mil homens ganham assim a vida e m Nova
Iorque, correndo riscos que metem num chinelo os dos voos
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 26 1

à Léotard. Vertigens dão eles a quem os vê trabalhar sem rede,


suspensos pelo cinturão a trinta ou quarenta andares acima do
pavimento, que a nós nos sustém e a eles os mata. O homem,
de dentro, começa por abrir rapidamente a janela de guilhotina.
Depois pula no parapeito e finca os pés, engancha as correias do
cinturão nas duas escápulas de ferro das ombreiras, à esquerda
e à direita, e, de costas voltadas para o abismo, de cara ao sol e
ao vento, à neve ou à chuva, cigarro na boca (às vezes suspende
o serviço um instante para o acender), de escova e limpador em
punho, purifica as vidraças de toda a sujidade que nelas acumula
inexoravelmente o ar húmido e gordo da Empire City.
Acontece que os anéis ou escápulas de ferro, ali cravados des­
de a construção, apodrecem com a intempérie, ou que o cinturão,
pesado como um arreio de boi, enfraquece com o uso constante.
A lei ordena inspecções frequentes a este e àqueles: mas quem
é que sabe dizer onde passa o meridiano que separa a absoluta
segurança do irremediável desastre? Por vezes é a mão do homem
apressado que falha, ao enganchar a correia, e então ele despe­
nha-se alguns palmos, fica suspenso de uma só escápula, sentindo
ranger, dilacerar-se o cinturão, a fazer esforços desesperados por
alcançar com a mão o parapeito, sozinho no mundo e dezenas
ou centenas de metros acima dele . . .
U m grito agudo e tétrico rompe d o céu, através d o tumulto,
e a multidão impotente, paralisada de horror, vê aquela forma in­
significante, vagamente humana, suspensa duma janela, a oscilar
no vento, a agitar as pernas e os braços como um fantoche no va­
zio . . . Outras vezes, as cabeças erguem-se só a tempo de ver uma
coisa amarfanhada e grotesca, boneco informe de serradura e tra­
po, que parece mole e é velcn, vir lá das alturas para embater com
um som cavo e final no pavimento, que o atrai como um íman
262 VASCO GRAÇA MOURA

irresistível. Um baque, um grito de mil bocas, depressa alguém


acorre com um cobertor ou uma saca de aniagem, e a ambulância
não tarda, a uivar no oceano do tráfego, para arrebatar consigo
os vestígios do homem e do acidente.
Já vi um deles despedir-se das alturas e da vida, do décimo
quarto andar dum hospital: fendeu os ares com a violência dum
fardo arremessado dum avião, e estampou-se no concreto da rua
como se quisesse colar-se-lhe, confundir-se com ele, ou sumir-se
pelo solo dentro. <2ltando corremos, tinha o crânio aberto e vazio
como uma taça. O cérebro, intacto, saltara a dez ou doze metros
de distância, deixando a meio caminho o cerebelo num pouco de
sangue. A violência do embate - não posso esquecer o porme­
nor grotesco - arrancara-lhe os tacões das botas . . . Desde então,
sempre que vejo um destes mosquitos laboriosos a roçar as ante­
nas ou palpos numa vidraça, desvio os olhos e apresso o passo. Se
algum entra no meu escritório abalo porta fora. (Comovem-me
tanto quanto me irritam os suicidas exibicionistas que às vezes fi­
cam horas numa cornija ou platibanda, a observar a multidão que
de baixo os observa, e de repente, quando - ao cabo de inúme­
ros e demorados preparativos - a mão dum bombeiro ou polícia
se estende para os salvar, se precipitam no espaço da morte. Ou­
tros parlamentam horas com um padre, rabino ou pastor, e aca­
bam por se resignar à vida, com grande desapontamento dos bas­
baques que, da rua, os assobiam e apupam . . . <2lterem vê-los
morrer! Houve um, porém, que se atirou sem aviso prévio do pa­
rapeito do Empire State Building; a cerca da altura da Torre Eif­
fel: antes de pular, virou-se para os turistas surpreendidos, que
admiravam a coragem da brincadeira, e exclamou: «Até logo,
amigos!»)
Não gosto sequer de olhar o cinturão que o compadre de
Tony teima em me mostrar e descrever, erguendo o colete: trá-lo
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 263

sempre consigo! Procuro mudar de conversa. Este risco imper­


doável da vida humana afecta-me: que diabo, então com tanta
técnica ainda não haverá um meio mecânico de lavar o exterior
das janelas1?
- Well - diz o meu amigo a sorrir. - A gente habitua-se
a tudo. Só se morre uma vez. E há o seguro de vida! Se acabas­
sem com isto, só em Nova Iorque ficavam muitos milhares de
homens desempregados. Era muito mais caro do que algumas
vidas que se perdem todos os anos. Então lá porque morrem
trinta mil pessoas por ano em acidentes de estrada, haviam de
acabar com os automóveis?! Não tinha jeito nenhum. 01iando
morre um companheiro a gente sente um calafrio. Olhe, ainda
a semana passada fomos ao enterro de um . . . Mas o medo esquece
logo. Estávamos bem arranjados! E os que andam de avião? Ele
até há quem morra afogado a tomar banho! Eu cá, quando ando
a lavar as janelas, ando sempre a cantar ou a matutar noutra coisa.
Esta cabeça nunca pára. Nem olho para a rua . . .
A gente nova continua a rumbar. A nena agita as pernas, ta­
garela, e sonha no berço, longe disto. Da cozinha vem o cheiro
aliciante dos petiscos, que estão prontos. Os dois pequenos brin­
cam entre as pernas das visitas com os seus presentes de Natal­
autocarros de corda, uma bomba de incêndio . . . O pai diz-me
com orgulho:
- Olhe que nada disto é made in Japan!
O povo de Nova Iorque festeja o Natal sem dar as «broas» ao
Japão: o boicote é geral, e a guerra está à porta. Mas diz-se que
o Japão forjou a sua poderosa esquadra com a sucata de aço dos

1 Nos mais modernos arranha-céus, envidraçados, de janelas que não são de


abrir, usam-se hoje bailéus suspensos de cabrestantes montados nos terraços do
tecto.
264 VASCO GRAÇA MOURA

«elevados1» de Nova Iorque, recentemente demolidos, que lhe foi


vendida por alguns patriotas americanos. A rádio traveja: «Hispa­
nos! La antigua abacería de González Rijos ... Así, a bailar en el
Club Obrero Espaizol!... Drink García Wine ali the time!... Ayuden
a la causa de la República . . . » Saímos enfim da sala e voltamos
à cozinha. Não há lugar para todos, isto tem que ir por turnos.
Os muchachos e muchachas preferem comer na sala.
Diante da mesa bem fornida, os olhos do meu trasmontano
humedecem-se de gosto. Lavador de janelas, três filhos, um lar,
asseio, amigos, decência e dignidade, a luta . . . E uma alma capaz
de mover montanhas . Organizou a secção portuguesa de uma
grande sociedade fraternalista: só à sua parte, mais de cem novos
membros. É secretário-tesoureiro, atura-os, faz contas, escreve
cartas e relatórios, fala e convence... É preciso vender a Ideia a
esta gente!
- Esta cabeça nunca pára . . . A minha pena é não saber fazer
um discurso, ou escrever um bom artigo, como você. Bah, cada
qual faz o que pode. Vá lá mais um trago!
Já o ouvi fazer um discurso, em lágrimas, alanceado pela
derrota . . .
O arroz d e amêijoas d e Don Rufas está de comer e chorar
por mais; e o polvo guisado arranca-nos brados de entusiasmo.
- Homem, não me encha mais o copo!
Para que resistir? Isto fá-lo feliz, e a mim aquece-me o cora­
ção. E nestes momentos de convívio que eu me sinto mais nosso,
mais deles, mais orgulhoso dos simples, mais enternecido.
Depois de nos terem servido, as mulheres sentam-se connos­
co. Tony tem os olhos brilhantes, a voz pastosa e confidencial,

1 E!evated Lines, comboios eléctricos, urbanos, que corriam sobre estruturas


aéreas ao longo de algumas avenidas e ruas de Manhattan - como ainda hoje
parte das linhas do subway, neste e em outros burgos da cidade.
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 265

uma nova cor nas faces pálidas e ossudas. Reparo que ele e a mu­
lher se entreolham com ternura. Estão contentes, fazem-me feliz!
O café começa a popotar no percolador, e Tony divaga - nestas
horas quem é que não gosta de lembrar o passado, contrastes?
- Na minha terra nunca o bebi, café! Nem o cheiro. Talvez
no Porto, quando por lá passei para embarcar. . . Estive lá dois
dias, pareceu-me a Babilónia! Açúcar, então, só numa doença,
como o chá. Ai, tia Joana, fulano está a morrer! Davam-lhe vinho
quente com açúcar, era remédio para tudo. Lá se curava confor­
me podia, ou morria consolado . . . Mel, sim, mel havia. Vinha um
homem vendê-lo por aqueles sítios, com o macho carregado. Le­
vava os presuntos em troca. Minha tia comprou uma vez um cân­
taro dele, aquilo era para durar uma vida. Meti-lhe o dedo, gos­
tei. . . Ora, não lhes conto nada: todos os dias ia tirando mais um
bocadinho. Ao fim de um ano, um dia foi preciso mel não sei para
quê, talvez algum doente. Qyé-dele o mel? Qyem foi o ladrão
que mo lambeu? Tinha-se acabado! Com um dedo. Até andei
fugido . . .
O riso estala.
- Vai mais um copito?
- Pois seja!
Isto que eu sinto não é embriaguez, tranquiliza-te: é conten­
tamento, é amor, um indizível conchego que eles nem sonham,
um desejo indefinível de ser como os outros, quase doloroso de
bom que é.
E quando se abre o forno e sai lá de dentro, com a majestade
duma cerimónia episcopal, um formidável lombo de porco assado
- um rolo tostado, todo atado e fumegante, nadando no molho
de oiro líquido que perfuma a casa inteira, e mais, a memória
deste dia pelos anos fora -, não posso conter a exclamação riso­
nha e comovida:
266 V ASCO GRAÇA MOURA

- Abençoada sej a a fartura dos que trabalham, para todo


o sempre!
E em coro os pobres - ricos só da força do seu braço e da
sua vontade - dizem comigo:
- Ámen!
A rádio estruge. Lá fora a neve, a neve festiva que adorna
e purifica o negrume dos slums da cidade, recomeça a cair . . .
O s pequenos gritam de entusiasmo e correm para a rua, arreba­
tando os agasalhos de Inverno. A neve! A neve!
É o que se chama um Natal branco.
Gente de paz
Tomaz de Figueiredo

FOI, PRJMEIRO, UM FUSO DE LUZ a anunciar algum automóvel,


muito vagaroso, pela estrada que enleia a barragem. Depois,
aquele fuso escureceu e tornou só a ser uma noite que nem se di­
ria de Natal, antes de Outono, de uns longes de névoa, um cres­
cente de Lua e uns dispersos frocos de nuvens, caprichosos: umas
penas brancas e frisadas.
O que breve anunciou alguém pelo carreiro marginal veio
a ser o lume de um fósforo, branqueando, fugaz, uma concha de
mão e um rosto. E a brasa do cigarro acendido, aparência de feri­
da em sangue do furo de uma bala, veio a aproximar-se, até que
rompeu um casacão de cabedal negro, esganado por um cinto,
possível abafo de fiscal rondando.
Na margem e de pé, um vulto recolhia a chumbada de uma
linha de mão: o de um velho pescador em contravenção, que,
percebendo passos, se erguera, desconfiado. Entanto, o do casa­
cão, alcançando-o e entendendo-o, assentou-lhe afavelmente
a mão no ombro.
- Gente de paz, amigo!
- A caçar peixe, aqui, só, meu senhor. A esquecer que é
a noite de Natal.
268 VASCO GRAÇA MOURA

Tranquilizado, iscava novamente a linha e arremessava-a:


a queda, desenvolvida toda a liaça da linha, fez falar a água.
E continuou:
- O meu Natal, hoje, agora . . . Numa casa onde ninguém
ainda nasceu nem morreu . . . À espera de que eu morra, para co­
meçar a ser casa. . .
- A sua casa? . . . - voltou-lhe o d o casacão.
- Ali, meu senhor. Das casas novas que nos deram, das de
tijolo e não de pedra. . . Onde até o lume parece mal. . .
- As casas que lhes deram, e m troca das que ficaram debai­
xo da água, eu sei.
O velho atirava puxões curtos à linha, a ver se o peixe lhe da­
ria sinal, até que parou a manobra e tornou:
- O senhor sabe? Será o senhor também destes sítios e que
eu não o conheça, que eu não me recorde? Tanta gente vai, tanta
gente vem . . . E tanta que nunca mais . . .
A resposta, evasiva, talvez que satisfaria o velho.
- Nós somos sempre dos sítios onde conhecemos o coração,
amigo. A pescar, então, nesta noite . . .
- A ver s e tiro uns enguios, meu senhor. Nestas noites as­
sim, de calma, os enguios, a tripa de galinha . . . E hoje armei tripa
de galinha à farta. Uma festa para os enguios que a derriçam no
anwl. . . Um fartote . . .
- E u sei . . . Também sei . . .
O fácil modo por que o do casacão falava, d e voz quase ami­
ga, perto de enternecida, serenara de todo o pescador, que lhe
acresceu, quase familiar:
- Mas, por hoje, acabou-se, que pouco tardará a meia-noite.
E, às badaladas da meia-noite, no sino da igreja que ficou debai­
xo da água. . .
- Às badaladas d a meia-noite? . . .
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 269

- Eu lhe digo, meu senhor. A igreja, tiraram-lhe os sinos,


mas é como se não lhos tivessem tirado. A derradeira badalada,
ao que dizem . . . 01ie há gente que tem ouvido. . . Anda o medo na
água, meu senhor. . . Vem à tona, lá do fundo . . . Da aldeia alaga-
da . . . Do cemitério alagado . . . Dos ossos alagados . . . Dos sinos que
ateimam em tocar . . . Umas vezes, às almas, no Mês das Almas . . .
Outras, a defuntos, como s e algum vivo que l á ficaria s ó agora
morresse, e os defuntos a fazerem-lhe o enterro, a acompanha­
rem-no . . . O medo . . . Anda aqui o medo . . .
- O medo . . . Anda n a presa o medo . . . - Pareceu aceitar
o do casacão. - E andará, amigo, andará. . . Porque não? . . .
I a a citar-lhe o seu Shakespeare, de que havia mais coisas de­
baixo das estrelas do que podia Horácio imaginar, mas ficou-se
por abrir a cigarreira.
- Um cigarro, amigo? Vai uma cigarrada?
De novo a chama dum fósforo alumiou uma cara, esta agora
a de um velho que roçaria os oitenta.
- Pois boa noite, amigo. Até sempre.
- Até nunca mais, meu senhor.
- Até sempre, que pode ser amanhã, que pode ser daqui
a um ano e nesta mesma noite. 01iem sabe dos que vão e não
voltam, dos que voltam e ninguém os espera . . .
Pareceu-lhe isto ao velho fala d e mistério.
- Anda por aqui sempre, meu senhor? Andará por aqui
sempre!? Deram-me há bocado umas luzes de que sim, de que
a voz de vossa senhoria não me era estranha . . .
Ouviu ainda uma resposta fugidia.
- Andamos por toda a parte, sempre. O pensamento anda-
-nos por toda a parte. Se o coração manda no pensamento . . . Até
pelo fundo da água, não é verdade? . . . Por onde os pés já não po­
dem andar . . .
270 V ASCO GRAÇA MOURA

Afastando-se, ficou o velho a seguir-lhe o vulto e a dar à ca­


beça, como se o dalguma alma penada que para guardar segredo
oferecesse cigarros, o de algumas das que tornam, a cumprir um
fadário ou a carregar mais, para alívio e dor maior, numa dor sem
perdão.
O ar dir-se-ia metálico, de lâmina oxidada. Já só muito escas­
sas luzes na aldeia nova, acima de meia encosta.
Foi o do casacão seguindo a bordejar a presa, lento e olhando
a água parada, os outeiros circundantes.
Vaga e branca, num coto: a Capela de Santo Amaro, sim, de­
certo ainda com pernas de pau e muletas pelas paredes, promessas
de miraculados. A Capela de Santo Amaro - reconhecia-a -,
ainda lá, essa, mesmo ao direito da Estrela do Norte.
A água parada! E a aldeia velha, lá debaixo, transida. Ao de
cimo da água andava o medo. O medo, o da vida afogada, o dos
mortos molhados para sempre até aos ossos, o dos quatro cipres­
tes do adro já sem pássaros, com ninhos frios até ao fim do mun­
do. Os mortos de vinte anos atrás, de cem, lá debaixo . . . O João
da Machada, sapateiro, que dava uns tais pontos que se rompia a
sola e os pontos não se descosiam, sempre tão alegre - pobrete,
alegrete! - e aos bordos todos os sábados, a bater à porta que se
lhe não abria antes de meia hora de palavradas . . . (Abre, mulher!
Abre a porta, mulher!} (Seu grande bêbedo! Seu grandessíssimo desa­
vergonhado!)
Sua esta . . . Seu aquele . . .
A filh a d o caiador, a Olivinha, que morrera tísica e tão linda . . .
O cornetim da banda, u m a embocadura que dava eco em
cinquenta léguas à roda, o Basílio da Ruça . . .
O podador dos podadores, que ninguém para ele, o Sebastião
das Moças . . .
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 271

O Chico babão, com tremuras por todo o corpo, e a pedir para


o enterro... (Alguma coisinha, pelas almas, para o meu enterrinho .. .)
Varado na margem e sem loquete, dava com um barco, de re­
mos emparelhados no fundo.
O medo . . . O medo assombrava a presa . . .
Parou a olhar o barco, a olhar tudo ao redor, outra vez a Ca­
pela de Santo Amaro, a Estrela do Norte, o negro de uns mata­
gais, serra além, onde havia lobos, e, no picoto nu, o penedo com
umas pias cavadas, coisa que o povo atribuía aos Mouros. As pias
onde os perdigueiros iam matar a sede: já conhecidas dos perdi­
gueiros . . .
O medo . . . Andava o medo n a presa, assombrava-a até à der-
radeira estrela . . .
Leve, o barco, e nem que pesado fora. Empurrado, entrou
pela água, peixe que voltasse a nadar.
O silêncio da presa sobre a aldeia afogada! Vida, ali, só o
chiar e o compasso dos remos, a resposta da água.
Sim, pela direitura da capela, devia ir a remar ao de cimo da
igreja. Se ainda lá iriam rezar a missa do Galo . . . O padre João de
Cabreiro, encatarroado e a tirar o tabaqueiro vermelho das pregas
da alva. . . (Introibo ad a/tare Dei.. .) E o servo, o Casimiro Beiças,
coxo e de opa vermelha até aos tornozelos . . . (Ad Deum qui laetiji­
cat juventutem meam.)
A juventude do Casimiro, octogenário, a cair da tripeça e de
óculos de vidro de lupa, com dedadas e aros de ferrugem . . .
O coro d a senhora D. Elisa pianista imploraria ao Deus pro­
metido que nascesse.

(Céus, rociai!
Nuvens, chovei!
ÓAdonai,
nascei, nascei!)
272 VASCO GRAÇA MOURA

* * *

Iam os remos batendo.


Agora, sim, a uma dúzia de remadas, pouco mais, devia che­
gar ao ponto da casa paterna, casa que nem sabia de quantos avós
em escada perdida nos séculos, da qual, havia uns trinta anos, se
despedira. O pátio, a varanda, a cozinha ao depois de um arco . . .
U m limoeiro ao abrigo do norte . . . Agriões pelo rego que vinha da
poça . . . As pêras inverneiras que se estendiam no sótão, em camas
de palha, e que aturavam por Fevereiro e Março dentro . . . Um
melro na sebe de alecrim . . . As vespas nas tigelas de marmelada. . .
Cheiro a mosto . . . O riso d e espigas d e milho no canastro . . . Raba­
nadas . . . (Ó Adonai, nascei, nascei. . . ) Numas palhinhas, Acionai . . .
Vinho quente e m tigelas d e outros tempos . . .
Não. Não tinham tal passado trinta anos, muito menos cin­
quenta. Era um menino. Ainda era menino . A mãe vestira-o
para a ceia do Natal, para os formigas. Ia comer doces, muita for­
ça de doçarias. E todos lhe queriam bem, todos. Ia comer chila
de ovos, bolinhos de jirimu. E ginetes, aquelas rosquilhas doces
que se chamavam ginetes. Caiados de açúcar em ponto . . . Depois,
levava um ginete ao presépio, para o Menino Jesus comer . . .
A sua noite d e Natal, l á debaixo, a cem, talvez a mais d e cem
metros de fundura . . . Um cisco de nuvem reflectia-se na presa.
A chaminé paterna, que fumegava, porque ia assando agora pi­
nhas à lareira, descascava-as com as costas da fouce velha, desen­
cabada e cega de todo. (Vija lá, menino, se nos arranja trabalhos,
se dá com a fouce nos cotos. . . Se aleija os cotos. . .)
Qtem uma vez dera com a fouce nos cotos fora a Ermelinda ...
O cheiro de pinhas assadas ... (Conta um conto, Ermelinda,
conta!) (O das três cabritinhas, quer?) (Esse, esse! O das três cabriti­
nhas!) (Eram de uma vez três cabritinhas, e a mãe delas disse-lhes:
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 273

vós ficais aqui ambas e duas metidas nesta caixinha deste relógio, en­
quanto eu vou ao monte armar comida para vos dar. Mas, se vier al­
guém, vós não abris a porta, que é o lobo que vos quer comer.)
Deixou os remos pender dos toletes como asas partidas .
Acendeu mais um cigarro e deu-lhe umas fumaças, até que lhe
caiu dos dedos esquecidos. (hieimada, a água queixou-se.
Lá no fundo, sim, o tempo insurgia-se. Lá no fundo, sim,
tornava a noite de Natal. Tanto como estrelas ardiam no céu,
tanto no fundo luziam todas as janelas: as do Chico da Venda, as
do senhor professor, as do primo do Adro, as das primas do Tan­
que, as suas próprias, paternas. As luzes do céu não eram do céu.
O céu espelhava era as luzes da aldeia. Também era de dia, e o
tempo do pião. Os rapazes atiravam o pião no Largo, questiona­
vam, pegavam-se. O zungar dos piões fundia-se com todos os si­
lêncios ao derredor: o do voo das pombas-de-leque do boticário,
o do granizo nas vidraças da escola, o do relógio de cuco da
senhora Mariquinhas viúva, o dos guizos do carro da carreira.
A Emília sardinheira berrava pelo filho e insultava-o, insultando­
-se. (Ó Nelo! Ó Nelo! Ai o grandefilho da puta! Ai o cação! Ó Nelo!)
O lobo comera duas das cabritinhas, quando chegou a mãe
com a comida para todas. (O lobo, de cheio, nem se podia mexer.
Fazemos bem! disse a mãe à terceira cabritinha. - Traz a tisoira e a
agulha. E mandou a cabritinha acarretar pedras, enquanto com a ti­
soira abria a barriga do lobo. E tirou as duas cabritinhas da barriga
do lobo e meteu lá pedras e coseu-lhe a barriga. E arrumou com o lobo
para um poço e ficaram todas três a cantar e a dançar, todas conten­
tes.) (Conta outro, Ermelinda, conta outro! O da Bicha-de-Sete-Ca­
beças9 (Não, menino, que está dar a meia-noite e nasceu o Menino
jesus. E o menino, agora, vai épara a caminha, que está cheio de sono.)
(Mas eu queria o da Bicha-de-Sete-Cabeças! Ou o do Bicho Sapo do
274 VASCO GRAÇA MOURA

palácio! Conta, conta o do Bicho Sapo do palácio!) (Não pode ser, me­
nino. Bem vê que também é nascido já o Menino jesus! O menino vai
é para a caminha. Direito para a caminha!) (Mas, primeiro, então,
quero ver o Menino jesus! Eu quero ver o Menino jesus!)
Seguiam desamparados os remos. Só, do quase imperceptível
andejar do barco, as águas, como que friorentas, mal se enruga­
vam. No céu, os farrapos de nuvem esfarrapavam-se mais, bran­
cos de fumo.
Todas as casas da aldeia fumegavam. Em todas ardia o ca­
nhoto de carvalho, ou de sobro, duradouro e de calor mais quen­
te, para aquecer o Menino: os dois Meninos.

Lisboa, 1965.
O conto de Natal
Tomaz de Figueiredo

AQUELE GRANDE E BEM CONHECIDO ESCRITOR, verdadeira­


mente inspirado, ele próprio reconhecia que invulgarmente inspi­
rado, sorria e aparafusava a caneta sem preço, escrita a derradeira
palavra e o derradeiro ponto de exclamação do seu Conto de Na­
tal, em que se aplicara desde a manhã, encerrado no ádito de
criador, esporeando-se a imaginação, a gramática e o estilo com
balzaquinas xícaras de café e redolentes cachimbadas à Steinbeck
e outros, de polpa e tomo. Fechou então os vinte linguados num
sobrescrito de tela, preservativo de humidades e danos, e seguis­
sem imediatamente, pois que do magazine que lhe comprara o
exclusivo dos contos de Natal, em que era eminente, pela segun­
da vez haviam telegrafado com aflição, instando pela obra, im­
plorando-a.
Lacrou-o satisfeito, o egrégio novelista. Saíra-lhe o conto ori­
ginal, invulgarmente novo: autêntico achado. Nisso de contos, e
então de contos de Natal, como nas mulheres e na lotaria, havia
horas felizes.
Assobiava, optimista. Espreguiçava-se e bocej ava. Erguia
alternado cada tirante dos suspensórios e largava-o, de estalo,
no peito de atleta. Cantarolava, também. E não só o envaidecia
276 VA S C O GRAÇA MOURA

a novidade do conto, as bem doseadas e apropriadas tintas, o recorte


- o recorte! - , na mesma o ver-se num espelho.
Sem dúvida que era um perfeito exemplar de homem, reco­
nhecia-o, conquanto baixo e gordo. Nada, nada que sugerisse um
barril, um saco de batatas, e menos um porco já cevada para a fa­
ca, tal como invejosos e falhados pretendiam insinuar. Fino, sim!
Distinto! Um gentleman pensador é que sim. Olial, um travessei­
ro!? Nem sequer testa alta, que já não se usava. Dedo e meio de
testa, cabelos bastas, como se usava agora, pois Homem perfeito!
E a prova era que as mulheres . . .
Ah! Tornar à capital, raspar-se! Aborrecidas férias! Chama­
vam àquilo «férias» os burgueses sem mensagem. Era preciso
mensagem!
Na capital, nas livrarias, além de todos o apontarem a dedo
- Ali vai Fulano. . . Aquele é que é Fulano. . . -, de lhe disputa­
rem o convívio e de lhe repetirem as frases, de lhe acatarem e
louvarem as pertinentes críticas, havia, acima de tudo, a elegan­
tíssima hora entre as cinco e as seis da tarde, hora cheia, em que
da livraria, e todos a perceberem, telefonava à querida que o lia
a ele e ao Proust, por conselho dele, e muito nas vésperas de lhe
cair nos braços, em transe de paixão.
Safar-se! Pirar-se! Chiqueiro de aldeola! Nem tertúlias nem
nada, louvores, consultas de novos ao mestre! Um chavascal!
Uma pocilga! Ele, um cosmopolita e um requintado, sepulto na
província por seis eternos dias, ali só a queimar tabaco inglês e de
roupão escarlate abandado a veludo negro, a escrever, às pata­
das! Ele!
Calava o assobio. Para além da vidraça esmorecia um cristalino
entardecer soalheiro, frio mas adoçado pelo seco da altitude. E nem
corria vento. E até uma voz feminina, por ali perto, cantava.
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATA L 277

No conto escrevera que a natureza e a humanidade suavam


tristeza, mas somente para lhe dar a cor devida, a essencialmente
verdadeira. De que tesouros de imaginação não precisava um
contista para vencer e ultrapassar os ambientes sem drama! Tam­
bém, logo isso distinguia os bons e maus contistas, só capazes, es­
tes, de pintar o que viam: a verdade sem interesse.
Efectivamente, no conto, desciam do céu impiedoso cruéis
farrapos brancos, amortalhando a Natureza e as almas de des­
crença e justíssima revolta.
Qye veramente esplendesse um medíocre sol provinciano
e meridional, pouco apropositado e burguês, incaracterístico, nada
isso queria dizer e menos contrariava os direitos do escritor, a
quem era lícito fantasiar terras e ambientes mais sugestivos e so­
ciais. Bem mais sugestivo do que o sol a loirejar os vidros era um
severíssimo e encarapuçado Inverno do Norte, com alcateias a ui­
varem na estepe desolada e ursos roncando. Um urso a roncar
1mpress10nava.
. .

Rico cenário, na verdade, o que imaginara! Um roqueiro pa­


lácio, ao meio dum luxuriante parque, defendido por grades que
lanças malevolentes rematavam, feudais. Atrancado, o orgulhoso
portão. Dentro e soltos vigiavam mastins encoleirados de pregos,
a arregaçaram dentuças mais aceradas que punhais malaios - e
isto de malaios, que sugestivo! -, mantidos só a carne crua e em
sangue que lhes aguçasse e espevitasse a ancestralidade selvática.
Na mansão do nobre senhor, um príncipe, festejava-se o Na­
tal. Mulheres perturbantes e decotadas - que ali não sibiliava
o nordeste e ardiam lenhas de aroma em fogões tão ostentosos
como pórticos de catedral - polcavam abraçadas por sublimes
casacas de Londres e da tesoura do Poole, por uniformes estrela­
dos e medalhados de tenentes loiros e bem-parecidos, tirados das
canelas, uns Apolos.
278 V ASCO GRAÇA MOURA

Embora o não escrevesse, o deixasse no escuro, fiado nos


bons entendedores, aquilo passava-se na Rússia dos autocratas,
dos Alexandres e Nicolaus. Por demais ciente o exímio novelista
- dissera-lho a crítica evoluída - que nada mais próprio do que
ambientes nórdicos e socialmente úteis, porque apenas em tais
paragens e temperaturas podem acontecer dramas aproveitáveis.
A Crítica, depois, lido o conto genial, não deixaria de o frisar,
uma vez mais o emparelharia com o Tchékhov e outros assim.
O conto seguia com librés a servirem iguarias raras e caras,
morangos primaveris, de estufa, doirados vinhos do Reno e espe- ·

cialíssimo extra-dry, timbrado com as armas do príncipe, túbaras


e peitos de rola, galinholas no seu particular molho. As crianças,
noutro salão, as felizes crianças, vigiadas e amimadas pelas nurses
- condessas arruinadas -, pulavam rodas e cirandavam ao redor
do sumptuoso abeto donde floriam pinhas de comboios eléctri­
cos, bonecas entrajadas em Paris e de Redfern, bichos da selva
com mecanismos na barriga, ideados por engenheiros.
Daí, sugerido magistralmente o cenário de fausto, explodia
o severo e social aspecto do conto, o negro e dito aspecto social.
Farto de saber, o contista de opulento colorido e brincado estilo,
que tem a Literatura de servir o social. Em Social d'abord a defini­
tiva norma literária, o padrão até ao fim do Tempo.
Ora, ao passo que na privilegiada mansão tudo era gow, elec­
tricidade e petisqueiras, confidências no vão das janelas, poker e
valsas zíngaras, entanguido jazia ao descaroável portão um mísero
rapazinho filho do povo, que todo o santo dia esmolara, sempre
nem sequer olhado por empeliçados senhores com cerdas no co­
ração e facas de frieza, no olhar, que nem a ideia aceitariam de
expor uns segundos ao grito e corte da ventania as mãos enluva­
das, e assim escolherem uma triste moeda preta na bolsa de pele
de foca.
AS MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 279

Anoitecera-lhe. Sem pai nem mãe, coitadinho, sem qualquer


família, coitadinho, posto no olho da rua por uns amos sem filan­
tropia, divisando-se-lhe ao longe o feliz palácio, até lá conseguia
ainda arrastar os pobres pés arroxeados e descalços.
Não será ocioso repetir que o festejado contista era um escri­
tor consciencializado, quanto deve sê-lo todo o que não enrede
conceitos passadistas de errada concepção filosófico-social, e não
lhe doessem as mãos pela clarividência, aliás servida por inegável
originalidade efabuladora.
Lembrou-se o rapazinho de que no palácio principesco talvez
se movessem de piedade, lhe esmolassem uma côdea e um feixe
de palha nas cavalariças, onde encostasse o pobre corpo martiri­
zado. Chegava a estender a mão para a argola da sineta, mas
traíam-no as forças e caía como um reles detrito, jazia no chão
estercado pelas parelhas mequelemburguesas e hanoverianas do
opulento aristocrata. E, farejando carne de mendigo, carne pouco
asseada, logo vinham os dogues furibundamente arremeter-lhe,
só não o espedaçando e comendo porque os separava a gradaria.
Jazia ali o rapazinho, sem acordo, e morrera, ou pouco menos:
seguia a neve a amortalhá-lo. E através das vidraças de cristal da
Boémia coava-se o luar dos lustres de Veneza. E rabecas langoro­
sas arrastavam cálidas arcadas, gemiam de amor e ciúme, esfarra­
pavam-se em pizicatos.
Acontecia, por fim, que o ladro ferocíssimo dos alões adrega­
va de chamar um humilde guarda campestre, assoldado pelo cru
barão feudal para livrar que os ladrões enfriados lhe roubassem
das matas e domínios um só galho que fosse. De carabina ronda­
va, em seu odioso e forçoso giro, por vezes disparando para o céu.
Era de muito bom coração, porém, o que se chama um coração
adamantino, o humilde guardador. Topando o pequeno, logo
filantropicamente o carregava até à sua modesta choupana.
280 V ASCO GRAÇA MOURA

E o desgraçado órfão, casualmente ainda vivo, tinha desde aquela


noite de Natal um gravata para dormir, adaptado por filho pelo
generoso salvador.
Um conto cheio de fundo. Reabrira o sobrescrito, pouco se
lhe dando o prejuíw, lembrando-se que lhe passara pôr as vírgu­
las na significativa peça, e aproveitava para a reler a meia-voz, en­
levado com a melopeia da prosa - a melhor do país, segundo a
crítica séria -, a felicitar-se pela sorte - que era talento - de
ter descortinado assunto novo, o que se podia chamar em primei­
ra mão, para mais em assunto assim espinhoso e ingrato como o
de contos de Natal, por demais explorados e mastigados. Verda­
de que era especializado em contos de Natal, sempre festejado
por ele, o que já constava dos manuais de Literatura. Sem dúvida
que o director do magazine, maravilhado e sempre exigentíssimo,
havia de felicitá-lo, dar-lhe uma palmada nas costas. Felicíssima
e originalíssima ideia, essa dum rapazinho escanzelado e famélico
aos umbrais dum milionário. Viessem agora os zoilos insinuar
que ele não tinha talento, que não passava dum podão. Os zoilos
iam era apoderar-se-lhe da ideia do rapazinho. Acostumado a
que os plagiários lhe arrebatassem as ideias. Por sorte que jamais
o cérebro se lhe estancaria de ideias opulentas. A ideia do rapazi­
nho piolhoso, que ideia, e tão simples! Na simplicidade, a verdade!
Atestando o fornilho do cachimbo, tornava a assobiar. E por­
que não chamaria a mulher e a filha, porque não ler-lhes a mora­
lizadora narração? A mulher, lá para cozinha, a vigiar que ficasse
o peru bem recheado e tostado, as doçarias do Natal, bem doces,
mas chamava-a. Comovida, ver-se-ia obrigada a concordar que
nem sempre o marido era um escritor mau, impróprio para se­
nhoras. Muito boa pessoa, mas eivada, cheia de preocupações
burguesas. Muito raro ainda, infelizmente, as senhoras estavam
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATA L 281

à altura de apreciar certas coisas, a literatura pura, e o conto caía


a propósito.
Avistava no jardim a mulher e a filha, apanhando florzinhas
para a mesa, e então o conceituado homem de Letras abriu a ja­
nela e chamou:
- Ó Rute, anda cá acima! E a Raquelinha também! Tam­
bém a Raquelinha, para vos ler aqui uma história. Uma história
que também a Raquelinha pode ouvir.
Desta vez a mulher gostou, declarou que sim senhor.
- E que linda festa, Gaspar! - exclamou D. Rute, imagi­
nando aqueles veludos e lhamas, diademas e gargantilhas, cabe­
leiras empoadas e sinais postiços ao canto do beiço, ouvindo da
nobre cintilação de esmeraldas e diamantes, do londrino apuro
das casacas e do romântico garbo dos uniformes medalhados. -
Qye linda festa, Gaspar, que luxo! E como tu sabes assim tão
bem compor essas coisas, que dedo, quando queres! Ai! a uma
festa assim é que nós gostávamos de hoje ir, mas, infelizmente . . .
Suspirou, e o marido também, este apertando expressivamen­
te o punho.
Ao mesmo passo que lia, o eminente escritor apurava a pon­
tuação. E quando surgiu o rapazinho a mulher então comoveu-se
e até enxugou uma lágrima.
Qye ternura e que pena, o desgraçadinho andrajoso, sob a in­
júria da neve, a caminhar de olhos fitos nas janelas duma família
fina! E também ali, como nessa terra tão longe, que aborrecimen­
to não haver famílias assim ricas e finas que dessem bailes pareci­
dos, que os recebessem a eles! Tão aborrecidos, às noites! Sem te­
rem onde se divertir!
- Ora não apreciavas, Gaspar, ir a uma festa dessas, de co­
mer caviar? De comer hoje morangos? Parece-me que tu nunca
provaste caviar . . .
282 VASCO GRAÇA MOURA

O abalizado contista repetiu o gesto cinematográfico e ia a


responder se não ou sim, quando a Raquelinha, que à j anela
olhava os montes e a paisagem, meteu o nariz naquilo.
- Mas eu não vejo neve, papá, por mais que me farte de
procurar! Um conto assim nem percebo! Pois se ele nem está frio!
O talentoso e carinhoso pai esclareceu-a.
- Pois não, minha filha, não, e nem é preciso que esteja.
Ainda és pequena, enfim, para compreender, mas isto passou-se
longe daqui, muito, muito longe. . .
Também longe d a ficção literária, a Raquelinha objectou-lhe:
- E o papá foi lá e viu?! Qyando é que o papá lá foi?
Bondoso, o competente literato sorriu, correndo o anel de
brilhante pela cabeça da filha, que passou a querer saber como
eram as bonecas de Redfern.
Como todas as meninas pequenas, escangalhava brinquedos
a herdeira do famoso Gaspar de Tentúgal, esse absolutamente
reconhecido por ainda mais notável que os pastéis. Ainda não se
convencera, para mais tarde assim o ensinar aos filhos, que, por
terem custado dinheiro, parece mal escangalhar os brinquedos,
além de ser muita feia a curiosidade de ver o que têm dentro. Ora
as meninas curiosas são más.
A propósito de bonecas, era isto o que o extremoso pai e es­
clarecido educador passou a esclarecer, e porque a Raquelinha já
abrira a barriga à última que lhe haviam dado, caríssima, que até
fazia chichi, para ver donde vinha o chichi. Só por via deste pa­
rêntese sensato se esqueceu de explicar como eram as bonecas
que Redfern entrajava. E, ao passo que retomava a leitura, a filha,
amuada e esfuracando o nariz, sentiu-se a imaginar como seriam,
talvez do tamanho de meninas, talvez de carne verdadeira e que,
além de fazerem chichi, também fariam cocó.
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 283

Aquecido por fim o pobre rapazinho ao lume do bondoso


guarda florestal, chegara o inspirado ficcionista aos finais três
pontos de exclamação e consultava a mulher.
- Qye tal? Qye te parece? Não é mesmo um conto em
cheio, um conto de sensação?
E nem esperou que a mulher respondesse. Ele próprio lhe
realçou - e aí o sensacional da peça - que a ideia do rapazinho
abandonado e faminto fora efectivamente, pela originalidade,
uma ideia feliz. Criara talvez um tipo, o do Rapazinho do Natal,
que daria pano para mangas, que provavelmente muitos aprovei­
tariam. Farto de ser plagiado, farto! E, se havia género difícil, era
o dos contos de Natal, até pelo que pareciam fáceis. Já muito es­
critor universal neles dera com a verruma em prego, olá se dera!
E agora que uma das criadas voasse num pulo ao correio, pois
que já prevenira de que mandaria um registo fora de horas. Mui­
to amável, o chefe. Muitíssimo atencioso com as pessoas finas.
Ia D. Rute a sair com o precioso sobrescrito quando a Ra­
quelinha, desemburrada, quis contar uma coisa.
Já sabia a Raquelinha, pelas meninas da cidade, que não era
afinal o Menino Jesus quem vinha deixar brinquedos nos sapati­
nhos, que até nem havia Menino Jesus nenhum. Ora calculasse o
papá aquilo que o vizinho sapateiro tinha ido pôr nas chinelinhas
das filhas, da Maria e da Qyina! Elas mesmas lho tinham dito,
da rua para a janela, muitíssimo convencidas de que fora o tal
Menino Jesus. Pois bocadinhos de pão e castanhas assadas! E ga­
bava-se a Maria de que lhe tocara uma castanha a mais! E a Qyi­
na, para não ficar atrás, respondia que a ela lhe tinham saído bo­
cadinhos de pão maiores! Qye um, uma fatia!
- Ora não são parvas de todo, papá, a Maria e a Qyina?
Com paternal condescendência e enchendo a caneta, o ex­
cepcional contista ouvia o que a filha contava. Já a mulher saíra
284 VASCO GRAÇA MOURA

e tornava com a criada, pronta para o recado. Então, lacrado o


sobrescrito, e definitivamente, o afamado homem de Letras con­
fiou-lho, depois de muito e muito recomendar que por nadíssima
deste mundo o perdesse, porque seria uma pena.

Lisboa, 1942.
Meia-noite
João Gaspar Simões

A Guilherme de Castilho

CHEGOU PELA NOITE, JÁ TARDE. 0 comboio tivera uma avaria


e vinha atrasado . Ninguém o esperava na gare. Ninguém! Só
dois passageiros se apearam. Na gare havia apenas o chefe, de
boné branco, a lanterna na mão e a gola do sobretudo levanta­
da. Fora, no largo mal alumiado, não havia um carro, uma car­
roça: nada, ninguém. A chuva, o vento e a noite . Levantou a
gola do casaco, enterrou o chapéu na cabeça e meteu-se a cami­
nho.
Tinha que andar. Ia para o extremo da cidade. A rua estava
encharcada, e a água escorria-lhe já em bica do chapéu. A maleta
de mão batia-lhe nas pernas, tocada pelo vento. Qie noite! Qie
deserto! Havia seis anos que não vinha a casa. Andara pelo mun­
do, perdido, lutando pelo pão de cada dia. E agora, naquela triste
noite de Natal, regressava por vinte e quatro horas. Tantas coisas
se tinham passado entretanto! Mortes, doenças, horrores! E ele
longe, só no mundo, lutando.
Era triste voltar numa noite assim! Sobretudo era triste che­
gar e não ver ninguém. Antigamente . . . Oh! antigamente era ou­
tra coisa! Vinha o pai, vinha a Maria, vinha a Judite. Era uma
alegria desembarcar. Mesmo que chovesse, mesmo que o mar
bramisse ao longe como agora, mesmo que as ruas estivessem tão
286 V ASCO GRAÇA MOURA

desertas como naquela noite, abraçavam-se jovialmente e pu­


nham-se a caminho, como se fosse Primavera.
Conhecia bem aquela rua. Pudera não conhecê-la! Ali dança­
ra em pequeno o «Papagaio Loiro», numa roda de crianças vizi­
nhas. Vivera na casa amarela da esquina. Por aquela porta encar­
nada saía de manhã para a escola, com os dedos enregelados e
uma agonia lenta na alma. Ali estava o quiosque onde comprava
estalos chineses. Ali o passeio em que se estatelara um dia da bi­
cicleta. Parecia ter sido ontem! Andara aos tombos pelo mundo e
chegava a tempo de ver tudo no mesmo sítio, como se a vida não
tivesse passado por ali . . .
N o entanto havia uma grande tristeza e m tudo: uma tristeza
só para ele, talvez. Só para ele aquelas coisas familiares e distantes
pareciam ter um olhar melancólico, soturno. O vento soprava da
barra. Lá vinha o cheiro a maresia. A chuva caía. Os candeeiros
tinham em volta um hálito pesado. De longe em longe, cruzava
com um vulto embuçado. Guarda-chuvas passavam escorrendo
água. Desconhecidos, tudo desconhecidos.
Atravessou o Jardim Público. As árvores ramalhavam ao ven­
to. Grandes poças de água alastravam no chão. Os canteiros sem
flores pareciam pisados; os arbustos, devastados, encolhiam-se na
sua miséria. Seria do temporal? Seria do Inverno? Outrora tudo
aquilo era viçoso e rescendente. Outrora . . .
À esquina d a Rua d o Circo pareceu conhecer u m vulto que
afrontava a chuva de cabeça descoberta. Era ele, de facto. Mais
velho? Sim mais velho, mas a mesma jovialidade interior nos
olhos. Era o Jordão. Continuaria sem falar? Havia bem dez anos
que decidira emudecer. Certo dia levantou-se sem fala. Nunca
mais falou. Não houve ninguém que o fizesse falar. Emudecera
de tédio, diziam.
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 287

Chegava enfim. L á estava a «sua» rua. Ali viviam o s seus há


mais de vinte anos. Tudo no mesmo sítio. A casinha da esquina
ainda tinha a empena derrubada por um raio que a fulminara ha­
via quinze anos. O pequenino prédio dos seus, com o seu telhado
em bico, era o mesmo também. Bateu à porta. Como ele conhe­
cia bem aquela aldraba! Dir-se-ia uma mão amiga aquela mão de
ferro toda molhada. As pancadas ressoaram lá dentro com o mes­
mo som de sempre. Não. Ali a vida não tinha mudado. Era ele
que voltava da aula nocturna, criança . . . A janela ia abrir-se. Uma
cabeça ia espreitar. A mãe esperava-o com o bule do chá debaixo
de um cobertor de papa, para não arrefecer. Sim: era ela que lhe
ia abrir a porta também agora. Já estava a ver os seus lindos ca­
belos pretos apartados ao meio e aqueles olhos meigos e suaves.
Vinha tarde? Não! Não, mãe! Viera logo direito para casa. Ela
ralhava, ralhava, mas daí a pouco vinha aconchegar-lhe os cober­
tores e beijá-lo na testa . . .
Realmente a janela abriu-se. Uma cabeça espreitou:
- É s tu, Jaime? És tu . . . ?
- Sou. Abre! Abre, Judite!
Não. Não era a mãe. Era a Judite, a irmã mais velha. Mas
a mãe estaria ao alto da escada, de braços abertos para ele. Atrás
estaria o pai, com os óculos para a testa e os olhos claros na face
serena. A Maria viria depois com as bonecas a arrastar pelo
chão . . . Mas a porta abriu-se. Uma criada desconhecida estava no
patamar.
- Muito boa noite, menino Jaime!
«Menino Jaime», pensou ele. Continuava «menino para os
seus . . . Mas ao alto da escada estava, de facto, Judite. Sim: a bran­
ca Judite, a nervosa Judite, a magra Judite, com os seus lindos
olhos castanhos e a sua cara rosada de menina.
- Judite! Judite!
288 VASCO GRAÇA MOURA

- Jaime! Jaime!
Abraçaram-se. Beij aram-se.
- A mãe. Olie é da mãe?
- Está lá dentro, na sala . . . Entra . . .
Um soluço embargara a voz d e Judite.
- E o pai . . .
Calou-se.
- Perdoa-me, Judite. Tinha-me esquecido . . . O nosso po­
bre pai . . .
O s olhos dela brilhavam d e lágrimas. Ah, sim, o s olhos dela
ainda brilhavam, mas de lágrimas, de lágrimas . . . E Jaime pôde
ver que aqueles olhos só de lágrimas brilhavam, que aqueles cabe­
los estavam cheios de fios brancos, que aquela cara rosada de me­
nina estava retalhada de rugas, que a magra Judite era agora uma
mulherzinha pesada, sem graça, sem frescura. Sentiu uns dedos
finos apertar-lhe a garganta. Mas teve forças para dizer:
- Estás na mesma, Judite.
- Mais velha, Jaime, mais velha. . . E tu? Vens todo molha-
do, filho. Entra, entra, depressa.
Jaime não estava molhado: estava bem. Tirou o sobretudo,
poisou a mala.
- Entra! A mãe está ao fundo, no quarto da Maria . . .
Tinham mudado a casa? Não era ali , n a saleta, que ela estava?
No «quarto da Maria». Ainda era o «quarto da Maria».
-Aí, entra.
Jaime entrou. Ao fundo, entre a janela e a máquina de costu­
ra, na velha cadeira de bunho, estava ela. Ela, a mãe? A dos cabe­
los negros apartados? Não. Uma velhinha, toda enrugada, com
uma grande madeixa branca na testa. Jaime correu para ela:
- Mãe! Olierida mãe!
- Meu filho!
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 289

Abraçaram-se. Jaime caiu-lhe aos pés. Soluçava, com a cabe­


ça no ombro daquela querida velhinha . . . Não a queria ver. Não a
podia ver! Não queria ver mais nada neste mundo. Porque havia
de ser assim? Porque haveria o tempo? Porque haveria a morte?
Porque haveria a vida? Não chorava de emoção, chorava de de­
sespero.
- Mãezinha! Minha querida mãezinha! - soluçava, sem le­
vantar a cabeça. Era como se ainda fosse pequeno. O chá, debai­
xo do cobertor, esperava. O pai andava a fechar as portas e a ex­
perimentar as j anelas. O relógio batia os segundos com o seu
pêndulo doirado. Na cozinha a criada polia os metais do fogão.
- Vens gelado, filho. Judite, vai pôr brasas na braseira.
A voz era a mesma. Mais cansada, mais triste. «Qie andaste
tu a fazer, Jaime? Na brincadeira . . . » - Não. Viera da escola di­
reito para casa. O chá estava quente. As torradas húmidas de
manteiga. E ela, com o croché entre mãos, a vê-lo comer.
- Ninguém te foi esperar, filho. Era muito tarde. A Judite
não podia ir assim sozinha para a rua . . . É uma casa sem ho­
mens . . . !
«Uma casa sem homens» pensou ele, sem levantar a cabeça.
Antigamente, quando falava das famílias onde não havia maridos
nem filhos, dizia, com uma piedade orgulhosa na voz: « É uma
casa sem homens . . . »
- Deves estar fraco, filho . . . É melhor ceares. Há lá uma tor­
ta para ti . . .
Jaime soergueu a cabeça. A mãe limpava a s lágrimas. Judite
sorria.
- Mas não ceamos todos . . . ? É Noite de Natal, mãe!
- Noite de Natal, filho!
Ficaram a olhar-se nos olhos com uma compreensão sem pa­
lavras. Mas Judite quis sacudir aquela tristeza.
290 VA S C O G R A Ç A MOURA

- Claro que sim. Ceamos todos . . .


Pôs-se a tirar o que estava e m cima d a mesa.
- Ceamos aqui mesmo, não achas, Jaime?
- Pois, sim. Está aqui mais quente.
Jaime sentou-se em frente da mãe. Ela olhava-o todo, com
uma melancolia enternecida.
- Não terás os pés molhados?
Talvez. Mas não trazia nada para calçar. Não tinha impor­
tância. Estava habituado. Ela, porém, teimou:
- Há ali umas pantufas de teu pai . . . Não as chegou a calçar.
Judite trouxe as pantufas, depois começou a pôr a mesa.
Eram as mesmas chávenas, aquelas de florzinhas azuis. Era o
mesmo bule. Era a mesma toalha. As coisas não tinham mudado:
seriam eternamente as mesmas. Eles, sim: eles tinham deixado
de ser os mesmos. Viera a morte levar o pai. Depois a irmã.
E o tempo passara por eles como uma tempestade. Ali estava ain­
da na parede a mesma paisagem bordada a matiz. Ali estava ainda
o mesmo barómetro no seu caixilho de madeira. As mãos que
tinham bordado a paisagem já não bordariam outra: estavam
trémulas e inúteis. Os dedos que à noite vinham bater no vidro
do barómetro comera-os a terra. Não mais se ouviria naquela casa
a voz do pai dizendo com gravidade:
«Vai chover! Temos bom tempo! Há tempestade!»
Jaime estava ainda a ouvir essa voz. Uma coisa tão simples.
Dir-se-ia eterna. Nunca pensara que aquela voz se calaria para
sempre. Porquê? Porque havia de ser assim? Porque teríamos nós
todos de morrer?
- Olha, Jaime, ainda estão quentes . . .
Judite entrara com u m açafate cheio d e tortas.
- São da Marta . . . Lembras-te da Marta?
Se se lembrava! . . . Gorda, reboluda, com dois grandes olhos
pretos numa grande face rubicunda. Cortou uma fatia de torta.
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 29 1

De facto, ainda estava quente . Judite sentara-se diante dele .


A mãe, tolhida de reumatismo, não se mexia da sua cadeira. An­
tigamente, era ela quem fazia tudo: ela punha a mesa, ela fritava
as filhós . . .
- J á não tenho gosto para nada, filho! - dizia ela.
Aquela fatia de torta quente era o passado que revinha para
Jaime. Via tudo: estava tudo ali diante dos seus olhos.
Lá fora a chuva caía sempre. Ao longe o mar bramia. O pên­
dulo doirado ia contando os segundos. Na cozinha a criada polia
os metais do fogão.
- Era tão alegre esta casa . . .
- Qy e havemos d e fazer, mãe? Deus assim o quis . . .
- Ainda bem que vieste, filho. H á tanto tempo sem te ver!
Jaime queria fingir alegria. Era preciso esquecer. Mas debal­
de. À volta daquela mesa sentavam-se todos. Todos os anos vi­
nha o Natal. Todos os anos comiam as suas filhós . . . Dir-se-ia
que sempre havia de ser assim, sempre. Ao dar da meia-noite,
bebiam um cálice de Porto. O pai pedia a Deus que para o ano
ali estivessem todos . . . Lia-se nos olhos de cada um a certeza de
que haveriam de estar. Tinham confiança na vida. A vida era
uma coisa que não acabava mais. Não acabava mais . . . Ele partiu
para longe, o pai um dia ficou-se, a Maria desapareceu de repen­
te . . . Restava aquilo: aquela velhinha sem forças, aquela rapariga
cheia de cabelos brancos e ele, um homem sem esperança, desi­
ludido . . .
- Qy e tens feito, filho? Por onde tens andado? Escreves tão
pouco!
Jaime queria contar. Dizer por onde andara. Falar da sua vida.
Para quê? O mundo era o mesmo em toda a parte. Em toda a
parte se trabalhava, em toda a parte se envelhecia, em toda a par­
te a morte vinha quando ninguém a esperava . . .
292 VASCO G RAÇA MOURA

- E por cá . . . ? Como têm passado?


- Mal, Jaime, muito mal. Aqui estamos as duas à espera da
nossa vez.
- Porque não te casas, Judite?
- É s doido, Jaime. Já ninguém me quer. . .
Judite dizia isto sem ressentimento, sem mágoa, com uma re­
signação natural. Se a vida era aquilo, não tinha mais que aceitá­
-la. Mas os seus olhos mortiços pareceram animar-se. O seu ros­
to cavado pareceu rejuvenescer.
- E tu, Jaime, porque te não casas?
Jaime não sabia. Nunca achara ninguém que o quisesse. E, de­
pois, com uma vida tão errante ...
- E quando tu dizias que ainda havias de ser mais velho do
que eu . . . Lembras-te, Jaime?
- É verdade, Judite. Se me lembro . . .
Eram pequenos. Estavam ambos diante d o filtro d a sala de
jantar. Ambos queriam beber primeiro. Mas ela disse: «Primeiro
eu, que sou mais velha!» Tirou-lhe o copo das mãos. Então ele
tornou-lhe, ameaçador: «Deixa estar. . . Qiando eu for soldado,
hei-de ser mais velho do que tu . . . »
A mãe tinha sorrido. Os olhos de Judite orvalharam-se.
- Há que tempos isso lá vai!
- Parece que foi ontem!
- E do sobretudo, lembras-te?
Jaime lembrava-se. Qieriam que ele vestisse um sobretudo
desajeitado, com o cinto muito abaixo da cintura. Protestou. Não
vestia aquilo. Tinha vergonha. Judite queria convencê-lo de que o
cinto assim não tinha importância. Era para crescer. Dentro de
pouco, veria: crescendo ele, logo o cinto assentaria no seu lugar. . .
- Qierias-me enganar, hein, Judite?!
- Não, Jaime. Juro-te que não. Era assim mesmo. À medida
que fosses crescendo, o cinto ia assentando no lugar próprio. . .
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 293

- Estás a brincar . . .
- Juro-te que não.
- Mas não podia ser. Era absurdo.
Insensivelmente elevavam a voz. Era sempre assim. Todas as
vezes que falavam do sobretudo caíam na mesma disputa. Em
pequenos esmurravam-se.
«Pronto, filhos, pronto! Qye é isso?»
A mãe intervinha. Acabava sempre assim. Pobre Judite! Fica­
ra com aquela certeza para toda a vida. Com duas ou três certezas
assim vivia. Feliz Judite! Só ele já não tinha certezas: restava-lhe
apenas trabalhar, trabalhar e morrer.
- Come mais um bocadinho, Jaime . Gostas da torta?
É boa? Não tem boa cara . . . Está tudo perdido: até a Marta já
sabe falsificar o pão . . .
Mas Jaime achava a torta deliciosa. Não havia no mundo coi­
sa melhor.
- E quando a mãe as amassava em casa . . . Lembras-te, Judi­
te? Nós todos à volta do alguidar . . . Tinham de esconder os pi­
nhões, senão comíamos tudo . . . Tu eras a mais lambareira . . .
- O h , Jaime! Qye mentiroso! Eras tu! Tu! Até lambias
a massa crua que ficava pegada ao alguidar . . .
Efectivamente, Jaime lembrava-se: era aquele mesmo paladar
a abóbora, mas mais acre, mais natural.
Conversaram. A mãe lembrou as festas do Natal felizes, com
o pai sentado na cadeira, à espera da meia-noite, a Judite a bor­
dar, a Maria com as suas bonecas e ele a olhar para as paredes,
sonhador. Ah, quem pudesse voltar atrás , emendar os erros,
aproveitar todos os momentos bons . . .
O relógio d o pêndulo doirado começou a dar meia-noite.
Um grande silêncio pesou, de súbito. Ficou só o relógio a bada­
lar. A mãe rezava em voz baixa, Judite tinha lágrimas nos olhos,
294 VASCO GRAÇA MOURA

e ele, cabisbaixo, via tudo, tudo . . . O pai ali, ali a Maria, ali a mãe,
ainda de mangas arregaçadas, ali Judite, com a sua cara rosada de
menina, e ele próprio, todo esperanças, todo ilusões . . . A última
badalada caiu, mas o silêncio continuou. A chuva batia nas vidra­
ças, o mar, ao longe, bramia; na cozinha a criada polia os metais
do fogão. Aqueles tinham escapado à tempestade. Mas espera­
vam, resignados, que a sua hora soasse. Qyal partiria primeiro?
Qyantas vezes se tornariam a ver ainda em volta daquela mesa?
E Jaime sentiu, de repente, que precisava de viver aquele instante
como quem bebe uma última gota de água no meio de um deser­
to sem fim. Fechou os olhos, apertou as mãos uma na outra e as­
sim ficou, como se quisesse fazer parar o tempo, como se quisesse
que nada mais houvesse na terra além daquele momento doloro­
so, doloroso e inefável, que talvez não voltasse nunca mais . . .

1939.
O regresso
Domingos Monteiro

- E VOSSEMECÊ A DAR-LHE!. ..
- É o que te digo, filha. Bonda a forma como ele te escreve.
Vem mais pobre do que foi e para te comer o resto . . .
O s olhos d a velha fuzilaram. Sentada n a arca, junto do fogo,
o seu rosto cavado de rugas tinha uma cor de marfim velho, em
que as labaredas punham, de vez em quando, um tom averme­
lhado. As mãos pousadas no regaço dedilhavam, maquinalmente,
o terço, e com a boca desdentada ia mastigando orações e profe­
rindo invectivas, misturando o seu fervor de crente e o antigo
rancor por aquela alma do diabo que ali aparecera um dia, só para
lhe estragar todos os projectos.
- Ave, Maria, cheia de graça! ... É o que eu te digo. Escusas
de contar com a minha ajuda . . . O Senhor é convosco . . . A leira,
ainda a deixei vender, só para me ver livre dele. Pensei que, com
o génio que tem . . . Bendita sois vós entre as mulheres . . . o matas­
sem por lá . . . Bendito é o fruto do vosso ventre . . . ou que as febres
o acabassem . . . Ámen! . . .
- Mãe! - Pôs-se d e pé, cheia d e cólera. Aquele ódio sem
medida fazia-lhe perder todo o respeito que lhe devia. - A mãe
fala como uma alma perdida. Ele é o meu homem, mãe! O pai da
minha filha . . .
296 VASCO G R A Ç A MOURA

Mas a velha não desarmava:


- Para ela, era bem melhor não o ter . . .
Eram agora duas mulheres iguais, e m frente uma d a outra,
com o rancor no coração e a boca a fervilhar de insultos.
- Cale-se!
- Não me faltava mais nada que tu me mandasses calar
aqui, na minha casa! Na minha, entendes? A tua, vendeste-a para
ele ir para as feiras beber e jogar o dinheiro nas tabernas.
- Isso são ditos, mãe . . . O Qyim nunca jogou . . . São falsida­
des de gente invejosa . . .
- Qyal nunca jogou! . . . Qyal são falsidades! . . . Qy e to diga
o Chico de Entre-Águas, que só de uma feita lhe ganhou cin­
co moedas . . . Qye to diga o Manuel do Eiro, que to veio trazer a
casa, perdido de bêbedo . . . Falsidades! Qye ele te deu o feitiço,
sei eu .1 . . .

- Cale-se, pelo amor d e Deus! Nem hoje que é Natal! Nem


hoje, que é o dia do perdão das faltas, a mãe é capaz de lhe per­
doar o ele ter-me querido . . . Qye é só disso que a mãe o pode
acusar . . . De mais nada. . .
A mãe i a falar, mas ela não a deixou, impetuosa:
- Cale-se! Cale-se! Ele pode chegar esta noite . . . Ele diz na
carta: «Talvez no Natal vá cear com vocês . . . » - a voz tornou-se
suplicante: - Ao menos por hoje, mãe . . .
Mas nada conseguia travar a velha. O seu ódio era mais forte
que a sua crença milenária, mais forte que a angústia que sentia
crescer no coração da filha.
- Então é só disso que eu o posso acusar? . . . Aparece por
aqui um maltês que não se sabe donde vem, que não tem onde
cair morto, que nem sabe o nome do pai e da mãe . . . a gente reco­
lhe-o em casa, dá-lhe trabalho . . . e a paga que nos dá é tirar-nos a
única filha que temos . . . Achas bem feito? . . . Só «isso»? E por cau­
sa de quem é que tu não foste professora? E por causa de quem
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 297

deixaste o Antoninho da Ramada, a quem estavas prometida há


cinco anos - um rapaz bom, rico e perfeito? - a voz dela tor­
nou-se cava e profunda, a voz trágica das maldições: - O teu
pai, filha, morreu de desgosto e de vergonha, por tua causa e por
causa dele . . . Qye tenham tantos trabalhos . . . - calou-se no meio
da praga, dominada por um escrúpulo, e prosseguiu em voz mais
baixa: - Lembras-te, filha, quando o teu pai lhe disse que não?
Lembras-te o que ele disse? . . . «Ü senhor, ou dá o seu consenti­
mento ou tem que passar pela vergonha de ter um neto em casa
que nem pai tem . . . » Nem sei como o teu pai se susteve! Ele, que
nunca teve uma lágrima - nem quando lhe deram as facadas na
feira do Cavalinho -, passou uma noite inteira a tremer e a cho­
rar. . . E oito dias depois teve o ataque . . . E em menos de dois me­
ses, levámo-lo a enterrar. . .
- O pai perdoou-nos antes de morrer, mãe . . . Ainda nos viu
casados. Ainda nos abençoou! . . .
- O teu pai era bom d e mais e não via outra coisa senão
a ti . . . Mas eu não posso . . .
Calaram-se durante u m longo espaço d e tempo. Uma voz
doce e fina de criança cortou o silêncio, pondo uma nota dourada
no ambiente pesado:
- E o pai trará-me a bonecra?
- Traz, sim, Rosinha ...
A criança sorriu . . . Tinha ouvido a discussão, alheia, mal se
apercebendo do sentido do que diziam, presa a um fio de sonho
que a envolvia como um raio de sol. Toda a sua alminha estava
concentrada na ideia de que o pai estava para chegar . . . Tudo ia
acabar e começar de novo . . . Nunca mais teria medo dos lobiso­
mens, nem das bruxas, nem da noite que rolava pela serra abaixo
como um pedregulho e que a deixava abafada de angústia e de
pavor. . . Nem do vento que andava perdido a uivar o seu desespe­
ro . . . Nem do trovão com que Nosso Senhor ralhava aos homens
298 V ASCO GRAÇA MOURA

pelos seus pecados. O pai era mais forte que o vento, que o tro­
vão e que a noite . . . Bastava que ele lhe tocasse para o seu medo se
fundir e entrar nela um sentimento de calma e de segurança in­
vencível. . .
- São horas d a ceia, Rosinha . . .
- E u espero pelo pai! . . .

Com a cara colada à telha de vidro, o homem via e escutava


avidamente. Sentia o corpo trespassado de frio, tiritante sob o
fato de cotim cosido e o capote de mescla esfarrapado. A neve caía
fina e insistente e ele limpava a telha com o côncavo da mão para
ver melhor. A casa era encostada ao monte, fazendo parede mes­
tra de um penedo enorme que se prolongava, um pouco, sobre o
telhado. Caiada de branco, com sua varanda alpendrada, parecia
nascer das entranhas da serra como uma flor exótica. Não tivera
coragem de bater. Lembrara-se daquela telha indiscreta, que des­
cobrira por acaso, ainda quando nem sequer tinha ideia de a na­
morar. Dali a espreitara uma noite e a vira despir, tirar o saiote e
desapertar o corpete . . . Depois disso nunca mais pudera sossegar.
Entrara nele, como uma ideia fixa, uma espécie de fome inextin­
guível. E o resto era o que a velha contara e que ele ouvira agora,
trémulo de angústia e de cólera, possuído dos sentimentos mais
contraditórios. E o resto, era a sua partida para África, para ten­
tar fortuna e o mais que ela não sabia: a sua luta corajosa, o seu
desejo de vencer e finalmente a sua derrota, dominado pela força
implacável do destino. Sujeitara-se a tudo, até a trabalhar nas es­
tradas ao lado nos negros, sob o sol impiedoso, e à tirania insu­
portável dos capatazes. Depois surgira o incidente - aquele inci­
dente sempre possível com a sua natureza orgulhosa. Ao insulto
As MAIS BELAS H ISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 299

respondera com o insulto, e à violência com a violência. Fora pre­


so e condenado, por uma justiça do sertão, que não cuida da ver­
dade, mas que obedece rigidamente a um critério rigoroso de dis­
ciplina. . . Mas assim mesmo, persistira até que as febres o tinham
atacado. E isso dera cabo dele. Toda a sua energia se diluíra, roí­
da por aquele calor de dentro, pior que o sol implacável. . . Criara
um ódio invencível aos desertos amarelos, às florestas verdes
e sombrias que, mais que o corpo, pareciam engolir a alma de um
homem . . .
Ainda deitado n o catre, trémulo d e arrepios e d e suores gela­
dos, só tinha um desejo: o de voltar. Viera-lhe uma saudade insu­
portável de tudo o que deixara, cheio de ambições e de esperança:
da mulher e da filha, dos ares lavados da serra, das leiras tranqui­
las, dos sulcos do arado onde saltita a levandisca e dos lentos e
calmos serões junto do fogo . . . - Voltar! - E logo que pudera
conseguir que o repatriassem, por esmola, não hesitara um se­
gundo . . .
A mulher não sabia de nada. Nunca tivera a coragem d e lhe
confessar a sua derrota - a ela, que confiava nele como em
Deus. Tinha a certeza que continuava a acreditar nele, convenci­
da que ele conseguiria dominar a vida como a dominara a ela.
E fora isso que o fizera hesitar no último momento, ali, à esprei­
ta, como um miserável, trémulo de frio e sob a neve indiferente
e gelada.
01ianto à velha, com o seu ódio, com o seu rancor inextin­
guível, essa, adivinhara tudo. Como ela iria exultar quando o vis­
se assim, como um vagabundo dos caminhos, esfarrapado e es­
quálido, trémulo de frio e de fome. E aquele riso silencioso da
boca desdentada, aquela malícia quase secular dos olhos, e as pa­
lavras cuspidas, mastigadas com um desprezo capaz de trespassar
300 V ASCO GRAÇA MOURA

os ossos e a alma! . . . Adivinhava-lhe o olhar triunfante para a


filha, aquele olhar de ódio satisfeito mais expressivo do que as
palavras: «Então que te dizia eu? . . . Aí o tens, ao teu homem! . . .
Ao teu rico homem! . . . »
E adivinhava a humilhação da mulher, a sua humilhação trá­
gica e silenciosa, filha do reconhecimento de que o seu homem
era um homem como os outros, capaz como os outros de ser do­
minado e vencido - um homem qualquer. . .
Estremeceu. Vinha-lhe agora u m desejo súbito de entrar, de
deitar as mãos ao pescoço da velha e de lho torcer até extinguir
para sempre aquela voz rancorosa, cujo som, mesmo em África,
o perseguia. Ainda se lembrava da despedida e das suas palavras
zombeteiras:
- Vai, homem, vai. . . Tu nasceste foi para andar pelos cami­
nhos. Tu és como o vento e fazes os mesmos estragos . . .
Aquilo era uma forma de lhe chamar vagabundo e d e lhe sig­
nificar o seu desprew. Ao mesmo tempo, fora uma praga que lhe
rogara.
Para ela, homem que se não curvasse de sol a sol sobre o cabo
da enxada, que não dissesse as mesmas palavras, que não repetisse
os mesmos actos, não era homem que valesse a pena . . .
Sentia que havia uma certa verdade nas palavras d a velha. Ti­
nha uma coisa lá dentro que não lhe consentia estar sempre no
mesmo sítio, e fazer sempre a mesma tarefa. Trabalhava dias se­
guidos como um moiro e, de repente, sentia a vontade irreprimí­
vel de se evadir, de deixar tudo, de ir para outro lugar. Punha-se
então a andar pelas feiras, muitas vezes sem ter que comprar nem
que vender, farto de repetição e de imobilidade, tentado pela sa­
borosa e infinita variedade da vida. . .
- Vês, filha, deixou a redra no meio ... Tem alma de cigano ...
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 301

A neve picava mais. Caía agora fo fa e densa, mais húmida,


trespassando-o todo até aos ossos e pondo-lhe um arrepio dolo­
roso na espinha.
Pelos interstícios das telhas, saía um fumozinho doce de le­
nha de azinho, de mistura com o cheiro do caldo e um aroma de
azeite novo e de salpicão. Sentiu uma contracção súbita no estô­
mago a lembrar-lhe que já não comia há vinte e quatro horas,
uma vontade quase aflita de se atafulhar com broa e tomar uma
barrigada daquele caldo oleoso e perfumado. Haveria, decerto,
também uma lasca de presunto e talvez - quem sabe? - uma
rabanadazinha rescendente de mel. . .
Limpou, d e novo, a telha cuidadosamente. O grupo conti­
nuava na mesma: a petiza no banquinho, a velha sentada na arca
junto do fogo e a mulher imóvel, com os olhos fitos na porta por
onde havia de chegar o seu homem.
Via agora tudo nitidamente, e até distinguia, ao fundo, por
cima da tulha do milho, o presépio iluminado com lamparinas de
azeite. Lá estava o Menino Jesus, com a carinha de loiça, sorri­
dente, estendido nas palhas, a vaquinha de barro com a língua de
fora e os três Reis Magos em fila, que a estrela de papel dourado
guiava lá do alto, com sua luz de sonho.
Tomou uma resolução:
- Oliero lá bem saber! . . . A velha que vá pro raio que a parta.
E ia descer disposto a bater à porta, compondo já uma atitu-
de arrogante que fizesse esquecer os seus andrajos e corrigisse
e vencesse a humilhação que o destino lhe impunha.
Começava já a escorregar pelas telhas quando as vozes de bai­
xo lhe chegaram mais fortes, numa altercação que se reacendia.
A voz da velha, estrídula, perfurava a noite como uma verruma:
- Faz o que quiseres, filha. Eu cá não espero mais por vaga­
bundos . . .
302 V ASCO GRAÇA MOURA

Mal ouviu o som da voz da mulher, trémula e abafada, e não


distinguiu a resposta.
- Pois sim . . . Pois sim . . . Ele há-de chegar em bom estado . . .
- a voz d a velha, exaltada, era agora u m guincho d e animal rai-
voso. - Vai-lhe mas é preparando as mantas e a botija pràs pés.
E desata os cordões à bolsa para lhe comprar um fato. Com os do
teu pai escusas de contar . . . Roupa que cobriu um homem honra­
do não serve para malandros . . .
Parecia que a velha o estava a ver e que o seu ódio adivinhava.
Não pôde conter a sua füria:
- Tu pagas-mas! Estupor! Vamos a ver quem ganha . . . Ra­
nhosa . . .
A voz d a mulher fê-lo hesitar u m segundo. As suas palavras
chegavam agora nítidas, precisas, carregadas de uma convicção
dolorosa, de um orgulho humilde e inabalável:
- Não, mãe! O Qiim não precisa das suas esmolas . . . nem
das minhas . . . Não é homem para voltar com as mãos a abanar . . .
Se fosse o Antoninho d a Ramada, esse que e u namorei cinco
anos e que deixei por causa dele, talvez. . . São ricos, mas em uma
trovoada lhes levando uma colheita, ficam mais miseráveis do que
os bichos da terra. Só sabem chorar e lastimar-se . . . Mas o Qiim
não é assim! É um homem. Ou volta como disse que havia de
voltar, ou nem eu, nem vossemecê, nem ninguém mais lhe põe
a vista em cima . . .
U m soluço abafou-lhe a s palavras. N o silêncio que s e seguiu,
só se ouvia o ciciar da neve e o crepitar da lenha.
A voz da criança ergueu-se, novamente, numa aprovação in­
directa ao que a mãe tinha dito.
- Mãe, eu sei que o pai me traz a bonecra. . .
Aquilo era mais forte d o que ele, mais forte que a sua fome,
que o seu frio, que a sua tristeza, e até que a sua cólera.
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 303

Com o ódio da velha, com o seu desprezo, com a sua zomba­


ria, ainda ele podia lutar. Mas contra aquela esperança, aquela
certeza inabalável, era-lhe impossível. Havia ali dois seres que o
amavam e que acreditavam nele. Não lhes podia destruir a sua
ilusão, pois destruir a ilusão dos que nos amam é pior do que
a morte.
Silencioso, o homem escorregou pelas telhas. Não tinha já
fome nem frio. Sentia no coração qualquer coisa que o impelia:
uma espécie de força invencível que dominava o seu cansaço . . .
E aos tropeções, começou a descer a serra, e perdeu-se nas
sombras da noite . . .
Um recado p ara o céu
Domingos Monteiro

QyANDO POR TODA A SERRA, ATÉ AO FUNDO DO VALE, se es­


palhou a notícia de que a velha Gertrudes do Soutelo estava pres­
tes a transpor os umbrais que a separavam, ou da glória divina ou
das penas eternas, um alvoroço sem limites percorreu as aldeias,
desde as mais próximas às mais remotas, pondo nas almas pertur­
badas um frémito desconhecido, que participava, ao mesmo tem­
po, de tristeza e de alegria, mas em que a nota dominante era a
de uma esperança inconfessável durante longo tempo alimentada.
Nunca a morte de alguém fora aguardada com tanta ansieda­
de, nem nunca, mesmo os que esperam do passamento de uma
tia velha, com fartos bens, melhoria de vida e realização de dese­
jos ocultos, ou os que almejam, com a colaboração do destino,
o cumprimento de uma sonhada vingança, tinham desejado o sim­
ples trânsito de uma alma deste mundo para o outro com tão
despropositada satisfação.
Isto o sabia a velha Gertrudes e, ao contrário do que possa
imaginar-se, não vira nisso nem ódio, nem mesmo desamor, mas
antes uma espécie de homenagem, grata ao seu coração enfraque­
cido, prestada por aqueles sobre quem a sua benéfica influência se
exercera durante tantos anos. Era, também, uma prova de con­
fiança que a enchia de legítimo orgulho, um orgulho a que não
306 VASCO GRAÇA MOURA

faltava uma pontinha de remorso pela dúvida que, à última hora,


se infiltrara na sua consciência de não ser capaz (nem digna, tal­
vez) de cumprir o que sempre implicitamente prometera, e aquilo
em que fora (disso estava ela certíssima) sempre implicitamente
acreditada.
Mas na sua alma simples e directa, os sentimentos nunca se
enleavam em complicados enrodilhamentos. E assim, ela que
sempre pressentira o que estava para vir - as tempestades e o
bom tempo, as alegrias e as desgraças -, não hesitou, segura
como estava de que era esse o momento, em mandar prevenir
aqueles para quem contraíra (embora sem saber ao certo como
a havia de saldar) essa dívida de esperança.
Por isso, nessa antevéspera do Natal, quando ao luzir da es­
trela de alva o pastor de Mafómedes lhe veio trazer o leite coa­
lhado de que quase exclusivamente se alimentava, ela disse-lhe
em voz sumida:
- Manel, tens que te botar ao caminho . . .
- Ao quê, senhora Gertrudes?
A velha repetiu:
- Manel, tens que te botar ao caminho . . . Vai, e diz-lhes que
é chegada a minha hora . . .
O pastor hesitou u m momento:
- E o rebanho, senhora?
Mais do que ouvir, a velha adivinhou a objecção:
- Qye as tuas ovelhas não te dêem cuidado. Não vejo olhos
a luzir deste lado do monte. Os lobos estão todos do outro lado.
E nenhuma se tresmalha . . . Podes ir à confiança.
- Vossemecê manda. - A afirmação da velha criara nele
uma certeza inabalável. - Vossemecê manda . . .
I a já a partir, quando a velha Gertrudes o tornou a chamar:
- Manel. . .
As MAIS BELAS H ISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 307

E começou um nunca-mais-acabar de recomendações: «Diz


a este e mais àquele, e a esta e mais àquela. . . »
O pastor ia repetindo e fixando os nomes.
- E não te esqueças - aqui ela hesitou um momento -,
e não te esqueças de prevenir também o corcundinha das Lajes
- levada por um escrúpulo, acrescentou: - A esse talvez não
valesse a pena, mas Deus Nosso Senhor é todo-poderoso.
- E vossemecê não se esquece de mim? - inquiriu o pastor,
timidamente.
A velha percebeu-o pelo mover dos lábios:
- Não, está descansado.
Qtando ele ia a sair, fez-lhe uma última recomendação:
- Manel, espevita o luzeiro ao Menino Jesus.
E j á sozinha, deitada no fundo da enxerga, pôs-se a fixar,
embevecida, a imagem sorridente, com um enlevamento místico
em que punha toda a confiança que os outros depositavam nela.

A fama da Gertrudes do Soutelo, tão antiga que se transmiti­


ra de pais a filhos, nascera, como todas as famas merecidas, de
um facto muito simples. Fora depois avultando com o tempo, ao
sabor da fantasia de cada um, e por via desse desejo, inato no co­
ração dos homens, de tornarem maior o que vêem ou apercebem,
para eles próprios se engrandecerem. Não que ela não concorres­
se para isso com novos actos e prodígios, mas principalmente
porque se tornara, com o correr dos tempos, um motivo de orgu­
lho colectivo, sem que perdesse, contudo, a modéstia e a humil­
dade com que Deus a dotara. E isso não só salvara a sua alma do
pecado negro da soberba, como a ela própria - o que era mais
importante - do apodo pejorativo e perigoso de feiticeira.
De facto, a Gertrudes do Soutelo ascendera às culminâncias
de oráculo das aldeias do Vale Perdido, sem que para isso tivesse
308 V ASCO GRAÇA MOURA

de percorrer os ínvios caminhos da sombra em noites de Lua nova,


à busca de ervas más ou de terra do cemitério, sem sacrificar galos
pretos e sem ter de pedir roupas de dentro emprestadas para as
defumar com fumo de raiz de mentastro seco, e assim obrar afas­
tamentos e reconciliações.
E como oráculo merecia que a tratassem, embora lhe faltasse
a linguagem dúbia e sibilina que tradicionalmente impõe e carac­
teriza os oráculos. Não; nela tudo era directo e concreto, desde as
palavras às acções.
Fiandeira e rendeira de seu ofício, o que desde logo chamara
a atenção - simultaneamente fácil e difícil de cativar dos cam­
poneses -, fora a sua faculdade de prever o tempo, o que, sem
saber de pressões e temperaturas, e muito menos de ciclones e
anticiclones, ela fazia com uma margem de erro muito menor,
e uma precisão muito maior, que os mais abalizados observatórios
meteorológicos, em cujas previsões (aqui entre nós, que ninguém
nos ouve) ninguém pode, em boa verdade, confiar . . .
S e a Gertrudes d o Soutelo dizia que i a chover, certo era que
a chuva cairia, fecundando as várzeas, ou arrastando o pouco
de terra arável que o Destino parcamente concedia aos homens da
serra para o sorvedouro inútil dos rios e do mar. E, se no meio
das tempestades, prenunciava o Sol, ele logo aparecia, como se as
suas mãos dadivosas espalhassem, do alto do seu tugúrio, o mel
dourado da luz criadora, pelos recôncavos mais sombrios do vale.
Daí a adivinhar o tempo que fazia nas almas não fora mais
que um pequeno esforço da sua consciência receptiva. Ninguém
como ela para ver, sob a máscara dos rostos mais fechados, as
mágoas fundas do coração, tal como um vedor pressente, nos ter­
renos mais áridos e secos, as correntes húmidas que serpeiam nos
meandros obscuros da terra.
Mas se adivinhar e pressentir já é prodígio que só a raros é
concedido, mais alto é o poder de remediar e consolar, que esse
só alguém o pode ter por delegação e graça de Deus.
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 309

Esse poder tinha-o a Gertrudes do Soutelo em tão alto grau


que só a humildade e o seu fervor religioso a salvavam da animo­
sidade do clero, que - fora ela outra - nela teria visto uma
competidora em matéria de confissões. E nisso entrava também
o seu senso prático de camponesa, que, sem conhecer nada do
mundo, lhe adivinhava as artimanhas e perigos.
Se algum ou alguma insistia no relato de factos que consti­
tuíssem substância de pecado evidente, ela própria os orientava
para a via canónica recusando-se a ouvir e aconselhando:
- Isso já não é comigo. Vá ter com o senhor padre Altino,
que só ele é que a pode confessar e absolver.
Embora as suas mãos acalmassem as dores e os ataques de
nervos, e muitos nela fossem procurar remédio, mais para as ma­
leitas do corpo do que para os padecimentos da alma, sempre se
recusara a receitar ervas e mezinhas, de que, aliás, se dizia que co­
nhecia, como ninguém, as virtudes e os efeitos.
- Vá ao doutor das Fragas, menina, que é de grande saber
e entendimento. É a quem eu vou - e aqui mentia ela, porque
nunca estivera doente - quando me aperta o reumático.
Assim se livrara também, para todo o sempre, da fama de cu­
randeira.
- Eu não sou mais - afirmava ela muitas vezes - que uma
caixa de correio, onde vossemecês deitam as cartas para Deus
Nosso Senhor. O mais que posso é recomendar-vos nas minhas
orações.
E, de facto, com um escrúpulo que não se desmentia, nunca
deixava de rezar por aqueles que a procuravam, relatando, com
todos os pormenores, os males e tristezas que os afligiam, e ro­
gando a Deus, em orações improvisadas, com a crença funda de
que Ele a ouviria com atenção particular (e este era o seu único
e inconsciente orgulho), remédio e consolação.
310 VASCO GRAÇA MOURA

Pura como era - nunca conhecera homens, nem em sua


longa vida alguém tivera coragem de lhos atribuir -, gozava da
admiração que os camponeses, embora ironicamente, têm sempre
por aqueles que conseguem passar com os pés incólumes sobre as
brasas vermelhas do pecado da carne. Isso lhe dava uma auréola
de santidade, tão certo era para eles - com o seu sentido directo
da vida e dos seus problemas - que só um santo se pode livrar
dessas humanas e saborosas tentações.
Também nunca aceitava dinheiro; quando muito, pequenas
oferendas para o seu vestuário e mantimento, que de alguma coi­
sa há-de viver uma pobre de Cristo, numa época em que fiar li­
nho ou lã à maneira antiga, ou fazer renda para camisas de esto­
pa, não dá para mandar cantar um cego.
Durante dezenas de anos fora assim uma espécie de recurso
das almas simples das aldeias do Vale Perdido, e uma convicção
se fora estabelecendo - convicção que ela, aliás, encorajara e de
certa maneira suscitara - de que, quando morresse e pudesse,
de viva voz e directamente, expor a Deus Nosso Senhor os pedi­
dos e os desejos de mais difícil satisfação, Deus não lhe diria que
não, e uma onda de milagres rolaria por sobre todo o vale, levan­
do a alegria e a saúde aos corpos sofredores e às almas aflitas.
- Não é pedido que eu possa fazer agora - dizia ela quando
alguém solicitava o que lhe parecia difícil de satisfazer sem directa
exposição - mas depois - e afirmava-o convicta, dado que
nada é impossível para o poder e misericórdia de Deus -, quando
chegar a minha hora, tu tornas a dizer-me o que te aflige e eu
levo o teu recado para o Céu . . .
- E s e vossemecê morre sem eu saber?
- À fé de quem sou, que tal não sucederá.
A velha Gertrudes cumpria agora o que prometera, e como
eram muitos aqueles a quem só um milagre podia livrar de anti­
gas aflições, a notícia de que ela ia morrer - e de que ninguém
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 311

duvidava, posto que ela o afirmava - tinha enchido aquelas


almas perturbadas de um frémito desconhecido que participava
ao mesmo tempo de tristeza e de alegria, mas em que a nota do­
minante era uma esperança inconfessável, durante longo tempo
alimentada.
Do fundo da enxerga, com olhos que transpunham as pare­
des do casebre, a Gertrudes do Soutelo via-os subir a serra, em­
brulhados nos capotes e nos xailes, ágeis e friorentos, debruando
o silêncio da tarde que caía, com uma fímbria de palavras lentas,
mais pensadas que proferidas, em que cada um repetia para si
mesmo - hesitante, no último momento, na escolha dos ter­
mos - o recado que tinha para dar.
Um por um, ela ia dizendo os nomes, certa que ninguém dei­
xaria de comparecer àquela entrevista final, solene e definitiva.
Viriam todos, de certeza, e nem sequer faltaria o cego das Este­
vas, o corcundinha das Lajes, e a Ermelinda do Vale das Casas,
paralítica desde criança, e que o pai, velho mas robusto, traria ao
colo, amorosamente, com o coração a latir, não de cansaço, mas
ao ritmo de uma velha e teimosa esperança. Desses, sabia ela bem
o que tinham para lhe pedir, mas aí parava a sua memória. Dos
outros, dos doentes da alma, dos aflitos das penas do coração, dos
que ambicionavam e desejavam para além daquilo que a vida lhes
podia dar, embora lhe tivessem repetido muitas vezes suas quei­
xas e desejos, não se lembrava ela de uma palavra, como se uma
esponja negra tivesse apagado tudo com a sua tinta de esqueci­
mento. E isso a afligia tanto mais quanto era certo que se come­
çava a sentir indigna da tarefa que se propusera, e que aquele pa­
pel de intermediária entre os homens e Deus lhe parecia agora
um terrível sacrilégio e uma forma de orgulho maligno, desses
que só se pagam com as penas eternas.
312 VASCO G RAÇA MOURA

Mas esse receio tinha sido apenas um sobressalto que não re­
sistira muito ao sorriso envolvente do Menino Jesus, em que fita­
va os olhos suplicantes, e que, do alto da sua peanha, a fitava
também para lhe inspirar coragem e confiança. E fora aquele
olhar divino que suscitara nela uma ideia que pusera fim a todos
os seus escrúpulos e a enchera daquela calma sobrenatural que
antecede a morte dos sábios e dos justos . . .
Logo d e manhã, naquela véspera d o Natal, o pastor viera,
como sempre, trazer-lhe o leite, que ela já não bebera, e dar-lhe
conta de que cumprira o seu mandato.
Como era seu costume, depois que ela caíra de cama, deitou
um braçado de vides secas na lareira, atiçou as brasas, encheu de
água fresca a canequinha de barro negro e pô-la sobre o banco
junto da enxerga, ao alcance da mão dela.
- Disse-lhes para virem hoje à boquinha da noite . . . - e
com uma certa hesitação, enquanto volteava o gorro entre as
mãos, acrescentou: - O pior é se vossemecê morre antes disso . . .
Ela fez-lhe repetir a frase, e ele gritou:
- O pior é se vossemecê morre antes disso . . .
Ela sorriu com a boca desdentada:
- Não morro, Manel. . . Só morro depois da missa do Galo
e confessada e ungida. . .
Tranquilizado, o pastor i a transpor a porta quando ela reco­
mendou:
- E quero-te aqui, Manel, para só os deixares entrar um
por um.

Tudo se passou como ela desejara, sem atropelos nem preci­


pitações. Um respeito sagrado impedia qualquer palavra mais alta
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTIJGUESAS DE NATAL 313

e o pastor de Mafómedes, hirto, velava pela boa ordem introdu­


zindo-os um a um e guardando a porta da casa como um arcanjo
a entrada do Céu.
Uma neve fina, que não ocultava as estrelas, começara a cair,
mas alguma coisa ardia dentro dos corpos enregelados que os não
deixava ter frio. Mais que uma esperança, era uma sensação de
convívio longamente desejado, com alguma coisa que estava para
além do entendimento deles, e que, pela força do seu mistério,
lhes podia valer. Deus estava ali perto. E a Presença Divina, com
o seu sabor de Eternidade, fizera-lhes perder toda a noção de
tempo. Seriam capazes de ficar ali para sempre, sem uma queixa
nem um gemido, até se transformarem em estátuas de gelo.
O primeiro a entrar foi o cego das Estevas.
- Senhora - disse ele -, bem sabeis ao que venho . . . - e
caiu de joelhos.
- Levanta-te - murmurou ela. - Eu não sou nenhuma
santa.
Trôpego, agarrado ao cajado, o cego ergueu-se como pôde
e suplicou:
- Diga a Deus que lhe peço que me dê uma hora só de luz,
uma só que seja, para tornar a ver esta serra em que fui criado.
Depois que me leve, se for da sua vontade.
Calou-se, à espera de uma resposta.
- Vai em paz, Joaquim, eu Lhe darei o teu recado.
Entrou depois a Ermelinda do Vale das Casas ao colo do pai.
- Gertrudes - gemeu o velho -, somos da mesma criação,
e bem sabes que sou eu o culpado do que lhe sucedeu. Fui eu,
com o vinho, que a deixei cair do muro das Vessadas . . . Qie Deus
me leve as pernas e os braços mas que dê a esta desgraçadinha
a graça do andar.
Um soluço embargou-lhe a voz.
314 VASCO GRAÇA MOURA

- Podes ir, homem, e confia na misericórdia do Senhor.


Aquela audiência extraordinária prolongou-se durante horas.
Um a um, todos foram entrando e formulando os seus pedidos.
Este queria saber o nome do ladrão que lhe tinha roubado o di­
nheiro da junta de bois, que escondera debaixo de uma pedra.
Aquele pretendia ganhar a demanda das águas, perdida havia já
muitos anos. Uma mulher viera suplicar o regresso do filho, mor­
to no Brasil . . . E assim por diante.
Todos, com seus desejos impossíveis, lá se iam embora, re­
confortados, já não com uma esperança, mas com uma certeza
inabalável que nem os factos podiam desmentir.
- Chegou a minha vez, senhora - disse o pastor de Mafó­
medes, entrando com a friagem da noite e fechando a porta atrás
de si.
Lentamente, como quem meditou durante muito tempo, deu
também o seu recado para o Céu:
- Eu só queria . . . Eu só queria que Deus Nosso Senhor me
livrasse da vida militar . . .
E ficou-se de pé, solene, aguardando a s ordens supremas que
certamente a velha teria para lhe dar:
- Está bem, Manel. Está bem . . . Qye Deus te pague. Agora
vai, e pede ao senhor padre Altivo que me venha ungir e con­
fessar.
A velha ficou só. Um silêncio, como o do começo do mundo,
encheu todo o casebre.
Uma candeia de azeite alumiava vagamente. Na lareira, duas
brasas, entre as cinzas, brilhavam como dois olhos de gato .
A imagem do Menino Jesus, que os olhos da velha Gertrudes
iam chamando avidamente para junto dela, enchia tudo com
a sua presença.
No meio do silêncio, a voz da velha começou a ouvir-se, pri­
meiro em tom de reza murmurada, depois mais alto, cada vez
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 315

mais alto, tanto quanto a sua fraqueza de moribunda lho per­


mitia:
- Meu Menino Jesus, tem piedade de mim! Perdoa a esta
velha tonta e simulada . . . Perdoa-lhe, que Tu sabes bem, Tu a
quem trouxe sempre no meu çoração, que só lhes menti para os
não desenganar . . . Só Tu podes livrar a minha alma do carrego
deste pecado, e valer-me nesta aflição . . . Só Tu, meu Menino
Jesus!
Calou-se durante uns minutos, e, depois, numa voz natural,
como quem fala a uma criança entregue aos seus cuidados, inter­
rogou:
- Fizeste o que te pedi? . . . Fizeste? . . . Tomaste bem tento no
que eles queriam? . . . - como quem não duvida da resposta, pros­
seguiu: - Bom Menino que Tu és . . . Eu estou surda como uma
porta e não ouvi nada do que eles disseram; mas, é o mesmo: Tu
ouviste - depois, caindo em si, acrescentou dolorosamente: -
Foi Teu Pai que quis castigar o meu orgulho. Foi Ele quem me
ensurdeceu para me mostrar que eu era indigna de Lhe falar nas
desgraças dos homens . . .
U m renovo d e confiança tomou-a.
- Mas Tu podes falar-Lhe, Tu que sempre sofreste com os
seus erros e com as suas tristezas, e que sempre me acompanhaste
e protegeste. Ah, eles não perdem com a troca! . . . E és Tu quem
vai levar o recado deles para o Céu . . . Faz-me isso, meu Menino.
Faz-me isso, pelo muito que sempre Te quis . . .
Calou-se, esgotada.
Um som de sinos vibrantes, que chamava os fiéis para a missa
do Galo e anunciava a vinda próxima do Redentor, perfurou
a noite em todos os sentidos. E, como por milagre, um repique
mais alto penetrou nos ouvidos da velha como uma resposta divina.
316 VASCO GRAÇA MOURA

Os olhos dela encheram-se de alegria. A Morte podia vir


agora . . . agora que tinha a certeza de que ia cumprir, embora por
delegação, a promessa que fizera.
Extática e feliz, ficou à espera da Morte, como quem espera
uma amiga.
Natal
Miguel Torga

DE SACOLA E BORDÃO, O VELHO GARRINCHAS FAZIA os pos­


síveis por se aproximar da terra. A necessidade levara-o longe
demais. Pedir é um triste ofício , e pedir em Lourosa, pior.
Ninguém dá nada. Tenha paciência, Deus o favoreça, hoje não
pode ser - e beba um desgraçado água dos ribeiros e coma pe­
dras! Por isso, que remédio senão alargar os horizontes, e es­
tender a mão à caridade de gente desconhecida, que ao menos
se envergonhasse de negar uma côdea a um homem a meio do
padre-nosso. Sim, rezava quando batia a qualquer porta. Gos­
tavam . . . Lá se tinha fé na oração, isso era outra conversa. As
boas acções é que nos salvam. Não se entra no céu com ladai­
nhas, tirassem daí o sentido. A coisa fia mais fino! Mas, en­
fim . . . Segue-se que só dando ao canelo por muito largo conse­
guia viver.
E ali vinha de mais uma dessas romarias, bem escusadas se o
mundo fosse doutra maneira. Muito embora trouxesse dez réis
no bolso e o bornal cheio, o certo é que já lhe custava arrastar as
pernas. Derreadinho! Podia, realmente, ter ficado em Loivos.
Dormia, e no dia seguinte, de manhãzinha, punha-se a caminho.
Mas quê! Metera-se-lhe em cabeça consoar à manjedoira nati­
va. . . E a verdade é que nem casa nem família o esperavam. Todo
318 VASCO GRAÇA MOURA

o calor possível seria o do forno do povo, permanentemente es­


cancarado à pobreza. Em todo o caso sempre era passar a noite
santa debaixo de telhas conhecidas, na modorra dum borralho
de estevas e giestas familiares, a respirar o perfume a pão fresco
da última cozedura . . . Essa regalia ao menos dava-a Lourosa aos
desamparados. Encher-lhes a barriga, não. Agora albergar o cor­
po e matar o sono naquele santuário colectivo da fome, podiam.
O problema estava em chegar lá. O raio da serra nunca mais aca­
bava, e sentia-se cansado. Setenta e cinco anos, parecendo que
não, é um grande carrego. Ainda por cima atrasara-se na jornada
em Feitais. Dera uma volta ao lugarejo, as bichas pegaram, a coi­
sa começou a render, e esqueceu-se das horas. Qiando foi a dar
conta, passava das quatro. E, como anoitecia cedo, não havia ou­
tro remédio senão ir agora a mata-cavalos, a correr contra o tem­
po e contra a idade, com o coração a refilar. Aflito, batia-lhe na
taipa do peito, a pedir misericórdia. Tivesse paciência. O remédio
era andar para diante. E o pior de tudo é que começava a nevar!
Pela amostra, parecia coisa ligeira. Mas vamos ao caso que pegas­
se a valer? Bem, um pobre já está acostumado a quantas tropelias
a sorte quer. Ele então, se fosse a queixar-se! Cada desconsidera­
ção do destino! Valia-lhe o bom feitio. Viesse o que viesse, rece­
bia tudo com a mesma cara. Aborrecer-se para quê?! Não lucrava
nada! Chamavam-lhe filósofo . . . Areias, queriam dizer. Importa­
va-lhe lá.
E caía, o algodão em rama! Caía, sim senhor! Bonito! Feliz­
mente que a Senhora dos Prazeres ficava perto. Se a brincadeira
continuasse, olha, dormia no cabido! O que é, sendo assim, adeus
noite de Natal em Lourosa . . .
Apressou mais o passo, fez ouvidos d e mercador à fadiga,
e foi rompendo a chuva de pétalas. Rico panorama!
Com patorras de elefante e branco como um moleiro, ao cabo
de meia hora de caminho chegou ao adro da ermida. A volta
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 319

não se enxergava um palmo sequer de chão descoberto. Caiados,


os penedos lembravam penitentes.
Não havia que ver: nem pensar noutro pouso. E dar graças!
Entrou no alpendre, encostou o pau à parede, arreou o alfor­
ge, sacudiu-se, e só então reparou que a porta da capela estava
apenas encostada. Ou fora esquecimento, ou alguma alma peca­
dora forçara a fechadura.
Vá lá! Do mal o menos. Em caso de necessidade, podia en­
trar e abrigar-se dentro. Assunto a resolver na ocasião devida . . .
Para já, a fogueira que i a fazer tinha de ser c á fora. O diabo era
arranjar lenha.
Saiu, apanhou um braçado de urgueiras, voltou, e tentou
acendê-las. Mas estavam verdes e húmidas, e o lume, depois dum
clarão animador, apagou-se. Recomeçou três vezes, e três vezes
o mesmo insucesso. Mau! Gastar os fósforos todos, é que não.
Num começo de angústia, porque o ar da montanha tolhia
e começava a escurecer, lembrou-se de ir à sacristia ver se encontra­
va um bocado de papel.
Descobriu, realmente, um jornal a forrar um gavetão, e já
mais sossegado, e também agradecido ao Céu por aquela ajuda,
olhou o altar.
Qyase invisível na penumbra, com o divino filho ao colo,
a Mãe de Deus parecia sorrir-lhe.
- Boas festas! - desejou-lhe então, a sorrir também.
Contente daquela palavra que lhe saíra da boca sem saber
como, voltou-se e deu com o andor da procissão arrumado a um
canto. E teve outra ideia. Era um abuso, evidentemente, mas pa­
ciência. Lá morrer de frio, isso vírgula! Ia escavacar o arcanho.
Olarila! Na altura da romaria que arranjassem um novo.
Daí a pouco, envolvido pela negrura da noite, o coberto, não
desfazendo, desafiava qualquer lareira afortunada. A madeira seca
320 VASCO GRAÇA MOURA

do palanquim ardia que regalava; só de se cheirar o naco de pre­


sunto que recebera em Carvas crescia água na boca; que mais
faltava?
Enxuto e quente, o Garrinchas dispôs-se então a cear. Tirou
a navalha do bolso, cortou um pedaço de broa e uma fatia de fe­
bra, e sentou-se. Mas antes da primeira bocada a alma deu-lhe
um rebate e, por descargo de consciência, ergueu-se e chegou-se
à entrada da capela. O clarão do lume batia em cheio na talha
dourada e enchia depois a casa toda.
- É servida?
A Santa pareceu sorrir-lhe outra vez, e o menino também.
E o Garrinchas, diante daquele acolhimento cada vez mais
cordial, não esteve com meias-medidas: entrou, dirigiu-se ao al­
tar, pegou na imagem e trouxe-a para junto da fogueira.
- Consoamos aqui os três - disse, com a pureza e a ironia
dum patriarca. - A Senhora faz de quem é; o pequeno a mesma
coisa; e eu, embora indigno, faço de São José.
Noite de Natal
Manuel da Fonseca

Os TRÊS SOLDADOS ENTRARAM DE ROLDÃO, GRITANDO. A ra­


pariga pulou na cadeira. Estava quase a cair de sono. Tinha os
olhos fechados e a cabeça pendia-lhe sobre a criança adormecida,
enrolada no xaile esburacado. De sumida, a luz do candeeiro a
petróleo deixava a noite afogar a taberna, quando eles entraram
e foram, cambaleando, esbarrar contra o balcão.
- Venha a bela da vinhaça!
Abriu os olhos. Por cima do balcão, três cabeças de lábios
descerrados, olhos nevoentas de vinho, debruçavam-se sobre ela.
Instintivamente, estendeu a mão e espevitou a luz; as sombras re­
cuaram um pouco para os cantos. E a criança, sobressaltada,
rompeu num grande choro.
Com os olhos orlados de rugas, ela observou de novo o rosto
dos soldados.
- Qye maneira de entrar, raios os partam!
- Qyeremos vinho e o mais são histórias.
Passou os dedos pelos olhos que lhe ardiam de sono. Qye
horas seriam? Bocejou.
- Três copos de tinto?
- Não - disse o mais alto dos soldados. - Uma garrafa de
litro!
322 VASCO GRAÇA MOURA

Levantou-se. Foi pôr o filho, que não deixava de chorar, so­


bre a pele de carneiro, dentro de um caixote assente em duas tá­
buas com a forma de meias-luas. Deu-lhe um safanão, e o caixote
ficou a baloiçar com a criança chorando de braços esticados ao lado
da cabeça.
Ao soerguer o busto franzino, a rapariga sentiu um arrepio
percorrer-lhe o corpo.

Acorda, Maria, acorda,


acorda, Mariazinha . . .

- cantavam dois soldados que s e haviam afastado d o balcão. Ba­


tiam as mãos grossas num estralejar cadenciado e saltavam, ati­
rando com os pés contra o chão de terra negra da taberna.
- Vejam se param com isso, senão ponho-os na rua. Ouvi­
ram? Parem lá com isso!
Um dos soldados abandonou a dança. Tirou o boné e veio
colocá-lo sobre a tábua escura e peganhenta do balcão:
- Não te zangues, Maria.
- Ponho-os fora, já disse - repetiu a rapariga, com voz fra-
ca. - Vocês bebem e saem, que eu tenho que fechar a venda.
- Deixa-te disso. Tu precisas do nosso dinheiro, e a gente
paga como os outros.
A pequena estatura do soldado desaparecia dentro do enorme
capote que lhe chegava até aos pés. A gola, erguida, passava-lhe
ao lado das orelhas, muito despegadas e vermelhas de frio. Tinha
o crânio todo rapado, de um branco farinhento, e no rosto ma­
gro, moreno, os olhos pequeninos sorriam inquietos:
- Hoje é noite de festa, não te zangues. A gente tem andan­
do para aí a beber e a cantar, caramba! . . . Eh, camaradas, vai
outra?
As MAIS BELAS H ISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 323

Agarrando-se ao rebordo do balcão, o soldado afastou o tron­


co. De súbito, com o olhar vago, como se todos os pensamentos
o tivessem levado para muito longe, cantou vagarosamente:

Qyem são os três cavaleiros


que fazem sombra no mar? ...

- Pára com isso - gritou a rapariga. - Vocês já estão bê­


bedos; nem devia tê-los deixado entrar. Bebam e saiam, que eu
não quero demoras, já disse!
O sorriso voltou aos olhos do soldado:
- Deixa lá. A gente está um bocado tocados, é verdade. Mas
quem bebe num dia destes não é o que se pode chamar um bêbedo.
Encolheu os ombros; a cabeça rapada quase se sumiu dentro
do capote:
- De resto, por mais que a gente queira, como há-de um
soldado fazer a festa de outro modo?
Maria curvou-se para a criança que chorava ainda, e deu ou­
tro safanão ao caixote. Ergueu-se, compondo o cabelo que lhe
caíra sobre os olhos. A curva das costas, muito magras, aumenta­
va ainda mais o seu ar de submissão e de cansaço:
- Vocês, aqui, não cantam. Vocês podem muito bem beber
e falar sem fazer tanto barulho; isto já não são horas para can­
torias.
O soldado mais alto dobrou o tronco, atirando uma palmada
ao balcão:
- Vinhaça! - gritou, estonteado. - Basta de conversa: é
a tua vez, Chico Valinhas. Estás a fazer-te esquecido, mas não
pega. É ou não a vez dele, compadre Charneco?
Charneco, que até ali se conservara taciturno, de cabeça en­
terrada entre os ombros, olhos fitos no caixote onde a criança
324 VASCO GRAÇA MOURA

chorava, voltou-se. Parecia despertar de um pensamento doloro­


so. Agarrou o soldado alto pelo braço:
- Eu devia ter-lhe dado logo - disse, com voz vagarosa
e tensa. - Ele estava mesmo a pedir um murro que o afocinhasse
no chão. Mas tu agarraste-me, Luís Palmito . . . Tu não me devias
ter agarrado. É a última vez que fazes isso.
Do outro lado, Chico Valinhas repontava:
- Eu a fazer-me esquecido? Eu? Para que imaginas tu que
eu quero o dinheiro, Luís Palmito?
Levantou a aba do enorme capote, tirou do bolso das calças
umas tantas moedas, contou-as, uma por uma, e bateu com elas
sobre o balcão:
- Dezasseis mil e duzentos! Eh, Maria, olha: tudo para
vinho! Mas, se tu quisesses era para outra coisa . . . Pronto, não
te aborreças; temos tempo para falar no caso. Dá cá uma garrafa
de litro. E três copos.
Os soldados sentaram-se junto da mesa gretada e suja que
ocupava quase inteiramente um dos lados da taberna. Maria veio
encher os copos, e poisou a garrafa. Voltou a aproximar-se do
caixote. Lamuriando baixinho uma cantilena sem palavras, tenta­
va calar o filho.
Palmito, de cabeça deitada para trás, esvaziou o copo de um
trago. Estremeceu, voltou a enchê-lo. Perto, o rosto largo e ossu­
do do Charneca adoçava-se como se uma névoa o cobrisse. Fita­
va vagamente:
- Nem sabes o desgosto que me deste com aquilo. Tu nun­
ca mais me agarras, Luís Palmito. Cada um é livre para fazer o
que lhe der na real gana. É assim mesmo. Qyando eu quiser an­
dar à porrada, nem tu nem ninguém me pode impedir.
Pegou no copo, sempre com o mesmo olhar velado:
- Cada um é livre, faz o que quer . . .
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PO RTUGUESAS DE NATAL 325

Envolvida nos trapos, a criança chorava, num tom esganiça­


do, cansada. A rapariga abanava o caixote compassadamente.
- O teu moço não se cala, Maria - disse Valinhas, de lá­
bios repuxados num largo sorriso. - Parece um chibo quando
lhe põem o barbilho. Dá de mamar ao moço, rapariga!
- Sei o que queres . . . mas não vês - respondeu Maria, sem
o olhar, curvada para o filho. - Nem ele tem vontade de mamar;
anda é doente da barriga. Já lhe fiz uma data de coisas, e não lhe
passa. Se calhar, tenho de ir com ele ao médico. Não o dou calado;
chora toda a noite e todo o dia. Mas vocês, agora, é que tiveram a
culpa. Ele estava a dormir sossegadamente, e vocês acordaram-no
com aquele despropósito.
- Qial barriga! Tem é fome. Dá-lhe de mamar, Maria. Tira
isso para fora se queres vê-lo calado.
E Valinhas riu-se, com o olhar rebrilhante e inquieto:
- Até eu me calava, caramba!
Lá fora ouviam-se ranchos que passavam cantando. Eram as
loas ao Deus Menino, na noite de Natal. O povo cantava pelas
vielas, pelas ruas, pelos largos. Depois, calava-se, à espera da esmo­
la, sob o céu frio, onde as estrelas tremiam, distantes. Os grupos de
soldados conheciam-se mesmo sem os ver; bastava ouvi-los. Can­
tavam coisas diferentes. Esqueciam o Deus Menino e a sua voz fa­
lava de saudade. Saudade de outra vida que levavam lá na terra,
saudade da família. Nesse momento, uma toada entrava na taber­
na, chorava de queixa em qualquer rua, vinha crescendo, unida:

Oh, Beja, terrível Beja,


terra da minha desgraça . . .

E m volta d a mesa, o s soldados emudeceram. A mão d e Luís


Palmito, que levava o copo à boca, parou, desceu, bateu no tam­
po negro.
326 V ASCO GRAÇA MOURA

Eram três horas da tarde,


quando cá assentei praça . . .

Luís Palmito ergueu-se:


- Camaradas! . . .
Olhou para os dois soldados. Mas estes tinham as cabeças
tombadas, só se lhes via o boné. Voltou-se:
- Maria! Eu para aqui a rir e, a esta hora, a minha velhota
a chorar, lá no monte!. . .
Encostado aos cotovelos, Charneca inclinara o tronco sobre
a mesa. O copo vazio sumia-se-lhe entre os dedos grossos:
- Eu era livre, fazia o que me dava na gana. . . E agora? Ago­
ra, lá no quartel, todos mandam, um homem é como um trapo.
Qye sou eu desde que vim para Beja? Nada. Qi.e é que eu tenho
que ver com a tropa, Palmito? Fui eu que quis vir? Não, senhor.
Eu nunca quis vir, eu nunca quis esta vida. Eu era ceifeiro, quan­
do era na ceifa, cavador quando era preciso. Ganhava a vida. Es­
tão a ouvir? Eu ganhava a minha vida! Pegava numa junta de bois
e abria uma folha que ninguém tinha nada a dizer. Regos como
linhas, de ponta a ponta! Eu cantava aos bois e eles, mansos,
a passo quieto, abrindo o rego. Dava gosto.
A criança adormecera, cansada de chorar. Maria aconchegou
melhor o xaile em volta do peito. Fora, a canção quase se não ou­
via na distância:

Beja da minha desgraça! . . .

- A pobre não queria que eu a deixasse - recomeçou o Pal­


mito. - Mas teve que ser . . .
Tinha-se sentado, e olhava para a garrafa, sem s e importar
que o ouvissem ou não:
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 327

- Teve que ser. A gente somos oito irmãos e, hoje, já ne­


nhum está com a minha mãe, Zé Charneca. Ela sempre me pe­
diu: «Tu não me hás-de deixar. Os teus irmãos nunca quiseram
saber de mim. Mas, olha, se tu me deixares, eu vou e mato um de
vocês.» Parecia uma fera. Mas aquilo era só da boca. Qge ela nem
sabia o que me havia de fazer para eu andar contente. Está muito
velha, coitada. Já não pode fazer trabalho nenhum, ninguém a
quer ajustar para coisa nenhuma. E ela tem medo de ficar sozi­
nha, por causa da fome. Se não tiver quem lho ganhe, aonde
é que o vai arranjar?
Valinhas ergueu-se, esvaziando o copo. As pernas mal lhe
obedeciam. Cerrou os dentes e, forçando o corpo, arrastou-se até
ao balcão:
- ()gero dizer-te uma coisa.
Estendeu o braço e agarrou a rapariga pelo ombro:
- Se tu quisesses, Maria . . . quando a gente saísse, deixavas
a porta encostada, hem? Depois eu voltava. . . Olha.
- Larga da mão - disse a rapariga, chegando-se para trás,
num movimento de cansaço e de sono. - Tu estás mas é bêbedo.
Valinhas levantou a aba do capote. Mas as mãos, dormentes
da bebedeira, não atinavam com os bolsos.
Absortos, Palmito e Charneca falavam, calavam-se, voltavam
a falar. De quando em quando olhavam-se com rancor. Sem que
se apercebessem por completo, uma raiva que dormitava lá no
fundo vinha ao de cima. Os olhos luziam-lhes num brilho mau.
Depois, voltavam ao mesmo: as cabeças oscilando, vagarosamen­
te, de ombro para ombro, a voz pastosa.
- Ganhava, e bem ganho, o meu dia, fosse em que trabalho
fosse. Na ceifa, até o manajeiro me punha nas pontas. Estás a ou­
vir, Luís Palmito? Nas pontas, a puxar pelos outros. Levava três
328 VASCO GRAÇA MOURA

regos e ia a passo e, quando queria, punha todos num suadoiro


que nem se lambiam. Era como um leão!... Depois, ia para as fei­
ras, quando as havia e ninguém, ninguém me punha o pé à fren­
te. Eu era um homem, Luís Palmito!
Valinhas acabou por tirar as moedas. Mostrava-as na palma
da mão:
- Olha. São para ti. Hem? Deixas a porta encostada; eu sa-
fo-me deles, aí em qualquer esquina, e volto.
Respirava a custo. Puxou-lhe pela mão:
- Olieres, Maria? . . .
A rapariga deu u m esticão ao braço:
- Não quero nada, larga-me.
- Porque é que não queres? Não sou igual aos outros? E o
meu dinheiro acaso será diferente do dinheiro dos outros?
Procurava de novo agarrá-la. A rapariga, ao fugir-lhe num
movimento brusco, tropeçou no caixote e acordou o filho .
A criança ergueu dolorosamente o pulso fraco; abrindo os olhos,
recomeçou a chorar. O rostozinho amarelado, onde o crânio avo­
lumava, encheu-se-lhe de rugas como a cara de um velho.
- Oito irmãos, e todos a abandonaram ... O que ela não há-
-de ter passado. Aquilo nem sabia que mais fizesse para eu andar
contente. Também, eu dava-lhe a jorna quase toda. Olha que
Natal que a pobre tem . . .
Furtando-se à s investidas d o soldado, Maria saiu d o balcão:
- Por hoje, acabou. Oliero fechar a porta. Oliem é que paga
a despesa?
Palmito ergueu a cabeça; nada ouvira:
- Eu aqui a rir e a minha mãe a chorar, lá no monte, Maria.
Valinhas tirou umas tantas moedas da palma da mão:
- Torna. E, se quiseres o resto, já sabes . . .
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 329

- Não devias ter feito aquilo - insistia o Charneco. - Lá


no quartel, todos mandam em mim. Eu já não sou homem nem
nada. E, vai, tu ainda me agarras, conho!
Palmito segurou-o pelo capote:
- Mas tu não tinhas razão.
- Larga!
Charneco deu um passo atrás. Do impulso, o banco foi bater
contra a parede e Palmito tombou sobre a garrafa, que caiu para
o chão. Endireitou-se logo, de cabeça levantada. Aquela raiva
oculta que os subjugava vinha ao de cima, impetuosa. Os dois
homens encararam-se de rosto endurecido.
Maria tentava desviá-los:
- Não quero aqui desordens! - a voz fraca subia-lhe a um
tom agudo, lamentoso. - Saiam! Qyero fechar a porta!
Charneco correu para o meio da rua:
- Anda cá agarrar-me agora, Luís Palmito! Anda cá, se és
homem!
Maria empurrava Chico Valinhas que ia de costas, renitente:
- Ouve, eu volto . . .
Dentro d o caixote, a criança quebrava-se num choro esgani­
çado. Lá fora, ouvia-se crescer um coro aberto para a noite.
- Se queres, dou-te já o dinheiro.
A custo, a rapariga ia fechando a porta. A canção vinha por
vielas e esquinas dos lados das Portas de Moura. Vinha como um
pranto, a loa ao Deus Menino:

O menino está na neve,


a chorar e a tremer. . .

A porta da taberna fechou-se de todo; ouviu-se a tranca de


ferro roçar pela madeira. Despeitado, sentindo uma profunda rai­
va, Chico Valinhas virou-se, lentamente, de punhos cerrados.
330 VASCO GRAÇA MOURA

Músculos tensos, troncos inclinados para a frente, os três sol­


dados aquietaram-se, cegos, no negrume. Só aos poucos os olhos
se iam habituando à luz velada que escorria das estrelas. Tinham
as caras ásperas de frio e fitavam-se, atónitos, sob a imensidão da
noite desolada.
- Agarra lá se és capaz!
Perante aquela voz, Chico Valinhas recuou. Rápido, Luís
Palmito tirou o cinturão e enrolou-o no pulso, bem seguro pela
ponta. Deu um passo de lado; o cinturão volteou no ar e a fivela
apanhou Charneco pela cara. Chico Valinhas tirara também
o cinto. Charneco avançou, todo curvado.
Silenciosos, atiram-se agora pontapés e socos; batem às cegas,
de respiração entrecortada. De repente, Valinhas endireita-se, leva
as mãos à barriga, e cai desamparado sobre a calçada:
- Ai que me mataram! . . .
Os dois soldados recuam. Ficam u m momento espantados,
de braços abertos. Charneco aperta ainda, bem firme na mão, o
cabo da navalha. Passado aquele instante de estupor, fogem, cada
um para seu lado, num grande ruído de botas cardadas que se
afastam.
Lá das Portas de Moura, a canção vem cada vez mais perto,
ouve-se agora como um grande soluço estrangulado:

Ó menino da minh' alma,


quem te pudesse valer! ...
A festa de Natal
Alves Redoí

0 FACTO DE SER ESTRÁBICO, LIGEIRAMENTE ESTRÁBICO, não


quer dizer que o Silveira, o Raul Silveira, gerente principal da
Cerâmica da Pontinha, Limitada, seja um homem de ideias ves­
gas ou de vistas curtas. Pressente até os riscos dos negócios, à dis­
tância, ele mesmo diz que se increspa por dentro como os gatos
por fora, o que se deduz sem esforço, se nos lembrarmos que
nunca perdeu um chavo com certos construtores civis da Amado­
ra ou de Almada, antigos trolhas ao serviço de conceituados pres­
tamistas, galifões de juros altos e de golpes brandos, já que a
brandura é a escola nova de todas as mortes serenas mas irreme­
diáveis.
Esta percepção quase divina dos grandes perigos deu-lhe um
prestígio enorme entre a miuçalha da sua indústria. E porque não
lhe falta a palavra fácil para esconder bem o que almeja, há quem
o trate por senhor engenheiro, o que está certo, de tais engenhos
se vem valendo para navegar neste mar eriçado, expressão muito
sua, talvez por ter desejado, quando jovem, entregar-se à mari­
nhagem. Foi por isso, talvez, que o Raul Silveira entendeu tão
rigorosamente certo discurso cheio de violentas branduras :
- «A hora da industrialização não se compadece com formas
antiquadas de exploração fabril, mais de oficinas de artesanato do
332 VASCO GRAÇA MOURA

que de unidades válidas, e há que empreender desde já todas as


reformas das estruturas, de maneira que o nosso barco aponte a
proa para uma nova viagem, onde se encontrará o progresso e o
bem-estar.»
O Silveira gostou da imagética maruja, mas disse logo consi­
go: - Agora é que são elas! Estou lixado!
Isto significa que entendeu perfeitamente a mensagem do seu
breve fracasso, se não conseguisse pôr a fábrica a trabalhar a um
ritmo mais vivo, coisa que não se processa só com boas intenções.
«E dinheiro para o barco andar?» interrogava-se preocupado, re­
cordando-se depois que a antiga sabedoria popular, mal prepara­
da para os tempos de hoje, dizia com pavoneio «grande nau gran­
de tormenta», o que era, em boa verdade, uma forma habilidosa
e canalha de os idiotas preferirem as naus pequenas, deixando só
a alguns as viagens nas naus maiores.
Vendo bem as perspectivas, propunham-lhe uma espécie de
batalha de Lepanto, o que era uma grandessíssima gaita, pois
as cartas de marear destes oceanos das indústrias estão nos cofres
de uns tantos e mais ninguém se serve delas.
O Silveira não se ilude. Talvez por ser pequeno, como os
frascos de perfume concentrados, o Raul pensa bem com o corpo
todo, o que não quer dizer que pense com os pés, mas que o seu
raciocínio não tem de fazer grandes viagens para tjr de um extre­
mo ao outro, o que lhe traz vantagens apreciáveis para as resolu­
ções prontas. Isto confirma que o Silveira discorre com inteligên­
cia, o que não admira, se se souber que ainda o pai levara a vida
inteira a puxar com os bicos da enxada o céu para a terra. Sem lhe
deixar mais do que a enxada.
O Raul Silveira é, pois, um destes portentosas homens do
nosso tempo que se fazem a si próprios, já que Deus não pode
agora fazer todos os seres humanos à sua imagem e semelhança.
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 333

Dar o balanço à situação não significa nesta passagem, mes­


mo para gente de veia marinheira, que o Raul tivesse de prever se
o balanço do barco se dava da proa para a ré ou de bombordo
para estibordo, embora em nau pequena sejam de recear todos os
devaneios das ondas. Tratava-se aqui de meditar em profundida­
de nos perigos e nas boas marés que o discurso lhe reservava, ma­
nobrando a tempo para entrar em águas mansas, o que dá sempre
jeito e proveito.
Mas o que lhe dizia o estudo da situação era de molde a en­
chê-lo desta melancolia profunda que esbandalha as classes mé­
dias, nem carne nem peixe, permanentemente receosas de que
um golpe de azar as atire para o lodo de baixo, e sempre sonha­
doras de que um bambúrrio da sorte as ponha a voar, sem asas,
no céu magnífico da abastança eterna. Neste constante saltar do
banho turco para o chuveiro de águas frias, quase sem pausas, a
classe média ataranta-se, enche-se de recalques, cumprimenta
Vossa Excelência, mas também sorri certas complacências para o
servo que lhe pode dar um jeito, desarranja o coração, encortiça
as artérias e anda sempre com o credo na boca, o que quer dizer
que lá vai andando ao sabor do crédito.
O Silveira tem uma noção exacta deste drama.
Não ignora, portanto, que a pequena ou a média empresa é
uma espécie de Belzebu da nossa época, a última maldição dessa
praga do meio-termo, tão incómoda se revela para os assalariados
que precisam de mais jorna, como para os grandes senhores da
indústria que precisam de mais lucros e de melhores preços. Não
dispondo de dinheiro próprio ou a praws largos, vive de letras a
sessenta e noventa dias e não pode comprar máquinas modernas.
Precisa de vender alguma coisa para se iludir e vai de cambulhada
atrás dos preços dos grandes que esperam a sua falência para se
334 VASCO GRAÇA MOURA

encherem na volta. Qyanto mais vende mais se encalacra. Os ju­


ros comem consigo à mesa, até que lhe levam a mesa. Antes dis­
so, porém, obriga-se a meter mais pessoal para fazer o trabalho
que as máquinas caras resolvem quase sozinhas. Dá mais trabalho
aos homens, mas paga mal e com má cara, não consegue raciona­
lizar o andamento das máquinas velhas e do pessoal. E como tem
mais gente ao serviço paga mais descontos. E não há descontos
que lhe perdoem. Afoga-se em pagamentos, mas pagam-lhe
a más horas, não lhe têm respeito, nem medo, nem vergonha.
Assina letras diariamente, substitui umas por outras, precisa de
dar lucros aos sócios, paga contribuições, e é sobre estas que atira
todos os males de que sofre. É como o pobre que sofre de tudo
e só se queixa de reumático, quando está velho. Acabam por lhe
oferecer, por esmola, uma cadeira de rodas que ele próprio pagou
desde o berço e que ele próprio tem de mover.
O Raul Silveira tem uma noção exacta de tudo isto.
Sabe também que a grande indústria oferece dividendos cur­
tos aos accionistas, a boa maquia fica entre os administradores
e no pagamento do chamado tráfego de influências que facilitam
os melhores negócios, às vezes simples cheques distribuídos para
os pobrezinhos de Vossa Excelência, não se poupa na compra de
máquinas mais expeditas para dispensar mão-de-obra, deixa os
contactos com o pessoal a encargo dos empregados superiores,
mas ao operário que conserva dá casa, campo de futebol e equi­
pamento, missa aos domingos e festa anual em Dezembro. É o
patrão ideal. Até pensa pelo servo. E nisso é de uma exigência
avassaladora.
Por isso mesmo o Silveira já propôs a entrada para a Cerâmi­
ca da Pontinha, Limitada, a um capitalista das Áfricas, e aquilo
vai tudo levar uma volta. Já recebeu os catálogos e os preços das
máquinas novas, aumentará o rendimento fabril no quíntuplo da
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 335

produção e dispensará dois terços do pessoal que tem ao serviço.


O outro prometeu-lhe estudar todas as possibilidades do negócio,
embora aguarde que o Silveira rache para lhe comprar a fábrica
em praça. Mas está enganado, porque o Raul já preparou um re­
latório com muitos mapas para apresentar no banco novo, e está
convencido de que, se o africanista se fizer fino, o caso será resol­
vido pela outra via, antes que o tal barco se safe sem ele para
a viagem onde encontrará o progresso e o bem-estar.

O jornal da terra estragou-o com mimos, aqui há tempo,


quando lhe caçou um anúncio de página e resolveu tratá-lo, em
artigo de fundo, por «espírito dinâmico e empreendedor, verda­
deiro exemplo fecundo desta época de paz social», publicando­
-lhe ainda por cima o retrato, de perfil, é claro, para que se não
percebesse o estrabismo do Silveira.
A sua serenidade habitual transtornou-se. E vá de meter
o carro antes dos bois, ele que sempre fora até aí um padrão de
equilfbrio, tomando em conta, é evidente, o desequfübrio perma­
nente em que se angustiam, na corda bamba, os homens da sua
classe. Como é pequeno não deu muitas voltas ao pensamento.
Mandou emoldurar dois exemplares do artigo, colocou-os um no
refeitório do pessoal e outro no seu gabinete, e chamou o guarda­
-livros e o mestre da fábrica, já a gozar com o espanto destes
quando lhes dissesse o seu plano. Uma coisa natural.
Interrogavam-se ainda os outros com o olhar, quando ele se
ergueu da cadeira e lhes despejou em cima a cornucópia das sur­
presas.
- Embora as coisas não corram pelo melhor, como sabem,
quero dar uma prova de confiança no futuro . . . Eu acredito no fu­
turo (era uma fé!). Oliero dar ao mesmo tempo uma prova públi­
ca do apreço em que tenho o meu pessoal. Nem todos o mere­
cem . . . Vocês percebem o que quero dizer com isto. Mas pode ser
336 VASCO GRAÇA MOURA

que até esses compreendam as boas intenções de que estou pos­


suído.
Na boca do Silveira as palavras pareciam engraxadas de novo
e ganhavam lustro. A sua voz cantava-as e dava-lhes uns baleias,
uns pequenos toques subtis, como se lhes pusesse bandeiras de
todas as cores a engalaná-las. Os dois ainda não o tinham ouvido
no melodrama. Para o exterior ele era todo optimismo, como os
retratos dos políticos de hoje, mesmo nas horas ásperas. De resto
não vem aqui a propósito falar-se da voz encharcada de plangên­
cias do Silveira.
- Vamos fazer este ano uma festa de Natal . . . O que é para
mim uma festa de Natal?
Os dois chefes arregalaram os olhos miúdos, e mais ainda o
guarda-livros do que o mestre de fabrico, pois aquele bem sabia
o preço de venda do tijolo e da telha, e assim nada feito, já o dis­
sera ao patrão Raul com os mapas ali na mão. Mapas que falavam
como gente.
- Uma festa de Natal deve dizer amor . . . Amor tem quatro
letras, tantas letras como Deus.
O Gonçalves, o guarda-livros, pensava que as letras com que
se escrevia a situação da Cerâmica andava aí pelas cem, todas
muito bem registadas no livro de letras a pagar.
- Confraternização autêntica entre todos nós, um lanche,
uma árvore com brinquedos para as crianças . . .
- E u m pequeno sarau - acrescentou o guarda-livros que
era todo teatro e música, ambos ligeiros, para lhe não bulirem
com a úlcera do duodeno.
- E um baile - disse o Silveira. - Qi.ero ver a confraterni­
zação em pleno.
O mestre torceu a cara.
- Lá isso de baile, não concordo. Dá-se-lhes confiança
a mais e depois quem os aguenta sou eu. Ná, lá o baile, não!
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 337

Convincente, o Silveira insistiu n o baile, enquanto o outro


resmungava que não poria lá os pés, tivesse santa paciência, por­
que era a ele a quem pediam contas das indisciplinas. O gerente
fez ouvidos de mercador e voltou-se para o Gonçalves, radiante
com a ideia do sarau. O gosto ao retrato no jornal desvairara-o
e já se via rodeado da sua gente, numa fotografia a duas colunas,
numa santa família exemplar, que provocaria nova girândola do
director do Mensageiro da Serra.
Era esse um dos trunfos com que contava para impressionar
o africanista, convidando-o como hóspede de honra. E se a caja­
dada saísse certeira, tinha o futuro resolvido.
Acabavam-se nesse dia os seus dramas de sobrevivência.
O Gonçalves atrasou a escrita depois de se ver em dificulda­
des para explicar que a festa era colectiva, sim, de todos, e que a
fábrica nada teria a pagar pelas horas dos ensaios, «era o que fal­
tava, divertimo-nos todos, pois claro, e o senhor Raul vai oferecer
um lanche ao pessoal e à família, quer dizer aos que vivam debai­
xo da mesma telha, e ainda brinquedos para os nossos filhos, quer
dizer para os que tiverem filhos, eu não os tenho, graças a Deus!».
O pessoal parecia não o compreender lá muito bem, torcia-se
«ora o senhor Gonçalves tem cada uma, a gente agora feitos có­
micos», mostrava-se difícil em decorar os papéis da peça, uma
farsa em um acto do repertório do Ginásio, destoava no coro
d'A Mulher do Padeiro e nos números individuais, e só mostrou
resignação quando ele lhe propôs a compra de um retrato do Sil­
veira para inaugurar na cantina.
O mestre, o João Gregório, desconfiado com tantos luxos,
ria-se para o Gonçalves e todas as tardes vinha comunicar ao es­
critório que o pessoal andava mais lento. As raparigas do enxugo
do material queixavam-se de que a cantoria cansava muito, o aju­
dante do forno, pelo contrário, passava os dias, descuidado, a afi­
nar a garganta para quatro fados que iria cantar, dois homens dos
338 V ASCO GRAÇA MOURA

barreiras tinham-se pegado ao soco por causa da farsa: o que


fazia de marido enganado começou a embirrar com o papel,
os companheiros entenderam que lhe deviam dar, por extenso,
o nome que merecia a pachorra da situação teatral, e o outro foi
à serra e virou o camionista com um murro no meio dos olhos.
Este gritou, «ai Jesus que estou cego», fizeram-se dois partidos,
quer dizer dois grupos, porque propriamente partidos ficaram al­
guns cinco, e a peça teve de ser cortada do programa, não fosse
a farsa dar em tragédia antes da festa. O único que sabia o papel
dele e dos outros era o alimentador dos fomos, e esse acabou por
se zangar também, pois foi propor ao senhor Gonçalves para ele
sozinho dizer a peça toda. E não houve razões que o demovessem.
- Não sei porquê o senhor não me grama, o senhor nunca
me gramou.
- Ora essa! O Artur está a ser incorrecto . . .
- Ainda por cima. <2!:ierem levar a peça, sei-a toda n a ponta
da língua e o senhor agora diz que a peça não vai.
- Oh homem! . . . Você não está a ver. . .
E, desejoso d e contemporizar, ainda sugeriu u m trecho d'Os
Lusíadas ou a «Balada da Neve». O Felício virou costas e o mestre,
o João Gregório, só dizia: eu não o avisei? No fim da festa temos
de correr com o pessoal todo, é o que lhe digo. Ficamos todos
a fabricar telha sem barro. O senhor vai ver. . .
O patrão não sabia destes dramas e s ó pensava nos brinque­
dos e nos discursos. Já escrevera o seu e o do operário que lhe ha­
veria de agradecer em nome de todos, depois do descerramento
do retrato. Escolhera-se o Caetano que era fiel de armazém, um
serviçal antigo e homem de boa voz, de voz grave, como o Silvei­
ra gostava.
O carpinteiro fez o estrado, as raparigas perderam meio dia
de trabalho a preparar os festões de verdura com rosas de papel
As MAIS BELAS H ISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 339

para alegrar o refeitório, e o grupo musical apareceu duas horas


mais cedo para afinar com as vozes que cantavam, pois os ensaios
tinham-se feito sem música. E aquilo não havia meio de dar cer­
to umas vezes sobejava voz, outras vezes sobejava música, uns co­
meçavam em agudo e acabavam esganiçados, outros, nervosos,
principiavam num tom grave e ninguém os ouvia, e a pobre úlce­
ra do Gonçalves é que pagava tudo, azeda, azeda de todo, pois
era nela que passavam as fífias e o receio do fiasco.
Por causa do africanista que veio com a família no automóvel,
trombudo, o Silveira não atendeu desculpas e ralhou. E deu iní­
cio ao lanche, castigando os «artistas» com o ruído da caparia,
sinal evocativo dos prazeres da gula, que era de toda a festa o
número mais importante, enquanto os pobres lá continuavam
a ensaiar no armazém, ante o desespero do Gonçalves que só pedia
pianinho, pianinho, e os ouvia cada vez mais berrões, como se
gritassem por pão.
Já só com migalhas na mesa apareceram, lívidos, os «artistas,
trazendo o Gonçalves, feito varejeira, ainda à perna. - Não te
esqueças: depois de a música fazer perlipipi é que tu entras.
Ganhou duas alcunhas - uns chamavam-lhe o «Pianinho»
e outros o «Perlipipi».
Com o seu olho azul e malandrete, o mestre João Gregório go­
zava de longe, a encolher os ombros.
E lá se deitaram músicos e cantores aos restos da comida,
porque vinho não faltava, enquanto a esposa do africanista distri­
buía brinquedos e sorrisos pela molecada, como ela dizia para a
filha, toda Silvana nos cantos dos olhos e nos ademanes do casa­
co de peles. A miuçalha gritava e grunhia, riam-se uns, choravam
outros com despeito, e os pais juntavam-lhe a sua galhofa ruido­
sa, enquanto o fotógrafo disparava o magnésio em posições difí­
ceis por causa dos ângulos. O Silveira sorria. Sorria por ter ali
340 VASCO GRAÇA MOURA

o africanista e sorria porque assim os retratos ficavam ainda mais


festivos.
- Isto é uma família, uma verdadeira família - dizia em se­
gredo para o africanista, que pensava lá consigo: «Qiando tomar
conta disto, acabam-se as festas, lá isso acabam.»
Então o Gonçalves veio pedir licença para começar o sarau,
que ele próprio abriu com uma explicação e uma saudação em
verso, a sua surpresa. Os versos estavam bonitos. Um nadinha
anchos, mas muito bonitos. Depois foi a vez da menina do escri­
tório que cantou e dançou o «Baião da Ana», toda requebras e
olhos catrapiscadores, ante a vergonha das raparigas dos enxugas
e a exaltação dos homens, entre eles o Silveira que dizia em voz
alta «muito bem, muito bem, sim senhor», e lá por dentro se in­
terrogava com espanto, «onde é que a rapariga tinha aquelas an­
cas metidas que nunca dei por elas»?
O refeitório desabou com palmas e assobios à americana.
O coro d'A Mulher do Padeiro começou num salto, por cima
da música, e para ali andaram engalfinhados, qual de cima qual
de baixo, como dois gatos miadores. Mas acabou bem. Acabou
antes de tempo. As raparigas calaram-se e o grupo musical fez o
resto. E as palmas taparam tudo. O fadista deu o sucesso mais
graúdo: cantou os quatro fados por duas vezes, a segunda deu-lhe
mais força e acabou rouco, o que agradou particularmente à filha
do africanista que lhe achou muito sabor, «parecia o velho Al­
fredo».
Vieram mais números de canto, o rapaz das contas-correntes
recitou duas poesias exaltadas com mar e caravelas, e o Artur,
o alimentador do forno, já bem encharcado em vinhos doces e
amargos, teimou em fazer a peça sozinho, subindo ao estrado
com o Gonçalves agarrado ao casaco, como se rabejasse algum
toiro bravio. Houve rebuliço, porque uns teimavam em ouvi-lo
As MAIS BELAS H ISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 341

e outros assobiavam o guarda-livros quando ele teimava explicar


a «inoportunidade, a infeliz inoportunidade do Artur». O olho
azul do mestre só sorria, o malandrim.
O próprio Silveira é que teve de pôr cobro à algazarra, man­
dando o Artur para o fundo do refeitório, o pobre-diabo, que
pensava deslumbrar o amo com o seu talento. Amuado, para ali
ficou que nem um trapo. Fazia pena. Mas a matulagem é que
perdera o respeito à festa.
E assim que apareceu o Rogério das prensas, todo vestido de
preto, um nadinha a saltar do fato apertado, anunciando «Sauda­
de, Vai-te embora», os outros, que estavam fartos de o ouvir no
trabalho cantar o mesmo, desataram a pedir outra:
- Canta outra, canta outra, essa já tem ranço . . .
A música deu a introdução, o Gonçalves fez o gesto de entra­
da, e o Rogério, atrapalhado, começou a cantar debaixo de água,
muito baixinho. Depois enganou-se na letra, parou e pediu para a
orquestra voltar ao princípio. A orquestra fez-lhe a vontade, ele
distraiu-se com a entrada e a matula largou em gargalhadas de
arrebenta, uns a pedirem bis, outros a exigirem a «Rosa Arredon­
da a Saia». O Rogério é que os percebia, «queriam goro, os ma­
landros», e fazendo costas para o lado do patrão e dos convidados
saudou-os, convenientemente, num gesto repetido e rápido dos
dois braços.
Pararam os músicos com a apoteose do cantor, e este saltou
do estrado que nem gamo, levando na frente quem lhe barrou o
caminho até a porta da saída. Lá fora, pegou na sua bicicleta
e pedalou que nem um possesso até à vila.
O sarau ficou por ali e chegou a hora das solenidades.
Distraído, o Caetano do armazém beberricava ainda com o
seu compadre Tormentas, o Chico Tormentas, metidos numa
aposta de quem aguentava mais. O Caetano ia em vencedor, mas
342 VASCO GRAÇA MOURA

esquecera-se do encargo. Ficou wnw quando o chamaram para


junto do patrão e dos senhores de fora, e lá foi empurrado e belis­
cado até junto do retrato. O Gonçalves percebeu logo como ele
ia, mas fiou-se no discurso que o patrão lhe entregara e deu uma
breve explicação da homenagem. Uma menina, toda de branco,
puxou pela bandeira portuguesa, a orquestra tocou o hino e o Sil­
veira mostrou-se espantado e comovido, recebendo um meio
abraço do africanista, já quase derreado com tanta festa.
Era a vez do Caetano.
O Caetano piscou os olhos, esfregou as mãos, a desfazerem­
-se em bagas de suor, deu volta aos bolsos, uma volta rápida,
e julgou que não tinha o discurso. E disse num grito:
- Estou desgraçado! Roubaram-me o papel.
Ajudou-o o Gonçalves na emergência, perante a expectativa
de todos, desconhecedores do segredo daquele número inespera­
do. O Caetano metera o discurso no bolso traseiro das calças, não
o perdesse, e esquecera-se com a aposta do vinho. Já de papel na
mão, começou a tossir, jogou-o para a direita, jogou-o para a es­
querda, e as danadas das letras pareciam bolas, a correrem de um
lado para o outro e a embrulharem-se todas umas nas outras que
não havia olhos que as separassem.
O Silveira estava para morrer. Mas não podia intervir, porque
doutra maneira trairia a espontaneidade da homenagem.
- Não percebo nada disto - largou o Caetano, de bom hu­
mor, abrindo os braços.
Perto dele, o africanista tirou-lhe o papel da mão, leu as pri­
meiras linhas, e perguntou-lhe:
- O que quer você dizer?
O Caetano sorriu, piscou os olhos papudos e explicou que
queria agradecer ao patrão.
- Então agradeça, homem. Você não sabe agradecer?
As MAIS BELAS H ISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 343

- Pois sei. Lá isso é que eu sei.


Qyis o Gonçalves salvar a situação, pedindo o papel ao hós­
pede para que outro o lesse. Mas a tábua falhou, porque o africa­
nista deu em achar graça ao Caetano e incitava-o, ao que depois
aderiu o Silveira, resignado.
- Meus senhores! - disse o orador.
Começava a recordar-se dalgumas frases que conseguira de­
corar e o seu rosto iluminou-se.
- Nesta hora . . . (olhou o relógio e sorriu.) À s seis horas
e meia propriamente ditas, estamos todos aqui para agradecer
ao nosso patrão Raul todos os favores . . . Favores e obrigações que
este homem que aqui está não é um patrão, mas é um pai.
Percebeu o Caetano que baralhava palavras suas com as do
discurso escrito. Fez uma pausa longa e recomeçou:
- Isto agora é depressa. O pão estava bom, sim senhor. E o
vinho . . . para melhor dizer, os vinhos eram todos de primeira, que
o diga o meu compadre Tormenta que já não se aguenta nas ca­
netas. Isto é tudo uma homenagem. . . Qyem é que pode viver
sem isso? . . . Eu sou uma homenagem, tu és uma homenagem, ele
é uma homenagem . . . E assim sucessivamente . . . Viva o patrão!
Viva a homenagem!
Tornado de balanço com os aplausos, sucedeu ao Caetano
o que se dá com os oradores emotivos - já eram as palavras que
mandavam nele.
- Já agora aproveito nesta hora de homenagem . . . tenho
a impressão de que estou a dizer homenagens a mais . . .
O africanista (o gozão, pensava o Silveira) i a incitando o
orador:
- Muito bem! Muito bem!
- Pois eu acho muito mal, desculpe Vossa Excelência.
A gente ganha pouco ... É como quem diz ... a gente vê-se, vê-se . . .
344 VASCO GRAÇA MOURA

(à brocha, não; não posso dizer à brocha) olhe, vê-se e não se


acredita. São coisas do diabo! (O patrão está mal-encarado e eu
lixo-me com esta.) Mas a gente ganha pouco, é bem feito, por­
que o patrão, esse, coitado, ainda ganha menos. Sou eu que estou
a falar. . . E este homem que aqui está não é um patrão, mas é um
pai. E há certas alturas em que os filhos têm de trabalhar para os
pais, doa a quem doer, para a frente é que é andar, assim é que é,
seu Raul. Viva o seu Raul!
O Silveira agradeceu os aplausos com uma vénia, mas não
puxou do papel. Fez o mesmo que o Caetano.
- Obrigado, isto é uma grande família, farei tudo o que
estiver ao meu alcance para os tornar felizes, e quero agradecer
em primeiro lugar a presença deste j á nosso grande amigo ,
grande figura ultramarina, que nos honrou com a sua presença.
Viva a Cerâmica da Pontinha, Limitada!
- Viva!
O director do Mensageiro tomava notas de tudo, mas nos dis­
cursos embrulhou-se. Beijou a mão da senhora do africanista,
disse à filha que nunca vira rosas de tanto viço em Dezembro e
pediu uma biografia ao pai, o que ficou aprazado para um almoço
íntimo.
Qyando o automóvel partiu entre os aplausos de alguns,
o Silveira voltou-se para o guarda-livros e só disse:
- Ponha o Caetano no olho da rua!
Os três reis do Oriente
Sophia de Mel/o Breyner Andresen

GASPAR

NAQUELE TEMPO, NA CIDADE DE KALASH, o príncipe Zukarta


instaurou o culto do bezerro de oiro.
A estátua poisava nas multidões submissas os seus olhos es­
pantados, muito abertos, pintados de branco e de preto. No
fundo das suas pupilas aflorava quase uma interrogação, como
se a extensão do seu poder o surpreendesse. Era um jovem be­
zerro de pequenos cornos torcidos e pernas musculosas, de tes­
ta obtusa, curta e franzida. As suas quatro patas, firmemente
poisadas na terra, davam uma grande impressão de firmeza e
estabilidade que tranquilizava o coração dos seus fiéis. E em to­
do o seu corpo brilhava o oiro, oiro compacto, duro, pesado,
faiscante.
Em frente do ídolo as mulheres curvadas sacudiam sobre
o mármore claro dos degraus os sombrios cabelos quase azuis. Dos
confins do deserto, dos longínquos oásis, das aldeias perdidas,
chegavam homens que depunham em frente do altar a sua oferta:
vinham oferecer oiro ao oiro. E os homens bons de Kalash, juízes
e chefes guerreiros, desfilavam reverentes em frente do bezerro.
Atrás deles vinham os comerciantes, os vendedores, os oleiros, os
tecelões. Beijavam os degraus do altar e depunham no chão a sua
oferta: traziam oiro ao oiro. Até os sacerdotes da Lua e os seus
346 VASCO GRAÇA MOURA

fiéis e acólitos se prostravam, de joelhos, com a cabeça tocando


o solo, em frente do ídolo novo de Kalash.
Zukarta olhava todas estas coisas com grande alegria, pois
o culto do oiro era o fundamento do seu poder.
Raros eram aqueles que não acorriam ao templo, cada vez
mais raros. Os muito pobres, os muito envergonhados, os muito
humilhados, não ousavam apresentar-se. Eles eram como uma
raça à parte, pois a pobreza era olhada como o estigma que mar­
cava aqueles que o Bezerro não amava. No fundo das suas almas
tão humilhadas que mal ousavam pensar o seu próprio pensa­
mento, os muito pobres, os muito envergonhados esperavam ou­
tro deus.
Eles e Gaspar.
Uma delegação de homens importantes veio ao palácio de
Gaspar. E disseram:
- Porque não te apresentas no templo do Bezerro? Por aca­
so te falta oiro para a oferta? Qie tens tu de comum com a ralé
das docas? Não estás por acaso vestido de púrpura e de linho
como um rei? Porque desafias o poder de Zukarta? Serás um
traidor? No culto do Bezerro está a prosperidade e a grandeza de
Kalash. Estarás vendido aos nossos inimigos?
Gaspar respondeu:
- Não posso adorar o poder dos ídolos. O meu deus é outro
e creio no seu advento, que a Terra e o Céu me anunciam.
Ouvindo esta resposta, os chefes dás tribos e os homens bons
de Kalash disseram:
- Separamo-nos de ti porque te separaste de nós e renegaste
os nossos caminhos. Não terás mais parte nas nossas assembleias.
Nem serás mais ouvido nos nossos conselhos, nem partilharás
dos nossos festejos e banquetes. E também não terás lugar na
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTIJGUESAS DE NATAL 347

nossa força. Os soldados não protegerão a tua casa nem as tuas


caravanas. E serás presa fácil dos bandidos. Não receberás a pro­
tecção das nossas leis, e os nossos juízes julgarão em sentença
contra ti, e a tua razão será como um punhado de cinza. Como a
gente da ralé não terás nem protecção nem defesa enquanto não
te curvares perante o altar do Bezerro para adorar os ídolos que
nós adoramos.
E Gaspar respondeu:
- O meu deus é em mim como uma fonte que pára de cor­
rer e é em meu redor como o muro de uma fortaleza.
Então os notáveis de Kalash sacudiram a poeira dos seus sa­
patos e saíram do palácio.
Depois desse dia, muitas calamidades se abateram sobre Gas­
par. Os bandidos assaltaram as suas caravanas e os ladrões sa -
quearam os seus palmares. Mãos misteriosas apedrejavam de noi­
te a sua casa e na água das suas cisternas apareciam frutos podres
e aves mortas a boiar.
E começou o tempo da solidão.
Nos frescos pátios do palácio não penetraram mais os visitan­
tes e a água correndo nos tanques deixou de acompanhar o leve
rumor das conversas. Os parentes e os amigos desapareceram
como que devorados pela penumbra e todas as coisas pareciam
envolvidas em escândalo e terror.
Porém o tempo crescia.
E Gaspar escutava o crescer do tempo. A solidão criava em
seu redor um transparente espaço de limpidez onde os instantes
avançavam um por um e o universo inteiro parecia atento. O silên­
cio era como a mesma palavra inumeravelmente repetida.
E debruçado sobre o tempo Gaspar pensava: «Qye pode
crescer dentro do tempo senão a justiça?»
348 V ASCO GRAÇA MOURA

* * *

Ajoelhado no terraço Gaspar olhava o céu da noite.


Olhava a alta e vasta abóbada nocturna, escura e luminosa,
que simultaneamente mostrava e escondia.
E disse:
- Senhor, como estás longe e oculto e presente! Oiço apenas
o ressoar do teu silêncio que avança para mim e a minha vida
apenas toca a franja límpida da tua ausência. Fito em meu redor
a solenidade das coisas como quem tenta decifrar uma escrita di­
fícil. Mas és tu que me lês e me conheces. Faz que nada do meu
ser se esconda. Chama à tua claridade a totalidade do meu ser
para que o meu pensamento se torne transparente e possa escutar
a palavra que desde sempre me dizes.

Primeiro pareceu a Gaspar que a estrela era uma palavra, uma


palavra de repente dita na muda atenção do céu.
Mas depois o seu olhar habituou-se ao novo brilho e ele viu
que era uma estrela, uma nova estrela, semelhante às outras, mas
um pouco mais próxima e mais clara e que, muito devagar, desli­
zava para o Ocidente.
E foi para seguir essa estrela que Gaspar abandonou o seu
palácio.

II
MELCHIOR

A placa de barro tinha passado de geração em geração, de idade


em idade, de mão em mão. Nela estava escrito que ao mundo
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 349

seria enviado um redentor e que uma estrela se ergueria no


Oriente para guiar aqueles que buscavam o seu reino.
A placa era um pequeno rectângulo de argila, enegrecido pelo
tempo, de aspecto frágil, pobre e gasto. Era um prodígio que ti­
vesse atravessado, sem se perder, tantos séculos de ruínas e opu­
lências, saques, incêndios e guerras. Era um prodígio que tivesse
podido atravessar sem se perder a ambição, a violência, a agitação
e a indiferença dos homens.
Estava ali, no palácio, alinhada ao lado de milhares de placas
que enumeravam vitórias, batalhas, massacres e riquezas.
Os seus caracteres estavam semiapagados pelo tempo e a sua
escrita era tão antiga que se tornava difícil decifrá-la com exacto
rigor. Muitas leituras eram possíveis.
Por isso o rei Melchior convocou três assembleias de sábios
para que juntos averiguassem qual era a justa interpretação da­
quele texto antiquíssimo.
Primeiro vieram os historiadores, aqueles que tinham apren­
dido toda a ciência das bibliotecas e que conheciam até ao menor
detalhe a escrita, a linguagem, os usos, os costumes, os anais e os
códigos dos tempos idos.
A assembleia reuniu-se durante um mês no palácio do rei.
Era o meio do Verão e o calor poisava pesadamente sobre os ter­
raços cegos de sol. Nos jardins as palmeiras roçavam umas nas
outras, com um rumor metálico, as suas folhas afiadas e duras
como serras.
Ao cair das tardes os sábios sentavam-se em círculo no pátio
interior do palácio. Melchior presidia. Um fino murmúrio de
água correndo nos tanques acompanhava os debates. Os escravos
descalços circulavam em silêncio servindo vinho de tâmara tem­
perado com neve das montanhas.
O círculo de homens sentados descrevia uma área vazia e no
centro dessa área tinha sido colocada uma mesa de pedra sobre
350 VASCO GRAÇA MOURA

a qual estava poisada a placa de barro. Parecia extremamente pe­


quena e insignificante, no meio de tanto espaço e opulência, pa­
recia um detrito das eras antigas que ali tinha sido abandonado
pelo tempo.
Durante longos debates, durante trinta dias, os sábios estuda­
ram e examinaram meticulosamente cada linha dos caracteres an­
tiquíssimos.
E ao trigésimo dia ergueu-se Negurat, arquivista-mor do
templo da Lua, e disse:
- Creio que a leitura que tu, ó rei, fizeste deste texto não é
a verdadeira. Pois leste: «Ao mundo será enviado um redentor
e uma estrela subirá no Oriente para guiar aqueles que buscam o
seu reino.» Mas verdadeiramente é outra a significação deste tex­
to antigo: assim, os caracteres onde leste «redentor» significavam,
na remota era em que foi gravada esta placa, não «redentor» mas
sim «grande rei»; e os caracteres onde leste «será» e «subirá» não
exprimem formas verbais do futuro mas sim formas verbais do
passado; e o verbo buscar não está no presente mas sim no preté­
rito perfeito; e onde leste «para guiar» deverá ser lido, de acordo
com os métodos de decifração dos textos antigos, «guiando».
Portanto, ó rei, ao contrário daquilo que julgaste ler, este texto
não se refere ao futuro mas sim ao passado, e não anuncia o ad­
vento de nenhum salvador, mas antes glorifica as obras de um
grande personagem dos tempos idos. Assim a leitura correcta
deste texto é, em minha opinião, a seguinte: «Ao mundo foi en­
viado um grande rei que como uma estrela dominou o Oriente
guiando aqueles que buscaram o seu reino.»
Qyando Negurat acabou de falar, levantou-se Atmad, arqui­
vista-mor do palácio, e disse:
- Grande é a ciência de Negurat. Mas a interpretação da
escrita antiga tem terríveis dificuldades. Não há dúvida de que no
texto apresentado devemos ler «grande rei» e não «redentor».
As MAIS BELAS H ISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 351

N o entanto, não concordo com aquilo que diz respeito às formas


verbais: creio que o verbo ser e o verbo subir se encontram real­
mente no futuro. E também discordo da forma como foram lidas
as palavras «guiar», «buscam» e «reino». E penso ainda que o ver­
bo «subir» tem aqui o sentido de «dominar». De forma que, na
minha opinião, a leitura correcta do texto é esta: «Ao mundo será
enviado um grande rei que como uma estrela dominará o Oriente
para engrandecer aqueles povos que aceitarem o seu poder.» Pois
esta inscrição é de facto uma profecia, mas uma profecia que já
foi cumprida. É evidente que o grande rei é o grande Alexandre
que dominou todo o Oriente até ao reino de Pórus e que morreu,
como sabeis, em Babilónia.
E quando Atmad acabou de falar, levantou-se o velho sábio
Akki , que disse:
- Admirei as sapientes palavras que ouvi. Mas na verdade
a leitura deste antiquíssimo texto levanta tantas dúvidas e são
tantas as interpretações que podemos propor, que verdadeira­
mente, ó rei, nada podemos concluir.
Então levantou-se Melchior e disse:
- Ide em paz e continuai os vossos estudos. Eu continuarei
a perguntar, a escutar e a esperar.
E no mês seguinte reuniu-se no palácio real a assembleia dos
letrados.
Melchior propôs-lhes as dúvidas e as interpretações dos his­
toriadores e durante trinta dias os letrados estudaram o texto.
E no trigésimo dia, ao cair da tarde, estando todos sentados
em círculo e estando no meio do círculo a mesa de pedra sobre a
qual estava poisada a placa de barro, levantou-se Ken-Hur e disse:
- A poesia não se exprime directamente. Ora o texto que
temos em nossa frente é um poema e por isso mesmo deve ser
352 VASCO GRAÇA MOURA

tomado como uma metáfora que não se refere nem ao passado


nem ao presente nem ao futuro do mundo em que vivemos, mas
só ao mundo interior do poeta, que é o mundo da poesia sempre
voltado para o devir e para a esperança. Este texto não fala de
factos reais e apenas simboliza o espírito criador do homem.
Falou em seguida Amer, que disse:
- Este texto é um poema e coloca-se por isso à margem do
vivido. O poema não se refere àquilo que é, mas sim àquilo que
não é. Pois a natureza é uma caixa cheia de coisas da qual o poeta
extrai uma coisa que lá não está.
E levantou-se depois o irmão de Amer, que disse:
- Num poema não devemos buscar sentido, pois o poema
é ele próprio o seu próprio sentido. Assim o sentido de uma rosa
é apenas essa própria rosa. Um poema é um justo acordo de pala­
vras, um equilibrio de sílabas, um peso denso, o esplendor da lin­
guagem, um tecido compacto e sem falha que apenas fala de si
próprio e, como um círculo, define o seu próprio espaço e nele
nenhuma coisa mais pode habitar. O poema não significa, o poe­
ma cria.
E tendo terminado o debate, levantou-se Melchior, que disse:
- Eu vos agradeço as vossas palavras. Por mim continuarei
a buscar, a escutar e a esperar.
Então retiraram-se os letrados e o rei ficou sozinho no pátio,
em frente da placa de barro, escutando o correr da água e o cair
da noite.

E no mês seguinte reuniram-se no palácio os homens sapien­


tes. Melchior propôs-lhes as dúvidas dos historiadores e dos le­
trados e a nova assembleia deliberou durante trinta dias.
As MAIS BELAS H ISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 353

E no trigésimo dia levantou-se Kish, que disse:


- As multidões ignorantes curvam-se em frente dos ídolos,
mas aqueles que meditam conhecem a solidão do universo. Olie
redentor poderemos esperar? O universo é como uma máquina
bem regulada que sem princípio nem fim gira lentamente através
das idades e dos ciclos. Nas constelações e nas luas, nos triângu­
los e nos círculos, encontrarás as leis dos números que se cum­
prem e se cumprirão inexoravelmente. Olie redenção poderemos
esperar?
E falou depois Maro, que disse:
- Os deuses que existiram extinguiram-se há muito e aquilo
que adoramos é apenas a cinza do divino. Olial é, na idade em
que vivemos, o homem que viu um anjo? Onde está aquele que
ouviu, com os seus ouvidos de carne, a palavra de Ísis ou de As­
sur? Vivemos um tempo de viuvez e todas as coisas se tornaram
cegas e surdas. Num mundo de injustiça e de desordem tentamos
sobreviver como animais perseguidos. Oliebrou-se o laço que nos
ligava ao universo atento. Podemos bater com os punhos na terra,
podemos implorar com a cabeça tocando a poeira. Ninguém res­
ponderá. Cegou o olhar que nos via e o ouvido que nos escutava
secou. Tudo nos é alheio como um lugar que não nos reconhece.
E o brilho dos astros impassíveis cintila sobre a nossa tristeza.
Oliem pode esperar que uma estrela se mova?
Falou em seguida T ot, e disse:
- Nascemos para morrer. Toda a nossa esperança se resolve­
rá em cinza. Onde está o homem que não morreu? O próprio
Alexandre, filho de Ám on, que estabeleceu o seu Império desde
o Egipto até ao reino de Pórus, morreu miseravelmente nos palá­
cios da Babilónia. E no entanto a sua radiosa juventude parecia
mostrar a natureza de um Deus, e era tão grande a sua perfeição
que ninguém a podia julgar mortal. Oliem poderia acreditar que
354 V ASCO GRAÇA MOURA

morresse o seu corpo equilibrado e liso como uma coluna, a sua


inteligência aguda e limpa como o sol, o seu olhar direito que
simplificava todas as coisas, o seu rosto brilhante como um estan­
darte e a sua alegria invencível? Alexandre, príncipe da Macedó­
nia, filho de Ámon, maravilhamento dos povos, conduziu o des­
tino do homem a seus últimos limites, de tal forma que nele
todos julgaram que a natureza humana tinha conquistado o divi­
no. Mas Alexandre morreu no trigésimo terceiro ano da sua vida,
no cimo da sua força e da sua glória, em pleno esplendor da sua
juventude. E assim os deuses nos disseram que o homem não
pode ultrapassar o seu destino, e que o seu destino é um destino
para a morte. Por isso, ó rei, que poderemos esperar? Nada pode
modificar a condição do homem e nesta condição não há lugar
para a esperança.
Qiando os pensadores se retiraram, Melchior levantou-se do
trono e avançou até à mesa de pedra. Entre as grandes colunas
que rodeavam o pátio, a placa de argila parecia extraordinaria­
mente frágil e pequena. Mas o rei tocou com a sua fronte as letras
quase apagadas.

Nessa noite, depois de a Lua ter desaparecido atrás das monta­


nhas, Melchior subiu ao terraço e viu que havia no céu, a Oriente,
uma nova estrela.
A cidade dormia, escura e silenciosa, enrolada em ruelas
e confusas escadas. Na grande avenida dos templos já ninguém
caminhava. Só de longe em longe se ouvia, vindo das muralhas,
o grito de ronda dos soldados.
E sobre o mundo do sono, sobre a sombra intrincada dos so­
nhos onde os homens se perdiam tacteando, como num labirinto
As MAIS BELAS H ISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 355

espesso, húmido e movediço, a estrela acendia, jovem, trémula


e deslumbrada, a sua alegria.
E Melchior deixou o seu palácio nessa noite.

III
BALTASAR

O rei Baltasar amava a frescura dos j ardins e sorria ao ver na água


clara dos tanques o reflexo da sua cara cor de ébano.
E amava a alegria, o rumor e a abundância dos banquetes,
e muitas vezes as suas festas duravam até ao romper do dia.
Porém, certa madrugada, depois de se terem retirado todos
os convivas, o rei ficou na grande sala, sozinho com um jovem es­
cravo que tocava flauta.
E pareceu-lhe que a melodia desenhava no ar o contorno de
um espaço vaz10.
Então o seu coração ficou pesado de tristeza, e Baltasar pen­
sou: «Será possível que um dia eu me retire da vida como um
conviva saciado que se retira de um banquete? Ou terei sempre a
mesma sede, a mesma fome, o mesmo desejo dos momentos
e dos dias?»
E tendo pensado isto atravessou a porta da sala e saiu para
o jardim.
Cá fora, na luz indecisa da antemanhã, o jardim parecia sus­
penso. A bruma confundia o desenho claro dos tanques e diluía
no ar o contorno das ramagens.
Baltasar caminhou longamente entre flores e palmeiras até
romper o Sol. E quando já era dia chegou a um pequeno terraço
que ficava no extremo do j ardim. Debruçou-se no parapeito e
viu, do outro lado da rua estreita, um homem jovem, encostado
a uma parede, que o olhava.
356 VASCO G RAÇA MOURA

Baltasar ficou imóvel como se o rosto do outro lhe tivesse ba­


tido na cara. Ou como se o rosto do outro de repente fosse o seu
rosto. Ou como se pela primeira vez na sua vida tivesse visto a
cara de outro homem.
O que naquele rosto mais o surpreendia era a nudez, a evi­
dência nua. Era como se naquele rosto o cerimonial da vida tives­
se retirado a sua máscara e a realidade mostrasse, sem nenhum
véu, o abandono, a dor consciente, a condição do homem.
Era um rosto de homem jovem e magro onde os ossos dese­
nhavam, sem nenhum equívoco, o ideograma da fome. A tristeza
subia da mais profunda morada da memória e aflorava inteira à
tona das pupilas. A paciência, como uma leve cinza, poisava na
testa, sobre os beiços, sobre os ombros. E havia nessa paciência
uma doçura tal que Baltasar sentiu de súbito uma vontade aguda
de chorar e de se prostrar com a sua própria cara encostada à terra.
E perguntou:
- Tu, quem és?
- Tenho fome - murmurou o homem.
- Entra - disse Baltasar. - Vou mandar que te sirvam os
melhores frutos, as melhores carnes, os melhores vinhos. Vou
mandar que lavem os teus pés com água perfumada numa bacia
de ouro. Vou mandar que te vistam de púrpura. Vou mandar aos
meus músicos que toquem para te aprazer as mais belas melodias.
Vou mandar vir para ti a tocadora de cítara. Eu próprio colocarei
debaixo dos teus pés o tapete mais precioso, e ficarei sentado ao
teu lado para desfazer a tua solidão, e escutarei as tuas palavras
para que possas tomar parte na alegria e para que as fontes e os
jardins do palácio apaguem a tua tristeza.
Porém o homem, ouvindo estas palavras, assustou-se. No
rosto negro, debruçado na luz branca do terraço, reconheceu com
terror o rosto do rei. E pensou:
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 357

«Ai de mim! Para que me chama o rei? Vim espreitar o seu


palácio e isto sem dúvida é um crime. É melhor que eu fuja antes
que os guardas cheguem.»
Pois aquele homem, como todos os muito pobres, sabia que
o mundo era governado por leis que o perseguiam e condenavam,
e por isso temia a cada instante ser acusado e preso por uma ra­
zão desconhecida. Caminhava num país que não era o seu e onde
tudo era para ele insegurança e temor.
E por isso fugiu, sumiu-se ofegante entre as curvas da ruela
estreita, sem ver o gesto de Baltasar que o chamava.
E no palácio o rei disse aos seus guardas:
- Ide e procurai nas ruas um homem jovem magro, vestido
de farrapos e que tem os olhos cheios de tristeza e de paciência.
Porém, ao cair da tarde, os guardas voltaram e disseram:
- Encontrámos tantos homens esfarrapados, tristes e pa­
cientes que não soubemos distinguir aquele que tu procuras.
Por isso na manhã seguinte o rei Baltasar, tendo despido os
seus vestidos de púrpura, envolveu-se num manto de estamenha
e saiu sozinho do palácio para procurar o homem.
Desceu pelas ruelas estreitas da encosta, e, longe das grandes
avenidas triunfais onde a brisa faz sussurrar as folhas duras das
palmeiras, percorreu longamente os bairros pobres da beira do rio.
Os carregadores do cais ergueram para ele a face sombria, e o ho­
mem que vendia os sapatos de corda poisou no olhar do rei o seu
olhar cansado. Viu homens dobrados sob os fardos, viu os que
puxavam carroças como bois, lentos e pacientes como bois, viu os
que usavam grilhetas nos pés, viu os que deslizavam rente às pa­
redes, silenciosos como sombras, viu os que gritavam, os que
choravam, os que gemiam. Viu os que estavam sós, imóveis, en­
costados aos muros, atónitos, interrogando, para além da voz
rouca das ruas, o silêncio opaco, fitando em sua frente a estrada
358 VASCO GRAÇA MOURA

recta do silêncio. Viu os que pescavam pequenos peixes nas águas


sujas do rio. Viu os que tinham a cara cor de trapo e as mãos feitas
de cinza, cinza leve que voava com o vento. Viu a sombra verde,
o reino da paciência, o país da desolação sem margens, o império
dos humilhados, o lado esquerdo da vida, a Pátria deserdada,
o fundo do mar da cidade.

E no dia seguinte o rei reuniu os seus ministros e disse-lhes:


- Mandai distribuir os meus tesoiros e mandai distribuir as
reservas acumuladas nos armazéns e nos celeiros. E reparti tudo
entre os esfomeados e os pedintes.
Tendo ouvido isto, os ministros retiraram-se para deliberar.
E voltaram passados três dias, e responderam:
- Os teus tesoiros não chegam para resgatar os escravos, e
as reservas dos teus armazéns não chegam para saciar os esfo­
meados. Nem o teu poder chega para alterar a ordem da cidade.
Se cumpríssemos aquilo que mandaste, os fundamentos que nos
sustentam e os muros que nos protegem ruiriam. O teu desejo
é contrário ao bem do reino.
E o rei lhes respondeu:
- Procuro outra lei e procuro outro reino.
Então os ministros retiraram-se, murmurando entre si:
- Vemos que ele nos trai.

Na manhã seguinte, dirigiu-se Baltasar ao templo de todos os


deuses.
E leu estas palavras gravadas na pedra do primeiro altar:
«Eu sou o deus dos poderosos e àqueles que me imploram
concedo a força e o domínio, eles nunca serão vencidos e serão
temidos como deuses.»
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTIJGUESAS DE NATAL 359

Seguiu o rei para o segundo altar e leu:


«Eu sou a deusa da terra fértil e àqueles que me veneram con­
cedo o vigor, a abundância e a fecundidade e eles serão belos e fe­
lizes como deuses.»
Encaminhou-se o rei para o terceiro altar e leu:
«Eu sou o deus da sabedoria e àqueles que me veneram con­
cedo o espírito ágil e subtil, a inteligência clara e a ciência dos nú­
meros. Eles dominarão os ofícios e as artes, eles se orgulharão
como deuses das obras que criaram.»
E tendo passado pelos três altares, Baltasar interrogou os sa­
cerdotes:
- Dizei-me onde está o altar do deus que protege os humi­
lhados e os oprimidos, para que eu o implore e adore.
Ao cabo de um longo silêncio, os sacerdotes responderam:
- Desse deus nada sabemos.

Naquela noite, o rei Baltasar, depois de a Lua ter desapareci­


do atrás das montanhas, subiu ao cimo dos seus terraços e disse:
- Senhor, eu vi. Vi a carne do sofrimento, o rosto da humi­
lhação, o olhar da paciência. E como pode aquele que viu estas
coisas não te ver? E como poderei suportar o que vi se não te vir?

A estrela ergueu-se muito devagar sobre o Céu, a Oriente.


O seu movimento era quase imperceptível. Parecia estar muito
perto da terra. Deslizava em silêncio, sem que nem uma folha se
agitasse. Vinha desde sempre. Mostrava a alegria, a alegria una,
sem falha, o vestido sem costura da alegria, a substância imortal
da alegria.
E B altasar reconheceu-a logo, porque ela não podia ser de
outra maneira.
Reputação
Fernando Namora

IA CONQUISTANDO OS PRIMEIROS ADMIRADORES e os primei­


ros inimigos.
Lá p ara os confins da campina, quando a terra rasa se
levanta furiosamente em soberbas escarpas, há uma pequena
aldeia de contrabandistas . O homem rico dessa aldeia é um
comerciante . A sua loj eca engana o turista ingénuo: poucos
sabem que se cruzam ali os artigos que interessam aos dois po­
vos da fronteira, consoante as variações da moeda e dos merca­
dos. Rico, aluga os homens válidos da região, protege as peque­
nas esperanças do burgo, o seu querer é poderoso.
A terra não tem farmácia. Há uma suj a drogaria que vende
riscados, tintas e drogas de reputação popular. A primeira vez
que atravessei a campina, o comerciante Botinas pediu-me
complacência para o seu afilhado da drogaria. Ofereceu vinho
do Porto, ovos com presunto, e a sua casa para os dias de visita
à aldeia.
Duma das vezes, já no regresso para a vila, um homem es­
falfado veio alcançar-me a meio caminho: adoecera um filho do
sr. Botinas. Achei estranha essa doença súbita, uma hora de­
pois de me ter despedido do comerciante, e retrocedi de mau
humor.
362 V ASCO GRAÇA MOURA

O frio empertigava as raras árvores da planície. O vento de


Espanha, assim que transbordava a sua füria pelo gume das ser­
ras, varria a campina, vasta e desprotegida.
O pequeno doente estava num dos quartos interiores. Uma
cama de criança, uma cómoda com oratório e manchas esverdea­
das nas paredes, ressumando humidade. A mãe tinha o rosto afo­
gueado de lágrimas e veio atender-me à entrada do quarto, como
se logo ali esperasse de mim um milagre. O sr. Botinas sorria, en­
trelaçando os dedos. Tentava justificar essa chamada importuna.
A dentadura postiça, demasiado regular e branca, fez-lhe o sorri­
so repugnante.
- Diga-me a verdade: o garoto está marralheiro há uns dias.
Inchou-lhe o pescoço, mas parecia uma mordedura de vespa.
Não o quisemos incomodar por tão pouco; só depois de o senhor
doutor ter saído é que o inchaço cresceu assim. Começou a respi­
rar mal. A mãe, coitada, ficou em ânsias. Desculpe.
O pescoço e o peito da criança tinham uma cor fosca, pare­
ciam soprados. O edema branco alastrava insidiosamente, camu­
flando o relevo dos músculos. O doente respirava com dificulda­
de, abrindo covas na carne.
- Ele está muito mal, senhor doutor.
A mulher olhava para nós, a implorar que lhe negássemos as
suspeitas. A porta, apareceu também o afilhado da drogaria. De­
pois de observar o garoto, descobri-lhe um ponto negro, coroado
de orvalho; a escara do centro tinha sido aberta e já não apresen­
tava nenhuma característica de interesse. Mas suspeitei de car­
búnculo.
- Estamos numa terra de carbúnculo, sr. Botinas. E o seu
filho já tem um há muitos dias.
Marido e mulher encararam o droguista como se lhe exigis­
sem explicações.
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 363

- Parecia uma angina, ou coisa assim - disse este, apreen­


sivo. - Então não é o que lembra, senhor doutor? Para não o in­
comodar por coisa pouca recomendei ao sr. Botinas umas toalhas
quentes e uma pomada.
- Mas o senhor mexeu nesta bolinha negra?
- Mexi. Era um furunculozito que queria rebentar.
Passei várias vezes a mão pelo rosto e contive-me. O caso ti­
nha remédio e poderia servir de lição a esses atrevidos que joga­
vam com a vida e com a morte sem ninguém lhes pedir contas.
Vira dezenas de doentes, inchados como bichos, vencerem a
doença, apesar de tudo. Noutros tempos, bastava um ferro em
brasa. E resistiam. O droguista, aligeirando a perna coxa, foi bus­
car o soro da sua loja. Retalhos espessos, desligados, boiavam no
líquido turvo. Desconfiei do soro. Enquanto o sacudia à luz da
janela, o droguista olhava-me com malvadez.
- Há quanto tempo tem isto em casa?
- Há uns quinze dias, se tanto.
- Eu não dou este soro!
- Pois veio da farmácia da vila e já curou muita gente.
O droguista dirigia-se em particular ao sr. Botinas, como se
ele, seu padrinho e dono da aldeia, fosse o juiz da causa. O garoto
gemia, de olhos pisados, a sua respiração parecia subitamente es­
ganada pelo edema. Premi-lhe o pulso, enquanto fixava, quase
abstracto, os seus lábios azulados. A mãe arrumou as minhas he­
sitações:
- Se desconfia do remédio, senhor doutor, vai já um ho­
mem à vila.
Apoiei a ideia. Horas depois, apliquei o soro. O droguista de­
saparecera para não voltar.
Qiando regressei à vila, já ia preocupado. Soro, sulfamidas,
arsénio, iodo. A rotina de sempre. Por esse tempo, falava-se da
364 V ASCO GRAÇA MOURA

penicilina como de uma maravilha do futuro. Ainda bem que o


sr. Botinas tinha em casa uma reserva de sulfamidas. Alguma coi­
sa no doente me dizia que a infecção tinha cravado fundas garras.
O povo e nós próprios já considerávamos o carbúnculo um aci­
dente desprezível; mas alguns haviam-me custado noites ator­
mentadas.
Estávamos em vésperas de Natal. A violência do Inverno fa­
zia desejar a brandura do lar. Fugia a galope da campina gelada
para a olhar depois lá do alto da minha casa. Lume, livros, a mi­
nha janela suspensa sobre a amplidão. Lá fora, o nevoeiro a con­
tornar as faldas das serras, a paisagem encarquilhada de frio, os
musgos a vestir as fragas. O meu inefável lume - doce barreira
de fogo a oferecer-me um intervalo de paz. Rudes e desterradas
montanhas! E a minha vida virilizada.
No dia seguinte, voltei à aldeia. No caminho chamaram-me a
casa dum camponês. Alguém falou do filho do Botinas.
- Dizem que o senhor doutor demorou muito a atalhar a
doença.
- Qiem o diz é porque sabe. - Fingi indiferença, mas as
minhas veias latejavam. A resposta não saciou a curiosidade do
camponês:
- Dizem que havia soro, mas o senhor, para descontentar o
afilhado do sr. Botinas, mandou vir outro da vila. O pequeno está
a morrer, senhor doutor?
O acolhimento do sr. Botinas confirmou estas insinuações.
A sua dentadura já não ria. A mulher tinha o filho ao colo, mole,
sem vida. Os olhos fechados, a expressão desfigurada; todo ele
oferecido à doença.
- Temos de fazer alguma coisa, senhor doutor: o meu filho
está muito mal. O soro que veio da vila não lhe fez nada.
Os meus nervos pareciam arranhados por lâminas. Encres­
pei-me perante o rico e poderoso sr. Botinas.
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTIJGUESAS DE NATAL 365

- O soro não fez nada, é verdade. E talvez nem carradas


dele. Mas a culpa é sua, que deixou o doente escondido nesse
quarto, à espera da morte.
A mulher ganiu como uma fêmea maltratada; o marido em­
palideceu. E um e outro se enfrentaram. Tinham certamente
mútuas recriminações a fazer. Chegava a haver desafio e ódio no
olhar de ambos. Mas, de súbito, ficaram humildes. O eco das mi­
nhas palavras soava ainda, mas ninguém procurou justificar-se.
Esquecemos o azedume. Eu queria lutar com desespero contra
a doença, chamá-la a mim, vigiá-la infatigavelmente; reanimar
de vida esse corpo vencido. Mais soro, mais tónicos, tudo o que
havia à mão. Foram horas de febre, às vezes de desalento, outras
de esperança, ao lado do inimigo que se apoderava irresistivel­
mente duma vida.
Qyando saí de casa do sr. Botinas, mulheres e garotos sufoca­
vam a rua. Atrás de mim, o rumor sem voz, coleante, cobarde.
Na vila, o farmacêutico deixou-me fumar um cigarro e de­
pois, de repente, enquanto dispunha as pedras do gamão, disse:
- O pequeno salva-se? O caso pode ser feio para o senhor.
Por aqui não estão habituados a ver gente morrer de carbúnculo.
- Se o garoto morrer, não fico nada contente, pode estar
certo. Tenho feito o possível.
- Chegou hoje aqui o estafeta a contar que o droguista lá da
terra diz que o médico não vale nada; que não sabe curar carbún­
culos. O pai da criança não estava satisfeito. Desculpe, doutor,
mas tinha o dever de avisá-lo.
Esclareci o meu amigo farmacêutico sobre os pormenores do
caso e deixei-o a clamar contra as vozes do mundo. Fui para casa
escrever uma carta ao sr. Botinas; convidava-o a procurar outro
médico e insinuava que não era meu desejo prestar-lhe novos ser­
VIÇOS.
366 VASCO GRAÇA MOURA

O tempo amainara. O ar gelado e calmo. As nuvens tinham


interrompido a corrida à frente do vento, estavam suspensas so­
bre as montanhas. E a neve caiu ao fim da tarde. Insidiosa, poi­
sou subtilmente nos ramos desfolhados das árvores, nos telhados,
na extensão irremediável da campina. Abri uma janela; o ar, de
tão áspero e seco, feria como o gume duma faca. Saí à rua, ener­
vado. �eria sentir a agressividade do tempo; precisava de soli­
dão e de alguma coisa verdadeiramente dura a maltratar-me.
Lembrei-me do madeiro do Natal, um majestoso tronco de car­
valho, velho, desventrado, que os camponeses tinham trazido
para o adro da igreja. Seria queimado dia e noite durante o Natal.
�e teria feito a neve das chamas do seu fogo vermelho, que de
noite lembrava um soberbo facho de sangue?
Algumas casas e ruas estavam bloqueadas e encontrei homens
a abrirem regos. As crianças, no adro, faziam marafonas com os
farrapos brancos, escorregavam e riam, maravilhosamente felizes.
Um manto crespo de neve, alvíssimo, cobria o madeiro, contras­
tando com a concavidade chamuscada e negra. Lá dentro, porém,
brasas em fogo lutavam ainda: o Natal do povo não fora sepultado.
Deixei de sentir a pele do rosto, as pontas dos dedos tinham
um formigueiro de insensibilidade, mas continuei ali, absorto,
desafiando o tempo. A neve cobria já toda a verdura dos quintais.
Os aldeãos, passado o deslumbramento, refugiavam-se nos case­
bres; eu era agora a única companhia do madeiro. Depois, al­
guém que subia penosamente a rua de minha casa, fez-me sinais.
O homem escorregou muitas vezes antes de chegar junto de
mim. A sua boca era uma chaminé; o ar morno dos seus pulmões
chegava aos beiços e enrolava-se em baforadas de fumo; um fumo
que o ar gelava rapidamente.
- Venho buscá-lo, senhor doutor. O filho do sr. Botinas está
nas últimas.
As MAIS BELAS H ISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 367

- Escrevi hoje ao sr. Botinas: o estafeta levou a carta.


- Bem sei, senhor doutor. Ele também o disse. Pede muita
desculpa, mas, com um tempo destes, quem quer o senhor que se
vá chamar?
- Isso não é comigo.
O homem encarou-me sem medo. Tinha, o nariz arroxeado
e os olhos vermelhos de lágrimas, de tão fustigados pelo frio.
- Desculpe-me, vim aqui mandado, e não se trata de gente
minha, mas oiço dizer que quem começa um serviço deve acabá-lo.
Voltei costas, enterrando os pés na neve. Precisava de me li­
bertar daquele caso mesquinho, do sr. Botinas e dos seus servos.
Tinha tomado uma atitude e devia mantê-la.
As minhas botas pesavam, encharcadas, como se arrastassem
todo o gelo das ruas. O homem teimou em vir atrás de mim. Es­
preitei ainda o braseiro anichado nas entranhas do velho carva­
lho; o fogo resistia ainda para me lembrar a véspera de Natal.
Todos, lá em casa, tínhamos feito projectos de festejar bem esse
dia. A neve viera para decorar a paisagem, aconchegando-a aos
nossos sonhos. Sentia-me de nervos robustecidos neste ambien­
te de montanhas, neve, amplidão; as minhas raízes de camponês
penetravam, fartas, no horizonte amplo. E vinha uma sórdida
história de carbúnculo abalar tudo isso! Vinha nesta inquietação
surda que era um veneno de insegurança e angústia.
O homem só parou quando eu parei também. Era um rosto
duro e leal. Ele nada tinha que ver com estas pessoas odientas,
que usavam uma arma maldita: a mentira e a incompreensão.
Não seria cobardia desligar-me do apelo do sr. Botinas? Não me
sentiria eu impotente para encarar as dificuldades? A culpa era
deles, mas eu era um médico numa sociedade que tinha o culto
da irresponsabilidade; e, como médico, não podia escolher entre
os casos cómodos e os indesejáveis. Devia ir até ao fim.
368 V ASCO GRAÇA MOURA

E fui. Não se podia pensar num cavalo, num simples jumen­


to, para essas duas léguas de caminho. A neve forrava toda a
campina, escarolando-se debaixo dos nossos pés. Qyem nos guia­
va era a serra, lá longe, eram as casas. Não havia ribeiras nem ve­
redas: árvores nuas, desesperadas, um e outro plátano raiado de
negro nos sítios que tinham sido prados. A planície crescera e ali­
sara com a neve: andávamos, andávamos, e a aldeia cada vez se
afastava mais da brancura infinita. As nossas pegadas deixavam
riscos escuros, longos, sinuosos, pavorosamente solitários; suge­
riam-me histórias de lobos. Eles não rondavam muito longe da
campina. Ainda hoje os cães de gado traziam coleiras com espi­
nhos de ferro. Dois anos antes haviam descido à vila a farejar as
furdas das casas.
Sentíamo-nos estafados. Tínhamos de erguer muito os joe­
lhos para desenterrar os pés. Iria chegar tarde ao doente. Mais
uma vez me atormentava não o ter continuamente debaixo da
minha vigilância. Cada doente em perigo era uma razão de an­
gústia: desejaria colocar-me no seu lugar, chamar a mim o seu so­
frimento, para reagir com alma contra a doença, numa espiona­
gem infatigável que não permitisse o assalto traiçoeiro da morte.
Desejaria vê-lo a meu lado, dia e noite. O doente do hospital era
um caso clínico, uma cama numerada; cá fora, no meio familiar,
era um ser humano, que nos dizia intimamente respeito, cujo
destino se fundia com o nosso.
Ao pé da noite, chegámos à aldeia. Tinha o corpo encortiça­
do de fadiga, vertigens e uma insensibilidade por tudo o que ha­
via à nossa volta. Vagamente, pareceu-me que nos diziam ser já
tarde, que o garoto morrera.
- Morreu?! - perguntou o homem.
- Há mais de três horas.
Estávamos ainda na rua e, por acaso, em frente da drogaria.
O droguista encarou comigo e fechou-me a porta na cara. Mas
As MAIS BELAS H ISTÓRIAS PO RTUGUESAS DE NATAL 369

nada daquilo ainda me dizia respeito: continuava tonto de cansa­


ço. Qie ia agora fazer a casa do Botinas? Aceitei a cama do meu
guia e deitei-me pesadamente. Muito tempo depois, ouvi o re­
gresso do homem. Ele falou baixo para a mulher, embora me jul­
gasse adormecido; ouvi meias frases coadas pelo tabique: «Se ele
o encontra, o médico tem que ouvir. . . » « É pai, coitado, realmen­
te . . . » Aquela gente estoirava-me com os nervos! Apoiei o ouvido
à madeira para escutar melhor. O sr. Botinas achava que eu me
tinha demorado propositadamente. Tinha-me vingado deixando
morrer o filho. O povo falava em soro estragado depois da última
picada, o doentinho ficara logo frio de morte. O soro do droguis­
ta era legítimo, mas eu tinha entendimentos com o farmacêutico
da vila. Outros diziam que eu só muito tarde reconhecera o car­
búnculo.
Arrepanhei a cara com os dedos e decidi abalar da região no
dia seguinte. Nunca seria capaz de adaptar-me a esta gente res­
sentida e desconfiada. Eles eram oprimidos, desgraçados, e des­
pejavam tudo isso naqueles que ainda dependiam da sua desgraça.
No dia seguinte, Natal. Natal no sino, nas ruas, nas pessoas
que tinham rasgado a neve, desde muitos quilómetros, para en­
cher o adro da vila. A neve escorria agora dos telhados, abrindo
rios de água morna nas ruas carameladas. Cheguei à vila gasto
e esfomeado. Não comia nada desde a véspera. Minha mulher,
ao abrir-me a porta, sobressaltou-se com o aspecto do meu rosto.
Apeteceu-me abraçá-la e chorar o dia inteiro. As crianças vieram
lá de dentro para se enrolarem às minhas pernas. O sino tinha
um som cantarolado, a terra gelada clarificava-o com a distância.
A minha neve, as minhas altivas montanhas - e, pisando-as, um
povo que eu julgara amigo, que se identificava na própria missão
da minha vida, e que me traía!
3 70 VASCO GRAÇA MOURA

Mas outros sinos varavam a campina, de lés a lés, com a füria


do mal ou do vento. Sinos que anunciavam a morte do filho do
Botinas, sinos de luto, sujando a campina imaculada, sinos mal­
vados.
A notícia do meu fracasso chegara à vila antes de mim.
A criada veio contar que na loj a do merceeiro meu vizinho
(a quem eu oferecia uns chás suculentos) se dizia que eu deixara
morrer uma criança por não conhecer ainda os carbúnculos.
O farmacêutico, à noite, veio à nossa festa. Ao ver a família
distraída, arrastou-me para um canto. Esfregados os óculos, mi­
nuciosamente, numa tensa e muda introdução à nossa conversa,
disse:
- Qie houve afinal por lá? A idade e a minha estima permi­
tem-me este atrevimento, doutor . . .
- E u sei, eu sei, senhor Relvas . . .
- É verdade que s e recusou a socorrer a criança e que s ó aca-
bou por ir depois de ameaçado? O resto, a pulhice do resto, já
o senhor me contou. Mas de tudo isso fica sempre alguma coisa.
É o diabo. Desculpe a franqueza.
Ficou ainda a limpar as lentes furiosamente, como se estives­
se zangado consigo próprio.
Dias depois, uma mulher das aldeias que cercavam a planície,
trazia-me um rapaz doente. O jerico parou ali à beira do chafariz.
Com o lenço atado por debaixo do chapeirão, o rapaz abanava
como um arbusto. A mãe perguntou onde eu morava. Uma das
mulheres olhou primeiro as janelas da minha casa e depois confi­
denciou:
- Se o seu filho está mal, há outras providências. Este dou­
tor de cá está muito verde. Irá aprendendo, como todos, à custa
do corpo dos pobres. Há quem goste dele e o povo ia-se habi­
tuando, mas agora deixou morrer uma criança de carbúnculo.
Ainda não conhece as doenças.
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 371

A mulher voltou o focinho do burro para as nogueiras do


barroca! e foi procurar outro médico. Na sua terra, o povo ia tam­
bém saber dos meus fracassos.
Chegara a oportunidade de a Emília Caraga espalhar o que,
havia muito, trazia dentro do peito. O seu filho atacado de bron­
quites que se enfiavam umas nas outras, fora por mim tratado
com injecções de . . . sangue da mãe. Sangue da mãe! envenenado
de doenças e misérias. Foi preciso que passasse ali o mestre Di­
mas para lhe abrir os olhos:
- Salva o ganapo a tempo, cachopa! Dá-lhe um lambedoiro
de seiva de pinheiro, não te fies em rapazelhos.
Agora que o povo sabia quem eu era, a Emília Caraga já po­
dia contar que o médico lhe quisera envenenar o filho. Estava fei­
ta a minha reputação.
Razão de o Pai Natal
ter barbas brancas
Jorge de Sena

Para os filósofos, como meditação demonológica acerca do


VIII poema de «Ü guardador de rebanhos» de Alberto Caeiro.
Para as crianças grandes, como apólogo humorístico.
Para os meninos pequenos, como verdadeiro conto de Natal.

COMO TODA A GENTE SABE, e os meninos melhor que ninguém,


o Natal é uma coisa muito velha. O que nem toda a gente sabe
é que, no princípio, ele não era pai; nem era velho, e não tinha,
portanto, barbas brancas. Assim, quando o Menino Jesus nasceu,
já todos os meninos punham o sapato na chaminé.
A única diferença era que a chaminé não tinha, como hoje,
fogão de gás ou fogareiro. Depois, com o Menino Jesus, veio ou­
tra diferença: também ele punha o sapatinho, que, por acaso, era
uma sandália.
Isso durou pouco? Não, porque o Menino Jesus só cresce e
se faz homem quando os outros meninos crescem e julgam que
se fazem homens. O que, e lá isso é verdade, não acontece a toda
a gente, como os meninos terão muito tempo para ver. Mas isso
é já outra história, que os meninos aprenderão, sem que ninguém
lha conte.
A que vou contar começa quando o menino Jesus ia fazer sete
anos, idade que é muito importante, visto que são sete as maravi­
lhas do mundo. O menino Jesus, como os outros meninos, tinha
3 74 VASCO GRAÇA MOURA

vontade de crescer e não acreditava no Natal. Ele bem sabia


quem punha os brinquedos na sandália (era a mãe), e, por não
haver então lojas de brinquedos, e, mesmo que houvesse, não te­
rem os pais do menino Jesus dinheiro para os comprar (os brin­
quedos já eram muito caros), ele bem vira São José estar a fazer
uma carrocinha, às escondidas. Por isso, naquela tardinha, sem­
pre muito comprida, que há antes da noite de Natal, noite que,
por sua vez, é a mais comprida do ano, o que lhe valeu ser ela a
Noite de Natal; por isso, como ia dizendo, o menino Jesus, que
estava à espera de lhe darem a carroça, fingia que se não importa­
va, fingia, até, não esperar coisa alguma. A tarde estava muito
bonita, segundo me disseram, e é natural que estivesse: o Natal ia
ser pai e, o que é muito mais, ganhar as suas barbas-brancas.
O céu fazia-se verde e amarelo e cor-de-rosa, que são cores que
as pessoas grandes não gostam de ver no céu, e que todos os me­
ninos sabem que lá se vêem muito bem. O menino Jesus, é claro,
via-as melhor que ninguém. E, então, para disfarçar, começou a
contar as nuvenzinhas soltas, que estavam todas paradas, muito
quietas de propósito para ele contar - mal imaginavam o que
lhes ia acontecer. O menino Jesus sentara-se numa pedra (pedra
que ainda lá está na terra dele, embora ninguém saiba qual é),
à beira do caminho, e, com uma varinha (que não era de condão,
pois só as fadas precisam desses objectos), fazia riscos na poeira.
A poeira, coitada, era mais lama que outra coisa, porque chovera
de manhã, e o sol não tivera tempo de a secar. Ora, o menino Je­
sus, umas vezes olhava para o céu, outras olhava para o chão, e
qualquer pessoa com dois dedos de testa logo perceberia que ele
estava a desenhar as nuvens. Mas parece que estas coisas são mui­
to difíceis de perceber, como os meninos sabem pelas perguntas
parvas que muitas pessoas crescidas costumam fazer.
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 375

- Qye estás tu para aí a riscar, pequeno?


O Menino Jesus voltou-se (quando nos fazem perguntas des­
tas, a gente está sempre de costas), e viu um homem muito bem
vestido que até parecia mentira. O menino não se deixou enga­
nar, porque a pergunta estragara o fato do homem, e era como se
estivesse todo rasgado e com a fralda de fora.
- Estou a fazer riscos.
- Isso vejo eu. Qye riscos?
- Só riscos.
O homem mostrou uma cara muito má, e o Menino Jesus foi
pondo os pés a jeito, para o caso de ser preciso levantar-se de re­
pente e fugir a correr.
- Estás a armar em esperto, mas a mim não me enganas.
O Menino Jesus, que estava farto de enganar imensa gente,
riu-se, mas só por dentro, por causa da má cara do homem.
- É mal fazer riscos? - perguntou.
- Se é! Ora experimenta lá.
O Menino Jesus ficou desconfiado, e traçou um risco, um
muito pequenino. E qual não foi o seu espanto ao ver a varinha
ficar presa ao chão! Ver não viu, mas quis tirá-la e não pôde.
Claro que, dessa feita, quem se riu foi o homem. Ora é sabi­
do que o diabo não se pode rir muito alto, porque lhe sai enxofre
pelos intervalos do riso. E assim aconteceu. O Menino Jesus sen­
tiu o cheiro, viu o fumozinho �· sair da boca do homem, era quase
noite (anoitecera quase de repente), não passava ninguém na es­
trada, ele estava um bocado longe de casa, e, apesar de ser quem
era, teve medo, um medo enorme, um medo ainda maior que
o diabo.
Estão a ver o Menino Jesus nestes assados. Qye faria qualquer
menino? Evidentemente, não mostrava medo, que é a melhor
376 VASCO GRAÇA MOURA

maneira de assarapantar o demónio. Foi o que ele fez. Fingiu que


não queria a vara para nada (e queria porque era uma bela vara,
muito direita), e disse:
- Bem, são horas de voltar para casa.
- Ah, sim? E por quê? - (o diabo a ver se ele caía.)
- Tenho lá o Natal à minha espera.
O diabo sentiu vontade de rir; mas, aflito com o fiasco do
fumo pelos intervalos do riso, mordeu os lábios e perguntou:
- O Natal? Mas que Natal é esse?
- Se calhar não sabe o que é! - exclamou o Menino Jesus,
e tentou levantar-se. Aí é que foram elas! Estava pregado à pedra,
como a vara à lama. Um caso sério! Se ao menos passasse al­
guém! Mas qual! Nem vivalma, que o diabo não conta, não é
gente. E como nessa altura ainda não havia santos por quem cha­
mar, a Nossa Senhora estava em casa, e o Menino Jesus, apesar
de saber que era Menino Jesus, não sabia que era filho de Deus,
não havia salvação possível. Não havia! . . . Nisto, porque era um
menino igual aos outros meninos, teve uma ideia luminosa. Era
perigoso, mas o único remédio.
- Dá-me a sua mão? Ajuda-me a levantar daqui?
Mesmo o que o diabo queria! E com os olhos a luzir de gozo,
o diabo estendeu-lhe a mão. O pior foi esquecer-se - e o diabo
nestas alturas é muitíssimo esquecido - de firmar-se bem nos
pés. O menino, mal lhe deu a mão, pôde levantar-se . . . e zás: me­
teu uma perna entre as do diabo e deu-lhe um encontrão. O dia­
bo desamparado (é como ele está sempre, não se esqueçam), es­
bracejou e estatelou-se na lama, que, naquele sítio, estava muito
bem amassada pelas rodas dos carros, mesmo destinada a trasei­
ros do diabo. E quando se ergueu, furioso, todo sujo, o menino
Jesus já ia longe, e até parecia que levava asas nos pés. Ao entrar
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 377

em casa, ofegante, o Menino Jesus voltou-se para trás e ainda viu,


na noite escura, um clarão de raiva.

II

O Menino Jesus não disse nada a ninguém. Sentia-se tão conten­


te por ter feito o diabo estatelar-se em plena estrada! Mas uma
coisa o preocupava: o diabo ficara sabendo que ele estava à espera
do Natal, porque lhe tinha dito que o Natal estava à sua espera
- ora o diabo percebe tudo ao contrário, e ficara portanto a sa­
ber a verdade. Era inevitável que apareceria, pela calada da noite,
e vestido de outra maneira, para não ser conhecido. Viria com to­
da a certeza. E agora? Agora . . .

III

Alta noite, o Menino Jesus, que se fora deitar a dormir com um


olho aberto e outro fechado, ouviu os pais levantarem-se, e irem,
pé ante pé, para a lareira, onde ele, é claro, antes de deitar-se,
pusera a sandália do pé direito. Como se sabe esta sandália é
sempre melhor que a outra, e deve preferir-se em tudo: chami­
nés, pontapés, etc., a menos que se seja canhoto dos pés, o que é
muito raro.
O Menino Jesus estava de costas voltadas à lareira porque fa­
zia frio, e porque, também, se estivesse de frente, logo se veria
que não dormia e espreitava. É evidente que a casa era muito pe­
quena e pobre, e os quartos eram um só, dividido em dois, por
cortinas muito velhas, que Nossa Senhora se cansava a remendar
3 78 V ASCO GRAÇA MOURA

e o Menino Jesus a esburacar. Ora, o Menino Jesus, mal os pais


se recolheram, sentou-se na cama, que, pela mesma razão de a
casa ser pequena, era um colchão no chão, com pouca roupa, tão
pouca, que o menino raras vezes se despia, muito menos no Inver­
no. Era, sem dúvida, um mau costume, mas também o Inverno é
um mau costume, que, além de ser preciso para a terra descansar,
se repete invariavelmente todos os anos: e o Menino Jesus apesar
de ter só sete, já muito bem sabia que, quando tinha frio, era mes­
mo frio o que tinha. Sentou-se, pois, na cama. O lume, na chami­
né, apagava-se pouco a pouco; viam-se as faúlhas correndo pela
madeira, umas atrás das outras, enquanto as pontas dos troncos
iam ficando brancas. O diabo não tardava aí. Um estalido. O Me­
nino Jesus olhou para a porta. Não era nada. Depois sentiu passos
na terra batida. Olhou: era um rato. O rato andou de um lado pa­
ra o outro (e se o rato fosse o diabo disfarçado?), até se convencer
de que tais pobretões nem na noite de Natal deixavam cair miga­
lhas. Passou muito tempo - ao Menino Jesus parecia imenso
tempo -, tanto, que nunca mais acabava de passar. Eis senão
quando - . . . vinha alguém pela chaminé abaixo. Oh se vinha!
Com o lume assim a apagar-se, não se via nada; mas, para quem
entrasse pela chaminé, ainda era luz que chegasse. E chegava:
apareceram umas sandálias, umas pernas, uma fímbria de túnica
vermelha (é o diabo, pensou o Menino Jesus), mais túnica verme­
lha, ainda mais túnica vermelha, até que uma figura ficou de pé,
ao lado do fogo, e deu uns passos para dentro de casa. Trazia um
saco às costas. Era o diabo! O Menino Jesus ficou . . . calculem co­
mo ele ficou, porque, no fundo, muito lá no fundo, não esperava
que o diabo voltasse. E ali estava ele, com saco e tudo. Viu o dia­
bo abaixar-se e pegar na carrocinha, que estava mesmo em cima
da sandália. É preciso dizer-se que a carroça não era muito gran­
de, mas também não era muito pequena, e mais caberia a sandália
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTIJGUESAS DE NATAL 379

na carroça, do que a carroça na sandália. Não, lá isso não! Nunca


tinha um brinquedo senão os que inventava e fazia, e aquele, tão
bonito, o diabo vinha buscá-lo! E mesmo que não fosse bonito,
não lho dava. Brinquedos a diabos! Toda a gente sabe que o dia­
bo não brinca e, por isso, faz asneiras! Não, lá isso não! E saltou
da cama, correu para a chaminé . . . e tirou a carrocinha da mão do
demónio, que, já a abrir o saco, nem dera por ele.
- Boa noite! - disse o diabo, com voz maviosa.
- Boa noite. . . Por que é que não entrou pela porta? Era só
bater, que eu abria - perguntou o Menino Jesus, pondo a carro­
ça debaixo do braço.
- Para não acordar ninguém . . .
- E u estava acordado.
E o diabo, muito ingenuamente, como se não fosse ele:
- Ai que linda carroça! Qiem lha deu?
- Tem alguma coisa com isso?! Qie é que o senhor quer?
- Eu só queria brincar com a carroça. Deixa-me brincar um
bocadinho?
- Não tem vergonha de ser tão grande e querer brincar ain­
da? - (era o que a mãe lhe dizia, quando ele andava pela casa
a fazer das suas).
- Eu? Vergonha? - e o diabo ia rir-se, mas tornou a lem­
brar-se do fiasco do enxofre pelos intervalos do riso. - Então
não me deixas brincar?
O Menino Jesus dava voltas à cabeça, e não achava maneira
de livrar-se dele. Só se fosse . . .
- Sempre quer? Mas s ó u m bocadinho.
- Como? Como? - (o diabo todo satisfeito.)
- Eu faço de carroceiro e o senhor faz de cavalo.
- Vamos a isso! Vamos a isso! - E o diabo logo de gatas,
para ele o atrelar à carroça.
380 V ASCO GRAÇA MOURA

A carroça estava muito bem-feita; não lhe faltava nada, até


arreios tinha. Foi nessa altura que o Menino Jesus, ao reparar nas
barbas brancas que o diabo trazia (barbas, aliás, de uma brancura
imaculada), viu bem o que lhe convinha fazer. Muita gente julga
que o diabo pode esconder tudo o que é e tem, menos os pés de
cabra; manifestamente isso não é verdade, como se depreende
desta história, em que ele aparece de sandálias, com a perna à
vela. Se as pernas eram dele ou emprestadas, o Menino Jesus
tinha muito mais em que pensar: E pensou e disse:
- Não te posso pôr a cabeçada (como o diabo fazia de cava­
lo, tratava-o por tu - não era por ser o diabo), as tuas barbas são
tão compridas! E tão bonitas, que se estragam!
E o inimigo, muito convencido, a cofiá-las:
- São bonitas, não são? Bem me custaram a arranjar.
O Menino Jesus então ficou logo a saber o que queria. E tor­
nou a dizer: - Não te posso pôr a cabeçada; e, se não ponho,
como hás-de puxar a carroça?
O diabo, que não tem paciência nenhuma (e por isso é tão
fácil de reparar, quando começa a estorcer-se), o que queria era
acabar com aquela paródia, tanto mais que lhe parecia o Menino
Jesus já ter dado por ele (e só parecia, porque o diabo nunca tem
a certeza). E, por isso, propôs: - Mas eu levanto as barbas, e tu
passas a cabeçada . . .
Assim s e fez, e o Menino Jesus, quando ele a s levantou, viu
a barba de chibo, pêra retorcida, que o diabo nunca pode tirar,
como se está a ver. As barbas brancas, tão imaculadas, é claro
que eram postiças.
Mal o atrelou bem atrelado, o Menino Jesus, convencido de
que o diabo desapareceria e deixaria a carroça, disse uma palavra
secreta que sabia (todos os meninos sabem palavras dessas, só não
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 381

sabem qual serve). O diabo ficou na mesma. O Menino Jesus en­


tão disse outra. O diabo, nada. Ia o Menino Jesus a dizer a tercei­
ra, pergunta o diabo, já aborrecido, como era de calcular:
- Qye raio de brincadeira é esta que nunca mais começa?
O Menino Jesus puxou-lhe pelas barbas e gritou a terceira
palavra, a mais forte de todas . . . O diabo deu um estoiro, como os
automóveis quando querem arrancar, e saiu pela porta fora, com
tanta força, tanta, tanta, tanta, que a atravessaram ele e a carroça,
de uma vez - e a porta ficou inteirinha no mesmo sítio.
O Menino Jesus, com as barbas postiças na mão, abriu caute­
losamente a porta. Não se via um palmo adiante do nariz, mas
não se viam também, nem o diabo nem a carroça . . . Nisto, as bar­
bas soltaram-se da mão do menino, e começaram a subir ao céu,
e a crescer, a crescer, a crescer, e, quando chegaram lá acima,
já chovia a cântaros. Está-se mesmo a ver que as barbas eram as
nuvens que o Menino Jesus contara.
O menino voltou para dentro e fechou a porta bem fechada;
em casa não se via nada, porque o lume se apagara de todo.
O Menino Jesus, muito devagarinho, meteu-se na cama. Estava
ele a pensar na carroça, ouviu São José dizer: - Não ouviste um
estoiro? E a voz de Nossa Senhora a responder: - Ouvi. Dorme
descansado. São coisas do diabo.
Sua mãe sabia! O Menino Jesus ainda ficou, se é possível,
com maior admiração por sua mãe.

IV

Como a noite de Natal é muitíssimo comprida, a história não


acaba aqui; tanto mais que ainda se não ficou a saber a razão de
o pai Natal ser pai e ter enormes barbas brancas.
3 82 VASCO GRAÇA MOURA

O menino, se quando se deitara a primeira vez, ficara com


um olho aberto outro fechado, agora, sem a sua carroça, não con­
seguia fechar nenhum deles. E estava nessa aflição . . . começou a
ouvir barulho dentro da chaminé. Um barulho de nada, pela cha­
miné abaixo. Era de mais: aquele descarado já levara a carroça,
e ainda voltava!
O Menino Jesus levantou-se, foi para ao pé da chaminé, e
pegou num ferro muito grande que lá havia para arrumar as
achas. Vinha pela chaminé abaixo uma claridade esquisita. E vi­
nham umas sandálias . . . e umas pernas . . . e uma fímbria verme­
lha . . . (é ele, pensou o Menino Jesus) e mais túnica vermelha . . . e
ainda mais túnica vermelha. . . até que uma figura ficou, ali mes­
mo, ao lado das cinzas. O Menino Jesus levantou o ferro . . . e o
homem (parecia um homem) disse: - Assim tu me recebes? As­
sim te ensinaram a receber o Natal?
Foi então que o menino reparou que ele não tinha barbas,
nem brancas, nem pretas, ou só assim uma coisa muito rala que
nem barba parecia. Não era, portanto, o diabo. Em todo o caso,
não largou o ferro.
- Mas tu és verdade? E sempre vens? - (não o tratava por
tu por ele ser o Natal, mas pela alegria de ele não ser o diabo.)
- Eu, em pessoa. E venho, como vês.
- Essa é boa! E trazes-me alguma coisa?
- Nunca trago nada . . . Eu troco os brinquedos por outros.
E esses é que eu trago comigo.
- Então, este ano, fico sem nada, porque tinha aqui uma
carroça, e o diabo levou-ma.
- O diabo?!
- Sim. Veio vestido como tu, só trazia barbas brancas, e le-
vou-me a carroça.
- E deixaste?
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 383

- Qye remédio tive! Ele estava atrelado, e não se i a embora. . .


- E agora, como há-de ser? Eu trazia uma carroça para trocar.
- Tu não dás brinquedos aos meninos que não têm brin-
quedos?
- Não posso dar.
- Por quê?
- Porque só troco.
- Por quê?
- Porque não posso dar.
O Menino Jesus não perguntou mais; logo viu quais eram as
respostas, e que o Natal não tinha outras, pelo menos para dar.
Ali estava um, que não dava nada a ninguém. Mas ficar sem car­
roça não ficava.
- Tu tens a minha carroça.
- Tenho? Aonde?
- Anda por aí, atrás do diabo.
- Lá isso é verdade.
- Então, dá-me a que trazes.
- E a outra?
- A outra, quando encontrares o diabo, dizes que é tua,
e pronto.
- E se o não encontro?
- Ora tens tanto tempo! Eu é que não tenho outra carroça!
- Bem . . . Parece que me convenceste.
E o Natal - pois era ele - pousou no chão o saco que trazia
às costas (como se vê, o patife do diabo até um saco arranjara),
e tirou de dentro uma carroça exactamente igual à outra. Mas
igual, igual, nem a cabeçada faltava. E deu-lha. O menino ficou
- imagina-se - contentíssimo. Tão contente que se lembrou
logo de uma coisa.
3 84 VASCO GRAÇA MOURA

- E se o diabo, agora, anda a fingir de ti pelo mundo fora?


- É fácil. Custa um bocado mas é fácil.
- O que é que é fácil? Como te vais arranjar?
O Menino Jesus bem via o Natal atrapalhado, sem saber
como se havia de arranjar. Teve pena dele, que lhe dera a carroça,
e, em troca, deu-lhe uma ideia, que é muito mais de dar do que
uma carroça.
- Deixas crescer as barbas brancas. Das duas uma: ou o dia­
bo anda com a barba dele, e toda a gente o conhece; ou põe ou­
tras barbas postiças, e basta puxar por elas para se ver se são de
verdade.
- Bela ideia, sim senhor, que bela ideia! - mas depois de
pensar um bocado, o Natal acrescentou:
- Não chega. Tenho de ser o Pai Natal.
- Porquê?
- Porque o diabo não pode ser pai.
- Não?
- Não. Os filhos do diabo são sempre filhos de outras
pessoas.
- Então passas a ser o Pai Natal e a ter barbas brancas.
Palavras não eram ditas, e o Natal logo Pai e com umas bar­
bas quase a chegarem aos pés, tão brancas, tão brancas, que a cla­
ridade agora era das barbas.
Depois deste milagre (foi um milagre, evidentemente), o
Menino Jesus sentiu-se com imenso sono, o sono da noite toda e
mais algum. O Pai Natal percebeu, sorriu, ajudou-o a deitar-se . . .
E o Menino Jesus nem chegou a ver como ele saiu, porque, ape­
sar da curiosidade, adormeceu logo. Com a carroça debaixo do
braço, é claro, não voltasse o diabo . . . (E é a razão de os meninos
dormirem agarrados ao brinquedo de que gostam mais.)
V

No dia seguinte, dia de Natal, era feriado, tal qual como hoje.
Andava muita gente a passear nos campos, e o Menino Jesus an­
dava na estrada, a brincar com a carroça. Claro que olhava, com
desconfiança, para todas as carroças que passavam, a ver se algu­
ma delas era igual à sua. Mas nenhuma era. Foi brincando, brin­
cando, e já se esquecia desta história toda, quando viu um ho...:
mem, lá ao longe, num sítio onde andava menos gente, sentado
numa pedra e a fazer riscos no chão, com uma varinha. O Meni­
no Jesus teve pena dele, quis avisá-lo e aproximou-se.
Ora, o Menino Jesus falava uma língua esquisita - o aramai­
co - que muitos dos judeus não entendiam, e ainda hoje, segun­
do parece, não entendem. Mas ele não tinha culpa; era a que lhe
ensinaram em pequeno, mal começara a estender os braços . . . Os
meninos ainda se lembram de querer agarrar nas coisas que estão
longe? É isso.
Aconteceu, então, que o homem não só não percebeu o que
o menino lhe dizia, como se zangou e o enxotou, ameaçando-o
com a vara. É claro que o Menino Jesus deitou a fugir. Qyando
já estava suficientemente longe quis ver. . . E o que viu?
Ao lado do homem, parara uma carroça exactamente igual
à sua, puxada por um tipo que já metera conversa com o outro
sentado. E parecia que a conversa era engraçada, porque ambos
se riam muito. Só da boca do que fazia de cavalo saía um fumozi­
nho branco, que o Menino Jesus muito bem conhecia.

Por tudo isto é que o Natal é pai e tem barbas brancas, para
se distinguir do outro, que traz brinquedos do inferno, brinque­
dos que, como os meninos também sabem, são feitos neste mun­
do, tal qual como os outros brinquedos.
386 V ASCO GRAÇA MOURA

Ora como se vê por esta história, e ao contrário do que até eu


próprio julgava quando comecei a escrevê-la, houve, não uma só,
mas inúmeras razões, para o Natal ser pai e ter barbas brancas.
Para acabar, não me perguntem de quem ele é pai. Não façam
perguntas tolas, como as pessoas crescidas. Muito em segredo,
sempre digo que não sei ao certo, o que sei não posso dizer . . .
e , de resto, talvez o s meninos venham a saber mais do que eu.

1944.
A noite que fora de Natal
Jorge de Sena

Se Deus desce em pessoa à humanidade é que abandona


a morada que é a sua. Do mesmo passo, abala o universo. Alte­
remos do universo a mínima parcela, e todo o conjunto desaba.

CELSO, cit. por Orígenes, in Contra Celsum

ERA COMO SE A NOITE, DE NEGRA, fosse apenas o estrondear


das vagas invisíveis no sopé da escarpa e a aragem fria que salina
sentia na boca e nas narinas e, cortante, nas orelhas e na inserção
dos caracóis da testa. Envolto no manto de lã, nada mais sentia;
e os olhos, absortamente fitos na distância alta, além do parapei­
to, opaca e sem horizonte, não perscrutavam, apenas alongavam
por ela dentro imagens que lhe enchiam a memória vaga.
- Marco Semprónio . . .
Voltou-se e s ó então ouviu, por sob o estrondo das vagas in­
visíveis, os passos arquejantes que haviam precedido o chama­
mento. No clarão indistinto que difuso vinha de entre as colunas
do palácio, reconheceu a barba de 01iintílio Vero; imagens da
memória, refluindo também para os seus membros, deram-lhe a
lembrança da barca, dos exercícios de natação pelas grutas, dos
remos batendo na água transparente, e de um cadáver de escravo
emanando de si, no azul do fundo, uma nuvem vermelha que se
dissipava.
- 01ie é?
388 V ASCO GRAÇA MOURA

Qyintílio Vera tentou ler-lhe no rosto a disposição de ouvi­


-lo. Mas havia, na inquietação que todo o agitava, uma decisão
de falar.
- Os pescadores de Áqua Lívia, tu sabes, Marco Sempró­
nio, os de Áqua Lívia - (e no tédio de Marco Semprónio dese­
nhou-se a pequena praia com garotos saltando por entre o peixe
que saltava também) -, quando dobravam o cabo, esta noite,
ouviram . . .
- Ouviram o quê? - e a voz soou distante, distraída, tim­
brada da claridade dardejante da areia da pequena praia.
- Ouviram uma voz que gritava, não gritava, não, mas solu­
çava, uivava, era um rugido triste, dentro da noite, em cima do
cabo, ou dentro dele . . .
Marco Semprónio, como que para precipitar a s delongas nar­
rativas, principiou a atravessar o terraço lajeado. Junto da estátua
de Eros, que se erguia no sopé dos degraus da colunata, voltou­
-se, uma das sandálias no primeiro degrau.
Qyintílio Vera, com o seu andar balanceante, aproximou-se
devagar. Marco Semprónio, olhando por sobre ele o negrume da
noite além do parapeito, sorriu, torcendo os lábios.
- Marco Semprónio . . . eles ouviram uma voz que dizia . . . -
e Qiintílio Vera, esquecido das conveniências que se manifesta­
ram num fugidio franzir do sobrolho de Marco Semprónio, sen­
tou-se cabisbaixo no primeiro degrau, junto da sandália de cor­
dões de ouro.
- Ouviram então uma voz. E que dizia a voz? - perguntou
Marco Semprónio, fitando a nuca revolta do pescador.
Qiintílio Vera torcia as mãos. Marco Semprónio começou
a sentir uma leve agonia, como que um enjoo, e teve subitamente
um frio que lhe lambia as pernas depiladas. Aconchegou-se no
manto, e subiu as escadas.
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTIJGUESAS DE NATAL 389

A voz do outro chamou-o, quando roçava a coluna de már­


more e o manto se pegava nos espinhos da roseira que a envolvia.
- Marco Semprónio . . . Avisa o Imperador. . . Eles ouviram
dizer . . . era o cabo quem falava. . . que tinha morrido . . .
Marco Semprónio parou sem s e voltar.
- Marco Semprónio, não me deixes com esta notícia. Nem
digas ao Imperador que eu vim trazê-la. Eles ouviram dizer que
morreu o Grande Deus Pã.
Marco Semprónio voltou-se, desceu os degraus até à estátua,
encostou a cabeça às ancas de Eros e perguntou:
- O Grande deus Pã?
Qiintílio Vero não respondeu.
- Mas os deuses não morrem, Qiintílio Vero, os deuses são
imortais.
- Eu sei, Marco Semprónio; eu sei, que sou piedoso. Mas foi
o que eles ouviram. E a voz uivava tanto, que deve ser verdade.
Marco Semprónio veio até junto do vulto agachado. Sob o
manto, sem desagasalhar-se, tirou da bolsa moedas que tilinta­
ram no lajedo.
- Vai, Qiintílio Vero, e não repitas a ninguém essa história.
E os pescadores de Áqua Lívia que a não repitam também, ou
o Imperador os mandará matar por blasfemos.
E Marco Semprónio subiu os degraus e penetrou no palácio.

II

Na grande sala, iluminada por archotes fumarentos, Marco


Semprónio passou devagar por entre os coxins dispersos, alçou
390 VASCO GRAÇA MOURA

cuidadosamente as pernas por sobre um escravo estendido e nu,


que já devia estar morto, e reclinou-se, alargando o manto, ao
lado do imperador. O olhar vagueou-lhe do rosto envelhecido do
César para outro escravo também nu que, em frente deles, pen­
dia, pelos pés, de um varão de ferro, com as pontas dos dedos a
roçarem de leve o mármore do pavimento. Mais uma vez Marco
Semprónio verificou que um corpo de homem, assim suspenso
e exangue, tinha uma beleza estranha, que não teria noutras cir­
cunstâncias, por belo que fosse. E aquele era-o. As imagens que
haviam flutuado na noite, além do parapeito, configuravam-se
agora na recordação daquele corpo vivo, vigoroso, jovem, tão
submisso e hábil, e que ele próprio cedera ao imperador. Apuran­
do a vista, examinou-o minuciosamente, e deteve os olhos no pe­
queno golpe no pescoço, de onde, escorrendo em fio pela cabeça
acima - sorriu da inversão dos termos que a suspensão impu­
nha -, o sangue pingava escuro para uma bacia de prata entre
as mãos pendidas. Um instante apenas, meditou em porque es­
quecera a bacia, a não vira quando se sentara, mas às mãos, mais
nada. Por certo as mãos pareciam vivas, e é que estavam ainda
vivas. Sentiu um saboroso arrepio, uma saudade antecipada e agra­
dável daquelas mãos que morriam. Suspirou.
O Imperador dormia, respirando tranquilo, ridiculamente
descomposto, e no chão estava o punhal sujo de sangue. Marco
Semprónio curvou-se, apanhou o punhal, limpou-o na túnica de
Tibério, pousou-o novamente no chão, e levantou-se. Olhando
de esguelha o Imperador, bateu palmas. Dois escravos surgiram
com uma pedra e uma corda, que amarraram aos pés do cadáver
por cima do qual passara Marco Semprónio. E, carregando-o,
saíram para o terraço. Marco Semprónio aguardou, de pé, sem
olhar o Imperador, que eles voltassem, e fê-los desaparecer com
um gesto.
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORllJGUESAS DE NATAL 391

Tornou a sentar-se, meio recostado. E divertiu-se a examinar


o Imperador, que, pelos fugidios brilhos que entrevia nos seus
olhos semicerrados, agora fingia dormir. Como estava velho,
cheio de refegos no pescoço e no corpo! Como parecia um sileno
emagrecido e exausto! Como as rugas e as peles pendidas das fa­
ces pareciam com o seu peso esticar mais a pele do crânio, que
brilhava suada sob o cabelo ralo! Como o nariz parecia uma
tromba ou um sexo, e como o sexo parecia um nariz! Fingindo
solicitude e carinho, desenvencilhou-se da sua capa, e com ela co­
briu o imperador. Tibério abriu os olhos, sorriu-lhe, acomodou­
-se melhor sob a capa. Os lábios finos e descaídos, que pareciam
esvaziados do que haviam sido de carnudos, entreabriram-se.
- Obrigado, Marco Semprónio. Qye seria de mim sem os
teus cuidados?
Marco Semprónio baixou modestamente os olhos, e disse:
- Bem sabes, César, que a vida para mim não vale senão ao
teu serviço.
- E não é fácil servir-me, não é fácil - e a voz tornou-se-
-lhe amarga para acrescentar: - Se até eu estou farto de servir-
-me! - e depois, com humor, continuou: - Mas também há
quase setenta anos que me aturo e tu, Marco Semprónio, há dez
apenas.
- É como se tivesse sido ontem.
- E é verdade, porque te estimo. Mas igualmente é verdade,
porque, nesta ilha e neste palácio, tu e eu suprimimos o tempo.
Graças a nós, o tempo não passa. Ou passa como as ondas sem­
pre iguais e que são sempre outras com o mesmo mar. Não te­
mos, nesta ilha, rios, Marco Semprónio. E os rios é que são o
tempo que passa. Qyando agora mandaste deitar ao mar o escra­
vo cuj a morte algum prazer me deu, tão pouco, eu claramente
3 92 VASCO GRAÇA MOURA

senti como aqui nem com a morte o tempo passa. Ou não passa
precisamente porque é morte. Repara, Marco Semprónio, na­
quele sangue que pinga. É como se a vida se esgotasse na água
que pinga na clepsidra, e a morte se esgotasse, e COII). ela o tem­
po, naquele sangue que escorre, gota a gota, de uma clepsidra
humana que voltámos. C2!,iando o sangue pulsa em nossas veias,
ele é o tempo que passa. C2!,iando escorre assim, é o tempo que
fica.
- Mas, César, porque não abres as tuas veias, para que, com
o teu sangue, o tempo acabe?
Os olhos de Tibério olharam ironicamente Marco Semprónio.
- Porque, se as abrisse ou mandasse abrir, eu seria igual
àquele escravo que me deste. Seria alguém, um ser, um animal,
a quem, como imperador, eu dava a morte. E a última coisa que
eu desejo, Marco Semprónio, e por isso deixo que o Império se
governe, é ser imperador de mim mesmo.
- Nunca deixaste de governar o Império, César.
- Não, na verdade nunca deixei. Mas não consigo governá-
-lo senão longe dele. Eu cansei-me de traições, de perfídias, de
ambições, de lutas, das pompas imperiais, dos sacerdotes, da fa­
mília, de tudo. No meio disso, eu não podia governar nem ser
quem sou. Assim, nesta ilha, que é como se fosse no fim do
mundo, eu sou para eles o Imperador, o imperador ideal, o impe­
rador invisível, que os deixa fazer todo o mal que querem e todo
o bem que desejam, em meu nome, e cujos decretos sagrados às
vezes descem sobre eles como uma voz divina. Os meus decretos
são como a chuva de ouro que fecundou Dánae. E a lenda das
minhas crueldades e das minhas devassidões, aqui, ampliada pela
ignorância e pela fantasia de cada um, que tem os limites da nos­
sa, mas não tem a minha liberdade para executá-las, só me torna,
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 393

cada vez mais, um deus temeroso e longínquo que vive na imagi­


nação deles. Por minha parte, nunca me senti tão humano.
Novamente fitou, com fascinação entediada agora, a bacia
onde o sangue coalhava espesso.
- Dizem os poetas, Marco Semprónio, que morrem jovens
os que os deuses amam. Acreditas que eu amei esse escravo? Ele
era belo, jovem, inteligente, sabias que ele era inteligente?, e está
ali suspenso, esvaindo-se tão submissamente como um cordeiro
que não entende porque é sacrificado pelo arúspice. Pois é verda­
de, eu amava-o muito; e quero crer que ele foi das poucas pes­
soas, admitindo-se que um escravo o é, que às vezes se esqueceu
que eu era o imperador. Provavelmente, os deuses amavam-no,
porque os homens, qual sou, nunca acreditei que possam ser
deuses.
- Foste então o instrumento do amor dos deuses, César Au­
gusto.
- Fui, Marco Semprónio, e não em vão.
Marco Semprónio deitou-se para trás, de olhos fechados. Ti­
bério sentou-se, e olhou-o. Sem abrir os olhos, Marco Sempró­
nio perguntou:
- Qie foi que ele revelou antes de desfalecer?
- Qie morria feliz, porque hoje nascera um deus. Não falou
muito claramente, era um murmúrio indistinto, foi preciso que
eu me ajoelhasse e encostasse o ouvido à boca dele. Já vou fican­
do surdo para escutar os oráculos.
Tibério levantou-se, acomodou pelos ombros o manto de
Marco Semprónio, e aproximou-se do escravo suspenso. De leve,
percorreu-lhe com uma das unhas o flanco, que estremeceu num
arrepio.
- Marco Semprónio, ajuda-me a despendurá-lo.
O tribuno sentou-se, olhando surpresamente o imperador.
Era tão raro aquilo.
3 94 V ASCO GRAÇA MOURA

- Ajuda-me a despendurá-lo, Marco Semprónio. Eu quero


que ele viva.
Mais surpreso ainda, o outro levantou-se, e disse:
- Mas, Tibério, se queres que um deus tenha nascido, é pre­
ciso que o deixes morrer.
O imperador não lhe respondeu. Então, ambos, erguendo o
corpo inteiriçado e também, como por partes, flácido, tiraram do
varão o gancho que havia na corda que lhe amarrava os pés,
e conseguiram deitá-lo, cambaleantes, no leito próximo. Tibério,
rasgando uma tira da túnica, fez-lhe uma ligadura no pescoço.
Marco Semprónio seguia os movimentos do imperador: pegar
numa ânfora, deitar numa taça um pouco de vinho, vertê-lo na
boca entreaberta, debruçar-se para os olhos esbugalhados e ví­
treos.
- Marco Semprónio . . .
Este inclinou-se para o escravo, afastou Tibério com u m ges­
to e, curvando-se, auscultou o peito imóvel e rígido. Depois, foi
a uma mesa próxima e trouxe um espelho de metal polido, que
chegou à boca entreaberta e que examinou.
- César Augusto, ele está morto.

III

Marco Semprónio recordou os imperadores, que a todos ti­


nha conhecido de perto: o grande Tibério, que lembrava com
saudade; Calígula, que se imaginara poder ser Tibério; Cláudio,
que tremia de ser imperador, e este petulante de agora, cuja vida
(era evidente, pois que até ele, Marco Semprónio, conspirava)
devia estar por um fio. Na sua «vila», contemplando os netos que
brincavam à sombra das parreiras, vigiados por um escravo idoso
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 395

(como sabia histórias, como era músico, que lições de retórica


não dava ele às crianças!), Marco Semprónio não se queixava (ah,
não) da vida. Qgeixava-se, sim, das dores que o não largavam,
nem naquela secura tranquila das encostas floridas. A esposa
morrera (o túmulo, que mandara fazer-lhe, era uma das curiosi­
dades mais admiradas na Via Ápia) , as filhas haviam casado
(eram de uma delas os pequenos), os dois filhos viviam longe, na
Bitínia um, na Tarraconense o outro, ambos magistrados, ambos
casados e felizes. As suas comunicações científicas sobre a rigidez
dos corpos, a distribuição dos humores sanguíneos, haviam-lhe
granjeado o respeito dos sábios do Império, que todos conheciam
as possibilidades que tivera de fazer experiências. Igualmente es­
timada era a sua «Apologia de Tibério», de que Nero mandara
fazer uma edição especial para ser distribuída aos funcionários
(coitado, convencido de que, por comparação, se justificaria) .
Sentado no banco de pedra ao pé do lago, Marco Semprónio
olhava o poente que avermelhava as folhas das parreiras, e punha
nos cachos, quase maduros, laivos purpuríneos. Olhando o poen­
te, os risos das crianças eram-lhe uma música suave sublinhando
o fim da tarde, com os gritos longínquos dos pastores, os balidos
das ovelhas, os chocalhos, as conversas dos escravos no pátio da
cozinha.
Pela álea areada, um escravo vinha correndo em direcção a
ele. Era o ibero que o filho lhe mandara. Marco Semprónio sen­
tiu um baque, um mal-estar, uma angústia, uma curiosidade re­
ceosa. Nero teria caído? Tê-lo-ia envolvido numa das conspira­
ções que descobria todos os dias? Ou chamava-o, mais uma vez,
para aconselhá-lo na perseguição àquela seita absurda que fazia
todas as provocações necessárias para ser perseguida e clan­
destina?
Marco Semprónio olhou o seu jovem secretário, em quem
tinha (não é verdade que tinha?) a maior confiança, a ponto de
396 VASCO GRAÇA MOURA

perdoar-lhe inúmeras faltas, caprichos, grosserias. Átis (era o


nome que lhe pusera) parou junto dele e disse:
- Marco Semprónio, está ali um homem à tua procura, que
diz ser um velho amigo teu, mas nunca o vi. Pede para falar-te.
Marco Semprónio achou que, como sempre, Átis dramatiza­
va para dar-se importância.
- Os meus amigos velhos já morreram todos - e sorria. -
De onde é que ele me conhece? Ele disse?
- Da Judeia e da Síria. Diz que tu e ele eram amigos, quan­
do foste o pretor de Antióquia.
- Antióquia? - e Marco Semprónio levantou-se, apruman­
do com esforço a elegância que era ainda a sua. - Átis, como é
ele? Um homem alto, moreno, de barba negra, olhos de fogo,
que não é capaz de estar quieto?
- É alto e moreno, e tem olhos de fogo. Mas a barba é gri­
salha, e nunca vi ninguém tão sereno a não ser meu amo Marco
Semprónio.
Este, dando uma palmada no ombro de Átis, declarou:
- Só pode ser o Saulo. Manda entrar.
- Para onde? Para aqui?
- Para a biblioteca. E serve-lhe, enquanto me preparo, da-
quele Salerno especial. Como ele gostava de Salerno!
E, seguindo Átis que corria, Marco Semprónio, apoiado ao
seu bastão, caminhou para casa. Momentos depois, lavado e per­
fumado, com roupas impecáveis de brancura, assomava à porta da
biblioteca e, alçando cuidadosamente as pernas, para não tropeçar
numa série de livros que, espalhados no chão, eram o sinal da sua
vida estudiosa, aproximou-se do vulto que, de costas, examinava
um rolo retirado da prateleira dos poetas.
Marco Semprónio parou e disse:
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 397

- Tens o mesmo faro d e sempre - e já o vulto s e voltava,


súbito, de papiro na mão, e avançavam, de braços estendidos, um
para o outro, quando concluiu:
- É um manuscrito grego - e abraçavam-se, com certa efu­
são convencional, quando explicou:
- São poemas atribuídos a Platão, mas creio que são falsos.
Ficaram depois frente a frente, observando-se mutuamente.
E o outro, com voz suave e firme, disse:
- Toda a filosofia é falsa, Marco Semprónio.
Sentaram-se ambos, a um gesto de Marco Semprónio, e
o outro pousou na mesa, onde um jarro e taças brilhavam, o rolo
de papiro.
- Há quantos anos! <:2lie fazes tu em Roma? - perguntou
Marco Semprónio. - Nunca mais soube de ti . . . <:2lie tens feito?
- Nada do que devia. Mas estou em Roma para servir a cau­
sa da justiça e da liberdade.
- Nero é um monstro, com efeito. Não imaginei, porém,
que fosse preciso vir da Síria conspirar em Roma, Saulo . . . Aqui,
o mal é precisamente haver conspiradores de mais.
- Bem sei, mas para nós a situação é muito grave. E foi por
isso que te procurei, em risco de comprometer-te e comprometer­
-me.
- Porquê?
- Porque eu sou, Marco Semprónio, pela vontade do Se-
nhor, um dos chefes desses cristãos que tu persegues.
Marco Semprónio olhou-o, estupefacto:
- Tu, Saulo?
- Eu.
- Como é pos sível? Mas há cristãos da tua categoria?
E, quando alguém da tua categoria se torna cristão, consegue ser
cristão de categoria?
398 VASCO GRAÇA MOURA

- A minha categoria não era, e não é, nenhuma, Marco


Semprónio.
- Mas tu rias deles, Saulo, que eu recordo.
- Ria. Acontece, porém, que eu não sabia o que fazia, e cru-
cificava todos os dias o Senhor em mim mesmo.
Marco Semprónio calou-se, e um silêncio se demorou na bi­
blioteca, durante o qual se ouviram, abafados, no crepúsculo que
punha sombras pelos cantos, os ruídos domésticos da «vila». Foi
Saulo quem o quebrou.
- Marco Semprónio, é preciso que a perseguição acabe.
- Qial perseguição? Sabes bem que os teus amigos tenta-
ram incendiar Roma. Foste tu quem ordenou?
- Não fui. Cheguei por isso mesmo. Foi um erro monstruo­
so que é preciso corrigir. Há sempre quem suponha, na sua pai­
xão, que destruir Roma, a devassa Roma, a pecadora Roma, é dar
testemunho dos desígnios de Deus. Mas só uma Roma devassa e
pecadora deve ser destruída pela oração e a humildade: a que cor­
rói os nossos corações. Eu nunca falei de outra. E quando vós,
romanos de Roma, os perseguis, apenas suscitais um amor do
martírio, que, um dia, será amor da perseguição. O meu mestre
disse: «Amai-vos uns aos outros.» É no amor que o Senhor nos
conhece e o conhecemos. Venho pedir-te que uses da tua influên­
cia, que é grande, para sustar, no começo, esta cadeia de erros.
Para que Roma não seja os Neros que a governam, nem os cris­
tãos venham a ser os Neros que hão-de governá-la.
Marco Semprónio ficou pensativo, e depois fitou o rosto
moreno, de nariz fino e longo, as barbas grisalhas e, por fim, os
olhos com aquela ardência de sempre:
- Mas, Saulo, eu não tenho, esta é a verdade, influência
alguma. Neste momento, ninguém a tem. E não creio, desculpa
que te diga, que alguma vez os cristãos governem Roma.
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 399

- Hão-de governar o mundo, Marco Semprónio. E hão-


-de até fazê- �o maior, além das Hespérides, para maior glória
de Deus.
- Estou a lembrar-me das nossas conversas de Antióquia.
Do entusiasmo com que discutias, pela noite dentro. Saulo, tu
transferiste para a religião o teu entusiasmo apaixonado. Naquele
tempo, todas as filosofias te eram verdadeiras, quando eu achava
que nenhuma o era. E hoje, quando eu acho que só a filosofia
pode ser verdade, ah, uma filosofia que eu nem mesmo sei o que
seja, tu achas que nenhuma o pode ser e que os cristãos hão-de
governar o mundo . . . Qyem sabe o que os fados nos reservam?
Mas Roma é tão dura, Saulo, que nem nós veremos, nem os nos­
sos netos, uma tal coisa.
- Mas, se tens netos, Marco Semprónio, pensa neles.
- Se eu pensar muito neles, Saulo, são eles quem não pensa-
rá em mim. Mas que queres tu que eu faça? Qye posso fazer por
ti, apenas por ti, já que os teus cristãos, segundo entendo, se não
contentam com ser teus?
- Nem têm que contentar. É sozinhos que os homens se
salvam ou se perdem. Deus não lhes dá mais do que uma alma,
e o seu infinito amor, e os preceitos que devem entender com o
coração. Sempre insisti nisso em tudo quanto escrevo.
- São teus esses escritos que por aí circulam, anunciando
a chegada próxima do reino de Deus? E contando histórias de
milagres?
- Nem todos. E só porque o Espírito sopra onde Ele quer
é que eu não sei dizer-te, nem quereria, quais serão os meus.
Marco Semprónio sorriu:
- Alguma coisa te ficou, bem que eu dizia, de quando eras
filósofo. Mas que pensaste que eu poderia fazer? E, repito, que
eu, se puder fazer, o que não creio, só farei por ti, em nome da
nossa velha amizade.
400 VASCO GRAÇA MOURA

Tornou a fitar nos olhos luminosos e profundos o interlocu­


tor, e uma perturbação o percorreu.
- Qye eu não sei se podes ser o mesmo amigo. Deves ter
ouvido, a meu respeito, horrores. Em Antióquia a minha fama
precedera-me. Se mudei muito, se ninguém lembra já o que mais
de quarenta anos de Império tornou vulgar, não menos devo ser,
para ti, uma dessas Romas corruptas, um desses corações que não
há incêndio que purifique.
- Como te enganas, Marco Semprónio! Tu não conheces
a infinita caridade do Senhor, o poder que ele tem sobre a Natu­
reza. Nenhum homem pode gabar-se de não ser inestimável aos
olhos de Deus. E tu próprio, só porque falaste, acabaste de con­
fessar isso mesmo.
Marco Semprónio franziu o sobrolho e soltou uma leve gar­
galhada, pousando com firmeza divertida as mãos nos pontiagu­
dos joelhos.
- Saulo, a melhor maneira de que eu possa ser-te útil não
é começar por converter-me.
O outro levantou-se e deu uns passos pela sala, remexeu nas
estantes e, cruzando os braços, encostado a uma, olhou Marco
Semprónio e disse:
- Nem tenciono. De resto, não te esqueças, nós só procura­
mos aquilo que, no fundo dos nossos corações, já havíamos en­
contrado.
Marco Semprónio tossiu secamente.
- Saulo, vou dizer-te uma coisa. Tu falaste do poder do teu
Deus sobre a Natureza. Qyero crer que o teu Deus se parece com
a essência divina dos alexandrinos que estimavas tanto. Mas não
importa. Além de que os teus cristãos, na maior parte escravos de
todos os cantos do Império, não devem, como tu eras, ser enten­
didos em alexandrinices. Sabes que, vai para quarenta anos ou
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATA L 401

mais, eu era, em seu exílio voluntário, o companheiro fiel do im­


perador Tibério, que os deuses tenham na sua santa glória. Certa
noite, e eu nunca contei isto a ninguém, nem mesmo, nessa oca­
sião, a Tibério, um pescador veio dizer-me que outros pescadores
haviam ouvido dentro da noite, uma voz que anunciava a morte
do deus Pã. Ao imperador, um escravo muito amado, que se es­
vaía em sangue, anunciara, antes de morrer, oh, eram experiên­
cias que nós fazíamos, que morria feliz porque nascera um deus.
Ambos os factos sucederam na mesma noite, uma noite cerrada
em que nada se via. Eu não acredito em portentos. Achas que as
duas coisas se relacionam? Oliando foi que nasceu esse homem
que os cristãos consideram Deus, um deus mortal?
- Dizes que isso foi há quarenta anos. Nessa altura deve Ele
ter começado a pregar a Palavra de seu Pai. Não me parece que
tal noite coincida, pois, com o nascimento dele, mais de vinte
anos antes, nem com a sua morte na cruz, alguns anos mais tarde.
- Tibério, depois, mandou fazer inquirições secretas por
todo o Império. A história da morte de Pã foi recolhida nos pon­
tos mais distantes. A do nascimento de um deus não foi. Ou não
o foi, por maior excesso ainda, já que, para toda a gente, se lhes
perguntarmos, há sempre um deus que está nascendo. Será que
aquele escravo era cristão? Era tão moço, viera para Roma quase
criança, tu dizes que o teu Mestre começou a pregar nessa época,
não é possível.
Saulo desencostou-se da estante, veio até Marco Semprónio,
parou diante dele, que levantou os olhos papudos e vazios.
- Marco Semprónio, tu sempre meditaste nisso ou foi ago-
ra, ao falares comigo, que te lembraste?
- Na verdade, não sei.
- Porque é possível.
- Possível?
402 VA S C O GRAÇA MOURA

- Sim. Imagina que foi nessa hora que Ele reconheceu em si


a sua missão, e sentiu em si mesmo que era filho de Deus e o
próprio Deus. Não foi, portanto, nessa hora que o meu divino
Mestre nasceu de novo, pela segunda vez, na plena integridade
do seu Ser? E no momento em que Deus, Ele e a Palavra se tor­
naram um só, uno e indivisível, na sua consciência, não foi que
o deus Pã morreu?
Qyase se não viam um ao outro. E ficaram ambos silenciosos
e imóveis, até que um escravo entrou com uma candeia que pou­
sou na mesa. O jarro brilhou. O escravo, tão suavemente como
entrara, saiu.
Marco Semprónio levantou-se e perguntou:
- Voltas para Roma esta noite? Ficas para cear comigo?
Saulo respondeu:
- Volto.
- Ao menos bebeste desse vinho de Salerno, que mandei
servir-te? Tu gostavas muito de Salerno.
- Não bebi.
- Então bebamos juntos uma taça.
Foi à mesa, encheu duas taças, uma das quais estendeu a Sau­
lo. Este pegou-lhe, e ambos, de taças em punho, eram ilumina­
dos amareladamente pela candeia.
Saulo disse:
- Sabes, Marco Semprónio, que o vinho santificado é o san­
gue do meu Mestre?
Marco Semprónio pensou: «Tibério bebia o sangue dos es­
cravos», mas respondeu apenas:
- Não, não sabia - e levantou a taça: - Para que os deu­
ses, todos os deuses, nos sejam propícios.
- Para que o Senhor te proteja.
Beberam e pousaram as taças.
AS MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 403

- Saulo, eu na verdade não tenho influência alguma. Mas


farei o que puder.
Foram caminhando para a porta, tropeçaram nos rolos que
estavam no chão.
- Saulo, se fores preso, não deixarei que te torturem, que te
crucifiquem. Tu, afinal, és um cidadão romano. Só podem deca­
pitar-te.
- Eu nunca invocaria, para tanto, a minha condição de cida­
dão romano, que meu Mestre não foi, porque não sou mais do
que Ele, na minha pequenez humana. Mas agradeço-te, porque,
último dos seus discípulos, não sou digno da cruz em que Ele
morreu.
- Não terei influência para mais.
- É muito já. É tudo. Deus te abençoe.
Marco Semprónio não o viu sair.

Araraquara, Dezembro de 1961.


Noite de Natal
Maria Judite de Carvalho

FOI NUMA NOITE DE NATAL QUE AQUILO ACONTECEU. 0 ir­


mão, a cunhada e os sobrinhos acabavam de sair - ainda se ou­
via chiar o carro na curva da estrada - e Emília, depois de pôr
no presépio um último olhar distraído, encostou-se à vidraça a
ver a noite. Era uma noite funda e enorme de descampado, sem
luar e toda redonda de estrelas. Ao longe, o sino da igreja da al­
deia soltou um toque leve e risonho de festa, que rompeu o silên­
cio. Da cozinha, onde lavava os copos do vinho doce, veio a voz
monótona e cansada de Dores:
- O João já não apanha o princípio da missa.
Emília estremeceu. Qyis responder à mãe, dizer o que quer
que fosse, mas o silêncio da noite tinha-a envolvido toda e não
conseguiu articular um som. Também não podia pensar. Era
como se se tivesse dissolvido naquela atmosfera calma e deixado
por completo de existir. Depois a mãe tossiu e ela lembrou-se de
repente de que já ali não estaria para o outro Natal. Sorriu con­
tente à imagem de Joaquim. O que estaria ele a fazer naquele
momento, lá longe, perdido na cidade, sem família, sem amigos,
sem ela . . . Na última carta parecera-lhe desanimado, mais ainda
do que nas outras.
406 VASCO GRAÇA MOURA

Falava do quartel como de uma prisão onde estivesse a cum­


prir pena por morte de homem. Perguntava, com saudades pela
terra, se tinha chovido ultimamente, se as oliveiras tinham carre­
gado. Achava a cidade feia, dizia que lhe faltava o ar e que logo
que acabasse o serviço se metia a caminho e que nunca mais o pi­
lhavam lá. Já faltavam poucos meses, para o ano estaria casada,
longe do pai, da mãe, daquela solidão de herdade a que nunca se
tinha habituado. Longe . . . Tornou a sorrir. Qiando o Joaquim
voltasse . . .
- Aquele homem d á cabo d e mim! - lamentou-se Dores
da ombreira da porta. - Nem hoje, olha que nem na noite de
Natal deixa aquela maldita taberna. Logo temos cena. Se não fi­
car para aí caído na estrada como da outra vez.
- Não lhe diga nada que é melhor. Deixe-o lá.
- Ai eu deixo. Mas descansa que há-de ser ele a armar baru-
lho. Deve vir num bonito estado. Recebeu há dois dias o dinhei­
ro da azeitona, está rico. Só o que tenho é medo que ele caia
ao no.
Emília desviou os olhos. A luz do candeeiro de petróleo batia
em cheio na cara magra de Dores pondo-lhe tons lívidos de mo­
ribunda. O vestido preto e as mãos descarnadas completavam
a impressão. Os olhos ardentes não se lhe viam, de fundos.
- Vou-me deitar - disse Emília espreguiçando-se ao de
leve. - Ao menos assim não implica comigo. Boas-noites.
- Boas-noites.
Emília acendeu a vela e fechou a porta do quarto. Parou um
momento em frente do espelho de moldura de plástico que o
Joaquim lhe dera ao princípio do namoro, e depois começou a
despir-se à pressa por causa do frio. Para o ano o seu Natal havia
de ser bem diferente. Sonhava uma noite muito calma, ela e o
Joaquim sentados ao pé da lareira. Teriam bolos com certeza, ele
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTIJGUESAS DE NATAL 407

era muito guloso. Faria filhoses como a mãe ... Parou de desabo­
toar o corpete e pôs-se a pensar em qual seria o motivo que a im­
pedira sempre de gostar da mãe. De gostar da mãe? Gostava dela,
decerto, mas . . . O pai, esse era um bêbedo, sempre lhe tivera me­
do. Em pequena tremia como varas verdes quando ele entrava,
muito corado, e se punha a beijá-la e a choramingar. Ainda hoje
acontecia ele querer às vezes dar-lhe um beijo mas ela escapava-se
sempre ao horrível cheiro a vinho que ele deitava. O pai perse­
guia-a, queria por força beijá-la na testa, passar-lhe pelos cabelos
a mão calosa. Emília fugia de lhe ver os olhos, punha-se de nariz
no chão para o não encarar. Os olhos dele faziam-lhe mal. Às ve­
zes eram tristes, tristes, como os de um cão abandonado, tristes
e raiados de sangue. Era como se lhe pedissem um olhar, como se
lhe mendigassem um carinho. E Emília acabara por compreen­
der que ele sabia que ela o desprezava e que, embora não pudesse
resistir àquele vício que lhe vinha de novo, precisava de não sentir
o desdém da filha. Emília encolheu os ombros. No fim de contas
era um bêbedo, ninguém o tomava a sério. Mas a mãe . . . Por que
seria que não gostava da mãe como deveria gostar? Seria por
nunca a ter visto reagir? Seria por causa daquela cor de cera,
daquelas mãos transparentes e húmidas, daquele olhar escuro e
cavado que parecia acusar todos, constantemente? «Só o que te­
nho é medo que ele caia ao rio.» Parva, grande parva. Se fosse
com ela. . .
Os lençóis estavam frios e Emília puxou-os até à s orelhas
e soprou a luz. Os cães ladraram para o lado do portão e acaba­
ram num ganir alegre. Uma voz peganhenta entoou em falsete:

Já foi Maria da Graça


já teve graça ao passar . . .

- Trá-la toda - resmungou Dores.


408 VASCO GRAÇA MOURA

Uma chave começou a raspar a porta. O homem fazia esfor­


ços para dar com a fechadura, e muito irritado ia dizendo pala­
vrões. Emília levantou a cabeça do travesseiro para ouvir melhor.
Contanto que não houvesse cena! Ah, como ela detestava gritos!
No entanto, ia apurando o ouvido porque não queria que lhe es­
capasse nada. Se se visse dali para fora! Maldito bêbedo!
A porta abriu-se com estrondo e o vozeirão do pai encheu
a casa a fim de continuar a quadra interrompida.

Mas hoje quando ela passa . . .

- Não faças tanta bulha, a rapariga está a dormir - arriscou


Dores.
- Bico! - gritou ele numa voz empapada. - Se eu faço ou
não barulho, isso é comigo. Qyem é que ganha o dinheiro, diga
lá? Qyem é que anda aí todo o dia a cavar a terra, diga lá?
Ficou algum tempo calado à espera de resposta. Como ela
não viesse (Dores devia estar a olhá-lo com um dos seus olhares
sem fim), gritou mais alto:
- Bico!
Houve um breve silêncio e depois ele voltou ao assunto:
- Sim, quem é que trabalha? É você e � sua filha, não?
Qyem é o escravo, o mouro?
Falava a espaços, engolia metade das palavras, devia estar
quase a vomitar, pensou Emília com asco.
A mãe disse baixo, com ar casual:
- Lembras-te que dia é hoje? O João, a Maria e os peque­
nos estiveram aí, depois foram à missa. O João teve pena de não
te ver.
O homem soltou um palavrão.
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 409

- Esse também sei do que precisava. . . eu lhe direi quando


o encontrar. Não pôde então esperar por mim, hem? Está muito
fidalgo mas eu lhe direi.
- Tivemos filhoses - disse Dores. - Os pequenos gosta­
ram. Guardei-te algumas ali no armário.
Houve um silêncio repleto de ameaças.
- E não esperaram por mim - disse então o pai devagar,
como se não pudesse crer em tamanha injustiça. - Tinham fi­
lhoses e não esperaram por mim . . .
Emília tapou a cabeça com a roupa. Estava quase a chora­
mingar, pensou. Mais uns momentos e aí estaria ele a lamentar­
-se de ser o homem mais infeliz do Mundo e a dizer que nin­
guém queria saber dele. Não foi, porém, assim. De súbito a voz
do homem estalou de furor, enchia toda a casa, devia ouvir-se
perto da estrada porque os cães voltaram a ladrar.
- Sua cabra! - gritava ele. - Sua grandessíssima cabra!
Desavergonhada! Encheram o papo, hem? Mas eu te direi, eu te
direi . . . Não fazes outra, juro-te que não fazes outra!
A mãe gritou:
- Emília! Emília!
A rapariga saltou da cama. Não encontrava a vela. Perdeu um
momento a tactear a parede no escuro, o coração aos saltos.
A mãe continuava a gritar, agora espavorida.
Qyando entrou na cozinha deu com os olhos no pai. Ele, po­
rém, não a viu. Parecia louco. Agarrara com força a mulher e ti­
nha na mão o ferro de espevitar o lume.
Dores tinha os olhos muito abertos e olhava para o ferro
como que fascinada. Emília sentiu-se gelar. Um imenso terror
ganhara-a toda. Estava incapaz de reflectir.
- Vais ver, cabra! Vais ver, minha grande cabra! - E tinha
um risinho alvar e contente.
410 VASCO GRAÇA MOURA

Emília avançou até à lareira e agarrou num pequeno toro que


para ali tinha ficado. Num gesto rápido e certeiro deu com ele na
cabeça do bêbedo. E de repente o ferro caiu, Dores cambaleou
um pouco e o homem foi descendo, lentamente, até ficar estendi­
do no chão. Emília não compreendeu muito bem o que tinha su­
cedido. Dores fitava o marido dum modo estranho. Emília bai­
xou então os olhos e deu com uma boca aberta e duas pupilas
muito fixas, que pareciam de vidro. Teve nesse momento um ar­
repio e reparou que estava em camisa. Isso pareceu-lhe muito im­
portante e pensou que devia ir vestir qualquer coisa porque não
era decente estar assim ao pé do corpo do pai . . .
Dores murmurou com uma voz que não era sua:
- Parece-me que aconteceu uma desgraça... Como foi? ... Tu...
- Eu. . . creio que o matei. . .
E deitou a chorar como doida, debruçada sobre o peito frio
de Dores, que, sem uma palavra, a apertou contra si.
Qiando daí a muito tempo conseguiu soltar-se da mãe, sen­
tia a cabeça pesada e as ideias confusas. Desejava unicamente dei­
tar-se e dormir. Caía de sono, um sono de chumbo que a obriga­
va a fechar os olhos . Dores atravessou a cozinha como uma
sonâmbula e voltou daí a pouco com um xaile que lhe pôs nos
ombros. Tinha uma grande expressão de angústia. Por duas vezes
abriu a boca para falar mas logo desviou a vista do rosto pálido de
Emília. A rapariga queria também dizer-lhe qualquer coisa, sen­
tia que era necessário que o fizesse, mas não conseguia descerrar
os lábios.
- Acha que eu devo ir amanhã contar tudo? - perguntou
por fim numa voz contraída.
Estava muito direita, não queria voltar a chorar. Competia à
mãe resolver; ela faria o que a mãe dissesse. Dores não se mexeu
sequer. Estava encostada à mesa e tinha a cara entre as mãos.
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 41 1

- Ainda não vimos - disse depois. - Ainda não temos


a certeza . . . Falas como se . . .
Mas nenhuma delas s e atrevia a ter a certeza. Continuavam
ali especadas, sem um gesto e sem uma ideia. Emília começou a
chorar baixinho. Então a mãe endireitou-se muito. Depois apro­
ximou-se do corpo, curvou-se, pegou-lhe na mão sem vida e qua­
se fria.
- Está? . . .
- Está - disse Dores com u m suspiro cansado. - Está.
Olhou a direito para a filha e Emília pensou que ela não era
a mesma criatura mole e sofredora que ali estava havia um segun­
do. Tinha outro olhar e outra voz. Parecia mais viva.
- Temos de o esconder - disse com secura. - Ninguém
saberá de nada.
Emília sentiu de repente que qualquer coisa se abria dentro
de si. Escondê-lo, era isso, escondê-lo. Como é que se não tinha
lembrado duma coisa afinal tão simples? E só agora que se sentia
liberta compreendia o terror daqueles últimos momentos. Nin­
guém saberia de nada, tinha dito a mãe. Ninguém saberia e ela
não deixaria de ver o sol nem de se casar com o Joaquim. A culpa
não fora sua, não tinha de que ter remorsos. De súbito tudo era
fácil e claro. No entanto . . .
- E s e alguém o encontrou pelo caminho? - perguntou a
medo, com um grande desejo de que a mãe a convencesse de que
ninguém o tinha encontrado.
Dores disse numa voz um pouco brusca:
- Não é natural, mas se alguém o viu, paciência. Temos
de arriscar. Não há outra coisa a fazer senão escondê-lo no casão.
Se vierem passar busca à casa e derem com ele, paciência.
Emília sentiu os olhos rasos de água e um grande desejo de
beijar a mãe. Ela tinha dito, nós, entrara voluntariamente dentro
412 VASCO GRAÇA MOURA

do caso, tomava a sua parte sem que ninguém lho tivesse pedido.
Ficou, porém, hirta e sem se mover. Havia muitos anos que não
beijava a mãe. A própria Dores estranharia se ela o fizesse. Não
era dessas coisas. Pieguices, costumava dizer . . .
- Tens d e ir vestir qualquer coisa - disse Dores. - Vamos
ao casão.
- Agora?
A mãe olhou-a sem piedade.
- Olieres talvez esperar pela manhã! Não sei se te lembras
que vem o Bento consertar a rede do galinheiro. Temos de ir já
e trabalhar bem depressa para ficar tudo pronto antes do nascer
do Sol.
Tiveram primeiro de mudar a vaca, depois de tirar a cama de
palha que forrava o chão. Cavaram durante duas horas, até fica­
rem completamente exaustas. Emília estava ansiosa por que tudo
aquilo acabasse, mas ia trabalhando com lentidão porque pensava
com horror no momento em que seria preciso ir buscá-lo, em que
teria de lhe pegar.
Oliando esse momento chegou, esteve quase a perder os sen­
tidos. Dores chegou-se então a ela e deu-lhe uma bofetada.
- Tem os de acabar com isto - disse com dureza. - De­
pois podes desmaiar à tua vontade.
Emília, que era mais forte, pegou então no morto pelas axilas
e a mãe pelo pés. Assim o arrastaram até ao casão. Um boneco de
palha. Atiraram-no para dentro da cova e sempre sem uma pala­
vra, puseram-se a bater-lhe a terra por cima. Era quase manhã
quando cobriram tudo com palha e trouxeram novamente a vaca.
Voltaram então para casa mas deitaram-se juntas, muito abraça­
das uma à outra, e de olhos bem abertos.
Às oito horas chegou o Bento, e Dores disse-lhe que estava
muito aflita, que o marido não viera dormir a casa e que ia à al­
deia saber o que se passava. Embrulhou-se no xaile e partiu.
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 413

Logo nesse dia começaram as buscas. Não levaram, porém,


muito tempo. Várias testemunhas , o dono da taberna entre
outras, disseram que o marido de Dores atravessara a aldeia bêbe­
do como um cacho e a cantar o tiroliro. Na opinião de muitos,
o homem tinha caído ao rio. Dois polícias perderam uma tarde
a passear pelas margens. Depois, o caso caiu no esquecimento.
Emília tinha vivido dias de pesadelo. Não comia e quase não
conseguia dormir. Andava com cara de desenterrada e toda a
gente se espantava com a intensidade do seu desgosto. Depois,
quando soube que a polícia se desinteressara do assunto, caiu
numa grande melancolia. Passava horas e horas sentada numa ca­
deira, com o olhar perdido num ponto vago do espaço e um tra­
balho esquecido entre as mãos. Dores sacudia-a às vezes daquele
torpor com uma das suas novas intonações ásperas. Ela então le­
vantava-se, ia acabar o j antar ou buscar água ao poço. Nunca
mais tinham falado daquilo. Ambas, porém, sabiam que não pen­
savam noutra coisa. O João e a Maria apareciam sempre ao do­
mingo. Falavam dele, recordavam coisas que ele fizera, citavam
frases suas. Duma das vezes Emília levantou-se de repelão com
os lábios a tremer. A mãe disse com secura:
- Fica assim quando lhe falam do pai. Sempre anda com
uns nervos . . . - e não disse mais nada até os filhos saírem. O ra­
paz passou a aparecer menos e a Maria ficou satisfeita porque
nunca gostara da cunhada nem da sogra. Na aldeia começava a
dizer-se que as duas mulheres «não regulavam». Nunca saíam da
herdade senão ao domingo para irem de fugida à missa das sete.
Pareciam-se agora mais e ninguém percebia se era por a mãe ter
um ar menos acabrunhado, se por a filha ter perdido a frescura.
«Há-de ser bonito quando o Joaquim vier!», diziam as comadres
com risinhos contentes. Emília também pensava que o Joaquim
estava a chegar e sentia uma grande angústia.
414 V ASCO GRAÇA MOURA

Um dia sentou-se à mesa com os olhos vermelhos. Dores


olhou-a com atenção mas não lhe perguntou coisa alguma. Havia
muito tempo que não precisavam de perguntar nada uma à outra.
No fim da refeição Emília disse numa voz que se esforçava por
ser natural:
- Escrevi hoje a acabar.
A mãe voltou com simplicidade:
- Fizeste bem. Creio que não podias fazer outra coisa.
E pela primeira vez depois daquela noite, abraçaram-se jun­
tando as suas lágrimas.
Emília viveu então dias de grande calma. Sem a ameaça do
regresso de Joaquim, pensou que a vida lhe pertencia inteiramen­
te. Não fazia nada. As vezes punha-se a vaguear pela herdade ou
sentava-se muito pensativa numa pedra ou num molho de palha.
Deixou quase de se lavar e trazia os cabelos sujos e embaraçados.
A mãe disse uma tarde:
- Vou vender a vaca.
Emília não respondeu. Tinha compreendido. Dores não po­
dia entrar no estábulo. Deus sabia o que ela sofrera nesses últi­
mos meses quando ia levar a ração ao animal.
Venderam a vaca e fecharam a porta. Pela mesma altura dei­
xaram de ir à missa ao domingo. Comiam ao almoço batatas co­
zidas e j antavam os legumes que a horta, muito abandonada,
sempre ia dando. Tinham emagrecido muito e dizia-se na aldeia
que chegavam a passar fome só para não gastarem dinheiro .
O Joaquim, já refeito do desgosto e que andava de namoro com a
filha do merceeiro, dizia aos amigos com um sorriso contente que
tivera Deus por ele e que a Emília estava um estafermo. Avistara­
-a um dia, a sair da missa com a mãe, ambas muito embiocadas
em xailes pretos e tinha-lhe custado a reconhecê-la. Um autênti­
co pau de virar tripas, dissera logo nessa tarde. Também Emília
o tinha visto. E nunca mais voltara à aldeia.
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 415

O ano foi correndo. Agora Dores e a filha dormiam sempre


juntas. Às vezes, de noite, Emília sacudia a mãe, apavorada, os
olhos arregalados para o escuro e só descansava quando Dores,
muito trémula, acendia a luz. Outras vezes era esta quem acorda­
va a filha:
- Ouviste? Estão a mexer na porta . . . não ouves? Não ouves?
Emília coberta de suores frios apurava o ouvido. E as duas,
loucas de terror, os olhos muito abertos a querer furar a noite, es­
peravam a cada instante que a porta se abrisse e qualquer coisa en­
trasse no quarto para lhes ir tocar com mãos frias e já viscosas. Só
conseguiam sossegar quando o dia principiava a romper. Dor­
miam então até altas horas e esqueciam-se muitas vezes de almo­
çar. Levantavam-se pela tarde e olhavam sempre para o relógio,
a pensarem já na noite que se ia aproximando.
Um dia as duas mulheres conversaram longamente, o que tal­
vez nunca tivessem feito. A filha começou por sugerir à mãe uma
coisa que havia muito germinava no espírito de Dores. Chegaram
portanto a um acordo com facilidade. Nessa noite dormiram
melhor.
Qiando muitos dias depois, o João apareceu na herdade, en­
controu-a deserta. Chamou mas ninguém lhe respondeu. Correu
toda a casa sem resultado. Atraído por um dos cães que gania en­
costado ao casão, meteu os ombros à porta e entrou. As duas mu­
lheres tinham-se enforcado.
O p ezinho de Nossa Senhora
Natália Nunes

ÜS CONHECEDORES DA OBRA DE FRA ANGELICO, o monge­


-artista, sentem com certeza a angelicalidade da sua pintura onde,
apesar dos azuis intensos, dos vermelhos e dos rosas vivos, da
profusão de oiro, a atmosfera permanece doce, cândida, de san­
tidade.
Nesta Fuga para o Egipto mais uma vez surge a figura da
Virgem, cuja vida amorosamente o pintor nos contou em tantas
das suas obras. Vai montada num burrinho, a que poderemos
chamar também angelical ou místico, de tão transparente, quase
branco é o cinzento do seu corpo banhado dos reflexos azulíneos
do vestido da Mãe de Deus. E o focinho do burrinho, ainda que
asinino, mostra uma espécie de contenção da animalidade, uma
ausência do diabolismo de que normalmente são portadoras estas
alimárias.
Ao lado da Virgem, a pé, segue seu Esposo, São José, de bor­
dão de caminhante e cabaça de água numa das mãos, enquanto
na outra segura o farnel para a jornada, pormenores que de ma­
neira nenhuma lhe conferem aparência prosaica ou terrena, ma­
terialidade, pois até a sua varonia é «mitigada», não apenas pelo
halo de espiritualidade que impregna todas as obras do místico
418 VASCO GRAÇA MOURA

pintor, mas também pela própria qualidade estética, pela beleza


extraordinária das suas vestes.
A Virgem desta Fuga é Puríssima. A maior parte das Virgens
medievais e também as do Renascimento - olhai a de Fouquet,
com cinturinha de vespa e uma cercadura de aros vermelhos! -
são criaturas terrenas do sexo feminino; de algumas dir-se-ia até
serem mais pecadoras que santas, tanto parecem afrodites ou cor­
tesãs, camponesas rubicundas ou amas de leite. Poucos pintores
nos deram Virgens verdadeiramente «puras» e «místicas».
Está, montada no diáfano e inocente burrinho, apertando nos
braços o Menino na sua envolta escarlate, não tem faces jucundas
nem seios túrgidos ou tranças opulentas; vai serena e fita em ho­
riwntes, não deste mundo, os olhos doces e graves; as únicas par­
tes descobertas do seu corpo são rosto, uns centímetros de pesco­
ço acima do decote cingido, e as mãos de uma carne imaterial,
santificada, quase transfigurada.
Uma só exígua parte do corpo da Virgem se permitiu o An­
gelico «materializar»: aquela pontinha de pezinho que, como pé­
tala de rosa, delicadamente assoma na fímbria do manto azul.
Em pintura quase sempre o manto cobre os pés da Virgem
Nossa Senhora; sapatos ou pés desnudos não diriam bem com a
dignidade da Mãe de Deus; sapatos lhe emprestariam aparência
mundanal, pés descalços que pisassem terra e andassem caminhos
de pecado nota seriam de decaimento e condição terrena.
Fra Angelico pintou, não os pés, mas tão-só uma pontinha
de um pezinho de Nossa Senhora: discreta, tímida pincelada ró­
sea, que em pintor tão espiritual é ainda comovedora reminiscên­
cia carnal.
História de um muro branco
e de uma neve preta
José Saramago

NÃO HA VERIA NADA MAIS FÁCIL NO MUNDO DAS HISTÓRIAS que


escrever um conto de Natal com Menino Jesus ou sem ele, se não fosse
dar-se o caso de que uma criança que nasce está sempre nascendo.
O nosso grande erro, esquecidos como em geral andamos das infoncias
que vivemos, fai pensar que as crianças nascem uma única vez e que
depois de nascidas se limitam aficar à espera de que o tempo passe e as
transjàrme em adultos, os quais, como deveríamos saber, constituem
uma espécie diferente de seres humanos. A criança começa por nascer
uma vez, que é a de vir ao mundo, e depois continua a nascer para
compreendê-lo: não tem outro remédio nem há outra maneira. Como
se verá pelas duas breves histórias que se seguem, ambas autênticas,
ambas verdadeiras.

A terra, àquela hora, cobria-se de uma noite tão escura que


parecia impossível que dela pudesse nascer o Sol. Não tem chovi­
do, as tempestades andam por longe, o rio descansa da sua pri­
meira cheia de Inverno, os charcos são de mercúrio. O ar está
frio, parado, e estala quando respiramos, como se nele se suspen­
desse uma ténue rede de cristais de gelo . Há uma casa e luz
lá dentro. E gente: a Família. Na lareira ardem grossos troncos
de lenha de donde se desprendem, lentas, as brasas. 01rando
420 VASCO GRAÇA MOURA

à fogueira se lhes juntam gravet� s, ramos secos, um punhado de


palha, a labareda cresce, divide-se em trémulas línguas, sobe pela
chaminé encarvoada de fuligem, ilumina os rostos da Família e
logo volta a quebrar-se. Ouve-se o ferver das panelas, o frigir do
azeite onde bóiam as formas redondas das filhós, entre o fumo
espesso e gorduroso que vai entranhar-se nas traves baixas do te­
lhado e nas roupas húmidas. São talvez nove horas, a modesta
mesa está posta, o momento é de paz e de conciliação, e a Famí­
lia anda pela casa, confusamente ocupada em pequenos trabalhos,
como um formigueiro.
Não tarda que saiam todos para o quintal. Vai ser lançado ao
ar o foguete de três respostas, esse que, cumprindo a tradição,
anunciará aos vizinhos que naquela casa já a última filhó saiu do
tacho, a escorrer, e foi cair no alguidar profundo onde aguardará
o retoque final da canela e da calda de açúcar. Entre portas, a
Criança vê a Família a sorrir, fazendo e desfazendo grupos ao re­
dor do Avô, que sopra um tição trazido da lareira e o aproxima
do cartucho de pólvora amarrado ao caniço. Tinha pedido que o
deixassem ajudar, mas responderam-lhe como das outras vezes:
«Ainda és muito pequeno, para o ano que vem.» A Família tem
razão: é preciso ter cuidado com as crianças.
A pólvora inflama-se bruscamente, lança um jacto de fagu­
lhas vivíssimas, silva como uma serpente, e logo é um dragão ru­
gindo que sobe para o ar gelado, corta-o como uma espada de
fogo, e lá muito no alto, quase tocando as primeiras estrelas, esta­
la, estraleja, cobrindo os ecos de outro foguete distante. O caniço
desce com uma luz mortiça que desmaia, e vai cair longe, nos oli­
vais que rodeiam a casa, sobre as ervas cobertas de geada. Com
este tempo não há perigo de que pegue fogo às árvores. De súbi­
to, a Família diz que está frio e volta para casa, levando entre os
braços, entre os anéis, entre os tentáculos, a Criança a quem não
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 42 1

deixaram ajudar a lançar o foguete. Tinham deixado a porta aber­


ta, o interior da cozinha arrefecera. A Avó acode a espalhar na
fogueira uma mão-cheia de aparas, desgalha um ramo seco de
oliveira, parte-o com as mãos calejadas, mas é com suavidade que
depois chega os troços à chama, como se estivesse a alimentá-la.
O lume hesita, escolhe o lado mais acessível da lenha, e depois,
indiferente, alheado, a pensar noutra coisa, recomeça o seu eterno
ofício de fabricante de cinzas.
A Família gira ao redor da mesa, arruma-se nas poucas cadei­
ras que há, trazidas algumas doutras casas, uns quantos escabelos
pouco firmes, um caixote velho posto em pé. Os rostos estão sor­
ridentes e corados, e têm nomes e apelidos, mas, para a Criança,
são, antes de tudo, os Pais, os Avós, os Tios, os Primos, um
enorme e complicado corpo de animal que lhe lembra a história
da Bicha-de-Sete-Cabeças ou o Dragão-Qie-Não-Dorme. So­
bre a mesa trava-se uma gesticulação ruidosa de facas e garfos, de
mãos, de dentes, uma contínua mastigação que deforma os rostos
e engordura as bocas. Contam-se casos, anedotas, todos riem.
O frio está lá fora, e a geada, e a noite impenetrável. A Criança
anima-se, já esqueceu a decepção, para o ano talvez a deixem lan­
çar o foguete sozinha. Também tem uma história para contar, só
está à espera de uma pausa, de um momento mágico em que to­
dos se calem, acaso emudecidos por um anjo que passou deixan­
do apenas a imagem de um dedo imperioso sobre os lábios cerra­
dos. O momento está a chegar por fim, uma a uma calam-se as
bocas da Família, é agora ou nunca, a Criança inspira fundo,
rompe o silêncio, começa a falar. A Família olha surpreendida, dá
alguma atenção, mas não muita nem por muito tempo, não dura,
não pode durar, as vozes regressam do silêncio, e é o Pai que lhe
corta a narrativa com uma frase que faz rir toda a gente. Uma fra­
se que vai fazer chorar a Criança. Porque o Menino, a Criança
422 VASCO GRAÇA MOURA

é um menino, levanta-se da mesa, abre a porta, separa-se da


Família e desce os três degraus de pedra que conduzem ao mun­
do. Ali adiante há um muro caiado, baixo, como uma varanda
dando para terras ignotas. A Criança vai debruçar-se sobre o mu­
ro, deixa cair a cabeça sobre os braços cruzados, e o terrível nó das
lágrimas desata-se dentro de si. Da casa vêm risos e vozes, alguém
fala muito alto, e depois ressoam gargalhadas. Ninguém está pen­
sando na Criança.
Faz muito frio. Visto daqui, o céu parece estar feito de veludo
negro. E há as estrelas. Duras, nítidas, implacáveis, quase ferozes.
A Criança levanta os olhos. Lá estão elas a brilhar. Olhadas atra­
vés das lágrimas, as estrelas são diferentes. Mundo estranho, es­
tranho mundo, este. Sob os passos da Criança, o chão duro e ge­
lado range. E, em frente, as árvores negras, misteriosas, onde à
noite os grandes medos se vão esconder, tomam o ar confidencial
de quem conhece todos os segredos futuros, a hora e o lugar onde
acontecerá o terceiro nascimento, e o quarto, e o quinto, todos
aqueles que ainda esperam esta Criança, até mesmo quando de
havê-lo sido já não lhe restar memória.
As Crianças estão sempre a nascer. Às vezes nascem de ex­
plosivas alegrias, de achados incríveis, de deslumbramentos úni­
cos, mas o mais frequente, uma vez após outra, é nascerem de
cada tristeza sofrida em silêncio, de cada desgosto padecido,
de cada frustração imerecida. Há que ter muito cuidado com as
Crianças, nunca me cansarei de o dizer. Um dia uma Professora
teve uma ideia de Professora e mandou aos seus alunos que fizes­
sem uma composição plástica sobre o Natal. Claro está que não
empregou esta linguagem, o que disse foi: «Façam um desenho
sobre o Natal. Usem lápis de cores, ou aguarelas, ou papel de lus­
tro, o que quiserem. E tragam na segunda-feira.» Uns com lápis,
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 423

outros com aguarelas, outros com papel recortado, alguns pin­


tando com os dedos, todos cumpriram o melhor que puderam.
Apareceu tudo quanto é costume nestes casos: o presépio, os
reis magos, os pastores, São José, a Virgem e, inevitavelmente,
o Menino Jesus. Bem feitos uns, mal feitos outros, toscos ou es­
merados, os desenhos caíram na segunda-feira em cima da secre­
tária da Professora. Ali mesmo ela os viu e lhes pôs nota. Ia mar­
cando «bom», «mau», suficiente», como se com esses juízos os
marcasse para a eternidade. De repente. Ah, quantas vezes ainda
teremos de dizer que é preciso muito cuidado com as crianças!
A Professora segura um desenho nas mãos, um desenho que não
é melhor nem pior que os outros. Mas ela tem os olhos fixos, está
confusa, perturbada: o desenho mostra a invariável manjedoura,
a vaca e o burrinho, e toda a restante figuração. Sobre esta cena
já sem mistério cai a neve, e esta neve é preta. Porquê?
«Porquê?», pergunta a Professora à Menina que fez o dese­
nho. A Menina não responde. Talvez mais nervosa do que que­
reria mostrar, a Professora insiste. Há na sala os risos cruéis e os
murmúrios de troça que sempre aparecem em ocasiões destas.
A Menina está de pé, muito séria, um pouco trémula. E respon­
de, por fim: «Pintei a neve preta porque foi nesse Natal que a mi­
nha mãe morreu.» Fez-se silêncio e a Professora pensou, assim
o veio a contar mais tarde: «À Lua já chegámos, mas quando e
como conseguiremos chegar ao espírito de uma criança que pin­
tou a neve preta porque a mãe lhe morreu?»
Muitos anos depois de estas histórias terem acontecido, con­
tei-as a uma outra Menina, que me perguntou: «E eles ainda es­
tão tristes?» Nessa altura disse-lhe que sim, que há tristezas que
o tempo não consegue apagar, mas hoje conforta-me a ideia de
que talvez o Menino do Muro Branco e a Menina da Neve Ne­
gra se tenham encontrado na vida, e que talvez por causa deles o
mundo já esteja a mudar sem que nós tenhamos dado por isso.
424 VASCO GRAÇA MOURA

* * *

Este conto (se o é) tem a sua origem em duas crónicas, «Um Natal
Há Cem Anos» e <<A Neve Preta», publicadas no jornal A Capital no
final dos anos 60 e que hoje podem ser lidas mais comodamente no vo­
lume Deste Mundo e do Outro. Ajunção delas (que de certa ma­
neira é também fusão) aconteceu em 1995 e teve como destino uma
revista espanhola entretanto desaparecida. Relidas hoje, novamente
refeitas, estas velhas crónicas perguntam se o muro branco ainda lá
está e se ainda há quem tenha de continuar a pintar a neve com tinta
preta. Por mim, acho que sim. Quem dera que sejam muitos os que te­
nham razões para pensar que não.
A samarra

Urbano Tavares Rodrigu.es

HAVIA JÁ UM BOM PAR DE ANOS QUE SE SENTIA MELHOR ALI,


na sua casa, do que noutro lado qualquer. Gostava de ouvir os
navios a uivarem na bruma lá fora - ele sentado à secretária, dei­
xando-se penetrar pela mornidão entorpecente do calorífero de
dez tubos, que tanto cobiçara à mãe, antes do seu trespasse.
Trazia quase todas as tardes, na pasta enorme, montes de pa­
péis do escritório para casa, mas quase não lhes tocava: o sono
vencia-o, logo após o jantar pesado e o indispensável «carioca»,
que ia tomar ritualmente à pastelaria da esquina; escrevinhava
uma ou duas cartas, quando muito, divagava pela estante os olhos
já piscos, acariciava com os dedos a brancura do polipeiro com­
prado um domingo na Boca do Inferno, bocejava, acomodava-se
melhor sobre a almofada da cadeira-trono onde atendia os filhos,
almofada que lhe aumentava pelo menos dez centímetros a altura
do busto; às vezes lambia com a ponta da curiosidade o mel da
cultura, acariciando a lombada rica ou as folhas de algum dos
seus livros, em que não chegava afinal a pegar, e, não resistia mais
(«Estou farto de trabalhar», dizia para a mulher), deitava-se; às
vezes ainda esboçava um gesto, puramente formal, de ufania
masculina, mas dona Leonor, dentro do jogo, ponderava, sensata:
426 V ASCO GRAÇA MOURA

«Estás tão cansado, Adolfo, precisas é de dormir», e logo ele,


de consciência tranquila, reconhecia que assim era.
Porém, aquele Natal, que começara por acender no Chiado
tantas estrelas quantas as contribuições de que os comerciantes se
carpiam, abriu-lhe a gaiola, um tanto enferrujada, da imaginação
e dela saiu, à hora do almoço, o pássaro-lira das acções exem­
plares:
- Meninos, este ano vamos assinalar a noite de Natal com
uma obra de caridade. Todos vocês, descansem, hão-de ter os
presentes do costume. Mas há-de haver uma surpresa, e têm
todos de assistir: vamos fazer a felicidade de um pobre.
Os dois mais novos ficaram interessados: era novidade e,
além disso, os pobres, de barbas, que falavam e praguejavam sozi­
nhos e corriam pelas ruas atrás do garoto, interessavam-nos, tal
como os cães vadios. O mais velho, que já não ligava a essas coi­
sas (ia nos dezasseis anos), tratou logo de ordenhar aquela súbita
generosidade, esportulando ao progenitor cinquenta escudos, pa­
naceia j á crónica de uma imaginária gonorreia, que o doutor
Adolfo não tinha mais remédio senão respeitar («Com a saúde
não se brinca») e que assim lhe permitia repotrear-se de vez em
quando nas segundas matinées.
Adolfo Mota concebera dias antes a sua ideia, ao abrir o
guarda-fato à procura de uma gravata cinzenta para o casaco pre­
to e calças de fantasia de ver a ministro. Deu com os olhos na sa­
marra e achou-a gasta, fora de moda, a gola de lontra a tornar-se
rala. <<Já nunca ponho semelhante coisa, só estorva aqui dentro,
ocupa imenso espaço.» E fulgiu-lhe a inspiração na grande cabe­
ça untuosa e digna.
A véspera de Natal amanheceu nubilosa, quase pressaga, com
gato preto na varanda e um vento desencontrado, sem origem
(o Outono dourado paga-se caro) , pouca gente nas ruas, uma
atmosfera de espera e de vazio. O doutor Mota, porém, muito
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 427

quente no seu escritório (que bom!), depois do banho quinzenal,


com sais, água-de-colónia e tudo - o dia não era para menos -,
deixava a alma preguiçar, muito macia, no cântico da igreja vizi­
nha. Era sábado e os seus trinta anos de vénias e adjectivos já lhe
davam o direito, bem merecido, de não trabalhar aos sábados.
Passou a tarde entre a colecção de selos, a televisão e o dicio­
nário de rimas, pois estava-se todo ele aguçando (tarefa laboriosa)
para umas coplas de verso de arte real com que desejava instruir
os rapazes, em vernáculo, sobre o mistério da natividade. Como
bom chefe de repartição, era-lhe mais azado - se metia a furto a
mão na consciência - respeitar ou detestar do que propriamente
amar. Mas em família . . . Qge não faria ele pelos seus rebentos?!
E havia de aparecer o primeiro que se lhe avantajasse como edu­
cador.
Mas as trovas saíam-lhe de cimento armado, e o doutor
Adolfo aborreceu-se de teimar; através da vidraça, já o céu se des­
bulhava: plumas de chuva outonal adornavam os plátanos esfo­
lhados; visto de dentro de casa era tudo bonito. Depois até houve
guarda-chuvas voltados do avesso, cabeleiras de algas, medusas,
corpos de mulher esculpidos pelo vento. Adolfo Mota, conquan­
to achasse que olhar não é pecado, longe dos superiores hierár­
quicos, entendeu que na véspera de Natal bem podia e devia pri­
var-se desse gosto.
Ao jantar, cresceu a expectativa, que ele passara todo o dia
a injectar com meias frases. Já haviam transitado dos filetes de
peixe para o peru recheado quando Sua Paternidade anunciou,
magnânimo, baixando por várias vezes a fronte oracular, que
a surpresa era a samarra, uma dádiva de reis. Estava nova, nem
cinco vezes talvez a tinha vestido . . .
- E u conheço u m pobre - principiou o benjamim - que
anda ao trapo lá ao pé da escola, com um grande saco . . .
428 VASCO GRAÇA MOURA

Logo Patrício, o segundo, acudiu:


- Vai mas é para aquele guarda dos baloiços, mãezinha,
lembra-se, quando fomos no domingo a Santo Amaro?, estava
a tremer de frio.
- Mas esse não é pobre, meu filho - esclareceu dona Leo­
nor. - Talvez seja um necessitado, sim, mas sempre tem o seu
trabalhinho, lá se governa melhor ou pior.
O primogénito, ansioso por fumar, simulou uma cólica para
se levantar da mesa a correr, uma vez lambido o prato do doce.
Lamentando embora a redução do auditório, Adolfo Mota
tomou novamente a palavra: o pobre em questão não podia ser
um pobre qualquer, havia que escolhê-lo, com todo o cuidado,
por entre esses avejões tristes, os mais desgraçados, que pisam,
à noite, as folhas da ventania; talvez que até um sinal de Deus
o designasse . . .
Dona Leonor concordou piedosamente; e, pelas dez horas
(quando o relógio de parede, obstinadíssimo no seu desarranjo,
dava onze horas é que eram dez), agasalharam-se, desceram a es­
cada em ordem de marcha - porque o ascensor estava também
perpetuamente avariado -, à frente o chefe da família e logo
após o Qyim, que já não se queixava da barriga, espreitando, son­
so e aguado, na obscureza de um patamar, os jogos de mãos da
sopeira cantora do andar nobre abraçada ao seu derriço. Dona
Leonor voltou a cara, muito moral, e puxou pelos seus extremo­
sos cadilhos, que lá foram trambolhando, expiando a materna in­
dignação, pelos lanços da escadaria, até ao Vauxhall Victor 101 S,
tão comprido e faustoso como o nome, onde todos se arrumaram.
Os segredos da noite, porém, se os havia, eram ilegíveis,
como os dos pobres, ou requeriam um longo e humilde estudo.
O doutor Mota bem se esforçava, ao volante do seu carro-paraíso,
mas estava pouco habituado: no cimo do Parque Eduardo VII,
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 429

afrouxando a ponto de o olharem com suspeição, só viu soldados,


raparigas ou muito novas ou demasiado velhas, algumas andra­
josas, e uns vagabundos que tresandavam a vício, aos quais por
nada deste mundo alguém o moveria a dirigir-se. Nas Avenidas
Novas surgiu-lhe, quase em frente dos faróis, um ciclope, desgre­
nhado e sujo, aos bordos, certamente bêbedo. Era um contacto
não menos infectante - e até perigoso.
Seguiu; rodou pelo Campo Grande, foi até ao Aeroporto; no
regresso, quis experimentar a wna da Almirante Reis, a da Gra­
ça. Os filhos gostavam, era um belo passeio. O que desde sempre
nos pobres o repelia - e tanto mais meritória sentia por isso a
sua acção - era a rudeza vindicativa, que chegava a assustá-lo,
até porque, fora da órbita da sua férula profissional, não sabia,
naturalmente por delicadeza de educação, responder à violência
com violência.
Convinha-lhe encontrar, isso sim, um pobre submisso, um
desses santinhos rotos com o céu já assegurado, que beij am as
mãos e os pés aos seus benfeitores. Mas, havendo tantos desses
pela cidade em dias vulgares, tantos que às vezes tinha a criada de
enxotá-los rispidamente da escada de serviço, em horas de infla­
ção, nem um só, naquela ventosa véspera de Natal, mostrava a
face conformada (ou matreira) de mártir integrado na sua missão.
A samarra ia, muito estimada, no banco de trás, entre o calor das
ancas de dona Leonor e os tagatés do infante mais novo, que lhe
afagava, como a um brinquedo, a fulva gola de lontra.
- Qiem fazia um vistão com ela na escola sei eu - disse
Patrício, que volta e meia, lhe deitava o rabo do olho por sobre o
colo alteroso da senhora sua mãe. - Se a Aduzinda ma ajustasse
ao corpo . . . Eu também sou um pobrezinho. . . E o velho do trapo
- acrescentou, para ganhar o apoio do irmão mais pequeno -,
se o pai lhe mandasse cem escudos, ficava doido de contente . . .
430 VASCO GRAÇA MOURA

- E vocês a darem-lhe com o homem do trapo - repreen­


deu, desconsolada, dona Leonor. - Ainda não perceberam coisa
nenhuma.
- Não, meu filho - concluiu o doutor Mota -, não vês
que ainda não tens idade para vestir roupas dessas?
- Sempre gostava de saber - disse o Qiim, que ia no lugar
de honra, ao lado do pai - como é que a samarra há-de assentar
no charlot que a gente anda a ver se desencanta!
- As vezes convenço-me de que este rapaz não tem senti­
mentos - lamentou-se dona Leonor. - Ninguém sabe o que
ele deveras pensa. Até parece que faz pouco das coisas mais sa­
gradas.
- Eu?
Adolfo Mota desfez a curva rapidamente. O carro ia a descer
por uma paisagem de prédios semidemolidos, tão explorada, es­
fomeada e inóspita que lhe constrangia o coração. Só era senhor
de si em terrenos conhecidos e nem todas as forças do bem a que
rendia tributo naquela noite simbólica podiam forçá-lo a aventu­
rar-se por tais sítios. Tornou à Penha de França. Pobres não fal­
tavam; felizmente, mesmo em ruas luminosas ou, se fosse preciso,
em áreas suburbanas mais domesticadas.
A mucosa negra que a chuva deixara, com pingos de sangue
eléctrico, sobre o alcatrão, tornava melindrosas as travagens.
À porta das tabernas havia homens que cheiravam, mesmo de
longe, a vinho e a trabalho e cujas carrancas hostis nada tinham
de comum com os velhos servidores fiéis (e até já condecorados
por trinta anos de risonha obediência) da disciplinada repartição
do doutor Adolfo Mota. Eram cabeças de medo, empastadas de
poeira e de carvão. Gargalhadas de bronquite e de escárnio ou
dessa alegria suada e raivosa dos luares de folga sem patrão, que
soavam aos ouvidos mesurados de dona Leonor como trombetas
de uma desordem que ela mais do que tudo abominava.
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 43 1

Finalmente , numa praça sossegada, com luzes fúnebres,


como abelhas mortas, algures onde a respiração da cidade vinha
quebrar-se e a horda de ouro dos anúncios se estiolava, o doutor
Adolfo travou suavemente, avistando, por entre o canteiro de
pálpebras molhadas e a estátua tradicional de uma virtude com
chapéu à diplomata, um pedinte adormecido, manso, inofensivo,
segundo toda a aparência, quase uma figura de romaria, barba de
ventos, cabelo todo em anéis brancos, uma boca entreaberta de
franciscano meigo, os sapatorros enormes, esburacados, de galga­
-mundos, meio enterrados entre coroas de lixo e a espuma da
água e da lama acumuladas debaixo do banco.
«Este sim!», augurou o doutor Mota. Parecia imagem de ál­
bum muito reeditado, inspirava simpatia, havia no seu sono cor­
dato como que um apelo às boas regras da caridade.
Meticulosamente, o doutor apagou os mínimos, desligou o
carro, engatou-o em primeira; a oferenda veio das mãos rituais de
dona Leonor para as suas, que a recolheram, numa solenidade
munificente. Fechou a porta do automóvel, com propositado es­
trondo: quatro rostos atentos o contemplavam - a família intei­
ra, à espera da grande demonstração. O mendigo, porém, nem
despertou quando a sombra do doutor Mota veio roubar-lhe ao
sono as estrelas e o halo tíbio do candeeiro plantado entre as cin­
zas do seu jardim.
Adolfo Mota avançou, resguardando a samarra, amorosa­
mente, da molinha dolida; quedou-se, um tanto perplexo, ante
o ronco duro, contínuo, daquele espantalhão rugoso, que de perto
era muito mais feio e vermelho, sem poesia. Parecia, de tão eno­
doado e batido, todo ele feito de terra e erva calcinada, com uma
penca insólita de quermesse flamenga.
O doutor, aconchegando ao peito o presente, aflorou-lhe,
com dedos temerosos, o ombro de carne e de farrapos. O homem
432 VASCO GRAÇA MOURA

estremeceu, tossiu, escarrou em cima dos próprios sapatos, mas


não acordou. Adolfo Mota retraiu-se, entre agoniado e descon­
tente consigo: quem o mandava afinal meter-se naqueles ridí­
culos , arvorado em paladino de fervores que só na letra das
prelecções rimavam certo?! Mas espreitavam-no, julgavam-no
- diabo! - os olhares do seu clã, cujos dóceis corações era pre­
ciso fecundar, perfumar, naquela noite diferente.
Hesitou longos segundos e, mais uma vez, estendeu, furtivas,
para o dorminhoco, as suas trémulas unhas, tratadas extremosa­
mente todas as segundas-feiras pela menina Alberta no Palácio
de Cristal. Então a fera rugiu e disse: «Merda!»
O doutor Mota recuou, apressurado. Contava que a sua gen­
te, ao menos, não se tivesse apercebido do vexame.
«Ainda há outros pobres na cidade, honra lhes seja, e dos
agradecidos, dos que sabem reconhecer à légua os seus benfeito­
res, beijar o chão por onde eles passam.» Mas em que parte achá­
-los agora? Um medo irracional o estremecia, medo daqueles
grunhidos, da bicada feroz dos pobres desatinados - medo de
comprometer a sua dignidade em público, de ter de ouvir e calar,
ele que trazia nos braços a esmola, a esperança, a glória da sua
bondade, sujeito ao mau humor daqueles apanhadores de beatas.
Bem mais simples teria sido confiar à criada o encargo de
empandeirar a samarra: farroupilhas não faltavam a assediar-lhes
a porta todo o santo dia. O exemplo, claro . . . O exemplo é que
valia tudo. Formar os filhos . O clarão de magnésio do bom
exemplo. Mas arriscar-se assim um homem de bem entre aquela
miséria obscena e obstinada, não. Nunca mais! Vá lá alguém que­
rer salvá-los!
Abraçou-se, indignado, com a sua samarra e, nesse amplexo
de mágoa e de posse, sentiu renascer em si, como consolação, o
amor que lhe votara, apagado, roído, pela moda volúvel, pelo
tempo de guarda-roupa, pela traça . . .
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTIJGUESAS DE NATAL 433

Já não se usava, de acordo, mas, uma vez por outra, ainda lhe
ficava tão bem! E era tão quentinha, toda almofadada, à maneira
das canadianas! Sim, uma vez por outra, para um passeio matuti­
no, quando o rei faz anos, para as vagas de frio, em Janeiro, para
a Serra da Estrela, quem sabe?!, ou para quando levasse o Qiim
aos jogos internacionais, no Estádio, por uma questão de patrio­
tismo . . .
O gafeiroso ressonava, sobre a fadiga do bairro espostejado.
O sono que dessedenta, que mata a fome. E foi por aí que o dou­
tor lhe pegou. Caminhando para o carro, levava a samarra pen­
durada dos dedos, samarra não, manta de arminho, e nos olhos
a unção de quem tivesse visto, sob as estrelas geladas, a cidade
de joelhos perante Deus.
- Viram como ele dorme, como está sonhando?
- Não, paizinho.
- Pois até dá gosto, meninos - e, após uma pausa de bom
orador, acomodando-se no assento, ganhando tempo a soltar
o travão de mão, a verificar as luzes, a escutar o ralenti, declarou:
- Tinha um ar de profunda paz, tão tranquilo, tão feliz, que não
fui capaz de o acordar. Pus-me a pensar que talvez ele estivesse
sonhando, sabe-se lá, com o presépio, com o Menino Jesus. Qyal
das vidas é que é a verdadeira: a das nossas agruras diárias ou
aquela em que nós somos tudo aquilo que a existência real nunca
pode dar-nos . . . e às vezes muito mais até do que se possa ima­
ginar? . . .
«Fala como u m livro, o meu Adolfo, benza-o Deus», consi­
derou enternecidamente dona Leonor, que, apesar de já ter fes­
tejado vinte anos de sacrifícios hebdomadários segundo a mais
estrita e natural natureza e até de arrotos nocturnos compartilha­
dos, resistira a tudo e ainda nele admirava, com o antigo embeve­
cimento, aquela arte jaculatória, bem como o talento honrado de
ganhar dinheiro.
434 V A S C O GRAÇA MOURA

O doutor Mota metera o carro em segunda, subia agora, ain­


da pouco seguro de si, a Rua Joaquim Bonifácio; enganou-se com
o pisca-pisca; um sinaleiro, prestes a insultá-lo, até para esparzir
o frio, atentou melhor na linha do automóvel, na expressão típica
daquele semblante balofo, que era, inequivocamente, a dos man­
dantes, e, consciente da veneração que lhe devia, deixou-o seguir
sem comentários.
- No fundo, meus filhos, não há bens materiais que valham
as alegrias do espírito. Não, não há. A beatitude, vocês perce­
bem?, a beatitude daquele pobrezinho impressionou-me. Dir-se­
-ia um santo. Não exagero. Eu afinal é que vim aqui receber uma
lição. É esta a moral da nossa véspera de Natal. Compreendem,
não é verdade? Interromper aquele sonho, certamente tão lindo e
tão puro, por causa desta mísera samarra, seria uma desumanida­
de. Vocês não acham? O espírito, podem crer, conta mil vezes
mais do que a carne . . .
- E o que é que o pai vai fazer d a samarra? - perguntou
o Qiim, com sentido prático.
- Bem se vê, filho, que não entendes nada do que estou
a querer explicar-te.
- Nem vale a pena cansares-te com ele - corroborou dona
Leonor. - Este rapaz já tem pinta de herege. Desconfio que
ainda nos há-de dar grandes ralações.
Exercícios de auto-ap oucamento
(com vista ao próximo Natal)
Alexandre O'Neill

A IDEIA DE HÁ MUITO QUE O ANDAVA A DESASSOSSEGAR. De­


pois dos primeiros ensaios de auto-apoucamento, Valério conse­
guiu um primeiro grande resultado : meter-se todo, todinho,
numa das pernas (por sinal, a esquerda) do par de calças de sarja
que comprara nas Confecções Nilo por trezentos convidativos
escudos. Com voz-de-dentro-de-calça chamou a mulher:
- Ó Qyinhas, anda ver!
Qyinhas levou um susto ao dar com uma perna de calça sus­
tentando-se em pé sem, aparentemente, homem lá dentro. Logo
se refez para fingir que não era capaz de o encontrar:
- Mas onde é que se teria metido o meu Lerinho!
- Aqui, sua estúpida! - desabafou-abafou a voz de Valério.
Qyinhas continuava a brincadeirinha apalpando a perna vazia
e bichanando:
- Lerinho! Lerinho!
Qyando Valério, por fim, se libertou da perna da calça e reto­
mou o seu (natural) ascendente, trocaram prazenteiros insultos
como só os casais muito unidos sabem trocar.
Qyinhas seguira os exercícios de auto-apoucamento de Valé­
rio. Este começara a enovelar-se pelos cantos da casa: passara de
seguida aos gavetões da cómoda e acabara por ser encontrado
436 V ASCO GRAÇA MOURA

numa das gavetas da mesa da cozinha. Dessa feita, Qyinhas gri­


tara. É que Valério saltara lá de dentro e avantajara-se brandindo
aos urros um facalhaz.
- Qye horror, querido, pareces um cossaco! - dissera Qyi­
nhas que, no autocarro dessa manhã, lera nas Selecções um artigo
dum biólogo americano sobre cossacos.
E então, solenemente, como só os casais muito amigos sabem
fazer, combinaram logo ali que Valério, por mais apoucado e en­
cafuado que estivesse, não pregaria sustos daqueles à sua Qyi­
nhas. E beijocaram-se, prazidos. Os exercícios de auto-apouca­
mento de Valério tinham um fim: preparar a grande surpresa
para o Necas, quando ele viesse a férias pelo Natal. E vai daí
- como o tempo corre! - o Necas veio. Valério considerou o fi­
lho com apreensão. Valeria a pena a surpresa? Necas estava tão
grande! Aquela sombra no beiço, aquela voz do peito pontuada
de estridulações . . .
- Ora, o Necas é ainda tão criança! - sossegou-o Qyinhas.
Criança que era, o Necas só muito raramente acordava no
meio do sono com as movimentações tardias que naquela casa es­
tavam a ser o teor diário. Mas na véspera do Natal, o silêncio foi
inesperadamente tão grande que o Necas passou toda a noite
numa excitação que nem te digo. Coisas de crianças, coisas da
quadra?
Ao levantar-se, pés nus, para ir ver o sapatinho, o Necas já ia
a bordo dos patins que a mãe lhe prometera. Qyando deu com
o pai, apoucado, a acenar-lhe amigavelmente da amurada do sa­
pato, Necas fugiu a procurar no regaço de Qyinhas a verdadeira
dimensão do seu horror:
- Sa . . . Sa . . . Saiu-me o . . . o . . . o pai no sa . . . sa . . . sapato! - so­
luuuuçava o órfão de vivo. E a mãe, ultrapassada pela reacção do
Necas, consolava-o como ia podendo, prometendo-lhe que o pai
voltaria a crescer, a crescer.
Natal chinês
Maria Ondina Braga

A SENHORA TuNG CHEGAVA DOIS DIAS ANTES DA CONSOADA.


Costumava vê-la logo de manhã, com a irmã jardineira, no pátio
maior, a admirar as laranjeiras anãs nos vasos de loiça. Via-a ca­
sualmente a contemplar, embevecida, o presépio do convento.
Encontrava-a por fim à mesa.
A senhora Tung viajava todos os anos da Formosa para Ma­
cau, na época do Natal, a fim de festejar o nascimento de Cristo
na companhia da sua primogénita, a irmã Chen-Mou.
Nesses dias, com as meninas em férias, o refeitório do colégio
parecia maior e mais desconfortável: só eu e Miss Lu nos sentá­
vamos à mesa comprida das professoras. Daí a presença da se­
nhora Tung, que noutra ocasião passaria talvez despercebida ( es­
tirada a sala entre pátios de cimento e plantas verdes), se tornar
nessa altura notável.
Baixa, seca de carnes, de olhos atenciosos, pensativos, a se­
nhora Tung sorria constantemente, falava inglês, gostava de co­
mer, de fumar, de jogar ma-jong. As criadas cortejavam-na nos
corredores, preparavam-lhe pratos especiais, levavam-lhe chá ao
quarto . Além de ser mãe da subdirectora, tinha fama de rica
e distribuía moedas de prata a todo o pessoal na noite de festa.
438 V ASCO GRAÇA MOURA

Nessa noite assistiam três freiras ao nosso jantar (a regra não


lhes permitia comer connosco) : a directora, a subdirectora e a
mestra dos estudos. E muito empertigada, segurando com ambas
as mãos um tabuleiro de laca coberto com um pano de seda, a se­
nhora Tung recebia-as à porta do refeitório, entregando cerimonio­
samente o presente à filha, que por sua vez o oferecia à directora.
Eram bolos de farinha fina de arroz amassada com óleo de sé­
samo. Toda de vermelho, de sapatos bordados e ganchos de jade
no cabelo, a senhora Tung, quando a superiora colocava o tabu­
leiro dos bolos na mesa, dobrava-se quase até ao chão. Rezava-se,
depois. Para lá dos pátios, à porta da cozinha, as criadas espreita­
vam, curiosas.
Nem no primeiro, nem no segundo, nem no terceiro Natal
que passei em Macau, a senhora Tung era cristã, mas todos os
anos se nomeava catecúmena. A seguir ao jantar falava-se nisso.
A directora, uma francesa de mãos engelhadas que noutros tem­
pos frequentara a Universidade de Pequim, perguntava em chinês
formal quando era o baptizado. Inclinando a cabeça para o peito,
a senhora Tung balbuciava, indicando a irmã Chen-Mou. A fi­
lha . . . a filha sabia. Talvez se pudesse chamar cristã pelo espírito,
mas o coração atraiçoava-a. O coração continuava apegado a an­
tigas devoções . . . Todavia, vestira-se de gala para a festividade da
meia-noite, tinha no quarto o Menino Jesus cercado de flores, e a
alma transbordava-lhe de alegria como se cristã verdadeiramente
fosse.
Com um sorriso meio complacente meio contrariado, a irmã
Chen-Mou desconversava, passando a bandeja dos bolos à supe­
riora, que separava uns tantos para o convento. Os restantes co­
mê-los-íamos nós, ao fim da missa do Galo , com chocolate
quente.
O chocolate era a esperada surpresa da directora. A senhora
Tung chamava-lhe, em ar de gracejo, «chá de Paris». No fim das
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 439

três missas vinham outra vez as três freiras ao refeitório do colé­


gio para trocarem connosco o beijo da paz e nos oferecerem a ti­
gela fumegante do chocolate. Vinham e partiam logo (tarde de
mais para se demorarem), e Miss Lu, fanática terceira-francisca­
na, sempre atenta aos passos das monjas, sorvia à pressa o líquido
escaldante, como quem cumprisse um dever, e saía atrás delas.
Ficávamos, assim, a senhora Tung e eu, uma em frente da
outra. À luz das velas olorosas do centro de mesa, os seus olhos
eram dois riscos tremulantes. Sorríamos. Finalmente, o repostei­
ro ao fundo da sala apartava-se. Uma das criadas entrava, silen­
ciosa. Servia-se vinho de arroz.
Creio que o vinho de arroz figurava entre as bebidas proibi­
das no colégio e que chegava ali por portas travessas. O certo,
contudo, é que ambas o bebíamos, a acompanhar os bolos de sé­
samo, no grande e deserto refeitório, na noite de Natal.
O vinho de arroz queimava-me a garganta e fazia-me vir lá­
grimas aos olhos. Qyanto à senhora Tung, saboreava-o devagar,
molhando nele o bolo, e, como mal provara o «chá de Paris», be­
bia dois cálices.
Entretanto, Aldegundes, a criada macaense mais antiga do
colégio, aparecia com as especialidades da terra: aluares, fartes e
coscorões, dizendo que aluá era o colchão do Minino Jesus, farte
almofada, coscorão lençol. E eu traduzia em inglês para a senhora
Tung, que achava isto enternecedor e gratificava a velha genero­
samente.
Qyando por fim atravessávamos a cerca a caminho de casa,
sob uma Lua branca, espantada, anunciadora do Inverno para
a madrugada, a senhora Tung abria-se em confidências.
A menina sabia . . . - a «menina» era a irmã Chen-Mou, a
subdirectora do colégio -, sabia que ela continuava a venerar
a Deusa da Fecundidade. Tratava-se de uma pequena divindade,
440 VASCO GRAÇA MOURA

toda nua e toda de oiro. Fora ela quem lhe dera filhos. Estéril
durante sete anos, a senhora Tung recorrera à sua intercessão di­
vina quando o marido já se preparava para receber nova esposa.
Não podia portanto deixar de a amar. Toda a felicidade lhe pro­
vinha daí, dessa afortunada hora em que a deusa a escutara.
Parava a meio do largo átrio enluarado, de olhar meditabun­
do, mãos cruzadas no colo. E as palavras saíam-lhe lentas e sol­
tas, como se falasse sozinha .
. . . E aquele mistério da virgindade de Nossa Senhora! Vir­
gem e mãe ao mesmo tempo . . . Não se lia no Génesis: «Ü ho­
mem deixará o pai e a mãe para se unir a sua mulher e os dois se­
rão uma só carne?» Não era essa a lei do Senhor? Porquê então
a Mãe de Cristo diferente das outras, num mundo de homens e
de mulheres onde o Filho havia de vir pregar o amor? A Deusa da
Fecundidade, patrona dos lares, operava milagres, sim, mas racio­
nalmente, atraindo a vontade do homem à da sua companheira
e exaltando essa atracção. Como o Céu alagando a Terra na esta­
ção própria.
Retomávamos a marcha em direcção aos nossos aposentos.
Difícil para mim responder às dúvidas da senhora Tung, nem ela
parecia esperar resposta. Mudava, rápida, de assunto, aludindo ao
tempo, à viagem de regresso, às saborosas guloseimas da criada
macaísta.
Já em casa, convidava-me a ir ver o seu presépio. O quarto
cheirava fortemente a incenso. Em cima da cómoda, entre flores,
lá estava o Menino Jesus, de cabaia de seda encarnada, sapatinhos
de veludo preto, feições chinesas.
Depois, timidamente, a senhora Tung abria a gaveta . . . e sur­
gia a deusa.
O Menino Jesus era de marfim. A Deusa da Fecundidade era
de oiro. O Menino, de pé, de um palmo de altura, trajando rica­
mente. A deusa, sentada, pequenina, nua.
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 44 1

Os olhos da senhora Tung atentavam nos meus, como se


à procura de compreensão, mas as suas palavras prontas (a deter as
minhas?) eram de autocensura. Não, não devia fazer aquilo. A filha
asseverara que o Menino Jesus entristecia, em cima da cómoda, por
causa da deusa, na gaveta. E quem sabia mais do que a filha?
Eu já sentia frio, apesar da aguardente de arroz. O Inverno,
ali, chegava de repente. A senhora Tung, no entanto, tinha as
mãos quentes e as faces afogueadas.
Despedíamo-nos. Eu sempre me apetecia dizer-lhe que esti­
vesse sossegada, que de certeza o Menino Jesus não havia de se
entristecer, em cima da cómoda, por causa da deusa, na gaveta.
Mas nunca lho disse nos três anos que passei o Natal com ela.
Palpitava-me que a senhora Tung se enervava com o assunto.
E que, de qualquer jeito, não me acreditaria.
Já não há Salomão
Isabel da Nóbrega

- TEM GRAÇA VIR NO DIA DE NATAL. 0 anúncio saiu ontem . . .


Julguei que ninguém procurava quartos n o dia de Natal. Sim, cla­
ro, essa também procurou . . . E a senhora também está no fim do
tempo. Ora faz favor de entrar e ver: creia que não é caro. Um
quarto grande como este, cheio de sol, ou seja, cheio de luz, o sol
chega apenas à varanda, mas vê, vê, lá está ele a bater nas sardi­
nheiras, o nome de sardinheiras é feio para flor não é? A mãezi­
nha chamava-lhes sempre gerânios. A Rua da Rosa aqui para
cima é muito sossegada tem isto de apanhar menos sol mas é
muito sossegada e ainda nós estamos voltados a poente num ter­
ceiro andar. Menos é que não posso fazer por isso explicava logo
no anúncio. Gostava de ficar com a senhora como hóspede por­
que entendo que é pessoa fina e de respeito. A minha casa é uma
casa de respeito. Vivo só, faço cópias à máquina - ah também
escreve à máquina - e recebo a pensão do paizinho. Agora de­
sembaraço-me menos bem são os olhos, são os dedos que de re­
pente estão mais perros . . . Não me importo com crianças. Eu sei
eu sei que ninguém aluga quartos a casais com crianças mas al­
guém o terá de fazer e digo-lhe com franqueza a sala onde durmo
fica ao fundo do corredor não há-de incomodar-me não chega lá o
choro. Só alugo mais outro quarto, a uma família de três pessoas.
444 VASCO GRAÇA MOURA

Duas irmãs e o filho de uma delas que já tem dewito anos. Sim
todos no mesmo quarto que é muito barato por ser muito peque­
no. Nunca pensei: preparei-o para alguma menina estudante.
Mas eles insistiram tanto. As duas senhoras são enormes parecem
dois elefantes coitadinhas, mal cabem nos divãs. Arranjou-se um
terceiro divã para o rapaz e à noite correm uma cortina esticada
num fio de plástico deste onde se estende a roupa. Imagine, uma
área de três por dois metros. É lá com eles não posso tornar o
quarto maior. Elas estão empregadas, o rapaz dentro de um ano
vai para a tropa e ficam só as duas. É por isso. Agora a senhora.
Sente-se um instante nessa cadeira. Foi a hóspede anterior que
lhe fez a almofada. Descanse um pouco, depois de subir três an­
dares nesse estado. Ai meu Deus que a colcha tem um buraco no
crochet. Oxalá ela não tenha reparado. E ali ao canto uma teia
junto da racha do tecto. Como é que eu não vi. Há coisas na nos­
sa casa pelas quais só damos quando estamos a olhar ao mesmo
tempo que uma pessoa de fora, porque será? Veja que a cama é
larga destas de ferro como se usam agora. O tapete novo . . . o ar­
mário . . . As paredes brancas dão um ar de frescura, não dão?
A cómoda, o espelho antigo que era da mãezinha, parece-me que
não falta nada. Não, para ser franca essa pequena árvore de Natal
não fui eu quem a pôs sobre a mesa de cabeceira. Foi a hóspede
que saiu há oito dias, a dona Miriam. Ficou cá um ano. A essas
pessoas costuma chamar-se desgraçadas mas eu tive ocasião de a
conhecer e de a achar apenas infeliz. Mas infelizes não somos nós
todos? Ela estava separada do marido e vivia com um homem
doentíssimo - não se assuste era só do fígado parece que uma
cirrose. Ela devia ter tido dias melhores. Via-se pelas blusas, pela
quantidade de carteiras, pelos sapatos. Agora trabalhava de costu­
ra, à máquina, que alugava ao mês. O homem ali deitado na
cama e ela aí, a dar-lhe que dar-lhe, empilhava roupas interiores,
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 445

camisinhas de opale que levava à loja. Tinha uma filha que a Tu­
toria entregou à guarda do pai - ela não o escondia, lá isso.
O pai fez chicana para ficar com a filha, e conseguiu. As nossas
leis são sempre pelos homens, já se sabe. As leis, e sobretudo os
outros homens. Mas a verdade é que um homem tem a sua vida
e ele acabou por entregá-la à irmã. Qyer dizer a menina não vivia
com o pai nem com a mãe, a quem só valha ver uma vez por mês.
Trazia-a a tia, e sempre muito arranjadinha, lá isso. A menina ia
já nos doze anos. Tinha umas tranças louras espessas espalmadas,
veneradas pela mãe. Não se parecia com ela. A dona Miriam era
morena de olhos verdes, com duas olheiras fundas, roxas, a carre­
gar-lhe o olhar triste, trágico. Bela mulher, de formas redondas e
gestos bruscos. Um temperamento violento, apaixonado. Um de­
dicação pelo marido. Digo por este marido, pelo companheiro.
Qyando a menina chegava a dona Miriam beijava-a como nunca
vi ninguém beijar. Sentia-se a saudade física, nesses beijos sono­
ros e vorazes. A fome de lhe tocar nos cabelos, na cara, nas mãos.
Ficava a olhá-la como se a sorvesse. A menina era tímida e sere­
na, balançava os braços e inclinava a cabeça com aquele ar de­
samparado das rapariguinhas órfãs. Mas não era órfã de mãe,
longe disso. A mãe, uma leoa, com aquelas guedelhas escuras en­
crespadas que pareciam eriçar-se quando me contava a luta que
travara para não perder a filha, e a que pensava recomeçar para
alcançar visitas semanais. Mais tarde compreenderá muita coisa,
dizia. E é impossível que não saiba como eu a amo, e como foi
por sua causa que aguentei tudo aquilo, dizia também. E crava­
vam-se-lhe mais as olheiras e os olhos faiscavam, e os cabelos le­
vantavam-se-lhe, tenho a certeza de os ver levantar como um
leque de arame farpado. O homem ultimamente melhorara mas
começara ela a enfraquecer, a definhar, sem nenhum deles se dar
conta. Eu já vi adoecer e morrer muita gente, e não gostava da­
quela palidez e das pálpebras de súbito transparentes ao mesmo
446 VASCO GRAÇA MOURA

tempo que as olheiras passavam de roxo a preto. Mas não é isso


que vem para o caso o que eu ia contar era que no mês passado a
filha anunciou-lhe que decidira cortar as tranças. Qieria a cabeça
à moda, como as suas amigas, e não estava para continuar a que­
brar pentes de encontro ao cabelo e a ganir com os puxões que de
manhã dava ao alisá-lo antes de partir para o liceu. Isto passou.
A dona Miriam começou a andar nervosa e falou comigo a esse
respeito: vou pedir que me dêem as tranças da minha filha. Ela
que mas dê como prenda de Natal. É a minha prenda. Para que
as querem eles? Aos meus olhos valem muito. O tempo em que
eu lhas fazia, lhas torcia, devagar. . . Sentava-a numa cadeira alta.
Ela ficava imóvel, as mãozitas caídas no regaço, imóvel e silen­
ciosa, como se ouvisse música. Também eu não lhe falava, eu que
lhe contava tantas histórias. Mas ao fazer-lhe as tranças era como
se ambas ouvíssemos a mesma música. A tia é capaz de mas dis­
putar. Está sempre a dizer-lhe que não podia gostar mais dela se
fosse sua própria filha, que a miúda é para ela a filha que não
teve, e a minha Rosa repete-me isto de todas as vezes como um
realejo. Até parece que me mordem o peito por dentro. Digo-lhe
eu assim: olhe, antes isso que o contrário, imagine que lha trata­
vam mal? Diz-me ela: olhe, eu não aguentava. Eu ouço às vezes a
minha alma a estourar. Está toda rachada. E um dia estoura-me
o corpo. O marido, sempre em cima da cama, voltava a cara para
a parede . . . Onde é que eu ia? A menina apareceu há oito dias.
Deixou-a a tia ao fundo das escadas. Convidada a passar o Natal
em Moimenta, com a avó paterna, vinha ver a mãe uma semana
mais cedo. Uma pessoa correcta, a tia, não se pode dizer o con­
trário. Mas desta vez o encontro da mãe e da filha foi diferente.
A menina passou a porta de entrada cabisbaixa, com a mãozinha
levantada para o ombro , como à procura da trança cortada.
A mãe, entre o choque de ver a filha despojada das tranças e o de
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 447

saber que lha levavam para longe, no Na tal, ficou encostada


à ombreira, perdeu aquele ímpeto, aquela paixão com que cos­
tumava abraçá-la. Pela primeira vez a vi receosa, humilde, em­
baraçada. É que ela tinha um pedido a fazer. Um pedido que
segurava contra o peito como se daquela pomba se tratasse.
A propósito, pousam aqui pombas na varanda e no telhado fron­
teiro. É um espectáculo bonito, ao cair da tarde . . . Onde é que eu
ia? Ah, um pedido que fez tão de manso, tão delicadamente, ela
que eu vira a reivindicar com o braço erguido e olhares flamejan­
tes, como que a ensaiar a cena, e afinal . . . Se o teu pai e tia não se
importassem . . . eu . . . gostaria de ficar com as . . . com uma das tuas
tranças, ao menos. Uma para eles outra para mim, já não peço as
duas . . . Não é pedir muito . . . Tão de mansinho, tão de mansinho,
que ela falava. A menina ergueu as sobrancelhas ruças e os olhos
claros fitaram-na, primeiro assustados, depois só espantados, en­
quanto encolhia os ombros e respondia: as tranças ficaram lá . . . no
cabeleireiro. . . no chão . . . Devem ter sido varridas. Não nos lem­
brámos de as levar para casa!

Não vale a pena contar mais pormenores. A dona Miriam


sentiu-se mal durante a tarde. Arranjei-lhes um chá e pão-de-ló.
Até se esqueceu de dar à Rosa o pinheiro que enfeitara para ela.
Nessa noite a ambulância levou-a a S. José. O coração. Soltara-se
a mola . . . disseram os doutores. Depois de a menina sair chamou­
-me e disse-me: pois veja lá que a tia julga gostar dela como . . .
como s e fosse filha. Acredito que numa doença m e fique à cabe­
ceira dela mas isso qualquer pessoa de bem o fará. Agora as tran­
ças . . . Aí está a diferença . . . Só Salomão o teria compreendido. Era
preciso um Salomão no tribunal, em cada processo da Tutoria.
Era preciso. E já não há Salomão.
448 VASCO G RAÇA MOURA

* * *

Sim, deixaram o quarto. O marido levou-a a . . . convalescer


para a terra dela.
Então, não se decide? Eu espero até amanhã. Um quarto tão
grande. . . bonito . . . e veja veja, como o sol continua a iluminar as
sardinheiras . . .
Serenidade
Graça Pina de Morais

0 MÉDICO OLHOU COM SURPRESA PARA A SOLTEIRONA pesada


que estava sentada na sua frente do lado oposto da secretária.
É sempre com surpresa que o médico fixa um ser que está vivo
mas dentro de um praw mais ou menos curto há-de morrer.
Ela tinha um aspecto saudável, com a cara grande, a espessa
cabeleira presa com grampos de ferro sobre a nuca, num rolo
confuso e meio desfeito, que lhe dava um ar tão familiar, e as
mãos ainda belas, quase infantis, que pareciam não lhe pertencer,
pousadas no regaço num gesto pretensioso. Assim estava ela,
com o aspecto de uma inatacável permanência, muito frequente
nas pessoas corpulentas quando se sentam, envolvida num grande
casacão preto de pano grosso e, mesmo assim, imóvel e silencio­
sa, a sua presença irradiava uma inegável afabilidade.
- 01iantos anos tem? - perguntou ele.
- Cinquenta e cinco.
- Ainda é nova!
- Nova! Novas são as pessoas de dewito e vinte anos.
Ficaram silenciosos. Ela sabia que aquele silêncio e a expres­
são conscienciosa e grave do médico lhe eram dedicados e sentiu
uma vaga onda de bem-estar pela importância súbita que revestia
aos olhos de outro ser humano.
450 VASCO GRAÇA MOURA

- A senhora está gravemente doente - disse numa voz


ponderada e distante. Ela não pestanejou, ouvia-o, atenta, com
a sua expressão sempre afável.
Essa expressão, após o diagnóstico assustador que fizera, irri­
tou-o ligeiramente, surgia-lhe como uma descrença, como uma
diminuição ao inexorável poder de que naquele instante o destino
o revestia e seguindo um impulso que não conseguiu dominar,
prossegum:
- É quase inacreditável que esse tumor que tem no seio se
desenvolvesse até ao ponto em que está, sem que a senhora desse
conta. Penso que já não é operável!
- É dos ruins? - interrogou ela quase cândida.
O médico baixou a cabeça em sinal de assentimento.
- Eu não passo de um médico de uma cidade de província!
Aconselho-a portanto a consultar outro.
- Posso fazê-lo, embora tenha absoluta confiança em si.
Vou justamente amanhã passar o Natal a Lisboa com os meus ir­
mãos e os meus sobrinhos - falava com muita vivacidade, exi­
bindo uma das lindas mãos num gesto evidente de revolteio. -
Ontem estava em casa . . . como sabe moro num ermo, num ignoto
descampado, a uma certa distância da aldeia e há certos instantes
em que o silêncio é aterrador e espantoso. Moro ali porque fiquei
presa à terra daqueles que eram do meu sangue. Ontem estava
à janela a ver as luzinhas da povoação picar a noite quando de sú­
bito ouvi retinir o telefone . . . eram os meus sobrinhos a convi­
dar-me para a noite de consoada.
O médico escutava com estranheza aquela inusitada lingua­
gem literária. « É uma louca», pensou; «com a continuação de vi­
ver só perdeu o sentido da realidade».
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 45 1

* * *

Caminhava pelas ruas da cidade deserta para terminar as suas


compras.
Estava frio, mais do que isso, o ar era gélido e no céu azul­
-pálido brilhava um sol exangue. Havia como que uma pausa em
todo o ambiente, uma imobilidade hibernal e gelada.
Comprou linhas e depois riscado para aventais. Eram qua­
tro horas da tarde e já há bem uma hora que abandonara o con­
sultório do médico. «Porque não se largava a correr como uma
louca, de olhos esgazeados, até encontrar um ser humano a
quem confiasse o seu trágico destino ! » Não o fazia porque
a verdade é que não experimentava a mais pequena parcela de
terror e nem a morte demorada e cruel a que estava destinada
a conseguia fazer estremecer. Sentia só uma grande surpresa a
respeito de si mesma. Tinha então sido preciso viver até aos
55 anos para descobrir dentro de si uma estranha que quase lhe
despertara admiração! O amor a si própria - um sentimento
tão desconhecido para ela - bafejou-a por instantes numa
onda quase feliz.
Depois esqueceu tudo e continuou as compras. Precisava de
comprar um livro, porque a viagem no dia seguinte seria muito
demorada e entrou num livreiro seu conhecido.
- Faz obséquio! Eu queria um romance - pediu, sempre
com os seus modos extremamente delicados e afáveis.
- De que género, minha senhora?
- Um romance de amor que seja decente, bonito e bem re-
digido.
- Tenho aqui um que me parece nas condições. O Coração
Impaciente.
- O título agrada-me muito - e levou uma das mãos ao
próprio coração.
452 VA S C O GRAÇA MOURA

Ainda mantinha esse gesto quando saiu a porta da livraria.


Ouviu bater na torre meia hora e no ar parado e glacial o som vi­
brou com uma estranha limpidez. Faltava ainda algum tempo para
a camioneta e resolveu entrar na igreja com o sentido confuso de
fazer um exame de consciência.
Os seus passos pesados soavam no templo, reboavam nas
abóbadas e davam-lhe a sensação exacta de que ia só. Qyeria re­
cordar a sua vida mas não lhe ocorria nada: pequenas alegrias, tão
pequenas se tinham perdido no andar do tempo, grandes triste­
zas, a morte dos pais e alguns irmãos queridos, os dias suceden­
do-se e as suas aspirações e tivera tantas que formavam agora
uma amálgama indistinta de onde não podia separar nada de
concreto . . .
- Deus não ficou pobre com aquilo que m e deu! - murmu­
rou, mas na sua frase não havia amargura e os seus olhos ergue­
ram-se directos e leais para o Cristo crucificado.
Levou a mão ao peito. «A sua morte crescia dentro dela. Não
era uma entidade imaterial, crescia como um ser . . . » e numa súbi­
ta associação de ideias recordou que sofrera por não conhecer
o amor e por não ter filhos . . . mas isso ia longe, tão longe!
Estava imóvel em frente do altar-mor, imóvel e de pé. Acre­
ditava fervorosamente em Deus e simultaneamente sabia que a
morte era o fim. Esses dois estados de alma estavam dentro dela,
lado a lado, sem se contradizerem.
A natureza humana é tão ampla!

Qyando chegou ao lugar onde devia tomar a camioneta veri­


ficou que ainda faltava um quarto de hora. O Sol declinava e
o frio tornava-se ainda mais intenso. Resolveu ir andando porque
a imobilidade naquela atmosfera glacial tornava-se quase dolorosa.
As MAIS BELAS H ISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 453

Começou a dar os primeiros passos ao longo da estrada e assim


se foi afastando da cidade. Olhava distraída para a paisagem nor­
tenha, tão sua conhecida. A geada queimara a vegetação da ber­
ma do caminho, uma fonte imobilizara-se em cristalinas estalac­
tites e em tudo se sentia uma suspensão silenciosa da vida. Olhou
com intensidade a estrada serpenteando pela montanha.
- Cheguei então ao fim da caminhada! - pronunciou em
voz nítida e pôs-se a andar com mais vivacidade como se tivesse
realmente um fim urgente a atingir. Percorrera um longo cami­
nho, de todos ignorado e que apenas para ela tivera realidade,
percorrera-o só e não fora sequer uma mulher triste.
- Cumpri o meu destino! - murmurou e sentiu a alegria
que os seres diligentes experimentam ao completar uma tarefa
que executaram o melhor que lhes é possível e com a máxima ho­
nestidade.
Parecia-lhe que caminhava com grande leveza, num passo ju­
venil, tão juvenil que sentia uma inocente vaidade em si mesma:
«Como estou ligeira apesar da idade!»
Mas quem a olhasse veria apenas uma mulher corpulenta, en­
volvida num casacão preto que lhe batia nos tornozelos, cami­
nhando com pesada dificuldade, numa estrada deserta.
A luz rosada do poente hibernal escorria ao longo dos montes.

Como tinha de partir na madrugada do dia seguinte, ultima­


va os preparativos para a viagem. Era com um entusiasmo quase
de colegial que pensava naqueles sobrinhos e sobrinhas longín­
quos que amava mas sempre lhe pareciam um tanto misteriosos.
A vida deles, fervilhando no marulhar duma grande cidade,
atraía-a. Falavam de universidades, de música, de cursos de férias
454 V ASCO GRAÇA MOURA

passados no estrangeiro, de bailes, reuniões intelectuais . . . ficava


a ouvi-los com um certo p asmo, sentindo-se a cada passo fascina­
da por uma ou outra frase que levantava o véu dessa existência
atraente e misteriosa. «Como são cultos e inteligentes!», pensou
com orgulho.
A criada ajudava-a a fechar a mala.
- Porque me roubas tão descaradamente quando te trato
com tanta estima? - perguntou de chofre, na sua voz lenta e cla­
ra, em que cada palavra era meticulosamente finalizada.
A rapariga suspendeu os gestos numa surpresa imbecil depois
a sua cara foi invadida por uma expressão manhosa e dócil.
- Eu não roubo a minha rica senhora!
Ela sorriu. Aquela rapariga, apesar de ladra, era terna e a ter­
nura é sempre um sentimento a valorizar.
- Se confessasses era mais bonito, porque não tenciono des­
pedir-te - levou uma das mãos ao peito, com o seu gesto habi­
tual tão pretensioso -, já não vale a pena - prosseguiu.
- E agora desanda, porque preciso de descansar.
A criada aproximou-se e beijou-lhe as mãos com espalhafato.
Ela gostava daquelas homenagens semimentirosas e semiverda­
deiras. Gostava de se sentir senhora absoluta do seu pequeno rei­
no imaginário.
Sentou-se pesadamente na cama e ficou por momentos a
olhar a janela em frente, o céu escuro de Lua nova com as suas
estrelas vivas e quase gritantes, depois virou-se para o oratório.
Havia uma imagem que ela apreciava particularmente - o Me­
nino Jesus vestido com uma camisinha branca abria os braços
com um ar inocente e quase indefeso.
«Amanhã nasce o filho de Deus!» e sentiu uma alegria verda­
deira, tão verdadeira que as lágrimas assomaram-lhe aos olhos.
As MAIS BELAS H ISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 455

Também ela gostava de ir na grande noite bíblica, sob o céu es­


trelado . . . também ela gostava de seguir a multidão dos peregri­
nos, exaltada, feliz e humilde, mesmo que . . . voltou a olhar a ima­
gem . . . ele fosse apenas uma criança.
«É sempre tão bonita uma criança! Qge mistério! É o princí­
pio da vida!»
E ficou a sorrir com o seu ar extraordinariamente afável.
Noite de consoada
A/tino do Tojal

Eu SENTIA-ME VAGAMENTE CÃO. NEM ADMIRA. Qyando um


homem tem o coração cheio de epitáfios e vê as outras pessoas
felizes, é natural que se sinta cão.
Gente que sai das pastelarias irradiando espírito natalício;
votos de boas-festas; música de sinos . . . Aquilo produzia-me um
vácuo interior pior do que a fome.
E lá ia eu pelas artérias da minha cidade, sob túneis de luz, as
mãos enfiadas nos bolsos do capote, cabisbaixo, bafejando. Opri­
mia-me o ar radioso dos já raros transeuntes, a forma como pas­
savam por mim, carregados de embrulhos coloridos, sem me ve­
rem. Qye horas tão pungentemente evocadoras!
Existia uma via de fuga: embriagar-me. Pois sim, mas onde?
Nesta cidade da província - na cidade onde eu nasci - não há
nada aberto em noite de Consoada; até a taberna mais reles está
fechada. Cafés, cinemas, tudo fechado. Restava-me, portanto,
vaguear sozinho por artérias desertas; sob túneis de luz, ouvindo
música de sinos - a gola do capote subida para as orelhas, tristo­
nho, cada vez mais cão.
- Eh, mestre!
Era o Fonseca - tipo esguio, amarelito, que trabalha num
banco. Conhecera-o há meses . Sempre que passava por mim
458 VASCO GRAÇA MOURA

cumprimentava-me com uma espécie de condescendência, sem


se deter.
Desta vez deteve-se.
- Então, mestre, que se faz?
Falou com jovialidade, apertando-me vigorosamente a mão.
Aquela mãozada e aquelas palavras estavam cheias de calor, de
calor humano. Senti-me menos cão.
- Vagueio - respondi.
Logo ele:
- Eu também gosto pouco de festas. A bem dizer não ligo
a festas . Ninguém liga a isso lá em casa. A esta hora estão a
dormir.
- Os meus também - disse eu.
Soprava uma aragem gelada. O amigo Fonseca subiu para as
orelhas a gola da gabardina e eis-nos a palmilhar lentamente ar­
térias desertas, bafejando, sob túneis de luz.
- Era capaz de comer qualquer coisita - disse o amigo
Fonseca. - Não é que tenha grande apetite, mas sentia-me ca­
paz de comer qualquer coisita.
Pois sim, pois sim, mas onde? O Fonseca, coitado, não sabia
como isto é em noite de Consoada. Mesmo assim fizemos umas
buscas. Debalde. As raras portas ainda abertas estavam a fechar
e as criaturas que as fechavam demoravam em nós olhares de
desprew. Lado a lado, as mãos nos bolsos, as golas subidas, lá ía­
mos, enxotados daqui, enxotados dali, por artérias desertas, sob
túneis de luz, trocando palavras esporádicas, cada vez mais frio­
rentos, cada vez mais cães. Também aquele, hem? Logo na noite
de Consoada! Teria ele, como eu, epitáfios no coração?
- Fui burro! - confidenciou-me, a dada altura, num desa­
lento.
- Sim?
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 459

- Elisabete bem queria . . .


- Elisabete?
- Sim. 01teria casar em Novembro. Opus-me. 01tase se
zangou. Mas eu opus-me. Casar por casar, casa-se na Primavera:
céu azul, flores . . . Olhe, acolá . . . Não é que tenha grande apetite . . .
Entrámos a medo, sem esperança.
- 01te desejam os senhores? - perguntou a patroa.
- Cear.
Novos olhares de desprezo. Enfim, sempre se arranjaria algu­
ma coisa. Mas que nos aviássemos. Às nove e meia fechavam a
porta; que eram filhos de Deus como os mais e queriam passar
tranquilamente uma Consoada cristã. Às nove e meia, rua!
- 01te diz, mestre? - indagou o amigo Fonseca.
- Está bem - disse eu.
Já a patroa entrava no assunto:
- Temos filetes de peixe com batatas fritas. Serve?
O amigo Fonseca:
- Serve, mestre?
- Serve.
O amigo Fonseca para a patroa:
- Não tem mais nada?
- Há frango.
- Frango com quê?
- Frango assado. Serve?
- Mas frango com quê?
- Com batatas fritas.
- E arroz?
- Arroz não temos. Acabou-se.
O amigo Fonseca:
- Serve, mestre?
- Serve.
460 VASCO GRAÇA MOURA

O amigo Fonseca para a patroa, pronto a amesar:


- Sirva-nos isso.
E ela:
- Branco ou tinto?
- Ham?
- Qierem vinho branco ou tinto?
O amigo Fonseca:
- Branco ou tinto, mestre?
- Pode ser branco.
A patroa:
- Branco não temos; só se for tinto. Serve?
O amigo Fonseca:
- Qie diz, mestre?
- Bem, para mim traga uma garrafita de águas.
- Traga duas garrafitas de águas.
A patroa, prestes a agir:
- Subam ao primeiro andar por aquelas escadas . Mas
aviem-se! Às nove e meia em ponto fecha-se a porta.
- Pode estar descansada, minha senhora.
E caracolámos para o primeiro andar. Eu sentia-me menos
cão. Íamos comer. O amigo Fonseca devia sentir-se também me­
nos cão. Tipo estranho, o amigo Fonseca. Numa noite daquelas . . .
Teria ele epitáfios?
Vieram os filetes com as batatas fritas; depois veio o frango
com as batatas fritas.
- Excelente, mestre. Qie diz?
- Excelente.
E mastigávamos, cada vez menos cães.
- Só é pena que não haja arroz.
- Lá isso é.
- Mas o frango está tenrinho.
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATA L 461

- Está fino.
- O arroz é que mata tudo. Olie diz, mestre?
- De facto é uma pena não haver arroz. Liga melhor com
o frango. Mas as batatas não estão más.
- Pois sim, mas arroz é outra coisa.
- Arroz solto . . .
- Isso! Saltinho, com ervilhas . . .
Alguém subia a s escadas. Era a patroa. O amigo Fonseca
consultou o relógio.
- São nove horas e dez minutos, minha senhora - disse,
friamente.
- Olie tem para a sobremesa?
- Há rabanadas, aletria, bolo-rei. . . Serve?
O amigo Fonseca:
- Olie diz, mestre?
- Não tem mais nada, minha senhora?
A patroa:
- Há bananas e tangerinas. Serve?
- Serve.
A patroa para o amigo Fonseca:
- E o senhor?
- Traga bananas e tangerinas.
Eu estava desconfiado de que no coração do amigo Fonseca
havia epitáfios . . .
Comidas a s bananas e a s tangerinas, pagámos à patroa, visto
serem nove e meia. E eis-nos de novo a errar por artérias deser­
tas, bafejando, sob túneis de luz. Ouvíamos música de sinos e ou­
víamos música de talheres. Das casas saíam cânticos natalícios
entoados por crianças. Estrelas ardiam no negrume.
- O frango estava bom - disse o amigo Fonseca, acenden­
do um cigarro. - Olie diz, mestre?
462 VA S C O GRAÇA MOURA

- Estava.
- Só foi pena o arroz. As batatas estavam fofas, mas arroz
sempre é outra coisa. Mesmo assim, sinto-me como um cardeal.
Qye diz, mestre?
- Também eu.
Não obstante, recomeçava a sentir-me cão. Desconfio que o
amigo Fonseca recomeçava também a sentir-se cão - aquele ar
abatido . . . aquele nariz pousado na gola da gabardina . . . aqueles
óculos baixados para o passeio húmido, ignorando as montras . . .
A dada altura arrotou, o que parece tê-lo embaraçado deveras.
- É a alma do frango a subir ao Paraíso - esclareci, sorrin-
do. Ele sorriu também.
- Acredita, mestre, que os animais tenham alma?
- São mais dignos dela do que nós.
- Acha?
- Acho.
- Eu também acho.
Lado a lado, lá íamos, cada vez mais cães, por artérias deser­
tas, bafejando, sob túneis de luz. Eu pensava em sapatinhos. Em
que pensaria o amigo Fonseca? Talvez pensasse em sapatinhos . . .
- Está frio, mestre. Qy e diz?
- Está.
- E se fôssemos para casa?
- Ia propor isso mesmo.
- Os meus dormem pegado.
- Também os meus.
- Não ligam nenhuma a festas.
- Os meus também não.
- De resto, não é justo que andemos a vadiar na noite de
Consoada, uma noite tão santa, a noite da família . . . Qye diz,
mestre?
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 463

- Aprovo.
Deixei-o dobrar uma esquina. E, enfiando as mãos nos bol­
sos do capote, friorento, bafejante, cada vez mais cão, tomei len­
tamente o rumo do cemitério.
Qrando cheguei o amigo Fonseca já lá estava.
A noite em que prenderam o Pai Natal
José Eduardo Agua/usa

Ü VELHO PASCOAL TINHA UMA BARBA COMPRIDA, branca,


muito branca, que lhe caía em tumulto pelo peito. Estilo? Não:
era desleixo, desleixo mesmo, puríssima, genuína miséria. Mas
foi por causa daquela barba que ele conseguiu trabalho. Por isso e
por ter nascido albino, pele de osga e piscas olhinhos cor-de-rosa,
sempre escondidos por detrás de uns enormes óculos escuros.
Naquela época, já nem pensava mais em procurar emprego, certo
de que morreria em breve numa rua qualquer da cidade, mais de
tristeza que de fome, pois para se alimentar bastava-lhe a sopa
que todas as noites lhe dava o general, e uma ou outra côdea de
pão descoberta nos contentores. À noite dormia na cervejaria, na
mesa de bilhar, enrolado num cobertor, outro favor do general,
e sonhava com a piscina.
Tinha trabalhado quarenta anos na piscina - desde o pri­
meiro dia! - como zelador. Sabia ler, contar, e ainda todas as
devoções que aprendera na Missão, sem falar na honestidade, hi­
giene, amor ao trabalho. Os brancos gostavam dele, era Pascoal
para aqui, Pascoal para ali, confiavam-lhe as crianças pequenas,
alguns até o convidavam para jogar futebol (foi um bom guarda­
-redes) , outros segredavam confidências, pediam o quarto em­
prestado para fazer namoros.
466 V ASCO GRAÇA MOURA

O quarto de Pascoal ficava junto aos vestiários masculinos.


Aquela era a sua casa. Os brancos davam-lhe palmadas nas costas:
- Pascoal, o único preto em Angola que tem casa com piscina.
Riam-se:
- Pascoal, o preto mais branco de África.
Contavam piadas sobre albinos:
- Conheces aquela do soba, no Dia da Raça, que foi convi­
dado para discursar? O gajo subiu ao palanque, afinou a voz e co­
meçou: «Aqui em Angola somos todos portugueses, brancos,
pretos, mulatos e albinos, todos portugueses.»
Os pretos, pelo contrário, não gostavam de Pascoal. As mu­
lheres muxoxavam, cuspiam quando ele passava, ou, pior do que
isso, fingiam nem sequer o ver. As crianças saltavam o muro, ma­
drugadinha, e lançavam-se à piscina. Ele tinha de se levantar, em
cuecas, para os tirar de lá. Um dia comprou uma espingarda de
chumbo, uma pressão-de-ar em segunda mão, e passou a disparar
contra elas emboscado por detrás das acácias.
Qyando os portugueses fugiram, Pascoal compreendeu que
os dias felizes haviam chegado ao fim. Assistiu com desgosto
à entrada dos guerrilheiros, aos tiros, ao saque das casas. O que
mais lhe custou, nos meses seguintes, foi vê-los entrar na piscina,
camarada para aqui, camarada para ali, como se já ninguém tives­
se nome. As crianças, as mesmas que antigamente Pascoal expul­
sava a tiros de pressão-de-ar, faziam chichi do alto das pranchas.
Até que numa certa tarde faltou a água. Não veio no dia seguinte,
nem no outro, nem nunca mais. O cloro acabou pouco depois.
A piscina murchou. Ficou amarela, de um amarelo baço, ficou
ainda mais baça, e subitamente encheu-se de rãs. Ao princípio
Pascoal tentou combater a invasão indo buscar a espingarda. Não
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 467

resultou. 01ianto mais rãs matava, mais rãs apareciam, rãs felizes,
enormes, que nas noites de Lua cheia cantavam até de madruga­
da, abafando o eco dos tiros, ao longe, e o latido dos cães.
Uma espécie de cansaço desceu por sobre as casas e a cidade
começou a morrer. África - vamos chamar-lhe assim - voltou
a apoderar-se do que fora seu. Abriram-se cacimbas nos quintais.
Acenderam-se fogueiras nos jardins. O capim rompeu o asfalto,
invadiu os passeios, os muros, os pátios. Mulheres pilavam milho
nos salões. Os frigoríficos passaram a servir para guardar sapatos.
Pianos deram excelentes coelheiras. Gerações de cabras cresce­
ram a comer bibliotecas, cabras eruditas, especializadas em litera­
tura francesa, umas, outras em finanças ou arquitectura. Pascoal
esvaziou a piscina, limpou-a, juntou todo o dinheiro que tinha
e comprou galinhas. Pediu desculpa à piscina:
- Amiga - disse-lhe -, é só por alguns meses. Vou vender
ovos, vendo os pintos e compro água boa, compro cloro, vais vol­
tar a ser bonita como antigamente.
Os tempos que se seguiram, porém, foram ainda piores. Uma
tarde apareceram soldados e levaram as galinhas. Pascoal não dis­
se nada. Devia, talvez, ter dito alguma coisa.
- Esse albino está armado em arrogante - irritou-se um
soldado. - Deve pensar que é branco, vejam só, um branco de
imitação.
Bateram-lhe. Deixaram-no como morto dentro da piscina.
Meses depois, vieram outros soldados. Tinham-lhes dito que ali
havia um albino que criava galinhas, e como não encontraram
nenhuma, é claro, bateram-lhe também.
A guerra regressou com muita raiva. Aviões bombardearam
a cidade, o que restava dela, durante cinquenta e cinco dias. Ao
trigésimo sexto, uma das bombas destruiu a piscina. Durante
semanas, andou Pascoal à deriva por entre os escombros.
468 VASCO GRAÇA MOURA

Uma vez apareceram três homens de jipe, um branco, um


mulato, um preto, e todos de casaco e gravata.
- Meu Deus, meu Deus! - lamentou o mulato, fazendo
com a mão um largo gesto de desânimo. - Foi um urbicídio
isto, um urbicídio.
Pascoal não sabia o significado da palavra mas gostou dela.
«Foi um urbicídio», repetiu, e ainda hoje, sempre que se lembra
da piscina, fica horas a remoer aquela frase: «Foi um urbicídio,
aquilo, um urbicídio.» Uma tropa de brancos muito estrangeiros,
todos com chapeuzinhos azuis, recolheu-o numa madrugada de
chuva e trouxe-o para Luanda. Ficou dois dias no hospital, onde
lhe trataram das feridas e lhe deram de comer. Depois manda­
ram-no embora. O velho passou a viver na rua. Um dia, era De­
zembro e fazia muito calor, o indiano do novo supermercado, na
Mutamba, veio falar com ele:
- Precisamos de um Pai Natal - disse-lhe -, contigo pou­
pávamos na barba e, além disso, como tens um tipo nórdico, fica­
va a coisa mais autêntica. Estamos a dar três milhões por dia.
Serve?
A função dele era ficar em frente ao supermercado, vestido
com um pijama vermelho, e de barrete na cabeça. Como estava
magrinho, foi necessário amarrarem-lhe duas almofadas na barri­
ga. Pascoal sofria com o calor, suava o dia inteiro debaixo do sol,
mas pela primeira vez ao fim de muitos anos sentia-se feliz. As­
sim vestido, com um saco na mão, ele oferecia prendas às crianci­
nhas (preservativos doados por uma organização não governa -
mental sueca ao Ministério da Saúde) e convidava os pais a entrar
na loja. «Sou o Pai Natal cambulador», explicou ao general.
Cambulador foi ofício em Angola até à primeira metade des­
te século: gente contratada para aliciar clientes à porta dos estabe­
lecimentos comerciais. Cada dia Pascoal gostava mais daquele
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 469

trabalho. As crianças corriam para ele de braços abertos. As mu­


lheres riam-se, cúmplices, piscavam-lhe o olho (nunca nenhuma
mulher lhe tinha sorrido); os homens cumprimentavam-no com
deferência:
- Boa tarde, Pai Na tal! Este ano como é que estamos de
prendas?
O velho apreciava sobretudo o espanto dos meninos da rua.
Faziam roda. Pediam muita licença para tocar o saco.
Um, pequenino, fraquinho, segurou-lhe as calças:
- Paizinho Natal - implorou -, me dá um balão.
Pascoal tinha instruções severas para só oferecer preservativos
às crianças acompanhadas, e mesmo assim dependia do aspecto
da companhia. O contrato era claro: meninos da rua deviam ser
enxotados.
Ao fim da segunda semana, quando a loj a fechou, Pascoal
decidiu não tirar o disfarce e foi naquele escândalo para a cerve­
jaria. O general viu-o e não disse nada. Serviu-lhe a sopa em
silêncio.
- Faz muita miséria neste país - queixou-se o velho en­
quanto sorvia a sopa -, o crime recompensa.
Nessa noite não sonhou com a piscina. Viu uma senhora
muito bonita descer do céu e pousar na beira da mesa de bilhar.
A senhora usava um vestido comprido com pedrinhas brilhantes
e uma coroa dourada na cabeça. A luz saltava-lhe da pele como
se ela fosse um candeeiro.
- Tu és o Pai Natal - disse-lhe a senhora. - Mandei-te
aqui para ajudar os meninos despardalados. Vai à loja, guarda os
brinquedos no saco e distribui-os pelas crianças.
O velho acordou estremunhado. Na noite densa, em redor da
mesa de bilhar, flutuava uma poeira incandescente. Voltou a en­
rolar-se no cobertor mas não conseguiu adormecer. Levantou-se,
470 VASCO GRAÇA MOURA

vestiu-se de Pai Natal, pegou no saco e saiu para a rua. Em pou­


co tempo chegou à Mutamba. A loja brilhava, enorme na praça
deserta, como um disco voador. As Barbies ocupavam a montra
principal, cada uma no seu vestido, mas todas com o mesmo sor­
riso entediado. Na outra montra estavam os monstros mecânicos,
as pistolas de plástico, os carrinhos eléctricos. Pascoal sabia que se
partisse o vidro dessa montra, conseguiria passar a mão através
das grades e abrir a porta. Pegou numa pedra e partiu o vidro. Já
estava a sair, com o saco completamente cheio, quando apareceu
um polícia. No mesmo instante, atrás dele, acendeu-se uma acá­
cia, na esquina, e Pascoal viu a senhora, a sorrir para ele, flutuan­
do sobre o lume das flores. O polícia não pareceu dar por nada.
- Velho sem vergonha - gritou·. - Vais dizer-me o que le­
vas nesse saco?
Pascoal sentiu que a sua boca se abria, sem que fosse essa
a sua vontade, e ouviu-se a dizer:
- São rosas, senhor.
O polícia olhou-o confuso:
- Rosas? O velho está cacimbado . . .
Deu-lhe uma chapada com a s costas d a mão. Tirou a pistola
do coldre, apontou-a à cabeça dele e gritou:
- São rosas? Então mostra-me lá essas rosas!
O velho hesitou um momento. Depois voltou a olhar para
a acácia em flor e viu outra vez a senhora sorrindo para ele, belís­
sima, toda ela uma festa de luz. Pegou no saco e despejou-o aos
pés do guarda. Eram rosas, realmente - de plástico.
Mas eram rosas.
Índice

VASCO GRAÇA MOURA


O conto de Natal em Portugal ................................................ 7
JosÉ MARIA DE ANDRADE FERREIRA
A noite do Natal .... .. . . . . . . .. ...... . ... ..
. . . . . . . . . . . . . . ..... ..... ... . .. ..
. . . . . . . . . . . 21
JosÉ DuARTE RAMALHO ORTIGÃO
Afesta de Natal - Afesta das crianças
e a história de uma que se não divertiu . .. . . . . . . . . . . . . ... ..... ..
. . . . . 55
JOSÉ MARIA DE EÇA DE QyEIRÓS
O suave milagre ...................................................................... 69
D. ]OÃO DA CÂMARA
O presépio ................................................................................ 79
ABEL ACÁCIO DE ALMEIDA BOTELHO
A consoada . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 85
FIALHO DE ALMEIDA
Conto do Natal ....................................................................... 95
FIALHO DE ALMEIDA
O Menino jesus do Paraíso . . . . .... ... . . .. ... . . .... . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . ..... . . 103
BRITO CAMACHO
As janeiras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 13
RAUL BRANDÃO
Natal dos pobres .. . . . . . . . .. . . . . . . . ..
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ... . . . . . . . . .. ... . . . . . .. . . . 129
JúLio BRANDÃO
Lenda do Natal ...................................................................... 143
CARLOS MALHEIRO DIAS
A consoada ............................................................................... 149
AQUILINO RIBEIRO
Dom Quixote contra Herodes ................................................. 153
AQUILINO RIBEIRO
A missa do Galo ...................................................................... 167
PINA DE MORAIS
O Pai Natal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 77
FERREIRA DE CASTRO
O Natal em Ossela .................................................................. 191
]OÃO D E ARAÚJO CORREIA
Conto de Natal ....................................................................... 197
]OÃO DE ARAÚJO CORREIA
Noite de Natal ........................................................................ 203
VITORINO NEMÉSIO
Os Reis Magos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . 209
]OSÉ RitGIO
Conto do Natal ....................................................................... 219
JosÉ RODRIGUES MIGUÉIS
O Natal do doutor Crosby ....................................................... 229
]OSÉ RODRIGUES MIGUÉIS
Natal branco ........... ...................................................... .... ...
. . . 255
TOMAZ DE FIGUEIREDO
Gente de paz ........................................................................... 26 7
ToMAz DE FIGUEIREDO
O conto de Natal ..................................................................... 275
]OÃO GASPAR SIMÕES
Meia-noite .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 285
DOMINGOS MONTEIRO
O regresso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 295
DOMINGOS MONTEIRO
Um recado para o céu . ............................................................. 305
MIGUEL TORGA
Natal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 317
MANUEL DA FONSECA
Noite de Natal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 321
ALVES REDOL
Afasta de Natal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 331
SoPHIA D E MELLO BREYNER ANDRESEN
Os três reis do Oriente . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . 345
FERNANDO NAMORA
Reputação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 361
JORGE DE SENA
Razão de o Pai Natal ter barbas brancas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 373
JORGE DE SENA
A noite quefora de Natal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 387
MARIA JUDITE D E CARVALHO
Noite de Natal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 405
NATÁLIA NUNES
O pezinho de Nossa Senhora . .................................................. 417
JosÉ SARAMAGO
História de um muro branco e de uma neve preta . . . . . . . . . . . .. . . . . . 419
URBANO TAVARES RODRIGUES
A samarra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 425
ALEXANDRE O'NEILL
Exercícios de auto-apoucamento
(com vista ao próximo Natal) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 435
MARIA ÜNDINA BRAGA
Natal chinês . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 437
ISABEL DA NóBREGA
já não há Salomão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 443
GRAÇA PINA DE MORAIS
Serenidade . .............................................................................. 449
ALTINO DO TOJAL
Noite de consoada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 457
JosÉ EDUARDO AGUALUSA
A noite em que prenderam o Pai Natal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 465
Sobre o Organizador

VASCO GRAÇA MOURA

Vasco Graça Moura (1942-2014), poeta, ficcionista, ensaísta, tradutor no­


tável - um humanista e homem de todos os renascimentos. Importa des­
tacar que Graça Moura não se limita a traduzir textos nem a reuni-los: co­
nhece-lhes a história e as vicissitudes editoriais, integra-os nos seus diversos
contextos, segue o percurso hermenêutico que os traz até nós e, nos chama­
dos grandes textos, marca indelevelmente os sentidos que lhes atribuímos.
Nesta antologia, como em todas as que desafiam a diversidade do tempo,
Vasco Graça Moura, pegando no mote da festividade religiosa do Natal,
reuniu mais de quarenta contos de autores portugueses, oferecendo-nos
uma criteriosa viagem literária e humana.
SÉRIE LÍNGUA COMUM

Adriana Lisboa Eduardo Pitta Nenhum Olhar


Rakushisha Um Rapaz a Arder Uma Casa na Escuridão
Azul-Corvo Elvira Vigna Cemitért'o de Pianos
Afonso Cruz Nada a Dizer Cal
Enciclopédia da Estória Fernando Sobral
Livro
Universal L. Vi!!e Abraro
A Boneca de Kokoschka Ela Cantava Fados Gaveta de Papéis
Alexandre Borges A Criança em Ruínas
Ferreira Fernandes
Todas as Viúvas de Lisboa A Mãe Que Chovia
Lembro-me Que
Dentro do Segredo
Álvaro Laborinho Lúcio Filipa Martins
A Casa, a Escuridão
O Chamador Mustang Branco
Galveias
O Homem Que Escrevia
Filipe Homem Fonseca Em Teu Ventre
Azulejos
Há sempre Tempo para mais
José Riço Direitinho
Ana Cássia Rebelo nada
Ana de Amsterdam Breviário das Más Inclinações
Filipe Nunes Vicente
Andréa Zamorano Lourenço Mutarelli
Mau-Mau
A Casa das Rosas A Arte de Produzir Efiito
Francisco Duatte Mangas
sem Causa
António Manuel Couto
A Rapariga dos Lábios Azuis
Viana Luís Naves
Helena Vasconcelos
Tens Visto o Antão? Territórios de Cara
Não Há Tantos Homens
(org. Ricardo de Saavedra) jardim Botânico
Ricos como Mulheres
António Manuel Venda Luiz Ruffato
Bonitas Que os Mereçam
Uma Noite com o Fogo Estive em Lisboa
J. Rentes de Carvalho
O Soniro Enigmático e Lembrei-me de Ti
Emestina
do javali Manuel Jorge Mannelo
Com os Holandeses
Arthur Dapieve Sereias do Mindelo
A Amante Holandesa
De cada Amor Tu Herdarás Uma Mentira Mil
Tempo Contado
só o Cinismo Vezes Repetida
La Coca
Black Music O Amor É para os Parvos
Os Lindos Braros de Júlia
AA. VV. da Farmácia
Somos Todos Um Bocado
As mais Belas Histórias O Rebate
Ciganos
Portuguesas de Natal Aonde o Vento Me Levar
Mazagran
As Mulheres Deviam Vir
Bernardo Carvalho Mentiras & Diamantes
Reprodurão com Livro de Instruções
Portugal, a Flor e a Foice
O Tempo Morto É Um Bom
Bruno Vieira Amaral Montedor
Lugar
As Primeiras Coisas Pó, Cinza e Recordações
Macaco Infinito
Caio Fernando Abreu O Meras
Marçal Aquino
Onde Andará Dulce Veiga João Bigotte Chorão
Além da Literatura Cabera a Prémio
Christiane Tassis
João Leal Marcello Mathias
Sobre a Neblina
AIrapão Pablo La Noche
Daniel Galera
Barba Emopada de Sangue Terra Fresca Mário Zambujal

Dinis Machado José Eduardo Aguaiusa Crónica dos Bons Malandros

O Que Diz Molero A Vida no Céu Mónica Marques

Reduto quase Final Um Estranho em Goa Transa Atlântica


Gráfico de Vendas A Rainha Ginga Para Interromper o Amor
com Orquídea O Livro dos Camaleões Nuno Costa Santos
A Liberdade do Drible José Luís Peixoto Céu Nublado com Boas
O Lugar das Fitas Morreste-me Abertas
SÉRIE LÍNGUA COMUM

Patrícia Melo Raul Brandão Sérgio Godinho


Ladrão de Cadáveres As Ilhas Desconhecidas Vidadupla
Acqua Toffo na A Pedra ainda Espera Dar Flor
Sérgio Rodrigues
Patrícia Müller (org. Vasco Rosa)
Uma Senhora nunca Reinaldo Moraes
Elza, a Garota
Paulo Ferreira Pornopopeia Tony Bellotto
Onde a Vida Se Perde O Cheirinho do Amor Um Caso com o Demónio
Pedro Paixão Ricardo Dias Felner
No Buraco
O Mundo É tudo o Que Acontece Herói no Vermelho
Viver Todos os Dias Cansa Vanessa da Mata
Ricardo de Saavedra
Pedro Vieira A Filha das Flores
Memorial do Coração
Última Paragem, Massamá
(com António Manuel Couto Vasco Graça Moura
Éramos Felizes e Não
Viana) Morte no Retrovisor
Sabíamos
O Que Não Pode Ser Salvo Rodrigo Lacerda Naufrágio de Sepúlveda
Possidónio Cachapa Outra Vida Quatro Últimas Canções
O Mundo Branco Rodrigo Magalhães Partida de Sofonisba às Seis
do Rapaz-Coelho Cinerama Peruana e Doze da Manhã
Gloria in Excelsis - As Mais Belas Histórias Portuguesas
de Natal, antologia organizada por Vasco Graça Moura,
livro da série Língua Comum, publicado por Qyetzal Editores,
foi composto em caracteres da família Caslon, inspirados
na tradição barroca holandesa do século XVII e originalmente
desenhados, em 1 722, pelo tipógrafo e gravador inglês
William Caslon ( 1 692- 1 766) - um trabalho que influenciou
toda a história da tipografia moderna.
Este livro foi impresso por Bloco Gráfico, em papel
Munken Pocket Cream/70 g, durante o mês de Novembro de 20 1 6 .
A vinheta deste livro fo i desenhada por Rui Rodrigues.

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