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Autor: AA.VV.
Recolha e selecção de Vasco Graça Moura
Pré-impressão: Fotocompográfica
ISBN: 978-989-722-340-2
Depós;to legal: 417 316/16
Qyetzal Editores
Rua Prof. Jorge da Silva Horta, 1
1500-499 Usboa PORTUGAL
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Te!. 21 7626000
Por expresso desejo manifestado por Vasco Graça Moura, as suas obras
são publicadas com a ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.
Nota do editor:
O licenciamento para a utilização dos contos na l.ª edição desta obra
foi efectuado directa e pessoalmente por Vasco Graça Moura,
tendo o editor, em todos os casos em que tal se afigurou possível,
confirmado tal licenciamento para a presente edição.
O conto de Natal em Portugal
O desconhecido
não me fazes falta; ele sim. Qye me dizem à rapariga! Qyer que
lhe guardem o bonifrate! Qye se defenda ele. Já tem idade para
isso. E que me importa a mim o cão do António? . . . É o que fal
tam são cães. E, demais, o cão não é nosso.
- Mas é como se o fora, porque é de António, e é muito seu
estimado - respondeu Emília com interesse.
- E que tenho eu que ele o estime, ou não? - continua a
velha, cada vez mais incendiada, e dispondo-se a arremeter para
Emília.
- O caso é outro - atalhou Jerónimo, metendo-se de per
meio. - Agora não se trata de cães, nem meios cães; o caso
é mais sério. Trata-se de saber quem foi o melro que estava posto à
capa detrás dos choupos, e que depois se esgueirou lá para a que
brada da serra. Não era para matar um cão que ele ali estava. Este
é que é o caso.
- É verdade; este é que é o caso - acudiu Emília, fazendo
coro com o pai.
- Será esse o caso, senhora espevitada; mas se o cão não es
tivesse a farejar e a arranhar na porta, já não era nada disto - re
torquiu a velha, que era uma espécie de deputado de oposição sis
temática.
- Eles lá vêm! Eles lá vêm! - disseram os moços que ti
nham ficado.
Efectivamente assim era.
António chegou, e os mais camponeses e criados que o ha
viam seguido, todos cansados e esbaforidos.
- Então que era? - foi a pergunta que saiu da boca de
todos.
- O que era? . . . Era um homem - respondeu António com
ar taciturno -; mas agora quem! ... Aí é que está o busílis. Vão lá
perguntar-lho.
AS MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 29
através dos quais lhe parecia ver despontar lembranças, que bem
amargamente lhe haviam dilacerado a alma noutra época.
Emília chegara-se para ele, e mostrava que as mesmas sensa
ções a atenuavam; estava triste e pensativa como ele.
O tio Jerónimo também cismava, mas o seu cismar era outro.
Reflexões nascidas das circunstâncias singulares do acontecimen
to, e influídas pela superstição, feição proeminente do carácter
camponês, lhe faziam encarar o ocorrido pelo lado maravilhoso.
Um lobisomem não se atrevia a afirmar que fosse o desconheci
do, porque a configuração era humana, e não assentava as quatro
patas no chão; mas coisa boa não a reputava ele de certo.
Assim estavam todos, quando um sonoro repique de sinos,
travando os ares e repercutindo-se em todos os montes e vales vi
zinhos, acordou os ecos da serrania, e arrancou os vales desta es
pécie de letargo.
- Ai! que já toca à missa, e nós aqui! - exclamou Catarina,
saltando como tocada da pilha voltaica.
- É verdade - dizem todos em chusma.
- Toca para a missa, rapaziada - bradou Jerónimo. -
Deixemos os maus pensamentos. Não nos lembremos mais disto.
O que for soará. Anda, António: pareces uma estátua.
- Eu cá não vou à missa - resmungou António.
n, ·;i1. . . . Tu nao vais a missa.;i . . . O ra essa tm
- '-.@e. . ha que ver. J'a
-
· ,
·
A missa do Galo
A traição
OssIAN - Darthula
- Mas que tens tu, Emília? Olha que me fazes cismar, ainda
que eu o não queira - replica-lhe o mancebo aflito.
- Pois não falemos mais nisto. Sabes que mais, vamos dan
çar - diz ela desviando adrede o fio da conversa; e nisto lhe en
fiou o braço, esforçando-se por se mostrar contente e incitando-o
a dançar.
António quase que compelido por Emília chegou-se com ela
para junto dos aldeões, que formavam rodas, ou coreias, bailando
em círculo, de mãos dadas, as quais soltavam, tomando o braço
aos pares, e andando assim em volta, quando em chusma respon
diam, cantando, a quadra, que um, a solo, havia entoado.
À chegada dos noivos, uma aldeã mocetona, gentil e morena,
que tentara seus requebras a respeito do amante de Emília, rom
peu nesta cantiga:
Janelas avarandadas
Longe deitam as biqueiras:
Não há vida mais feliz
�e a das moças solteiras.
Ó giralda, giraldinha,
Toca, toca o giraldar,
Meia volta, uma volta
Outra volta eu quero dar.
apertava a mão!. .. Mas ele ali está! ... Está ali a devorar-me com
os olhos! . . . - continuou ela com um tom de indizível raiva,
apontando para o velho Jerónimo, que a soluçar a olhava, debu
lhado em lágrimas; depois contorcendo-se, como possessa de es
pírito mau, caiu em novo desmaio.
- Minha filha! Minha querida filha! - clamou Catarina de
joelhos, junto dela.
- Mas que papel é esse, de que fala ela? - diz Jerónimo.
- Talvez seja o que o cura tem na mão, que foi achado no
seio de Emília - responde uma aldeã.
- Ai! Nem de tal me lembrava já - diz o cura. - Estou
como fora de mim. Vamos a ver se o papel explica alguma coisa.
- O cura leu o seguinte:
«Emília, pensa bem quanto pode um amor desprezado; efica certa
de que Pedro, assim como te soube amar, também saberá vingar-se.»
Eram as terríveis palavras que Pedro, o militar, proferiu ao
despedir-se de Emília, quando a fora pedir para esposa a seus
pais, e ela o recusara.
O seu infernal protesto de vingança fora cumprido.
Epílogo
carreira, como para ele já tinha findado a sua ventura. Era a ima
gem da sua sorte! Duas lágrimas deslizavam pelas faces do pobre
velho.
Catarina, magra, dobrada, e como demente, rezava ao pé do
seu marido.
No meio da estrada, junto de uma encruzilhada, via-se uma
camponesa de poucos anos, sentadinha num valado, próximo de
uma cruz tosca de madeira, que se erguia de entre as piteiras.
Uma palidez mortal, como véu mortuário, cobria-lhe o rosto.
Seus olhos, posto que formosos, divagavam errantes e sem inten
ção. Os olhos são os núncios da inteligência; neles não havia ex
pressão, porque na mísera aldeã não havia entendimento. Era a
louca da aldeia; a mal-aventurada Emília; aquela que dantes fora
chamada Flor da Serra e o sítio onde ela estava, o lugar em que
tinham assassinado António, o esposo do seu coração.
Seis horas soaram no campanário da freguesia. O som triste
e pesado do sino pareceu arrancar dolorosas recordações à pobre
doida; levantou a cabeça e ergueu-se, olhou a aldeia, e depois to
mou pela estrada, para o lado da freguesia, e desapareceu.
Deram sete horas, deram oito, e Emília ainda não aparecia
em casa; deram oito e meia; deram em fim nove, e ela sem apa
recer.
- Vão-me procurar a minha filha! A minha querida Emília!
- gi:ita Jerónimo, cheio de inquietação.
- Ela aqui está - lhe respondem uns aldeões que traziam
Emília em braços, pálida e fria. - Foi encontrada no cemitério,
sobre uma sepultura semeada de flores.
Era a sepultura de António.
Emília tinha voado para ele.
A festa do Natal A festa das crianças
-
- O quê!?
- Ainda me lembro!
- Sabes mais do que nós . . .
- Pois então ! Contava-me aquela nossa criadita velha,
a Emília... Ora espera, como era? . . . Ah! Qiando Nossa Senhora
ia a caminho, os bisbilhoteiros dos noitibós iam na frente, a gritar:
«Ela aqui vai! ela aqui vai!» E atrás as cotovias, apagando as pega
das da burra com as patitas, diziam: «Mentira! Mentira!» Por isso
Nossa Senhora abençoou estas e amaldiçoou aqueles.
- É verdade, mamã? - perguntou com interesse o Josezito.
- O papá nunca mente.
E a cada instante o papá, radiante, cheio de si, na amorosa
incidência da atenção de todos, e com os filhos pendurados em
cacho dos ombros, do colo, do pescoço, demandava a mulher
com os olhos rasos de água, numa expressão fundente de ternura:
- A minha Geneta!
Maio, 1 891.
Conto do Natal
Fialho de Almeida
* * *
As JANEIRAS!
Se já restava pouco do madeiro do Natal, quando os ganhões
chegavam do trabalho, arrumada a copa e a apeiragem, iam bus
car um madeiro que meu pai tinha escolhido no monturo da le
nha grossa, e colocavam-no na chaminé, arrumado à parede. Este
frete era geralmente pago com um copo de vinho, e bem o mere
ciam os desgraçados, porque alombavam com um madeiro pesan
do umas poucas de arrobas. Cozia-se sempre neste dia, e a última
fornada de pão tirava-se já noite escura, às vezes com a ganharia
à mesa para a ceia.
A cada janeireiro, homem ou mulher, dava-se um pão; aos
moços dava-se metade ou um quarto, conforme o seu tamanho,
e às vezes, já no clarear da madrugada, havia necessidade de redu
zir a �smola, pois não chegava para tanta gente o pão cozido. Tal
havia que apanhava duas, três ou quatro esmolas, incorporando
-se em diferentes ranchos, e o mesmo rancho chegava a cantar
duas vezes, mudando as vozes.
- São os mesmos que cantaram há bocadinho.
Qyem ia levar a esmola, geralmente era uma criança, não
se dispensava de dizer, mesmo que lhe não encomendassem o
sermão:
1 14 VASCO GRAÇA MOURA
Palavras não eram ditas, deita a mão a uma vara que estava ali
perto, menos grossa que um bordão, e vá de zurzir o maltês,
como se batesse em centeio verde. Minha mãe, espavorida, queria
acudir ao infeliz, mas o compadre Cara-Rota, não atendia os seus
rogos, e o maltês levava e encolhia-se, queixando-se por gestos
e por guinchos.
- Ah ele é isso! Não queres falar? . . . Espera que eu já te ar
ranjo.
Sacou da algibeira uma navalha, que abriu dando três estali
nhos, e como fizesse aceno de avançar para o homem, disposto
a cravar-lha no fole das migas, o maltês caiu de joelhos, a pedir
misericórdia.
- Não me mate, pelo amor de Deus, que eu não fiz mal
a ninguém.
- Ora esta! - dizia minha mãe, mal acreditando no que
ouvia. - Qyem havia de dizer...
- Dizia eu, senhora comadre, porque ainda ontem à noite vi
este pardal numa barraca da feira, muito bêbedo, ameaçando toda
a gente, e desenrolando um palavreado que até envergonhava as
pessoas.
dos Montes, de modo que cantava só, e isso fazia com que a esmo
la do seu rancho fosse mais avultada. No despique ninguém lhe
ganhava, a cantar uma noite inteira, nos arraiais, às vezes tendo de
bater-se ao mesmo tempo com dois e três cantadores de reputação
concelhia, mestres na desgarrada.
Tenho pena de não ter escrito algumas das quadras e deci
mais que a Sofia arquitectava sobre mote, dizendo-as sem hesita
ção, como se as tirasse da memória. Instruída e educada, a Sofia
de Messejana estou que marcaria na literatura feminina do nosso
país um lugar de relevo e distinção.
Ó senhor lavrador
Vestido de saragoça;
Mande-me dar a esmola
Pela sua filha mais moça.
Acordai, ó acordai,
Desse sono tão pro.fUndo;
Que vos estão batendo à porta
As almas do outro mundo.
As Janeiras!
Até à meia-noite ainda estava tudo a pé, no Monte, para ou
vir os janeireiros, contrariando o velho hábito, raramente inter
rompido, de ir tudo para a sossega, mal engolida a ceia, e engo
lia-se a ceia ao acender as luzes. Meu pai, em algum dos filhos
cabeceando, ordenava-lhe que se fosse deitar - na cama é que se
dorme - o que punha logo o dorminhoco gazil como um furão.
De quando em quando vinha uma roda de café, um copinho
de aguardente, um cálice de vinho abafado, para espertar, sendo
estas bebidas acompanhadas de alguma trincadeira - bolos fei
tos naquele dia, nozes e figos comprados na feira de Castro, bo
lotas que tinham avelado numa alcofa, ao canto da chaminé, es
colhidas umas no Poço Seco pelo compadre Rabino, escolhidas
outras no Sabugueiro pelo compadre Bugado.
Amos e criados, destes os mais antigos na casa, os compa
dres, os afilhados, fraternizavam naquelas noites de festa; empar
ceiravam no jogo; comiam do mesmo prato; quase bebiam pelo
mesmo copo; fumavam na mesma onça de tabaco. E não havia
uma desatenção, uma falta de respeito, todos juntos e cada um no
seu lugar, a mesma alegria ingénua e franca iluminando todos os
AS MAIS BELAS H ISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 127
* * *
As Janeiras! Os Reis!
Poucos, muito poucos são os Montes em que ainda hoje se
dá esmola aos janeireiros, e por isso mesmo, além de várias razões
doutra ordem, são cada vez menos os janeireiros que passam uma
noite de Monte em Monte, cantando aquelas tradicionais quadri
nhas que o leitor já conhece, e outras de igual valor poético, que
se me varreram da memória.
Os tempos andam tão mudados do que foram!
Eu sinto-me tão diferente do que fui!
Estou a evocar estas recordações numa noite de j aneiras, de
vento fustigante e frio alpino, e precisamente quando suspendo
a pena e fecho os olhos para que seja mais perfeita a evocação, a
Otília, minha sobrinha, grita-me da porta do quarto, aos salti
nhos, como uma rola na eira: - Tio! O chá está na mesa.
O chá, que naquelas eras, entre rurais pobres e abastados, só
era tomado como remédio, para suar, e era de flores de sabugueiro!
Natal dos pobres
Raul Brandão
NATAL ...
das suas lágrimas. Vinho quente! vinho quente e amargo, que sa
be a aflição! Chegam-se uns aos outros para se aquecerem. Nas
enfermarias, nos sítios onde se sofre, os míseros e os doentes que
dam-se muito tempo a cismar. Os pobres pensam que existem
seres ainda mais pobres, lares desamparados, onde nem o lume se
acende; cuidam numa velhinha, que, a essa mesma hora, cisma,
abandonada, e sozinha, ao pé de brasas extintas no filho doente,
no filho ausente. . . Há cabanas nuas, lares rotos, almas mais géli
das que o nevão.
Natal dos pobres! Natal amargo dos que não têm pão e se
juntam friorentos em torno dum lume que não aquece; Natal dos
seres que a desgraça usou . . . O vinho enregela, o pão é duro, mas
resta ainda este lume, que jamais se apaga: - Amanhã! amanhã!. ..
Qie poesia tão triste não vai caindo como um choro sobre
aquelas almas de misérrimos, de gebos, de prostitutas, de desgra
çados!
Numa trapeira o gato-pingado quer dizer: - Amo-te! -
mas foi sempre tão nu que não sabe exprimir o que sente.
Na alma daquela criatura humilde, despida e escarnecida, que
tinha medo de sonhar e até de chorar, fizera-se um clarão. Tal
1 40 VASCO GRAÇA MOURA
A Bulhão Pato
E cismava que era como esses troncos velhos e partidos, por cima
dos quais o enxurro espumava, e onde nunca mais nasceria flor,
ou cantaria ave . . .
Fez um exame de consciência: fora bom, fora simples. A mu
lher morrera-lhe ainda na flor da vida; a filha fugira-lhe para a
mãe, quando estava noiva. Antes assim, pensava. A filha era uma
santa, e o mundo era ruim. . . Mais tarde, já trôpego, dois filhos
roubaram-no, e nunca mais apareceram. Como ele se lembrava!
Fora numa noite como aquela, negra e ventosa. Os dois, quando
ele dormia, arrombaram-lhe a arca, e levaram-lhe a meia dúzia de
peças que tinha guardadas no escaninho, para algum ano sáfaro,
de mais negra fome. Afinal tudo era para os filhos, dizia consigo;
os filhos lho levaram . . . Mas nem roupa lhe deixaram, no Inverno
impiedoso, para o cobrir. Tinham sido perversos, os filhos que
ele tanto amara! Depois começou de entrevecer; os braços não
podiam; e onde o trabalho mingua, vai crescendo a miséria. Fi
cou com uma horta, donde comia o caldo, onde colhia uma cesta
de fruta. Pouco lhe bastava, afinal. O compadre, a quem ele tanto
ajudara, por quem tantos sacrifícios fizera, fora para o Brasil. Por
lá acabara, certamente ...
Estava escorraçado como um cão, pobre como Job. Apesar
disso, na consciência não se apagara a claridade que sempre lha
alumiara. Ela era semelhante a um suave rio bucólico, cuja trans
parência deixa ver na areia loira a sombra dum cardume prateado.
Ele sentia-se bem naquela miséria, naquele abandono - com
essa leveza e essa graça dos que olhando para a vida inteira não
têm nunca a desviar os olhos duma torpeza ou duma mentira.
Curvado sobre as brasas crepitantes, o velho lançou os olhos
para o banco chamuscado, que lhe ficava defronte. E de repente
ficou extático. O queixo tremia-lhe fortemente. Santo Deus! que
As MAIS BELAS H ISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 145
* * *
a D. João da Câmara
- Qyem me chama?
E entre o rumor do vento distingue a tropeada da égua, os
passos vagarosos de dois homens.
- Traga a candeia . . . - torna a voz, na estrada.
A criança está já fora do catre, à espera das argolas, esfregan
do nas costas da mão os olhos piscos de sono.
Tropeçando na saia, a mulher desengancha a candeia da pa
rede, e à luz mortiça, saindo ao terreiro, vê o seu homem, trazido
a braços, como morto. Atrás do grupo fúnebre avança a égua
trôpega.
Os homens param. O da frente, encarando com o desatino
da mulher, resmoneia, esbaforido:
- Tome conta na luz! Não vamos agora aqui ficar neste ne
grume! O seu homem. vem vivo.
Só então ela parece acordar do seu doloroso espanto e soluça,
erguendo para o céu ventoso os braços, deixando fugir o xale.
- Nossa Senhora! Divino amor de Deus, que estou des
graçada!
- Cale-se, mulher! Derreados vimos nós com este peso! De
mos com ele numa vala, caído ao pé da égua. Foi pancada que
lhe atiraram à falsa fé para o roubar.
Em altos gritos, ela empurra a porta, ajuda a deitar o seu ho
mem no catre. A criança soluça, refugiada a um canto, sufocada
pelo medo, e enquanto a mulher rasga, com a violência do terror,
uma camisa de linho para ligaduras, os dois homens lavam as
mãos ensanguentadas num alguidar e atiçam o lume da lareira
com um graveto de tojo.
Debalde a mulher agora esparge de vinagre o rosto desfigura
do do ferido. Com o braço pendente e as unhas cravadas na pal
ma da mão direita, enlameado e lívido, o Manuel da Eira parece
morto, estendido no catre.
1 52 V ASCO GRAÇA MOURA
L'abbé:
- Voilà d'excellent café, madame: c'est du Moka tout pur.
La comtesse:
- Oui, il vient du pays des musulmans, n' est-ce pas grand
dommage?
L'abbé:
- Raillerie à part, madame, il faut une religion aux hommes.
Calam-se outra vez. Raro é o tecto que não tenha o seu au
sente. E o Brasil porque está fora do vale, parece, às mães, estar
fora do Mundo.
- Por onde andará ele a esta hora?
As canecas passam de mão em mão e o vinho gorgoleja, va
garoso, nas gargantas. A garotada já largou da mesa e procura,
irrequieta, tirar da fogueira as castanhas. O vento canta na cha
miné e vem agitar, de leve, a crista do lume.
As figuras movem-se lentamente em direcção ao pedaço de
laje onde há fogo e a candeia fica a alumiar, sobre a mesa, a tra
vessa vazia com um fio de azeite no fundo e um farrapo de cou
ve nos bordos.
Lá fora continua o vento, o frio e a negridão. No vale, po
rém, todas as casas estão despertas, com luzitas laminadas sain
do pelas frinchas das portas ou emoldurando os humildes jane
licos, que não se divisam de longe. O povo deita-se, hoje, mais
tarde. O Menino Jesus merece um quartilho de petróleo.
Mas não se vê vivalma, nem se ouve coisa alguma além do
vento. Só ele anda por aqui, chorando a sua ária nos pobres ca
sebres de quatro paredes baixas, musgosas e suando humidade,
nas janelas dos lavradores que já têm primeiro piso, nas árvores,
nos caminhos, nos barrotais, juntando ao seu ritmo o das fon
tes, dos regatos e de algum coração humano que se tenha per
dido na serra, com gritos que ninguém ouve . Por quem este
choro intérmino? Por aqueles que se descarnaram ao sol, após
a grande batalha de que fala a tradição e cujos ossos, cobrindo
picotos e veigas, teriam dado ao vale o nome que hoje ele tem?
Ou chora, o vento, pela Margarida, que fez chorar os sinos na
semana passada; pelo Alfredo, tão novito, que cerrou as pálpe
bras em Agosto; ou por todos os outros que morreram desde
que no vale se ergueu a primeira arribana? Ou chorará pelos
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 1 95
antes de haver luz. A velha, para não cair, coseu-se com as pare
des das casas. Sem medo nenhum, porque era animosa de seu na
tural e andava afeita àqueles errores nocturnos, procurou, com o
embrulho ao colo, uma das quatro saídas do povoado. Em certo
sítio, não teve outro remédio senão abandonar o corrimão das pa
redes para atravessar um largo. E então é que foram elas! Come
çou a caminhar às cegas. Enterrou os pés em lama. Perdeu as
chinelas. Deixou-as ficar sepultadas no lodo. Sentiu aluir-se-lhe o
chão num rego de água. Gritou. Lembrando-se porém da enor
me responsabilidade da sua missão secreta, amarfanhou a boca na
concha cadavérica da mão. Foi-se arrastando. Como porém hou
vesse perdido de todo a tramontana, era-lhe difícil, senão impos
sível, sair do largo. Resolveu alijar o pacote de carne recém-nasci
da e fugir até encontrar de novo uma parede que lhe servisse de
guia. Nesse momento, deu tento de uma lumieira baça que saía
de um buraco e se alastrava na escuridão como nódoa de azeite
num vestido preto. Era a lâmpada do altar-mor da capelinha do
povo - ruína que voltava para o largo uma das faces negras.
A parteira sentiu refrigerar-se-lhe a alma à vista dessa luz. Viu
nela um aviso de Deus para meditar um momento nas contas que
lhe havia de prestar quando morresse. Encarou em si própria e
sentiu-se repelente. Já todos os cantos lhe cheiravam à campa.
No entanto, era ainda sem pejo que aparava nas mãos encarqui
lhadas um menino caído do ventre de sua mãe para o expor, no
limiar de qualquer porta, à mercê dos caprichos do demo e da
fortuna. Fazia isso para ganhar dinheiro. Não podia ter amnistia
celeste o acervo dos seus crimes. Qye poderia tentar para que
Nosso Senhor se condoesse dela? Naquela noite, em que Jesus
nascia numas palhas, já com o perdão expresso nos lábios inocen
tes, que podia ela fazer para se mostrar arrependida de haver pe
cado tanto? Naquela hora, com aquele inocentinho ao colo, que
200 VASCO GRAÇA MOURA
- Cala-te, bruto!
- Porquê?
- Não ouves Nosso Senhor falar? São para nós as suas san-
tas palavras. Nosso Senhor disse: «amai-vos umas às outras». Se
falasse para ti, diria: amai-vos uns aos outros . . . Percebes?
- Percebo. Nosso Senhor, a mim, também me disse: cuida-
do com elas, José, que o aroma dos vinhos já me chegou aqui.
- Herege!
- Leva arriba, meninas!
Cantaram os galos para fora dos soutos. Nosso Senhor desa
pareceu. Ia nascer para se mostrar no dia seguinte às criancinhas,
num âmbito de mil aldeias.
Os Reis Magos
Vitorino Nemésio
(- de Novembro)
(
- de Novembro)
(
- de Dezembro)
Esta manhã, assim que abri os olhos, ouvi um piano que en
chia a casa de sonoridade: Chopin, uma mazurca, e tocada por
mão de mestre. Foi uma coisa que sempre me dispôs bem para
232 V ASCO GRAÇA MOURA
(
- de Dezembro)
(- de Dezembro)
(- de Dezembro)
(- de Dezembro)
(
- de Dezembro)
(- de Dezembro)
a casa de alto a baixo: mas ninguém abre. Uns estão fora, outros
dormem, ou fazem como nós, espreitam esta cena de Natividade
malograda. O velho rosna palavras ininteligíveis, depois grita:
«Abram esta porta, eu sou o doutor Crosby!» Ninguém faz caso.
Ele volta a descer a escada, arrebatado, transpõe o passeio dando
um empurrão ao rapaz, que tenta detê-lo, corre para o meio da
rua, pára, e no silêncio branco que forra a noite põe-se a gritar:
- Ninguém se atreve a aparecer, a abrir uma porta ou uma
janela ... Mas eu sei que estão todos a escutar por detrás das corti
nas! Pois então ouçam: eu sou o pai desse miserável que mora ali.
É noite de Natal, vim para ver o meu filho, sou um pai que quer
ver o seu filho numa noite de festa, e ele não me deixa entrar em
casa. Não abre a porta ao pai! Desde que a mãe morreu, há três
anos, nenhum dos meus filhos me tornou a visitar! Mas não é só
isso ... Este meu filho é a vergonha da minha cara! É um pederas
ta. Um pe-de-ras-ta! Esta casa é um clube de invertidos e traves
tis! e ele não quer que o pai veja ... Qiero que todos saibam! Os
meus filhos são uma corja de imorais ...
O velho, rubro e sufocado de furor, cambaleia na neve, cala
-se um momento, fica especado à espera de resposta. Mas só os
torrões de neve que tombam surdamente dos beirais parecem res
ponder-lhe. A Betsy aperta-me o braço com terror, vergonha ou
piedade. Vermelho, desenfreado, com os cabelos de prata soltos
na noite fria, o velho arremete de novo contra o prédio como se
viesse demoli-lo. O seu vigor assombra. À passagem dele, o ra
paz, que chora com a cabeça apoiada no carro, diz numa voz
de súplica: «Daddy, por favor, vamos embora . Daddy!» O velho
. .
(
- de Dezembro)
uma nova cor nas faces pálidas e ossudas. Reparo que ele e a mu
lher se entreolham com ternura. Estão contentes, fazem-me feliz!
O café começa a popotar no percolador, e Tony divaga - nestas
horas quem é que não gosta de lembrar o passado, contrastes?
- Na minha terra nunca o bebi, café! Nem o cheiro. Talvez
no Porto, quando por lá passei para embarcar. . . Estive lá dois
dias, pareceu-me a Babilónia! Açúcar, então, só numa doença,
como o chá. Ai, tia Joana, fulano está a morrer! Davam-lhe vinho
quente com açúcar, era remédio para tudo. Lá se curava confor
me podia, ou morria consolado . . . Mel, sim, mel havia. Vinha um
homem vendê-lo por aqueles sítios, com o macho carregado. Le
vava os presuntos em troca. Minha tia comprou uma vez um cân
taro dele, aquilo era para durar uma vida. Meti-lhe o dedo, gos
tei. . . Ora, não lhes conto nada: todos os dias ia tirando mais um
bocadinho. Ao fim de um ano, um dia foi preciso mel não sei para
quê, talvez algum doente. Qyé-dele o mel? Qyem foi o ladrão
que mo lambeu? Tinha-se acabado! Com um dedo. Até andei
fugido . . .
O riso estala.
- Vai mais um copito?
- Pois seja!
Isto que eu sinto não é embriaguez, tranquiliza-te: é conten
tamento, é amor, um indizível conchego que eles nem sonham,
um desejo indefinível de ser como os outros, quase doloroso de
bom que é.
E quando se abre o forno e sai lá de dentro, com a majestade
duma cerimónia episcopal, um formidável lombo de porco assado
- um rolo tostado, todo atado e fumegante, nadando no molho
de oiro líquido que perfuma a casa inteira, e mais, a memória
deste dia pelos anos fora -, não posso conter a exclamação riso
nha e comovida:
266 V ASCO GRAÇA MOURA
(Céus, rociai!
Nuvens, chovei!
ÓAdonai,
nascei, nascei!)
272 VASCO GRAÇA MOURA
* * *
vós ficais aqui ambas e duas metidas nesta caixinha deste relógio, en
quanto eu vou ao monte armar comida para vos dar. Mas, se vier al
guém, vós não abris a porta, que é o lobo que vos quer comer.)
Deixou os remos pender dos toletes como asas partidas .
Acendeu mais um cigarro e deu-lhe umas fumaças, até que lhe
caiu dos dedos esquecidos. (hieimada, a água queixou-se.
Lá no fundo, sim, o tempo insurgia-se. Lá no fundo, sim,
tornava a noite de Natal. Tanto como estrelas ardiam no céu,
tanto no fundo luziam todas as janelas: as do Chico da Venda, as
do senhor professor, as do primo do Adro, as das primas do Tan
que, as suas próprias, paternas. As luzes do céu não eram do céu.
O céu espelhava era as luzes da aldeia. Também era de dia, e o
tempo do pião. Os rapazes atiravam o pião no Largo, questiona
vam, pegavam-se. O zungar dos piões fundia-se com todos os si
lêncios ao derredor: o do voo das pombas-de-leque do boticário,
o do granizo nas vidraças da escola, o do relógio de cuco da
senhora Mariquinhas viúva, o dos guizos do carro da carreira.
A Emília sardinheira berrava pelo filho e insultava-o, insultando
-se. (Ó Nelo! Ó Nelo! Ai o grandefilho da puta! Ai o cação! Ó Nelo!)
O lobo comera duas das cabritinhas, quando chegou a mãe
com a comida para todas. (O lobo, de cheio, nem se podia mexer.
Fazemos bem! disse a mãe à terceira cabritinha. - Traz a tisoira e a
agulha. E mandou a cabritinha acarretar pedras, enquanto com a ti
soira abria a barriga do lobo. E tirou as duas cabritinhas da barriga
do lobo e meteu lá pedras e coseu-lhe a barriga. E arrumou com o lobo
para um poço e ficaram todas três a cantar e a dançar, todas conten
tes.) (Conta outro, Ermelinda, conta outro! O da Bicha-de-Sete-Ca
beças9 (Não, menino, que está dar a meia-noite e nasceu o Menino
jesus. E o menino, agora, vai épara a caminha, que está cheio de sono.)
(Mas eu queria o da Bicha-de-Sete-Cabeças! Ou o do Bicho Sapo do
274 VASCO GRAÇA MOURA
palácio! Conta, conta o do Bicho Sapo do palácio!) (Não pode ser, me
nino. Bem vê que também é nascido já o Menino jesus! O menino vai
é para a caminha. Direito para a caminha!) (Mas, primeiro, então,
quero ver o Menino jesus! Eu quero ver o Menino jesus!)
Seguiam desamparados os remos. Só, do quase imperceptível
andejar do barco, as águas, como que friorentas, mal se enruga
vam. No céu, os farrapos de nuvem esfarrapavam-se mais, bran
cos de fumo.
Todas as casas da aldeia fumegavam. Em todas ardia o ca
nhoto de carvalho, ou de sobro, duradouro e de calor mais quen
te, para aquecer o Menino: os dois Meninos.
Lisboa, 1965.
O conto de Natal
Tomaz de Figueiredo
Lisboa, 1942.
Meia-noite
João Gaspar Simões
A Guilherme de Castilho
- Jaime! Jaime!
Abraçaram-se. Beij aram-se.
- A mãe. Olie é da mãe?
- Está lá dentro, na sala . . . Entra . . .
Um soluço embargara a voz d e Judite.
- E o pai . . .
Calou-se.
- Perdoa-me, Judite. Tinha-me esquecido . . . O nosso po
bre pai . . .
O s olhos dela brilhavam d e lágrimas. Ah, sim, o s olhos dela
ainda brilhavam, mas de lágrimas, de lágrimas . . . E Jaime pôde
ver que aqueles olhos só de lágrimas brilhavam, que aqueles cabe
los estavam cheios de fios brancos, que aquela cara rosada de me
nina estava retalhada de rugas, que a magra Judite era agora uma
mulherzinha pesada, sem graça, sem frescura. Sentiu uns dedos
finos apertar-lhe a garganta. Mas teve forças para dizer:
- Estás na mesma, Judite.
- Mais velha, Jaime, mais velha. . . E tu? Vens todo molha-
do, filho. Entra, entra, depressa.
Jaime não estava molhado: estava bem. Tirou o sobretudo,
poisou a mala.
- Entra! A mãe está ao fundo, no quarto da Maria . . .
Tinham mudado a casa? Não era ali , n a saleta, que ela estava?
No «quarto da Maria». Ainda era o «quarto da Maria».
-Aí, entra.
Jaime entrou. Ao fundo, entre a janela e a máquina de costu
ra, na velha cadeira de bunho, estava ela. Ela, a mãe? A dos cabe
los negros apartados? Não. Uma velhinha, toda enrugada, com
uma grande madeixa branca na testa. Jaime correu para ela:
- Mãe! Olierida mãe!
- Meu filho!
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 289
- Estás a brincar . . .
- Juro-te que não.
- Mas não podia ser. Era absurdo.
Insensivelmente elevavam a voz. Era sempre assim. Todas as
vezes que falavam do sobretudo caíam na mesma disputa. Em
pequenos esmurravam-se.
«Pronto, filhos, pronto! Qye é isso?»
A mãe intervinha. Acabava sempre assim. Pobre Judite! Fica
ra com aquela certeza para toda a vida. Com duas ou três certezas
assim vivia. Feliz Judite! Só ele já não tinha certezas: restava-lhe
apenas trabalhar, trabalhar e morrer.
- Come mais um bocadinho, Jaime . Gostas da torta?
É boa? Não tem boa cara . . . Está tudo perdido: até a Marta já
sabe falsificar o pão . . .
Mas Jaime achava a torta deliciosa. Não havia no mundo coi
sa melhor.
- E quando a mãe as amassava em casa . . . Lembras-te, Judi
te? Nós todos à volta do alguidar . . . Tinham de esconder os pi
nhões, senão comíamos tudo . . . Tu eras a mais lambareira . . .
- O h , Jaime! Qye mentiroso! Eras tu! Tu! Até lambias
a massa crua que ficava pegada ao alguidar . . .
Efectivamente, Jaime lembrava-se: era aquele mesmo paladar
a abóbora, mas mais acre, mais natural.
Conversaram. A mãe lembrou as festas do Natal felizes, com
o pai sentado na cadeira, à espera da meia-noite, a Judite a bor
dar, a Maria com as suas bonecas e ele a olhar para as paredes,
sonhador. Ah, quem pudesse voltar atrás , emendar os erros,
aproveitar todos os momentos bons . . .
O relógio d o pêndulo doirado começou a dar meia-noite.
Um grande silêncio pesou, de súbito. Ficou só o relógio a bada
lar. A mãe rezava em voz baixa, Judite tinha lágrimas nos olhos,
294 VASCO GRAÇA MOURA
e ele, cabisbaixo, via tudo, tudo . . . O pai ali, ali a Maria, ali a mãe,
ainda de mangas arregaçadas, ali Judite, com a sua cara rosada de
menina, e ele próprio, todo esperanças, todo ilusões . . . A última
badalada caiu, mas o silêncio continuou. A chuva batia nas vidra
ças, o mar, ao longe, bramia; na cozinha a criada polia os metais
do fogão. Aqueles tinham escapado à tempestade. Mas espera
vam, resignados, que a sua hora soasse. Qyal partiria primeiro?
Qyantas vezes se tornariam a ver ainda em volta daquela mesa?
E Jaime sentiu, de repente, que precisava de viver aquele instante
como quem bebe uma última gota de água no meio de um deser
to sem fim. Fechou os olhos, apertou as mãos uma na outra e as
sim ficou, como se quisesse fazer parar o tempo, como se quisesse
que nada mais houvesse na terra além daquele momento doloro
so, doloroso e inefável, que talvez não voltasse nunca mais . . .
1939.
O regresso
Domingos Monteiro
- E VOSSEMECÊ A DAR-LHE!. ..
- É o que te digo, filha. Bonda a forma como ele te escreve.
Vem mais pobre do que foi e para te comer o resto . . .
O s olhos d a velha fuzilaram. Sentada n a arca, junto do fogo,
o seu rosto cavado de rugas tinha uma cor de marfim velho, em
que as labaredas punham, de vez em quando, um tom averme
lhado. As mãos pousadas no regaço dedilhavam, maquinalmente,
o terço, e com a boca desdentada ia mastigando orações e profe
rindo invectivas, misturando o seu fervor de crente e o antigo
rancor por aquela alma do diabo que ali aparecera um dia, só para
lhe estragar todos os projectos.
- Ave, Maria, cheia de graça! ... É o que eu te digo. Escusas
de contar com a minha ajuda . . . O Senhor é convosco . . . A leira,
ainda a deixei vender, só para me ver livre dele. Pensei que, com
o génio que tem . . . Bendita sois vós entre as mulheres . . . o matas
sem por lá . . . Bendito é o fruto do vosso ventre . . . ou que as febres
o acabassem . . . Ámen! . . .
- Mãe! - Pôs-se d e pé, cheia d e cólera. Aquele ódio sem
medida fazia-lhe perder todo o respeito que lhe devia. - A mãe
fala como uma alma perdida. Ele é o meu homem, mãe! O pai da
minha filha . . .
296 VASCO G R A Ç A MOURA
pelos seus pecados. O pai era mais forte que o vento, que o tro
vão e que a noite . . . Bastava que ele lhe tocasse para o seu medo se
fundir e entrar nela um sentimento de calma e de segurança in
vencível. . .
- São horas d a ceia, Rosinha . . .
- E u espero pelo pai! . . .
Mas esse receio tinha sido apenas um sobressalto que não re
sistira muito ao sorriso envolvente do Menino Jesus, em que fita
va os olhos suplicantes, e que, do alto da sua peanha, a fitava
também para lhe inspirar coragem e confiança. E fora aquele
olhar divino que suscitara nela uma ideia que pusera fim a todos
os seus escrúpulos e a enchera daquela calma sobrenatural que
antecede a morte dos sábios e dos justos . . .
Logo d e manhã, naquela véspera d o Natal, o pastor viera,
como sempre, trazer-lhe o leite, que ela já não bebera, e dar-lhe
conta de que cumprira o seu mandato.
Como era seu costume, depois que ela caíra de cama, deitou
um braçado de vides secas na lareira, atiçou as brasas, encheu de
água fresca a canequinha de barro negro e pô-la sobre o banco
junto da enxerga, ao alcance da mão dela.
- Disse-lhes para virem hoje à boquinha da noite . . . - e
com uma certa hesitação, enquanto volteava o gorro entre as
mãos, acrescentou: - O pior é se vossemecê morre antes disso . . .
Ela fez-lhe repetir a frase, e ele gritou:
- O pior é se vossemecê morre antes disso . . .
Ela sorriu com a boca desdentada:
- Não morro, Manel. . . Só morro depois da missa do Galo
e confessada e ungida. . .
Tranquilizado, o pastor i a transpor a porta quando ela reco
mendou:
- E quero-te aqui, Manel, para só os deixares entrar um
por um.
GASPAR
* * *
II
MELCHIOR
III
BALTASAR
II
III
IV
No dia seguinte, dia de Natal, era feriado, tal qual como hoje.
Andava muita gente a passear nos campos, e o Menino Jesus an
dava na estrada, a brincar com a carroça. Claro que olhava, com
desconfiança, para todas as carroças que passavam, a ver se algu
ma delas era igual à sua. Mas nenhuma era. Foi brincando, brin
cando, e já se esquecia desta história toda, quando viu um ho...:
mem, lá ao longe, num sítio onde andava menos gente, sentado
numa pedra e a fazer riscos no chão, com uma varinha. O Meni
no Jesus teve pena dele, quis avisá-lo e aproximou-se.
Ora, o Menino Jesus falava uma língua esquisita - o aramai
co - que muitos dos judeus não entendiam, e ainda hoje, segun
do parece, não entendem. Mas ele não tinha culpa; era a que lhe
ensinaram em pequeno, mal começara a estender os braços . . . Os
meninos ainda se lembram de querer agarrar nas coisas que estão
longe? É isso.
Aconteceu, então, que o homem não só não percebeu o que
o menino lhe dizia, como se zangou e o enxotou, ameaçando-o
com a vara. É claro que o Menino Jesus deitou a fugir. Qyando
já estava suficientemente longe quis ver. . . E o que viu?
Ao lado do homem, parara uma carroça exactamente igual
à sua, puxada por um tipo que já metera conversa com o outro
sentado. E parecia que a conversa era engraçada, porque ambos
se riam muito. Só da boca do que fazia de cavalo saía um fumozi
nho branco, que o Menino Jesus muito bem conhecia.
Por tudo isto é que o Natal é pai e tem barbas brancas, para
se distinguir do outro, que traz brinquedos do inferno, brinque
dos que, como os meninos também sabem, são feitos neste mun
do, tal qual como os outros brinquedos.
386 V ASCO GRAÇA MOURA
1944.
A noite que fora de Natal
Jorge de Sena
II
senti como aqui nem com a morte o tempo passa. Ou não passa
precisamente porque é morte. Repara, Marco Semprónio, na
quele sangue que pinga. É como se a vida se esgotasse na água
que pinga na clepsidra, e a morte se esgotasse, e COII). ela o tem
po, naquele sangue que escorre, gota a gota, de uma clepsidra
humana que voltámos. C2!,iando o sangue pulsa em nossas veias,
ele é o tempo que passa. C2!,iando escorre assim, é o tempo que
fica.
- Mas, César, porque não abres as tuas veias, para que, com
o teu sangue, o tempo acabe?
Os olhos de Tibério olharam ironicamente Marco Semprónio.
- Porque, se as abrisse ou mandasse abrir, eu seria igual
àquele escravo que me deste. Seria alguém, um ser, um animal,
a quem, como imperador, eu dava a morte. E a última coisa que
eu desejo, Marco Semprónio, e por isso deixo que o Império se
governe, é ser imperador de mim mesmo.
- Nunca deixaste de governar o Império, César.
- Não, na verdade nunca deixei. Mas não consigo governá-
-lo senão longe dele. Eu cansei-me de traições, de perfídias, de
ambições, de lutas, das pompas imperiais, dos sacerdotes, da fa
mília, de tudo. No meio disso, eu não podia governar nem ser
quem sou. Assim, nesta ilha, que é como se fosse no fim do
mundo, eu sou para eles o Imperador, o imperador ideal, o impe
rador invisível, que os deixa fazer todo o mal que querem e todo
o bem que desejam, em meu nome, e cujos decretos sagrados às
vezes descem sobre eles como uma voz divina. Os meus decretos
são como a chuva de ouro que fecundou Dánae. E a lenda das
minhas crueldades e das minhas devassidões, aqui, ampliada pela
ignorância e pela fantasia de cada um, que tem os limites da nos
sa, mas não tem a minha liberdade para executá-las, só me torna,
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 393
III
era muito guloso. Faria filhoses como a mãe ... Parou de desabo
toar o corpete e pôs-se a pensar em qual seria o motivo que a im
pedira sempre de gostar da mãe. De gostar da mãe? Gostava dela,
decerto, mas . . . O pai, esse era um bêbedo, sempre lhe tivera me
do. Em pequena tremia como varas verdes quando ele entrava,
muito corado, e se punha a beijá-la e a choramingar. Ainda hoje
acontecia ele querer às vezes dar-lhe um beijo mas ela escapava-se
sempre ao horrível cheiro a vinho que ele deitava. O pai perse
guia-a, queria por força beijá-la na testa, passar-lhe pelos cabelos
a mão calosa. Emília fugia de lhe ver os olhos, punha-se de nariz
no chão para o não encarar. Os olhos dele faziam-lhe mal. Às ve
zes eram tristes, tristes, como os de um cão abandonado, tristes
e raiados de sangue. Era como se lhe pedissem um olhar, como se
lhe mendigassem um carinho. E Emília acabara por compreen
der que ele sabia que ela o desprezava e que, embora não pudesse
resistir àquele vício que lhe vinha de novo, precisava de não sentir
o desdém da filha. Emília encolheu os ombros. No fim de contas
era um bêbedo, ninguém o tomava a sério. Mas a mãe . . . Por que
seria que não gostava da mãe como deveria gostar? Seria por
nunca a ter visto reagir? Seria por causa daquela cor de cera,
daquelas mãos transparentes e húmidas, daquele olhar escuro e
cavado que parecia acusar todos, constantemente? «Só o que te
nho é medo que ele caia ao rio.» Parva, grande parva. Se fosse
com ela. . .
Os lençóis estavam frios e Emília puxou-os até à s orelhas
e soprou a luz. Os cães ladraram para o lado do portão e acaba
ram num ganir alegre. Uma voz peganhenta entoou em falsete:
do caso, tomava a sua parte sem que ninguém lho tivesse pedido.
Ficou, porém, hirta e sem se mover. Havia muitos anos que não
beijava a mãe. A própria Dores estranharia se ela o fizesse. Não
era dessas coisas. Pieguices, costumava dizer . . .
- Tens d e ir vestir qualquer coisa - disse Dores. - Vamos
ao casão.
- Agora?
A mãe olhou-a sem piedade.
- Olieres talvez esperar pela manhã! Não sei se te lembras
que vem o Bento consertar a rede do galinheiro. Temos de ir já
e trabalhar bem depressa para ficar tudo pronto antes do nascer
do Sol.
Tiveram primeiro de mudar a vaca, depois de tirar a cama de
palha que forrava o chão. Cavaram durante duas horas, até fica
rem completamente exaustas. Emília estava ansiosa por que tudo
aquilo acabasse, mas ia trabalhando com lentidão porque pensava
com horror no momento em que seria preciso ir buscá-lo, em que
teria de lhe pegar.
Oliando esse momento chegou, esteve quase a perder os sen
tidos. Dores chegou-se então a ela e deu-lhe uma bofetada.
- Tem os de acabar com isto - disse com dureza. - De
pois podes desmaiar à tua vontade.
Emília, que era mais forte, pegou então no morto pelas axilas
e a mãe pelo pés. Assim o arrastaram até ao casão. Um boneco de
palha. Atiraram-no para dentro da cova e sempre sem uma pala
vra, puseram-se a bater-lhe a terra por cima. Era quase manhã
quando cobriram tudo com palha e trouxeram novamente a vaca.
Voltaram então para casa mas deitaram-se juntas, muito abraça
das uma à outra, e de olhos bem abertos.
Às oito horas chegou o Bento, e Dores disse-lhe que estava
muito aflita, que o marido não viera dormir a casa e que ia à al
deia saber o que se passava. Embrulhou-se no xaile e partiu.
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 413
* * *
Este conto (se o é) tem a sua origem em duas crónicas, «Um Natal
Há Cem Anos» e <<A Neve Preta», publicadas no jornal A Capital no
final dos anos 60 e que hoje podem ser lidas mais comodamente no vo
lume Deste Mundo e do Outro. Ajunção delas (que de certa ma
neira é também fusão) aconteceu em 1995 e teve como destino uma
revista espanhola entretanto desaparecida. Relidas hoje, novamente
refeitas, estas velhas crónicas perguntam se o muro branco ainda lá
está e se ainda há quem tenha de continuar a pintar a neve com tinta
preta. Por mim, acho que sim. Quem dera que sejam muitos os que te
nham razões para pensar que não.
A samarra
Já não se usava, de acordo, mas, uma vez por outra, ainda lhe
ficava tão bem! E era tão quentinha, toda almofadada, à maneira
das canadianas! Sim, uma vez por outra, para um passeio matuti
no, quando o rei faz anos, para as vagas de frio, em Janeiro, para
a Serra da Estrela, quem sabe?!, ou para quando levasse o Qiim
aos jogos internacionais, no Estádio, por uma questão de patrio
tismo . . .
O gafeiroso ressonava, sobre a fadiga do bairro espostejado.
O sono que dessedenta, que mata a fome. E foi por aí que o dou
tor lhe pegou. Caminhando para o carro, levava a samarra pen
durada dos dedos, samarra não, manta de arminho, e nos olhos
a unção de quem tivesse visto, sob as estrelas geladas, a cidade
de joelhos perante Deus.
- Viram como ele dorme, como está sonhando?
- Não, paizinho.
- Pois até dá gosto, meninos - e, após uma pausa de bom
orador, acomodando-se no assento, ganhando tempo a soltar
o travão de mão, a verificar as luzes, a escutar o ralenti, declarou:
- Tinha um ar de profunda paz, tão tranquilo, tão feliz, que não
fui capaz de o acordar. Pus-me a pensar que talvez ele estivesse
sonhando, sabe-se lá, com o presépio, com o Menino Jesus. Qyal
das vidas é que é a verdadeira: a das nossas agruras diárias ou
aquela em que nós somos tudo aquilo que a existência real nunca
pode dar-nos . . . e às vezes muito mais até do que se possa ima
ginar? . . .
«Fala como u m livro, o meu Adolfo, benza-o Deus», consi
derou enternecidamente dona Leonor, que, apesar de já ter fes
tejado vinte anos de sacrifícios hebdomadários segundo a mais
estrita e natural natureza e até de arrotos nocturnos compartilha
dos, resistira a tudo e ainda nele admirava, com o antigo embeve
cimento, aquela arte jaculatória, bem como o talento honrado de
ganhar dinheiro.
434 V A S C O GRAÇA MOURA
toda nua e toda de oiro. Fora ela quem lhe dera filhos. Estéril
durante sete anos, a senhora Tung recorrera à sua intercessão di
vina quando o marido já se preparava para receber nova esposa.
Não podia portanto deixar de a amar. Toda a felicidade lhe pro
vinha daí, dessa afortunada hora em que a deusa a escutara.
Parava a meio do largo átrio enluarado, de olhar meditabun
do, mãos cruzadas no colo. E as palavras saíam-lhe lentas e sol
tas, como se falasse sozinha .
. . . E aquele mistério da virgindade de Nossa Senhora! Vir
gem e mãe ao mesmo tempo . . . Não se lia no Génesis: «Ü ho
mem deixará o pai e a mãe para se unir a sua mulher e os dois se
rão uma só carne?» Não era essa a lei do Senhor? Porquê então
a Mãe de Cristo diferente das outras, num mundo de homens e
de mulheres onde o Filho havia de vir pregar o amor? A Deusa da
Fecundidade, patrona dos lares, operava milagres, sim, mas racio
nalmente, atraindo a vontade do homem à da sua companheira
e exaltando essa atracção. Como o Céu alagando a Terra na esta
ção própria.
Retomávamos a marcha em direcção aos nossos aposentos.
Difícil para mim responder às dúvidas da senhora Tung, nem ela
parecia esperar resposta. Mudava, rápida, de assunto, aludindo ao
tempo, à viagem de regresso, às saborosas guloseimas da criada
macaísta.
Já em casa, convidava-me a ir ver o seu presépio. O quarto
cheirava fortemente a incenso. Em cima da cómoda, entre flores,
lá estava o Menino Jesus, de cabaia de seda encarnada, sapatinhos
de veludo preto, feições chinesas.
Depois, timidamente, a senhora Tung abria a gaveta . . . e sur
gia a deusa.
O Menino Jesus era de marfim. A Deusa da Fecundidade era
de oiro. O Menino, de pé, de um palmo de altura, trajando rica
mente. A deusa, sentada, pequenina, nua.
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 44 1
Duas irmãs e o filho de uma delas que já tem dewito anos. Sim
todos no mesmo quarto que é muito barato por ser muito peque
no. Nunca pensei: preparei-o para alguma menina estudante.
Mas eles insistiram tanto. As duas senhoras são enormes parecem
dois elefantes coitadinhas, mal cabem nos divãs. Arranjou-se um
terceiro divã para o rapaz e à noite correm uma cortina esticada
num fio de plástico deste onde se estende a roupa. Imagine, uma
área de três por dois metros. É lá com eles não posso tornar o
quarto maior. Elas estão empregadas, o rapaz dentro de um ano
vai para a tropa e ficam só as duas. É por isso. Agora a senhora.
Sente-se um instante nessa cadeira. Foi a hóspede anterior que
lhe fez a almofada. Descanse um pouco, depois de subir três an
dares nesse estado. Ai meu Deus que a colcha tem um buraco no
crochet. Oxalá ela não tenha reparado. E ali ao canto uma teia
junto da racha do tecto. Como é que eu não vi. Há coisas na nos
sa casa pelas quais só damos quando estamos a olhar ao mesmo
tempo que uma pessoa de fora, porque será? Veja que a cama é
larga destas de ferro como se usam agora. O tapete novo . . . o ar
mário . . . As paredes brancas dão um ar de frescura, não dão?
A cómoda, o espelho antigo que era da mãezinha, parece-me que
não falta nada. Não, para ser franca essa pequena árvore de Natal
não fui eu quem a pôs sobre a mesa de cabeceira. Foi a hóspede
que saiu há oito dias, a dona Miriam. Ficou cá um ano. A essas
pessoas costuma chamar-se desgraçadas mas eu tive ocasião de a
conhecer e de a achar apenas infeliz. Mas infelizes não somos nós
todos? Ela estava separada do marido e vivia com um homem
doentíssimo - não se assuste era só do fígado parece que uma
cirrose. Ela devia ter tido dias melhores. Via-se pelas blusas, pela
quantidade de carteiras, pelos sapatos. Agora trabalhava de costu
ra, à máquina, que alugava ao mês. O homem ali deitado na
cama e ela aí, a dar-lhe que dar-lhe, empilhava roupas interiores,
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 445
camisinhas de opale que levava à loja. Tinha uma filha que a Tu
toria entregou à guarda do pai - ela não o escondia, lá isso.
O pai fez chicana para ficar com a filha, e conseguiu. As nossas
leis são sempre pelos homens, já se sabe. As leis, e sobretudo os
outros homens. Mas a verdade é que um homem tem a sua vida
e ele acabou por entregá-la à irmã. Qyer dizer a menina não vivia
com o pai nem com a mãe, a quem só valha ver uma vez por mês.
Trazia-a a tia, e sempre muito arranjadinha, lá isso. A menina ia
já nos doze anos. Tinha umas tranças louras espessas espalmadas,
veneradas pela mãe. Não se parecia com ela. A dona Miriam era
morena de olhos verdes, com duas olheiras fundas, roxas, a carre
gar-lhe o olhar triste, trágico. Bela mulher, de formas redondas e
gestos bruscos. Um temperamento violento, apaixonado. Um de
dicação pelo marido. Digo por este marido, pelo companheiro.
Qyando a menina chegava a dona Miriam beijava-a como nunca
vi ninguém beijar. Sentia-se a saudade física, nesses beijos sono
ros e vorazes. A fome de lhe tocar nos cabelos, na cara, nas mãos.
Ficava a olhá-la como se a sorvesse. A menina era tímida e sere
na, balançava os braços e inclinava a cabeça com aquele ar de
samparado das rapariguinhas órfãs. Mas não era órfã de mãe,
longe disso. A mãe, uma leoa, com aquelas guedelhas escuras en
crespadas que pareciam eriçar-se quando me contava a luta que
travara para não perder a filha, e a que pensava recomeçar para
alcançar visitas semanais. Mais tarde compreenderá muita coisa,
dizia. E é impossível que não saiba como eu a amo, e como foi
por sua causa que aguentei tudo aquilo, dizia também. E crava
vam-se-lhe mais as olheiras e os olhos faiscavam, e os cabelos le
vantavam-se-lhe, tenho a certeza de os ver levantar como um
leque de arame farpado. O homem ultimamente melhorara mas
começara ela a enfraquecer, a definhar, sem nenhum deles se dar
conta. Eu já vi adoecer e morrer muita gente, e não gostava da
quela palidez e das pálpebras de súbito transparentes ao mesmo
446 VASCO GRAÇA MOURA
* * *
* * *
- Está fino.
- O arroz é que mata tudo. Olie diz, mestre?
- De facto é uma pena não haver arroz. Liga melhor com
o frango. Mas as batatas não estão más.
- Pois sim, mas arroz é outra coisa.
- Arroz solto . . .
- Isso! Saltinho, com ervilhas . . .
Alguém subia a s escadas. Era a patroa. O amigo Fonseca
consultou o relógio.
- São nove horas e dez minutos, minha senhora - disse,
friamente.
- Olie tem para a sobremesa?
- Há rabanadas, aletria, bolo-rei. . . Serve?
O amigo Fonseca:
- Olie diz, mestre?
- Não tem mais nada, minha senhora?
A patroa:
- Há bananas e tangerinas. Serve?
- Serve.
A patroa para o amigo Fonseca:
- E o senhor?
- Traga bananas e tangerinas.
Eu estava desconfiado de que no coração do amigo Fonseca
havia epitáfios . . .
Comidas a s bananas e a s tangerinas, pagámos à patroa, visto
serem nove e meia. E eis-nos de novo a errar por artérias deser
tas, bafejando, sob túneis de luz. Ouvíamos música de sinos e ou
víamos música de talheres. Das casas saíam cânticos natalícios
entoados por crianças. Estrelas ardiam no negrume.
- O frango estava bom - disse o amigo Fonseca, acenden
do um cigarro. - Olie diz, mestre?
462 VA S C O GRAÇA MOURA
- Estava.
- Só foi pena o arroz. As batatas estavam fofas, mas arroz
sempre é outra coisa. Mesmo assim, sinto-me como um cardeal.
Qye diz, mestre?
- Também eu.
Não obstante, recomeçava a sentir-me cão. Desconfio que o
amigo Fonseca recomeçava também a sentir-se cão - aquele ar
abatido . . . aquele nariz pousado na gola da gabardina . . . aqueles
óculos baixados para o passeio húmido, ignorando as montras . . .
A dada altura arrotou, o que parece tê-lo embaraçado deveras.
- É a alma do frango a subir ao Paraíso - esclareci, sorrin-
do. Ele sorriu também.
- Acredita, mestre, que os animais tenham alma?
- São mais dignos dela do que nós.
- Acha?
- Acho.
- Eu também acho.
Lado a lado, lá íamos, cada vez mais cães, por artérias deser
tas, bafejando, sob túneis de luz. Eu pensava em sapatinhos. Em
que pensaria o amigo Fonseca? Talvez pensasse em sapatinhos . . .
- Está frio, mestre. Qy e diz?
- Está.
- E se fôssemos para casa?
- Ia propor isso mesmo.
- Os meus dormem pegado.
- Também os meus.
- Não ligam nenhuma a festas.
- Os meus também não.
- De resto, não é justo que andemos a vadiar na noite de
Consoada, uma noite tão santa, a noite da família . . . Qye diz,
mestre?
As MAIS BELAS HISTÓRIAS PORTUGUESAS DE NATAL 463
- Aprovo.
Deixei-o dobrar uma esquina. E, enfiando as mãos nos bol
sos do capote, friorento, bafejante, cada vez mais cão, tomei len
tamente o rumo do cemitério.
Qrando cheguei o amigo Fonseca já lá estava.
A noite em que prenderam o Pai Natal
José Eduardo Agua/usa
resultou. 01ianto mais rãs matava, mais rãs apareciam, rãs felizes,
enormes, que nas noites de Lua cheia cantavam até de madruga
da, abafando o eco dos tiros, ao longe, e o latido dos cães.
Uma espécie de cansaço desceu por sobre as casas e a cidade
começou a morrer. África - vamos chamar-lhe assim - voltou
a apoderar-se do que fora seu. Abriram-se cacimbas nos quintais.
Acenderam-se fogueiras nos jardins. O capim rompeu o asfalto,
invadiu os passeios, os muros, os pátios. Mulheres pilavam milho
nos salões. Os frigoríficos passaram a servir para guardar sapatos.
Pianos deram excelentes coelheiras. Gerações de cabras cresce
ram a comer bibliotecas, cabras eruditas, especializadas em litera
tura francesa, umas, outras em finanças ou arquitectura. Pascoal
esvaziou a piscina, limpou-a, juntou todo o dinheiro que tinha
e comprou galinhas. Pediu desculpa à piscina:
- Amiga - disse-lhe -, é só por alguns meses. Vou vender
ovos, vendo os pintos e compro água boa, compro cloro, vais vol
tar a ser bonita como antigamente.
Os tempos que se seguiram, porém, foram ainda piores. Uma
tarde apareceram soldados e levaram as galinhas. Pascoal não dis
se nada. Devia, talvez, ter dito alguma coisa.
- Esse albino está armado em arrogante - irritou-se um
soldado. - Deve pensar que é branco, vejam só, um branco de
imitação.
Bateram-lhe. Deixaram-no como morto dentro da piscina.
Meses depois, vieram outros soldados. Tinham-lhes dito que ali
havia um albino que criava galinhas, e como não encontraram
nenhuma, é claro, bateram-lhe também.
A guerra regressou com muita raiva. Aviões bombardearam
a cidade, o que restava dela, durante cinquenta e cinco dias. Ao
trigésimo sexto, uma das bombas destruiu a piscina. Durante
semanas, andou Pascoal à deriva por entre os escombros.
468 VASCO GRAÇA MOURA