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BRASILEIRA
AULA 1
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viajantes europeus que lançaram seu olhar sobre esses povos. De maneira
semelhante, confirma a existência de cantos polifônicos distintos da nossa
compreensão convencional de polifonia, talvez efetivados em repetições de
motivos que, ao serem defasados a partir da recorrência, gerem uma teia sonora
complexa ao ouvido ocidental.
Barros (2006, p. 160) nos chama a atenção para essa escuta ocidental
que elimina a diferença em relação aos sons, e para tanto, usa o exemplo da
afinação. De acordo com o autor, as “hesitações sonoras” em torno de uma dada
frequência entoada pelo indígena são, de maneira recorrente, encaradas pelo
teórico ocidental como a incapacidade de atingir o som afinado. Ignorar a riqueza
timbrística dessas relações é continuar encarando a música indígena, bem com
a de outros povos, sob o epíteto de “primitiva”, o olhar do dominador sobre o
dominado.
A prática coletiva tem lugar no ambiente cultural indígena: homens,
mulheres e crianças participam da construção musical. A integração com a
dança e com o ritual se mostra presente nesse contexto cultural, seja com
finalidade de dramatização mítica, seja para enriquecer as práticas festivas
coletivas. De maneira semelhante, o canto individual tem seu lugar assegurado
nesse cenário, entoado como fio condutor mítico de encantamentos para curar
doenças ou para reivindicar chuva, ou mesmo para trazer benefício a toda
comunidade, por meio de um registro musical que se abre para a memória
coletiva da tribo. Trata-se de práticas nas quais homem e natureza estão
integrados de um modo intrínseco, modo este que o ocidente europeu letrado
não conseguiu captar nos relatos e nas transcrições melódicas.
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Em 1938, Mário de Andrade conseguiu recursos junto ao Departamento
de Cultura para a então chamada Missão de Pesquisas Folclóricas, sendo o
grupo formado por Luís Saia, Martin Braunwieser, Benedicto Pacheco e Antônio
Ladeira, além do próprio Mário. A caravana partiu em fevereiro de 1938 em
direção ao Ceará, Pernambuco, Paraíba, Piauí, Maranhão e Pará (Sinopse CD
Mário de Andrade – Missão de Pesquisas Folclóricas, 2006). A viagem é uma
resposta oficial às pesquisas iniciadas pelo musicólogo ainda na década de
1920, quando percebeu o potencial das manifestações culturais existentes em
solo brasileiro.
De acordo com o autor (1987, p. 54), o aboio seria uma espécie de canto
melancólico com que os sertanejos do Nordeste dão cabo à marcha das boiadas,
que, prioritariamente, tem como norte uma vocalização oscilante entre as vogais
A e Ô. Daí, talvez, residam as considerações acerca da relação e influência de
uma certa tradição judaica nas práticas musicais posteriores, em especial no que
toca ao contexto vocal. As inflexões tradicionais dos cantos sinagogais, as
sustentações vocais, as “hesitações” entre alturas (intervalos menores que o
semitom) e a manutenção de vogais por longos períodos de tempo são
elementos perceptíveis em práticas tais como a do aboio nordestino, que
mantém certas características comuns mesmo nas escalas tradicionalmente
utilizadas na confecção da música popular do sNordeste.
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no toque dos violeiros da época (Budasz, 2004, p. 7). Em uma visão geral, seria
possível indicar que, ainda hoje, a obra do poeta músico causaria certo escárnio
pela acidez de suas críticas acerca dos estereótipos e problemas sociais
vivenciados no Brasil em Portugal. Essa postura lhe rendeu o apelido de “boca
do inferno”.
De maneira viva, a partir de seus textos permeados de ironia e sarcasmo,
projetam-se centenas de situações e episódios da vida da cidade de Salvador e
de outros centros urbano rurais do Recôncavo baiano (Tinhorão, 1998, p. 55). O
autor não apenas continuava a tradição dos “trovadores” do século XVI, que
cultivavam romances sob o acompanhamento da viola, mas também tratava dos
textos poéticos de seu tempo, quadras e estribilhos de cantigas populares.
Dentre as modalidades predominantes, ao lado de glosas e cantigas,
coplas e cançonetas, os romances lhe davam a oportunidade de contar os fatos
engraçados e demais acontecimentos variados da sociedade local, sempre
acompanhado da viola. No entender de Tinhorão (1998, p. 57), a quantidade
exorbitante de poesia musicada sob acompanhamento instrumental é o
indicativo primordial para compreendermos que a obra de Gregório de Matos
deveria ser estuda quase toda não como obra poética, mas como versos de
música popular urbana.
Voltando à questão das fontes para a pesquisa musicológica em música
brasileira, é possível dizer que a obra de Gregório de Matos é uma rica fonte de
informações sobre a música que era ouvida nas ruas e demais centros urbanos
do século XVI. De maneira detalhada, esse autor comenta e critica funções
musicais e teatrais, além de mencionar instrumentistas e cantores, citar nomes
de peças instrumentais e descrever coreografias (ritmos de dança) (Budasz,
2004, p. 7). Como mencionado, tocava viola e descrevia precisamente tanto a
música das elites quanto a produzida nas festas populares e bordéis. Poderia
ser considerado um dos primeiros críticos musicais do Brasil, portanto (Budasz,
2004).
A viola, instrumento prioritário no acompanhamento dos romances de
Gregório de Matos, era popular em função da versatilidade. Possuía variações
na sua estruturação, incluindo a vihuela (versão espanhola) de seis ordens de
cordas, posteriormente cinco ordens de cordas, conhecida como viola barroca
(que mais tarde originaria a viola caipira brasileira e diversas variantes de violas
portuguesas, além da guitarra espanhola, ou violão). A instrução musical era
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realidade no Brasil; a instrução em música era ambicionada pelas famílias
abastadas no Brasil colônia e geralmente realizada à viola. Entretanto, vale
salientar que o objetivo não era formar um profissional em música, mas garantir
os “elementos de civilidade” inerentes à formação cultural dos indivíduos de
famílias mais ricas (Budasz, 2004, p. 9).
Em um exemplo claro dessa descrição pormenorizada dos costumes,
música e danças de seu tempo, podemos destacar o tom informativo desta
cançoneta de Gregório de Matos: “que bem bailam as mulatas. Que bem bailam
o Paturi. Não usam de castanhetas. Porque cos dedos gentis. Fazem tal
estropeada. Que de ouvi-las me estrugi” (Tinhorão, 1998, p. 71). Aqui, Gregório
de Matos indica que, naquela época de 1680-1690, já se dançava estalando os
dedos (com os dedos gentis fazem tal estropeada), característica do fandango
ibérico, além de apresentar a existência, em outro poema, da dança de
umbigadas presentes em festividades de Salvador (levou tantas embigadas), o
que pode confirmar a existência, naquele tempo, de dois elementos que,
posteriormente, caracterizariam o lundu no século XVIII (Tinhorão, 1998).
Nesse período, no Brasil, havia uma certa tolerância às práticas musicais
relacionadas aos cultos afro-brasileiros, uma regra mais ou menos generalizada
no Brasil colonial. Havia a permissão a certas danças e divertimentos em
situações monitoradas para evitar o que os senhores de terra entendiam ser um
mal maior. Os versos de Gregório indicam essa realidade, a busca dos baianos
e diversas camadas sociais por alguma sorte no amor ou mesmo diversão. “Não
há mulher desprezada, galã desfavorecido, que deixe de ir ao quilombo, dançar
o seu bocadinho” (Budasz, 2004, p. 13).
Torna-se evidente, portanto, esse cenário de narrativa poético-musical
visualizado em Gregório de Matos e seu respectivo potencial para a musicologia.
Sob esse olhar de poeta compositor, o autor oferece indicações precisas de que
o processo gradual de urbanização da capital da colônia começava a criar
condições para o surgimento desses artistas criadores (Tinhorão, 1998, p. 58),
bem como o cenário cultural existente, envolvendo as festividades coletivas, as
danças e coreografias praticadas nesses eventos, os instrumentos e os
musicistas do período, bem como as distinções marcantes entre os estratos
sociais existentes.
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TEMA 4 – MÚSICA SACRA EM MINAS GERAIS NO SÉCULO XVIII
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Irmandades e Ordens Terceiras em grandes entidades responsáveis pelo
estímulo à cultura e arte. Estas eram responsáveis pela contratação de grupos
musicais para suas festividades e eventos oficiais (missas), geralmente
formados por um coro com quatro a cinco integrantes, sendo três homens e uma
ou duas crianças para a voz aguda soprano, assim como membros para
execução do contínuo ou ainda uma orquestra, caracterizada geralmente por um
par de violinos e um baixo no naipe de cordas, um par de trompas e pares de
flautas e/ou oboés (Castagna, [S.d.], p. 4-10).
Esse fenômeno da emergência e competitividade entre as Irmandades irá
compelir os compositores a um contínuo estado de atualização em relação às
práticas composicionais vigentes na Europa. Dois fenômenos importantes são
verificáveis nesse cenário competitivo entre instituições: a proliferação de
músicos compositores entre os mulatos, circunscritos às classes sociais
intermediárias do Brasil colônia, e a necessidade de domínio, por parte dos
compositores, de mais de um estilo composicional (pré-clássico – originário da
Itália e amplamente difundido em Portugal) (Castagna, [S.d.], p. 6).
A partir do inicial trabalho de Curt Lange com as fontes de música mineira,
vários compositores daquele contexto acabaram sendo revelados. Dentre eles,
é possível destacar os trabalhos de José Joaquim Emerico Lobo de Mequita
(1746 -1805), Marcos Coelho Neto (1763-1823), Ignácio Parreira Neves (1736-
1794) e Francisco Gomes da Rocha (1745-1808). Estes e outros compositores,
conforme apresentado anteriormente, tinham por necessidade da profissão o
aprendizado das técnicas composicionais oriundas de polos europeus, e nesse
sentido, é importante indicar a existência nos acervos das Irmandades do
período de cópias de obras de compositores renomados europeus, em um
momento de difícil acesso a partituras. Esse compêndio de obras musicais da
Europa em Minas Gerais ilustra a didática do compositor para o aprendizado de
estilos composicionais sofisticados, ampliando, assim, seu leque de
possibilidades e, consequentemente, atraindo mais a atenção das Irmandades.
Neves (2000) indica que, a partir de 1750, a coroa portuguesa passou a
proibir a importação de obras de fora da colônia, o que acabou por incentivar a
atividade de compositores em Minas. Com a imposição do afastamento das
tendências de composição europeias, os compositores mineiros passaram a
escrever com maior liberdade, desenvolvendo, gradativamente, um estilo próprio
adaptado ao contexto religioso, então conhecido como não observâncias. Esses
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gêneros de composição seriam absorvidos pelas práticas no advento do século
XIX, com uma cada vez maior circulação de obras musicais no contexto brasileiro
dissociado do poderio da Igreja.
O trabalho de Curt Lane foi essencial para a ampliação de novos atores
musicais, até então pouco conhecidos, compositores oriundos do Século do
Ouro em Minas Gerais. Entretanto, seria a partir da década de 1960 que haveria
um cuidado maior com a interpretação histórica da música colonial, ampliando
as edições de manuscritos e, posteriormente, o surgimento de novos festivais de
Música Antiga e de grupos que interpretam Música Colonial da América Latina,
potencializando novas discussões e pesquisas acerca da música produzida no
contexto sacro mineiro do século XVIII.
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populares. A modinha marcaria um tipo de canção capaz de atender às
expectativas de homens e mulheres (antes circunscritas às práticas eruditas de
serenatas compostas a várias vozes), na perspectiva nova à época de
aproximação maior entre os gêneros, uma marca da sociedade moderna
definitivamente urbanizada (Tinhorão, 1998, p. 116).
A emancipação da modinha está associada a um fenômeno generalizado
na Europa característico da segunda metade do século XVIII, entendido a partir
da progressiva ascensão burguesa e da respectiva mudança de hábitos da
nobreza. Seria este um cenário que impulsionaria uma nova prática musical, seja
doméstica ou de salão, voltada a um entretenimento mais leve e menos erudito
que aquela oportunizada pela ópera e pela música religiosa (Castagna, [S.d.], p.
1). A modinha se traduz em um tipo de música doméstica urbana, praticada em
festas ou momentos de lazer, de fácil execução técnica e de restrito apelo
intelectual.
Em Portugal, a evolução da moda receberia importante contribuição de
um brasileiro, o mulato tocador de viola Domingos Caldas Barbosa (1740-1800).
De acordo com Tinhorão (1998, p. 115), essa personagem marcaria a criação do
primeiro gênero de canto brasileiro dirigido especialmente ao gosto da gente das
novas camadas médias das cidades. Conforme indicado, a inovação do gênero
residia, no campo da criação poético-textual, na então ousada novidade de
versejar para as mulheres, partindo de lânguidos compassos quebrados, com
temáticas que traduziam as imprudências e liberdades do amor (Tinhorão, 1998,
p. 116).
Caldas Barbosa residiu em Portugal a partir de 1770 e introduziu, nos
salões de Lisboa, esse gênero particular de canção, que ficou conhecido como
a moda brasileira. Nesse cenário, alcançou considerável status social no Reino
ao receber ordens menores, tornando-se conhecido na corte, tomando parte na
nova Arcádia de Lisboa sob o pseudônimo de “Lereno Selinuntino” (Castagna,
[S.d.], p. 2). A partir de 1775, passou a se dedicar ao novo estilo poético
reconhecido da modinha brasileira (modinha seria a denominação dada pelo
próprio Caldas Barbosa), tendo, em 1798, seus textos poéticos publicados no
compêndio intitulado Viola de Lereno, com um segundo volume lançado após
sua morte, em 1826.
As narrativas de época demarcam a relevância desse gênero entre as
camadas sociais e, do mesmo modo, os defensores e críticos desse novo tipo
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de canção poética, quando verificamos que “cantada a vulgar modinha, que é a
dominante agora, sai a moça da cozinha, e diante da senhora vem desdobrar a
banquinha”. A principal característica que marcaria as modas brasileiras
comparativamente àquelas produzidas em Portugal, de acordo com os relatos
da época, residia na temática sobre assuntos amorosos, abordados com ousadia
e permissividade, mas no que toca ao aspecto melódico, pouco diferiam das
modas em uso, permanecendo vinculadas às melodias derivadas de árias e
duetos operísticos (Castagna, [S.d.], p. 4).
Em resumo, poderíamos indicar a modinha de fins do século XVIII (e que
marcadamente seria imperativa no século seguinte) como um tipo de canção de
salão a uma voz com acompanhamento de piano, decisivamente cunhada pela
cultura da burguesia. “A linha melódica do canto torna-se mais diferenciada
melódica e ritmicamente e leva pela sua constante alteração de tempos fortes a
uma característica oscilação de acentos” (Castagna, [S.d.], p. 7). Os textos
literários permeados de sentimentalismo e lamúrias de amor são mantidos e
encontram sua representação musical na construção melódica, considerada
doce e sentimental. A partir do uso frequente dos contrastes maior-menor, a
linguagem musical ganha em contornos representativos, e quanto à temática, é
a personagem do homem que quase sempre se dirige à mulher por quem estaria
interessado.
NA PRÁTICA
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As variações melódicas – perceba a similaridade entre a organização das
melodias, o repouso em certas notas, a sustentação em notas específicas
antes do retorno à nota inicial.
As “hesitações” melódicas – verifique que, muitas vezes, os cantores
parecem cantar “desafinado”, mas novamente, lembre-se que essa
questão está muito mais relacionada com nosso ouvido ocidental, uma
escuta que seleciona sons e organizações musicais reconhecíveis,
excluindo tudo o que não nos é familiar. Aqui, os quartos de tom (ou
comas), intervalos ainda menores que o semitom, são uma realidade
recorrente e um elemento amplamente utilizado.
Canto solo – aqui, a ideia é a utilização da voz como elemento prioritário,
já que a voz era considerada, na antiguidade, o único instrumento real a
ser utilizado nos cultos. Do mesmo modo, ele é o responsável por carregar
o texto, potencializando ainda mais sua relevância nesse cenário.
FINALIZANDO
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seguiria. Contemporânea a essa realidade, analisamos a atuação de Gregório
de Matos no processo de criação musical na Bahia do século XVII, verificando a
importância da viola como instrumento regulador das práticas musicais, a
relação entre o texto e a música e, mais que a poesia, pudemos notar a
relevância dessa personagem no que tange à indicação de instrumentos,
práticas instrumentais, musicistas e potencialidades para o campo da
musicologia, um verdadeiro narrador do seu tempo.
Ao analisarmos o século XVIII, verificamos a essencial contribuição da
música mineira na construção do ideário das práticas musicais vinculadas ao
contexto da Igreja Católica, principal mecenas na Europa durante basicamente
toda história, indubitavelmente até o século XVIII. Procuramos entender como se
deu a constituição de um cenário propício para a ampliação da demanda por
musicistas e compositores e, do mesmo modo, como essa conjuntura criou uma
atmosfera propícia à emancipação desses compositores em relação ao que era
produzido nos polos europeus. Por fim, na transição do século XVIII ao XIX,
conhecemos a modinha como um gênero abraçado pela emergente burguesia,
que buscava um tipo de produto musical mais leve, menos intelectualizado que
a representasse, analisando sua função na sociedade, bem como seus principais
representantes.
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REFERÊNCIAS
CERNICCHIARO, V. Storia dela musica nell brasile: Dai tempi coliniali sino ao
nostri giorni (1549-1925). Milano: Stab. Tip. Edit. Fratelli Riccioni, 1926.
GALLET, L. Estudos de Folclore. Rio de Janeiro, Carlos Wehrs & Cia., 1934.
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NEVES, J. M. (Org.) Música Sacra Mineira: biografias, estudos e partituras. 2.
ed. Rio de Janeiro: Funarte. 2000.
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