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HISTÓRIA DA MÚSICA

BRASILEIRA
AULA 1

Prof. Alan Rafael de Medeiros


CONVERSA INICIAL

Caro aluno, nesta aula, verificaremos algumas das principais


manifestações musicais presentes no Brasil durante o período da colonização,
analisando parte das práticas existentes entre os indígenas. Do mesmo modo,
buscaremos compreender o uso da música no projeto de catequização jesuítica,
prática que permeou a interação destes com os povos aqui estabelecidos. Em
adição a esse cenário, é de extrema importância analisarmos o que ocorreu em
outros polos relevantes e suas respectivas práticas musicais (Pernambuco e
Minas Gerais), assim como figuras representativas no processo de produção
artística, como foi o caso de Gregório de Matos.

TEMA 1 – TUPINAMBÁS, JESUÍTAS E CATEQUIZAÇÃO

Neste tema, procuraremos compreender a relação entre as práticas


culturais dos povos indígenas aqui estabelecidos a partir da chegada dos
portugueses. Como sabemos, trata-se de um período extremamente importante
no que diz respeito às trocas culturais, apropriações e ressignificações do que
convencionaríamos, posteriormente, como parte integrante das nossas práticas
musicais.

1.1 Sobre a questão da recriação das práticas musicais do passado

Quando pensamos na prática musical de obras de um contexto distante


do nosso, lembremos que existem inúmeros fatores que problematizam uma
consistente abordagem desse cenário: a recriação sonora em si, ou seja, como
os instrumentos soavam, como se dava a organologia desses instrumentos
(maneira como eram construídos, afinados, executados) em um contexto no qual
a própria notação musical era diversa daquela com que temos contato. Quando
estudamos esse campo embrionário do Brasil, situado essencialmente no
período pós-descobrimento até basicamente algumas das práticas do século
XVII, essa realidade se mostra evidente.
É importante ter em mente que as manifestações culturais do passado
eram transmitidas oralmente, em sua maioria, sobretudo as de apelo popular. De
acordo com Ribeiro (1995, p. 263), a cultura popular era unificada por um corpo
comum de compreensões, valores e tradições tipificado no folclore, nas crenças,
caracterizada essencialmente no saber de transmissão oral. Dessa premissa, a
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oralidade e todo o bojo de manifestações a ela inerente foi sendo paulatinamente
substituída (e desvalorizada) pela tradição escrita entre os colonizadores,
detentores de novos modelos culturais valorizados no Ocidente.
Para suprir parte dessa carência, os pesquisadores da área de
Musicologia, naturalmente também musicistas, baseiam suas abordagens em
tratados teóricos da música ocidental, já que boa parte dos produtores de música
que aqui se estabeleceram eram viajantes europeus e, portanto, partilhavam
desse conhecimento. Com base nesses tratados, uma série de elementos
podem ser vislumbrados, tais como a maneira como os instrumentos eram
construídos, afinados e executados.
Outra fonte rica para a produção musical desse contexto reside nos
relatos de viajantes. Kieffer (2001) aproveitou algumas das transcrições
melódicas de um viajante francês em uma tribo tupinambá no intuito de recriar
um cenário musical possível de algumas manifestações existentes entre os
indígenas do Brasil no século XVI. Como exemplo da relevância de transcrições
musicais para verificar a recorrência/substituição de determinadas práticas, Spix
e Martius confirmariam, no século XIX, a recorrência daquelas linhas melódicas
transcritas pelo viajante francês do século XVI entre os indígenas por eles
observados, indicando, em certa medida, a permanência de práticas musicais ao
longo daqueles séculos.

1.2 A música indígena frente aos jesuítas: entre a apropriação e a


ressignificação

Sabemos, de antemão, do poder da música no processo de catequização


dos povos indígenas durante a expansão da colonização portuguesa em terras
brasileiras, resultando em um projeto de produção musical que foi sendo inserido
no contexto cultural daquela época. Ferramenta tradicionalmente utilizada pelos
jesuítas nesse processo consistia na adaptação de melodias, sejam elas
populares do cenário europeu, sejam as melodias dos próprios indígenas,
adaptadas ao texto sacro/religioso.
A obra poética do José de Anchieta é significativa nesse contexto,
justamente por fazer uso da tradição ibérica como fonte para a produção musical
jesuítica. Sobre esse tema, Budasz (1996) indica a existência de formas poético-
musicais relevantes, tais como a cantiga, a trova e o romance, no projeto de
construção de seu cancioneiro, amplamente difundido ao longo da consolidação
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jesuítica em colônias como o Brasil. De acordo com o autor, a característica
central residia na introdução de modificações específicas no texto original de
maneira a transformar o sentido profano em espiritual, optando por canções
populares de relativo sucesso para que o resultado fosse propagado de maneira
mais efetiva. Ainda nesse sentido, todo conteúdo musical lascivo ou diretamente
vinculado aos cultos nativos era prontamente ressignificado, visando
adequações viáveis aos interesses missionário dos jesuítas, inclusive na
adaptação das doutrinas, orações e hinos católicos no idioma tupi (Budasz,
2011, p. 16).
Esse projeto de catequização dos indígenas, novamente, conferiu à
música papel de destaque. Tanto que o próprio ensino musical tradicionalizado
ocidental passou a ser uma ferramenta importante no processo de “conversão”
dos índios brasileiros. De acordo com Castagna (1994, p. 1), a partir do
aprendizado, os índios passaram a ser capazes de reproduzir as manifestações
musicais básicas do culto cristão, os nheengaribas ou “músicos da terra”, como
seriam conhecidos entre os portugueses. Esse processo ia de encontro à
suplantação de práticas musicais essencialmente.
Em relação à música indígena, é importante ressaltar a necessidade de
uma relativização da nossa escuta ocidental, processo que Rosen (2000, p. 25)
chamaria de imaginação acústica. O autor quer alertar para os perigos de uma
escuta culturalmente orientada para momentos em que nossos ouvidos são
provados com práticas musicais destoantes de nossa realidade, transformando
o que poderia ser uma experiência estimulante e complementar, em um processo
deformador de contextos musicais.
O compositor Luciano Gallet, em seu compêndio Estudos de Folclore
(1934), a partir do qual se debruçou sobre práticas musicais indígenas tomando
como base fonogramas oriundos da Missão Rondon, fez uma série de
apontamentos que dão pistas sobre os elementos característicos dessa
realidade, elementos estes que, em conjunto, constituiriam um cenário de
produção musical indígena efetivo. Novamente, é importante levar em conta a
particularidade dessa construção sonora na cultura indígena para ser possível
compreendê-la.
Nas gravações, Gallet indicou ouvir intervalos menores que o semitom
(sabendo-se que o semitom é característico do Ocidente branco europeu),
referenciando os intervalos de quartos de tom, ignorados nas transcrições dos

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viajantes europeus que lançaram seu olhar sobre esses povos. De maneira
semelhante, confirma a existência de cantos polifônicos distintos da nossa
compreensão convencional de polifonia, talvez efetivados em repetições de
motivos que, ao serem defasados a partir da recorrência, gerem uma teia sonora
complexa ao ouvido ocidental.
Barros (2006, p. 160) nos chama a atenção para essa escuta ocidental
que elimina a diferença em relação aos sons, e para tanto, usa o exemplo da
afinação. De acordo com o autor, as “hesitações sonoras” em torno de uma dada
frequência entoada pelo indígena são, de maneira recorrente, encaradas pelo
teórico ocidental como a incapacidade de atingir o som afinado. Ignorar a riqueza
timbrística dessas relações é continuar encarando a música indígena, bem com
a de outros povos, sob o epíteto de “primitiva”, o olhar do dominador sobre o
dominado.
A prática coletiva tem lugar no ambiente cultural indígena: homens,
mulheres e crianças participam da construção musical. A integração com a
dança e com o ritual se mostra presente nesse contexto cultural, seja com
finalidade de dramatização mítica, seja para enriquecer as práticas festivas
coletivas. De maneira semelhante, o canto individual tem seu lugar assegurado
nesse cenário, entoado como fio condutor mítico de encantamentos para curar
doenças ou para reivindicar chuva, ou mesmo para trazer benefício a toda
comunidade, por meio de um registro musical que se abre para a memória
coletiva da tribo. Trata-se de práticas nas quais homem e natureza estão
integrados de um modo intrínseco, modo este que o ocidente europeu letrado
não conseguiu captar nos relatos e nas transcrições melódicas.

TEMA 2 – O RECIFE HOLANDÊS E VESTÍGIOS DA PRESENÇA DOS JUDEUS

A presença judaica no Brasil durante o período de colonização se mostra


uma realidade para a pesquisa musicológica. De maneira geral, quando
pensamos na colonização brasileira, devemos levar em conta o predomínio
português e a proibição, em certa medida, de outras manifestações religiosas
oriunda da forte influência católica em Portugal. Durante a rápida fase de domínio
holandês em Pernambuco, entre 1630-1655, é possível verificar o único
momento real de tolerância à prática do judaísmo em solo brasileiro, e com isso,
naturalmente, emergiram práticas que contribuíram para o incremento musical
desse cenário sociocultural.
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2.1 O judaísmo e a música no Brasil colonial

Mário de Andrade anunciava, em seus estudos críticos e ensaios, a


influência da estrutura musical judaica no folclore nordestino, entretanto, a
influência da cultura do som, de fato, é difícil de rastrear de maneira efetiva,
diante de uma realidade eminentemente de tradição oral das práticas musicais
judaicas que remeta exclusivamente ao contexto colonial. De maneira
semelhante às práticas indígenas, e mesmo em relação à música de tradição
oral portuguesa no Brasil colônia, a efetivação de tais práticas se torna uma
tarefa arenosa, em somatória à ausência de documentos de época.
Os resquícios que nos chegam remetem às escassas documentações
existentes à época da colonização holandesa em Pernambuco. Kieffer (2001)
resgatou um poema de Isaac Aboab da Fonseca, então responsável pela
sinagoga do Recife nesse período holandês, a primeira Sinagoga das Américas.
De acordo com Cunha (2018, p. 61), a presença maciça de judeus na Capitania
de Pernambuco é significativa sob diferentes aspectos, não apenas para o
estado pernambucano, mas também para o Brasil e para todo continente
americano, já que, praticamente desse polo, a partir da expulsão dos holandeses
do Brasil, os judeus foram perseguidos e também forçados a deixar o país,
impulsionando, assim, novos movimentos migratórios.
Em seu trabalho, Kieffer (2001) propôs a reelaboração de três obras
oriundas de cantos sinagogais registrados nesse período de domínio holandês
em Pernambuco. Novamente, é preciso levar em conta as escassas fontes
acerca da temática envolvendo música no Brasil colonial justamente pela
ausência de uma documentação musical oficial que embase análises e um
escopo mais aprofundado de abordagens musicológicas.
Em outro cenário, temos os musicólogos do passado investindo suas
atividades no intuito de conferir um certo grau de cientificidade às suas análises
da música brasileira do início do século XX, sejam elas a partir de fonogramas,
bastante recorrentes naquela época, sejam elas recorrendo à própria partitura
dos compositores do período, suas influências e sua bagagem cultural. O escritor
Mário de Andrade foi um exímio musicólogo brasileiro da primeira metade do
século XX, que influenciou fortemente uma geração de compositores em um
período que se buscava as raízes da música genuinamente brasileira, servindo
como uma espécie de guru intelectual para esse grupo.

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Em 1938, Mário de Andrade conseguiu recursos junto ao Departamento
de Cultura para a então chamada Missão de Pesquisas Folclóricas, sendo o
grupo formado por Luís Saia, Martin Braunwieser, Benedicto Pacheco e Antônio
Ladeira, além do próprio Mário. A caravana partiu em fevereiro de 1938 em
direção ao Ceará, Pernambuco, Paraíba, Piauí, Maranhão e Pará (Sinopse CD
Mário de Andrade – Missão de Pesquisas Folclóricas, 2006). A viagem é uma
resposta oficial às pesquisas iniciadas pelo musicólogo ainda na década de
1920, quando percebeu o potencial das manifestações culturais existentes em
solo brasileiro.
De acordo com o autor (1987, p. 54), o aboio seria uma espécie de canto
melancólico com que os sertanejos do Nordeste dão cabo à marcha das boiadas,
que, prioritariamente, tem como norte uma vocalização oscilante entre as vogais
A e Ô. Daí, talvez, residam as considerações acerca da relação e influência de
uma certa tradição judaica nas práticas musicais posteriores, em especial no que
toca ao contexto vocal. As inflexões tradicionais dos cantos sinagogais, as
sustentações vocais, as “hesitações” entre alturas (intervalos menores que o
semitom) e a manutenção de vogais por longos períodos de tempo são
elementos perceptíveis em práticas tais como a do aboio nordestino, que
mantém certas características comuns mesmo nas escalas tradicionalmente
utilizadas na confecção da música popular do sNordeste.

TEMA 3 – GREGÓRIO DE MATOS E A MÚSICA NO RECÔNCAVO BAIANO

Personalidade de sua época, Gregório de Matos Guerra (1636-1695) está


circunscrito em um espaço de produção poético-musical na Bahia do século XVII.
É preciso levar em consideração que, nesse período, a cidade foi a capital
política do Brasil durante boa parte do período colonial (entre 1549 e 1763),
tendo importância ímpar no que toca às práticas comuns da sociedade brasileira
de seu tempo. Gregório seria, em certa medida, um importante “narrador” desse
momento de formação no povo brasileiro, bem como de sua cultura.

3.1 Gregório de Matos: o “boca do inferno”

Um moralista daqueles da época de Gregório de Matos não tinha dúvidas


de que boa parte dos males que afligiam a colônia portuguesa na América no
início do século XVIII estava relacionada com a proliferação de canções profanas

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no toque dos violeiros da época (Budasz, 2004, p. 7). Em uma visão geral, seria
possível indicar que, ainda hoje, a obra do poeta músico causaria certo escárnio
pela acidez de suas críticas acerca dos estereótipos e problemas sociais
vivenciados no Brasil em Portugal. Essa postura lhe rendeu o apelido de “boca
do inferno”.
De maneira viva, a partir de seus textos permeados de ironia e sarcasmo,
projetam-se centenas de situações e episódios da vida da cidade de Salvador e
de outros centros urbano rurais do Recôncavo baiano (Tinhorão, 1998, p. 55). O
autor não apenas continuava a tradição dos “trovadores” do século XVI, que
cultivavam romances sob o acompanhamento da viola, mas também tratava dos
textos poéticos de seu tempo, quadras e estribilhos de cantigas populares.
Dentre as modalidades predominantes, ao lado de glosas e cantigas,
coplas e cançonetas, os romances lhe davam a oportunidade de contar os fatos
engraçados e demais acontecimentos variados da sociedade local, sempre
acompanhado da viola. No entender de Tinhorão (1998, p. 57), a quantidade
exorbitante de poesia musicada sob acompanhamento instrumental é o
indicativo primordial para compreendermos que a obra de Gregório de Matos
deveria ser estuda quase toda não como obra poética, mas como versos de
música popular urbana.
Voltando à questão das fontes para a pesquisa musicológica em música
brasileira, é possível dizer que a obra de Gregório de Matos é uma rica fonte de
informações sobre a música que era ouvida nas ruas e demais centros urbanos
do século XVI. De maneira detalhada, esse autor comenta e critica funções
musicais e teatrais, além de mencionar instrumentistas e cantores, citar nomes
de peças instrumentais e descrever coreografias (ritmos de dança) (Budasz,
2004, p. 7). Como mencionado, tocava viola e descrevia precisamente tanto a
música das elites quanto a produzida nas festas populares e bordéis. Poderia
ser considerado um dos primeiros críticos musicais do Brasil, portanto (Budasz,
2004).
A viola, instrumento prioritário no acompanhamento dos romances de
Gregório de Matos, era popular em função da versatilidade. Possuía variações
na sua estruturação, incluindo a vihuela (versão espanhola) de seis ordens de
cordas, posteriormente cinco ordens de cordas, conhecida como viola barroca
(que mais tarde originaria a viola caipira brasileira e diversas variantes de violas
portuguesas, além da guitarra espanhola, ou violão). A instrução musical era

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realidade no Brasil; a instrução em música era ambicionada pelas famílias
abastadas no Brasil colônia e geralmente realizada à viola. Entretanto, vale
salientar que o objetivo não era formar um profissional em música, mas garantir
os “elementos de civilidade” inerentes à formação cultural dos indivíduos de
famílias mais ricas (Budasz, 2004, p. 9).
Em um exemplo claro dessa descrição pormenorizada dos costumes,
música e danças de seu tempo, podemos destacar o tom informativo desta
cançoneta de Gregório de Matos: “que bem bailam as mulatas. Que bem bailam
o Paturi. Não usam de castanhetas. Porque cos dedos gentis. Fazem tal
estropeada. Que de ouvi-las me estrugi” (Tinhorão, 1998, p. 71). Aqui, Gregório
de Matos indica que, naquela época de 1680-1690, já se dançava estalando os
dedos (com os dedos gentis fazem tal estropeada), característica do fandango
ibérico, além de apresentar a existência, em outro poema, da dança de
umbigadas presentes em festividades de Salvador (levou tantas embigadas), o
que pode confirmar a existência, naquele tempo, de dois elementos que,
posteriormente, caracterizariam o lundu no século XVIII (Tinhorão, 1998).
Nesse período, no Brasil, havia uma certa tolerância às práticas musicais
relacionadas aos cultos afro-brasileiros, uma regra mais ou menos generalizada
no Brasil colonial. Havia a permissão a certas danças e divertimentos em
situações monitoradas para evitar o que os senhores de terra entendiam ser um
mal maior. Os versos de Gregório indicam essa realidade, a busca dos baianos
e diversas camadas sociais por alguma sorte no amor ou mesmo diversão. “Não
há mulher desprezada, galã desfavorecido, que deixe de ir ao quilombo, dançar
o seu bocadinho” (Budasz, 2004, p. 13).
Torna-se evidente, portanto, esse cenário de narrativa poético-musical
visualizado em Gregório de Matos e seu respectivo potencial para a musicologia.
Sob esse olhar de poeta compositor, o autor oferece indicações precisas de que
o processo gradual de urbanização da capital da colônia começava a criar
condições para o surgimento desses artistas criadores (Tinhorão, 1998, p. 58),
bem como o cenário cultural existente, envolvendo as festividades coletivas, as
danças e coreografias praticadas nesses eventos, os instrumentos e os
musicistas do período, bem como as distinções marcantes entre os estratos
sociais existentes.

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TEMA 4 – MÚSICA SACRA EM MINAS GERAIS NO SÉCULO XVIII

Tomamos o contexto musical de Minas Gerais no século XVIII como


cenário de uma produção profícua que ressalta a grandiosidade da nossa
produção artística, mas parece absurdo pensar que, até relativamente pouco
tempo, essa realidade de atividades musicais era menos conhecida. As
pesquisas do musicólogo alemão naturalizado uruguaio Francisco Curt Lange,
em 1944, realizadas em arquivos particulares das irmandades religiosas em
Minas Gerais, resultou em dois projetos ambiciosos que revelaram uma
expressiva atividade musical nas diferentes regiões mineiras, confirmando que,
tal como as artes plásticas, a música também foi impulsionada durante o Século
do Ouro.

4.1 Música Colonial Mineira

O surgimento de centros urbanos em torno da atividade mineradora foi


fator determinante no processo de ampliação das práticas culturais em Minas
Gerais, de tal modo que é irrefutável a consciência de que a amplificação
econômica decorrente da atividade nas minas de ouro foi determinante nesse
processo de incremento musical. O regime mercantilista emancipado nas
cidades mineiras intensificou um espírito em certa medida cosmopolita à época,
visando à independência e democracia em relação às velhas práticas
latifundiárias. Desse modo, o surgimento de núcleos urbanos em torno da
atividade mineradora foi acompanhado de grande diversificação das atividades
produtivas (Cano, 1977, p. 102).
O assombro em torno da produção musical mineira era tamanho que os
viajantes europeus que por lá passaram confirmavam, em seus relatos, a
qualidade do produto musical resultante. Saint-Hilaire indicou, em um de seus
textos, a qualidade dos musicistas executantes de uma missa, ainda mais
espantado por serem brasileiros “todos do país”. Este teceu elogios à música
executada, e ao final, questionou a capacidade de algumas cidades francesas
de reproduzir musicalmente um evento com aquele mesmo nível de qualidade
(Kiefer, 1976, p. 31).
O enriquecimento oriundo da mineração acabou criando um cenário que
possibilitou a ampliação das manifestações religiosas exuberantes (incluindo a
execução musical com grandes conjuntos instrumentais), transformando

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Irmandades e Ordens Terceiras em grandes entidades responsáveis pelo
estímulo à cultura e arte. Estas eram responsáveis pela contratação de grupos
musicais para suas festividades e eventos oficiais (missas), geralmente
formados por um coro com quatro a cinco integrantes, sendo três homens e uma
ou duas crianças para a voz aguda soprano, assim como membros para
execução do contínuo ou ainda uma orquestra, caracterizada geralmente por um
par de violinos e um baixo no naipe de cordas, um par de trompas e pares de
flautas e/ou oboés (Castagna, [S.d.], p. 4-10).
Esse fenômeno da emergência e competitividade entre as Irmandades irá
compelir os compositores a um contínuo estado de atualização em relação às
práticas composicionais vigentes na Europa. Dois fenômenos importantes são
verificáveis nesse cenário competitivo entre instituições: a proliferação de
músicos compositores entre os mulatos, circunscritos às classes sociais
intermediárias do Brasil colônia, e a necessidade de domínio, por parte dos
compositores, de mais de um estilo composicional (pré-clássico – originário da
Itália e amplamente difundido em Portugal) (Castagna, [S.d.], p. 6).
A partir do inicial trabalho de Curt Lange com as fontes de música mineira,
vários compositores daquele contexto acabaram sendo revelados. Dentre eles,
é possível destacar os trabalhos de José Joaquim Emerico Lobo de Mequita
(1746 -1805), Marcos Coelho Neto (1763-1823), Ignácio Parreira Neves (1736-
1794) e Francisco Gomes da Rocha (1745-1808). Estes e outros compositores,
conforme apresentado anteriormente, tinham por necessidade da profissão o
aprendizado das técnicas composicionais oriundas de polos europeus, e nesse
sentido, é importante indicar a existência nos acervos das Irmandades do
período de cópias de obras de compositores renomados europeus, em um
momento de difícil acesso a partituras. Esse compêndio de obras musicais da
Europa em Minas Gerais ilustra a didática do compositor para o aprendizado de
estilos composicionais sofisticados, ampliando, assim, seu leque de
possibilidades e, consequentemente, atraindo mais a atenção das Irmandades.
Neves (2000) indica que, a partir de 1750, a coroa portuguesa passou a
proibir a importação de obras de fora da colônia, o que acabou por incentivar a
atividade de compositores em Minas. Com a imposição do afastamento das
tendências de composição europeias, os compositores mineiros passaram a
escrever com maior liberdade, desenvolvendo, gradativamente, um estilo próprio
adaptado ao contexto religioso, então conhecido como não observâncias. Esses

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gêneros de composição seriam absorvidos pelas práticas no advento do século
XIX, com uma cada vez maior circulação de obras musicais no contexto brasileiro
dissociado do poderio da Igreja.
O trabalho de Curt Lane foi essencial para a ampliação de novos atores
musicais, até então pouco conhecidos, compositores oriundos do Século do
Ouro em Minas Gerais. Entretanto, seria a partir da década de 1960 que haveria
um cuidado maior com a interpretação histórica da música colonial, ampliando
as edições de manuscritos e, posteriormente, o surgimento de novos festivais de
Música Antiga e de grupos que interpretam Música Colonial da América Latina,
potencializando novas discussões e pesquisas acerca da música produzida no
contexto sacro mineiro do século XVIII.

TEMA 5 – MODINHAS DE PORTUGAL E DO BRASIL

A ascensão de uma nova classe média nos polos urbanizados demandou


a necessidade de um novo tipo de produto musical que representasse seu
cotidiano, e essa demanda contribuiu para o surgimento, tanto no Brasil quanto
em Portugal, de um gênero musical que inicialmente foi difundido entre as
classes sociais das cidades chegando aos salões da Corte Portuguesa. A
Modinha se tornou um fenômeno musical urbano, similar a outros gêneros em
polos da Europa.

5.1 A modinha: da rua para a corte

De acordo com Castagna ([S.d.], p. 1), durante a segunda metade do


século XVIII, inicialmente em Portugal e posteriormente no Brasil, desenvolveu-
se um estilo particular de canção camerística, que acabou recebendo o nome de
modinha. Segundo o autor, a origem dessa designação se liga à ideia de moda,
palavra portuguesa utilizada durante o século XVIII para todo tipo de canção
camerística a uma ou mais vozes, acompanhada por instrumentos.
Os ciclos migratórios de Portugal para o Brasil contribuíram para a
importação da moda portuguesa para a colônia portuguesa ao longo do século
XVIII. Nesse contexto a moda portuguesa acabou ganhando novo contorno, com
feições populares e profanas, se espalhando para regiões distintas do país,
como Rio de Janeiro e São Paulo, além da “clássica Bahia”, local onde teria sido
criada (Cernichiaro, 1926, p. 55), sendo, também, sempre vinculada às camadas

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populares. A modinha marcaria um tipo de canção capaz de atender às
expectativas de homens e mulheres (antes circunscritas às práticas eruditas de
serenatas compostas a várias vozes), na perspectiva nova à época de
aproximação maior entre os gêneros, uma marca da sociedade moderna
definitivamente urbanizada (Tinhorão, 1998, p. 116).
A emancipação da modinha está associada a um fenômeno generalizado
na Europa característico da segunda metade do século XVIII, entendido a partir
da progressiva ascensão burguesa e da respectiva mudança de hábitos da
nobreza. Seria este um cenário que impulsionaria uma nova prática musical, seja
doméstica ou de salão, voltada a um entretenimento mais leve e menos erudito
que aquela oportunizada pela ópera e pela música religiosa (Castagna, [S.d.], p.
1). A modinha se traduz em um tipo de música doméstica urbana, praticada em
festas ou momentos de lazer, de fácil execução técnica e de restrito apelo
intelectual.
Em Portugal, a evolução da moda receberia importante contribuição de
um brasileiro, o mulato tocador de viola Domingos Caldas Barbosa (1740-1800).
De acordo com Tinhorão (1998, p. 115), essa personagem marcaria a criação do
primeiro gênero de canto brasileiro dirigido especialmente ao gosto da gente das
novas camadas médias das cidades. Conforme indicado, a inovação do gênero
residia, no campo da criação poético-textual, na então ousada novidade de
versejar para as mulheres, partindo de lânguidos compassos quebrados, com
temáticas que traduziam as imprudências e liberdades do amor (Tinhorão, 1998,
p. 116).
Caldas Barbosa residiu em Portugal a partir de 1770 e introduziu, nos
salões de Lisboa, esse gênero particular de canção, que ficou conhecido como
a moda brasileira. Nesse cenário, alcançou considerável status social no Reino
ao receber ordens menores, tornando-se conhecido na corte, tomando parte na
nova Arcádia de Lisboa sob o pseudônimo de “Lereno Selinuntino” (Castagna,
[S.d.], p. 2). A partir de 1775, passou a se dedicar ao novo estilo poético
reconhecido da modinha brasileira (modinha seria a denominação dada pelo
próprio Caldas Barbosa), tendo, em 1798, seus textos poéticos publicados no
compêndio intitulado Viola de Lereno, com um segundo volume lançado após
sua morte, em 1826.
As narrativas de época demarcam a relevância desse gênero entre as
camadas sociais e, do mesmo modo, os defensores e críticos desse novo tipo

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de canção poética, quando verificamos que “cantada a vulgar modinha, que é a
dominante agora, sai a moça da cozinha, e diante da senhora vem desdobrar a
banquinha”. A principal característica que marcaria as modas brasileiras
comparativamente àquelas produzidas em Portugal, de acordo com os relatos
da época, residia na temática sobre assuntos amorosos, abordados com ousadia
e permissividade, mas no que toca ao aspecto melódico, pouco diferiam das
modas em uso, permanecendo vinculadas às melodias derivadas de árias e
duetos operísticos (Castagna, [S.d.], p. 4).
Em resumo, poderíamos indicar a modinha de fins do século XVIII (e que
marcadamente seria imperativa no século seguinte) como um tipo de canção de
salão a uma voz com acompanhamento de piano, decisivamente cunhada pela
cultura da burguesia. “A linha melódica do canto torna-se mais diferenciada
melódica e ritmicamente e leva pela sua constante alteração de tempos fortes a
uma característica oscilação de acentos” (Castagna, [S.d.], p. 7). Os textos
literários permeados de sentimentalismo e lamúrias de amor são mantidos e
encontram sua representação musical na construção melódica, considerada
doce e sentimental. A partir do uso frequente dos contrastes maior-menor, a
linguagem musical ganha em contornos representativos, e quanto à temática, é
a personagem do homem que quase sempre se dirige à mulher por quem estaria
interessado.

NA PRÁTICA

Vamos aproveitar esse momento para associar elementos presentes na


prática musical judaica com conteúdos e fragmentos musicais encontrados no
Brasil na época do descobrimento. Lembremos que, durante o domínio holandês
em Pernambuco, entre 1630-1655, é possível verificar o único momento real de
tolerância à prática do judaísmo em solo brasileiro, e com isso, naturalmente,
emergiram práticas que contribuíram para o incremento musical desse cenário
sociocultural. Os exemplos musicais apreciados, obtidos a partir de fragmentos
do mundo antigo grego, nos apresentam informações interessantes, quando
comparados aos fragmentos encontrados em solo brasileiro, na Sinagoga de
Recife, a primeira das Américas.

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 As variações melódicas – perceba a similaridade entre a organização das
melodias, o repouso em certas notas, a sustentação em notas específicas
antes do retorno à nota inicial.
 As “hesitações” melódicas – verifique que, muitas vezes, os cantores
parecem cantar “desafinado”, mas novamente, lembre-se que essa
questão está muito mais relacionada com nosso ouvido ocidental, uma
escuta que seleciona sons e organizações musicais reconhecíveis,
excluindo tudo o que não nos é familiar. Aqui, os quartos de tom (ou
comas), intervalos ainda menores que o semitom, são uma realidade
recorrente e um elemento amplamente utilizado.
 Canto solo – aqui, a ideia é a utilização da voz como elemento prioritário,
já que a voz era considerada, na antiguidade, o único instrumento real a
ser utilizado nos cultos. Do mesmo modo, ele é o responsável por carregar
o texto, potencializando ainda mais sua relevância nesse cenário.

Apesar de diferentes na função, busque apreciar esses exemplos e ouvir,


logo em seguida, o aboio recolhido por Mário de Andrade na década de 1920,
verificando a recorrência de alguns elementos similares na construção musical.

FINALIZANDO

Caro aluno, nesta aula, pudemos reconhecer uma ampla gama de


contextos musicais que, direta ou indiretamente, constituem a base de nossa
bagagem cultural no que toca à produção musical. Entender como se deu essa
construção, suas referências, seu processo de criação, bem como os
personagens que contribuíram para sua respectiva efetivação, nos ajudam a
compreender melhor esses projetos musicais e seu referido lugar na sociedade.
Em um primeiro momento, discutimos as estratégias de efetivação da
música jesuítica e sua apropriação de elementos indígenas no processo de
catequização durante o descobrimento. De maneira semelhante, verificamos
algumas características constitutivas da prática musical indígena e, do mesmo
modo, como a música era entendida no cotidiano das tribos. Em um contexto
próximo, verificamos a recorrência da música judaica, especialmente em
Pernambuco, durante a colonização holandesa por um curto período no século
XVII, indicando alternativas para uma escuta crítica daquele cenário musical,
bem como das possíveis influências exercidas sobre a música nordestina que

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seguiria. Contemporânea a essa realidade, analisamos a atuação de Gregório
de Matos no processo de criação musical na Bahia do século XVII, verificando a
importância da viola como instrumento regulador das práticas musicais, a
relação entre o texto e a música e, mais que a poesia, pudemos notar a
relevância dessa personagem no que tange à indicação de instrumentos,
práticas instrumentais, musicistas e potencialidades para o campo da
musicologia, um verdadeiro narrador do seu tempo.
Ao analisarmos o século XVIII, verificamos a essencial contribuição da
música mineira na construção do ideário das práticas musicais vinculadas ao
contexto da Igreja Católica, principal mecenas na Europa durante basicamente
toda história, indubitavelmente até o século XVIII. Procuramos entender como se
deu a constituição de um cenário propício para a ampliação da demanda por
musicistas e compositores e, do mesmo modo, como essa conjuntura criou uma
atmosfera propícia à emancipação desses compositores em relação ao que era
produzido nos polos europeus. Por fim, na transição do século XVIII ao XIX,
conhecemos a modinha como um gênero abraçado pela emergente burguesia,
que buscava um tipo de produto musical mais leve, menos intelectualizado que
a representasse, analisando sua função na sociedade, bem como seus principais
representantes.

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REFERÊNCIAS

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