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O diálogo entre a geografia e a arte:

aproximações possíveis a partir de um categorial geográfico


DANILO HENRIQUE MARTINS*

Resumo: A partir da década de 70 novos aportes teórico-metodológicos da geografia cultural


possibilitaram a investigação de aspectos mais subjetivos da espacialidade humana. Nesse contexto, a arte
é entendida como elemento constituinte de um mundo simbólico, sendo que a música, enquanto arte, pode
ser pensada através das sensações, percepções e experiências do homem com os categoriais geográficos.
Assim, o lugar pode ser compreendido por meio da música. Este trabalho tem por objetivo geral pontuar
as possibilidades de análise entre a arte e a geografia e os objetivos específicos identificar a arte como
forma simbólica, além de apresentar a música como instrumento de compreensão do lugar enquanto
categorial geográfico. Para elucidar as hipóteses, foram consideradas as contribuições de Gil Filho (2010,
2012), Rein (1959) e Möckel (2011) em relação ao universo simbólico proposto pelo filósofo Ernst
Cassirer, no qual a arte está inserida, e apresentada às contribuições de Carney (2007) e Kong (2009)
quanto à relação entre o lugar e música. O presente trabalho demonstrou que a arte é um campo de estudo
que permite à geografia cultural aprofundar o mais rico e valioso estudo em diversos âmbitos, visto que a
percepção, a cognição, a representação, os sentidos que o homem atribui ao lugar onde vive, são
mediados pelo universo simbólico na qual esta está compreendida. Constatou-se que a música carrega os
traços dos lugares que estão repletos de sentidos para o homem, lugares estes geográficos que passam a
ser mediados pela arte.
Palavras-chave: Universo Simbólico; Música; Lugar.
Dialogue between geography and art: a possible approaching from a geographical categorical
Abstract: From the 70 new theoretical and methodological contributions of cultural geography allowed
the investigation of more subjective aspects of human spatiality. In this context, art is understood as a
constituent element of a symbolic world and the music, as being a branch of the art, can be thought
through the feelings, perceptions and experiences of the human being with the geographical categorical.
Thus, the geographical place can be understood through music. This work has the objective point out the
analysis possibilities between art and geography and specific objectives define art as symbolic form, and
present music as a tool for the comprehension of the geographic place as a categorical. In order to
elucidate the hypothesis, there were remarkable the contributions: Gil Filho (2010, 2012), Rein (1959)
and Möckel (2011) in relation to the symbolic universe proposed by the philosopher Ernst Cassirer, in
which art operates, and submitted to the contributions of Carney (2007) and Kong (2009) about the
relationship between the place and music. This studying demonstrated that art is a field of study that
allows the cultural geography deepen the richest and most valuable study in various fields, as perception,
cognition, representation, senses that human being designate to the place where you live, they are
mediated by the symbolic universe in which it is understood. It was found that the music carries the traces
of the places that are full of meaning for human being, based on this perspective the geographical places
can be mediated by art.
Keywords: Symbolic Universe, Music, Place.

*
DANILO HENRIQUE MARTINS é mestrando do Programa de Pós-graduação em Geografia
da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

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A Arte na Geografia: paisagem natural de Natal, Rio Grande do Norte, Brasil; tela de autoria de artista
local, identificado como João e adquirida pelo autor do artigo durante viagem de férias, janeiro de 2017.

Introdução literatura como instrumento de análise


O homem relaciona-se com o meio por do espaço geográfico. Para Carlos
meio de suas percepções, (2002, p. 175) “Hoje, muitos trabalhos
representações e vivências de mundo. se debruçam sobre a festa, a música, a
As percepções, memórias e vivências do literatura, o cinema, colocando em cena
homem e dos distintos grupos sociais a relação entre a geografia e a arte, o
constituem-se como elementos que vem abrindo muitas possibilidades
imprescindíveis para a construção do de pesquisa”.
saber geográfico. Assim, por meio das A partir do exposto é que se justifica a
categorias geográficas é possível presente pesquisa, visto que a geografia
realizar a compreensão do universo cultural, por meio de suas bases teórico-
simbólico que permeia a ação humana. metodológicas, abre portas para a
O indivíduo está inserido nos lugares, compreensão de seus categoriais a partir
adentra territórios, percebe as paisagens, da relação indivíduo e lugar, e o lugar
analisa o espaço percebido, logo ocorre enquanto arte, por meio da música,
à inserção do homem no mundo. O principalmente devido às letras das
lugar aqui renasce em um mundo de canções assinalarem as percepções dos
significados, sensações e percepções. lugares.
Enquanto isso, a música, caracteriza-se Dessa maneira, a pesquisa tem por
como expressão das apreensões do objetivo geral pontuar as possibilidades
homem em relação ao lugar. Assim, o de análise entre a arte e a geografia.
caráter geográfico nasce nesse contexto Para chegar a tal objetivo, a pesquisa
e a música pode ser compreendida pela tem por objetivos específicos identificar
ciência geográfica. a arte como forma simbólica e suas
A geografia, nos últimos anos, vem se possibilidades para uma análise
utilizando das artes, do cinema, da geográfica e apresentar a música como

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instrumento de compreensão do lugar paisagens carregadas de sentidos, as
enquanto categorial geográfico. ações do indivíduo em relação ao
espaço vivido, enfim a atividade
Para instrumentalizar a pesquisa foi
simbólica que permeia o homem.
realizada uma revisão bibliográfica
acerca da temática, destacando as Porém, como pontua Gil Filho (2010, p.
considerações de Gil Filho (2010, 02) “Há, pois, a necessidade de uma
2012), Rein (1959) e Möckel (2011) nas segunda hermenêutica em relação à
discussões do universo simbólico abordagem cultural na geografia que se
proposto pelo filósofo Ernst Cassirer, no circunscreve na objetivação da cultura
qual a arte está inserida, além das no categorial espacial”. Para Gil Filho
contribuições de Carney (2007) e Kong (2010) a perspectiva filosófica proposta
(2009) para o entendimento da música por Ernst Cassirer1 abre possibilidade
nos estudos sobre o lugar na geografia. para a compreensão do mundo
simbólico na qual o homem está
A arte como forma simbólica: envolto, criando uma perspectiva de
possibilidades para uma análise análise geográfica.
geográfica
Diferentemente dos animais, os seres
A perspectiva cultural na geografia humanos, criam e recriam, a partir das
permite, a partir de seu aporte teórico- suas percepções e experiências, seu
metodológico, mecanismos que próprio mundo dos fatos simbólicos.
possibilitam a investigação de aspectos Dessa forma, a partir do pensamento
mais subjetivos da espacialidade cassireriano, podemos compreender que
humana. A humanização, a estética, a todas as formas culturais dos
identidade, o imaginário e a poética do indivíduos, são na realidade formas
espaço são resgatados com a chamada simbólicas. É nessa perspectiva que a
“Virada Cultural”, já que novas bases Geografia tende a aproximar-se a
epistemológicas são ampliadas com a fenomenologia de Cassirer.
denominada nova geografia cultural.
O diálogo com o sistema
De acordo com Claval (2011, p. 21) “A cassireriano na Geografia pode ser
geografia cultural de hoje aparece como considerado em duas perspectivas:
um fundamento comum, que explica a a primeira está centrada na questão
construção dos indivíduos, da
sociedade, do espaço e de sistemas 1
Ernst Cassirer (1874 - 1945) nasceu na cidade
normativos”. A Geografia Cultural está germânica de Breslau (atual Wrocław na
preocupada com a identidade cultural, Polônia) era de origem judaico-alemã, estudou
com o conceito de lugar e o simbolismo Direito em Berlin (1892) tendo mudado para
de coisas e objetos na paisagem literatura germânica e finalmente Filosofia.
Mudou frequentemente de Universidades para
(ROSENDAHL, 2012), logo a Leipzig, Heidelberg voltando para Berlin até
totalidade dos saberes geográficos tem chegar a Marburg (1894) onde estudou com
uma dimensão cultural: eles são Hermann Cohen. Obteve o título de doutor
relativos a uma época, a um lugar ou a (1899) tornando-se professor titular da
uma área (CLAVAL, 2001; 2010). Universidade de Hamburg (1919), onde ensinou
filosofia até 1933. Deixou a Alemanha após a
Para muitos geógrafos uma primeira ascensão de Hitler ao poder. No período de
hermenêutica pode ser desenvolvida a emigração foi para o Reino Unido lecionando
em Oxford (1933-1934), Universidade de
partir da Geografia Cultural com a Göteborg, na Suécia (1935-1941) e nos Estados
finalidade de compreender o mundo dos Unidos na Universidade Yale e Universidade de
significados, os lugares imaginados, as Columbia 1941-1945 (GIL FILHO, 2010, p.01).

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de como a filosofia da cultura em ciência, o homem não pode fazer mais
Cassirer ajuda no debate do que construir seu próprio universo – um
deslocamento teórico-metodológico universo simbólico que lhe permite
aberto pela “virada linguística”; e a entender e interpretar, articular e
segunda questão é como a organizar, sintetizar e universalizar sua
perspectiva espacial sob a teoria das
experiência humana”.
formas simbólicas pode contribuir
para a crítica do categorial espacial No pensamento de Ernst Cassirer o
utilizado (GIL FILHO, 2010, p. indivíduo vive em um mundo carregado
09). de sentidos, mediado pelo universo
Essas bases são imprescindíveis ao simbólico, cuja apropriação vai além da
campo geográfico, uma vez que uma materialidade e a racionalidade
segunda hermenêutica pode ser cotidiana na qual a Arte está inserida e
realizada a partir do entendimento do onde ocorre suas múltiplas relações com
mundo simbólico cassireriano. De o mundo, ou seja, o universo dos fatos,
acordo com Cassirer (1994, p. 359): representado pelas Formas Simbólicas
“Na linguagem, na religião, na arte e na (Figura 1).

Figura 1 – Cassirer e as Formas Simbólicas

Fonte: Gil Filho, 2008.

Para melhor compreendermos as sendo elas: o mito, a religião, a


Formas Simbólicas de Cassirer (figura linguagem e as artes.
1) devemos levar em consideração as O processo de conformação do
colocações que Gil Filho (2012) faz em mundo se realiza a partir dessas
relação ao mundo simbólico formas, sendo que a linguagem é a
cassireriano. Para Gil Filho (2012) as base destacada onde a energia
formas simbólicas de Cassirer (figura 1) simbólica opera. A linguagem
ocorrem devido ao fato de vivermos em perpassa seu caráter nominativo e
mundo simbólico onde formas significativo, as outras formas
simbólicas específicas passam a atuar, simbólicas mantendo as

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propriedades de cada uma delas pela obra estética singular
(GIL FILHO, 2012, p. 82). (MÖCKEL, 2011, p. 331).

Logo, para Gil Filho (2012, p. 83) “o


conhecimento teórico compreendido A Arte nesse mundo simbólico é
enquanto criações do pensar assim assinalada pelas suas manifestações,
como o mito, a religião, a linguagem e sendo que a música, a partir da
as artes não podem ser consideradas Geografia Cultural, pode ser pensada a
metáforas do real, mas como a tessitura partir das sensações, percepções e
da realidade”. experiências. O universo simbólico de
Cassirer é uma diretriz na busca dos
Dessa forma, o homem não vive apenas significados que o homem utiliza na
neste universo físico e palpável, pois a compreensão desse mundo. Para Gil
sua concepção de mundo ultrapassa essa Filho (2012, p. 54):
primeira hermenêutica. Logo o homem
vive a partir de uma dimensão em que a A função simbólica da mente
arte, a religião, a ciência e a linguagem humana é uma ação concreta que
constituem a verdadeira experiência manifesta as obras humana e que
efetiva do indivíduo no mundo, coloca a linguagem, o mito, a
formando assim o seu universo religião, as artes e a ciência como
simbólico. formas simbólicas, na medida em
que cumprem a função de plasmar o
Para Möckel (2011, p. 325) “Cassirer real. Cada uma das formas
concebe arte e linguagem como dois simbólicas age na conformação da
modos de pregnância simbólica, isto é, realidade de modo específico em
sua própria esfera de ação e
como duas formas simbólicas nas quais
princípio formador.
a essência da pregnância e da formação
simbólica se manifesta”. A pregnância
na qual Cassirer se refere diz respeito à A Arte nesse contexto é criada e
unidade da figura (Gestalt), onde o recriada pelo homem por meio do
singular representa o conjunto universo simbólico-cultural. Ao discutir
(MÖCKEL, 2011). a Arte como símbolo e forma em
Cassirer, Rein (1959) enfatiza que a
Assim, cada “som [singular] duma Arte não é pura expressão, uma vez que
melodia percebido por nós” existe há uma relação entre o indivíduo e o
como tal, é compreensível como um universo. A autora enfatiza que na Arte
som significativo “só no conjunto o sentido é a forma para Cassirer.
desta melodia”; ele não existe
fisicamente como som singular de
uma ou outra intensidade ou El sentido de la obra de arte no es
qualidade. Ele mostra-se como uma Idea que la trasciende. En el
“mergulhado [...] no mar da arte, el sentido es la forma: “Hay
melodia, na sua dinâmica, na sua que buscarlo en ciertos elementos
rítmica, no seu flutuar”. Ou: estructurales de nuestra experiencia
“Temos a impressão que não sensible, en las figuras, en las
podemos tirar duma obra de arte líneas, em las figuras, en las formas
verdadeira qualquer momento arquitectónicas y musicales”. Em
singular sem, desta maneira, consecuencia, “si el arte es
destruir a totalidade” estética, sem simbolismo, el simbolismo del arte
destruir a unidade da “atmosfera” tiene que ser entendido en un
que é transportada, representada sentido inmamente y no

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transcendente”(REIN, 1959, p. A representação do universo simbólico
21).2 da Arte é evidenciada por Rein (1959)
Para Rein (1959, p. 21) “Cassirer parece na premissa de que este símbolo vai
reconecer aqui que la definición del arte além do sentido físico, pois este
como forma simbólica implica una transcende o físico e está nos
ampliación del concepto de símbolo. significados que cada indivíduo atribui
Em efecto, el arte no se limita a a si e ao seu entorno. Nessa perspectiva,
expresar emociones o representar a Arte pode ser compreendida por sua
ideas”3. A autora continua tecendo suas estética.
considerações em relação à Arte a partir A Música é uma forma de Arte, que
do mundo simbólico de Cassirer, e para Rein (1959, p. 21) ao explicitar o
ressalta que “El arte es, esencialmente, pensamento filosófico de Cassirer
construición de uma forma bella (REIN, ressalta que “La música nos revela la
1959, p. 21)4. escala de las emociones humanas desde
Si admitimos el caráter simbólico el la nota más baja la más alta”6. E
arte, tendremos que admitir una continua suas considerações enfatizando
cuarta dimensión del símbolo: la que “El arte no es solo captación de la
belleza. A la distinción entre belleza, sino tambíen de la vida bajo
percepción de cosas y percepción una luz que es algo más que un
de expresiones habria que agregar, vislumbre momentáneo”7.
entonces, la percepción de formas
bellas. A las funciones expresiva y Assim, captar a essência das coisas, do
representativa del símbolo se mundo, dos objetos torna-se possível a
agregará, del mismo modo, esta partir da compreensão desse universo
función estética o reveladora de las simbólico, estruturado por meio da base
formas bellas (REIN, 1959, p. 21).5 filosófica de Ernst Cassirer. E, como
pontua Gil Filho (2010) a Geografia
pode beneficiar-se desse mecanismo, já
2
“O sentido da obra de arte não é algo que a que é possível o debate teórico-
transcenda. Na arte o sentido é a forma. Deve metodológico pela Geografia Cultural a
ser buscada nos elementos estruturais da nossa
sensibilidade, nas imagens, nos traços, nas partir das formas simbólicas.
figuras, nas formas arquitetônicas e musicas. A música, como expressão, forma e
Em consequência a arte é simbólica, e o
simbolismo da arte deve ser compreendido
sentido da Arte abre caminhos de estudo
como um sentido imanente e não transcendente” ao campo da Geografia, principalmente
(Tradução nossa). devido ao fato de estar ligada aos
3
“Cassirer parece reconhecer aqui que a categoriais geográficos, como por
definição da arte como forma simbólica implica exemplo, ao conceito de Lugar,
em uma ampliação do conceito de símbolo. Em
efeito, a arte não se limita a expressar emoções
sobretudo quando compreendemos que
ou representar ideias” (Tradução nossa). os indivíduos, ao habitar os distintos
4
“A arte é, essencialmente, a construção de ambientes, percebem os sons e músicas
uma bela forma” (Tradução nossa).
5
dos lugares no qual estão inseridos a
“Se admitirmos o caráter simbólico da arte,
tenderemos aqui a admitir uma quarta dimensão
6
do símbolo: a beleza. A distinção entre “A música nos revela a escala das emoções
percepção das coisas e percepção das humanas desde a nota mais grave a mais aguda”
expressões reside na percepção das formas (Tradução nossa).
7
belas. A função expressiva e representativa do “A arte não é somente captação da beleza, mas
símbolo adicionará, do mesmo modo, a função também da vida sob a luz que é algo mais do
estética e reveladora dessas formas” (Tradução que um vislumbre momentâneo” (Tradução
nossa). nossa).

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partir das sensações que ali são como por exemplo, sociologia, a
vivenciadas e das percepções que são antropologia, a história, os estudos
adquiridas em sua experiência. culturais, a comunicação social e a
economia da cultura (PANITZ,
A arte na geografia: a música 2012, p. 14).
enquanto lugar É esta particularidade que torna possível
A música está presente em nosso o estudo da música pela geografia, mais
cotidiano. Desde o nosso acordar, às precisamente pela abordagem cultural
atividades corriqueiras como geográfica, que a partir dos anos 70, viu
caminhadas, dentro do carro ao sua matriz epistemológica e
ligarmos o rádio, ao cantarmos quando metodológica transformada pelo resgate
tomamos banho, no entretenimento das filosofias de significado, a
televisivo, nas praças e ruas, enfim, a fenomenologia e o humanismo,
musicalidade penetra em nossos adentraram enriquecendo os debates e
sentidos e emoções diariamente. estudos geográficos. Nesse período,
além dos temas tradicionais, novas
Segundo Panitz (2012) a música quanto propostas surgem enriquecendo o
nível pessoal cria repertórios subjetivos, campo de estudos dos geógrafos, logo a
organiza as memórias, participa da cultura popular, a espacialidade da
sonorização da vida cotidiana, cria religião, o estudo da geografia em obras
sentido ao mundo. No nível coletivo literárias e na música, são assinaladas.
está relacionada às memórias e histórias
de vida compartilhadas pelos Estudos que permeiam uma geografia
indivíduos, os lugares de encontro, centrada no indivíduo e nas
narrativas do espaço-tempo, períodos experiências, os seus significados que
históricos específicos, e até a estética este tem do mundo, passam a serem
sonora de cada geração, pois possui evidenciados e discutidos, inclusive os
conteúdos geográficos específicos. debates em torno dos estudos sobre
lugar e música. Nessa perspectiva,
A música, no quadro geral da sociedade, George Olney Carney8 e Lily Kong9
apresenta características econômicas e
sócio-culturais, uma vez que produz
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espacialidades diversas, locais de Nasceu em 23 de março de 1942, em Clinton,
Missouri e faleceu no dia 13 de abril de 2015,
difusão, locais de execução, lojas nas Aldeias de Southern Hills em Tulsa. Foi
especializadas, cenas musicais, tribos professor de Geografia da Universidade
urbanas, entre outros (PANITZ, 2012). Estadual de Oklahoma, onde obteve seu Ph.D
em Geografia em 1971; Tornou-se um dos
A música ainda relata os lugares e educadores mais populares no campus devido o
lhes dá significado, protesta contra método de Geografia e Música. Disponível em:
as injustiças do mundo ou cria <http://www.pmcfh.com/memsol.cgi?user_id=1
ainda mais alienação, pode ser uma 561628> Acesso em 01/09/15
9
ferramenta de controle do Professor Lily Kong é Vice-Presidente
imaginário social ou pode ser (University e Relações Globais) da
libertadora, ao construir espaços de Universidade Nacional de Cingapura. Ela leva a
esperança e resistência. Sua Universidade no seu desenvolvimento
estratégico de se tornar uma universidade líder
dimensão, como representação do
global através do reforço das relações com as
mundo e como prática no/do diversas partes interessadas. Kong é um
espaço, se apresenta como uma geógrafo e tem sido um membro do corpo
geografia complexa que desafia os docente do Departamento de Geografia NUS
geógrafos a refletirem juntos com desde 1991. Principais focos de pesquisa do
outras áreas do conhecimento, Prof Kong são a religião, a política cultural e

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trouxeram valiosa contribuição aos Carney (2007, p. 125) ressalta que “Os
estudos geográficos da música. lugares são marcados por uma história
Para Carney (2007, p. 124) “A específica, mas mudam continuamente e
tem um crescente significado para
localização dos lugares é o ponto de
aqueles que os habitam, como um
partida de todo estudo geográfico, bem
resultado dessas características”.
como o de todos os nossos movimentos
Podemos enfatizar que o homem cria o
pessoais e ações espaciais na vida
lugar, marcando-o com seu
cotidiana”.
conhecimento, a utilização de
Diversos estudiosos, basicamente tecnologias, o próprio desenvolvimento
geógrafos, escreveram sobre lugar. histórico onde influência, sendo que as
Todos observaram que o características físicas do lugar são o
relacionamento de pessoa e lugar é
cenário no qual ocorre a ação humana
recíproco – uma simbiose pessoa-
lugar. Além disso, a maioria deles (CARNEY, 2007).
sustenta que lugar não é apenas “A construção do lugar é permeada por
onde algo está situado; o próprio códigos de comunicação, que se
lugar incorpora significado, que
estruturam dentro de um contexto
depende da história pessoal que
uma pessoa traz para ele. É através cultural, e que, possuindo características
dessas interações pessoas-lugar que psicológicas interligadas a elementos
desenvolvemos uma profunda ambientais, possibilitam a geração de
associação psicológica com um valor e significado” (ABREU SILVA,
lugar específico, seja ele lar, rua, COSTA SILVA, 2009, p. 103). Diante
cidade, zona rural, estado, região ou do exposto, Claval (2001) ressalta o fato
nação (CARNEY, 2007, p. 128). de que os lugares não possuem somente
Nessa perspectiva, segundo Carney uma forma, cor, racionalidade funcional
(2007, p. 125) “Todos os lugares têm e econômica. O lugar é carregado de
traços individuais, físicos e culturais sentido para aqueles que os habitam ou
que os distinguem de outros lugares”. frequentam. Tais considerações
Os lugares são vivenciados pelos exprimem também os relatos de
indivíduos, que, a partir de seu contato Almeida (2003) ao enfatizar que os
com o mundo exterior, atribuem lugares vividos são frutos das relações
significados as suas manifestações. do homem e o meio e os sentimentos de
pertencimento, sentimentos que
Para Carney (2007, p. 116) “Os correspondem às práticas e às
aspectos físicos e humanos juntos aspirações, estando estas relações
constituem o caráter geográfico total de codificadas por signos que lhes dão
um lugar específico”. Os lugares são sentido.
constituídos de uma ancoragem
emocional, carregam em si os traços É nessa circunstância que as
culturais de um povo, uma cultura, características únicas de lugares
sendo que fornecem o aporte para a específicos podem oferecer pré-
construção do conhecimento geográfico. condições a novas ideias musicais. Logo
o contexto histórico, ambiental e social
de um lugar fornece cenário e
inspiração para determinado indivíduo
economia criativa, e da identidade nacional. ou grupo criar música.
Disponível em:
http://blog.nus.edu.sg/lilykong/cv/ Acesso em A música de um lugar pode
10/10/15. oferecer ao estudo geográfico

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elementos para a leitura do A primeira diz respeito à delimitação de
compartilhamento e da construção regiões musicais e interpretação da
da memória e dos símbolos nele música regional, ou as diferenças, de
existentes (...). O estudo da música lugar para lugar, das preferências e
deve levar em consideração o lugar
gostos musicais das pessoas; a segunda
onde ela é produzida e tocada, com
seus valores sociais e culturais.
às dimensões espaciais da música com
Pensar o lugar remete a pensar na relação à migração humana, vias de
localização, assim como nas transporte e redes de comunicação,
paisagens que este comporta. exportações de vinis, cassetes e discos;
(TORRES; KOZEL, 2010, p. 128) a terceira em relação à organização
espacial da indústria da música; a quarta
Carney (2007) enfatiza que há quanto às relações da música com
possibilidades de compreender os outros traços culturais em um contexto
lugares e a música por meio de uma de lugar; a quinta a relação da música
hierarquia de lugares, revelando as com o ambiente. Exemplo: concerto ao
distintas percepções e manifestações da ar livre, uso da madeira nos
musica que estão relacionadas às ruas, instrumentos, conteúdo poético falando
aos bairros, as cidades, estados e da natureza; a sexta, diz respeito à
províncias, regiões e nações, enfim música como função nacionalista e
elementos espaciais que são associados antinacionalista (CARNEY, 2007).
a diferentes tipos de lugares. Isso
Ainda caracterizando tal categorial
propiciado pelo nosso lugar de
taxonômico, partimos para o sétimo
nascimento, pois este deixa uma marca
categorial, ou seja, o lugar de origem
que determina a maneira como
(berço cultural) e a difusão de
percebemos outros lugares.
fenômenos musicais para outros
lugares; o oitavo categorial diz respeito
Para Carney (2007) os lugares também
aos elementos psicológicos e simbólicos
podem servir como fontes de inovação e
da música; o nono enfatiza a evolução
de resistência musical; fontes para
de um estilo, gênero ou música
composição musical através de seus
específica de um lugar; e por final o
elementos naturais; referências para
décimo categorial onde são verificados
movimentos espaciais de gêneros e
os efeitos da música na paisagem
subgêneros musicais e, por fim; como
cultural (CARNEY, 2007).
instrumento para percepção e
construção de imagens e mapas mentais Além de Carney, os estudos geográficos
sobre os lugares. da música tiveram importância com as
contribuições desenvolvidas por Lily
Com base nos estudos de Carney (2007) Kong. Na obra intitulada “Popular
verificamos que o autor busca music in geographical analyses”,
compreender a música através dos publicada em 1995, Lily Kong propõe
lugares (topofilia) e entre distintos focalizar a interface existente entre
lugares (heterotopia), adentrando ao geografia e música, visando à
estabelecimento de padrões, contribuição que esse tipo de pesquisa
similaridades, diferenças e conexões da pode dar ao entendimento cultural e
música com o lugar. Logo, destaca as social (CASTRO, 2009).
principais referências de pesquisa
geográfica sobre a música, perfazendo Lily Kong afirma que a música
pode servir como um meio, um
10 taxonomias.
veículo, através do qual as pessoas

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transmitem suas experiências A partir do exposto verifica-se que a
ambientais, seja do cotidiano ou de música, enquanto arte carrega traços
um fato extraordinário, sendo útil geográficos, sendo que o lugar é
para enriquecer discussões que percebido pelas emoções, sensações e
envolvem noções como “espaço”, e
representações subjetivas, conduzindo o
“lugar” (CASTRO, 2009, p.13).
indivíduo em sua relação simbólica com
Kong (2009) ressalta que em relação à o mundo em que vive. A música fala
área de investigação geográfica, a por si só e conta as histórias dos
música popular ainda não foi lugares, marca as fronteiras, estabelece
reconhecida no campo dos estudos relações entre os indivíduos, fala sobre
geográficos, mesmo verificando que a os povos, narra histórias, cria mundos,
música popular está inserida nas mais carrega valores, o caráter geográfico é
diversas sociedades, na constituição do evidenciado.
cotidiano e penetrando na identidade da
humanidade, assim como os mais Considerações finais
longínquos e distintos lugares. A “Virada Cultural” trouxe novas bases
De acordo com Fuini (2014), Lily Kong teóricas e epistemológicas que
aponta cinco principais correntes de possibilitaram à geografia cultural
pesquisa geográfica sobre a música. renovar-se enquanto ciência. Os estudos
1) Aquela que se preocupa com a
de gênero de vida, das especializações
distribuição espacial de formas, das culturas, das técnicas, deram lugar a
atividades, artistas e personalidades temáticas centralizadas no homem, na
musicais, com forte influência estética, na identidade cultural, no
estadunidense; 2) Exploração dos imaginário e na poética do espaço. A
locais de origem da música e sua compreensão da construção dos
difusão, utilizando conceitos como indivíduos, da sociedade, do espaço
contágio, relocação, difusão hie- enquanto lugar e o simbolismo das
rárquica e exame dos agentes e das coisas e objetos na paisagem foram
barreiras à difusão; 3) propiciados pela inserção da
Delineamento de áreas que
fenomenologia e do humanismo no
partilhem alguns traços musicais,
em diferentes escalas; 4) Tradição
campo geográfico.
regional nos estudos geográficos da Autores como Claval (2001) e
música, em que o caráter e a
Rosendahl (2012), foram pontuados
identidade dos lugares são
apreendidos a partir das letras,
nesse trabalho a partir de suas
melodia, instrumentação e impacto colocações sobre a relação do lugar na
sensorial da música; 5) Análise paisagem e o seu caráter simbólico na
temática das letras para investigar geografia. As contribuições de Gil
preocupações ambientais expressas Filho (2010) trouxeram a preocupação
nas músicas. A autora, por fim, em desenvolver uma segunda
reafirma o valor pedagógico dos hermenêutica, sendo que as bases
cinco temas expressos, discutindo filosóficas propostas por Ernst Cassirer
como a música pode auxiliar no abrem essa possibilidade.
ensino de conceitos geográficos,
através do entendimento da origem As contribuições de Cassirer expostas
da cultura, difusão cultural, via de por Gil Filho (2010) demonstraram que
difusão e percepção ambiental, o homem está inserido em um universo
assim como imagens características simbólico onde a arte, a religião, a
dos lugares (FUINI, 2014, p.100).
ciência e a linguagem constituem a

106
experiência do indivíduo no mundo. A ALMEIDA, M. G. de; RATTS, A. (Orgs)
Arte nesse mundo simbólico é Geografia: leituras culturais. Goiânia:
Alternativa, 2003.
assinalada pelas suas manifestações,
sendo que a música, a partir da CARLOS, A. F. A. A Geografia Brasileira,
Geografia Cultural, pode ser pensada a hoje: Algumas reflexões. Terra Livre. São
Paulo, ano 18, vol.1, nº 18, p.161 – 178 jan.-
partir das sensações, percepções e jun./2002. Disponível em
experiências. A música enquanto arte http://www.agb.org.br/publicacoes/index.php/te
abre possibilidades para a compreensão rralivre/article/view/151/140 Acesso em
do lugar enquanto categorial geográfico. 02/10/15.

Nessa perspectiva foram evidenciados CARNEY, G. O. Música e Lugar. In:


CORRÊA, R. L.; ROSENDAHL, Z. (Orgs).
os trabalhos desenvolvidos por Carney Literatura, Música e Espaço. RJ: EDUERJ,
(2007) e Kong (2009) que trouxeram 2007, p. 123-150.
valiosa contribuição aos estudos
CASSIRER, E. Ensaio Sobre o Homem. São
geográficos na música. Em Carney Paulo: Martins Fontes, 1994.
(2007) foi constatada compreensão da
música por meio dos lugares (topofilia) CASTRO, D. de. Geografia e música: a dupla
face de uma relação. Espaço e Cultura, UERJ,
e entre distintos lugares (heterotopia), RJ, n. 26, p. 7-18, Jul/Dez, 2009.
estabelecendo padrões, similaridades,
diferenças e conexões da música com o CLAVAL, P. Geografia Cultural: um balanço.
Revista Geografia. Londrina: UEL, v. 20, n. 3,
lugar. Já em Kong (2009) foram p. 005-024, set./dez, 2011. Disponível em:
apontadas as principais correntes de <http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/geogr
pesquisa geográficas sobre a música. afia/article/view/14160> Acesso em: 20/10/15.

A partir do exposto é imprescindível CLAVAL, P. A geografia cultural.


destacar que a arte é um campo de Florianópolis: Ed. Da UFSC, 2001.
estudo que permite à geografia cultural _______. Terra dos Homens. São Paulo:
aprofundar o mais rico e valioso estudo Contexto, 2010.
em todos os âmbitos, visto que a FUINI, L. L. Territórios e territorialidades da
percepção, a cognição, a representação, música: uma representação de cotidianos e
os sentidos que o homem atribui ao lugares. GEOUSP – Espaço e Tempo. São
lugar onde vive, são mediados pelo Paulo, v. 18, n. 1, p. 97-112, 2014.
universo simbólico na qual esta está GIL FILHO, S. F. Espaço Sagrado: estudos em
compreendida. Assim, a música carrega geografia da religião. Curitiba: Ibpex, 2008.
os traços dos lugares que estão repletos _______ Geografia das Formas Simbólicas em
de sentidos para o homem, lugares Ernerst Cassirer. In SERPA, A.; BARTHE-
geográficos que passam a ser mediados DELOIZY, F. (Orgs.). Visões do Brasil -
Estudos Culturais em Geografia. Salvador:
pela arte.
EDUFBA, 2012.
_______ Espacialidades de Conformação
Referências Simbólica em Geografia da Religião: Um ensaio
epistemológico. Revista Espaço e Cultura, nº
ABREU SILVA, G. H. de. COSTA SILVA, J. 32, (2012), p. 78-90.
de. A música dos bois-bumbás: um forte
elemento na caracterização do lugar _______Representações e formação dos
parintinense. In: KOZEL, S; COSTA SILVA, J. territórios: Notas para uma geografia das formas
da; FILIZOLA, R.; GIL FILHO, S. F. (Orgs.) simbólicas em Ernst Cassirer. In ANAIS XVI
Expedição Amazônica: Desvendando espaço e ENCONTRO NACIONAL DOS GEÓGRAFOS
representação dos festejos em comunidades CRISE, PRÁXIS E AUTONOMIA: ESPAÇOS
amazônicas. “A festa do boi bumbá: um ato de DE RESISTÊNCIA E DE ESPERANÇAS -
fé”. Curitiba: SK Ed., 2009. Capítulo IV, p. 97- ESPAÇO DE SOCIALIZAÇÃO DE
115. COLETIVOS, 2010, Porto Alegre - RS, 2010.

107
KONG, L. Música popular nas análises ROSENDAHL, Z. História, Teoria e Método
geográficas. In: CORRÊA, R. L.; em Geografia da Religião. ESPAÇO E
ROSENDHAL, Z. (Orgs.). Cinema, música e CULTURA. Rio de Janeiro, UERJ, n. 31,
espaço. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2009. p. 129- p.24-39, Jan./Jun., 2012. Disponível em:<
175. http://www.e-
publicacoes.uerj.br/index.php/espacoecultura/art
MOCKEL, C. Arte e linguagem como duas
icle/view/6121/4422>. Acesso em: 17/10/15.
formas simbólicas nas obras póstumas de Ernest
Cassirer. Revista Filosófica de Coimbra, nº 40, TORRES, M. A.; KOZEL, S. Paisagens
(2011), p. 325-336. sonoras: possíveis caminhos aos estudos
culturais em geografia. RA’EGA, Curitiba:
PANITZ, L. M. Geografia e música: uma
UFPR, n. 20, p. 123-132, 2010. Disponível
introdução ao tema. Revista Bibliográfica de
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REIN, M. LA FILOSOFIA DEL LENGUAJE Recebido em 2016-08-17
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