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PAISAGEM CULTURAL E ARQUITETURA VERNACULAR: O CASO

DOS SUÍÇOS EM NOVA FRIBURGO

HOLZER, WERTHER

Universidade Federal Fluminense. Departamento de Urbanismo


Caixa Postal 113807, Maricá - RJ CEP 24900-970
Werther.holzer@uol.com.br
Resumo
O artigo fará uma reflexão sobre a identidade de assentamentos tradicionais e da paisagem onde se
inserem, e da possibilidade de sua reabilitação a partir da incorporação da paisagem vernacular nos
projetos urbanos. Esta questão é analisada a partir de um recorte do estado do Rio de Janeiro,
objeto de pesquisa que vimos realizando sobre a paisagem e a arquitetura das casas de taipa em
Nova Friburgo. O passado pode ser inventariado a partir dos vestígios arquitetônicos. A paisagem
está repleta de artefatos. Ela própria é uma composição, e justaposição, de artefatos, que são
repositórios de história e também de memória. A paisagem pode nos informar sobre a
paleopaisagem, cuja estrutura se mantém, ajudando-nos a identificar os vestígios materiais que
fazem parte da memória do local. Aqui a história cumpre o seu papel, a de nos informar no momento
atual das principais referências que o passado nos legou. Matéria-prima que pretendemos utilizar na
forma de texto e de material iconográfico e cartográfico. O ângulo escolhido é o da recuperação da
memória e, como consequência, de uma possível proteção física, da paisagem vernacular, que
representa a maioria dos sítios e assentamentos, ou seja, não refletir apenas no artefato
explicitamente produzido pelo homem, mas em outros artefatos, o sítio e a paisagem, que também
são manipulados pelo homem enquanto habitat. As diretrizes metodológicas propostas para a
pesquisa atribuem ênfase à identificação de padrões que compõem a paisagem vernacular a partir do
reconhecimento estrutural e perceptivo do ambiente como construído pela memória individual e
coletiva, o que caracteriza estas paisagens como uma manifestação sensível que se expressa em
determinadas categorias espaciais.Esta paisagem foi submetida a dois parâmetros de análise: o
axioma histórico, que propõe um aprofundamento conceitual nas questões relativas ao espaço e ao
tempo, a partir do lugar e da paisagem, remetendo-se à memória e ao mundo vivido; O Método
Fenomenológico, quando se refere à espacialidade ou, se preferirmos, à geograficidade humana.
Este recorte espacial deve ser observado como uma "região do espaço vivido", onde a tessitura das
relações sociais, econômicas e culturais, expressas pelos padrões de ocupação e de cultivo, pela
forma urbana e as tipologias habitacionais, pelas relações de vizinhança e de parentesco, pelas
crenças e pelos mitos, entre outras, refletem uma paisagem cultural, que pode ser definida a partir
dos conceitos propostos por Berque de paisagem-marca, de paisagem-matriz e de sua trajeção. O
reconhecimento estrutural e perceptivo da paisagem possibilitará a identificação dos elementos ou
atributos que lhe são determinantes, na hipótese de que é possível reconhecer e identificar um
elemento ou conjunto de elementos da paisagem vernacular através do uso de imagens. Neste
percurso, que intenta uma construção epistemológica da natureza da paisagem, como proposta
acima, a trajeção (trajection) como apreensão das concepções relativas aos lugares onde as pessoas
vivem, à natureza da qual são familiares e às paisagens que observam e modelam será a principal
diretriz.

Palavras-chave: paisagem vernacular; fenomenologia; trajeção.


Os objetos centrais desse texto são paisagens e casas, artefatos produzidos pelas mãos
humanas segundo determinados cânones.
Não se trata aqui de grandes obras de paisagismo ou da arquitetura desenhada por
arquitetos segundo os padrões da cultura da elite, mas de abrigos implantados num
determinado habitat por pessoas humildes segundo tradições ancestrais herdeiras de
determinada cultura e de um saber-fazer.
O resultado dessa relação homem/meio, que ouso chamar de simbiótica, é a produção de
paisagens culturais vernaculares, que serão definidas mais adiante segundo referenciais da
geografia norte americana. Esses referenciais balizarão a discussão sobre o que são
paisagens culturais e de mecanismos para a sua preservação.
Nessa paisagem, tornada habitat, produzida pelo homem, se destaca o abrigo, a edificação,
esse artefato que está na origem de todas as culturas, que reflete melhor do que qualquer
outro a humanidade do ser humano e todas as suas relações culturais e sociais.
Serão investigados, enquanto recursos de preservação dessas paisagens e de sua
arquitetura vernacular, as possibilidades e limitações de instrumentos como o simples
tombamento, ou chancela, e de soluções mais radicais como a implantação de museus a
céu aberto.
Toda essa reflexão teórica se remete a determinadas paisagens e arquitetura produzida por
gerações de imigrantes suíços, no município de Nova Friburgo – RJ, que venho
pesquisando há três anos. Essa pesquisa empírica dialoga com todas as formulações
teóricas apresentadas e aponta possibilidades para a preservação do patrimônio vernacular.

1. Sobre paisagens, paisagens culturais e paisagens vernaculares


Paisagem. Essa palavra já gerou, com certeza, milhares de livros, teses e artigos. Nesse
texto, referenciado pela fenomenologia, trata-se de uma essência que delimita atributos
espaciais e temporais de um determinado fenômeno relativo à ligação visceral do ser e do
mundo, onde o que pauta a relação é a intersubjetividade.
Necessário destacar que se trata de uma essência elaborada segundo os parâmetros
ocidentais (Cosgrove,1984), surgida no início da Idade Moderna (Ronai, 1977), a partir de
intencionalidades proporcionadas pelo contato do europeu com novas formas de educação
(Baxhandall,1991) e, principalmente, com o contato com povos antes desconhecidos com os
quais não compartilhavam uma mesma visão de mundo (Todorov, 1982; Dussel,1994).
Foi apropriada pela geografia, em seus primórdios como ciência acadêmica e positivista,
referindo-se sempre a uma determinada porção do espaço que pode ser observada e
percebida “com um só golpe de vista”, definição herdada da pintura onde o olhar traz para a
tela o que o artista observa por cima do quadro. Essa apropriação enfatizou, em

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determinadas escolas, os aspectos físicos, ou seja, os tradicionalmente ligados às ciências
naturais, em outras, os aspectos humanos, ligados às ciências humanas e à política.
Esse texto tem como primeira referência a paisagem como definida por Sauer: “Landscape
is [...] a land shape, in which the process of shaping is by no means thought of as simply
physical. It may be defined, therefore, as an area made up of a distinct association of forms,
both physical and cultural” (Sauer, 1996, p..300).
Mais do que isso, trata-se de um conceito importante para a geografia, como para outras
ciências, “o conteúdo da paisagem é encontrado, portanto, nas qualidades físicas da área
que são importantes para o homem e nas formas do seu uso da área, em fatos de base
física e fatos da cultura humana” (Sauer, 1998, p. 29).
Esta segunda base, a dos fatos da cultura humana, exprimem uma forma geográfica de se
pensar a cultura como “marca da ação do homem sobre a área” (Sauer, 1998, p. 31).
A paisagem cultural pode ser definida, então, como “a área geográfica em seu último
significado. Suas formas são todas as obras do homem que caracterizam a paisagem”
(Sauer, 1998, 57).
Essa concepção inicial pode ser melhor compreendida, segundo um referencial
fenomenológico, como enunciada por Berque: a geografia cultural seria o estudo do sentido
(unitário e global) que uma sociedade faz de sua relação com o espaço e a natureza – que
concretamente é vista como paisagem. Sendo a manifestação concreta dessa relação, a
paisagem pode ser objetivada analiticamente através de sua relação com o sujeito coletivo
(Berque, 1984, 84).
Essa objetivação seria expressa a partir de dois termos:
A paisagem é uma marca, porque ela exprime uma civilização; mas é
também uma matriz, porque participa de esquemas de percepção, de
concepção e de ação – isto é, da cultura – que canalizam em um certo
sentido a relação de uma sociedade com o espaço e com a natureza, em
outras palavras com a paisagem de seu ecúmeno” (Berque, 1984, p. 84).
O aspecto a ser destacado nessa relação marca/matriz é a sua natureza trajetiva, ou
intersubjetiva se pensarmos fenomenologicamente. O trajeto, segundo Berque, estabelece
uma unidade entre sujeito e objeto. Esse é um trajeto perpétuo entre os dois termos,
gerando uma causalidade sequencial (objetiva) e uma qualidade projetiva (metafórica).
(Berque, 1985, p. 99-100).
Para explicitar a sua vernacularidade a paisagem pode ser submetida a dois parâmetros de
análise: o “axioma histórico”, como proposto por Lewis (1979), que anuncia um movimento
de renovação na Geografia Cultural, a chamada Geografia Humanista Cultural, que
propunha um aprofundamento conceitual nas questões relativas ao “lugar” e à “paisagem”,
remetendo-se à memória e ao “mundo vivido”, a partir principalmente do que as
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humanidades podem nos informar sobre esses temas; o Método Fenomenológico, quando
se refere à geograficidade humana.
Os recortes relativos às paisagens foram sempre observados como uma "região do espaço
vivido", assim denominada por Armand Frémont (1980) em seus estudos, onde a tessitura
das relações sociais, econômicas e culturais, expressas pelos padrões de ocupação e de
cultivo, pela forma urbana e as tipologias habitacionais, pelas relações de vizinhança e de
parentesco, pelas crenças e pelos mitos, entre outras, refletem uma paisagem cultural.
Dentre os diversos olhares que se voltam para a modificação da paisagem, processo,
muitas vezes, violento, este, da análise da natureza trajetiva do meio, permite um enfoque
ao mesmo tempo científico e poético. Nos trabalhos de campo, que vimos realizando, uma
frase nos serve de parâmetro:
O passado nos rodeia e nos satura; toda cena, todo relato, toda ação
possui um conteúdo residual de tempos antigos. Todo o conhecimento do
presente está fundamentado em percepções e ações passadas;
reconhecemos uma pessoa, uma árvore, um desjejum, uma mensagem,
porque nós a conhecíamos ou a experimentamos anteriormente."
(Lowenthal,1985).
Os vestígios materiais da cultura que procuramos, são, como observa o autor, artefatos;
mas eram, também, história e memória. O passado pode ser inventariado a partir dos
vestígios arquitetônicos. A paisagem está repleta de artefatos. Ela própria é uma
composição, e justaposição, de artefatos, que são repositórios de história e também de
memória. A paisagem pode nos informar sobre a paleopaisagem, cuja estrutura se mantém,
ajudando-nos a identificar os vestígios materiais que fazem parte da memória do local. Aqui
a história, e principalmente a memória, cumprem o seu papel de nos informar, no momento
atual, sobre as principais referências que o passado nos legou.
Neste texto, em termos teóricos fica clara uma definição da paisagem, e da arquitetura, a
partir do “axioma histórico”, como se segue:
Ao tentar decifrar o significado de paisagens contemporâneas e do que
elas ‘falam’ sobre nós ..., a história nos interessa. Ou seja, nós fazemos o
que fazemos, e produzimos o que produzimos, porque nossos fazeres e
produtos são heranças de nosso passado..., uma grande parte da
paisagem comum foi construída por pessoas no passado, cujos gostos,
hábitos, tecnologias, opulência e ambições foram diferentes das nossas
hoje. ... Para compreender estes objetos é necessário entender as
pessoas que os construíram — nossos ancestrais culturais — no seu
contexto cultural, não no nosso.” (Lewis,1979,)

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Lewis nos fala principalmente, de ocorrências menores, do cotidiano, dos fatos guardados
na memória, das versões, dos vestígios, que vão permitir uma aproximação com a paisagem
onde palpita o mundo vivido dos que lá estão, e dos que lá estiveram.
O ângulo escolhido é o da recuperação da memória e, como consequência, de uma possível
proteção física para a paisagem cultural e para a arquitetura vernacular, que representa a
maioria dos sítios e assentamentos das área pesquisada, como de resto acontece em todo
mundo. Mais do que isso nos voltamos não só para o artefato explicitamente produzido
como abrigo, mas a outros artefatos, como o sítio e a paisagem, que são manipulados pelo
homem enquanto habitat.
Neste percurso, em que se intenta uma construção epistemológica da natureza da
paisagem, como proposta acima, a “trajeção” (trajection) (Berque, 1985), como “apreensão
das concepções relativas aos lugares onde as pessoas vivem, à natureza da qual são
familiares e às paisagens que observam e modelam” será a principal diretriz.

2. A COLONIZAÇÃO SUÍÇA E ALEMÃ EM NOVA FRIBURGO


Nova Friburgo é resultado do primeiro projeto oficial de colonização européia no Brasil
contratada pelo governo português. Essa experiência de colonização inicia-se em 1819, a
partir de um contrato assinado em 1818, entre Sébastien-Nicolas Gachet, um suiço radicado
no Rio de Janeiro, representando o governo suiço e a coroa portuguesa. Esse contrato
estipulava a vinda de cem famílas católicas de língua francesa provenientes do cantão de
Fribourg (Sanglard, 2003, p.173 e 176).

Por motivos sobre os quais não cabe aqui se alongar, devidos à publicidade dada a essa
empreitada de imigração oficial, o número de imigrantes que saiu da Europa foi bem maior
do que o previsto no acordo, envolvendo também habitantes de outros cantões, parte deles
de língua alemã. A procedência dos imigrantes, do ponto de vista português, não era
importante já que o contrato previa que eles abrissem mão da cidadania suiça adotando a
nacionalidade portuguesa (Nicoulin, 1988, p.237).

Havia uma importante contrapartida oferecida pela coroa portuguesa: “custear a passagem
dos imigrantes, do porto à colônia, garantir-lhes subsídios para os primeiros anos na nova
terra e preparar o local para recebê-los. A cidade encontrada pelos suíços era formada por
um conjunto de cem casas, divididas em três quarteirões, uma praça e um hospital. A casa-
grande da antiga fazenda do Morro-Queimado, local escolhido para a instalação da colônia
tornou-se a moradia dos dignitários do governo junto à colônia. Ali funcionavam também a
escola e a igreja. Havia ainda dois fornos comunitários, um armazém, um açougue, dois
moinhos e um silo”. (Sanglard, 2003, p.177).

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Assim os imigrantes suiços que sobreviveram à viagem, pois ocorreram muitas mortes,
chegaram a uma Colônia já edificada, evidentemente com tipologia e padrão construitivo
bastante diverso ao que estavam habituados. Mais grave foi o fato de que familias distintas
tiveram que compartilhar a mesma casa, pois o número de imigrantes era muito superior ao
acordado, segundo Oliveira, quando a vila de Nova Friburgo recebeu seu alvará, em janeiro
de 1820, nela estavam assentadas 260 famílias suiças (Oliveira, 2012, p. 4). Havia, também,
uma dificuldade de comunicação e de acesso, tanto local, como para o Rio de Janeiro (Witt,
2004, p.176).

Uma carta anônima, comentada por Sanglard, descreve essas casas no momento em que
chegaram os imigrantes: “As casas, construídas quase sempre em conjunto de seis, são
cobertas de telhas fundas, o assoalho dos cômodos em terra batida, as janelas guarnecidas
de postigo, sem vidro, à moda do país, bem leves, mas melhor do que tínhamos pensado;
há somente a chuva contra a qual estamos protegidos; cada casa deve alojar 16 pessoas”.
(Sanglard, 2003, p. 186).

Os alemães, cerca de 80 famílias, que originalmente seriam abrigadas em colônias do sul


da Bahia, acabaram sendo enviados para Nova Friburgo em maio de 1824 (Oliveira, 2012,
p. 4). As relações entre suíços e alemães, em seu início, foram conflituosas, por conta
desses últimos serem luteranos, o que levou a uma segregação espacial na vila.

Alves descreve essa situação de segregação, que ainda perdurava no ano 1840, por
ocasião da viagem que fez a Nova Friburgo o alemão Ernst Hasenclever. Segundo esse
viajante a vila de Nova Friburgo “era formada por um pouco mais de 100 casas, todas de um
andar apenas e muito parecidas entre si. No centro, havia um belo pasto comum que era
dividido por 2 pequenas fileiras de 5, 6 casas cada uma. Naquele momento, muitos
proprietários estavam construindo um segundo andar. Os moradores da vila eram em sua
maioria suíços e franceses, sendo possível encontrar dentre eles alguns poucos alemães e
brasileiros. Ganhavam dinheiro com horticultura, gado e sobretudo com a hospedagem e
alimentação dos inúmeros visitantes que, no verão, chegavam à região. Devido ao seu clima
saudável, vinham para se tratarem ou para o lazer. Quinze minutos da vila em direção ao sul
e separada por uma colina, localiza-se o vilarejo dos alemães chamado habitualmente de
Alemanha, pois neste só moravam alemães. Era formado por 30 casas e tinha uma
aparência bem mais pobre que a vila”. (Alves, 2012, p. 4).

Importante ressaltar que, desde o início esse vilarejo também foi edificado em taipa.
Segundo Oliveira (2012, p. 6). o primeiro templo luterano, edificado pelo pastor que liderava
os imigrantes alemães, foi erguido em pau-a-pique.

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Segundo Witt “a produção e o mercado instável dos gêneros agrícolas e o sistema de
herança, o qual partilhava a terra entre todos os herdeiros, foram motivos para gerar
dispersão entre os descendentes dos primeiros colonos” (Witt, 2004, p.181). Mas, o principal
motivo pode ter sido outro, como propõe Sanglard (2003), ao observar que logo esses
imigrantes viram a oportunidade de enriquecer, adaptando-se aos costumes locais, o que
incluia a compra de escravos, ou a sua captura em quilombos, e o abandono da colônia
para dedicar-se ao plantio do café em Cantagalo, então sede do município onde se
assentava Nova Friburgo.

Para os mais pobres, que não queriam permanecer na Colônia devido ao número excessivo
de moradores por residência, restou a alternativa de dirigir-se para o lado contrário de
Cantagalo, seguindo os cursos d”agua que corriam pela Serra do Mar em direção ao
Oceano Atlântico. Esse foi o caso dos fundadores de Lumiar, distrito de Nova Friburgo
objeto da pesquisa apresentada nessa artigo.

Brito data o início da colonização suiça em Lumiar entre os anos de 1819 e 1822, tendo a
localidade sido oficialmente fundada em 1828, nas terras da família De Roure, cuja sede
ainda existe, hoje na forma de um belo chalé de dois pavimentos feito em taipa de mão, com
técnica diversa da adotada pelos suiçõs, que se encontra implantado na praça principal da
localidade, a praça Carlos Maria Marchon. (www.lumiar.net.br/informacoesgerais /
familiaspitz.br.tripod.com/famliaspitz/id10).

O distrito sempre foi isolado. Em uma das entrevistas realizadas durante a pesquisa um
morador sexagenário de uma das casas de taipa documentada relatou que na década de
1950 tropas de mulas demoravam um dia e meio para chegarem à sede do município
distante cerca de trinta e cinco km.

Segundo Brito (familiaspitz.br.tripod.com/famliaspitz/id10), até a chegada da luz, em 1985 e


o asfaltamento da estrada que liga Lumiar a Nova Friburgo, se manteve a “produção de
subsistência e cultivo do café, o modo de vida interiorano (cavalos como meio de transporte,
fogão de lenha e lamparinas, economia assentada em recursos locais)”.

Esse isolamento, como em muitos outros municípios brasileiros, preservou as edificações


locais, hoje num estágio de esquecimento, abandono e demolição. Apesar disso pode se
contar ainda mais de uma centena de casas de taipa, construídas segundo uma tradição
que será apresentada no próximo item como sendo de origem suíça.

3. PAISAGEM E CULTURA DETERMINAM O MODO CONSTRUTIVO

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A partir do que foi apresentado no primeiro item pode-se inferir que essa dispersão dos
imigrantes pelos vales estreitos e encachoeirados dos córregos e riachos que fluem todos
para o rio Macaé, aliada ao isolamento imposto pela ausência de estradas, deixou esses
imigrantes à mercê dos recursos que a paisagem de mata atlântica lhes oferecia.

Como os terrenos são acidentados e pedregosos, optaram pelo cultivo pelo sistema de
pousio, fazendo a limpeza da capoeira, após o período de descanso da terra, com a
queimada controlada. Essas áreas de cultivo ladeiam os cursos d’água, deixando as áreas
mais planas, mas ao mesmo tempo secas e longe do alcance das enchentes, para que se
implante as casas, quase sempre isoladas.

Hoje, por conta do afluxo cada vez maior de turistas, as famílias desses primeiros imigrantes
se agrupam em torno de um núcleo central mais antigo, de forma bastante concentrada, se
utilizando de materiais de construção industrializados, como cimento e tijolos cerâmicos,
abandonando a sabedoria ancestral de uma implantação segura em uma área sujeita a
deslizamentos e a enchentes. Muitos desses terrenos mais favoráveis à implantação segura
de residências estão nas mãos de turistas.

Quando os suíços e alemães chegaram a Lumiar os portugueses, como explanado no item


anterior, já estavam estabelecidos em fazendas. Nestas a técnica construtiva utilizada
também era a taipa, no entanto diferenças construtivas sutis diferenciam as residências dos
portugueses daquelas construídas pelos suíços e alemães, como será demonstrado mais
adiante.

A diferenciação refere-se, primeiramente, a forma com que suíços e alemães se


apropriaram das terras na bacia do rio Macaé, e não foi de forma diferente que ocuparam a
do rio Macabu. Essa implantação obedece a uma lógica de parcelamento orientada pela
tradição jurídica suíça. Assim os grandes latifúndios portugueses, gerados por uma política
de doação de sesmarias, é substituído por um parcelamento em lotes muito menores,
baseados no chésal (parcela urbana com potencial construtivo, estreita e longa) e o Enclos
(terreno cercado).

Segundo o Dicionário Histórico da Suíça:

A casa camponesa é o edifício principal da fazenda, que compreende


também edifícios para uso agrícola. Estes elementos formam, com o
terreno onde se implantam (chesal, enclos) e com os direitos de uso
campestres e florestais, uma entidade jurídica de exploração. A alta
diversidade de áreas naturais na Suíça se reflete nas atividades agrícolas
(cereais,pecuária, laticínios, vinha) e materiais de construção(madeira,
pinho, pedra, barro, palha). A construção e a disposição das casas rurais
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eram influenciadas por disposições legais (direito de sucessão, direito de
construção, direito consuetudinário), mas também por fatores culturais,
como religião, condição social ou tradições. (http://www.hls-dhs-
dss.ch/textes/f/F10998.php).

Nessa parcela de terra se implanta a construção principal e as de uso agrícola, no caso de


Lumiar e São Pedro da Serra pequenos silos elevados em taipa, segundo um método
construtivo que adota a taipa de mão (estuque) como vedação externa e interna, mas sem
qualquer função autoportante. A hipótese que se desenvolve nesse artigo é de que esse
método construtivo tem como referência tradições oriundas da Suíça.

Esta afirmação se baseia no Dicionário Histórico da Suíça, em seu verbete referente à casa
camponesa, referindo-se ao Planalto e ao Jura (onde se localiza Friburgo):

“A escassez de madeira, no século XVI, fez progredir o uso da pedra no


norte e no oeste da Suíça (por vezes com uma armação interna de
madeira) e o enxaimel no leste, nordeste e norte ao longo do Reno. [...]
Desde o século XV predomina a casa de função múltipla. Frequentemente
a fachada principal da habitação é uma parede paralela à água do telhado
(mur gouttereau) (perpendicular à empena). A partir do século XVI,
telhados em cavacos, com baixa declividade, foram substituídos por
telhados íngremes de telhas de barro.” (http://www.hls-dhs-
dss.ch/textes/f/F10998.php).

Com pequenas variações as casas de taipa de Lumiar apresentam a mesma tipologia como
será apresentado no item a seguir.

Esse texto apresenta os resultados parciais de uma pesquisa que objetiva o levantamento
de residências já existentes construídas entre 1820 e 1960. A descrição das técnicas para a
sua construção é prospectiva, apoiando-se também em algumas entrevistas com alguns de
seus proprietários.

Todos os exemplares levantados nessa pesquisa possuem a mesma tipologia, que


corresponde a descrita acima para as casas suíças do Jura: sua fachada principal constitui-
se de uma parede paralela à água do telhado, onde se abrem, nos exemplos mais simples,
uma porta e duas janelas. Em alguns exemplos levantados a porta se abre na empena
lateral.

As plantas são retangulares, com a maior dimensão para a fachada principal, que se volta
ou para uma estrada vicinal ou para a calha de um rio.

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A casa é totalmente suspensa do chão, na maior parte das vezes tirando partido da
declividade do terreno. Essa característica já é peculiar da região de Nova Friburgo, pois
casas de taipa situadas em municípios próximos, que tiveram colonos de outras origens, são
levantadas diretamente do chão, que é nivelado, sendo o piso interno de terra batida. Essa,
alias, foi a tipologia com que se depararam os suíços quando chegaram à Nova Friburgo, o
que deve ter causado espanto e desconforto, pois esse fato foi relatado por diversos
colonos.

A técnica construtiva para se elevar as casas é a de apoiar toda a sua estrutura sobre
baldrames contínuos de madeira, no mais das vezes grosseiramente aparelhadas. Estes
baldrames são apoiados sobre pedras retiradas do próprio terreno, que tem seu topo
nivelado. Sobre esses baldrames são apoiados os esteios (colunas) também de madeira,
que compõe as fachadas e o tabuado corrido do piso. Os esteios apoiam o frechal, também
grosseiramente aparelhado, onde descansa o encaibramento dos telhados, alguns feitos em
pau roliço, outros com madeira aparelhada à mão. Essas peças, nas casas mais antigas são
encaixadas, ou fixadas com cavilhas de madeira.

Pelo descrito acima depreendemos que esta é uma estrutura em enxaimel, que
diversamente do sul do Brasil, onde a vedação das paredes é feita com tijolos de barro, em
Nova Friburgo é preenchida com taipa de mão, aqui chamada de estuque provavelmente
para deixar claro que sua função não é autoportante.

Essas paredes de taipa são construídas de modo tradicional um trançado retangular de


madeira roliça, o pau-a-pique e de bambu. Segundo o Sr. Ornir, um dos entrevistados na
pesquisa, “um joga o barro e o outro fica escorando assim, as ripas e fica acertando”. O
mesmo entrevistado afirma que o pau a pique e o bambu não apodrecem.

O telhado, sempre de duas águas, tem declividade maior do que 30%, coberto de telhas de
barro. Essas telhas, nos exemplos mais antigos, são do tipo capa e canal, fabricadas no
local (como dizem os moradores: feitas nas coxas), exemplos mais recentes são cobertos
de telhas francesas. Foram encontradas residências em bom estado em que o telhado
original foi substituído telhas de fibrocimento. Os beirais são generosos projetando-se de 80
cm a um metro além da fachada. Não constatamos o uso de calhas.

CONCLUSÃO

Constatou-se que o município de Nova Friburgo possui um patrimônio edificado em


arquitetura de terra, com especificidades técnicas que se remontam à colonização suíça.
Este patrimônio está assentado em uma paisagem em que as marcas e as matrizes
configuram uma paisagem cultural bastante peculiar.

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Esse patrimônio está se deteriorando rapidamente em função do abandono e da perda da
memória relativa às técnicas utilizadas tradicionalmente na arquitetura local. Assim como a
terra reparcelada e a paisagem modificada para atender aos turistas que procuram no local
a Suiça Brasileira.

O levantamento realizado nessa pesquisa visa um possível processo de tombamento, não


só das edificações, mas também da tradição construtiva envolvida, enquanto patrimônio
imaterial, sob esse aspecto a chancela de proteção mais adequada para a área seria a da
sua proteção como paisagem cultural. Todas as edificações levantadas estão sendo
lançadas em ficha própria que segue o modelo do Instituto Estadual do Patrimônio Cultural –
INEPAC, instituição responsável pela preservação do patrimônio no estado do Rio de
Janeiro, onde é colocada sua localização, segundo as coordenadas colhidas por um GPS e,
sempre que possível, um breve relato dos moradores sobre a origem e sua relação com a
casa.

As residências estão esparsas nas vertentes dos pequenos rios que são tributários do rio
Macaé. Elas contam a história de um lugar que conseguiu manter vivas as suas tradições e
peculiaridades. O ideal é que se constituíssem nos objetos centrais de um museu a céu
aberto que se apresentasse enquanto um circuito cultural e turístico.

Referências Bibliográficas
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Berque, Augustin. Milieu, trajet de paysage et determinisme géographique. L’espace
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