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Arqueologia da cidade: reflexões e propostas para Porto Alegre

Fernanda Bordin Tocchetto


Museu Joaquim José Felizardo,
Secretaria Municipal da Cultura de Porto Alegre, RS.
e-mail: tocchetto.reis@netmarket.com

Esta breve exposição será pautada por algumas reflexões sobre a prática arqueológica
no espaço compreendido pelo município de Porto Alegre e a pertinência do Programa
de Arqueologia Urbana, coordenado pelo Museu Joaquim José Felizardo, órgão da
Secretaria Municipal da Cultura.

Na tentativa de tecer esclarecimentos desta arqueologia e apontando para o título da


comunicação, pergunta-se: o que caracteriza uma arqueologia da cidade?; qual o papel
do trabalho arqueológico no ambiente urbano?; como integrar, em uma perspectiva de
trabalho, a coexistência de manifestações arqueológicas pré-históricas e históricas no
espaço da cidade?

A arqueologia da cidade identifica-se com o conceito de arqueologia urbana


apresentado por Staski1(pg.97) como "...o estudo das relações entre cultura material,
comportamento humano e cognição em um cenário urbano". Segundo esta concepção as
áreas arqueológicas individuais localizadas em cenários urbanos são componentes de
um corpo unificado e integrado. A cidade passa, assim, a caracterizar-se como um sítio
arqueológico, considerando o cenário urbano simultaneamente como ambiente e objeto
de pesquisa.

Essa orientação teórica tem sido aplicada em cidades norte-americanas desde o


começo dos anos 802, produzindo resultados significativos para a compreensão dos
processos de transformação urbana. Apenas recentemente começaram a ser realizados
trabalhos desta natureza na América do Sul, como a proposta para Buenos Aires3 e São
Paulo, esta última direcionada a problemáticas arqueológicas específicas para o cenário
urbano4.

O termo cidade-sítio apresentado por Cressey e Stephen (op.cit.:50) se refere à área


que incorpora um assentamento urbano e que é vinculado em termos de organização
espacial e sócio-econômica. Consiste, portanto, em um instrumento teórico-
metodológico que considera qualquer manifestação arqueológica inserida no meio
urbano como dependente e como parte da cidade como um todo, de modo que cada uma
está sujeita à análise dentro deste contexto mais amplo.

Esta abordagem deve considerar a cidade como uma entidade complexa, que se
revela na heterogeneidade e diversidade das formas e relações sócio-culturais,
configurando-se enquanto lugar das expressões e representações dos diferentes grupos
humanos que nela vivem. Grupos estes responsáveis pela conformação das diferentes
ambiências e pela atribuição de significados aos espaços vividos. Utilizando uma
metáfora, a cidade surge como teatro da sociedade e os lugares urbanos como os seus
palcos articulados, onde seus personagens experienciam suas existências5.

Neste sentido, os testemunhos materiais das ações humanas podem vir a representar
os diferentes modos e estilos de vida que se encontram na sociedade. O patrimônio
arqueológico - restos materiais de atividade cultural e seu contexto - deve ser
considerado como suporte de informação sobre os padrões de comportamento, práticas
sociais do passado da cidade e como produto e vetor das relações sociais6.

O grande desafio de uma arqueologia urbana encontra-se em ultrapassar uma prática


decorrente do resgate e interpretação de sítios e artefatos que ocorre de forma
"descolada" dos indivíduos que vivem na cidade e que, de uma certa maneira, possuem
vínculos com este patrimônio.

Seguindo nesta perspectiva, as evidências materiais arqueológicas urbanas, signos de


outros tempos e constituintes de um processo dinâmico de construção de identidades
coletivas, evocam memórias e sensações de pertencimento a uma história na qual os
sujeitos, presentes e passados, estão implicados.

O trabalho de arqueologia no meio urbano, ao possibilitar a restituição de sentido aos


testemunhos materiais que relacionam-se diretamente à história da cidade, provoca a
reapropriação destes bens, levando a construção de uma memória. Independentemente
da diferença e da distância, existe um caminho de identificação, introduzindo qualidade
na vivência dos cidadãos7.

Porto Alegre, considerada uma metrópole pelos urbanistas, muito já perdeu de seu
patrimônio histórico constituído ao longo de dois séculos. Os anos 70 e 80 construíram
uma cidade de "monumentos" urbanísticos - túneis, viadutos, perimetrais, grandes
prédios. Representantes materiais de outros tempos restaram isolados, em contextos
fragmentados, alguns com caráter apenas de monumento como igrejas, prédios de
funções públicas e outros equipamentos urbanos. O centro da cidade, que como toda a
metrópole possui um centro histórico, é um dos locais onde vislumbra-se o conflito
entre o antigo e o novo8. Em conseqüência das intervenções modernizadoras, surgiram
áreas configuradas segundo novos padrões de racionalidade e gosto, rompendo com
formas peculiares e tradicionais de relação com os espaços construídos e estilos de
vida9.

A década de 90 tem marcado um período de resgate e revitalização de prédios e locais


públicos com significado histórico e social. Neste sentido a arqueologia vem a ter um
papel significativo no reencontro da cidade e seus habitantes com a sua história. As
evidências arqueológicas constituem-se, assim, em referências materiais dos processos
de mudanças, da diversidade social, das diferentes formas de apropriação dos espaços e
das práticas sociais, onde o velho e o novo, o tradicional e o moderno se articulam
definindo identidades culturais.

Este olhar sobre a cidade e sobre as relações que podem ser estabelecidas com o fazer
arqueológico qualificam a inserção e desenvolvimento de pesquisas no ambiente
urbano. A cidade deixa de ser estudada como se fosse "(...) simplesmente uma grande
coleção de sítios discretos" (Juliani, op.cit.:4) e passa a ser considerada uma entidade
com suas partes interconectadas: a arqueologia na cidade para a arqueologia da cidade.
Segundo a primeira orientação, os sítios são considerados isoladamente, sendo a cidade
apreciada apenas como ambiente no qual os sítios estão inseridos. Esta abordagem
parece adequar-se a uma realidade distante do processo de constituição de um ambiente
urbano - a ocupação pré-histórica de um território. Neste caso, a conciliação entre uma
arqueologia da cidade e na cidade, faz-se na aplicação de estratégias de gestão do
patrimônio arqueológico municipal - histórico e pré-histórico - em vista de que ambos
estão sujeitos as mesmas interferências antrópicas.

A cidade caracteriza-se por uma grande intensidade de usos de seus espaços sofrendo,
portanto, uma constante transformação de suas paisagens através de aterros,
terraplanagens, construções, demolições, desfiguração do relevo original, entre outros.
Apesar de todas estas intervenções, é comprovado que uma parcela considerável do
subsolo é preservada, contendo vestígios arqueológicos de ocupações pretéritas10.

Em Porto Alegre constata-se a validade destas proposições, posto que um rico acervo
arqueológico proveniente de lixeiras coletivas, foi resgatado em locais com alta
intensidade de uso do solo, como o Mercado Público e a Praça Rui Barbosa. Toda a área
central apresenta um potencial arqueológico significativo, visto que sua ocupação
histórica remonta ao século XVIII, início da formação do núcleo urbano. A área
periférica, por sua vez, apresenta probabilidades de ocorrência - como já evidenciado -
de vestígios arqueológicos relacionados a sedes de chácaras e estâncias dos séculos
XVIII e XIX , bem como locais de ocupação pré-histórica. O Programa de Arqueologia
Urbana (P.A.U.), impulsionado por este diagnóstico e redirecionando os trabalhos que,
até o momento, foram desenvolvidos de forma pontual, pretende integrar as diversas
pesquisas sobre o patrimônio arqueológico e histórico visando a compreensão dos
processos de apropriação dos espaços, modos de vida e relações sociais dos diferentes
grupos humanos que ocuparam este território, assim como a valorização e divulgação
desses testemunhos.

O Programa vai atuar em dois ambientes distintos, mas intimamente relacionados: a


cidade, correspondente à malha urbana densa, e o seu entorno, compreendendo os
núcleos urbanos periféricos, as áreas semi-rurais (adjacentes aos núcleos urbanos) e as
áreas rurais (locais de baixa densidade populacional). Em função da amplitude do
território a ser trabalhado - do núcleo urbano principal à área rural - e da rede de
relações sociais, políticas e econômicas estabelecida entre os dois ambientes, a pesquisa
caracteriza-se como arqueologia urbana11.

Em função dessas problemáticas, o P.A.U. propõe enquadrar a cidade-sítio e suas


manifestações arqueológicas em três níveis de espacialidade, adaptadas da proposta de
Clarke12: macro, semi-micro e micro. Tal proposta visa analisar o modo no qual os
elementos são localizados no espaço e sua interação espacial.

A perspectiva de adaptar tais níveis de espacialidade para Porto Alegre parte da


afirmação do autor quanto à flexibilidade de uso dessas escalas, que podem ser
arbitrariamente definidas. Apesar de cada nível apresentar uma escala apropriada de
suposições, teorias e modelos há, no entanto, uma integração entre os três níveis.
Níveis de espacialidade propostos para Porto Alegre:

1-Macro: cidade-sítio, refere-se ao território compreendido pelo município, abrangendo


tanto sua área central correspondente ao núcleo urbano principal (malha urbana densa),
aos núcleos urbanos periféricos, às áreas semi-rurais (adjacentes aos núcleos urbanos) e
às áreas rurais (locais de baixa densidade populacional);

2-Semi-micro: zonas de interesse arqueológico, indicadas segundo variáveis ambientais,


vestígios materiais visíveis, pesquisas na documentação histórica escrita e iconográfica
e, ou informações orais, definidas sob os parâmetros de significância, potencial e risco
de perturbação ou destruição. As zonas de interesse arqueológico são estabelecidas
como um instrumento de gestão do patrimônio, visando a sua proteção e pesquisa. Cada
zona poderá conter várias sub-zonas identificadas a partir de características sociais,
econômicas, culturais, religiosas, entre outras, possibilitando uma leitura da apropriação
do espaço pelos diversos grupos que a ocuparam. As sub-zonas podem apresentar
estruturas associadas segundo determinadas afinidades.

3-Micro: unidades arqueológicas, correspondentes às manifestações arqueológicas


pontuais, sejam elementos fixos (estruturas e espaços de recursos) e móveis (artefatos).

A definição de significância, que determina a elegibilidade das zonas, sub-zonas e


unidades arqueológicas, é dependente das questões específicas levantadas em cada
pesquisa e das questões gerais sobre a história da região em estudo. Ao mesmo tempo
que a significância caracteriza a importância das escalas citadas, ela auxilia nas decisões
dirigidas à maximização da preservação e o uso sensato dos recursos culturais
(Juliani,op.cit.:14).

Staski (op.cit.:127-132) destaca os seguintes critérios de significância:

a- Histórica: envolve recursos culturais relacionados a pessoas, eventos ou, mais


amplamente, a tendências históricas importantes;

b- Científica: consiste no uso dos recursos culturais "(...) para estabelecer fatos e
generalizações sobre as relações sobre a cultura material, o comportamento humano e a
cognição";

c- Étnica: "(...)envolve a importância de certos recursos culturais para a história e


integridade das minorias étnicas";

d- Pública: "(...) envolve os benefícios que a arqueologia pode dar para a sociedade
como um todo";

e- Legal: "(...) envolve o que está escrito na lei relacionada à proteção e investigação
dos recursos culturais".

O potencial arqueológico encontra-se entre os critérios apontados na avaliação do


interesse apresentado por cada zona, sub-zona e unidade arqueológica, avaliados
segundo a existência de vestígios arqueológicos que apresentem significância e pelo seu
grau de preservação.

É preciso salientar que a individualização de uma área como zona de interesse


arqueológico não necessariamente signifique que tal zona apresente um potencial
passível de pesquisa. Este estará condicionado a diversos fatores relacionados à natureza
das alterações de ordem antrópica e natural, as quais o registro arqueológico está
exposto.

O estabelecimento das zonas de interesse arqueológico e dos seus respectivos níveis


de potencialidade, resultarão na composição de um Mapa de valorização arqueológica
da cidade-sítio . Esta abordagem foi desenvolvida por Cazzetta (1992)13 e Juliani
(op.cit). A primeira autora propõe a elaboração do "Mapa de Valorização Arqueológica
do sítio urbano"; a segunda, por sua vez, sugere a "Carta Arqueológica do Município"
(São Paulo). Ambas destacam a importância destes documentos como instrumento de
gestão do patrimônio arqueológico no planejamento urbano.

Linhas de atuação do programa:

1- Gestão do patrimônio arqueológico:

A gestão do patrimônio arqueológico no contexto da cidade é fundamental no


desenvolvimento de projetos relacionados ao planejamento urbano, em vista da
destruição acelerada dos testemunhos materiais do passado. O planejamento urbano
deve adequar-se e submeter-se ao instrumento gestor do patrimônio arqueológico,
evitando situações conflituosas e possibilitando a preservação e pesquisa dos vestígios
arqueológicos do município de Porto Alegre.

Propostas de ação:

1.1- Mapa de valorização arqueológica do sítio:

a- Estabelecimento de zonas de interesse arqueológico: levantamento exaustivo de todos


os dados possíveis sobre a história e a dinâmica da cidade (através da documentação
histórica, produção historiográfica, geografia urbana, planejamento ambiental,
cartografia, informação oral, etc); exame combinado de campo e arquivo das áreas com
alto potencial de investigação; levantamento e registro (inventário) de unidades
arqueológicas.

1.2- Elaboração de uma legislação municipal específica para a proteção e pesquisa do


patrimônio arqueológico considerando os seguintes elementos:

a- Obras de impacto ambiental: Constituição Federal de 1988 (art.20, 216), Lei Federal
3924/61, Resolução CONAMA(001/86), Portaria SPHAN 07/88 relacionadas aos
Estudos e Relatórios de Impacto Ambiental ;
b- Obras privadas e públicas sem impacto ambiental: relacionamento entre arqueologia
e secretarias municipais ( do planejamento, obras e viação, esgotos pluviais, meio
ambiente);

c- Participação da arqueologia no Conselho Municipal do Meio Ambiente.

1.3- Criação de um Arquivo Arqueológico Municipal: instrumento informatizado que


contenha todas as informações existentes sobre o sítio, as zonas de interesse
arqueológico e as unidades arqueológicas, sejam dados históricos e atuais, cartografia,
relatórios, etc.

2- Pesquisa arqueológica: levantamentos, prospecções, escavações, salvamentos;


leituras interpretativas das paisagens, estruturas e artefatos móveis:

Áreas de investigação:

2.1- Arqueologia pré-histórica;

2.2- Arqueologia histórica:

a- período colonial: sede de estâncias (área rural), centro histórico (área da cidade
murada, urbana);

b- século XIX: sede de estâncias e chácaras (área rural), centro histórico (área semi-
rural e urbana).

3- Educação patrimonial:

A arqueologia do meio urbano é favorecida pela proximidade e pelas relações que


podem ser estabelecidas entre o patrimônio material remanescente e os seus habitantes.
Como um instrumento visando contribuir no processo de formação da cidadania, a
arqueologia propicia a restituição de sentido aos testemunhos do passado, a apropriação
e a resignificação destes bens. O desenvolvimento desta perspectiva, além de informar a
população porto-alegrense sobre o passado da sua cidade, carrega em si um potencial
para a construção de identidades e memórias coletivas.

Algumas iniciativas desta ordem estão sendo tomadas através de exposições


museológicas e oficinas de arqueologia para crianças e adolescentes. As primeiras
experiências foram realizadas em 1996 através de oficinas desenvolvidas no espaço do
Museu, ocorrendo a integração com a exposição intitulada "Nos subterrâneos de Porto
Alegre. Vestígios arqueológicos de uma cidade.", nos locais onde houve escavações
arqueológicas (Solar da Travessa Paraíso e Praça Brigadeiro Sampaio) com crianças do
bairro, bem como no Morro Santana, local da sede da primeira sesmaria de Porto
Alegre. Estas atividades têm sido fundamentadas pela educação patrimonial
desenvolvida pela Coordenação da Memória Cultural /Secretaria Municipal da Cultura.

A pesquisa arqueológica do município de Porto Alegre vem ocorrendo de forma


sistemática desde 1993. O projeto pioneiro foi o de levantamento arqueológico de sítios
de ocupação indígena no território hoje compreendido pelo município. O andamento
deste projeto foi parcialmente interrompido diante das intervenções de diferentes
naturezas, pelo poder público, em sítios urbanos. A arqueologia então, integrou-se a
projetos de restauração de bens imóveis e de remodelação de áreas públicas, com caráter
de salvamento arqueológico e a projetos de pesquisa com problemáticas e objetivos bem
definidos. Dentre estes vale a pena citar os projetos de levantamento de sítios
arqueológicos ocupados por escravos fugitivos nos século XIX nas ilhas próximas14, de
identificação da sede da primeira estância do território, denominada no século XVIII
"Porto do Dorneles15", de interpretação dos padrões de comportamento de uma unidade
doméstica do século passado no Solar Lopo Gonçalves, sede do Museu Joaquim José
Felizardo16 e de levantamento e interpretação dos testemunhos arqueológicos
remanescentes da área central de Porto Alegre no século XIX17.

As reflexões advindas desta trajetória e dos contatos com produções e experiências


desenvolvidas em outros países, demonstram a complexidade em se trabalhar uma
arqueologia da cidade. A arqueologia urbana no Brasil é uma área ainda em construção.
São Paulo, como já mencionado, é a capital pioneira na gestão do patrimônio material
remanescente no meio urbano. O Programa de Arqueologia Urbana para o Município
de Porto Alegre é uma proposta ainda incipiente e que vai sendo amadurecida no
decorrer das pesquisas. O desafio encontra-se não somente em transpor os limites do
desconhecimento de uma nova área, mas também na construção de um caminho entre o
fazer arqueológico e o processo de formação da cidadania.

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