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CHILDE, Gordon. Archaeology and History. In: What Happened In History.

Harmondsworth:
Penguin Books, 1942.

Gordon Childe – Arqueologia e História


Lucas Brito Santana Da Silva
Gordon Childe (1892-1957) foi um arqueólogo australiano renomado, continua sendo. Muitos
dos seus escritos se tornaram livros-texto, como o Introdução à arqueologia (1956), este que
resenhamos O que aconteceu na História (1942), A evolução cultural do Homem (1936, 1941,
1951) – facilmente identificados nas bibliografias dos cursos de História e Arqueologia.
Childe começa o capítulo apontando que os vestígios usados na escrita da História, no recorte
temporal de 5.000 (surgimento da escrita), são apenas uma pequena parte das atividades
humanas no planeta; e a história contada a partir desses vestígios mostra-se avessa a uma
direção ou padronização. A arqueologia, estudando vestígios que abarcam uma escala temporal
muito superior, mostra que a história humana não tem sido tão avulsa; há tendências gerais
identificáveis e que podem ser analisadas, em seus desdobramentos, até os dias atuais.
O seu segundo tópico fundamental, sobre O equipamento humano e a aprendizagem da tradição
social, sustenta que o homem, como os outros animais, depende intimamente do seu
“equipamento” para sobreviver. Porém, enquanto o equipamento de outros animais é
biologicamente determinado e toma forma uma forma anatômica específica, como garras
grandes, o equipamento dos homens são externos à sua conformação anatômica, são
ferramentas, instrumentos criados e utilizados para adequarem-se a um ambiente ou adaptarem
este às suas necessidades, como um machado de pedra, um fogueira, um casaco. É o cérebro e
a anatomia do corpo humanos, Childe elege as mãos como membros fundamentais, que
permitiram aos homens criar equipamentos de todos os tipos e com eficácia crescente. Se essa
externalidade é uma vantagem adaptativa, sua desvantagem está em todo novo membro da
espécie humana ter que aprender como fazer e usar o equipamento que a tradição social
desenvolveu. Outra desvantagem está na vulnerabilidade dos indivíduos humanos, do seu
nascimento, totalmente dependentes, até a maturação do seu corpo e aprendizagem da tradição
social – o que leva vários anos. É através dos ensinamentos dos membros mais velhos dos
grupos humanos que os mais novos aprendem essa tradição, a experiência que acumularam.
Essa aprendizagem se dar “por preceito e por exemplo”.
Aa terceira parte crucial do texto, trata sobre o equipamento Espiritual, a aprendizagem da
tradição social e ação humana. O resultado do desenvolvimento da comunicação humana,
Childe chama de equipamento espiritual. A sofisticação da linguagem humana impacta
profundamente a forma que a tradição social é aprendida, acelerando a aprendizagem e
ampliando o que pode ser repassado aos novos membros; um indivíduo pode apresentar a outros
experiências vividas e o que fazer em suas circunstâncias sem que o outro indivíduo tenha que
passar pela experiência concreta – o que o arqueólogo mais destaca é o potencial comunicativa
quase ilimitado da linguagem humana. Mas essa linguagem está além da função comunicativa,
materializada em sons com significados socialmente convencionados e em imagens mentais
desses sons, a linguagem humana permite a raciocinação independente de uma realidade
concreta específica; assim o homem pode imaginar diversas formas de modificação da
realidade, por sua ação ou não, sem fazer qualquer ação concreta. Os “símbolos” que compõem
a linguagem humana podem se referir a coisas que tem existência independente em relação à
existência humana, como uma árvore, como podem se referir a coisas que dependem
estritamente da existência social humana - como a ideia de liberdade, racionalidade. A grande
questão aqui, para Childe, é que os homens são “impelidos a ações mais árduas” menos por
uma “objetividade prática” de coisas, os símbolos linguísticos dessas coisas, que independem
da existência humana mas que podem servir ao homem, como a coleta de uma banana para
comer, do que pelas coisas que só tem sentido nas sociedades humanas, os símbolos linguísticos
dessas coisas – como o ideal de limpeza determinado numa sociedade particular. A conclusão
de Childe é: porque as ideias mobilizam os homens como a “ideia” de qualquer coisa material,
elas devem ser estudadas, pelos historiadores, como coisa “tão reais” quanto qualquer objeto
do registro arqueológico.
A parte seguinte trata sobre ideologia. O equipamento espiritual dos homens assume suas
formas mais expansivas nas ideologias das sociedades, compostas por “suas superstições,
crenças religiosas, lealdades e manifestações artísticas ideais”. Essas ideologias dão lastro a
comportamentos que só tem sentido a partir de si mesmas, e Childe aponta que os homens
passaram a necessitar de “estímulos” nascidos dessas ideologias para a sua ação, estímulos
bastante diferentes daqueles como “fome, sexo, raiva e medo”; mas que servem, em última
instância, também às necessidades biológicas – à sobrevivência da espécie: a ideologia deve
servir à manutenção da existência material dos homens, quando não o consegue, a sociedade
deteriora e colapsa. As ideologias não são absolutamente arbitrárias, elas respondem às formas
que os homens agem sobre a realidade concreta e devem responder a demandas dessa realidade
– como a fome e a doença; assim como respondem à produção e uso do equipamento material
da sociedade, como este é produto coletivo, da cooperação e da acumulação da experiência, a
ideologia deve coordenar comportamentos sociais para a produção e uso do equipamento
material e se adequar às modificações que a produção de um equipamento material novo pode
impor à organização social; se isso não é atendido, a existência material da sociedade começa
a ser comprometida.
Em seguida abordar-se a diferenciação da tradição social. Ainda que exista uma herança da
tradição social das sociedades antigas nas sociedades contemporâneas, é necessário reconhecer
que as sociedades eram extremamente variadas no passado, continuando a sê-lo no presente.
Além das diferenças internas dessas sociedades, a exemplo da língua, pode-se notar um uso
diferenciado de elementos de uma mesma tradição social “herdada”; Childe apresenta os usos
que ingleses e americanos fazem dos garfos de cozinha. Essa diferenciação responde, também,
à tradição social já presenta na sociedade que entra em contato com algum elemento de uma
tradição diferente, que muitas vezes acaba materialmente modificado – neste caso, essa
modificação poderia ser observado no registro arqueológico, diferentemente de uma
modificação que ocorra apenas na “ideologia”. Aliás, identificar essas diferenciações tem sido
objetivo dos arqueólogos, já que correspondem à identificação de tradições diferentes.
Na penúltima parte do texto é tratada a relação entre cultura e língua. Childe define como
cultura a totalidade da “corrente de tipos” que aparecem simultaneamente num estrato,
respeitando determinado recorte espacial e temporal. A variedade de tipos corresponde a uma
variedade de tradições sociais, mas não corresponde necessariamente a uma variedade de
línguas. O autor sustenta que a variedade de tradições sociais é tão antiga quanto a variação nas
línguas; contudo, a língua parece se modificar mais fluidamente do que o equipamento material
de uma tradição social, do que a cultura – daí ser possível observar grupos de tradições sociais
com línguas diferentes usando o mesmo equipamento material. O arqueólogo ainda argumenta
que há uma correspondência entre uma cultura presente em grupos de tradições sociais
diferentes e o meio geográfico que esses grupos habitam; assim, uma cultura pode ser uma
resposta às condições de vida de determinada área geográfica habitada por vários grupos, que
acaba de alguma forma difundida – pois “as descobertas transgridem as fronteiras da localidade
e das convenções linguísticas”, e a isso se deve, em parte, a riqueza da cultura das sociedades
contemporâneas.
Por fim, o autor apresenta uma análise sobre uma possível convergência das culturas para uma
única cultura. Dos tempos “pré-históricos” aos “históricos”, o que se viu foi a diferenciação das
culturas, das tradições sociais em resposta a estímulos “geográficos, técnicos ou ideológicos”;
mas essa diferenciação foi acompanhada do aumento, ainda contínuo, do intercâmbio entre as
sociedades. Sendo assim, haveria uma tendência a convergência entre as culturas, já existindo
um “riacho cultural principal” que tem drenado e canalizado outras culturas, fundindo-as. A
Europa seria esse riacho principal na atualidade (1942), tendo drenado culturas de todas as
partes do planeta; segundo o arqueólogo, é na esfera econômica, no modo pelo qual os homens
produzem a sua vida material, que se pode melhor observar essa convergência. Um ponto de
inflexão fundamental dessa convergência foi a “descoberta” do Novo Mundo e a abertura de
um mercado mundial, seguido da revolução industrial e de um grande aumento demográfico,
avaliados por Childe como “sucesso biológico da nova economia capitalista burguesa”.
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Neste capítulo, Arqueologia e História, Gordon Childe apresenta uma análise de como
se deu o desenvolvimento da humanidade; passando por algumas observações sobre a escrita
da História, sobre os alcances temporais da Arqueologia, sobre o equipamento material e
espiritual dos homens, sobre o funcionamento da tradição social, a transmissão da experiencia
social acumulada, o papel da linguagem e as suas implicações nas sociedades humanas, sobre
o funcionamento das ideologias, sobre a diferenciação das tradições sociais e convergência da
cultura; no fim, o que temos é um retrato sobre a dinâmica do desenvolvimento da
“humanidade” da “pré-história” à modernidade.
Acreditamos que o texto de Childe continua útil como introdução à arqueologia e ponto
de partida para algumas discussões, como a relação entre arqueologia e história; contudo, não
o recomendaríamos sem acompanhamento de outros textos, tanto da área da arqueologia como
de outras áreas. Nesse sentido, textos como Arqueologia (1988, 2003), de Pedro Paulo Funari,
nos parece adequado; para uma leitura mais leve sobre a “pré-história” da humanidade, o livro
Sapiens: Uma breve história da humanidade (2011), de Yuval Noah Harari, é igualmente
proveitoso. São muitos os pontos neste texto de Childe que poderíamos parar para fazer um
embate com outras perspectivas; desde as perspectivas atuais sobre cultura material, o
funcionamento da linguagem e o conceito de ideologia, as trocas culturais, a continuidade e
modificação da cultura material e etc. Visto que são várias as possibilidades de leitura e
confrontação do texto do arqueólogo australiano, para aqueles que pretendam se debruçar sobre
o livro, se pretendem ir além da leitura interna do texto, recomendaríamos a seleção de algum
ponto específico para aprofundamento; o que certamente fica ao gosto e necessidade de cada
leitor.

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