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DIREITOS HUMANOS

Elton Rodrigo da Silva

ESTUDO DO SER HUMANO


CONTEMPORÂNEO

2020
ESTUDO DO SER HUMANO CONTEMPORÂNEO
Camila de Oliveira Casar
Douglas Ochiai Padilha
Luiz Augusto de Mattos
Osmar Ponchirolli
Paulo Moacir Godoy Pozzebon

2020
CASA NOSSA SENHORA DA PAZ – AÇÃO SOCIAL FRANCISCANA, PROVÍNCIA
FRANCISCANA DA IMACULADA CONCEIÇÃO DO BRASIL –
ORDEM DOS FRADES MENORES

PRESIDENTE
Frei Thiago Alexandre Hayakawa, OFM
DIRETOR GERAL
Jorge Apóstolos Siarcos
REITOR
Frei Gilberto Gonçalves Garcia, OFM
VICE-REITOR
Frei Thiago Alexandre Hayakawa, OFM
PRÓ-REITOR DE ADMINISTRAÇÃO E PLANEJAMENTO
Adriel de Moura Cabral
PRÓ-REITOR DE ENSINO, PESQUISA E EXTENSÃO
Dilnei Giseli Lorenzi
COORDENADOR DO NÚCLEO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA - NEAD
Renato Adriano Pezenti
GESTOR DO CENTRO DE SOLUÇÕES EDUCACIONAIS - CSE
Fernando Rodrigo Andrian
CURADORIA TÉCNICA
Mônica Bertholdo
DESIGNER INSTRUCIONAL
Abner Pereira de Almeida
REVISÃO ORTOGRÁFICA
Giovana Stimpel Amaral
PROJETO GRÁFICO
Impulsa Comunicação
DIAGRAMADORES
Daniel Landucci
CAPA
Jean dos Santos Mendonça

© 2020 Universidade São Francisco


Avenida São Francisco de Assis, 218
CEP 12916-900 – Bragança Paulista/SP
O AUTOR
CAMILA DE OLIVEIRA CASARA
Mestre em Filosofia – Ética e Política, pela Universidade Federal do Paraná (2012). Gra-
duada em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Paraná (2008).

DOUGLAS OCHIAI PADILHA


Doutor em Sociologia, na modalidade sanduíche, pela Universidade Federal do Paraná
e pela Université Paris Ouest Nanterre La Défense. Mestre em Sociologia pela UFPR
(2008) na linha de pesquisa Ruralidades e Meio Ambiente. Graduado em Ciências So-
ciais pela UFPR (2005), atuando principalmente nas seguintes áreas: sociologia am-
biental, sociologia rural, teoria ator-rede, nova sociologia econômica e redes de movi-
mentos sociais. Atualmente, é professor na FAE Centro Universitário.

LUIZ AUGUSTO DE MATTOS


Doutor em Teologia Moral pela Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção
(2000). Mestre em Teologia Dogmática pela Faculdade de Teologia Nossa Senhora da
Assunção (1984); e em Teologia pelo Centro Universitário Assunção (2009). Graduado
em Estudos Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (1976); em
Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1981); e em Geografia
pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (1976). Atualmente, é professor
do Instituto Teológico de São Paulo, da Universidade São Francisco e da UNISAL. As-
sessor da CRB Regional de São Paulo, membro e coordenador da equipe interdiscipli-
nar CRB Nacional. Também é assessor de dioceses e congregações religiosas.

OSMAR PONCHIROLLI
Doutor em Engenharia de Produção pela Universidade Federal de Santa Catarina. Mes-
tre em Engenharia de Produção pela Universidade Federal de Santa Catarina. Gradu-
ado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras Dom Bosco (1988); e
em Teologia pela Studium Theologicum (1994). Atualmente, é professor da FAE Centro
Universitário. Professor pesquisador do grupo Economia Política do Poder em Estudos
Organizacionais e Observatório Interdisciplinar em Economia Política do Poder. Pes-
quisador na linha de epistemologia e teoria crítica; complexidade e redes em estudos
organizacionais. Líder do grupo de pesquisa sobre Teoria do Reconhecimento e Orga-
nizações da FAE Centro Universitário.

PAULO MOACIR GODOY POZZEBON


Mestre em Lógica e Filosofia da Ciência (Área de Concentração Filosofia Política) pela
Universidade Estadual de Campinas (1995). Licenciatura Plena em Filosofia pela Pon-
tifícia Universidade Católica de Campinas (1985). Atualmente, é professor da Pontifícia
Universidade Católica de Campinas e da Universidade São Francisco. Tem experiência
na área de Filosofia, com ênfase em Metodologia da Pesquisa Científica e do Trabalho
Científico e Filosofia Política, atuando principalmente nos seguintes temas: metodologia
científica, educação, filosofia política, ética e filosofia. Possui também experiência na
área de gestão.
SUMÁRIO
Caixas de destaque........................................................................................................ 7

UNIDADE 01: O Ser Humano e a Formação Cultural do Ocidente: Modernidade,


Pós-Modernidade e Globalização...................................................................................8

1. A mordernidade: surgimento e transformações....................................................... 9

2. A questão da pós-modernidade: a sociedade pós-industrial e a cultura pós-moderna... 13

3. A globalizção e suas principais características e a crítica do conhecimento........ 20

UNIDADE 02: Expressões e Processos do Conhecimento e o Humano como ser Multi-


facetário e Relacional....................................................................................................28

1. Informações e conhecimentos...............................................................................2 8

2. O humano - quem é ele?........................................................................................4 0

UNIDADE 03: Ecologia e Pensamento Ecológico: Questões Ecológicas e Educação


Ambiental........................................................................................................... ...........54

1. Reconhecendo os desafios ambientais..................................................................54

2. Educação ambiental...............................................................................................57

3. O desenvolvimento sustentável.............................................................................5 8

4. Consumo, pobreza e meio ambiente.....................................................................6 1

5. Ameaças ambientais..............................................................................................6 3

6. Riscos ambientais..................................................................................................6 5

UNIDADE 04: Dimensões Políticas, Sociais e o Fenômeno Religioso.........................7 0

1. A política: seu nascimento e transformações.........................................................7 0

2. O fenômeno religioso.............................................................................................7 7
significado das
CAIXAS DE DESTAQUE
Importante entender!
É um espaço dedicado a entender os conceitos centrais do
conteúdo.

Para refletir
Espaço para questionamento sobre o assunto. Situação
hipotética para reflexão e compreensão sobre o tema estudado.

Exemplo
Momento para se apresentar uma situação real do assunto
trabalhado.

Pesquise
Apresentação de fontes para que o aluno explore mais
o conteúdo abordado. Serão apresentados: livros, sites,
reportagens, dissertações, vídeos, revistas, etc.

Glossário
Termos e siglas específicas sobre o tema tratado na unidade.

Leis
Lei ou artigo de extrema importância para o aprofundamento
do aluno.

Leitura fundamental
Livros e textos imprescindíveis para o desenvolvimento da
aprendizagem do aluno.

Sugestão de leitura
Apresentação de leituras interessantes para o aluno,
relacionadas ao tema.

Relembre
Pontos fundamentais que guiarão o aluno. São nortes que
o ajudarão a interpretar o texto.

Curiosidades
Fato, acontecimento histórico ou ponto curioso relacionado
ao tema abordado.

Saiba mais
Livros e textos imprescindíveis para o desenvolvimento
da aprendizagem do aluno.
O Ser Humano e a Formação Cultural do Ocidente: Modernidade, Pós-Modernida-
de e Globalização

1 UNIDADE 1

O SER HUMANO E A FORMAÇÃO CULTURAL


DO OCIDENTE: MODERNIDADE, PÓS-
MODERNIDADE E GLOBALIZAÇÃO

INTRODUÇÃO
Esta Unidade de Estudo abordará os tópicos sobre o surgimento e as transformações da
modernidade, a sociedade pós-industrial e a cultura pós-moderna, e as caracterizações
da globalização. Veremos que o surgimento e o desenvolvimento de um período histórico
específico e importantíssimo, chamado modernidade, atinge a todos nós de maneiras
diversas, desde a organização de nossas instituições sociais mais básicas como família,
religião etc. às nossas concepções políticas. A todos aqueles e aquelas que desejam for-
mar consciência crítica e reflexiva sobre suas vidas e os contextos sociais, econômicos,
culturais e políticos em que estamos submersos, recomendamos a leitura atenta desta
Unidade de Estudo. Estudaremos a modernidade, com suas características marcantes,
acontecimentos principais e, como sempre, suas idiossincrasias fundamentais.

Assim, apresentaremos logo no início algumas das transformações históricas cabais


para definir este período, como o Renascimento e a Revolução Industrial. Longe de
serem apenas fatos históricos, esses dois eventos marcam o surgimento de uma nova
mentalidade social: surge um novo modo de vida, de produção, de se relacionar e co-
nhecer o mundo. A relevância do renascimento e da revolução industrial é inegável para
entendermos as transformações pelas quais passou o mundo. De maneira definitiva,
nada mais será como antes após estes acontecimentos.

Em seguida, para nos aprofundarmos e entendermos ainda mais sobre os efeitos da


modernidade, essa interessante época histórica, apresentaremos algumas ideias de um
importante sociólogo inglês chamado Anthony Giddens. Este pensador é responsável
por um dos mais relevantes estudos sobre o tema; suas ideias são apresentadas em
seu livro: As Consequências da Modernidade, de 1991. Conhecer um pouco das ideias
trabalhadas neste livro contribuirá, e muito, para ampliar as possibilidades de entendi-
mento do período denominado modernidade.

Estudaremos, também, as principais características da globalização: como surge, por


que se intensifica, os elementos mais importantes responsáveis pela sua intensificação
a partir dos anos 1980, e as consequências desse processo na definição de novas iden-
tidades serão algumas das abordagens.

O objetivo desta Unidade de Estudo é modesto: esperamos que você possa agu-
çar seu olhar para as transformações sociais que o envolve e circunda muitas
vezes de maneira invisível e natural, mas, mesmo assim, irreversível. Esperamos,

8
ainda, que a leitura aqui proposta aguce suas indagações e desperte seu olhar 1
para as principais consequências da modernidade.

1. A MODERNIDADE: SURGIMENTO E TRANSFORMAÇÕES


O período que se convencionou denominar como “modernidade” envolve uma série de
acontecimentos no campo da política, da cultura, da religião etc. Entre os historiadores,
não há consenso quanto a datas formais para o início deste período. O que se pode afir-
mar, portanto, é que o início da modernidade engloba uma série de transformações que
modificam radicalmente a vida de uma parte do mundo, mais especificamente, a Europa.

A caracterização da história em períodos, como Antiguidade, Idade Média


e Modernidade, sempre foi assinalada por determinados acontecimentos,
que engendram certas rupturas com a ordem anterior, faz sentido quando
se pensa em modificação da vida social, política, cultural, religiosa em uma
parte do mundo, isto é, na Europa.
Continentes como Ásia, Oceania e América foram posteriormente influenciados
pelo modo de vida europeu; isto quer dizer que outras partes do mundo,
embora já conhecidas, mantinham estruturas de pensamento, organização
social, política e religiosa diversas.

Portanto, as transformações aqui narradas só farão sentido para o continente euro-


peu, o que não invalida a curiosidade e a necessidade de conhecimento sobre este
tema. Esta parte do globo foi e será continente de irradiação de um modo de orga-
nização social, política, econômica que arrebata todos os outros. Será em função
da importância e da influência deste continente na constituição das outras partes do
mundo que apresentaremos as características principais da chamada modernidade.

A despeito das diversas possibilidades de entendimento sobre o surgimento da modernidade


pelos historiadores, o Renascimento e a Revolução Industrial representam marcos históricos
importantes e contribuem para solapar um modo de vida e possibilitar a irrupção de outro.

1.1 RENASCIMENTO
O período que será agora tratado re-
Fonte: 123RF.

presentou uma transformação impor-


tantíssima para a humanidade. O Re-
nascimento irá inaugurar uma nova
fase de conhecimento e descoberta
que influenciará decisivamente o oci-
dente. Vamos entender por quê.

Vista de Florença/Itália. Praça Piazzale Michelangelo.

Estudo do Ser Humano Contemporâneo 9


O Ser Humano e a Formação Cultural do Ocidente: Modernidade, Pós-Modernida-
de e Globalização

1 O Renascimento, mais do que a maioria dos diversos momentos históricos susci-


ta grandes controvérsias. Há quem veja nesse movimento filosófico e artístico o
momento de ruptura entre o mundo medieval – com suas características de so-
ciedade agrária, estamental, teocrática e fundiária – e o mundo moderno urbano,
burguês e comercial (COSTA, 2005, p. 28).

Isso pode ser afirmado porque muitas mudanças importantes ocorreram na Europa
a partir do século XV; e estas mudanças serão as bases para a estrutura das socie-
dades contemporâneas.

01. Estrutura feudal

A estrutura da sociedade feudal já não dava mais conta das transformações


sociais, econômicas e políticas que assolavam a Europa. Esta estrutura,
agrária em sua essência, mantinha nas mãos da nobreza e do clero o poder
econômico e político.

02. Expansões marítimas

Foram as expansões marítimas (com a circumnavegação da África e o des-


cobrimento da rota para as Índias e América), os excedentes de produção
e o desenvolvimento de atividades comerciais, que contribuíram fortemente
para que este sistema entrasse em colapso. Assim, tornou-se cada vez
mais presente uma nova mentalidade: mais laica e mais centrada em preo-
cupações materiais e, principalmente, no homem.

03. Doutrinas religiosas

Novas doutrinas religiosas, que propuseram leituras interpretativas dos tex-


tos sagrados, surgiram como forte contribuição às mudanças e ao estabele-
cimento de outra mentalidade. A partir do século XVI o movimento denomi-
nado de Reforma Protestante questionava o poder clerical. Este movimento
foi fundamental para que o “novo homem” redescobrisse a possibilidade do
questionamento baseado na própria razão. “O conhecimento deixa de ser
encarado como uma revelação, resultante da contemplação e da fé, para
voltar a ser, como o fora para os gregos e romanos, o resultado de uma
bem conduzida atividade do pensamento” (COSTA, 2005, p. 30).

04. Desenvolvimento da ciência

O desenvolvimento das ciências, portanto, pode ser entendido como resultado


destas transformações em curso na Europa renascentista.

10
05. Crescimento das cidades 1

O crescimento das cidades, do comércio, e, sobretudo, das transações co-


merciais engendradas pelas terras recémdescobertas na América obrigaram o
homem medieval a “abrir mão” de velhas estruturas explicativas e dar lugar ao
novo e surpreendente mundo que agora se estabelecia. Foi neste cenário que
a forma de produção e organização política se modificou para sempre.

1.2 REVOLUÇÃO INDUSTRIAL – O PROCESSO DE


INDUSTRIALIZAÇÃO
Os séculos subsequentes às mudanças iniciais não foram menos turbulentos. Uma nova
maneira de se produzir, a partir do século XVII foi inaugurada: a riqueza passou a ser oriunda
de indústrias e grandes máquinas, estas estavam geralmente alocadas em cidades grandes
e superpopulosas; pertenciam a uma nova classe economicamente poderosa denominada
burguesia industrial, ao passo que eram operadas por uma também recente classe social,
denominada proletariado. Neste período, chamado de Revolução Industrial, o trabalho e a
estrutura social ganharam contornos radicalmente novos.

O conhecimento científico aperfeiçoou as técnicas de produção: aumentan-


do a produtividade das máquinas e os lucros, e diminuindo o uso da mão de obra.
Este período ficou marcado pelo fenômeno da maquinofatura.

Fonte: 123RF.

O que era produzido manualmente pelos


artesãos passou a ser feito por máquinas,
aumentando muito o volume de produção
de mercadorias.

Anthony Giddens, um importante pensador inglês sobre o tema da modernidade, pode


nos ajudar a entender melhor esta fase histórica por meio da seguinte afirmação:

Estudo do Ser Humano Contemporâneo 11


O Ser Humano e a Formação Cultural do Ocidente: Modernidade, Pós-Modernida-
de e Globalização

1 A Revolução Industrial do final do século XVIII e do XIX transformou radicalmente


as condições materiais de vida e os modos de ganhar dinheiro para sempre, tra-
zendo com isso, pelo menos inicialmente, muitos problemas sociais novos, como
a superlotação urbana, a falta de saneamento e as doenças que a acompanham,
e a poluição industrial em uma escala sem precedentes (GIDDENS, 2012, p. 63).

Como podemos perceber, Giddens nos esclarece sobre a radicalidade da mudança tra-
zida pela nova forma de viver e se organizar da Europa. Esta nova fase trouxe também
consequências importantes para os séculos seguintes. Será com base nas principais
ideias deste autor sobre as caracterizações e perigos trazidos pela modernidade, que
iniciaremos o segundo tópico desta Unidade.

1.3 OS EFEITOS DA MODERNIDADE


Em seu livro de 1991 chamado As Consequências da modernidade, Anthony Gid-
dens caracteriza este período histórico e apresenta os principais efeitos da modernida-
de para o mundo ocidental. O autor a define da seguinte maneira:

“Modernidade refere-se a estilo, costume de vida ou organização social que emergiram


na Europa a partir do século XVII e que ulteriormente se tornaram mais ou menos mun-
diais na sua influência” (GIDDENS, 1991).

Isto é, um período em que a maneira de organização das instituições sociais, políticas


e econômicas passam a operar diferentemente da anterior e paulatinamente vão sendo
incorporadas por todo o mundo.

As principais características das novas instituições da modernidade que se diferenciam


do período anterior, segundo Giddens, serão: o ritmo de mudança, o escopo da mudan-
ça e a natureza intrínseca das instituições modernas.

Vamos entender mais especificamente cada uma delas:

O ritmo de mudança
A rapidez com que as mudanças acontecem na modernidade é extrema; isso pode ser
entendido como resultado do desenvolvimento da tecnologia, porém esta movimentação 01
também é observada em outras esferas.

Escopo da mudança

02 Isto é, o alvo das mudanças trazidas pela modernidade por intermédio do uso da
tecnologia mais incisivamente, partes do globo são colocadas em conexão e as transfor-
mações sociais acontecem em todo o planeta.

Natureza intrínseca das instituições modernas


Segundo Giddens (1991), alguns tipos de organização social não se encontram em outras
épocas históricas, apenas na modernidade. É o caso do estado-nação, a necessidade de grandes 03
fontes produtoras de energia, o surgimento da mercadoria e do trabalho assalariado.

Fonte: Giddens (1991)

12
Prosseguindo em sua caracterização da modernidade, Anthony Giddens ressalta a im- 1
portância que alguns debates adquirem neste período. As preocupações com o meio
ambiente e a instrumentalização da natureza como fonte geradora de riqueza eco-
nômica são discussões que só farão sentido no contexto moderno. O autor entende que
foi somente neste contexto histórico específico que as “forças de produção” adquiriram
um potencial tão destrutivo em relação ao meio ambiente.

Outro tema de relevância para entender a modernidade será a ascensão de episódios


de totalitarismo.

“O governo totalitário combina poder político, militar e ideológico de forma mais


concentrada do que jamais foi possível antes da emergência dos estados-na-
ção modernos” (GIDDENS, 1991, p. 18).

Ainda no que diz respeito ao ineditismo do poderio e desenvolvimento das forças militares
na modernidade, Anthony Giddens afirma que a junção entre inovação industrial e poder
militar remete à própria origem da industrialização moderna. Isto é, tendo a indústria e as
inovações tecnológicas neste período se desenvolvido de maneira tão eficiente e comple-
mentar, tais inovações não deixariam de se estender às forças militares da modernidade.

Neste sentido, este autor sugere que as análises que se empreendam sobre a modernidade se
esforcem para abarcar não somente as mudanças e avanços da modernidade, como também
os perigos e riscos que este período carrega no seio de suas características mais essenciais.

Avançaremos agora para o tópico 2 que aborda os temas sobre a pós-modernidade, a


sociedade pós-industrial e a cultura pós-moderna.

2. A QUESTÃO DA PÓS-MODERNIDADE: A SOCIEDADE PÓS-


INDUSTRIAL E A CULTURA PÓS-MODERNA
Abordaremos agora um dos temas mais fascinantes e envolventes da contemporanei-
dade: a pós-modernidade. Compreender o que a constitui e quais as suas consequên-
cias para o mundo de hoje é uma das tarefas que aqui nos propomos.

Iremos caracterizar a pós-modernidade, de onde surgiu e qual o seu campo de estudos origi-
nário e apresentaremos as principais transformações que possibilitaram a pós-modernidade,
como o desenvolvimento das tecnologias da informação e a consequente sociedade em rede.

Você poderá enxergar claramente que a realidade que o cerca está permeada pelos
efeitos da pós-modernidade, pois as consequências da sociedade em rede nas rela-
ções de produção e nos movimentos sociais fazem parte, mesmo que de maneira indi-
reta, da vida de qualquer cidadão do século XXI.

Não poderíamos deixar de apontar para a questão da desterritorialização como um dos


grandes temas da pós-modernidade. Uma das suas principais transformações, a redefini-

Estudo do Ser Humano Contemporâneo 13


O Ser Humano e a Formação Cultural do Ocidente: Modernidade, Pós-Modernida-
de e Globalização

1 ção de fronteiras e territórios, será esclarecida e debatida como manifestação das novas
relações sociais, políticas e econômicas que a pós-modernidade trouxe para o mundo.

2.1 A PÓS-MODERNIDADE: CARACTERIZAÇÃO


Definir pós-modernidade exige um esforço bastante grande, pois este termo não se
originou no campo das ciências humanas e filosofia; ele começa a ser empregado pri-
meiramente no campo das artes visuais.

A partir da perspectiva pós-moderna, já não se buscariam mais critérios universalmente


válidos para a arte (como por exemplo, as formas, cores e texturas consideradas boas
ou más, belo ou feio); regras ou normas não poderiam ser entendidas para toda a pro-
dução artística mundial. Esta proposta de entendimento dos fenômenos da realidade,
nascida nas artes visuais, expande-se rapidamente para outras áreas do conhecimento
como uma nova forma de compreensão do mundo e das relações sociais; um novo
paradigma para caracterizar as sociabilidades contemporâneas e as modificações pro-
fundas trazidas pelas transformações do século XXI.

O conceito de pós-modernidade, para


Fonte: 123RF.

esta área do conhecimento, caracteriza-


va uma nova forma de entendimento das
produções artísticas pautada no rompi-
mento de paradigmas da Modernidade.

Sydney Opera House, Austrália. Patrimônio Mundial da


Unesco.

“A pós-modernidade passou a designar uma nova proposta de produção artística que,


por sua ideologia contestadora, associou-se à quebra de valores e de normas de com-
portamento que caracterizou o homem contemporâneo, especialmente nos grandes
centros urbanos” (COSTA, 2005, p. 232).

A pós-modernidade passa a ser o termo usado, então, para denominar rupturas com
modelos e padrões de entendimento que são postos em xeque no momento em que o
mundo passa a conviver com intensas e profundas mudanças. Para Jurgen Habermas,
havia um “projeto da modernidade” que consistia:

a. na crença inquestionável à ciência;

b. na libertação do homem por meio do domínio total da natureza;

c. no desenvolvimento da racionalidade a ponto de superar mi-


tos, religião e superstição.

14
1
Exemplos são Robert Venturi, Aldo Rossi, James Corbett, entre outros.

O período denominado pós-moderno, seria, portanto, o momento em que o “projeto


da modernidade” passa a ser questionado e superado (HARVEY, 2007, p. 23).

Sendo assim, a pós-modernidade, tendo nascido nas artes visuais, pode ser empregada
para entendermos os novos hábitos, costumes, formas de vida e movimentos sociais im-
pregnados pelas mudanças sociais, econômicas, políticas e tecnológicas do século XXI.

Para muitos estudiosos da contemporaneidade, entre eles o sociólogo inglês An-


thony Giddens (2012), estamos diante de uma nova sociedade: mais plural e di-
versificada. Isso se deve, em grande parte, ao poder dos meios de comunicação
incidindo na vida dos seres humanos, trazendo-lhes informações, valores e ideias
de várias partes do mundo muito rapidamente.

Em uma quantidade incontável de filmes, vídeos, programas de televisão e sítios da


internet, as imagens circulam ao redor do mundo. Temos contato com muitas ideias
e valores, mas eles têm pouca conexão com a história das áreas em que vivemos
ou, de fato, com nossas próprias histórias pessoais. Tudo parece constantemente
em fluxo (GIDDENS, 2012, p. 81).

O pensador inglês chama a atenção para o fato de que na pós-modernidade os meios


de comunicação permitem a troca de informações e imagens com rapidez e eficiência
jamais experimentadas. Isso incide decisivamente em diversos aspectos das relações
sociais, da economia e da política do século XXI.

Para que essa transformação toda fosse possível, alguns acontecimentos foram cru-
ciais no decorrer do século XX. Entenderemos melhor do que estamos falando nos
tópicos seguintes, ao abordarmos as transformações fundamentais que possibilitaram
o advento da pós-modernidade.

2.2 A SOCIEDADE EM REDE


O desenvolvimento dos meios de comunicação, da informática e da automação impactou
definitivamente a maneira tradicional de articulação e cooperação em todo o planeta. A
rapidez na produção, nas trocas comerciais e nos fluxos financeiros, nos diz Cristina Cos-
ta (2005, p. 234), “deu à economia um ritmo impensável anteriormente”, transformando
em mercadoria aquilo que passa a circular pelas redes de comunicação: a informação.

Para o sociólogo espanhol Manuel Castells (2013), o desenvolvimento das tecnologias


da informação e da internet fortaleceu as redes entre diferentes pessoas e organiza-
ções em lugares extremamente distantes no globo terrestre. Para ele, as redes são as
formas de organização que definem nossa era; informações podem ser recebidas ime-
diatamente em qualquer parte do mundo, não existindo necessidade da presença física
dos envolvidos (GIDDENS, 2012, p. 579).

Estudo do Ser Humano Contemporâneo 15


O Ser Humano e a Formação Cultural do Ocidente: Modernidade, Pós-Modernida-
de e Globalização

1
O impacto da tecnologia da informação e sua consequente transfor-
mação nas relações sociais pode ser sentido em diferentes espaços e
maneiras. Desde as novas formas e processos de produção, isto é, na
organização das estruturas de trabalho na contemporaneidade, chegan-
do até às reivindicações sociais, ou seja, na maneira como os novos
movimentos sociais se articulam e tomam corpo, a pós-modernidade
exerce sua influência.

A pós-modernidade permeia a maneira de se produzir: muito mais rápida e descartável;


suscetível aos fluxos do mercado e das influências culturais distantes; desterritorializa-
da e segmentada em diferentes espaços e países.
Como também permeia as formas de reivindicação e afirmação de desejos e identidades, isto
é, os movimentos sociais. Nos tópicos seguintes, abordaremos melhor esses dois impactos.

A Influência das Redes nos Processos de Produção


Uma das consequências de tal transformação pode ser sentida nos processos produtivos,
isto é, na maneira de se produzir sob a influência da informática e da automação que passa
a ser radicalmente diferente.

O resultado disso aparece nas novas estruturas organizacionais, mais descentralizadas


e flexíveis. Cada vez mais, empresas estão ligadas em redes e se relacionam com a
economia global; esse processo torna mais difícil a sobrevivência de uma organização
comercial – seja pequena ou grande – se não fizer parte de uma rede.

O grande catalisador dessa transformação são os meios de comunicação, mais espe-


cificamente, a internet.

“A introdução da nova tecnologia permitiu que muitas empresas ‘re-


projetassem’ sua estrutura organizacional, tornando-se mais des-
centralizadas, e reforçando a tendência para tipos menores e mais
flexíveis de empresas, inclusive o trabalho em casa” (GIDDENS,
2012, p. 579).

David Harvey (2007), geógrafo britânico e um dos grandes estudiosos do impacto da


tecnologia da informação nos processos produtivos, afirma que as transformações no
processo produtivo sob a influência dos avanços tecnológicos caracteriza o período
denominado de acumulação flexível.

Esse novo modo de organizar a produção se caracteriza pela flexibilização dos processos
de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos produzidos e dos padrões de consumo.

Surgem nesse contexto muitos outros setores de produção, bem como novas maneiras de
fornecimento dos serviços financeiros, novos tipos de mercados, e, principalmente, muita
inovação comercial, tecnológica e organizacional, nos explica Harvey (2007, p. 140).

16
A acumulação flexível traz como resultados imediatos o aumento dos empregos e 1
oportunidades de empreendimentos no chamado “setor de serviços”, assim como par-
ques industriais em países de industrialização tardia ou capitalismo periférico, como
Brasil, Índia e África do Sul. Como consequência do aumento da produção pelas
novas tecnologias, a maneira de explorar o mercado e oferecer mercadorias também
se modifica.

A acumulação flexível confere “uma atenção muito maior às modas fugazes” e mobi-
liza “todos os artifícios de indução de necessidades e de transformação cultural” para
induzir o consumo a uma forma efêmera e descartável. Atrelado a esse processo, o
relacionamento com os produtos (com significativa vida útil menor) produzidos passa
a ser mais fugaz e caracteriza, portanto, uma “estética pós-moderna que celebra a di-
ferença, a efemeridade, o espetáculo, a moda e a mercadificação de formas culturais”
(HARVEY, 2007, p. 148).

Cristina Costa (2005, p. 235) corrobora a visão de Harvey e salienta que


“a informatização acabou gerando modificações radicais nos processos
produtivos, levando a uma reengenharia industrial com a adoção cres-
cente de sistemas automatizados”.

A Influência das Redes nas Movimentações Sociais


Outra face da influência das redes no mundo contemporâneo pode ser sentida na ma-
neira de organização das mais recentes movimentações sociais. Manuel Castells, em
seu livro Redes de indignação e esperança – Movimentos sociais na era da inter-
net (2013) analisou o impacto das novas tecnologias da comunicação em protestos
recentes da primeira década do século XXI, especialmente aqueles acontecidos no
mundo árabe e alguns países da Europa. Para este autor, as redes sociais na contem-
poraneidade se constituíram como espaços de autonomia, capazes de levar os sujeitos
além do controle de governos e empresas. Com a intensificação da comunicação em
redes trazida pelas novas tecnologias da informação, há a consequente produção de
novos entendimentos sobre fatos, eventos, políticas, relações sociais etc.

Nesse sentido, Castells afirma que as redes de comunicação (as famosas redes sociais) são,
em certa medida, temidas por governos e instituições de poder, pois são capazes de construir
novas formas de pensamento, direcionar atitudes, construir significados e mobilizar agentes
sociais, sejam eles individuais ou coletivos. Portanto, nos esclarece este autor, as modifica-
ções nas formas de comunicação afetaram definitivamente as relações de poder.
“As redes de poder o exercem sobretudo influenciando a mente humana (mas
não apenas) mediante as redes multimídia de comunicação de massa. Assim,
as redes de comunicação são fontes decisivas de construção do poder” (CAS-
TELLS, 2013, p. 12).

Capazes de operar novos significados sobre as mais diferentes relações e provo-


car reações inesperadas e irreversíveis, os movimentos sociais são definitivamente

Estudo do Ser Humano Contemporâneo 17


O Ser Humano e a Formação Cultural do Ocidente: Modernidade, Pós-Modernida-
de e Globalização

1
fomentados pelas informações mais imediatas e diversificadas possíveis, aptos a
articular ações conjugadas nos mais distantes lugares do globo ao mesmo tempo.

Não se faz mais necessário que as novas movimentações sociais sejam alocadas em
uma sede física, com uma escala hierárquica definida entre indivíduos e encontros pe-
riodizados entre seus membros. Basta que os manifestantes estejam organizados em
rede e se identifiquem em suas dificuldades e reivindicações.
“A autonomia da comunicação é

Fonte: 123RF.
a essência dos movimentos so-
ciais, ao permitir que o movimen-
to se forme e possibilitar que ele
se relacione com a sociedade
em geral, para além do controle
dos detentores do poder sobre
o poder da comunicação” (CAS-
TELLS, 2013, p. 16).

Ainda nas considerações de Manuel Castells sobre a influência das redes nas novas
movimentações sociais, o pensador espanhol afirma que o poder pode estar se deslo-
cando dos Estados-Nações para novas alianças e coalizões não governamentais. Estas
relações não pertencentes a nenhum território, mais fluidas e inconstantes, podem ser
lidas como resultantes da sociabilidade típica da pós-modernidade.

A influência da tecnologia nas relações sociais, econômicas e políticas dá origem a


uma sociedade muito mais integrada e diversificada. Este fenômeno, aqui chamado de
desterritorialização, será fundamental para entender o que é e quais as consequências
da pós-modernidade nas relações sociais do século XXI, que abordaremos a seguir.

2.3 A DESTERRITORIALIZAÇÃO
Se uma das características marcantes da pós-modernidade se faz sentir nos novos movimentos
sociais, os quais passam a não necessitar mais de encontro físico entre todos os seus partici-
pantes, então entendemos que a desterritorialização é uma das faces da pós-modernidade.

Segundo Cristina Costa (2005, p. 237), a desterritorialização seria “a perda da impor-


tância do território nacional e a transnacionalização da economia”, bem como “as novas
alianças que unem blocos regionais mais amplos, enfraquecendo as fronteiras nacio-
nais e a circunscrição do Estado” (COSTA, 2005, p. 237).

Nesta perspectiva, os territórios, as fronteiras e as vizinhanças necessitam de constante


redefinição. São típicas desse processo, as constantes migrações humanas ao redor
do globo terrestre, motivadas pelas mais diferentes causas: guerras, desastres naturais,
alianças políticas, atividades econômicas etc.

Anthony Giddens (2012, p. 467) rotula o século XXI como “a era da migração”, isto
porque a intensificação da migração global após a Segunda Guerra Mundial, e espe-

18
cificamente em anos mais recentes, trouxe questões políticas e de governança muito 1
sérias para todo o mundo. Inegável, portanto, é a multiplicidade de dados culturais e
influências étnicas que permeiam as sociedades atingidas por este processo.

Tanto os países alvos de imigrantes – geralmente pela prosperidade econômica (como


Alemanha, França, Inglaterra) – quanto aqueles que “cedem” seus indivíduos a outros
espaços (como Síria ou Haiti) – mais prósperos ou menos violentos e intolerantes –
veem no fenômeno da desterritorialização uma mescla de culturas e tradições que atin-
gem em cheio os sujeitos e definem novas identidades e relações sociais.

Fonte: 123RF.
Constituem exemplos de alguns desses espaços de desterritoriali-
zação os campos de refugiados, as colônias de imigrantes, multina-
cionais e empresas de capital misto, nos esclarece Cristina Costa
(2005, p. 237).

Fronteira entre Grécia e a FYRON (antiga República Iugoslava


da Macedônia).

A partir de agora, mais abstratos e difíceis de definir, os territórios nacionais, as fron-


teiras, os nacionalismos e as idiossincrasias culturais passam a ser constantemente

Estudo do Ser Humano Contemporâneo 19


O Ser Humano e a Formação Cultural do Ocidente: Modernidade, Pós-Modernida-
de e Globalização

1 reelaboradas sob uma perspectiva diversificada, múltipla e transnacional que traz a


pós-modernidade. Entender esse fenômeno contemporâneo irreversível se faz uma das
tarefas mais instigantes e complexas do pensamento social.

3. A GLOBALIZAÇÃO E SUAS PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS


E A CRÍTICA DO CONHECIMENTO
Este tópico trata de uma das questões mais comentadas e polêmicas da contempora-
neidade: a globalização. Tema profícuo entre filósofos, sociólogos, economistas entre
outros profissionais interessados em entender os meandros que regem a vida social,
política e cultural do século XXI, este assunto sempre traz posições contrárias e favorá-
veis capazes de despertar as discussões mais acaloradas.

Ainda no intuito de lhe fornecer maior subsídio para as discussões e problematizações


acerca do tema, propomos uma investigação sobre a questão da ampliação das frontei-
ras, processo inevitável da globalização. Abordaremos a formação dos blocos econômi-
cos e a consequente e dramática questão da imigração no século XXI.

Finalizamos nosso debate apresentando a proposta de uma governança global como


saída pensada por alguns estudiosos para os problemas gerados em função de uma
internacionalização das fronteiras. Esperamos contribuir para o despertar de uma cons-
ciência crítica e reflexiva acerca do tema e levantar ainda mais possibilidades de discus-
sões que busquem a construção de um mundo mais justo e humano para todos.

3.1 GLOBALIZAÇÃO: CARACTERIZAÇÕES


Nos noticiários, artigos de jornais, conversas informais e tantos outros espaços que
permeiam nosso cotidiano ouvimos falar sobre a globalização. Esse termo se tornou
palavra-chave para definir as novas relações no mundo contemporâneo, tanto para os
debates sociológicos e filosóficos quanto para os econômicos e políticos.

De uma maneira geral, o termo “global” se refere aos caminhos que as políticas econômicas
e sociais do mundo capitalista vêm trilhando a partir da década de 1980.

“A globalização refere-se ao fato de que estamos cada vez mais vivendo em um


mesmo mundo, de modo que os indivíduos, grupos e nações, se tornaram cada
vez mais interdependentes”. (GIDDENS, 2012, p. 102).

Muitos estudiosos do assunto tratam da globalização como uma significativa perda de


poder do Estado Nacional e do mercado interno, o que acarreta trocas comerciais e fi-
nanceiras internacionais intensas e confere muito poder às instituições supranacionais,
isto é, corporações, bancos e empresas multinacionais. No entanto, podemos afirmar
que, relacionada às profundas transformações econômicas, acompanhamos uma re-
viravolta nas relações culturais, sociais e tecnológicas entre os países a partir dessa
época. Giddens (2012) corrobora essa ideia ao afirmar que:

20
1
“Embora as forças econômicas sejam uma parte integral da globalização, seria erra-
do sugerir que elas a produzem sozinhas. A união de fatores políticos, sociais, cul-
turais e econômicos cria a globalização contemporânea” (GIDDENS, 2012, p. 102).

Assim, a globalização não se restringe às novas dinâmicas econômicas e políticas, ela


envolve outros tantos aspectos sociais capazes de alterar profundamente sociedades
inteiras. Somos levados a crer, portanto, que a globalização é processo multidimensio-
nal, ou seja, seus impactos e consequências podem ser sentidos em diversos âmbitos
da vida dos indivíduos no século XXI.

Tendo em vista a possibilidade de entendermos melhor essas transformações, propomos


uma reflexão sobre o funcionamento atual e as possibilidades futuras da globalização en-
quanto nova forma de ordenação das relações sociais, econômicas e políticas da atualidade.

Para isso, explicaremos a seguir alguns dos fatores que contribuíram para a globalização.

A Tecnologia das Comunicações e da Informação


O desenvolvimento das tecnologias da comunicação e da informação pode ser apon-
tado como um dos aspectos fundamentais para a intensificação da globalização na
contemporaneidade. Isto porque elas aumentaram, em muito, a velocidade e o alcance
das trocas sociais entre os indivíduos por todo o mundo.

Nos anos seguintes à Segunda Guerra Mundial, esta disseminação da informação sofreu
grande transformação. Ela foi facilitada por vários avanços na estrutura das telecomu-
nicações do planeta como o desenvolvimento de um sistema de cabos mais eficiente e
menos caro e o desenvolvimento tecnológico dos satélites de comunicações, que a partir
da década de 1960 expandem as comunicações internacionais. A partir de então, grandes
quantidades de informação podem ser comprimidas e transferidas por meio digital.

Nos lares, empresas, escritórios de qualquer país com infraestrutura de comunica-


ções mais desenvolvida, as pessoas estão interconectadas, recebendo e mandando
informações em tempo real para qualquer indivíduo ao redor do globo terrestre. Isso
acarreta uma transformação na concepção do tempo e do espaço substancial aos
envolvidos nesses processos.

Um indivíduo em Tóquio recebe documentos, envia imagens e vídeos


em tempo real a outro em São Paulo, graças ao desenvolvimento da
tecnologia dos satélites.

Os Fluxos Internacionais e Transformações das Identidades


As trocas de informações possibilitadas pela tecnologia da comunicação permite a in-
terconexão entre indivíduos no mundo todo. Esse fenômeno, para além das trocas já
mencionadas, faz com que as pessoas estejam mais conscientes e se identifiquem
mais umas com as outras em problemas globais do que no passado.

Estudo do Ser Humano Contemporâneo 21


O Ser Humano e a Formação Cultural do Ocidente: Modernidade, Pós-Modernida-
de e Globalização

1
Um exemplo claro das possibilidades trazidas pela tecnologia da comu-
nicação está na mo­bilização de milhares de pessoas em manifestações
políticas e culturais. Movimentos como a chamada Primavera Árabe
(grandes insurreições nos países árabes, a partir de 2009, quando mi-
lhares de pessoas saíram às ruas contra governos ditatoriais, inicia-se
na Líbia e se expande para vários países vizinhos); ou o Greenpeace
(importante Organização Não Governamental que luta pelas questões
ambientais), entre outros, podem ser classificados como ações que
buscam agir para além de seus territórios nacionais e são possíveis
graças à internet.

Explicaremos o fato das trocas de informações facilitadas pela tecnologia a partir de


duas dimensões.

A primeira

é que indivíduos no mundo todo passam a entender que suas responsabilida-


des vão além de suas fronteiras nacionais. Desastres naturais, guerras, fome e
injustiças de toda ordem passam a ser vistas como problemas de alçada inter-
nacional, dignos de ação e intervenção.

A segunda

diz que indivíduos no mundo todo buscam, cada vez mais, forjar sua identidade
em fontes além de seu Estado-Nação. As identidades culturais locais passam por
transformações profundas, e um habitante da Irlanda do Norte, por exemplo, pode
se identificar culturalmente com um da França. A ideia da identificação patriótica
dos indivíduos com seu Estados-Nação está em xeque à medida que as políticas
em níveis globais e regionais se orientam para além das fronteiras geográficas.

Anthony Giddens (2012) afirma que, embora a globalização seja fomentada por grandes
trocas econômicas e desenvolvimento tecnológico, ela pode ser sentida nas relações
mais cotidianas. As transformações são vistas nas formas como as instituições sociais
mais elementares, como família, papéis sociais, identidades pessoais, relações de tra-
balho, sexualidade etc., são afetadas e reconfiguradas. Neste sentido, para o autor, a
globalização inaugura um período de ascensão do individualismo.

“Em condições de globalização, enfrentamos uma tendência a um novo individu-


alismo, no qual as pessoas devem agir ativamente para construir suas próprias
identidades” (GIDDENS, 2012, p. 116).

À medida que nos deparamos com transformações profundas nos mais elementares
pilares de sustentação da vida em sociedade, e tradições e costumes antigos já não fa-
zem mais sentido, é preciso que sejamos capazes de alterar a maneira como pensamos
a nós mesmos e surjam novos padrões identitários.

22
Os Fatores Econômicos 1
Dada a importância que a tecnologia da informação confere às identidades individuais
e a promoção de novas formas de comunicação, não podemos deixar de salientar que
os processos econômicos são cruciais para que a globalização atinja os patamares do
século XXI. Cada vez mais a economia global se orienta para as atividades ligadas à
tecnologia da informação, isto é, softwares de computador, mídia, produtos do entrete-
nimento e serviços baseados na internet. Segundo Anthony Giddens (2012, p. 106), a
globalização é orientada “por atividades que não têm peso e são intangíveis”.

A forma predominante da economia contemporânea passa a ser a rede entre diversas ativi-
dades que cruzam as fronteiras geográficas, tornando as empresas cada vez mais flexíveis
e dispersas em suas hierarquias e atividades. É necessário fazer parcerias e participar de
redes de distribuição mundial para estar presente nos negócios do mundo globalizado.

A Ampliação das Fronteiras


Os processos de integração regional que se delinearam em meados do século XX es-
tão diretamente ligados ao desenvolvimento do capitalismo globalizado. Novos blocos
econômicos surgiram e um novo patamar de integração entre os países foi possível.

Nesse tópico, abordaremos as características principais da formação de blocos econô-


micos e suas principais consequências; assim como abordaremos a imigração.

Os Blocos Econômicos

Dentro do sistema internacional de comércio na contemporaneidade, a formação de


blocos econômicos passa a ser assunto de primeira ordem para os países que desejam
estar inseridos na economia mundial. Esse fenômeno pode ser definido como um pro-
cesso político entre dois ou mais países para limitar, total ou parcialmente, as barreiras
comerciais entre eles. Esse fato contribui muito para a internacionalização das econo-
mias, e, consequentemente, para o processo globalizador.

A constituição de um bloco econômico é a principal política de inte-


gração regional para criar e ampliar espaços inter ou supranacionais
que permitam maior complementaridade, intercâmbio e incremento da
capacidade competitiva dos países-membros em relação ao resto do
mundo. (SILVA, 2013, p. 294)

No entanto, o processo integrador das economias globais assume também as diferenças eco-
nômicas e políticas entre os países. Serão justamente essas diferenças entre os envolvidos que
representará um dos principais problemas enfrentados pela formação dos blocos econômicos
(por exemplo: União Europeia, Mercosul, Nafta, entre outros), símbolos da globalização.

A Imigração

No contexto dos blocos econômicos, as fronteiras são bastante livres e sem impedimen-
tos quando o que circula são as mercadorias. No entanto, quando se trata de pessoas,

Estudo do Ser Humano Contemporâneo 23


O Ser Humano e a Formação Cultural do Ocidente: Modernidade, Pós-Modernida-
de e Globalização

1 especialmente aquelas vindas dos países de economias periféricas, como África, Amé-
rica Latina e Ásia, as fronteiras já não são tão desimpedidas.

Restrições à entrada de imigrantes e

Fonte: 123RF.
políticas restritivas são formas contem-
porâneas de segregação espacial e
consequente elemento fundamental de
distinção social.

Idomeni, Grécia. Fronteira entre a Grécia e a FYROM.

“A possibilidade de se deslocar tornou-se um elemento fundamental para dis-


tinguir as classes sociais em nível global, não só pelos meios com os quais se
movimentam, mas também, ou principalmente, pelas segregações e restrições
espaciais que isso acarreta”. (BAUMAN apud SILVA et al., 2013, p. 295).

Atrelada à face positiva e transformadora das relações sociais que a globalização pro-
mete, está sua face perversa e excludente. Para que o ideal de integração da globali-
zação se realize, é necessário abandonar antigas tradições e posições nacionalistas.

“O nacionalismo tranca as portas, arranca as aldravas e desliga as campainhas,


declarando que apenas os que estão dentro têm direito de aí estar e acomodar-se
de vez” (BAUMAN, 2001, p. 203).

Neste sentido, podemos afirmar que um dos grandes desafios que se impõem às novas
relações entre os países é a questão da imigração e circulação de pessoas em busca
das promessas e benefícios do capitalismo globalizado.

Uma Governança Global é Necessária


No processo da globalização, o avanço tecnológico serve para a promoção da circula-
ção de capitais e mercadorias, no entanto, este processo não é homogêneo e igualitá-
rio. Àqueles países em que o capitalismo ainda é subdesenvolvido (por exemplo: Brasil,
Índia, Chile), sobra apenas a transferência dos lucros aos países do capitalismo central
(por exemplo: Estados Unidos, Inglaterra). Já a circulação humana é restrita e proble-
mática, como visto no tópico anterior.

É por isso que os efeitos negativos da globalização podem ser sentidos principalmente
nas regiões de capitalismo periférico onde a instalação de grandes multinacionais ex-
plora a força de trabalho regional muitas vezes de maneira injusta, como por exemplo,
pagando salários cada vez mais baixos, por muitas vezes mantendo os trabalhadores em
condições análogas à escravidão, aproveitando-se da pouca organização sindical dos

24
trabalhadores desses países, e ainda, valendo-se das isenções fiscais oferecidas por 1
líderes desses países para que instalem suas fábricas nesses locais. Também é possível
sentir os efeitos negativos da globalização nas consequências ao meio ambiente desses
países, em que o processo de dilapidação dos recursos naturais se mostra insustentável.

Por esses motivos, muitos estudiosos da globalização falam em estabelecer uma gover-
nança global. Esta proposta visa abordar de maneira global problemas que são criados
e têm consequências num nível global.

Os efeitos do aquecimento do

Fonte: 123RF.
planeta, da dissemi­ nação de do-
enças, da regulamentação de
mercados financeiros instáveis e
dependentes internacional­mente,
são exemplos de problemáticas
que surgem em função de uma
nova ordem econômica, política e
social que é a globalização.

Para a resolução destes entraves gerados pela internacionalização das relações, cada
vez mais se propõe que as soluções para estes se dê num nível global. Segundo Gi-
ddens (2012, p. 117), o estabelecimento de uma governança global pode ajudar “a
promover uma ordem mundial cosmopolita, na qual regras e padrões transparentes
para o comportamento internacional, como a defesa dos direitos humanos, sejam esta-
belecidos e observados”.

CONCLUSÃO
Nesta Unidade de Estudo abordamos os temas: modernidade, sociedade pós-indus-
trial e cultura pós-moderna, e globalização. Vimos que o período que chamamos de
modernidade se refere a transformações importantes em todas as instituições sociais:
desde as relações de trabalho, até a política e a economia. O Renascimento, como fato
importante e cabal trouxe uma nova maneira de o homem enxergar a si e o mundo em
que vive, enquanto que a Revolução Industrial mudou radicalmente a ordem produtiva
da vida econômica e alterou para sempre os modos de produção.

Autores importantes da sociologia, como Anthony Giddens e Cristina Costa, elaboraram


reflexões sobre este período histórico e o caracterizaram a partir da rapidez das mudan-
ças. Para oinglês Anthony Giddens, é preciso estar atento para as consequências que a
modernidadeacarreta para vida do planeta como um todo, como o impacto das transfor-
mações no meioambiente, o totalitarismo e a associação entre poder militar e industrial.

Estudamos também os temas relacionados à pós-modernidade. Evidentemente todos


nós já ouvimos os termos pós-modernidade, vida pós-moderna, amores pós-moder-
nos em algum momento de nossas conversas mais banais. No entanto, a Unidade de

Estudo do Ser Humano Contemporâneo 25


O Ser Humano e a Formação Cultural do Ocidente: Modernidade, Pós-Modernida-
de e Globalização

1 Estudo apresentada forneceu aspectos e características desse fenômeno de modo


mais complexo e aprofundado. Passamos pelas principais faces da pós-modernidade:
suas características, a importância das tecnologias da informação e a consequente
sociedade em rede, e a ideia de desterritorialização. Ao abordarmos a questão das
redes, não pudemos nos furtar do impacto disso nas relações de produção e nas mo-
vimentações sociais.

Todos esses aspectos se dispuseram a agregar dados e possibilidades de entendimen-


to da realidade do século XXI a você que está disposto a captar de maneira crítica e
reflexiva a realidade em que estamos todos inseridos.

Ao longo desta Unidade, também procuramos elucidar aspectos importantes acerca


do tema da globalização. Passamos pelas suas características principais, pelos fatores
cruciais para que alcançasse os níveis do século XXI, pela importância da tecnologia da
informação e do desenvolvimento da internet nesse processo. Também salientamos o
papel da economia e a formação dos blocos econômicos como grandes catalizadores
da globalização tal como temos hoje. Tratamos do problema da imigração e de como
a globalização pode ser perversa com aqueles países considerados como capitalismo
periférico. Por fim, apontamos como saída para estes entraves o sonho da governança
global, que, para muitos estudiosos, é a possibilidade mais plausível para os problemas
criados pela internacionalização das fronteiras.

Esperamos que os elementos aqui apresentados tenham fomentado uma nova e mais
complexa maneira de enxergar o fenômeno que atinge a todos os cidadãos e todas as
cidadãs do mundo contemporâneo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio 5. ______. As consequências da modernidade. São
de Janeiro: Zahar, 2001. Paulo: Unesp, 1991.
2. CASTELLS, Manuel. Redes de indignação e 6. HARVEY, David. Condição pós-moderna. São
esperança: Movimentos sociais na era da internet. Paulo: Loyola, 2007.
Rio de Janeiro: Zahar, 2013. 7. SILVA, Afrânio et al. Sociolo-
3. COSTA, Cristina. Sociologia: introdução à ciên- gia em movimento. São Paulo:
cia da sociedade. São Paulo: Moderna, 2005. Moderna, 2013.
4. GIDDENS, Anthony. Sociologia. Porto Alegre:
Penso, 2012.

26
1

Estudo do Ser Humano Contemporâneo 27


Expressões e Processos do Conhecimento e o Humano como ser
Multifacetário e Relacional
UNIDADE 2

EXPRESSÕES E PROCESSOS DO
2
CONHECIMENTO E O HUMANO
COMO SER MULTIFACETÁRIO E RELACIONAL

INTRODUÇÃO
Nesta Unidade abordaremos os tópicos sobre as formas e os processos do conheci-
mento e sobre o ser humano, destacando a dimensão biológica, a inteligência, a lingua-
gem, a cultura, a historicidade, a alienação e a busca do transcendente.

Na época em que vivemos, diferentemente das anteriores, abundam informações. Che-


gam até nós turbilhões diários de informações. Nem todas são exatas, verdadeiras e re-
levantes. Muitas vezes temos a sensação de que recebemos informações em excesso,
que mais nos confundem do que esclarecem. Muitas delas truncadas, grosseiramente
simplificadas, cuja fonte não é conhecida, que podem ter sido divulgadas com a inten-
ção de iludir as pessoas, não com a intenção de lhes auxiliar a conhecer e compreender
a realidade em que vivem. Outras tantas vezes as informações nos chegam apenas
como entretenimento, modeladas (e distorcidas) para provocar emoções e divertimento,
não para a ajudar elaborar conhecimentos.

Você já deve ter experimentado isso e provavelmente percebeu que a dificuldade é


separar informações verdadeiras e não verdadeiras, informações relevantes e meros
truísmos que nos ocupam a mente e o tempo. Cada vez mais, é necessário discernir
entre as informações que podem nos ser úteis e as que podem nos iludir. Nesta
Unidade, queremos trabalhar alguns conceitos e algumas distinções que podem nos
ajudar na tarefa de filtrar informações e construir conhecimentos.

1. INFORMAÇÕES E CONHECIMENTOS
Informações não são conhecimentos. Essa é a primeira distinção que devemos fazer.
Informações são registros de algumas características de fatos, objetos ou processos
que detectamos no mundo.Conhecimentos são conjuntos de informações organizadas,
articuladas e interpretadas, que nos ajudam a compreender uma parte da realidade
natural, social ou cultural do mundo em que vivemos.

Pense numa lista telefônica (daquelas antigas, enormes e impressas


em papel fininho). Você tem nela uma grande quantidade de informa-
ções, mas, por si só, a lista não representa conhecimento. Para trans-
formar aquelas informações em conhecimentos sobre a cidade a que
se refere essa lista, você precisa analisar essas informações, estabe-

28
lecer relações entre elas e interpretar seu significado. Só assim você
saberá se a cidade é populosa ou não, se é rica ou pobre, antiga ou 2
jovem, que tipos de empresas possui, se seus serviços de saúde e de
educação estão bem distribuídos ou não.

Todos os dias somos bombardeados por uma enorme quantidade de informações. Jor-
nais, revistas, TV, Internet, rádio, redes sociais... Não nos faltam informações. Na verda-
de, as temos em excesso. Isso cria um dos grandes desafios de nosso tempo: filtrar essas
informações, separando relevantes e irrelevantes, verdadeiras e falsas, úteis e inúteis.

A análise das formas de conhecimento, que empreenderemos nesta Unidade, apresen-


ta algumas ferramentas para ajudá-lo a enfrentar o desafio de fazer o exame crítico das
informações que recebemos.

1.1 AS FORMAS DO CONHECIMENTO


Ao longo da História, os seres humanos criaram variadas formas de conhecer. São
modos diferentes de usar sua capacidade intelectual, de articular ideias, imagens, ra-
ciocínios, sentimentos. Todas as formas de conhecimento – senso comum, mito, ide-
ologia, ciência, tecnologia, filosofia, religião, arte, entre outras – atendem de maneiras
diferentes à necessidade humana de conhecer e compreender o mundo e o próprio ser
humano. Analisaremos nesta Unidade apenas algumas dessas formas.

Senso Comum
O senso comum pode ser entendido de duas formas distintas, mas que são complementares:

Como Fenômeno Social

Em todos os grupos sociais percebemos a existência de informa-


ções que circulam continuamente entre seus membros, formando
um cabedal comum, isto é, conhecido por todos. Esse cabedal con-
tém normas de comportamento social, fatos históricos, lendas, su-
perstições, informações científicas popularizadas, valores morais,

01
crenças religiosas, modos de fazer coisas e organizar a vida, mitos,
ideologias políticas, representações do que seja o mundo e a socie-
dade etc. Tudo isso misturado, num conjunto pouco organizado e
muitas vezes contraditório. Esse cabedal, entretanto, é da máxima
importância, pois permite a comunicação entre os membros do gru-
po social e, consequentemente, facilita a interação e a cooperação
entre eles. O senso comum forma uma visão de mundo, isto é, uma
representação, uma imagem de como é o mundo, que é a primeira
referência que temos do mundo que nos cerca e é a referência que
as pessoas usam como orientação para a vida cotidiana.

Estudo do Ser Humano Contemporâneo 29


Expressões e Processos do Conhecimento e o Humano como ser
Multifacetário e Relacional

2 Como forma de organizar os conhecimentos: Numa outra abor-


dagem, o senso comum é também uma maneira de conhecer, isto
é, um modo de lidar com informações e elaborar conhecimentos.
O senso comum elabora conhecimentos de modo assistemático,

02
fragmentário e superficial. Isso porque o senso comum é muitas ve-
zes portador de uma atitude crédula e acrítica, que se satisfaz com
as aparências, que aceita opiniões somente porque foram emitidas
por supostas autoridades do saber, que admira as opiniões mais
chocantes. Podemos resumir afirmando que o senso comum não
examina seus conhecimentos: não pergunta pela origem das infor-
mações, não pergunta por sua veracidade, ou pelos interesses que
eventualmente podem promover a divulgação de fatos distorcidos.

O que vou comer na lanchonete, se levarei ou não agasalho ao sair


de casa, se é moralmente certo ou errado o gesto que pretendo rea-
lizar para uma pessoa, em que candidato pretendo votar, tudo isso é
geralmente avaliado por meio de critérios extraídos do senso comum.

Vale atentar para esta característica do senso comum: toda informação que se torna
senso comum, isto é, que se dissemina na sociedade e é repetida em toda parte, come-
ça a ser tomada como verdadeira. É como um boato maldoso: depois que se difunde,
ninguém mais se lembra de onde veio, quem o proferiu e com que interesse. Tornou-se
senso comum, todos o repetem como se fosse verdadeiro.

Podemos resumir afirmando que o senso comum não examina seus


conhecimentos: não pergunta pela origem das informações, não per-
gunta por sua veracidade, ou pelos interesses que eventualmente po-
dem promover a divulgação de fatos distorcidos.

O exame do conhecimento é tarefa constante para todos aqueles que não se satisfa-
zem com aparências e buscam a verdade. Por isso, apesar de sua enorme importância
na vida cotidiana de indivíduos e coletividades, não podemos nos limitar a aceitar e
reproduzir os conteúdos superficiais do senso comum.

Mito
Mitos são também uma maneira de conhecer, que a humanidade vem utilizando desde
a mais remota antiguidade até hoje. Trata-se de uma forma de conhecimento baseada

30
fundamentalmente na compreensão intuitiva dos fatos, que é apresentada, em geral,
sob o formato de uma história. Essa narrativa apresenta, muitas vezes a saga de um
herói, a origem do cosmos ou dos deuses, a origem do ser humano, das raças e dos 2
povos, entre outros temas.

Os mitos são criados, anônima e coletivamente, para explicar o mundo em que vi-
vemos, especialmente os acontecimentos que nos amedrontam. Essa explicação não
segue critérios racionais, muito menos científicos, mas ensinam, por meio do compor-
tamento dos personagens da narrativa, a solução dos enigmas da vida, a identidade do
grupo social e o modo correto de se conduzir.

Todos os povos criam seus mitos e os utilizam para compreender os mistérios da vida
e do mundo.

No cinema americano encontramos, onipresente, o mito do he-


rói. Na história política brasileira é recorrente o mito do salvador
da pátria. Nas tradições religiosas de origem hebraico-cristã,
em papel fundante o mito da origem do povo. Nas tradições
indígenas muitas vezes encontramos mitos da origem dos ali-
mentos e das ferramentas.

É importante observarmos que os mitos estão presentes em nossa


vida, mesmo que não os percebamos. Nós os tomamos como ex-
plicações válidas, até o momento em que novas informações nos
fazem adotar outras explicações, mais afeitas às ciências ou à ra-
cionalidade pragmática. Apenas quando as primeiras explicações
são recusadas como inválidas, percebemos que são explicações
míticas. O exemplo a seguir apresenta um caso assim.

UM MITO CONTEMPORÂNEO

Alguém já lhe contou a história seguinte? Ela já foi muito difundida no Brasil há
algumas décadas. Apesar de ser uma explicação mítica, foi aceita como válida
por amplos setores da sociedade brasileira:

“O Japão é um país muito pequeno, que fica do outro lado do mundo. Durante
a Segunda Guerra Mundial, foi inteiramente destruído. Mas os japoneses foram
tão esforçados, disciplinados e trabalhadores, que rapidamente reconstruíram
tudo e ainda se tornaram um dos países mais ricos do mundo”.

Essa narrativa surgiu nos anos 1960, quando o Japão experimentou um cresci-
mento econômico muito forte e impressionou o mundo todo com seus trens-ba-
la, automóveis baratos e aparelhos eletrônicos.

Estudo do Ser Humano Contemporâneo 31


Expressões e Processos do Conhecimento e o Humano como ser
Multifacetário e Relacional

Visto a partir do Brasil, o “milagre econômico japonês” parecia incompreensí-


2 vel e, sobretudo, assustador. O Japão não tinha sido inteiramente destruído,
inclusive por duas bombas atômicas? Como os japoneses conseguiram essa
façanha? O que eles faziam de especial para chegar tão longe?

Desconhecendo os fatores econômicos e geopolíticos que favoreceram a re-


construção do Japão, inclusive a enorme cooperação norte-americana, os bra-
sileiros recorreram à consciência mítica, que forneceu uma explicação – intui-
tiva, mas fundamentada na realidade: a tradição japonesa de valorização do
esforço, do trabalho e da disciplina.

E o que os brasileiros têm a ver com esse mito?

Como essa narrativa, criada por brasileiros, pode se referir à identidade


dos brasileiros?

A resposta parece estar em uma espécie de contraposição muda:

 o Japão é um país muito pequeno, o Brasil é um país com imenso território;

 o Japão foi inteiramente destruído durante a Segunda Guerra Mundial, o


Brasil sempre se ufanou por não ter guerras em seu interior;

 o Japão foi reconstruído e se tornou rico por meio do trabalho e do esforço


de seus cidadãos, o Brasil ainda não chegou lá.

Ideologia
Desde Destutt de Tracy e Karl Marx, no século XIX, o fenômeno da ideologia tem des-
pertado interesse e inúmeros teóricos já se manifestaram sobre o tema, formulando
concepções das mais variadas. Com base nas ideias do filósofo polonês Adam Schaff
(1913-2000), apresentamos uma concepção ampla de ideologia, que nos fornece uma
interessante ferramenta para elaborar a crítica do conhecimento.

De acordo com esse pensador, podemos definir ideologia como um


conjunto de opiniões, baseadas em um conjunto de valores ad-
mitidos, pelo qual um grupo organizado afirma sua identidade e
seus interesses (SCHAFF, 1968).

A ideologia é concebida, então, como uma visão de mundo sistematizada (ao contrário do
senso comum, que é uma visão de mundo desorganizada), modelada pelos interesses do
grupo que a elaborou, que atua afirmando a identidade do grupo, controlando as divergên-
cias de seus membros e difundindo por toda a sociedade a visão de mundo desse grupo.

A ideologia pode atuar como instrumento crítico de desvelamento da realidade, num


contexto em que o grupo que a formula se encontra em situação de subordinação ou

32
de oposição ao grupo dominante. Contudo, a ideologia se torna falsa consciência e
obstáculo à compreensão da realidade sempre que está a serviço da dominação e, por
conseguinte, dos interesses de ocultação do real. 2

Os mecanismos utilizados pela ideologia para ocultar a realidade foram estudados por
Marilena Chauí (2008. p. 113.). Os principais são:

01. Naturalização

Faz com que os processos provocados pela intervenção humana sejam interpre-
tados como resultantes de fenômenos naturais;

02. Inversão de causa e efeito

Em geral faz com que as vítimas de um processo social violento ou excludente


apareçam como seus causadores;

03. Universalização de interesses

Maneira pela qual os interesses do grupo dominante são apresentados como


interesses de todos os membros da sociedade;

04. Ocultação de informações

Informações que, se reveladas, destroem a coerência do discurso ideológico e


evidenciam seu propósito ocultador.

FONTE: Aranha e Martins (1993, p. 37)

Na vida cotidiana e na vida civil, em todos os debates de cunho político,


econômico social ou cultural, estão presentes as ideologias, ora ocultando
a realidade, ora forçando seu desvelamento.

Não existe um “lugar” ou um tipo de discurso ideologicamente neutro. A


ideologia só pode ser vencida pelo esforço crítico de perceber, em cada
caso, em cada ponto de discussão, os interesses que estão moldando o
discurso e deformando a percepção da realidade. É uma tarefa indispensá-
vel e permanente.

Ciência
É muito importante examinarmos também a ciência. Trata-se da forma de conhecimento
mais prestigiosa dos últimos séculos. Dela se esperam conhecimentos verdadeiros e uma
explicação científica tende a ser aceita como verdadeira e incontestável.

Estudo do Ser Humano Contemporâneo 33


Expressões e Processos do Conhecimento e o Humano como ser
Multifacetário e Relacional

A ciência foi buscada, desde a antiguidade Clássica, como um ideal de conhecimento


certo e seguro, que permitisse superar as limitações do senso comum e do mito. Contu-
2 do, somente a partir da Revolução Científica do Século XVII (protagonizada por Galileu
Galilei, entre outros), estruturou-se o tipo de saber que hoje denominamos ciência. Sendo
assim, na escala de tempo da história da humanidade, esse é um acontecimento recente.
Seu enorme sucesso e suas conquistas se devem à adoção de um método baseado na
experimentação. Com ele, a ciência moderna foi mais longe e mais fundo que a maior par-
te das formas de conhecimento. Atualmente, a ciência abrange os estudos da natureza,
do ser humano, da sociedade e da cultura.

A ciência tem limitações, contudo. Sua capacidade de conhecer vai somente até
onde é possível fazer experimentações, ou constatações empíricas. Muitas coisas
importantes ficam de fora do conhecimento científico:

O campo dos valores éticos e estéticos:

pois a ciência não discute valores (o cientista é quem deve ter valores éticos);

A arte:

que é também uma forma válida (e indispensável) de interpretar a realidade;

O campo da fé:

que continua a mover a humanidade;

As profundezas da alma humana:

reveladas nos mitos e na arte;

E os voos mais altos da razão:

em que a filosofia ultrapassa a ciência e tematiza a própria razão.

Dessa forma, o formidável poder explicativo da ciência nunca será capaz de esclarecer
toda a realidade, nem de afirmar a existência ou inexistência de Deus, a justiça, a bele-
za e muitos outros temas. Não poderá substituir outras formas de conhecimento, como
a filosofia, ou a experiência religiosa, mas poderá conviver com elas e mesmo cooperar,
pesquisando em seu campo próprio e com seus métodos específicos os aspectos bási-
cos dos fenômenos que interessam também a essas formas de saber.

34
Como Podemos Caracterizar o Conhecimento Científico?

O conhecimento produzido pela ciência pretende ser, acima de tudo, objetivo. Objetivo 2
é o conhecimento que traduz as características do objeto (a coisa) que está sendo co-
nhecido. É, portanto, um conhecimento fiel à realidade, evitando distorções introduzidas
pela subjetividade do cientista.

O conhecimento científico é também organizado e coerente, sem contradições nem la-


cunas que o invalidem. Nisto difere do senso comum, que é um conjunto desorganizado
de opiniões. É também metódico, isto é, segue com rigor um método científico, evitando
saltos, “chutes” e “achologia”. É racional, isto é, exprime-se em conceitos e relações
lógicas e pode ser compreendido por meio da razão humana. É testável, isto é, pode ser
submetido à experimentação e, por meio dela, corroborado ou refutado.

O conhecimento científico pretende ser válido, isto é, capaz de descrever e explicar


fenômenos com objetividade, sem pretender constituir verdade definitiva. De fato, os
cientistas sabem que seu conhecimento é falível e, frequentemente, uma teoria deve
ser abandonada em favor de outra porque aquela permite explicar fenômenos que a
primeira não explica.

O que são, então, as teorias científicas?

São modelos que pretendem descrever o funcionamento dos fenômenos, isto é, são
maquetes da realidade, que nos ajudam a compreendê-la. Nunca são, porém, repre-
sentações completas e infalíveis da realidade.

Técnicas e Tecnologia
Técnicas são as formas que a humanidade foi criando, ao longo da história, para trans-
formar materiais naturais nos bens de que tinha necessidade.

Foram assim inventados, por exemplo, a agricultura e a pecuária; ali-


mentos como o pão, os queijos, o vinho e demais bebidas alcoólicas; a
fundição de metais; a edificação com madeira e/ou pedra etc.

Por sua vez, a tecnologia surgiu com a ascensão da ciência moderna, no final do século
XVIII. Os cientistas da época procuravam explicar com ajuda da ciência o funcionamen-
to das técnicas tradicionais. Com isso, abriram caminho para o aperfeiçoamento dessas
técnicas por meio do conhecimento científico e para sua utilização na indústria. Surgiu
assim a eletrônica e a microeletrônica, a informática e todo o aparato que hoje utiliza-
mos nas telecomunicações e no processamento de informações.

Ciência e tecnologia atuam em mão dupla: o conhecimento científico abre caminho


para o desenvolvimento de tecnologias e a tecnologia dá meios à ciência para o apro-
fundamento das pesquisas. Essa relação é tão profunda que atualmente alguns setores
preferem usar o termo “tecnociência”, ao invés de “ciência e tecnologia”.

Estudo do Ser Humano Contemporâneo 35


Expressões e Processos do Conhecimento e o Humano como ser
Multifacetário e Relacional

A tecnologia desempenha papéis fundamentais em nossa sociedade.


2
O mais nobre é com certeza a criação de novos medicamentos e
aparelhagens que facilitam o diagnóstico e o tratamento de doenças.
Entretanto, os produtos de uso doméstico (eletroeletrônicos, quími-
cos, alimentícios), do setor automobilístico ou de transportes, do setor
agropecuário, entre outros, transformam incessantemente a econo-
mia, pois ora dão maior eficiência e produtividade aos métodos de
produção, ora criam produtos que introduzem facilidades novas e dis-
seminam novos comportamentos. Isso sem mencionar a área militar,
onde novas tecnologias bélicas (armas, comunicação e transporte)
tendem a ser decisivas na guerra. Por essa razão, o desenvolvimento
de novas tecnologias é preocupação constante de muitos países.

Dessa maneira, é fácil entender que o principal papel da tecnologia tem sido o de esti-
mular a economia com novos e melhores produtos, cujo surgimento leva à substituição
de produtos anteriores e força a realização de novos investimentos. A tecnologia se
tornou um dos principais motores da economia capitalista. Contudo, seu uso deve ser
dirigido e, quando necessário, limitado, pela atuação responsável de cientistas e de
toda a sociedade.

Filosofia
Também a filosofia é um modo especial de elaborar conhecimentos. A própria palavra
filosofia o denuncia: no grego antigo, filo + sofia equivale a amor pela sabedoria, isto
é, uma busca contínua, amorosa e empenhada do conhecimento em direção à sabedo-
ria. Mas esta explicação não nos basta atualmente.

Como modo de conhecer, a filosofia pode ser compreendida como reflexão radical, ri-
gorosa e de conjunto sobre problemas que a realidade em que vivemos nos apresenta
(SAVIANI, 1983). Afirmar que a Filosofia é reflexão significa afirmar que a razão (nossa
capacidade de raciocinar) é o instrumento mais importante para a compreensão da rea-
lidade. Mas não é qualquer tipo de reflexão que pode ser chamada de filosófica.

 deve ser radical, na medida em que desce às raízes dos proble-


mas enfrentados;

 deve ser rigorosa, quando utiliza de procedimentos com lógi-


ca e metodologia, indispensáveis para o desenvolvimento reto
e seguro da razão, bem como da percepção das racionalidades
no real;

 deve, finalmente, ser abrangente, na medida em que procura


focar seus objetos nos contextos que lhes dão sentidos e nas
circunstâncias que interagem com os seres humanos.

36
Os objetivos desta reflexão são variados e diversos, conforme os diferentes autores e
correntes da filosofia. Observe a seguir:
2

Filosofia

a) um conjunto de conhecimentos que visa fornecer explicação fundamental de


todas as coisas;

b) a tentativa de encontrar sentidos que expliquem radicalmente a realidade huma-


na, sua inserção no mundo e suas possibilidades existenciais;

c) a busca pelos fundamentos concretos da realidade, bem como a busca pelas


possibilidades de conhecê-la;

d) a busca do direcionamento racional das ações humanas, na ação e na ética, e


da construção racional do mundo humano.

Vale uma palavra sobre a necessidade e a importância da filosofia. O senso comum


a considera inútil. Entretanto, apoiada na reflexão rigorosamente racional, a filosofia
permite ao homem se distanciar do mundo cotidiano, do agir imediato, dos sentidos
preconcebidos e impostos pelas ideologias.

Este distanciamento permite:

 a retomada crítica dos fundamentos da ação individual e coletiva;

 a crítica do pensamento relativista ou mesmo dogmático,


tão frequentes no senso comum;

 a crítica da especialização fragmentadora das ciências, da es-


treiteza da razão instrumental sacralizada pela tecnologia.

Tabela 01. Diálogo entre a Filosofia e outras formas do conhecimento

CIÊNCIAS PROFISSÕES E TECNOLOGIA FÉ E A TEOLOGIA

De fato, no diálogo com a ciên- Às profissões e tecnologias, a Com a fé e a teologia, a filosofia


cia, a filosofia se apropria de filosofia traz a discussão ética e pode empreender riquíssimo
conhecimentos científicos que lhe metodológica das finalidades e dos diálogo, no qual se alcança uma
permitem melhor aproximação meios da ação, do trabalho e do esfera mais ampla de significa-
do real, enquanto as ciências se próprio conhecimento científico. ção da experiência humana e de
enriquecem com a discussão dos sua relação com o ser e com o
fundamentos e do alcance dos Criador. Com as artes, a filosofia
conhecimentos construídos. dialoga em busca do belo, do ser
e do fazer.

FONTE: O autor (2017)

Estudo do Ser Humano Contemporâneo 37


Expressões e Processos do Conhecimento e o Humano como ser
Multifacetário e Relacional

Na filosofia reside a possibilidade de o homem transcender a situação dada e não esco-


lhida, reside nela a possibilidade de o homem se tornar capaz de projetar o efetivamen-
2 te novo e direcionar livremente seu destino.

Pelo exercício do pensamento radicalmente crítico, a filosofia permite elaborar a refle-


xão sobre os fundamentos e limites da ciência, das tecnologias e das profissões e de
todas as formas do conhecer.

A filosofia permite diálogo construtivo com todas as modalidades do conhecimento. Mas


também se opõe, criticamente, à ciência que pretende explicar o real pela negação de
tudo o que não recai sob seus instrumentos; contrapõe-se às ideologias que mascaram
a realidade, às tecnologias que pretendem prescindir da finalidade humana, às aborda-
gens ingênuas e redutoras, que entorpecem o senso comum.

A filosofia pode cooperar construtivamente com todas as modalidades do conhecimento


que exerçam suas funções sem ultrapassar o grau próprio de seu saber.

1.2 EM BUSCA DE UMA COMPREENSÃO CRÍTICA

Como nos situamos diante de todas essas formas de conhecimento?

Qual delas tem mais razão no que afirma, no que nega ou no


modo como procede?

Infelizmente não temos à nossa disposição a alternativa de adotar uma forma única e suficiente.

Todas as formas de conhecimento nos são necessárias:

A ciência é indispensável. Trata-se do mais bem-sucedido empreendimento humano na


área do conhecimento e seu papel é insubstituível para a compreensão do mundo em
que vivemos, de tudo o que envolve a vida humana e mesmo para a compreensão de
nós mesmos. É a forma de conhecimento que permite a elaboração de tecnologias, que
se tornaram indispensáveis à conservação da vida humana.

Contudo, não nos basta a ciência. As demais formas do conhecimento são também
necessárias para a vida humana atual.

O senso comum:

tem papel importantíssimo nos grupos sociais, pois as opiniões e significados


que faz circular permitem o entendimento mútuo entre indivíduos.

Os mitos,

já o vimos, são um esforço, permanente e nunca abandonado, para compreen-


der os mistérios que nos cercam.

38
As ideologias
2
proporcionam unidade e mobilização de grupos sociais.

A filosofia

busca compreensão crítica e radical da realidade humana e das próprias for-


mas de conhecimento.

Todas essas formas de conhecimento têm sua importância e atendem à irrenunciável


necessidade humana de conhecer. Na vida cotidiana, utilizamos todas essas formas,
ora isoladamente, ora mesclando-as. Todas elas, cada uma a seu modo e para momen-
tos distintos, podem nos ser úteis na busca da compreensão mais profunda da realida-
de humana e do mundo que nos cerca.

Isso não significa aceitar, ingenuamente, qualquer opinião como válida, ou qualquer in-
formação como verdadeira. Precisamos nos aproximar criticamente de toda informação
e de todo conhecimento que nos é proposto.

Pensar criticamente o conhecimento é, em primeiro lugar, constatar


que o conhecimento humano é sempre limitado e sujeito a falhas;
por outro lado, a realidade é complexa e sua apreensão nunca é
completa nem automática. A criticidade consiste em examinar todo
discurso que se apresenta com portador de conhecimentos, seja
ele científico, ético, político, religioso, artístico ou do senso comum.
Isso inclui examinar nossa própria concepção de mundo, certezas
arraigadas, pressupostos teóricos e hábitos intelectuais.

Diante de qualquer discurso, podemos sempre refletir:

 Quais são os fatos objetivos apontados e quais são as impres-


sões subjetivas? Nesse discurso, o que é descrição da realida-
de e o que é juízo moral?

 Como podem ser verificadas as informações transmitidas?

 Esse discurso mostra a realidade como um conjunto complexo de


elementos e suas relações ou como um esquema simplificado de
oposição entre os bons e os maus?

Estudo do Ser Humano Contemporâneo 39


Expressões e Processos do Conhecimento e o Humano como ser
Multifacetário e Relacional

 Qual é a perspectiva a partir da qual pensa e fala o autor desse


2 discurso? Quais são seus pressupostos sociais, políticos, éticos e
antropológicos? Quais poderiam ser seus interesses?

 Qual é o objetivo desse discurso: descrever, discutir, persuadir,


mobilizar, mostrar a realidade ou ocultá-la?

Alimentada por uma atitude analítica, atenta, que não se satisfaz com as aparências,
não aceita passivamente opiniões e valores que lhe são propostos, mas quer interro-
gar o real e compreendê-lo profundamente, a criticidade requer um esforço metódico
e constante de exame dos conhecimentos e de busca de informações mais amplas e
precisas. Desse esforço depende a esperança de compreendermos melhor o mundo
em que vivemos.

2 O HUMANO – QUEM É ELE?


Quem é o ser humano?

Esta pergunta é constantemente repetida, em todos os tempos e lugares, mas as res-


postas nunca permitem compreender inteiramente o ser humano. A complexidade bioló-
gica, psíquica, sociocultural e espiritual do ser humano, associada à sua capacidade de
se modificar e de se reinventar, faz dele um grande mistério para si mesmo.

No entanto, não é possível vivermos como humanos sem nos colocarmos


questões fundamentais:

Quem somos nós?

Qual é o propósito de nossa existência?

Veremos algumas características que fazem do humano um ser tão especial. Essas
características indicam dimensões que, profundamente integradas, constituem o ser
humano. É fundamental entendê-las, pois, se as desconsiderarmos, correremos o risco
de construir uma visão distorcida do que é o ser humano.

O ser humano pode ser pensado como sendo constituído por múltiplas
dimensões profundamente integradas.

2.1 O SER HUMANO É FEITO DE TERRA E É PARTE DA TERRA


O ser humano, como todos os seres vivos do planeta Terra, tem seu corpo constituído
pelos mesmos materiais biológicos presentes em todos os animais. Por sua vez, estes
são compostos por elementos químicos extraídos do solo, da água, do ar e de outros
seres vivos. Nesse sentido, nós compartilhamos a mesma “química da vida” com todos
os seres vivos e obedecemos às mesmas leis naturais.

40
Somos, assim, filhos da Terra, que nos dá a vida biológica e o alimento
com que, diariamente, construímos nosso corpo e do qual retiramos a 2
energia de que necessitamos, e a qual devolveremos tudo um dia, ao
final da vida.

É para essa reflexão que nos convida a imagem utilizada pela Bíblia para descrever o
surgimento do ser humano: um boneco modelado em barro, no qual Deus introduziu
um espírito: “Então Iahweh Deus modelou o homem com a argila do solo, insuflou em
suas narinas um hálito de vida e o homem se tornou um ser vivente” (BÍBLIA, Gn 2, 7).
A reflexão de Leonardo Boff (2013) nos ajuda a compreender melhor essa realidade:

Somos Terra que pensa, sente e ama. O ser humano, nas várias culturas e fa-
ses históricas, revelou essa intuição segura: pertencemos à Terra; somos filhos
e filhas da Terra; somos Terra. Daí que [a palavra] “homem” vem de “húmus”.
Viemos da Terra e voltaremos à Terra. A Terra não está à nossa frente como
algo distinto de nós mesmos. Temos a Terra dentro de nós. Somos a própria
Terra que na sua evolução chegou ao estágio de sentimento, de compreensão,
de vontade, de responsabilidade e de veneração. Numa palavra: somos a Terra
no seu momento de autorrealização e de autoconsciência.

O corpo humano é composto por elementos químicos extraídos do solo,


da água, do ar e de outros seres vivos. Somos, portanto, feitos de terra
e à terra devolveremos nosso corpo.

O Ser Humano: um Animal Extraordinário


Como animal, o ser humano compartilha características das espécies mais evoluídas,
mas também possui traços que o diferenciam dos outros animais.

De fato, somos bastante semelhantes aos grandes primatas, como orangotangos, go-
rilas e chimpanzés. Somos mamíferos, organizados em simetria bilateral, dotados de
quatro membros divididos entre superiores e inferiores, possuímos polegares opositores
que permitem à mão segurar um objeto, um cérebro desenvolvido e a capacidade de
ficarmos eretos. Partilhamos com outros animais a capacidade de sentir dor e afeto, as
diferentes formas e graus da inteligência e da memória, o impulso sexual e reprodutivo.

Entretanto, alguns traços muito importantes nos diferenciam dos outros animais: a ado-
ção da postura ereta e a liberação das mãos, o maior desenvolvimento do cérebro, que
nos possibilita (como um sofisticado hardware biológico) uma complexa vida psíquica,
um grau extraordinário de inteligência e a elaboração da linguagem.

Estudo do Ser Humano Contemporâneo 41


Expressões e Processos do Conhecimento e o Humano como ser
Multifacetário e Relacional

Uma característica merece menção especial: somos animais que, ao nas-


2 cer, não são especializados. Compare o bebê humano com os filhotes dos
outros animais. Grande parte dos animais, quando nasce, já tem grau ele-
vado de amadurecimento e de especialização de suas funções orgânicas.
Estão prontos para viver como indivíduos de sua espécie.

Observe, como exemplo:

 um bezerro é capaz de andar poucas horas depois de parido;

 um filhote de girafa reconhece sua mãe, entre as demais, pelas


manchas de sua pelagem;

 um filhote de tartaruga marinha sai do ovo e corre imediatamente


para o mar, sendo também capaz de gravar a localização da praia
onde nasceu e para onde voltará para se reproduzir.

Essas características os tornam menos dependentes das mães (às vezes inteiramen-
te independentes), facilitando a sobrevivência em seu habitat natural e permitindo se
desenvolver rapidamente, alcançando em pouco tempo a plenitude física e a capaci-
dade reprodutiva.

Ao nascer, o ser humano é um animal não especializado. Suas funções


orgânicas não estão prontas para assegurar a sobrevivência. Isso lhe
permitirá adquirir características exclusivamente humanas por meio do
aprendizado e da cultura.

Durante um longo período de dependência da mãe ou de outros adultos, irá se desenvol-


vendo aos poucos e adquirindo características que não são somente naturais, mas tam-
bém culturais. Isto é, durante o desenvolvimento da criança, ela passará pelo processo
de humanização, pelo qual adquirirá características e comportamentos humanos.

Humanização é o processo pelo qual uma criança adquire comportamentos hu-


manos, características físicas, linguagem e conteúdos culturais, por meio da con-
vivência e interação com outros seres humanos.

Esse processo é natural, sociocultural e psíquico, ao mesmo tempo. Se um bebê não


passasse por esse processo desde seu nascimento, muitas das características que
distinguem os seres humanos deixariam de ser aprendidas:

42
 andar sobre duas pernas;
2
 falar e se comunicar, relacionar-se com outros seres humanos;

 comportar-se como se comportam os adultos da sociedade em


que nasceu.

Se o bebê humano nasce quase sem funções especializadas e ne-


cessita aprendero comportamento humano com outros humanos, como
seria seu desenvolvimento se fosse privado dos estímulos recebidos
na convivência com seres humanos?

Algumas outras diferenças entre o ser humano e o animal serão a seguir destacadas.

O Ser Humano Possui Inteligência Abstrata


O comportamento dos animais situados nos níveis mais baixos da escala zoológica (in-
setos, por exemplo) é controlado por reflexos e instintos resultantes de sua constituição
biológica. Isso faz com que respondam sempre da mesma forma a diferentes situações
e suas ações não indicam qualquer finalidade consciente.

Por isso, aranhas executam suas teias sempre da mesma forma, peixes
migram para se reproduzir (a piracema) quando recebem um certo es-
tímulo químico das águas do rio e pássaros constroem seus ninhos da
maneira típica de sua espécie.

Animais situados nos níveis mais elevados da escala zoológica possuem, além dos
instintos, uma certa inteligência concreta, que lhes permite responder de forma nova
e diferente a uma situação imprevista. Chamamos de concreta porque sua inteligência
está limitada ao aqui e agora, isto é, a resposta do animal depende dos elementos pre-
sentes e não faz uso de elementos anteriores nem de possibilidades futuras.

Chimpanzés, golfinhos e elefantes estão entre os animais mais in-


teligentes. Mas, entre os animais domésticos, cães, gatos e porcos
manifestam considerável inteligência concreta.

A inteligência humana é diferente. Além das características de flexibilidade e adaptação


a situações novas, que observamos na inteligência concreta, temos a possibilidade de
antecipar o ato, examiná-lo enquanto possibilidade futura e, valendo-nos das experiên-

Estudo do Ser Humano Contemporâneo 43


Expressões e Processos do Conhecimento e o Humano como ser
Multifacetário e Relacional

cias pessoalmente aprendidas ou transmitidas por outros, escolher os meios necessá-


rios e ajustá-lo à finalidade desejada.
2

A inteligência humana é, portanto, abstrata. Não se limita aos elemen-


tos presentes aqui e agora, mas incorpora elementos passados, dis-
tantes no espaço e mesmo possibilidades futuras.

Devido à inteligência, o comportamento humano é marcado pelo ato voluntário, isto é,


o ato humano que é dirigido por uma finalidade consciente, livremente escolhida, que
utiliza meios racionalmente coordenados para atingi-la.

Ato voluntário: o ato humano é dirigido por uma finalidade consciente e livre-
mente escolhida. A inteligência permite ao ser humano escolher e coordenar os
meios que permitirão atingir essa finalidade.

O Ser Humano se Comunica Por Meio de Linguagem Simbólica


Outra importante distinção entre o humano e o animal está na linguagem. Os animais
são capazes de comunicação – abelhas indicam às outras por meio de movimentos do
voo a localização das flores, cavalos são capazes de emitir cerca de 40 tipos distintos
de sons. Contudo, a comunicação dos animais é limitada, pois utiliza tão somente sinais
indicativos que se referem de modo fixo a um objeto ou situação, quase sempre por
meio de um vínculo natural de causa e efeito.

Um cão comunica a outros a “posse” de um território por meio da urina


que deposita em certos locais. O cheiro da urina indica o animal domi-
nante naquele espaço.

Como sua comunicação se limita a sinais indicativos (índices), não podemos dizer que
os animais possuem linguagem propriamente dita.

Já o ser humano é capaz de elaborar linguagens.


Uma linguagem é um sistema organizado de signos, isto é, sinais que se referem
a objetos. O principal tipo de signo que compõe a linguagem humana é o símbolo.
Símbolos são sinais que se referem ao objeto significado não por meio de um vínculo
natural de causa e efeito, mas por meio de uma relação arbitrária e convencional, isto
é, criada pelos homens.

44
2

Assim, a bandeira nacional é o Enquanto som, a palavra casa é o


símbolo convencionado pelos símbolo linguístico que utilizamos
cidadãos para significar o país, o para indicar moradia, e, enquanto
povo e o Estado nele instituído. escrita, casa é o símbolo conven-
cionado para representar grafica-
mente a palavra sonora casa.

O ser humano constantemente produz símbolos e cria linguagens para exprimir suas
experiências (isso se dá sempre no contexto das relações sociais). Devido a sua carac-
terística de representar por meio de relações arbitrárias e convencionais, a linguagem
permite ao ser humano se distanciar da experiência vivida aqui e agora e reorganizá-la
num outro nível, dando-lhe um novo sentido. Dessa forma, a linguagem dota o ser hu-
mano de um pensamento abstrato, capaz de operar no contexto de uma inteligência
abstrata. Por isso, podemos falar também que pensamento é linguagem.

O pensamento se articula sempre por meio de signos linguísticos, opera


com eles e se transmite por meio deles. Uma linguagem rica em quantida-
de de vocábulos, formas de combinação e diferentes usos é o instrumento
do pensamento para conhecer profunda e amplamente as realidades com-
plexas. Linguagem pobre limita e empobrece o pensamento.

Pensamento e linguagem se implicam mutuamente. Ludwig Wittgenstein, filósofo aus-


tríaco do século XX, gravou essa importantíssima relação numa frase famosa:

“Os limites da minha linguagem significam ‘os limites do meu mundo”


(WITTGENSTEIN, 1987, p. 114).

O Ser Humano Produz Cultura


Diferentemente do animal, que vive dentro dos limites que a natureza lhe impõe, o ser
humano é capaz de produzir meios para sua subsistência, criar vestimentas e utensílios
para a própria proteção e modificar profundamente o ambiente em que vive. Cria tam-
bém símbolos, significados, normas, instituições, costumes, valores e crenças.

Estudo do Ser Humano Contemporâneo 45


Expressões e Processos do Conhecimento e o Humano como ser
Multifacetário e Relacional

Tudo isso é cultura. Cultura é o que o ser humano cria para prover sua subsistência,
proteger sua vida e dar-lhe significado. O termo “cultura” se refere, portanto, àquilo que
2 é feito pelo ser humano, opondo-se nesse sentido ao termo “natureza”.

Natural: tudo aquilo que é criado pela natureza.

Cultural: o que é criado ou construído pelo ser humano.

O Ser Humano e o Trabalho


O ser humano produz sua sobrevivência, seu mundo e a si mesmo por meio do trabalho.

O trabalho dos animais é apenas uma metáfora. Animais provêm sua subsistência cole-
tando, caçando ou pescando os alimentos que o ambiente natural lhes oferece. Cons-
troem ninhos e abrigos com os materiais que o ambiente lhes disponibiliza. Ao fazê-lo,
agem segundo seus instintos ou segundo a inteligência concreta de que dispõem.

Já o trabalho, propriamente dito, é a ação transformadora, dirigida por finalidades


conscientes, pela qual o ser humano modifica o ambiente para obter meios de sub-
sistência e proteção.

Exemplos de trabalho:

 a agricultura, pela qual o ser humano modifica o solo e a disse-


minação das sementes para obter alimento em quantidade e em
local conveniente;

 a construção de moradias, pela qual o ser humano abandona a bus-


ca por abrigos naturais e produz abrigos destinados a satisfazer to-
das as suas necessidades, materiais e culturais.

Ao mesmo tempo em que transforma o ambiente natural, o trabalho transforma o pró-


prio ser humano, desenvolvendo suas habilidades físicas e mentais. Por isso, podemos
dizer que, pelo trabalho, o ser humano produz sua subsistência e produz a si mesmo.

Trabalho é uma ação transformadora, dirigida por finalidades conscientes,


pela qual o ser humano modifica o ambiente para obter meios de subsis-
tência e proteção. O trabalho transforma também o próprio ser humano,
desenvolvendo suas habilidades físicas e mentais.

2.2 O SER HUMANO É RELACIONAL, SOCIAL E POLÍTICO


O ser humano não vive isolado. Ele se torna humano convivendo e se relacionando
com outros seres humanos. Adquire os conteúdos de uma cultura determinada e se tor-
na capaz de produzir cultura quando vive em sociedade. Atende a suas necessidades
produzindo bens por meio do trabalho organizado em sociedade. Confere sentido à sua

46
existência por meio de significados oletivamente elaborados. Cria laços políticos como
forma de pertencimento a grupos e promoção de seus interesses.
2

O ser humano necessita da interação com outros seres humanos para


se humanizar e se desenvolver.

2.3 O SER HUMANO É HISTÓRICO


Isto quer dizer que, ao contrário de algumas crenças frequentes, o ser humano não
permanece o mesmo ao longo da história da humanidade.

Estamos mergulhados na História, mergulhados em circunstâncias sociais, econômi-


cas, políticas e culturais que se modificam constantemente e com as quais interagimos.
Respondendo a desafios sempre novos, colocados por cada época histórica, os seres
humanos se reinventam constantemente, criando novos comportamentos e mentali-
dades, novas formas de vida social, econômica e política, novas concepções morais e
religiosas e até mesmo novos conceitos para entender o ser humano.

O ser humano não permanece o mesmo ao longo de sua história. Respon-


dendo aos desafios de cada época história, ele se reinventa constantemente.

2.4 O SER HUMANO É LIVRE


Em geral se costuma dizer que a liberdade é ausência de coação. Conforme as causas,
a liberdade pode ser:

Física:
ausência de coação pela força;

Moral:

ausência de pressões de ordem moral, como prêmios, castigos e ameaças.

Política:

ausência de determinismos políticos e interesses comprometidos.

Psicológica:

ausência de impulsos de outras faculdades humanas sobre a vontade para


induzi-la a agir de uma determinada maneira ou, mais exatamente, capacidade

Estudo do Ser Humano Contemporâneo 47


Expressões e Processos do Conhecimento e o Humano como ser
Multifacetário e Relacional

que o ser humano tem de escolher entre fazer, ou não, uma determinada coisa,
2 de cumprir, ou não, uma determinada ação, quando já existem as condições
requeridas, ou ainda, de querer ou não querer agir, de escolher entre coisas
opostas, quando existem as condições para tal.

Exteriores ou interiores, todas essas facetas da liberdade se enraízam numa mesma


realidade fundante: o livre-arbítrio.

Livre-arbítrio é a capacidade de decidir e de determinarse para um certo agir ou


para sua omissão. Dizendo com outras palavras, é a capacidade de querer ou
não querer, ou ainda a capacidade de escolher.

A liberdade se apoia em duas faculdades humanas: a inteligência e a vontade. A inteli-


gência nos permite conhecer o que é o objeto a ser escolhido e a vontade nos permite
percebê-lo como um bem. Trabalhando juntas, inteligência e vontade nos permitem
escolher conscientemente e nos determinarmos a agir ou a não agir.

O principal fundamento da liberdade é o livre-arbítrio.

Um exemplo extremo e caricato pode nos ajudar a entender o livre-arbítrio.


Um prisioneiro, amarrado e amordaçado, confinado numa cela es-
cura, é livre? Certamente não tem a liberdade física de ir e vir. Sua
situação também o coloca sob coação moral e psicológica. Mas, en-
quanto tiver consciência,inteligência e vontade, o prisioneiro goza de
livre-arbítrio, ou seja, tem escolhas a fazer. Certamente desejaria poder
escolher ser libertado imediatamente. Mas não tem essa alternativa.
Que tipo de escolhas poderia fazer?

Poderia escolher entre se resignar à sua condição ou se rebelar; poderia


escolher entre colaborar com seus algozes ou tentar escapar; poderia
escolher entre agir para conservar a própria vida ou para dar cabo dela.

Semelhante a nosso prisioneiro fictício, quase nunca temos, para escolher, as alterna-
tivas que desejaríamos. Mesmo assim, temos escolhas e podemos fazê-las com base
em nosso livre-arbítrio.

48
Não existe liberdade total. A liberdade humana é sempre limitada. Po-
demos ampliá-la por meio do conhecimento e do discernimento, ou por 2
meio de instrumentos que criamos para possibilitar certas ações que a
condição humana nos impede (um balão para voar, por exemplo). Po-
demos restringi-la por meio da ignorância, das coações descritas, dos
fortes sentimentos, ou de um sistema político opressor. Mas a liberdade
é uma faculdade humana tão fundamental quanto viver, pensar e tra-
balhar. Está sujeita às mesmas limitações do viver, pensar e trabalhar,
causadas pela nossa finitude.

A liberdade humana é sempre limitada. Não existe liberdade total.

2.5 O SER HUMANO NÃO APENAS VIVE, MAS EXISTE


Todas as coisas são, isto é, têm ser. O modo de ser de um utensílio, como uma faca
ou uma caneta, nos é bem conhecido: possui 2 dimensões físicas limitadas, duração
restrita e é compreendido pelo modo como o utilizamos. Vegetais e animais têm um
modo de ser mais complexo: surgem do impulso de preservação e expansão da vida,
crescem, amadurecem, reproduzem-se e perecem como parte da dinâmica da vida. Até
onde podemos compreendê-los, sua razão de ser é o próprio viver.

O ser humano, que é também ser vivo e obedece à dinâmica da vida, tem um modo de
ser bem mais complexo e sem dúvida especial. Somos postos no mundo à revelia de
nossa vontade. No mundo, não escolhemos nossa condição: vivemos por meio do cor-
po que possuímos, educamo-nos num determinado ambiente familiar e cultural e, em
sociedade, convivemos com as limitações e possibilidades de um certo contexto históri-
co, político e econômico. Mergulhados no mundo, vivemos não apenas biologicamente,
mas tomamos consciência de nossa condição e, diante dela, somos levados a realizar
escolhas e a nos responsabilizar por elas. Convivemos com a incerteza e o risco que
cada escolha pode nos trazer.

Em nossa liberdade de escolha reside o aspecto mais elevado da condição


humana: a possibilidade. Nosso modo de ser é aberto e dinâmico, abrange
o que presentemente somos e também as possibilidades que temos. Pode-
mos projetar o que queremos ser, o tipo de vida que queremos levar, o que
pretendemos fazer dos dias de nossa vida, o sentido que queremos dar à
nossa presença no mundo.

Somos finitos e limitados, com certeza, e não dispomos de todas as alternativas de


escolha que desejaríamos possuir. Porém, reconhecer e aceitar nossa finitude e as
limitações colocadas pelas circunstâncias externas nos permite traçar com realismo os
nossos projetos e utilizar toda nossa capacidade de trabalho, de pensamento e criativi-
dade para concretizar nossos projetos.

Estudo do Ser Humano Contemporâneo 49


Expressões e Processos do Conhecimento e o Humano como ser
Multifacetário e Relacional

Por isso, dizemos que o ser humano não apenas vive, mas existe. Não está no mundo
como os demais seres, mas projeta e modifica seu ser e o modo como está no mundo.
2 Vive, mas também “pilota” sua existência.

2.6 O SER HUMANO PODE SE ALIENAR


Nem tudo é sucesso na aventura da existência. O ser humano pode se tornar alienado.
Alienação é um fenômeno social e político observado com frequência nas sociedades
industriais e pós-industriais.

Alienar-se é se deixar controlar por uma pessoa, entidade ou organização, sub-


metendo-se a seu domínio e renunciando consciente ou inconscientemente à li-
berdade de escolher os rumos da própria vida.

A alienação do trabalhador durante a Revolução Industrial foi profundamente analisada


por Karl Marx. Além dessa, conhecemos atualmente formas mais amplas de alienação,
atingindo o consumo, o lazer, a religião e a política.

2.7 O SER HUMANO É PESSOA


Ser pessoa é muito mais que ser indivíduo. Somos individuais porque nossa vida física
é distinta e autônoma em relação aos demais seres humanos. Mas muitos outros ani-
mais também o são, sem serem pessoas.
Uma pessoa é um indivíduo consciente, racional e livre, que se sustenta e se conduz
pela inteligência e pela vontade. O indivíduo humano é pessoa porque é também uma
unidade indissociável de matéria e espírito, uma totalidade em si, uma espécie de mi-
crocosmo independente, capaz de conhecer a si mesmo e a realidade que o cerca,
capaz de dar um sentido à própria vida e à própria identidade, capaz de dispor de si e
se doar por meio do amor.

Por tudo isso, a pessoa humana é um fim em si mesma e nunca pode ser reduzida
a mero instrumento. Possui uma dignidade inerente a seu ser, irrenunciável, que lhe
confere um valor inestimável e idêntico para todos os seres humanos, independente-
mente de idade, etnia, cultura, crença ou condição socioeconômica. A pessoa humana
é, portanto, a razão de ser todas as instituições sociais, políticas e econômicas (ÁVILA,
1982, p. 452).

2.8 O SER HUMANO É CAPAZ DE TRANSCENDER E DE BUSCAR O


TRANSCENDENTE
Transcender é ultrapassar, superar. Como vimos, o ser humano é capaz de transcender
suas limitações e as circunstâncias que o determinam, por meio do pensamento, da
reflexão, da vontade livre e do trabalho. O gesto de transcender não elimina, entretanto,
a percepção da finitude e da fragilidade humanas. Nem elimina as perguntas fundamen-
tais, que afetam o sentido de nossas vidas:

50
Por que a doença, o sofrimento, o mal e a morte? Por que estamos aqui? Há
algo além desta vida? Há um sentido para a vida humana? 2

Em busca do sentido da própria existência, o humano sente necessidade do além-hu-


mano, do além-limites, do transcendente. Busca-o, quer conhecê-lo e experimentá-lo.
Sente que somente o transcendente, percebido como bem e como infinito, poderá
satisfazer a inquietude humana e trazer sentido, esperança e força para os momentos
em que o ser humano enfrenta a falta de sentido, o vazio e o desespero. O encontro
com o transcendente também traz luz, isto é, uma nova perspectiva de compreensão da
realidade, da vida humana e da história.

O ser humano se abre ao transcendente, dando-lhe os nomes de divino, sagrado,


Deus, absoluto. Dessa abertura ao transcendente nascem a experiência religiosa
e a espiritualidade, que encontramos em todos os povos da história.

2.9 DESAFIOS PARA O INDIVÍDUO: CONHECER A SI MESMO E CRIAR


SEU PROJETO DE VIDA
Compreender o ser humano e reconhecer suas dimensões biológica, cultural, social,
política, econômica, histórica, existencial e espiritual – tudo isso é necessário para com-
preendermos a nós mesmos, enquanto indivíduos. Mas, como vimos, não nos basta
compreender nossa condição. Queremos projetar nosso ser no mundo e dirigir, quando
possível, nossa existência.

Por isso, enquanto indivíduos, cada um de nós tem duas tarefas intransferíveis: conhe-
cer a si mesmo e elaborar seu projeto de vida.

Ninguém é óbvio para si mesmo. Conhecer a si mesmo começa pela observação de


cada um dos traços da própria personalidade, inclusive aqueles difíceis de admitir; inclui
reconhecer honestamente nossos sentimentos de afeto e desafeto, amor e ódio, medo
e coragem, desejos e repulsas, impulsos e aspirações. Passa por captar os anseios
mais recônditos da alma e a sede pelo transcendente, requer avaliar atitudes, valores
e princípios éticos, bem como tentar entender como os outros me percebem. Tudo isso
sou eu. Não devo ignorar essa realidade, mas aceitá-la. Aos poucos, irei reconhecendo
o que posso modificar e em que direção fazê-lo.

Conhecer a si mesmo é tarefa para todas as etapas da vida. Requer disci-


plina e coragem. Os resultados são sempre positivos: o autoconhecimento
amplia a liberdade, seja porque permite ao indivíduo avaliar mais objetiva-
mente suas capacidades e limitações, seja porque permite entrar em harmo-
nia consigo mesmo, reduzindo os conflitos interiores e permitindo identificar
seus valores e anseios fundamentais.

Estudo do Ser Humano Contemporâneo 51


Expressões e Processos do Conhecimento e o Humano como ser
Multifacetário e Relacional

Por essas razões, o autoconhecimento é um requisito indispensável do projeto de vida.

2
Autoconhecimento: conhecimento profundo e progressivo de si mesmo.
Permite conhecer melhor suas capacidades e limitações e identificar
seus valores e anseios fundamentais.

Um projeto de vida é um plano de desenvolvimento pessoal, uma rota que você escolhe
para alcançar os objetivos mais importantes, isto é, aqueles que vão dar sentido à sua
vida, porque respondem aos anseios mais profundos de seu ser. Elaborar seu projeto
de vida supõe, além de estratégias e metas racionalmente elaboradas, responder, do
fundo do coração, a perguntas vitais e muito pessoais, como:

 Que tipo de pessoa eu quero ser?

 Que propósito e que uso quero dar aos 25 mil dias que tenho
pela frente?

 Que tipo de vida vai me fazer sentir feliz e realizado?

 O que estou disposto a fazer para alcançar os objetivos que


me realizam?

 Qual é, para mim, a importância do amor, do sexo, da família,


da fé religiosa, do dinheiro, do reconhecimento e da fama?

Não confunda projeto de vida com projeto de carreira. Um plano para o desenvolvimen-
to da formação e da carreira profissional, fixando estratégias, metas e prazos é muito
importante para você se tornar um profissional bem-sucedido. No entanto, a carreira
profissional é apenas parte de sua vida e não toda a vida.

Projeto de vida: um plano para alcançar os objetivos que dão sentido à


sua vida. Requer autoconhecimento.

Um projeto de vida nunca é definitivo, pois a vida muda incessantemente e mudamos


com ela. Escolher seus objetivos de vida e planejar a rota a percorrer para alcançá-los
é um passo indispensável para chegar lá.

CONCLUSÃO
Nesta unidade vimos as principais modalidades de conhecimento atuantes em nossa
sociedade e as múltiplas dimensões do ser humano. Em nossa vida cotidiana, na inte-
ração social, no trabalho e mesmo nos estudos, recebemos uma enorme quantidade
de informações, estruturadas sob diferentes formas de conhecimento, sem indicação

52
de sua origem nem dos interesses de quem a veicula. É um desafio constante buscar
distinguir informações verdadeiras e falsas, relevantes e irrelevantes, descritivas ou
ideológicas, objetivas e subjetivas. Por isso, a crítica do conhecimento é uma tarefa 2
permanente, que deve se tornar, para nós, um verdadeiro hábito.

Reconhecer as diferentes formas do conhecimento com as quais convivemos – senso co-


mum, mito, ciência, tecnologia, filosofia, ideologia e outras – e entender suas respectivas
dinâmicas, constitui uma importante ferramenta de análise. A busca por informações com-
plementares e de aprofundamento dos conhecimentos permitem avançar na tarefa crítica.

A recompensa? Uma compreensão mais adequada da realidade em que vivemos.


Quem conhece mais escolhe melhor e mais livremente. Ao término desta reflexão, vale
destacar algumas ideias principais. Embora seja parte da Terra e uma entre as muitas
formas de vida, o ser humano é especial entre todos os seres vivos e não vivos. Espe-
cial pela sua complexidade biológica, psíquica, sociocultural e espiritual; especial pelas
características que o distinguem dos demais animais; único pela sua capacidade trans-
formadora, pela sua liberdade e historicidade; distinto dos demais seres pela possibili-
dade de transcendência. Mas sobretudo, o que faz o ser humano espetacular é o fato
de ser pessoa, microcosmo, capaz de projetar sua existência e dar sentido à sua vida.
Não é um todo acabado e é capaz de criar coisas novas e de reinventar a si mesmo.

Todas essas dimensões estão essencialmente integradas no ser humano, que não é
uma simples soma de partes. Do ser humano, em cada época, conhecemos apenas
parte do que ele pode realizar, ser, fazer e sofrer. Conhecemos apenas parte do que
significa ser um ser humano. Por isso, nunca é demais lembrar: o ser humano ainda é
um mistério para si mesmo.

REFERÊNCIAS
1. ARANHA, Maria Lúcia Arruda; MARTINS, Maria 9. SAVIANI, Dermeval. Educação: do senso comum à
Helena Pires. Filosofando: introdução à filosofia. consciência filosófica. São Paulo: Cortez, 1983.
2. 2. ed. São Paulo: Moderna, 1993. 10.SCHAFF, Adam. A definição funcional de ideologia
3. ÁVILA, Fernando Bastos de. Pequena enciclopé- e o problema do “fim do século da ideologia”.
dia de moral e civismo. 3. ed. Rio de Janeiro: 11. L’Homme et la societé: Revista Internacional de
4. FENAME, 1982. Pesquisas e Sínteses Sociológicas, Série Documen-
tos,
5. BÍBLIA. Português. A Bíblia de Jerusalém. São
Paulo: Paulinas, 1981. 12.São Paulo, n. 2, Ed. Documentos, 1968.
6. BOFF, Leonardo. Ecoespiritualidade: que significa 13.WITTGENSTEIN, Ludwig. Tratado logico-filosófico:
ser e sentir-se terra? Disponível em: <http://www. Investigações filosóficas. Lisboa: Calouste
7. leonardoboff.com/site/vista/outros/eco-espirituali- 14.Gulbenkian, 1987
dade.htm>. Acesso em: 29 jun. 2013.
8. CHAUÍ, Marilena. O que é ideologia. 2. ed. São
Paulo: Brasiliense, 2008. p. 113.

Estudo do Ser Humano Contemporâneo 53


Ecologia e Pensamento Ecológico: Questões Ecológicas e Educação
Ambiental
UNIDADE 3

ECOLOGIA E PENSAMENTO ECOLÓGICO:


3 QUESTÕES ECOLÓGICAS E
EDUCAÇÃO AMBIENTAL

INTRODUÇÃO
No início do século XX pouco se conhecia sobre a ecologia e as questões ambientais;
na época, um cidadão brasileiro poderia passar a vida toda sem se preocupar com o
meio ambiente. Atualmente, você já deve ter percebido que o ambiente é um assunto
incontornável. Assim como você, todos somos convocados a repensar nossas práticas
cotidianas, nossas formas de produzir e consumir, visando formas mais ecológicas de
viver e se desenvolver.

Há uma ameaça significativa na degradação ambiental devido ao avanço da tecnologia


e de outras atividades humanas. Esta destruição é evitável por meio de metas ambien-
talmente amigáveis, como a manutenção de excelente qualidade da água, ar saudável
e preservação da biodiversidade. Cada indivíduo tem um papel na realização desses
objetivos e, portanto, a proteção do meio ambiente.

O objetivo com este estudo é que você desenvolva maior consciência sobre o ambiente
e seus vários problemas. Apresentaremos conhecimentos básicos sobre o meio am-
biente – tais como o desenvolvimento sustentável, a educação ambiental e os riscos
produzidos – buscando desenvolver sua capacidade de perceber os problemas ambien-
tais como processos complexos que envolvem de forma interdependentes elementos
sociais, políticos, econômicos e ecológicos. Você perceberá que as questões ambien-
tais são muito interessantes, profissionais do mundo todo trabalham intensamente sobre
elas desenvolvendo ideias e soluções. Este tópico é apenas um princípio ou incentivo
para você estudar e conhecer, ele não aborda todos os temas e problemas ambientais.

Esperamos que você desenvolva maior sentimento de responsabilidade em relação à


sociedade e ao meio ambiente e que siga em sua educação ambiental indo além deste
breve estudo.

1. RECONHECENDO OS DESAFIOS AMBIENTAIS


Há milhares de anos, desde o início da agricultura, os seres humanos têm cortado ár-
vores, limpado a terra e mantido distante da lavoura as plantas consideradas daninhas.
Em comparação com as sociedades caçadoras e coletoras, as sociedades agrícolas
dispõem de mais alimentos, porém há maior exigência de transformação do mundo
natural. Para plantar, a comunidade agrícola precisa cortar as florestas naturais e abrir
clareiras, e, quando um lote é cultivado até a exaustão, novos lotes de terra são limpos.
O solo exposto ao vento e à chuva forte pode sofrer erosão e se degradar rapidamente,
inviabilizando a agricultura e a resiliência florestal.

54
Resiliência é a capacidade de um sistema recuperar seu equilíbrio após este ter
sido rompido por um distúrbio, a resiliência também descreve a velocidade com
que uma comunidade retorna ao seu estado anterior após ter sido perturbada e 3
deslocada de tal estado (TOWNSEND et al., 2011, p. 357).

Até mesmo sociedades agricultoras no passado distante desmataram e plantaram em


seus solos até sofrerem erosão. O problema é que nós, modernos, temos degradado
os solos rapidamente e em largas extensões.

A Ilha de Páscoa, denominada pelos na-

Fonte: 123RF.
tivos como Rapa Nui, é um conhecido
exemplo de degradação da terra causa-
da por seu uso desequilibrado em um
ecossistema sensível. A Ilha de Páscoa,
tornada um local praticamente sem ár-
vores, sofreu sérios prejuízos ambien-
tais, principalmente perda do solo por
erosão, o que ocasionou a decadência
Estátua Moai na Ilha de Páscoa, Chile. da população local.

Ecossistemas complexos e cadeias alimentares no ambiente proporcionam serviços ili-


mitados para o sustento da vida. Na ausência de danos, o ambiente é resiliente e muito
eficiente na autoestabilidade por meio da interação complexa de espécies vivas. Os se-
res humanos se beneficiam fazendo parte desse ecossistema. Qualquer alteração pre-
judicial aos componentes do ambiente traz impactos adversos para todas as espécies.

A destruição de árvores no planeta levaria à acumulação de gases


tóxicos e à escassez de oxigênio no ar. Como resultado, a proteção
contra os raios nocivos do sol deixaria de funcionar, causando tempe-
raturas descontroladas e efeitos adversos para a saúde humana.

Se durante milhares de anos a vida humana esteve muito submetida à natureza, com o
desenvolvimento das sociedades modernas industrializadas a transformação humana
sobre o ambiente se tornou intensa, ao mesmo tempo em que se instaurou uma busca
incessante por compreender a natureza para controlar e prever os processos naturais.

O que é característico das sociedades modernas é que as ameaças ecológicas


não são mais oriundas das contingências do ambiente natural, mas resultantes do
conhecimento reflexivo socialmente organizado, isto é, das ameaças decorrentes
do impacto da industrialização sobre o meio ambiente (BECK et al., 2012).

Estudo do Ser Humano Contemporâneo 55


Ecologia e Pensamento Ecológico: Questões Ecológicas e Educação
Ambiental

O próprio funcionamento das sociedades modernas impôs a apropriação e a transfor-


mação da natureza, de forma incontida e ilimitada. Sem dúvida, a industrialização traz
benefícios como a maior produção de alimentos e bens de conforto, mas também pro-
3 porciona desastres industriais frequentes.

No Brasil, o mais recente desastre industrial ocorreu em 2015, no mu-


nicípio de Mariana (MG), quando se rompeu a barragem de Fundão,
da mineradora Samarco, controlada pelas empresas Vale S/A e BHP
Billiton. O rompimento da barragem causou uma grande enxurrada de
lama e rejeitos industriais que matou 19 pessoas e devastou o distrito
de Bento Rodrigues. Além das perdas humanas e materiais, a lama
provocou graves impactos ambientais.

Estar atento à ecologia ambiental se tornou fundamental. Todos nós precisamos enfren-
tar as questões ambientais reconhecendo nossas responsabilidades, isso quer dizer
que precisamos não apenas controlar os danos ambientais, mas também repensar o
modo de vida das sociedades modernas industrializadas.

A preocupação com o impacto nocivo dos humanos sobre o mundo natural levou à
formação de movimentos sociais e políticos “verdes”, como o Greenpeace e o Parti-
do Verde. Embora existam visões de mundo e estratégias muito diferentes entre os
ambientalistas, é comum a preocupação e a ação em favor de preservar as espécies
remanescentes e conservar os recursos do planeta no lugar de exauri-los. Porém, es-
tes esforços não têm sido suficientes para evitar a poluição ambiental e um possível
aquecimento global excessivo. Reconhecendo o problema, cientistas e líderes, como o
Papa Francisco, afirmam que precisamos proteger nosso planeta unindo esforços para
enfrentar simultaneamente os problemas ambientais e sociais. Neste sentido, o Papa
Francisco, faz um apelo fundamental:

Precisamos de um debate que nos


Fonte: 123RF.

una a todos, porque o desafio am-


biental que vivemos, e as suas raízes
humanas dizem respeito e têm im-
pacto sobre todos nós. O movimento
ecológico mundial já percorreu um
longo e rico caminho, tendo gerado
numerosas agregações de cidadãos
que ajudaram na consciencialização.
Infelizmente, muitos esforços na bus-
ca de soluções concretas para a crise
ambiental acabam, com frequência,
frustrados não só pela recusa dos poderosos, mas também pelo desinteresse
dos outros. As atitudes que dificultam os caminhos de solução, mesmo entre os
crentes, vão da negação do problema à indiferença, à resignação acomodada

56
ou à confiança cega nas soluções técnicas. Precisamos de nova solidariedade
universal (FRANCISCO, 2015, p. 13).
3

Hoje a ecologia ambiental é tema fundamental nos debates políticos, planejamentos


econômicos e na reflexão religiosa; não há como esquivar das questões ambientais e
do reconhecimento de que todos são responsáveis pela preservação ambiental: gover-
nos, organizações e cada cidadão.

2. EDUCAÇÃO AMBIENTAL
O meio ambiente está sendo degradado em um ritmo muito mais rápido do que imagi-
návamos. A maior parte dessa “bagunça” é causada por atividades humanas. Os danos
são tanto a nível global como regional. Portanto, qualquer erro ou dano que tenha sido
causado por nós deve ser corrigido por nós.

Nesse sentido, para proteger e gerir o meio ambiente, é fundamental que tenhamos
uma boa Educação Ambiental (EA). É uma maneira de ensinar as pessoas e as socie-
dades sobre como usar os recursos presentes e futuros de forma melhor. Mediante a
educação ambiental, as pessoas podem adquirir conhecimento para lidar com as ques-
tões fundamentais que levam à poluição e ao esgotamento dos recursos.

Faz parte da EA a compreensão de como o ambiente natural funciona e como os seres


humanos devem se comportar para gerenciar os ecossistemas de forma sustentável.
Ela transmite as habilidades e conhecimentos necessários para enfrentar os desafios
associados à questão ambiental.

O foco principal da Educação Ambiental é dar conhecimento, criar consciência,


inculcar uma atitude de preocupação e fornecer a habilidade necessária para
interagir melhor com o meio ambiente e enfrentar os desafios ambientais.

A EA ganhou importância a nível global após a Conferência de Estocolmo sobre Ambiente


Humano, organizada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e
a Cultura (Unesco) em 1972. Logo após esta Conferência, a Unesco lançou o Programa
Internacional de Educação Ambiental (BRASIL, 2014). Cada país está direcionando es-
forços para integrar as preocupações ambientais com a educação. Porém, a EA não deve
apenas fazer parte do sistema educativo, mas também do sistema político onde as ações
políticas e planos podem ser formulados e executados a nível nacional.

No Brasil, a educação ambiental emerge em meados da década de 1980, com a amplia-


ção de forças sociais envolvidas com a temática ambiental. Sua importância se explicita
na obrigatoriedade constitucional, em 1988, no primeiro Programa Nacional de Educa-
ção Ambiental, nos Parâmetros Curriculares Nacionais, lançados oficialmente em 1997
(BRASIL, 2014), e na Lei Federal n. 9.795, que define a Política Nacional de Educação
Ambiental (BRASIL, 1999).

Estudo do Ser Humano Contemporâneo 57


Ecologia e Pensamento Ecológico: Questões Ecológicas e Educação
Ambiental

A Educação Ambiental deve ser capaz de avaliar a situação ambiental


e as condições que levam ao dano do meio ambiente, ela deve direcio-
3 nar a rotina e apontar como as mudanças simples em uma vida diária
podem fazer enorme diferença para o ambiente.

Proteger o meio ambiente é responsabilidade de todos e, portanto, a educação am-


biental não pode ser confinada a um grupo ou sociedade. Cada indivíduo deve estar
preparado para salvar o meio ambiente.

Deve ser um processo contínuo e permanente. Acima de tudo, a educação ambiental


deve ser prática para que os ensinamentos possam ser implementados diretamente.
Conservar a natureza e o ambiente será muito mais fácil se as crianças forem ensina-
das sobre o esgotamento dos recursos, a poluição ambiental, o deslizamento da terra e
a degradação e extinção de plantas e animais.

3. O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
Em meados da década de 1970, um relatório científico encomendado pelo Clube de
Roma, intitulado Os Limites do Crescimento (MEADOWS, 1972), despertou o interes-
se público em relação aos problemas ambientais.

Grupo que se formou na capital italiana e reunia industrialistas, consultores em-


presariais e servidores públicos.

Os pesquisadores reunidos para este estudo apontaram que se os índices de cresci-


mento econômico e populacional continuassem a crescer como no período entre 1900
e 1970, em 2100 teríamos certamente uma crise ambiental muito grave.
A conclusão do relatório encomendado pelo Clube de Roma, é que os índices de cres-
cimento industrial não são compatíveis com a natureza finita dos recursos da Terra e
que o planeta não é capaz de suportar o crescimento populacional e se recuperar da
poluição ambiental. A ideia que se lançou para o mundo na década de 1970 é de que os
níveis de crescimento na população, industrialização, poluição, produção de alimentos
e esgotamento dos recursos é insustentável.

Embora amplamente criticados, os resultados do relatório do Clube de Roma foram utilizados


por muitos grupos para impulsionar a ideia de que o desenvolvimento econômico deveria ser
não apenas limitado, mas drasticamente reduzido a fim de conservar o meio ambiente.

A ideia de reduzir severamente o crescimento econômico foi logo criticada por aqueles
que a julgavam desnecessária; estes críticos afirmavam que o desenvolvimento eco-
nômico poderia e deveria ser incentivado, pois este seria o único meio de ampliar a
riqueza mundial. E, se o desenvolvimento econômico fosse reduzido, os países menos
desenvolvidos nunca poderiam se industrializar como os países mais ricos.

58
É preciso lembrar que as questões ambientais ocorrem em um mundo fortemente desi-
gual e com interesses conflituosos. Os diferentes graus de desenvolvimento econômico
possibilitavam a suposição de que o crescimento econômico é possível a todos os paí-
ses, bastaria trilhar o caminho certo. 3

O BRASIL SEM RESTRIÇÕES À POLUIÇÃO

Na Conferência das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento e Meio Ambiente


Humano, organizada em 1972 na capital da Suécia, Estocolmo, o governo brasi-
leiro liderou um bloco de 77 países em desenvolvimento resistentes ao reconhe-
cimento da importância da problemática ambiental e que se negavam a reconhe-
cer o problema da explosão demográfica. Foi na Conferência de Estocolmo que
o governo brasileiro estendeu uma faixa com o seguinte dizer:

Bem-vindos à poluição, estamos abertos a ela. O Brasil é um país que não tem
restrições, temos várias cidades que receberiam de braços abertos a sua polui-
ção, porque nós queremos empregos, dólares para o nosso desenvolvimento.

A faixa ficou famosa e resumia a posição do Brasil (sob ditadura militar) de que
o principal problema era a miséria e que era preciso desenvolver a economia
primeiro e pagar os custos da poluição ambiental mais tarde. Acreditava-se que o
desenvolvimento econômico dos países mais pobres não poderia ser sacrificado
por considerações ambientais.

FONTE: Dias (1991)

Em meio ao acirrado debate sobre o meio ambiente, criou-se o conceito de “desenvol-


vimento sustentável” como uma forma de aliar ideias até então opostas:

Conservação ambiental e desenvolvimento econômico.

O termo foi utilizado pela primeira vez no relatório Nosso Futuro Comum (World Com-
mission on Environment and Development, 1987), também conhecido como Relatório
Brundtland, de 1987, encomendado pelas Nações Unidas. Neste relatório, o desenvol-
vimento sustentável foi definido como o uso dos recursos renováveis para promover o
crescimento econômico, a proteção da biodiversidade e o compromisso com a manu-
tenção da pureza do ar, da água e da terra. O desenvolvimento sustentável é, então,
aquele que atende às necessidades de hoje, sem comprometer a capacidade de
as próximas gerações atenderem às suas próprias necessidades.

Com a difusão da noção de desenvolvimento sustentável, o chamado tripé da sustenta-


bilidade se tornou amplamente conhecido no mundo empresarial e no mundo acadêmi-
co como uma ferramenta útil para constituir uma visão de mundo (e da economia) mais
ampla, que vai além do foco no desempenho financeiro e no lucro pelo lucro (ainda
predominantes nas sociedades modernas). A noção de desenvolvimento sustentável

Estudo do Ser Humano Contemporâneo 59


Ecologia e Pensamento Ecológico: Questões Ecológicas e Educação
Ambiental

convoca governos, empresas e cidadãos a rever suas ações considerando no mínimo


as três dimensões a seguir.

3 1. Sustentabilidade Social

Compreende o respeito à diversidade, empoderamento de grupos excluídos


socialmente, incentivo à resolução pacífica de conflitos e convivência saudável.

2. Sustentabilidade Econômica

Diz respeito à inserção dos limites ecológicos na produção de bens e serviços,


visando a sustentabilidade econômica, a justiça no acesso ao sustento familiar
e pessoal e economia solidária e responsável.

3. Sustentabilidade Ecológica

Analisa a relação do homem com a natureza, buscando formas de reduzir ou aca-


bar com o impacto das ações humanas sobre a natureza e vice-versa e de repen-
sar as estruturas e iniciativas que reforçam e representam a mútua dependência.

FONTE: Pereira (2008)

Após a publicação do relatório Nosso Futuro Comum, a expressão desenvolvimento


sustentável passou a ser amplamente utilizada tanto pelos ambientalistas quanto pelos
governos. Apesar de muito utilizada, a noção de desenvolvimento sustentável (e o Re-
latório Brundtland) não permaneceu sem críticas. Os críticos, tais como Sachs (2000),
consideram a noção de desenvolvimento sustentável muito vaga, dando margem para
muitas distorções, e omissa em relação às necessidades específicas dos países mais
pobres. Para eles, a ideia de desenvolvimento sustentável concentra atenção sobre as
necessidades dos países mais ricos e ignora o fato de que os altos níveis de consumo
nestes países se dão à custa de outros povos.

Além disso, o termo sustentabilidade é ambíguo, ele integra ao menos dois significados:

um que implica a internalização das condi-


ções ecológicas pelo processo econômico;

outro que aponta a durabilidade do pró-


prio processo econômico.

60
O sociólogo ambientalista Enrique Leff (2006) aponta que tem ocorrido uma adoção
oportunista, por parte dos estados e das empresas, de novos valores trazidos pelo
ambientalismo. Para esse tipo de soluções falsamente sustentáveis, bastaria agregar
como valor a esses “produtos” o que, até então, era ignorado ou não contabilizado como 3
custos de produção, ou seja, a noção de desenvolvimento sustentável algumas vezes
tem sido utilizada para dar aparência ecológica a produtos e sistemas de produção que
são poluidores ou geradores de resíduos.

Consideradas as críticas à noção de sustentabilidade, cabe considerarmos que uma


empresa ou governo está agindo com responsabilidade socioambiental quando de fato
incorpora os princípios e práticas relacionados às três dimensões de sustentabilidade.
Para saber se o modelo de negócio de uma organização não é sustentável, basta notar
se ele contribui direta ou indiretamente para:

 o aumento sistemático nas concentrações de desperdícios de


recursos naturais;

 o aumento sistemático nas concentrações de substâncias peri-


gosas produzidas pela sociedade;

 a exploração sistemática e indiscriminada dos recursos naturais;

 o abuso de poder político e/ou econômico na sociedade, prejudi-


cando a qualidade de vida dos seres humanos (PEREIRA, 2008).

4. CONSUMO, POBREZA E MEIO AMBIENTE


Grande parte do debate sobre o meio ambiente e o desenvolvimento econômico está
diretamente relacionado com o padrão de consumo. Ele possui dimensões positivas e
negativas, detalhadas na TABELA 01:
Tabela 01. Aspectos positivos e negativos do aumento do consumo

POSITIVO NEGATIVO

Um consumo maior, proporcionado pelo desen- Os padrões de consumo podem causar


volvimento econômico, significa que as pes- impactos negativos aos recursos naturais e
soas vivem em melhores condições do que no aumentar a desigualdade. Como por exem-
passado. Ele significa o aumento do padrão de plo, a maior extração de minérios e queima
vida, ou seja, maior acesso à comida, roupas, de combustíveis fósseis.
itens pessoais, tempo de lazer, carros etc.

FONTE: O autor (2017)

Ao longo do século XX, o aumento do consumo mundial se tornou alarmante. Se no início


do século XX os níveis de consumo mundial estavam próximos de 1,5 trilhão de dólares,
no ano de 1998, os gastos com o consumo público e privado chegaram a 24 trilhões de

Estudo do Ser Humano Contemporâneo 61


Ecologia e Pensamento Ecológico: Questões Ecológicas e Educação
Ambiental

dólares. Nos países industrializados, o consumo tem aumentado aproximadamente 2,3%


ao ano, já nos países africanos, o consumo é 20% menor do que há 25 anos.

3 As desigualdades de consumo entre ricos e pobres são alarmantes. Apesar de os mais


ricos serem os maiores consumidores mundiais e responsáveis pelos maiores impactos
sobre o meio ambiente, os impactos mais violentos dos danos ambientais recaem so-
bre os pobres. Os mais ricos estão em melhores condições para desfrutar do consumo
sem sofrerem seus efeitos negativos, as pessoas com mais dinheiro podem abandonar
ambientes degradados ou afetados por desastres naturais. Os países mais ricos podem
enviar seus resíduos para países mais pobres.

Segundo dados das Nações Unidas (UNEP, 2015) até 90% do lixo eletrônico
do mundo é despejado sem obedecer a nenhum critério ou respeito pelos hu-
manos ou pela natureza. Para Gana, por exemplo, são enviados contêineres
cheios de equipamentos eletrônicos obsoletos ou quebrados com a desculpa
de que os países ricos estão doando equipamentos para diminuir o abismo
digital entre ricos e pobres.

Por outro lado, a pobreza também intensifica as ameaças ambientais. A degradação do solo,
o desmatamento, a falta de água, as emissões de chumbo e a poluição do ar são problemas
que estão concentrados nos países e regiões mais pobres. As pessoas que possuem poucos
recursos têm poucas escolhas senão maximizar os recursos disponíveis a elas.

Os países industrializados e a ONU exigem que a Indonésia preserve


suas florestas tropicais, porém a Indonésia precisa muito mais da re-
ceita proveniente das florestas do que os países industrializados.

Podemos perceber, no exposto acima, que, ao falarmos de meio ambiente, estamos


também falando da relação entre a natureza e a sociedade que a habita. Não pode-
mos considerar a natureza como algo separado de nós, estamos incluídos nela, somos
parte dela. Quando analisamos as razões pelas quais um ambiente se degrada ou se
contamina, precisamos considerar o funcionamento da sociedade, da sua economia,
das políticas públicas e das suas maneiras de entender a realidade. Tendo em vista a
amplitude das mudanças, já não é possível encontrar uma resposta independente para
cada parte do problema.

É preciso buscar soluções integrais que considerem as interações dos


sistemas naturais entre si e com os sistemas sociais. Não podemos
considerar as crises ambiental e social separadamente, mas uma úni-
ca e complexa crise socioambiental. A solução para tal crise requer
uma abordagem integral que acabe com a pobreza, devolvendo dig-
nidade aos excluídos e, simultaneamente, cuide da natureza (FRAN-
CISCO, 2015).

62
5. AMEAÇAS AMBIENTAIS
Atualmente, o mundo enfrenta diversas ameaças ambientais globais que podem ser
divididas, grosso modo, em dois tipos: a poluição e os resíduos lançados no meio am- 3
biente; e o esgotamento dos recursos renováveis.

5.1 A POLUIÇÃO DO AR
É causada pela emissão de substâncias tóxicas na atmosfera e pode ser a causa da
morte de mais de 2,7 milhões de pessoas por ano. A poluição do ar não afeta apenas a
saúde humana, seu impacto é também prejudicial para outros elementos do ecossiste-
ma, como no caso das chuvas ácidas.

A chuva ácida é um fenômeno que ocorre quando as emissões de enxofre e óxido


de nitrogênio são precipitadas com a chuva. O impacto da chuva ácida é grave, pois
prejudica florestas, plantações e a vida animal, além de acidificar lagos. Ela é de difícil
controle porque as emissões podem ocorrer em um país e se precipitar em outro.

No Canadá, por exemplo, grande parte da chuva ácida que ocorre no leste do país está
relacionada com a produção industrial do estado de Nova York, do outro lado da frontei-
ra entre os Estados Unidos da América e o Canadá.

5.2 A POLUIÇÃO DA ÁGUA


Pode ser entendida com a contaminação do fornecimento de água por substâncias tó-
xicas, minerais, pesticidas e esgoto sem tratamento. Águas contaminadas são a maior
ameaça aos habitantes de países pobres ou em desenvolvimento onde quase um terço
da população não tem acesso à água que possa ser consumida com segurança.

Nos países industrializados, os casos de poluição da água ocorrem geralmente em fun-


ção do uso excessivo de produtos agrícolas, tais como fertilizantes e pesticidas quími-
cos. No Brasil, a principal causa de poluição da água é a falta de tratamento de esgoto;
em segundo lugar, temos os lançamentos da indústria e da agricultura.

5.3 RESÍDUOS SÓLIDOS


O problema é que as sociedades industrializadas produzem um volume imenso de itens
que são diariamente descartados. Hoje, são poucas as coisas que podemos comprar sem
embalagens. Preste atenção quando for ao supermercado ou à lanchonete e você verá
plásticos, latas, papéis, isopores, que são descartados nas ruas, nas lixeiras e nos rios.

Nos países e regiões onde ocorre a coleta de lixo, o problema ambiental é a dificuldade
no processo de descarte dessa enorme quantidade de resíduos.

Os aterros sanitários das grandes cidades estão se enchendo rapidamente e forçando


a criação de novos aterros cada vez mais distantes dos grandes centros urbanos, o que
leva a um maior custo, devido ao transporte dos resíduos até estes aterros. Nos países
industrializados, a coleta de lixo é quase universal, mas nos países em desenvolvimento
o principal problema enfrentado, relativo aos resíduos, ainda é a falta de coleta de lixo.

Estudo do Ser Humano Contemporâneo 63


Ecologia e Pensamento Ecológico: Questões Ecológicas e Educação
Ambiental

No Brasil, a geração de lixo aumentou 29% entre 2003 e 2014, o equivalente a cinco
vezes a taxa de crescimento populacional no período. No entanto, a quantidade de re-
síduos com destinação adequada não acompanhou o crescimento da geração de lixo.
3 Em 2015, apenas 58,4% do total de lixo foi direcionado a aterros sanitários.

5.4 ESGOTAMENTO DOS RECURSOS RENOVÁVEIS


Além da poluição e dos resíduos sólidos, elementos como água, madeira, vegetais,
animais terrestres e marinhos são muitas vezes denominados de recursos renováveis,
porque em um ecossistema equilibrado eles se substituem automaticamente com o
passar do tempo.

Porém, se o consumo destes recursos for excessivo, desequilibra-se o sistema natural


e se corre o risco de serem completamente esgotados. Inúmeros cientistas de diversos
países apontam evidências disto estar ocorrendo.

Em países como o Brasil, é provável que as pessoas não deem muita atenção para o abas-
tecimento de água, exceto em situações de seca. Porém, a falta d’água já afeta o Oriente
Médio, a China, a Índia e o norte da África. A Organização Mundial da Saúde (OMS) calcula
que, até o ano 2050, 50 países enfrentarão crise no abastecimento de água.

A Organização das Nações Unidas (WWAP, 2015) estima que um bilhão de


pessoas carece de acesso a um abastecimento de água suficiente. A demanda
por água doce está crescendo. A menos que o equilíbrio entre a demanda e
os suprimentos finitos seja restaurado, o mundo enfrentará um déficit mundial
de água cada vez mais severo. A demanda global de água é fortemente in-
fluenciada pelo crescimento populacional, urbanização, políticas de segurança
alimentar e energética e processos macroeconômicos, como a globalização do
comércio, a mudança das dietas e o aumento do consumo.

Até 2050, prevê-se que a demanda global de água aumente em 55%, principal-
mente devido às crescentes demandas da produção, geração de eletricidade
térmica e uso doméstico.

Ao problema de esgotamento da água devemos somar a degradação do solo, o des-


matamento e a desertificação. A degradação do solo é o processo onde a qualidade
do solo é piorada pelo uso excessivo (como na agricultura e pecuária) ou pela seca.
Já a desertificação ocorre quando a degradação do solo se estende em grandes áre-
as, produzindo uma paisagem que se assemelha a desertos. O desmatamento é o
processo de destruição da terra arborizada, que geralmente ocorre por fins comer-
ciais. O valor da biodiversidade que as florestas abrigam é incalculável, elas são in-
dispensáveis para o equilíbrio dos sistemas que mantêm a vida no planeta e fornecem
bens e serviços para os humanos.

No Brasil, a problemática ambiental, e sobretudo a questão da biodiversidade, ganha


força a partir de meados da década de 1980. A devastação da floresta amazônica
trouxe visibilidade internacional a tal questão.

64
A floresta amazônica brasileira representa 40% de toda a área de florestas
tropicais no mundo, cerca de 8,5 milhões de Km2.
3
A partir da eminência de desastres ambientais globais e a emergência de novos mer-
cados, as atenções de ambientalistas e conglomerados da indústria se voltaram para o
Brasil e sua riqueza em biodiversidade, deixando-o em uma situação complicada.

Como preservar a floresta e ao mesmo tempo como tirar proveito dessa po-
sição estratégica?

Muitos especialistas na área visaram preservar a natureza, conferindo-lhe um


valor no mercado. Como se pudéssemos solucionar o problema demarcando
um valor para as florestas tropicais e explicar para os exploradores que as
florestas podem valer mais de pé do que deitadas.

Ocorre que, diante do lema “salvar o planeta e ganhar dinheiro”, surge um


certo círculo vicioso: para salvar a floresta, precisa-se conferir-lhe um
valor econômico, ou seja, torná-la produtiva. Ao fazer isso, incentiva-se a
criação de determinadas tecnologias que movimentariam a produção dentro
da lógica do mercado. Porém, essas tecnologias se revelam como uma nova
forma de depredação. Assim, a biodiversidade vem ainda sendo entendida
pelo mercado como um grande reservatório de matéria-prima, onde se bus-
ca a variante mais rentável, perpetuando o projeto moderno de controle e
manipulação sobre a natureza.

6. RISCOS AMBIENTAIS
Os humanos sempre enfrentaram riscos externos, como secas, terremotos, escassez e
tempestades provenientes do mundo natural, mas os riscos ambientais que nós vivemos
atualmente são diferentes, pois são riscos produzidos pelo impacto de nosso próprio co-
nhecimento e da tecnologia sobre o mundo natural. Existem diversos riscos produzidos,
mas os riscos mais famosos envolvem aquecimento global e alimentos transgênicos.

O aquecimento global é considerado por muitos como o desafio ambiental mais sério
que precisamos enfrentar. Atualmente, a maioria dos cientistas reconhece que o aque-
cimento global é causado pelo efeito estufa e que este efeito é uma consequência da
intervenção humana, ou seja, um risco produzido. Em função dos processos industriais,
temos um contínuo aumento na emissão e acúmulo de gases que provocam o “efeito
estufa”, ou seja, a ampliação de gases que armazenam o calor na atmosfera terrestre.

O dióxido de carbono (proveniente da queima de combustíveis), os


clorofluorcarbonetos (compostos artificiais utilizados em processos de
refrigeração com efeito destruidor da camada de ozônio que protege

Estudo do Ser Humano Contemporâneo 65


Ecologia e Pensamento Ecológico: Questões Ecológicas e Educação
Ambiental

a Terra de raios solares), o metano (com origem na intensificação das


atividades pecuárias), o óxido nitroso (destruidor da camada de ozônio
3 utilizado em fertilizantes agrícolas), entre outros elementos provenientes
de emissões antrópicas, alteram a composição a atmosfera e causam
um aquecimento global acelerado.

Se as previsões científicas estiverem corretas, o aumento da temperatura média da


Terra tem o potencial de alterar irreversivelmente o funcionamento do clima na Terra.

Se as calotas polares continuarem a derreter, como muitos estudos


têm apontado, o nível do mar aumentará ao ponto de ameaçar as po-
pulações litorâneas e terras que estão abaixo do nível do mar, como
as do Reino dos Países Baixos. Nestas condições, somos forçados a
refletir sobre os riscos ambientais.

Outro tipo de risco produzido pelos seres humanos pode ser observado na produção
e consumo de alimentos transgênicos ou Organismos Geneticamente Modificados
(OGMs). Os alimentos transgênicos têm sua composição genética manipulada para que
sejam resistentes a agrotóxicos ou pragas e para que tenham maior produtividade. Eles
são diferentes de todos os organismos que já existiram, pois envolvem o transplante de
genes de um organismo para outro diferente.

O milho Bt no qual foram introduzidos genes específicos da bacté-


ria Bacillus thuringiensis (Bt) para que o milho seja tóxico a alguns
tipos de insetos.

Atualmente, o Brasil é o segundo maior produtor de OGMs do mundo, ficando atrás


apenas dos EUA.

Provavelmente você consome OGMs diariamente ao se alimentar de pão, ma-


carrão, arroz, feijão, milho, bolacha e frutas.

Mesmo sendo rapidamente adotada, tendo em vista que o primeiro cultivo comercial ocor-
reu em 1999, ainda há incerteza sobre a segurança dos alimentos transgênicos para o
consumo humano e para os sistemas naturais. O risco está em não termos pleno conhe-
cimento sobre as consequências da ingestão destes alimentos por longos períodos.

Por isso, alguns países como França, Escócia, Japão, Nova Zelândia, Alemanha, Áus-
tria, Hungria, Grécia, Bulgária, Luxemburgo, entre outros, proíbem ou restringem a pro-
dução de alimentos geneticamente modificados em seus territórios. Estes países estão
adotando em suas políticas agrícolas e de saúde pública o princípio da precaução, ou
seja, um princípio moral e político que determina que se, na ausência de consenso
científico irrefutável, uma ação pode originar um dano irreversível público ou ambiental,

66
quem deve provar que a ação é segura é aquele que pretende praticar a ação. Ao res-
tringirem ou banirem os transgênicos e seus territórios, as populações e governos de
muitos países dão um sinal de que não têm confiança nos relatórios de segurança sobre
estes alimentos. Por isso, cientistas, como Ulrich Beck, afirmam que vivemos incertezas 3
sobre os riscos a que estamos expostos cotidianamente, não temos certezas sobre as
causas e as consequências de muitos riscos ambientais produzidos.

CONCLUSÃO
A ecologia nos fornece informação para compreender melhor o mundo em torno de nós,
nossa vida cotidiana e profissional. Os conhecimentos e saberes ambientais também
podem nos ajudar a melhorar o nosso ambiente, a gerir nossos recursos naturais e a
proteger nossa saúde.

A ecologia trata das interações e interdependências entre os organismos e de seus ha-


bitats (casas) na natureza. Todos somos parte do ecossistema, dependemos dele para
a nossa sobrevivência, já que em muitos aspectos somos apenas mais uma espécie,
mas também estamos na situação única de podermos mudar o ecossistema de muitas
maneiras diferentes. E a compreensão dos efeitos da mudança de um ecossistema
é importante para evitar que nossas ações tenham consequências não intencionais
(como a fome em algumas regiões do continente africano, em grande parte devido às
mudanças humanas no ecossistema).

Diante dos desafios ambientais que enfrentamos, seja na vida cotidiana ou globalmen-
te, é fundamental aprimorarmos nossos conhecimentos e dialogarmos entre diversos
saberes ambientais. A qualidade da vida humana na Terra depende do esforço conjunto
de todos – empresas, escolas, igrejas, Estados e cada cidadão – no sentido criarmos
solução para a atual crise socioambiental. A educação ambiental é uma das principais
ferramentas nesse processo de desenvolvimento ecológico sustentável, ela deve ser in-
centivada e praticada. A educação ambiental é um processo dinâmico. A fim de permitir
que as pessoas gozem de boa saúde e de uma elevada qualidade de vida, é vital evitar
efeitos nocivos para a saúde humana ou danos ao ambiente, causados pela poluição
do ar, da água e do solo. Nesse processo, meu caro aluno, sua responsabilidade é mer-
gulhar mais fundo na educação ambiental e aplicar seus conhecimentos nos espaços
que você convive. Repense suas práticas em casa, na rua e no trabalho. Pense global
e aja local contribuindo para as dimensões social, econômica e ambiental do desenvol-
vimento sustentável. Para nos aprofundarmos neste estudo, escolhemos alguns textos
e vídeos (organizados no Guia de Estudo) que vão lhe interessar, pois tratam de sua
vida neste planeta. Os livros reúnem muita informação relacionada ao meio ambiente,
desde análises sobre as políticas da ONU até técnicas de manejo ambiental. Abra um
livro e se surpreenda!

REFERÊNCIAS
1. BECK, Ulrich; GIDDENS Anthony; LASH Scott. sobre o dilema da humanidade. São Paulo: Pers-
Modernização reflexiva: política, tradição e estética pectiva, 1972.
na ordem social moderna. 2. ed. São Paulo: Edito- 11. MIETH, Andreas; BORK, Hans-Rudolf. History,
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Estudo do Ser Humano Contemporâneo 67


Ecologia e Pensamento Ecológico: Questões Ecológicas e Educação
Ambiental

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Lei n. 9.795, de 27 de abril de 1999, regulamenta 2005. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1016/j.
a Lei n. 9.795, de 27 de abril de 1999, que institui catena.2005.06.011>. Acesso em: 13 dez. 2016.
a Política Nacional de Educação Ambiental, e dá 12.NAÇÕES UNIDAS. Report of the World Com-
3 outras providências. Portal da Legislação, Brasí- mission on Environment and Development: Our
lia, jun. 2002. Disponível em: http://www.planalto. Common Future. Oxford; New York: Oxford Uni-
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em: 07 nov. 2016. un-documents.net/our-common-future.pdf>. Aces-
3. BRASIL. Ministério do Meio Ambiente e Minis- so em: 15 dez. 2016.
tério da Educação. Educação Ambiental: Por um 13.NAÇÕES UNIDAS DO BRASIL. A ONU e o
Brasil sustentável – ProNEA Marcos Legais & meio ambiente. Disponível em: <https://nacoesu-
Normativos. Brasília, 2014. Disponível em: <http:// nidas.org/acao/meio-ambiente/>. Acesso em: 15
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a_4edicao_web-1.pdf>. Acesso em: 15 dez. 2016.
14.PEREIRA, Adriana Camargo. Sustentabilida-
4. DIAS, Genebaldo Freire Os 15 anos da educa- de, responsabilidade social e meio ambiente. São
ção ambiental no Brasil: um depoimento. Revista Paulo: Saraiva, 2008.
Em Aberto, Brasília, v. 10, n. 49, p. 3-14, 1991.
15.SACHS, W. Dicionário do desenvolvimento:
5. FRANCISCO. Carta encíclica Laudato Si’: so- guia para o conhecimento como poder. Petrópolis:
bre o cuidado da casa comum. Vaticano, 2015. Vozes, 2000.
Disponível em: <http://w2.vatican.va/content/
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co_20150524_enciclica-laudato-si.html>. Acesso PER, L. Fundamentos em Ecologia. 3. ed. São
em: 16 dez. 2016. Paulo: ArtMed, 2011.

6. HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. 17.UNITED NATIONS ENVIRONMENT PRO-


Dicionário Houaiss da língua portuguesa. [CD- GRAMME – UNEP. Waste Crime – Waste Risks:
-ROM]. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. Gaps in Meeting the Global Waste Challenge.
Oslo: Birkeland Trykkeri AS, 2015.
7. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E
ESTATÍSTICA – IBGE. Pesquisa de Orçamentos 18.UNITED NATIONS WORLD WATER ASSESS-
Familiares 2002-2003 - Perfil das despesas no MENT PROGRAMME – WWAP. The United Na-
Brasil: Indicadores selecionados. Rio de janeiro: tions World Water Development Report 2015: Wa-
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8. LEFF, E. Racionalidade ambiental: a reapro- 19.WORLD COMMISSION ON ENVIRONMENT


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ford: Oxford University Press, 1987.
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10.MEADOWS, D. L. et al. Limites do crescimen-
to: um relatório para o Projeto do Clube de Roma

68
3

Estudo do Ser Humano Contemporâneo 69


Dimensões Políticas, Sociais e o Fenômeno Religioso

UNIDADE 4

DIMENSÕES POLÍTICAS, SOCIAIS E O


4 FENÔMENO RELIGIOSO

INTRODUÇÃO
A presente Unidade de Estudo focará nos temas da política, da cidadania, da justiça
social e do fenômeno religioso. A política surgirá sempre que uma pluralidade de indiví-
duos estiver presente, pois as deliberações e ações que daí surgirem caracterizarão o
exercício mais nobre e complexo das atividades humanas.

Para esta Unidade de Estudo, a leitura atenta deste material, bem como a atenção es-
pecial a todos os acontecimentos políticos a sua volta, é de extrema importância para
uma base teórica e prática de nossas ações na sociedade. Toda e qualquer atividade
que nasça da pluralidade, será atividade política.

1. A POLÍTICA: SEU NASCIMENTO E TRANSFORMAÇÕES


Para tratarmos da questão da política, é necessário termos claro que o sentido gregá-
rio dos seres humanos desencadeia uma série de formas organizacionais específicas.
Temos, por exemplo, diversas organizações com objetivos definidos em todas as socie-
dades, são as chamadas instituições sociais.

Uma instituição impõe padrões de conduta e maneiras de agir em sociedade originadas


a partir da própria sociedade.

Neste sentido, tomamos a política como uma dessas formas de organização, denomina-
das instituições sociais. Refletir sobre tal organização social nos leva a questionarmos
seu histórico, seu sentido e sua significação para a sociedade em que estamos inseridos.

O nome política vem da designação de pólis (“cidade” em grego), segundo


Maria Lúcia de Arruda Aranha (1993), filósofa brasileira.

Para entendermos a política como instituição social, temos como horizonte a cultura
grega, de quem tal organização no ocidente é herdeira. É exatamente no período de
440 a 404 a.C., denominado de “século de Péricles”, que podemos observar a formação
inicial desta instituição como uma organização.

Sólon (594 a.C.), ao perceber que “a terra ateniense era pobre e a agricultura não
seria suficiente para manter a cidade” (CHAUÍ, 2002, p. 132), incentivou as atividades

70
do comércio e artesanato, empreendendo assim uma quebra do poder da aristocracia
fundiária e atraindo estrangeiros. A ideia deste legislador era incentivar a participação
no poder político a partir do critério da fortuna pessoal.

Domínio Público
4
Sólon (séculos VI a V a.C.): o estadista, legislador e poeta da
Grécia Antiga era considerado um dos grandes sábios desse pe-
ríodo, tendo composto inúmeros poemas importantes.

No entanto, foi somente a partir de Clístenes (510 a.C.) que se delimitou a pólis como
espaço político por excelência.
Domínio Público

Clístenes (séculos V a IV a.C.): político da Grécia Antiga que


leva adiante as obras de Sólon. Era de família abastada, po-
rém liderou uma revolta popular e reformulou a antiga cons-
tituição ateniense.

A reforma de Clístenes instituiu o espaço político ou a pólis propriamente dita. Assim, a


partir destas reformas, surge um espaço próprio para que decisões e deliberações que
envolviam a sociedade desta época fossem tomadas.

A pólis não se referia à noção de cidade como a temos hoje, isto é, um conjunto
de edifícios e ruas, comércio e outras organizações destinadas a atender as
mais variadas demandas da comunidade. A pólis instituída neste período se
caracterizou como um espaço destinado aos indivíduos deliberarem e se ex-
pressarem coletivamente acerca dos assuntos da cidade.

Segundo Marilena Chauí (2002, p. 134), neste período, tinha-se “uma democracia direta
ou participativa e não uma democracia representativa, como as modernas”.

Nas democracias representativas, mais comuns nas sociedades modernas, se-


gundo Anthony Giddens (2012, p. 703), “as decisões que afetam a comunidade
são tomadas não por seus membros como um todo, mas por pessoas que foram
eleitas para essa finalidade”.

Diversas foram as transformações que esta instituição social sofreu ao longo do tempo.
Identificamos na modernidade o fortalecimento e a concentração das atribuições polí-
ticas nas mãos do chamado Estado Moderno.

Estudo do Ser Humano Contemporâneo 71


Dimensões Políticas, Sociais e o Fenômeno Religioso

A modernidade foi uma série de acontecimentos nos campos da política, religião,


Estado e cultura que inauguram uma nova forma de pensar e organizar a vida social
após o feudalismo.

4
Esta organização passa a dispor de um aparato jurídico-administrativo para a distribui-
ção dos recursos numa coletividade, bem como monopoliza o uso da violência e das
forças armadas, segundo o sociólogo Anthony Giddens (2012).

Percebemos, assim, que, tal como originalmente a pólis pensada pelos gregos, o Es-
tado Moderno representa o lugar em que as decisões sobre a cidade, isto é, a política
acontece em nossa sociedade.

1.1 AS ANÁLISES MODERNAS DA POLÍTICA


As análises da política moderna na filosofia e sociologia são muitas. Uma das mais
importantes vem da Itália, mais especificamente no século XIV, a partir da figura de
Nicolau Maquiavel (1469-1527). Para este pensador, a questão que se coloca é a da
legitimidade do poder, isto é, qual a natureza do poder político.

Domínio Público
Nicolau Maquiavel (1469-1521): pensador, político e historiador
florentino da época do renascimento.

Em sua obra O príncipe, de 1513, Maquiavel nos fala das ações mais importantes para
que o governante tenha legitimidade sobre seus súditos. Nesta concepção, o poder
político é originado das relações sociais estabelecidas entre governantes e governados,
ou seja, a partir das relações sociais. Ao pensar a força do príncipe sobre seus súdi-
tos, a partir de suas ações, Maquiavel dará origem ao pensamento político moderno.
O Príncipe foi geralmente entendido como um manual contendo ideologia da classe
dominante. A política passa a ser entendida como um violento jogo de forças ao qual
se submetem moral, religião ou o direito – pois só neste confronto, ou a partir dele,
adquirem sentido.

Outro pensador que dedicou especial atenção à questão da política foi Max Weber
(1864-1920) para quem, assim como Maquiavel, o poder político era fruto das relações
sociais: “Todo poder é exercício e, quando exercitado, é política, pois poder é uma ação
social” (ARAÚJO, 2013, p. 144). Para este autor, a questão da legitimidade do poder
político também foi um tema bastante debatido.

72
Domínio Público
4
Max Weber (1824-1920): sociólogo alemão, considerado um
dos grandes nomes do início do pensamento sociológico.

Se nos aprofundarmos no pensamento de Weber, veremos que o pensador alemão


nos esclarece que o poder político se apoia na crença de uma ordem legítima por parte
daqueles que estão envolvidos numa relação de poder. Para uma melhor abordagem da
realidade, Weber classifica a atribuição da legitimidade do poder por parte dos agentes
em virtude da tradição, da crença afetiva e da crença na legalidade de um estatuto:

01. Tradição

A legitimidade atribuída ao poder da rainha ou rei, por exemplo.

02. Crença afetiva

A legitimidade atribuída ao poder de líderes carismáticos, como o Papa João


Paulo II e a Madre Tereza de Calcutá, por exemplo.

03. Crença na legalidade de um estatuto

A legitimidade atribuída a um presidente eleito democraticamente, por exemplo.

Dentre as análises sobre a natureza do poder político, Hannah Arendt (1906-1975),


pensadora alemã, também fez grandes contribuições. Para ela, a política é um fe-
nômeno intimamente relacionado ao poder e à pluralidade humana. Poder, para
Arendt, é resultante da multiplicidade humana; da presença de certo número de
indivíduos que o caracteriza como fenômeno que ocorre em meio à diferença e à
multiplicidade de objetivos.
Domínio Público

Hannah Arendt (1906-1975): filósofa alemã de origem judaica, per-


seguida pelo regime hitlerista, foi responsável por grandes obras
filosóficas do século XX, entre elas A origem do totalitarismo.

Estudo do Ser Humano Contemporâneo 73


Dimensões Políticas, Sociais e o Fenômeno Religioso

Juntamente com Maquiavel e Weber, Arendt vê na política o exercício de poder em meio


às relações sociais e, portanto, o fenômeno que surge quando homens e mulheres se
encontram unidos. Sem uma pluralidade de indivíduos, não há poder, isto é, não poderá
nascer daí nada de político.
4
“O poder corresponde à habilidade humana não apenas para agir, mas para agir
em concerto. O poder nunca é propriedade de um indivíduo; pertence a um grupo
e permanece em existência apenas na medida em que o grupo conserva-se uni-
do” (ARENDT, 1994, p. 36).

1.2 A CIDADANIA: SEU NASCIMENTO E TRANSFORMAÇÕES


A partir do momento em que a inscrição na pólis grega passou a ser definida pela noção
de cidadão, ou seja, todos aqueles que fossem considerados cidadãos poderiam parti-
cipar das decisões da pólis, iniciou-se uma forma de governo em que as decisões sobre
a pólis passaram para as mãos desses indivíduos.

Importante frisar que mulheres, crianças, estrangeiros e escravos


não estavam inclusos na cidadania.

Esta forma foi denominada democracia:

DEMO CRACIA

(démoi, os cidadãos; krátos, o poder.

portanto, o poder dos cidadãos).

Nesta organização da política, a função soberana estava no poder das leis, ou seja,
as leis válidas a todos os cidadãos seriam a força maior neste tipo de organização.

No entanto, diferentemente da forma original praticada pelos gregos, a maneira de par-


ticipação dos cidadãos na política da modernidade está alicerçada no Estado-nação,
isto é, instituições em que grande parte da população é composta por cidadãos que se
consideram como parte de uma nação.

Para Anthony Giddens (2012), a cidadania é uma das características essenciais dos
Estadosnação e, na atualidade, o conceito de cidadania se estende a todas as pessoas
pertencentes a um determinado Estado.

74
“Nas sociedades modernas, a maioria das pessoas que vivem dentro das fron-
teiras do sistema político é de cidadãos, tendo direitos e deveres comuns e se
considerando parte de uma nação” (GIDDENS, 2012, p. 699).
4
No decorrer dos séculos, percebemos o reconhecimento e a expansão dos direitos por
parte da população mais pobre. Esta ampliação veio como resultado de diversas lutas
e reivindicações para que os direitos de cidadania fossem reconhecidos a todos os in-
divíduos de determinado Estado.

Segundo Thomas Marshall (1893-1981), sociólogo britânico, em sua obra Cidadania e


classe Social (1949), existiram três ciclos de geração de direitos de cidadania:

O conceito inicial de cidadania surge juntamente com a pólis na Grécia Antiga, mas
se amplia e sofre transformações ao longo dos séculos e das transformações que as
instituições políticas passaram. Neste sentido, a justiça social se mostra como a ampla
possibilidade de que indivíduos possam usufruir de seus direitos e deveres enquanto
cidadãos de maneira igualitária e solidária em qualquer Estado-nação.

Com a Revolução Francesa, a concepção de cidadania se expande para abranger os


direitos fundamentais do homem, entendidos como direito da liberdade suscetível de con-
cretização na cidade e no Estado, e os direitos vinculados à ideia de igualdade e justiça.

Cidadania é o pertencer à comunidade, que assegura ao homem a sua cons-


telação de diretos e o seu quadro de deveres. O exercício da cidadania está
assegurado pelos direitos fundamentais presente na Constituição brasileira. O
direito político, social e econômico se encontra em constante tensão com as
ideias de liberdade, de justiça política, social e econômica.

A igualdade de oportunidades, de resultados e de solidariedade tem vínculos com a cidadania.

A cidadania é analisada e estudada como cidadania local, nacional, mundial, comunitá-


ria, cosmopolita e virtual.

Estudo do Ser Humano Contemporâneo 75


Dimensões Políticas, Sociais e o Fenômeno Religioso

1.3 JUSTIÇA SOCIAL: DIVERSIDADE DE SIGNIFICADOS


É consenso na literatura que a justiça deve ser analisada como um conjunto de exigên-
cias relativas à estrutura da sociedade.

4
“A justiça apresenta-se como um conjunto de critérios ideais que devem presidir a
boa conduta e o desenvolvimento ordenado da coisa pública” (LUMIA 2003, p. 493).

Na órbita dos procedimentos, alguns desses critérios apresentam objetividades indubitá-


veis: a exigência de imparcialidade, a proibição de alguém vir a ser juiz em causa própria
ou a necessidade, no caso de um conflito, de que os dois lados litigantes sejam escutados.

No âmbito do pensamento ocidental, a justiça foi concebida sob a forma de repartição. A


justiça consistiria na disposição ou virtude permanente de dar a cada um o que lhe é de-
vido. Percebe-se, nesta concepção, a necessidade de distinção entre duas dimensões
da repartição: a formal e a material. A formal é de caráter procedimental e a material
indica a necessidade de identificação dos princípios a serem utilizados na repartição.
Observe no QUADRO 01:
Quadro 01. Distinção entre estado formal e material de direito

FORMAL MATERIAL

PROCEDIMENTAL SUBSTANCIAL
Parte de uma definição formal da igualdade, Enfrenta a tarefa de escolher entre os princípios
isto é, da suposição de que todas as pesso- de distribuição mais adequados e o desafio de
as em uma sociedade ou grupo devem ser justificar as desigualdades dele decorrentes.
tratadas de acordo com regras idênticas.

FONTE: Os autores (2017)

Segundo Silva (2007, p. 115), “o Estado de Direito deixou de ser formal para transformar-se
em Estado Material de Direito”. Neste sentido, o Estado tende a realizar a justiça social.

A partir da modernidade, a Justiça deixou de ser apenas uma virtude e passou a ser
enfatizada como fundamento da sociedade. David Hume (1995), filósofo francês, de-
finiu a justiça como virtude artificial fundada numa convenção social preexistente. O
Utilitarismo pensou a justiça em termos teleológicos, isto é, como a maximização do
bem-estar social.

Kant (1994) conceituou a justiça como um dever absoluto que consistiria em tratar cada
ser humano com respeito, isto é, como um fim em si mesmo e não como meio para
obtenção de algo.

No pensamento contemporâneo, o filósofo americano John Rawls marca o ressurgi-


mento do debate sobre a justiça. Desde a publicação da obra Uma Teoria da Justiça
(1993), as discussões teóricas deram ênfase à justiça como a promotora da maximiza-
ção da liberdade e de distribuição do Capital Social.

76
O tema da justiça e, consequentemente, da justiça social continua a suscitar im-
portantes debates no âmbito do pensamento contemporâneo. Há uma discussão
sobre a distribuição dos bens culturais, bem como as questões relacionadas aos
grupos vulneráveis, sobretudo mulheres e homossexuais.
4

No mundo atual, o homem enfrenta o problema de sobreviver e conviver de modo


digno. Esta situação requer uma solução adequada para as relações econômicas e de
poder. Há a necessidade de estabelecer os direitos e deveres das pessoas na socieda-
de. Se há direito à alimentação, à habitação, à educação e à saúde, será oportuno criar
mecanismos que concretizem esses direitos. Se há direito à diversidade, às minorias
e aos excluídos do sistema, será urgente criar mecanismos que concretizem esses
direitos. Neste sentido, a justiça social apresenta uma dimensão política que reclama a
participação de todos na solução das realidades concretas na sociedade.

A justiça social evidencia, além da dimensão política, a dimensão social do ser humano.
O ser humano é capaz de compreender a importância da alteridade (o outro). Necessi-
tamos do outro, no plano político, econômico e afetivo. Sem a alteridade, não teríamos
condições de saber quem somos e que rumo dar à nossa existência.

Continuaremos os estudos da Unidade com o tópico 2, que aborda as questões relacio-


nadas ao fenômeno religioso.

2. O FENÔMENO RELIGIOSO
O fenômeno religioso é uma das manifestações mais profundas e significativas do ser
humano. Sob variadas formas, está presente em toda a história humana e em todas as
sociedades. Sua influência se estende sobre todo o campo da cultura, das instituições
e das ações humanas.

Por isso, não se pode compreender o ser humano – nem ontem, nem hoje, nem nas
sociedades mais simples, nem nas mais complexas – sem refletir sobre o fenômeno re-
ligioso. Nem se pode viver plenamente a condição humana sem fazer, em algum grau,
a experiência religiosa.

Apresentaremos os traços mais determinantes desse fenômeno e os conceitos que per-


mitem melhor compreendê-lo. As considerações aqui contidas são válidas para quais-
quer crenças religiosas.

2.1 RELIGIÃO HOJE: ABANDONO OU CRESCIMENTO?


Na atual sociedade, pode-se (ainda) deparar com a visão ou comentários de que o
fenômeno religioso acabará se diluindo, ou melhor, perderá força na vida das pessoas,
das famílias e da sociedade. Houve uma época em que se comentava sobre a possi-
bilidade do desaparecimento da religião, mas, ao contrário do que se acreditava, a
experiência religiosa está com muita vitalidade. O fenômeno religioso está “em alta”.

Estudo do Ser Humano Contemporâneo 77


Dimensões Políticas, Sociais e o Fenômeno Religioso

“O movimento que se iniciou no século XIII na direção da autonomia


do homem... completou-se de certa forma em nossa época. O ho-
mem aprendeu a lidar com todas as questões de importância sem
recorrer a Deus como uma hipótese explicativa... Cada vez se torna
4
mais evidente que tudo funciona normalmente sem Deus. Já se ad-
mite que o conhecimento e a vida são perfeitamente possíveis sem
Ele” (BONHOEFFER apud ALVES, 2006, p. 35).

Podemos citar o crescimento do islamismo na Europa e o número


crescente de evangélicos na América Latina, inclusive no Brasil.

A compreensão do fenômeno religioso geralmente é condicionada pela influência de


uma concepção das ciências e do poder tecnológico sobre a vida em geral, como tam-
bém pela influência de uma nova cultura moderna. Outra razão importante para com-
preender uma interpretação do fenômeno religioso tem a ver com a dinâmica da socie-
dade a partir da secularização, da pluralidade e da laicização.

No aspecto da secularização, por exemplo, há que dizer que não ocorreu um secularis-
mo, ou seja, uma total perda da dimensão transcendental e religiosa do ser humano. O
que tem ocorrido é um surto do sagrado, que é conhecido até nos países mais desen-
volvidos. No entanto, ocorre:

Uma real secularização no sentido da dificuldade de o homem e a mulher moder-


nos integrarem as experiências religiosas no conjunto de sua vida profissional, fa-
miliar e social. Sofrem de verdadeira cisão interna. As experiências secularizadas
e religiosas coexistem em suas pessoas de maneira paralela. O sagrado já não
é instância normativa, de referência, que integra as outras experiências e lhes dá
sentido. (LIBÂNIO, 2000, p. 45-46)

Tudo parece indicar que se pode viver uma vida social pós-religiosa, isto é, uma expe-
riência pessoal e social desligada de uma confissão religiosa (cristã, budista, islâmica
etc.). Contudo, apesar do aprofundamento da modernidade por influência do hipercapi-
talismo, é surpreendente a sede de Deus, sede da religião.

De repente uma experiência não institucionalizada, mas desde a fé, a crença num Sa-
grado, o Transcendente é algo perceptível na vida das pessoas. E mais ainda:

A história [...] parece que se deleita em zombar de nossas previsões científicas.


Quando tudo parecia anunciar os funerais de Deus e o fim da religião, o mundo
foi invadido por uma infinidade de novos deuses e demônios, e um novo fer-
vor religioso, que totalmente desconhecíamos, tanto pela sua intensidade quanto

78
pela variedade de suas formas, encheu os espaços profanos do mundo que se
proclamava secularizado. [...] O fascínio pelo misticismo oriental, a ioga, o zem-
budismo, a meditação transcendental... todos estes elementos fizeram cair por
terra as previsões científicas acerca do fim da religião. Mudaram-se as vestes.
Frequentemente deixam-se de lado os símbolos ostensivamente religiosos. Mas 4
sempre, de uma forma ou de outra, é possível constatar no mundo humano e nos
recônditos da personalidade a presença obsessiva e incômoda das questões reli-
giosas. (ALVES, 2006, p. 36-37)

Ademais, o fenômeno religioso na sociedade se destaca por uma experiência plural, o


que significou mudar de lugar (não só nos templos) e foi vivido de várias formas (não
apenas convencional). É vivida a experiência religiosa desde a esfera privada e a social.

A religião se mantém ainda na atualidade, e não só como fenômeno, mas tam-


bém como força social, só que agora sob uma forma fortemente subjetivada e,
por conseguinte, muito diversificada. Trata-se de uma religião mais sutil, mais
livre e mais emocional. E nem falemos das formas degradadas de religião (que
vão desde o charlatanismo até o satanismo), nem das formas camufladas (sob
o disfarce do culto do corpo, do esporte, dos ídolos da música e por aí vai).
Sob todas essas formas, a religião se mostra presente e viva na sociedade por
certo jogo de esconde-esconde muito mais esperto que a pretensa esperteza
intelectual de seus especialistas. (BOFF, 2015, p. 428)

Enfim, dizer que a religião é uma ilusão ou que vai desaparecer significa não compreen-
der a importância da experiência religiosa para o ser humano, preferencialmente para
os mais vulneráveis e desprovidos de cuidados da sociedade.

E é quando a dor bate à porta e se esgotam os recursos da técnica que nas


pessoas acordam os viventes, [...] surgem então as perguntas sobre o sentido
da vida e o sentido da morte, perguntas das horas de insônia e diante do espe-
lho... O que ocorre com frequência é que as mesmas perguntas religiosas do
passado se articulam agora, travestidas, por meio de símbolos secularizados.
Metamorfoseiam-se os nomes. Persiste a mesma função religiosa. Promessas
terapêuticas de paz individual, de harmonia íntima, de liberação da angústia,
esperanças de ordens sociais fraternas e justas, de resolução das lutas entre
os homens e de harmonia com a natureza... serão sempre expressões dos
problemas individuais e sociais em torno dos quais foram tecidas as teias reli-
giosas. (ALVES, 1981, p. 11-12)

Há que se compreender que a essência da religião não se reduz a uma ideia, mas tem
a ver com força. O crente que entra em comunhão com Deus se torna mais forte, para
suportar o sofrimento e as lutas do cotidiano. Por isso, o sagrado não tem a ver com um
saber, e sim com o poder.

Estudo do Ser Humano Contemporâneo 79


Dimensões Políticas, Sociais e o Fenômeno Religioso

O que se constata é que a religião não terá fim, pelo menos enquanto na Terra existir
o ser humano. Ou melhor, enquanto existir sociedade, a religião não desaparecerá. A
religião é resposta diante do não sentido, ou alento para o “suspiro do oprimido”.

4 Por isto a religião permanecerá até o fim. Como esperança e como protesto,
como símbolo que informa o homem da incompletude e definitiva de sua pró-
pria condição, como consciência de que tal sociedade ainda não chegou e
nunca chegará. (ALVES, 1987, p. 100)

2.2 A EXPERIÊNCIA ESPIRITUAL E MÍSTICA


Todo ser humano, independente de religião e Igreja, deve cultivar a experiência do Espírito. E
espiritualidade tem a ver com “espírito”. Viver espiritualmente implica viver no “espírito”, seja
bom ou ruim. E o espírito não é alguma “coisa” que está fora do mundo, da matéria, do corpo.
Ele permeia toda a realidade como vida, força, ação, liberdade, construção...

A experiência espiritual e mística dá ao ser humano vigor, entusiasmo, boa-vontade


para amar. Ao mesmo tempo, o Espírito interpela, encoraja, provoca à novidade,
lança ao crescimento e à criatividade. Por isso, o “espírito de uma pessoa é o pro-
fundo e dinâmico de seu próprio ser: suas motivações maiores e últimas, seu ideal,
sua utopia, sua paixão, a mística pela qual se vive e luta e com a qual contagia”
(CASALDÁLIGA, 1998, p. 8).

Além disso, a espiritualidade de uma pessoa humana será o “feitio de sua


própria humanidade”.

A experiência segundo o Espírito se dá a partir de algumas características fundamen-


tais, pelo fato de ela tocar a pessoa e a realidade na sua totalidade. Leonardo Boff
(1993) destaca as seguintes características:

01. Globalidade
Uma primeira característica é a globalidade – a experiência do divino, do
transcendente permeia toda a realidade. Tem a ver com tudo que existe, com o
todo da vida e da história. Consegue vivenciar a presença de Deus no espaço
do sagrado e no espaço secular;

02. Dinâmica integradora

Dinâmica Integradora: Uma segunda característica corresponde à dinâmica


integradora de todas as dimensões da vida. Isso quer dizer que a experiência
religiosa não é separada da razão, do corpo, do cotidiano, ou da história. No
contexto da experiência religiosa, tudo tem a ver com o sagrado, pois tudo é
permeado pela presença da divindade. (BOFF, 1993, p. 64).

80
03. Diafania:

Uma terceira característica diz respeito à diafania, isto é, a transparência.


Deus aparece através do homem e do mundo. A experiência do divino se dá
na mediação de todas as experiências humanas. Tudo que existe possui uma 4
realidade mistérica.

Esta experiência mística e religiosa é patrimônio de todos os seres humanos.

FONTE: Boff (1993, p. 64)

Toda pessoa está animada por uma espiritualidade ou por outra, porque todo
ser humano – cristão ou não, religioso ou não – é um ser também fundamen-
talmente espiritual. Toda mulher e todo homem são mais do que biologia pura.
É esse algo mais, muito mais, que os distingue do simples animal. [...] Perder
essa dimensão profunda é deixar de ser humano, é embrutecer-se. (CASAL-
DÁLIGA, 1998, p. 9)

Enfim, quanto mais uma pessoa vive e age à luz da experiência espiritual, mais poderá
cultivar opções profundas, grandes sonhos, valores éticos, responsabilidade com a hu-
manidade. A espiritualidade, por ser o mais profundamente humano, seria o que mais a
pessoa tem para ser à semelhança de Deus. E mais,

“Não é a religiosidade quem faz a verdade ou a mentira de uma vida humana,


mas a autenticidade dessa mesma vida. ‘Em espírito e verdade quer ser ado-
rado o Pai’, recordava Jesus à Samaritana, junto ao poço de Jacó (Jo 4, 23)”
(CASALDÁLIGA, 1998, p. 10).

Para a pessoa humana mística, espiritual, o ordinário (o doméstico, o cotidiano, o dia


a dia) é o lugar por excelência para um verdadeiro encontro com Deus. É numa experi-
ência de abertura à presença do outro, sobretudo do outro necessitado (Mt 25), e com
uma comunhão, uma solidariedade e uma sensibilidade profunda com toda a realidade,
que se pode viver o Encontro com o Amor e a Vida humanizada. O Sagrado, o Trans-
cendente, o Deus da Vida é revelação, manifestação na experiência da generosidade,
da misericórdia, da justiça, da comensalidade.

2.3 EXPERIÊNCIA RELIGIOSA OU VIVÊNCIA DO AMOR


Toda experiência do Divino, do Transcendente, ou melhor, do Deus que é vida para
nossa vida, tem que colocar na prática a experiência do Amor, porque Deus é amor.
“Quem não ama não conhece a Deus” (1Jo 4, 8). Nesse sentido, é possível dizer que:

Estudo do Ser Humano Contemporâneo 81


Dimensões Políticas, Sociais e o Fenômeno Religioso

“Diante de Deus, se não há a caridade, a religião é inútil”. A religião não é neces-


sariamente prática de amor, e pode estar totalmente alheia ao amor, como Jesus
bem explicou no capítulo 23 de Mateus. Aí fica muito claro que a religião pode ser
obstáculo ao amor, fechamento da pessoa e das instituições ao amor. A religião
4 precisa de conversão ao evangelho. Pessoas muito religiosas podem ser ego-
ístas, cruéis, arrogantes, dominadoras, orgulhosas; e as próprias instituições reli-
giosas podem ser de poder, de cobiça, de egoísmo e de autoritarismo. A religião
torna-se um perigo quando esconde o vazio de amor, a carência de esperança e
de fé verdadeira. (COMBLIN, 2004, p. 222-223)

O Evangelho convoca, interpela, provoca a uma vida de humildade, serviço-amor e justiça.

O importante é que a experiência religiosa favoreça à humanidade uma experiência do


Deus que é vida para todos os povos.

Em Jesus se concretizou o grande acontecimento que marcou definitivamente


a história das tradições religiosas da humanidade. No homem Jesus, o divino
fundiu-se com o humano, de tal modo que, a partir de Cristo, ficou demonstrado
que Deus é diferente do que se supõe. Porque o distintivo mais profundo de
Deus não é sua divindade (que nem sabemos o que é, nem podemos sabê-lo),
mas sim sua humanidade. Sem dúvida, nisso está radicado o mistério profundo
de Deus que, sem deixar de ser o Transcendente, é a realização mais plena e
mais profunda da humanidade. (CASTILHO, 2010, p. 30)

De acordo com a compreensão de Deus que se tem é que se vive; ou seja, se tenho
uma representação de um Deus autoritário, juiz, castigador, patriarcal... Com certeza
que minha vivência com o outro terá o reflexo dessa representação de Deus. Uma vida
assumida a partir do Deus humanizado e vivida de acordo com esse Deus é a única vida
que hoje pode ser sinal e compromisso de humanização para o mundo.

O que importa é a experiência do amor. A experiência religiosa tem que estar a serviço
do compromisso de amor; vale dizer, vivenciar o Evangelho.

A religião é boa se serve para manter a memória de Jesus, para preparar a aco-
lhida do evangelho ou para estimular a fidelidade. Mas a religião pode também
ocultar o evangelho, tornando-o a si própria a sua finalidade. Então ela transforma
a sua doutrina numa mitologia, os ritos num formalismo e a instituição num instru-
mento de poder. A religião vale se está a serviço do evangelho, mas é nociva se
ela se torna a si própria como o seu fim. [...] Só Deus salva e salva pela prática
do evangelho. Toda religião deve estar subordinada a essa fé e não substituí-la
por outra fé. Nenhuma religião salva porque somente Deus salva, e salva gratui-
tamente. (COMBLIN, 2012, p. 97)

82
Viver o Seguimento de Jesus é praticá-lo na história. É adentrar no caminho Dele, atitu-
de que significa viver o amor-misericórdia, a solidariedade-afetiva e efetiva, não como
sentimento, mas como agir concreto. O que importa é praticar a verdadeira religião:

“Se alguém pensa ser piedoso, mas não refreia a língua e engana o seu coração, então
é vã a sua religião. A religião pura e sem mácula aos olhos de deus e nosso Pai é esta: 4
visitar os órfãos e as viúvas nas suas aflições, e conservar-se puro da corrupção deste
mundo” (BÍBLIA, Tg 1, 26-27).

2.4 O DESAFIO DO FUNDAMENTALISMO NO MUNDO


CONTEMPORÂNEO
Atualmente, a civilização mundial é atravessada pelo fenômeno do fundamentalismo
em duas características: a religiosa e a secularizada. O fenômeno do fundamentalismo
é responsável por muitos tipos de violência, discriminação, falta de diálogo entre as
religiões e os povos, xenofobia, guerras em vários países.

O fenômeno do fundamentalismo é encontrado em vários cenários: nas religiões, nas


Igrejas, na política, nas relações econômicas, nas ciências etc. Ocorre o fundamenta-
lismo quando o ser humano, a instituição, o pensamento hegemônico, o poder técnico-
-científico, as ciências etc. se apresentam com postura absoluta, irreversível, impositi-
va, não cabendo o diálogo, a reciprocidade, a tolerância, a pluralidade.

O fundamentalismo não é uma doutrina. Mas uma forma de interpretar e viver


a doutrina. É assumir a letra das doutrinas e normas sem cuidar de seu espíri-
to e de sua inserção no processo sempre cambiante da história, que obriga a
contínuas interpretações e atualizações, exatamente para manter sua verdade
essencial. Fundamentalismo representa a atitude daquele que confere caráter
absoluto ao seu ponto de vista. (BOFF, 2002, p. 25)

Trabalhar por uma civilização mais humanizada, onde todos os seres humanos e natu-
reza serão respeitados, implica superar a realidade fundamentalista que é encontrada
por toda a Terra. A atual globalização capitalista é força e “imperativo” imposto pelo
primeiro-mundo a partir de um fundamentalismo que se assenta na política de um Mer-
cado totalitário. O Mercado proclama: “fora de mim não há salvação” – se considera
legítimo e todo-poderoso. A política imperialista, neo-colonialista que se impõe sobre os
povos e os países mais pobres da Terra, tem a ver com um fundamentalismo guerreiro,
conquistador que pratica uma geopolítica desumanizadora, desapiedada e cruel.

2.5 A EXPERIÊNCIA DE FÉ E AS IDOLATRIAS


A atual situação de insensibilidade e de exclusão em relação a dois terços da humani-
dade tem a ver com a experiência de fé.

O problema não é ter fé, mas, sim, em quem temos fé?

Estudo do Ser Humano Contemporâneo 83


Dimensões Políticas, Sociais e o Fenômeno Religioso

Quem é nosso Deus?

4 Em que ou em quem colocamos nossa Esperança?

O que significa vivenciar uma fé anti-idolátrica?

Como vivenciar a fé a partir do amor, preferencialmente dos que sofrem?

A sociedade contemporânea tem uma causa responsável pelo sofrimento dos seres hu-
manos e pela destruição da natureza. Ou seja, a policrise (crise de múltiplas dimensões:
ecológica, social, política, financeira, ética etc.) que atravessa a humanidade e que tem
levado a situações assustadoras (terrorismo; migrações dos povos pobres; refugiados;
fome; miséria; exaustão dos recursos naturais; guerras etc.) tem como um fator impor-
tante para o seu desencadeamento a crise antropológica.
“Há uma crise antropológica profunda: a negação da primazia do ser humano.
Criamos novos ídolos. A adoração do antigo bezerro de ouro (cf. Ex 32,1-35)
encontrou uma nova e cruel versão no fetichismo do dinheiro e na ditadura
de uma economia sem rosto e sem um objetivo verdadeiramente humano”
(FRANCISCO, 2013).

A experiência de uma fé idolátrica é preocupante porque os ídolos exigem sacrifícios de vidas


humanas e da natureza, em nome do progresso, do bom consumo ou do bem-estar. Inclusive,
a idolatria leva a perder a esperança no Deus da vida, a legitimar a morte do próximo.

A idolatria se dá pelo culto ao dinheiro, consumo, poder, ter etc. O ser humano endeusa
essas realidades e se submete a elas. Pelos ídolos se faz qualquer coisa!

Há um consenso em dizer que o problema no Continente latino-americano não é o ate-


ísmo, mas, sim, a idolatria:

Na América Latina de hoje, o problema central não é a questão do ateísmo, o


problema ontológico da existência ou não existência de Deus. [...] O problema
central está na idolatria como culto aos falsos deuses do sistema de opressão.
Mais trágico que o ateísmo é o problema da fé e da esperança nos falsos deuses
do sistema. Todo sistema de opressão caracteriza-se precisamente por criar deu-
ses e gerar ídolos sacralizadores da opressão e da antivida. [...] A busca do Deus
verdadeiro nessa luta dos deuses leva-nos ao discernimento anti-idolátrico dos
falsos deuses, dos fetiches que matam e de suas mortais armas religiosas. A fé
no Deus libertador, no Deus que revela seu rosto e seu mistério na luta dos pobres
contra a opressão, passa necessariamente pela negação e a apostasia dos falsos
deuses. A fé torna-se anti-idolátrica. (DEI, 1982, p. 7)

84
O problema é que os ídolos são deuses que sobrevivem às custas de sacrifícios de
vidas humanas e da natureza.

A grande questão é esta: como vivenciar uma Fé no Deus da vida


diante de tantos deuses? Uma fé anti-idolátrica que se opõe a uma 4
experiência que legitima o sofrimento, a exclusão e a morte dos po-
bres e vulneráveis. Estar na defesa e promoção dos “últimos” deve
ser o critério para o discernimento de uma fé que não comunga da
idolatria reinante, e nem legitima o genocídio e o ecocídio.

O que importa é cultivar uma fé que seja:

o grito fundo que me acorda do torpor egoísta e me faz perguntar pelo outro, por
meu vizinho, por minha filha, pela criança caída na estrada... Outras vezes está
na pura beleza da aurora de um novo dia, ou no entardecer luminoso de certos
dias de outono ou num sorriso ou num olhar que desmancha nosso coração de
prazer. Por isso espero... Que o coração não seja soberbo e ganancioso. Que
nos eduquemos para desequilibrar a instável balança de nossa vida, para não
destruir a beleza que nos rodeia, para não ficar indiferente à dor alheia, para
não sermos os únicos a participar do banquete de maravilhas que a Terra azul
nos oferece. Minha fé e minha esperança se encontram, se dão as mãos, se
assemelham, se misturam, se atraem, se conflitam, vivem uma da outra. [...]
Sim eu creio, tenho fé e espero... No pão partilhado de cada dia, na acolhida
ao estrangeiro, no cuidado ao órfão e ao velho, ao drogado e ao alcoólatra, às
vítimas de tantas guerras... Eu creio, apesar do real escurecido que meus olhos
vêem hoje... [...] O provisório da vida é o chão que pisamos e, é nele, que a fé
e a esperança crescem. Por isso, a fé e a esperança nas coisas pequenas e
aparentemente insignificantes nutrem a... vida, fazem... vida, sustentam... vida.
(GEBARA, 2015)

A experiência religiosa tem que ser vivenciada à luz de uma fé que ilumina, ampara,
motiva, encoraja a seguir vivendo na esperança e no compromisso por um mundo onde
todos serão acolhidos no banquete do amor, da justiça, da liberdade e da paz.

CONCLUSÃO
Nesta Unidade de Estudo, buscamos compreender como aconteceu o nascimento
da política, mais especificamente a política ocidental, na Grécia Antiga. Desde então,
esta instituição eminentemente humana sofreu muitas transformações e passou a ser
objeto de análise de diversos autores, desde Nicolau Maquiavel, passado por Max
Weber, até Hannah Arendt.

Também analisamos o conceito de política, que decorre do papel do indivíduo que


vive e participa da pólis e as novas concepções na contemporaneidade. Seja na con-
figuração da Grécia Antiga, seja no Estado-nação, o conceito de cidadania está pre-

Estudo do Ser Humano Contemporâneo 85


Dimensões Políticas, Sociais e o Fenômeno Religioso

sente como elemento fundamental da vida política. Percebemos que a cidadania e


a justiça social sofrem alterações e ampliam-se, à medida que os séculos elaboram
melhor a noção política.

A existência humana é coexistência, é convivência com a alteridade. Toda a relação hu-


4 mana é também uma relação de poder. O ser humano é capaz de solucionar de forma
responsável e comunitariamente as questões de convivência e de sobrevivência. Na vida
em sociedade, todos querem liberdade, igualdade, participação, responsabilidade e auto-
nomia, no entanto, ao mesmo tempo, o homem renuncia com facilidade estes valores. A
tarefa política do homem no século XXI é recuperar o Estado como instituição máxima e
administradora da vontade da maioria da população e de seus interesses comuns.

Nesta Unidade, vimos também alguns pontos importantes sobre o fenômeno religioso e
algumas considerações para compreender o ser humano, como:

O fenômeno religioso, que se manifesta de múltiplas maneiras e lugares, está presente


em todas as sociedades, mesmo naquelas que pretendem se livrar dele. No último meio
século, quando a religiosidade parecia se extinguir nos povos ocidentais, reapareceu
sob a forma de novas crenças e manifestações, muitas vezes desligadas das religiões
tradicionais e mesmo, algumas vezes, recusando o adjetivo “religioso”.

A espiritualidade é a vida humana conduzida à luz da experiência espiritual da vida hu-


mana. Não se desliga das coisas e atividades comuns, mas procura nelas a possibilida-
de de se encontrar com o divino. Contudo, é numa experiência de abertura à presença
do outro, sobretudo do outro necessitado, que se pode viver o encontro com o divino
que humaniza a vida.

Encontramos atualmente dois tipos de fundamentalismo: o religioso e o secularizado


(na política e nas relações econômicas, por exemplo). Todas as formas de fundamen-
talismo adotam postura de absolutização de suas posições e de recusa do diálogo e da
busca do entendimento. O resultado sempre é a violência. Trabalhar por uma civilização
mais humanizada, onde todos os seres humanos e natureza serão respeitados, implica
superar todas as formas de fundamentalismo.

A experiência de uma fé idolátrica se encontra em toda parte sob a forma de culto ao


dinheiro, ao poder etc. Isto preocupa, pois resulta em sacrifícios de vidas humanas e da
natureza, em nome do progresso, do bom consumo ou do bem-estar.

Todos esses pontos são chaves de leitura que podemos utilizar para interpretar as mani-
festações religiosas na sociedade em que vivemos e buscar experiências que permitam o
encontro com o divino e com o outro e, por isso, sejam verdadeiramente humanizadoras.

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