Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Brasileiro
Autora: Profa. Neusa Meirelles
Colaboradoras: Profa. Josefa Alexandrina da Silva
Profa. Ivy Judensnaider
Professora conteudista: Neusa Meirelles
Doutora em Ciências Sociais, na área de Ciência Política, pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita
Filho (1968). Desde 1992 é professora titular de Sociologia da Universidade Paulista, ministrando cursos de Sociologia
e de Ciência Política nos Institutos de Ciências Sociais e Comunicação, Ciências Jurídicas e de Ciências Humanas
da Universidade. Desde 1994 é Pesquisadora do Programa de Apoio à Pesquisa do Corpo Docente, da Vice‑Reitoria
de Pesquisa e Pós‑Graduação da UNIP. Desde então, desenvolveu vários projetos de pesquisa sobre música popular
e cinema nacional, sob uma abordagem foucaultiana, temas como o discurso das letras, corporeidade, inclusão e
exclusão social, ordem social e seu avesso, subjetividade e formação social. Concluiu, em 2014, pesquisa sobre a
subjetividade masculina construída pelo cinema nacional, e, ainda como pesquisadora, passou a integrar o Grupo
de Pesquisa e Núcleo de Estudos “Interdisciplinaridade: Movimento e Transformação”, desde sua criação, em 2014.
Desde 2005 produz textos didáticos para cursos presenciais que ministra na UNIP, em Sociologia Geral, Filosofia e
Ciência Política. No curso de Sociologia da UNIP EaD, Dra. Neusa é professora e autora dos livros‑texto das disciplinas
Sociologia da Comunicação (2013), Pensamento Político Moderno (2014) e Pensamento Social Brasileiro (2015). É
membro da SBS, Sociedade Brasileira de Sociologia, e da IASPM‑AL, Associação Internacional para Estudo da Música
Popular‑América Latina, em cujos congressos nacionais e internacionais tem apresentado trabalhos.
CDU 301
© Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou
quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem
permissão escrita da Universidade Paulista.
Prof. Dr. João Carlos Di Genio
Reitor
Comissão editorial:
Dra. Angélica L. Carlini (UNIP)
Dra. Divane Alves da Silva (UNIP)
Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR)
Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT)
Dra. Valéria de Carvalho (UNIP)
Apoio:
Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD
Profa. Betisa Malaman – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos
Projeto gráfico:
Prof. Alexandre Ponzetto
Revisão:
Vitor Andrade
Cristina Z. Fraracio
Sumário
Pensamento Social Brasileiro
Apresentação.......................................................................................................................................................7
Introdução............................................................................................................................................................7
Unidade I
1 Os primeiros tempos....................................................................................................................................9
1.1 O europeu tomou posse da terra e depois pensou o que fazer dela..................................9
1.2 Primeiro bosquejo da formação social, elites e subalternidade......................................... 10
1.3 Pensamento social inaugural, o europeu e o povo indígena.............................................. 11
1.4 Pensamento social inaugural, o europeu e o escravo africano.......................................... 19
2 Pensamento social e Brasil................................................................................................................. 26
2.1 O pensamento social e a autonomia política brasileira........................................................ 27
2.2 Pensamento social e as ideias brasileiras abolicionistas....................................................... 38
2.3 Pensamento social e as ideias liberais e positivistas brasileiras......................................... 42
2.4 Pensamento social brasileiro, urdidura de ideias e motivos................................................ 65
3 Sociedade, formação social e Estado no pensamento social brasileiro........... 67
3.1 O contingente negro na formação social brasileira................................................................ 67
3.2 O sertanejo e sua cultura rústica, a violência do sertão....................................................... 72
4 Os povos indígenas, estranhos brasileiros no pensamento social...................... 78
4.1 Formulação política no pensamento social, Estado e formação social.......................... 96
Unidade II
5 Tendências do pensamento social brasileiro e a Sociologia...................................119
6 Pensando o Brasil, integralistas e comunistas dos anos 1920 e 1930...............120
6.1 Pensamento social e os primeiros anos da Sociologia.........................................................124
6.2 Pensando o Brasil com as obras de Caio Prado Jr., Gilberto Freyre,
Sergio Buarque e outros..........................................................................................................................127
6.3 Pensamento social e político no ambiente do pós‑guerra: tendências........................131
6.4 A Sociologia paulista, tendências em formação....................................................................135
6.5 Ambiente político, tendências dos anos 1950 aos primeiros anos 1960.....................136
7 O sociólogo, portador de formação em Sociologia, pensando a
sociedade brasileira em processo de mudança ou de transformação...............138
7.1 A Sociologia crítica paulista de Florestan Fernandes e de seu grupo
da Sociologia I..............................................................................................................................................142
7.2 Tendências do pensamento social, ideias e personagens dos anos 1960 ao
Golpe de 1964..............................................................................................................................................144
7.3 Pensamento social brasileiro, ideias e instituições, Cepal e Iseb......................................149
7.4 O pensamento autoritário e resistência, bases teóricas e práticas políticas..............153
8 Pensamento social brasileiro, democracia à brasileira no
neoliberalismo e no pós‑neoliberalismo...................................................................................161
8.1 O pensamento social brasileiro à guisa de conclusão..........................................................164
Apresentação
A disciplina Pensamento Social Brasileiro abrange tendências de pensamento que circularam no país
desde sua constituição como colônia portuguesa, disputada por outras nações europeias, aos dias mais
recentes, nos quais pensar Brasil, sua cultura e sociedade, se deu de modo sistemático, no campo das
Ciências Sociais, de modalidades da Arte e no âmbito das alternativas políticas.
Para sistematizar conteúdo tão amplo, esse livro‑texto parte de uma questão simples: “afinal, o que
se entende por pensamento social?” A pergunta abre uma fresta de questionamento, e por ela o leitor
vai espiar e entrar em contato com um leque de indagações e de reflexões sobre o Brasil e os brasileiros
ao longo de sua história, uma trajetória resumida nas unidades deste material.
Os temas discutidos pela disciplina fazem parte do cotidiano do sociólogo, surgem nas salas de aula,
nas conversas de rua, e até mesmo são referências para o entendimento de letras da música brasileira e
filmes nacionais. Enfim, trata‑se de um conteúdo que integra o perfil profissional do sociólogo brasileiro,
refletindo a trajetória de problematização que deu origem à profissão.
Introdução
Iniciamos o livro com a seguinte questão: o que se entende por pensamento social brasileiro?
Nessa acepção, pensamento social brasileiro abrange uma variada produção, originária de distintos
campos das ciências, como História, Sociologia, Antropologia, Etnologia, Economia, além da Filosofia e
do Direito, campos afetados pela influência do iluminismo europeu a partir do século XVIII, e de outras
tendências de pensamento do mundo ocidental, notadamente nos séculos XIX e XX.
Em uma acepção mais ampla, o estudo do pensamento social, nesse caso o brasileiro, também
abrange a arte, o processo de reflexão e produção da literatura e do teatro. Compreende o jornalismo,
o cinema e letras da música brasileira popular. Em seu conjunto, envolve a constituição de um peculiar
discurso, não ancorado na lógica científica da reflexão, mas sustentado pela problematização dos fatos;
nessa dimensão de questionamento, esse discurso circula na sociedade, desvenda a vida, o poder, inspira
os sentimentos, explica as condições do cotidiano e as formas de sociabilidade.
Conquanto não se lhe possa reconhecer os foros de um discurso de verdade racional, como se
arrogam os discursos das ciências, os dizeres múltiplos dessa peculiar vertente do pensamento social
brasileiro se abrem como fresta na qual os brasileiros vêm questionando a existência ao longo das
gerações. Por isso, admitindo a relação entre emoção e razão, Theo Barros e Geraldo Vandré colocavam
para a ditadura, na voz de Jair Rodrigues, uma mensagem de reprovação ao movimento de repressão
que o país enfrentava.
8
Pensamento Social Brasileiro
Unidade I
1 Os primeiros tempos
1.1 O europeu tomou posse da terra e depois pensou o que fazer dela
Em um primeiro momento, o pensamento social se instaurou brasileiro, porque elaborado aqui, mas
tinha o Brasil e sua população na posição de Outro, ou de objeto. Como afirma Murilo de Carvalho,
(2007) “uma das características da chegada de espanhóis e portugueses ao continente hoje chamado de
América foi a incerteza em relação à natureza da coisa. Eram as Índias, era um mundo novo, uma ilha,
um continente?” Essa interrogação também se aplicou à terra “descoberta” (encontrada seria melhor) por
Cabral, e um indício nessa direção está na variação de nomes atribuídos à terra. Segundo o mesmo autor:
Ao longo dos séculos XVI e XVII, ela foi batizada com vários nomes. A disputa
sobre como grafar Brasil estendeu‑se até o século XX. E até hoje se discute
a origem do nome. Difícil imaginar outro país com tão grande dificuldade
de decidir até mesmo seu próprio nome. A nova terra foi denominada
Pindorama (antes de 1500), Ilha (Terra) de Vera Cruz (1500), Terra de Santa
Cruz (1501), Terra Papagalli (1502), Mundus Novus (1503), América (1507),
Terra do Brasil (1507), Índia Ocidental (1578), Brazil (século XIX), Brasil
(século XX) (CARVALHO, 2007).
Para o europeu que chegava, não eram os donos da terra o que importava, mas a terra, as
vantagens econômicas e políticas que adviriam de sua exploração. Aquelas “gentes”, os gentios,
eram vistos com estranhamento: eram ao mesmo tempo estorvo e fator necessário, amigo e inimigo;
apresentavam uma temível e inocente natureza humana, homens não apegados à propriedade, mas
defensores da terra e, com tudo isso, constituíam uma peça central a ser controlada no jogo da
colonização que se iniciava. Assim, no solo brasileiro, nos planos institucional, militar e comercial
foram se confrontando os interesses que dividiam o mercantilismo europeu, formando um mosaico
de conflitos e estratégias de poder.
9
Unidade I
O projeto português de exploração colonial da terra exigiu incorporar, aos poucos descobridores, dois
contingentes populacionais, ambos a serviço do colonizador europeu branco: os índios e os negros, os dois
representando trabalho e prazer: o trabalho extraído do corpo dos homens, o prazer, e também trabalho,
do corpo das mulheres, ambos na qualidade de mercadoria semovente, corpos escravizados à disposição
dos colonizadores e invasores (dos católicos, judeus e huguenotes; dos portugueses, espanhóis, franceses,
holandeses, todos brancos representantes da civilização europeia dos séculos XVI aos meados do século XIX).
Nesses termos, os interesses de exploração comercial transudavam nos olhares das personagens
que construíam o pensamento sobre a terra brasileira a partir de uma posição de sujeito. Pelo olhar de
avaliação interessada foram introduzidos os dois contingentes submetidos ao projeto colonial, ambos
dominados pela força das armas ou pela sedução da cruz: o índio, que era planta nativa encontrada na
mata, limpa e alimentada, em alguns casos oferecendo suas mulheres em casamento; o negro, que era
a “mercadoria resgatada”, originária das colônias do além‑mar, trazida com muito lucro, e algum custo
político, dada as relações complexas entre as coroas europeias.
Os dois contingentes ingressavam na “nova” terra, em uma condição de subalternidade que os vai
marcar, e aos seus descendentes, por gerações, embora tenham construído o país e participado das lutas
da independência.
Ao fim do século XVIII, a colonização comercial portuguesa dera origem a uma sociedade brasileira
segmentada em estratos sociais, distinguidos por preconceitos associados à origem, riqueza e cor da
pele, mas todos eles comportando gentes de todos os matizes, que eram frutos da mestiçagem sem
preconceito dos amores, dos fugazes, daqueles renegados, e da violência dos estupros.
Nessa “multidão” mencionada pelo autor estavam aqueles que tinham suas vozes silenciadas, mas
que tinham participado das guerras coloniais na defesa do território, os que figuravam na formação
social em uma diversidade de revoltas e trajetórias de resistência e, partir do final do XVIII, os que
integraram o processo de independência; mas pensar o Brasil a partir da peculiar posição de inserção
na formação social, a baseada na dependência ou no favor, como aponta Schwartz, apresenta de início
a dificuldade de examinar, ou de superar, a própria subalternidade. No entanto, o desenvolvimento do
pensamento crítico só será formado posteriormente e, por consequência, o pensamento liberal servirá
de base para pensar a sociedade brasileira.
eles mesmos logo perceberam as diferenças de posições e de interesses que os distinguiam, e ficaram
evidentes as contradições políticas e econômicas internas e externas às elites, entre elas e a população,
além das contradições entre interesses regionais e o governo central do Império.
Da autonomia política em 1822 à abolição em 1888 foram 66 anos em que os interesses das elites
preservaram as relações de trabalho no modelo escravocrata, ou o alteraram no mínimo possível,
resistiram às mudanças de lei, às pressões sociais e mudanças institucionais, políticas e econômicas.
No âmbito das discussões e dos confrontos partidários envolvendo a autonomia política, foi sendo
construído um liberalismo escravocrata, tendência de pensamento que, em variadas versões, combinou
interesses das elites com as palavras bonitas do discurso liberal. De qualquer forma, essa tendência
persistiu na concepção de democracia à brasileira.
Quando da chegada do europeu, a população nativa habitava essas terras há mais de 10 mil anos,
porém, vários dos grupos que presenciaram a chegada desapareceram, foram exterminados por doenças
– pelas condições às quais foram expostos – ou pelas guerras.
Darcy Ribeiro (1985) estimou enorme redução da população indígena brasileira: dos 2.431.000
indivíduos no século XVI, para cerca de 410.000 no século XX. Contudo, os dados do IBGE e Funai de
2005 registravam uma população indígena total de 358.000 habitantes, distribuídos entre 215 etnias e
falando 18 línguas. Isso significa uma redução no total da população em torno de 85% entre os séculos
XVI e XXI, ao contrário do que se passou com a população de africanos, que apresentou crescimento
populacional.
11
Unidade I
Depoimentos de náufragos europeus que viveram entre os índios, como o de Jean de Léry, francês,
e do alemão Hans Staden mostram que havia relações de escambo e trocas de produtos naturais por
quinquilharias, machados e facas; os europeus que passavam pelas aldeias eram acolhidos como
visitantes, recebiam uma mulher como “esposa”, tornando‑se aparentado com o chefe local. Os europeus
também faziam alianças com as aldeias e tribos e se submetiam aos padrões tribais de relacionamento,
sendo encarados como amigos. Esse nível de relacionamento não foi de monta a alterar o sistema
de organização tribal, embora introduzisse valores e interesses alheios à cultura indígena, como o do
trabalho remunerado.
Jean De Léry frequentemente incorpora essas alianças ao descrever sua viagem, mesmo quando ele
questiona a crueldade dos índios, seus amigos tupinambás.
Todavia, o sentido maior da vingança, inclusive apontado por Léry, estava em incorporar ao grupo
vencedor a coragem do inimigo vencido, valorizada durante o ritual tanto pela vítima como pelo
encarregado de matá‑lo. Segundo Ribeiro (1985, p. 34), foi por faltar coragem que Hans Staden se
salvou: “por três vezes os índios se recusaram a comê‑lo, porque chorava e se sujava, pedindo clemência.
Não se comia um covarde”.
Quatro séculos depois, Oswald de Andrade e Mário de Andrade ressignificaram o ritual da antropofagia,
sempre associado aos tupinambás, mas também adotado pelos tamoios, e o elegeram como metáfora
para denominar o processo de incorporação cultural e de relação entre cultura brasileira e estrangeira.
As populações indígenas integraram o projeto colonial mercantil de El‑Rei com o propósito de servir
de braço nos trabalhos agrícolas e de defesa do território; portugueses, colonizadores e padres não se
sentiam os novos donos da terra, mas emissários do rei, figura distante a quem pertenciam as terras
descobertas, as vidas e almas dos habitantes por vontade divina, segundo o papa.
com a produção do açúcar no Nordeste, passaram a fornecer índios para engenhos e fazendas, mesmo
porque ter escravos índios era sinal de abastança e de dignidade.
Incursões pelo sertão em busca de índios já era uma prática desde os tempos de Martim Afonso.
Contudo, “na primeira metade do século XVII, houve grande incremento no tráfico de índios, devido às
investidas paulistas contra as missões jesuíticas instaladas na bacia platina” (HOLANDA, 1963a, p. 278).
Esses índios já estavam “aculturados e aptos para o trabalho”, alcançando bom preço “nos empórios de
São Paulo, Santos, Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco”, embora fossem mais baratos que os escravos
africanos.
Nesses termos, a presença de brancos que aqui aportaram e que conviviam com índios se tornara
estratégica: por exemplo, os contatos entre a comitiva de Tomé de Souza, Primeiro Governador‑Geral,
na Bahia, com os índios foram facilitados pela presença de Diogo Álvares, o Caramuru, um náufrago
português amancebado com várias índias; assim como fora igualmente fundamental a participação de
João Ramalho junto a Brás Cubas e Martim Afonso no Sul. Esses portugueses também eram mercadores,
e praticavam a invasão de aldeias com apresamento; aliás, a escravização da população indígena
foi uma prática colonial adotada antes mesmo do “resgate” de africanos como escravos. Portanto, a
dinâmica das relações entre europeus e povos indígenas nas estratégias de colonização revela uma
posição de sujeito assumida pelo colonizador português, refletindo o discurso absolutista da monarquia
lusitana. Desse modo, pela “vontade de El‑Rei”, são justificadas as reais práticas de escravizar índios e de
ocupar as terras mais acessíveis e cuidadas, com os argumentos de moralização e catequização; todavia,
tais argumentos eram apresentados no ambiente político e religioso europeu. Junto aos indígenas, os
jesuítas enviados por D. João III mantinham os mesmos propósitos, mas os argumentos eram o medo
do pecado e a salvação da alma.
Quando povos indígenas reagiam a esse projeto de colonização lutando com as armas de que
dispunham, os conflitos davam início às “guerras defensivas” ou “guerras justas” que tanto marcaram o
período; as populações indígenas eram declaradas hostis, resultando apresamento de índios e ocupação
das terras. Nessas condições, restavam aos nativos duas alternativas: embrenharem‑se na floresta,
para além das fronteiras atingidas pelos brancos ou conviver com o invasor na posição de um objeto
submisso aos desígnios por ele determinados. As duas alternativas implicaram perda de elementos
culturais significativos e até mesmo no desaparecimento da maioria dos povos indígenas.
É importante notar que a ocupação do espaço pelas populações indígenas observava padrão cultural
associado à organização social, consistindo em núcleos de aldeias autônomas. O espaço das aldeias não
era demarcado por cercas, mas pelo reconhecimento de limites consensuais, culturais, não só permitindo
as trocas de produtos entre aldeias, como também dando origem a conflitos e guerras. Em algumas
culturas, esse padrão de ocupação era deslocado sistematicamente pelo território considerado daquela
nação ou grupo.
O colonizador, com armas e com evangelho, procedeu a um rearranjo nas peças desse mosaico,
a fim de facilitar o apresamento e a escravização, necessários à empreitada colonial, assegurando a
propriedade da terra e defesa do território contra interesses de outras nações. Enquanto o aldeamento
indígena estabelecia laços de sentido que uniam os povos à mata, aos seus lugares marcados pelos
13
Unidade I
mitos de origem, com implicações religiosas, aos limites culturais estabelecidos ao longo de um tempo
imemorial, o aldeamento jesuíta estabelecia a mata como um lugar de “coisas” a serem descobertas,
local habitado por “inimigos” que deveriam ser vencidos, uma organização de espaço projetando a ideia
da ocupação consentida à propriedade privada, de uma área comum, pública, extensão do poder do rei
ou dos senhores.
Momentos da história colonial brasileira que exemplificam esse processo foram: a Confederação
dos Tamoios, em meio à invasão francesa no Rio de Janeiro, a França Antártica; e durante a invasão
holandesa em Pernambuco. Três “heróis” indígenas emergem nesses momentos, os três posicionados a
favor dos portugueses: Tibiriçá (dos Guayaná), Araribóia (segundo consta, da tribo Temiminó, habitante
da Ilha de Paranapuã, atual Ilha do Governador), e Poti (ou Felipe Camarão, do grupo Potiguara, em
Pernambuco). Há semelhanças significativas nas trajetórias dos três chefes, situadas nos dispositivos de
poder colonial, dos séculos XVI e XVII:
Os heróis dessa guerra foram os favoráveis à dominação portuguesa. Já aos chefes dos grupos
resistentes não é reconhecida a mesma bravura e heroísmo, sequer há notícias de onde foram sepultados.
Seus nomes são relativamente esquecidos, por exemplo, Cunhambebe, pai e filho, Aimberê, Igaraçu,
Pindobuçu e seu filho Parabuçu. Sabe‑se apenas que foram mortos, os últimos a 20 de janeiro pelas
tropas formadas por indígenas e portugueses; quanto às tribos que chefiavam, elas foram extintas por
doenças e pela ação dos apresadores, sobretudo dos “valorosos” bandeirantes paulistas.
Para o europeu, não interessava que os povos indígenas se unissem em organização sólida, ao
contrário, era útil enfraquecer os laços de identidade, e para isso estavam os jesuítas com suas
promessas de proteção às aldeias à custa da catequização, do batismo e do trabalho. Ser reconhecido
e agraciado pelo conquistador poderoso, gozar de privilégios para si e para a tribo foram fatores que
pesaram na decisão desses chefes de negar a identidade indígena em troca de uma ocidentalização,
aliás, nunca reconhecida.
14
Pensamento Social Brasileiro
A primeira impressão que fizera Pero Vaz de Caminha sobre os índios, de serem eles “uma argila
moldável”, vai aos poucos sendo substituída por uma imagem de um povo bárbaro, sem lei, sem razão,
para o qual a religião imprimiria freios de submissão. “A sujeição política é a condição da sujeição
religiosa” conclui Cunha (1990).
No entanto, não faltava aos diferentes povos indígenas a percepção dos processos em que estavam
inseridos, aparecendo na reivindicação das terras que lhes pertenciam, e nas revoltas esmagadas com
violência. Contudo, um testemunho do desencanto diante das promessas do europeu, o entendimento
das práticas de poder vinha de longe, como se pode entender no depoimento do chefe Momboré‑uaçu,
da aldeia de Essauap, no Maranhão, em 1612, sob o título “Digo apenas simplesmente o que vi com
meus olhos”.
O discurso foi registrado pelo missionário Claude d’Abbeville, em sua História da Missão dos Padres
Capuchinhos na Ilha do Maranhão, de 1614. Beatriz Perrone‑Moisés o resgatou para o instituto
indigenista, na tradução de Sérgio Milliet (1945). Como explica a antropóloga, naquela situação, os
franceses buscavam apoio dos índios para a França Equinocial, logo depois retomada pelos portugueses.
O chefe Tupinambá Momboré‑uaçu fala do século XVII, quando as condições em que foram tecidas
as relações de poder na colônia portuguesa apareciam em novas configurações, e em outros ambientes,
agora no Nordeste, Maranhão, Bahia, Paraíba e Pernambuco. Seu discurso remete à aliança entre
Tupinambá e os franceses, cuja origem “é tão antiga quanto as primeiras décadas da Descoberta, mais
precisamente quando o franciscano André Thevet, embarcado com Villegagnon, publica As Singularidades
da França Antártica (1558), texto de grande repercussão na França” (MUNIZ SODRÉ, 2009).
O discurso do velho chefe Momboré‑uaçu vale ser ouvido na íntegra porque é a descrição de uma
experiência vivida:
Depois, começaram a dizer que não podiam tomar as raparigas sem mais
aquela, que Deus somente lhes permitia possuí‑las por meio do casamento
e que eles não podiam casar sem que elas fossem batizadas. E para isso
eram necessários paí [padres]. Mandaram vir os paí; e estes ergueram cruzes
e principiaram a instruir os nossos e a batizá‑los. Mais tarde afirmaram que
nem eles nem os paí podiam viver sem escravos para os servirem e por eles
trabalharem. E, assim, se viram os nossos constrangidos a fornecer‑lhos. Mas
não satisfeitos com os escravos capturados na guerra, quiseram também os
15
Unidade I
filhos dos nossos e acabaram escravizando toda a nação; e com tal tirania e
crueldade a trataram, que os que ficaram livres foram, como nós, forçados
a deixar a região.
Assim aconteceu com os franceses. Da primeira vez que viestes aqui, vós o
fizestes somente para traficar. Como os peró, não recusáveis tomar nossas
filhas e nós nos julgávamos felizes quando elas tinham filhos. Nesta época,
não faláveis em aqui vos fixar. Agora já nos falais de vos estabelecerdes aqui,
de construirdes fortalezas para defender‑vos contra os vossos inimigos. Para
isso, trouxestes um Morubixaba e vários paí. Em verdade, estamos satisfeitos,
mas os peró fizeram o mesmo.
Os caetés eram valentes, vigorosos, mas também antropófagos, e provocaram o ódio dos
portugueses quando, em 1556, mataram e comeram o bispo Pero Fernandes Sardinha e os náufragos
de sua comitiva. Mais tarde, poucos índios restavam da escravização e extinção sistemática decretada
por Mem de Sá, então governador‑geral, para fazer aliança com os portugueses. Na invasão holandesa,
os caetés resistiram e se deslocaram para uma aldeia cujas terras foram doadas aos índios em 1698
pelo governo português.
Os potiguares foram descritos por autores distintos como habitantes de região que abrangia Paraíba,
Rio Grande do Norte e parte do Ceará, como índios fortes e valorosos, que conseguiram resistir aos
colonizadores portugueses. Foram aliados dos franceses no litoral nordestino na instalação da França
Equinocial, de 1586 a 1597, e mesmo quando os franceses foram vencidos perdurou a aliança entre eles
e os franceses, assim como entre os tabajaras e portugueses.
16
Pensamento Social Brasileiro
Como o povo potiguar, que foi aliado dos franceses e holandeses, ao mesmo tempo forneceu um dos
heróis da “frente nativista”, o índio Felipe Camarão?
O índio Pedro Poty, guerreiro potiguar, primo de Felipe Camarão, lutou ao lado dos holandeses e
era um cristão reformado, assim como Antônio Paraupaba; os dois receberam formação religiosa na
Holanda, financiados pela WIC (Companhia das Índias Ocidentais), ambos considerados regedores da
Igreja Reformada no Nordeste do século XVII. Viração (2010) focaliza as duas personagens, Pedro Poty e
Antônio Paraupaba, a partir do vínculo estabelecido com uma Igreja Universal pela conversão religiosa:
ao primeiro, a autora reconhece a condição de mártir da fé e considera o segundo como legítimo
representante da mentalidade religiosa reformada: “tudo leva a crer que Paraupaba via o mundo com os
olhos de sua mentalidade religiosa, seu espaço era religioso” (VIRAÇÃO, 2010, p. 15).
Antonio Felipe Camarão foi batizado católico no dia 13 de junho de 1612, trazendo em seu nome,
Antonio em homenagem ao santo do dia, Felipe em homenagem ao Rei de Espanha, e Camarão, uma
tradução portuguesa para denominação de sua origem, Potiguar, “comedor de camarão”. No batismo
ele se vincula ao campo europeu católico, com uma “identidade traduzida”, por assim dizer, e deixa de
ser Poti, escolhe ser camarão. Ao fazê‑lo, também arrasta “uma de suas mulheres” para o batismo e
casamento católico: ela recebe o nome de Clara (possível referência à Santa Clara, antigo amor de São
Francisco de Assis).
Nessa nova identidade, nem indígena nem europeia, Clara e Felipe Camarão são reconhecidos
como valorosos, conforme transcrição da opinião de D. Domingas de Loreto no Dicionário Histórico e
Geográfico do Rio Grande do Norte:
Quanto a Felipe Camarão, ele recebeu o título de Dom, de Felipe IV, Brasão de Armas, foi alçado
ao cargo de Governador de Todos os Índios do Brasil, além de comendas e rendas. Moreira Jr. (2004)
analisa a constituição de terços, uma composição militar, originalmente espanhola, implantada nas
17
Unidade I
forças militares portuguesas e o processo de mudança operado a partir de então na estratégia de guerra
na colônia.
Até então as populações indígenas aparecem construídas a partir de olhares europeus, conforme os
distintos propósitos desses olhares, mas e quanto ao índio? Enraizado em “sua” terra, deveria negá‑la
como a origem de seus ancestrais e apagá‑los de sua memória; considerar‑se pecador de um pecado
que não conhecia e abrir mão de sua identidade, tradições, rituais, crenças e saberes. Assim, vazio de
tudo que lhe dizia respeito, vazio de si, tinha de se submeter ao outro, ao branco, e valorizá‑lo, trabalhar
para ele, dividir com ele suas mulheres, adquirir as doenças que lhe foram transmitidas, cobrir com panos
sujos seu corpo orgulhoso, colocar‑se como coisa, qual o barro dócil com que as mulheres modelavam
potes: exatamente como um pote de cerâmica, receber a civilização e a hóstia. Os bons potes poderiam
ser vendidos, os maus eram quebrados, ou seja, mortos.
Se a história vergonhosa da extinção de povos indígenas não ficou limitada ao período colonial
e se a expropriação das terras continua, as tendências mais contemporâneas se situam na direção
do resgate de identidades, na constituição de sujeitos coletivos e lideranças que estão fazendo outra
história, abrindo espaços e se construindo como sujeitos na formação social e, assim, alterando o espaço
subalterno que lhes foi reservado.
Saiba mais
18
Pensamento Social Brasileiro
Os dados estatísticos sobre a escravidão africana no Brasil são imprecisos, variam sensivelmente as
estimativas, mas inegavelmente o aporte populacional foi crescente e decisivo na constituição do povo
brasileiro: Pandiá Calógeras em 1927 estimou 13.5 milhões, Rocha Pombo em 1905, 15 milhões, Barão
de Taunay em 1941, 4.6 milhões, e Roberto Simonsen, 3.3 milhões. Outra estimava mais elaborada, de M.
Buesan, em 1968, chegou ao total de 6.32 milhões de escravos importados entre 1540 e 1860. Todavia,
o mesmo autor reconhece que boa parte dos recursos comprometidos com a produção de açúcar tenha
sido consumida na manutenção da “maldita mercancia”, como a intitulava Vieira, estimando em 160
milhões de libras ouro “o custo pago pela economia brasileira para aquisição de escravos nos 300 anos
de tráfico” (RIBEIRO, 1985, p. 160‑164).
Em sua chegada, o negro trazia de si apenas a memória de sua cultura como bagagem, porque tudo
o mais lhe havia sido arrancado. Logo, dois aspectos são fundamentais à análise da presença africana
na formação social brasileira: a) sua entrada no país, como escravo, coisa de uso, força de trabalho,
apropriada segundo critérios externos, de “serventia” para o outro; b) os processos de superação da
condição de escravo, abrangendo distintas estratégias, individuais e coletivas.
A História registrou nos quilombos não só o processo de rebeldia, mas a constituição de um sujeito
que se torna objeto da construção de si e organiza comunidades paralelas à ordem. Na verdade, a ordem
que o submetia suscitou‑lhe a rebeldia, o resgate de práticas de sobrevivência trazidas na memória
da colonização em África, a utilização de conhecimentos acumulados na empreitada de libertação e
de construção de comunidades quilombolas. Como diz Machado (1988, p. 19), “o poder é produtor de
individualidade, o indivíduo é uma produção do poder e do saber”.
Assim, o escravo insurgente buscava ser a si, superando ou contornando diferenças culturais,
vigilância e disciplina impostas pela ordem. Tais práticas implicaram planejamento e elaboração dos
possíveis para ação, uma experiência que se passa no âmbito do indivíduo, uma vez que ele busca
se constituir como senhor de si mesmo ou, mais precisamente, construir‑se como sujeito. O sujeito
“se constitui através das práticas de sujeição ou, de maneira mais autônoma, por meio de práticas de
liberação, de liberdade [...] a partir, obviamente, de um certo número de regras, de estilos, de convenções
que podemos encontrar no meio cultural” (FOUCAULT, 2004, p. 291).
Todavia, a construção da identidade negra na formação social brasileira foi um processo complexo, e
talvez ainda esteja em construção, plasmado nos modelos de subjetividade trazidos de culturas distintas, em
linguagens distintas, nas condições a que foram submetidos os africanos pela história à qual serviram. Esses
modelos constituem um campo de referência para análises, mas não são eles que definem o “ser negro” no
Brasil de hoje. Os relatos do colonizador e dos representantes de interesses europeus constituem o conjunto
discursivo que estabelece uma primeira versão sobre “essa gente” necessária à empreitada colonial e formação
do Estado brasileiro, um contingente trazido à força, marcado pela utilidade que teria para o outro.
Contudo, a escravização do africano não era invenção dos portugueses: nas nações coloniais, França,
Inglaterra, Espanha, Holanda, essa era uma prática corrente, aliás, uma das atividades comerciais das
companhias europeias para colonização das Américas; enquanto na Europa o negro era utilizado em
19
Unidade I
trabalhos domésticos e em menor número, no continente americano, no Caribe e nas possessões europeias
em África, o trabalho do escravo foi fator fundamental à sustentação do mercantilismo colonialista.
Buarque de Holanda (1960) registra desde meados do século XVI a entrada de escravos negros
no Brasil destinados ao trabalho na lavoura e outras atividades de colonização. Os paulistas também
participaram desse comércio, tanto que o Conselho Ultramarino baixou resolução tentando coibi‑los,
mas a prática continuou e ainda mais lucrativa.
De qualquer forma, em 1542, Duarte Coelho, então governador‑geral, trouxe uma “partida de
negros” da Guiné; em 1550, a metrópole autorizou outra partida para Salvador, embora negros escravos
chegassem também com o colonizador, como parte de sua “bagagem”. Um alvará de 1559 da metrópole,
dirigido ao capitão‑mor da Ilha de São Tomé, autorizava cada senhor de engenho “resgatar” para o
Brasil 120 escravos do Congo, pagando um terço dos direitos, ou melhor, dos impostos devidos à Coroa.
O comércio de escravos da África para o Brasil continuou prosperando ao longo do século XVI. No
entanto, com o domínio espanhol sobre Portugal e, por decorrência, sobre o Brasil, introduziu uma
alteração: o fluxo de escravos passou a ser formalmente dirigido para as possessões espanholas no
Caribe, pois os impostos representavam a metade do valor daqueles cobrados para partidas destinadas
ao Brasil. Nessas condições, o contrabando se tornou a alma do negócio, atendendo à demanda crescente
da colonização, apesar do controle espanhol.
Em 1587, Gabriel Soares, em seu Tratado Descritivo do Brasil, contabilizava em Salvador uma
população de 2 mil europeus, 4 mil negros e 6 mil índios. Muito mais tarde, quando Portugal já havia
recuperado suas possessões na África, Padre Antônio Vieira, defensor dos índios contra a escravização,
mas dúplice em relação à escravidão negra, sintetizava a situação: “Sem negros não há Pernambuco,
e sem Angola não há negros” (HOLANDA, 1960, p. 187). As ambições dos senhores de engenhos, assim
como os interesses econômicos da Coroa, os quais Vieira defendia, falavam mais alto que as dores
provocadas aos negros “no inferno dos engenhos”.
Na medida em que o escravo era visto como fator de produção, sobre ele incidiam os interesses
mercantilistas de portugueses, holandeses e espanhóis, e esses mesmos interesses determinavam a
origem preferencial dos contingentes, portos de embarque, rotas de navegação e portos de desembarque.
Contudo, o controle sobre o comércio de importação e exportação, mantido como privilégio da Coroa e
dos portugueses até o final do século XVIII, sofreu alteração substantiva com a abertura dos portos, em
1808, favorecendo os “negociantes” que se enriqueceram com o tráfico, especialmente na Bahia. Verger
(1987, p. 9) aponta quatro ciclos de origem dos escravos da Bahia:
Portanto, os povos que aportavam no Brasil eram distintos: do Benin chegavam os daomeanos
(Daomé, antiga denominação da República do Benin) de língua jêje, sendo que os nagô‑yorubá foram os
últimos a chegar. Os bantos, dos primeiros ciclos, falavam o português e se aculturavam mais facilmente,
já os que vinham do Benin se mantinham resistentes à aculturação, sobretudo pela presença entre
eles de prisioneiros de guerra de nível social elevado, além de sacerdotes ciosos de seu status e de sua
religião. Isso significa que foram trazidos à força para o Brasil, na qualidade de escravos milhões de
pessoas africanas, de culturas distintas, religiões e línguas distintas. Em três séculos, o trabalho dessa
população criou a riqueza da elite brasileira, e a combinação dessas culturas integrou a urdidura da
cultura nacional.
Para a economia colonial, o aporte do braço escravo era um comércio lucrativo, no qual Portugal,
França e Inglaterra tinham interesses, uma vez que as três nações coloniais tinham possessões na
África e estavam completamente envolvidas nas tramas da produção mercantil. Além disso, as questões
da política europeia, que afetavam a posição de Portugal e suas relações com a Holanda, incidiam
diretamente nas condições de operação do sistema comercial. Portanto, as qualificações da “mercadoria”
importada eram do conhecimento dos compradores, que faziam exigências sobre a origem do “produto”.
Verger (1987) aponta dificuldades em traficar na Costa da Mina, uma vez que os holandeses atacavam
as embarcações, fazendo que os preços se elevassem; mesmo assim, os negros da Costa da Mina eram
“mais procurados para as minas e engenhos que os de Angola, pela facilidade com que estes morrem”.
Contudo, para Portugal, a importação de escravos de Angola se apresentava mais vantajosa, não só
porque Angola era possessão portuguesa, mas porque esses escravos se apresentavam mais submissos,
menos afeitos às rebeliões. Em uma carta do vice‑rei às cortes, em 1723, consta: “os negros de Angola
não servem para o trabalho nas minas, só para trabalho doméstico, para reprimir rebeliões, devem ser
tomadas medidas adequadas” (VERGER, 1987, p. 62).
Franceses e holandeses também reagiram à construção do forte. Os primeiros logo perceberam que
os vínculos entre Portugal e o rei de Uidá não seriam rompidos facilmente: uma longa troca de presentes
e favoritismos havia garantido a preferência pelos lusitanos e, por decorrência, pelos brasileiros.
Esse fato demonstra o quanto o africano, ao ser tornado escravo, fora esvaziado de sua humanidade,
e, inserido na cadeia de produção mercantil, devia aguardar o embarque em um “entreposto” igualado
a outras mercadorias africanas como caroço e óleo de dendê, pimentas etc. Também como mercadoria
utilizável, esse ser objeto seria examinado nos mercados e apregoado para venda. Quem o comprasse, na
21
Unidade I
qualidade de seu proprietário, adquiria um trabalho em potência, avaliado pelos músculos, canela fina,
bons dentes, olhos vivos e procedência.
Os critérios diziam respeito a atitudes em face das imposições da escravidão e reações em face da
opressão: o desinteresse pelo trabalho, ausência de iniciativa, revolta, fuga e vingança; respostas comuns
em situações nas quais o sujeito se vê submetido a trabalhos forçados e em confinamento. Nessa mesma
situação, a rebeldia se reveste de coragem e audácia. O que é apontado como desinteresse pode ser lido
hoje como depressão ou banzo, doença que contaminou tantos escravos, levando‑os ao suicídio.
Basicamente, havia cinco alternativas abertas para o africano desembarcado como escravo no Brasil:
a) fugir para as matas, refugiar‑se em um quilombo, enfrentando capitães de mato e a violência do
colonizador; b) perambular pelos caminhos e estradas, arriscando‑se a ser pego, mendigar ou roubar,
tornando‑se assaltante; c) revoltar‑se, organizar movimentos de controle de cidades, libertando‑se à
força; d) submeter‑se ao sistema, suportando as práticas do colonizador; e) explorar estrategicamente
as limitadas possibilidades de alcançar a liberdade, ainda dentro do sistema. A história da escravidão
registra exemplos de todas essas possibilidades desde o período colonial ao longo do século XIX, mas a
situação do negro liberto por força da lei de 1888 apresenta outros contornos.
A fuga do cativeiro para formação dos quilombos tem início por volta de 1590, mas há dados
anteriores. Para os quilombos, fugiam escravos, índios e brancos pobres de engenhos e fazendas de todo
o país. O mais famoso foi sem dúvida o Quilombo dos Palmares, situado na capitania de Pernambuco,
hoje um município de Alagoas. Os núcleos populacionais ficavam na Serra da Barriga, eram organizados
e relativamente independentes.
Nina Rodrigues (1977) caracteriza três momentos distintos na história de Palmares: o período
holandês, destruído por Bareo (1644); Palmares da restauração pernambucana, destruído pela expedição
de D. Pedro de Almeida; e o Palmares terminal, aniquilado em 1697 por Domingos Jorge Velho. A
capacidade de organização, de desenvolver atividades produtivas e de preservar a liberdade como
22
Pensamento Social Brasileiro
princípio fundamental da vida coletiva foram características reconhecidas pelos autores que estudaram
essa sociedade alternativa em pleno período colonial. Combinavam‑se ali práticas sociais herdadas dos
colonizadores e aquelas trazidas da África, especialmente no que se refere ao exercício do poder no
contexto comunitário.
Moura (1981), focalizando o Palmares holandês, ilustra três tendências de reação: a primeira,
exemplificada pelo próprio Zumbi, seria a de luta e organização; a segunda foi a de participação
voluntária na luta ao lado dos portugueses, tendência ilustrada por Henrique Dias e outros; a terceira
foi a de se associar aos holandeses, ilustrada por Calabar.
O caso de Henrique Dias é emblemático: ele foi comandante do Terço dos Homens Pretos e
Mamelucos nas guerras de expulsão dos holandeses de Pernambuco; lutando a favor dos portugueses,
como mestre de campo, recebeu o hábito de uma das ordens militares e foi dispensado das ”provanças”,
que poderiam impedi‑lo, uma vez que, segundo Silva (2003), as leis “de limpeza de sangue da Península
Ibérica determinam que, para ascender à fidalguia ou receber comendas, o requerente deve estar limpo
de máculas de sangue mouro, judeu, negro ou índio até a quarta geração de seus ascendentes”.
A coroa portuguesa era tão zelosa da “pureza” de sangue quanto era da escravidão, recurso para
economia mercantil em que estava inserido o império português; portanto, os critérios de liberalização
não constituíam uma regra aplicável a todos os casos, mas uma graça ou mercê concedida pela Coroa.
O efeito era mais local que na Corte, onde os agraciados não deixavam de ser vistos com desprezo. Do
ponto de vista do agraciado, o título conferia elevação de status social e respeito, não necessariamente
riqueza. Enfim, uma prática de assimilação ao mundo dos brancos, de submissão aos valores da cultura
colonial em detrimento de sua própria origem. Desse último aspecto, pode‑se depreender o fato de
Henrique Dias ter se oferecido para lutar contra o Quilombo dos Palmares e só não foi pela recusa dos
vereadores de Salvador.
Em 1648, Henrique Dias descreveu seu regimento de homens pretos aos holandeses, mas, segundo
Nina Rodrigues, Dias estava possivelmente assustando os destinatários, desmentindo a placidez dos
Angola (os bantos), confirmando a ideia de os Mina (nagô e fanti) serem guerreiros, assim como
reafirmando a violência e destemor dos ardra (jejês e daomeanos).
A terceira tendência é ilustrada por Calabar, (se mameluco ou mulato, pairam dúvidas), personagem
histórica que se posicionou do lado dos holandeses depois de ter participado das lutas a favor dos
portugueses. Não há acordo sobre os reais motivos que levaram Calabar a se associar aos holandeses.
Contudo, pode‑se aventar a hipótese de que a Holanda representasse a perspectiva de um futuro
mais favorável aos negócios que o sistema português, e Calabar não foi o único a adotar essa posição
23
Unidade I
colaboracionista. Quanto a caracterizá‑lo por traidor, imagem que ficou na história, vale a pena
lembrar que Zumbi foi denunciado para as tropas legais por um dos seus lugares‑tenentes sob a
promessa de liberdade (MOURA, 1981). A se julgar por outros momentos, em que a liberdade foi
prometida em troca da participação em guerras, como os arqueiros negros do capitão Rodrigo, a
promessa não deve ter sido cumprida.
Nas condições dadas para sobrevivência no Brasil, não bastava ao africano transportar a experiência
de luta trazida da África, não era suficiente a identificação do inimigo, era necessário elaborar um
pensamento estratégico combinando a experiência adquirida de sobrevivência e de luta nas selvas
africanas com a recusa à submissão ao branco, visando à construção de um futuro, ainda que precário.
Por isso a luta contra a escravidão abrangeu práticas distintas, que iam da organização social em
quilombos, portanto uma forma coletiva, prevendo sustentabilidade, às práticas grupais de alcance
tático, como as guerrilhas, as revoltas localizadas em cidades, a utilização de recursos ou estratégias
individuais como a delação, sedução sexual, furtos sistemáticos etc. É preciso sublinhar que a adoção de
quaisquer dessas práticas implicou uma concepção estratégica, e um dado nível de consciência de si por
parte do grupo ou pessoa envolvida.
Três personagens da história brasileira desenvolveram estratégias particulares e, até certo ponto,
individuais, de enfrentamento na sociedade colonial, por isso suas trajetórias devem ser mencionadas:
Aleijadinho, Xica da Silva e Chico Rei.
Antônio Francisco Lisboa, Mestre Antônio ou Aleijadinho, exemplifica no século XVIII a desimportância
que lhe era atribuída pelos poderosos de Vila Rica, permitindo ao Mestre ironizá‑los em sua arte. O
escultor personifica o processo de articulação ambivalente entre arte e poder de vários exemplos na
História: enquanto a arte engrandece o poder e o preserva em uma suposta eternidade, o artista escapa
aos poderosos, e tentativas de submetê‑lo só lhe atingem na exterioridade, nas condições materiais de
sobrevivência, e não ao seu trabalho. Semelhante raciocínio é aplicável à música popular e também à
religião como forma de resistência cultural, a exemplo do Candomblé, a religião dos Orixás.
Xica da Silva e Chico Rei abriram espaço no ambiente das Minas Gerais do ciclo do ouro e diamantes,
regido pelas regras claras de poder e riqueza, mas que alimentava o avesso de ilegalidades, do qual Chico
e Xica se valeram. Ela, senhora de escravos ostentando riqueza, vivendo com o tratador de diamantes
João Fernandes, com quem teve 13 filhos, segundo Junia Furtado (2003), foi transgressora dos padrões
sociais reservados à mulher negra e pobre.
Chico Rei, na origem Galanga, rei do Congo, com suas festas de Congada e Reisados, valeu‑se
das normas do sistema para sorrateiramente miná‑lo: foi trabalhar na mina Encardideira e passou a
surrupiar ouro com a cumplicidade dos demais escravos. Depois de um tempo, conseguiu assumir as
dívidas do dono da mina e se tornou o primeiro negro dono de mina. Com os ganhos auferidos na
exploração, passou a comprar a alforria de outros escravos.
Ele ampliou o espaço conquistado no âmbito na sociedade colonial ao criar, na Igreja de Santa
Ifigênia e Nossa Senhora do Rosário de Alto Cruz, na antiga Vila Rica, em 1747, a primeira festa do
Congado, no dia de Reis; festa com danças e ao som de percussão na qual o rei do Congo é coroado. Sob
24
Pensamento Social Brasileiro
Sua trajetória exemplifica a tática de subverter as disposições de poder, abrindo espaços ambíguos
na ordem. “O processo descrito a partir da figura de Galanga/Chico Rei é o da negociação, ou da
possibilidade de inserção nas instituições, criando a sobrevivência através das brechas do sistema, da
dicotomia entre a ordem e a desordem” (HABERT, 2005, p. 27).
A violência dos governos só aumentava a resposta igualmente violenta dos grupos que, quilombolas
ou guerrilheiros, lutavam contra a escravidão. Embora não houvesse um discurso elaborado de
justificativa para a luta, ela se tornou sistemática, expressando a recusa em permanecer escravo; os
grupos eram desbaratados, destruídos, mas logo substituídos por outros, apesar da violência crescente
dos mecanismos de repressão. As penas aplicadas aos escravos capturados iam do enforcamento e
esquartejamento, às chibatadas em praça pública, envio para as galés por prazo indeterminado, às
marcas com ferro em brasa no rosto, uso permanente de correntes, máscaras de ferro, e até a proibição
de usar roupas de seda, mesmo para os libertos, mas os escravos permaneciam em sua luta.
Importante assinalar que a incorporação de índios e negros pelo português à economia colonial
em construção, na qualidade de força de trabalho necessária nas atividades produtivas e na guerra,
implicou reconhecimento e valorização diferenciada: na guerra, embora a participação fosse obrigatória,
alguns indivíduos foram distinguidos pela coragem com títulos e privilégios durante a colônia, e com a
promessa de liberdade depois da independência; aquele contingente dos que trabalhavam nas atividades
produtivas, nos engenhos, fazendas etc. tem valor econômico, individualmente reconhecido sob a forma
de preço no mercado, ou no valor da carta de alforria, visto que são, portanto propriedade dos seus
senhores.
Está subentendida nessa postura a desvalorização de pessoa, tanto dos povos africanos quanto da
população indígena, como elemento de uma das diferenciações que sinalizam poder, reconstruídas
na sociedade brasileira em formação, seguindo modelo europeu. Indivíduos desses contingentes são
tomados sob o critério da utilidade que possam ter em determinada situação ou momento. Esse sentido
aparece nas discussões do abolicionismo e nas situações de guerra em que emancipação e alforria
surgem como prêmio aos africanos e brasileiros negros que participassem.
Com certeza, pensar o Brasil é pensar a diversidade, mas também pensar a constituição dessa
diversidade, processo histórico que abrange a todos. Essa parece ser a grande questão: quem são aqueles
que se inserem na simples palavra “todos”? A resposta remeteria a uma modalidade de pensamento que
ultrapassaria as diferenças entre os elementos integrantes como fatos para considerar as condições que
instalaram a pertinência desses elementos na formação do conjunto de semelhantes.
Já discutimos essas condições nesta obra, embora superficialmente, e agora vamos tratar dos
assuntos dois quais resultou um processo de individualização do conjunto de população brasileira em
uma dada organização política, Estado, que correspondeu à dada nacionalidade, brasileira.
Nesse sentido, o pensamento social que se intitulou brasileiro não seria mais pela simples razão de
ter sido desenvolvido aqui, mas por tomar como objeto o conjunto da população brasileira e por ter
vínculo originário com essa mesma população. Em outros termos, trata‑se da construção discursiva do
social a partir da inserção particular na sociedade em formação; o sujeito construtor desse discurso
estaria munido de certo instrumental teórico, tornando‑o habilitado para superar o nível das simples
opiniões e impressões para pretender remeter o discurso ao campo de um suposto saber.
26
Pensamento Social Brasileiro
Nas páginas que se seguem, são examinadas as condições de elaboração desse discurso, pressupostos
e pretensões que nem sempre o tornaram verdadeiro, bem como algumas variações.
Várias facetas merecem ser realçadas na análise da constituição do pensamento social brasileiro em
meio do processo de construção da autonomia política, as quais são comentadas com o foco no processo
em que ocorreram: a) a peculiaridade do processo brasileiro de rompimento com o vínculo colonial: apesar
de vários movimentos internos favoráveis, a independência se deu em meio a condições internacionais
desfavoráveis a Portugal, com a participação do Príncipe Regente e anuência do rei D. João VI; b) o
discurso político da independência, de fundamento liberal, contraditava a prática conservadora das
elites e do Imperador instalado no trono brasileiro; c) a constituição de 1824 mantinha um quarto poder
pessoal e centralizado na figura do Imperador; d) mantinham‑se inalteradas as condições econômicas
que emperravam a economia brasileira, o trabalho escravo e o acesso à terra; e) a constituição da elite
patrimonial e a utilização de um discurso liberal escravocrata; f) os mecanismos de assujeitamento na
preservação da ordem; g) a manutenção da ordem e as raízes do militarismo na política.
A discussão da autonomia política estava nos círculos intelectuais de Minas, Bahia, Rio e Pernambuco,
e era alimentada com as ideias iluministas de liberdade, independência e racionalidade, pautando‑se no
descontentamento com o obscurantismo absolutista português.
Conquanto sejam ideias coerentes com o capitalismo europeu, elas são inadequadas para pensar
uma sociedade em que a maioria da população está fora das relações capitalistas de produção, porque
constituída por contingentes de agregados e de escravos. Somente algumas áreas oferecem condições
para circulação daquelas ideias, porque a mineração havia propiciado uma vida urbana e a formação de
segmentos médios.
De qualquer forma, havia disposição à luta armada por melhores condições de vida, demonstrada
por movimentos e revoltas por todo o Brasil desde antes da chegada da Família Real, mas essa
disposição é intensificada a partir dos primeiros indícios de autonomia política. As províncias de Minas
27
Unidade I
Gerais e Rio manifestaram esse impulso, sendo a Inconfidência Mineira uma referência, porém não
o único momento em que mineiros pegaram em armas e tramaram, no âmbito político, os caminhos
da história brasileira.
Inegavelmente que a vinda da família real portuguesa para o Brasil em 1808 contribuiu no processo
de autonomia política. A família atravessara o Atlântico com grande bagagem, fugindo de Napoleão e
deixando em Portugal, além da revolta do povo, um comandante inglês “regendo” os negócios lusitanos.
Uma providência tomada logo depois da chegada em Salvador foi abrir os portos brasileiros às “nações
amigas”, e depois a família se dirigiu ao Rio.
Beiguelman (1967, p. 41), apoiada em Oliveira Lima, comenta os efeitos das vantagens especiais
conferidas às importações inglesas, instaladas mesmo em detrimento do comércio metropolitano:
Com efeito, dado o fácil acesso das firmas britânicas aos centros de
produção manufatureira, o comerciante brasileiro se vê progressivamente
confinado a um papel de mero revendedor, ou adstrito ao tráfico africano
(comércio de negros, concomitantemente de cera, marfim etc.). Nessas
condições, configuram‑se dois grupos de interesses distintos e divergentes:
o do comércio monopolista tradicional, que até então fora dominante e com
a abertura dos portos se vira sobrepujado pela organização britânica; e o do
comércio desenvolvido com a expansão das trocas, e que seria prejudicado
na hipótese de um retorno às práticas monopolistas.
Nessas condições, mesmo os produtos portugueses estavam sendo substituídos por similares
ingleses, estendendo o descontentamento para a Metrópole. Na profusão de mercadorias, o escravo
era apenas uma delas, “peça” valorizada, durante algum tempo importada legalmente para o Brasil, e
mesmo depois, ainda ilegalmente, o comércio continuava muito lucrativo, porque a proibição só fez
elevar o preço das “peças” e o lucro.
Com a instalação de D. João no Rio, foram tomadas medidas iniciais de organização e administração
do Estado, alterações na estrutura de poder já instalada, “quando a Coroa avocou para a Guanabara a
justiça e administração de toda a Colônia e dos territórios africanos e asiáticos” (HOLANDA, 1962, p.
143). Foram instalados no Rio os tribunais do Reino, órgãos de administração da monarquia portuguesa,
inclusive aqueles cuja função era a censura. Em contrapartida, providências foram tomadas visando à
preparação para a guerra e medidas de integração do território nacional, essas a cargo do Conde de
28
Pensamento Social Brasileiro
Linhares. Atendiam a preocupações estratégicas, mas também facilitavam a integração entre zonas de
produção e centros consumidores, como a carne do Sul para o Rio.
A integração com o centro do poder no Rio era decisivamente importante nas regiões do Norte, no
Grão‑Pará, pois o contato com a Europa era mais fácil que com o Sul. Desse modo, a região era mais
sensível à política ditada de Lisboa que às decisões emanadas pelo regente D. João. Esse problema se
arrastou, dando origem à revolta da Cabanagem, já em meados do Império.
Apesar das pressões, sobretudo britânicas, para retorno a Portugal, D. João resistiu, decidindo retornar
com a Revolução Constitucionalista do Porto, em 1820, aliás, um dos efeitos da situação em que se vira
colocada a economia portuguesa.
Em 1821, a Família Real retorna ao país para salvar o que sobrara da monarquia, deixando na
ex‑colônia um Reino Unido de Portugal e Algarves, um Banco do Brasil espoliado em 50 milhões
de contos, o ambiente de articulação para autonomia política e um Príncipe Regente a quem o Rei
recomendara “colocar a coroa sobre a própria cabeça, ao invés de deixá‑la para algum aventureiro”. O
filho voluntarioso, um romântico sensual, nesse caso, foi obediente.
O “povo” era constituído por uma mistura de escravos alforriados, outros “escravos de ganho”,
pequenos comerciantes, artesãos e os segmentos mais simples das milícias. A imprensa circulava para os
poucos letrados, especialmente na “corte” Rio de Janeiro, e em algumas capitais das províncias. A elite era
constituída pelos integrantes da Corte que vieram de Portugal acompanhando a Família Real em fuga,
e pela “nobreza” instaurada às pressas por D. João VI, uma “nobreza” sem raízes, numerosa e muito mais
interessada em se preservar. Além desses segmentos, os ricos comerciantes exerciam o poder dos préstimos
de sua fortuna, e os senhores da terra, fazendeiros do açúcar e do café em fase inicial, exerciam poder em
suas regiões, mas se tornaram cada vez mais importantes no jogo das tendências políticas do período.
É verdade que em 1817 irrompera em Recife uma rebelião cuja origem estava em questões
administrativas, na demora na condução de processos, mas esse levante, que tinha inspiração liberal e
29
Unidade I
coloração republicana, foi facilmente vencido. Contudo, a circulação de livros importados, assim como
as discussões com estrangeiros que chegavam cada vez em maior número, favoreceram ao povo ir
“tomando consciência do seu papel de centro político da nação” (Ibidem, p. 154).
Essa circulação de ideias era propiciada pelos centros de ensino instalados, os círculos de leitura e
outras organizações, como Os Cavaleiros da Luz, loja maçônica à qual pertenciam os principais líderes
do movimento de 1817. Lá discutiam Rousseau e Voltaire e estavam interessados em estabelecer uma
república. Embora a discussão política das ideias iluministas não fosse aberta a todos os segmentos
sociais, circulando entre membros das elites, elas eram utilizadas na mobilização dos mais pobres.
Os revolucionários de 1817 pertenciam às melhores famílias da terra. Eles alegaram em defesa que
não podiam ter participado da conspiração, pois desfrutavam da melhor situação econômica e social,
sendo ‘membros da primeira nobreza de Pernambuco, educados na disciplina das diferentes classes e
ordens da sociedade’ (Ibidem, p. 32).
Em qualquer das duas versões, tais ideias de liberdade e igualdade, inerentes à matriz do ideário
burguês, não remetem à vivência da prática política, mas tão somente à prática de um discurso comum.
Embora Buarque de Holanda não aceite a denominação de “liberalismo de fachada”, pode‑se dizer
que a revolução que eclodiu na Bahia em 1821 de tom liberal foi inspirada na Revolução do Porto
(Portugal) de 1820, mas na Bahia seus líderes reproduziram a contradição de ser, ao mesmo tempo,
liberal e escravocrata. A Revolução do Porto, de caráter constitucionalista, influenciou sob este aspecto
a da Bahia, mas também despertou nos brasileiros a percepção de que havia um forte sentimento
contra o Brasil em Portugal esposado pelas cortes. Talvez nem fosse tão grave assim, mas o fato é que,
despertado, alimentou a postura nativista e antilusitana, servindo para mobilizar a população.
De fato, a movimentação das elites após 1821 e a sensibilização dos segmentos populares anunciavam
que a autonomia política seria uma questão de pouco tempo e de várias articulações, nas quais José
Bonifácio e outros tiveram papéis significativos, acelerando o processo, ou mesmo o retardando.
Pai e filho (D. João VI e D. Pedro I) representavam momentos contíguos, mas diferenciados da História:
o pai, bonachão esperto, mantinha‑se na tradição absolutista da Casa de Bragança, dela fazendo uso,
embora antecipando o seu desaparecimento; o filho, impulsivo, reformador, afeito ao militarismo das
lutas, promete defender a Constituição antes mesmo de ela ter sido criada, partilha de ideias liberais,
ingressa em um dos centros de sua difusão, a maçonaria, por influência de José Bonifácio. No entanto,
apesar de tudo, sua formação no absolutismo falou mais alto em sua prática como imperador do Brasil,
enquanto seus vínculos com a dinastia e a oposição local o levaram mais tarde a abdicar do trono e
retornar a Portugal.
As ideias liberais do imperador o aproximavam dos nacionais, mas não iam além da aceitação da
monarquia constitucional, enquanto os decretos das Cortes de Lisboa, determinando seu retorno e a
extinção dos tribunais no Rio, tiveram o poder de despertar em D. Pedro a reação que o velho Bonifácio
aguardava: Pedro, o liberal brasileiro, transgrediu ordens de Lisboa, ficou no Brasil quando deveria voltar
obediente para Portugal. Finalmente ele seguia o conselho do pai, e, segundo se diz, tomava providências
para colocar em sua cabeça uma nova Coroa, a do Brasil.
As tarefas que então se colocaram eram enormes: assegurar a unidade da nação, organizar a
administração e, principalmente, tomar providências para eleger uma Constituinte. Tais tarefas não
poderiam demorar, e deveriam ser realizadas com determinação, mas as divergências políticas dividiam
31
Unidade I
apoiadores em correntes políticas: o velho Bonifácio, que apoiara Pedro, “desconfiava muito do rojão
liberal em andamento, e em particular dos seus portadores mais conspícuos em 1822” (HOLANDA, 1962,
p. 167). Ele recomendava cautela e medidas que demonstram grande antevisão, como desenvolvimento
da indústria, controle sobre a questão das terras, fortalecimento do exército, interiorização do governo
e o fim da escravidão.
No campo liberal, Gonçalves Ledo apressava as decisões, que eram apoiadas pela maçonaria, da qual
José Bonifácio e Pedro faziam parte. De qualquer forma, a Maçonaria estava “por trás”, ou na frente, dos
liberais encaminhamentos para a Constituição, mas Bonifácio fundou o Apostolado, outra sociedade
secreta que pretendia dividir as opiniões.
Declarada ou aclamada a independência do Brasil, era forçoso criar um Estado, definir seu perfil,
o que só seria possível por uma Constituinte, instaurando formalmente o Estado, atribuindo‑lhe
finalidades, funções e competências governativas associadas ao poder de governo, mas estabelecendo
também suas limitações. Para que a Constituinte fosse instalada, seria necessário convocá‑la e garantir
previamente o juramento do soberano em acatá‑la e respeitá‑la. Esse juramento prévio de obediência
não foi conseguido por Gonçalves Ledo.
Saiba mais
Para Buarque de Holanda, instalava‑se no Brasil uma monarquia liberal, mas que insistia em preservar
o poder pessoal do Imperador como um filtro das tendências, um Poder Moderador, como se subentende
na fala do Imperador aos constituintes de 1823:
32
Pensamento Social Brasileiro
Variantes das ideias francesas e das liberais de origem inglesa e até americana circulavam entre os
jovens que iam estudar na Europa, filhos dos senhores do açúcar, dos ricos traficantes de escravos, dos
comerciantes endinheirados, portanto não eram desconhecidas das elites. Contudo, estar informado
sobre essas ideias não significa adotá‑las, muito menos trazê‑las para o âmbito da prática política...
A centralização do poder, que fora um traço do regime colonial, mantido em parte durante a
organização do Reino Unido, já com Pedro de Alcântara no comando, parecia que seria preservado com
a independência, dando origem às lutas e primeiras revoltas regionais.
As lutas em que se envolveram as populações das províncias brasileiras, no período que se estende
de 1808 a 1831, não podem ser compreendidas apenas como manifestações de um processo de
autonomia, ou de sentimento antilusitano, visto que D. Pedro I era português. Foi um processo de reação
ao centralismo imperial, que não cessou com a abdicação, ao contrário, foi até estimulado a partir da
inclusão do princípio de representatividade, inserido no Império com o Ato Adicional.
Nesses termos, a reação ao centralismo não se limitou à reação ao absolutismo monárquico, mesmo
considerado em sua vertente constitucional, liberal conservadora. Na verdade, as reações caracterizaram
um processo de “autodeterminação” das várias populações regionais, com seus respectivos problemas,
objetivos de luta e propostas.
Isto significa que o federalismo, tese dos republicanos, nasceu para acomodar em um “comum
partilhado da nacionalidade” as diversidades que haviam feito a história do estado real e, de certo modo,
talvez canhestro, tenha sido esse “comum” que Pedro I tentou representar sem sucesso ao longo de sua
trajetória, e com maior eficiência foi o papel de Pedro II.
Pode‑se argumentar que o federalismo nas condições sociais brasileiras, especialmente do final ao
Segundo Império e Primeira República, tenha favorecido às oligarquias, aos mandonismos regionais de
toda sorte, em detrimento da formação política e ideológica dos grandes contingentes da população.
O argumento é parcialmente aceitável, mas deixa a descoberto as condições sociais e econômicas
da vivência desses grandes contingentes. De qualquer forma, não é o arranjo institucional que cria a
33
Unidade I
realidade, visto que ele é formal; a realidade política é construída no processo político, o que implica
em prática política, portanto na democracia, um conceito temido ao longo do Império e da Primeira
República.
Era uma espécie de “liberalismo oligárquico” que deveria ser assegurado pelo poder forte do
Imperador e ser exercido, segundo a lição positivista de Benjamim Constant, como Poder Moderador,
supostamente neutro, como dimensão do Poder Executivo, da administração, mas ainda por garantia,
articulado a um Conselho de Estado vitalício.
Assim, a construção da organização do Estado brasileiro se fez em meio às lutas entre tendências
do pensamento liberal, limitações ao absolutismo monárquico, diversidade de interesses regionais
organizados em oligarquias, contra o centralismo do Império. Talvez se possa apontar um denominador
comum às tendências “liberais”: a preservação da ordem, ou seja, da preservação do trabalho escravo e
dos negócios lucrativos que esse comércio proporcionava.
Bosi (1988, p. 199) discute os sentidos do liberalismo brasileiro partindo de uma questão
aparentemente simples: “o que pôde, estruturalmente, denotar o nome liberal, quando usado pela classe
proprietária no período de formação do novo Estado?” Em resposta, ele enumera quatro significados
para o termo “liberal” associando‑os às condições históricas, nas quais foram utilizados, isoladamente
ou combinados:
As quatro variantes de sentido liberal citadas por Bosi têm por referência os novos segmentos médios
da formação social, aqueles que pela renda e qualificação podiam ser votados e votar, os segmentos
das elites, dos que detinham capital para aquisição de terra e participar da expansão da agricultura de
exportação, e aqueles que detinham capital para participar da expansão do segmento urbano e dos
serviços da economia agroexportadora. A maioria dos trabalhadores urbanos e rurais, ainda homens
livres, ocupavam posição subalterna, eram submetidos ao assujeitamento.
Vejamos a seguir as tendências no liberalismo nacional que atravessam os anos da Constituinte até
o final da Regência:
Essa frase sempre foi lembrada como argumento em todas das ditaduras e golpes, sempre que,
de algum modo, o povo reclamou seus direitos. Em 1834 foi editado o Ato Adicional à Constituição
de 1824, conciliando tendências radicais e moderadas, reforçando o poder das municipalidades e dos
governos provinciais, porém nada foi alterado quanto à escravidão ou em relação à questão das terras.
No principal ambiente político brasileiro depois da independência, a Corte, fazer política implicava
alcançar alguma projeção social, ter acesso às rodas palacianas e, para isso, a imprensa constituía um
caminho mais fácil. Isso porque a habilidade com o discurso e o traquejo com o jogo das palavras se
tornaram atributos valorizados para o manejo de ideias com finalidade de convencer, mas sem a adoção
de seu conteúdo, ou ainda, para divulgar opiniões que viessem ao encontro de expectativas correntes,
mas não explicitadas.
Esse desempenho era possível aos bem nascidos ou bem apadrinhados, portanto a formação intelectual
se tornou decisiva, de preferência em instituições europeias ou nos cursos jurídicos instalados no Brasil.
Em paralelo a esse traço “bacharelesco”, tornou‑se também fundamental desenvolver estratégias de
aproximação com a Corte, prática que envolvia desde a circulação de informações “à boca pequena” até
as apresentações estabelecendo vínculos de família e, evidentemente, de riqueza.
Enfim, o período que antecedeu a promulgação do Ato Adicional à Constituição, em 1834, tornou‑se
agitado pela luta política entre restauradores, representados pelos Andradas, e exaltados nas lutas nas
províncias. “O Ato Adicional apresentava‑se, pois, como uma concessão tanto aos restauradores (por
manter o Poder Moderador e o Senado vitalício) como aos exaltados (em vista do poder conferido às
Assembleias Provinciais)” (BEIGUELMAN, 1967, p. 59). Segundo a autora, um reflexo dessas mudanças
consiste na formação de “partidos de patronagem”.
Até aí, os motivos da adesão política haviam sido canalizados para uma
disputa essencialmente doutrinária, centrada na divergência entre esquemas
institucionais. Já os dois novos partidos que passam a estruturar‑se, tenderão
a uma analogia do ponto de vista doutrinário, competindo essencialmente
no terreno da apropriação das vantagens de ordem diversa, proporcionadas
36
Pensamento Social Brasileiro
Tais condições permitiram perceber que a utilização da imprensa no período servia a vários
propósitos, reproduzindo, na regência, a prática adotada durante o Primeiro Império, porque a “política
imperial não vivia exclusivamente de partidos, habituava‑se também às notabilidades palacianas, visto
os imperadores sempre manterem ao seu lado pessoas de confiança para coadjuvarem no governo e
administração do Império” (BENTIVOGLIO, 2010, p. 249).
Os artigos de jornal veiculavam ideias de autores europeus como Bossuet, Bentham, Mill, Montesquieu
e Hume, reforçando o discurso e a suposta competência de seu autor em torno de uma posição moderada.
Nesses termos, o ambiente que serve de lastro ao pensamento social brasileiro que se ocupa da
escravidão (ou da abolição) é cultural, mas ao mesmo tempo é militar e palaciano. Militar, porque havia
revoltas em todo país, além da Guerra Cisplatina; palaciano, dada a ambição por notoriedade e cargos
entre os membros das elites, para os quais, participar dos círculos das cortes era visto como caminho
de acesso aos cargos à disposição do Executivo; e cultural, visto que havia valorização de uma postura
intelectual, demonstrada pela imprensa e por discursos exaltados nas tribunas, mas não radicais.
Assim, durante a Regência e o Segundo Império, o poder se dividiu entre os que usavam cartola,
fraque, casaca preta e gravata dos urbanos, políticos, intelectuais, comerciantes ou banqueiros, e os
que portavam as armas e a farda dos militares de patente, sobretudo a espada prateada, pendurada à
cintura, ameaça silenciosa, se contida na bainha, ou afirmação de coragem e destemor, se erguida aos
céus, pela mão direita de um cavaleiro. Os dois grupos integravam a dinâmica política de concepção
do Estado e de seu ordenamento governativo. Em ambas as questões a defesa da ordem, reservada ao
militar, constituía fator decisivo para a relevância atribuída aos militares, com suas espadas e armas,
delineando‑se, na cultura política, a imagem de “herói” da pátria. É assim que aparece Pedro no famoso
quadro de Pedro Américo, mas o marechal Deodoro da Fonseca declarou a República acenando um
modesto quepe.
Nos tempos de guerra, o militar eleito como referência na cultura brasileira era o homem do
exército que ostentava farda, representava “a força na defesa da pátria e da ordem”. Ele também era
um intelectual, discursador competente na visitação aos conceitos clássicos da política. Assim, vários
dos integrantes das elites políticas em trajes civis tinham um passado militar. De resto, a junção entre
o poder econômico dos grandes proprietários nacionais e a ação militar fora realizada com a criação
da Guarda Nacional em agosto de 1831, um recurso de Feijó para assegurar a unidade nacional contra
sublevações, fortalecer a Regência com o apoio das oligarquias regionais, arrebanhar recursos para o
governo, bem como desarticular milícias e forças municipais que representavam ameaça.
37
Unidade I
O confronto entre herói local com a força militar nacional instaura uma dinâmica perversa: o
civil armado é legitimado pelos reclamos de seus iguais ou próximos, dadas às condições sociais
precárias abertas na formação social; a ele anima a luta por mudanças políticas e institucionais,
e no Império, as lutas pela abolição e a esperança nas ideias republicanas; o segundo, o militar,
é apoiado no estatuto da legalidade formal, e da autonomia militar, garantida nas constituições;
anima‑o a obediência, o princípio da disciplina, a crença na glória de defender a pátria contra os
inimigos apontados pelos seus superiores. Seu papel corresponde à diferenciação reservada ao
militar em face do poder civil.
Era previsível o fim do sistema escravocrata. Nesse sentido, somavam‑se os argumentos humanitários,
os liberais e, principalmente, os pragmáticos. Além do mais, o custo dos escravos, as fugas e rebeliões
acentuavam as vantagens da imigração europeia ou asiática, tanto para o trabalho agrícola quanto para
o urbano, na construção civil etc.
Do ponto de vista da política externa, desde 1810, Inglaterra e Portugal haviam acertado um
calendário para abolição, mas mantendo a escravidão nas colônias portuguesas. Quando da Constituinte,
em 1823, José Bonifácio, com apoio de Pedro I e oposição dos conservadores, propôs a abolição gradual
da escravatura. Em 1826, finalmente é assinado um acordo entre Brasil e Grã‑Bretanha, e então ficou
estabelecido um prazo de três anos para cessar o tráfico de escravos entre África e Brasil. Na verdade, o
limite não foi obedecido, e o tráfico até aumentou...
Em novembro de 1831, durante a Regência, Feijó assinou a Lei nº 37.659, destinada à repressão ao
tráfico; a lei proibia a entrada de novos escravos no Brasil, excetuando‑se os que estavam a serviço
das embarcações cujas bandeiras permitissem escravos. Essa lei tinha por objetivo apenas mostrar aos
ingleses que o governo regencial estava obedecendo aos termos do tratado assinado com a Inglaterra.
38
Pensamento Social Brasileiro
Enfim, era uma lei “para inglês ver”, que origina a expressão usada para designar coisas ou atitudes
falsas, limitadas à aparência.
Em agosto de 1845, o parlamento inglês aprovou o Bill Aberdeen, um Ato (Slave Trade Suppression
Act) conhecido no Brasil pelo nome do Ministro do Foreign Office, dando autoridade aos comandantes
ingleses de fiscalizar navios brasileiros e detê‑los caso transportassem escravos africanos. Embora o Ato
fosse uma pressão do governo britânico, até ferindo a soberania nacional, esse argumento, utilizado
pelos conservadores, não se mantinha, tendo em vista que havia uma lei (de 1831) proibindo o tráfico
e determinando a emancipação dos escravos. De qualquer modo, apesar da pressão da Inglaterra em
1846, o tráfico de escravos aumentou, uma vez que comerciantes tentavam “se prevenir”.
Em 1850, com a Lei nº 581, de 4 de setembro, regulamentada pelo Decreto nº 731, de 14 de novembro
de 1851, ficou definitivamente proibido o comércio de escravos para o Brasil. A lei e o decreto que a
regulamentou foram propostas de Eusébio de Queirós; em 1854, a Lei Nabuco de Araujo previa punições
para as autoridades que fizessem “vista grossa” para o tráfico. Com essas novas condições, o tráfico
chegava ao fim, mas ainda é admitida no período a entrada de milhões de escravos, pois os últimos
carregamentos chegaram entre 1853 e 1857. Outras leis importantes foram: a Lei nº 2.040, de setembro
de 1871, conhecida como Lei Ventre Livre ou Lei Rio Branco, foi proposta e discutida pelos partidos liberal
e conservador e aprovada durante o Gabinete Conservador presidido pelo Visconde do Rio Branco; a
lei libertava os filhos de escravos nascidos após aquela data, mas ainda os mantinha sob a tutela dos
senhores; em 1881, um projeto de Joaquim Nabuco propunha a libertação gradativa dos escravos até
1890, mas com indenização; em 1885, foi aprovada a Lei dos Sexagenários, a qual tornava livres os
escravos com mais de 65 anos. O projeto foi de Rui Barbosa, sendo aprovado no Gabinete Saraiva
Cotegipe. Finalmente, a Lei de 13 de maio de 1888 aboliu a escravatura no Brasil.
Tal construção não cogitava da existência concreta e material do brasileiro negro, mulato, liberto ou
ainda escravo, do estrangeiro, dos alforriados, dos velhos, dos ingênuos, daqueles libertados no ventre
das mães, mas que continuavam sob a tutela dos senhores. Sobretudo, não cogitava do igual em direitos,
e assim procedendo, não cogitava daquele que usurpava esses direitos...
Em contrapartida, não havia um discurso africano elaborado em moldes ocidentais para fundamentar
a luta contra a escravidão, todavia, segundo noticia o Jornal do Senado de 13 de maio de 1888, desde 1575
os africanos expressavam sua revolta e recusa sistemática em permanecer escravos. Eles se organizavam
em comunidades, em movimentos, e adotavam outras estratégias para alcançar a liberdade. Diferenças
de nação de origem, língua, cultura e religião que foram utilizadas pelos colonizadores como medida
prática para dificultar a comunicação entre escravos e a formação de identidade grupal tiveram efeito,
até certo ponto reverso, porque permitiram perceber semelhanças nas diferenças. Essas semelhanças
apareciam nos objetivos das revoltas e vão se refletir no pensamento social posterior.
39
Unidade I
Verger (1987) relata que as revoltas apontadas para a Bahia entre 1807 e 1835 apresentavam
composição relativamente semelhante às de Minas, com liderança hausa e nagô, sendo as mais
importantes desbaratadas graças à delação de negros escravos ou emancipados de outras nações. As
revoltas tinham vários pontos em comum, mas também os autos registram diferenças de nacionalidades
e de religião, além da referência sistemática à condição civil de emancipado, livre ou escravo, e à cor dos
envolvidos: negros, mulatos, cabra (mulato escuro) e pardo (também mulato).
Após a proibição do tráfico, um mecanismo usual para a alforria consistia na criação de sociedades
de alforria, integradas por “figuras notáveis” ou benfeitores, que integralizavam por cotas o valor
estipulado pelo proprietário. Nos documentos citados por Verger (1987) a respeito nota‑se a preferência
por emancipar crianças e mulheres, especialmente as de aparência branca. Tratava‑se de um reflexo
da Lei nº 2.040, que regulamentava a constituição de tais sociedades, pelas quais, em acréscimo à “boa
consciência” abolicionista, protegia‑se o capital investido pelos proprietários de escravos.
As Juntas de Ajuda Mútua (ou Fundos de Ajuda) funcionavam de forma assemelhada, por cotas
integralizadas pelos seus membros, com uma diferença significativa: eram compostas principalmente
por escravos libertos ou emancipados. Na Bahia, Verger (1987) destaca uma, da qual participavam
inclusive ex‑escravos muçulmanos, cujos recursos, administrados pelos seus diretores, eram guardados
sob a proteção de uma igreja católica. Essa sociedade permaneceu após 1888, com a denominação de
Sociedade dos Desvalidos. Outra sociedade foi fundada por nagôs yorubá, sob a denominação cristã de
NS da Boa Morte, na Barroquinha, e constituiu o núcleo original do culto aos orixás.
Enfim, aos escravos emancipados e aos negros brasileiros livres coube encontrar formas de inserção
na ordem e de nela sobreviver em condições supostamente melhores que as vividas como escravos. Para
tanto, exploraram os caminhos e as “capilaridades” da estratificação social, e os relacionamentos com
os brancos foram recursos significativos, não somente para oferecer trabalho, mas também para ter
acesso a oportunidades de educação e emprego. Essas condições explicam que as estratégias possíveis
se desenhavam no âmbito das individualidades, por exemplo, abrangendo apadrinhamentos, adoções,
incorporação marginal às famílias brancas de recursos. Em relação ao negro, esse processo o afetou
de maneira radical e perversa, dando origem a ambiguidades e dificultando sua inserção na oferta de
mão de obra para a economia capitalista em condições iguais às daqueles contingentes imigrantes e da
população rural que aportava nas cidades.
As exigências por trabalho livre e assalariado apontavam no horizonte da economia brasileira e eram
fundamentais ao capitalismo em formação urbano‑industrial, mas persistiam as práticas associadas à
economia escravocrata. A análise das relações entre esses dois “mundos” foi desenvolvida em várias
obras fundamentais ao pensamento social brasileiro, obras centrais à constituição das Ciências Sociais
e da Sociologia no Brasil.
40
Pensamento Social Brasileiro
(1) O Governador Conde dos Arcos suspeitou que essa denúncia fosse de seus desafetos.
(2) Verger: essas duas revoltas como originárias de quilombos, mas com suporte no Candomblé, não eram islâmicas.
41
Unidade I
A discussão desse capítulo não se resume à mudança de opção filosófica, do liberalismo para o
positivismo, associada ou não à mudança de regime político, do Império para a República; pretende‑se
examinar a formulação ideológica, de caráter conservador, emprestada ao estado nacional, à concepção
de política e de ação política.
A composição social e econômica das elites que se colocaram na posição de sujeito dessa formulação
ideológica passou por mudanças sensíveis com a autonomia, mas foram preservadas as concepções para
a ação política, ao lado de um discurso moral em que “povo”, categoria inespecífica, constitui objeto
do discurso e destinatário das ações do Estado. Essas tendências são paralelas ao positivismo, assim
como ao liberalismo, nas distintas modalidades apontadas; elas foram instaladas no pensamento social
brasileiro sobre o Brasil e seu povo e permaneceram por gerações.
Assim, para as elites políticas da época, elaborar uma constituição nas condições brasileiras
apresentava o problema de pensar autonomia política, nacionalidade e os direitos correspondentes
para uma população diversificada, constituída em sua maioria por escravos e negros livres. Trazer
as ideias europeias iluministas tinha sido relativamente fácil, discuti‑las também, apesar da
censura, mas aplicá‑las coerentemente implicaria a construção de um direito constitucional;
foi mais fácil ignorar as raízes das ideias e a realidade na qual seriam aplicadas. Como afirma
Bonavides (2000, p. 156):
As implicações dessa peculiar origem aparecem desde as discussões entre os membros da Assembleia
Constituinte de 1823, na caracterização dos direitos políticos e civis reconhecíveis aos distintos
42
Pensamento Social Brasileiro
segmentos da população brasileira, ou, mais precisamente, reconhecíveis aos distintos segmentos dos
habitantes do Império Brasileiro.
Alves (2008, p. 9‑10) conta que na Assembleia Geral, Constituinte e Legislativa de 1823 houve
discussão em torno do Título II, Cap. I: seria mais adequado mencionar membros da Sociedade do
Império do Brasil, ou cidadãos, como propôs o deputado de São Paulo? Como explica a autora,
um deputado da Bahia questionou a utilização de membros e de cidadãos, afinal, na referência
“membros da sociedade do Império” estavam dois segmentos que, segundo o entendimento da
assembleia, não participavam da sociedade: os índios, porque viviam na barbárie, nas matas, e
os escravos, porque eles recebiam tratamento de coisa e eram propriedade de alguém. Índios e
cativos não faziam parte da nação brasileira, da sociedade brasileira e muito menos poderiam ser
considerados cidadãos.
As discussões em torno dos direitos civis e direitos políticos envolviam responsabilidade e cidadania.
A posição vitoriosa parece ter sido do deputado da Bahia, Silva Lisboa, para quem escravos não poderiam
ser considerados cidadãos, talvez apenas os libertos, por causa da naturalidade; direitos civis consistem
em reconhecer e garantir para o homem livre a proteção da lei e sujeição apenas a ela, enquanto os
direitos políticos se aplicam apenas aos “grupos dotados de certas características” (Ibidem, p. 26), pois
implicam em elegibilidade.
O teor das discussões surpreende o leitor contemporâneo: como seria possível ser liberal, de qualquer
das tendências, e manter um olhar tão enviesado? De outro ponto de vista: como foi possível adotar
uma posição iluminista e fundamentar posições adotadas em tanto preconceito e elitismo?
Em parte, essas questões se sobrepõem: o pensamento conservador tem por base a preservação da
ordem e, no caso da economia colonial escravocrata, preservar o trabalho escravo e as diferenças sociais
que ele instaurou. A independência apenas criou a oportunidade para uma nobreza tupiniquim. O outro
lado da questão implica lembrar que “as leis”, para Montesquieu, sofriam vários efeitos, inclusive do
clima. Nesses termos, a composição social dos segmentos envolvidos na Constituinte aparece refletida
no texto acabado, conforme lembra Caio Prado Jr. (1980, p. 49):
É por isso que Schwartz (1981) comenta a impropriedade das ideias europeias liberais aplicadas
em uma sociedade escravagista, mas também não poderiam ser descartadas, restando empregá‑las
no discurso para demonstrar atualidade com sentido moral, ou simples “enfeite” de tribuna. Para o
autor, os deslocamentos de sentido são mais significativos que a pura constatação da falsidade das
ideias nas condições brasileiras, por isso, diz ele, em seu estudo sobre o romance: “procurei ver na
gravitação das ideias um movimento que nos singularizava. Partimos da observação comum, quase
43
Unidade I
uma sensação de que no Brasil as ideias estavam fora de seu centro, em relação ao seu uso europeu”
(SCHWARTZ, 1981, p. 26).
Uma dimensão do “deslocamento” de sentido ficou evidente nas distintas tendências do “liberalismo”
nacional, apontadas nos estudos de Bosi e Viotti da Costa já mencionados nesta obra. Todavia, Caio
Prado focaliza o mesmo problema, o deslocamento, mas de outra perspectiva; ele questiona, com uma
pergunta ingênua, a implicação pragmática normativa desse deslocamento e responde com a evidência
histórica:
Pedro I deixava claro que, no seu entender, as constituições inspiradas nas ideias francesas de 1791 e
1792 não conduziram à felicidade e bem‑estar do povo, ao contrário, estimularam sofrimento e anarquia.
Os deputados não entenderam o recado, preferiram insistir no discurso teórico de embate das facções
presentes. Impetuoso e autoritário, Pedro I suspendeu os trabalhados da Constituinte com soldados
armados em 1823 e chamou alguns intelectuais para elaborar com ele a Constituição de 1824, o que
gerou reações em várias províncias.
Dois artigos da Constituição de 1824 têm especial relevância quando, no âmbito do pensamento
social, são discutidas a concepção e bases da representação política: o Art. 6º, que estabelece quem
são os cidadãos brasileiros, e os artigos 90 a 95, que estabelecem critérios de elegibilidade. Nos
termos do Art. 6:
45
Unidade I
A cidadania brasileira, nesses termos, é bastante ampla, para abranger todos os estrangeiros que se
assim o desejassem, mas a menção à carta de naturalização revela indícios discriminatórios em relação
às religiões não cristãs. Quanto à perda ou suspensão dos diretos políticos reconhecidos aos cidadãos
brasileiros, nota‑se a exigência de um “pedido de licença” ao Imperador para que o brasileiro aceite
emprego ou honrarias de governo estrangeiro, uma exigência que talvez José Bonifácio não tenha
cumprido...
46
Pensamento Social Brasileiro
Quando se comparam os direitos políticos aos critérios eleitorais, o liberalismo do legislador apresenta
sua outra face: em princípio todos os cidadãos brasileiros e naturalizados têm voto nas eleições, contudo,
as exclusões são significativas:
V. Os que não tiverem de renda líquida anual cem mil réis por bens de raiz,
indústria, comércio ou Empregos.
Art. 93. Os que não podem votar nas Assembleias Primárias de Paróquia não
podem ser Membros nem votar na nomeação de alguma Autoridade eletiva
Nacional ou local (BRASIL, 1824).
Algumas dessas exclusões chamam atenção: o legislador submeteu a população de possíveis votantes
a um “pente fino” seletivo, reservando como eleitores uma fração minoritária da população, constituída
47
Unidade I
por: homens solteiros e casados (mesmo com menos de 25 anos) que sejam oficiais militares, bacharéis
formados, clérigos (que não vivam no claustro), funcionários públicos (mesmo que vivam com a família),
guarda‑livros, primeiros caixeiros do comércio, criados da Casa Imperial (desde que não portem galão
branco), administradores de fazendas e fábricas. Todos deveriam ter renda mínima anual de 100 mil réis.
Contudo, para senadores e outros cargos de maior relevância, ainda o legislador exclui desse conjunto:
os que tiverem renda menor que duzentos mil réis, os libertos, elevando a renda mínima de 200 para 400
mil réis para deputados. Todavia, nesse caso, são também excluídos os brasileiros naturalizados, os não
católicos (a religião do Estado). Em compensação, para deputado ou senador, não havia necessidade de
ter nascido naquele distrito nem ter residência ou domicílio ali.
Entre 9 de janeiro de 1822 e 23 março de 1823, nesse breve período de tempo, aquele povo que havia
exigido a presença de Pedro no Brasil aos gritos de “Fica!” já estava afastado do poder e permaneceria
assim, visto não atender aos critérios constitucionais, afinal, no povo estavam os trabalhadores urbanos,
libertos e foros e artesãos cuja renda anual não chegava ao nível mínimo exigido.
Importante notar que a presença desse povo – que seria o eleitorado – estava envolvida de maneira
direta ou indireta nos vários movimentos e revoltas que sacudiram o Primeiro Reinado e a Regência.
Era também desse povo que saíram os integrantes das forças de combate a serviço do controle das
insurreições e, por último, era esse povo que obviamente trabalhava no campo e nas cidades.
Observação
O movimento contava com apoio dos senhores de terras, suporte nas camadas populares, com apoio
de jornais e do Frei Joaquim do Amor Divino Caneca, religioso que depois seria executado. Honório
Rodrigues (1966), referindo‑se ao movimento, situa a posição de Frei Caneca:
Forças imperiais intervieram, debelando o movimento, mas não a revolta que os pernambucanos
mantiveram na cultura política, como símbolo de coragem e bravura. Frei Caneca simboliza o radicalismo
brasileiro de base popular. Para ele, conforme aponta o autor, estava claro que:
[...] o Brasil não é Europa, seu clima sua posição geográfica, a extensão de
seu território, o caráter moral do nosso povo, seus costumes e todas as
demais circunstâncias devem influir no futuro de sua constituição [...] Nossa
Constituição há de ser brasileira no espírito e no corpo. O nosso Império há
de ser brasileiro por dentro e por fora, não queremos impérios hipócritas,
que mostrem uma coisa no exterior e tenham outra no interior (Ibidem).
Importante notar que a Confederação do Equador não foi um movimento republicano, embora essa
acusação tenha sido feita de modo a justificar a violenta repressão das forças imperiais, a partir de uma
Comissão militar para processar sumariamente e verbalmente os chefes e cabeças do nefando crime.
Em 1831, Pedro I abdica do trono e retorna a Portugal, e inicia‑se no Brasil o período da Regência,
que vai se estender até 1840. A esperança de que esse governo nacional conduzisse políticas mais
modernas, mais ao encontro das aspirações populares, não se concretizou: o discurso parlamentar e os
artigos de jornal falam de reformas necessárias, discutem‑se as alternativas de ação, mas nada é feito.
Existe um sentimento generalizado de apego ao statu quo de medo das mudanças, de modo a evitar a
Revolução. Honório Rodrigues (1966, p. 42) ilustra essa postura com um trecho de Evaristo da Veiga: “Se
há um pensamento comum que ligue os homens que sustentam a administração atual é o de obstar a
uma revolução violenta, que traria a desgraça do Brasil”.
49
Unidade I
Um dos movimentos que marcaram o período da Regência, o mais importante e de longa duração,
foi o conhecido como Guerra dos Farrapos, ou Movimento Farroupilha, no Rio Grande do Sul, entre
1835 e 1845. O movimento chegou a se institucionalizar com a criação da República Rio‑Grandense,
com sede em Vila Piratini, que emprestou o nome para República de Piratini, outra denominação para
o mesmo movimento. O Manifesto de Bento Gonçalves e Domingos José de Almeida, datado de 1838,
é longo e detalhado: uma peça acusatória dos desmandos do governo imperial em relação à província,
ao contrário de outros manifestos, Bento Gonçalves, como presidente da República Rio‑Grandense, em
nome de seus constituintes, se dirige às nações civilizadas:
Como antes mencionado, o governo imperial debelou o movimento, mas adotando outras regras:
anistia para os revoltosos e possibilidade de incorporação ao exército imperial para a tropa. Nesse caso,
o Barão de Caxias não usou de sua ferocidade habitual.
Outro movimento irrompeu na Bahia, a Revolução Sabinada, mas “não era um desses motins,
uma dessas quarteladas sem diretrizes ideológicas em que foi fértil o Brasil nos anos turbulentos da
Regência. A Revolução baiana de 1837 era alguma coisa mais, tinha os seus marcos doutrinários. Sabia
o que queria. Era republicana e separatista”. A Bahia se declarou estado livre e independente em reunião
da Câmara Municipal, na presença das “pessoas mais gradas desta província” (PESSOA, 1973, p. 32). A
Regência enviou tropas que atacaram a cidade de Salvador com grande violência, consta que houve
mais de mil mortos.
Não cabe aqui discutir a formação dos partidos políticos e suas denominações, na medida em
que eles se situavam em um contínuo ideológico de variantes conservadoras, no qual se formaram os
partidos liberal e conservador, chegando a uma conciliação.
Cabe apontar que as revoltas que abalaram as províncias do Nordeste, cujos nomes são pitorescos,
Revolta do Ronco de Abelha, Levante do Marimbondo, Mata‑Mata, Fecha‑Fecha, Carne sem Osso (BA
– 1844‑1858), Quebra‑Quilos, Revolta das Mulheres (1874‑1876) refletiam a revolta popular contra o
governo imperial, inclusive contra medidas como a obrigatoriedade de registro civil de nascimento e
óbito, contra as medidas de peso oficiais e contra a elevação de preços dos produtos. Os manifestantes
dominavam as vilas, destruíam cartórios, atacavam juízes de paz, cadeias públicas, enfim, os signos do
poder imperial.
Na verdade, era um modo de assinalar a presença de uma oposição ao curso da política imperial, além
de mostrar que ressentimentos acumulados com a violência da repressão às revoltas Baiana, Praieira e
à Confederação do Equador não haviam desaparecido.
Todavia, outros fatores atuavam ampliando essa atitude: de um lado, a expansão da lavoura cafeeira,
em Minas e São Paulo, que necessitava urgentemente de braços; de outro, a produção de açúcar, que
não retinha mais o volume de escravaria do período colonial. O Nordeste contava com uma população
de antigos escravos fugidos, alforriados, posseiros, moradores de áreas dos engenhos em decadência,
pequenos produtores rurais que temiam todo e qualquer envolvimento com o controle do Império. A
situação política tornava essa população mais exposta, dado que, segundo Mendes (2009),
Não obstante, os Autos de Medição, instituídos pela legislação, serviram como argumento para
defesa nos conflitos entre interesses de proprietários e posseiros, segundo informa Nunes (2010). Tais
divergências tumultuaram o ambiente político no final do Império e início da República, agora com mais
integrantes: colonos imigrantes, índios e empresas norte‑americanas. As terras disponíveis, em todos os
processos de expansão de fronteira agrícola, vistos com apoio e interesse pelos governos, sempre foram
51
Unidade I
alvo da cobiça dos que assumiam a posição de “empresários rurais”, não importando se essas terras
fossem indígenas, de posseiros, quilombos ou de pequenos proprietários, esse “bandeirante” reproduziu
as práticas do branco desbravador colonial, mas obviamente com outras armas.
A discussão do trabalho escravo, no cenário político ainda escravocrata, fazia multiplicar os discursos
abolicionistas, alguns setores aguardavam uma “abolição gradual”, preservando o capital investido na
propriedade do escravo. Quando, após a Guerra do Paraguai, em 1871, a Lei do Ventre Livre foi aprovada,
Pedro II ganhou ferozes opositores, e o exército saiu fortalecido no imaginário nacional. Em seu livro de
memórias, Joaquim Nabuco, para caracterizar o movimento, sintetiza: “A política é a arte de escolher as
sementes; a religião a de lhes preparar o terreno” (NABUCO, 1981, p. 145).
Se a premissa de Nabuco pode ser questionável, sua conclusão efetivamente se aproxima do que
revelam as análises posteriores. O “novo edifício” ao qual ele se refere erigia‑se sobre o trabalho livre,
assalariado, e nada foi realizado nesse sentido, nem mesmo pelos fazendeiros de café de São Paulo e
Minas que, à época, circulavam nos ambientes políticos e palacianos. Assim, do confronto entre poder
civil dos fazendeiros, articulados nos partidos republicanos, e do poder militar do exército, fortemente
influenciado pelo pensamento positivista, saiu a declaração de Deodoro proclamando a República.
O confronto entre militares e civis, estes os “bacharéis” ou advogados que ocupavam posições
políticas, aparece nas páginas de O Militar (1851), uma publicação que reunia artigos do jovem oficialato
e de estudantes da Academia Militar, cujos cursos forneciam sólida formação intelectual, até mais que
a propriamente militar, segundo o então ministro da guerra, Souza Melo. A abrangência das críticas
justifica incluir o seguinte texto:
Suspendestes, sim, esse infernal tráfico, mas por que meio fostes a isso
levado? (SCHULZ, 1982, p. 247).
Ciro Silva (1982, p. 38), traçando um perfil de Pinheiro Machado, lembra que a “questão militar” foi
explorada convenientemente por Júlio de Castilhos, de modo a convencer o Visconde de Pelotas e o
marechal Deodoro da Fonseca. O autor vai mais longe citando Otelo Rosa:
A questão militar [...] no seu sentido político, que é o seu verdadeiro aspecto
histórico, quem a criou foi Júlio de Castilhos. Foi ele que a transformou de
um mero incidente de classe, em uma questão de honra militar; e que em
seguida a transmudou ainda em um problema nacional, que não interessava
apenas ao pundonor do Exército, mas à própria dignidade do povo brasileiro.
A participação de militares na política do Império já foi apontada, mas o que se mostra explícito é
a modalidade de participação: pela imprensa, adotando e explicitando posições políticas que poderiam
ser perigosas, ou então vantajosas para a carreira militar e também financeiramente (SCHULZ, 1982, p.
250). Na verdade, Caxias soube usar desses recursos políticos com maestria.
Uma monografia de Anfriso Fialho, escrita em 1890, detalha as causas que levaram à aclamação da
República, chamando a conspiração de revolução. O autor confirma seu caráter militar, principalmente
como um jogo de reações entre personagens militares de altas patentes e os civis palacianos ou
representantes do Legislativo. A chamada “classe militar” exigia tratamento especial do Poder Público,
e, na ausência dele, sentia‑se diminuída nos brios: um tenente foi detido pela polícia por estar fazendo
arruaça, “bêbado”, e, embora se declarasse tenente, foi encaminhado à cela comum. Esse fato constituiu
ofensa sem tamanho à classe militar, e o delegado foi demitido...
Fialho não menciona a população, não se refere ao povo, mas em todo momento situa oficiais
militares agindo “em nome do povo ou da nação”, com apoio da tropa dos quartéis, dos estudantes do
Colégio Militar, onde dava aulas o Dr. Benjamim Constant, um dos mentores do positivismo no Brasil.
Embora os vários movimentos e revoltas que abalaram o Império, mesmo as propostas abolicionistas,
tenham tido seu lastro em ideias republicanas, mais precisamente na esperança republicana, Fialho
53
Unidade I
fornece uma interpretação que exclui esses contingentes, que foram, aliás, atacados pelo exército
imperial, alguns levados ao extermínio pelos “heróis” fardados do Império. Sua visão da república aparece
logo na primeira página: as verdadeiras causas da “revolução acham‑se, pois, na política dinástica, na
perspectiva de um mau reinado, que estava iminente, e no plano que tinha o último ministério imperial
de abater o exército, que era a única força real do país” (FIALHO, 1983, p. 7).
O descaso com os problemas que afetavam diretamente a vida da população dos escravos, libertos
e alforriados influiu decididamente no final do Segundo Império, deixando heranças: de um lado, uma
estrutura fundiária brasileira cuja configuração foi preservada ao longo das décadas, os grandes latifúndios
ao lado de pequenos minifúndios; os primeiros, improdutivos; os segundos, de área insuficiente para
uma produção econômica adequada. De outro lado, a abolição do trabalho escravo, deixou a perversa
herança de homens e mulheres livres, sobras do sistema que os explorara e que agora estavam à própria
sorte, discriminados na ordem social que se constituía, supostamente sem eles.
Contudo, esses dois fatores, se causam tensões no Nordeste, ao ponto de provocar revoltas,
favoreciam os interesses da economia cafeeira em São Paulo, Rio e sul de Minas. Antecipando que
a escravidão estava chegando ao final, e que a manutenção do braço escravo era até mais onerosa
que a contratação do imigrante, os paulistas passaram a estabelecer contratos de imigração, trazendo
da Europa trabalhadores que seriam aqui submetidos a situações assemelhadas à dos escravos. Mais
tarde, esses imigrantes, nas fazendas ou fora delas, tornaram‑se agentes de conscientização política dos
brasileiros.
Talvez o primeiro dos fazendeiros de café a importar trabalhadores do exterior tenha sido o senador
Nicolau Pereira de Campos Vergueiro, que integrava o grupo político de sustentação do chamado Golpe
da Maioridade, que, em 1840, elevou ao trono precocemente o imperador Dom Pedro II. O senador levou
para sua fazenda Ibicaba, em São Paulo, um grupo de imigrantes suíços, dentre eles Davatz. Este, ao se
libertar da situação, denunciou na Europa os maus tratos e descumprimento dos contratos feitos por
parte do senador.
Nas últimas décadas do Segundo Império, o ambiente político sinalizava contradições profundas,
com as guerras no Sul, contra Oribe, e Rosas, da Argentina, com apoio do Uruguai, de 1850 a 1852;
a Guerra contra Aguirre do Uruguai, de 1864 a 1865; e, finalmente, a Guerra do Paraguai, em que se
juntaram Argentina, Uruguai e Brasil contra o Paraguai, de 1865 a 1870, o que só piorou o cenário.
Na Corte, sob uma aparente calmaria, formava‑se o Partido Histórico, uma associação de antigos
liberais com o recém‑criado Partido Progressista, e ressurgia o Partido Liberal, agora municiado de uma
linha política e imprensa a apoiá‑lo, representando:
Formava‑se também uma vertente sob a denominação de Partido Liberal Radical, igualmente com
apoio de órgãos da imprensa, e cujo programa parecia mais organizado comparado aos demais partidos.
Nos anos finais do Segundo Império, a discussão da abolição da escravatura, em acréscimo dos
efeitos das guerras, mobilizava os partidos e ocupava a imprensa. Nos discursos públicos, os aspectos
humanitários da questão eram os levantados, mas na condução dos trabalhos, na dinâmica de poder
entre partidos e facções, a abolição era postergada, barrada. De fato, apesar das declarações em
contrário, o Império se apoiava nos setores mais conservadores, razão pela qual não havia como encerrar
simplesmente a escravidão, tal como o exigia a Inglaterra. A vacilação do Imperador tinha, portanto, sua
razão, e de natureza política.
Contudo, as ideias republicanas, que sempre estiveram circulando na formação social, voltavam com
maior intensidade e mais organizadas, trazidas não somente pelos liberais e históricos, mas também
pelos militares. Mesmo assim, elas não envolviam o povo, continuavam sendo um discurso das elites
dirigido ao povo que tivesse acesso à leitura dos jornais.
Controla o poder uma elite “esclarecida”, constituída pelos senhores ligados à agricultura
de exportação, que se relaciona e desafia outros segmentos das elites: os poucos herdeiros de
uma nobreza europeia absolutista, odiada e invejada ao mesmo tempo; os segmentos urbanos
intelectualizados, integrados nos cargos da administração pública, mandatários de poderes civis e
militares do Estado.
À posição social ocupada por tais elites acrescente‑se a participação em círculos de distinção
específicos, como maçonaria, universidades, organizações confessionais. Do ponto de vista político,
essas elites influíram sobre a expansão do capital internacional na economia brasileira e sobre
a expansão de ideias europeias, como o positivismo, a partir da França, chegando ao Brasil com
Benjamin Constant e outros.
55
Unidade I
Benjamin Constant, e a maioria dos homens importantes de seu tempo, contava com um conjunto de
ideias e de práticas veiculadas por instituição de grande importância na condução da política brasileira:
a maçonaria.
O exame de relações possíveis entre esses dois segmentos do pensamento burguês, maçonaria e
positivismo, depende do exame de cada um deles, mas há uma dificuldade: a maçonaria é instituição,
e não uma doutrina, tendência filosófica ou religião, como se intitula o positivismo. A maçonaria teve
participação ativa no processo de autonomia política, enquanto o positivismo aparece no cenário
político brasileiro a partir de meados do século XIX, como corrente científica.
A maçonaria era a favor da abolição do trabalho escravo e lutava por isso, assim como também era
favorável à república, por isso pode surpreender o leitor menos avisado a listagem de maçons indicados
por Carvalho (2010), começando por Euzébio de Queirós, Luis Gama, Joaquim Nabuco e José do Patrocínio;
o Visconde do Rio Branco (José Maria da Silva Paranhos), a quem está associada a Lei do Ventre Livre,
era GM (grão‑mestre) do rito escocês, mas foi eleito soberano grande comendador do GOB, apesar da
oposição; assim como Feijó, que assumiu a Regência, também era maçon. O conflito anteriormente
mencionado entre liberais e conservadores acontecia também na maçonaria, mas Evaristo da Veiga, líder
moderado, era maçom.
Na Revolução Farroupilha ou República de Piratini, eram maçons Bento Gonçalves, David Canabarro
e Giuseppi Garibaldi.
Observação
56
Pensamento Social Brasileiro
É possível imaginar que os maçons civis acabariam por perder poder no arranjo político do governo
republicano ou, pelo menos, deveriam dividir o poder com os militares dele investidos, visto que as
regras de fidelidade estamental são muito significativas nas escolhas por cooptação. Considerando que
Deodoro da Fonseca foi eleito grão‑mestre do Grande Oriente do Brasil em 19 de dezembro de 1889,
a partir de então ele detinha duas modalidades de poder que convergiam para a caserna (CARVALHO,
2010).
O autor ainda comenta a situação que se instala a partir dos primeiros anos da República:
Talvez um indício se encontre na orientação “religiosa” emprestada ao positivismo por Auguste Comte
e seus seguidores (apóstolos). As ideias do filósofo francês eram apontadas como verdades absolutas,
“dogmas de fé científica”, por exemplo, o “dogma sociológico” de ordem e progresso (LINS, 1967, p. 35).
Essas colocações pouco científicas acrescentavam poder àqueles que delas se valiam, sobretudo para
desqualificar outros discursos.
Outro fator importante foi o proselitismo, por assim dizer, “produtivo” das ideias positivistas: em
1880, Lins (1967) registra a criação de uma biblioteca útil de obras positivistas, dentre as 12 obras: Do
Espírito Positivo, (Augusto Comte); Soluções Positivas da Política Brasileira (Pereira Barreto); Darwinismo
(Caetano de Campos); e A Teoria da Seleção Aplicada à Sociedade (Rangel Pestana).
Foi no ano da morte de Augusto Comte (1857) que Benjamin Constant Botelho de Magalhães se
tornou aluno do mestre, adotando “desde o positivismo puramente científico até o social e religioso”
(LINS, 1967, p. 38 apud TEIXEIRA MENDES, 1913, p. 205‑206). Destaca‑se que há certa polêmica em
definir até que ponto Benjamin Constant foi positivista. Todavia, ainda segundo Lins, em uma carta, o
próprio Constant se confessava radical positivista para a esposa...
Tu és para mim mais, muito mais, do que Clotilde de Vaux era para o sábio
e honrado Augusto Comte. Sigo como sabes todas as suas doutrinas, seus
princípios, suas crenças: a religião da Humanidade é a minha religião... É
uma religião nova, porém a mais racional, a mais filosófica e a única que
dimana das leis que regem a natureza humana (Idem).
A justificativa de Benjamin para sua adoção do positivismo não reside no suporte filosófico dessa
doutrina, mas na sua dimensão religiosa, melhor seria dizer, no fato de o positivismo se apresentar como
resultado de uma verdade científica, positiva.
Cabe então explorar agora quais elementos da teoria positivista exerceram tanto fascínio em
segmentos tão distintos da sociedade brasileira, começando pela penetração dessa teoria nos meios
militares.
Alguns aspectos podem ser depreendidos de referências sistemáticas nos textos, por exemplo, a
associação entre razão, moral e verdade científica. No Brasil, o apostolado congregava certo número de
“apóstolos” fiéis às ideias e posturas do mestre, cuja vida não foi das mais felizes.
A biografia de Auguste Comte (Montpellier, 1798 – Paris, 1857) assinala muito trabalho, desgostos
amorosos que o abalaram profundamente e grande produção teórica, destacando‑se o Curso de
Filosofia Positiva, o Discurso Sobre o Espírito Positivo (1844) e o Discurso Sobre o Conjunto do
Positivismo (1848). Era ele um professor auxiliar da Escola Politécnica de Paris, fora secretário de
Saint‑Simon entre 1815 e 1817, e enamorado de Clotilde de Vaux, que faleceu em 1846. Vejamos a
seguinte descrição sobre o período:
Os títulos dos trabalhos de Comte, especialmente os últimos, dão a entender tratar‑se de um autor
confiante, seguro de si e reconhecido no ambiente acadêmico, mas essa impressão não corresponde
aos dados de sua biografia: a realidade de sua modesta posição na Escola Politécnica, a resistência da
instituição em conferir‑lhe uma cátedra, seus períodos de depressão, que o impediram de continuar o
curso de Filosofia Positiva, e finalmente a pobreza e desconsolo após a morte de Clotilde.
58
Pensamento Social Brasileiro
Na verdade, esse descompasso entre a envergadura do projeto pretendido apontado nos títulos e
as condições efetivas para sua execução, no dizer de Paim (1979, p. 116), “decorre do desconhecimento
dos limites e pressupostos de semelhante inquirição”, e acrescentando o testemunho do próprio Comte
em 1842:
Jamais li, em nenhuma língua, nem Vico, nem Kant, nem Herder, nem
Hegel etc.; somente conheço suas diversas obras por meio de algumas
relações indiretas e de certos resumos demasiado insuficientes. Quaisquer
que possam ser os inconvenientes dessa negligência voluntária, estou
convencido de que contribuiu para a pureza e a harmonia de minha
filosofia social (Ibidem, p. 118).
Mas qual seria, enfim, o projeto de Comte, a sua filosofia social? Em princípio, a reorganização da
sociedade a partir da ciência, ou do pensamento científico que, para tanto, deveria também ser reorganizado,
ou melhor, sistematizado em uma ciência com esse propósito. Em Auguste Comte, essa ciência seria a
Sociologia, desde que fundamentada no método que tivesse por objeto os fenômenos sociais e por objetivo
“explicar diretamente, e com a maior precisão possível, o grande fenômeno do desenvolvimento da espécie
humana”. Nesses termos, ela seria destinada a ver, “no estudo aprofundado do passado, a verdadeira
explicação do presente e a manifestação geral do futuro” (MORAIS FILHO, 1978, p. 54).
Embora nessa nova ciência a observação e a interpretação, em uso nas demais ciências, fossem
exigências do método científico, aplicáveis em casos particulares, de guerra ou de situações sociopáticas,
a comparação e a filiação histórica são traços fundamentais da metodologia social.
A Sociologia se constitui então com emprego dos conhecimentos da biologia, mas o homem não é
redutível à condição de animal, ele é qualitativamente distinto. Dessa forma, as relações estabelecidas
entre os humanos e que se preservam e são transmitidas (e alteradas) entre gerações constituem
“categorias objetivadas” para estudo da Sociologia. Do mesmo modo, a dinâmica dessas relações, a física
social, não constitui decorrência direta da fisiologia.
Nesses termos, a Sociologia como ciência se distingue das demais porque “uma ciência somente é
positiva desde o momento em que repouse todas as suas bases na observação dos fatos que lhe são
próprios.” Posteriormente, Durkheim (1895) dará uma forma mais clara aos fatos que constituem objeto
da Sociologia: “um fato social não pode ser explicado senão por outro fato social [...] a Sociologia não é,
portanto o anexo de nenhuma outra ciência; é ela própria, uma ciência distinta e autônoma” (MORAIS
FILHO, 1978, p. 25, grifo do autor).
59
Unidade I
Para Comte, a ciência do social deveria abandonar a busca das causas e centrar a investigação nas
leis naturais invariáveis reveladas pela observação sistemática dos fatos e pelas relações estabelecidas
entre eles. Dessa forma, seria atingida a positividade dos fatos e relações verificados.
Contudo, é possível distinguir na realidade social dois aspectos fundamentais para a investigação
sociológica: o estado estático e o estado dinâmico. A divisão corresponderia à que existe no campo da
Biologia, a saber, a anatomia e a fisiologia. Na Sociologia, essa divisão deveria ser realizada com muito
critério e cuidado. Para Comte, esse “dualismo científico corresponde, com perfeita exatidão, no sentido
político propriamente dito, à dupla noção de ordem e progresso, que se pode doravante considerar
como espontaneamente introduzida no domínio geral da razão pública” (Ibidem, p. 105).
O estudo do estágio estático do “organismo social” coincidiria com a elaboração científica de uma
teoria positiva da ordem social, caracterizando a “harmonia entre as diversas condições da existência
das sociedades humanas” (Ibidem, p. 106). Essas condições seriam reguladas por leis, as quais seriam
igualmente objeto da Sociologia; por sua vez, a palavra existência designa a atividade do organismo
social, não abrangendo sua mudança, mas sim sua dinâmica. Desse modo, incluem‑se na existência
social, na acepção da estática, as atividades que se destinam a preservar a estrutura do organismo social,
bem como os fenômenos que caracterizam a vida social, sua estrutura e as forças sociais que respondem
pela coesão social ou solidariedade.
Sob a rubrica da dinâmica social, Comte focalizava as leis naturais que respondem pela evolução da
sociedade humana, ou seja, a “Lei dos Três Estágios”, ou ainda a relação entre a ordem e o progresso. Os três
estágios evolutivos da humanidade e da vida são: teológico (fetichismo, politeísmo, monoteísmo), metafísico
e positivo. Todos eles são reproduzidos na vida individual e podem coexistir em uma dada sociedade, mas na
humanidade, o terceiro estágio, o único que é definitivo, só foi alcançado nos países ocidentais.
Segundo Bréhier (1977), aqui se introduz o tema da antítese entre épocas críticas ou revolucionárias,
e as orgânicas ou estáveis. O tema aparecera no corpus das filosofias antirrevolucionárias, para as quais
“revolução e anarquia são a mesma coisa”, dado que:
Essas concepções contraditam as duas teorias sobre a natureza da sociedade: uma, “que reduz a
sociedade a uma multidão de indivíduos que, por iniciativa própria, promovem contra o conjunto, e outra
é a que admite realidades sociais transcendentes aos indivíduos” (Idem). Contudo, Comte, introduzindo
a tese do progresso, empresta outro sentido, particular à história: como o passado não volta, e também
a História não regride, ele considera a Revolução uma crise indispensável, sinalização da passagem de
um estágio teológico para o científico.
teológicas para as científicas. Essas últimas asseguraram ao homem maior poder sobre a natureza, mas
em Comte, também o “aumento da solidez das instituições sociais pela complementação sociológica
aplicada às ciências” (Idem). Nesses termos, as ciências se tornam um recurso para o reformismo, ou
suporte para mudanças que induzem à permanência, e, em caso de contradição, Comte aponta a
necessidade da ditadura, de modo a manter a estrutura ou unidade. Em síntese:
Para ele, a crise por que passava a França de seu tempo correspondia a um momento da “marcha
geral da civilização”, caracterizada pela coexistência em conflito de dois sistemas: um que se extingue (a
velha ordem), e outro que tende a se constituir (a nova ordem industrial e científica):
O positivismo, como expressão de uma “política científica”, seria o único movimento (e partido) capaz
de enfrentar a “anarquia social” instalada e de preservar o Ocidente de qualquer tentativa comunista. Em
linhas gerais, o pensamento positivista combina tendências de manutenção da ordem com a introdução
de mudanças, essas justificadas em nome do progresso, pelo argumento científico de uma Sociologia
aplicada e de uma religião. Desse modo, o pensamento positivista se revela uma proposta de forte
cunho ideológico. Sobre a Sociologia aplicada, Morais Filho (1978) diz que na filosofia social e na religião
positivista ficam patentes as linhas gerais dessa “ideologia positivista”.
imprensa deve ser substituída pela divulgação de “informativos”, cartazes ou anúncios. “Liberdade com
responsabilidade era a diretiva, devendo cada um assinar seus escritos, com data, local de nascimento
e endereço”, logo,
Completando esse quadro, o sistema positivista proposto por Auguste Comte seria organizado sob o
marco republicano, contrário à monarquia, mesmo à constitucional, implicando expansão do executivo,
inclusive com função legislativa, abolindo o Parlamento, exceto para discussão de orçamento, contrário
ao sufrágio universal. Com tais características, o modelo positivista aproxima‑se ao de uma ditadura
do proletariado, como regime correspondente ao “período de transição” entre a anarquia e o estado
positivista.
Antonio Paim (1979) considera as ideias contidas no sistema de política positiva uma “radical recusa
do espírito moderno, batizado de anarquia mental”, enfim,
Nesses termos, diz ainda o autor, a religiosidade, presente no catecismo positivista, readquire a
perdida primazia, e o poder temporal volta à subordinação ao poder espiritual. Não estranha que as
ideias positivistas tenham atraído a atenção de segmentos das elites brasileiras. Embora haja quem
62
Pensamento Social Brasileiro
não considere a influência do positivismo tão importante, mas não deixando de reconhecê‑la e de
afirmar que:
As novas elites, conforme destaca o autor, têm origem na burguesia comercial e burocrática, de
importância secundária, e que emergiram na pequena expansão do capitalismo no Brasil. São jovens
que fazem sua formação, especialmente em Direito, nas universidades abertas durante o Império. Nelas
convivem com os filhos dos grandes proprietários de terras, estreitam relações ou criam atritos. Nesse
ambiente intelectual, esses “novos políticos” entram em contato com as ideias da filosofia ocidental,
que lhes servirão de instrumento para o exercício da “política”, especialmente nos cenários acadêmico,
na imprensa e no Legislativo.
Ivan Lins (1967, p. 315) reconhece a importância do positivismo na construção da República, mas
afirma que “esta só se proclamou em 15 de novembro de 1889 graças à direção impressa ao movimento
revolucionário por Benjamin Constant”. E ainda acrescenta:
Decisiva, foi de fato, a atuação deste último, não só por ter sido a alma
do movimento, como disse Rui Barbosa, mas pelo ascendente moral
e intelectual que adquirira em todo o país e principalmente entre a
oficialidade da época, de cuja maioria fora professor grandemente
estimado e admirado (Ibidem, p. 316).
Na verdade, dos relatos sobre a participação de Benjamin nos acontecimentos que desencadearam
a declaração de Deodoro, depreendem‑se duas atitudes: de um lado, ele estimula a oficialidade em
discursos no Clube Militar, presidido por Deodoro, sobre a “missão dos exércitos modernos”, e elogia a
“mocidade militar, que tinha sabido [notabilizar] no soldado a alma do cidadão”; de outro, articulou a
adesão de Floriano e, a partir dele, das tropas e o assentimento de Deodoro, até então vacilante. Assim,
o autor conclui:
O sentido prático do projeto positivista, sua vinculação com as “ciências positivas”, e a posição
de destaque que reserva para as elites culturais, que assumem a posição de “saber” dos problemas
nacionais, eram fatores significativos na divulgação e aceitação dessas ideias, sobretudo em um ambiente
militarista, e de tensões entre o poder civil do Império e os militares.
63
Unidade I
Na verdade, o prestígio do pensamento positivista foi significativo, talvez decisivo, nas articulações
da república e logo depois. O autoritarismo republicano o exemplifica, especialmente no Sul, em meio das
lutas entre oligarquias no Estado. As figuras de Júlio de Castilhos, Borges de Medeiros, Pinheiro Machado
e finalmente Getúlio Vargas refletiram de modo particular a concepção de uma política “prática”, que
seria uma leitura particular do positivismo, “adaptada” aos jogos de poder no cenário político nacional.
Talvez as elites brasileiras, apesar da criação das universidades, não tenham abandonado o viés
autoritário que se encontra nas ideias positivistas, especialmente nas releituras tupiniquins, mesmo
porque o lema “ordem e progresso” atende perfeitamente às expectativas daqueles que optam pelo
primeiro termo, deixando o segundo ao sabor das conveniências, em particular quando elas convergem
para um discurso e instrumentação legal, que justifica a supremacia do Executivo, como na implantação
do Estado Novo, “os esforços de Francisco Campos”.(PAIM, 1979, p. 76).
É importante notar que esse autor fala de 1943, durante a Segunda Guerra, em pleno Estado Novo, o
que justifica sua observação sobre a “oportunidade” do relançamento da obra: “há muito tempo se fazia
sentir a necessidade de um trabalho que, estudando as fontes do comtismo entre nós, demonstrasse o
seu sentido social, político e ideológico” (Ibidem).
Aliás, uma das falhas do positivismo, como um sistema articulado de pensar a sociedade e de orientar
a ação política, reside precisamente em partir de suas próprias hipóteses e tomá‑las como evidências
empíricas para propositura da política. Esse é o centro da crítica de Cannabrava, porque “julgar que
proposições meramente prováveis se confundem com a realidade objetiva, suscetível de verificação
experimental, revela uma disposição de espírito fronteiriça do fanatismo e da alucinação” (Ibidem).
Não obstante, o pensamento de Comte reflete seu tempo, assim como as “releituras tupiniquins” o
fazem. Por isso, o positivismo não deixa de oferecer à pesquisa sociológica temas instigantes, sobretudo
quando o pesquisador vai diretamente às fontes, desvendando não somente o pensamento comteano,
mas as “camadas” de interpretação correntes na Sociologia. A conclusão preliminar de Lacerda (2009,
64
Pensamento Social Brasileiro
p. 210), que se propôs essa tarefa, confirma que, “retirada a extensa camada crítica sobreposta à obra
comtiana, é possível perceber que, de fato, essa obra apresenta elementos efetivos para os debates
teóricos, metodológicos e políticos atuais”.
Seria possível dar a esse tópico outro título, talvez mais evidente, remetendo às tendências do
pensamento social. Nesse caso, seriam ignorados os novelos de ideias, os fios diferentes de cores
distintas, que foram cuidadosamente utilizados urdindo motivos brasileiros em teias sem‑fim. Evidente
que a metáfora não resiste a um exame: o pensamento social traz em si a História, e a urdidura de
um tecido é arqueológica, pode ser situada na História, mas não traz o tempo em si. Então, o que se
pretende nesse tópico?
a) Discutir o pensamento de brasileiros sobre o Brasil e sua gente com base em ideias de procedência
variada. b) Expor as discussões sobre as “gentes” do Brasil quando construídas como motivos em
discursos urdidos com ideias diversas. c) Expor fragmentos de discursos das gentes brasileiras sobre a
vida cotidiana, os relatos, propostas de ação e outras atitudes.
O tópico abrange aos motivos urdidos no pensamento social brasileiro do fim do século XIX até
meados da década de 1930; representa aproximadamente o período da Primeira República, embora
desenvolvimentos posteriores sejam mencionados.
O período é dos mais instigantes para análise, um ambiente social de conflito. Nele, o que é novo
não suplanta o que é velho, mas ao contrário, é a ele submetido, ou acomodado às condições já
instauradas. Assim, se emergem sinais das mudanças sociais instauradas no final do Império, tais como:
incorporação de novos contingentes populacionais de europeus e orientais para o trabalho no campo
e nas cidades, manutenção da economia agroexportadora, mas com alterações; com o início de uma
expansão industrial, também são preservadas as relações tradicionais, sociais e políticas autoritárias,
reproduzindo as práticas coloniais, herdadas da cultura escravocrata, portanto, inadequadas para as
relações de trabalho livre, especialmente industrial.
Nesse ambiente, brasileiros que se ocuparam em pensar o país e suas gentes formam uma galeria de
procedência social variada, mas seus nomes integram uma elite intelectual e, em alguns casos, também
política. As faculdades de Direito, de Medicina e de Engenharia, criadas no Império, foram espaços
ilustres ocupados por figuras de notáveis pensadores sobre os brasileiros, enquanto os jornais de maior
circulação nas capitais ofereceram espaços para notabilizar tais personagens junto ao público. Nessa
direção, a criação da ABL (Academia Brasileira de Letras), nos moldes da Academia Francesa (1897), fez
muito mais, tornou seus membros imortais. Pelo dizer de seu presidente, o imortal Machado de Assis, a
Academia também expressou a coexistência de tradição e inovação, privilegiando a primeira:
O pensamento social brasileiro se voltou para examinar o Outro, seu fazer de pesquisa consistiu em
buscar decifrá‑lo, e a se ver em seus olhos, ensaiando o emprego de ideias distintas, apesar de certas mãos
serem inábeis para bordados tão refinados, abrangendo cores, línguas e povos tão distintos. Esses foram
estudos sobre raça e cultura desenvolvidos por autores como Raymundo Nina Rodrigues (1862‑1906),
na linha dos estudos de Cesare Lombroso (1835‑1909), que se apoiava em uma combinação de
positivismo e darwinismo social; Arthur Ramos (1903‑1949), que reconheceu a importância dos estudos
e materiais recolhidos por Nina, mas avançou estudos, articulando antropologia e psicanálise; Gilberto
Freyre (1900‑1987), autor da obra clássica Casa Grande e Senzala, um estudo dos componentes e papéis
sociais da família patriarcal na economia rural agroexportadora. Essa notável obra muito contribuiu
para a formação do mito da democracia racial brasileira; Edson Carneiro (1912‑1972); Martiniano Eliseo
do Bonfim (1859‑1943), informante qualificado dos antropólogos; e Manuel Querino (1851‑1923),
pesquisador e crítico das teorias racistas em voga.
Outro conjunto de estudos iniciou‑se com influência do positivismo, mas também pelo darwinismo
social, buscando examinar o contingente de população que ficara em situação social apartada da
ordem, e que desse lugar oferecia resistência ao poder ordenador da república e dos senhores da
terra: os sertanejos de Antônio Conselheiro, focalizados por Euclides da Cunha (1866‑1909) em sua
obra Os sertões, um clássico da bibliografia nacional. O misticismo sertanejo era (e ainda é) resposta à
desesperança, mas Canudos não foi o primeiro nem o último movimento: seguiram‑se muitos outros,
a Guerra dos Pelados, a do Contestado, as lutas entre colonos, índios e grandes empresas no avanço
da fronteira agrícola. Estudos posteriores de Maria Isaura P. Queiroz, D. Teixeira Monteiro e outros
focalizaram o mundo rural em várias direções: envolvendo problemas do avanço da fronteira agrícola,
as questões e lutas sobre a posse da terra, a cultura do cangaço, a cultura caipira, regionalismos
e folclore. No campo dos estudos de literatura, as obras de Mario de Andrade e Antonio Cândido
discutem o mundo apartado do urbano, as personagens nele geradas e a cultura, conteúdo vivo das
obras de José Lins do Rego, Guimarães Rosa, Dias Gomes e tantos outros, além dos folcloristas, como
Câmara Cascudo e Cornélio Pires.
66
Pensamento Social Brasileiro
Várias expedições foram realizadas com base nesses pressupostos, inclusive a Expedição Brasil Central,
a pacificação dos Xavantes pelos irmãos Villas‑Boas, e o aparecimento de “sertanistas” como Karl Von
den Steinen, dentre outros. Mais tarde, já nos anos 1960, os irmãos Villas‑Boas lideraram a criação
do Parque Nacional do Xingu. Ao longo das décadas seguintes, desenvolveram‑se estudos clássicos
das culturas indígenas sob as distintas abordagens e campos da Antropologia, podendo‑se citar os
estudos de Curt Nimuendajú (1883‑1945) e Herbert Baldus (1899‑1970), ambos alemães naturalizados;
também há brasileiros, como Egon Schaden (1913‑1991), Florestan Fernandes (1920‑1995) e Darcy
Ribeiro (1922‑1997).
Pode‑se concluir que, a princípio, as linhas de estudos apontadas sobre negros, sertanejos e indígenas
concentraram‑se em contingentes da população colocados na posição de Outro na formação social.
Contudo, compreender a sociedade brasileira no século XX implicou focalizar a esse “Outro” como parte
ou segmento da formação social. Essa mudança de perspectiva coincidiu com a expansão do setor
urbano e, com a revisão da vida social em ambiente republicano, finalmente com a direção do foco de
estudos para o Estado no Brasil, e sua organização como realidade social e política. Os percursos desses
temas no pensamento social brasileiro são o assunto que trataremos a seguir.
Quando os brasileiros procuraram compreender quem eram os negros escravos e por qual motivo
libertá‑los, esse contingente foi colocado na posição de objeto de pesquisa: Silvio Romero declarou em
1888: “É uma vergonha para a ciência do Brasil que nada tenhamos consagrado de nossos trabalhos
ao estudo das línguas e das religiões africanas” (RODRIGUES, 1977, p. 15). O autor lamentava que os
brasileiros, tendo os negros à disposição para pesquisa, (ele fala, “na senzala”) deixassem essa atividade
para estrangeiros, e concluía: “O negro não é só uma máquina econômica; ele é, antes de tudo, malgrado
sua ignorância, um objeto de ciência” (Ibidem, grifo do autor).
Na verdade, Nina Rodrigues vinha desenvolvendo estudos sobre o negro abordando o período
anterior a 1888; aliás, segundo Calvi (2011), ele e Sylvio Romero imprimiram na geração de 1870 a marca
dos estudos de raça no Brasil. Com base em pressupostos do racismo científico e do darwinismo social,
ambos os autores almejaram desvelar o passado, o presente e o futuro de uma nação oficialmente livre
da escravidão, porém ainda composta de indivíduos negros e mestiços, considerados inferiores.
67
Unidade I
Pessoalmente, Raymundo Nina Rodrigues era favorável à abolição, mas julgava que seria necessário
“emprestar aos negros a organização psíquica dos povos brancos mais cultos” (RODRIGUES, 1977, p.
3), e dizia ainda que esses sentimentos e qualidades o negro não tinha, nem poderia ter, apesar de
haver negros refinados, de valor cultural, “até hoje não se puderam os negros constituir em povos
civilizados” (Ibidem, p. 4).
Como se observa, sua postura “científica” consistia em fazer um recorte tendencioso, por isso falso,
de seu objeto de pesquisa, que não era exatamente o negro, mas a relação escravocrata em que o negro
fora inserido contra sua vontade. Em contrapartida, o que Nina chamava por civilização, a europeia, era
tão somente um modelo de cultura, correspondente a um modo de produção, distinto do praticado em
África.
Na verdade, Nina Rodrigues fundamentava suas posições em teorias racistas europeias do fim do
século XIX, embora fosse simpático ao negro brasileiro, como afirma em seu livro, recusava‑se a admitir
um “problema negro” no Brasil, contudo, afirmava:
A raça negra no Brasil, por maiores que tenham sido os seus incontestáveis
serviços à nossa civilização, por mais justificadas que sejam as simpatias de
que a cercou o revoltante abuso da escravidão, por maiores que se revelem
os generosos exageros dos seus turiferários, há de constituir sempre um dos
fatores da nossa inferioridade como povo (Ibidem, p. 7).
Para o autor, as raças são distintas geneticamente, portanto as diferenças não são superáveis no
horizonte histórico, e exemplifica com a conversão às religiões brancas: “o negro convertido rebaixa
invariável e necessariamente a nova religião ao nível de sua própria cultura mental” (Ibidem, p. 266).
A faceta da produção de Nina Rodrigues residiu ao tempo em que ainda se pode chamar de científica
(sem aspas); consiste no levantamento do volumoso material etnográfico sobre culturas africanas
na Bahia, especialmente práticas religiosas. O acesso do médico branco ao mundo dos candomblés
foi‑lhe facilitado por Manoel Querino (1851‑1923), negro intelectual questionador das teorias de Nina
Rodrigues; sem Querino como informante qualificado, dificilmente sua obra teria tamanha riqueza
etnográfica.
Querino viveu o cotidiano das lutas pela liberdade no cenário da Bahia e no ambiente intelectual do
cientificismo e da inferioridade racial como “verdade científica”. A trajetória de Manuel Querino atravessa
os campos operário, intelectual e político, para finalmente se concentrar na busca e explicitação da cultura
e tradição africana, da ancestralidade. Uma trajetória que fez de Manuel Querino uma personagem de
Tenda dos Milagres, livro de Jorge Amado. Nele, Pedro Arcanjo confronta outra personagem, Nilo Argolo,
um professor preconceituoso inspirado em Nina Rodrigues. Na verdade, segundo informação de Leal
([s.d.], p. 1‑11), a trajetória de Querino se assemelha à dos heróis:
Para Rodrigues (1977, p. 269), seria necessário distinguir dentre os negros que vieram para o Brasil
aqueles “verdadeiramente negros e os povos camitas que, mais ou menos pretos, são [...] um simples ramo
da raça branca”. Ele está se referindo aos egípcios e sudaneses cujas culturas não podem ser consideradas
“inferiores” porque são relacionadas à formação histórica do núcleo monoteísta, judaico‑cristão e
islâmico. São os povos Hausa que vieram para a Bahia como escravos.
Para explicar a criminalidade dos negros, Nina Rodrigues trabalha com o conceito de sobrevivência,
distinto do conceito de atavismo, um fenômeno mais orgânico, de transmissão hereditária. Em síntese,
para ele:
Importante assinalar que parte dessas ideias de Nina Rodrigues, embora não associadas ao seu
nome, continuam sendo esposadas para alimentar preconceitos e atitudes racistas, o que hoje é sinal
de incultura e atraso. Contudo, no fim do século XIX, vários autores europeus afirmavam a existência
de diferentes raças (no plural) humanas e se posicionavam na constatação das diferenças qualitativas,
dentre eles, Gustave Le Bom, francês, e Arthur Gobineau, amigo de D. Pedro II e também francês,
que trabalhou no Brasil, ainda Império, e ficou muito mal impressionado com o que viu. Para ele, um
diplomata, o problema maior estava na mestiçagem, que enfraquecia as características das duas raças
em contato, conforme faz constar em sua correspondência diplomática:
senado homens de esta classe; em uma palavra, quem diz brasileiro, salvo
pouquíssimas exceções, diz homem de cor. Sem entrar na apreciação das
qualidades físicas ou morais de estas variedades, é impossível desconhecer
que não são nem trabalhadores nem fecundos (PETRUCELLI, 1996, p 136,
grifo do autor).
Além dessa inferioridade típica do mulato e do caboclo, ainda para esse autor, esses tipos miscigenados
não se reproduziam ao longo de gerações, mas tendiam a desaparecer, ou por infertilidade, ou porque
os nascidos não sobreviviam.
Na sequência dos estudos de Nina Rodrigues, Arthur Ramos desenvolve uma linha de pesquisa
diferenciada, buscando caracterizar o negro brasileiro partindo de um traço distintivo: a religião, mais
precisamente a passagem “do fetichismo para formas religiosas mais adiantadas” (RAMOS, 1934, p. 21).
Todavia, as hipóteses dos trabalhos de Levy Bruhl sobre o pensamento pré‑lógico da mente primitiva
e outras assemelhadas já eram questionadas em 1934, época em que Arthur Ramos, médico clínico e
psicanalista, escrevia seu trabalho. Na descrição que faz de seu trabalho, ele justifica a postura adotada,
distinguindo‑se de Nina Rodrigues e de outros:
Gutman (2007, p. 714) analisou a apropriação que Arthur Ramos fez da obra de Nina Rodrigues
considerando‑a “antropofágica no sentido dado pelo modernismo”, isso significa que, na leitura da
obra de Ramos, as afirmações de Nina Rodrigues, com as quais o discípulo não concorda, encontram
outra versão, embora não estejam negadas completamente: evidentemente que ele reconhece as
desigualdades entre culturas, mas não aceita que elas sejam atribuíveis a raças, contudo mantém a
palavra “raças” (no plural), mesmo porque não admite a existência de “raças puras”. Por decorrência, os
tipos humanos resultantes de combinação distintas são mestiços (nós, os brasileiros) e não são melhores
nem piores, são seres humanos; esses mestiços (brasileiros) não têm “responsabilidade atenuada”: são
cidadãos responsáveis como quaisquer outros.
Então, como explicar o “social atrasado”? É aqui que o estudo da religiosidade permite explorar um
“estágio” cultural a partir das representações coletivas. Dessa forma, é reintroduzido discretamente, se
não o conceito, a ideia de uma sucessão de etapas ou estágios de um “processo evolutivo do primitivo
ao civilizado”.
Todavia, vale a pena entender que a opção por cultura em substituição à raça sinaliza uma mudança
no campo teórico: corresponde à corrente do culturalismo em antropologia cultural, predominante
nos EUA; à época, era liderada por Franz Boas, e este teve como discípulo Melville Herskovitz. As
70
Pensamento Social Brasileiro
tendências anteriores, que buscavam uma caracterização física dos grupos humanos, foram rapidamente
substituídas, e o conceito de cultura passou a predominar nos estudos antropológicos por largo tempo.
Foi com o objetivo de discutir amplamente essas questões que Gilberto Freyre organizou o Primeiro
Congresso Afro‑Brasileiro (1934), em Recife, para consolidação de um campo de estudos africanos.
Em 1937, Arthur Ramos, Aydano do Couto Ferraz e Edson Carneiro organizaram o Segundo Congresso
Afro‑Brasileiro, em Salvador. Vejamos aspectos interessantes do encontro entre Freyre e Ramos:
A partir desse segundo congresso instala‑se no mundo acadêmico grande interesse pela cultura
africana no Brasil. Vários antropólogos americanos vêm para cá, especialmente para a Bahia, desenvolver
pesquisas, dentre eles o já mencionado Melville Herskovits, Donald Pierson, Ruth Landes, entre outros.
Esses antropólogos tiveram apoio de Martiniano Eliseo do Bonfim (1859‑1943) para acesso aos
candomblés da Bahia e no desenvolvimento de suas pesquisas.
Do mesmo congresso participou também Renê Ribeiro, outro antropólogo médico de Recife que
sofreu influência de diversos autores, entre eles Herskovitz. Em seu estudo sobre a participação dos
indivíduos nos cultos afro‑brasileiros do Recife, o autor acentua o papel da “etiqueta, cerimonialismo
e obrigações rituais” descrevendo o tecido de normas disciplinares adotadas, bem como os limites de
seu descumprimento. O trabalho não apresenta uma compreensão do sistema disciplinar da vivência
religiosa, apenas relata situações observadas (RIBEIRO, 1951, p. 325‑340).
71
Unidade I
Vinculado ao mesmo ambiente, da Bahia dos anos 1935 a 1937, Donald Pierson realizou um trabalho
em que “situações raciais” permitiriam estudar preconceito racial. O autor afirma que, “dependendo da
‘situação racial’, o preconceito racial se manifesta, podendo diminuir ou desintegrar‑se se a situação
mudar” (PIERSON, 1951, p. 305). Para ele, não havia preconceito racial no Brasil nos mesmos termos da
Europa, África ou EUA, e continua:
Isto não significa que não haja preconceito, mas que tal preconceito, como
existe, é antes de classe do que de raça, excetuando‑se talvez algumas áreas
do sul, onde a chegada em anos relativamente recentes de povos imigrantes
com atitudes e sentimentos estranhos modificou talvez até certo ponto os
mores originais brasileiros (Ibidem, p. 309).
Sobre essa tendência de estudos, o exame das relações envolvendo preconceito de cor, classe etc.
pode‑se dizer que se caracteriza por um olhar “de fora” para uma cultura, a africana, ainda resistente à
época no Brasil. Talvez dessa perspectiva resulte a sensação descrita por Bastide (1973, p. 12):
O estudo sobre a cultura africana no Brasil fez do negro escravo, recém‑libertado ou que estava
lutando pela libertação o seu objeto de indagação. Acumularam‑se os dados, as observações, as teses,
o “objeto” escapava, apesar da busca por maior precisão ou detalhe. O que se observa, como tendência,
a partir dos anos 1960 em diante, com Bastide, Verger, Descoredes Santos, Joana Elbein dos Santos,
Prandi, e tantos outros, é a presença do olhar “de dentro”.
Inicialmente influenciado pelo positivismo, mas também pelo darwinismo social, um conjunto de
estudos buscou examinar o contingente de população que ficara em situação social apartada da ordem
e que, do lugar ocupado, oferecia resistência ao poder ordenador da república e dos senhores da terra:
os sertanejos de Antônio Conselheiro, focalizados por Euclides da Cunha (1866‑1909) em sua obra Os
Sertões, um clássico da bibliografia nacional.
da república e dos senhores da terra. Grupos que eram animados pelo misticismo, que sempre é uma
resposta à desesperança, e pelo messianismo.
E o autor continua:
Antônio Vicente Mendes Maciel (1830‑1897), o Antônio Conselheiro, foi um líder de movimento
messiânico que reuniu milhares de sertanejos no arraial de Canudos, no nordeste da Bahia, à margem do
rio Vasa Barris. Lá ele e os demais resistiram às tropas do Governo Federal. Antônio Conselheiro foi um
dos muitos beatos que erravam pelo sertão dos desamparados, com a Bíblia na mão, atraindo seguidores
entre aqueles que o Poder Público sempre ignorou: os pequenos agricultores, posseiros miseráveis,
abandonados à própria sorte nos ermos do sertão. Uns fortes, como diria Euclides, mas foi a essa gente
que os coletores de impostos da república recém‑instaurada iam cobrar, com a arrogância de cobradores
feudais em face de servos. Contudo, não havia o que cobrar a essa gente sem eira nem beira, e o pouco
disponível a seca fizera minguar mais ainda. Havia descontentamento e revolta.
Segundo Helio Silva (1977), frei João Evangelista de Monte Marciano foi visitar Canudos em 1895.
Entre os dois iniciou‑se um desentendimento, visto que o Conselheiro não reconhecia a República.
Essa declaração era o argumento que faltava para a Igreja Católica denunciar Canudos, e não foi outra
a providência tomada pelo frei em seu relatório. Para a Igreja, que era marginalizada pelo exército, o
discurso de Conselheiro era subversivo, não porque não fosse religioso, mas porque era antirrepublicano,
portanto, um perigo revolucionário! Se as tentativas iniciais de afastar Conselheiro do sertão, segundo
fontes, não surtiram efeito desejado, a acusação de monarquista era um argumento poderoso, favorável
à Igreja, porque a aproximava do governo e dos militares e, de sobra, retirava da área de influência
aquela liderança messiânica, incômoda no meio dos fiéis.
O povo seguia todos os atos de Antônio Conselheiro, obedecia‑lhe cegamente. E, em 1886, o delegado
de Itapicuru enviou ao chefe de polícia da Bahia um ofício, no qual se refere à divergência entre o
grupo de Antônio Conselheiro e o vigário de Inhambupe, mas nem a providência do arcebispo, nem a
do delegado deram resultado. Em 1887, o arcebispo, junto ao presidente da província, volta a acusar
Conselheiro de pregar doutrinas subversivas. Em resposta, o presidente tentou internar o revoltoso num
hospício de alienados no Rio de Janeiro, mas não conseguiu por falta de vaga.
A fuga continua e novos adeptos se juntam aos fugitivos. Finalmente, fixam‑se numa fazenda de
gado abandonada, à margem do rio Vasa Barris, onde fundou uma comunidade cujos princípios eram
a propriedade comum das terras e a divisão dos bens adquiridos. Antônio Conselheiro se transformou
numa lenda que se espalhou por todo o país. A população do povoado aumentou muito, e os habitantes
criavam rebanhos e plantavam para o próprio consumo.
A trajetória de Canudos sinaliza a perversa relação entre Estado e a população pobre que o integra, na
pomposa e vazia, qualidade de cidadão. Na concepção do exército, Canudos era um núcleo insurgente à
ordem republicana, não importando se constituído por brasileiros pobres, e eles não pretendiam avançar
para conquistar áreas do Nordeste, mas justamente ao contrário, manter‑se isolado daquele “resto do
mundo” pecaminoso, do qual só haviam recebido injustiça e dor.
A violência se estabelece nos dois lados sempre que se defrontam, mas a postura é radicalmente
distinta: para os homens de Canudos, trata‑se de defesa do pouco que conseguiram amealhar, de um
modo de vida de propriedade coletiva, sem os malefícios da vida “lá fora”. Para os oficiais do exército,
tratava‑se de atacar os inimigos, e eles se sentiam honrados com isso, esperavam vitórias e renome.
A degola dos combatentes inimigos não foi prática instaurada em Canudos, mas trazida do Sul,
da Guerra dos Farrapos, adotada no combate aos federalistas de Santa Catarina, e ressurgiu como
74
Pensamento Social Brasileiro
“técnica” desenvolvida por Moreira César, o “corta‑cabeças”, mas não demora ser praticada também
pelos defensores de Canudos (como contam de Pajeu). A degola foi útil porque o governador da Bahia
não pretendia reter mais prisioneiros de Canudos.
Em contrapartida, também foi útil para fornecer as cabeças ao Instituto Médico da Bahia para os
estudos “científicos”. De certo modo, a circulação dos jornais levava para os centros urbanos imagens
desse interior desconhecido, cujo controle era necessário. Então, quando movimentos como Canudos e
assemelhados já haviam cessado, eles ressurgiram nos questionamentos de sociólogos e antropólogos:
Em relação a esses movimentos, a essas gentes, como denominar seu modo de vida? E às gentes?
Fanáticos? Sertanejos? E quando não estão no sertão? Queiroz (1977, p. 162), seguindo os passos de
Antonio Cândido (1964), preferiu designar a população por sua cultura: “população rústica vive segundo
a cultura rústica”, que é um “ajustamento do colonizador português ao novo mundo”, e não um sistema
fechado, mas aberto para outros componentes culturais.
Giumbelli (1997) retoma a bibliografia básica sobre a Guerra de Canudos, do Contestado e Juazeiro,
movimentos estudados por Queiroz, Mourão, Maurício Queiroz, Facó e Della Cava, produção analisada
por A. Zaluar em resenha crítica, para depois discutir as interpretações construídas que vão além da
dimensão messiânica, mística e religiosa envolvida nesses movimentos.
A questão central reside em entender como esses movimentos messiânicos, místicos surgem em
uma formação social. A princípio, pode‑se atribuir o nascimento dessas ações à presença de “crises”
na formação social; contudo, essa possibilidade instala outras perguntas sobre a natureza das crises,
amplitude e articulação entre e alternativas seculares e religião.
Para Queiroz (1977), os movimentos messiânicos decorrem de crises instaladas na formação social,
portanto é o estatuto da crise que vai determinar condições e possibilidades de mobilização popular
em resposta. Quanto à religião, ela sempre será a esperança, a crença. Ela afirma que “somente ela
permite que alguém se sobreponha às parentelas e às famílias extensas, anulando as normas existentes
sancionadas pelos antepassados” (Ibidem, p. 396). De qualquer modo, é sempre preciso justificar por que
a reação ocorreu por meio da religião em vez de se dar por meios mais intrínsecos, isto é, seculares, à
realidade social.
A Guerra dos Pelados, ou Guerra do Contestado, tem outro perfil: o confronto dos sertanejos com a
ordem se dá diretamente: a terra onde eles plantavam e produziam para subsistência e a mata de onde
sertanejos tiravam a madeira foi doada para uma empresa inglesa, eram terras consideradas devolutas,
não por má informação, mas por interesse.
Os sertanejos que viviam em uma área entre Paraná e Santa Catarina puseram‑se em luta – ambos
os estados contestavam a fronteira, com a doação das terras para a empresa Lumber & Colonization
Company.
Era o ano de 1912, e os sertanejos contavam com o apoio do Monge José Maria, de Santo Agostinho,
que os atendia nos problemas de saúde. Tal foi a fama do monge que ele passou a ser protegido de
75
Unidade I
um dos coronéis da região, depois passou para outro. Ao mesmo tempo, José Maria instituiu uma
organização na comunidade (Quadro Santo) e criou um grupo de poder: Os doze pares de França.
Nessas alturas, 1914, o monge José Maria falecera, e assumira em seu lugar Maria Rosa, supostamente
virgem e enviada pelo monge. Os sertanejos seguiam suas orientações, e então foi lançado um manifesto
monarquista; os mais próximos rasparam a cabeça (dando origem ao apelido guerra dos pelados). As
lutas provocavam mortes em grande número de ambos os lados; era realmente uma “guerra santa” que
se desenrolava no Sul. Todavia, o governo de Hermes da Fonseca não pretendia abandonar a missão
“salvacionista” que se colocara, e o exército brasileiro, que adquirira experiência na Bahia – com Canudos
–, agora aplicava seu conhecimento usando metralhadoras, canhões, 7 mil homens e aviação contra
núcleos de sertanejos.
A questão da fronteira entre Paraná e Santa Catarina iniciou‑se em meio dessa problemática,
sobretudo porque envolvia interesses dos grandes senhores de terras. Assim, a propriedade da terra
e a exploração daquele que nela trabalha foi um fator interveniente nos movimentos messiânicos e
também da constituição do cangaço no Nordeste.
De fato, o pensamento sobre o social brasileiro na Primeira República abrange mundos justapostos,
articulados em relacionamentos de poder e estratégias: a ação militar, os movimentos místicos messiânicos,
o coronelismo e o cangaço, constituindo, no conjunto, o fundamento da república de oligarquias.
Desse modo, Medeiros exclui “todos quantos não situados naquele tempo específico, que vai do fim
do século dezenove a meados do século vinte, e todos quantos não situados naquele espaço específico
76
Pensamento Social Brasileiro
do sertão nordestino compreendido entre Bahia e Ceará”. Em seguida, diferencia jagunços e volantes dos
cangaceiros, apontando que “o cangaço‑atividade pressupõe a perseguição pelo Governo, a insubmissão,
o nomadismo e o suporte dos coiteiros” (MEDEIROS FILHO, 2015).
Finalmente, com base nas características dos bandos de Antônio Silvino, Sinhô Pereira, Lampião e
Corisco, há a seguinte conclusão:
Na definição de Medeiros estão presentes os traços essenciais a esse tipo peculiar de bandidagem
do sertão nordestino: perseguidos pelo governo, os cangaceiros recebiam apoio dos coronéis que
integravam o poder republicano, tanto na situação quanto na oposição. A insubmissão ao poder, exceto
ao poder religioso do padre Cícero, acrescentava aos cangaceiros certa dose de heroísmo, além disso,
eram nômades, a terra do sertão lhes pertencia, e dela conheciam os segredos das ervas, das grotas e
esconderijos.
Para vencê‑los, foi necessário mobilizar rastejadores, tão conhecedores dos segredos do sertão
quanto os cangaceiros; às vezes, requisitavam indivíduos que punham seu conhecimento a serviço
das volantes e da vingança pessoal; contavam, ainda, com a metralhadora, arma que superava a
velocidade do fuzil, dispensando a pontaria certeira dos que têm pouca munição. Enfim, os coronéis,
especialmente do Sul, mobilizaram recursos para desfazerem‑se da incômoda parceria, que fortalecera
os coronéis do nordeste.
Nesse campo de relações complexas e fortemente enraizado na terra, o cangaceiro foi a figura nômade
que se opunha ao autoritarismo e à violência institucionalizada, a outra face do mesmo autoritarismo
violento. Todavia, o cangaço só pôde persistir graças aos vínculos mantidos com fazendeiros. Vejamos a
seguinte explicação:
Para o confronto com cangaceiros, os coronéis se valem dos jagunços ou capangas. Esses peões
vinculados aos fazendeiros se especializam em perseguir cangaceiros; por seu turno, o Poder Público
constitui volantes com o mesmo propósito, e contrata rastejadores capazes de identificar trilhas no
77
Unidade I
sertão das caatingas. Os grupos são violentos: estupram, sangram, matam, torturam coiteiros, sertanejos
e comerciantes que supostamente forneceram algum apoio aos cangaceiros.
A história dos povos indígenas no Brasil que estudamos até então se resume na luta pela sobrevivência
física e como grupo cultural. O europeu sempre viu no índio um ser passível de ser moldado e adaptado
aos seus objetivos; e isso ocorria desde o aldeamento jesuíta, que implicava romper com os laços de sentido
que uniam os povos indígenas à mata, aos seus lugares marcados pelos mitos com implicações religiosas e
limites culturais estabelecidos ao longo de um tempo imemorial; os europeus encaravam a mata como um
lugar de “coisas” a serem descobertas, eventualmente habitado por “inimigos” que deveriam ser vencidos.
Falta aos gentios a lei que os tornaria “políticos”, membros de uma sociedade
civil que lhes conferiria a “razão”, extirpando‑lhes a rudeza e a bestialidade
em que vivem. É por isso que a sujeição tem de se dar em todos os planos
ao mesmo tempo; nisso parecem convergir afinal tanto os jesuítas, quanto
os colonos e os administradores. A sujeição política é a condição da sujeição
religiosa (CUNHA, 1990).
Entretanto, fazemos a seguinte pergunta: como os índios concebiam a presença do branco europeu?
Essa questão surge no âmbito da Antropologia mais recente, embora se possa imaginar que a tradição da
Antropologia brasileira conduziria infalivelmente a ela. Para Viveiros de Castro (2000), o fato de os índios
se reconhecerem como tal, ou seja, como não brancos, implica automaticamente o reconhecimento e a
existência do não índio, ou seja, do branco. Desse modo,
Todavia, os pares não estão em equilíbrio perfeito, caso em que todo o sistema ficaria estático.
Assim, é necessário um introduzir um determinado desequilíbrio entre os termos, de modo a permitir a
dinâmica do sistema. Nesse sentido, “foram os índios que amansaram os brancos”, completa: “a ação,
ainda quando na forma do deixar acontecer, é sempre indígena, porque a significação o é. Em outras
palavras, os brancos só constituíram os índios como não brancos porque foram, antes, constituídos
como não índios por eles. Nós já sabíamos.” (Ibidem).
Na verdade, os brancos não representam idealização para os índios, mas amostra do que eles
poderiam ter sido:
No estudo dos tupinambás da região de Olivença (BA), Viegas (2007) encontrou indícios desse
processo, uma vez que, para eles, a condição de ser tupinambá, “não se trata de um resquício histórico
remoto, mas de uma marca efetiva na organização social e modo de vida dos que hoje habitam a
região”. Assim, permanecem elementos da organização social, hábitos alimentares particulares, ligações
conflituosas com os pataxós, e também as antigas distinções entre eles e outros “índios selvagens”, ou
aqueles que “comiam cru”, falavam outra língua e usavam arco e flecha. Viegas (2010) completa: “Esse
contraste se explica pelo fato de os Tupinambá assumirem a identidade dos “índios civilizados”.
Essa “civilização” percebida pelos tupinambás de Olivença como dimensão agregada à sua cultura
não é reconhecida integralmente pelos demais, um exemplo consta no relato de um funcionário da
Funai de 1997, citado por Viegas (2007). Para ele, a presença da tradição ainda surpreende: “após
contato e revelações do grupo meio arredio pelo pouco que são visitados, pude constatar que vivem em
regime fechado e ainda conservam seus traços étnicos, legado dos primeiros povos a habitarem a região
costeira da Bahia”.
79
Unidade I
A situação diz respeito à relação pacífica entre dois universos culturais distintos: o indígena,
diversificado em tradições culturais, e o burguês ocidental, resultante do longo processo de formação
capitalista, na peculiaridade com que se instalou no Brasil. Para o universo cultural indígena, a rigor,
não se coloca a questão de ser sujeito, mas de ser um membro de determinada cultura, um indivíduo
que se identifica nesse pertencimento. Todavia, ao longo da formação social, processos de contato entre
esses dois universos registram uma história de dominação e morte partilhada pelos dois grupos, mas em
condições e situações distintas de poder.
A princípio, ele está ausente da normatização do estado nacional, tanto no Império, na Constituição
de 1824, quanto nos primeiros anos da República, 1889. Não obstante o índio tivesse participado da
Guerra do Paraguai e sido incorporado ao Exército, sua condição era a de um “ser transitório” para a
civilização, ele não detinha plenamente a capacidade jurídica, daí o Estado assumir sua tutela por meio
de um órgão específico: o Serviço de Proteção ao Índio (SPI).
O SPI teve sua origem na política de desbravamento e incorporação do território promovida pelo
governo de Afonso Pena (1903‑1906), por meio do Serviço de Fronteiras e Linhas Telegráficas. O avanço
para o interior em direção ao Acre, Amazonas, Paraguai e Bolívia implicava estabelecer relações com
populações indígenas, e a comissão encarregada desses serviços, chefiada por Rondon, abrangeu em sua
área de competência o relacionamento pacífico com esse povo.
Iniciava‑se no Brasil uma nova política de relação com índios de fundamentação positivista, posição
de Rondon e de outros membros das expedições de reconhecimento e pacificação. Para Darcy Ribeiro,
eles eram “baseados no evolucionismo humanista de Augusto Comte, propugnavam pela autonomia das
nações indígenas na certeza de que, uma vez libertas de pressões externas e amparadas pelo Governo,
evoluiriam espontaneamente” (LINS, 1967, p. 553).
A ideia de “pacificar índios” atendia aos objetivos de vários setores interessados no avanço econômico
sobre regiões. No ano de criação do SPI, 1910, a construção da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil
80
Pensamento Social Brasileiro
enfrentava a defesa de território por parte dos índios Kaingang. Rondon e seus auxiliares promoveram
durante seis meses um trabalho de aproximação e pacificação bem‑sucedido. Os efeitos apareceram no
valor das terras: “enquanto em 1910, dois anos antes da pacificação, o alqueire valia 13$000, em 1914
já valia 100$000 e, em 1919, isto é, apenas 7 anos mais tarde, 200$000” (LINS, 1967, p. 551).
Por mais bem‑intencionados que fossem Rondon e seus auxiliares, eles incorriam em erros graves: o
índio não pode ser tomado como tipo genérico, uma espécie de ser “em transição”. O processo de contato,
como foi apontado antes, não constitui um “processo civilizatório”, como pensavam os positivistas, mas
um processo de aculturação, no qual a cultura original permanece ainda como lembrança dos tempos
anteriores à presença do branco. “Não encontra nenhuma base nos fatos a ideia de que os índios, por meio
de processos de aculturação, amadureçam para a civilização” (Ibidem, p. 145). Desse modo, continua:
[...] “indígenas” são alternos dos “brasileiros”, porque se veem e se sofrem como
índios e assim também são vistos e tratados pela gente com que eles estão em
contato. [...] O índio é irredutível em sua identificação étnica, tal como ocorre
com o cigano ou com o judeu (Ibidem, p. 145‑147, grifo do autor).
Da concepção de que “o índio” fosse um ser a caminho da civilização resultou a ideia e princípio
jurídico de “proteção” dos índios e tutela sobre eles pelo Estado, o que vem servindo a propósitos
diversos e nem sempre adequados. Há uma tendência incorporada a certas vertentes do “sertanismo”
com variações ao longo das décadas. Personagens dessa fase de sertão foram Karl Von den Steinen o
o próprio Marechal Cândido Rondon, etnógrafos como Kurt Nimuendajú, sertanistas como os irmãos
Villas‑Boas, que ficaram famosos pela pacificação dos Xavante, expedição pelo Brasil Central e criação
do Parque Nacional do Xingu, dentre outros.
Ainda entre 1940 e 1960, antropólogos passaram a colaborar na formulação de políticas indigenistas.
Citemos alguns: Heloisa Alberto Torres, Darcy Ribeiro, Roberto Cardoso de Oliveira, Eduardo Galvão,
dentre outros. Segundo o Instituto Sócio Ambiental, antropólogos questionavam as práticas sertanistas,
consideravam a integração dos índios à sociedade nacional inevitável, mas não julgavam adequado que
o SPI estimulasse essa integração.
A criação da Funai veio substituir o antigo SPI e o CNPI (Conselho Nacional de Proteção aos
Índios) depois de rumoroso processo de investigação. A Funai nasceu em meio à Ditadura Militar,
e foi posicionada como apoio às políticas de desenvolvimento da Amazônia, Pantanal e políticas
de segurança nacional. Então, foi criado o Estatuto Nacional do Índio, em 1973, aprofundando as
relações de tutela e outros aspectos da assimilação interessada do índio aos projetos de ocupação
econômica. Fruto da ditadura, a Funai carregou todos os vícios do autoritarismo: empreguismo,
despreparo do pessoal e paternalismo.
Críticas à Funai apareceram já nos anos 1970 levantadas por organizações ligadas às questões
indigenistas, destacando‑se: as comissões pró‑índio (CPI), as associações nacionais de apoio
ao índio (Anai), o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), o Centro de Trabalho Indigenista
(CTI), a Operação Amazônia Nativa (Opan), o Centro Ecumênico de Documentação e Informação
(Cedi) e o Núcleo de Direitos Indígenas (NDI). Estas duas últimas se juntaram para fundar o
atual Instituto Socioambiental (ISA). Associações de caráter local e regional se desenvolveram
na década de 1980.
Os debates em torno da Constituição de 1988 trouxeram maior visibilidade para os povos indígenas
e a vigência da Constituição assegurou o direito à diferença (Art. 231) assim como o direito ao uso
exclusivo do território, estabelecendo a União como instância no tratamento das questões entre índios e
sociedade nacional. “Através do artigo 232, os indígenas e suas organizações foram reconhecidos como
partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos, o que incentivou a expansão e a
consolidação de suas associações” (Ibidem).
Os anos 1990 trouxeram novas formulações de projetos, alguns interministeriais, tendo em vista
que populações indígenas e conservação do meio ambiente formam um conjunto inseparável. Por seu
turno, a questão candente da demarcação de terras passou a ser objeto de projetos com a participação
dos grupos solicitantes.
O século XXI trouxe reforço na concepção de política participativa em relação aos povos indígenas,
e com maior presença de ONGs diversas, projeto de reformulação do antigo Estatuto do Índio circula
no Congresso, enquanto os serviços públicos já foram descentralizados para os respectivos ministérios.
O conceito de tutela passa a ser questionado tanto pelos órgãos competentes quanto pelas lideranças
indígenas que se preparam para dar continuidade aos projetos e políticas indígenas que situam o índio
como portador de plenos direitos.
Os últimos parágrafos deixam a impressão incorreta de que se abriu um “lugar” para o índio na
ordem social criada pelo “branco”, ou que, inversamente, “o branco” encontrou seu “lugar” na concepção
de “ordem social” do índio. Ao contrário, não se pode pensar “índio” como conjunto, mas sim povos,
sociedades e culturas indígenas, que elaboraram a presença de um “outro de si”, que seria o branco.
Como foi apontado, esse não índio não representou surpresa para alguns povos indígenas: ele era
previsto nos mitos de origem, parte constituinte de sua própria origem. Então, inverteu‑se a perspectiva;
nesses relatos, o não índio é parte de uma saga de tempos imemoriais, dos tempos da origem de quem
detém o discurso, ou do sujeito daquela história, o índio, ou o não branco.
82
Pensamento Social Brasileiro
Alguns antropólogos destacam alguns relatos. Em um depoimento, Ailton Krenac conta que
Esse “esquecimento” da origem seria um traço da cultura do “irmão branco”, de seu aprendizado fora
do grupo e consequente perda de raízes.
Ailton se alfabetizou aos 18 anos, “tornando‑se a seguir produtor gráfico e jornalista. Atualmente,
está no Núcleo de Cultura Indígena, ONG que realiza desde 1998 o Festival de Dança e Cultura Indígena,
idealizado e mantido por ele na Serra do Cipó (MG)”. Esse “saber quem se é” percola seu depoimento,
referido a uma “nação brasileira” que fala “206 línguas além do português” (Idem).
Em uma narrativa registrada por Bruna Francheto em Ipatse, em 1982, na região do Alto Xingu,
o chefe Kuikuro Atahulu (Kujame) relata encontros que se deram no século XVIII entre os Kuikuro e
brancos (caraíba); com os bandeirantes (jaburu) e, no fim do século XIX, com o etnógrafo Karl Von den
Steinen. Trata‑se de um longo relato, no qual a memória de uma história vivida pelos Kuikuro é passada
de geração em geração, acrescentada de eventos vividos em cada “presente” que reiterou a experiência
do passado.
O relato é situado em um tempo mítico, de presentes alongados. Pergunta por que eles não podem
ficar em paz, e por que suas terras são tomadas. Essas questões ecoam do século XVII para o XXI, sempre
as mesmas. Não há resposta para o Kuikuru, ou há todas as respostas que constituem a história da
colonização e do desbravamento, na dinâmica do processo capitalista da formação social brasileira. O
isolamento de quem quer “viver em paz” não constitui alternativa viável nesse processo, preservar‑se
e à própria cultura implicaria o processo de aproximação “de dentro para fora”, do índio para o branco,
como pode ser lido em depoimentos e lideranças indígenas.
Em 1992, Luiz Gomes Lana deu um depoimento à antropóloga Dominique Buchillet sobre os brancos
e sua origem, sugestivamente intitulado Entre a Bíblia e a Espingarda (1993). Os Desana habitam a
região do Rio Negro (AM), são aproximadamente 1500 pessoas no Brasil, divididas em torno de 60
comunidades. Luiz pertence ao clã Kehiripõra, Filhos do Sonho. Ele e seu pai, Firmino Arantes Lana,
foram autores da coletânea de narrativas míticas. Luiz fundou a Unirt, filiada à FOINR – Federação
das Organizações Indígenas do Rio Negro –, que presidiu até 1994, cujos principais objetivos foram a
demarcação do território e revitalização da cultura.
Para os Desana e outros grupos da região, os ancestrais da humanidade vieram para a região em uma
canoa de transformação, na qual estavam o ancestral do branco e Yebá‑gõãmi, o demiurgo dos índios. O
branco foi enviado para o Sul com ordem para matar, ganhar a vida pela violência, mas aos índios foi dada a
ordem de viverem unidos, calmos e pacíficos. Por isso, quando os brancos apareceram, não eram novidade:
83
Unidade I
A gente sabe muito bem como ele é violento! Yebá‑gõãmi lhe deu uma
espingarda como arma. A espingarda é o poder do branco. Yebá‑gõãmi lhe
disse que ele poderia obter tudo o que queria com essa espingarda [...]
quando o homem branco apareceu aqui, na nossa terra [região do alto
rio Negro], ele estava acompanhado do missionário. Nós já sabíamos que
o missionário chegaria com o branco porque Yebá‑gõãmi o havia dito!
Para o missionário, ele deu um livro [a bíblia] para ele poder viver. Por
isso, quando os nossos ancestrais viram pela primeira vez o missionário
com seu livro, eles já sabiam que esse livro era o poder dele, a sua arma
(BUCHILLET, 1993, p. 19‑21).
Braz Oliveira França, índio Baré, que foi presidente da FOIRN entre 1990 a 1997, deu um depoimento
a Geraldo Andrello, no qual uma situação relativamente distinta aparece: os Baré somam 1500 pessoas
na região do alto Rio Negro, mas “o nome Baré deriva de bári, ‘branco’, um termo que servia para
diferenciar os brancos dos negros” (BUCHILLET, 1993, p. 19).
Segundo Buchillet (1993, p. 20), no século XVII, “esses índios estavam agrupados na região do Forte
de São José do Rio Negro, atual Manaus”, e participavam das buscas por escravos na região. Viviam
submetidos ao trabalho servil, e a um intenso contato com o português, incorporando a língua e
perdendo gradativamente a identidade indígena, de tal modo que não eram reconhecidos como índios
pela Funai, embora estejam em processo de reconhecimento da identidade e revitalização da cultura.
Esse processo, aliás, não exclusivo do povo Baré, justifica o título do depoimento de Oliveira França,
datado de 1999: “Nós não éramos índios”. Segundo ele, os pajés sabiam que algo muito ruim iria aparecer,
mas “não imaginaram que o inimigo seria o homem branco, vindo do meio do mar”.
Os povos indígenas da região se posicionaram contra o regime servil instalado pelo europeu no século
XVIII, sob liderança de Ajuricaba. Entretanto, esse regime ainda não foi extinto na região. A presença
dos missionários evangelizadores, segundo Braz, foi ainda pior, porque implicava negar a identidade. No
século XX, eram práticas correntes o assassinato, a exploração pelos regatões, estupro das mulheres, e
“prostituição para pagar dívidas contraídas pelos pais e maridos”. Contudo, Purnaminari, mensageiro de
Tupana, prometeu devolver o que tinha sido do grupo.
Na série dos mitos apontados, leem‑se distintas formas de explicar as diferenças entre brancos
e índios. No relato de Oliveira França, a condição de índio decorre da presença do europeu e, uma
denominação que supostamente partiu de um erro, foi consolidada na linguagem da diferença instalada
84
Pensamento Social Brasileiro
com a dominação. Embora uma presença pressuposta nos mitos, ela não integra o “sentir‑se índio” antes
da chegada do outro, o branco dominador. Nesse momento anterior, os que passam a ser chamados de
índios eram povos que se percebiam e se relacionavam na paz de suas divisões territoriais ou na guerra
entre esses mesmos territórios e culturas. Não eram o que os europeus fizeram deles: índios. O resgate
das culturas implica, portanto, em retomar essa condição inicial, uma vez que somente como sujeitos é
possível estabelecer inter‑relações fora dos quadros do assujeitamento.
O primeiro desses depoimentos é do Pani papa Lauro Brasil Kene Marubo. O relato foi concedido
a Pedro Niemayer Cesarino, em 2005. Lauro é kakaya (chefe) de aldeia fundada por ele no Amazonas,
a aldeia Alegria, juntamente com seu irmão mais velho, Antonio Brasil Tekãpapa. Lauro tinha 60 anos
na época e, antes de morar na aldeia, trabalhara com seringa e venda de mercadorias nos municípios
do Amazonas, o que lhe garantiu experiência de viagens e de trato com os brancos; além disso, é um
respeitado kechitxo (pajé‑rezador).
Segundo Lauro, a vida mudou muito. Se antes eram aconselhados a não morar na cidade, nem com
os brancos, “agora nós aprendemos a escrever, nós sabemos escrever, nós queremos aprender a língua
do branco, nós moramos com o branco e entendemos a língua dele, e então nós vamos mesmo para a
cidade, os jovens vão para a cidade” (MARUBO, 2005). Todavia, morar na cidade não é bom, há muita
bebedeira, e as pessoas “ficam com a cabeça doida”, espírito da cachaça (katxase yochi) fica perto, faz
não gostar das pessoas, “faz ficar com vontade de matar”. Enfim, na cidade, os que mataram e morreram
entram nas costas dos outros e as pessoas matam. Muitos espíritos ruins estão na cidade.
Brancos e índios têm diferenças significativas para os Marubo: os brancos envelhecem mais depressa,
e quando morrem há um caminho especial para eles e a alma fica perdida, vira inambu, cotia etc.
Quando um Marubo morre, seja onde for, a alma é trazida para o convívio dos seus, “lá não é nossa terra,
é terra do branco”:
Nós somos os donos, surgimos em nossa terra, nós surgimos primeiro, vocês
surgiram depois, o lugar de surgimento de vocês é lá mesmo, na Europa,
como vocês dizem. Surgindo de lá, vocês vieram e quiseram nos pegar,
vocês, os seus antigos acabaram com a gente, vieram tomar as cidades
da gente, eles acabaram com muita gente. Quando nós acabamos, outras
pessoas chegaram, pegaram a terra e ficaram nela. Assim era contada a
história por meu pai. Outras pessoas chegaram para viver, outras pessoas
85
Unidade I
pegaram a terra. Para isso vocês vieram, vocês vieram e acabaram com os
nossos antigos (Ibidem).
Na vida e na morte os brancos são situados em espaço exterior ao mundo indígena, são ocupantes
da terra, não seus donos, e se perdem na terra que não lhes pertence quando sobrevém a morte. A alma
dos índios trilha o caminho dos mortos, ela vem para junto de seu povo. A cultura Marubo (ou outra)
parece constituir a manifestação dessa diferença essencial, incontornável entre os dois contingentes.
Os antigos, desaparecidos por efeito das ações dos brancos, reaparecem na memória, nos cantos e nas
práticas de pajé, porque foram eles que surgiram primeiro, “estes que são os donos da fala”.
Davi Kopenawa Yanomami, nascido em 1956, tinha 42 anos quando deu os dois depoimentos para
Bruce Albert, em 1998. O ISA divulgou ambos, mas o segundo foi publicado por Novaes (1999). Davi
passou pelas experiências reservadas aos índios brasileiros: perdeu a família em epidemias, dado o contato
com o SPI, sofreu o proselitismo religioso da missão evangélica Novas Tribos do Brasil, depois rompeu
com tudo e foi contratado como intérprete pela Funai. É xamã respeitado e chefe do posto indígena
Demini. Nos anos 1980, enfrentou a invasão de suas terras por cerca de 30 ou 40 mil garimpeiros. Toda
essa experiência de vida levou Davi à liderança na luta pelos direitos e culturas dos índios, especialmente
dos Yanomami.
Assim como Braz, um pajé, o xamã Davi situa a diferença entre brancos e índios em um espaço místico
de pertencimento: “são os antepassados que flechamos e comemos hoje”, diz ele. São as almas desses
antepassados que viraram caça, aparecem aos xamãs como xapiripë, e são imortais, sempre brotam de novo.
O contato entre Yanomami e os brancos teve início com visitas dos índios aos lugares dos brancos,
mas bem longe das aldeias, e motivadas pelos instrumentos de ferro que os brancos davam aos índios.
Davi relata o medo que sentia quando criança de todas as coisas que os brancos trouxeram em sua
primeira visita à aldeia: escondido em um cesto por sua mãe, a criança que temia ser raptada pelos
brancos, mais tarde temeu com razão, pelas epidemias e invasões dos brancos.
“Eles não descobriram a terra do Brasil”, nós estávamos aqui muito antes. Embora Omama os tenha
criado na floresta, eles foram expulsos porque eram perigosos e ignorantes, mas Omama lhes deu uma
86
Pensamento Social Brasileiro
terra, bem longe daqui, quando voltaram inicialmente se apresentavam bons, mas logo se esqueceram
da amizade, e “começaram a matar quem estivesse por perto”. Omama escondeu sob a terra coisas
perigosas para os humanos, mas os brancos as descobriram e começaram a produzir mercadorias e
máquinas sem parar. “Foi nesse momento que perderam realmente toda a sabedoria, porque estragaram
a própria terra, antes de ir trabalhar nas dos outros”. As cidades dos brancos são barulhentas, há gente
por toda parte, “o espírito se torna obscuro e emaranhado, não se pode mais pensar direito. É por
isso que o pensamento dos brancos está cheio de vertigem e eles não compreendem nossas palavras”
(NOVAES, 1999). E o autor continua:
A leitura que Davi faz da sociedade dos brancos se aproxima da que analistas do meio ambiente
e condições de vida nas metrópoles realizam: poluição, estresse, depressão e trânsito são problemas
identificados nos dois discursos, contudo, radicalmente distanciados no campo dos saberes (invenção
dos brancos). O mundo desencantado da racionalidade moderna excluiu essa sabedoria que os xamãs,
a exemplo de Davi, se valem. No desencanto, não há o que temer, mas muito a controlar, com mais
mercadorias e conhecimentos. Nesse trajeto, o esquecimento é fundamental: ele permite que se alcance
elevação das exportações com grãos plantados em florestas destruídas ou com a pecuária que avançou
sobre terras indígenas.
Dessa forma, coloca‑se a questão, não a possibilidade de contato, mas de diálogo entre esses
“mundos”, sobretudo entre sujeitos que se construíram a partir de realidades culturais tão distintas e
que ocupam posições diferenciadas na formação social. A superioridade técnica é incontestável nos
brancos, mas o diálogo os coloca na frente do espelho de Dr. Jekyll: qual a imagem refletida, a de Mr.
Hyde?
A luta pela demarcação, oficialização e proteção das terras, e por direitos básicos (saúde, educação)
ultrapassa cada povo indígena, constituindo a base de unificação desses povos, em luta conduzida pelas
suas lideranças em organizações regionais e nacionais; contudo, a luta e as ações voltadas para o resgate
e preservação das identidades culturais repõem distinções fundamentais na construção de processos de
subjetivação. Como diz Ailton, “Os krenak não são iguais aos Xavante, nem igual aos bandeirantes, nem
igual aos Yanomami. Eu sou Krenak, mas eu não posso achar que eu sei o que é legal para os Guarani,
entendeu? Pergunta para os Guarani” (KRENAK apud Novaes, 1999).
Mairawê Kaiabi veio ainda criança para o Parque Nacional do Xingu, seu povo foi convencido disso
por Cláudio Villas‑Boas, dado que a situação de perseguição movida por seringueiros era insuportável. Lá,
88
Pensamento Social Brasileiro
Mairawê foi alfabetizado e se destacou como articulador e administrador das reivindicações indígenas.
Ao longo dos anos, exerceu uma liderança de articulação entre culturas e povos, ao mesmo tempo em
que se habilitou para o diálogo com esferas administrativas exteriores ao local.
Seu depoimento em um seminário de problemas nutricionais (ISA) se volta para questões cotidianas,
pragmáticas, nas quais reverberam efeitos da concepção de vida que indígenas tomaram de empréstimo
a vida dos brancos. Seu foco de atenção é a nutrição (ou desnutrição) das crianças, por isso, diz ele:
Nós não podemos ouvir e dizer que isso é problema do branco, que ele
é que resolve para nós. Hoje, não tem mais branco que resolve para nós.
Nós temos que estar juntos para resolver todos os nossos problemas. Cuidar
desses problemas. É por isso que estamos aqui, estamos interessados em
saber, estamos interessados em participar desse trabalho (KRENAK, 2010).
Crianças estão desnutridas porque perderam a prática de pescar com sua “flechinha” na beira do rio:
Hoje é mais fácil de pegar peixe com a linha, antigamente ia lá, pegava
peixinho, ele mesmo levava para o irmão, assavam e comiam. Hoje é muito
raro acontecer isso. Hoje quer saber pelo que eles estão trocando essa
alimentação? Eles estão trocando pela bola ou televisão (Idem).
O ontem e o hoje constituem instâncias que permitem comparar a intervenção das práticas alimentares
da sociedade “branca” na desnutrição das crianças Kaiabi: “Porque é aquela história, o índio não tem hora
de comer, muito menos a criança. Eu já vi muita criança procurar comida e não ter. E aí?” (Idem).
A questão de fundo aponta para as normas que presidem o ato de se alimentar: elas existem na
sociedade branca (a que aparece na televisão), mas elas não existem para as crianças na sociedade
indígena, em que comer é “matar a fome”, ato espontâneo, acessível às crianças que “brincam” na beira
do rio. A mudança operada no “modo de viver” da infância kaiabi trouxe desnutrição das crianças, e a
pergunta fica no ar: “E daí?”
André Baniwa (2006), quando deu seu depoimento a Beto Ricardo, antropólogo do ISA, em 2006,
era vice‑presidente da FOIRN, vindo de uma trajetória de estudos e liderança indígena. “Os Baniwá são
mais de 12 mil, e vivem em mais de 200 comunidades situadas na região limítrofe entre Brasil, Colômbia
e Venezuela”, de língua aruak.
Vivendo na relação com outras etnias, com as quais os Baniwá mantêm contatos estreitos,
porém preservando padrões culturais próprios, a liderança de André Baniwa, em certo sentido,
responde à questão de Mairawê Kaiabi, porque ela se projeta para um futuro, considerado incerto,
para a maioria dos grupos, embora nem todas as comunidades vejam com bons olhos a constituição
de movimento indígena.
De qualquer forma, diz André Baniwa: “Queríamos criar ambiente de respeito, pensar o que era
necessário para nós e o modo como pretendíamos viver. A Funai transmitia uma imagem negativa
89
Unidade I
do índio e o sistema de educação não valorizava a nossa tradição. Esses problemas não saíam da
minha cabeça”.
Por obrigações da própria liderança, Baniwa (2006) diz que foi levado a morar na cidade:
Não moro em São Gabriel. Ali, eu moro trabalho, pelo menos isso é o que
eu sinto. Continuo brigando para fortalecer as coisas lá na comunidade,
e justamente por isso que não me sinto morador da cidade [...] Estou
descobrindo os não indígenas para tentar me encaixar dentro de um
ambiente de respeito dado nas relações entre culturas diferentes. Meu
principal objetivo é tentar apagar essa imagem negativa do índio, essa
imagem errada do índio como preguiçoso. Como alguém que só sabe pedir
para Funai e para os políticos.
A vida na comunidade é referência para que ele discuta qualidade de vida, isenta de horários fixos e
tensões do cotidiano urbano. Seus filhos estão na cidade, e assim, embora os Baniwá sejam considerados
bons flechadores de peixe, seus filhos não exercitam essa prática. Contudo, falam a língua indígena e na
alimentação figuram itens tradicionais.
Os dois espaços, a comunidade e a cidade, delimitam um campo de referência para André Baniwa
(2006) analisar a vida indígena entre a preservação de tradição cultural e inovações trazidas pelo
“contato”; para ele, “é preciso fortalecer e avaliar a tradição pós‑contato e a retomada da autonomia”,
revisitar a cultura, desfazendo a imagem de “coisa do diabo” passada pelos missionários.
Evidente que os mais velhos entre os Baniwá ocultaram ou silenciaram seus saberes sobre a cultura, e
mesmo aceitaram esse “sincretismo” imposto. André considera necessário resgatar esses conhecimentos,
estudá‑los nas escolas Baniwá, colocar os mais velhos em posição de transmiti‑los para as novas gerações:
90
Pensamento Social Brasileiro
Para ele, o conhecimento da própria cultura e da sociedade nacional que a envolve, sem conhecê‑la,
torna a liderança indígena um processo de intermediação: “Tento traduzir a minha cultura para não
indígenas e tento traduzir o que vejo e o que ouço falar para minha comunidade”. Essa dupla “tradução”
só é possível com deslocamento estratégico de perspectiva, por ele “consigo fazer alguma coisa pela
minha comunidade que seja aceitável também para sociedade envolvente” (Idem).
Timóteo Verá Popyguá, guarani, cacique da aldeia Tenondé Porã em Parelheiros, São Paulo, deu
um depoimento à antropóloga Valéria Macedo em 2006, no qual aparecem fragmentos da história
próxima dos Guarani na metrópole, uma história que passa quase invisível aos olhos dos Juruá (não
índios): a represa de Guarapiranga, assim como a Billings, abastece São Paulo, e era um descanso dos
guaranis que vinham do litoral para a cidade; de lá seguiam eles pela margem do rio Pinheiros até
Bauru. Todavia, essa história silenciosa aproxima os Guarani dos Juruá paulistanos contemporâneos:
problemas como poluição do meio ambiente e loteamentos clandestinos são preocupações de ambos,
porém, diferentemente dos Juruá, os Guarani não são responsáveis por eles.
As aldeias foram sendo formadas dos anos 1930 em diante e, em meados da década de 1950,
chegaram mais famílias, e nos anos 1960 a aldeia se formou em Parelheiros: “parentes do Paraná, e
algumas do litoral sul e do litoral norte subiam até aqui e ficavam. Hoje cresceu bastante, com mais
de 800 pessoas. Mas aqui sempre foi rota Guarani”. Timóteo veio em 1983, uma viagem de 15 dias, em
parte a pé.
Sua liderança começou dois anos mais tarde, acompanhando o cacique de então, Zé Fernandes,
nas reuniões de uma associação, Aguaí, para demarcação de terras: Rio Branco, Itariri, Tenondé Porá,
Krukutu, Silveira, Ubatuba, e duas no Rio de Janeiro: Angra dos Reis e Sapukaia. E Timóteo explica:
“Não é que eles não tinham dificuldades, mas eles são fortes na parte espiritual, então conseguiram”. Zé
Fernandes levava Timóteo para as reuniões, preocupado em garantir continuidade, ele dizia: “um dia que
eu parar alguém tem que seguir” (Idem).
Segundo Popyguá (2006), “tradicionalmente, o Guarani vive com amplitude e hoje a gente está
numa caixa de fósforos. Até mesmo para manter a língua, manter as tradições, é preciso ter espaço
suficiente [...] Há dois anos era tudo mato aqui do lado, e hoje já é vila”, diz ele, por isso a construção do
Rodoanel lhe preocupa, porque tende a aumentar os inconvenientes da urbanização.
A aldeia de Tenondé tem 26 ha e Krukutu mais 26, contudo ainda não é o suficiente; na construção
do Rodoanel, a Dersa prometeu uma ação compensatória, que a Funai estimou em 9 mil hectares. “E
nesses nove mil hectares daqui a cem anos a mata vai estar sempre aqui, ninguém vai tirar pra vender,
ninguém vai enriquecer de uma forma ilícita da floresta. Isso que muitas vezes o branco não conhece,
branco acha que o dinheiro pode salvar o planeta” (Idem). Timóteo se refere à ação predatória de
retirada da mata para abastecer de lenha as locomotivas, ou a retirada de palmito sem replantar. Essas
são atitudes do branco, quanto ao indígena, a mata tem para ele outro significado, e deverá permanecer.
[...] digo para os jovens que estão aqui: ‘vocês são o futuro da nação Guarani,
vocês têm que se preocupar, manter a língua, manter a tradição, manter a
cultura’. Também estudar, saber ler, mas não misturar. Por que água e óleo
não se misturam, então porque não levar em paralelo conhecimento Guarani
e conhecimento Juruá? (Idem)
Para Timóteo, as crianças Guarani não devem ser educadas seguindo o mesmo modelo da educação
Juruá, elas devem ser “representantes de seu povo”. Para tal, devem ser estimulados projetos de turismo
na aldeia, produção de artesanato, e esses produtos devem ser exportados para gerar renda para a
comunidade. Para ele, o “Guarani ama a natureza em silêncio por meio do conhecimento milenar”.
Esse conhecimento é a condição para o desenvolvimento Guarani no futuro. Preservar a natureza, tal
como entendem os brancos, provoca‑lhe certa desconfiança; para ele, preservar a natureza implica
envolvimento, e esse é o saber que têm os índios, e não somente os Guarani.
A língua, o canto e elementos da cultura Guarani estão no passado e agora no século XXI, portanto
é importante divulgá‑los, como ele faz com os corais de crianças, “para mostrar que Guarani está vivo”
(Idem). Suas iniciativas nesse sentido foram recebidas com certo estranhamento pelos mais velhos,
mas logo aceitaram, e passaram a estimular e contribuir com o ensino das crianças de suas aldeias.
Timóteo considera fundamental resgatar e reviver a tradição, e nesse movimento recuperar a dignidade
e identidade de seu povo e de sua cultura:
significa “terra é uma só”, não tem a divisão geográfica. Não tinha também
as fronteiras: Brasil, Argentina, Paraguai, Uruguai, Bolívia... é uma coisa dos
juruá. Dentro da cultura guarani não existe. Por isso é chamado Ivyrupá,
ou nós chamamos Nhanderu Ivyrupá, “a terra pertence a Deus”. Então,
Guarani ocupava uma área imensa, e por isso muitas vezes falam assim:
“os Guarani são originais do Paraguai, ou da Argentina, não são do Brasil”.
Mas esse era o território Guarani. Quem fez a divisão foram os brancos,
não foi o índio que fez. Essa tradição continua sendo passada hoje para as
nossas crianças. O Guarani é sempre um povo pacífico, um povo que não
confronta, não gosta de violência, tanto que Guarani sobrevive durante
500 anos mantendo sua língua, mantendo sua própria cultura, sua própria
dança, mantendo, fugindo. Então sobreviveu. E hoje estamos aqui, e vivos,
e fortes espiritualmente, e fortes politicamente. Porque eu acho que hoje
nós, jovens, que estamos na linha de frente, acho que nós temos que cada
vez mais fortalecer (POPYGUÁ, 2006).
Um depoimento significativo, também em vídeo, foi dado por Azilene, Kaingang, de Santa Catarina,
mestre em Sociologia. Ela se refere ao período de extermínio dos Kaingang pelos grupos que construíam
estradas e que ocupavam com fazendas na expansão agrícola. Para ela, seguiu‑se a esse período um
movimento de retraimento dos Kaingang, mas nos tempos o povo retomou sua luta buscando restaurar
a identidade cultural, a língua e as terras.
Outro relato foi dado pelo Prof. Maná, Kashinawá, do Acre, sobre a importância da história das
populações indígenas, divulgada em cartilha para crianças. Enquanto essas manifestações apontam
para uma relação mais adequada, a índia Pankakaru (PE) fala do aldeamento imposto ao seu povo
e da convivência com negros escravos durante a economia açucareira, do que resultou o aporte de
elementos da cultura negra, a miscigenação e a perda de elementos culturais. Nos jornais on‑line e
na imprensa, em março de 2011, índios Terena bloquearam a BR 163; paramentados para a guerra,
pediam entrevista com o diretor da Funai, e protestavam contra a distância (250 km) do escritório
daquele órgão. Contudo, um pouco antes, índios Terena foram libertados do trabalho escravo em
fazenda próxima de suas terras.
Os Tikuna habitam o Alto Solimões, têm terra demarcada desde 1993, resultado de uma luta de
20 anos, estão organizados na CGTT (Conselho Geral das Tribos Indígenas) e preservam a cultura.
Preocupam‑se com a pressão exercida pelas Missões Evangélicas e com as falsas organizações.
Saiba mais
Um dos filmes nacionais que traz para a tela situações que foram
comentadas ao longo dessas é:
93
Unidade I
Estratégia Xavante, como diz o título, é o registro de uma estratégia indígena para conhecer
a cultura “branca” e manter com ela um intercâmbio mais respeitoso. O cacique Xavante
Ahopowê, em 1973, com apoio do Conselho Tribal, selecionou oito meninos para serem criados
entre os brancos, serem educados entre eles, na cidade de Ribeirão Preto. Visavam os Xavante
fortalecer a própria cultura com o retorno dos meninos, mas que se estabelecesse uma relação
mais respeitosa e forte entre as duas culturas. O plano foi bem‑sucedido, todos voltaram para
seu povo, já conhecendo o mundo dos “warazu” (brancos), mas se reconhecendo o que sempre
foram: Xavante.
Andrea Tonacci realiza, em Serras da Desordem, uma metáfora da busca existencial do sujeito pelo
“seu” lugar. Todavia, essa foi a trajetória de Carapiru, sobrevivente de um massacre que vagueia pelas
serras do Brasil Central. Em 1988, foi encontrado a 2000 km de seu lugar de origem, Maranhão. Então,
é levado para Brasília por Sydney Possuelo, depois encontra seu filho e retorna ao Maranhão. Vem à luz
a seguinte pergunta: como se apresenta para ele esse lugar de origem? Melhor seria perguntar, quem é
ele para si?
Essas questões que percorrem o filme se colocam para todos os indígenas, não porque sejam
fugitivos, mas porque são sobreviventes em sua própria terra. Para fazer valer o que lhes era dado ao
nascer, a própria existência identitária, tornou‑se necessário incorporar a língua e sentidos do Outro,
construir nessa linguagem o discurso que os sustenta como modo de existir, de ser a si mesmo, mas não
são eles que precisam desse discurso de conhecimento, são os outros, ou o grande Outro, a sociedade
envolvente, que tem a custódia desses “diferentes”.
Então, inicia‑se a pressão entre os dois grupos: índios ameaçam com a presença, e os fazendeiros
com a escritura das terras. A dinâmica perversa desse contato desigual leva índios à bebida, índias a
uma quase prostituição, o restante do grupo ao trabalho em uma fazenda, agenciados por um “gato”,
que é, ao mesmo tempo, dono do armazém. Em paralelo, dois jovens, o índio e a filha do fazendeiro,
estabelecem um relacionamento fugaz. Destaca‑se o interesse da menina pelo “novo” subalterno,
e a atração dele pelo consumo das “coisas”, a moto, a maconha. A bebida é o refúgio do chefe, o
misticismo impotente, a esperança do pajé, mas a morte ronda essa história, assim como foi a de
vários grupos Kaiowá.
O filme Yndio do Brasil (Sylvio Back, 1995) encerra esses comentários porque sinaliza uma
diferença de perspectiva: aqui é a visão do branco sobre os índios que está em foco. Principiando
pela descoberta do Brasil, com trechos do filme Descobrimento (Humberto Mauro, 1937), os
fragmentos de filmes selecionados pelo diretor já demonstram a visão crítica mantida até na
apresentação dos créditos.
94
Pensamento Social Brasileiro
Na verdade, os “índios” da maioria dos fragmentos são atores que desempenham uma construção
imaginária do branco sobre o índio e, consequentemente, aquele que “é bom” não é exatamente o
filmado, mas o que não é índio, ou aquele que deixará de sê‑lo por força dos mecanismos de “civilização”.
Nessa construção atravessada, o mistério do “inferno verde” amazônico aparece reforçado em uma
sequência de Tabu (Eurico Richers, 1949), que mostra a “deusa branca”, que surge de um “King Kong”
e se põe a dançar com os guerreiros (aliás, parecem negros, e não índios); daí há o direcionamento
para Casei‑me com um Xavante (Alfredo Palácios, 1957), destacando uma Jaci de batom ao lado de
um “cacique” (Pagano Sobrinho); a distância é pouca, contudo, perfeitamente preenchida por vários
outros fragmentos.
Dos trechos de documentários inseridos, sobressaem‑se aqueles que focalizam a política indigenista
brasileira que, em vários momentos, pretendeu “civilizar” o índio, catequizá‑lo, a exemplo do padre
Cobalquini, na aldeia Bororo, recepcionando um militar e apresentando um índio que é bacharel, e que
já esteve em Roma e Paris, ou as cenas de aspersão de Neocid.
A sequência dos Karajá recepcionando Costa e Silva, em plena Ditadura, demonstrando as danças
rituais (no primeiro plano, um índio de óculos escuros dança desajeitado), a de Ernesto Geisel recebido
pelos Terena evangélicos (o filme de Zelito Viana, já comentado, registra esse evento), são outros
exemplos dessa miopia interessada, evidentemente que não dos diretores.
Dessa situação são os povos indígenas que podem falar, analisar criticamente e superar, e
é exatamente o que vêm fazendo, e não é de hoje. Eles estão se construindo como sujeitos e,
se a sociedade envolvente participar desse processo, isso deverá ser junto aos povos indígenas.
Talvez por isso o filme de Back termine com voz em off, irritada, determinada, e na primeira
pessoa, negando todas as vinculações, remotas e diretas com a situação do índio, dos militares aos
anarquistas, antropólogos, umbandistas, padres, pastores e outros, para concluir: “Hoje não quero
saber de ti”.
95
Unidade I
Saiba mais
Esta obra objetiva criar o cenário histórico e político por trás do ato de Deodoro, um abolicionista,
monarquista, de quepe na mão, aclamando a República, para a surpresa dos que passavam pelo Campo
de Santana naquela hora. Também serão descritas brevemente as elites da época, não exatamente
as que hoje seriam “celebridades” pela publicidade de seus nomes, mas aquelas que podiam decidir,
isoladamente ou em grupo, sobre os outros, apesar da resistência deles. São homens de poder, não usam
necessariamente as armas, eles “têm” quem o faça por eles, e isso, se for necessário, porque em geral não
é; o mais frequente é a extensão das redes de assujeitamentos.
Todo o quadro do Império foi marcado profundamente pela tendência liberal e, por
consequência, o pensamento político brasileiro, não somente na construção da autonomia
política, mas no entendimento do que seria a política. Mesmo porque, ser liberal à brasileira não
implicava real oposição à permanência do trabalho escravo, nem implicava adoção de sistema
eleitoral mais representativo.
nas relações tensas entre poder civil e militar, problema que é anterior ao Império, mas nele se alimenta
e se projeta com as antigas e novas faces para todo período republicano.
Como o país mantinha sua economia apoiada na agricultura de exportação, era fundamental a
grande propriedade, mas o regime da propriedade da terra se altera: da Colônia e Império, para a
República. Conforme lembra Faoro, “enquanto a cana‑de‑açúcar, a mineração e a grande parte da
pecuária se desenvolvem sobre a sesmaria, o café participa de outras influências” (FAORO, 1977, p. 409).
O café em Minas e às margens do Paraíba avançou sobre terras de sesmarias, ocupadas com a produção
de alimentos e pecuária; nessas paragens, os posseiros entravam como agregados.
Com o café para exportação, cultivado em outros moldes, como empresa (ainda que com trabalho
escravo), instalou‑se em todas as regiões a luta pela terra, da qual saíram vitoriosos os latifundiários.
Uma legislação de 1850 visava proteger os posseiros, mas veio tarde demais: os sesmeiros latifundiários
já estavam vitoriosos. Os posseiros “não podiam sustentar por muito tempo a luta com poderosos
adversários possuindo relações no Rio de Janeiro, recursos abundantes para pagar advogados, e os
lazeres necessários para fazerem viagens à sede do município” (FAORO, 1977, p. 412).
Embora a legislação tivesse um sentido antilatifúndio, ela não o deteve, ao contrário, corroborou
com a formação da grande propriedade, que, representando os interesses comerciais da exportação,
veio a merecer apoio do Estado, sob a forma de créditos. Contudo, a fonte de recursos para a empresa
cafeeira não veio somente do Estado: inicia‑se nessa fase o financiamento pela compra antecipada da
safra, e são comissários das empresas de exportação que realizam o negócio, ou mesmo os agentes de
comercialização, figuras cada vez mais urbanas e importantes. Finalmente, são organizadas as casas
bancárias, por exemplo, a Souto, e, por último, os bancos.
A República foi deflagrada por militares, mas gestada por longo tempo entre os civis das
elites oligárquicas. A contradição entre o bacharel e o guerreiro, entre o livro e a espada vinha
de há muito, diminuída com o êxito da Guerra do Paraguai, mas logo a guerra foi também foi
questionada (com justiça), dada a violência e elevado custo para a economia nacional. Os nobres
do Império viam os militares de soslaio, sem lhes reconhecer os feitos, e os soldos correspondiam
à desimportância atribuída.
Em contrapartida, a criação da Guarda Nacional por Feijó reforçara a desconfiança dos oficiais em
relação a civis que adquiriam títulos militares sem mérito, e passavam a ser mais reconhecidos que eles
próprios, os “militares de carreira”. Alguns oficiais conseguiam ultrapassar a barreira porque ingressavam
ainda jovens no exército, e podiam comprovar que eram originários de famílias da aristocracia da terra.
Dentre eles Caxias, comandante e chefe do exército, e o próprio Deodoro da Fonseca.
Outro aspecto dessa contradição entre civis e militares consiste no preconceito existente entre os
liberais da época sobre a profissão de militar por “servir à destruição, à barbárie institucionalizada,
equiparando o oficial ao parasita”. A profissão seria um indicador de incivilidade, e “desapareceria na
medida em que se civilizasse o mundo”. D. Pedro II partilhava dessas ideias, apesar de seu genro, o conde
d”Eu, ser um militar (FAORO, 1977, p. 473).
97
Unidade I
O confronto final entre militares e Império se deu nas vésperas da Abolição (1887), nele ponderando
o processo de candidatura de Deodoro para senador pelo Rio de Janeiro; o Marechal concorreu sem
partidos, apoiado pelos correligionários de farda. Deodoro – abolicionista –, já recomendara que o
exército não se prestasse à tarefa de prender escravos em fuga. A abolição da escravatura nesses tempos
já não era mais uma tese, mas uma realidade que dividia a oligarquia entre aqueles que a apoiavam
(liberais e republicanos), dentre eles os paulistas, e os conservadores, em geral monarquistas.
O Exército, com a tese do “cidadão de farda”, mostrava‑se um aliado natural dos republicanos, mas
para os civis era forçoso evitar que os militares ocupassem o Estado, desenvolvendo a centralização de
poder. Para os militares, Deodoro inclusive, a descentralização poderia conduzir ao esfacelamento do
território entre os poderosos chefes regionais. Nessas condições, a tese federativa parecia a mais adequada,
porém, para afiná‑la aos interesses da oligarquia, recuperou‑se a Guarda Nacional, distribuindo‑a pelo
território. Contudo, essa estratégia, conservadora e de origem monarquista, é descoberta e precipita os
acontecimentos.
O legislador parecia pretender “corrigir” os efeitos do poder dos coronéis pela força da norma.
Debalde os esforços: a vontade dos coronéis falava mais forte que a simples aritmética dos votos nas
eleições.
O legislador da República pretendeu transformar o homem rural, preso às fidelidades do campo, que
vinham de muito antes, em um cidadão, figura urbana, construção idealizada, nas vertentes teóricas
do pensamento político europeu ou americano. Na verdade, essa inconsistência entre norma e prática
favorecia os interesses da agricultura de exportação, e assim a legislação eleitoral, ponto nevrálgico da
organização política da democracia representativa, permaneceu letra morta em relação aos objetivos
teóricos aos quais deveria atingir, todavia instrumento hábil nas estratégias de poder na época.
98
Pensamento Social Brasileiro
Nesses termos, o primeiro período republicano se caracteriza pelo dispositivo de poder montado
pelas oligarquias agrárias. No âmbito da vida política cotidiana na época, o dispositivo de poder
montado recebeu a denominação de “coronelismo”, um processo detalhadamente estudado por juristas,
sociólogos e outros cientistas sociais brasileiros e estrangeiros. O clássico Coronelismo, Enxada e Voto, de
Vitor Nunes Leal, e obras de Maria Isaura Pereira de Queiroz sobre mandonismo local são fundamentais
à compreensão do processo. Segundo Queiroz, (1977, p. 160):
Com a República, a extensão do direito de voto a todos os cidadãos alfabetizados (o que era muito
relativo) instala‑se no Brasil, com peculiaridades em cada região, uma verdadeira hierarquia ligando
chefes políticos maiores aos intermediários até o nível do eleitor. Maria Isaura esclarece que, embora a
barganha fosse o meio mais frequente de obtenção de votos, nem sempre esse era o recurso empregado,
e a violência muitas vezes substituía o mecanismo de troca do voto por favores e sua “compra”.
A literatura e o cinema nacional exploraram o coronelismo em vários ângulos, mas sempre explicitando
a distância entre as normas práticas de comportamento nele correntes e aquela normatização instaurada
pela legislação. Todavia, se essa modalidade de exercício de poder se revelava quase absoluta em todo o
país, ao contrário, as oligarquias se dividiam em interesses, áreas de influência e controle sobre o poder
central, concentrado no Executivo Federal. Literatura acadêmica e filmes nacionais relacionados ao
período analisam essas divergências na oligarquia, assim como fornecem uma mostra dos dispositivos
de poder e respectivas estratégias em várias regiões do país.
Segundo Carone (1977, p. 210), o governo de Campos Sales parece ter resolvido a situação financeira,
não existia inflação, mas “a situação das classes trabalhadoras e da baixa classe média [...] é desesperada”.
O atendimento à população pobre das cidades (e dos campos) não era preocupação para governos de
oligarcas. As péssimas condições de vida, moradia e higiene da população de baixa renda dificultava a
criação da imagem de uma cidade moderna para a capital da República, e o governo Rodrigues Alves
inicia um programa de modernização urbana e de saneamento.
A arrogância dos reponsáveis, o trato violento por parte dos membros das brigadas sanitárias e grupos
encarregados de promover a vacinação nos bairros foram fatores que desencadearam a manifestação
popular, sob a forma de rebelião de rua. Os líderes intelectuais do movimento monarquistas e positivistas
haviam encontrado o pretexto para induzir a derrubada de Rodrigues Alves: a revolta de uma população
miserável e atemorizada, que não fora esclarecida sobre os motivos da vacinação e que, após intensa
repressão, prisão de várias pessoas, ela foi completada, eliminando‑se a varíola da cidade.
uma vacina, muito menos uma campanha de vacinação. Uma posição que se alterou ao longo do tempo,
mas as manifestações populares voltaram ao cenário político.
Sérgio Buarque de Holanda, em documentário de Nelson Pereira do Santos, 2004, e na voz de sua
neta, qualifica esses grupos como retrógados. Na verdade, ele os conheceu bem, e não apenas pela
investigação histórica, mas porque circulou por eles, ou, pelo menos, pelos circuitos intelectuais, que
existem, sendo numerosos e diversificados, em todas as artes, todas as atividades econômicas, nas
universidades e institutos de pesquisa, na burocracia, nos três poderes do Estado, sem excluir a imprensa.
Por mais diversificados que sejam tais grupos, não deixam de se unir em torno de ideias, e da prática
política que os mantenha na posição hegemônica. Nesse campo, o da política, alguns aspectos sempre
foram fundamentais: a questão da terra, do trabalho livre e de sua organização, e a relação da economia
nacional com o capital externo.
Tais aspectos estiveram em boa parte respondendo pela diversificação interna do discurso liberal
no Império; foram considerados na formulação das propostas da Primeira República, desencadearam
as reivindicações políticas da revolução de 1930, justificaram inovações da prática política republicana
entre 1930 e 1945, inclusive a Nova Política do Estado Novo; desde 1946 têm integrado o discurso
político considerado como expressão da “vocação da sociedade brasileira”, inclusive nos discursos
“democráticos” e “projetos de impacto” da Ditadura Militar.
Na medida em que os aspectos que concentram o interesse das elites nacionais também fazem para
parte dos demais segmentos da formação social, mas em posições diversas, esses aspectos deixam de
ser apenas questões materiais para serem sobretudo ideológicas: são questões que dizem respeito aos
fatos e aos seus sentidos, à realidade observável do vivido e à apreensão compreensiva dessa realidade.
A distância entre o fato e seu sentido remete à distância entre o país real e o ideal, um tema
fartamente discutido desde as primeiras décadas do século XX, ou seja, a distância entre a norma jurídica
e a prática, entre a norma policial e a ação do policial etc. Há mesmo um dito popular que sintetiza a
questão: “na prática, a teoria é outra”. Pois bem, se assim for, uma das duas está equivocada: ou a prática
está mal aplicada, ou a teoria inadequada para compreensão da situação. O mais comum, e pior, é ambas
estarem erradas.
As tendências de pensamento social dedicadas à formulação política, no sentido de, partindo da análise
da realidade social, propôr uma organização ou modelo político mais adequado, têm assumidamente
um caráter intelectual e ideológico. Não que as outras tendências não tenham esse caráter, elas têm,
101
Unidade I
apenas não assumem. Outro aspecto interessante das tendências, e dos autores, a serem focalizados,
reside em certa familiaridade com as ideias propostas.
Por exemplo, a “questão da terra” estava em pauta no Brasil desde 1850, e com variações. Desde
1961, mais de cem anos depois, voltou à tona abrangendo a discussão de temas considerados de
“reforma agrária”: avanço de fronteira agrícola, da demarcação das terras indígenas, dos posseiros, de
quilombos, programas de apoio à média e pequena propriedade rural para produção de alimento etc.
Esses temas envolvem discussões das quais participam grupos organizados e movimentos organizados
que se comunicam em manfestações públicas e pelas redes sociais e até governamentais.
Na condução das discussões de qualquer questão, as posições são formadas não apenas pelo
resultado, mas pelas premissas ou “questões de princípio”. A partir desse ponto, a discussão já se
encaminha para o campo ideológico. Consequentemente, as posições se tornam contraditórias e
passíveis de encaminhamento ou de solução apenas por um esforço de conciliação, que é sempre um
arranjo artificial, um acordo dentro do possível, de uma “arte do possível”, aquela da política, não por
acaso, a que esculpe a hegemonia.
Crítico do ambiente político de seu tempo, confessa enterrado o Partido Liberal, substituído pelo
partido saquarema, os conservadores não são um partido. “Sim, já assistimos à morte dos partidos: o que
hoje resta são pequenos grupos ligados pelas recordações da antiga obediência e pela mútua lealdade”
(TAVARES BASTOS, 1976, 34).
Responsabiliza pela situação o péssimo regime eleitoral, o da Guarda Nacional, o da polícia como
defeituoso, e o sistema judiciário inconstitucional. A partir dessa colocação, o autor passa a comentar
a organização interna do poder completando: “Se o Parlamento, anulado pela sua origem, é fraco pela
sua composição, o poder executivo assume a onipotência” (Ibidem, p. 35).
Tavares Bastos passa a apontar a série de “males do presente”, começando ela educação pública,
que ele considera “mãe do progresso”, e que está pior, pois há ausência de rigor nos exames etc. Outros
“males” seriam: a agricultura, a emigração (o governo não tomou providências com os contratos
abusados; o tráfico de escravos, que continuava sem que os lavradores pudessem fazer frente à falta de
braços; o comércio afetado pela falta de produção dado o sistema regulamentador do governo; a renda
decrescendo na razão da elevação das despesas com secretarias, marinhas, exército, as dívidas internas e
externas; as leis de orçamento anuladas por créditos suplementares. Por último, destaca a perpectiva de
um déficit sem proporções, acumulado desde 1868. Depois dessa análise de falhas, Tavares Bastos inicia
102
Pensamento Social Brasileiro
a listagem das “soluções”: Primeiramente, ele propõe uma atitude: o self government, um governo forte,
sábio e democrata, que promovesse eleição direta (Tavares Bastos, 1976, p. 46‑47):
Em 1866, Tavares Bastos fundou uma Sociedade Internacional de Imigração, que pretendia “importar
os confederados americanos, gente branca, anglo‑saxônica e protestante, e assim melhorar os quadros
do nosso povoamento mestiço” (RODRIGUES, 1966, p. 47). Essa postura de decidido apoio ao liberalismo
americano foi se agravando, chegando a um nível “quase desvairado”, para o autor. Todavia, na Carta
XVIII de Cartas do Solitário, datada de 1862, ele confirma alguns preconceitos sobre o povos brasileiro,
admitindo a “vocação agrícola do Brasil”, uma tese que permaneceu durante décadas, e uma das
responsáveis pela economia brasileira:
Tobias Barreto (1839‑1889) representa uma tendência no pensamento social brasileiro: a crítica
ao Evolucionismo, fosse na versão determinista das leis de estágios do Positivismo, fosse na versão
naturalista do evolucionismo spenceriano. Contudo, essas eram as ideias aceitas em seu ambiente
intelectual e, ao criticá‑las, Barreto deveria estar suficientemete seguro. Vários autores, sobretudo das
áreas de Direito e Filosofia, dentre eles Miguel Reale, Antonio Paim e Paulo Mercadante comentam a
obra de Barreto em relação às questões epistemológicas envolvidas. Em análise em artigo, Ivan Barbosa
também focaliza a relação entre a produção de Tobias Barreto e a Sociologia em curso no Brasil à época.
Sintetiza, em oito pontos, os juízos emitidos sobre a viabilidade da Sociologia como ciência:
Os aspectos ressaltados por esse autor, na verdade, são coerentes com o desenvolvimento da
Sociologia, conforme ele mesmo e outros sociólogos por ele citados reconhecem:
Muitos autores, tais como Vamireh Chacon (1977), Pinto Ferreira (1969),
Carneiro Leão (1953), Djacir Menezes (1964) consideram‑no um precursor
da Sociologia brasileira. Na nossa perspectiva, o autor que mais se aproximou
da exata compreensão da relação entre Tobias e a Sociologia brasileira foi
Antônio Candido (1960, p. 107), ao perceber a justa medida, ou o critério
negativo, que fundamentava essa vinculação: [...] o primeiro escrito teórico
de certo vulto sobre a matéria (deixando de lado as repetições automáticas
dos positivistas) foi possivelmente devido a Tobias Barreto e obedeceu,
vale mencionar, a um critério negativista. São as glosas heterodoxas a um
dos motes do dia ou variações antissociológicas, em que contesta, com
a vivacidade costumeira, a validade e a autonomia de nossa disciplina
(BARBOSA, 2012, p. 50).
Um aspecto instigante da biografia de Barreto reside nos motivos pessoais de sua escolha pela
língua alemã como instrumento para filosofia. A crença de que “só é possível filosofar em alemão” foi
discutida por Rousseau (suiço) e cantada por Veloso (Baiano), a partir daí tornando‑se verdade para o
Sudeste, mas não estranha que já fosse partilhada também por um mulato sergipano que nunca saiu do
Nordeste. De qualquer forma, importa que escolher o alemão foi também sair das dualidades impositivas:
nem spencerianismo evolucionista anglo‑saxão americano, nem o positivismo francês militarista e
conservador. A filosofia alemã, mas não o germanismo, era mais palatável ao seu autodidatismo, à
liberdade de sua obra e atitudes, que testemunhavam a impropriedade de certas ideias aceitas como
104
Pensamento Social Brasileiro
verdadeiras. Além do idioma, as críticas levadas a cabo por Barreto primam pela ironia construída pelos
efeitos de linguagem em português.
Além desses dois autores, “afinidades de biografia” dão origem a certas semelhanças na linha de
pensamento, por exemplo: Alberto Torres (1865‑1917), político, professor e bacharel de Direito, autor
de A organização nacional, foi professor de Oliveira Vianna (1883‑1951), um sociólogo que atuou como
professor de Direito, foi consultor do Ministério da Justiça; também é autor de várias obras clássicas
de ciência política, como Instituições políticas brasileiras. Era membro da ABL. Raymundo Faoro
(1925‑2003) também foi membro da ABL; era jurista, e foi autor de Os donos do poder, um estudo sobre
o patrimonialismo brasileiro. José Honório Rodrigues (1913‑1987), historiador, ensaísta, dentre suas
obras, escreveu Conciliação e reforma no Brasil.
Há ainda outros juristas importantes na formação do pensamento social no Brasil: Nestor Duarte
(1902‑1970), autor de Ordem privada e organização política nacional, uma contribuição à Sociologia
política; Osny Duarte Pereira (1912‑2000), também jurista, participou como docente do Instituto
Superior de Estudos Brasileiros, o ISEB, como chefe do Departamento de Ciência Política, e lançou os
seguintes livros: Quem faz as leis no Brasil? (1962), e O que é uma Constituição? (1964); Vitor Nunes Leal
(1914‑1985) é outro nome de destaque. O jurista escreveu Coronelismo, enxada e voto, sua tese para
professor na atual UFRJ, obra básica em ciência política.
Esses autores contribuem com obras ao pensamento social cujo foco, dirigido para análise no direito,
é articulado à interpretação da sociedade brasileira e da História. São obras que exploram as condições
sociais que deram origem à norma, ao poder legalizado pela norma e aos mecanismos de legitimação
existentes na sociedade brasileira, para compreendê‑los ao longo de sua história e na diversidade
regional existente. Exatamente por isso a produção de alguns desses autores constituiu uma tendência
no pensamento social, especialmente voltada para a formulação política de uma teoria geral da relação
entre Estado e formação social no Brasil. Há mais de meio século (1959), em artigo clássico sobre a
história da Sociologia, afirmava Antonio Cândido (2006, p. 271‑72):
Visando caracterizar essa tendência, de elaboração do pensamento social brasileiro voltado para as
questões pertinentes às relações sociedade, poder e política, são comentados alguns aspectos centrais
ao pensamento de dois representantes dessa tendência: Alberto Torres e Oliveira Vianna.
Alberto Torres, na introdução de seu livro Organização Nacional, em 1914, demonstrava sua forte
tendência nacionalista, em contraposição àqueles que pretendiam ver o Brasil a partir daquilo que o país
demonstrava não ser Europa ou EUA. Aliás, ele assinalava que o “homem brasileiro não é mais indolente
que qualquer outro, é talvez mais paciente”; portanto, qual seria a explicação para a situação que ele
mesmo situava a seguir?
Não há, entretanto, em nosso país, nenhum melhoramento material que não
tenha sido iniciado por brasileiros. Quase todas as nossas grandes empresas
foram fundadas, mantidas e administradas longo tempo por patrícios nossos.
O Brasil não tem, entretanto, hoje, empresas e indústrias de vulto em mãos
de nacionais. No que respeita à iniciativa, à administração e ao trabalho, o
meio social é como um terreno, ou um clima, em que o indivíduo haure,
para as multíplices operações da produção, elementos, auxílios, fatores,
contribuições, lições, exemplos, estímulos e hábitos (TORRES, 2002, p. 46).
A análise da situação prossegue mostrando que não é possível atribuir à raça e ao clima as condições
que induziram esse quadro, e sim às condições sociais e políticas, que foram adversas ao avanço
sistemático do trabalho e da organização. E o autor conclui:
Num país que não saiu do jugo da metrópole senão para ser dirigido por
governos que não surgiram da carne e do sangue do povo e não comungam
com seu espírito e suas tendências, fazendo tudo, pelo contrário, para
desvirtuar‑lhe o caráter, subordinando‑o a ideias e costumes estrangeiros,
não é de surpreender que o povo se não tenha formado, — faltando‑lhe,
como lhe faltou, a escola do determinismo, pelo exercício da liberdade e
da autonomia: do progresso, fisiológico e psíquico, em suma, da atividade
(TORRES, 2002, p. 47).
Como Oliveira Vianna, dileto aluno de Alberto Torres, focaliza essa situação brasileira, que parece não
advir da raça nem do clima.
segura de sua força e dos seus direitos [...] o nosso problema político
fundamental não é o problema do voto, e sim o da organização das fontes
de opinião. Temos que suprir pela ação consciente do indivíduo e do Estado
[...] aquilo que a nossa evolução histórica não nos pode dar: estrutura,
organização, consciência coletiva (VIANNA, 1955, p. 14).
Os dois pensadores concordam que a formação histórica da política brasileira não levou à construção
de uma consciência política, tampouco a uma organização política adequada para as exigências do
século XX. Ambos os autores atribuem ao Estado um papel criador, ou, no dizer de Weffort (2006, p. 266),
concebem um “Estado demiurgo”, aquele que organiza, molda a sociedade, a partir de uma realidade
criada, podendo assim desenvolver o espírito público, o autogoverno etc. Weffort também lembra que
as duas tendências, o nacionalismo e o estatismo, estavam ausentes nas propostas do Império.
Todavia, Alberto Torres critica severamente o “federalismo nominal intransigente” republicano, como
falsa postura, e aponta um “autonomismo” partidário, que dificulta e absorve a expansão da economia
a partir do Rio de Janeiro. Contudo, a situação brasileira não é atribuída apenas a esses fatores de
ordem política. Ele focaliza processos sociais e econômicos em curso, para deles extrair suas conclusões
(embora equivocadas).
Para o autor, a cessação da exploração da terra em algumas regiões, associada ao pequeno surto
de industrialização ocorrido no Rio no fim do século XIX, mais a expansão dos serviços públicos, e
consequente ampliação de empregos urbanos, foram processos que, somados:
Nas entrelinhas dessa análise, é possível notar sinais do moralismo conservador positivista: são
“reclamos”, e não reivindicações ou direitos, o que os trabalhadores manifestam; há menosprezo pela
reivindicação popular a ponto de considerá‑la como “interesse acessório” e tratá‑la com “simpatia
e benevolência”, sabendo‑se que, no ambiente social da política brasileira, as reivindicações dos
trabalhadores em sociedade sempre foram encaradas como problemas, não sociais, mas de política
e polícia. Mesmo assim, o autor continua: “Assim encarado, com descabido exagero, pôs‑se à
margem o grande e vital problema das populações rurais e urbanas, que não são nem capitalistas
nem proletárias, e cujos interesses não se apresentam com o aspecto de conflitos entre o capital e
o trabalho” (Idem).
Esse comentário demonstra seu conhecimento precário dos conceitos necessários à modalidade
de análise que ensaiava fazer; então, em plena expansão do capitalismo industrial, ele adota a tese da
107
Unidade I
“vocação agrícola”, mas não em grandes propriedades, apesar de ser esse modelo o típico brasileiro e
que, segundo ele, deveria ser gradativamente desativado:
Nosso país tem de ser, em primeiro lugar, um país agrícola. Fora ridículo
contestar‑lhe esse destino diante de seu vasto território. Deve manter,
depois, o cultivo dos produtos necessários à vida e dos que empregam
matéria‑prima nacional. É isso que nos impõe a área do nosso território,
a falta de hulha, industrialmente explorável, e o isolamento geográfico de
quase todo o país. O equívoco dos que pensam de outra forma só pode
resultar do prejuízo de que a produção deve constar dos gêneros comuns
na Europa, e da ideia, arraigada no espírito de muitos, da necessidade das
grandes propriedades, de extensa exploração intensiva (Ibidem, p. 341).
De qualquer modo, a elaboração de uma linha de política econômica constitui um tema recorrente
na análise de Alberto Torres, antecipando as contradições que viriam a ser apontadas décadas depois
entre países industrializados e os ainda dependentes da exportação agropecuária; mas ele não fez
estudo da dinâmica de expansão do capital dos EUA na economia dos países da América Latina, embora
tenha alertado para o processo:
Na verdade, Alberto Torres propunha uma revisão da Constituição vigente (1891), porque, segundo ele:
A Constituição vigente não é uma lei nossa e para nós; carta de princípios
exóticos, só tem servido para alhear os espíritos da ideia de que a lei não
é uma forma, nem um aparelho de compressão, imposto ao país, para
moldar‑lhe os movimentos, mas o espelho, a tradução, a própria inervação
de seu organismo: lei funcional e bússola de sua atividade, para lhe servir de
guia e coordenar‑lhe os interesses (Idem).
Antonio Candido (2006, p. 278) confirma que, no pensamento de Torres, “o objetivo imediato
era a reforma constitucional e a regeneração administrativa, pois entendia que, num país sem povo
consciente e, portanto, sem opinião pública formada, incumbiam ao Estado as tarefas fundamentais de
organização e decisão.”
Nesse sentido, para Oliveira Vianna, quais seriam agora os problemas centrais desse processo
“organizador” a ser desenvolvido pelo Estado? Weffort (2006, p. 266) aponta que o exercício do poder
organizador implica direção hierárquica, que “só poderia vir do alto”, porque:
108
Pensamento Social Brasileiro
No entender de Oliveira Vianna (1955, p. 72), a reforma política deverá incluir o que ele denomina
sistema de “freios e contrafreios”, que tenham a dupla finalidade de estimular aspectos positivos e
neutralizar ou impedir os negativos, que seriam: “a) neutralizar a ação nociva das formas de espírito
de classe no nosso organismo político administrativo e, b) quando não seja possível neutralizá‑las,
reduzir‑lhes ao mínimo a influência e nocividade”.
Entretanto, quais seriam as causas desses “males” políticos que estariam a exigir reformas? O autor
ainda enumera sete modalidades desde o Império:
Os problemas apontados indicam oscilações nos interesses das elites, embora Oliveira Vianna não as
responsabilize diretamente, e sim ao momento histórico e à própria realidade da nação, mas concluindo
sobre os ideais republicanos, ele afirma:
Os ideais republicanos no excerto anterior aparecem como um encargo ou papel histórico de uma
elite ou classe, enfim, de um sujeito condutor de um processo; mas Oliveira Vianna escreve Idealismo na
Constituição em 1927, depois de ter publicado outros livros, em 1922 e 1925, sobre o tema em relação
ao Império e à República. Em Instituições Políticas Brasileiras, publicado em 1949, o autor retoma uma
linha de análise iniciada em Populações Meridionais do Brasil, de 1920, privilegiando as bases sociais e
culturais da política brasileira, sem esquecer a dimensão regional. Essa postura aparece sintetizada em
Instituições Políticas Brasileiras:
109
Unidade I
No fundo, todo código novo, toda constituição nova, todo sistema político
novo se resume num modo novo de comportamento social [...] o ideal
contido na Carta nunca encontra apoio na tradição ou costumes do povo,
e discordância entre os padrões ideais da Carta e os comportamentos
individuais é inevitável (VIANNA, 1955, p. 99‑100).
Aqui reside uma questão central na análise de Vianna: a contradição entre o país real, aquele da vida
cotidiana, do direito costumeiro, das práticas sociais e políticas cotidianas, e o país ideal, aquele formal e
teórico, das leis, códigos e constituições. No primeiro, as marcas da história da formação social nacional;
no segundo, as marcas das ideias predominantes na política internacional. Nesses termos, como se
explica a formação das instituições políticas brasileiras?
Para análise, Vianna reconstrói os “pressupostos culturais” da democracia europeia, construção por
meio de processos revolucionários, com a participação do povo. Identifica que a soberania, como atributo
do povo, surgiu desses processos, juntamente com a formação do “sentimento ou consciência de um
interesse ou de finalidade nacional [que] é, sem dúvida, pressuposto essencial, condição preliminar para
perfeito funcionamento de qualquer sistema de Estado democrático” (Ibidem, p. 96).
Ora, esse processo não ocorreu no Brasil: nem mesmo houve a formação das aldeias agrárias
europeias, nem as câmaras municipais eram organizações de tipo democrático. Ao contrário, as câmaras
municipais “não eram, nem nunca foram organizações de tipo democrático, eram corporações de tipo
oligárquico e aristocratizado, não tendo o povo – como elemento de expressão da massa – nenhuma
participação nelas” (Ibidem, p. 161). Sendo a consciência de interesse nacional condição básica para o
perfeito funcionamento de qualquer sistema de Estado democrático, Vianna antecipa os efeitos de sua
ausência:
Os circuitos desse processo de falência do modelo democrático (ou de corrupção, no dizer de Vianna)
implicam distanciamento da idealização, ou seja, do modelo, e aproximação das práticas costumeiras,
ou seja, do direito costumeiro, propiciando o aparecimento dos tipos sociais, reconhecidos na cultura do
país, tais como: o caudilho, potentado do sertão, o juiz “nosso”, o eleitor “de cabresto” etc.
Importante notar que o próprio Vianna distingue sua orientação daquela adotada por Alberto Torres,
apesar da “afinidade” antes apontada. Em contrapartida, a linha de investigação adotada por Raymundo
Faoro, embora ele também seja jurista, percorre outra trajetória para análise da formação do patronato
político brasileiro em Os Donos do Poder, livro publicado em 1958, uma década após a publicação de
Instituições Políticas Brasileiras.
Não há continuidade entre uma obra e outra nem ruptura: são olhares distintos para uma história
peculiar, a da formação política brasileira. Faoro se apoia em Weber para compreender o sentido social
e político do processo de poder em que os sujeitos que nele estão envolvidos, ao mesmo tempo, estão
111
Unidade I
construindo a história de uma formação política. Concluindo o volume II da obra, não por acaso,
denominado A Viagem Redonda: do Patrimonialismo ao Estamento, afirma Faoro (1977, p. 748):
No âmbito das tendências do pensamento social brasileiro, do final da Segunda Guerra, nos anos 1940,
aos meados da década de 1960, com o Golpe de 64 e a Ditadura Civil Militar, verificaram‑se mudanças
radicais de conteúdo e abrangência. Em todos os campos do saber acadêmico novos questionamentos
se originaram, assim como novos e velhos encaminhamentos foram revistos, com reflexos políticos nas
áreas da cultura e artes. São esses encaminhamentos, a sequência dos velhos no caminho dos novos, que
constituem os próximos capítulos.
Resumo
Exercícios
A pipoca
A culinária me fascina. De vez em quando eu até me até atrevo a cozinhar. Mas o fato é
que sou mais competente com as palavras do que com as panelas.
Por isso tenho mais escrito sobre comidas que cozinhado. Dedico‑me a algo que poderia
ter o nome de “culinária literária”. Já escrevi sobre as mais variadas entidades do mundo da
cozinha: cebolas, ora‑pro‑nobis, picadinho de carne com tomate feijão e arroz, bacalhoada,
suflês, sopas, churrascos.
A pipoca, milho mirrado, grãos redondos e duros, me pareceu uma simples molecagem,
brincadeira deliciosa, sem dimensões metafísicas ou psicanalíticas. Entretanto, dias atrás,
conversando com uma paciente, ela mencionou a pipoca. E algo inesperado na minha mente
aconteceu. Minhas ideias começaram a estourar como pipoca. Percebi, então, a relação
metafórica entre a pipoca e o ato de pensar. Um bom pensamento nasce como uma pipoca
que estoura, de forma inesperada e imprevisível.
113
Unidade I
Para os cristãos, religiosos são o pão e o vinho, que simbolizam o corpo e o sangue de
Cristo, a mistura de vida e alegria (porque vida, só vida, sem alegria, não é vida...). Pão e
vinho devem ser bebidos juntos. Vida e alegria devem existir juntas.
Lembrei‑me, então, de lição que aprendi com a Mãe Stella, sábia poderosa do candomblé
baiano: que a pipoca é a comida sagrada do candomblé...
Fosse eu agricultor ignorante, e se no meio dos meus milhos graúdos aparecessem aquelas
espigas nanicas, eu ficaria bravo e trataria de me livrar delas. Pois o fato é que, sob o ponto de vista
de tamanho, os milhos da pipoca não podem competir com os milhos normais. Não sei como isso
aconteceu, mas o fato é que houve alguém que teve a ideia de debulhar as espigas e colocá‑las
numa panela sobre o fogo, esperando que assim os grãos amolecessem e pudessem ser comidos.
E o que é que isso tem a ver com o candomblé? É que a transformação do milho duro
em pipoca macia é símbolo da grande transformação porque devem passar os homens para
que eles venham a ser o que devem ser. O milho da pipoca não é o que deve ser. Ele deve ser
aquilo que acontece depois do estouro. O milho da pipoca somos nós: duros, quebra‑dentes,
impróprios para comer, pelo poder do fogo podemos, repentinamente, nos transformar em
outra coisa — voltar a ser crianças! Mas a transformação só acontece pelo poder do fogo.
Milho de pipoca que não passa pelo fogo continua a ser milho de pipoca, para sempre.
Mas, de repente, vem o fogo. O fogo é quando a vida nos lança numa situação que
nunca imaginamos. Dor. Pode ser fogo de fora: perder um amor, perder um filho, ficar
doente, perder um emprego, ficar pobre. Pode ser fogo de dentro. Pânico, medo, ansiedade,
depressão — sofrimentos cujas causas ignoramos. Há sempre o recurso aos remédios. Apagar
o fogo. Sem fogo o sofrimento diminui. E com isso a possibilidade da grande transformação.
114
Pensamento Social Brasileiro
Imagino que a pobre pipoca, fechada dentro da panela, lá dentro ficando cada vez mais
quente, pense que sua hora chegou: vai morrer. De dentro de sua casca dura, fechada em si
mesma, ela não pode imaginar destino diferente. Não pode imaginar a transformação que
está sendo preparada. A pipoca não imagina aquilo de que ela é capaz. Aí, sem aviso prévio,
pelo poder do fogo, a grande transformação acontece: PUF!! — e ela aparece como outra
coisa, completamente diferente, que ela mesma nunca havia sonhado. É a lagarta rastejante
e feia que surge do casulo como borboleta voante.
Em Minas, todo mundo sabe o que é piruá. Falando sobre os piruás com os paulistas,
descobri que eles ignoram o que seja. Alguns, inclusive, acharam que era gozação
minha, que piruá é palavra inexistente. Cheguei a ser forçado a me valer do Aurélio
para confirmar o meu conhecimento da língua. Piruá é o milho de pipoca que se recusa
a estourar.
Por exemplo: em Minas “piruá” é o nome que se dá às mulheres que não conseguiram
casar. Minha prima, passada dos quarenta, lamentava: “Fiquei piruá!” Mas acho que o poder
metafórico dos piruás é maior.
Piruás são aquelas pessoas que, por mais que o fogo esquente, se recusam a mudar. Elas
acham que não pode existir coisa mais maravilhosa do que o jeito delas serem.
Ignoram o dito de Jesus: “Quem preservar a sua vida perdê‑la‑á”. A sua presunção e o
seu medo são a dura casca do milho que não estoura. O destino delas é triste. Vão ficar
duras a vida inteira. Não vão transformar‑se na flor branca macia. Não vão dar alegria para
ninguém. Terminado o estouro alegre da pipoca, no fundo da panela ficam os piruás que
não servem para nada. Seu destino é o lixo.
Quanto às pipocas que estouraram, são adultos que voltaram a ser crianças e que sabem
que a vida é uma grande brincadeira...
“Nunca imaginei que chegaria um dia em que a pipoca iria me fazer sonhar. Pois foi
precisamente isso que aconteceu”.
115
Unidade I
I – A pipoca é usada como metáfora para criticar a contribuição da religião na formação social
brasileira. Assim, a dificuldade de progresso e de transformação encontraria suas explicações nos cultos
religiosos, cristãos ou de origem africana.
III – O autor considera que só as pessoas não religiosas tornam‑se piruás, pois são incapazes de
perceber o mundo de forma científica.
I – Afirmativa incorreta.
Justificativa: o autor usa a religião como fonte de inspiração para uma análise poética da
transformação que ocorre com o milho quando submetido ao calor ou exposto à gordura. Essa poesia é
construída a partir da constatação de que a mudança está contida no próprio milho. De forma alguma
o autor critica o papel das religiões na formação do pensamento social brasileiro.
II – Afirmativa correta.
Justificativa: ao elaborar uma leitura poética sobre a pipoca e o processo de transformação que
ocorre com o milho, o autor mescla elementos da cristandade, do candomblé e da própria ciência.
Essa mescla leva‑nos a perceber a contribuição das várias etnias na formação do pensamento social
brasileiro.
116
Pensamento Social Brasileiro
Justificativa: ao mencionar piruás, o autor faz referência às pessoas que resistem à mudança. Assim,
piruá seria o milho da pipoca que, mesmo submetido ao calor, recusar‑se‑ia a “estourar”. O autor não
faz qualquer associação entre esse comportamento e as atitudes religiosas ou científicas das pessoas
resistentes a mudanças.
117
Unidade I
118