Você está na página 1de 280

Pensamento Filosófico e

Social no Brasil
Prof. Joel Haroldo Baade
Prof. Joel Cezar Bonin

2013
Copyright © UNIASSELVI 2013

Elaboração:
Prof. Joel Haroldo Baade
Prof. Joel Cezar Bonin

Revisão, Diagramação e Produção:


Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI

Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri


UNIASSELVI – Indaial.

101
B111p Baade, Joel Haroldo
Pensamento filosófico e social no Brasil / Joel Haroldo Baade;
Joel Cezar Bonin. Indaial : Uniasselvi, 2013.

270 p. : il

ISBN 978-85-7830- 688-5

1. Filosofia – Teoria.
I. Centro Universitário Leonardo da Vinci.

Impresso por:
Apresentação
A filosofia e a sociologia fazem parte do nosso cotidiano, embora
muitas vezes, não nos damos conta disso. Por essa razão, a presente
disciplina tem como proposta aproximar a reflexão filosófica e sociológica
daquilo que vivemos em nosso dia a dia, para que possamos compreendê-
lo melhor. Além disso, o foco desta disciplina não é tanto que você, caro(a)
acadêmico(a), “decore” os conteúdos, mas que participe da reflexão e, desse
modo, exercite a capacidade de pensar filosófica e sociologicamente.

A trama de constituição desse Caderno de Estudos foi pensada para


que a sua leitura e estudo possibilitem justamente o desenvolvimento dos
objetivos traçados. Preferiu-se seguir uma ordem histórico-cronológica, pois
a historicidade é própria da existência humana. Quando pensamos em nós
mesmos e de quem somos, pensamo-nos como seres históricos. Por essa
razão, iniciamos a reflexão com o surgimento do pensamento científico na
Grécia Antiga através da filosofia. Ao longo da primeira unidade, é seguida a
trajetória do pensamento filosófico até a atualidade, buscando-se identificar
continuidades e rupturas em cada novo período do pensamento humano.

Na segunda unidade, faz-se exercício semelhante em relação ao


pensamento social, como um desdobramento e especialização do pensamento
filosófico a partir do século XVIII com as Revoluções Industrial e Francesa.
O pensamento social surge como necessidade de as sociedades humanas
compreenderem melhor a sua existência coletiva, seja pela necessidade de
organização da vida em sociedade ou como forma de denúncia das injustiças
que ela possa gerar.

Por fim, na terceira unidade, será analisada a construção do


pensamento filosófico e social no Brasil. Por um lado, ele está na continuidade
da reflexão filosófica e sociológica anterior. Mas, por outro lado, desenvolveu
também as suas particularidades, conforme as necessidades da realidade
brasileira.

Convidamos você, caro(a) acadêmico(a), a fazer esta reflexão conosco.

Bons estudos!

Prof. Dr. Joel Haroldo Baade


Prof. Joel Boni

III
NOTA

Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para
você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há
novidades em nosso material.

Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é


o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um
formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura.

O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova
diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também
contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo.

Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente,


apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilidade
de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador.
 
Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para
apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto
em questão.

Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas
institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa
continuar seus estudos com um material de qualidade.

Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de


Desempenho de Estudantes – ENADE.
 
Bons estudos!

UNI

Olá acadêmico! Para melhorar a qualidade dos


materiais ofertados a você e dinamizar ainda mais
os seus estudos, a Uniasselvi disponibiliza materiais
que possuem o código QR Code, que é um código
que permite que você acesse um conteúdo interativo
relacionado ao tema que você está estudando. Para
utilizar essa ferramenta, acesse as lojas de aplicativos
e baixe um leitor de QR Code. Depois, é só aproveitar
mais essa facilidade para aprimorar seus estudos!

IV
V
VI
Sumário
UNIDADE 1 – PENSAMENTO FILOSÓFICO E A COMPREENSÃO DA VIDA SOCIAL...... 1

TÓPICO 1 – OS FILÓSOFOS ANTIGOS E MEDIEVAIS................................................................. 3


1 INTRODUÇÃO...................................................................................................................................... 3
2 A FILOSOFIA NA GRÉCIA ANTIGA............................................................................................... 4
2.1 O SURGIMENTO DO PENSAMENTO FILOSÓFICO................................................................ 5
2.2 OS FILÓSOFOS PRÉ-SOCRÁTICOS.............................................................................................. 8
2.3 OS SOFISTAS..................................................................................................................................... 10
2.4 SÓCRATES......................................................................................................................................... 13
2.5 PLATÃO............................................................................................................................................. 15
2.6 ARISTÓTELES................................................................................................................................... 20
3 O PENSAMENTO FILOSÓFICO HELENÍSTICO.......................................................................... 24
3.1 A FILOSOFIA NA IDADE MÉDIA................................................................................................ 25
3.2 SANTO AGOSTINHO E A PATRÍSTICA...................................................................................... 25
3.3 TOMÁS DE AQUINO E A ESCOLÁSTICA.................................................................................. 27
LEITURA COMPLEMENTAR................................................................................................................ 29
RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................ 32
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................................. 33

TÓPICO 2 – A REVOLUÇÃO FILOSÓFICA A PARTIR DA MODERNIDADE......................... 35


1 INTRODUÇÃO...................................................................................................................................... 35
2 CONTEXTO HISTÓRICO, O SÉCULO XVI E A RENASCENÇA.............................................. 36
2.1 NICOLAU MAQUIAVEL E A FILOSOFIA POLÍTICA.............................................................. 40
2.2 FILOSOFIA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO.................................................... 44
2.2.1 Racionalismo: René Descartes............................................................................................... 45
2.2.2 Empirismo: Francis Bacon, John Locke e David Hume..................................................... 48
2.2.3 Francis Bacon............................................................................................................................ 49
2.2.4 John Locke................................................................................................................................ 50
2.2.5 David Hume............................................................................................................................. 51
2.2.6 Racionalismo ou empirismo?................................................................................................. 52
2.3 ILUMINISMO.................................................................................................................................... 53
2.3.1 Immanuel Kant........................................................................................................................ 54
2.3.2 Jean-Jacques Rousseau e Montesquieu................................................................................. 55
LEITURA COMPLEMENTAR................................................................................................................ 58
RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................................ 60
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................................. 61

TÓPICO 3 – A FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA............................................................................. 63


1 INTRODUÇÃO...................................................................................................................................... 63
2 A FILOSOFIA NO SÉCULO XIX........................................................................................................ 63
3 O IDEALISMO HEGELIANO............................................................................................................. 64
3.1 O PENSAMENTO MATERIALISTA DE FEUERBACH.............................................................. 68
3.2 ANTECEDENTES DA CRISE DA RAZÃO................................................................................... 69
3.3 A FILOSOFIA NO SÉCULO XX..................................................................................................... 71

VII
3.3.1 O pragmatismo........................................................................................................................ 73
3.3.2 A fenomenologia...................................................................................................................... 73
3.3.2.1 Edmund Husserl................................................................................................................... 74
3.3.2.2 Martin Heidegger................................................................................................................. 75
3.3.2.3 Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir............................................................................. 76
4 A FILOSOFIA DA LINGUAGEM...................................................................................................... 77
4.1 JÜRGEN HABERMAS E A TEORIA DA AÇÃO COMUNICATIVA........................................ 78
LEITURA COMPLEMENTAR................................................................................................................ 80
RESUMO DO TÓPICO 3........................................................................................................................ 83
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................................. 84

UNIDADE 2 – PENSAMENTO SOCIOLÓGICO.............................................................................. 87

TÓPICO 1 – DEFINIÇÕES E HISTÓRIA DA SOCIOLOGIA......................................................... 89


1 INTRODUÇÃO...................................................................................................................................... 89
2 A REVOLUÇÃO INDUSTRIAL.......................................................................................................... 90
3 REVOLUÇÃO FRANCESA.................................................................................................................. 95
4 O ILUMINISMO.................................................................................................................................... 99
5 POSITIVISMO..................................................................................................................................... 103
6 ESCOLA DE CHICAGO..................................................................................................................... 108
7 ESCOLA DE FRANKFURT E A REIFICAÇÃO DO SUJEITO.................................................... 111
8 A SOCIOLOGIA NA PÓS-MODERNIDADE............................................................................... 117
RESUMO DO TÓPICO 1...................................................................................................................... 119
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................ 120

TÓPICO 2 – IMPORTANTES SOCIÓLOGOS E ALGUMAS CARACTERÍSTICAS DO SEU


PENSAMENTO
1 INTRODUÇÃO.................................................................................................................................... 121
2 KARL MARX........................................................................................................................................ 122
3 ÉMILE DURKHEIM............................................................................................................................ 128
4 MAX WEBER........................................................................................................................................ 132
5 MICHEL FOUCAULT......................................................................................................................... 137
6 NORBERT ELIAS, ERWING GOFFMAN, PIERRE BOURDIEU E ZYGMUNT BAUMAN
E OS PROCESSOS DE DEFINIÇÃO DO “EU” NA SOCIEDADE............................................ 142
RESUMO DO TÓPICO 2...................................................................................................................... 152
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................ 153

TÓPICO 3 – TEMAS SOCIOLÓGICOS............................................................................................. 155


1 INTRODUÇÃO.................................................................................................................................... 155
2 PROCESSOS SOCIAIS....................................................................................................................... 156
2.1 STATUS E PAPEL SOCIAL............................................................................................................ 160
2.2 ESTRUTURA E ORGANIZAÇÃO SOCIAL............................................................................... 162
2.3 INSTITUIÇÕES SOCIAIS.............................................................................................................. 164
LEITURA COMPLEMENTAR.............................................................................................................. 169
3 ESTRATIFICAÇÃO SOCIAL E MOBILIDADE............................................................................ 171
4 MOVIMENTOS SOCIAIS................................................................................................................. 174
LEITURA COMPLEMENTAR 2........................................................................................................... 176
RESUMO DO TÓPICO 3...................................................................................................................... 179
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................ 180

VIII
UNIDADE 3 – PENSAMENTO FILOSÓFICO E SOCIAL NO BRASIL......................................181

TÓPICO 1 – FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA HISTÓRIA DO BRASIL............................... 183


1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................................183
2 DO PERÍODO COLONIAL ATÉ OS DIAS ATUAIS....................................................................184
3 IMIGRAÇÃO EUROPEIA E INDUSTRIALIZAÇÃO..................................................................190
4 A REPÚBLICA VELHA.......................................................................................................................199
5 A ERA VARGAS...................................................................................................................................201
6 A DITADURA MILITAR....................................................................................................................206
RESUMO DO TÓPICO 1......................................................................................................................212
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................213

TÓPICO 2 – FILÓSOFOS E SOCIÓLOGOS BRASILEIROS DE DESTAQUE.......................... 215


1 INTRODUÇÃO.................................................................................................................................... 215
2 EUCLIDES DA CUNHA..................................................................................................................... 216
3 OLIVEIRA VIANA.............................................................................................................................. 221
4 SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA.............................................................................................. 227
LEITURA COMPLEMENTAR.............................................................................................................. 231
5 FLORESTAN FERNANDES.............................................................................................................. 233
6 DARCY RIBEIRO................................................................................................................................ 238
RESUMO DO TÓPICO 2...................................................................................................................... 242
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................ 243

TÓPICO 3 – QUESTÕES SOCIAIS BRASILEIRAS NA ATUALIDADE:


CRIMINALIDADE, SOCIOLOGIA RURAL, MOVIMENTOS SOCIAIS,
RELIGIÃO E LIBERTAÇÃO.........................................................................................245
1 INTRODUÇÃO.................................................................................................................................... 245
2 CRIMINALIDADE E COMPORTAMENTO................................................................................. 246
3 SOCIOLOGIA DO MEIO AMBIENTE RURAL............................................................................ 253
4 TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO........................................................................................................ 256
5 MOVIMENTOS SOCIAIS NO BRASIL......................................................................................... 259
LEITURA COMPLEMENTAR.............................................................................................................. 263
RESUMO DO TÓPICO 3...................................................................................................................... 265
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................ 266
REFERÊNCIAS........................................................................................................................................ 267

IX
X
UNIDADE 1

PENSAMENTO FILOSÓFICO E A
COMPREENSÃO DA VIDA SOCIAL

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
Esta unidade tem por objetivos:

• conhecer a história e o desenvolvimento do pensamento filosófico no oci-


dente a partir da tradição greco-romana;

• reconhecer os principais períodos da história da filosofia com os seus res-


pectivos pensadores e tendências;

• compreender a relação entre produção filosófica e contexto histórico.

PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em três tópicos e em cada um deles você encontrará
atividades visando à compreensão dos conteúdos apresentados.

TÓPICO 1 – OS FILÓSOFOS ANTIGOS E MEDIEVAIS

TÓPICO 2 – A REVOLUÇÃO FILOSÓFICA A PARTIR DA MODERNIDADE

TÓPICO 3 – A FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA

1
2
UNIDADE 1
TÓPICO 1

OS FILÓSOFOS ANTIGOS E MEDIEVAIS

1 INTRODUÇÃO
Prezado(a) acadêmico(a), o pensamento filosófico tem grande importância
para o pensamento social, pois ele é reflexo e aprofundamento deste. Você
já estudou a história da filosofia. Contudo, é necessário retomarmos alguns
aspectos do pensamento filosófico ao longo da história da humanidade para
entendermos em que medida eles contribuíram para a formação do pensamento
atual, especialmente o pensamento social brasileiro.

No primeiro tópico deste Caderno de Estudos nós estudaremos o


desenvolvimento do pensamento filosófico desde a antiguidade grega até a
Idade Média. Em relação à filosofia grega, veremos que ela não surge do acaso
e, tampouco, como invenção ou imaginação de algumas poucas pessoas. Mas ela
surge justamente como uma maneira mais profunda de compreender e interpretar
a realidade social em que a Grécia dos filósofos se encontrava.

Veremos que com a perda da autonomia política da Grécia, após ela ser
invadida por vários impérios, também a filosofia sofre mudanças. Gradativamente,
as preocupações dos filósofos se voltam para o sobrenatural, pois neste mundo
já não havia muitas perspectivas para se viver uma vida em plenitude. Esse foi o
período do helenismo.

Por fim, a respeito da Idade Média, veremos que a tendência do helenismo


se aprofundou. A filosofia nesta fase da história será transformada em ferramenta
da teologia e da igreja cristã. Os representantes principais da filosofia da Idade
Média são Santo Agostinho e Tomás de Aquino.

Ao final da unidade, você, prezado(a) acadêmico(a), tem uma leitura


complementar sobre a lógica aristotélica, que pode ser muito útil para que
possamos desenvolver uma argumentação mais consistente e coerente.

3
UNIDADE 1 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E A COMPREENSÃO DA VIDA SOCIAL

2 A FILOSOFIA NA GRÉCIA ANTIGA


A Grécia Antiga é berço da Filosofia, mas isso você já viu em outras
disciplinas do curso. Portanto, não cabe aqui retomar esse discurso. Mesmo assim,
vamos retomar algumas ideias da antiguidade grega, procurando relacionar a
reflexão filosófica do período com a realidade social onde ela surge.

Dessa forma, queremos entender como as ideias filosóficas são, por um


lado, resultado do meio social onde surgem e, por outro, almejamos contemplar
em que medida elas também são formadoras da realidade.

O salto qualitativo que possibilitou o surgimento da filosofia foi, em boa


medida, a intensificação da vida social. Nesse sentido, o surgimento das cidades,
das polis gregas, foi fundamental para o advento da filosofia.

Segundo Trigo (2009, p. 12):


[...] o surgimento das cidades-estados gregas (pólis) [...] significou o
desenvolvimento de vários aspectos significativos da cultura grega
(teatro, literatura, oratória), das formas de governo, da participação
do povo nas tomadas de decisão (a antiga democracia grega) e nas
questões mais práticas, como agricultura, construção civil, navegação,
comércio, matemática e geometria.

Para ilustrar como a vida em sociedade exige dos indivíduos uma maior
capacidade de articulação, é interessante fazer uma analogia com o programa
Big Brother Brasil (BBB), da Rede Globo de Televisão. Enquanto os indivíduos
estão vivendo de forma isolada, distantes um do outro, há pouca necessidade de
esforço que possibilite a convivência.

Da mesma forma, no tempo em que a vida era predominantemente


rural, em que as pessoas moravam longe umas das outras, pouco precisavam se
preocupar em organizar as suas vidas ao lado de outras pessoas.

Contudo, quando no BBB diversas pessoas diferentes umas das outras


são colocadas numa mesma casa, ou seja, quando elas repentinamente estão
muito próximas umas das outras, surgem necessidades de organizar este local
de convivência. Não demora e surgem os primeiros conflitos. É preciso criar leis
e normas de convivência. Quando alguém desrespeita essas leis, é preciso criar
formas de punição, correção, reparação...

Na Grécia antiga, quando as cidades cresceram, havia muitas pessoas


ocupando um espaço físico limitado. Essa nova forma de vida humana precisava
ser organizada. A grande dificuldade, por sua vez, estava no fato de que não
havia precedentes, ou seja, era a primeira vez em que o ser humano se deparava
com uma situação daquele tipo.

4
TÓPICO 1 | OS FILÓSOFOS ANTIGOS E MEDIEVAIS

No esforço de responder a esses novos problemas é que algumas pessoas


se dispõem a pensar sobre eles. Estes primeiros pensadores e articuladores da
vida social ainda não podem ser chamados de filósofos, mas contribuem de modo
decisivo para uma mudança de mentalidade que viria a ser fundamental para o
surgimento do filósofo.

Feita esta reflexão inicial, vamos nos ocupar a seguir com alguns fatores
e mudanças na organização da vida social, que propiciaram o surgimento do
pensamento filosófico e que serviriam de base para a estruturação de todo o
pensamento racional humano posterior.

2.1 O SURGIMENTO DO PENSAMENTO FILOSÓFICO


Fundamental para o desenvolvimento do pensamento racional e filosófico
foi a superação da mentalidade mítica. Segundo os mitos, a Terra era povoada por
seres sobrenaturais, que habitavam os confins dos mares e os locais mais distantes
do planeta. Como estes lugares longínquos ainda não haviam sido alcançados,
eles representam um vazio que acaba sendo preenchido pelo imaginário humano.

Ocorreu que, com o desenvolvimento da sociedade humana na Grécia, o


crescimento das cidades e o avanço do comércio daí decorrente, surge a necessidade
de ir cada vez mais longe em busca de produtos para atender às necessidades das
populações das cidades. Quando os povos viviam predominantemente em espaços
rurais, tudo aquilo que era necessário para o sustento da vida era obtido nas
proximidades. Mas quando a população se torna mais numerosa, o aumento da
demanda faz com que as áreas de cultivo tenham que ser cada vez maiores.

Contudo, a geografia da Grécia não possibilita muita ampliação, pois ela


é constituída de uma península e de várias ilhas no Mar Mediterrâneo. Observe
a figura a seguir:

5
UNIDADE 1 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E A COMPREENSÃO DA VIDA SOCIAL

FIGURA 1– MAPA DA GRÉCIA ANTIGA

FONTE: Disponível em: <http://www.hipatia.com.pt/imagens_site/mapa_da_grecia_


antiga_2.jpg>. Acesso em: 20 out. 2012.

E então, caro(a) acadêmico(a), o que restava aos gregos para que


pudessem continuar se desenvolvendo como sociedade? Diante de tais condições,
um elemento essencial é a navegação. Mas a navegação não contribuiu para o
surgimento do pensamento filosófico apenas de modo indireto, na medida em
que possibilita o avanço da sociedade.

Ela foi fundamental, isto sim, porque as pessoas puderam navegar para
locais cada vez mais distantes na Terra e, aos poucos, foram se dando conta
de que as criaturas mitológicas ou a própria imagem que se tinha do mundo,
transmitidas através dos mitos, não correspondiam à realidade.

Em terras distantes ninguém encontrou ciclopes, serpentes marinhas,


gigantes etc., apenas outras pessoas iguais ou, pelo menos, muito parecidas
com elas mesmas. Nesse sentido, o desenvolvimento da navegação teve uma
contribuição fundamental para o surgimento do pensamento filosófico.

Um segundo elemento fundamental para o desenvolvimento do


pensamento filosófico foi a invenção do calendário. Assim como a navegação
surge em atendimento a necessidades bem concretas da sociedade, também
o calendário visava a este propósito. Com o aumento populacional, havia
necessidade de mais alimentos, levando à expansão da agricultura.

6
TÓPICO 1 | OS FILÓSOFOS ANTIGOS E MEDIEVAIS

Para satisfazer a demanda por alimentos, esta agricultura precisava ser


eficaz. Ou seja, não se podia correr o risco de perder safras, pois isto poderia
desencadear crises de fome e outros problemas relacionados. Era preciso, portanto,
saber quais eram as melhores épocas do ano para o plantio de determinada safra
e quando havia os menores riscos de perda das lavouras devido a intempéries
climáticas.

O calendário surge como registro dessas experiências e permite a sua


aplicação nas atividades humanas posteriores. Ele contribuiu para o surgimento do
pensamento filosófico, na medida em que faz ver que a prosperidade da agricultura
não dependia da vontade de entidades sobrenaturais e dos deuses, mas, sim,
dependia em boa medida das condições climáticas de cada época do ano.

Nesse sentido, Marilena Chauí (2008, p. 37) acentua que, com o calendário,
foi possível:
Calcular o tempo segundo as estações do ano, as horas do dia, os fatos
importantes que se repetem, revelando, com isso, uma capacidade de
abstração nova ou uma percepção do tempo como algo natural e não
como uma força divina incompreensível.

Com o calendário foi possível observar que muitas das condições


necessárias para o êxito da agricultura se repetiam, independentemente da
fidelidade do povo a uma determinada divindade, de modo que a mentalidade
retratada pelo mito passasse a ser posta cada vez mais em dúvida ou, no mínimo,
perdesse importância.

O desenvolvimento das cidades e a complexificação da vida daí decorrente


ainda levaram ao desenvolvimento do comércio e ao surgimento da moeda, que
visou facilitar as operações de trocas de mercadorias entre as pessoas. Quando
a sociedade era constituída de um número reduzido de indivíduos, havia
pouca necessidade de troca de mercadorias. As que eram realizadas geralmente
ocorriam de modo direto.

Ou seja, quem tinha maior quantidade de farinha do que necessitava para o


próprio consumo, mas queria ter azeitonas em sua dieta, poderia procurar alguém
que cultivava azeitonas e propor uma troca por alguma quantidade de farinha. A
troca se concretizava pela entrega de um produto e o recebimento de outro.

Contudo, quando cresceram as cidades e o número de habitantes e a


própria agricultura se tornou bem mais diversificada, também se tornou mais
difícil encontrar alguém que estivesse disposto a trocar farinha por azeitonas.
Dependendo do produto que se procurava ou que se tinha para oferecer, as trocas
poderiam ser quase impossíveis.

Diante dessa necessidade, a moeda surge como possibilidade de troca,


independentemente do que se procura de mercadoria. É possível se desfazer dos
excedentes de produção, entregando-os a quem neles estivesse interessado, em

7
UNIDADE 1 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E A COMPREENSÃO DA VIDA SOCIAL

troca de algumas moedas, que correspondem a um determinado valor. Com as


moedas, por sua vez, podia-se procurar quem estivesse vendendo os produtos
que se deseja adquirir, que podem ser comprados mediante a entrega dos valores
monetários.

Marilena Chauí (2008, p. 37) acentua a esse respeito:


[a moeda] permitiu uma forma de troca que não se realiza como
escambo ou em espécie (isto é, coisas trocadas por outras coisas) e sim
uma troca abstrata, uma troca feita pelo cálculo do valor semelhante
das coisas diferentes, revelando, portanto, uma nova capacidade de
abstração e de generalização.

Em virtude disso, o desenvolvimento da moeda e do comércio também


contribuiu para o surgimento do pensamento filosófico. Essa nova situação fez
com que a mentalidade dos indivíduos fosse gradativamente deslocada de uma
esfera sobrenatural e mitológica para a dimensão do cotidiano.

No ponto seguinte vamos nos ocupar com o pensamento dos primeiros


filósofos, procurando perceber de que modo as suas filosofias contribuíram para
o entendimento da sociedade em formação e de que modo essas novas formas de
pensar corroboram para o avanço da nova sociedade.

2.2 OS FILÓSOFOS PRÉ-SOCRÁTICOS


A classificação de "filósofos pré-socráticos" é recente e decorre da
importância central que o filósofo Sócrates ocupa dentro da história da filosofia no
Ocidente. Então, os pré-socráticos são os filósofos que viveram antes de Sócrates,
cujo pensamento será analisado mais adiante.

A partir do que já estudamos anteriormente, Trigo (2008, p. 12-13) afirma


que:
O desenvolvimento intelectual da civilização grega possibilitou a
discussão de suas comunidades sobre problemas mais abrangentes,
denominados cósmicos. Para os antigos gregos, o mundo era o cosmos,
uma palavra que significa "ordem", "beleza", "harmonia", em oposição
ao caos, a desordem que existia antes da criação do mundo. E a filosofia
[...] nasce nesse contexto repleto de mudanças. Os filósofos, assim
chamados por seguirem a postura de se relacionarem intensamente
com o conhecimento, eram os "amantes da sabedoria", esta constituindo
o objetivo final desses grandes pensadores.

Conforme Chauí (2008, p. 39), o trabalho dos pré-socráticos “é uma


explicação racional e sistemática sobre a origem, ordem e transformação da
natureza, da qual os seres humanos fazem parte, de modo que, ao explicar a
natureza, a Filosofia também explica a origem e as mudanças dos seres humanos”.

8
TÓPICO 1 | OS FILÓSOFOS ANTIGOS E MEDIEVAIS

Assim, por exemplo, podemos citar os filósofos Heráclito e Parmênides.


Estes dois pensadores elaboraram duas diferentes concepções de cosmologia.
Ou seja, tentaram explicar, cada um a seu modo, qual a ordem fundamental e
constitutiva do universo. Eles não se preocuparam em descrever o que ocorre do
ponto de vista histórico, mas quiseram achar a arché (origem), entendido como
aquilo que é o fundamento do ser.

Segundo Aranha e Martins (2003, p. 83), "buscar a arché é explicar qual é o


elemento constitutivo de todas as coisas”.

Heráclito viveu entre os anos 544 e 484 a.C.. Ele nasceu em Éfeso, na
Jônia, que nos dias atuais é a Turquia. A sua grande preocupação foi entender a
multiplicidade do real. Ao olhar o mundo, percebia que ele não era uniforme, mas
que tudo estava em constante transformação. Heráclito não rejeita as contradições
do mundo e procura entendê-lo em sua dimensão de mudança, ou no seu devir.

Aquilo que está diante de nossos olhos em determinado momento é algo


diferente do que foi no dia anterior, mesmo que, muitas vezes, as mudanças
não sejam perceptíveis aos nossos olhos. Por essa razão, Heráclito afirmava que
"nunca nos banhamos duas vezes no mesmo rio".

Ele tinha a convicção de que todas as coisas têm em si o germe da


transformação; cada coisa possui contradições internas que levam à contínua
mudança. A harmonia no mundo brota da síntese desses contrários.

TUROS
ESTUDOS FU

Mais tarde, quando estudarmos o pensamento de Hegel no século XIX sobre a


lógica dialética, veremos que muitas destas ideias serão retomadas. O mesmo acontecerá
com Karl Marx, que enfatizará as lutas e as contradições de classe. (ARANHA; MARTINS, 2003).

Já o filósofo Parmênides acentuará em sua filosofia a imobilidade do ser.


Parmênides viveu entre 540 e 470 a.C. em Eleia, uma cidade ao sul da região que
então era chamada de Magna Grécia e que hoje forma a Itália.

Ele é o principal representante da denominada escola eleática. Segundo


seu pensamento filosófico, era absurda a ideia de Heráclito, segundo a qual todas
as coisas possuem em si o embrião da contradição e da mudança. Parmênides
não conseguia entender como algo poderia "ser" e "não ser" ao mesmo tempo. Por
isso, ele contrapõe à filosofia heraclitiana a imobilidade do ser.

9
UNIDADE 1 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E A COMPREENSÃO DA VIDA SOCIAL

Devido às suas convicções, Parmênides postula que o ser é único, imóvel,


imutável e infinito. A essência de todas as coisas é sempre a mesma, apenas na
aparência é que percebemos a mudança.

As diferenças são percebidas apenas no mundo sensível, que, segundo


este filósofo, é falso, pois a percepção pelos sentidos é ilusória. Parmênides estava
convicto de que somente o mundo inteligível é verdadeiro e que o pensamento
corresponde à realidade. Esta correspondência entre pensamento e realidade será
chamada na Filosofia de princípio da identidade. (ARANHA; MARTINS, 2003).

UNI

Mais adiante, no século XVI, esta ideia irá ser retomada por René Descartes,
quando este acentuar o papel da razão na construção do conhecimento. Mas isto é assunto
para o segundo tópico deste estudo.

Outros filósofos pré-socráticos ainda disseram que o fundamento de


todas as coisas estava na água (Tales), no ar (Anaxímenes), no átomo (Demócrito)
ou nos quatro elementos – terra, ar, água e fogo (Empédocles) (ARANHA;
MARTINS, 2003). O trabalho dos filósofos pré-socráticos é distinto das narrativas
mitológicas, pois eles discutem de maneira racional sobre a natureza e de que
forma ela está organizada.

Essas primeiras formas de pensamento filosófico foram possíveis graças


ao ambiente da cidade, do pensamento progressivamente concreto e racional. O
contexto da cidade possibilitou que pessoas se ocupassem com esse tipo de questões.

A vida na cidade também fez surgir outro tipo de reflexão, preocupada


com a convivência das pessoas na cidade, a sua organização e desenvolvimento.
Quando havia pessoas pensando de formas diferentes sobre o progresso da cidade,
era preciso convencer as demais para que seguissem um plano determinado.

Essas estratégias foram pensadas pelos chamados sofistas, sobre quem


falaremos no próximo ponto.

2.3 OS SOFISTAS
A atuação dos sofistas destoa bastante da reflexão dos filósofos pré-
socráticos. Isto se deve, em boa medida, porque os seus interesses são distintos.

10
TÓPICO 1 | OS FILÓSOFOS ANTIGOS E MEDIEVAIS

A atuação dos chamados sofistas ocorre no período áureo da cultura grega, no


século V a.C. Em Atenas existe uma intensa atividade artística e cultural nesse
período, que também se caracteriza pelo auge da democracia.

Ainda que as questões da natureza apareçam nas reflexões filosóficas, o


foco se torna cada vez mais o próprio ser humano. Ou seja, a filosofia assume
gradativamente um enfoque antropológico, envolvendo questões de ordem
moral e política. (ARANHA; MARTINS, 2003).

Os sofistas surgem a partir dos novos desafios que o desenvolvimento


das cidades e do comércio na Grécia geraram. Antes, a sociedade era regida por
uma elite proprietária de terras e do poder militar. Esta classe baseava a educação
dos seus filhos no modelo dos heróis mitológicos, especificamente dos guerreiros
belos e bons. A beleza se caracterizava pelo corpo escultural formado pelos
exercícios físicos, pela ginástica, pela dança e pelos jogos de guerra.

O ser bom era definido a partir das leituras de Homero e Hesíodo, por
exemplo, que descreviam as características dos heróis, cujas virtudes eram
admiradas pelos deuses, sendo a principal delas a coragem diante da morte na
guerra. A coragem aparece como importante elemento na luta de Heitor e Aquiles,
contada por Homero e retratada no cinema através do filme "Troia".

DICAS

Assista ao filme A Guerra de Troia.

FONTE: Disponível em: < monteolimpoblog.blogspot.com>.


Acesso em: 15 dez. 2012.

11
UNIDADE 1 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E A COMPREENSÃO DA VIDA SOCIAL

Conforme Chauí (2008, p. 40), "a virtude era a aretê (palavra grega que
significa 'excelência e superioridade'), própria dos melhores, ou, em grego, dos
aristoi." Daí deriva a palavra aristocracia, que quer dizer o governo dos melhores.

Quando se desenvolveram as cidades e o comércio, surgiu também


uma nova classe social rica que estava igualmente interessada em ter influência
política. Assim, desenvolveu-se a democracia grega, pela qual essa participação
se tornou possível. As decisões concernentes à vida na cidade passaram a ser
tomadas na praça pública, a Ágora. Das reuniões na praça pública participavam
todos os cidadãos, expondo as suas ideias de modo a convencer os demais dos
seus pontos de vista.

O modelo de educação aristocrático já não atendia mais às novas


necessidades, por isso surgiu um novo modelo de educação, protagonizado pelos
sofistas. Os sofistas eram membros da nova classe social que procurou ampliar
a sua influência política, que poderia ser concretizada a partir dos debates na
praça pública. Era preciso que houvesse conhecimento e argumentos para estas
discussões.

Assim, os sofistas se tornam os primeiros educadores, pois contribuíram


para a sistematização dos conhecimentos de tal forma que pudessem formar
o cidadão que faz a sua voz ser ouvida na Ágora. Eles dão uma contribuição
fundamental para a sistematização do ensino, ao formarem um currículo de
estudos: gramática, retórica, dialética, aritmética, geometria, astronomia e música.
(CHAUÍ, 2008).

Os sofistas se tornaram especialistas em retórica, que é a arte da


argumentação. À medida que se dispõem a ensinar os filhos da nova classe rica,
os sofistas iniciam os jovens na arte da retórica. Ao mesmo tempo, considerando o
aspecto bastante prático de sua reflexão, ou seja, a preocupação com as discussões
na praça pública, eles acabaram por elaborar o ideal teórico da democracia. Os
cidadãos da nova classe rica tiveram especial interesse neste assunto, pois ele
se contrapõe diretamente aos interesses da velha aristocracia rural. (ARANHA;
MARTINS, 2003).

Através de sua atuação, os sofistas contribuíram ainda para a


profissionalização da educação, pois muitos deles cobravam pelos serviços
prestados. Essa prática lhes rendeu muitas críticas, como as feitas, por exemplo,
por Sócrates, que os acusava de "prostituição".

Segundo o filósofo, o conhecimento não poderia ser vendido. Mas,


conforme alertam Aranha e Martins (2003), mesmo que alguns sofistas poderiam
ser chamados de "mercenários do saber", isto de modo algum pode ser aplicado
a todos eles. Os sofistas deixaram uma contribuição muito valiosa para a
filosofia posterior e, certamente, podem ser considerados entre os precursores
dos modernos estudos da linguagem, que incluem a linguística, o jornalismo,
marketing e outros.

12
TÓPICO 1 | OS FILÓSOFOS ANTIGOS E MEDIEVAIS

2.4 SÓCRATES
Como já vimos no ponto anterior, Sócrates não simpatizava com os sofistas.
Em primeiro lugar, pelo fato de eles cobrarem pelo ensino que ministravam, mas
também porque Sócrates não aceitava a possibilidade de se defender qualquer
ideia somente para que se pudesse ganhar um debate em praça pública.

O filósofo estava convicto de que somente a verdade deveria ser defendida.


E, antes de querer convencer os outros de alguma ideia, cada um deveria primeiro
conhecer a si mesmo. Por outro lado, Sócrates concordava com os sofistas quando
eles afirmavam que a educação aristocrática já não atendia mais às necessidades
da cidade. Era preciso, portanto, que se criasse um novo modelo educacional,
mais adequado aos novos tempos. (CHAUÍ, 2008).

Mas, quem foi Sócrates e quais foram as suas principais ideias filosóficas?

Sócrates viveu aproximadamente entre os anos 470 e 399 a.C., em Atenas, e


não deixou nenhum testemunho escrito. Tudo o que se sabe sobre ele é transmitido
por dois de seus discípulos, Xenofontes e Platão.

Platão apresenta Sócrates como um homem que andava pelas ruas de


Atenas fazendo perguntas às pessoas, principalmente àquelas que discursavam
em praça pública. Ele perguntava sobre os valores que os gregos consideravam
fundamentais para a sua sociedade, tais como a coragem, a virtude, o amor, a
honestidade, a amizade e a verdade. Para a sua surpresa, as pessoas sempre lhe
respondiam com exemplos, ao que retrucava dizendo que não estava interessado
nos exemplos e, sim, queria saber o que é o amor, a amizade etc. A atitude de
Sócrates causava embaraço. As pessoas se sentiam constrangidas e percebiam
que não tinham as respostas para as perguntas do filósofo. (CHAUÍ, 2008).

FIGURA 2 – SÓCRATES

FONTE: Disponível em: <http://ghiraldelli.pro.br/wp-content/


uploads/2011/02/socrates.gif>. Acesso em: 20 out. 2012.

13
UNIDADE 1 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E A COMPREENSÃO DA VIDA SOCIAL

Aranha e Martins (2003) ressaltam que, ao adotar esses procedimentos,


Sócrates lança mão de um método próprio de reflexão filosófica, que chamam de
ironia e maiêutica. Ironia é um verbo grego usado para "perguntar" e maiêutica
significa "parto". O método socrático teria sido assim denominado em homenagem
à mãe de Sócrates, que era parteira. Ou seja, enquanto ela ajudava as pessoas a vir
à luz, o filho era um parteiro de ideias.

O pensamento socrático é, muitas vezes, identificado com a famosa


afirmação "Só sei que nada sei". Em outras palavras, isto quer dizer que Sócrates
não se considerava uma pessoa arrogante, pois tinha consciência de que não era
possível conhecer tudo. Essencial para a reflexão filosófica é a capacidade de
perguntar, de querer saber coisas novas. Quando alguém pensa que já sabe tudo,
que já está pronta, então não há mais necessidade de aprendizado e também de
reflexão, muitos menos de filosofia.

Portanto, o filósofo considerava a humildade como elemento essencial da


pessoa que quer ser sábia. O sábio sabe reconhecer os seus próprios limites e não
hesita em admitir que não é dono da verdade, que não possui todas as respostas.
Quando Sócrates fazia perguntas às pessoas até lhes mostrar que aquilo que
acreditavam ser a verdade não era realmente algo consistente, não queria dizer
que ele mesmo possuía todas as respostas.

Sócrates introduziu na filosofia a necessidade de se fazer uma diferença


entre aquilo que se apresenta aos nossos olhos, aquilo que assimilamos através
dos nossos sentidos, e as essências das coisas. Ele não queria apenas saber a
opinião dos cidadãos de Atenas sobre determinado assunto, mas estava disposto
a procurar o conceito que oferecesse o acesso à própria verdade. Essa busca da
verdade tem uma enorme força social e política, pois faz as pessoas perguntarem
pelo real sentido do que está à sua volta.

Por essa razão, Sócrates logo passou a ser visto como um perigo pelos
poderosos de Atenas e considerado alguém que estava corrompendo a juventude
com as suas ideias. Ele foi levado perante a assembleia da cidade e foi julgado
culpado, sendo obrigado a tomar veneno, a cicuta. Sócrates não se defendeu das
acusações, dizendo que não as aceitava. Também não abriu mão de suas ideias e
da liberdade de pensar e, dessa forma, preferiu a morte. (CHAUÍ, 2008).

Marilena Chauí (2008) faz uma analogia do trabalho de Sócrates com o


personagem Neo do filme Matrix. Assim como Sócrates acreditava que a maioria
dos gregos estava vivendo num mundo de ilusão, também em Matrix o mundo
dominado pelas máquinas sujeitou a humanidade à escravidão. Era preciso, dessa
forma, libertar-se das amarras que oprimem e não nos deixam ver a realidade
como ela é de fato.

14
TÓPICO 1 | OS FILÓSOFOS ANTIGOS E MEDIEVAIS

DICAS

Caro(a) acadêmico(a), sugiro que assista ao primeiro filme da trilogia Matrix.

MATRIX

FONTE: Disponível em: <http://www.euniverso.com.br/Filmes/


matrix01.jpg>. Acesso em: 20 out. 2012.

No ponto seguinte vamos analisar o pensamento do principal discípulo


de Sócrates, que é Platão.

2.5 PLATÃO
Platão foi discípulo de Sócrates, como já referido acima, e desenvolveu
o pensamento do seu mestre. Muitas vezes é difícil saber onde termina o
pensamento de Sócrates e em que ponto começa o de Platão. Platão viveu em
Atenas entre os anos 428 e 347 a.C., onde fundou uma escola chamada Academia.
O seu pensamento pode ser mais bem compreendido a partir de uma análise do
seu famoso "Mito da Caverna".

DICAS

A seguir vamos ler este trecho da obra de Platão, no livro VII de “A República”.
Platão narra este mito como se fosse um diálogo entre Sócrates e alguém chamado Glauco.

Sócrates – [...] Pense em homens encerrados numa caverna, dotada de uma abertura que
permite a entrada de luz em toda a sua extensão da parede maior. Encerrados nela desde a
infância, acorrentados por grilhões nas pernas e no pescoço que os obrigam a ficar imóveis,
podem olhar para a frente, porquanto as correntes no pescoço os impedem de virar a cabeça.

15
UNIDADE 1 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E A COMPREENSÃO DA VIDA SOCIAL

Atrás e por sobre eles, brilha à distância uma chama. Entre esta e os prisioneiros delineia-
se uma estrada em aclive, ao longo da qual existe um pequeno muro, parecido com os
tabiques que os saltimbancos utilizam para mostrar ao público suas artes.

Glauco – Estou imaginando tudo isso.

S. – Suponha ainda, ao longo daquele pequeno muro, homens que carregam todo tipo
de objetos que aparecem por sobre o muro, figuras de animais e de homens de pedra, de
madeira, de todos os tipos de formas. Alguns dentre os homens que as carregam, como é
natural, falam, enquanto outros ficam calados.

G. – Que visão estranha e que estranhos prisioneiros!

S. – Malgrado isso, são semelhantes a nós. Pense bem! Em primeiro lugar, deles mesmos e
de seus companheiros poderiam ver algo mais do que sombras projetadas pela chama na
parede da caverna diante deles?

G. – Impossível, se foram obrigados a ficar por toda a vida sem mover a cabeça.

S. – E não se encontram na mesma situação no tocante aos objetos que desfilam perante
eles?

G. – Certamente.

S. – Supondo que pudessem falar, você não acha que considerariam reais as figuras que
estão vendo?

G. – Sem dúvida alguma.

S. – E se a parede oposta da caverna fizesse eco? Quando um dos que passam se pusesse a
falar, você não acha que eles haveriam de atribuir aquelas palavras à sua sombra?

G. – Claro, por Zeus!

S. – Então para esses homens a realidade consistiria somente nas sombras dos objetos.

G. – Obviamente haveria de ser assim.

S. – Vamos ver agora o que poderia significar para eles a eventual libertação das correntes
e da ignorância. Um prisioneiro que fosse libertado e obrigado a se levantar, virar a cabeça,
a caminhar e a erguer os olhos para a luz, haveria de sofrer ao tentar fazer tudo isso, ficaria
aturdido e seria incapaz de discernir aquilo de que antes só via a sombra. Se a ele se dissesse
que antes via somente as aparências e que agora poderia ver melhor porque seu olhar está
mais próximo da realidade e voltado para objetos bem reais; se lhe fosse mostrado cada
um dos objetos que desfilam e se fosse obrigado com algumas perguntas a responder o
que era isso, como você acha que ele haveria de se comportar? Você não acha que ficaria
atordoado e haveria de considerar as coisas que via antes mais verdadeiras do que aquelas
que são mostradas agora?

G. – Sem dúvida, muito mais verdadeiras.

II.

Sócrates – Se fosse obrigado a olhar extremamente para a luz, não haveria de sentir os olhos
doloridos e não tentaria desviá-los e dirigi-los para o que pode ver? Não haveria de acreditar
que isto seria na realidade mais verdadeiro do que agora se quer mostrar a ele?

16
TÓPICO 1 | OS FILÓSOFOS ANTIGOS E MEDIEVAIS

Glauco – Certamente.
S. – E se alguém o tirasse à força dali, fazendo-o subir pela áspera e íngreme subida,
libertando-o somente depois de tê-lo levado à luz do sol, o prisioneiro não sentiria dor e
ao mesmo tempo raiva por ser assim arrastado? Uma vez fora, à luz do dia, por acaso não é
verdade que, com seus olhos cegados pelos raios do sol, não conseguiria contemplar sequer
um só dos objetos que agora nós consideramos reais?

G. – Sim, pelo menos não de imediato.

S. – Acho que precisaria de tempo para habituar-se a contemplar essas realidades superiores.
Primeiramente, haveria de ver com a maior facilidade as sombras, depois as figuras humanas
e todas as outras refletidas na água e, por último, poderia vê-las como são na realidade. Após
isso, seria capaz de filtrar os olhos nas constelações e contemplaria o próprio céu à noite, à
luz das estrelas e da lua, mais facilmente que durante o dia, sob o esplendor do sol.

G. – Sem sombra de dúvida.

S. – Acho que, por fim, haveria de contemplar o sol, não sua imagem refletida na água ou em
qualquer outra superfície, mas em sua realidade, assim como realmente é, em seu próprio
lugar.

G. – Perfeito.

S. – Depois passaria a refletir que é o sol que produz as estações e os anos, que governa
todos os fenômenos do mundo visível e que, de algum modo, é ele a verdadeira causa
daquilo que os prisioneiros viam.

G. – Evidentemente que refletindo assim chegaria gradualmente a essas conclusões.

S. – E depois? Lembrando-se de sua antiga morada, da ideia de sabedoria que lá imperava


e de seus velhos companheiros de prisão, não se consideraria afortunado pela mudança
efetuada e não sentiria compaixão por eles?

G. – Obviamente.

S. – Se aqueles da caverna inventassem atribuir honras, elogios e prêmios a quem melhor


visse a passagem das sombras e se recordasse com maior exatidão quais passavam primeiro,
quais por último e quais passavam juntas e, com base nisso, adivinhasse com grande
habilidade aquelas que passavam em cada preciso momento, você acha que ele ficaria com
desejo e com inveja de suas honras e de seu poder ou se haveria de encontrar na condição
do herói homérico e preferiria ardentemente “trabalhar como assalariado a serviço de um
pobre camponês” e sofrer qualquer privação, antes que dividir as opiniões deles e voltar a
viver à maneira deles?

G. – Sim, acho que aceitaria sofrer qualquer tipo de privação, antes de retornar a viver
daquela maneira.

S. – Mais um ponto a ser considerado. Se aquele homem tivesse de descer novamente e


retomar seu lugar, não haveria de sentir os olhos doloridos por causa da escuridão, vindo
inopinadamente do sol?

G. – Certamente.

S. – Se, enquanto tivesse a vista confusa pelo tempo que se passaria antes que os olhos se
acostumassem novamente com a obscuridade, devesse avaliar novamente aquelas sombras

17
UNIDADE 1 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E A COMPREENSÃO DA VIDA SOCIAL

e apostasse com aqueles eternos prisioneiros, você não acha que passaria por ridículo e
dele diriam que sua saída lhe havia arruinado a vista e que sequer valia a pena enfrentar
essa subida? Não haveria de ser morto aquele que tentasse libertar e fazer subir os outros,
bastando para isso que o tivessem entre as mãos para matar?

G. – Não há dúvida alguma.

FONTE: Adaptado de: <books.google.com.br/books?isbn=8561495014>. Acesso em: 15 dez.


2012.

No mito da caverna, Platão faz uma diferença entre o mundo sensível e o


mundo das ideias. O mundo sensível é aquele que era percebido pelos sentidos
dos prisioneiros como sombras refletidas na parede. A realidade, para aquelas
pessoas que nunca haviam experimentado algo diferente, era um mundo de
sombras e de ecos. Imaginar outro mundo, onde houvesse outras condições de
luminosidade, de cores, de cheiros e formas, era algo que poderia ser comparado
à loucura. Quem ousasse mencionar algo assim era ridicularizado.

A principal característica do pensamento de Platão é a dualidade entre


o mundo ideal, ou das ideias, e o mundo sensível. O seu esforço maior foi o de
tentar realizar a síntese entre os pensamentos opostos de Parmênides e Heráclito.
O primeiro, como estudamos no ponto sobre os filósofos pré-socráticos, defendia
a imutabilidade do ser; enquanto o segundo ressaltava a existência de um mundo
em constante transformação.

Para Platão, as conclusões de Heráclito decorriam da experiência que


fazemos com os nossos sentidos, mas que seriam enganosos. O filósofo ilustra
isso no mito da caverna ao ressaltar que a vivência em diferentes ambientes leva à
formação de diferentes concepções da realidade. A vivência na prisão da caverna
durante toda a vida levou aquelas pessoas a acreditarem que o seu mundo, a
realidade, era o que estava diante dos seus olhos. A verdade era associada às
sombras que eram projetadas na parede.

A possibilidade de sair daquele lugar e experimentar a existência de


outras formas de realidade provocou uma mudança na concepção de mundo. Os
sentidos nos oferecem novos parâmetros para a compreensão do mundo. Mas o
que Platão quer justamente mostrar é que não há garantia de que o que vemos
corresponda efetivamente à realidade.

Portanto, segundo Platão, os nossos sentidos nos enganam e a verdade


deveria residir em outra esfera, não na do mundo sensível. Assim, tanto o
pensamento socrático como o de Platão ressaltam que o verdadeiro conhecimento
não está na experiência sensível, mas na essência das coisas, que pode ser
alcançada mediante o uso da inteligência. O mundo inteligível, da razão, é o que
corresponde à verdade.

18
TÓPICO 1 | OS FILÓSOFOS ANTIGOS E MEDIEVAIS

DICAS

O cartunista Maurício de Souza fez uma representação moderna do mito da


caverna de Platão.

FIGURA 3 – VERSÃO MODERNA DO MITO DA CAVERNA

FONTE: Disponível em: <http://3.bp.blogspot.com/_4TStK8uZrgU/TJT2SLWn6tI/


AAAAAAAAFRI/NXprcpgW250/s1600/mitodacaverna.png >. Acesso em: 20 out. 2012.

NOTA

Portanto, Sócrates e Platão foram sérios críticos dos sofistas, que aceitavam como
verdadeiros os conhecimentos formados pela experiência sensível. Segundo os filósofos,
esta forma a mera opinião, ou dóxa em grego, que poderia variar de pessoa para pessoa,
conforme cada circunstância particular. A preocupação da filosofia, por sua vez, deveria ser
com o conhecimento verdadeiro, alcançável unicamente pelo pensamento. (CHAUÍ, 2008).

Vejamos, agora, como o pensamento de Sócrates e Platão foi desenvolvido


pelo filósofo Aristóteles.

19
UNIDADE 1 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E A COMPREENSÃO DA VIDA SOCIAL

2.6 ARISTÓTELES
O tempo de atuação de Aristóteles é caracterizado na história da
filosofia como período sistemático. Isso se deve ao fato de que o filósofo tem um
papel fundamental na organização e sistematização do pensamento filosófico
desenvolvido até então e, ainda, ao seu aprofundamento.

Devemos a Aristóteles a organização do pensamento lógico através do qual


elabora uma explicação da realidade a partir do princípio de causalidade, ou seja,
para ele, todas as coisas têm uma causa, que pode ser estudada e compreendida.

Aristóteles viveu entre os anos de 384 e 322 a.C. Ele frequentou a Academia
de Platão e a sua fidelidade ao mestre é relativa. O filósofo desenvolveu o
pensamento de Platão e o aprofundou, mas também foi divergente em muitos
aspectos. Entre os principais aspectos críticos estava a compreensão de um
mundo separado das ideias.

Aristóteles não achava que seria possível conceber a realidade em duas


esferas completamente distintas, independentes uma da outra. Se Platão apenas
tentou realizar a síntese entre os pensamentos de Parmênides e Heráclito,
Aristóteles funde definitivamente essas duas grandes proposições filosóficas
num único sistema.

Para superar a dicotomia platônica, a teoria aristotélica está fundamentada


em três distinções fundamentais: substância-essência-acidente; ato-potência;
forma-matéria. (ARANHA; MARTINS, 2003).

Vejamos a seguir de que forma Aristóteles propôs uma nova explicação da


realidade a partir desses conceitos.

Segundo Aristóteles, toda a realidade é composta de substância. Para ele,


a substância é "aquilo que é em si mesmo". Toda substância, por sua vez, possui
atributos, que podem ser ou não essenciais. Se os atributos da substância não são
essenciais, então eles podem ser chamados de acidentais. Se os atributos essenciais
faltam a uma determinada substância, ela não poderia ser considerada o que é.

Vamos pensar em um exemplo para tornar mais compreensível a distinção


de substância, essência e acidente feita por Aristóteles.

Aranha e Martins (2003) propõem que imaginemos um ser humano, que


podemos considerar como sendo uma substância individual. Para que possamos
considerar essa substância um ser humano e não outra coisa qualquer, é preciso
que a substância tenha alguns atributos essenciais. Na história da filosofia, a
característica essencial do ser humano sempre foi considerada a racionalidade.

Então, se não houver racionalidade, não podemos considerar uma


substância como um ser humano. Por outro lado, há vários atributos no ser
humano que não são essenciais para que ele seja considerado como tal. Se uma

20
TÓPICO 1 | OS FILÓSOFOS ANTIGOS E MEDIEVAIS

pessoa for velha, nova, obesa ou magra, ou então tiver cabelos longos ou nem
sequer tiver cabelo, isso não faz com que ela deixe de ser um ser humano.

Contudo, com a distinção acima ainda não é possível resolver o problema


das transformações dos seres e explicar a origem das diferenças. De que modo
os seres humanos se tornaram diferentes uns dos outros? Para resolver este
problema, Aristóteles recorre às noções de matéria e forma. A matéria é aquilo de
que todas as coisas são feitas. Esse conceito é muito próximo à concepção que a
física moderna tem de matéria.

A característica da matéria é a indeterminação. Desse modo, um amontoado


de células não constitui um ser humano; tampouco uma porção de granito pode
ser considerada uma estátua. Para que a matéria seja considerada algo é preciso
que ela adquira forma. A matéria tem a forma apenas potencialmente. Várias
células podem tornar-se um ser humano, mas não necessariamente. Do mesmo
modo, uma semente possui a forma de árvore como potencial, assim como uma
pedra pode vir a ser uma estátua.

A matéria é a parte constante e imutável da realidade e, nesse sentido,


engloba as conclusões a que chegou Parmênides, de que o mundo é imutável. Já
com a noção de forma, Aristóteles nos remete ao pensamento de Heráclito, que
privilegiou a mudança como elemento constitutivo da realidade e do mundo.

Contudo, ainda é preciso entender como Aristóteles concebia a


transformação da matéria para que ela viesse a adquirir uma forma determinada.
Segundo o filósofo, como já referimos acima, toda a matéria tem a forma em
potência. Quando a matéria adquiriu uma forma determinada, então ele dizia
que se havia chegado ao ato. (ARANHA; MARTINS, 2003).

O ato é a forma adquirida. No exemplo do ser humano que tomamos acima,


a matéria são as células logo após a fecundação do óvulo pelo espermatozoide. Estas
células têm a forma humana somente em potencial. O ato é o ser humano formado.

FIGURA 4 – EMBRIÃO HUMANO

FONTE: Disponível em: <http://espectivas.files.wordpress.


com/2009/03/embriao2.jpg>. Acesso em: 20 out. 2012.

21
UNIDADE 1 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E A COMPREENSÃO DA VIDA SOCIAL

NOTA

Há uma discussão muito séria, atualmente, sobre qual seria o momento em que
o óvulo passa a ser um ser humano. Esta polêmica, normalmente, está associada à discussão
sobre o aborto. Então, caro(a) acadêmico(a), quando ocorre a passagem da simples matéria
para a vida humana? Pense a respeito!

Segundo Aranha e Martins (2003), para explicar o movimento de passagem


da potência ao ato, Aristóteles recorre à teoria das quatro causas:

a) A causa material: é aquilo de que uma coisa é feita. Ela é determinante, pois
de um monte de pedras não se pode esperar um ser humano. Mas as pedras
podem ser transformadas em uma estátua.

b) A causa eficiente: é aquilo com que a coisa é feita. Para que as pedras virem
esculturas, é preciso que haja um escultor.

c) A causa formal: é aquilo que a coisa vai ser. No caso das pedras, a estátua é a
causa formal, especificamente a imagem feita na mente do escultor. Quando
ele vê a pedra, ele já é capaz de imaginar em seu lugar a estátua pronta.

d) A causa final: é aquilo para o qual a coisa é feita. A estátua pode ter a finalidade
de servir de decoração ou homenagear alguma pessoa importante.

FIGURA 5 – ESTÁTUA DA JUSTIÇA NA PRAÇA DOS TRÊS PODERES EM


BRASÍLIA

FONTE: Disponível em: <http://www.infopedia.pt/mostra_imagem.


jsp?recid=20034>. Acesso em: 20 out. 2012.

22
TÓPICO 1 | OS FILÓSOFOS ANTIGOS E MEDIEVAIS

Desse modo, com uma única teoria, Aristóteles foi capaz de reunir
os pensamentos de Parmênides e Heráclito e superar o mundo separado das
ideias proposto por Platão. O sistema aristotélico contempla ao mesmo tempo
a imutabilidade do mundo e as mudanças. Com Aristóteles se concretiza
definitivamente a mudança na mentalidade da antiguidade de uma esfera
sobrenatural e mítica para uma mentalidade racional e orientada exclusivamente
para a esfera imanente. Não era mais necessária a recorrência à transcendência
para explicar o cotidiano.

Ainda assim, o divino não se tornou completamente desnecessário para


explicar a realidade como um todo. Ele não era mais essencial para entender a
realidade presente, mas continuou a existir como princípio que deu origem a
todo o universo.

Por isso, Aranha e Martins (2003, p. 124) dizem que "toda a estrutura
teórica da filosofia aristotélica desemboca no divino". Vejamos: se todas as coisas
têm uma causa, como propôs Aristóteles, então nos restam duas possibilidades
para explicar a origem do universo. Ou ele é infinito, de modo que não haja uma
origem, mas cuja ideia é difícil de ser apreendida pela razão humana; ou então
ele é finito e, nesse caso, é preciso que haja um princípio gerador. Como princípio
primeiro, é preciso que seja diferente de todas as outras coisas, pois não pode ser
fruto de uma causa anterior.

Aranha e Martins (2003, p. 124) dizem a respeito:


Ou seja, todo ser contingente foi produzido por outro ser, que também é
contingente e assim por diante. Para não ir ao infinito na sequência das
causas, é preciso admitir uma primeira causa, por sua vez incausada,
um ser necessário (e não contingente). Esse Primeiro Motor (imóvel,
por não ser movido por nenhum outro) é também um puro ato (sem
nenhuma potência). Chamamos Deus ao Primeiro Motor Imóvel, Ato
Puro, Ser Necessário, Causa Primeira de todo existente.

Além das questões acima, Aristóteles ainda se ocupou com o tema da ética,
que é extremamente atual, se considerarmos os inúmeros escândalos políticos,
financeiros e as recorrentes denúncias de corrupção (TRIGO, 2009). Se o mundo é
organizado a partir do princípio de causas e efeitos, então o comportamento das
pessoas produz efeitos, que podem ser bons ou ruins. Desse modo, a ação humana
deve ser direcionada de tal forma a produzir os melhores efeitos possíveis. A ação
humana exige responsabilidade, segundo a teoria aristotélica.

Podemos ver, então, que o pensamento aristotélico tem grande


profundidade e capacidade de explicação da realidade em que vivemos. Não foi
por acaso que ele se tornou modelo para toda a ciência ocidental até a atualidade.
Vamos aprofundar isso ao longo dos próximos tópicos.

23
UNIDADE 1 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E A COMPREENSÃO DA VIDA SOCIAL

3 O PENSAMENTO FILOSÓFICO HELENÍSTICO


A filosofia posterior a Platão e Aristóteles se desenvolveu em um ambiente
político muito diferente daquele dos primeiros filósofos. Até então, Atenas era
politicamente independente e havia experimentado a possibilidade da democracia.
A partir da segunda metade do século IV a.C., Atenas perdeu a sua autonomia,
quando foi conquistada, primeiro por Tebas e depois pelos macedônios. Todas as
tentativas de libertação fracassaram e terminaram em grande derramamento de
sangue. Embora a dominação macedônica tenha durado pouco, as pretensões de
independência da Grécia não duraram, pois logo caiu sob o domínio do Império
Romano. (MONDIN, 1981).

Por outro lado, segundo Mondin (1981), o pensamento e a cultura gregos


conquistaram o mundo da antiguidade e o marcaram para toda a história
posterior. Esse fenômeno de expansão da língua e da cultura gregas é chamado
de helenismo. Helenismo provém de Hélade, que era o nome da Grécia na
antiguidade. Com o helenismo surgiram alguns centros intelectuais de destaque,
tais como Pérgamo, Antioquia e Alexandria.

No período helenístico não surgem ideias novas. De algum modo, tinha-


se a impressão de que todas as grandes ideias e teorias a respeito do universo, de
sua origem e de seu fundamento já haviam sido formuladas no período clássico
da filosofia grega. Assim, para muitos restava a adesão a alguma dessas teorias
e a sua repetição, quem sabe o seu aprofundamento. Nesse sentido, pode-se
experimentar um desenvolvimento significativo dos conhecimentos específicos,
tais como a matemática, a geometria, a astronomia, a geografia, as ciências
naturais, a medicina e a história.

Diante de uma sociedade em que a perda de autonomia era crescente,


as preocupações se voltaram gradativamente para o indivíduo. A antiga pólis, a
cidade, na qual se debatia os interesses em praça pública, na ágora, já não existe
da mesma forma. A vida coletiva estava sob a condução dos conquistadores e,
nesse sentido, não oferecia grandes possibilidades para a reflexão filosófica. Por
isso, no período helenístico, progressivamente a filosofia voltou as suas atenções
para questões éticas. Diante das novas perguntas, especialmente a pergunta pelo
Sumo Bem, ou o bem supremo, desenvolveram-se quatros tipos de respostas.

Segundo Bondin (1981, p. 109):


Quanto ao Sumo Bem, os estoicos fazem-no consistir na apatia (ou
eliminação das paixões); os epicuristas colocam-no na ataraxia (ausência
de preocupações e perturbações) e no prazer. Mas muitos espíritos não
se sentem satisfeitos com nenhuma destas soluções, e em suas mentes
ganha terreno um sentimento de desconfiança em relação a qualquer
solução filosófica não só do problema do Sumo Bem, mas também do
da verdade: esta é a solução dos céticos. Outros pensadores, ao contrário,
julgam que para problemas tão árduos, que nenhuma inteligência
humana pode resolver sozinho, seja mais recomendável reunir o que
há de bom nos diversos sistemas filosóficos: é a solução dos ecléticos.

24
TÓPICO 1 | OS FILÓSOFOS ANTIGOS E MEDIEVAIS

Podemos perceber, a partir dessa breve caracterização do período


helenístico, como a realidade social, econômica e política influenciara diretamente
nas maneiras de pensar de pessoas e, dessa forma, contribuiu para o surgimento
de novas reflexões filosóficas. Se, por um lado, a filosofia pretende contribuir para
a mudança da realidade social, ela é, ao mesmo tempo, determinada por esta
realidade que almeja alterar.

Ao longo da Idade Média, a mudança na sociedade foi ainda mais


significativa. Vejamos esse desenvolvimento no ponto seguinte.

3.1 A FILOSOFIA NA IDADE MÉDIA


A Idade Média compreende um período histórico de mais de mil anos,
estendendo-se desde a queda do Império Romano no século V até o século XV,
com as expansões turcas. Durante esse longo período, o interesse da filosofia, que
se desenvolverá estreitamente ligada à religião, terá o seu interesse voltado para
o além, para o céu, para o divino. (TRIGO, 2009).

Ainda durante o Império Romano, o cristianismo já experimentou um


crescimento bastante significativo, embora fosse uma religião perseguida durante
quase três séculos, até o ano 313, quando o imperador Constantino a tornou uma
religião legal. Em 390, o cristianismo se tornou a religião oficial do Império. Antes
disso, porém, era visto como uma ameaça, pois os cristãos se recusavam a prestar
o culto ao imperador, que era sinal de fidelidade ao Estado.

Esta realidade de perseguição, martírio e morte fez com que se desenvolvesse


uma mentalidade muito particular, quase totalmente voltada para o além. O
cotidiano dos cristãos no Império Romano não oferecia grandes perspectivas e
as esperanças dessas pessoas foram sendo depositadas progressivamente numa
vida depois da morte, no paraíso. Mesmo após a queda do Império Romano, as
condições de vida nunca foram exatamente favoráveis. (TRIGO, 2009).

Dois movimentos filosóficos caracterizam a Idade Média: um no início, a


Patrística, e outro no final, a Escolástica. Vejamos a seguir cada um deles.

3.2 SANTO AGOSTINHO E A PATRÍSTICA


A Patrística desenvolveu-se no período de decadência do Império Romano,
no segundo século da era cristã. Nessa época, o cristianismo experimentou uma
grande expansão e a preocupação desses cristãos foi a defesa da fé cristã diante
das heresias. Esses defensores da fé são também chamados de pais da igreja e a
sua forma de usar a filosofia é conhecida de apologética. Durante toda a Idade
Média, aliás, a razão foi subordinada à fé; ela foi feita uma auxiliar da fé cristã.

25
UNIDADE 1 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E A COMPREENSÃO DA VIDA SOCIAL

Segundo Aranha e Martins (2003, p. 125), disso decorre a expressão de


Agostinho: "Credo ut intelligam", que significa "Creio para que possa entender".

O principal expoente da Patrística é Santo Agostinho, que viveu entre os


anos 354 e 430, na cidade de Hipona, no norte da África (atual Argélia), onde foi
bispo. A principal característica do pensamento dos pais da igreja é a síntese entre
o pensamento filosófico grego e a doutrina cristã. Nesse sentido, o pensamento
que mais parecia adaptável à fé cristã era a teoria platônica do mundo sensível e
do mundo das ideias, sobre a qual falamos acima. A única alteração que Agostinho
propôs foi a substituição do mundo das ideias pelo mundo das ideias divinas.
Para Agostinho, a verdade está no recebimento das ideias divinas. Somente Deus
poderia oferecer o verdadeiro conhecimento e apenas a fé seria a garantia do
pensar correto. Esta teoria ficou conhecida como teoria da iluminação. (ARANHA;
MARTINS, 2003).

A síntese feita pelos pais da igreja entre a fé e a filosofia levou a um


afastamento profundo entre a razão e a realidade social e cotidiana. Desenvolveu-
se, nesse contexto, um pensamento filosófico distante da vida, totalmente voltado
para uma esfera sobrenatural. A preocupação desses pensadores era atingir a
essência de Deus. Explicar como ele é e como funciona. Este esforço é visível, por
exemplo, na obra "A Trindade", de Santo Agostinho.

FIGURA 6 – CAPA DO LIVRO "A TRINDADE", DE SANTO AGOSTINHO

FONTE: Disponível em: <http://www.paulus.com.br/images/


products/G/9788534900980.jpg>. Acesso em: 25 out. 2012.

26
TÓPICO 1 | OS FILÓSOFOS ANTIGOS E MEDIEVAIS

Esta tendência foi aprofundada pelo movimento filosófico que se sucedeu,


ou seja, a escolástica, sobre a qual falaremos no próximo ponto desse tópico.

3.3 TOMÁS DE AQUINO E A ESCOLÁSTICA


Caro(a) acadêmico(a), como vimos no ponto anterior, a primeira parte
da Idade Média, conhecida como Alta Idade Média, foi caracterizada pelo
pensamento neoplatônico-agostiniano. Na segunda parte da Idade Média, ou na
Baixa Idade Média, pode-se destacar a influência da filosofia da Aristóteles na
reflexão cristã. O que permanece inalterado nos dois períodos é a tentativa de
conciliar a filosofia clássica com a fé cristã.

É importante ressaltar que, durante a Idade Média, o saber foi confinado


aos mosteiros e somente os religiosos a ele tinham acesso. Depois que o Império
Romano se esfacelou, as cidades gradualmente se tornaram um local de
insegurança, miséria e fome. O comércio decresceu e, gradativamente, a população
espalhou-se pelo território. Houve, assim, uma ruralização da população. Nesse
contexto, os mosteiros se tornaram os únicos lugares onde se conservava livros e
onde havia educação. As cidades voltariam a crescer somente a partir do século
XI e, com elas, a vida cultural e intelectual sofreria novos impulsos. Entre essas
inovações está a retomada do pensamento de Aristóteles.

Por um longo período, Aristóteles foi visto com desconfiança pelos


filósofos cristãos, pois as suas ideias lhes pareciam pouco adaptáveis à fé cristã.
Foi Santo Tomás de Aquino (viveu de 1225 a 1274) que resgatou o pensamento
aristotélico e o combinou com a reflexão cristã. (TRIGO, 2009).

O trabalho desse filósofo cristão consistiu, em boa medida, na aplicação


da lógica aristotélica às teorizações sobre a fé, o que levou à construção de uma
doutrina cristã extremamente complexa. Entre as vantagens do seu trabalho está
a construção de um sistema lógico e argumentativo muito consistente. Por outro
lado, a lógica aristotélica reserva pouco ou nenhum espaço para a inovação. O
pensamento tomista será reproduzido, principalmente, por padres dominicanos
e jesuítas, que serão duramente criticados nos períodos posteriores pela sua
intransigência e adversidade à inovação científica. (ARANHA; MARTINS, 2003).

Este é um assunto para o próximo tópico desta unidade.

A grande contribuição do pensamento de Tomás de Aquino para a reflexão


filosófica e, posteriormente, para o pensamento sociológico, está no rigor que ele
exige da pessoa que se dispõe a filosofar. Assim, embora as suas conclusões não
sejam o foco de análise da filosofia posterior, o seu método servirá de referência e
ponto de partida para toda a construção científica posterior.

27
UNIDADE 1 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E A COMPREENSÃO DA VIDA SOCIAL

DICAS

Há ótimos filmes sobre a Idade Média. Recomendamos assistir a um em especial:


O Nome da Rosa, onde aparecem de modo bastante evidente as diferentes maneiras de se
lidar com o conhecimento.

FIGURA 7 – O NOME DA ROSA

FONTE: Disponível em: <http://2.bp.blogspot.com/_Cyy4Qc4kSHA/


TALSljRLRrI/AAAAAAAAAEc/5sTSpjvtKak/s1600/O_Nome_Da_Rosa.
jpg>. Acesso em: 25 out. 2012.

UNI

Como Leitura Complementar para este tópico, caro(a) acadêmico(a), você tem
à disposição uma breve apresentação da lógica aristotélica.

28
TÓPICO 1 | OS FILÓSOFOS ANTIGOS E MEDIEVAIS

LEITURA COMPLEMENTAR

A LÓGICA ARISTOTÉLICA

João Francisco Cabral

Para Aristóteles, a lógica não é ciência e sim um instrumento (órganon)


para o correto pensar. O objeto da lógica é o silogismo.

Silogismo nada mais é do que um argumento constituído de proposições


das quais se infere (extrai) uma conclusão. Assim, não se trata de conferir valor de
verdade ou falsidade às proposições (frases ou premissas dadas) nem à conclusão,
mas apenas de observar a forma como foi constituído. É um raciocínio mediado
que fornece o conhecimento de uma coisa a partir de outras coisas (buscando,
pois, sua causa).

Em si mesmas, as proposições ou frases declarativas sobre a realidade,


como juízo, devem seguir apenas três regras fundamentais.

1- Princípio de Identidade: A é A.
2- Princípio de não contradição: é impossível A é A e não-A ao mesmo tempo.
3- Princípio do terceiro excluído: A é x ou não-x, não há terceira possibilidade.

Dessa forma, o valor de verdade ou falsidade é conferido às proposições,


pois é imediatamente evidenciado. No entanto, a lógica trabalha com argumentos.

As proposições classificam-se em:

Afirmativas: S é P.
Negativas: S não é P.
Universais: Todo S é P (afirmativa) ou Nenhum S é P (negativa).
Particulares: Alguns S são P (afirmativa) ou Alguns S não são P (negativa).
Singulares: Este S é P (afirmativa) ou Este S não é P (negativa).
Necessárias: quando o predicado está incluso no sujeito (Todo triângulo tem três
lados).
Não necessárias ou impossíveis: o predicado jamais poderá ser atributo de um
sujeito (Nenhum triângulo tem quatro lados).
Possíveis: o predicado pode ou não ser atributo (Todos os homens são justos).

O silogismo é composto de, no mínimo, duas proposições das quais é


extraída uma conclusão. É necessário que entre as premissas (P) haja um termo
que faça a mediação (termo médio sujeito de uma P1 e predicado da P2 ou vice-
versa). Sua forma lógica é a seguinte:

29
UNIDADE 1 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E A COMPREENSÃO DA VIDA SOCIAL

AéB
Logo, B é C (sempre os termos maior e menor).
CéA

Observem que o termo médio é o termo A, que é sujeito numa frase e


predicado na outra. Assim, ele não aparece na conclusão, evidenciando que
houve mediação e que a conclusão é, de fato, uma dedução ou inferência, isto é,
ela é realmente extraída da relação entre as premissas.

A relação entre as proposições acontece da seguinte maneira:

1 Proposições contraditórias: quando se diz que Todo S é P e Alguns S não são P


ou Nenhum S é P e Alguns S são P.

2 Proposições contrárias: quando se diz que Todo S é P e Nenhum S é P ou Alguns


S são P e Alguns S não são P.

3 Subalternas: quando se diz que Todo S é P e Alguns S são P ou Nenhum S é P e


Alguns S não são P.

O silogismo, portanto, é o estudo da correção (validade) ou incorreção


(invalidade) dos argumentos encadeados segundo premissas das quais é lícito
se extrair uma conclusão. Sua validade depende da forma e não da verdade ou
falsidade das premissas. Desse modo, é possível distinguir argumentos bem
feitos, formalmente válidos, dos falaciosos, ainda que a aparência nos induza a
enganos. Por exemplo:

P1 - Todo homem é mortal (V).


P2 - Sócrates é homem (V).
C - Logo, Sócrates é mortal (V).

O argumento é válido não porque a conclusão é verdadeira, mas por estar


no modelo formal:

AéB
Logo, B é C
CéA

Outro exemplo:

P1 – Todos os mamíferos são mortais (V).


P2 – Todos os cães são mortais (V).
C – Logo, todos os cães são mamíferos (V).

30
TÓPICO 1 | OS FILÓSOFOS ANTIGOS E MEDIEVAIS

Ora, embora as premissas e a conclusão sejam verdadeiras, não houve


inferência, já que por não estarem formalmente adequadas, as premissas não têm
relação com a conclusão.

Formalmente o argumento é A é B
CéB

Logo, A é C, argumento falacioso, já que o termo médio não faz ligação


entre os outros termos.

São várias as combinações, o importante é atentar para a forma. É dela


que se pauta a lógica.
FONTE: CABRAL, João Francisco P. A lógica aristotélica. Disponível em: <http://www.
brasilescola.com/filosofia/logica-aristoteles.htm>. Acesso em: 10 out. 2012.

31
RESUMO DO TÓPICO 1
• Não se trata de um curso de filosofia, mas é preciso resgatar as ideias dos
principais pensadores de cada período para compreender, posteriormente,
como estas ideias estão na raiz do pensamento filosófico e sociológico moderno.

• Começamos falando dos antigos gregos, expondo inicialmente o contexto


histórico que possibilitou o surgimento do pensamento filosófico. Essa análise
foi importante, porque ajuda a entender como a reflexão filosófica e sociológica
não ocorre de modo independente da realidade política e social.

• Estudamos as principais características dos sofistas, de Sócrates, de Platão e


de Aristóteles, que viveram no período clássico da história e cultura gregas.
Pudemos perceber aqui a preocupação com duas questões distintas: os sofistas
preocuparam-se com o aspecto formal do discurso, com a retórica. O seu
esforço estava voltado especialmente para o cidadão grego que fala em praça
pública e quer convencer os demais de suas ideias.

• Sócrates, Platão e Aristóteles, por sua vez, quiseram entender a essência das
coisas e acusavam os sofistas de serem inimigos da verdade, pois usavam de
todas as artimanhas para ter o apoio das outras pessoas. De Aristóteles, ainda
herdamos os fundamentos do pensamento lógico.

• Vimos que no helenismo e, especialmente, durante a Idade Média, a filosofia


e a razão são gradativamente subordinadas à religião. São utilizadas,
particularmente, a teoria de Platão, sobre o mundo sensível e o mundo das
ideias, das quais se apossou Agostinho, e a teoria de Aristóteles, empregada
por Tomás de Aquino, que usa a lógica para a apresentação coerente da
doutrina cristã.

• Todas essas matrizes de pensamento serão aprofundadas e reinterpretadas


nos séculos seguintes, com o propósito de fazer da razão humana o centro da
reflexão filosófica. Vamos falar sobre isto no próximo tópico desta unidade.

32
AUTOATIVIDADE

1 Sobre os sofistas é verdadeiro afirmar. Analise as seguintes sentenças.

I- Os sofistas fazem parte dos filósofos pré-socráticos e a sua principal


contribuição para a filosofia consiste na elaboração da teoria sobre a essência
das coisas.
II- Os sofistas ofereceram uma importante contribuição para a educação na
medida em que elaboraram as primeiras sistematizações do ensino.
III- Os sofistas foram filósofos da Idade Média, seguidores de Tomás de Aquino.
IV- Os sofistas foram um grupo de filósofos do helenismo também chamados
de céticos.

Considerando as proposições acima, assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) Todas as sentenças estão corretas.


b) ( ) As sentenças I, III e IV estão corretas.
c) ( ) As sentenças II e III estão corretas.
d) ( ) Somente a sentença II está correta.

2 Caracterize alguns fatores que contribuíram para o advento da filosofia.

3 Qual foi a principal crítica de Sócrates aos sofistas? Assinale a alternativa


CORRETA:

a) ( ) Sócrates discordava da afirmação de que tudo estava em constante


mudança, ou seja, o ser é móvel.
b) ( ) Sócrates afirma que ele havia se prostituído ao cobrarem remuneração
pelos serviços de educar os filhos das famílias ricas de Atenas. Sócrates
estava convicto de que não se deveria cobrar pelo conhecimento.
c) ( ) Para Sócrates, a lógica dos sofistas era cheia de erros e, por isso, preferia
a que havia sido desenvolvida por Aristóteles.
d) ( ) Sócrates era simpatizante dos sofistas, pois compartilhava muitas das
suas convicções sobre a educação.

33
34
UNIDADE 1
TÓPICO 2

A REVOLUÇÃO FILOSÓFICA A PARTIR


DA MODERNIDADE

1 INTRODUÇÃO
As palavras “moderno” e “modernidade” têm muitas significações e são
empregadas das mais variadas formas. Aqui, vamos usá-las para nos referirmos
ao período histórico em torno do século XVI, que trouxe grandes mudanças
para todas as esferas do conhecimento humano. Ao longo deste tópico vamos
nos ocupar com estas mudanças e perguntar o que elas representaram e ainda
representam para o pensamento filosófico e sociológico.

Para analisar o período, vamos iniciar com uma breve análise do contexto
histórico do século XVI e ver quais foram as mudanças mais significativas desse
período, ressaltando aquelas que foram decisivas para o surgimento de novas
formas de pensar. Veremos que muitos dos fatores que contribuíram para o
surgimento da filosofia lá na Grécia antiga irão se repetir na modernidade. Uma
das características da modernidade é a recuperação da antiguidade grega, por
isso o período também é chamado de Renascença.

Depois, vamos nos ocupar com os principais pensadores e filósofos da


modernidade, tais como: Descartes, Bacon, Locke e Hume. Vamos ver quais são
as principais características de seus pensamentos e determinar alguns elementos
determinantes para o pensamento filosófico posterior.

Finalizando, convido você, caro(a) acadêmico(a), para uma reflexão sobre


o Iluminismo. Aqui falaremos sobre dois pensadores de destaque, Rousseau e
Kant. Mas Kant, certamente, merece atenção especial, pois será ele que levará a
cabo a síntese entre as teorias empirista e racionalista, que dividiram as atenções
durante os primeiros séculos da modernidade. Além disso, o pensamento
kantiano é absolutamente determinante para a mentalidade no Ocidente, sendo
marcante até nos dias de hoje.

35
UNIDADE 1 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E A COMPREENSÃO DA VIDA SOCIAL

2 CONTEXTO HISTÓRICO,O SÉCULO XVI E A RENASCENÇA

Conforme Trigo (2009, p. 126), o contexto histórico do século XVI não


resulta do acaso e tampouco representa uma mudança ocorrida da noite para
o dia:

A modernidade não aparece na história como um portal que se abre


repentinamente para novos mundos e estilos de vida. É um processo lento,
que se inicia com o desenvolvimento da técnica das navegações, do comércio,
do aperfeiçoamento dos métodos de construção civil, do cálculo matemático
e, principalmente, da experimentação. O sentido da experiência foi um dos
grandes saltos entre o mundo medieval e o mundo moderno. Está aí a origem
do pensamento científico.

O século XVI foi um momento de grandes transformações na história


da humanidade. Isso não quer dizer que, em outros momentos, não tenham
ocorrido mudanças importantes, mas o advento da modernidade tem um
destaque especial, pois é ali que se inicia mais especificamente a formação da
sociedade na qual vivemos hoje.

Até então, acreditava-se que o mundo era plano e que, no oceano, além
da linha do horizonte, ele acabaria num grande abismo. Além disso, achava-se
que a Terra era o centro do universo. No século XVI, com as grandes navegações
e com as novas descobertas das ciências que estão nascendo, comprova-se que
a Terra é uma esfera e que ela, na realidade, ocupa lugar periférico e quase
insignificante diante da vastidão do universo.

As navegações transoceânicas, longe da costa, onde não havia referência


para que os barcos não se perdessem, exigiram métodos mais sofisticados de
navegação. Consequentemente, houve a necessidade de cálculos matemáticos
mais precisos, a fim de garantir a chegada ao destino planejado. Além disso, ao
enfrentarem águas desconhecidas e, muitas vezes, turbulentas, os novos barcos
precisavam ter estruturas e incorporar técnicas de construção melhores. (TRIGO,
2009).

As navegações ajudaram a comprovar através da experiência o que as


ciências afirmavam na teoria.

Também os estudos científicos do período foram fundamentais para essa


mudança de compreensão do universo. O modelo de universo que coloca a Terra
em seu centro pode ser adequado à religião e à teologia, mas sugere uma série de
problemas matemáticos difíceis de serem superados. Diante dessas questões, por
exemplo, Nicolau Copérnico sugeriu que o centro do universo era o Sol e que os
planetas giravam ao seu redor em órbitas circulares e uniformes. Copérnico era
monge e sabia que a sua teoria representaria um escândalo para a Igreja.

36
TÓPICO 2 | A REVOLUÇÃO FILOSÓFICA A PARTIR DA MODERNIDADE

O problema não residia na teoria propriamente dita, mas ela implicava


uma discussão sobre a autoridade. Ou seja, admitir que a teoria heliocêntrica, que
coloca o Sol no centro do universo, estava correta e não as afirmações feitas até
então pela Igreja, representava também a aceitação de outro princípio de verdade,
alheio à Igreja. A religião afirmava que a verdade estava única e exclusivamente
com ela. Por essa razão, Copérnico publicou os seus estudos somente à beira da
morte. (TRIGO, 2009).

Conforme Trigo (2009), outra contribuição decisiva para a consolidação


da teoria heliocêntrica foram os estudos dos astrônomos Tycho Brahe (1546-1601)
e Johannes Kepler (1571-1630). Os dois viveram e trabalharam em Praga, capital
da atual República Tcheca. A importância do primeiro está na geração de uma
enorme quantidade de dados a respeito da localização de estrelas. Kepler, por
sua vez, utilizou os dados de Brahe e determinou que os planetas viajam ao redor
do Sol em rotas elípticas e não circulares, como havia afirmado Copérnico. As
teorias de Brahe e Kepler também ajudaram a mostrar que o universo não é tão
ordenado, preciso e harmônico quanto se imaginava.

As duas contribuições seguintes para a afirmação da teoria heliocêntrica foram


os estudos de Galileu Galilei e Isaac Newton. Além dos movimentos dos planetas e
da centralidade do Sol, Galileu (1564-1642) estabeleceu ainda que a Terra gira em
torno do próprio eixo. Por causa dos seus estudos, ele foi duramente perseguido,
julgado e condenado pela Santa Inquisição. Para preservar a própria vida, negou as
suas teorias e comprometeu-se a nunca mais afirmá-las. Mesmo assim, as teorias de
Galileu se espalharam rapidamente e acharam grande número de leitores.

NOTA

A Santa Inquisição era o tribunal da Igreja responsável pelo julgamento de todas


as causas consideradas perigosas à religião.

Figura ainda mais central para a história da ciência é Isaac Newton (1642-
1727) (TRIGO, 2009). O desafio que ele se propôs resolver foi determinar qual seria
a força que mantém a unidade do universo. Nesse contexto, é famosa a história do
pomar de maçãs, no qual um fruto teria caído na cabeça de Newton, levando-o a
elaborar, anos mais tarde, a teoria da gravidade.

Perguntava-se ele: por que as maçãs caem para baixo, e não para cima
ou para os lados? Newton revisou as teorias dos seus antecessores e, desse
modo, ofereceu contribuição decisiva para a invenção do cálculo, em suas bases
primordiais matemáticas; criou um sistema de física matemática e "traçou um
quadro preciso do sistema solar na obra Principia", de 1687.

37
UNIDADE 1 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E A COMPREENSÃO DA VIDA SOCIAL

DICAS

Há um documentário do canal americano BBC com o nome: “História da Ciência –


que há lá fora”, no qual se fala bastante sobre o contexto histórico do século XVI e de como ele foi
importante para o desenvolvimento da ciência moderna. Este documentário está disponível no
site YouTube, através do link: <http://www.youtube.com/view_play_list?p=7FB70D635679D947>.
Não deixe de assistir. Ele o(a) ajudará a entender o conteúdo deste tópico.

Mas não foi somente no âmbito das ciências que o século XVI representou
uma mudança radical. No âmbito da própria Igreja cristã, as novas formas de
pensar, as descobertas das ciências e as mudanças sociais e políticas levaram à
formulação de novas perspectivas.

Os movimentos de reforma da Igreja, nesse período, comprovam isso.


Também aqui a pergunta que se coloca diz respeito à autoridade: com quem está
a verdade? Os reformados, tais como Lutero, Calvino, Melanchton e outros irão
afirmar que a verdade está nos textos sagrados, e não com a tradição eclesiástica.
As perguntas da nova teologia não serão mais sobre a essência de Deus, mas de
que forma o ser humano contribui para chegar a Deus ou para a sua salvação.

DICAS

Caro(a) acadêmico(a), recomendamos assistir ao filme “Lutero”, lançado em


2002. Trata-se de uma biografia do reformador Martinho Lutero. O problema da autoridade
aparece de forma muito evidente nesta obra.

FIGURA 8 – LUTERO

FONTE: Disponível em: <http://bimg2.mlstatic.com/s_


MLB_v_F_f_180478408_8258.jpg>. Acesso em: 20 nov. 2012.

38
TÓPICO 2 | A REVOLUÇÃO FILOSÓFICA A PARTIR DA MODERNIDADE

Podemos perceber, a partir disso, caro(a) acadêmico(a), que a mentalidade


sofre profunda transformação. Passa-se com a modernidade de uma mentalidade
teocêntrica para uma mentalidade antropocêntrica. Esta mudança é comum,
tanto para a religião como para as ciências. É o ser humano que passa a ocupar o
centro do universo e das preocupações.

Isso até parece irônico, em vista das descobertas que colocam


gradativamente o planeta Terra em posição insignificante diante da vastidão do
universo. Vejam, então, o quanto são importantes o século XVI e as mudanças que
ali acharam lugar.

Esta centralidade do ser humano nas novas formas de pensar foram


representadas por Leonardo da Vinci através de uma figura: “O Homem
Vitruviano”.

FIGURA 9 – O HOMEM VITRUVIANO

FONTE: Disponível em: <desenhoonline.com>. Acesso em: 12 nov.


2012.

Veja, caro(a) acadêmico(a), que o centro absoluto da imagem é o umbigo


humano. Os quatro braços e as pernas representam o movimento e a liberdade
humana. Com o círculo e o quadrado quer se expressar que tudo pode ser
calculado e descrito pelo uso da razão humana.

39
UNIDADE 1 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E A COMPREENSÃO DA VIDA SOCIAL

E
IMPORTANT

O pensamento moderno implica a formação e consolidação do pensamento


científico, a reestruturação de uma visão de mundo e o surgimento de teorias filosóficas
cada vez mais afastadas dos gregos clássicos e da Igreja Católica. Aliás, a própria hegemonia
católica foi ameaçada por uma série de divisões dentro do cristianismo, possibilitada pela
revolução de Martinho Lutero e seus seguidores, ou simplesmente pelo confronto materialista
do mundo científico que nesse momento nasceu. (TRIGO, 2009, p. 127).

Depois de termos feito esta breve análise sobre as principais mudanças


históricas no século XVI e início do século XVII, vejamos nos próximos pontos de
que modo elas influenciaram mudanças também para o pensamento filosófico.

2.1 NICOLAU MAQUIAVEL E A FILOSOFIA POLÍTICA


Conforme Trigo (2009), Nicolau Maquiavel (1469-1527) concentrou as
suas atenções na esfera política. Ele afirmava que os preceitos éticos religiosos,
que até então eram determinantes para a organização política dos Estados,
deveriam ser substituídos pelo pragmatismo político. Com isso, Maquiavel lança
o fundamento sobre o qual serão edificadas mudanças sociais muito profundas
nos séculos seguintes.

Aliado à modernidade, veio o fortalecimento dos Estados nacionais.


Durante a Idade Média, a centralização do poder na Igreja Católica impedia que
algum Estado se tornasse realmente soberano. Tudo era subordinado à Igreja,
inclusive os reis, que temiam a excomunhão, caso contrariassem os preceitos da
Igreja. A excomunhão, naquela época, representava a retirada da bênção de Deus
e, assim, aquela pessoa poderia ser morta por qualquer um sem que lhe fosse
imputada qualquer pena.

A partir dos séculos XIV e XV, o poder da Igreja decresce e o poder dos
reis aumenta. Progressivamente, mais poder é concentrado nas mãos desses
governantes. Dessa nova situação surge uma nova pergunta, de ordem político-
filosófica: de que forma essa nova configuração de sociedade e especialmente a
direção desses Estados deveriam organizar-se para que tudo transcorra da melhor
maneira possível? A estas perguntas tentou responder Nicolau Maquiavel.
Queria saber especialmente como era possível alcançar uma unidade nacional,
independente da religião.

Maquiavel viveu em uma Itália que procurava se libertar das amarras da


Igreja, mas, ao mesmo tempo, fazia isso de forma desarticulada. Cada governante
local buscava concretizar as suas próprias ideias, formando os seus próprios

40
TÓPICO 2 | A REVOLUÇÃO FILOSÓFICA A PARTIR DA MODERNIDADE

exércitos. Por um tempo, Maquiavel foi um homem com grande circulação e


influência política, mas, após algumas reviravoltas políticas que recolocaram
a família Médici no poder na Itália, recolheu-se para escrever as suas obras.
(ARANHA; MARTINS, 2003).

NOTA

“Maquiavel escreveu peças de teatro (como a famosa comédia Mandrágora),


poesia e ensaios diversos, dentre os quais se destacam O príncipe e Comentários sobre a
primeira década de Tito Lívio.” (ARANHA; MARTINS, 2003, p. 234). Segundo Chauí (2008), O
Príncipe é o livro que inaugura o pensamento político moderno.

Ao longo da história, Maquiavel foi muito mal interpretado. Esse engano


normalmente decorre de uma leitura apressada e irrefletida de sua obra. Espero
que você, caro(a) acadêmico(a), encontre aqui os subsídios para entender
Maquiavel sem reproduzir o "mito do maquiavelismo".

E
IMPORTANT

Na linguagem comum, chamamos pejorativamente de maquiavélica a pessoa


sem escrúpulos, traiçoeira, astuciosa, que, para atingir seus fins, usa de mentira e má-fé, e
nos engana com tanta sutileza que pensamos estar agindo livremente quando, na verdade,
somos por ela manipulados. Como expressão dessa amoralidade, costuma-se vulgarmente
atribuir a Maquiavel a famosa máxima (que ele nunca escreveu): “Os fins justificam os meios”.
(ARANHA; MARTINS, 2003, p. 234).

Esse tipo de interpretação da obra de Maquiavel decorre da leitura de


trechos como "É necessário a um príncipe, para se manter, que aprenda a poder
ser mau e que se valha ou deixe de valer-se disso segundo a necessidade", que
pode ser encontrada em O Príncipe. Rousseau, sobre quem falaremos mais
adiante, dizia que esse livro não pode ser entendido de modo isolado, pois a sua
chave de interpretação está no conjunto da obra do filósofo. Nessa perspectiva,
entende que O Príncipe é, na realidade, uma sátira. O propósito real da Maquiavel
seria mostrar às pessoas como as coisas estavam acontecendo e produzir assim a
indignação e vontade de mudança social e política. (ARANHA; MARTINS, 2003).

Nos dias atuais, contudo, Aranha e Martins (2003) afirmam que a obra
de Maquiavel é interpretada de modo distinto daquele sugerido por Rousseau.

41
UNIDADE 1 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E A COMPREENSÃO DA VIDA SOCIAL

Acredita-se que Maquiavel fazia distinção de duas circunstâncias específicas da


ação política: primeiramente, seria justificável assumir o poder pela força, usando
o poder absoluto, para, em seguida, implantar progressivamente a república. Neste
segundo momento, o governante deveria buscar sempre mais o apoio do povo.

TUROS
ESTUDOS FU

Veremos na segunda unidade desta disciplina o desenrolar da Revolução


Francesa. Observe, prezado(a) acadêmico(a), que a consolidação da república na França
tem justamente esses dois momentos caracterizados por Maquiavel no livro O Príncipe, um
primeiro momento do poder absoluto e da força para que, somente mais tarde, o governo se
torne republicano e democrático.

De algum modo, parece que Maquiavel já lança em suas obras a semente


da ideia que viria a se tornar absolutamente central na teoria política moderna,
que é o consenso. Antes, a organização e a ação dos Estados eram determinadas
pela ética e moral cristã. Todo o restante a ela era subordinado, fizessem as
medidas bem ou mal à coletividade. O que Maquiavel propõe é uma nova ética
que mede as ações pelas suas consequências. Algo é bom ou ruim se promove o
bem da coletividade ou não.

Aranha e Martins (2003, p. 235) afirmam, nesse sentido:


Não se trata de amoralismo, mas de uma nova moral centrada nos
critérios da avaliação do que é útil à comunidade: se o que define a
moral é o bem da comunidade, constitui dever do príncipe manter-
se no poder a qualquer custo, por isso às vezes pode ser legítimo o
recurso ao mal – o emprego da força coercitiva do Estado, a guerra, a
prática da espionagem, o uso da violência.

De modo algum o filósofo defende todo e qualquer tipo de violência. Por


isso, Maquiavel faz uma diferença entre o governante que é virtuoso e o tirano.
O príncipe virtuoso é diferente da virtude cristã, que prega a justiça e a bondade.
Para Maquiavel, a virtude é a capacidade do governante de entender o jogo e as
forças políticas e empreender todas as forças para conquistar e manter o poder.
O príncipe age de modo enérgico a fim de garantir o bem da comunidade a
qualquer custo. Já o tirano é aquele governante que somente age por capricho e
por vontade própria. (ARANHA; MARTINS, 2003).

42
TÓPICO 2 | A REVOLUÇÃO FILOSÓFICA A PARTIR DA MODERNIDADE

E
IMPORTANT

Portanto, Maquiavel enfatiza que:


“Os critérios da ética política precisam ser revistos conforme as circunstâncias e sempre
tendo em vista os fins coletivos”. (ARANHA; MARTINS, p. 236).

Na busca dos fins coletivos nunca haverá unanimidade, sempre haverá


pessoas com características e interesses distintos compondo a mesma sociedade.
Maquiavel prevê isto e afirma que, por essa razão, é inerente a qualquer
sistema político a existência do conflito. O conflito não é entendido aqui como
acontecimento de violência, mas a coexistência de indivíduos diferentes entre si.

Além disso, Maquiavel inaugura uma nova forma de refletir sobre a


realidade, diferente daquela herdada da Idade Média e também utilizada pelos
seus contemporâneos. Estes recorriam aos antigos autores gregos e latinos para
fundamentarem as suas teorias. Buscavam nas antigas democracias gregas e
romanas os modelos para a nova sociedade que pretendiam construir. Maquiavel,
por sua vez, não procura na antiguidade os elementos para a construção do seu
modelo político, mas o funda na própria experiência que tivera enquanto homem
político. (CHAUÍ, 2008).

TUROS
ESTUDOS FU

Esse novo modelo de fazer ciência e filosofia será desenvolvido pelos chamados
empiristas, sobre os quais falaremos mais adiante.

Portanto, a teoria de Maquiavel nada tem de maquiavélica, mas lança os


fundamentos para um novo tipo de ética, que privilegia o bem da coletividade
e a incorporação do conflito ou das diferenças como algo inerente às sociedades
humanas e que deve ser assegurado para que se garanta a liberdade dos indivíduos
de defenderem as próprias ideias.

43
UNIDADE 1 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E A COMPREENSÃO DA VIDA SOCIAL

2.2 FILOSOFIA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO


As mudanças em todas as esferas da sociedade durante o período da
modernidade e especialmente a revolução científica empreendida nos mais
variados campos do conhecimento quebraram o modelo de inteligibilidade
baseado na filosofia aristotélica. O modelo explicativo baseado na lógica dedutiva
não era mais suficiente para dar conta das novas descobertas científicas. Diante
dessa nova realidade, surgiu a pergunta ou, mais precisamente, o receio de que
haveria a possibilidade de se cair em novos enganos.

Por essa razão, uma pergunta-chave para a filosofia na modernidade


firmou-se sobre a questão do método, ou seja, "como" seria possível a construção
de conhecimentos e de novas teorias e "como" garantir a sua autenticidade. Em
última análise, a grande dúvida continua sendo a questão da verdade, que sempre
foi o alvo da filosofia. Filosofia, aliás, como já estudamos no primeiro tópico desta
unidade, é o amor pela verdade.

Durante a Idade Média, o critério da verdade era a sua exposição, segundo


a lógica de Aristóteles. Se todos os critérios do silogismo fossem atendidos, então
ter-se-ia a verdade. Nessa perspectiva, nunca se colocou realmente em questão a
correspondência entre pensamento e realidade/objeto. As exposições teológicas
de Agostinho e Tomás de Aquino eram avaliadas pela lógica argumentativa sobre
as quais foram elaboradas, sem que se perguntasse se as conclusões realmente
correspondiam à verdade, mesmo que nenhuma experiência pudesse ser feita em
relação a elas.

Nessa perspectiva, a atenção dos filósofos anteriores à modernidade


estava completamente pautada sobre os objetos que se propuseram analisar.
Citamos, como exemplo disso, o trabalho de Agostinho na obra "A Trindade".

Com a modernidade e a pergunta pelas garantias de correspondência


entre o pensamento do filósofo e a realidade do mundo, acontece uma inversão.
Assim como nos outros âmbitos, também na filosofia a preocupação volta-se para
o ser humano, que é o sujeito do conhecimento. O objetivo da ciência não é mais
dizer o que é e como são as coisas, mas descobrir um meio seguro de se chegar
a elas. Como o ser humano aprende? Como os novos conhecimentos se formam
em nossa mente?

A tentativa de responder a essas perguntas deu origem a duas correntes


filosóficas distintas: o racionalismo e o empirismo.

44
TÓPICO 2 | A REVOLUÇÃO FILOSÓFICA A PARTIR DA MODERNIDADE

2.2.1 Racionalismo: René Descartes


O principal expoente do racionalismo é o filósofo René Descartes, que
viveu entre 1596 e 1650. Ele também é conhecido pelo seu nome latino, que é
Cartesius, razão pela qual também se chama o seu pensamento de "cartesiano".

NOTA

Escrevemos o nome “Descartes”, mas pronunciamos ele como se não houvesse


o “s”, ou seja, “Decartes”. Dos seus estudos de matemática deriva o plano cartesiano, que
estudamos na escola.

A sua preocupação foi encontrar uma verdade primeira, que não pudesse
ser posta em dúvida e sobre a qual todos os demais conhecimentos poderiam ser
assentados. Por essa razão, fez da dúvida o seu método investigativo.

Conforme nos dizem Aranha e Martins (2003, p. 131):

Descartes começa duvidando de tudo, das afirmações do senso comum,


dos argumentos da autoridade, do testemunho dos sentidos, das
informações da consciência, das verdades deduzidas pelo raciocínio,
da realidade do mundo exterior e da realidade do seu próprio corpo.

Segundo esse raciocínio, praticamente tudo podia ser posto em dúvida,


pois de nada se tinha garantias que assegurassem a realidade do que se
apresentava. Mas Descartes concluiu o seu pensamento com a afirmação de que
havia apenas uma única coisa da qual não se podia duvidar.

AUTOATIVIDADE

Antes de oferecermos a resposta a esta pergunta, vamos fazer uma


pequena atividade prática. Você, caro(a) acadêmico(a), saberia responder do
que não podemos duvidar? Qual foi a resposta de Descartes? Experimente
fazer esta pergunta a alguém que esteja próximo de você neste momento.

Enumere algumas possíveis respostas no espaço a seguir:

45
UNIDADE 1 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E A COMPREENSÃO DA VIDA SOCIAL

Você deve ter encontrado várias respostas à pergunta. Vamos ler um breve
trecho da obra "Discurso do método", de Descartes. Veja se consegue descobrir
a resposta.

Não sei se deva falar-vos das primeiras meditações que aí realizei; pois
são tão metafísicas e tão pouco comuns, que não serão, talvez, do gosto de todo
mundo. E, todavia, a fim de que se possa julgar se os fundamentos que escolhi
são bastante firmes, vejo-me, de alguma forma, compelido a falar-vos delas.
De há muito observara que, quanto aos costumes, é necessário, às vezes, seguir
opiniões, que sabemos serem muito incertas, tal como se fossem indubitáveis,
como já foi dito acima. Mas, por desejar então ocupar-me somente com a
pesquisa da verdade, pensei que era necessário agir exatamente ao contrário,
e rejeitar como absolutamente falso tudo aquilo em que pudesse imaginar a
menor dúvida, a fim de ver se, após isso, não restaria algo em meu crédito, que
fosse inteiramente indubitável. Assim, porque os nossos sentidos nos enganam,
às vezes, quis supor que não havia coisa alguma que fosse tal como eles nos
fazem imaginar. E, porque há homens que se equivocam ao raciocinar, mesmo
no tocante às mais simples matérias de geometria e cometem aí paralogismos,
rejeitei como falsas, julgando que estava sujeito a falhar como qualquer
outro, todas as razões que eu tomara até então por demonstrações. E enfim,
considerando que todos os mesmos pensamentos que temos quando despertos
nos podem também ocorrer quando dormimos, sem que haja nenhum. Nesse
caso, que seja verdadeiro, resolvi fazer de conta que todas as coisas que até
então haviam entrado no meu espírito não eram mais verdadeiras que as ilusões
de meus sonhos. Mas, logo em seguida, adverti que, enquanto eu queria assim
pensar que tudo era falso, cumpria necessariamente que eu, que pensava,
fosse alguma coisa. E, notando que esta verdade: eu penso, logo existo, era tão
firme e tão certa que todas as mais extravagantes suposições dos céticos não
seriam capazes de a abalar, julguei que podia aceitá-la, sem escrúpulo, como o
primeiro princípio da filosofia que procurava. (DESCARTES, 1973, p. 54).

Essa primeira constatação Descartes chamou de intuição primeira e a


partir dela distinguiu várias ideias, selecionando aquelas que eram duvidosas
de outro grupo, que chamou de ideias inatas. Segundo o pensador, essas ideias
inatas são tão confiáveis quanto a certeza do ser que pensa. Uma dessas ideias é
o que denominou cogito, ou racionalidade. O ser humano tem a racionalidade/
razão através da qual pode pensar sobre o mundo em que vive. Também seriam
ideias inatas a infinitude e a perfeição de Deus, bem como as ideias de extensão e
movimento, que são constitutivas do mundo físico. (ARANHA; MARTINS, 2003).

Até aqui, no entanto, ainda não conseguiu uma garantia de que o seu
pensamento efetivamente corresponda à realidade. Descartes se perguntava de
que modo poderíamos ter certeza de que a nossa vida e o mundo como um topo
não seriam apenas um sonho. O que garante que o meu raciocínio corresponde à
realidade ou que as coisas de nossa mente têm existência e não são mera imaginação?
Para resolver este problema e provar que o mundo tem realidade, lançou mão do
que ficou conhecido como "prova ontológica da existência de Deus".

46
TÓPICO 2 | A REVOLUÇÃO FILOSÓFICA A PARTIR DA MODERNIDADE

NOTA

Ontologia: “Ciência que investiga a natureza do ser enquanto ser, considerado


em si mesmo, independentemente da matéria e das especulações acerca da essência,
substância a acidentes”. (MENDES, 1987, p. 1594).

Como Descartes queria demonstrar que a razão humana tem uma


capacidade gigantesca, propôs-se a provar com ela a existência de Deus, que seria
a coisa mais difícil de se provar. Se pudesse provar que Deus existe com o uso da
simples razão, então todas as outras coisas poderiam ser explicadas com a razão
da mesma forma.

ATENCAO

Conforme Aranha e Martins (2003, p. 131), a prova ontológica da existência de


Deus, segundo Descartes, pode ser formulada da seguinte forma:

O pensamento deste objeto – Deus – é a ideia de um ser perfeito; se um ser


é perfeito, deve ter a perfeição da existência, senão lhe faltaria algo para ser
perfeito. Portanto, ele existe. Se Deus existe e é infinitamente perfeito, não me
engana. A existência de Deus é a garantia de que os objetos pensados por
ideias claras e distintas são reais. Portanto, o mundo tem realidade. E, dentre as
coisas do mundo, o meu próprio corpo existe.

A partir de Descartes, tem-se uma enorme valorização da razão. A partir


dela pode-se entender e explicar a realidade e, portanto, não se precisa mais de
crenças sobrenaturais.

A filosofia cartesiana deixou duas heranças fundamentais para o


pensamento posterior:

a) O ideal matemático.
b) O dualismo psicofísico.

a) O ideal matemático: a partir da centralidade da razão estabelecida por


Descartes, muitos pensadores se lançaram a explicar o mundo a partir dos
princípios matemáticos. O objetivo era descobrir as leis que organizavam toda
a realidade.

47
UNIDADE 1 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E A COMPREENSÃO DA VIDA SOCIAL

TUROS
ESTUDOS FU

Na segunda unidade deste caderno veremos como esse ideal será incorporado
também nas ciências humanas, especialmente na sociologia positivista de Augusto Comte. O
princípio também terá forte influência no pensamento filosófico e sociológico brasileiro, que
será assunto na terceira unidade.

b) O dualismo psicofísico: outra consequência da filosofia cartesiana é o dualismo


entre mente e corpo. O corpo é uma realidade física e fisiológica e está limitado
a todas as leis deterministas da natureza. A mente, por sua vez, não está sujeita
a estas leis. Não há limites para as atividades da mente, tais como: recordar,
raciocinar, conhecer e querer. Portanto, a mente passa a ser cada vez mais
identificada como o âmbito em que se usufrui a liberdade. Não será por acaso
que nos séculos seguintes as profissões intelectuais serão mais valorizadas
do que aquelas que exigem a atividade física. Também as chamadas ciências
exatas serão vistas como mais valiosas do que aquelas que têm caráter mais
subjetivo.

UNI

Reflita sobre as profissões mais valorizadas na nossa sociedade e aquelas que


recebem os menores salários.

Veremos, no seguinte item, qual foi a segunda forma de responder à


pergunta pela origem do conhecimento. Trata-se do empirismo.

2.2.2 Empirismo: Francis Bacon, John Locke e David Hume


Os empiristas são os filósofos que ressaltam o valor da experiência
como ponto de partida do pensamento e elemento essencial na formação do
conhecimento. A valorização da experiência para a constituição do conhecimento
era algo radicalmente novo, pois até então ela era vista com maus olhos,
principalmente pela Igreja e teologia mais tradicionais.

48
TÓPICO 2 | A REVOLUÇÃO FILOSÓFICA A PARTIR DA MODERNIDADE

Nesse sentido, segundo Trigo (2009, p. 127): "experimentar podia significar


duvidar e a dúvida era a porta de entrada da heresia, do pecado e da condenação
pelos tribunais civis e religiosos da época". Para a teologia da Idade Média, todas as
verdades já haviam sido reveladas pela Bíblia e, por isso, não havia necessidade de
experimentos para fazer novas descobertas.

NOTA

A palavra empirismo vem do grego empeiria e significa “experiência”. (ARANHA,


MARTINS, 2003).

A seguir, analisaremos brevemente o pensamento dos três principais


representantes do empirismo: Francis Bacon, John Locke e David Hume.

2.2.3 Francis Bacon


Bacon viveu entre 1561 e 1626 e valorizava o saber instrumental que
possibilitava a dominação da natureza. Também ele, assim como Descartes, estava
interessado no método da ciência. O seu pensamento se caracteriza por uma forte
crítica à lógica aristotélica, pois considerava ela extremamente limitante para a
investigação científica. Por isso, enfatizará em sua obra o valor da indução como
método científico válido. No método dedutivo de Aristóteles não era possível
tirar uma conclusão que extrapolasse os pressupostos de pesquisa. Já na indução,
permitia-se a generalização a partir de estudos determinados. (ARANHA;
MARTINS, 2003).

ATENCAO

Um exemplo de aplicação do método indutivo é a investigação de novos


medicamentos pela indústria farmacêutica. Novos compostos são criados em laboratório,
experimentados em um grupo limitado de indivíduos e, a partir disso, induz-se que eles
serão eficazes para todos os demais. Segundo o método dedutivo, por sua vez, somente seria
possível concluir que um novo remédio é eficaz na cura de alguma enfermidade se houvesse
a possibilidade de testá-lo em todos os indivíduos. Criou-se, assim, com o método indutivo,
uma possibilidade enorme para a ciência que estava se desenvolvendo. Por outro lado, a
indução é menos precisa do que a dedução. Sempre haverá uma possibilidade considerável
de a solução não ser eficaz para alguns indivíduos.

49
UNIDADE 1 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E A COMPREENSÃO DA VIDA SOCIAL

Segundo Bacon, há vários preconceitos e noções falsas que dificultam


ou mesmo impedem a nossa apreensão da realidade, os quais ele chamou de
ídolos. Com isso, ele afirmava que o nosso olhar sobre a realidade é determinado
e enxergamos apenas algumas coisas e outras não, conforme a nossa educação, a
sociedade em que vivemos, entre outros fatores.

2.2.4 John Locke


Locke (1632-1704) ressalta o valor da experiência para a formação do
conhecimento seguindo uma via mais psicológica. Ele distingue duas fontes
possíveis para a formação das ideias no ser humano: a sensação e a reflexão.

A sensação resulta das transformações que ocorrem em nossa mente a


partir da experiência dos sentidos. Quando estamos em contato com a realidade
do mundo, de alguma forma, essas imagens são gravadas em nossa mente na
forma de ideias simples. Assim, através da sensação, forma-se no indivíduo um
leque considerável de ideias simples.

A reflexão, por sua vez, consiste na associação de ideias simples que


fazemos em nossas mentes, formando ideias complexas. As ideias complexas,
conforme Locke, não possuem uma existência e validade objetiva. "São nomes de
que nos servimos para denominar e ordenar as coisas". (ARANHA; MARTINS,
2003, p. 133).

Locke comparava a mente humana a uma tábula rasa, uma tábua sem
inscrições, tal como uma forma de cera sem impressões. Poderíamos falar também
num livro em branco. Quando o ser humano começa a experimentar a realidade
do mundo, este vai sendo impresso dentro dele.

FIGURA 10 – LIVRO EM BRANCO

FONTE: Disponível em: <coronelbessa.blogspot.com>. Acesso em: 12


nov. 2012.

50
TÓPICO 2 | A REVOLUÇÃO FILOSÓFICA A PARTIR DA MODERNIDADE

Também foi característica de Locke a crítica a Descartes. Ele não aceitava a


teoria das ideias inatas, afirmando que, se elas existissem, as crianças já as teriam.
Além disso, refuta a prova ontológica da existência de Deus do pensamento
cartesiano, pois, segundo Locke, a ideia de Deus não está presente em todas
as sociedades, ou pelo menos não a ideia de um deus perfeito. (ARANHA;
MARTINS, 2003).

2.2.5 David Hume


David Hume foi um filósofo escocês que viveu de 1711 a 1776. Ele
aprofundou as teorias de Francis Bacon e John Locke. Hume aceita o princípio
de Locke de que, a partir da experiência, ideias simples são formadas em nossas
mentes. Contudo, não aceita a teoria de que as ideias complexas resultam da
associação de ideias simples no interior da nossa mente. Segundo ele, somente
a experiência é válida para o conhecimento e, como não podemos observar o
processo de associação de ideias em nosso interior, esta não poderia ser uma
conclusão científica válida.

Mas de onde vêm, então, os pensamentos mais complexos e as teorias?


Para o filósofo, as ideias complexas se formam com o hábito que é criado nos
indivíduos a partir da experiência repetida. Quando observamos muitas vezes os
mesmos acontecimentos ou fatos parecidos, começamos a perceber os princípios
de causalidade, as semelhanças e as contiguidades.

Ao mesmo tempo, Hume chamou a atenção para o fato de que nem sempre
os fatos que observamos estão relacionados. Com isso, ele negou a validade
universal do princípio de causalidade e da noção de necessidade a ele associada.
Em outras palavras, Hume está dizendo que a realidade poderia ser diferente
daquilo que se tornou. Ela não é resultado necessário da história que a antecede.
A relação de causa e efeito é um princípio válido para a investigação científica,
mas ela não é universal, válida para todos os fenômenos, pois existem fatos que
não decorrem necessariamente do que havia antes.

Assim, a observação da sucessão de acontecimentos nos leva a crer que


um determinado fato se comportará de forma análoga no futuro, sem, contudo,
termos recursos para assegurar isto de modo inquestionável.

Disso decorre que, na teoria de Hume, segundo Aranha e Martins (2003,


p. 134), "a única base para as ideias ditas gerais, portanto, é a crença de que, do
ponto de vista do entendimento, faz uma extensão ilegítima do conceito”.

A teoria de David Hume é revolucionária para a sua época, principalmente


se considerada sob o prisma da organização política. Quando negou o princípio
universal da causalidade e necessidade, estava ao mesmo tempo dizendo que a
organização política do Estado de seu tempo não era uma realidade fruto de um

51
UNIDADE 1 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E A COMPREENSÃO DA VIDA SOCIAL

desenvolvimento histórico necessário, ou seja, que não havia possibilidade de ser


de outra forma. Dito de outro modo, Hume afirmava que a história poderia ser
outra, pois não há necessariamente uma lógica na sucessão dos acontecimentos.

Com a sua teoria, Hume estava lançando, juntamente com seus


contemporâneos, as bases ideológicas necessárias para as revoluções que
aconteceriam nos séculos seguintes. Nesse sentido, a Revolução Francesa é
absolutamente central para a história do pensamento filosófico e sociológico no
Ocidente e, consequentemente, no Brasil.

TUROS
ESTUDOS FU

A Revolução Francesa foi uma reviravolta completa na sociedade francesa do


final do século XVIII e princípio do século XIX, que levou à queda da monarquia e do regime
feudal e à ascensão do capitalismo e da república. Estudaremos a Revolução Francesa na
segunda unidade deste Caderno de Estudos.

2.2.6 Racionalismo ou empirismo?


E então, prezado(a) acadêmico(a), quem estava certo, os racionalistas ou
os empiristas? O que é mais importante para a formação do conhecimento, a
razão ou a experiência? Embora com alguma cautela, poderíamos falar também
em teoria e prática. O que é mais importante para o aprendizado, a teoria ou
a prática? De forma um tanto simples, esta foi a discussão entre empiristas e
racionalistas. Os racionalistas enfatizavam a centralidade da razão na formação
do conhecimento, que era devida principalmente às capacidades inatas do ser
humano. Já para os empiristas, a experiência do mundo era mais fundamental. De
qualquer forma, todos concordavam na centralidade do ser humano do processo
do conhecimento. Este não é mais visto como tendo uma origem sobrenatural. O
ser humano é o sujeito da ciência e da história.

Como você está vendo, caro(a) acadêmico(a), a formação do pensamento


filosófico e sociológico não é fruto de uma única mente. Não é cada pensador
que formula as suas próprias conclusões, mas ele bebe de toda a tradição que o
antecede. Por isso, toda essa caminhada pela história do pensamento filosófico
é essencial. Sem ela não seremos capazes de compreender de modo produtivo o
pensamento brasileiro.

Veremos a seguir como as ideias empiristas e racionalistas foram


absorvidas pelos seus sucessores: os iluministas.

52
TÓPICO 2 | A REVOLUÇÃO FILOSÓFICA A PARTIR DA MODERNIDADE

2.3 ILUMINISMO
Se as filosofias racionalistas e empiristas da modernidade foram
importantes para a formação da mentalidade necessária para as revoluções sociais
e políticas dos séculos XVIII e XIX, o Iluminismo foi absolutamente essencial. O
Iluminismo não foi somente a concepção de algumas novas ideias ou a proposição
de algumas reformas na sociedade, mas a criação de uma sociedade radicalmente
nova, fundamentada na razão. O período ainda é conhecido como Século das
Luzes, Ilustração ou Aufklärung, que em alemão quer dizer esclarecimento.

A partir das novas maneiras de pensar, o ser humano se vê potencializado


a interferir na realidade e não apenas contemplá-la. Com a liberdade de
pensamento e a experiência inaugurada pela modernidade, ele se lança à
explicação, ao entendimento e transformação de todas as esferas da vida social,
fundamentando a sua ação única e exclusivamente na razão. Por isso, um dos
temas centrais na filosofia de Immanuel Kant, por exemplo, será a emancipação
do indivíduo. Kant não queria nenhum tipo de tutela sobre os indivíduos; estes
deveriam saber governar a si mesmos com o uso da razão.

O ideal iluminista tem grande influência em diversas partes do mundo,


tanto na Europa como nas Américas. Desde os Estados Unidos, que declaram a
sua independência em 1776, até o Brasil, com as conjurações Mineira e Baiana
em 1789 e 1798, respectivamente, as ideias iluministas eram motivo de estudos,
reuniões, debates e revoluções.

FIGURA 11 – REUNIÃO DE ILUMINISTAS

FONTE: Disponível em: <http://www.historiadomundo.com.br/upload/image/


pensadores-iluministas.jpg>. Acesso em: 12 nov. 2012.

Analisaremos a seguir o pensamento de três representantes de destaque


dentro do Iluminismo que marcaram a história do pensamento filosófico e
sociológico: Immanuel Kant, Montesquieu e Jean-Jacques Rousseau.

53
UNIDADE 1 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E A COMPREENSÃO DA VIDA SOCIAL

2.3.1 Immanuel Kant


Immanuel Kant (1724-1804) é o principal representante do Iluminismo na
Alemanha, cujo movimento ali é conhecido como Aufklärung (esclarecimento). As
características da Alemanha nesse período são distintas da França e Inglaterra,
pois ela ainda não forma uma unidade nacional. Ela torna-se um país somente em
1871, antes disso é um aglomerado de pequenos reinos. Tudo isso contribui para
que o desenvolvimento científico e intelectual chegasse mais tarde, sobretudo a
partir da segunda metade do século XVIII.

O desenvolvimento intelectual é caracterizado pelas obras literárias de


Lessing, Herder, Goethe e Schiller e pelas composições musicais de Bach, Haendel,
Haydn, Mozart, Schubert e Beethoven. Na filosofia destacam-se os trabalhos de
Wolff, Lessing, Baumgarten e, especialmente, Kant, cujo pensamento optamos por
expor a seguir. (ARANHA; MARTINS, 2003).

A grande contribuição de Kant para a filosofia está na síntese entre


o racionalismo e o empirismo. Em sua obra "Crítica da Razão Pura", Kant
põe a razão num tribunal para ser julgada. O seu propósito é determinar se o
conhecimento humano realmente pode ser construído a partir da simples razão,
sem que haja a necessidade de derivá-lo de qualquer outra coisa. A sua conclusão
é que o conhecimento deriva tanto de estruturas inatas como da experiência
exterior. Afirma, com isso, que empiristas e racionalistas tinham parcela de razão
em suas exposições filosóficas.

Kant argumenta que o conhecimento é constituído de matéria e forma.


A matéria é composta pelas próprias coisas. De modo que, para conhecer,
precisamos da experiência sensível, como defendiam os empiristas. A forma, por
sua vez, somos nós mesmos. A partir das estruturas de pensamento inatas, somos
capazes de entender e organizar a realidade.

Conforme Aranha e Martins (2003, p. 136), para Kant: “o nosso conhecimento


experimental é composto do que percebemos por impressões e do que a nossa
própria faculdade de conhecer de si mesma tira por ocasião de tais impressões”.

A partir disso, concluiu ainda que não temos a capacidade de conhecer


a realidade em si, mas somente na medida em que ela aparece para nós. Para
isso, emprega o conceito de fenômeno, que quer dizer "o que aparece". Então, se
tudo de que dispomos para conhecer o mundo é o que aparece para nós, também
de algum modo participamos da construção do conhecimento desse mundo. Há
uma diferença entre os objetos em si e aquilo que pensamos sobre eles a partir
das nossas experiências e estruturas inatas. A filosofia kantiana redunda em
idealismo, pois, em última análise, a construção do conhecimento depende das
estruturas inatas do ser humano.

54
TÓPICO 2 | A REVOLUÇÃO FILOSÓFICA A PARTIR DA MODERNIDADE

Aranha e Martins (2003) afirmam que Kant promoveu uma revolução


copernicana na esfera do conhecimento. Até então, toda preocupação girava em
torno do objeto do conhecimento, a coisa em si. A partir de Kant, somos levados
a considerar o sujeito do conhecimento na equação da construção do saber.
Todo conhecimento tem a marca do seu gestor e não pode ser compreendido
independentemente dele. Somos sujeitos ativos e participantes na construção do
saber. Com isso, é posto um poder ainda maior na racionalidade humana, que
não apenas se apropria do conhecimento, mas literalmente o cria.

As afirmações de Kant têm profundas implicações para todas as esferas do


conhecimento: educação, ética, política, cultura e ciência. Ao longo dos próximos
tópicos veremos alguns dos desdobramentos e implicações do pensamento
kantiano, bem como algumas das vozes que foram destoantes e críticas. Como
leitura complementar a este tópico, transcrevemos um breve trecho da obra mais
famosa de Kant, “A Crítica da Razão Pura”, no qual ele reflete sobre alguns
aspectos das estruturas inatas que permitem o conhecimento humano.

2.3.2 Jean-Jacques Rousseau e Montesquieu


Jean-Jacques Rousseau e Montesquieu são representantes do Iluminismo
francês, que se caracteriza, sobretudo, pelo caráter vulgarizador de seus
representantes. O propósito era desconstruir todo o sistema político e social
anterior, preconizado pela monarquia, pela Igreja e pelo sistema feudal.
(ARANHA; MARTINS, 2003).

FIGURA 12 – MARIA ANTONIETA

FONTE: Disponível em: <http://1.bp.blogspot.


com/_39ephwOkYhQ/THPqQdo6VKI/AAAAAAAAAos/
uew0tD6B2oo/s1600/marie-antoinette-ship.jpg>. Acesso em: 12
nov. 2012.

55
UNIDADE 1 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E A COMPREENSÃO DA VIDA SOCIAL

NOTA

Podemos perceber na figura acima uma das formas de ridicularizar os membros


da realeza. A pessoa representada é Maria Antonieta, esposa de Luiz XVI, último rei da
França antes da queda da monarquia com a Revolução Francesa. A extravagância da família
real diante da miséria do povo é representada através do penteado e moda esdrúxulos
protagonizados pela rainha. Devido aos gastos excessivos com superficialidades, a rainha foi
também chamada de “madame déficit”.

O Barão de Montesquieu, cujo nome verdadeiro era Charles-Louis de


Secondat, viveu na França entre 1689 e 1755. Alimentado pelas ideias iluministas,
Montesquieu se propôs a estudar a estrutura das leis francesas, tentando esboçar
um modelo legal que superasse o autoritarismo monárquico característico da
família real francesa de seu tempo. Concluiu que somente o poder é capaz de
frear o poder. Por isso, julgou necessária a existência de diferentes poderes na
constituição do Estado, independentes entre si e exercidos por pessoas diferentes
– Executivo, Legislativo e Judiciário. Com isso, assentou o fundamento sobre o
qual estão organizadas as modernas democracias.

Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) deixou importantes contribuições para


o campo da política e da educação. Para a teoria política, desenvolveu a filosofia do
contrato social, que já havia sido mencionada por John Locke e Thomas Hobbes.
Segundo Rousseau, para que fosse possível uma sociedade autêntica, era preciso
superar os autoritarismos governamentais. Por isso, incialmente, faz uma diferença
entre governo e soberania. A soberania em uma sociedade democrática é do povo,
da coletividade. Para que esta soberania fosse preservada, era preciso inicialmente
que cada indivíduo renunciasse aos interesses particulares. O contrato social,
portanto, pressupõe o consentimento unânime em favor da causa coletiva.

A renúncia em favor da coletividade não seria uma perda da liberdade,


mas justamente a forma de assegurá-la, pois a busca individual de satisfação dos
próprios interesses faria com que somente os mais fortes dominassem e, desse
modo, cerceassem as liberdades individuais. Era preciso, portanto, a ação ativa dos
indivíduos na sociedade, zelando para que o poder não caísse nas mãos de alguém
em particular; ao mesmo tempo, precisava-se reconhecer o governo legítimo que
regia segundo a vontade da coletividade ou vontade geral, ao qual cabia obediência.
A vontade geral é aquilo que é bom para todos. Rousseau diferencia a vontade geral
da vontade de todos, que seria a soma das vontades ou interesses particulares. No
Estado deveria prevalecer a vontade geral, não as vontades individuais. (ARANHA;
MARTINS, 2003).

56
TÓPICO 2 | A REVOLUÇÃO FILOSÓFICA A PARTIR DA MODERNIDADE

Segundo Aranha e Martins (2003), se Kant provou uma revolução


copernicana na esfera do conhecimento, Rousseau o fez em relação à educação.
Até então, o centro da ação pedagógica era o mestre que ensinava as futuras
gerações. Para Rousseau, ao contrário, o centro das atenções na educação deve
ser a criança. Essa convicção decorre em boa medida da sua teoria política, pois
colocou no indivíduo grande responsabilidade na constituição de uma sociedade
justa. Então, para poder exercer essa cidadania, o indivíduo teria que ser capaz de
decidir por conta própria os rumos da sua vida.

O filósofo argumenta que a educação tradicional não educava para a livre


decisão, mas, antes, para a submissão. Se durante todo o estudo a criança tinha
alguém diante dela lhe dizendo o que deveria fazer, na vida adulta continuaria a
precisar de alguém que lhe dissesse o caminho que deveria tomar. Para expor a
sua teoria pedagógica, Rousseau escreveu um romance chamado "Emilio". Trata-
se da história de um menino que é educado por um preceptor, um professor
particular, que nunca diz o que a criança deve fazer, mas organiza o ambiente de
tal forma a predispô-la a decidir por si mesma aquilo que o mestre havia julgado
como bom.

57
UNIDADE 1 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E A COMPREENSÃO DA VIDA SOCIAL

LEITURA COMPLEMENTAR

ESTAMOS DE POSSE DE DETERMINADOS CONHECIMENTOS A PRIORI


E MESMO O SENSO COMUM NUNCA DELES É DESTITUÍDO

Immanuel Kant

Necessitamos agora de um critério pelo qual possamos distinguir


seguramente um conhecimento puro de um conhecimento empírico. É verdade
que a experiência nos ensina, que algo é constituído desta ou daquela maneira,
mas não que não possa sê-lo diferentemente.

Em primeiro lugar, se encontrarmos uma proposição que apenas se possa


pensar como necessária, estamos em presença de um juízo a priori. Se, além disso,
essa proposição não for derivada de nenhuma outra, que por seu turno tenha o
valor de uma proposição necessária, então é absolutamente a priori.

Em segundo lugar, a experiência não concede nunca aos seus juízos


uma universalidade verdadeira e rigorosa, apenas universalidade suposta e
comparativa (por indução), de tal modo que, em verdade, antes se deveria dizer:
tanto quanto até agora nos foi dado verificar, não se encontram exceções a esta
ou àquela regra.

Portanto, se um juízo é pensado com rigorosa universalidade, quer dizer,


de tal modo que nenhuma exceção se admite como possível, não é derivado da
experiência, mas é absolutamente válido a priori. A universalidade empírica é,
assim, uma extensão arbitrária da validade, em que se transfere para a totalidade
dos casos a validade da maioria, como, por exemplo, na seguinte proposição:
todos os corpos são pesados.

Em contrapartida, sempre que a um juízo pertence, essencialmente,


uma rigorosa universalidade, este juízo provém de uma fonte particular do
conhecimento, a saber, de uma faculdade de conhecimento a priori. Necessidade
e rigorosa universalidade são, pois, os sinais seguros de um conhecimento a priori
,e são inseparáveis uma da outra.

Porém, como na prática é umas vezes mais fácil de mostrar a limitação


empírica do que a contingência dos juízos e outras vezes mais conveniente mostrar
a universalidade ilimitada, que atribuímos a um juízo, do que a sua necessidade,
é aconselhável servirmo-nos, separadamente, dos dois critérios, cada um dos
quais é de per si infalível.

58
TÓPICO 2 | A REVOLUÇÃO FILOSÓFICA A PARTIR DA MODERNIDADE

É fácil mostrar que há realmente no conhecimento humano juízos


necessários e universais, no mais rigoroso sentido, ou seja, juízos puros a priori.
Se quisermos um exemplo, extraído das ciências, basta volver os olhos para todos
os juízos da matemática. Se quisermos um exemplo, tirado do uso mais comum
do entendimento, pode servir-nos a proposição segundo a qual todas a mudanças
têm que ter uma causa.

Neste último, o conceito de uma causa contém, tão manifestamente, o


conceito de uma ligação necessária com um efeito e uma rigorosa universalidade
da regra, que esse conceito de causa totalmente se perderia, se quiséssemos
derivá-lo, como Hume o fez, de uma associação frequente do fato atual com o fato
precedente e de um hábito daí resultante (de uma necessidade, portanto, apenas
subjetiva) de ligar entre si representações.

Poder-se-ia também demonstrar, sem haver necessidade de recorrer


a exemplos semelhantes, a realidade de princípios puros a priori no nosso
conhecimento, que estes princípios são imprescindíveis para a própria
possibilidade da experiência, por conseguinte, expor a sua necessidade a priori.
Pois, onde iria a própria experiência buscar a certeza, se todas as regras, segundo
as quais progride, fossem continuamente empíricas e, portanto, contingentes?
Seria difícil, por causa disso, dar a essas regras o valor de primeiros princípios.
Neste lugar podemo-nos bastar com ter exposto, a título de fato, juntamente com
os seus critérios, o uso puro da nossa capacidade de conhecer.

Todavia, não é apenas nos juízos, mas ainda em alguns conceitos, que
se revela uma origem a priori. Eliminai, pouco a pouco, do vosso conceito de
experiência de um corpo tudo o que nele é empírico, a cor, a rugosidade ou
macieza, o peso, a própria impenetrabilidade; restará, por fim, o espaço que esse
corpo (agora totalmente desaparecido) ocupava e que não podereis eliminar. De
igual modo, se eliminardes do vosso conceito empírico de qualquer objeto, seja ele
corporal ou não, todas as qualidades que a experiência vos ensinou, não poderíeis,
contudo, retirar-lhe aquelas pelas quais o pensais como substância ou como
inerente a uma substância (embora este conceito contenha mais determinações
do que o conceito de um objeto em geral). Obrigados pela necessidade com que
este conceito se vos impõe, tereis de admitir que tem a sua sede a priori na nossa
faculdade de conhecer.

FONTE: KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. 5. ed. Lisboa: Gulbenkian, 2001. p. 63-65.

59
RESUMO DO TÓPICO 2
• Estudamos a filosofia do Renascimento até o Iluminismo. Vimos que o
século XVI foi um momento histórico de grandes transformações científicas e
filosóficas, que foram fruto das transformações da sociedade europeia da época.
Ao mesmo tempo em que foram fruto do contexto social e político, as novas
formas de pensar contribuíram para o surgimento de uma nova sociedade que
baseou a sua organização sobre princípios racionais.

• Na política, estudamos o pensamento de Nicolau Maquiavel, que propôs ainda
timidamente o consenso como a forma legítima de organização do governo
de um Estado. Este consenso deve ser buscado, segundo ele, a qualquer custo
pelos dirigentes.

• Quanto ao aspecto da construção do conhecimento, nos ocupamos com o


pensamento racionalista de René Descartes e com o empirismo de Francis
Bacon, John Locke e David Hume. Os racionalistas enfatizaram a importância
da razão em si para o saber. Já os empiristas acentuaram mais o aspecto da
experiência como constitutiva do conhecimento. A partir de Kant, contudo,
pudemos ver que ambas são essenciais para o conhecimento. A grande
reviravolta promovida por Kant, entretanto, está em demonstrar que o ser
humano participa da construção do conhecimento como sujeito e não como
mero receptor de algo já pronto.

• Falamos do iluminismo francês de Montesquieu e Rousseau. O primeiro
preconizou a necessidade de que o poder fosse partilhado e exercido de forma
independente. Com isso, Montesquieu antecipou a teoria dos três poderes nas
modernas democracias. Já Rousseau contribui com o desenvolvimento da teoria
do contrato social e da soberania do povo para a formação de uma sociedade
melhor. Para isso, julgava essencial que o modelo educativo privilegiasse a
criança e a ensinasse a tomar decisões por si mesma.

60
AUTOATIVIDADE

1 Sobre o contexto histórico do século XVI, analise as seguintes sentenças:

I - Foi o período das grandes navegações, inclusive a descoberta das Américas,


que contribuíram para uma mudança na visão do mundo da sociedade da
época. Também a filosofia sofreu impulso a partir das descobertas feitas pelos
navegantes.
II - A grande contribuição de Kant para a filosofia está na síntese entre o
racionalismo e o empirismo. Em sua obra “Crítica da Razão Pura”, Kant põe a
razão num tribunal para ser julgada.
III - Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) deixou importantes contribuições
para o campo da política e da educação. Para a teoria política, desenvolveu
a filosofia do contrato social, que já havia sido mencionada por John Locke e
Thomas Hobbes. Segundo Rousseau, para que fosse possível uma sociedade
autêntica, era preciso superar os autoritarismos governamentais.
IV- Conforme Trigo (2009), outra contribuição decisiva para a consolidação
da teoria heliocêntrica foram os estudos dos astrônomos Tycho Brahe (1546-
1601) e Johannes Kepler (1571-1630). Os dois viveram e trabalharam em Praga,
capital da atual República Tcheca. A importância do primeiro está na geração
de uma enorme quantidade de dados a respeito da localização de estrelas,
Lua e planetas ao longo de um longo período de tempo. Kepler, por sua vez,
utilizou os dados de Brahe e determinou que os planetas viajam ao redor do
Sol em rotas elípticas e não circulares, como havia afirmado Copérnico.

Agora, assinale a alternativa CORRETA:

( ) Somente a sentença IV está correta.


( ) As sentenças III e IV estão corretas.
( ) As sentenças I e IV estão corretas.
( ) As sentenças I, II e IV estão corretas.

2 Qual das alternativas caracteriza o pensamento cartesiano?

Assinale a alternativa CORRETA:

( ) Segundo ele, somente a experiência é válida para o conhecimento, e


como não podemos observar o processo de associação de ideias em nosso
interior, esta não poderia ser uma conclusão científica válida.
( ) O seu pensamento se caracteriza por uma forte crítica à lógica aristotélica,
pois considerava ela extremamente limitante para a investigação
científica. Por isso, enfatizará em sua obra o valor da indução como
método científico válido.
( ) Alimentado pelas ideias iluministas, propôs-se a estudar a estrutura

61
das leis francesas, tentando esboçar um modelo legal que superasse o
autoritarismo monárquico característico da família real francesa de seu
tempo.
( ) A sua preocupação foi encontrar uma verdade primeira, que não pudesse
ser posta em dúvida e sobre a qual todos os demais conhecimentos
poderiam ser assentados. Por essa razão, fez da dúvida o seu método
investigativo.

3 De que modo Kant propôs a superação da dicotomia Racionalismo versus


Empirismo?

62
UNIDADE 1
TÓPICO 3

A FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA

1 INTRODUÇÃO
“Na medida em que avançamos na história, a filosofia vai assumindo
reflexões nos mais diversos campos da atividade humana. Ela vai influenciar
profundamente áreas como a cultura, a ética, a educação, o prazer e a política”.
(TRIGO, 2009, p. 39).

Para fins didáticos, optamos por dividir o último tópico da primeira


unidade deste caderno em dois pontos principais: a filosofia no século XIX e a
filosofia no século XX. Embora próximos historicamente, esses dois séculos estão
muito distantes um do outro no que se refere aos modelos filosóficos dominantes.

O século XIX é fortemente marcado por um otimismo em relação à razão


humana, o que, aliás, durará até parte do século XX. Mas os acontecimentos
históricos significativos que marcavam o último século antes do novo milênio
abalaram profundamente o otimismo do século anterior. Além disso, diante dos
avanços da ciência, o ser humano se torna cada vez mais solitário e insignificante
diante da vastidão do universo. Diante da própria história, da qual parece nunca
conseguirmos chegar ao princípio, pois as novas descobertas sempre mostram
a existência de períodos ainda mais antigos, e diante da física que desvenda
partículas cada vez menores da matéria, tem-se a impressão de que, em todas
as direções, tendemos ao infinito e, por conseguinte, não podemos encontrar a
nossa origem e sentido nesse mundo.

Por fim, transcrevemos um texto sobre as características da sociedade


atual, comumente chamada de sociedade pós-moderna.

2 A FILOSOFIA NO SÉCULO XIX


A filosofia iluminista do século XVIII levou a vários desdobramentos no
século XIX. Entre as principais vertentes que surgiram, por exemplo, a partir da
teoria kantiana, podemos citar o idealismo de Georg Wilhelm Friedrich Hegel,
o materialismo de Ludwig Feuerbach e o positivismo de Augusto Comte. Este
último não será abordado nesta unidade, mas sim na segunda unidade deste
caderno, pois é constitutivo do pensando sociológico, que é assunto daquela
unidade.

63
UNIDADE 1 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E A COMPREENSÃO DA VIDA SOCIAL

Além disso, no século XIX ainda surgiu o materialismo dialético de Karl


Marx, que fez uma síntese entre o materialismo de Feuerbach e a dialética hegeliana.
E tivemos ainda o existencialismo, que rejeitou por completo o sistema hegeliano.

Segundo Trigo (2009, p. 139), “o século XIX é uma segunda fase da


modernidade que foi inaugurada no século XVI”. Afirma o autor: “É a grande
ruptura e transição entre um mundo clerical e aristocrático e um mundo profano,
mais democrático e menos povoado de certezas, pleno de transformações ao
longo do século XIX”.

TUROS
ESTUDOS FU

O positivismo de Augusto Comte e o materialismo dialético de Karl Marx serão


abordados na segunda unidade deste caderno.

3 O IDEALISMO HEGELIANO
Georg Wilhelm Friedrich Hegel viveu entre 1770 e 1831 e introduziu uma
noção nova na filosofia, a de que a razão é histórica. Como ressalta Koyré (2011), a
teoria hegeliana é extremamente difícil, mas influenciou o pensamento filosófico
e sociológico posterior como nenhuma outra. A sua grande preocupação foi a
construção de um sistema filosófico que desse conta de explicar toda a realidade.
A sua intenção primordial não é mudar o mundo, mas está mais interessado em
dizer como ele funciona. Na medida em que oferece essa resposta, cria também a
ferramenta que será utilizada por muitos de seus discípulos que almejarão mudá-
lo, tais como Marx.

FIGURA 13 – GEORG WILHELM FRIEDRICH HEGEL

FONTE: Disponível em: <http://www.fansshare.com/community/


uploads111/7458/georg_wilhelm_friedrich_hegel/>. Acesso em:
12 nov. 2012.

64
TÓPICO 3 | A FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA

NOTA

Hegel viveu num momento histórico conturbado, de profundas transformações


na sociedade.

TUROS
ESTUDOS FU

Falaremos sobre as transformações na sociedade europeia do século XIX na


segunda unidade deste caderno, principalmente aquelas decorrentes da Revolução Industrial
e da Revolução Francesa.

Essa experiência da contradição, segundo Koyré (2011), foi fundamental


para a constituição do pensamento hegeliano. Na percepção de Hegel, o avanço
científico protagonizado pela racionalidade não havia produzido os efeitos
desejados, ou seja, a superação de todos os problemas. Entendia ele que, se a
razão é produtora do conhecimento verdadeiro, então a sua aplicação em
escalas progressivamente crescentes deveria levar à superação de todos os males
da sociedade. Contudo, não era o que acontecia na prática. Antes de produzir
soluções, o avanço da razão produzia novos problemas e novas contradições.

Aranha e Martins (2003, p. 143) sintetizam da seguinte forma o pensamento


hegeliano:
Partindo da noção kantiana de que a consciência (ou o sujeito) interfere
ativamente na construção da realidade, propõe o que se chama de
filosofia do devir, do ser como processo, como movimento, como vir
a ser. Desse ponto de vista, o ser está em constante transformação,
donde surge a necessidade de fundar uma lógica que não parta do
princípio de identidade (estático), mas do princípio de contradição
para dar conta da dinâmica do real, a que chama de dialética.

Dessa forma, Hegel interpreta a história não como acumulação e


justaposição de acontecimentos, mas como o resultado de um processo "cujo
motor interno é a contradição dialética”. (ARANHA; MARTINS, 2003, p. 143).
Até então, a história humana era vista como a soma dos acontecimentos, mas,
a partir da dialética hegeliana, ela passou a ser vista como resultado de um
processo de conflitos e contradições. Assim, os reinos não são fruto da evolução
dos seus antecessores, mas resultado dos seus problemas, crises e acontecimentos
que provocaram a sua ruína.

65
UNIDADE 1 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E A COMPREENSÃO DA VIDA SOCIAL

A dialética de Hegel se realiza em três momentos: a tese, a antítese e a


síntese. Todas as coisas são, em princípio, uma tese. Todas as coisas são o que
são, mas elas não o serão para sempre. Essa é a diferença do pensamento de
Hegel, pois antes se pensava em termos estáticos, ou seja, uma coisa era o que
era para sempre. Para Hegel, as coisas não serão as mesmas para sempre porque
elas possuem o germe da contradição. Em outras palavras, o filósofo nos diz que
todas as coisas possuem algo em si mesmas que as fará mudar, deixando de ser o
que são para se tornarem outra coisa.

ATENCAO

Vamos pensar em um exemplo para deixar essa ideia mais explícita. Imagine
uma carteira, daquelas usadas em sala de aula. Pense que a carteira tal como a vemos, hoje,
é uma tese. Agora, pense no que fará com que a carteira deixe de ser uma carteira; qual a
antítese de uma carteira escolar? Podemos pensar em várias coisas. Os alunos podem ser
a antítese da carteira quando a riscam e danificam, mas o próprio uso dela já é suficiente
para causar desgaste. Talvez não sejamos capazes de perceber a mudança de um dia para o
outro ou mesmo de uma semana para a outra ao ocuparmos um lugar em sala de aula para
nossos estudos, mas a carteira está em constante processo de transformação. A própria ação
do tempo sobre os materiais faz com que a carteira lentamente deixe de ser uma carteira. Após
anos de contradição, já não existe mais uma carteira. O que restou da carteira? Restou a síntese
da tese (a carteira em si) e da antítese (ação dos usuários e a ação do tempo sobre a carteira).

FIGURA 14 – CARTEIRAS DANIFICADAS

FONTE: Disponível em: <http://3.bp.blogspot.com/-


fDOTs7bH8jw/TeWAZdo4SQI/AAAAAAAAE9U/Px02k6k8iOU/
s1600/ESCOLA+B+SITIO+014.JPG>. Acesso em: 12 nov. 2012.

66
TÓPICO 3 | A FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA

Mas o movimento não termina com a síntese. Segundo Hegel, cada síntese
é, por sua vez, uma nova tese, que terá as suas próprias contradições, produzindo
novas sínteses, e assim sucessivamente até que todas as contradições sejam
superadas. A mesma coisa vale para as nossas ideias, para os sistemas filosóficos,
enfim, para toda a realidade.

A superação de todas as contradições é chamada por Hegel de Espírito


Absoluto. Dessa forma, nós nos encontramos entre dois extremos. No princípio,
segundo o filósofo, estaria a pura ideia, que gera a contradição para poder se
realizar plenamente. A contradição da pura ideia é a matéria, o mundo concreto.
Somente quando todas as contradições da pura ideia forem superadas é que se
alcançará o espírito absoluto, que será o fim da história. Por ter colocado a ideia
no princípio do seu sistema filosófico, Hegel é chamado de idealista e podemos
nos referir a seu sistema como idealismo hegeliano.

Embora tenha sofrido muitas críticas, principalmente por ter posto a ideia
como princípio gerador da realidade, o sistema hegeliano possui uma capacidade
explicativa e interpretativa enorme. O movimento dialético realmente nos ajuda
a entender e explicar muitos aspectos da nossa história. A partir do pensamento
de Hegel também somos levados a entender que cada um de nós (e isso também
vale para você, caro estudante) não é um ser pronto.

Quem acha que está pronto sempre será uma pessoa arrogante, pois crê
que não tem mais nada para aprender. Hegel nos diz que estamos em constante
processo de mudança, o que quer dizer que sempre podemos mudar, viver de
modo diferente, participar da construção do nosso futuro. Essas ideias tiveram uma
força enorme na sociedade do século XIX. Muitas pessoas foram realmente levadas
a acreditar que poderiam mudar a sociedade e resolver todos os seus problemas.

TUROS
ESTUDOS FU

Na segunda unidade deste caderno vamos estudar o pensamento marxista


e como ele se apropriou da dialética hegeliana para demonstrar como seria possível a
superação da sociedade capitalista dividida pela separação de classes sociais.

A seguir estudaremos algumas ideias filosóficas que se caracterizaram


pela crítica ao sistema hegeliano.

67
UNIDADE 1 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E A COMPREENSÃO DA VIDA SOCIAL

3.1 O PENSAMENTO MATERIALISTA DE FEUERBACH


Ludwig Feuerbach (1804-1872) foi aluno de Hegel, mas desde muito
cedo empreendeu críticas ao seu mestre, principalmente no âmbito da religião.
O extremismo e radicalismo fizeram com que a carreira acadêmica dele
terminasse prematuramente, mas isso lhe possibilitou dedicar mais tempo ao
aprofundamento de suas teorias. As críticas de Feuerbach ao idealismo de Hegel
foram decisivas para a reformulação do materialismo do pensamento hegeliano.
(MONDIN, 1983).

FIGURA 15 – LUDWIG FEUERBACH

FONTE: Disponível em: <http://spe.fotolog.com/photo/46/32/27/


gran_ducado/1220474293989_f.jpg>. Acesso em: 12 nov. 2012.

A principal obra de Feuerbach foi o livro "A essência do cristianismo", no


qual afirma contra Hegel que o verdadeiro papel da filosofia seria por o infinito
no finito, e não o finito no infinito. Ou seja, "a tarefa da filosofia não é provar que
o homem é produzido por Deus, mas, inversamente, que Deus é produzido pelo
homem: não foi a ideia (Deus) que criou o homem, mas o homem que criou a
ideia (Deus)". (MONDIN, 1983, p. 93).

O princípio fundamental do materialismo é, portanto, que a matéria


gera o pensamento quando atinge o seu mais alto estágio de desenvolvimento.
Segundo Feuerbach, o ser humano criou a ideia de Deus como uma projeção
daquilo que considera perfeito em vista da incapacidade de alcançá-lo por conta
própria. (MONDIN, 1983).

As ideias de Feuerbach influenciaram profundamente o pensamento de


Karl Marx, sobre o qual falaremos na segunda unidade deste caderno.

68
TÓPICO 3 | A FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA

3.2 ANTECEDENTES DA CRISE DA RAZÃO


Embora as raízes do pensamento existencialista estejam no século
XIX, muitos dos seus defensores seriam ouvidos somente no século XX. O
existencialismo é uma crítica ao idealismo de Hegel e um dos seus principais
expoentes é Sören Kierkegaard (1813-1885).

FIGURA 16 – KIERKEGAARD

FONTE: Disponível em: <http://sorenkierkegaard.org/IMG/gallery/sk7.


jpg>. Acesso em: 12 nov. 2012.

Kierkegaard foi um pensador e filósofo dinamarquês que empreendeu um


ataque muito severo a toda a filosofia desenvolvida desde Descartes até Hegel.
Segundo ele, em nenhuma das teorias desenvolvidas o ser humano aparecia como
um ser que tem uma existência subjetiva. O ser humano era sempre apresentado
como um ser completamente racional e objetivo. Para Kierkegaard, o ser humano
é muito mais do que simplesmente a racionalidade. (TRIGO, 2009).

O filósofo dinamarquês ressaltou que a existência humana é permeada de


contradições que a razão não é capaz de resolver (ARANHA; MARTINS; 2003).
O movimento dialético defendido por Hegel não seria uniforme, levando a um
desenvolvimento progressivo da vida humana. Kierkegaard ressalta que o ser
humano é movido por paixões, sendo que estas seriam as responsáveis pelas
mudanças. Além disso, a mudança não é processual e progressiva, mas ela é
marcada por saltos qualitativos.

O desenvolvimento humano, portanto, resulta da ação de indivíduos


que ousaram realizar este salto, uma mudança radical, movidos pela paixão,
criando novas possibilidades de organizar a vida. O progresso não resultaria,
dessa forma, de um desenvolvimento gradual, conforme protagonizava o sistema
dialético hegeliano.

69
UNIDADE 1 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E A COMPREENSÃO DA VIDA SOCIAL

Outro crítico da razão foi o filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-


1900). Ele dizia que as verdades afirmadas pela razão não passam de ilusões.

Conforme Nietzsche (apud ARANHA; MARTINS; 2003, p. 148):


O que é a verdade, portanto? Um batalhão móvel de metáforas,
metonímias, antropomorfismos, enfim, uma soma de relações
humanas, que foram enfatizadas poética e retoricamente, transpostas,
enfeitadas, e que, após longo uso, parecem a um povo sólidas, canônicas
e obrigatórias: as verdades são ilusões, das quais se esqueceu que o
são, metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível, moedas
que perderam sua efígie e agora só entram em consideração como
metal, não mais como moedas.

As ditas verdades, sejam aquelas afirmadas pela razão ou as proposições


teológicas, nada seriam além de invenções humanas para dar expressão à
realidade. O trabalho da filosofia, portanto, não poderia ser pautado na busca por
novas verdades, pois também estas não passariam de ilusão. Os conceitos, através
dos quais a humanidade proclama suas supostas verdades, nada seriam além de
construções históricas. O filósofo deveria, assim, estudar e esclarecer o processo
pelo qual determinada afirmativa passou a ser reconhecida como verdade. A
filosofia seria mais a genealogia dos conceitos e das teorias do que a construção
de novos sistemas filosóficos. (TRIGO, 2009).

Segundo Nietzsche (1978), o único critério que se impõe para a construção


da verdade é a vida. O que importa na interpretação e avaliação da realidade é
determinar se uma afirmação, seja ela científica, teológica ou filosófica, favorece
o desenvolvimento da vida ou não. Verdade para Nietzsche é o que promove a
vida, pois a preocupação primordial do ser humano em toda a sua história foi
garantir a vida a qualquer custo. (ARANHA; MARTINS, 2003).

Além disso, ainda podemos mencionar Sigmund Freud (1856-1939) no


contexto de crítica à razão. A grande contribuição de Freud foi demonstrar que
o ser humano possui algo que chamou de inconsciente. A ação humana não é
determinada exclusivamente pela razão, mas muitos dos comportamentos
humanos são movidos pelas mazelas do inconsciente, das pulsões e dos desejos.

TUROS
ESTUDOS FU

Na segunda unidade deste caderno ainda estudaremos o pensamento do


filósofo Karl Marx, que também estudou as ilusões da vida social, a que chamou de alienação
e ideologia.

70
TÓPICO 3 | A FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA

Dessa forma, caro(a) acadêmico(a), pudemos ver que o século XIX foi
marcado pela constituição de duas correntes filosóficas opostas. A primeira,
da qual Hegel é o principal expoente, afirmava a crença no potencial da razão
humana, considerando que ela levaria a humanidade para a formação de
uma sociedade perfeita, livre de qualquer contradição. Por outro lado, houve
pensadores como Kierkegaard, Nitzsche, Freud e Marx, que denunciaram as
armadilhas da razão, ajudando a preparar o terreno para as reflexões filosóficas
que seriam desenvolvidas no século XX.

3.3 A FILOSOFIA NO SÉCULO XX


O século XX se caracteriza por profundas modificações em todas as esferas
da vida humana. Conforme Trigo (2009, p. 139), ele é a terceira e última fase da
modernidade, inaugurada no século XVI, e compreende: “Um mundo altamente
interligado e ao mesmo tempo fragmentado, sem muita nitidez de seus desafios
e perigos, cujo sentido da própria existência humana se torna embaçado ou até
mesmo desprovido de significado. Um mundo perigoso e estimulante”.

Em outras palavras, caro(a) acadêmico(a), podemos dizer que, na medida


em que adentramos no século XX, enfrentamos também o que poderíamos chamar
de "crise da razão". (ARANHA; MARTINS, 2003, p. 147). Até o final do século XIX,
e mesmo no princípio do século XX, reinava um absoluto otimismo em relação à
capacidade humana de, usando a sua racionalidade, resolver todos os problemas e
criar uma sociedade perfeita através da ciência.

Esse otimismo antropológico se caracteriza, por exemplo, na frase que


teria dito um dos construtores do Titanic, Thomas Andrews: "esse nem mesmo
Deus afunda!". Contudo, ele afundou. Outros acontecimentos contribuíram para
que fossem colocadas em cheque as certezas e a confiança excessiva na razão
humana. Vamos ver quais foram alguns desses acontecimentos. As duas guerras
mundiais representaram um abalo do otimismo na razão humana em virtude
dos milhões de mortos que elas deixaram. A crença no desenvolvimento de uma
sociedade mais humana e próspera desabou diante dos totalitarismos nazista e
fascista, que culminaram nas guerras. (TRIGO, 2009).

Durante as guerras, toda a tecnologia foi empregada para a criação


de armas de destruição em massa. O ápice dessa tecnologia foram as bombas
nucleares, capazes de exterminar milhares de pessoas em alguns instantes.
(JASPERS, 2010).

71
UNIDADE 1 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E A COMPREENSÃO DA VIDA SOCIAL

FIGURA 17 – VISTA DE HIROSHIMA APÓS O LANÇAMENTO DA BOMBA ATÔMICA

FONTE: Disponível em: <http://veja2.abrilm.com.br/assets/images/2010/7/13761/


hiroshima-01-size-598.jpg?1279836141>. Acesso em: 12 nov. 2012.

Por outro lado, o desenvolvimento não causou apenas efeitos negativos


em relação à capacidade humana de compreender o mundo em que vive. Jaspers
(2010) refere as descobertas de Einstein, especialmente a Teoria da Relatividade,
como descobertas que abriram novas possibilidades de pesquisa praticamente
infinitas. Também as descobertas na área de Biologia, com a criação de formas
biológicas a partir de elementos não orgânicos, como a ureia, fizeram repensar as
relações entre objetos e sujeitos no fazer científico.

O século XX, segundo Jaspers (2010), foi um tempo que demonstrou que
a história humana é cheia de riscos e possibilidades. Tanto o início da história
humana como o seu destino se tornam cada vez mais distantes diante das
descobertas científicas, tanto da arqueologia no que se refere ao início da vida no
planeta Terra, como da astronomia sobre a vastidão do universo. A fragilidade da
vida também é aumentada diante dos avanços tecnológicos, sobre os quais não se
tem controle absoluto.

A multiplicidade de situações e desafios ao longo do século XX levou


ao desdobramento da filosofia em diversas correntes. As principais correntes
filosóficas contemporâneas são: o pragmatismo, a fenomenologia, os estudos da
linguagem e a teoria da ação comunicativa.

72
TÓPICO 3 | A FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA

3.3.1 O pragmatismo
O pragmatismo foi uma corrente filosófica que se desenvolveu
principalmente nos Estados Unidos. Entre os seus principais expoentes estão:
Charles Sanders Peirce (1839-1914), William James (1842-1910) e John Dewey
(1859-1952). A principal ideia do pragmatismo é a de que "o conhecimento é uma
atividade participativa (não impessoal) e consiste de explicações válidas, sendo
o instrumento mais importante para nossa sobrevivência". (TRIGO, 2009, p. 175).
Para os pragmáticos, o conhecimento válido é aquele que tem uma aplicação
prática ou então quando "funciona”. (ARANHA; MARTINS, 2003).

O pragmatismo norte-americano também exercerá enorme influência


na educação através do educador John Dewey. Os métodos educativos por ele
influenciados enfatizarão a efetividade do aprendizado (TRIGO, 2009). Dewey
também será precursor do método "aprender fazendo", utilizado até hoje em escolas
do mundo inteiro. A escola tradicional era baseada no método unidirecional, o
professor ensinava e os alunos aprendiam. Dewey defendia uma escola em que os
próprios alunos eram sujeitos ativos do seu aprendizado. Para ele, a experiência
escolar é aspecto essencial da educação. (ARANHA; MARTINS, 2003).

A principal contribuição do pragmatismo está em afirmar que as verdades


não são imutáveis, mas que mudam com o passar do tempo. Cada nova situação
histórica exige respostas distintas para que seja efetiva.

No Continente Europeu, por sua vez, desenvolveu-se a fenomenologia.

3.3.2 A fenomenologia
A fenomenologia é uma filosofia da vivência. Segundo Aranha e Martins
(2003, p. 150):

A fenomenologia visa a descrição da realidade e coloca como ponto de


partida de sua reflexão o próprio ser humano, no esforço de encontrar o
que é dado na experiência, descrevendo "o que se passa" efetivamente
no ponto de vista daquele que vive determinada situação concreta.

Os representantes dessa corrente filosófica criticam os racionalistas do


século XVII ao afirmarem que não existe uma consciência separada do mundo. O
conhecimento é sempre conhecimento de alguma coisa. Então, o saber está ligado
com o mundo exterior. Ao mesmo tempo, são contrários à doutrina empirista,
que afirmava que os objetos do conhecimento existiam por si só, sendo que o ser
humano apenas tomava consciência deles na medida em que os vivenciava pela
experiência. Afirmavam que os objetos sempre estão para um sujeito que lhes dá
significado. (ARANHA; MARTINS, 2003).

73
UNIDADE 1 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E A COMPREENSÃO DA VIDA SOCIAL

Podemos citar como exemplo um objeto em forma de cruz. O seu


significado não existe independente de quem o enxerga. Para uma cultura que
nunca conheceu um objeto naquele formato e tampouco sabe sobre o cristianismo,
a cruz não terá o menor significado. Já para os cristãos, ela representa todo o
conteúdo da sua fé. Até mesmo entre os cristãos ela terá significados diferentes,
pois há cristãos mais comprometidos com a fé do que outros. Com isso, os
fenomenologistas procederam a uma humanização da ciência, pois ressaltam
o valor do indivíduo na construção dos significados das coisas. O ser humano
e os objetos do conhecimento não existem de forma independente, eles são
inseparáveis.

O conceito fenômeno, em grego, significa "o que aparece". Então, a


fenomenologia estuda a formação do conhecimento e especificamente de que
forma o ser humano atribui significado aos objetos do mundo na medida em que
aparecem para ele. Ela quer elucidar de que forma o mundo aparece para nós e
por quais razões damos explicações diferentes para aquilo que está diante de nós.
(CHAUÍ, 2008).

3.3.2.1 Edmund Husserl


Edmund Husserl (1859-1938) foi o principal representante da fenomenologia
e abriu caminho para as reflexões posteriores de Heidegger, Sartre e outros.
Segundo ele, a crise da razão havia comprometido todo o empreendimento da
ciência e, por isso, era preciso lançar mão de um novo fundamento sobre o qual
pudesse ser edificada uma nova ciência. A sua proposta é um recomeço radical na
ordem do saber. O que ele pretendeu foi a superação da dicotomia sujeito-objeto
que havia sido o resultado da filosofia anterior.

Para isso, Husserl diz que toda consciência é intencional, o que significa
que não há pura consciência, separada do mundo, mas toda consciência visa ao
mundo (CHAUÍ, 2008). Segundo o próprio Husserl, "a palavra intencionalidade
não significa outra coisa senão essa particularidade fundamental da consciência
de ser a consciência de alguma coisa". (apud ARANHA; MARTINS, 2003, p. 206).

Jaspers (2010, p. 37), por sua vez, o refere da seguinte maneira:


E nós? Existimos verdadeiramente, enquanto sujeitos em busca de
objetos que vêm a nosso encontro ou se colocam diante de nós? Antes
que o busquemos, é preciso que o objeto exista para nós; com efeito,
não temos consciência de nós mesmos senão a partir do momento em
que nos encontramos tendendo para objetos. Não há eu sem objeto,
nem objeto sem um eu. Em outras palavras, não há objeto sem sujeito,
nem sujeito sem objeto.

Aranha e Martins (2003, p. 207) ainda nos oferecem um exemplo para


ilustrar o pensamento de Husserl, que se refere ao estudo da criança manhosa:

74
TÓPICO 3 | A FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA

A manha não é, ela significa, ou seja, é pela emoção que a criança se


exprime na totalidade do seu ser. Ela diz coisas com o choro, e esse
choro precisa ser interpretado. Da mesma forma, a resposta dada a
certos estímulos externos supõe que os próprios estímulos nunca
sejam idênticos para todas as pessoas, mas que exercem influência à
medida que são percebidos de maneira singular pela consciência que
os atinge. À relação mecânica E – R (estímulo – resposta), estabelecida
pelo comportamentalismo, a fenomenologia contrapõe o sinal e o
símbolo. Enquanto o sinal faz parte do mundo físico do ser, o símbolo
é parte do mundo humano do sentido.

Da teoria fenomenológica se desenvolverá, por exemplo, uma das


principais correntes da psicologia, que é a Gestalt.

A reflexão fenomenológica foi continuada por um dos discípulos de


Husserl, Martin Heidegger.

3.3.2.2 Martin Heidegger


O filósofo Martin Heidegger (1889-1976) retoma o conceito de intencionalidade
de Husserl, ou seja, também para ele o sujeito não vive separado do mundo que o
cerca. Além disso, ele ressalta que o indivíduo vive numa situação de facticidade, o
que quer dizer que, além da herança biológica, este recebe toda a herança cultural,
que depende do tempo e do lugar em que se nasce. O desafio de cada indivíduo
é superar a pura facticidade, o simplesmente "estar aí" (Dasein em alemão), para
alcançar a existência autêntica. Esta superação da facticidade Heidegger chama de
transcendência. Alcançar a transcendência significa compreender a própria história,
o que foi e para onde vai. Na concretização da transcendência surge uma angústia,
que resulta da tensão entre aquilo que se é e aquilo que se virá a ser, como dono do
próprio destino. (ARANHA; MARTINS, 2003).

Cada um de nós, na busca da felicidade e da realização da própria vida,


não quer permanecer onde está ou do mesmo jeito que é por toda a vida. Aliás,
mesmo que o quisesse, isto não seria possível, pois mudamos a cada dia que
passa. Assim, a partir do que já vivemos e em função do lugar em que estamos
hoje, pretendemos chegar a algum outro lugar no futuro. Portanto, além de existir
uma relação das coisas com o sujeito que as apreende na forma de conhecimento,
este mesmo sujeito está em constante processo de construção de sua própria
existência, do sentido de sua vida. Diante disso, o indivíduo não pode ignorar a
realidade da morte, pois é o destino certo de cada um. Viver a vida como se não
houvesse a morte não faz parte de uma existência autêntica. A existência é então
a consciência da própria limitação, de viver a vida sabendo que ela não durará
para sempre. (JASPERS, 2010).

75
UNIDADE 1 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E A COMPREENSÃO DA VIDA SOCIAL

3.3.2.3 Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir


O pensamento de Jean-Paul Sartre (1905-1980) e Simone de Beauvoir (1908-
1986) foi profundamente marcado pelo contexto da Segunda Guerra Mundial e
pela ocupação nazista da França. Tema absolutamente precioso para Sartre é a
liberdade. E cada vez que se deixa de usar a liberdade para fazer boas escolhas,
se cai em algo que o filósofo chama de má-fé.

Vejamos alguns exemplos de má-fé que são apresentados por Trigo (2009,
p. 46):

Não cursei moda porque meus pais queriam que eu fosse contador,
como eles.
Não fui trabalhar na Califórnia porque minha avó materna estava
doente e não sabia quanto tempo ela viveria.
Tive que aceitar as condições de trabalho desgastantes porque devia
favores ao meu chefe.
Acabei casando porque não tive coragem de falar, na última hora, que
não queria mais ficar com aquela pessoa, tão meiga e inocente, mas que me
consome a paciência.
Ela (ele) sempre acaba me obrigando a fazer o que não quero porque
tem um poder de persuasão imenso.
Acabei não indo ao cinema e fui com eles ao teatro (assistir a uma peça
que eu detesto) para não provocar um mal-estar no meu grupo de amigos.
Eu não concordo com nada do que vocês dizem, mas vou me calar para
não ser o único "do contra".

A ênfase da teoria de Sartre está na responsabilidade do indivíduo diante


das escolhas que precisa fazer. Estas escolhas não permitem a omissão diante dos
problemas sociais e também não devem se basear em regras e convenções existentes.

A companheira de Sartre, Simone de Beauvoir, enfatizou em seus romances


e reflexões o caráter único do indivíduo, constituído a partir das escolhas que
faz ao longo da vida. Diante de infinitas possibilidades, podemos viver somente
uma coisa de cada vez. Diante dessa responsabilidade, enfatiza que as escolhas
precisam ser feitas com coragem e responsabilidade. (TRIGO, 2009).

TUROS
ESTUDOS FU

Dentro dessa linha de pensamento se desenvolveu a Escola de Frankfurt, também


chamada de Teoria Crítica, sobre a qual falaremos na segunda unidade deste caderno.

76
TÓPICO 3 | A FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA

4 A FILOSOFIA DA LINGUAGEM
Os estudos da linguagem trouxeram uma reviravolta completa para a
Filosofia. Conforme Aranha e Martins (2003, p. 152):
A filosofia da linguagem ou filosofia analítica representa o esforço de
pensadores de diversas tendências no sentido de rever o conceito de
verdade, tal como outras correntes filosóficas também o fizeram no
decorrer do século XX. A diferença é que se verifica uma crítica radical
da tentativa tradicional de encontrar a verdade na relação sujeito e
objeto, deslocando esse fundamento para a linguagem.

As correntes anteriores estavam preocupadas em descrever os objetos


do conhecimento ou então elucidar de que forma os sujeitos se apropriam do
conhecimento e dos objetos que analisam. Os estudos da linguagem, por sua
vez, demonstraram que nada disso era relevante se não fossem levadas em
consideração as formas através das quais esses sujeitos se expressavam, bem
como as estruturas linguísticas utilizadas na descrição dos objetos da ciência. Os
filósofos da linguagem defendiam a ideia de que o papel da filosofia não era fazer
proposições, mas auxiliar para elucidá-las.

Um importante pensador e representante da filosofia da linguagem foi


Michel Foucault (1926-1984).

FIGURA 18 – MICHEL FOUCAULT

FONTE: Disponível em: <http://revistaescola.abril.com.br/img/


historia/0022-michel-focault.jpg>. Acesso em: 12 nov. 2012.

Foucault demonstrou em seus estudos que as noções de consciência,


realidade, sujeito, objeto, que se empregava na filosofia até então, não passavam
de formas discursivas. Ou seja, nem uma delas possuía uma realidade em

77
UNIDADE 1 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E A COMPREENSÃO DA VIDA SOCIAL

si, mas eram recursos empregados pelos indivíduos para se comunicarem.


Analisando as estruturas da linguagem, evidenciou que os sujeitos dos discursos
e os interlocutores, bem como os objetos aos quais o discurso se referia, podiam
mudar, dependendo do lugar do sujeito da oração.

Dessa forma, o "eu" poderia se transformar em "tu" de um momento


para o outro, bastando que a pessoa do discurso mudasse. O mesmo vale para
os significados atribuídos a objetos. Portanto, toda filosofia que pretendesse
caracterizar o "eu" estava condenada ao fracasso, pois o "eu" nada mais seria,
segundo Foucault, do que um recurso de linguagem.

4.1 JÜRGEN HABERMAS E A TEORIA DA AÇÃO


COMUNICATIVA
Jürgen Habermas (1929) é um dos mais proeminentes filósofos do século
XX. Ele dirige uma crítica muito séria às filosofias anteriores no que diz respeito à
teoria da construção do conhecimento. Ele tem grande afinidade com as filosofias
da linguagem. Na maior parte das abordagens filosóficas anteriores, o indivíduo
é tomado de forma isolada, como se o conhecimento fosse uma coisa que dissesse
respeito a cada um de forma independente. A razão era algo que dizia respeito a
cada um em particular.

Para Habermas, ao contrário, a razão não é monológica, centrada apenas no


indivíduo, mas ela é dialógica, como resultado de um entendimento intersubjetivo:
"São os sujeitos, situados historicamente, que, pela fala, estabelecem uma relação
interpessoal numa comunidade comunicativa”. (ARANHA; MARTINS, 2003, p. 152).

FIGURA 19 – JÜRGEN HABERMAS

FONTE: Disponível em: <http://clubemetafisico.com/wp-


content/uploads/2012/01/J_rgen_Habermas_I.jpg>. Acesso em:
12 nov. 2012.

78
TÓPICO 3 | A FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA

Se a razão for entendida como resultado individual, então a pluralidade de


vozes fará com que ela seja paralisada no relativismo. Em outras palavras, nada se
poderá fazer porque, afinal, cada um terá a sua própria verdade. Habermas defende
a ideia de que existem, sim, conhecimentos e verdades que possam ter validade para
todas as pessoas. A questão filosófica central, nesse sentido, é como chegamos a essas
verdades. Conforme o filósofo, essa busca ocorre por meio da ação comunicativa, ou
seja, através do diálogo entre os diversos sujeitos. A verdade se alcança através do
consenso. A verdade, assim, não é resultado de uma reflexão isolada, do interior de
um único indivíduo, mas é resultado de um diálogo autêntico entre os indivíduos.

Para que o verdadeiro consenso possa ser alcançado é necessário que a


condição de diálogo seja ideal, ou seja, que não haja coerções e que todos tenham
efetivamente a possibilidade de manifestarem as suas próprias ideias. Assim, "o
critério da verdade não consiste na correspondência do enunciado com os fatos,
nem propriamente na ação comunicativa, mas sim no consenso discursivo".
(ARANHA; MARTINS, 2003, p. 153).

A teoria da ação em comunidade é hoje empregada nas mais diversas


esferas da atividade humana, desde a educação, administração, política, economia
e outras. Os cientistas de hoje já não trabalham de forma isolada. Os resultados da
pesquisa precisam ser compartilhados e aceitos pela coletividade, submetidos a
diferentes testes. Isso é um indicativo de que o conhecimento é produzido a partir
do diálogo entre os sujeitos e não por um deles isoladamente.

Num mundo que está cada vez mais conectado, interligado e no qual as
distâncias são superadas pelas modernas tecnologias de comunicação, nada mais
racional do que fazer da comunicação entre os sujeitos o meio para se alcançar
conhecimentos válidos para a organização da vida em sociedade.

Diante disso, segundo Jaspers (2010, p. 33), "a filosofia deve fazer-
nos conscientes dos horizontes do futuro, mostrando-nos os limites de toda a
ação humana, por gloriosa que seja, e aumentando em nós, por essa forma, o
sentimento de responsabilidade diante de qualquer situação nova".

UNI

Como Leitura Complementar ao tópico foi transcrito um texto que apresenta


algumas características da assim chamada sociedade pós-moderna.

79
UNIDADE 1 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E A COMPREENSÃO DA VIDA SOCIAL

LEITURA COMPLEMENTAR

O FUTURO

Luiz Gonzaga Godoi Trigo

Vejamos a seguinte afirmativa do autor Karl Jaspers (1986, p. 147):


Nossa época vive entre dois abismos. Compete-nos escolher: deixar-
nos tombar no abismo da ruína do homem e do universo, com a
consequente extinção de toda vida terrena, ou cobrar ânimo para nos
transformarmos, dando surgimento ao homem autêntico, ante o qual
se abrirão possibilidades infinitas.

Em tal contexto, qual o papel da filosofia?

Ensina, pelo menos, a não nos deixarmos iludir. Não permite que
se descarte fato algum e nenhuma possibilidade. Ensina a encarar de frente a
catástrofe possível. Em meio à serenidade do mundo, ela faz surgir a inquietude.
Mas proíbe a atitude tola de considerar inevitável a catástrofe. Com efeito, apesar
de tudo, o futuro depende também de nós.

Um breve sopro de dúvidas e angústias epistemológicas passou pelo final do


século XX com o nome de pós-modernidade. Surgida na arquitetura e na arte em geral,
seu ideário foi estruturado pelo francês Jean-François Lyotard e colocou em pauta
a questão da produção do saber nas sociedades com novos recursos tecnológicos
baseados na informática, na digitalização dos dados e na produção, armazenamento
e transmissão eletrônica de informações e conhecimento.

Se a Revolução Industrial do século XIX deixou claro que sem riqueza


não se desenvolvem ciência e tecnologia, a condição pós-moderna demonstrou o
contrário, que sem ciência e tecnologia não se produz riqueza.

A informação passou a ser encarada como a mercadoria mais valiosa. Segundo


Lyotard (1986), os pesquisadores trabalham não mais com a finalidade de preparar
indivíduos aptos a levar às pessoas a noção de uma “verdade absoluta”, mas para
preparar competências (palavra bastante utilizada em certas escolas pedagógicas e
por técnicos e administradores em geral) capazes de assegurar o bom desempenho
da dinâmica institucional, seja na administração privada ou na pública.

Lyotard (1986) se preocupou em analisar a posição do saber nas


sociedades mais desenvolvidas tecnologicamente. Nessas sociedades, a cultura se
transforma à medida que a literatura, as artes e a ciência foram influenciadas pelas
transformações causadas pelas novas técnicas e tecnologias aplicadas à produção
industrial, ao setor agropecuário e ao imenso campo de serviços em geral. A junção
entre as empresas privadas, governos, instituições de pesquisa e universidades

80
TÓPICO 1 | OS FILÓSOFOS ANTIGOS E MEDIEVAIS

na produção do conhecimento é uma realidade global, assim como a crescente


informatização do mundo. O poder da ciência vem do controle efetivo e eficiente
do mundo possibilitado e ampliado pelo contínuo avanço científico e tecnológico.
Essas novas condições influenciam de várias maneiras a filosofia e a educação. São
necessárias novas respostas ou métodos para os novos problemas ou para os velhos
desafios que permanecem insolúveis.

Qualquer pessoa habituada a refletir em termos de ciências sociais


contemporâneas compreende que as transformações revolucionárias da ciência e
da técnica, com as consequentes modificações na produção e nos serviços, devem
necessariamente produzir mudanças também nas relações sociais. Só um cego não
percebe as mudanças que estão ocorrendo nesse campo e suas óbvias conexões
com a chamada segunda revolução industrial (da informática), que cada vez mais
se intensifica. (SCHAFF, 1990, p. 21).

O saber científico não é todo o saber existente. Há também o saber que


Lyotard (1986) denomina de saber narrativo, que concerne às artes, à instituição,
aos sentidos, à religião e aos aspectos mais subjetivos do ser humano. Ambos
os saberes – científicos e narrativos – são necessários, pois são formados por
enunciados capazes de construir teias de conhecimento com as quais as pessoas
tentam aprender e compreender o mundo.

Ao longo da história, essa produção do saber se estruturou em sistemas


filosóficos, religiosos ou científicos que se propuseram a dar conta teoricamente
de toda a problemática humana e universal. Muitas filosofias geraram relatos,
discursos sobre a realidade pretensamente absolutos, denominados por Lyotard
(1986) com o nome de metarrelatos, com a intenção de esgotar as dúvidas e lacunas
da ciência. Com o desenvolvimento científico, os grandes sistemas filosóficos
idealizados por Platão, Aristóteles, Tomás de Aquino, Kant, Hegel, Comte e Marx
foram confrontados com realidades que transcendiam seus limites conceituais,
confrontação que apontou certos “furos” dessas suas teorias aparentemente
sólidas e monolíticas.

Os antigos metadiscursos ou metarrelatos filosóficos foram substituídos


por uma pluralidade de sistemas formais e axiomáticos. Para parte da ciência
atual, pós-moderna, não mais interessam as discussões metafísicas sobre o que é
verdadeiro, justo ou belo, e sim a eficiência, nova palavra mágica do capitalismo
pós-industrial. O pragmatismo e as críticas políticas e científicas de Karl Popper
encontram guarida na pós-modernidade.

A modernidade estaria então superada? Alguns teóricos pós-modernos


pensam que sim, outros pensam que não (a exemplo de Heidegger, dos marxistas
etc.). Mas todos concordam que houve mudanças profundas nas relações de produção
e na subjetividade de relações entre pessoas, empresas, governos e instituições.

Um quadro resumido sobre as principais diferenças entre modernidade e


pós-modernidade reúne as seguintes oposições:

81
UNIDADE 1 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E A COMPREENSÃO DA VIDA SOCIAL

Modernidade Pós-modernidade
Simplificação Complexidade, contradição
Unicidade Ambiguidade, tensão
Exclusividade (ou, ou) Inclusividade (e, e)
Purismo Hibridismo
Unidade óbvia Vitalidade emaranhada
Lógica convencional Paradoxos
Continuidade Ruptura
Conservação, mudança Superação
Estabilidade Instabilidade
Certezas Consensos
Imutabilidade Transformação constante

O início do século XXI mostrou, mais uma vez, que não se pode ter
posições dogmáticas e que a abertura é necessária para o diálogo entre as
pessoas. O conhecimento é importante e gera riquezas, sim, mas a ética, a
sustentabilidade ambiental, a justiça social e a satisfação e a felicidade dessas
pessoas é igualmente importante. A sociedade não pode ser submetida a rígidos
programas políticos, partidários, corporativos, religiosos ou institucionais que
excluam o pluralismo, as liberdades individuais e os códigos de comportamento
que possibilitem uma vida melhor.

O discurso único que permeou o mundo, desde a década de 1980-1990


até o início do século XXI, centrado na competência especializada, no sucesso a
todo custo e na celebridade como prêmio máximo, mostrou suas falhas ao longo
das guerras absurdas (Afeganistão e Iraque), dos atentados terroristas insanos,
provocados pela ignorância dos criminosos fundamentalistas islâmicos e pela
arrogância de impérios. Uma das faces mais cruéis de um pensamento centrado
no egoísmo e no materialismo, acima de tudo, foram as crises econômicas cíclicas
que afetaram o capitalismo monopolista-financeiro desde meados da década
de 1990 e que mostrou seu poder destrutivo mais intenso ao longo do colapso
econômico-financeiro de várias empresas e países em 2008-2009.

FONTE: TRIGO, Luiz Gonzaga Godoi. Pensamento filosófico: um enfoque educacional. São
Paulo: IBPEX, 2009, p. 196-200.

82
RESUMO DO TÓPICO 3
• Estudamos a filosofia dos séculos XIX e XX em suas principais correntes. A
partir dos contextos históricos de cada século, caracterizados no início de
cada ponto correspondente, pudemos verificar que há uma grande diferença
entre eles, principalmente no que concerne à compreensão em relação à razão
humana.

• No século XIX imperou uma abordagem extremamente otimista da razão,


sobre a qual se acreditava poder construir uma nova sociedade, desprovida
de quaisquer contradições, que superasse todas as suas dificuldades. Esta
perspectiva perdurou até as primeiras décadas do século XX, mas de alguma
forma teve continuidade no pragmatismo norte-americano.

• A principal característica do século XX, contudo, foi a crise da razão,


protagonizada por diversos acontecimentos históricos relevantes e por diversas
correntes filosóficas. As duas guerras mundiais e o emprego da tecnologia na
fabricação das bombas nucleares contribuíram para demonstrar que o otimismo
em relação à razão era enganoso, pois a razão havia empregado todas as suas
energias para produzir a morte.

• As descobertas da ciência em relação à vastidão do universo, na área de


história e da biologia, demonstraram que a complexidade da vida humana está
muito além do que a ciência havia descoberto até então. Um novo leque de
possibilidades se abriu praticamente ao infinito com essas descobertas.

• Sobre a pergunta pela verdade, que acompanhou a filosofia desde os seus


primórdios, o século XX trouxe novas perspectivas para a reflexão. A fenomenologia,
os estudos da linguagem e a teoria da ação comunicativa de Jürgen Habermas
foram fundamentais nesse sentido. Diante das constantes mudanças da sociedade
e das transformações na vida social, novas formas de verdade precisaram ser
encontradas, destacando-se a função do diálogo como meio de construção de
proposições válidas para uma coletividade bastante diversa.

83
AUTOATIVIDADE

1 Sobre as características do contexto histórico do século XX, quais afirmações


podem ser consideradas verdadeiras?

Analise as seguintes sentenças:

I - As duas guerras mundiais representaram um abalo para o otimismo


antropológico reinante desde o século XIX.
II - O desenvolvimento não causou apenas efeitos negativos em relação à
capacidade humana de compreender o mundo em que vive. Jaspers (2010)
refere as descobertas de Einstein, especialmente a Teoria da Relatividade,
como descobertas que abriram novas possibilidades de pesquisa praticamente
infinitas. Também as descobertas na área de Biologia, com a criação de formas
biológicas a partir de elementos não orgânicos, como a ureia, fizeram repensar
as relações entre objetos e sujeitos no fazer científico.
III - A crença no desenvolvimento de uma sociedade mais humana e próspera
desabou diante dos totalitarismos nazista e fascista.
IV - Foi o século em que surgiram a dialética hegeliana, o materialismo e o
existencialismo.

Agora, assinale a alternativa CORRETA:

( ) Somente a sentença IV está correta.


( ) As sentenças II e III estão corretas.
( ) As sentenças I, II e III estão corretas.
( ) As sentenças I e II estão corretas.

2 Caracterize a teoria da ação comunicativa de Jürgen Habermas.

3 Sobre o pragmatismo norte-americano, assinale a alternativa CORRETA:

( ) Os representantes dessa corrente filosófica criticam os racionalistas do


século XVII ao afirmarem que não existe uma consciência separada
do mundo. O conhecimento é sempre conhecimento de alguma coisa.
Então, o saber está ligado com o mundo exterior. Ao mesmo tempo,
são contrários à doutrina empirista, que afirmava que os objetos do
conhecimento existiam por si só, sendo que o ser humano apenas tomava
consciência deles na medida em que os vivenciava pela experiência.
( ) O pragmatismo foi uma corrente filosófica que se desenvolveu
principalmente nos Estados Unidos. Entre os seus principais expoentes
estão: Charles Sanders Peirce (1839-1914), William James (1842-1910)
e John Dewey (1859-1952). A principal ideia do pragmatismo é a de
que “o conhecimento é uma atividade participativa (não impessoal) e
consiste de explicações válidas, sendo o instrumento mais importante

84
para nossa sobrevivência”. (TRIGO, 2009, p. 175). Para os pragmáticos,
o conhecimento válido é aquele que tem uma aplicação prática ou então
quando “funciona”. (ARANHA; MARTINS, 2003).
( ) A sua grande preocupação foi a construção de um sistema filosófico que
desse conta de explicar toda a realidade. A sua intenção primordial não é
mudar o mundo, mas está mais interessado em dizer como ele funciona.
Na medida em que oferece essa resposta, cria também a ferramenta que
será utilizada por muitos de seus discípulos que almejarão mudá-lo, tais
como Marx.
( ) O movimento defendia a ideia de que “a tarefa da filosofia não é provar
que o homem é produzido por Deus, mas, inversamente, que Deus é
produzido pelo homem: não foi a ideia (Deus) que criou o homem, mas
o homem que criou a ideia (Deus)”. (MONDIN, 1983, p. 93).

85
86
UNIDADE 2

PENSAMENTO SOCIOLÓGICO

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
Esta unidade tem por objetivos:

● despertar o pensamento crítico e a análise mais aprofundada e apurada


dos acontecimentos sociais que atingem a nossa vida de modo direto ou
indireto;

● compreender a importância da filosofia e da sociologia no processo de


interpretação dos fatos sociais do Brasil e do mundo;

● incentivar a leitura de pensadores importantes para a História da Filosofia


e da Sociologia como um todo.

● avaliar filosófica e socialmente a sociedade brasileira e mundial.

PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em três tópicos e em cada um deles você encontra-
rá atividades visando à compreensão dos conteúdos apresentados.

TÓPICO 1 – DEFINIÇÕES E HISTÓRIA DA SOCIOLOGIA

TÓPICO 2 – IMPORTANTES SOCIÓLOGOS E ALGUMAS CARACTERÍS-


TICAS DO SEU PENSAMENTO

TÓPICO 3 – TEMAS SOCIOLÓGICOS

87
88
UNIDADE 2
TÓPICO 1

DEFINIÇÕES E HISTÓRIA DA
SOCIOLOGIA

1 INTRODUÇÃO
A Sociologia é considerada uma das ciências mais recentes da história do
pensamento humano. Apesar de ser nova, ela sempre esteve ligada às contradições
e contrastes da vida humana. Entretanto, alguns acontecimentos históricos
contribuíram para que ela se tornasse uma ciência especificamente ligada aos fatos
sociais. Seu primeiro pensador, Augusto Comte, antes mesmo de denominá-la como
Sociologia, a declarou como sendo uma espécie de “Física Social”.

Seu principal intuito foi o de demonstrar que a ciência pura poderia tentar
explicar os fatos que ocorriam na sociedade. Sua obra debruçou-se sobre uma
Europa transformada pelas várias invenções e criações do homem do século XVIII.
Tais invenções tiveram a intenção de melhorar a vida humana. A ideia de progresso
e sucesso econômicos estava no menu do dia a dia.

A Revolução Científica, iniciada pelos principais pensadores da época,


como Descartes e Francis Bacon, bem como a Revolução Francesa e a Revolução
Industrial, são os grandes marcos que vão definir o surgimento desta ciência
voltada para o mundo social. O pensamento sobre a sociedade será resultado das
intensas modificações decorridas destes três grandes eventos que se sucederam
na Europa.

Sendo assim, a Sociologia é uma ciência que tenta desvendar


cientificamente os acontecimentos sociais, dando a eles explicações fundadas em
métodos científicos e empíricos.

Caro(a) acadêmico(a), diante desta breve explanação, você está sendo


convidado a compreender um pouco mais o impacto da História sobre a vida
de todos os cidadãos do mundo. E não só os europeus da época, pois até hoje
nosso modo de produção se assemelha ao do século XVIII. E de como a Sociologia
nascida na França de Augusto Comte pode facilitar nosso modo de entendimento
do mundo atual.

89
UNIDADE 2 | PENSAMENTO SOCIOLÓGICO

2 A REVOLUÇÃO INDUSTRIAL
A Revolução Industrial foi um processo encetado em meados do século
XVIII, mas seu verdadeiro início deu-se já na Idade Média. Principalmente no
final deste período histórico, via-se surgir uma nova classe social que conquistara
dinheiro e poder por meio da produção e venda de bens manufaturados e de
empréstimos fornecidos por meio de juros. Esta classe denominou-se burguesia.

FIGURA 20 – CIDADES MURADAS NA IDADE MÉDIA

FONTE: Disponível em: <http://rhistoriaz.blogspot.com.br/2011/02/revolucao-


francesa-parte-ii.html>. Acesso em: 12 nov. 2012.

FIGURA 21 – DENTRO DAS CIDADES HAVIA O COMÉRCIO DOS PRODUTOS


FEITO PELOS BURGUESES, DONOS DOS BURGOS

FONTE: Disponível em:<http://www.not1.xpg.com.br/renascimento-


comercial-e-urbano-burguesia-e-producao-baixa-idade-media/>. Acesso em:
12 nov. 2012.

90
TÓPICO 1 | DEFINIÇÕES E HISTÓRIA DA SOCIOLOGIA

Esta classe burguesa, na medida em que comercializava seus produtos,


acumulava e gerenciava cada vez mais dinheiro (ou capital, como comumente
falamos atualmente). Mas, a partir do século XVIII, os desenvolvimentos científicos
tomaram um novo rumo, pois era preciso mudar o modo de produção que existia
até então. Era necessário aumentar a produção de produtos manufaturados a fim
de expandir o número de consumidores. Desta forma, foi necessário direcionar
as pesquisas para uma área mais prática e concreta dos interesses humanos, pois
era insuficiente, do ponto de vista econômico, investir em pesquisas que tinham
resultados diretamente ligados ao lucro e ao enriquecimento. Aliás, é interessante
perceber também que boa parte do enriquecimento dos burgueses não se deu
de modo lícito (ver leitura complementar sobre gentry e yeomen). Contudo, o
propósito burguês foi alcançado quando James Watt cria a primeira máquina a
vapor da história e revoluciona enfaticamente o mundo do trabalho na Inglaterra.

O trabalho, a partir daí, toma outra direção: ele se torna racional,


competitivo, opressor e explorado. No processo de produção artesanal, por
exemplo, o artesão conhecia todo o processo de produção, do início ao fim. Ele
era dono de todo o maquinário e de todo o produto produzido por ele. Agora,
com a Revolução Industrial, o trabalhador é contratado para executar de modo
ininterrupto uma única atividade que se repete durante toda a jornada de trabalho,
que no início da Revolução extrapolava uma carga de 16 horas. O trabalhador
agora não é mais dono de nada, apenas vende a sua força de trabalho para um
empresário da indústria que “tira todo o suor de seu rosto” para transformar
matéria-prima em manufatura.

TUROS
ESTUDOS FU

Este tema, entretanto, será melhor aprofundado quando discutiremos sobre


Marx e a luta de classes.
Porém, há uma charge muito bem elaborada pelo cartunista Robert Thaves que ilustra bem
esta ideia.

FIGURA 22 – LINHA DE MONTAGEM

FONTE: Disponível em: <http://escsunicamp.wordpress.com/2011/12/01/plano-


de-aulas-sobre-trabalho/>. Acesso em: 10 jan. 2013.

91
UNIDADE 2 | PENSAMENTO SOCIOLÓGICO

NOTA

LEITURA SOCIOLÓGICA

Moradias de trabalhadores em Manchester

"That was a memorable day to me, for it


made great changes in me. But, it is the
same with any life. Imagine one selected
day struck out of it, and think how
different its course would have been.
Pause you who read this, and think for a
moment of the long chain of iron or gold,
of thorns or flowers, that would never
have bound you, but for the formation of
the first link on one memorable day."

- Charles Dickens
Great Expectations

(DORÉ, Gustave. Over London by rail. 1872. 1 xilogravura: 25 cm x 19,5 cm. Londres)

Tradução do texto: “Foi um dia memorável, pois operou grandes mudanças em mim. Mas
isso se dá com qualquer vida. Imagine um dia especial na sua vida e pense como teria sido
seu percurso sem ele. Faça uma pausa, você que está lendo, e pense na grande corrente de
ferro, de ouro, de espinhos ou flores que jamais o teria prendido não fosse o encadeamento
do primeiro elo em um dia memorável”.

Numa depressão de terreno bastante funda, numa curva do Meldock (rio que corta a cidade
de Manchester), e cercada pelos quatro lados por grandes fábricas e margens altas cobertas de
casas e aterros, estão cerca de 200 casas repartidas em dois grupos, sendo frequentemente a
parede de trás a divisória. Habitam aí cerca de 4000 pessoas, quase todas irlandesas. As casas
são velhas, sujas e do tipo menor: as ruas são desiguais, cheias de saliências, em parte sem
pavimento nem canais de escoamento; por todo o lado há uma quantidade considerável
de imundícies, detritos e lama nauseabunda entre os charcos estagnados; a atmosfera
está empestada com suas emanações, enegrecida e pesada pelos fumos de uma dúzia de
chaminés de fábricas.

FONTE: ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. Porto:


Afrontamento, 1975, p. 96.

Isto quer dizer que, enquanto a burguesia enriquecia cada vez mais,
os trabalhadores empobreciam. Trabalhavam em jornadas extenuantes, sem a
menor diferenciação entre homens, mulheres e crianças. Aliás, era comum que
crianças e mulheres trabalhassem mais do que homens, pois elas reclamavam
menos e produziam mais. O salário de uma semana de trabalho era tão pífio que
era inferior a uma libra esterlina, o que, em moeda atual, representava menos do
que R$ 2,80.

92
TÓPICO 1 | DEFINIÇÕES E HISTÓRIA DA SOCIOLOGIA

A vida miserável e degradante de inúmeros trabalhadores levou a


Inglaterra a um caos social. Na medida em que as pessoas foram forçadas a sair do
campo para viver na cidade, o inchaço populacional ocorria e o infortúnio crescia.
Os salários baixíssimos não podiam oferecer um padrão de vida meramente
aceitável ou condizente com a dignidade humana. As doenças e a prostituição
eram comuns. A cidade de Manchester, no noroeste da Inglaterra, é um exemplo
típico deste inferno social que surgira na época. A falta de infraestrutura e a
ausência de políticas públicas em prol da população trabalhadora são fatos
gritantes daquele período, mas que não deixaram de existir com o passar dos
tempos no mundo capitalista contemporâneo.

Contudo (destacando ainda o século XVIII), o caos social presente na


Inglaterra se expandiu para outros espaços do Continente Europeu, enquanto
que a burguesia industrial se consolidava como uma classe forte e coesa. Não
bastava mais dominar economicamente o mundo europeu, era necessário algo
mais. Era preciso dominar também a política e o sistema de governo daquela
época. Esta ideia serviu de base para uma nova revolução, a Revolução Francesa,
que será o assunto principal do próximo ponto.

DICAS

SUGESTÃO DE FILME: TEMPOS MODERNOS

Modern Times (Tempos Modernos): é um filme de


1936 do cineasta britânico Charles Chaplin, em que o seu
famoso personagem “O Vagabundo” (The Tramp) tenta
sobreviver em meio ao mundo moderno e industrializado.
É considerado uma forte crítica ao capitalismo, militarismo,
liberalismo, conservadorismo, stalinismo, fascismo, nazismo
e imperialismo, bem como uma crítica aos maus tratos que
os empregados passaram a receber depois da Revolução
Industrial.

Nesse filme Chaplin quis passar uma mensagem social.


Cada cena é trabalhada para que a mensagem chegue
verdadeiramente tal qual seja. E nada parece escapar:
máquina tomando o lugar dos homens, as facilidades que
levam à criminalidade, à escravidão. O amor também surge,
mas surge quase paternal: o de um vagabundo por uma
menina de rua. Tempos Modernos é, ao mesmo tempo,
comédia, drama e romance.

FONTE: Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/


Tempos_Modernos>. Acesso em: 12 jan. 2013.

93
UNIDADE 2 | PENSAMENTO SOCIOLÓGICO

AUTOATIVIDADE
Leia com atenção a letra da música “Capitão de Indústria”, da banda brasileira Paralamas do
Sucesso e, logo após, responda à pergunta:

Capitão de Indústria
Os Paralamas do Sucesso

Eu, às vezes, fico a pensar Ah, eu acordo pra trabalhar


Em outra vida ou lugar Eu durmo pra trabalhar
Estou cansado demais Eu corro pra trabalhar
Eu não tenho tempo de ter Eu não tenho tempo de ter
O tempo livre de ser O tempo livre de ser
De nada ter que fazer De nada ter que fazer
É quando eu me encontro perdido Eu não vejo além da fumaça
Nas coisas que eu criei Que passa e polui o ar
E eu não sei. Eu nada sei
Eu não vejo além da fumaça Eu não vejo, além disso, tudo
O amor e as coisas livres, coloridas O amor e as coisas livres, coloridas
Nada poluídas. Nada poluídas.

(PARALAMAS DO SUCESSO, Capitão de Indústria. In: CD 9 Luas, EMI, 1996 (1 CD (ca. 37’51”).
Faixa 5 (3’37”)

Explique se há alguma relação entre a letra da música e os problemas


decorrentes da falta de identificação do trabalhador com o mundo do trabalho,
depois da Revolução Industrial.

NOTA

Texto complementar: O cercamento dos campos comuns e os “carneiros


comedores de gente”.

Durante o feudalismo, a terra era considerada um bem comum, destinada à produção


camponesa para a manutenção dos feudos. Porém, na Inglaterra, a partir do século XVI, a
terra passou a ser entendida como um bem de produção, como uma forma de obter lucro
e acumular riquezas.

Parte dos senhores feudais, a gentry, e uma camada rica de pequenos e médios proprietários,
os yeomen, passaram a cercar suas terras e impedir que os camponeses as utilizassem
para o cultivo de alimentos e criação de animais para consumo próprio. Esse processo de
cercamento era feito com anuência da autoridade real.

As terras cercadas eram, na maioria das vezes, utilizadas para a criação de carneiros e ovelhas
para a produção de lã. Essa produção seria beneficiada nas manufaturas e depois vendida no
mercado interno ou exportada. Como os camponeses não podiam mais plantar o próprio
alimento, tiveram que se submeter ao trabalho nas manufaturas, onde recebiam salários
baixíssimos.

94
TÓPICO 1 | DEFINIÇÕES E HISTÓRIA DA SOCIOLOGIA

Uma expressão que se tornou comum entre os séculos XVII e XVIII foi “os carneiros se
tornaram comedores de gente”. Isso porque os carneiros estavam sendo criados nas terras
que antes serviam para a produção dos alimentos das famílias. Enquanto os camponeses
padeciam na miséria, os grandes proprietários enriqueciam rapidamente. (LUI, 2012. p. 89).

3 REVOLUÇÃO FRANCESA
Como vimos na Revolução Industrial, muitas mudanças ocorreram
na sociedade da época. Entretanto, estas mudanças beneficiaram apenas uma
pequena parcela da sociedade (os burgueses). Esta classe social começou a assumir
boa parte do domínio econômico na Europa dos séculos XVII e XVIII. Porém, aqui
é pertinente destacar a importância da palavra "domínio", pois foi exatamente
isso o que aconteceu. A burguesia conquistou um poder. Poder este fundado na
exploração e alienação do trabalhador. Contudo, esta dominação era insuficiente
para a burguesia. Era preciso algo mais, era preciso ampliar as raízes deste poder.

A Revolução Francesa, ao que parece e pelo que é ensinado na maioria


dos textos didáticos, revela ter sido um momento histórico da emancipação das
pessoas contra a tirania da nobreza e do clero, com o famoso slogan "Liberdade,
Fraternidade e Igualdade para todos". Porém, se ampliarmos com uma lupa o
contexto histórico e cultural da França do século XVIII, a verdade aparece com
um outro rosto.

Um grupo social que assumiu o protagonismo desta fase de transição não


foi o povo em geral (artesãos, trabalhadores, sans-culottes etc.), mas a burguesia.
E qual seria o principal motivo desta insurreição? As taxas elevadíssimas de
impostos e a manutenção do "status quo" de dois grupos sociais que até então
estavam no poder do governo francês: a nobreza e o clero.

É importante que o leitor tenha ciência disso já de início, pois é fundamental


que se tenha em mente que nada na história acontece por acaso ou por mero ato
de caridade daqueles que estão no poder ou que querem assumir o poder. A
burguesia do século XVIII estava cansada de manter a nobreza, por intermédio
do pagamento de impostos. Estava exausta de garantir uma "vida boa" para todos
"aqueles que não trabalhavam".

De fato, a nobreza vivia às expensas dos impostos. Aliás, é importante


recordar aqui que o mundo europeu deste século, na verdade, viveu às custas
do trabalhador. Mas o discurso da época escamoteava esta verdade, o que não
mudou muito até hoje.

95
UNIDADE 2 | PENSAMENTO SOCIOLÓGICO

Uma das grandes motivações que impingiram o desejo desta revolução


nasceu no seio político da França moderna: o direito ao voto. Antes, porém, é muito
importante destacar que os anseios de equidade despertos pela revolução tinham
por base uma ideia bem clara: a tríade (igualdade, fraternidade e liberdade) não
era uma preocupação de fato, mas uma preocupação legal e jurídica. A noção de
que a Europa do século XVIII almejava ser civilizada e desenvolvida não é algo
tão real assim, pois a pobreza e a miséria permaneceram após a revolução.

A questão que você, acadêmico(a), deve ter ciência é que a Revolução


Francesa é uma revolução advinda do interesse dos burgueses em não pagar
impostos, o que, de fato, se concretizou. Mas que isso não garantiu uma vida
mais digna aos pobres, pois o princípio de que "alguns são mais iguais do que
outros" perdurou. *A Revolução Francesa foi uma revolução de massa, mas com
um sentido político bem definido: levou a burguesia ao poder.

Voltando à questão do voto, era inaceitável para um burguês contemporâneo


do século XVIII que o rei possuísse ainda um poder absoluto e irrevogável,
outorgado por Deus. Era loucura aceitar a divisão social da época, pois parecia ser
um absurdo grotesco, como é apresentado nas figuras que seguem:

FIGURA 23 – DIVISÃO DA SOCIEDADE FRANCESA DO SÉCULO XVIII

1º ESTADO: CLERO Terras,


1% cargos
prestígio,
privilégios e
2º ESTADO: NOBREZA
2% isenção fiscal.

3º ESTADO: BURGUESIA +
CAMPONESES + SANS
CULOTES: obrigações e impostos.
97%

FONTE: Disponível em: <http://combatespelahistoria.blogspot.com.br/2011/04/


estrutura-social-na-franca-pre.html>. Acesso em: 12 jan. 2013.

96
TÓPICO 1 | DEFINIÇÕES E HISTÓRIA DA SOCIOLOGIA

FIGURA 24 – SÁTIRA SOBRE A SITUAÇÃO DO 3º ESTADO NA


SOCIEDADE FRANCESA DO SÉCULO XVIII

FONTE: Disponível em: <http://araoalves.blogspot.com.br/2011/11/


questoes-discussivas-sobre-revolucao.html>. Acesso em: 12 jan. 2013.

UNI

Vê-se claramente nas figuras que a representação política dada à maior parcela
da sociedade era desproporcional, pois, nas tomadas de decisões, cada Estado tinha direito
a apenas um voto, o que significa dizer que 97% da população não era legitimamente
representada e que, além disso, os dois primeiros Estados sempre venceriam as decisões
por se colocarem sempre do mesmo lado, ou seja, ambos estavam sempre legislando ou
decidindo em favor dos seus próprios interesses e nunca a favor da coletividade.

Neste ambiente de insatisfação e descontentamento, muitos pensadores


da época começaram a se organizar para derrubar este sistema de governo que
parecia ser profundamente desonesto. Um dos pensadores que vale ser destacado
aqui se chamava Jean-Jacques Rousseau. Ele defendia que o poder governamental
não poderia ser exercido por uma única pessoa ou por interesses de uma classe
dominante sobre uma massa que deveria aceitar passivamente suas imposições.
Ele foi um dos primeiros pensadores a defender, na Modernidade, a ideia da
representatividade política. Segundo ele, a soberania é estabelecida como poder
absoluto orientado pela vontade geral (esta vontade é convalidada pelo povo que
elege um representante) e legitimado pelo pacto social para garantir a conservação
do Estado, contrapondo-se à ideia de que a soberania surge como resultado da
imposição da vontade de alguns grupos sobre outros, visando a conservar o
poder do Estado. Neste caso, Estado monárquico. (ROUSSEAU, 1994).

97
UNIDADE 2 | PENSAMENTO SOCIOLÓGICO

E
IMPORTANT

“Não sendo o Estado ou a Cidade mais que uma pessoa moral, cuja vida consiste
na união de seus membros, e se o mais importante de seus cuidados é o de sua própria
conservação, torna-se-lhe necessária uma força universal e compulsiva para mover e dispor
cada parte da maneira mais conveniente a todos. Assim como a natureza dá a cada homem
poder absoluto sobre todos os seus membros, o pacto social dá ao corpo político um poder
absoluto sobre todos os seus, e é esse mesmo poder que, dirigido pela vontade geral, ganha,
como já disse, o nome de soberania”. (ROUSSEAU, 1994. p. 48).

Além de Rousseau, temos Charles-Louis de Secondat (o Barão de Montesquieu), que é


visto, atualmente, como o grande articulador da criação dos três poderes de uma República
(Legislativo, Executivo e Judiciário), já que o inglês John Locke teria sido o primeiro mentor
desta ideia. Montesquieu reconheceu a igualdade e o sufrágio (voto, votação) como qualidades
da democracia. Por isso, ele defendia a existência destes três poderes (Legislativo, Executivo
e Judiciário), ressaltando a necessidade de se garantir a distinção entre seus membros, a
independência de cada um deles e a possibilidade de resistirem um ao outro. Segundo ele,
o governante deveria executar os atos de governo (Poder Executivo), submetendo-se às leis
civis (Poder Legislativo) e não poderia atuar como juiz (Poder Judiciário). Afinal, o governante
não poderia julgar com total imparcialidade, visto que na monarquia o acúmulo de funções
impediria o príncipe de conceder clemência após os julgamentos, uma vez que ele próprio
os teria realizado, o que geraria um grave conflito de interesses e a ausência total de isonomia
nas decisões dele advindas. (MONTESQUIEU, 2004).

Sendo assim, vemos, neste momento, com clareza e evidência uma coisa:
os pensadores da época estavam interessados em defender a democracia, mas
esta democracia não precisava ser tão equânime assim. Ela precisava, contudo,
ser feita para que a nobreza e o clero fossem depostos. A burguesia jamais
conseguiria expandir "o seu território" se o rei permanecesse com seu poder
absoluto. Era necessário "decapitá-lo".

Diante disso, gostaríamos de destacar novamente ao(à) nosso(a)


acadêmico(a) que o objetivo dos pensadores franceses não era outro senão
o de defender o interesse da classe burguesa, pois não bastava mais possuir
apenas o poder econômico. Era preciso aliar o poder econômico com o poder
político. Absorver e assimilar este duplo poder. O pensamento "esclarecido"
dos pensadores da época não foi o de legitimar "a igualdade entre todos", mas
o de justificar que era preciso que a burguesia ampliasse o seu poder. O mundo
político, depois de Maquiavel, se tornou o mundo da estratégia de dominação.

Boa parte destes pensadores pertencia à burguesia e, como tal, lutavam


pelos seus interesses. Não havia outro motivo maior que fosse este. "Todos nós
somos iguais perante a lei", todavia, somente perante a lei. O resto é história.

O aspecto histórico da Revolução Francesa e as consequências que ela


trouxe para o Ocidente são evidentemente claras, pois boa parte das nações
ocidentais segue os preceitos que foram criados neste período histórico. Nosso

98
TÓPICO 1 | DEFINIÇÕES E HISTÓRIA DA SOCIOLOGIA

intuito não é o de aprofundarmo-nos demasiadamente neste ponto, mas o de


despertar em você, caro(a) acadêmico(a), uma compreensão mais ampla da
importância deste evento para uma análise sociológica mais abrangente. Ou seja,
é necessário olharmos para o passado para entendermos o presente (e que na
História nada acontece por acaso).

DICAS

Sugestão de filme: Os Miseráveis.

Adaptação da obra de Victor Hugo. A história é ambientada


na França do início do século XIX, em meio à crise, à fome e
à revolução. Liam Neeson vive Jean Valjean, um homem que
roubou um pedaço de pão para alimentar a família e recebeu
20 anos de prisão. Ele foge, consegue nova identidade,
reconstrói sua vida e passa a ser prefeito do vilarejo de Vigau.
Mas o inspector Javert (Geoffrey Rush) continua atrás dele,
ameaçando tudo o que conseguiu. O drama também se
estende a outras personagens: Uma Thurman está no papel
de Fantine, uma mulher marginalizada por ter uma filha
ilegítima, Cosette, que será adotada por Valjean e mais tarde
terá um romance com um revolucionário.

FONTE: Disponível em: <http://leiturasescritas.blogspot.com.


br/2010/06/filme-os-miseraveis-espaco-da-critica.html>.
Acesso em: 12 jan. 2013.

4 O ILUMINISMO
Depois de discorrermos sobre as duas grandes revoluções da Europa, é
preciso analisar e compreender como estas revoluções se deram, e por quê. Neste
sentido, se faz necessário ver o contexto intelectual da época e quais os fundamentos
que alicerçaram este período histórico.

Com o fim da Idade das Trevas (Idade Média), o poder religioso que
pertencia à Igreja Católica Apostólica Romana foi reduzido. O Teocentrismo
perdeu, em grande parte, o seu valor. As pessoas, contudo, precisavam
reencontrar um novo horizonte, outra perspectiva para seguir. Nasce aqui o
advento do indivíduo, isto é, aparece agora um novo substituto para a religião, a
saber: o próprio ser humano. Ele agora está no centro dos debates e das atenções
humanas. Ele saiu de sua pequenez e submissão a Deus para assumir o papel
de protagonista de sua própria emancipação. Principalmente por este motivo, a
palavra Iluminismo surgirá em oposição à ideia de trevas, característica atribuída
à Idade Medieval.

99
UNIDADE 2 | PENSAMENTO SOCIOLÓGICO

Aqui é muito importante destacar uma palavra da língua alemã que


resume bem a ideia de Iluminismo: Aufklärung. Esta palavra é utilizada pelo
filósofo Immanuel Kant para expressar a ideia de que o ser humano agora deve
assumir plenamente a sua maioridade, abandonando a menoridade na qual vivera
até então. Outro ponto importante da palavra Aufklärung é a sua composição:
Auf, em alemão, significa literalmente "Alto", e klärung é derivado de klar, que
quer dizer “claro”. Deste modo, numa tradução livre, Aufklärung significa estar
esclarecido ou iluminado por uma luz que vem do alto, do alto da razão humana.
Esta iluminação seria a libertadora de todas as amarras que a humanidade teve
no passado. Agora, sua maioridade poderá ser alcançada, pois o indivíduo está
livre e plenamente apto para usar a razão.

Este novo racionalismo será a base para que se atinja um novo patamar
intelectual que, durante muito tempo, fora adormecido pelo excesso de regras
impostas pela religião, que afirmava ou legitimava o que era certo ou errado, bom
ou mau, sagrado ou profano etc. Os pensadores iluministas se opuseram, então,
a diversos campos da sociedade que, no seu entender, estavam em trevas, como o
domínio e os dogmas da Igreja Católica, as crendices populares, a intervenção do
Estado no mercado, bem como o direito divino dos reis.

A charge que segue faz uma paródia bem-humorada da ideia principal


do Iluminismo.

FIGURA 25 – SÁTIRA SOBRE ILUMINISMO E EMANCIPAÇÃO FEMININA

FONTE: Disponível em: <http://thirinhas.wordpress.com/2010/05/03/iluminismo/>. Acesso em:


15 jan. 2013

Por este viés, um dos principais quesitos que se atribui ao Iluminismo


é o de esclarecer o mundo através da razão. Inúmeros são os pensadores que
defenderam este atributo do período iluminista: de Francis Bacon (pai da ciência
experimental) a Augusto Comte (pai da Sociologia). Todos corroboram com a

100
TÓPICO 1 | DEFINIÇÕES E HISTÓRIA DA SOCIOLOGIA

ideia de que agora o ser humano conquistaria a plenitude que lhe fora negada
pela religião. O Iluminismo aparece, então, como a insigne marca de um novo
tempo. Todo misticismo deve ser negado ou superado. Toda explicação que não
for fundada na experiência não pode nem mesmo ser cogitada. Somente aquilo
que for percebido e experienciado pode ser realmente válido. Caso contrário, só
o banimento lhe restará.

Nesta linha de pensamento, o papel da dúvida é assaz imprescindível.


René Descartes, um dos principais precursores deste período, é considerado o pai
da dúvida metódica na filosofia e na matemática. Para ele, a dúvida é o princípio
de todo saber. Todo conhecimento adquirido deveria ser cuidadosamente
esquadrinhado e analisado pelo critério da dúvida. Ao duvidar, far-se-ia uma
revisão geral de tudo aquilo que se aprendera para, a partir daí, reconstruir o
edifício do saber, repudiando tudo aquilo que é falso, enganoso ou dúbio. Em
outras palavras, a dúvida possuía, para Descartes, uma curiosa função: auxiliar o
ser humano a abdicar de tudo aquilo que aparentava ser duvidoso.

Francis Bacon, filósofo inglês deste mesmo período, afirmava que apenas as
afirmações baseadas em observações empíricas eram aceitáveis como verdadeiras:
o que não proviesse, de alguma forma, da observação direta dos cinco sentidos
do corpo humano, não deveria ser visto como verdadeiro. (BACON, 2005).

Outrossim, vale lembrar a você, caro(a) acadêmico(a), que Deus


não será abandonado por completo nesta fase histórica. Aliás, o ponto mais
crucial do Iluminismo não é o debate sobre a existência ou não de Deus, mas
o descredenciamento da instituição religiosa como porta única e exclusiva de
acesso do indivíduo a Deus. Dito de outro modo: os iluministas defendiam o
direito de cada pessoa acreditar ou seguir a vida religiosa que bem quisesse. Cada
um deveria ter a liberdade de seguir ou, até mesmo, de não seguir a religião que
desejasse.

Não obstante, nasce aqui uma cisão muito grande na História: religião e
ciência tornam-se simetricamente opostas entre si.

FIGURA 26 – A OPOSIÇÃO ENTRE CIÊNCIA E RELIGIÃO

FONTE: Disponível em: <http://libertesedosistema.blogspot.com.br/2012/04/>.


Acesso em: 15 jan. 2013.

101
UNIDADE 2 | PENSAMENTO SOCIOLÓGICO

Além disso, como vimos na Revolução Francesa, os ideais de Liberdade,


Igualdade e Fraternidade foram inspirados no Iluminismo francês, bem como as
ideias básicas do liberalismo econômico e da ciência moderna e contemporânea.
Aliás, boa parte das descobertas científicas da modernidade e da contemporaneidade
foi consequência do espírito inovador e revolucionário deste período histórico.
Máximas como laissez faire, laissez passer (deixai fazer, deixai acontecer).

"Na natureza nada se perde, nada se cria, tudo se transforma" (Lavoisier) e


"Posso não concordar com nenhuma das palavras que você disser, mas defenderei
até a morte o direito de você dizê-las" (Voltaire) são algumas das heranças deste
momento histórico.

Por falar nisso, Augusto Comte, pai da Sociologia, bebeu muito desta fonte.
Para ele, a ciência seria o estágio mais elevado da consciência humana. O ser humano,
após ter passado por dois estágios de completo atraso intelectual, teria alcançado o seu
ápice de desenvolvimento quando chegou ao Iluminismo. Segundo ele, o progresso
da humanidade se daria por meio do progresso advindo pela ciência. O estágio mais
alto da humanidade teria sido atingido com o empirismo (experiências concretas).
Sendo assim, a dor e a miséria humanas seriam definitivamente eliminadas, o que,
no fundo, não aconteceu. Mas isso é assunto para o próximo tópico.

DICAS

Sugestão de vídeo no YOUTUBE: O Lobo, de Pitty. Acesse o link indicado a


seguir: <http://www.youtube.com/watch?v=cTd2Iecylt0>.

AUTOATIVIDADE

1 Estabeleça quais foram os aspectos mais importantes do Iluminismo que


influenciaram a Revolução Francesa.
__________________________________________________________________
__________________________________________________________________

2 Explique, com suas palavras, qual é a moral da história da charge que


aborda a questão do ‘Iluminismo Feminino’, em nosso tempo.
__________________________________________________________________
__________________________________________________________________

3 Pesquise sobre a expressão francesa laissez faire: o que ela realmente significa
e quais são as suas aplicações na atualidade?
__________________________________________________________________
__________________________________________________________________

102
TÓPICO 1 | DEFINIÇÕES E HISTÓRIA DA SOCIOLOGIA

5 POSITIVISMO

FIGURA 27 – AUGUSTO COMTE

FONTE: Disponível em: <http://dyyylon.blogspot.com.br/2010/11/o-


pensamento-pedagogico-positivista.html>. Acesso em: 12 jan. 2013.

Augusto Comte é considerado o pai do pensamento positivo. Calma,


caro(a) acadêmico(a), não é exatamente isso que você está pensando. É comum
que muitas pessoas fiquem em dúvida sobre o real significado desta palavra.
Na verdade, a palavra positivo, dentro do contexto do pensamento de Augusto
Comte, possui um outro sentido. Aliás, é mais conveniente que usemos a palavra
positivista, a fim de evitar novos conflitos de interpretação.

Para este pensador francês, a ideia de positivismo quer dizer algo científico,
empírico ou concreto. Mas, para entender esta ideia se faz necessário compreender
que, segundo Comte, existem alguns estágios pelos quais a humanidade precisou
passar para chegar a este patamar positivista. Estes estágios são, por sua própria
lógica, momentos de transição, nos quais a humanidade precisou evoluir para
alcançar a perfeição do entendimento sobre si mesma e o mundo.

Contudo, antes de nos delongarmos sobre isso, vejamos um pouco a


trajetória intelectual de Augusto Comte.

As principais obras de Comte chamam-se Curso de Filosofia Positiva e


Sistema de Política Positiva. Nestas obras, o pensador repassou os principais
métodos e resultados de cada uma das ciências para, então, fundar a sua própria, a
Sociologia. Outrossim, é importante destacar que o nome Sociologia, na verdade,
não foi o primeiro nome que Comte deu à sua ciência. O primeiro nome foi Física
Social.

103
UNIDADE 2 | PENSAMENTO SOCIOLÓGICO

Neste sentido, sua intenção foi a de estabelecer critérios científico-


matemáticos para abordar os problemas sociais com a mais precisa exatidão
(mais tarde, seu seguidor mais fiel, Émile Durkheim, usará este método para criar
o conceito de 'fato social').

Entretanto, já havia outro pensador contemporâneo a Comte (o belga


Quételét) que criara um sistema análogo, no qual estabelecia critérios matemático-
estatísticos de compreensão da sociedade. Sendo assim, ao criar o nome
Sociologia, Augusto Comte tentou estabelecer um critério próprio e adequado de
compreensão da sociedade, pois não bastava adaptar os critérios da Matemática
ou da Biologia para divisar a sociedade. Era preciso um método exclusivo de
análise para a vida social.

Deste modo, essa filosofia afirma que é necessário conhecer cientificamente


a sociedade, o que se dá por meio da descoberta das leis naturais que regulam a
vida social. Diante disso, podemos inferir que a visão social não pode ser pautada
em qualquer tipo de compreensão metafísica, sobrenatural ou teológica. É preciso
usar restritamente a ciência para tal intento. Augusto Comte, com isso, reitera
a importância da superação de uma visão teocêntrica ou de conceitos vazios e
abstratos de compreensão, tais como: dinheiro, Estado ou Nação (o que ele vai
denominar de metafísica) para analisar a sociedade. Isto nos revela, em outras
palavras, que a ciência será o único critério válido de compreensão da realidade.

Com isso, ele afirma que só existem três elementos básicos para
compreendermos a realidade social: o relativismo, o holismo e a historicidade.
O relativismo é um dos conceitos mais importantes de Comte. Todo saber que
possuímos é efêmero, fugaz e transitório, ou seja, o saber que possuímos sobre
o mundo não é eterno, não é dogmático. Ele tem, assim como na ciência, uma
validade provisória, isto é, o único princípio absoluto é que tudo é relativo.

Por outro lado, o holismo tem um papel igualmente importante na


compreensão de Augusto Comte. Esta ideia pode ser resumida da seguinte
maneira: tudo aquilo que é social só pode ser analisado dentro de um contexto
total, a sociedade precisa ser vista como um todo. As partes só podem ser
analisadas dentro de um contexto global ou total. Aqui podemos inserir uma
frase de Aristóteles muito usada por Augusto Comte: a separação dos ofícios e a
convergência dos esforços são essenciais para o sucesso social.

De outro modo, podemos analisar que, para Comte, as pessoas, separadas


em suas atividades pessoais ou laborais, só podem ter importância dentro de um
contexto social. Separadas ou isoladas, elas não têm nenhum valor em si mesmas.
Elas só possuem valor se estiverem inseridas no todo. A ideia comteana se
assemelha à noção de organismo ou de corpo (daí a noção importante de holismo
como corpo social), pois cada membro só tem valor se estiver conectado ao corpo,
pois fora dele o membro não tem valor algum.

104
TÓPICO 1 | DEFINIÇÕES E HISTÓRIA DA SOCIOLOGIA

Por fim, a historicidade. Cada ato ou evento tem um caráter histórico.


A vida social precisa estar conectada a estes três elementos imprescindíveis: o
relativismo, o holismo e a história. A História, neste caso, mostra porque algumas
sociedades evoluíram mais rápido e porque outras não. O texto precisa ser
lido dentro de um determinado contexto. As sociedades possuem seu próprio
processo de transformação e de desenvolvimento. Cada uma permanece ou
cresce segundo suas particularidades específicas.

Entretanto, caro(a) acadêmico(a), não seja ingênuo: Comte tentou


demonstrar que o mundo europeu era mais desenvolvido e evoluído por ter
passado por tantas revoluções (bélicas ou não) e por ter deixado para trás o
teocentrismo e o uso da espada para garantir sua expansão territorial e intelectual
sobre o resto do mundo ocidental. Não é à toa que, mais tarde, ele acabará
fundando a Religião da Humanidade (que parece ser, num primeiro momento,
algo contraditório e sem sentido) como uma forma de cultuar o intelecto europeu
em detrimento a qualquer divindade sobrenatural. Seu lema religioso era: O amor
por princípio, a ordem por base e o progresso por fim. (COMTE, 1978).

As figuras a seguir ilustram a ideia central de um templo da Religião da


Humanidade.

FIGURA 28 – ALTAR DE UMA IGREJA DA RELIGIÃO DA HUMANIDADE

FONTE: Disponível em: <http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Tpos6.JPG>.


Acesso em: 15 jan. 2013.

As duas figuras apresentam bustos de personagens importantes da ciência


moderna. Cada um deles contribuiu para o avanço da humanidade do estágio
teológico até o estágio positivista.

105
UNIDADE 2 | PENSAMENTO SOCIOLÓGICO

FIGURA 29 – BUSTOS DE PERSONALIDADES IMPORTANTES DA HISTÓRIA DA


CIÊNCIA

Nas paredes laterais, nichos com os 'chefes do


mês', figuras proeminentes que representam
campos da atividade humana, períodos históricos, etc .
FONTE: Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-
59701995000300006&script=sci_arttext>. Acesso em: 15 jan. 2013.

Com este lema, nota-se a influência de Comte sobre o pensamento


republicano da recém-fundada nação brasileira do século XIX, que cunhou em
sua bandeira a expressão: Ordem e Progresso.

AUTOATIVIDADE

Neste momento, gostaríamos de convidar você, caro(a) acadêmico(a),


a responder à seguinte questão: “Será que os intelectuais brasileiros do século
XIX tinham em mente que este lema provém de uma ideologia comteana, que
almejava demonstrar a superioridade europeia sobre o resto do mundo?” Pense
a respeito!
____________________________________________________________________
____________________________________________________________________
____________________________________________________________________
____________________________________________________________________

Falta-nos apresentar agora a teoria dos três estágios da humanidade.


Comte, ao criar esta nomenclatura, demonstrou que a evolução da humanidade
precisou passar por estes estágios, sobrepondo um ao outro, até chegar ao
patamar mais alto, que é o positivista. A humanidade, com o desenrolar do

106
TÓPICO 1 | DEFINIÇÕES E HISTÓRIA DA SOCIOLOGIA

tempo, buscava explicações para os acontecimentos que ocorriam à sua volta. Em


cada momento histórico havia um modo acertado de explicar estes fatos. Comte
assim os demonstra:

● Estágio Teológico: era preciso saciar a vontade dos deuses ou a vontade


de algum Ser Sobrenatural. Tudo era feito ou desenvolvido para saciar os
interesses desta entidade sobrenatural.

● Estágio Metafísico: Comte elabora a ideia de que os seres humanos, a partir


deste estágio, precisavam saciar os interesses de abstrações vazias, tais como:
a morte, o dinheiro, o Estado, a sociedade etc. Usemos o exemplo da morte:
a morte não é uma coisa que se toca, mas é um processo que termina. Como
a morte não é uma coisa, ela é uma abstração, mas se pensarmos que a morte
tem vida, que ela age racionalmente, como uma coisa, atribuiremos vontade a
uma abstração. Nesse sentido, a morte é uma ideia metafísica e não uma ideia
científica.

● Estágio Positivo (Positivista): Comte afirma que, nos dois estágios anteriores,
o ser humano se preocupou em descobrir o porquê das coisas, isto é, ele quis
saber por que as coisas precisam funcionar de um determinado modo. Já no
estágio positivo, o que importa é a questão de como as coisas funcionam e que
relação podemos estabelecer entre elas. A visão agora é imanentista, empírica
e concreta e não mais algo abstrato, teoricista e sobrenatural. (COMTE, 1978).

A charge a seguir explicita bem esta ideia.

FIGURA 30 – DUALIDADE ENTRE CIÊNCIA E FÉ

O Método Científico O Método Criacionista

Aqui estão os fatos. Aqui está a conclusão.


Quais conclusões podemos Quais fatos podemos
tirar deles? usar para respaldá-la?

FONTE: Disponível em: <http://sala19.wordpress.com/2012/02/10/criacionismo-


x-evolucionismo-origens-da-humanidade/>. Acesso em: 15 jan. 2013.

107
UNIDADE 2 | PENSAMENTO SOCIOLÓGICO

Depois do positivismo, o modo de compreensão e de visão de mundo


mudou drasticamente. Muitos pensadores foram influenciados por Augusto
Comte. Aliás, é importante pensar que o advento científico teve origem neste
mesmo período histórico: o século XIX. O progresso científico havia abraçado
uma grande causa: solucionar todos os problemas do mundo. Agora, todas as
pessoas gozariam de uma paz perpétua, pois a ciência havia assumido o papel
de salvadora da humanidade. No lugar de Deus entrara a ciência. Segundo esta
nova visão, as teorias científicas deveriam ter validade universal, na medida em
que se mostrassem aptas a explicar todos os eventos do mundo.

Por este viés criou-se, contraditoriamente, um novo mito (algo que Comte
sempre quis abolir): o mito do cientificismo. Ou seja, a ideia de que somente a
ciência teria as respostas certas sobre os fenômenos da vida biológica ou social. Este
erro talvez tenha sido o maior de Comte, justamente por ambicionar um propósito
tão incomensurável como este, pois boa parte dos problemas socioambientais
que vivenciamos hoje é decorrente desta superlativação da ciência como única
resposta para os problemas da humanidade.

6 ESCOLA DE CHICAGO
A sociologia a partir do próprio contexto social. Esta ideia é uma das
características mais marcantes desta escola. Seu principal propósito foi o de interpretar
os eventos sociais que começaram a ocorrer a partir do século XX na cidade de Chicago
e seus arredores, bem como em todo o território dos EUA. O advento da economia
americana na primeira metade do século XX fez com que um levante enorme de
imigrantes fosse levado a se transferir da Europa para os EUA.

O choque cultural e o processo de urbanização caótico e desorganizado


fazem lembrar, em analogia, o processo de urbanização que vimos no início
desta unidade, na Inglaterra da Revolução Industrial no século XVIII. Contudo,
as mudanças históricas e sociais nos levam a pensar uma nova realidade. Neste
caso, os pesquisadores desta Escola se propuseram a realizar um método novo de
investigação social, muito utilizado por antropólogos: a observação participante.
Os pesquisadores, ao invés de pesquisarem a realidade social pautados
exclusivamente em livros acadêmicos, lançam mão de suas cátedras universitárias
para viverem no meio das pessoas que vinham de outros países e continentes.

Este método visava atingir e compreender o mais diretamente possível o


mundo das pessoas, abandonando critérios a priori de interpretação. Não bastava
ler os livros, era necessário verificar empiricamente e ao vivo: compreender os
guetos, analisar a vida nos prostíbulos, vivenciar a vida de um operário seriam
formas de entender sociologicamente a vida das pessoas, a fim de dar respostas às
indagações do funcionamento da vida social como um todo.

108
TÓPICO 1 | DEFINIÇÕES E HISTÓRIA DA SOCIOLOGIA

Como afirmara Robert Park, um dos principais colaboradores da Escola


de Chicago: hoje, o mundo inteiro ou vive na cidade ou está a caminho da cidade;
então, se estudarmos as cidades, poderemos compreender o que se passa no
mundo. Os conflitos sociais, os problemas da delinquência, da segregação, da
prostituição, da economia ou do trabalho tinham agora um método adequado de
estudo e de interpretação. Era preciso viver no meio das pessoas para compreendê-
las, donde surge a famosa expressão de que "as pessoas são fruto do meio no qual
elas vivem". (BECKER, 1996, p. 182).

Para tal, Park (conforme relato de Howard Becker):

Defendeu a ideia de que o espaço físico espelhava o espaço social de


modo que, se fosse possível medir a distância física entre as populações,
seria possível saber algo sobre a distância social entre elas. É uma
metáfora interessante, que levou ao desenvolvimento de uma área
chamada ecologia, não no sentido que usamos hoje, de preservação do
meio ambiente, mas a noção de ecologia na forma usada pela biologia
vegetal daquela época, e que se referia à competição pelo espaço. Em
outras palavras, os biólogos, que estudavam a biologia no mundo e não
em laboratório, estavam muito interessados na concepção darwinista
da maneira como diferentes tipos de animais e plantas ocupavam o
território, o espaço físico. (BECKER, 1996, p. 182).

Diante disso, Park investigou por que determinados fatos sociais (como
a delinquência e a prostituição) ocorriam em determinados espaços físicos da
cidade, ou seja, em que bairros isso ocorria e por que ocorria, pois, conforme esta
perspectiva, o indivíduo, uma vez inserido em determinado ambiente, perderia o
seu livre-arbítrio e receberia de maneira conformista as imposições dos elementos
socioambientais.

Esta análise feita por Park deu início a uma aplicação mais empírica da
Sociologia, isto é, a partir de agora a Sociologia assumiria verdadeiramente o seu
papel científico de investigação, a saber, o de estudar cientificamente os fatos
sociais, ao adotar um novo viés científico: o de compreender o espaço urbano
das cidades, pois os EUA, a partir deste momento histórico, personificam
três características de uma sociedade verdadeiramente contemporânea: a
industrialização, a urbanização e a democratização.

Outrossim, é importante destacar que o modo como esta Escola


desenvolveu os seus trabalhos de pesquisa tinha também como escopo o controle
social, pois os resultados de suas pesquisas eram usados para criar políticas
públicas intervencionistas, que corrigissem ou evitassem distúrbios sociais.

Sendo assim, era preciso deter tudo aquilo que rompesse com os critérios
do american way of life (estilo de vida americano). As autoridades competentes
da cidade de Chicago deviam saber agir de modo proativo, para frear todos os
modos possíveis de desorganização social.

109
UNIDADE 2 | PENSAMENTO SOCIOLÓGICO

FIGURA 31 – NÃO HÁ PADRÃO DE VIDA MAIS ALTO DO QUE O AMERICANO

FONTE: Disponível em: <http://modovestir.blogspot.com.br/2009/07/


american-way-of-lifeeletrodomesticos-e.html>. Acesso em: 15 jan. 2013.

DICAS

Sugestão de vídeo no YOUTUBE: Minha alma - O Rappa. Acesse


o link: <http://www.youtube.com/watch?v=vF1Ad3hrdzY>.
Sugestão de filme: Gran Torino.

Walt Kowalski (Clint Eastwood) é um inflexível veterano da


Guerra da Coreia, que está agora aposentado. Para passar
o tempo ele faz consertos em casa, bebe cerveja e vai
mensalmente ao barbeiro (John Carroll Lynch). Sua vida
é alterada quando passa a ter como vizinhos imigrantes
hmong, vindos do Laos, os quais Walt despreza. Ressentido e
desconfiando de todos, Walt apenas deseja passar o tempo
que lhe resta de vida. Até que Thao (Bee Vang), seu tímido
vizinho adolescente, é obrigado por uma gangue a roubar o
carro de Walt, um Gran Torino retirado da linha de montagem
pelo próprio. Walt consegue impedir o roubo, o que faz com
que se torne uma espécie de herói local.

FONTE: Disponível em: <http://posterdecinema.wordpress.


com/tag/reservoir-dogs/>. Acesso em: 13 jan. 2013.

110
TÓPICO 1 | DEFINIÇÕES E HISTÓRIA DA SOCIOLOGIA

AUTOATIVIDADE

FIGURA 32 – RICOS E POBRES DIVIDIDOS POR UM MURO (PARAISÓPOLIS


X MORUMBI)

FONTE: Disponível em: <http://www.fabiocampana.com.br/2008/06/


desigualdade-entre-pobres-e-ricos-no-brasil-diminuiu/>. Acesso em: 15 jan. 2013.

Algo que ocorre com frequência nos centros urbanos é o fato de que as pessoas são rotuladas
de acordo com os lugares onde elas vivem. Com base nesta ideia, elabore uma redação
abordando o problema da discriminação social, fundada na divisão geográfica da riqueza e da
pobreza em um espaço urbano.

___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________

7 ESCOLA DE FRANKFURT E A REIFICAÇÃO DO SUJEITO


Caro(a) acadêmico(a), a escola de pensamento que nos propomos a estudar
agora pode ser considerada a mais pragmática do século XX. A Escola de Frankfurt
é uma das mais respeitadas pelos professores de Filosofia e Sociologia de todo o
mundo. Ela se debruçou sobre as dificuldades mais complexas e delicadas da
sociedade contemporânea, no afã de tentar compreendê-las e interpretá-las.

Os temas mais recorrentes desta escola de pensamento visam abordar os


dilemas da sociedade atual, isto é, o problema da alienação, da reificação, do fetiche
da mercadoria, do mundo do trabalho, da indústria cultural, da desrazão e da falta
de esperança em um futuro positivo (aqui no sentido bem comteano mesmo).

Bom, para começar é preciso situar um pouco o contexto histórico que


fez surgir esta Escola. Início do século XX: 1ª Guerra Mundial, imperialismo
econômico, dominação da máquina sobre as pessoas, além de outros fatos,
formam o pano de fundo da crise existencial do ser humano desta época.
111
UNIDADE 2 | PENSAMENTO SOCIOLÓGICO

A ausência de parâmetros e de identificação do indivíduo consigo mesmo


fez com que o seu sonho dourado de viver uma vida boa calcada na ciência desse
com os burros n'água. O homem vislumbrado com a ideia de que todos são iguais
perante a lei (igualdade jurídica) e de que cada um pode conquistar para si tudo
aquilo que conseguir com o suor do seu rosto (liberdade econômica) perdeu-se
na doce ilusão de uma utopia tola. A realidade mostrou-se totalmente oposta ao
sonho científico. A razão tornou (como já previra Rousseau) o ser humano um
sujeito mesquinho e ganancioso, cego pelo poder do dinheiro e dos objetos.

Como afirma Rossano Pecoraro, "o suicídio da Europa, a catástrofe da


Segunda Guerra, o horror de Auschwitz, da Shoah, de Hiroshima e Nagasaki
arrastam ao banco dos réus a razão ocidental e, por conseguinte, a própria ideia
de uma racionalidade na história". (PECORARO, 2009, p. 51-52).

Esta escola é composta por inúmeros pensadores que se destacaram na


história do pensamento do século XX. Na sua maioria, são professores alemães
de origem judaica. Dentre eles temos Adorno, Horkheimer, Benjamin e Marcuse.
Os três primeiros pensadores podem ser considerados os de maior destaque
internacional, pela densidade de suas obras.

Adorno e Horkheimer produziram muitas obras juntos. A que mais se


sobressai chama-se Dialética do Esclarecimento. Nesta obra, ambos se preocupam
em demonstrar uma terrível verdade: o ser humano se reificou, se coisificou. Ao
contrário da proposta iluminista de Kant, o mundo racional não melhorou a vida
das pessoas no século XX.

Passados dois séculos da morte de Kant, apesar dos avanços científicos


advindos da razão, a desigualdade social se agravou muito e o ser humano se
afeiçoou demasiadamente com o mundo das coisas, esquecendo-se por completo de
que por detrás de todo objeto há trabalho humano.

Adorno e Horkheimer explicam, no trecho que segue, o quanto o ser


humano se julga racional e o quanto ele subjuga os outros seres em virtude disso:

A falta de razão não tem palavras. Eloquente é a posse, que estende


seu domínio através de toda a história manifesta. A terra inteira dá
testemunho da glória do homem. Na guerra e na paz, na arena e no
matadouro, da morte lenta do elefante, que as hordas primitivas dos
homens abatiam graças ao primeiro planejamento, até à exploração
sistemática do mundo animal atualmente, as criaturas irracionais
sempre tiveram que fazer a experiência da razão. (ADORNO;
HORKHEIMER, 1985, p. 229).

Vale destacar aqui que boa parte da inspiração intelectual desta escola de
pensamento é marxiana. O pensamento marxiano teve profunda influência no
pensamento e na compreensão de mundo para os frankfurtianos. Sendo assim,
podemos afirmar que este trecho do livro Manuscritos Econômico-Filosóficos, de
Karl Marx, serviu de base para a elaboração de muitos textos de Adorno e Horkheimer,
no que tange ao problema da alienação humana no mundo do trabalho:

112
TÓPICO 1 | DEFINIÇÕES E HISTÓRIA DA SOCIOLOGIA

A apropriação do objeto aparece como alienação a tal ponto que quanto


mais objetos o trabalhador produz, tanto menos pode possuir e tanto mais fica
dominado pelo seu produto, o capital. Todas essas consequências decorrem do
fato de o trabalhador ser relacionado com o produto de seu trabalho como com
um objeto estranho. Pois está claro que, baseado nesta premissa, quanto mais o
trabalhador se desgasta no trabalho, tanto mais poderoso se torna o mundo de
objetos por ele criado em face dele mesmo, tanto mais pobre se torna a sua vida
interior, e tanto menos ele se pertence a si próprio. [...] Quanto maior for sua
atividade, portanto, tanto menos ele possuirá. O que está incorporado ao produto
de seu trabalho não mais é dele mesmo. Quanto maior for o produto de seu
trabalho, por conseguinte, tanto mais ele minguará. A alienação do trabalhador
em seu produto não significa apenas que o trabalho dele se converte em objeto,
assumindo uma existência externa, mas ainda que existe independentemente,
fora dele mesmo e a ele estranho, e que com ele se defronta como uma força
autônoma. A vida que ele deu ao objeto volta-se contra ele como uma força
estranha e hostil (MARX, 2012).

FONTE: Disponível em: <www.ilaese.org.br/.../Curso-ILAESE-Alienação-e-Socialismo-Apostil...>.


Acesso em: 15 jan. 2013.

Adorno e Horkheimer são pensadores que se propuseram a afirmar que


o mundo que nos circunda é manipulador e reificador. Entretanto, devemos
ressaltar que o único culpado de tudo isso é o próprio ser humano, que deixou de
fruir a vida para tornar-se escravo das mercadorias, que segundo o texto de Marx,
se manifestam como entidades que possuem vida própria, deslocadas da própria
vida humana ou até mesmo como fantasmas que assombram o desejo humano
de as possuir, pois são portadoras de uma força estranha e hostil.

Outro conceito abordado por estes mesmos pensadores foi o problema


da Indústria cultural. A ideia central é a seguinte: a produção de qualquer objeto
cultural tem um único escopo: a sua venda. A valorização dos objetos produzidos
com algum caráter cultural em si mesmo desapareceu. O advento de uma nova
onda de mercantilização fez com que tudo aquilo que é feito pelo ser humano
perdesse a sua aura.

O conceito de aura foi criado por Walter Benjamin. Segundo ele, a aura é
aquilo que é feito apenas uma única vez na produção de um objeto. Contudo, isto
deixou de existir, pois com a industrialização em massa tudo é feito com o intuito
de ser reproduzido. O capitalismo extrapolou o espaço das fábricas e foi residir
também no meio da cultura.

As formas modernas de entretenimento são um exemplo disso (TV, cinema


e internet). Elas tornaram atualmente possível o acesso público a várias obras, a
vários concertos de música clássica ou de grandes produções de histórias épicas etc.,
mas isto fez com que a beleza da exclusividade da obra de arte se perdesse e que a
reprodutibilidade técnica entrasse no seu lugar.

113
UNIDADE 2 | PENSAMENTO SOCIOLÓGICO

FIGURA 33 – FOTOGRAFIA DE MARYLIN MONROE, SEGUNDO O


ARTISTA PLÁSTICO ANDY WARHOL

FONTE: Disponível em: <http://arteehistoriaepci.blogspot.com.


br/2011/07/pop-art-de-andy-warhol-exposta-partir.html>. Acesso em: 15
jan. 2013.

FIGURA 34 – O ANGELUS NOVUS DE PAUL KLEE OBSERVA AS RUÍNAS

FONTE: Disponível em: <http://caminhos-historia.blogspot.com.


br/2011/05/historia-contra-barbarie.html>. Acesso em: 15 jan. 2013.

Walter Benjamin criticaria severamente (se fossem contemporâneos) a


obra pop de Andy Warhol, por reproduzir o rosto de Marylin Monroe de modo
puramente comercial. Este trabalho seria visto como culturalmente industrializado
e artisticamente vazio. Já na obra de Paul Klee, Benjamin aborda o problema da
finitude e do caos. O anjo vê, por trás de seus ombros, as ruínas de um mundo
coisificado e ausente de criatividade, um mundo apocalíptico marcado pela razão
que vence e oprime o próprio homem, pois ele se sujeitou a ela.

114
TÓPICO 1 | DEFINIÇÕES E HISTÓRIA DA SOCIOLOGIA

Como reitera Pecoraro:

Nas teses sobre a Filosofia da História (1940), Benjamin denuncia


as pretensões, a falsidade e os engodos de todas as teorias da história cujos
fundamentos residem tanto nas noções de progresso, finalidade etc., como na
ideia de um tempo homogêneo e linear. O curso das ações e dos fatos humanos,
com efeito, não é um processo racional e orientado, mas o caótico desenrolar-se
de uma violenta e opressora apologia do presente edificada pelos “vencedores”.
O olhar do “anjo da história”, que o filósofo alemão comenta em uma de suas
teses, a partir de um quadro de Paul Klee, revela o verdadeiro rosto da história.
Virado para o passado, as asas abertas e os olhos escancarados, ele vê “uma
catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína” lá onde o
homem vê uma cadeia racional de acontecimentos. O anjo gostaria de deter-se
para socorrer, juntar os cacos, “acordar os mortos”. Uma tempestade, porém, o
atinge e o impele com força para longe daí, em direção ao futuro, enquanto o
amontoado de ruínas aumenta. Essa tempestade, concluiu Benjamin, “é o que
chamamos de progresso”. (PECORARO, 2009, p. 50-51).

Diante disso, o progresso apontado por Comte é refutado por Benjamin de


modo veemente, pois o futuro não é igual como era antigamente, ao contrário,
ele parece ser amargamente funesto.

Neste sentido, o ser humano alienou a sua vida de tal maneira que até o
final de semana é tão igual quanto a semana. A própria vida comum (aos sábados
e domingos) se aprisiona numa rotina semelhante à rotina dos dias da semana.
A vida se repete, se reproduz sempre do mesmo modo. O indivíduo, preso ao
trabalho, não consegue imaginar outra vida possível, pois a vida deixou de ser
interessante para se tornar massificante, alienante, repetitiva. O espaço da rotina
do trabalho se expandiu para todas as áreas da vida. Até mesmo o lazer se tornou
um meio de ludibriar o indivíduo, pois já que no mundo do trabalho ele não se
reconhece naquilo que faz, no mundo do lazer ele apenas almeja a mesma diversão/
entretenimento: TV, cinema ou internet.

AUTOATIVIDADE

Diante disso, torna-se interessante pensarmos na ideia proposta pela música


Caminho Pisado, da banda nacional Paralamas do Sucesso, que trata do
problema da alienação da pessoa no mundo do trabalho, mas que não se
circunscreve a ela.

O Caminho Pisado
(Os Paralamas do Sucesso)

115
UNIDADE 2 | PENSAMENTO SOCIOLÓGICO

Da cama p’ro banho, do banho p’rá sala. O sono persiste, o sol já não tarda.
A vida insiste em servir um velho ritual
Que sempre serve a tantos outros.
O mesmo pão comido aos poucos
Se senta e abre o jornal.
Tudo parece normal
Um dia a menos, um crime a mais.
No fundo, no fundo, no fundo tanto faz.
Já é hora de vestir o velho paletó surrado
e caminhar sobre o caminho pisado que
conduz rumo à batalha que inicia a cada dia
Conseguir um lugar p’rá sentar e  sonhar na lotação
E é tudo igual, igual, igual...
No fim dos dias úteis há os dias inúteis,
que não bastam pra lembrar ou  pra esquecer de quem se é.
O ar pesado nesse bairro pesado em
plena barra pesada
A mão pesada vem oferecer  e conta os trocados contando vantagem.
E toma uma bola, começa a viagem  e enquanto não chegar a velha hora
Que inicia cada dia
Em várias partes da cidade, por
Lazer ou rebeldia
A mão pesada se abrirá
Oferecendo a garantia barata de
Que tudo vai mudar.

FONTE: PARALAMAS DO SUCESSO. O CAMINHO PISADO. IN: CD 9 LUAS, EMI, 1996 (1 CD


(CA. 37’51”). FAIXA 6 (3’27”).

Diante da ideia central da letra da música, responda:

a) Relacione a ideia de rotina ligada ao mundo do trabalho com a primeira


estrofe da música.
__________________________________________________________________
__________________________________________________________________
__________________________________________________________________

b) O final de semana apresentado na letra da música aparece como algo bom


ou ruim? Justifique sua resposta.
__________________________________________________________________
__________________________________________________________________
__________________________________________________________________

c) Diante da monotonia do dia a dia, as pessoas tentam esquecer os problemas


que enfrentam. Qual a maneira apresentada pela letra da música para
‘anestesiar’ esta monotonia? O que você pensa a respeito disso?
__________________________________________________________________
__________________________________________________________________
__________________________________________________________________
116
TÓPICO 1 | DEFINIÇÕES E HISTÓRIA DA SOCIOLOGIA

8 A SOCIOLOGIA NA PÓS-MODERNIDADE
Caro(a) acadêmico(a), eis o problema mais intrigante da sociologia atual:
definir com exatidão o que é moderno ou pós-moderno. Sendo assim, para que
você não fique perdido no alto-mar do conhecimento sociológico, gostaríamos
de sucintamente definir este conceito da sociologia, a saber: o que é pós-
modernidade?

Segundo Jean-François Lyotard, o fim da história começa com o início de


um tempo novo, onde os grandes heróis ou grandes fins já não existem mais. A
pós-modernidade tem por fim último afirmar que tudo aquilo que ambicionava
ser universal já não tem mais a mesma importância. Segundo ele, vivemos em
uma "nebulosa de elementos, um processo de fragmentação, regionalização (dos
saberes e dos fins). [Vivemos uma nova] afirmação do plural e do multíplice; o
desaparecimento do pensamento único e da perspectiva teleológica nas reflexões
sobre a história humana”. (apud PECORARO, 2009, p. 52-53).

Enfim, é o desfecho do projeto kantiano e o sepultamento de uma visão


positivista absoluta.

Outro pensador importante da sociologia e da história, Francis Fukuyama,


define que "a queda do muro de Berlim e a dissolução dos regimes comunistas nos
países do Leste Europeu demonstram que não é mais possível pensar em outras
instituições que não sejam as da sociedade atual, liberal-democrática, industrial e
capitalista". (apud PECORARO, 2009, p. 54-55).

Contudo, Fukuyama aponta estas três características como aspectos


fundamentais do modelo estadunidense de sociedade. Modelo este que será
repetido e imitado no mundo. Contudo, todos nós já sabemos que este padrão não
é mais o mesmo. Após o 11/09 e a crise econômica pós-guerra terrorista (2008), os
EUA já não são mais um país tão forte como o era antigamente nas décadas de 70,
80 e 90 do século XX. O american dream (sonho americano) não é o mesmo, o que,
aliás, corrobora com a ideia de Lyotard, pois o arquétipo americano não serve
mais como referencial de sucesso para todas as nações do mundo.

Outrossim, vivenciamos atualmente um certo deslocamento do centro


econômico mundial, que até bem pouco tempo atrás estava fixado no Hemisfério
Norte do planeta. A sigla BRICA tem muito a dizer sobre isso: Brasil, Rússia,
Índia, China e África do Sul são considerados os países mais emergentes do
ponto de vista econômico no mundo atual. Com isso queremos demonstrar que
não existe mais um universalismo que deve ser copiado e colado, mas que, de
fato, há uma descentralização do poder econômico, ou, nas palavras de Lyotard,
há uma fragmentação, uma ruptura com os padrões universais, que agora são
mais locais e regionais.

117
UNIDADE 2 | PENSAMENTO SOCIOLÓGICO

A Sociologia atualmente se preocupa muito mais, por exemplo, com


situações do cotidiano, com hermenêuticas culturais, com comportamentos e
papéis sociais que assumimos em nosso mundo, do que com modos globalizantes
de entendimento da sociedade. A antropologia cada vez mais vem ganhando
espaço no mundo acadêmico e empresarial. A ideia da observação participante é
tão difundida que até mesmo um reality-show foi criado nos EUA e na Inglaterra
para exemplificar a ideia: Undercover Boss.

O programa apresenta o seguinte conceito: os chefes das grandes


corporações devem abandonar os escritórios e suas escrivaninhas para trabalhar,
de modo camuflado, no meio de seus funcionários. Ao fazerem isso, eles passam
a sentir e a vivenciar os problemas que cada trabalhador sofre ao desempenhar
as tarefas mais simples ou até mesmo as mais complexas dentro da empresa. Ele
precisa literalmente colocar a mão na massa e receber ordens de seus próprios
empregados. Esse abandono do escritório, por parte do chefe, para viver no meio
dos trabalhadores, inspira-se claramente na ideia da observação participante,
que é um dos métodos antropológicos de conhecimento da vida de outros
povos, vistos como não ocidentais. É a incorporação de métodos não puramente
científicos para assimilar e compreender o mundo contemporâneo, ou, em outras
palavras, nosso mundo pós-moderno.

Esta visão pode ser considerada pós-moderna, pois não existem mais
critérios exclusivos de entendimento do que seja a realidade. Seguir uma única
resposta é muito pouco. O universo cultural não pode se restringir (e este é o
aspecto mais interessante da pós-modernidade) a um anseio de categoria
universal, pois aquilo que é realmente universal (e esta é a grande verdade do
nosso tempo) é a multiplicidade, é a realidade vista em suas múltiplas facetas.
Aceitar a pluralidade e compreender que esta é a nova chave de leitura e de
interpretação do mundo é o caminho certo para entendermos o nosso tempo, tão
confuso, difuso e complexo.

DICAS

Sugestão: Seriado Undercover Boss.


Cartaz da série Undercover Boss.

Procure saber um pouco mais sobre o reality-show Undercover


Boss e a busca por uma visão mais holística do mundo do trabalho.

FONTE: Disponível em: <http://www.imdb.com/title/tt1442553/>.


Acesso em: 15 jan. 2013.

118
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico vimos:

• Uma abordagem sobre as principais revoluções sociais (Revolução Industrial


e Revolução Francesa) que ocasionaram o surgimento da Sociologia como
ciência.

• De que maneira, a Sociologia “aparece no mundo” e torna-se um método


de investigação e análise dos acontecimentos sociais e o papel decisivo do
Iluminismo neste processo de mudança de pensamento e ação.

• Vimos (brevemente) uma compreensão mais contemporânea da análise


sociológica das Escolas de Chicago e Frankfurt, consideradas as mais
importantes no entendimento das realidades sociais do nosso tempo.

• O papel atual da sociologia aplicada ao mundo dos negócios, pois atualmente


há uma série de “reality show” que é exibida nos EUA, que aborda, em seus
episódios, uma das técnicas da antropologia moderna (ramo de estudos da
Sociologia): a observação participante.

119
AUTOATIVIDADE

Qual é o autor que mais chamou a sua atenção: Fukuyama ou Lyotard?


Explique o que cada um tenta demonstrar em suas análises?

120
UNIDADE 2 TÓPICO 2

IMPORTANTES SOCIÓLOGOS E
ALGUMAS CARACTERÍSTICAS DO SEU
PENSAMENTO
1 INTRODUÇÃO
Caro(a) acadêmico(a), no primeiro tópico desta unidade o nosso principal
propósito foi o de abordar do modo mais amplo possível as principais teorias
sociológicas do século XVIII ao século XX. Aliás, é importante relembrar que
o pensamento sociológico surge no mundo especificamente após as grandes
revoluções mundiais (Industrial e Francesa). Tais revoluções modificaram tão
fortemente a vida das pessoas na Terra que foi necessário o surgimento de uma
nova ciência para compreender e interpretar este novo modus vivendi (modo de
vida), marcado pelo capitalismo, pela máquina e pelos ideais utópicos de liberdade,
fraternidade e igualdade.

Para tal intento, muitos estudiosos assumiram o papel de analisar a


sociedade. Por este viés queremos estudar, neste segundo tópico, os principais
pensadores da Sociologia, denominados atualmente como os Clássicos da
Sociologia, além de outros pensadores mais contemporâneos, como Norbert
Elias, Pierre Bourdieu, Anthony Giddens, Michel Foucault e Zygmunt Bauman.
Contudo, os mais importantes pensadores da Sociologia, após Augusto Comte,
foram Max Weber, Émile Durkheim e Karl Marx. Cada um destes pensadores
possui um modo específico de responder às inquietações que eclodiram no
ambiente social dos séculos XIX e XX, principalmente. Os modos de análise de
cada um deles não são uníssonos, não são nem mesmo semelhantes, pois a base
de leitura não é a mesma.

Sendo assim, no nosso ponto de vista, o sociólogo mais próximo do


primeiro pensador da Sociologia (Augusto Comte) é Émile Durkheim. Seu
olhar sobre a realidade aproxima-se muito do ideal utópico de um mundo
extraordinariamente coeso e harmônico, no qual cada um assume seu papel e,
enquanto tal, deve fazer de tudo para se encaixar em um todo completo e perfeito,
como peça indispensável do grande quebra-cabeça do mundo social.

Donde surge o conceito de solidariedade orgânica, por exemplo, como


veremos logo mais adiante. Por outro lado, o pensador da classe operária, da luta
de classes e do materialismo dialético se apresenta como o mais incisivo teórico
da sociedade. Karl Marx, em 2005, foi considerado o maior filósofo de todos
os tempos, por ter criticado veementemente o sistema capitalista e o seu modo
usurpador e explorador de produção.

121
UNIDADE 2 | PENSAMENTO SOCIOLÓGICO

Por fim, Max Weber é considerado o sociólogo mais compreensivo dos três,
pois ao tentar analisar, por exemplo, o sucesso econômico dos EUA, Weber justifica
que tal sucesso é fruto de uma ética oblativa, de uma ética severa com relação ao
trabalho, algo que só seria possível graças à imigração de protestantes e puritanos
que alicerçaram a construção da grande nação americana na vida religiosa e no
famoso princípio do no pain, no gain (sem dor, sem ganho).

Caro(a) acadêmico(a), o nosso convite está feito. Venha junto conosco


conhecer o vasto e, muitas vezes, contraditório mundo dos pensadores da
Sociologia. Neste caso, o velho ditado de que cada cabeça tem uma sentença
nos serve muito bem como guia de interpretação das teorias sociológicas destes
pensadores modernos e contemporâneos.

2 KARL MARX
Prezado(a) acadêmico(a), gostaríamos, de antemão, de iniciar a
apresentação das teorias marxianas sobre a sociedade, fazendo uma breve
recapitulação. Como já vimos, Marx serviu de base para a Escola de Frankfurt.
Quando Adorno e Horkheimer, por exemplo, escrevem sobre o novo encantamento
da contemporaneidade (a mercadoria) em seu livro Dialética do Esclarecimento,
vê-se claro o pensamento de Karl Marx como suporte:

A indústria cultural não cessa de lograr seus consumidores quanto


àquilo que está continuamente a lhes prometer. A promissória sobre o
prazer emitido pelo enredo e pela encenação é prorrogada indefinidamente:
maldosamente, a promessa a que afinal se reduz o espetáculo significa que
jamais chegaremos à coisa mesma, que o convidado deve se contentar com a
leitura do cardápio. [...] Cada espetáculo da indústria cultural vem mais uma
vez aplicar e demonstrar de maneira inequívoca a renúncia permanente que a
civilização impõe às pessoas. Oferecer-lhes algo e ao mesmo tempo privá-las
disso é a mesma coisa. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 130-132).

Karl Marx, como foi possível verificar, é realmente o pensador mais


influente do século XX. Suas teorias podem ser condensadas nos seguintes pontos
principais, todas ligadas à economia e à filosofia política: os conceitos de mais-
valia, alienação, reificação (conceito já trabalhado na Escola de Frankfurt), luta de
classes e socialismo.

O conceito de mais-valia, por exemplo, explica o modo como o sistema


capitalista de produção expropria do trabalhador a sua força de trabalho para
transformá-la em manufatura. O processo de produção faz com que, durante a jornada
de trabalho (aqui não se inclui as horas-extras, pois mesmo neste caso há exploração),
o trabalhador, sem se dar conta, produz para além das metas de produção.

122
TÓPICO 2 | IMPORTANTES SOCIÓLOGOS E ALGUMAS CARACTERÍSTICAS DO SEU PENSAMENTO

O verdadeiro lucro do patrão não está no valor final do produto, mas


na intensificação do processo de produção, o que é denominado por Marx
como mais-valia relativa. O segredo do capitalismo não repousa na venda dos
produtos, no estoque ou relação final entre a compra de matéria-prima e a venda
de manufaturas. Isso seria, segundo Marx (1984), um ledo engano.

Vamos simplificar com o seguinte exemplo: um trabalhador, em média,


trabalha oito horas diárias em uma fábrica. Durante esta jornada ele precisa
produzir X objetos (sapatos, suponhamos aqui), mas, porventura, digamos que
ele, ao invés de levar oito horas para produzir tal meta, ele o faça em seis horas.
Nas duas horas de trabalho que lhe sobram, ele não está dispensado para ir para
casa assistir TV ou ler um bom livro. Ele deve permanecer na empresa. Ele deve
continuar a produzir. O segredo do lucro está aí. O mais valor ou a mais-valia
repousa sobre o excedente de produção que o trabalhador, que desconhece qual
é a verdadeira meta, deve realizar. Neste caso, o número X de objetos a serem
produzidos passa a se tornar X+1. (SELL, 2009).

Podemos compreender um pouco melhor tal teoria se utilizarmos o


seguinte esquema de compreensão.

QUADRO 1 – DEFINIÇÕES DAS SIGLAS DE MAIS-VALIA E DE TRABALHO

Mais-Valia Absoluta: toda a jornada de trabalho, envolvendo as oito


horas diárias, proporcionando ao trabalhador uma remuneração
MVA
mínima para que possa retornar no dia seguinte para produzir ainda
mais.

Mais-Valia Relativa: intensificação da produção, gerando mais mais-


MVR
valia e aumentando significativamente maior produção.
Trabalho Manual: o chamado "chão de fábrica": os trabalhadores
TM
braçais que executam as tarefas mais pesadas.

Trabalho Intelectual: os pensadores do trabalho. As pessoas


TI que atuam nos escritórios e que, numa denominação de Taylor,
representam os capatazes dos verdadeiros chefes das empresas.

Nesta fórmula paira todo o segredo do capitalismo contemporâneo.


A Mercadoria se transforma em Dinheiro, o que, por sua vez, gera a
M+D+M=D'
produção de mais Mercadorias, que resultam em mais Dinheiro (D').
E tudo isso acontece às expensas do trabalhador, que nada percebe.

Valor de Troca: a mercadoria só tem valor para o patrão por causa


da fórmula supracitada. O patrão não produz sapatos porque ama
VT e VU sapatos, mas porque sabe que eles se converterão em dinheiro.
Valor de Uso: todo consumidor, de modo geral, compra um sapato,
por exemplo, por causa do valor de uso e de consumo pessoal.

FONTE: Marx (1988)


123
UNIDADE 2 | PENSAMENTO SOCIOLÓGICO

DICAS

Sugestão de vídeo no YOUTUBE: “O Samba da Mais Valia”. Acesse o link indicado


a seguir: <http://www.youtube.com/watch?v=l5Il0h5scIY>.

Estas siglas, resumidamente, exemplificam o pensamento de Karl Marx


(1988) sobre o mundo do trabalho, mas isso não se encerra aqui. A última fórmula
apresentada demonstra um ponto muito importante para Marx. O trabalhador, no
trabalho capitalista, sempre está alienado. Mas o que é a alienação? Nas próprias
palavras de Marx temos a seguinte resposta: Isso ocorre quando o homem não
se reconhece mais naquilo que ele mesmo produz.

A maior alienação, do ponto de vista de Marx, ocorre porque o indivíduo


não se vê mais naquilo que ele mesmo ajudou a fazer. Existe, no mundo
contemporâneo, uma ausência de reconhecimento e de identificação entre o
indivíduo e os objetos. Há uma separação absurdamente profunda entre os dois
mundos. Aliás, vivemos em um mundo marcado pelos objetos e não pelo ser
humano, o que se revela como um profundo paradoxo.

De um lado, nada que há no mundo possui vida própria. Em todo objeto


há trabalho humano, há a presença de pessoas, mas ao vender sua força de
trabalho para um terceiro (o patrão, no caso), o indivíduo-trabalhador se sujeita
a receber um salário, uma remuneração e, com isso, este trabalhador aceita o fato
de que ele não é dono da máquina de produção, além do fato de aceitar que ele
jamais dominará todo o processo de produção.

FIGURA 35 – MAIS-VALIA E ALIENAÇÃO

124
TÓPICO 2 | IMPORTANTES SOCIÓLOGOS E ALGUMAS CARACTERÍSTICAS DO SEU PENSAMENTO

FONTE: Disponível em: <http://www.lamentavell.com.br/2010/11/mais-valia.html>. Acesso em:


15 jan. 2013.

Sendo assim, a pessoa se aliena ao submeter sua força de trabalho de oito


horas diárias a um salário infinitamente inferior ao verdadeiro valor de seu papel
social. Esta alienação é tão forte e tão subliminar que ela não se dá conta disso,
pois os AIEs (Aparelhos Ideológicos do Estado) a anestesiaram e a reduziram a
uma marionete nas mãos do capitalismo.

Ela incorporou a sua condição de alienada a tal ponto que ideologicamente


ela não encontra outra alternativa, a não ser trabalhar e obedecer às ordens que
lhe são impostas cotidianamente no ambiente industrial e social.

125
UNIDADE 2 | PENSAMENTO SOCIOLÓGICO

FIGURA 36 – O TRABALHADOR COMO MARIONETE DA BURGUESIA

FONTE: Disponível em: <http://historiaeculturandc.blogspot.com.br/2011/09/


ideologia-e-alienacao-em-karl-marx.html>. Acesso em: 15 jan. 2013.

Trocando em miúdos: a TV, a Escola, a Igreja e os meios de comunicação


em geral, isto é, os AIEs, transmitem sem cessar a ideia falsa de que o mundo
sempre foi assim, de que o sucesso só pode ser alcançado por pessoas belas e ricas
e que o trabalhador enquanto tal deve se contentar com as migalhas que lhe são
dadas.

Neste mesmo sentido é preciso compreender que o Estado, quando


apresenta as inúmeras propagandas televisivas sobre a construção de hospitais,
creches ou escolas, tenta induzir o espectador à falácia de que está atuando em
prol de todos os cidadãos brasileiros. Mas em nenhum momento fala-se sobre o
valor acumulado dos impostos ou sobre o verdadeiro destino que lhes é dado. O
que não passa de uma boa ideologia marqueteira.

Outrossim, surge a pergunta: mas o que é ideologia, afinal de contas?


Ideologia é uma maneira distorcida de mostrar ou esconder a realidade dos fatos.
Escamotear, camuflar, esconder são verbos que possuem o mesmo significado
e se aplicam bem ao contexto da noção de ideologia. (MARX, 1984). Ideologia
e alienação formam um par indissociável dentro do contexto capitalista de
economia. Dito isso, gostaríamos ainda de destacar alguns pontos essenciais do
pensamento de Karl Marx, que, não obstante, é muito vasto e complexo. Contudo,
ousamos fazê-lo, tendo em vista que o nosso maior intento é despertar em você,
estudante, o interesse pelo pensador e não induzi-lo à compreensão total do
mesmo, o que, no fundo, só pode ser possível em partes e após vários anos de
estudo.

Nesse sentido, cabe-nos aqui citar o próprio Marx para abordar o problema
da luta de classes:

A história de toda sociedade até aqui é a história de luta de classes. [Homem]


livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, burgueses de corporação e oficial,
em suma, opressores e oprimidos, estiveram em constante oposição uns aos outros,

126
TÓPICO 2 | IMPORTANTES SOCIÓLOGOS E ALGUMAS CARACTERÍSTICAS DO SEU PENSAMENTO

travaram uma luta ininterrupta, ora oculta, ora aberta, uma luta que de cada vez
acabou por uma reconfiguração revolucionária de toda a sociedade ou pelo declínio
comum das classes em luta. (MARX e ENGELS, 1997).

Por este viés, Marx afirma que é preciso superar toda esta divisão social
por meio da revolução do proletariado, dando fim aos três grandes pilares do
mundo capitalista: a propriedade privada, o Estado (que, para Marx, sempre
estaria do lado da burguesia, devido à clara defesa de interesses comuns) e a
própria luta de classes.

O verdadeiro socialismo seria uma fase de transição entre o capitalismo


selvagem e o comunismo humanitário. Não haveria mais exploração, coisificação
ou mais-valia, pois agora os trabalhadores do mundo todo, ao se unirem, tomariam
as rédeas da economia, emancipando-se da expropriação e da dominação da
classe burguesa. Com isso, as relações sociais se equalizariam. Seria o fim da
ganância pelo lucro, o fim das desigualdades sociais, o crepúsculo da luta de
classes e o ponto final de uma história onde patrões e empregados se colocavam
em lados opostos.

Seria o começo de um novo tempo, o que, infelizmente - a História mostra


-, não se concretizou. E por que não? Talvez porque o ser humano, como afirma
Thomas Hobbes, é, por natureza, ganancioso (o homem é o lobo do homem).
Isto é, o ser humano prioriza muito mais os seus interesses pessoais do que os
coletivos e, por esta via, muitos governantes ou representantes do povo lutaram
sempre por aquilo que é seu, esquecendo-se daquilo que pertence à coletividade
(basta ver a antiga URSS e seus regimes totalitaristas, mas isso é assunto para
outro caderno).

AUTOATIVIDADE

MÚSICA: (Homem Primata - Titãs).

Desde os primórdios
Até hoje em dia
O homem ainda faz
O que o macaco fazia
Eu não trabalhava
Eu não sabia
Que o homem criava
E também destruía...
Homem Primata
Capitalismo Selvagem
Oh! Oh! Oh!...(2x)
Eu aprendi
A vida é um jogo

127
UNIDADE 2 | PENSAMENTO SOCIOLÓGICO

Cada um por si
E Deus contra todos
Você vai morrer
E não vai pro céu
É bom aprender
A vida é cruel...
Homem Primata
Capitalismo Selvagem
Oh! Oh! Oh!...(2x)
Eu me perdi
Na selva de pedra
Eu me perdi
Eu me perdi...
“I’m a cave man
A young man
I fight with my hands
(With my hands)
I am a jungle man
A monkey man
Concrete jungle!
Concrete jungle!
Slave driver, the table is turn;
Catch a fire, so you can get burn.
Slave driver, the table is turn;
Catch a fire: so you can get burn”.

(TITÃS, Homem Primata. Faixa 18 (3’15”), in cd: TITÃS ACÚSTICO MTV -


Gravadora WEA, 1997)

FONTE: Disponível em: < http://homemprimata.titas.letrasdemusicas.com.br/>. Acesso em:


15 jan. 2012.

Diante da letra da música e do pensamento de Karl Marx, estabeleça quais


seriam os pontos de ligação mais marcantes entre os dois.
____________________________________________________________________
____________________________________________________________________
____________________________________________________________________
____________________________________________________________________

3 ÉMILE DURKHEIM
Émile Durkheim (2007) foi considerado o pensador mais ligado ao
fundador da Sociologia, Augusto Comte (como já fora dito na introdução deste
tópico). Émile Durkheim faz uma análise social partindo do pressuposto de que
todos nós devemos assumir os nossos postos de atividade, na intenção de manter
a sociedade coesa e harmônica. Dito de outro modo: se cada um de nós ficar e
assumir plenamente o seu quadrado, a sociedade sempre será perfeita.

128
TÓPICO 2 | IMPORTANTES SOCIÓLOGOS E ALGUMAS CARACTERÍSTICAS DO SEU PENSAMENTO

Entretanto, lembramos aqui que Durkheim é um visionário e, como tal,


acredita em uma sociedade ideal, na qual - pasme, caro(a) acadêmico(a) - todos
os cidadãos ficarão livres de aborrecimentos, se fizerem aquilo que lhes for
ordenado.

Sendo assim, para este pensador, a sociedade era formada por um conjunto
de forças morais, que foram se justapondo com o decorrer dos tempos. Estas
regras teriam uma força muito poderosa sobre a vida dos indivíduos, educando-
os e orientando-os em suas ações particulares. Não obstante, estas regras teriam a
finalidade, em última análise, de orientar a vida social.

O nome que Durkheim dá a este conjunto de regras recebe o nome de


fatos sociais. Esta expressão possui um significado muito pontual. Os fatos sociais
são, ao mesmo tempo, exteriores, coercitivos e gerais. Por esta perspectiva, todas
as pessoas devem se submeter a eles e isto acontece primeiramente por meio dos
processos educativos que recebemos no berço familiar e no ambiente público social.
São gerais, pois todos nós nos debelamos a eles. Não há nenhum cidadão que não
tenha sido contido por regras gerais de postura ou comportamento.

Estes processos são profundamente difundidos em todos os ambientes


nos quais estamos inseridos. São coercitivos, mas não são necessariamente
violentos. São formas de padronização de comportamentos e atitudes. São
formas de enquadramento, de amoldamento das ações humanas. Aqui vale a
pena ressaltar uma ideia de Durkheim: todos nós devemos nos libertar de toda
espécie de anomia. A anomia ou caos, segundo este pensador, ocorre quando não
temos mais regras.

O nomos (que quer dizer norma) nos direciona, nos orienta nas nossas
ações particulares, e estas ações pessoais nos levam a um fim coletivo: manter
o mundo social organizado e estruturado dentro de um método: a observância
dos fatos sociais. Assim, as organizações ou instituições sociais podem medir,
até mesmo cientificamente, o quanto a sociedade está no caminho certo ou não.
Por fim, para Durkheim, os fatos sociais são exteriores, isto é, tudo aquilo que
sabemos ou aprendemos nos veio de fora e, deste modo, a educação estabelece um
caráter impositivo e não consultivo sobre nossas vidas. O nomos (que a educação
familiar ou institucional teria o papel de ensinar) seria, então, o grande edifício
que o ser humano construiu contra as forças malignas do caos. Como ele mesmo
afirma neste trecho do livro Educação e Sociologia:

Mas, de fato, cada sociedade considerada em um momento determinado


do seu desenvolvimento tem um sistema de educação que se impõe
aos indivíduos como uma força irresistível. É inútil pensarmos que
podemos criar nossos filhos como queremos. Há costumes com os
quais temos que nos conformar; se os infringirmos, eles vingam-se nos
nossos filhos. Estes, uma vez adultos, não se encontrarão em condições
de viver no meio de seus contemporâneos, com os quais não estão em
harmonia. (DURKHEIM, 2007, p. 47)

129
UNIDADE 2 | PENSAMENTO SOCIOLÓGICO

DICAS

Sugestão de filme: Laranja Mecânica (A Clockwork Orange,


1971).

No futuro, o violento Alex (Malcolm McDowell), líder de uma


gangue de delinquentes que matam, roubam e estupram, cai
nas mãos da polícia. Preso, ele recebe a opção de participar
em um programa que pode reduzir o seu tempo na cadeia.
Alex vira cobaia de experimentos destinados a refrear os
impulsos destrutivos do ser humano, mas acaba se tornando
impotente para lidar com a violência que o cerca.

FONTE: Disponível em: <http://www.adorocinema.com/


filmes/filme-260/>. Acesso em: 15 jan. 2013.

Contudo, há em Durkheim uma ideia realmente interessante no que se


refere ao mundo do trabalho. Ele afirmava que no mundo medievo as pessoas
estavam destinadas a desenvolver sempre as mesmas atividades laborais. Não
existia nenhuma novidade no desempenho das profissões, pois, grosso modo,
havia quatro ou cinco profissões diferentes e todas elas estavam vinculadas ao
trabalho braçal e/ou de campo.

Ele denominou que nesta fase da História já havia uma solidariedade


entre os trabalhadores, mas era uma solidariedade mecânica. Entretanto, com o
advento da Revolução Industrial e da urbanização, o trabalho foi se dividindo e
subdividindo em vários postos de atividade laboral, ou seja, em várias profissões.
O desenvolvimento destas profissões fez aparecer um novo estilo de vida e de
interdependência profissional. Esta divisão profissional não seria, como Marx
aponta, algo negativo, porém, ao contrário, seria algo realmente profícuo e benéfico
para a sociedade, pois, para Durkheim, surgiria agora um novo tipo de coesão por
meio da solidariedade orgânica, onde todos os trabalhadores criariam entre si uma
unidade orgânica, o que nos faz lembrar claramente o pensamento de Comte sobre
a ideia de que a sociedade deve se organizar tendo por base a ordem e, como fim,
o progresso. Aqui, aparece o conceito organicista/funcionalista de sociedade. Para
Durkheim, a sociedade deveria funcionar assim como um corpo humano. Cada
parte só faz sentido dentro do contexto do todo. Um órgão só pode funcionar dentro
do conjunto do corpo, mas fora dele o órgão não tem utilidade. (DURKHEIM, 1973).

É neste sentido que o papel da escola terá uma importância ímpar no


pensamento de Durkheim. As crianças recebem, por meio do sistema educacional,
uma compreensão de que não há outro caminho para o sucesso pessoal e social
que não passe pelo banco escolar. A escola deve socializar determinados princípios
que extrapolem o caráter conteudista das disciplinas como Matemática, Língua
Portuguesa etc. Seu papel é o de incutir nas crianças o respeito pelas autoridades
130
TÓPICO 2 | IMPORTANTES SOCIÓLOGOS E ALGUMAS CARACTERÍSTICAS DO SEU PENSAMENTO

nacionais, pelo civismo, pela religião e pelos valores morais. A intencionalidade


durkheimiana é criar nas pessoas uma certa mansidão diante do sistema social.

Dito de outro modo, seu propósito era o de criar em cada cidadão uma
certa aceitação da vida como ela é, a fim de evitar conflitos e represálias entre os
vários segmentos sociais. Vejamos um exemplo concreto: a educação teria como
escopo introjetar nas crianças o bom comportamento. Este comportamento faria
com que a delinquência e a marginalidade fossem freadas ou reduzidas. O que,
no fundo, é bem mais complexo do que isso.

Durkheim não pondera em sua análise sociológica que a escola é reflexo do


seu entorno social e que ela, por si só, não pode dar conta do recado. Os conflitos
sociais não podem ser redimidos somente pela educação, mas pela mudança de
pensamento e de atitude de toda a sociedade, pois, para que haja uma real redução
da criminalidade é preciso reduzir as desigualdades sociais e aumentar ou, ao menos,
equiparar as oportunidades de sucesso na vida.

DICAS

Sugestão de filme: O PREÇO DO AMANHÃ (In Time, 2011)

O tempo se tornou a maior moeda de todas. Os cientistas


conseguiram descobrir uma forma de destruir o gene do
envelhecimento. Então, quando uma pessoa chega aos 25
anos, para de envelhecer, mas possui apenas mais um ano
de vida, a não ser que tenha dinheiro para pagar pelo tempo
extra. Na busca por poder e tempo de vida, um homem
(Timberlake) é acusado injustamente de homicídio e se vê
obrigado a sequestrar uma bela jovem (Amanda Seyfried)
para conseguir ganhar mais tempo e provar sua inocência.

FONTE: Disponível em: <http://www.cineclick.com.br/filmes/


ficha/nomefilme/o-preco-do-amanha/id/17711>. Acesso em:
15 jan. 2013.

Em suma, o pensamento de Durkheim pode ser comparado, em nosso


ponto de vista, como a um conto de fadas, pois sua perspectiva parte do princípio
de que todas as pessoas são boas por natureza e por esta razão deveriam lutar por
um mundo social melhor (o que já fora dito no final do ponto sobre Marx). Aliás,
é curioso verificar que tanto Marx quanto Durkheim iniciam suas abordagens
sociais falando sobre problemas similares e concluem suas análises chegando
ao mesmo denominador: a sociedade só pode mudar ou se aperfeiçoar se todas
as pessoas lutarem pelos mesmos ideais. A utopia de Marx e de Durkheim é a
mesma, mas os caminhos trilhados pelos autores são bem antagônicos.

131
UNIDADE 2 | PENSAMENTO SOCIOLÓGICO

Para justificar esta ideia fairy tale (conto de fadas) do pensamento de


Durkheim, concluímos com um trecho publicado no artigo Émile Durkheim e
Gabriel Tarde, aspectos teóricos de um debate histórico (1893-1904), de Márcia
Consolim, no qual Tarde assim classifica seu opositor:

“O Sr. Durkheim, um hesitante excessivo, pensador circunspecto,


aplicado, tenaz, penetrante não por brechas nem balanços bruscos, mas pela
união amorosa e sucessiva com seu objeto, com facilidade imagina externamente
o desenvolvimento fecundo e pacífico que sente em si mesmo”. (TARDE, 1893,
apud CONSOLIM, 2010, p. 45). (grifos nossos).

Ou ainda, numa versão mais irônica, dois anos depois:

“O Sr. Durkheim, sonhador tenaz e tranquilamente excessivo, lógico


imperturbável, mais profundo do que justo, capcioso ao ponto de abusar e
de demonstrar que suas construções a priori são verdades de observação, com
facilidade imagina externamente a continuidade de desenvolvimento lógico e de
desenvolvimento pacífico que ele sente em si mesmo”. (CONSOLIM, 2010, p. 45).
(grifos nossos).

AUTOATIVIDADE

1 Com base na leitura do texto sobre Durkheim, tente apontar quais seriam
as maiores falhas do pensamento de Émile Durkheim, no que tange ao
problema da educação e dos fatos sociais.
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________

4 MAX WEBER
Max Weber (1989) é considerado o pensador mais compreensivo da
Sociologia. Essa denominação é dada a ele justamente porque seu modo de
análise da realidade está mais ligado à noção de entendimento dos fatos do que
de intervenção sobre a realidade dos fatos, como pensava Karl Marx.

Weber, outrossim, afirmava que o sociólogo teria o papel de intérprete,


pois na ótica weberiana a sociologia é essencialmente hermenêutica, ou seja, ela
está em busca do significado e dos motivos últimos que os próprios indivíduos
atribuem às suas ações: é neste sentido que a sociologia é sempre compreensiva.

132
TÓPICO 2 | IMPORTANTES SOCIÓLOGOS E ALGUMAS CARACTERÍSTICAS DO SEU PENSAMENTO

Por este prisma, o pensamento de Weber se configura como um modo de


interpretação da realidade que, a priori, se debruça sobre o advento do capitalismo e
sua conexão com a ética religiosa, preponderantemente, a ética protestante nos EUA.

Weber, ao analisar o desenvolvimento capitalista nos EUA, descobriu uma


grande ligação entre o comportamento religioso e o surgimento do capitalismo
naquele país. Sendo assim, estudando de modo mais detalhado a vida dos
protestantes e seu vínculo fervoroso com o trabalho, pôde concluir que a força
motriz que impulsionava as pessoas ao trabalho não era meramente o afã pelo
lucro ou pelo poder econômico, mas sim um suporte religioso que doutrinava e
orientava as ações para o trabalho.

Partindo do princípio puritano de que quem não trabalha não come e de


que mente vazia é oficina do demônio, as pessoas eram levadas a uma conduta
rigidamente controlada de oblação e renúncia de si para o trabalho (que Foucault
mais tarde criticará). A base desta ética, portanto, era o estímulo ao trabalho,
controlado por uma disciplina ferrenha sobre o próprio corpo. Max Weber
denominou esta prática de protestantismo ascético (conjunto de atos de controle
austero e disciplinado do próprio corpo por meio do trabalho diário e metódico).
Esta prática seria, em suma, a melhor maneira de realizar a vontade de Deus na Terra.
O bom cristão seria uma pessoa devotada ao trabalho. O suor do seu rosto seria
um desejo de realizar plenamente a vontade de Deus no mundo. A prosperidade
americana e o american way of life não seriam resultado de métodos maquiavélicos
de conquista e expropriação da mão de obra barata, mas consequência do sucesso
empreendedor decorrente do trabalho. (WEBER, 1989).

FIGURA 37 – A PREGUIÇA É SINÔNIMO DE DESONRA, POIS, AO TÊ-LA, A


PESSOA NÃO REALIZA AQUILO QUE DEUS QUER

FONTE: Disponível em: <http://profissaoreporterdejesus.blogspot.com.


br/2010/08/ciencia-comprova-que-mente-vazia-e.html>. Acesso em: 15 jan.
2013.

133
UNIDADE 2 | PENSAMENTO SOCIOLÓGICO

Essa ideia, aliás, é consequência do pensamento filosófico de John


Locke, primeiro defensor do pensamento liberal: todos nós nascemos iguais e
livres. Quem possui mais, é porque trabalhou mais. Esta noção lockeana ainda
permanece. Porém, afirmar que uma pessoa é mais rica porque trabalhou mais
é pressupor que vivemos em um mundo sem exploração ou usurpação. Mas
deixemos este debate para outro momento, pois, como já vimos, Weber tenta
interpretar os fatos e não determinar direcionamentos de interpretação.

É neste contexto que podemos inserir outra ideia muito importante de


Weber, a saber, as formas de dominação. Segundo ele, existem três formas de
dominação: a carismática, a tradicional e a racional-legal.

Dentre elas, a mais importante é a racional-legal. A carismática, como o


próprio nome já diz, depende da força carismática do seu líder. Temos no Brasil
os exemplos clássicos de Getúlio Vargas e Lula. O poder tradicional se pauta nos
valores e princípios herdados pelas tradições sociais, religiosas e familiares.

O poder racional-legal, segundo Weber, é o poder da burocracia. Há


uma grande legitimação deste poder dentro das instituições democráticas,
pois, segundo ele, os governantes dentro dos regimes democráticos assumem
temporariamente as suas funções através de mandatos. Mas o burocrata que, via
de regra, é escolhido por concursos e processos seletivos, assume uma função
mais duradoura. Aqui não estamos nos referindo ao prefeito (Executivo) ou ao
vereador (Legislativo), mas ao funcionário que é selecionado e que deve assumir
funções ou cargos específicos de execução ou manutenção da máquina pública.

Em suma, para Weber:

A burocracia moderna funciona da seguinte forma específica: I - rege o


princípio de áreas de jurisdição fixas e oficiais ordenadas de acordo com
regulamentos, ou seja, por leis ou normas administrativas [...]. II - Os
princípios da hierarquia dos postos e dos níveis de autoridade significam
um sistema firmemente ordenado de mando e subordinação, no qual
há uma supervisão dos postos inferiores pelos superiores. Esse sistema
oferece aos governantes a possibilidade de recorrer de uma decisão de
uma autoridade inferior para sua autoridade superior, de uma forma
regulada com precisão. (WEBER apud GERTH; MILLS, 1982, p. 229-230).

Por este motivo, o papel do burocrata é importantíssimo, porque é ele que


tem a incumbência de zelar pelo funcionamento da res publica. Este papel tem
um poder superior se comparado aos outros, apesar de ser visto, a priori, como
meramente funcional.

Weber afirma que a burocracia, por mais incrível que isso possa parecer, tem
a tarefa de manter a ordem e a paz social, visto que (como já dissemos) os papéis
incorporados pelos burocratas são mais importantes do que o papel assumido pelo
chefe político. Segundo este pensador, não haveria, com isso, nenhuma aliança entre
burguesia e Estado, pois com o controle da burocracia nenhum tipo de conchavo
ou estratagema se sucederia entre os dois grupos.

134
TÓPICO 2 | IMPORTANTES SOCIÓLOGOS E ALGUMAS CARACTERÍSTICAS DO SEU PENSAMENTO

FIGURA 38 – O PROBLEMA DA BUROCRACIA NO BRASIL

FONTE: Disponível em: <http://atualiarte.blogspot.com.br/2012/05/burocracia-nas-


ultimas-decadas-no.html>. Acesso em: 15 jan. 2013.

Além da burocracia e da ética protestante, Max Weber analisou o


comportamento das pessoas dentro dos vários contextos sociais. Segundo ele,
existem quatro ações sociais que influenciam o nosso agir. Estas ações direcionam
o comportamento das pessoas e determinam qual é a visão de mundo que elas
possuem. Elas servem como modelos e sua principal finalidade é orientar a vida
social dos indivíduos:

1. Ação social racional com relação a fins: na qual a ação é estritamente racional.
Toma-se um fim e este é, então, racionalmente buscado. Há a escolha dos
melhores meios para se realizar um fim.

2. Ação social racional com relação a valores: na qual não é o fim que orienta a
ação, mas o valor, seja este ético, religioso, político ou estético.

3. Ação social afetiva: em que a conduta é movida por sentimentos, tais como
orgulho, vingança, loucura, paixão, inveja, medo.

4. Ação social tradicional: que tem como fonte motivadora os costumes ou


hábitos arraigados.
FONTE: Disponível em: <http://www.brasilescola.com/filosofia/a-definicao-acao-social-max-
weber.htm>. Acesso em: 15 jan. 2013.

Estas ações teriam como escopo a intenção de determinar o modus operandi


das pessoas, isto é, como as pessoas agem e porque agem. Estas ações não são
estanques ou fechadas em si mesmas, mas servem de orientação e direcionamento
dos comportamentos humanos. Um exemplo bem simples está ligado à ação social

135
UNIDADE 2 | PENSAMENTO SOCIOLÓGICO

afetiva: num determinado momento, a nossa ação pode ser de afeto/amor e, num
dado momento, pode ser de raiva/rancor. Este comportamento é consequência dos
sentimentos que todos nós, seres humanos, possuímos, mas que naturalmente em
si mesmos são contraditórios e confusos. Por outro lado, nossas atitudes, muitas
vezes, são resultado de inúmeros costumes, nós os repetimos e não nos damos conta
desta reprodução, de tão arraigada que ela é (ação social tradicional). Max Weber foi
um pensador que contribuiu imensamente para o aprofundamento do pensamento
sociológico, por abordar de modo mais compreensivo a realidade social. Dizer que
a vida social se circunscreve a um pensamento só é muita pretensão. Contudo, Max
Weber demonstrou que seu pensamento é fundamental para compreendermos de
modo “imparcial” a sociedade na qual vivemos, ao vermos que luta de classes e
mais-valia (Marx) ou anomia e organicidade (Durkheim) não são pressupostos
dados a priori e aceitos por todos unanimemente. (WEBER, 1982).

AUTOATIVIDADE

Leia com atenção a charge que segue:

Com base nas ideias de Max Weber, é possível afirmar que:

a) ( ) Os critérios de avaliação da realidade usados pelo pai são extremamente


burocráticos, pois o que mais importa é a lógica da linguagem presente no
jornal.
b) ( ) A análise sociológica dos fatos emitida pelo pai é muito imparcial e
plena de humanismo.
c) ( ) Ao ler o jornal, o pai faz uma avaliação totalmente desvinculada de
uma preocupação sociológica real, pois o que mais importa para ele é o
futebol e não a miséria alheia.
d) ( ) O futebol e a miséria são problemas semelhantes, pois dependem da
avaliação geral da sociedade sobre o papel de ambos, na vida pessoal de
todos os cidadãos.
e) ( ) Mafalda, ao afirmar que seu pai não se preocupa com as pessoas
carentes, está corroborando com a ideia de que todos deveriam fazer o
mesmo. Sua frase é isenta de deboche ou sarcasmo.

136
TÓPICO 2 | IMPORTANTES SOCIÓLOGOS E ALGUMAS CARACTERÍSTICAS DO SEU PENSAMENTO

DICAS

Sugestão de leitura: A ética protestante e o espírito do capitalismo,


de Max Weber.

O estudo analisa a gênese da cultura capitalista moderna e sua


relação com a religiosidade puritana adotada por igrejas e seitas
protestantes dos séculos XVI e XVII: a partir de observações
estatísticas, Weber constatou que os protestantes de sua época
eram, de um modo geral, mais bem-sucedidos nos negócios do
que os católicos. Os últimos ajustes ao estudo foram feitos no
ano da morte do autor, quando o texto passou a fazer parte dos
ensaios reunidos de sociologia da religião. (WEBER, 1989).

5 MICHEL FOUCAULT
O pensamento de Michel Foucault (2007) é visto como um dos mais
contundentes do século XX. Suas ideias foram revolucionárias para a segunda
metade do século XX, pois seu modo de entendimento da realidade não é em nada
compreensivo. Aliás, suas ideias até hoje são profundamente perturbadoras, por
tocarem em pontos indeléveis do nosso mainframe intelectual.

Sua análise filosófica e sociológica desmascara toda a estrutura social na qual


estamos vivendo até os nossos dias. Dos pontos de análise de Foucault, os que mais
inquietam são os que se referem à questão da sexualidade e do controle social. Os
estudos de Foucault sobre a loucura e a clínica são igualmente muito interessantes;
contudo, para delinear um horizonte de compreensão do pensamento de Foucault,
consideramos que os temas sobre sexualidade e controle social são suficientemente
interessantes para nossos estudos filosófico-sociológicos.

Ao pensar na ideia de controle social, Foucault tentou demarcar os espaços


de poder e de exercício de poder. Neste caso, a disciplina assume um novo valor: o
valor de manipular, educar e docilizar os corpos dos indivíduos, isto é, as pessoas,
por meio de um processo complexo e ramificado de controle, se adequam a uma
disciplina que tem como finalidade principal a preparação para a vida social ou
o direcionamento para o trabalho. Nos espaços coletivos vemos uma complexa
vigilância das atitudes, das ações e dos comportamentos. Cabe agora a cada um a
função de vigiar e punir aqueles que não se encaixam nesse processo de controle.

Essa vigilância, afirma Foucault, ocorre de modo microfísico, pois ela


acontece em todas as relações sociais, ou seja, na relação pai-filho, médico-

137
UNIDADE 2 | PENSAMENTO SOCIOLÓGICO

paciente, criminoso-juiz, professor-aluno. Estas relações são a base do controle


que, mais tarde, se estenderá ao mundo do trabalho. Essa vigilância não é de
todo ruim, todavia o maior problema é o excesso do controle, pois ele gera uma
alienação e uma sujeição das pessoas a um sistema marcadamente ostensivo,
mas que não é em si autoritário, pois ele age de modo velado e não arbitrário.
Um exemplo: ninguém o forçará a fazer algo que você não queira, mas você
será levado paulatinamente (por ordens subliminares ou por uma educação
repressora) a fazer as tarefas que lhe foram, ao fim e ao cabo, impostas.

Este exercício assumirá um papel mais demarcado com a criação dos


códigos penais nos países ditos desenvolvidos. O sistema penitenciário adotará
um método curioso de monitoramento dos criminosos, denominado panóptico,
idealizado pelo filósofo Jeremy Bentham e utilizado pela primeira vez nos EUA,
em 1800. Para Bentham, o conceito do desenho da penitenciária permite a um
vigilante observar todos os prisioneiros sem que estes possam saber se estão ou
não sendo observados. De acordo com o design de Bentham, este seria um design
mais barato que o das prisões de sua época, já que requeria menos empregados.

O panóptico pode ser facilmente compreendido pela figura que segue.

FIGURA 39 – PENITENCIÁRIA CRIADA COM BASE NO PANÓPTICO

FONTE: Disponível em: <http://www.revistaon.com.br/materias/9834/a_


sociedade_do_controle>. Acesso em: 15 jan. 2013.

Diante disso, Foucault afirma sobre o panóptico:

O princípio é conhecido: na periferia uma construção em anel, no centro,


uma torre, esta é vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna
do anel; a construção periférica é dividida em celas, cada uma atravessando
toda a espessura da construção; elas têm duas janelas, uma para o interior,

138
TÓPICO 2 | IMPORTANTES SOCIÓLOGOS E ALGUMAS CARACTERÍSTICAS DO SEU PENSAMENTO

correspondendo às janelas da torre; outra, que dá para o exterior, permite que a


luz atravesse a cela de lado a lado. Basta então colocar um vigia na torre central,
e em cada cela trancar um louco, um doente, um condenado, um operário ou
um escolar [...] Em suma, o princípio da masmorra é invertido, ou antes, de suas
três funções - trancar, privar de luz e esconder - só se conserva a primeira [...] É
visto, mas não vê; objeto de uma informação, nunca sujeito numa comunicação
[...] Daí o efeito mais importante do panóptico: induzir no detento um estado
consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento
automático do poder. Fazer com que a vigilância seja permanente em seus
efeitos, mesmo que descontínua em sua ação; que a perfeição do poder tenda a
tornar inútil a atualidade de seu exercício; que esse aparelho arquitetural seja
uma máquina de criar e sustentar uma relação de poder independente daquele
que o exerce; enfim, que os detentos se encontrem presos numa situação de
poder que eles mesmos são os portadores (FOUCAULT, 2007, p. 165-166).

A experiência do controle invisível do panóptico, mais tarde, será utilizada


em todos os ambientes coletivos. Este controle nasce dentro das penitenciárias,
dos hospitais e das escolas, mas logo será a base de controle dentro das fábricas
e indústrias no período da Revolução Industrial. O esquadrinhamento e o
controle de produção são exemplos fáceis de serem compreendidos dentro desta
perspectiva. O taylorismo e o fordismo do início do século XX são formas simples
de entender a aplicação do ver sem ser visto do panóptico. Essa vigilância pode
ser entendida, atualmente, se colocarmos no lugar do vigilante principal os
meios de comunicação, que controlam de modo muito melindroso as ações dos
indivíduos, sem que os mesmos se deem conta disso. É uma contemporanização
do Mito da Caverna de Platão.

DICAS

Sugestão de filme: O Show de Truman.

Neste filme, Turman é um homem que vive uma farsa. O lugar


em que ele vive é, de fato, um grande estúdio com câmeras
escondidas por toda parte e todos os seus amigos e pessoas à
sua volta são atores que interpretam seus papéis no programa
de TV mais popular do mundo: O Show de Truman. Truman
pensa que é uma pessoa comum com uma vida comum, mas
ele não faz ideia sobre o quanto a sua vida é explorada. Até que
um dia... Ele descobre tudo. Mas, qual será sua reação?

FONTE: Disponível em: <http://www.imdb.com/title/tt0120382/


>. Acesso em: 15 jan. 2013.

139
UNIDADE 2 | PENSAMENTO SOCIOLÓGICO

Foucault, além de estudar os problemas do controle social (além de


tantos outros assuntos), também se dedicou a estudar os problemas ligados à
sexualidade em nosso mundo contemporâneo. De um modo geral, acreditamos
que o não dizer sobre o sexo é uma forma de repressão ou de controle. Foucault
desmistifica esta ideia ao afirmar que, no fundo, o não dito é mais prolixo do que
o dito. Mas o que isso quer dizer?

De um modo geral, a educação repressora desperta em toda pessoa uma


curiosidade, um interesse ou um desejo. Este desejo é iniciado quando nós, seres
humanos, somos reprimidos ou negados em nossa vontade de saber sobre o sexo.
Mas a repressão tem um duplo papel: determinar o que é certo ou errado nas práticas
sexuais, mas também tem a função de modelar ou determinar o que a própria
sexualidade é. Ao ensinar uma criança sobre aquilo que é lícito ou não sobre o sexo, os
pais codificam uma gama de informações que a criança deve assimilar como verdade.
Esta verdade, por sua vez, tem validade como código. Contudo, este código é restrito
e não condiz com aquilo que é real na sexualidade. Exemplo: quando os pais afirmam
que os bebês vêm da cegonha, a criança deve aceitar tal afirmação como verdadeira,
mas esta regra será questionada, indagada e investigada pela criança com o decorrer
de seu desenvolvimento mental e intelectual.

FIGURA 40 – DE ONDE OS BEBÊS VÊM?

FONTE: Disponível em: <http://blogdoconsa.blogspot.com.br/2012/08/cegonha-


da-era-digital-humor.html>. Acesso em: 15 jan. 2013.

140
TÓPICO 2 | IMPORTANTES SOCIÓLOGOS E ALGUMAS CARACTERÍSTICAS DO SEU PENSAMENTO

FIGURA 41 – DE ONDE OS BEBÊS VÊM?

FONTE: Disponível em: <http://reengenhando.blogspot.com.br/2011/03/piada-de-segunda-na-


quarta-cegonha.html>. Acesso em: 15 jan. 2013.

Este processo investigativo da criança em desenvolvimento é visto por


Foucault como um desejo de querer saber. Por isso, a força do discurso, da
palavra, da locução é sempre muito poderosa, pois engendra um controle, seja
político, educacional ou interpessoal. Por isso, para Foucault, o poder do discurso
é tão forte quanto o da ação. Mas é importantíssimo lembrar, caro estudante, que,
para este pensador francês, o conceito do poder não se restringe a um grupo ou a
uma pessoa especificamente. Ele perpassa todos nós. Como vimos anteriormente,
o poder é microfísico, é melindroso, é astuto. Ele acontece nas nossas relações
sociais mais básicas: entre pais e filhos, professores e alunos, entre patrões
e empregados. Esse poder não se fecha nele mesmo, mas está em constante
circulação e manifestação. No caso específico da sexualidade, Foucault chama de
dispositivo da sexualidade todo o conjunto de diálogos, práticas e silêncios que
envolvem a questão do sexo. Este conjunto é o método de controle que domestica
e disciplina as pessoas para aquilo que pode ser considerado socialmente aceito
como prática sexual. (FOUCAULT, 2006).

Foucault, ao tratar deste assunto, por vezes polêmico e complexo, inaugura


uma nova maneira de entendimento da sexualidade. Ela não é a fonte de pecados
ou abominações, mas é palco de interdições meticulosamente pensadas para
controlar a vida pessoal e social. Não nos cabe delongarmo-nos demasiadamente
aqui, mas é salutar a leitura das três obras da História da Sexualidade (Vol.1 -
A vontade de saber; Vol. 2 - O uso dos prazeres; Vol. 3 - O cuidado de si), nas
quais Foucault tenta demonstrar que a educação religiosa tolheu o verdadeiro
sentido do autoconhecimento que o sexo pode ofertar ao ser humano na busca de
uma vida mais estética e ética. Outrossim, apenas a título de ilustração, Foucault
resgata e aprofunda o estudo da vida sexual dos gregos ao analisar o papel vital
da sexualidade em suas vidas e de como a pastoral cristã baniu estas práticas ao
demonizar a sexualidade humana.

141
UNIDADE 2 | PENSAMENTO SOCIOLÓGICO

AUTOATIVIDADE

1 Explique o que significa panóptico. Dê exemplos de situações nas quais a


ideia de panóptico pode ser aplicada.

2 Foucault é visto como um pensador controverso e polêmico. Aponte a sua


opinião sobre a teoria de Foucault sobre a sexualidade.
__________________________________________________________________
__________________________________________________________________
__________________________________________________________________
__________________________________________________________________
__________________________________________________________________
__________________________________________________________________

6 NORBERT ELIAS, ERWING GOFFMAN, PIERRE BOURDIEU E


ZYGMUNT BAUMAN E OS PROCESSOS DE DEFINIÇÃO DO
“EU” NA SOCIEDADE
De acordo com Norbert Elias (1994), a maneira como cada um de nós age
no meio social é resultado da nossa socialização com o mundo que nos circunda,
ou seja, todas as nossas ações são resultado da influência que recebemos da
sociedade na qual estamos inseridos. Para ilustrar essa ideia, levemos em conta
que até mesmo a noção de ser menino ou menina (e os comportamentos próprios
de cada um) é resultado de um processo paulatino e contínuo de aprendizado.

Aliás, nós não nascemos como meninos ou meninas, mas nós nos
tornamos na medida em que assimilamos certas atitudes que serão aprovadas
ou reprovadas pelos demais. Um exemplo: um bebê-menino brasileiro não sabe,
ao nascer, que será motivo de chacota se usar uma camiseta cor-de-rosa, mas,
por um processo de aprendizado familiar, ele será ensinado a negar o uso de
qualquer objeto rosa e de recriminar o uso desta cor por qualquer pessoa do sexo
masculino. Na Coreia, provavelmente, não haverá tal recriminação. Isto mostra o
quanto a cultura exerce um papel preponderante no nosso modo de ver o mundo.

A ideia do eu, segundo Elias, é uma construção social. (ELIAS, 1994). Esse
processo é inconsciente, pois, de um modo geral, não nos perguntamos por que agimos
de um modo e não de outro. Entretanto, essa construção é dinâmica, pois é modulada
segundo o momento e o contexto histórico. Desta forma, quando afirmamos que
gostamos ou odiamos alguma coisa, é bem provável que nossa escolha tenha sido
fruto de uma influência externa (pais, atores, músicos, amigos, professores).

De um modo mais simplificado, podemos afirmar que nós somos aquilo


que a cultura quer que nós sejamos.

142
TÓPICO 2 | IMPORTANTES SOCIÓLOGOS E ALGUMAS CARACTERÍSTICAS DO SEU PENSAMENTO

Por este viés, Marilena Chauí (1995, p. 62), analisa:

[...] que não há a Cultura, mas culturas diferentes. [...] Cada cultura inventa
seu modo de relacionar-se com o tempo, de criar sua linguagem, de elaborar seus
mitos e suas crenças, de organizar o trabalho e as relações sociais, de criar as obras
de pensamento e de arte. Cada uma, em decorrência das condições históricas,
geográficas e políticas em que se forma, tem seu modo próprio de organizar o
poder e a autoridade, de produzir seus valores.

Dia 21 de maio é o Dia Mundial da Diversidade Cultural para o Diálogo e


o Desenvolvimento, para conscientizar a população sobre a riqueza das diversas
culturas do mundo, e aprofundar a reflexão sobre as oportunidades que a
diversidade cultural pode trazer às sociedades.

FIGURA 42 – MULTICULTURALISMO

FONTE: Disponível em: <http://pescadordebrilhante.blogspot.com.


br/2012/11/diversidade-cultural.html - adaptado>. Acesso em: 15 jan. 2012.

Contudo, é importante salientar que Elias (1994) reforça a ideia de que


nossas atitudes ou comportamentos não são características inatas ou inerentes, mas
aspectos assimilados pela experiência que adquirimos na convivência com pessoas
de nossa localidade, cidade ou país.

Neste sentido, Clyde Kluckhohn (1963, p. 30) relata um fato interessante


em seu livro de antropologia:

Há alguns anos, conheci em Nova York um jovem que não falava uma
palavra em inglês e estava evidentemente perplexo com os costumes
americanos. Pelo "sangue", era tão americano como qualquer outro, pois
seus pais eram de Indiana e tinham ido para a China como missionários.
Órfão desde a infância, fora criado por uma família chinesa, numa
aldeia perdida. Todos os que o conheceram acharam-no mais chinês do
que americano. O fato de ter olhos azuis e cabelos claros impressionava
menos que o andar chinês, os movimentos chineses dos braços e das
mãos, a expressão facial chinesa e os modos chineses de pensamento. A
herança biológica era americana, mas a formação cultural fora chinesa.

143
UNIDADE 2 | PENSAMENTO SOCIOLÓGICO

Com base nesse exemplo, é notório o alcance da educação cultural sobre


nossos gestos corporais. Goffman (2002), neste sentido, apresenta a ideia de que o
nosso corpo (gestos e expressões) é visto como um cartão de visitas. Ao adentrarmos
em qualquer ambiente coletivo, nosso corpo (modo de andar, de vestir, de falar)
é julgado pelos outros o tempo todo. De um modo geral, seremos aceitos ou não
pelos outros, segundo a apresentação de nosso corpo. Para exemplificar sua ideia,
Goffman apresenta a noção de persona como uma máscara que nós usamos para nos
apresentar no mundo social, que é emoldurado como um teatro. Ao afirmar que as
pessoas exercem um papel social, Goffman ressalta que somos atores sociais, que
assumem várias máscaras com o decorrer da nossa vida. Em cada ambiente, uma
determinada máscara. Esta arte da representação, segundo ele, é fundamental para
que possamos nos sentir inseridos nos espaços que ocupamos na sociedade, seja na
família, na escola ou no trabalho. Os papéis que avocamos são fundamentais para a
formação da nossa personalidade, pois é de suma importância que sejamos capazes
de controlar o que os outros pensam sobre nós. (GOFFMAN, 2002).

Neste ponto, Norbert Elias (1994) faz um apontamento curioso: a fofoca e


o mexerico que fazem sobre nós, em contrapartida, também possuem um poder
de coerção/controle muito forte, pois nós não queremos cair na boca do povo.
Ele denomina este processo de controle social informal, pois sabemos que não
seremos punidos na forma da lei, ao falarem sobre nós, mas que somos vigiados
o tempo todo pelos deslizes, gafes e erros que cometemos na convivência social.

Atualmente, o exemplo mais evidente é o das comunidades virtuais (Orkut


e Facebook, principalmente). Aquilo que é postado nestes sites (seja lá o que for,
da foto mais inocente à frase mais ridícula), sempre é julgado e avaliado pelos
outros e nem sempre esta avaliação é justa, pois as interpretações são parciais e
múltiplas, o que gera um certo desconforto por parte daquele que postou, gerando,
consequentemente, a fofoca. Segundo Elias, esse sistema possui uma certa eficácia,
pois controla as ações dos indivíduos a fim de que eles se mantenham na linha.

FIGURA 43 – OS PROBLEMAS QUE A FOFOCA PODE GERAR

FONTE: Disponível em: <http://veja.abril.com.br/080807/p_104.shtml>.


Acesso em: 15 jan. 2012.
144
TÓPICO 2 | IMPORTANTES SOCIÓLOGOS E ALGUMAS CARACTERÍSTICAS DO SEU PENSAMENTO

FIGURA 44 – OS PROBLEMAS QUE A FOFOCA PODE GERAR

OS HÁBITOS DE INTRIGA
ELES ELAS
33% contam fofocas 26% contam fofocas
diariamente todo dia

Os confidentes favoritos são Preferem fofocar com


os colegas de trabalho amigas e parentes

Na presença de mulheres, Em qualquer circunstância,


param de falar da vida alheia o assunto predileto são
e conversam sobre política e os relacionamentos
outros assuntos "elevados" amorosos

FONTE: Disponível em: <http://parapensarcertascoisas.blogspot.com.br/2010/10/fofoca.


html>. Acesso em: 15 jan. 2013.

Retomando Goffman (2002), podemos concluir que o papel que o corpo


assume nas relações interpessoais é muito intenso, haja vista que os atuais
estereótipos de beleza são consequência desta ostensiva vontade hodierna de
manter o corpo jovem e bonito. Atualmente, vivemos um fenômeno de rotulação
exacerbada do que pode ser considerado belo: só se pode ser belo plenamente
por meio de intervenções cirúrgicas. Em vista disso, inúmeras pessoas no Brasil
e no mundo colocam em risco suas vidas em nome da eterna juventude. Além
das cirurgias modificadoras, transtornos psiquiátricos como anorexia e bulimia
(principalmente em mulheres) são fatos corriqueiros na vida de quem almeja
conquistar a admiração e atenção dos outros.

Nesta linha de pensamento aparece Zygmunt Bauman (2004). Assim, ele


escreve: atualmente, as relações sociais e amorosas perderam sua solidez. Hoje
em dia, tudo é líquido. Talvez esta seja a grande novidade de Bauman sobre
a nossa contemporaneidade: a eterna insatisfação nas relações humanas e sua
respectiva fragilidade. O desejo de despertar o interesse do outro, a vontade
de mostrar-se atraente, de ficar com o outro por um breve momento, revelam
que as relações amorosas, após os anos de 1960/1980, tenderam a facilitar os
contatos feitos e desfeitos imediatamente, gerando uma gama de possibilidades
de parceiros e experimentos de prazer.

Essa forma de contato amoroso tem sido denominada pelos jovens como
ficar. Assim, em uma festa, pode-se ficar com vários parceiros ou durante um tempo
ir ficando em diferentes situações, sem que isso se configure em compromisso,
namoro ou outra modalidade institucional de relação. Os processos sociais que
provocaram as mudanças nas relações amorosas, bem como suas consequências
para o indivíduo e para a sociedade, têm sido problematizados por vários
cientistas sociais e, dentre eles, destacamos aqui Zygmunt Bauman.

FONTE: Disponível em: <www.cursoacesso.com.br/wp-content/.../SUPER2_SOCIOLOGIA.pdf>.


Acesso em: 26 jan. 2013.
145
UNIDADE 2 | PENSAMENTO SOCIOLÓGICO

FIGURA 45 – A FRAGILIDADE DO AMOR

FONTE: Disponível em: <http://mahlupinacci.tumblr.com/post/1094027719/


certascoisas-cuidado-com-os-amores-passageiros>.

FIGURA 46 – AMOR SEM COMPROMISSO

"I'm not scared of commitment: I'm commilled


to having at least 3 womem every week"

FONTE: Disponível em: <http://jacquelinerosa.wordpress.


com/2011/04/21/amores-liquidos-x-amores-solidos-i/>. Acesso em: 15 jan.
2013.

Tradução: Eu não me assusto com compromissos. Eu me comprometi em


ficar com três mulheres por semana.

Ele afirma em seu livro: Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços
humanos:

146
TÓPICO 2 | IMPORTANTES SOCIÓLOGOS E ALGUMAS CARACTERÍSTICAS DO SEU PENSAMENTO

Amar significa abrir-se ao destino, a mais sublime de todas as condições


humanas, em que o medo se funde ao regozijo num amálgama irreversível.
Abrir-se ao destino significa, em última instância, admitir a liberdade no
ser: aquela liberdade que se incorpora no Outro, o companheiro no amor.
"A satisfação no amor individual não pode ser atingida sem a humildade, a
coragem, a fé e a disciplina verdadeiras”, afirma Erich Fromm – apenas para
acrescentar adiante, com tristeza, que em “uma cultura na qual são raras
essas qualidades, atingir a capacidade de amar será sempre, necessariamente,
uma rara conquista”. E assim é numa cultura consumista como a nossa, que
favorece o produto pronto para uso imediato, o prazer passageiro, a satisfação
instantânea, resultados que não exijam esforços prolongados, receitas testadas,
garantias de seguro total e devolução do dinheiro. A promessa de aprender a
arte de amar é a oferta (falsa, enganosa, mas que se deseja ardentemente que
seja verdadeira) de construir a “experiência amorosa” à semelhança de outras
mercadorias, que fascinam e seduzem exibindo todas essas características e
prometem desejo sem ansiedade, esforço sem suor e resultados sem esforço.
(BAUMAN, 2004, p. 11-12).

Bauman, ao falar sobre a relação entre amor e mercadoria, resgata uma análise
frankfurtiana sobre as relações entre pessoas e objetos. Se, no início do século XX, a
Escola de Frankfurt abordava o problema da alienação e da reificação do ser humano
pela indústria cultural ou no mundo do trabalho, atualmente Bauman analisa os
problemas ligados à relação interpessoal e a visualização do outro como objeto. No
livro “Amor Líquido”, Bauman verifica o quanto as pessoas, por meio dos modernos
meios de comunicação, virtualizam tudo e todos. O fetiche da mercadoria é o outro,
que agora pode ser, com naturalidade, consumido e descartado.

As relações amorosas ou de amizade, no seu entender, não se pautam


mais em valores sólidos e verdadeiros. A fluidez, a liquidez é o novo horizonte
de ação, pois "aqueles que não precisam se agarrar aos bens por muito tempo, e
decerto não por tempo suficiente para permitir que o tédio se instale, são os bem-
sucedidos". (BAUMAN, 2004, p. 32). No caso, o termo bens também se aplica
às pessoas, pois, segundo ele, do mesmo modo que, passado um certo tempo,
o objeto perde seu encanto e se torna obsoleto e, por conseguinte, tedioso, as
relações interpessoais também se tornam tediosas.

DICAS

Sugestão de filme: Closer - Perto Demais

Anna (Julia Roberts) é uma fotógrafa bem-sucedida, que se divorciou recentemente. Ela
conhece e seduz Dan (Jude Law), um aspirante a romancista que ganha a vida escrevendo
obituários, mas se casa com Larry (Clive Owen). Dan mantém um caso secreto com Anna

147
UNIDADE 2 | PENSAMENTO SOCIOLÓGICO

mesmo após ela se casar e usa Alice (Natalie Portman), uma stripper, como musa inspiradora
para ganhar confiança e tentar conquistar o amor de Anna.

FONTE: Disponível em: <http://www.adorocinema.com/filmes/filme-51594/)>. Acesso em:


15 jan. 2013.

Além disso, o autor polonês afirma que nós estamos vivendo numa época
de transvaloração daquilo que parecia ser concreto e real. Estamos vivendo em
uma mutação entre real e virtual. Os princípios que pareciam óbvios já não
existem mais. A conversa direta foi substituída pelo celular. A realidade virtual
e a comunicação tecnológica são mais fortes e contundentes do que a conversa
“olho no olho”.

Ele cita Durkheim para explicitar sua ideia:

A proximidade virtual e a não virtual trocaram de lugar: agora a


variedade virtual é que se tornou a "realidade", segundo a descrição clássica de
Émile Durkheim: algo que fixa, que "institui fora de nós certas formas de agir
e certos julgamentos que não dependem de cada vontade particular tomada
isoladamente"; algo que "deve ser reconhecido pelo poder de coerção externa"
e pela "resistência oferecida a todo ato individual que tenda a transgredi-la".
(BAUMAN, 2004, p. 39).

148
TÓPICO 2 | IMPORTANTES SOCIÓLOGOS E ALGUMAS CARACTERÍSTICAS DO SEU PENSAMENTO

FIGURA 47 – A TECNODEPENDÊNCIA

FONTE: Disponível em: <http://www.mobilepedia.com.br/noticias/


mensagem-de-texto-e-a-principal-forma-de-comunicacao-entre-os-
adolescentes>. Acesso em: 15 jan. 2013.

Por fim, gostaríamos de apresentar o pensamento do sociólogo francês


Pierre Bourdieu (1992), que analisa as situações de estratificação social no mundo
contemporâneo. Segundo ele, o critério mais importante de avaliação da posição
social de um indivíduo não são as relações de produção ou o poder econômico
em si mesmo, porém são as relações culturais que devem orientar a posição do
indivíduo na pirâmide social.

O estilo de vida que cada grupo social assume determina o seu


posicionamento nessa escala. Mas o que isso quer dizer, caro(a) acadêmico(a)?
Isso significa, em breves palavras, que o padrão estético e os hábitos de consumo
são uma forma de marcar e diferenciar uma classe social da outra. O padrão
cultural determina, tal como uma insígnia, as idiossincrasias de um grupo social.
Este padrão revela as características do grupo social e, assim, faz com que as
pessoas que praticam ou possuem tais características se sintam pertencentes a ele.

Utilizando o exemplo de certas tecnologias, podemos afirmar que o uso


de determinados aparelhos eletrônicos pode revelar a formação de certos grupos
sociais: eu pertenço a um grupo seleto de pessoas que têm um Iphone, um
MacBook; ou que viajou para Bahamas, ou que tem um carro importado na
garagem. A posse do objeto pode representar a pertença ao grupo. A ideia de
pertencimento está muito mais ligada à noção de capital simbólico do que de
capital econômico.

Diante disso, alguém pode se perguntar: mas e se todos tivessem os


mesmos aparelhos e fizessem as mesmas viagens, não haveria mais nenhum
tipo de distinção entre as pessoas? Ao crer nessa ideia, poderíamos incorrer

149
UNIDADE 2 | PENSAMENTO SOCIOLÓGICO

em um ledo engano, pois segundo Bourdieu (1992), tão logo certos hábitos de
consumo, estilos de vida de uma classe, passem a ser incorporados por outra,
a primeira tratará de reinventar novos estilos que delimitem a extensão do seu
pertencimento. O que distingue um grupo do outro é a constante reinvenção e
criação de estilos. Aliás, em uma única palavra, para Bourdieu, o que define um
grupo é o seu estilo.

Outrossim, Bourdieu destaca que os jovens podem conquistar maior


sucesso na vida na medida em que lhes é oportunizada a possibilidade de
aumentarem a sua bagagem cultural.

Dito de outro modo, Bourdieu, baseado em estudos feitos nas escolas


francesas de ensino médio nas décadas de 1960 e 1970, concluiu que os alunos
com maiores probabilidades de sucesso na carreira acadêmica eram os oriundos
de famílias cujos membros possuíam um elevado nível de escolarização e grande
acesso a bens culturais. De um modo geral, ele finalizou que a performance de um
estudante não dependia exclusivamente de seu intelecto, mas da posse de capital
cultural (o termo pode se referir desde o conhecimento de escolas de arte até a
produção de títulos acadêmicos). (BOURDIEU; PASSERON, 1992).

FIGURA 48 – A EDUCAÇÃO EM SALA DE AULA

FONTE: Disponível em: <http://letrasdespidas.wordpress.com/2010/10/16/


meritocracia-ii-por-que-o-merito/>. Acesso em: 15 jan. 2013.

150
TÓPICO 2 | IMPORTANTES SOCIÓLOGOS E ALGUMAS CARACTERÍSTICAS DO SEU PENSAMENTO

Não obstante, Bourdieu, ao afirmar que boa parte dos estudantes que teria
sucesso na vida acadêmica era proveniente de famílias de intelectuais ou mais ricas,
denuncia a visão vigente de que pessoas nativas de famílias mais carentes são, via
de regra, fracassadas, pois o acesso aos bens culturais estaria restrito apenas às
pessoas das classes mais ricas, o que vetaria a ideia de que a escolarização seria um
caminho de ascensão social por meio do aprendizado e da instrução pessoal.

Em outras palavras: mesmo que um adolescente proveniente de uma


família carente conquistasse o direito de frequentar uma escola privada em nosso
país, tendo acesso a professores qualificados e a uma infraestrutura mais ampla
e aperfeiçoada, ele teria dificuldades no processo ensino/aprendizagem, por,
primeiramente, sentir-se excluído da vida extraescolar, e por não conviver no
mesmo mundo de seus colegas mais ricos, pois, segundo Bourdieu, não basta ter
acesso a uma escola de qualidade para garantir o sucesso escolar, é preciso ter
capital cultural e simbólico para isso.

Diante disso, podemos compreender porque, em nosso país, a inclusão


de cotas para pessoas portadoras de necessidades especiais, de negros ou de
estudantes de ensino público nas universidades federais causa tanto desconforto
entre as pessoas das classes mais abastadas. Isso sem contar com o fato de que o
conceito de mérito é algo conturbado, pois, como afirma Adriano Senkevics:

Sem o mérito, seríamos muito mais injustos, mas se nos limitarmos a ele,
em contrapartida, estaríamos mascarando todos os problemas enraizados fora da
escola [...] pois não podemos crer na visão salvacionista de que uma escola “justa”
seja capaz de solucionar as desigualdades sociais. Discutir igualdade, como
tenho falado, é antes de tudo reduzir tais disparidades, por meio de medidas
sistêmicas, estruturais, que vão muito além de uma escola. Essa apenas reflete
as desigualdades e, não sendo capaz de rompê-las, as reproduz. Dubet enfatiza:
“nenhuma escola consegue, sozinha, produzir uma sociedade justa”. Logo,
independente do modelo que escolhermos, bem como a noção de justiça escolar,
temos que ter em mente que o problema é muito maior, pois ele reside na própria
sociedade. (SENKEVICS, 2012).

Por fim, enquanto Bauman, Goffman e Elias se preocupam em demonstrar


os problemas da identidade da sociedade contemporânea e as agruras de estar-no-
mundo, Bourdieu tenta revelar que o indivíduo moderno é um sujeito marcado
pelo poder do capital simbólico da cultura, mas que, por outro lado, esta cultura
está ligada muito mais ao poder econômico do que se possa imaginar.

151
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico vimos que:

• Os pensadores mais influentes da Sociologia após Augusto Comte: Marx, Weber


e Durkheim. Os três são chamados de “clássicos da Sociologia”. Cada um deles
aborda os problemas da vida social de maneiras distintas. A visão de mundo
de cada um deles revela interpretações, diríamos até mesmo, antagônicas entre
si sobre o mundo que nos circunda.

• Para dar um exemplo, Marx é totalmente contrário ao capitalismo, enquanto


que, por outro lado, Durkheim não vê problemas no sistema econômico,
desde que todos estejam inseridos na “solidariedade orgânica”. Já Weber
tenta compreender e demonstrar com o capitalismo e o protestantismo são
indissociáveis.

• Vimos quais são os pensadores mais influentes do final do século XX e do início


deste século: Bauman e a liquidez dos relacionamentos, Foucault e a vontade
de poder, Goffman e as máscaras sociais, dentre outros.

• Conhecemos o papel sobremaneira preponderante da cultura na formação do


imaginário coletivo e individual.

152
AUTOATIVIDADE

1 Segundo Bauman (2004), vivemos em um mundo líquido, onde até mesmo


as relações interpessoais se tornaram fluidas. Com suas palavras, tente
demonstrar o que isso quer dizer.
__________________________________________________________________
__________________________________________________________________
__________________________________________________________________
__________________________________________________________________
__________________________________________________________________

2 O que significa, segundo Goffman, que vivemos assumindo máscaras no


mundo social? O que ele quis dizer ao afirmar que o mundo é um teatro?
__________________________________________________________________
__________________________________________________________________
__________________________________________________________________
__________________________________________________________________
__________________________________________________________________

153
154
UNIDADE 2 TÓPICO 3

TEMAS SOCIOLÓGICOS

1 INTRODUÇÃO
Foi um longo caminho até aqui, já não sou mais quem eu era antes: talvez
esta seja a grande ideia que nós gostaríamos que cada estudante, ao entrar em
contato com este material, pudesse experimentar. É impossível permanecermos
impassíveis diante dos temas que a Sociologia e seus pensadores se colocam
a questionar. A vida social é uma amálgama tão bem feita, que nos parece
indispensável pararmos nossas atividades rotineiras para pensarmos um pouco
sobre ela. Entretanto, para muitos de nós, exercitarmos o pensamento sobre a
vida social parece ser um exercício vazio e sem o menor sentido. Contudo, para
entendermos a nós próprios, julgamos necessário o estudo sociológico e filosófico
do mundo, pois aceitar as coisas como óbvias é algo inadmissível.

O mundo é o que é porque o ser humano deposita sentido em suas ações.


Ele nada faz sem direcionar um sentido, sem criar um “porquê fazer”. A vida é
resultado deste direcionamento preestabelecido. Deixarmos ao “Deus-dará” tudo
aquilo que acontece à nossa volta é puro fatalismo e é, por isso mesmo, uma grande
irresponsabilidade. Nós somos determinados pelos hábitos e costumes sociais,
como vimos no tópico anterior, porém, isso não quer dizer que sejamos incapazes
ou reféns das determinações ou das imposições que a sociedade nos força a aceitar.

Aliás, este é um dos pontos mais importantes da vida moderna (que,


aliás, já vimos neste material): sou livre para tomar decisões ou sou forçado
constantemente a assumir coisas que nem eu mesmo fui consultado a pensar?

Neste terceiro tópico queremos analisar, baseados em tudo aquilo que


lemos e vimos até aqui, qual é o papel hermenêutico do pensamento sociológico-
filosófico, na compreensão dos fatos sociais que nos atingem invariavelmente
todos os dias. O que a Sociologia pode fazer para nos ajudar a pensar? Ela pode
nos ajudar quando demonstra as múltiplas formas de controle social que ocorrem
sorrateiramente à nossa volta ou quando aborda os desafios dos movimentos
sociais em defesa da diversidade sexual ou étnica.

Além disso, a Sociologia analisa os acontecimentos históricos, tendo como


princípio a multiplicidade das opiniões, ideias e conceitos, sem se prender a uma
única resposta aceita ou válida. A visão multifacetada e variada da Sociologia pode
ser considerada como o ponto mais importante da sua própria razão de existir,
pois, ao analisarmos a sociedade, não podemos olvidar o papel hermenêutico
da Sociologia, a saber, o de tentar responder aos problemas e anseios de uma
humanidade sempre em transição.

155
UNIDADE 2 | PENSAMENTO SOCIOLÓGICO

Sendo assim, caro(a) acadêmico(a), vejamos o que podemos aprender


sobre estes temas da sociologia contemporânea.

2 PROCESSOS SOCIAIS
De um modo geral, podemos considerar que existem cinco processos sociais
básicos e que estes processos determinam a convivência entre os indivíduos. Estes
processos podem ser classificados em dois grupos: os processos sociais associativos
e os processos sociais dissociativos. Os processos associativos são denominados
assimilação, acomodação e cooperação, enquanto que os processos dissociativos são
denominados como competição e conflito.

Iniciemos falando sobre o processo associativo da cooperação. A ideia


de cooperação implica em uma ação comum que visa um fim social ou grupal.
Segundo alguns autores, como Pérsio de Oliveira (2010), há a cooperação direta e
a cooperação indireta. A indireta ocorre de modo corriqueiro nas nossas relações
sociais, pois, sem nos darmos conta, agimos cooperativamente, pelo simples fato
de que convivemos uns com os outros no espaço público das cidades. Durkheim
(2007) denomina este processo, como já vimos, de solidariedade orgânica. Há uma
complementaridade e uma colaboração indireta entre todas as profissões, mesmo
que não exista aparentemente uma conexão entre elas. Há uma rede invisível
que nos conecta. Exemplo: um médico e um gari não convivem diretamente, não
trabalham no mesmo local, mas se ambos não fizerem bem os seus papéis sociais
e as atribuições inerentes a eles, a cidade pode tornar-se um caos. A ausência da
cooperação indireta geraria uma grande desordem, pois sem ela o convívio social
seria insuportável. (OLIVEIRA, 2010a).

Por outro lado, a cooperação direta implica em uma ação entre pessoas
que possuem uma finalidade comum a ser executada em benefício de um grupo.
Um exemplo fácil de ser assimilado é quando determinadas pessoas de um
bairro da cidade se organizam para, em mutirão, construírem casas populares.
As pessoas agem pensando no benefício que estão proporcionando aos outros, na
garantia de que serão favorecidas quando necessitarem da ajuda do beneficiado.
Esta reciprocidade na ideia e na ação pode ser considerada como um exemplo de
cooperação direta.

Resumindo em poucas palavras: a cooperação indireta acontece de modo


inconsciente, na medida em que cada um executa o seu papel social dentro do
âmbito social; enquanto que a cooperação direta é consciente e está sempre ligada
a um fim específico.

156
TÓPICO 3 | TEMAS SOCIOLÓGICOS

FIGURA 49 – A VIDA COMUNITÁRIA

FONTE: Disponível em: <http://emefperola.blogspot.com.br/2012/02/mutirao.html>.


Acesso em: 15 jan. 2013.

Além da cooperação, há o processo social associativo denominado de


assimilação. Entretanto, este processo está vinculado, necessariamente, com
o processo de acomodação. Mas, como assim? É simples: quando uma pessoa
migra de um lugar para outro, ela sofre um certo choque cultural: um gaúcho,
por exemplo, ao sair do Rio Grande do Sul para morar no Rio Grande do
Norte, enfrentará uma série de mudanças, que vão desde o clima até os hábitos
alimentares.

No início, o processo de adaptação será muito duro e exigente para ele.


Sua postura diante deste mundo novo será de assimilação, ou seja, ele deverá
paulatinamente absorver os novos costumes, os novos hábitos, o novo modo de
viver, para que consiga se sentir inserido nesta nova realidade. Este exercício de
assimilação é, por vezes, muito difícil, principalmente se a pessoa for adulta, pois
na medida em que estabelecemos raízes e hábitos de um determinado local, o
processo de aprender, desaprender e reaprender torna-se mais doloroso.

Contudo, passado este processo de assimilação, a pessoa se acomodará,


pois já terá aprendido a conviver e a aceitar os hábitos da nova localidade. Os
imigrantes de outros países, principalmente os asiáticos, que estabelecem
residência no Brasil, enfrentam uma grande dificuldade de assimilação, pois o
modo e o estilo de vida deles é muito diferente do estilo brasileiro. O processo
de assimilação, em determinados casos, não ocorre, porque a pessoa continua,
apesar de estar geograficamente no Brasil, presa aos hábitos orientais.

157
UNIDADE 2 | PENSAMENTO SOCIOLÓGICO

Por outro lado, os processos sociais dissociativos são muito frequentes


na vida social. A competição é, de um modo geral, a disputa ou embate de certas
pessoas por um bem exclusivo ou limitado. Em outras palavras, competição é
uma disputa entre indivíduos, grupos ou sociedades por bens que não chegam
para todos (bens escassos). A competição pode levar indivíduos a agir uns contra
os outros em busca de uma situação melhor. Ela nasce dos mais variados desejos
humanos, como ocupar uma posição social mais elevada, ter maior importância
no grupo social, conquistar riqueza e poder, vencer um torneio esportivo, ser o
primeiro da classe, passar no vestibular, vencer um concurso. (OLIVEIRA, 2010a).

Entretanto, a competição pode atingir um elevado nível de tensão e


estresse entre os competidores, pois a insatisfação e a inconformação pela derrota
ou pela perda do bem almejado podem ocasionar o conflito, seja ele entre pessoas,
grupos ou nações. A escassez do bem ou a sua falta, justamente por ser limitado,
pode gerar inúmeros conflitos que, ao fim, desencadeiam as guerras e discórdias
no mundo social, religioso ou econômico. Em contraste com a competição, o
conflito consiste em uma luta por bens, valores ou recursos escassos, na qual o
objetivo dos contendores é neutralizar ou aniquilar seus oponentes. Dessa forma,
ao contrário da competição, o conflito envolve, em maior ou menor escala, o
emprego da violência. (OLIVEIRA, 2010a).

Além disso, é necessário que pensemos que a competição, via de regra,


no mundo social, não é justa. Pensemos, como vimos anteriormente no Tópico
2, que a competição do vestibular no Brasil ainda é desleal, pois é injusto
estabelecer um concurso democrático entre pessoas que não tiveram a mesma
preparação. Ou, por outro viés, no mundo do trabalho não há competição justa
entre patrões e empregados.

FIGURA 50 – EMBATE ENTRE PROFISSIONAIS

FONTE: Disponível em: <http://blog.kombo.com.br/empresa/2010/07/07/


como-mediar-um-conflito-dentro-da-empresa/>. Acesso em: 15 jan. 2012.

158
TÓPICO 3 | TEMAS SOCIOLÓGICOS

A competição é indispensável no mundo social, ela é benéfica e seleciona


os mais aptos, mas ela, em si mesma, não garante justiça ou honestidade na lisura
das relações sociais. Ela é um indicador de que a sociedade ainda utiliza-se do
critério meritocrático, entretanto, ela não assegura o bom funcionamento deste
critério. E que, por fim, definirmos o que é realmente meritocrático em nosso país
é uma luta de braço bem complicada.

AUTOATIVIDADE

1 Defina a principal diferença entre processos sociais associativos e processos


sociais dissociativos.
___________________________________________________________________
__________________________________________________________________
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________

2 Qual é a principal diferença entre competição e conflito?


___________________________________________________________________
__________________________________________________________________
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________

DICAS

Sugestão de filme: Invictus

Invictus acompanha o período em que Nelson Mandela


(Morgan Freeman) sai da prisão em 1990, torna-se presidente
em 1994 e os anos subsequentes. Na tentativa de diminuir a
segregação racial na África do Sul, o rugby é utilizado para
tentar amenizar o fosso entre negros e brancos, fomentado
por quase 40 anos. O jogador Francois Pienaar (Matt Damon)
é o capitão do time e será o principal parceiro de Mandela na
empreitada.

FONTE: Disponível em: <http://www.cineclick.com.br/filmes/


ficha/nomefilme/invictus/id/16334>. Acesso em: 15 jan. 2013.

159
UNIDADE 2 | PENSAMENTO SOCIOLÓGICO

2.1 STATUS E PAPEL SOCIAL


Caro(a) acadêmico(a), este assunto é tão simples que vamos circunscrever
este tema em apenas duas páginas. Vejamos:

Os conceitos de status e papel social, de um modo geral, são


complementares. Iniciemos, então, verificando qual é o conceito de status, para
depois compreendermos a ideia de status social.

Partindo desse pressuposto, podemos classificar a ideia de status de dois


modos. Primeiramente, pensemos na ideia de status atribuído. Este status é
inerente a todas as pessoas e às suas relações familiares ou sociais. Desse modo,
nós não nos esforçamos para tê-lo. Basta, por exemplo, pertencermos a um grupo
de pessoas com laços de consanguinidade, que naturalmente receberemos um
status. Neste caso, todas as pessoas do grupo terão um determinado status. Como
sujeito pertencente a uma família, eu posso ter o status de filho ou de pai. Em
outras palavras: o conceito de status significa posição ou posto, como indicação de
lugar dentro de uma coletividade já dada. Pensando assim, cada um de nós ocupa
um determinado status dependendo do lugar ou grupo no qual está inserido.
Não é algo intrínseco à nossa capacidade de decidir ou escolher, ou seja, isso não
acontece de modo voluntário, mas ocorre como algo inato em nós.

Por outro lado, temos o status adquirido, que, diferentemente do status


atribuído, depende exclusivamente das escolhas ou do empenho do sujeito que
o almeja. Por este prisma, o status adquirido é resultado das capacidades e das
habilidades do portador do status. No mundo competitivo no qual vivemos, o
status adquirido é muito mais evidente do que o atribuído, pois o desejo de galgar
postos mais altos nas empresas e no mundo social depende do interesse de cada
indivíduo em conquistar novos cargos ou atribuições, que, por sua vez, estão
atrelados ao ímpeto pessoal de adquirir sucesso e reconhecimento, ou seja, status.
(OLIVEIRA, 2010a)

Neste caso, a noção de status, como evidentemente pudemos ver, não é


algo estanque ou definitivamente fechado, visto que, de um modo geral, as pessoas
consideram apenas o conceito de status adquirido e se esquecem com frequência do
status atribuído. Durante muito tempo, atribuíram-se determinados rótulos a certos
grupos sociais, que os impediam de saírem de uma posição social. Este estereótipo
afirmava que era natural que as coisas fossem assim. Cada um no seu quadrado.
Atribuir, por exemplo, a um negro ou a um operário a incapacidade de administrar
um país era algo muito presente na visão de mundo de muitas pessoas. Contudo,
muitas mudanças ocorreram e fizeram uma verdadeira revolução no modo de
compreensão do mundo. Aceitar o status adquirido é defender a competência e
a sadia competição entre as pessoas no âmbito social e coletivo. É dizer não ao
nepotismo e ao apadrinhamento de pessoas.

160
TÓPICO 3 | TEMAS SOCIOLÓGICOS

Por outro viés, a ideia de papel social é algo que está ligado, como já
dissemos, à noção de status. Um professor, por exemplo, possui determinadas
funções em uma sala de aula, que são consequência do seu status de professor. De
modo bem simplificado, o professor está exercendo o seu papel. A ideia de papel
aqui representa a noção de comportamento. O professor deve ter uma postura,
um comportamento que seja compatível com este papel que ele adquiriu, pois,
via de regra, um professor não assume um cargo somente porque lhe foi atribuída
tal tarefa. Espera-se que um professor de Matemática tenha as competências e o
conhecimento necessário para exercer a função que lhe foi designada.

Deste modo, a ideia de papel está ligada à ideia de status adquirido


ou atribuído, pois as ideias de status e de papel social são inseparáveis e só os
distinguimos para fins de estudo, mas um depende necessariamente do outro.
Outrossim, uma pessoa pode assumir vários papéis sociais simultaneamente, pois
no ambiente familiar cada um de nós possui um status e, concomitantemente, um
papel social. No trabalho, a mesma coisa. No esporte, idem. E assim por diante.
Simples assim, caro(a) acadêmico(a).

AUTOATIVIDADE

1 Leia a charge e, em seguida, responda:

FONTE: Disponível em: <http://enigmasvalentim.blogspot.com.br/2011/11/mafalda-pequena-


notavel.html>. Acesso em: 15 jan. 2013.

a) Vemos no 1º e 2º quadrinho uma relação clara de status e atribuições.


Explique, com suas palavras, como isso se dá.
__________________________________________________________________
__________________________________________________________________
_________________________________________________________________

b) Analisando o último quadrinho, o que Mafalda quis dizer com


esta frase? Relacione a ideia de status com o pensamento de Marx:
__________________________________________________________________
__________________________________________________________________
__________________________________________________________________

161
UNIDADE 2 | PENSAMENTO SOCIOLÓGICO

2.2 ESTRUTURA E ORGANIZAÇÃO SOCIAL


Outro assunto bem fácil de ser compreendido, caro estudante. No dito
popular, é mel na chupeta. A ideia é simples e básica: se temos em mente o que
papel social e status significam e representam no conjunto das relações sociais,
entenderemos com facilidade os conceitos de estrutura e organização social.

Antes de tudo, é preciso recordar que status e papel social são coisas
inseparáveis e indissolúveis. Sendo assim, dentro do contexto social, cada um
de nós assume um papel, uma função. Cada função, quando bem executada e
bem assumida, faz com que o todo social funcione, de modo harmonioso e coeso
(como Durkheim afirmava). Se tudo funcionar como deve, podemos inferir que
há um conjunto ordenado e conexo que executa de modo concatenado todas as
ações da sociedade. A isso damos o nome de estrutura, ou seja, se todos nós,
dentro de uma fábrica, executamos com precisão e perfeição as nossas atividades,
é porque a estrutura está bem montada e bem definida. Não havendo falhas
ou incorreções, a estrutura funcionará como base para o sucesso produtivo da
fábrica. Mas é preciso lembrar mais uma vez a ideia principal: é necessário que
cada um esteja no seu devido quadrado, na sua devida função, para que a vida
social funcione bem. Como já afirmava Aristóteles, é preciso dividir os ofícios
para a convergência dos esforços.

Ou como afirmara São Paulo: "De fato, o corpo é um só, mas tem muitos
membros; e, no entanto, apesar de serem muitos, todos os membros do corpo
formam um só corpo" (1Cor 12. 12). O que nos leva a dizer que a estrutura tem
um papel tão totalizante quanto o corpo.

Por outro lado, diante da ideia de estrutura, nos vem a pergunta: E onde
entra a organização? Simplificadamente, podemos dizer que a organização
acontece na medida em que cada uma das pessoas ligadas à estrutura desempenha
o seu papel. A organização ocorre na medida em que as coisas acontecem e,
literalmente, funcionam. Como vimos no parágrafo anterior, na medida em que
o corpo representa o todo e é um só, as partes são múltiplas e desempenham,
por sua vez, múltiplas tarefas. Cada membro deve fazer acontecer o que é de sua
competência.

Daí, podemos afirmar que enquanto a estrutura é estática, a organização


é dinâmica, pois os papéis sociais estão em constante movimento. Aliás, é bom
lembrar que nossos papéis são múltiplos, são diferentes e se modificam o tempo
todo. Num mesmo dia podemos ser pais, professores, filhos e alunos. Em cada
ambiente (em cada estrutura) assumimos estes papéis ou personas, como afirmava
Goffman (2002, p. 11-20) isto é, a vida social é um constante teatro montado a céu
aberto. “Em cada lugar eu assumo uma personagem. Esta personagem, por não
ser única, precisa ser de fato dinâmica, pois não posso me comportar sempre do
mesmo modo em todos os lugares”. Simples, não é?

162
TÓPICO 3 | TEMAS SOCIOLÓGICOS

Além disso, lembre-se de que a vida social é mutante. No mundo atual


podemos ver isso com clarividência: tudo está em constante movimento, pois até
mesmo as estruturas podem mudar. Até bem pouco tempo atrás, um homem jamais
trocaria as fraldas de seu filho-bebê ou jamais dividiria com sua esposa a realização
dos trabalhos domésticos; ou ainda, nenhuma mulher, há 30 anos, assumiria
atividades profissionais de mestre de obras, de motorista ou mecânico, pois tais
profissões eram rotuladas como exclusivamente masculinas. Isso evidencia que os
papéis sociais e os status mudam e as organizações e estruturas também.

A charge a seguir demonstra que para cada dia da semana há uma máscara
a ser usada.

FIGURA 51 – OS ROSTOS DA SEMANA

FONTE: Disponível em: <http://reflexoesquenaolevamalugarnenhu


m.blogspot.com.br/2012/07/papeis-sociais.html>. Acesso em: 15 jan. 2013.

AUTOATIVIDADE

Faça uma pesquisa na sua região e verifique quais são as profissões


vistas como exclusivamente femininas (quais são os trabalhos que
correspondem unicamente às mulheres). Diante disso, verifique se há homens
que desempenham estas mesmas profissões e quais são as suas motivações.
__________________________________________________________________
__________________________________________________________________
__________________________________________________________________
__________________________________________________________________
__________________________________________________________________

163
UNIDADE 2 | PENSAMENTO SOCIOLÓGICO

2.3 INSTITUIÇÕES SOCIAIS


De um modo geral, o conceito mais amplo de instituição social é elaborado
por Durkheim. A ideia é bem simples: a instituição social é um mecanismo de
organização da sociedade. É o conjunto de regras e procedimentos padronizados,
reconhecidos, aceitos e sancionados pela sociedade, cuja importância estratégica
é manter a organização do grupo e satisfazer as necessidades dos indivíduos
que dele participam. Contudo, é importante salientar a função controladora da
instituição social. Por este motivo, a instituição detém dois aspectos fundamentais:
normatizar e punir as ações pessoais de todos os indivíduos ligadas ao grupo
social. (OLIVEIRA, 2010a).

Deste modo, as instituições possuem funções e atribuições bem claras:


agir coercitivamente, determinar o espaço do aceitável e do inaceitável; vigiar
moralmente as atitudes, perpetuar a história do grupo e das pessoas vinculadas
a ele. Pensando assim, podemos concluir que as instituições possuem papéis
determinantemente fortes no modo de ser, pensar e agir de todos nós, pois quando
pensamos na ideia de família, Estado ou Igreja, estamos pensando em formas
de existência e de demarcação da vida social. Por exemplo, quando pensamos
em família, nos vem à mente a presença de determinadas pessoas: pai, mãe e
filhos, mas este conjunto de pessoas que vivem sob o mesmo teto não preenche
plenamente a noção de família.

Regras, atribuições, regulamentos, proibições, punições e premiações


são ideias que completam a noção institucional de família. Esta normatização
da vida familiar é que compõe, de fato, a ideia de instituição, pois as famílias,
particularmente, grosso modo, utilizam-se destes preceitos e princípios para viver.

FIGURA 52 – FAMÍLIA

FONTE: Disponível em: <http://pastorsantos.no.comunidades.net/index.


php?pagina=1135855144>. Acesso em: 15 jan. 2013.

164
TÓPICO 3 | TEMAS SOCIOLÓGICOS

Por esta linha de raciocínio podemos entender que as instituições


dependem umas das outras, pois se uma não funcionar direito, todas as outras
serão afetadas. O que isso quer dizer? Isso significa que as instituições estão
interligadas e são interdependentes. Vejamos: se, porventura, todos os chefes de
família de uma determinada região da cidade perderem seus empregos, é certo
que a economia poderá entrar em colapso, pois, na ausência de rendimentos, as
pessoas não poderão pagar suas contas ou fazer novas. A instabilidade social será
resultado de um efeito cascata que, na verdade, poderá se tornar uma avalanche.
Uma coisa será consequência da outra. A economia sofrerá o que as famílias
sofrerão. É por este motivo que a família é sempre eleita como a instituição mais
importante da sociedade, pois ela é, ao mesmo tempo, o seu núcleo mais estável,
bem como o seu epicentro mais cataclísmico.

Analisemos neste momento o papel institucional da família: ela está


presente em quase todas as sociedades do mundo. Sua estrutura é basicamente
a mesma em todas elas e sua organização também. Os pontos mais variáveis se
referem ao número de integrantes, à forma do casamento, ao tipo de família e às
atribuições dos papéis familiares.

No universo ocidental, os casamentos socialmente aceitos são os


monogâmicos, nos quais se estabelecem critérios bem definidos de respeito e
fidelidade. Quando tais critérios são desobedecidos, ocorre a dissolução da união,
ou seja, há o divórcio (é evidente que estamos partindo da ideia do casamento
monogâmico perfeito).

Já no Oriente Médio, onde as tradições muçulmanas são mais fortes, o


casamento poligâmico é aceito com mais naturalidade, em algumas regiões
específicas.

Entretanto, é importante salientar uma diferenciação conceitual e factual


na poligamia. Aqui podemos notar que a forma do casamento é definida pelas
regras que são apropriadas em cada localidade. A ideia de família é a mesma
em todos estes lugares, mas o modo como a instituição família funciona é bem
diversificada e divergente. (OLIVEIRA, 2010a).

NOTA

Poliandria é quando uma mulher se casa com mais de um homem, o que


ocorre apenas entre algumas tribos do Tibete ou de esquimós, o que, evidentemente, não
acontece entre os muçulmanos.
Poliginia é o casamento entre um homem e várias mulheres (que ocorre entre muçulmanos),
mas que em determinados países árabes, como Turquia e Tunísia, vem diminuindo bastante
nos últimos anos. (OLIVEIRA, 2010a).

165
UNIDADE 2 | PENSAMENTO SOCIOLÓGICO

DICAS

Sugestão de filme: Eu, tu, eles.

Darlene (Regina Casé), grávida e solteira, vai embora da sua


região e retorna três anos depois ao trabalho pesado dos
canaviais no Nordeste brasileiro com Dimas, seu filho. Logo
que Osias (Lima Duarte), um homem mais velho e orgulhoso
de sua casa ter sido construída por ele, lhe propõe casamento,
Darlene aceita. Ele se aposenta, enquanto ela continua
trabalhando duro nos canaviais e em poucos anos nasce um
segundo filho, muito mais escuro que Osias. Então ele leva
Zezinho (Stênio Garcia), seu primo que é quase da sua idade,
além de ser um bom cozinheiro, para morar com ele. Darlene
fica feliz com a chegada de Zezinho e logo nasce outra
criança, esta bastante parecida com Zezinho. Pouco tempo
depois, Darlene convida Ciro (Luiz Carlos Vasconcelos), que
trabalha com ela nos canaviais e não tem onde dormir, para
jantar. Zezinho é contra, mas Osias diz que a casa é dele e que
o recém-chegado é bem-vindo e pode dormir lá. Ciro acaba
morando lá, mas a chegada de outro filho, desta vez parecido
com Ciro, obriga Osias a tomar uma decisão.

FONTE: Disponível em: <http://www.adorocinema.com/filmes/filme-24770/>. Acesso em: 25


jan. 2013.

Além disso, temos os casamentos endogâmico e exogâmico. O primeiro


é permitido apenas entre os membros de um mesmo grupo social (tribo, etnia,
poder econômico etc.). Já o segundo é resultado das várias interações que as
pessoas podem estabelecer com os grupos sociais com os quais têm contato.
Pressupõe-se, em cada uma das situações, que a relação matrimonial se dá entre
pessoas de sexos diferentes. Contudo, nos últimos anos, os países desenvolvidos
e em fase de desenvolvimento estão aprovando legalmente a união estável entre
pessoas do mesmo sexo. Existem atualmente várias configurações matrimoniais,
entretanto temos duas formas básicas: família conjugal e família consanguínea,
sendo que ambas possuem três pertinências básicas:

a) ter filhos;
b) garantir o bem-estar dos seus integrantes; e
c) educá-los.

E o papel da Igreja? Do mesmo modo que em todas as sociedades o papel


da família é indispensável, o papel da religião também o é. A religião representa,
em todas elas, estabilidade, equilíbrio e obediência a certos preceitos e normas
sociais. As noções de respeito, veneração e reverência também são decorrentes
das religiões. Em cada religião há um local específico de culto e de adoração das

166
TÓPICO 3 | TEMAS SOCIOLÓGICOS

suas divindades. As motivações e os anseios que levam as pessoas a procurar tais


divindades são múltiplos e variados e, dentro de cada contexto social, possuem
um sentido bem claro e definido.

Entretanto, é bom lembrar que o indivíduo religioso (genericamente


falando) não procura necessariamente coisas concretas ou respostas definitivas,
mas ele anseia por ordem e paz. De um modo geral, a religião funciona como
abrigo e proteção diante das adversidades que a vida apresenta constantemente.
Contudo, é importante ressaltar que a presença da religião no mundo ocidental é
cada vez mais escassa, apesar dos vários movimentos ligados ao pentecostalismo.
Por outro lado, os escândalos envolvendo pastores e padres (casos de desvios
do dinheiro do dízimo, evasão de divisas ou de pedofilia) fizeram com que a
credibilidade desta instituição diminuísse um pouco.

Apesar disso, a função da instituição religiosa prevalece e seu papel


continua sendo o de orientar e admoestar as pessoas a agirem segundo valores e
princípios morais, o que se caracteriza também como um sistema ideológico de
controle social.

FIGURA 53 – DIVERSIDADE RELIGIOSA

FONTE: Disponível em: <http://pt.dreamstime.com/foto-de-stock-


religi%C3%B5es-do-mundo-de-+eps,-pomba-image5820840>. Acesso
em: 15 jan. 2013.

Além da família e da religião, há o papel do Estado. Todos nós estamos


submetidos ao seu poder. Se, de um lado, podemos participar ou não de uma
instituição religiosa, ou até mesmo nos declararmos ateus, não podemos escapar
das obrigações e responsabilidades ligadas ao Estado ou à família. O mais
interessante, no que se refere ao papel da instituição do Estado em nossa vida, é

167
UNIDADE 2 | PENSAMENTO SOCIOLÓGICO

que sua presença é mais sutil, é invisível. Sabemos que estamos pagando, o tempo
todo, vários impostos para que o Estado funcione e exerça a sua função. Mas o
pagamento tributário quase sempre é imperceptível, pois quando adquirimos
qualquer produto há uma carga embutida de impostos, que normalmente não
nos é declarada.

Não obstante, é fundamental pensarmos que o Estado detém um papel


importantíssimo, como afirma Durkheim, a saber, o de garantir a cada cidadão
o devido amparo legal, na medida em que cada pessoa cumpre a sua parte.
Segundo ele, "os principais deveres da moral cívica são, evidentemente, os que o
cidadão tem para com o Estado e, reciprocamente, os que o Estado tem para com
os indivíduos". (OLIVEIRA, 2010b, p. 131).

Ou seja, enquanto cada um de nós deve obediência ao Estado (pagar


impostos, zelar pelos direitos pessoais e alheios e cumprir com seus deveres
de cidadão), o Estado deve garantir a observância de nossos direitos básicos.
Com base nesta ideia é que o CDC (Código de Defesa do Consumidor), a
CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas) e o ECA (Estatuto da Criança e do
Adolescente), dentre outros, foram criados. Os órgãos que fiscalizam e zelam por
estes direitos são responsabilidade do Estado. (DURKHEIM, 2002).

Já Weber (1989) afirma que o Estado, enquanto detentor do poder racional-


legal burocrático, pode, para fazer valer o seu papel, utilizar-se da força coercitiva
ou violenta para manter o seu status de mantenedor da ordem. Este poder, aliás, é
legítimo, pois na ausência da paz ou da ordem será necessário o uso da violência,
uma vez que a ideia weberiana de poder designa a probabilidade de impor a própria
vontade dentro de uma relação social, mesmo contra toda resistência. Este poder é
corroborado, como já dissemos, pelo próprio papel burocrático do Estado.

Em Marx, por outro lado, há uma clara ligação entre burguesia e Estado,
pois na medida em que a burguesia se alia ao Estado, esta passa a comandar
as suas ações. Sendo assim, a televisão e os outros órgãos de comunicação, por
exemplo, servem à burguesia que, ideologicamente, comanda e ordena os órgãos
de imprensa, outorgando-lhes o que é permitido ou proibido, isto é, vetando ou
liberando o que pode ou não ser publicado nos meios de comunicação. A este
estratagema Marx deu o nome de alienação, pois mesmo de modo involuntário,
as pessoas consentem com esta ação arbitrária. (MARX, 1988). Além do aspecto
ideológico, há o aspecto repressor do Estado. Neste caso, a polícia exerce um papel
sobremaneira importante, pois sua ação está sempre voltada, como já afirmara
Weber, a legitimar o seu papel de regulador da vida social. (WEBER, 1982).

168
TÓPICO 3 | TEMAS SOCIOLÓGICOS

FIGURA 54 – FRASE DE TROTSKY

FONTE: Disponível em: <http://kdfrases.com/frase/129478>. Acesso em: 15 jan. 2013.

LEITURA COMPLEMENTAR

FAMÍLIA

A desigualdade entre homens e mulheres era intrínseca à família


tradicional. Não me parece que se possa exagerar a importância disso. Na Europa,
as mulheres eram propriedade de seus maridos ou pais - bens móveis, na forma
definida pela lei. A desigualdade entre homens e mulheres se estendia obviamente
à vida sexual. O duplo padrão sexual estava diretamente ligado à necessidade
de assegurar continuidade na linhagem e na herança. Durante a maior parte da
história, os homens fizeram um amplo, e por vezes, bastante ostensivo, uso de
amantes, cortesãs e prostitutas. Os mais ricos tinham aventuras amorosas com
servas. Mas os homens precisavam ter certeza de serem eles os pais dos filhos de
suas mulheres. O que era exaltado nas moças respeitáveis era a virgindade e, nas
esposas, constância e fidelidade.

Na família tradicional não eram só as mulheres que careciam de direitos: o


mesmo se dava com as crianças. A ideia de consagrar os direitos da criança na lei é,
em termos históricos, relativamente recente. Em períodos pré-modernos, como hoje
nas culturas tradicionais, as crianças não eram criadas no interesse delas próprias,
mas para a satisfação dos pais. Poderíamos quase dizer que eram reconhecidas
como indivíduos. Não é que os pais não amassem os filhos, mas importavam-se
mais com a contribuição que eles davam para a tarefa econômica comum do que
com eles próprios. Além disso, a taxa de mortalidade infantil era assustadora. Na
Europa e nos Estados Unidos no século XVII, quase um quarto das crianças morria
em seu primeiro ano. Quase 50% não chegavam aos dez anos de idade.

169
UNIDADE 2 | PENSAMENTO SOCIOLÓGICO

Exceto para certos grupos cortesãos ou de elite, a sexualidade na família


tradicional sempre foi dominada pela reprodução. Era uma questão de natureza
e tradição combinadas. A ausência de contracepção eficaz significava que,
para a maior parte das mulheres, a sexualidade estava, de maneira inevitável,
estreitamente vinculada ao parto. Em muitas culturas tradicionais, inclusive na
Europa Ocidental até o limiar do século XX, uma mulher podia ter dez ou mais
gestações durante o curso de sua vida.

Por razões já apresentadas, a sexualidade era dominada pela ideia da


virtude feminina. É comum pensar-se que o duplo padrão sexual é uma criação
da Grã-Bretanha vitoriana. Na verdade, em uma versão ou outra, ele foi central
em todas as sociedades não modernas. Envolvia uma concepção dualista da
sexualidade feminina - uma clara distinção entre a mulher virtuosa por um lado e
a libertina por outro. O aventureirismo sexual era considerado em muitas culturas
um traço definidor da masculinidade. James Bond é, ou era, admirado pelo seu
heroísmo tanto físico como sexual. As mulheres sexualmente aventureiras, em
contraposição, foram quase sempre irrevogavelmente condenadas, a despeito do
grau de influência que as amantes de certas figuras proeminentes possam ter
alcançado. [...]

Em todos os países continua existindo uma diversidade de formas de


família. Nos Estados Unidos, muitas pessoas, em particular imigrantes recentes,
ainda vivem segundo valores tradicionais. A maior parte da vida familiar, porém,
foi transformada pelo surgimento do casal informal e da união informal. O
casamento e a família tornam-se o que denominei “instituições casca”: ainda são
chamados pelos mesmos nomes, mas dentro deles seu caráter básico mudou. Na
família tradicional, o casal unido pelo casamento era apenas uma parte, e com
frequência não a principal, do sistema familiar. Laços com os filhos e com outros
parentes tendiam a ser igualmente importantes, ou até mais, na condução diária
da vida social. Hoje, o casal, casado ou não, está no cerne do que é a família. O
casal passou a se situar no centro da vida familiar à medida que o papel econômico
da família declinou e o amor, ou o amor somado à atração sexual, se tornou a base
da formação dos laços de casamento.

Um casal, uma vez constituído, tem sua história própria e exclusiva,


sua própria biografia. É uma unidade baseada em comunicação ou intimidade
emocional. A ideia de intimidade, como tantas outras noções familiares que
discuto neste livro, soa antiga, mas é de fato novíssima. Nunca, no passado, o
casamento se baseou na intimidade - na comunicação emocional. Isso era sem
dúvida importante para um bom casamento, mas não o seu fundamento. Para o
casal, é. A comunicação é o meio de estabelecer o laço, acima de qualquer outro,
e é a principal base para sua continuação.

Deveríamos reconhecer a notável transição que isso representa. As ideias


de “união” e “não união” proporcionam agora uma descrição mais acurada da
arena da vida pessoal que as de “casamento e a família”. Para nós a pergunta
“você está tendo um relacionamento?” é mais importante que “você está casado?”

170
TÓPICO 3 | TEMAS SOCIOLÓGICOS

A ideia de relacionamento é também surpreendentemente recente. Na década de


1960, ninguém falava de “relacionamentos”. Não se precisava disso, como não se
precisava falar em termos de intimidade e compromisso. Na época o casamento
era o compromisso, como o atesta a existência do casamento forçado.

Na família tradicional, o casamento se assemelhava um pouco a um


estado da natureza. Tanto para homens quanto para mulheres, era definido como
um estágio da vida que se esperava que a ampla maioria atravessasse. Os que
permaneciam de fora eram encarados com certo desprezo ou condescendência -
em particular as solteironas, mas também o solteirão se o fosse por tempo demais.

Embora estatisticamente o casamento ainda seja condição normal


para a maioria das pessoas, seu significado se transformou mais ou menos
completamente. O casamento significa que um casal está vivendo uma relação
estável, e pode na verdade promover esta estabilidade, uma vez que envolve uma
declaração pública de compromisso. No entanto, ele não é mais a principal base
definidora da união.

FONTE: GIDDENS, Anthony. Mundo em descontrole - o que a globalização está fazendo de


nós. 6. ed. Rio de Janeiro: Record, 2007, p. 67-69.

3 ESTRATIFICAÇÃO SOCIAL E MOBILIDADE


A palavra estrato significa camada. A ideia básica na qual a noção de
estratificação se assenta está na divisão social em camadas. Cada sociedade
distribui ou define a posição de seus membros segundo critérios bem variados.
Há vários tipos de estratificação (econômica, política, profissional) dentro de uma
mesma sociedade, sendo que sua principal determinação se dá pela rentabilidade
financeira (estratificação econômica).

Parece-nos evidente compreender que quando falamos em estratificação


econômica, estamos falando do número de posses e bens que uma determinada
pessoa ou grupo social possui. O critério de avaliação da posição do indivíduo é
o acúmulo de bens. Quanto maior for o acúmulo, maior será a sua posição dentro
do estrato social. Por outro lado, como já vimos em Marx, a estratificação política
pode ser considerada como aquela que estabelece uma relação entre os que detêm
o poder e os que se submetem a este poder.

Normalmente, o poder econômico e o poder político estão coligados.


Já a estratificação profissional acontece na sobreposição entre as profissões,
considerando que as de maior prestígio e salário possuem posições mais altas
do que as de menor reconhecimento e salário. Sendo assim, podemos considerar,
como vimos anteriormente, que um médico é mais respeitado e valorizado do
que um gari, o que significa dizer, em breves palavras, que o médico é mais
importante do que o gari. Não estamos aqui, de modo algum, desvalorizando o
gari. Mas socialmente falando, o médico possui uma posição de maior destaque
que o gari. E sobre isso não podemos discordar.
171
UNIDADE 2 | PENSAMENTO SOCIOLÓGICO

Contudo, atualmente, há uma pergunta muito interessante a se fazer: a qual


classe, estrato ou camada eu pertenço? De um modo geral, o montante de dinheiro
acumulado e o grau de escolarização são critérios muito comuns usados na hora de
definir a classe à qual se pertence.

Entretanto, Charles Mills (1976) afirma que as ideias de status social e


poder também devem ser computadas no momento da fixação da posição social
do indivíduo. Mas como isso acontece? Além do dinheiro e da escolarização,
é essencial saber qual é o nível de autonomia do indivíduo no trabalho e seu
respectivo poder de decisão e persuasão. Segundo ele, isso demarcaria o quanto
uma pessoa pertenceria a uma classe e não a outra.

É por isso que, para ele, surge o conceito de nova classe média:
profissionais que teriam uma formação intelectual que os habilitaria para o
desenvolvimento de atividades mais complexas e, por conseguinte, mais bem
remuneradas. Entretanto, esta classe não deixaria de ser assalariada, isto é, o
trabalhador intelectual desenvolve outras funções, mas continua unido à classe
dos trabalhadores. Porém, socialmente, os trabalhadores manuais e intelectuais
não se veem como iguais. Muito pelo contrário, eles se observam, reciprocamente,
como protagonistas e antagonistas da história. As próprias empresas estipulam
hierarquias bem definidas entre os dois grupos, gerando, muitas vezes, desavenças
e conflitos entre eles. (MILLS, 1976).

Apesar disso, esta ideia de estratificação se baseia, como acabamos de ver,


em um princípio básico: a escolarização, o que nos leva a concluir que, de um modo
geral, as pessoas tentam galgar novos e melhores postos de emprego na medida
em que aperfeiçoam o seu conhecimento e o seu modo de compreender o mundo.
Contudo, infelizmente, as competições dentro do mundo das empresas geram
dicotomias gritantes na dualidade entre o trabalhador manual e o trabalhador
intelectual. Concluindo esta ideia, verificamos que a estratificação no mundo
capitalista não é estanque ou imóvel (como pode ser verificado no mundo medieval
ou oriental ainda hoje), mas é claramente móvel, o que caracteriza a noção de
mobilidade social.

Assim sendo, a mobilidade é uma característica própria do nosso tempo.


Esta oscilação da posição social demonstra que as pessoas podem tanto ascender
quanto descender socialmente, isto é, as pessoas podem tanto subir na vida quanto
descer na vida, dependendo de seu empenho, bem como de outros fatores, tais
como econômicos, sociais e trabalhistas. Todavia, é importante salientar que o
sucesso desta mobilidade depende do indivíduo e não do grupo, até mesmo porque
a ascensão social sempre ocorre de modo individual e não grupal. Dentro de um
grupo de operários, determinadas pessoas podem desejar, por meio da educação
formal, subir certos degraus dentro da empresa na qual trabalham, mas isso não
significa que todos conseguirão e nem mesmo que receberão apoio dos chefes das
empresas. (BAUMAN, 2010).

172
TÓPICO 3 | TEMAS SOCIOLÓGICOS

Porém, no Brasil, pouco se fala sobre a questão do problema da


mobilidade descendente, pois é um fenômeno que não desperta muito o interesse
dos estudiosos da área. Normalmente, os problemas que desencadeiam tal
"queda" são atribuídos a possível incompetência ou ingerência do “caído”, sem
ponderar para os fatores externos, tais como: crises financeiras, altos impostos ou
deslealdade comercial. (BERLATTO, 2011).

Diante disso, também não podemos nos esquecer dos vários mitos que
envolvem a ideia de sucesso no mundo do trabalho, pois nem sempre esta
ideia está ligada apenas à competência do sujeito. É preciso avaliar que fatores
sociais de exclusão pesam muito nesta análise. Há, em nosso país, uma difusão
de que vivemos sem discriminação, sem preconceito, que somos racialmente
democráticos, que nosso país é bonito por natureza, que o Brasil é o país do
futuro, que Deus é brasileiro.

Estes mitos falseiam a realidade, distorcendo-a ideologicamente. Vejamos


o que Octávio Ianni afirma sobre isso:

A história do pensamento brasileiro está atravessada pelo fascínio


da questão nacional. No passado e no presente, são muitos os que se
preocupam em compreender os desafios que compõem e decompõem
o Brasil como nação. E essa preocupação se revela particularmente
acentuada nas conjunturas assinaladas e simbolizadas pela Declaração de
Independência em 1822, Abolição da Escravatura (1888) e Proclamação da
República (1889) e Revolução de 1930. Esse tema aparece nas produções de
publicistas, cientistas sociais, filósofos, artistas. Em diferentes gradações,
em várias linguagens, uns e outros passam por ele. A questão nacional
está sempre presente, como desafio, obsessão, impasse ou incidente. (IANNI,
2004, p. 24) (grifo nosso).

Como vimos, afirmar que o Brasil é um país de todos nos parece


demagógico demais, pois sabemos que, dentre os inúmeros fatores controversos
da nossa história, a cor da pele ainda é um fator preponderante no momento em
que avaliamos as pessoas. Piadas, chacotas e charges estão carregadas desta visão
estereotipada do Brasil.

Como afirma Sírio Possenti:

Se você diz a alguém que estuda piadas, o primeiro efeito que produz
ainda é o riso. É uma pena que seja assim, porque as piadas são de
fato um tipo de material altamente interessante. Por várias razões.
Em primeiro lugar, as piadas são interessantes para os estudiosos
porque praticamente só há piadas sobre temas que são socialmente
controversos. Assim, sociólogos e antropólogos poderiam ter
nelas um excelente corpus para tentar reconhecer (ou confirmar)
diversas manifestações culturais e ideológicas, valores arraigados.
[...] Em segundo lugar, porque piadas operam fortemente com
estereótipos. Assim, fornecem um bom material para pesquisas sobre
"representações", por exemplo. Possivelmente, qualquer estudioso
tenha o direito de afirmar que tais representações são grosseiras demais
para revelarem qualquer fato significativo. Mas estará enganado. De
fato, elas revelam que, frequentemente, discursos operam mesmo com

173
UNIDADE 2 | PENSAMENTO SOCIOLÓGICO

representações grosseiras, estereotipadas. E que, portanto, muitas


ações sociais são realizadas com esse frágil fundamento - não dar
emprego a determinados tipos de pessoas por causa de seu sotaque
ou da cor de sua pele ou do seu tamanho, por exemplo. [...] Em
terceiro lugar, as piadas são interessantes porque são quase sempre
veículo de um discurso proibido, subterrâneo, não oficial, que não
se manifestaria, talvez, através de outras formas de coletas de dados,
como entrevistas. Outra face da mesma característica é que as piadas
veiculam discursos não explicitados correntemente (ou, pelo menos,
discursos pouco oficiais). [...] (POSSENTI, 1998. p. 25-6.)

Lembremos de que a chacota racial existe há muito tempo no Brasil e no


mundo. Mas ela se agravou no Brasil do século XIX, quando os negros foram
alforriados e abandonados à sua própria sorte. As políticas de branqueamento
foram propaladas, pois se almejava que o país imitasse o modelo civilizatório
europeu de sociedade. O homem branco traria progresso, ordem, sucesso
e emancipação para o Brasil. Era preciso riscar do mapa e da memória toda a
atrocidade cometida contra os negros, através da torpe substituição da mão de
obra escrava (agora liberta) pela mão de obra qualificada do europeu. Mas, ao
invés de riscá-la, ela foi jogada para debaixo do tapete. E justamente por este
motivo, somente em nossa atualidade (dos 1990 para cá) os debates acerca dos
movimentos sociais (e das nossas heranças históricas) começaram a se intensificar.
Rever o conceito que temos de estratificação e de mobilidade é algo inadiável
para os nossos dias, pois o modo como elas se dão, genericamente falando, é, por
sua própria raiz, injusto ou desonesto.

NOTA

Apesar de o preconceito racial ser, veladamente, muito comum no Brasil, ele é


proibido por lei desde 1951, com a criação da Lei Afonso Arinos (Lei n◦ 1390/51, de 3 de julho
de 1951).

4 MOVIMENTOS SOCIAIS
Como pudemos ver a partir das abordagens realizadas até aqui, a vida
humana é essencialmente coletiva e marcada pelos interesses e disputas dos
indivíduos na busca de atingirem melhores posições dentro da sociedade em
que vivem. Contudo, isto produz inúmeros distúrbios e contradições, o que pode
provocar o descontentamento de muitos membros desta mesma sociedade, que
eventualmente estarão dispostos a se organizar e a buscar a superação da situação
na qual se julgam erroneamente colocados. A esta organização e busca de um
objetivo comum, de modo relativamente duradouro, por parte de um número
significativo de indivíduos de uma sociedade, dá-se o nome de movimento social.

174
TÓPICO 3 | TEMAS SOCIOLÓGICOS

Em todas as sociedades é possível observar a existência de movimentos


sociais, que têm as mais variadas reivindicações. Os movimentos sociais têm
uma função determinante na transformação das sociedades e nas conquistas de
direitos para os cidadãos, cujos perfis sofrem mudanças a cada dia, de modo
que novas necessidades surgem constantemente. Em contrapartida, haverá
indivíduos dispostos a perpetuarem o status quo, visto que a organização atual
da sociedade lhes é favorável. Desse modo, também acabam constituindo um
movimento social com a finalidade de manter a sociedade do jeito que está. Em
vista do exposto, fica evidente que os movimentos sociais podem ter distintas
motivações de organização.

Vejamos a seguir como os movimentos sociais podem ser classificados,


segundo Lakatos (1999).

FIGURA 55 – INTERDEPENDÊNCIA SOCIAL

FONTE: Disponível em: <http://www.ufrgs.br/vies/comunicacao/a-


globalizacao-os-movimentos-sociais-e-as-redes-de-comunicacao/>.
Acesso em: 15 jan. 2013.

a) Migratórios: são constituídos a partir da migração de grupos de pessoas devido


à insatisfação com o local de origem. Ex.: migração dos judeus para diferentes
partes do mundo.

b) Progressistas: um segmento da sociedade que almeja mudanças positivas


dentro das instituições nas quais atua. Ex.: sindicatos de trabalhadores.

c) Conservacionistas: grupos que estão dispostos a preservar o status atual da


sociedade, pois a situação lhes é favorável. Ex.: Grupos contrários à legalização
do aborto, divórcio, direitos feministas.

d) Regressivos: são movimentos descontentes com o resultado das mudanças,


desejando um retorno à condição anterior da sociedade, pois as transformações
lhes parecem desfavoráveis. Ex.: Ku-Klux-Klan, contrários aos direitos dos
negros; movimentos religiosos contrários à tecnologia.

175
UNIDADE 2 | PENSAMENTO SOCIOLÓGICO

e) Expressivos: organização de pessoas dispostas a mudanças de percepção e não


da realidade propriamente dita. Elas estão dispostas a olhar o mundo de outro
modo e não, necessariamente, transformá-lo. Ex.: movimentos religiosos que
pregam o afastamento da realidade e a transformação interior dos indivíduos.

f) Utópicos: são movimentos que criam uma visão ideal da sociedade. O seu
objetivo é a edificação de uma sociedade perfeita, levando os seus integrantes à
fuga e constituição de comunidades isoladas ou ao conflito para a instauração
da nova sociedade. Ex.: revoluções socialistas e movimento hippie.

f) Reformistas: os movimentos reformistas têm o propósito de introduzir


modificações inclusivas no seio da sociedade. Os movimentos reformistas
normalmente se confrontam com os movimentos conservacionistas ou
regressivos. Ex.: movimentos feministas.

g) Revolucionários: os movimentos revolucionários propõem mudanças radicais na


estrutura e organização da sociedade. Eles são motivados por descontentamentos
e não consideram que simples reformas sejam suficientes para resolver os
problemas sociais. Os movimentos revolucionários são uma reação a sistemas
totalitários, como foi o caso da ditadura militar no Brasil e o stalinismo na antiga
URSS. Quanto mais intensa é a ação autoritária, maior é o desejo de mudança
que desencadeia o surgimento de movimentos revolucionários.

LEITURA COMPLEMENTAR 2

A SOCIEDADE ESTAMENTAL

Hans Freyer

O princípio estrutural "sociedade estamental" deve ser entendido (num


sistema concreto de Sociologia) não como a lei fundamental e eterna de toda
cultura humana - no sentido em que todos os românticos do passado e do presente
querem fazê-lo, mas como uma fase determinada na história das formas sociais
de dominação; como um elemento na série das estruturas sociais fundamentais.

Quando uma forma de dominação se afirma, convertendo-se num sistema


duradouro, isto habitualmente se faz acompanhar da concessão, aos diversos grupos
parciais, de determinados direitos, possibilidades de aquisição, bens culturais
e atividades, tudo isso de acordo com um esquema fixo. As partes heterogêneas
de que se compõe a sociedade vão crescendo num sistema fixo de privilégios e,
sobretudo, num sistema fixo de atividades sociais necessárias, adquirindo, em
razão desse fato, um sentido objetivo para o corpo social na sua totalidade.

176
TÓPICO 3 | TEMAS SOCIOLÓGICOS

A firmeza do edifício social depende de que as funções atribuídas a


esses grupos (que chamaremos "estados" ou "estamentos") sejam visivelmente
necessárias para o todo; depende também de que a relação entre os estamentos
e seus deveres sociais seja firme, orgânica, constitutiva de tradição e de força
educadora [no feudalismo, o dever do estamento religioso, ou seja, do clero, era
intermediar a relação entre Deus e os fiéis, o dever do estamento aristocrático era
fazer a guerra e assim por diante].

Essa estruturação da sociedade, segundo privilégios específicos e


atividades atribuídas, realiza-se naturalmente, "de cima para baixo"; ou seja, é
estabelecida pelos que detêm a dominação. É um processo que começa em cima e
se estende até embaixo. As forças ativas dentro do corpo social, os senhores, que
são sempre a minoria, têm que delimitar-se, isto é, têm que configurar-se como
"estamento", de modo a manter em vigor aquele mundo que fundamenta a sua
dominação.

Todos os "estados" [estamentos] autênticos se delimitam; por isso, cuidam


de seu hermetismo [isto é, de seu caráter fechado]. Basta considerar o papel
relevante que desempenha, em todas as sociedades estamentais, o casamento e a
luta em torno dele.

O meio típico para conseguir o hermetismo de um estamento consiste


na monopolização de determinados encargos sociais. O serviço guerreiro e
sacerdotal, o desempenho de cargos públicos e a propriedade territorial são, de
ordinário, os setores que os estamentos dominantes reservam para si. Do mesmo
modo, outras posições vitais, ou profissões (comércio, trabalho remunerado), são
consideradas incompatíveis com esses estamentos.

Sobre a base dessas atividades e profissões reservadas aos diferentes


"estados" se desenvolve também uma forma especial de vida, um conceito
especial de honra e alguns costumes sociais também especiais. Esse fato, por sua
vez, contribui para a concreção de um estrato social e para sua conversão em
estamento. [...]

A longo prazo, nem os meros privilégios nem um simples predomínio


econômico bastam para manter de pé uma ordem estamental. Estamentos de nível
histórico só existem quando há tarefas autênticas e básicas que podem mobilizar
determinadas energias e dar à luz um determinado tipo de homem. [...]

O princípio estamental pode penetrar todo o corpo social, desde cima, e só


quando assim ocorre pode-se dizer que se realizou plenamente a lei estrutural da
sociedade estamental. Nesse momento teremos diante de nós um claro sistema
de estratos sociais, cada um dos quais se incumbe de sua função especial, dentro
do todo, e cada um dos quais desenvolve, no desempenho desta incumbência
especial, sua honra e sua atitude social específica [...].

177
UNIDADE 2 | PENSAMENTO SOCIOLÓGICO

Não obstante a estrutura de uma sociedade estamental traz também em


si, como toda realidade social, uma dinâmica histórica. [...] A dinâmica histórica
consiste, em primeiro lugar, em que ocorram constantemente na sociedade
estamental processos sociais de ascensão e deslocamento. Por mais que o
hermetismo seja uma das características essenciais do estamento, os estamentos
dominantes precisam receber em seu seio novas forças procedentes dos estratos
inferiores. A sabedoria instintiva de uma aristocracia consiste em absorver
somente, mas sempre, aqueles elementos que podem ser inseridos no estamento
e aqueles em que pode imprimir sua forma peculiar de vida.

É muito importante ter em conta que esses processos de ascensão social,


pelos quais penetram no espaço fechado dos estamentos dominantes a riqueza
ou o talento de pessoas da burguesia, não dissolvem nem abalam a estrutura
estamental; ao contrário, contribuem para fortalecê-la. [...] Todas as grandes
aristocracias da história realizaram com habilidade essa prática de inserir em
seu seio talentos ou riquezas de origem plebeia [Roma] ou burguesa [Inglaterra,
França etc].

Além dessa dinâmica [ocorrem também lutas] entre "estados"


[estamentos], nas quais os "estados" inferiores lutam unidos contra os privilégios
dos "estados" dominantes. Todo corpo social que repousa sobre a desigualdade
de direitos e sobre a dominação de um grupo sobre outro traz sempre, em si, o
germe de distúrbios e rebeliões. Com respeito à forma e ao curso das lutas entre
os "estados", é possível formular uma série de traços típicos e, inclusive, leis.

Tanto os objetivos da luta como a tática que nela se emprega, e as


possibilidades de seu resultado, se repetem uma ou outra vez no curso da
história; sob a única condição de que se trate verdadeiramente de luta entre
estamentos, isto é, de movimentos sociais dentro de uma ordem social estamental
[...] Quanto ao seu objetivo, as lutas entre "estados" tendem sempre a modificar,
em pontos concretos, a atribuição de privilégios, a arrebatar ao estamento vizinho
determinados direitos políticos ou sociais, e a recuperar direitos perdidos ou a
ampliar os que se possuem.

Enquanto nos movemos no terreno da ordem estamental, as lutas sociais


não têm nunca a intenção nem o efeito de contestar a estrutura estamental, ou de
modificar o princípio que rege a estrutura social do todo. Na luta só se perseguem
e só se conseguem correções de limites entre os estamentos.

FONTE: FREYER, Hans. A sociedade estamental. In: IANNI, Octávio. Teorias de Estratificação
Social. SP: Cia. Editora Nacional, 1972, p. 168-171.

178
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico vimos:

• Os conceitos básicos da sociologia na sua inter-relação com outras ciências e


com a sociedade de um modo geral.

• Conceitos como globalização, estratificação social, status e papel social,


instituições sociais são ímpares para o estudo e a análise da sociedade.
Compreender estes conceitos é inteirar-se da sociologia.

• A assimilação destes conceitos facilitará ao(à) acadêmico(a) a visão de mundo


que este material apostilar quer oferecer, pois mais do que tornar nosso(a)
acadêmico(a) aficionado pela disciplina, queremos que ele compreenda o
papel imprescindível desta ciência para a compreensão do nosso mundo
contemporâneo, pois além da “tecnologia e da sua aplicabilidade”, é necessário
que existam pessoas que questionem e argumentem sobre o papel da tecnologia
em nossas vidas. E esta é uma função da sociologia.

179
AUTOATIVIDADE

1 O conceito de movimento implica a ideia de mudança e transformação, de


que algo precisa modificar-se, alterar-se. Entretanto, segundo a classificação
que vimos, há movimentos que desprezam a ideia de alteração. Diante disso
e de seus conhecimentos sobre a noção de movimento social, redija uma
redação abordando a problemática da estatização (aquilo que não se altera)
das mudanças sociais no Brasil e no mundo.
__________________________________________________________________
__________________________________________________________________
__________________________________________________________________
__________________________________________________________________
__________________________________________________________________
__________________________________________________________________
__________________________________________________________________
__________________________________________________________________
__________________________________________________________________
__________________________________________________________________
__________________________________________________________________
__________________________________________________________________
__________________________________________________________________
__________________________________________________________________

180
UNIDADE 3

PENSAMENTO FILOSÓFICO E SOCIAL


NO BRASIL

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
Esta unidade tem por objetivos:

• estimular nosso(a) acadêmico(a) de Sociologia e Filosofia a pensar sobre a


realidade nacional com “olhos mais críticos e atentos”, fazendo-o desco-
brir o quão complexa e truncada é a nossa História Nacional;

• incitar um debate acadêmico mais aprofundado sobre o surgimento da so-


ciologia no Brasil, perpetrando em nossos estudantes um interesse sincero
pelo estudo de alguns pensadores nacionais, principalmente os da segun-
da metade do século XX, tais como: Florestan Fernandes e Darcy Ribeiro;

• incentivar a aplicação de teorias sociológicas no entendimento da reali-


dade nacional, ou seja, compreender que os estudos sociológicos podem
ser aplicados em situações cotidianas, tais como: o impacto do uso da lin-
guagem (e o entendimento de seus múltiplos sentidos), a interpretação
de fatos sociais, a implementação de políticas públicas e a compreensão
do impacto dos movimentos sociais para a definição de uma sociedade
moderna e cidadã;

• fomentar o estudo da sociologia e da filosofia e a criação de grupos univer-


sitários de estudos e debates sociofilosóficos.

PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em três tópicos e em cada um deles você encontra-
rá atividades visando à compreensão dos conteúdos apresentados.

TÓPICO 1 – FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA HISTÓRIA DO BRASIL

TÓPICO 2 – FILÓSOFOS E SOCIÓLOGOS BRASILEIROS DE DESTAQUE

TÓPICO 3 – QUESTÕES SOCIAIS BRASILEIRAS NA ATUALIDADE: CRI-


MINALIDADE, SOCIOLOGIA RURAL, MOVIMENTOS SO-
CIAIS, RELIGIÃO E LIBERTAÇÃO

181
182
UNIDADE 3
TÓPICO 1

FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA
HISTÓRIA DO BRASIL

1 INTRODUÇÃO
Caro(a) acadêmico(a), seja bem-vindo(a) à Unidade 3.

Nesta unidade queremos fazer a você uma proposta que, num primeiro
momento, pode aparentar ser um pouco inusitada: estudar a sociologia brasileira.
Muitas pessoas desconhecem o fato de que existe uma grande produção intelectual
no Brasil, pois normalmente, quando falamos de pensadores da sociologia, nos
referimos a estrangeiros, como Marx, Durkheim, Bauman e Weber.

Contudo, é assaz necessário recordar que durante o período em que


estudamos a Unidade 2, muitos pensadores brasileiros foram citados, dentre eles:
Octávio Ianni, Pérsio de Oliveira, Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre,
Euclides da Cunha e Darcy Ribeiro.

Nesta unidade, especificamente neste tópico, queremos estudar com


você, caro(a) acadêmico(a), um pouco do entorno histórico que deu início à ideia
de nação brasileira. Mas é importante salientar que a História do Brasil não é
tão linda quanto afirma a canção do nosso Hino Nacional (lembrar-se dos mitos
nacionais abordados na Unidade 2).

Não obstante, a experiência da emancipação do povo brasileiro do poderio


português ocorreu sem luta, sem sangue e, talvez, até mesmo sem muita honra.
Aliás, estudar a fundo a História do Brasil é uma tarefa um pouco desagradável,
principalmente àqueles que se julgam ufanistas. Do período colonial até os nossos
dias escancara-se uma história de usurpação e inglória, que não reflete o atual slogan
de que “o Brasil é um país para todos”. As mesmas experiências vividas pelos
trabalhadores na Inglaterra do século XVII (Revolução Industrial) e dos artesãos na
França do século XVIII (Revolução Francesa) ainda estão presentes em nosso país.

Falar sobre o Brasil é uma provocação sempre latente, pois é muito difícil
compreender tantas disparidades dentro de um único espaço territorial. Isso não
significa dizer que tenhamos uma visão totalmente pessimista sobre a realidade
nacional. Apenas queremos afirmar que um povo que não conhece, de fato, a sua
história, jamais será totalmente livre e independente.

Tendo cunhado tal afirmação, é muito fácil assimilar porque as pessoas em


nosso país adoram “copiar” modelos estrangeiros (não estamos esquecendo os

183
UNIDADE 3 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E SOCIAL NO BRASIL

efeitos da globalização), pois, ao desconhecer ou compreender a história nacional,


as pessoas seguem estereótipos globais.

Além disso, é assaz necessário recordar o poder que a mídia dentro do


Brasil exerce sobre todos nós enquanto indivíduos, principalmente porque as regras
publicitárias são muito frouxas quanto à programação televisiva e seus “produtos
comerciais”. Contudo, queremos despertar neste momento o interesse de você,
caro estudante, pela leitura deste texto. Esperamos que ele aguce em você a mesma
paixão pelo saber que ele sempre despertou em nós.

Bem-vindo(a) a bordo.

2 DO PERÍODO COLONIAL ATÉ OS DIAS ATUAIS


Segundo alguns historiadores, o Brasil enquanto colônia portuguesa, no
início dos anos 1500, não fora descoberto - como muitos costumam afirmar, mas,
na verdade, fora "achado". O termo "achar" aqui se refere, de um certo modo, à
ideia de que os navegantes da esquadra de Cabral, por mero acaso do destino,
encontraram esta terra.

Este "achamento" é o princípio de uma invasão e apropriação indevida


do povo português sobre uma terra que já possuía donos: os índios. Porém, há
no raciocínio europeu da época uma interpretação muito curiosa sobre a noção
de propriedade da terra: só pode ser dono de um determinado espaço territorial
quem possuir uma "escritura" comprovando tal propriedade. Esta interpretação já
ocorrera no processo de colonização dos EUA pelos ingleses, pois na medida em
que os ingleses tomavam posse das terras americanas, os índios eram dizimados
ou expulsos de suas propriedades.

Aqui nasce um debate sociológico muito profícuo: a noção de propriedade


se baseia em sua exploração ou usufruto? A ideia indígena, de um modo geral, se
fundamenta numa visão de usufruto e de aproveitamento da terra para a própria
sobrevivência e subsistência. "O índio é uma planta do mundo. O índio é da terra
e a terra é do índio". Os "dois mundos" são indissociáveis para o indígena. Não há
sobreposição, há apenas correlação.

Por outro lado, a visão do europeu é de exploração. Os portugueses não


vieram ao Brasil para construir um paraíso, uma vida nova, uma nova terra. Eles
vieram apenas para "achar" o paraíso e, por meio de sua exploração, construir
uma nova vida em Portugal.

Resumidamente, o primeiro século da "descoberta" do Brasil deu-se nestes


modos:

a) O processo de escambo de mercadorias: como o índio desconhecia o valor real


dos bens naturais, ele trocava o pau-brasil por espelhos, perfumes, armas de
fogo etc. O português aproveitou-se da ingenuidade do índio para saqueá-lo.

184
TÓPICO 1 | FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA HISTÓRIA DO BRASIL

b) A submissão do índio à cultura europeia: o índio era um ser desprovido de


"cultura, bons costumes, religião". O índio deveria ser catequizado, educado,
cultificado. Ele deveria aprender a usar vestes, rezar em latim, falar em português.

c) A escravização do índio: além de toda imposição cultural, ele deveria "libertar-


se do ócio improdutivo" e transformar o seu modo de vida, trabalhando dentro
de um sistema escravista para o homem branco, principalmente na produção
de cana-de-açúcar.

FIGURA 56 – ESCRAVIDÃO INDÍGENA NO BRASIL

Spix e Martius, Negociantes contando índios; Viagem pelo Brasil. 3º vols.

FONTE: Disponível em: <http://www.infoescola.com/brasil-colonia/escravidao-


indigena/>. Acesso em: 15 jan. 2013.

DICAS

Sugestão de filme: A Missão

No final do século XVIII, Mendoza (Robert de Niro), um


mercador de escravos, fica com crise de consciência por ter
matado Felipe (Aidan Quinn), seu irmão, num duelo, pois
Felipe se envolveu com Carlotta (Cherie Lunghi). Ela havia se
apaixonado por Felipe e Mendoza não aceitou isto, pois ela
tinha um relacionamento com ele. Para tentar se penitenciar,
Mendoza se torna um padre e se une a Gabriel (Jeremy Irons),
um jesuíta bem intencionado que luta para defender os índios,
mas se depara com interesses econômicos.

FONTE: Disponível em: <http://www.adorocinema.com/


filmes/filme-2152/>. Acesso em: 15 jan. 2013.

185
UNIDADE 3 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E SOCIAL NO BRASIL

Caro(a) acadêmico(a), o modus vivendi do indígena é o de subsistência, o


seu modo de se relacionar com a Mãe-Terra é outro. Agora, a sua vida passa por
uma total reviravolta. Ele é forçado a abandonar quem ele é para ser o que ele
não quer ser. O sistema de trabalho é totalmente ultrajante e faz com que muitos
índios prefiram a morte.

Outrossim, é interessante verificar que esta visão etnocêntrica não é algo


que foi totalmente superado pelo homem branco em nossos dias.

Leia o texto que segue:

PROCURADORIA DENUNCIA EMPRESÁRIOS SUSPEITOS DE


MANTER ÍNDIOS EM CONDIÇÃO DE ESCRAVIDÃO

O Ministério Público Federal em Joaçaba (SC) denunciou dois
empresários suspeitos de manter 60 trabalhadores indígenas em condições
análogas à de escravos no município de Herval do Oeste.

Segundo o Ministério Público, os dois empresários utilizaram um


aliciador de mão de obra para atrair vários indígenas da terra indígena Chapecó,
no município de Ipuaçu-SC.

Os índios eram contratados para trabalhar com corte e desgalho de pinus


e eucalipto em uma propriedade rural em Herval do Oeste. Os trabalhadores
não tinham condições mínimas de higiene, segurança e alimentação.

Conforme a denúncia, os índios viviam em um barraco sem energia


elétrica, sem camas e com goteiras. Para dormir, alguns utilizavam espumas
sobre estrados de madeira e outros dormiam no chão. No inverno, passavam
muito frio e no verão precisavam queimar panos dentro do barraco para
espantar mosquitos e insetos.

Os índios kaingangs não tinham água tratada, sanitários ou chuveiro.


Tomavam banho, lavavam a roupa e bebiam água do mesmo açude, que ficava
próximo ao barraco. A comida era trazida semanalmente pelo aliciador.

Ainda segundo a denúncia, a jornada semanal imposta aos indígenas


era de 53 horas. Eles também não possuíam nenhum equipamento de segurança
e até mesmo as botas utilizadas no serviço eram cobradas dos trabalhadores.

De acordo com a Procuradoria, apesar de não serem impedidos de


deixar o local, os índios que ficavam por último na fazenda somente recebiam
quando aqueles que foram liberados retornassem ao local. Desta forma, os
proprietários garantiam a permanência de um número mínimo de trabalhadores
na propriedade.

186
TÓPICO 1 | FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA HISTÓRIA DO BRASIL

Os dois empresários e o aliciador foram denunciados pelo crime de


redução de trabalhador à condição semelhante à de escravo, com a agravante
de serem as vítimas integrantes de etnia kaingang. Os dois empresários foram
denunciados, ainda, pelo crime de omitir anotação de contrato em Carteira de
Trabalho. Juntas, as penas variam de cinco a 18 anos de prisão.

Os denunciados estão soltos e responderão o processo em liberdade. Os


nomes dos acusados não foram divulgados pelo Ministério Público.
FONTE: Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u609919.shtml>.
Acesso em: 5 jan. 2013.

Como você pôde perceber, a visão etnocêntrica de que o homem branco é
superior às outras etnias ainda perdura em nossos dias. Além disso, é importante
verificar que o índio, no período colonial, não se adaptou ao sistema de trabalho
imposto pelos europeus. Sendo assim, é preciso encontrar outro grupo de pessoas
que estejam "dispostas" a trabalhar. É aí que surge um novo filão de negócios para
um bom grupo de "empresários portugueses". Um negócio que durará séculos
e que será a maior mancha na história da colonização portuguesa no Brasil: a
escravidão africana.

DICAS

Sugestão de vídeo/música no Youtube: Racismo é burrice, de Gabriel o


Pensador. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=j5UKCOGWacg>.

O sistema escravocrata era muito rentável para os portugueses, pois na


medida em que os negros eram comprados como mercadorias na África a preços
módicos, os mesmos eram vendidos por preços muito superiores no Brasil.

Os colonizadores adquiriam estes homens e mulheres para o


desenvolvimento de atividades muito variadas. Contudo, a maior concentração
deste pessoal era carreada para a atividade agrícola. Antes, porém, é importante
destacar que dentro da África havia um sistema de escravização também, porém,
bem diferente do sistema português.

Alguns negros eram prisioneiros de guerra e outros ainda trabalhavam


como "escravos" para outros homens para a quitação de dívidas. Contudo, o
tratamento dispensado a estes possíveis escravos não era tão desumano. É muito
provável que a maneira de tratamento entre eles era "igual".

187
UNIDADE 3 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E SOCIAL NO BRASIL

Todavia, quando o português aportou em solo africano pela primeira vez,


sua intenção era bem clara: utilizar o negro para o desenvolvimento de atividades
laborais (as mais diversas possíveis), mas o negro não seria visto mais como um
sujeito portador de direitos e deveres (ou seja, como um cidadão civil). Ele, ao
contrário, será visto como uma mercadoria que pode ser posta no mercado e
comercializada como qualquer outro objeto.

Sua vida como ser humano, a partir de então, será cancelada, negada e
suprimida. A experiência de saída de sua terra natal e de seus costumes peculiares
será violenta e criminosa. Atualmente, mesmo após 400 anos da ocorrência destes
fatos, as marcas permanecem nos rostos de muitos negros "brasileiros".

A intenção de maximizar os lucros e limitar o número de proprietários


foram as razões para utilização da mão de obra escrava. Foram
escravizados os ameríndios e trazidos os negros africanos, que
acabaram por compor a mão de obra predominante na economia
açucareira. Além da exploração da força de trabalho, os portugueses
lucravam com o tráfico dos negros para o Brasil. O negro chegava
ao Brasil, depois de adquirido na África, pela prática do escambo
com os chefes dos grupos tribais: em troca de quinquilharias, negros
capturados de outras tribos eram entregues aos brancos. Os traficantes
também, muitas vezes, incendiavam aldeias africanas, aprisionando
tantos negros quanto pudessem. Trazidos em navios denominados de
tumbeiros, cerca de 40% da "carga" perecia. Mesmo assim, os lucros
com esse "negócio" eram muito vantajosos. (PRAZERES, 2008, p. 18).

FIGURA 57 – ESCRAVOS NEGROS DENTRO DOS TUMBEIROS

FONTE: Disponível em: <http://portaldoprofessor.mec.gov.br/fichaTecnicaAula.


html?aula=7241>. Acesso em: 5 jan. 2013.

188
TÓPICO 1 | FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA HISTÓRIA DO BRASIL

DICAS

Sugestão de filme: Quanto Vale ou é por Quilo?

Uma analogia entre o antigo comércio de escravos e a atual


exploração da miséria pelo marketing social, que forma uma
solidariedade de fachada. No século XVII, um capitão-do-
mato captura uma escrava fugitiva, que está grávida. Após
entregá-la ao seu dono e receber sua recompensa, a escrava
aborta o filho que espera. Nos dias atuais, uma ONG implanta
o projeto Informática na Periferia em uma comunidade
carente. Arminda, que trabalha no projeto, descobre que os
computadores comprados foram superfaturados e, por causa
disto, precisa agora ser eliminada. Candinho, um jovem
desempregado cuja esposa está grávida, torna-se matador
de aluguel para conseguir dinheiro para sobreviver.

FONTE: Disponível em: <http://www.adorocinema.com/


filmes/filme-110753/>. Acesso em: 5 jan. 2013.

Este processo escravocrata perdurou por dois séculos em nosso país, até a
iminência da Proclamação da República Federativa do Brasil. O fim da escravidão
ocorre no Brasil por volta de 1888. Entretanto, alguns pensadores tiveram uma
importância muito grande neste processo de abolição. No Brasil, Joaquim Nabuco
pode ser considerado, quiçá, o de maior destaque, apesar de suas intenções nos
levarem a possíveis interpretações duvidosas.

Segundo ele, o Brasil só se tornaria verdadeiramente independente e


emancipado na medida em que imitasse o estilo europeu de civilização.

NOTA

Caro(a) acadêmico(a), abramos um parênteses. É possível perceber o quanto a


nossa história é contraditória: os colonizadores europeus foram extremamente impositivos
e destrutivos no seu método de posse da terra; ao mesmo tempo, o seu “estilo moderno de
civilização” deve ser imitado, pois, por meio desta imitação, a sociedade brasileira será, de fato,
autônoma e independente. É difícil engolir, não é mesmo? Mas os fatos assim se sucederam
naquela época.

189
UNIDADE 3 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E SOCIAL NO BRASIL

Entretanto, esta ideia (da abolição) esteve muito presente neste momento
da História do Brasil, pois a defesa de Nabuco pelos ideais europeus inspirou-se
sobremaneira na Revolução Francesa que ocorrera no século XVIII. O negro era
visto como mercadoria, como objeto, como propriedade do dono de engenho/
fazendeiro, em suma, ele não era cidadão, não possuía direitos.

Deste modo, ele deveria passar por um processo de libertação concreta e


jurídica. Ser considerado como igual perante a lei, ser tratado com dignidade e
valor. Mas, como sabemos, isso ocorreu do ponto de vista jurídico, mas do ponto
de vista concreto, não.

Como Nabuco afirma:

Escravidão e indústria são termos que se excluíram sempre [...] O


espírito da primeira, espalhando-se por um país, mata cada uma
das faculdades humanas, de que provém a indústria: a iniciativa, a
invenção, a energia individual; e cada um dos elementos de que ela
precisa: a associação de capitais, a abundância de trabalho, a educação
técnica dos operários, a confiança no futuro. No Brasil, a indústria
agrícola é a única que tem florescido em mãos de nacionais. O comércio
só tem prosperado nas de estrangeiros. Mesmo assim, veja-se qual é o
estado da lavoura [...]. Está, pois, singularmente retardado em nosso
país o período industrial, no qual vamos apenas agora entrando. [...]
A cada passo encontramos e sentimos os vestígios deste sistema que
reduz um belo país tropical ao aspecto das regiões onde se esgotou a
força criadora da terra [...]. Onde quer que se a estude, a escravidão
passou sobre o território e os povos que a acolheram, a viram como
um sopro de destruição. (NABUCO, 1999, p. 167, 178).

Deste modo, é importante lembrar que há um interesse muito grande pelo


fim da escravidão por um motivo bem óbvio: o advento da industrialização no
Brasil, já que a escravidão ocorre no fim do século XIX. Deixando claro, outrossim,
que as intenções de Nabuco também não eram tão civilizatórias quanto pareciam.

3 IMIGRAÇÃO EUROPEIA E INDUSTRIALIZAÇÃO


No sistema de produção industrial, há um novo critério de seleção dos
trabalhadores: eles não podem ser escravos, ao contrário, devem ser assalariados.
O que, no fim das contas, não muda muita coisa. Todavia, os escravos devem ser
libertos para que saiam do espaço de produção açucareira ou cafeeira e migrem
para as cidades. E é, pois, justamente no início do século XX que as grandes
cidades do Brasil se tornam grandes "metrópoles".

Aliás, é salutar destacar um ponto que por muitos é esquecido neste


ínterim: a imigração europeia. Assim sendo, resta uma pergunta: por que ela
ocorreu maciçamente no final do século XIX no Brasil? Eis algumas possíveis
respostas:

190
TÓPICO 1 | FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA HISTÓRIA DO BRASIL

1 - Os negros não possuíam qualificação para atuar em atividades especializadas.

2 - Houve um grande colapso financeiro na Europa neste mesmo período. Muitas


pessoas perderam suas esperanças de uma vida boa em suas próprias terras,
especialmente os italianos, levando-os a abandonar suas terras.

3 - O advento das guerras mundiais forçou muitas pessoas à emigração.

FIGURA 58 – IMIGRAÇÃO EUROPEIA NO BRASIL

FONTE: Disponível em: <http://www.curitiba-parana.net/italianos.htm>. Acesso


em: 5 jan. 2013.

É importante recordar, caro(a) acadêmico(a), que no início da imigração


no Brasil houve um período no qual muitos fazendeiros e empresários brasileiros
desejaram impor um sistema escravocrata aos imigrantes europeus. Porém, isso
não ocorreu por muito tempo, pois a postura de entendimento destes trabalhadores
era mais esclarecida. Sendo assim, os fazendeiros brasileiros tiveram que aceitar
que, pelo menos, estes trabalhadores eram cidadãos.

AUTOATIVIDADE

Leia com atenção a letra da música “Mentiras do Brasil”, de Gabriel o Pensador,


e, em seguida, responda o que se pede:

Era uma vez duas criancinhas


Um mundo do faz de conta era onde eles viviam
Seus nomes eram José e Maria
E verde e amarelo era a bandeira que vestiam
Queriam viver com felicidade mas pra isso era preciso saber sempre a verdade
Os adultos hipócritas provocavam sua ira
Pois quem é puro não gosta de conviver com a mentira

191
UNIDADE 3 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E SOCIAL NO BRASIL

Mas Zezinho e Maria eram puros porém sabidos


Deixavam tapados um dos lados de seus ouvidos
Pra não entrar por aqui e sair por ali
O que escutavam e achavam importante refletir
E na TV as histórias que os adultos contavam
Eles gostavam de ver
Mas nem sempre acreditavam
Se revoltavam vendo coisas que até cego já viu
E resolveram fazer uma lista com...
As maiores mentiras do Brasil
Vocês e suas mentiras vão pra... (primeiro de abril!)
As maiores mentiras do Brasil
Vocês e suas mentiras vão pra... (primeiro de abril!)
E uma mentira absurda encabeçava o rol:
Deus é brasileiro... (Só se for no futebol!)
Certas frases conhecidas são mentiras e ninguém nega
(por exemplo?) “A justiça é cega!”
Quem prega isso é canalha (psh! Não espalha)
Porque aqui a justiça tarda... E falha!
E o Zezinho gargalha com outra mentira boçal
(qual?) “O brasileiro é cordial” aha!
Mas que gracinha, imagina se não fosse!
Se o brasileiro é amável, Adolf Hitler é um doce
Porque a lei de Gérson é o nosso evangelho
Todos querem se dar bem e não se respeita nem os velhos
Dizem também que o pobre é malandro
Mas o povão tá só ralando e quem tá armando são os grandes empresários e
empreiteiros
Mas até hoje só prenderam o PC e os bicheiros
No país da impunidade tudo é contraditório
Deixam o resto em liberdade em troca de um simples bode expiatório
Que situação patética
É real ou ilusório o processo de restauração da ética?
Será que é boato? Zezinho e Maria perguntavam
E enquanto isso anotavam...
Refrão
Mentira tem perna curta e se desmente facilmente
Zezinho estava em frente a uma loura linda e inteligente
E tem gente que diz que toda mulher bonita é burra
Quem acredita merece uma surra
Dizem que o bebê vem da cegonha
E que cresce pelo na mão se bater uma bronha
Mas o pequeno Zé não acreditava
E se crescesse ele raspava
A lista de mentiras aumentava:
Comunista come criancinha, Aids é doença de gay
“Mentira!” (seu comunista, bota camisinha!)

192
TÓPICO 1 | FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA HISTÓRIA DO BRASIL

Mariazinha ficou mocinha e descobriu que era caô


Que só existia sexo com amor
Aprendeu a falar inglês e viu que não é só filme brasileiro que tem muito
palavrão
Pois foi no cinema e ouviu tudo o que eles cortam na legenda e na dublagem
da televisão
Queriam as verdades sem cortes
Queria liberdade
Queriam independência ou morte
Perguntaram ao fantasma de Cabral a história real entre Brasil e Portugal:
“Não foi sem querer que descobrimos vosso país
Nós portugueses não somos burros como se diz!”
Outra piada que não era nada séria era que a seca do Nordeste era a culpada
da miséria
Desculpa esfarrapada puro blá, blá, blá...
Pois se os políticos quisessem eles faziam o sertão virar mar!
Tem também a lenda eterna da falta de verbas
As moscas mudam mas é sempre a mesma merda...
E a lista continua sem parar
Com mentiras que o Pinóquio teria vergonha de contar
Refrão
Diziam que o Brasil é o país do futuro
Mas eles viram que o melhor era viver o presente
Zezinho e Maria decidiram mostrar pra todo mundo que é mentira que o
Brasil não vai pra frente!
Eram crianças
Tinham muita esperança
Mas não queriam esperar pois quem espera nunca alcança
Acharam nojento todo aquele fingimento
E começaram a ficar violentos
(O brasileiro tá cansado de ser enganado
Daqui pra frente os mentirosos serão enforcados)
E começaram assim uma revolução
Controlaram todos os meios de comunicação
E revelaram sua lista com as milhões de mentiras
Que atrasavam a ordem e o progresso da nação
Só tinham uma saída pro país
Acabar com as mentiras pela raiz
E como toda revolução deixa cicatriz
O sangue jorrou feito um chafariz
Foi uma vitória do povo e no final da conquista
Zezinho e Maria puseram fogo na lista das...
Refrão
E ao voltarem pra casa encontraram seu pai emocionado por tudo que eles
tinham aprontado
Uma nova era tinha começado e não era à toa que os olhos do coroa estavam
encharcados

193
UNIDADE 3 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E SOCIAL NO BRASIL

Uma lágrima desceu e Zezinho percebeu que descobria mais uma mentira nessa
hora...
Homem também chora

FONTE: Disponível em: <http://letras.mus.br/gabriel-pensador/96130/>. Acesso em 5 fev.


2013.

1 Diante da letra contundente de Gabriel o Pensador, elabore uma redação


apontando quais são as maiores mentiras do Brasil atualmente (É importante
destacar as mais variadas falácias ou mentiras que existem atualmente, desde
a sua vida pessoal até a vida social).
____________________________________________________________________
____________________________________________________________________
____________________________________________________________________
____________________________________________________________________
____________________________________________________________________
____________________________________________________________________
____________________________________________________________________
____________________________________________________________________
____________________________________________________________________
____________________________________________________________________
____________________________________________________________________
____________________________________________________________________
____________________________________________________________________
____________________________________________________________________
____________________________________________________________________
____________________________________________________________________

Além disso, não podemos nos esquecer de um momento muito peculiar


da história da nossa colonização: a transferência da coroa portuguesa para o
Brasil, no início do século XIX. O rei de Portugal transferiu a sede da monarquia
para sua maior colônia, o Brasil. D. João VI, na época, transferiu residência para
cá, por alguns motivos bem interessantes:

a) Napoleão Bonaparte queria invadir Portugal e apossar-se do país, mas D. João


não queria enfrentar o poderio da armada francesa, ao mesmo tempo que, b)
a coroa portuguesa possuía inúmeras dívidas com a monarquia inglesa e as
principais imposições francesas colocavam em xeque a relação entre Portugal e
Reino Unido.

Portugal teria que aderir ao bloqueio continental (fechar os seus portos à


navegação britânica), declarar guerra aos ingleses, sequestrar os bens dos ingleses
em Portugal e deter todos os cidadãos ingleses residentes no país. D. João VI viu-se
pressionado, numa "sinuca de bico", totalmente "sem saída". (WIKIPÉDIA, 2013).

194
TÓPICO 1 | FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA HISTÓRIA DO BRASIL

Deste modo, uma das possíveis soluções para a resolução dos conflitos
com os vizinhos europeus era o abandono do controle da coroa em Portugal, ou
seja, D. João VI deveria fugir de Portugal, para encontrar "asilo" em sua colônia
mais próspera, o Brasil. O que, de fato, veio a acontecer. Assim, tem início, em
1808, a solidificação do Brasil enquanto império e sede da monarquia portuguesa.
D. João VI permaneceu no Brasil por 12 anos, quando a Revolução de 1820,
em Portugal, exigiu o retorno da Família Real portuguesa e da Corte a Lisboa.
Além disso, Pedro de Alcântara (D. Pedro I), filho de D. João VI, que nascera
em Portugal, continuou o mandato de seu pai no Brasil, assumindo o poder da
colônia e, posteriormente, a sua independência da metrópole. (LUI, 2012).

FIGURA 59 – CHARGE SOBRE A FUGA DE D. JOÃO VI PARA O BRASIL


(ATUALIZADA PARA OS DIAS DE HOJE)

FONTE: Disponível em: <http://comtudojuntoemisturado.blogspot.com.


br/2011/04/twittadas-historicas.html>. Acesso em: 25 jan. 2013.

A vinda da família real trouxe alguns avanços culturais e econômicos para


a colônia, mais especificamente para a cidade do Rio de Janeiro (que permaneceu
como capital do Brasil até a criação de Brasília-DF), como a criação do Museu
Nacional, do Jardim Botânico, de escolas, do primeiro Banco do Brasil etc.

Contudo, o custeio da "fuga" de D. João VI e os empréstimos que a corte


portuguesa já havia realizado com a Inglaterra fizeram "engrossar" ainda mais a
dívida que, mais tarde, o Brasil herdou de Portugal. Sendo assim, é importante
salientar que é justamente no século XIX que Portugal e Brasil vão estreitar
demasiadamente a sua relação com o Reino Unido, pois as principais dívidas que
estes países contraíram se deram neste período.

Após o retorno da família real para Portugal, iniciou-se um processo de


independência do Brasil, que levou um pouco mais de dois anos para acontecer
(1822). Contudo, o que mais nos interessa destacar aqui é o “fato econômico” de
como isso se deu.

195
UNIDADE 3 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E SOCIAL NO BRASIL

Pressionado pela Inglaterra, que tinha grande interesse pela independência


brasileira e para quem a coroa portuguesa devia muito dinheiro (como já é
sabido), Portugal finalmente outorgou a emancipação do Estado Brasileiro em 29
de agosto de 1825, impondo apenas duas "modestas" condições:

a) Receber uma indenização de dois milhões de libras esterlinas (o que equivale


aproximadamente a R$ 6.320.000,00 hoje em dia). Mas, como seria possível pagar
tamanha quantia? Emprestando da Inglaterra, o que não passou de uma simples
"transferência de dívida bancária".

NOTA

Caro(a) acadêmico(a): é possível perceber a jogada? Assim, nasce a famosa


dívida externa do Brasil. Não há guerra entre colônia e metrópole, mas ocorre uma “bruta
alienação” da primeira para com uma terceira, a Inglaterra. “Saímos da frigideira e caímos no
fogo”.

b) D. João VI, que havia recuperado o poder de Portugal, em 1824, recebeu


o título de imperador honorário do Brasil, decisão que mantinha o vínculo entre
os dois países e dava a D. Pedro I (imperador do Brasil) a possibilidade de assumir
o reino de Portugal, caso isso fosse realmente necessário (o que, de fato, veio a
acontecer) (LUI, 2012).

Contudo, a independência do Brasil não transformou a nossa nação em


um lugar melhor para se viver. A primeira coisa que gostaríamos de sublinhar
é que, mesmo com a emancipação brasileira, o sistema de governo permaneceu
monárquico. Diferentemente de outros países latino-americanos, que adotaram
o sistema democrático-republicano, o Brasil continuou sob o comando de um só.

Esta forma de governo não modificou as relações sociais, de tal modo


que, como já vimos, não aboliu a escravidão e nem estabeleceu relações mais
igualitárias entre nobreza e povo. Aliás, D. Pedro I, por não alterar o modo de
governar o país, enfrentou inúmeras insurreições populares, que ultimaram por
"expulsá-lo do país".

Das revoltas populares, a principal indignação era o uso, por parte de D.


Pedro I, do poder moderador, que resultava em um centralismo administrativo, ou
seja, ele tomava as decisões do governo e controlava todas as áreas administrativas
e políticas sem consultar ninguém. Dito de outro modo: D. Pedro I estabeleceu
um verdadeiro absolutismo monárquico em nosso país. Diante disso, uma
grande insatisfação popular levou-o a abdicar do Império brasileiro para retornar
a Portugal. (LUI, 2012).

196
TÓPICO 1 | FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA HISTÓRIA DO BRASIL

FIGURA 60 – RETORNO DE D. PEDRO I PARA PORTUGAL

Vê se agora sossega e
para de renunciar!

D. Pedro I retorna a Portugal para assumir o trono português.

FONTE: Lui (2012, p. 112)

Num primeiro momento, parece que esta "estória" acaba por aqui, porém os
absurdos ainda não findaram. Ao retornar para Portugal, D. Pedro I deixa seu filho
de apenas cinco anos de idade para governar o Brasil. Veja, caro(a) acadêmico(a),
D. Pedro II era um simples garotinho e foi-lhe confiada uma tarefa que muito
"marmanjo" teria medo de enfrentar. Sendo assim, como ele não era maior de
idade, fora composta uma equipe regencial liderada por José Bonifácio de Andrada
e Silva, que, concomitantemente, fora o tutor mais importante de D. Pedro II.

Durante o processo de preparação do novo imperador do Brasil, novas revoltas


ocorreram (Guerra dos Farrapos, Balaiada, Sabinada etc.), desabonando a autonomia
e a isonomia da atuação da "Conjunta Regencial". Estas revoltas despertavam na
população e, principalmente, na nobreza brasileira, um profundo desprazer com o
desempenho daqueles que deveriam cuidar das coisas do novo imperador.

Mesmo assim, Pedro II permaneceu sob a tutela de José Bonifácio


até completar 15 anos de idade, quando é dado o "Golpe da Maioridade",
emancipando-o civil e politicamente. Esta emancipação, como pode ser concluído,
é meramente ilustrativa, de fachada mesmo, pois quem continuou a mandar no
país foi a própria nobreza. Algo que, na verdade, não deixou de existir até os
nossos dias. (LUI, 2012).

Outrossim, logo mais, em 1889, haverá um novo movimento interno no


Brasil, mas este agora será em nome da República e da abolição da monarquia.
Contudo, antes de adentrarmos neste ponto, nos parece ser muito profícua a
seguinte pergunta: "E o povo? Onde ele entra nesta história?" De uma maneira
muito simplista, mas eficaz, podemos afirmar que o povo sempre "ficou a ver

197
UNIDADE 3 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E SOCIAL NO BRASIL

navios" (referência à charge acima), pois o modo como o Brasil foi "descoberto" e
construído sempre se pautou nos interesses da nobreza ou da burguesia.

Este breve relato histórico, caro(a) acadêmico(a), tem a intenção de revelar a


você o quanto a nossa história é truncada, complexa e cheia de "maracutaias". Aqui
nada acontece por acaso, apesar de nos venderem a ideologia de que o Brasil é o
país do futuro. E como podemos ver, a charge que segue debocha de tal afirmação:

FIGURA 61 – ONDE ESTÁ ESTE BRASIL?

FONTE: Disponível em: <http://blog.opovo.com.br/blogdoeliomar/e-no-pais-do-


futuro/>. Acesso em: 10 jan. 2013.

Mas voltemos ao tema. Com o fim da Monarquia e com o nascimento da


República, há uma nova esperança de que as coisas no Brasil vão melhorar. Mas isso,
na verdade, não aconteceu. Outrossim, é importante lembrarmos que todo movimento
em prol da República foi orquestrado pelos militares do Exército Brasileiro.

ATENCAO

A criação do Exército Brasileiro teve início, enfaticamente, durante a Guerra do


Paraguai, em meados do século XIX (1864-1870). Guerra, aliás, que trouxe maiores dividendos
com a Inglaterra. Contudo, o movimento que deu origem à Proclamação da República teve
o seu início decretado pelos militares em 1889, ou seja, em menos de 20 anos o Exército
brasileiro já demonstrava o quanto queria comandar e dirigir o Brasil. Este domínio militar
ocorreu através de um golpe de Estado. D. Pedro II é deposto e um novo sistema de governo
é implementado. Entretanto, neste processo de mudança, mais uma vez o povo não é
consultado, permanecendo novamente alienado, sem nada saber. Aliás, foi decidido que se
faria um referendo popular, para que o povo brasileiro aprovasse ou não, por meio do voto, a
República. Porém, esse plebiscito só ocorreu 104 anos depois, determinado pelo 2º artigo do
Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição de 1988. (WIKIPÉDIA, 2013).

198
TÓPICO 1 | FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA HISTÓRIA DO BRASIL

Mais curioso ainda é notar que, no século XX, isso volta a se repetir com o
período da ditadura militar em nosso país, só que de um modo invertido: rechaçando
a democracia e impondo um absolutismo ditatorial e violento. (LUI, 2012).

O maior problema é tentar, diante de tudo isso, compreender se a História do


Brasil é, realmente, uma história, pois, às vezes, tudo parece ser uma grande piada,
de tal maneira que o filme "Carlota Joaquina, Princesa do Brasil" é uma comédia
bem verossímil acerca desta hipótese. O filme faz uma sátira da vida de Carlota
Joaquina, esposa de D. João VI, que veio ao Brasil no período da transferência da
Corte Portuguesa para o Rio de Janeiro. Um dos pontos mais peculiares é a narração
do filme, que é feita por um jovem e uma garota inglesa, demonstrando, quiçá, o
olhar descrente e debochado de muitos estrangeiros sobre a nossa história.

DICAS

Sugestão de filme: Carlota Joaquina, Princesa do Brasil

Espanha, 1785 - Carlota Joaquina (Marieta Severo), uma


infanta que foi prometida para D. João VI, aos 10 anos de
idade recebe o retrato do seu futuro esposo e é obrigada a
partir para Portugal, levando consigo somente sua herança
familiar. Chegando em seu novo país, Carlota sofre uma
grande decepção ao encontrar seu “prometido”... gerando
muitas brigas, infidelidades e muitos filhos. Com a morte
de D. José, herdeiro do trono português e a declarada
insanidade de Maria, Carlota Joaquina e D. João VI herdam
a coroa portuguesa. Porém, assustados com a Revolução
Francesa e a aproximação do exército de Napoleão,
resolvem fugir para sua colônia: o Brasil. “Carlota Joaquina”
é uma produção esmerada que retrata a história do Brasil
com requintes de época, sob direção de Carla Camurati,
uma ótima revelação do cinema brasileiro.

FONTE: Disponível em: <http://www.filmesdecinema.com.br/filme-carlota-joaquina-princesa


-brasil-799/>.

4 A REPÚBLICA VELHA
Mas a história não para por aqui. Há muito ainda para ser contado. Após
a Proclamação da República, houve um período no Brasil denominado República
Velha, no qual o governo do país foi intercalado entre os barões do café e os
agropecuaristas da região Sudeste do Brasil (a famosa política do "café com leite").
Neste período houve, ao mesmo tempo, uma grande transformação urbanista
das cidades do Sudeste, principalmente do Rio de Janeiro. Esta mudança ficou
conhecida como Belle Époque, que conceitualmente é compreendida.

199
UNIDADE 3 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E SOCIAL NO BRASIL

como uma fase de desenvolvimento cultural cosmopolita e moderna


que, na Europa, começou por volta de 1870 e durou até a eclosão
da Primeira Guerra Mundial, em 1914. Por essa expressão também
podemos entender o clima intelectual e artístico do período, marcado
por profundas transformações, sobretudo no âmbito da cultura, cuja
ênfase recaía na valorização de uma era de beleza, inovação, paz e
progresso. (BERLATTO, 2010, p. 30).

Apesar de ter início na Europa, os intelectuais brasileiros consideravam


que era necessária a imitação deste estilo de vida europeu, haja vista que era
preciso esquecer o passado de escravidão e monarquia e seguir os passos de
países já desenvolvidos (o que se resume em três pontos cruciais: a defesa da
democracia, o desenvolvimento das cidades e a criação de indústrias). Porém,
neste processo, boa parte dos intelectuais brasileiros da época (vide Joaquim
Nabuco) esqueceu totalmente do modo como estes países europeus alcançaram
tamanho patamar de desenvolvimento, a saber, às expensas de suas colônias
(principalmente Portugal, Espanha e França).

Contudo, a República Velha deu um novo impulso econômico ao Brasil,


originando o investimento em estradas de ferro, usinas hidrelétricas e redes
telegráficas, sem olvidar, entretanto, das revoltas que ocorreram neste mesmo
período, sendo que uma das mais sangrentas da História do Brasil sucedeu no
Estado de Santa Catarina: a Guerra do Contestado, onde se estima que mais de 20
mil mortes ocorreram no período de 1912 a 1916.

No final da década de 1920, Getúlio Vargas (que será o líder civil da


Revolução de 1930) pôs fim à República Velha, depondo seu 13º e último
presidente, Washington Luís, e impedindo a posse do presidente eleito em 1º
de março de 1930, Júlio Prestes.
FONTE: Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Get%C3%BAlio_Vargas>. Acesso em: 6 fev.
2013.

Vargas chega ao poder no Brasil, mas isso não significa, de qualquer


maneira, que grandes mudanças a favor do povo vão ocorrer. Aliás, diga-se
de passagem, é muito acertado afirmar que Getúlio Vargas tenha sido o maior
estrategista político do Brasil até os nossos dias. O método utilizado por ele para
governar o país foi muito bem executado para a sua época, pois ele passava
uma imagem de confiança e austeridade para o povo, ao promover alterações
trabalhistas (como a criação de sindicatos e da CLT), ao mesmo tempo em que
executava mudanças radicais no sistema de governo. (WIKIPÉDIA, 2013).

Do ponto de vista intelectual, a República Velha foi marcada pela busca da


identidade nacional, sobre a qual deveria ser edificada a "nação Brasil". O espaço
fundamental onde a cultura luso-brasileira ganhou expressão foi a "Semana de
Arte Moderna", realizada em São Paulo em 1922, por ocasião do centenário da
independência. O "modernismo" que se revelou nessa ocasião não evidenciou
apenas o peso da "cultura do Brasil", mas também o "nativismo", que estava
convicto de que as demais culturas deveriam ser absorvidas por aquela que tinha

200
TÓPICO 1 | FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA HISTÓRIA DO BRASIL

sido elevada à cultura padrão e normativa. O que, contudo, do ponto de vista


sociológico e filosófico, é irrealizável, em decorrência da diversidade inerente a
toda a sociedade humana, e principalmente a brasileira.

Nesse sentido, Oliveira (2005) analisa a tentativa de construção da


identidade nacional ressaltando o seu caráter de "enxerto", ou seja, de tentativas
de combinação das diferentes culturas que integram a sociedade brasileira, que,
por fim, não passam de mito.

5 A ERA VARGAS
Sendo assim, vejamos, caro(a) acadêmico(a), algumas estratégias de
governo usadas por Vargas durante seu governo: a industrialização progrediu
de forma substancial, as cidades cresceram, o Estado se tornou forte, houve
interferência na economia e foi instaurada uma nova relação com os trabalhadores
urbanos. Enquanto permaneceu no poder, Vargas foi chefe de um governo
provisório (1930-1934), presidente eleito pelo voto indireto (1934-1937) e ditador
(1937-1945).

A grande virtude de Getúlio no poder foi reconhecer as transformações


que vinham se processando no país, com a emergência de novas forças
sociais e a necessidade do atendimento rápido dessas demandas,
como as dos operários e as dos empresários. Por isso, Getúlio investiu
na indústria, aumentando o poder da burguesia urbana, sem ceder,
no entanto, o controle das decisões políticas. Concedeu direitos aos
trabalhadores, mas, ao mesmo tempo, criou mecanismos de controle e
"domesticação" bastante eficientes. (PRAZERES, 2008, p. 1).

Ao tomar posse em 1930, Getúlio Vargas discursou que o seu governo era
provisório, mas tão logo começou a governar, tomou uma série de medidas que
fortificaram o seu poder. Dissociou todos os segmentos que compunham o Poder
Legislativo, exercendo assim o Poder Legislativo e o Executivo simultaneamente.

Vargas também suprimiu a Constituição estabelecida, exonerou os


governadores e, para substituí-los, nomeou interventores de sua confiança.
Vários deles eram militares ligados ao tenentismo, que foi um movimento de
certos militares brasileiros que se colocavam contra a situação política brasileira
anterior a Vargas.

Os tenentes no papel de interventores substituíram os presidentes de


estados exonerados e cumpriram a tarefa de neutralizar as possíveis resistências
dos velhos poderes locais ao novo governo, a fim de consolidar a revolução. A
Era Vargas contou com uma política intervencionista ferrenha. Através disso, o
poder público contemplou outros interesses sociais, superando a visão arcaica
que a oligarquia tinha das funções do Estado. (AGUIAR, 2012).

FONTE: Disponível em: <http://www.brasilescola.com/historiab/era-vargas.htm>. Acesso em: 6


fev. 2013.

201
UNIDADE 3 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E SOCIAL NO BRASIL

FIGURA 62 – VARGAS, O PAI DOS POBRES?!

FONTE: Disponível em: <http://anaflaviaaideologias.blogspot.com.br/2011/05/


era-vargas-governo-democratico.html>. Acesso em: 6 fev. 2013.

DICAS

Sugestão de filme: Olga

Berlim, início do século XX. Olga Benário (Camila Morgado)


é uma jovem judia alemã. Militante comunista, é perseguida
pela polícia e foge para Moscou, onde recebe treinamento
militar e é encarregada de acompanhar Luís Carlos Prestes
(Caco Ciocler) de volta ao Brasil. Na viagem, enquanto
planejam a Intentona Comunista contra o presidente Getúlio
Vargas, os dois acabam se apaixonando. Parceiros na vida
e na política, Olga e Prestes terão de lutar pelo amor, pelo
comunismo e, principalmente, pela sobrevivência.

FONTE: Disponível em: <http://www.adorocinema.com/


filmes/filme-122446/>. Acesso em: 5 jan. 2013.

202
TÓPICO 1 | FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA HISTÓRIA DO BRASIL

AUTOATIVIDADE

Analise com atenção os principais acontecimentos históricos do país até


aqui e verifique se há algum ponto importante e comum entre todos eles. Tente
dissertar um pouco sobre isso: afinal, qual é o traço mais marcante da nossa
história, principalmente no que se refere ao processo político de formação da
nação brasileira?
__________________________________________________________________
__________________________________________________________________
__________________________________________________________________
__________________________________________________________________
__________________________________________________________________
__________________________________________________________________

Em 1951, Getúlio Vargas retornou ao posto de Presidente da República.


Para voltar ao poder, o político gaúcho optou por deixar sua imagem política
afastada dos palcos do poder. Entre 1945 e 1947 ele assumiu, de forma pouco
atuante, o cargo de senador federal. Nas eleições de 1950, ele retornou ao cenário
político utilizando-se de alguns dos velhos bordões e estratagemas (como é
apresentado na charge acima) que elogiavam o seu antigo governo.
FONTE: Disponível em: <http://www.brasilescola.com/historiab/getulio-vargas.htm>. Acesso
em: 6 fev. 2013.

Querendo buscar amplas alianças políticas, Getúlio abraçou setores com


diferentes aspirações políticas. Em um período de Guerra Fria, onde a polarização
ideológica era pauta do dia, Vargas se aliou tanto aos defensores do nacionalismo
quanto do liberalismo. Dessa maneira, ele parecia querer repetir o anterior “Estado
de Compromisso” que marcou seus primeiros anos frente à Presidência do Brasil.

Por um lado, os liberalistas, representados pelo empresariado nacional


e militares, defendiam a abertura da economia nacional ao capital estrangeiro e
a adoção de medidas monetaristas que controlariam as atividades econômicas
e os índices inflacionários. Por outro, os nacionalistas, que contavam com
trabalhadores e representantes de esquerda, eram favoráveis a um projeto de
desenvolvimento que contava com a participação maciça do Estado na economia
e a rejeição do capital estrangeiro.

Dada essa explanação, percebemos que liberalistas e nacionalistas tinham
opiniões diferentes sobre o destino do país e, até mesmo, antagonizavam em alguns
temas e questões. Dessa forma, Vargas teria a difícil missão de conseguir se equilibrar
entre esses dois grupos de orientação política dentro do país. Mais uma vez, a sua
função mediadora entre diferentes setores político-sociais seria colocada à prova.

FONTE: Disponível em:<http://www.brasilescola.com/historiab/getulio-vargas.htm>. Acesso em:


6 fev. 2013.
203
UNIDADE 3 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E SOCIAL NO BRASIL

Outrossim, entre as principais medidas por ele tomadas, podemos


destacar a criação de duas grandes estatais do setor energético: a Petrobrás (1953),
que viria a controlar toda a atividade de prospecção e refino de petróleo no país;
e a Eletrobrás (1954), empresa responsável pela geração e distribuição de energia
elétrica.

FONTE: Disponível em: <historiasecxx.blogspot.com/>. Acesso em: 6 fev. 2013.

Além disso, Vargas convocou João Goulart para assumir o Ministério do


Trabalho.

Em um período de intensa atividade grevista, João Goulart defendeu


um reajuste salarial de 100%. O principal papel da criação destas estatais era
a valorização do ufanismo nacional, e isso torna-se evidente se recordarmos o
principal slogan da Petrobrás na época: "O petróleo é nosso". Contudo, estas
medidas foram recebidas com grande desagrado pelas elites nacionais. Entre
os principais críticos do governo estava Carlos Lacerda, membro da UDN
(União Democrática Nacional), que por meio dos órgãos de imprensa acusava o
governo de promover a “esquerdização” do Brasil e praticar corrupção política.
(WIKIPÉDIA, 2013).

FIGURA 63 – CARLOS LACERDA

FONTE: Disponível em: <http://luizze1000.blogspot.com.br/2011/02/


carlos-lacerda.html>. Acesso em: 6 fev. 2013.

204
TÓPICO 1 | FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA HISTÓRIA DO BRASIL

Essa rixa entre Vargas e Lacerda ganhou as páginas dos jornais quando,
em agosto de 1954, Carlos Lacerda escapou de um atentado promovido
por Gregório Fortunato, guarda pessoal do presidente. A polêmica sob o
envolvimento de Vargas no episódio serviu de justificativa para que as forças
oposicionistas exigissem a renúncia do presidente. Mediante a pressão política
estabelecida contra si, Vargas escolheu outra solução.

Na manhã de 24 de agosto de 1954, Vargas atentou contra a própria


vida disparando um tiro contra o coração. Na carta-testamento por ele escrita,
Getúlio denunciou sua derrota perante os “grupos nacionais e internacionais”
que desprezavam a sua luta pelo “povo e, principalmente, os mais humildes”.

FONTE: Disponível em: <http://professoragiedre.blogspot.com.br/2012/08/9-ano-aula-1_3.


html>. Acesso em: 6 fev. 2013.

Maria Lígia Prado assim interpreta a prática governista de Vargas,


assemelhada à prática de Eva Perón na Argentina:

[...] o populismo não pode ser explicado basicamente pela simples


aparição de um líder que, demagogicamente, carrega e dirige as
massas para a direção que lhe aprouver. Há inúmeras variantes que
interferem no processo histórico e o conhecimento delas é que nos
pode aproximar do real. O carisma de uma Eva Perón, por exemplo,
é mais um dado que obviamente deve ser levado em conta por parte
do analista, na compreensão do fenômeno populista. Mas não pode
ser entendido como fator determinante, como se as massas caíssem
nos braços do primeiro demagogo que se lhes surgisse à frente.
[Entretanto], o fenômeno populista corresponde a uma manipulação
das massas por parte do líder, mas também corresponde a uma
satisfação de aspirações longamente acalentadas. Dessa maneira, o
líder populista, em geral com forte dose de carisma, ao mesmo tempo
em que procura manipular as massas para que elas se enquadrem
dentro dos limites por ele impostos, também ativa mecanismos de
satisfação de velhas aspirações - um exemplo, apenas, a legislação
social - das massas trabalhadoras. (PRADO, 2002, p. 76-77).

Deste modo, depois da atitude trágica do suicídio de Vargas, a população


entrou em grande comoção. Vargas passou a ser celebrado como um herói
nacional que teve sua vida ceifada por forças superiores à sua luta popular.
Com isso, todo grupo político, jornal e instituição que se opôs a Getúlio Vargas
sofreu intenso repúdio das massas. Tal reação veio a impedir a consolidação
de um possível golpe de Estado. Dessa forma, o vice-presidente Café Filho
assumiu a vaga presidencial.
FONTE: Disponível em: <http://professoragiedre.blogspot.com.br/2012/08/9-ano-aula-1_3.
html>. Acesso em: 6 fev. 2013.

205
UNIDADE 3 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E SOCIAL NO BRASIL

6 A DITADURA MILITAR
Não obstante, o referido golpe de Estado veio a ocorrer apenas em 1964,
quando as Forças Armadas do Brasil derrubaram o governo do presidente
esquerdista democraticamente eleito João Goulart e só veio a se findar quando
José Sarney assumiu o cargo de presidente, em 1985. O período da ditadura
militar talvez tenha sido o pior de todos na nossa história. Mas antes de falarmos
sobre isso, é necessário falarmos um pouco sobre os antecedentes da implantação
da ditadura no Brasil.

FIGURA 64 – PRESIDENTE JOÃO GOULART, DEPOSTO PELO


REGIME MILITAR

FONTE: Disponível em: <http://hid0141.blogspot.com.br/2009/03/


era-joao-goulart.html>. Acesso em: 5 jan. 2013.

Em 1961, Goulart foi autorizado a assumir o cargo, sob um acordo que


diminuiu seus poderes como presidente, com a instalação do parlamentarismo.
O país voltou ao sistema presidencialista um ano depois, e, como os poderes
de Goulart cresceram, tornou-se evidente que ele iria procurar implementar
políticas de esquerda, como a reforma agrária e a nacionalização de empresas
em vários setores econômicos, independentemente do consentimento das
instituições estabelecidas, como o Congresso.

FONTE: Disponível em: <http://gruop3people.blogspot.com.br/2012/11/ditadura-militar-no-


brasil.html>. Acesso em: 6 fev. 2013.

Na época, a sociedade brasileira tornou-se profundamente polarizada,


devido ao temor de que o Brasil se juntasse a Cuba como parte do bloco
comunista na América Latina sob o comando de Goulart. Políticos influentes,
como Carlos Lacerda e até mesmo Juscelino Kubitschek, magnatas da mídia

206
TÓPICO 1 | FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA HISTÓRIA DO BRASIL

(Roberto Marinho, Octávio Frias de Oliveira, Júlio de Mesquita Filho), a Igreja


Católica, os latifundiários, empresários e parte da classe média pediam uma
"contrarrevolução" por parte das Forças Armadas para remover o governo.
FONTE: Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Regime_militar_no_Brasil>. Acesso em: 7 fev.
2013.

Diante disso, a oportunidade "bateu à porta" dos militares, que


aproveitaram a ocasião para depor João Goulart.

FIGURA 65 – ROBERTO MARINHO E JOÃO FIGUEIREDO

FONTE: Disponível em: <http://beckerhistoria.blogspot.com.


br/2011/02/os-personagens-da-udn-e-o-golpe-militar.html>.
Acesso em: 5 jan. 2013.

Depois de este fato ter sido consumado, os militares governaram


o país (de 1964 a 1985) com mão de ferro e impuseram inúmeras medidas de
controle e manipulação da população em geral. Este controle ocorreu logo após
o golpe militar. Muitas instituições foram reprimidas e fechadas, seus dirigentes
presos e enquadrados, suas famílias vigiadas.

Na mesma época se formou dentro do governo um grupo que depois


seria chamado de comunidade de informações. As greves de trabalhadores e
estudantes foram proibidas e passaram a ser consideradas crime; os sindicatos
sofreram intervenção federal, os líderes sindicais que se mostravam contrários
eram enquadrados na Lei de Segurança Nacional como subversivos.

FONTE: Disponível em: <http://pensandoahistoria.wikispaces.com/06+-+IMAGENS>. Acesso


em: 7 fev. 2013.

207
UNIDADE 3 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E SOCIAL NO BRASIL

Muitos cidadãos que se manifestaram contrários ao novo regime foram


indiciados em Inquéritos Policiais Militares (IPM).

Aqueles cujo inquérito concluísse por culpa eram presos e torturados.


Políticos de oposição tiveram seus mandatos cassados, suas famílias postas sob
vigilância. Muitos foram processados e expulsos do Brasil e tiveram seus bens
indisponíveis, sem falar nas aflições que inúmeros sofreram por se manifestarem
contrários à ditadura. O conceito jurídico de liberdade de expressão ou de direitos
humanos desaparecera totalmente, ao mesmo tempo em que o regime militar
ufanizava a população brasileira com o slogan: "Brasil, ame-o ou deixe-o".

FIGURA 66 – SLOGAN "BRASIL, AME-O OU DEIXE-O"

FONTE: Disponível em: <http://geografiaetal.blogspot.com.br/2010/08/


brasil-ame-o-ou-deixe-o.html>. Acesso em: 5 jan. 2013.

Portanto, o clima no país era tão tenso que Elio Gaspari assim descreve
uma tentativa fracassada de atentado contra o presidente militar Costa e Silva,
em 1966:
Na manhã de 25 de julho de 1966, algumas dezenas de pessoas
esperavam-no [o candidato a presidente Costa e Silva] no aeroporto dos
Guararapes, no Recife. Havia gente querendo a revolução e disposta a
matar para fazê-la. Um cidadão entrou na banca de jornais do saguão
com uma maleta e saiu sem ela. Pouco depois o serviço de alto-falantes
anunciou que o candidato, que estava em João Pessoa, tivera uma pane
no avião e chegaria de automóvel a outro ponto da cidade. O jornaleiro
notou a maleta deixada no chão e pediu a um guarda-civil que a levasse
para a sala de achados e perdidos. O guarda apanhou-a e tinha dado
poucos passos quando ela explodiu. Costa e Silva deveria ter chegado
às 8h30min. A maleta detonou às 8h50min. Guardava uma bomba feita
com um pedaço de cano e que fora acionada por um mecanismo de
relógio [...]. (GASPARI, 2002, p. 240-241).

Contudo, a propaganda de rádio e televisão, naquela época, tentava


dissimular estes eventos, colocando a maioria da população contra todos aqueles
que se manifestassem contra a ditadura militar. Até mesmo porque havia uma
relação de troca de favores entre os donos das emissoras de rádio e televisão e os
militares naquele tempo.
208
TÓPICO 1 | FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA HISTÓRIA DO BRASIL

As concessões eram dadas àqueles que se comprometessem em não


divulgar os "fatos como eles realmente aconteciam". É muito comum ouvirmos,
em nossos dias, pessoas idosas, na faixa etária dos 70 anos, que acreditam, graças
à "educação militar" transmitida pelo rádio e pela televisão, que comunistas são
pessoas horríveis, medonhas, seres da pior estirpe, etc. Dessa maneira, Alcir
Lenharo, ao falar da propaganda nazista, por exemplo, explica o papel crucial da
"dissimulação dos fatos" na sua veiculação à grande massa populacional. Situação
que ocorreu no Brasil da mesma maneira.

Hitler considerava que a propaganda sempre deveria ser popular,


dirigida às massas, desenvolvida de modo a levar em conta um nível
de compreensão dos mais baixos. "As grandes massas", dizia ele,
"têm uma capacidade de recepção muito limitada, uma inteligência
modesta, uma memória fraca". Por isso mesmo, a propaganda deveria
restringir-se a pouquíssimos pontos, repetidos incessantemente. Tudo
interessa no jogo da propaganda: mentiras, calúnias; para mentir, que
seja grande a mentira, pois assim sendo, "nem passará pela cabeça
das pessoas ser possível arquitetar uma tão profunda falsificação da
verdade". (LENHARO, 1998. p. 47-48).

Mas com o governo do general Figueiredo, em 1979, o Brasil começou a passar


por um processo de abertura política. Figueiredo foi, então, responsável pela abertura
democrática do regime, com medidas como o fim do bipartidarismo (que é uma situação
política em que apenas dois partidos dividem o poder, ou constitucionalmente ou de
facto, sucedendo-se em vitórias eleitorais em que um deles conquista o governo do país
e o outro ocupa o segundo lugar nas preferências de voto), a anistia e a decretação de
eleições diretas para governadores dos Estados em 1982.

Contudo, a ditadura militar finalmente chegou ao seu fim somente em 8


de maio de 1985, quando o Congresso Nacional aprovou emenda constitucional
que acabava com alguns vestígios da ditadura.

FIGURA 67 – ABAIXO A DITADURA MILITAR

FONTE: Disponível em: <http://comdosecerta.blogspot.com.br/2012/09/


blogagem-coletiva-4-fatos-historicos.html>. Acesso em: 5 jan. 2013.

209
UNIDADE 3 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E SOCIAL NO BRASIL

De lá para cá, pouca coisa mudou. Atualmente, vivemos em um sistema


político democrático no Brasil, do ponto de vista da lei constitucional, mas isto não
significa que a democracia ocorra factualmente. Com o fim da ditadura militar e
com o início da redemocratização no país (desde as "Diretas já") até a posse da nossa
atual presidente, Dilma Roussef, os acontecimentos parecem se repetir do mesmo
modo, salvo algumas importantes exceções, como ocorriam no período militar.

A ação corrupta e desonesta de boa parte de nossos políticos escamoteia


inúmeros conchavos e estratagemas, vários "jetons" e propinas. A transparência
das ações públicas permanece inexistente. O real destino do pagamento dos
inúmeros impostos ainda é desconhecido. A vida social permanece um caos na
maioria das principais cidades brasileiras. A única grande diferença do novo
regime democrático em nosso país é o direito ao sufrágio universal. Qualquer
pessoa maior de 18 anos pode ser candidata a qualquer cargo público.

Contudo, as grandes alianças partidárias permanecem (comparando-


se com o regime militar) ditando quais serão os futuros vereadores, prefeitos,
deputados e senadores do país. Além disso, a determinação do voto é algo muito
questionável no Brasil. O ato de não votar é considerado um crime eleitoral. A
liberdade de não votar é vetada, pois o não cumprimento desta "responsabilidade
cidadã" é passível de multa.

Veja, caro(a) acadêmico(a), como as coisas funcionam no Brasil:

O eleitor que não votar e nem justificar a sua ausência estará sujeito às
seguintes restrições:
a) não poderá inscrever-se em concurso público;
b) não receberá vencimentos, remuneração, salário ou proventos, se o
eleitor for funcionário público;
c) não poderá participar de concorrência pública;
d) não poderá obter empréstimo, desde que não se trate de instituição
bancária privada;
e) não poderá obter passaporte, carteira de identidade ou CPF;
f) não poderá matricular-se em estabelecimento de ensino oficial ou
fiscalizado pelo governo;
g) não poderá praticar qualquer ato para o qual se exija quitação do
serviço militar ou Imposto de Renda. (PODER JUDICIÁRIO, GUIA
DO ELEITOR 2010, p. 58-59).

NOTA

O que foram as “Diretas já”?:


Foi um movimento civil de reivindicação por eleições presidenciais diretas, nas quais todos os
cidadãos maiores de 18 anos teriam direito de votar e eleger um presidente democraticamente,
no Brasil, que ocorreu de 1983 a 1984. Foi o primeiro sinal de que o regime militar (na época,
o presidente militar era João Figueiredo) estava em derrocada.

210
TÓPICO 1 | FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA HISTÓRIA DO BRASIL

No Brasil, além de todas as interdições que são impostas àquele que não
vota, é preciso pensar em outro ponto crucial da nossa democracia: os partidos
políticos. Sendo assim, o sociólogo brasileiro Octávio Ianni fala sobre os grupos
que representam democraticamente toda a população brasileira.

De um modo geral, os partidos possuem um poder muito maior do


que cada um dos indivíduos que a eles estão filiados, pois nenhum governante
pode assumir um cargo público desvinculado de alguma agremiação ou partido
político.
Contudo, estas associações que deveriam representar interesses coletivos,
corriqueiramente, desempenham papéis nada democráticos ou grupais, pois
segundo Ianni, em nosso país, bem como em toda a América Latina:

[...] a debilidade da sociedade civil manifesta-se significativamente


nos partidos políticos. Devido à precariedade da cultura política do
povo, sua escassa vivência do jogo político formal, tendo em conta a
prevalência do público sobre o privado, os partidos pouco representam,
enquanto instituições políticas intermediárias, por meio das quais
articulam-se os cidadãos e o Estado. Os partidos, ao longo da história
latino-americana, seriam personalistas, caudilhescos, clientelísticos.
Tanto os antigos como os recentes, à direita, no centro e à esquerda.
Seriam pouco estruturados, sujeitos à influência de personalidades
fortes, coloridas, demagógicas, carismáticas. Nos processos eleitorais
e nos governos, nos poderes Executivo e Legislativo, em geral
predominam chefes, caudilhos, caciques, coronéis, gamonales ou
oligarcas; em lugar de programas, plataformas. O clientelismo,
favoritismo, paternalismo, cartorialismo subsistem além do interesse
público. Os partidos podem chamar-se liberais, conservadores,
blancos, colorados, autênticos, ortodoxos, radicais, trabalhistas,
justicialistas, nacionalistas e outras denominações, mas tendem a ser
oligárquicos, personalistas, caudilhescos. (IANNI, 1993, p. 20).

Esta citação tirada do livro "O labirinto latino-americano", de Octávio


Ianni, encerra este primeiro tópico da Unidade 3. Ianni apresenta o papel dos
partidos políticos como algo ruim e funesto. Algo que poderia ser abolido do
sistema democrático brasileiro, entretanto, esta "erva daninha" não esmorece, pois
o esquema de favorecimento que havia no regime militar ainda não despareceu.
Ele apenas vestiu uma outra roupagem.

211
RESUMO DO TÓPICO 1

• Trata brevemente sobre a História do Brasil e os vários acontecimentos que


demarcam os encontros e desencontros sobre nossa História, que principiam
com a colonização portuguesa e se “findam” com os dias atuais.

• Nosso intuito ao abordar de maneira clara e simples a nossa História foi o de


demonstrar que os mitos brasileiros (Deus é brasileiro, brasileiro cordial, entre
outros que também foram vistos na Unidade 2) são falsos e não representam
enfaticamente a realidade nacional.

• Existem inúmeros equívocos sobre o Brasil que não são veiculados pela grande
mídia, pois não há nenhum grande interesse, de modo geral, em tornar as
pessoas de nosso país mais instruídas e menos alienadas. Aliás, a famosa frase:
“está bom assim como está” é uma evidência desta assertiva.

• O desafio de querer aprender, de modo mais aprofundado, sobre a nossa
História é o principal desafio que nos propusemos a apresentar neste tópico.
A escravidão indígena e africana, bem como, a ditadura militar, podem ser
considerados os períodos mais nefastos e assustadores desta História.

• A História do Brasil é também demarcada pelo aparecimento no século XX


(principalmente) de vários movimentos sociais que vão defender múltiplos
interesses coletivos (preferencialmente de caráter político).

• Através de algumas sugestões de filmes que elencamos no transcorrer deste


tópico, para os acadêmicos aprofundarem as temáticas que, por demanda de
tempo ou por desatenção, não conseguimos aqui estabelecer.

• Este tópico é, por nós, considerado o mais importante e complexo da unidade,
pois exigiu-nos mais atenção e cautela no momento de situar as conexões entre
os fatos do passado com os do presente.

• Pedimos atenção redobrada para a compreensão das relações que tentamos
constituir entre a atualidade e o passado e, que ao fim e ao cabo, este material
contribua, consideravelmente, para o crescimento intelectual de nossos
acadêmicos.

212
AUTOATIVIDADE

FIGURA 68 – EXISTE REALMENTE ALGUMA DIFERENÇA?

FONTE: Disponível em: <http://japumirimnoticias.com.br/>. Acesso em: 15


jan. 2013.

Ao ler este último ponto sobre a História do Brasil, nota-se que,


apesar das inúmeras siglas partidárias, pouca variação de conteúdo e ideias
existe entre os vários partidos políticos. Aliás, segundo a figura acima, todos
eles estão “de mãos dadas”. Sendo assim, elabore uma redação abordando
o problema da possível similaridade (ou ausência de) entre as “convicções
políticas” e as “atitudes políticas” em nosso país:

____________________________________________________________________
____________________________________________________________________
____________________________________________________________________
____________________________________________________________________
____________________________________________________________________
____________________________________________________________________
____________________________________________________________________
____________________________________________________________________

213
214
UNIDADE 3
TÓPICO 2

FILÓSOFOS E SOCIÓLOGOS
BRASILEIROS DE DESTAQUE

1 INTRODUÇÃO
Falar sobre a sociologia do Brasil é um desafio muito grande. Como já
vimos na Unidade 2, os pensadores mais conhecidos e respeitados no mundo
acadêmico são europeus. Entretanto, no século XX (principalmente na segunda
metade desse século), vários pensadores nacionais se propuseram a pensar a vida
social do Brasil.

No Tópico 1 desta unidade lemos que a História do Brasil está repleta de


desencontros e “más intenções”. Na verdade, até hoje perguntamo-nos até que
ponto a História do Brasil foi feita com intenções realmente puras no que tange
ao desenvolvimento de uma nação soberana.

Aliás, no tópico anterior, temos consciência de que nosso método de


abordagem foi bem contundente, pois nossa pretensão era a de “abrir os seus
olhos”, caro(a) acadêmico(a), para uma história mais legítima e verdadeira,
ausente de heróis e de mocinhos.

Contudo, apesar de tantas agruras que perpassaram (e ainda perpassam)


a nossa história, é possível ver e compreender a sociedade brasileira de um modo
mais direto e, mesmo que, ao estudarmos o nosso entorno (desde o bairro até o
país) não abandonemos o nosso envolvimento com ele, deve-se analisar do modo
mais autêntico possível esta realidade.

Dentre os vários pensadores brasileiros, que queremos apresentar neste


tópico, gostaríamos de destacar Oliveira Viana e sua defesa da eugenia racial,
e Sérgio Buarque de Holanda e o mito do brasileiro cordial. Neste sentido, é
importante salientar que os dois pensadores possuem ideias bem diferentes sobre o
Brasil, mas ambos servem de fundamentação teórica para analisar porque o Brasil
constituiu-se em um país tão diversificado e contraditório.

Enquanto Oliveira defende uma visão de melhoramento racial ao


promover a imigração de europeus para o Brasil, ao mesmo tempo em que analisa
a sociedade do século XIX (com base na divisão social fundada na raça) como o
melhor período da História do Brasil, Holanda analisa cruamente as relações de
produção e trabalho, afirmando que o brasileiro, de um modo geral, é um bon

215
UNIDADE 3 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E SOCIAL NO BRASIL

vivant. Holanda demonstra que as relações entre as pessoas são demasiadamente


personalistas, e justamente por este motivo a via de sucesso por meio do trabalho
árduo não é algo muito apreciado pelos brasileiros, genericamente falando. O
que, como se pôde ver na Unidade 2, se opõe totalmente ao método abordado
por Weber, na sua análise da História da “Ética Protestante e o Espírito do
Capitalismo”. Além disso, Holanda, como veremos no decorrer deste tópico,
aprofunda esta análise e aborda o personagem “Zé Carioca” como o ícone
estereotipado deste possível brasileiro cordial, mas que, ao mesmo tempo, não
deixa de ser esperto e malandro.

Caro(a) acadêmico(a), o desafio de conhecer algo novo é tão perigoso


quanto excitante. Estudar a história do nosso país e seus principais pensadores não
deve ser algo temido, mas, ao contrário, deve ser algo desejado e querido. Esta é a
nossa maior intenção enquanto professores e tutores. Pois, como afirma um ditado
espanhol, “quién sabe más, vive mejor”. Então, sigamos em frente. E o primeiro
pensador com o qual nos ocuparemos é Euclides da Cunha.

2 EUCLIDES DA CUNHA
Euclides da Cunha, no nosso entendimento, é considerado um dos
pensadores mais autênticos do Brasil. Seu modo de compreensão do país parece
ser muito real no que se refere à relação dos dois mundos que compõem o país, a
saber, o litoral e o interior. De um modo geral, a visão que se tem do interior, no
início do século XX, é de que a barbárie e o atraso residiam nesta região e de que
o desenvolvimento jamais chegaria a este lugar.

Por outro lado, a ideia de desenvolvimento e de sucesso econômico


repousava na região litorânea brasileira. Havia pessoas que afirmavam que o
interior brasileiro já se iniciava no fim da Avenida Central, do Rio de Janeiro.

Deste modo, esta divisão sempre foi muito clara quando se abordavam
os acontecimentos nacionais. Hodiernamente ainda vemos, em jornais e revistas
dedicadas a notícias e fatos, que esta divisão ainda permanece. Para Euclides,
esta divisão não é justa e nem mesmo corresponde à realidade, pois, segundo ele,
o homem litorâneo, por mais que seja desenvolvido, não é autêntico, pois é uma
imitação dos modelos europeus de homem.

Os homens que viviam no litoral, segundo Euclides, repetiam apenas


aquilo que era feito ou criado na Europa, principalmente na França, pois no
final do século XIX e início do século XX os intelectuais brasileiros, assim como a
burguesia, seguiam os padrões franceses de comportamento. Tanto é que, como
vimos, foi neste período que a cidade do Rio de Janeiro viveu plenamente a sua
Belle Époque (expressão francesa que significa bela época).

Este encantamento pelo mundo europeu era falso para Euclides e não
representava fidedignamente a realidade nacional. Ao contrário, o homem do

216
TÓPICO 2 | FILÓSOFOS E SOCIÓLOGOS BRASILEIROS DE DESTAQUE

interior era um bravo, um valente, que enfrentava as dificuldades e adversidades


do solo e do terreno brasileiro para sobreviver.

Esta ideia de respeito pelo homem do interior e de retorno às raízes do Brasil


era muito evidente neste período. Outros escritores, como José de Alencar, também
defendiam uma volta à essência do Brasil, que era o próprio índio (desta ideia nasce
uma das maiores obras de José de Alencar, "O Guarani"), que foi desrespeitado e
aniquilado no início da colonização portuguesa.

O destaque de Euclides da Cunha era o de que o homem sertanejo havia


adquirido uma certa resiliência devido ao fato de que, ao enfrentar as desditas
da falta de urbanização e desenvolvimento econômico, teve que aprender a se
superar e a tornar-se forte. O "meio ambiente" o forçou a se tornar quem ele era.
Para Euclides, o mestiço do sertão, mesmo sendo reacionário, era mais verdadeiro
que o mestiço do litoral.

[...] Diferentemente dos mestiços do litoral, os mestiços do Sertão


teriam podido se desenvolver, ajudados por um meio ambiente mais
favorável para tal, até alcançarem um tipo antropológico definido.
Justamente por terem se livrado de uma cultura de empréstimo, dos
hábitos e das maneiras copiadas da Metrópole, eles seriam capazes de
uma integração simbiótica com o meio natural. Isso os tornaria mais
autênticos, mais verdadeiros que os mestiços do litoral. (BERLATTO,
2010, p. 23).

FIGURA 69 – O SERTANEJO

FONTE: Disponível em: <http://www.brasilcultura.com.br/sociologia/


sertanejo-3-de-maio/>. Acesso em: 20 jan. 2013.

217
UNIDADE 3 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E SOCIAL NO BRASIL

E como afirma o site Brasil na sua página de sociologia:


Ao tentar compreender a psicologia do sertanejo, o escritor e jornalista
Euclides da Cunha, através de sua famosa obra “Os Sertões”, fez um
ensaio revelador sobre a formação do homem brasileiro. Desmistificou
o pensamento vigente entre as elites do período, de que somente os
brancos de origem europeia eram legítimos representantes da nação.
Mostrou que não existe no país raça branca pura, mas uma infinidade
de combinações multirraciais. Além disso, foi o primeiro a reportar
cuidadosamente o episódio da Campanha de Canudos, um festival
de massacres de homens e mulheres que entrou para a história. Por
essas e outras, o homem do sertão é um “grande personagem numa
paisagem inóspita”, que merece toda a admiração devida por sua luta
diária pela sobrevivência. (BRASIL CULTURA, 2013).

A análise de Euclides da Cunha é, sem dúvida, muito interessante, se


pensarmos de acordo com o momento histórico pelo qual o país estava passando.
As várias transformações decorrentes do fim da escravidão e da proclamação
da República fazem o pano de fundo. Uma abolição com um atraso superior
a um século, se comparado a outras nações que adotaram a escravidão, e uma
proclamação da República que foi, na verdade, um golpe de Estado, representam
bem este momento histórico. Ao mesmo tempo, houve um lapso de definição
sobre qual caminho a nova nação deveria seguir.

O litoral, principalmente com a vinda de D. João VI para o Brasil, permaneceu


sendo a sede da colônia e, posteriormente, da nação. E esta sede só foi modificada
no início dos anos 1950, quando Juscelino Kubitschek assumiu a Presidência. Aliás,
gostaríamos de chamar a atenção para um fato muito interessante: Euclides da
Cunha e outros pensadores defenderam com ímpeto a valorização do interior do
país. E o grande "ouvidor" desta ideia só apareceu um bom tempo depois, quando
Kubitschek tornou-se presidente, pois possivelmente inspirado pelas ideias de
Euclides, ele iniciou a construção da cidade de Brasília, bem no meio do cerrado no
Planalto Central.

Entretanto, caro(a) acadêmico(a), esta é apenas uma suposição, um


devaneio que acreditamos ser verossímil ou plausível de aceitação. É evidente
que os interesses de Kubitschek não eram tão "românticos" assim, mas fica no ar
a possível aproximação entre o ex-presidente e o pensador.

Contudo, no início dos anos 1910, o único conceito aceito era o da


imitação do mundo europeu, pois até mesmo os abolicionistas defendiam esta
tese inspirados em ideais europeus (vide Joaquim Nabuco). Este, por ora, deveria
ser, então, o novo caminho a ser trilhado.

Todavia, a visão de Euclides nunca foi bem recebida por outros intelectuais
de sua época, pois falar do homem sertanejo como novo representante do Brasil

218
TÓPICO 2 | FILÓSOFOS E SOCIÓLOGOS BRASILEIROS DE DESTAQUE

era uma afronta ao progresso. Outra coisa muito curiosa do pensamento brasileiro
vigente à época era o de difundir um abandono do passado, um completo
esquecimento da história e a fundação de um novo olhar sobre o Brasil, ou seja,
era necessário implantar em todos um ardente desejo de mudança, mas esta
mudança deveria ser o mais pragmática possível. Este pragmatismo foi a nova
regra: o que vale é aquilo que tem utilidade agora.

O passado deve ser deixado para trás. Sabemos que, quando falamos no
sentido individual e psicológico, muitos erros e equívocos devem ser superados
(porém não esquecidos), mas quando abordamos o passado em um sentido mais
coletivo, é necessário esmiuçá-lo e analisá-lo de modo mais coerente. As marcas
históricas do passado não podem ser simplesmente olvidadas. Elas devem ser
assimiladas e literalmente digeridas para que um novo começo seja realizado. O
esquecimento do passado é uma atitude incorreta e inútil. Entretanto, a máxima
de que "quem vive do passado é museu" tenta incutir nas pessoas a ideia de
que somente a novidade interessa. Até mesmo o ato de não irmos ao museu
já nos delata: a história não nos interessa. Apenas o progresso nos fascina.
(BERLATTO, 2010).

Porém (e para finalizar), Euclides, ao falar sobre o sertanejo, destaca a sua


vontade de viver, apesar de suas limitações físicas. Aliás, na descrição que Euclides
faz do homem sertanejo nota-se uma grande similaridade com o pensamento de
Friedrich Nietzsche, que destaca o valor realmente humano daquele que abraça e
enfrenta a vida com vigor e determinação, apesar das inúmeras vicissitudes que
ela apresenta.
A sua evolução psíquica, por mais demorada que esteja destinada a
ser, tem, agora, a garantia de um tipo fisicamente constituído e forte.
Aquela raça cruzada surge autônoma e, de algum modo, original,
transfigurando, pela própria combinação, todos os atributos herdados;
de sorte que, despeada afinal da existência selvagem, pode alcançar
a vida civilizada, por isto mesmo que não a atingiu de repente [mas,
como resultado desta evolução]. Ao invés da inversão extravagante que
se observa nas cidades do litoral, onde funções altamente complexas
se impõem a órgãos mal constituídos, comprimindo-os e atrofiando-os
antes do pleno desenvolvimento - nos sertões, a integridade orgânica
do mestiço desponta inteiriça e robusta, imune de estranhas mesclas,
capaz de envolver, diferenciando-se, acomodando-se a novos e mais altos
destinos, porque é a sólida base física do desenvolvimento moral ulterior
[...].
O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo
dos mestiços neurastênicos do litoral.
A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o contrário.
Falta-lhe a plástica impecável, o desempeno, a estrutura corretíssima das
organizações atléticas.
É desgracioso, desengonçado, torto. [...] (CUNHA, 2001, p. 203, 204 e 207).

219
UNIDADE 3 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E SOCIAL NO BRASIL

DICAS

Sugestão de filme: GUERRA DE CANUDOS

Sinopse: Em 1893, Antônio Conselheiro (José Wilker) e seus


seguidores começam a tornar um simples movimento em algo
grande demais para a República, que acabara de ser proclamada
e decidira por enviar vários destacamentos militares para
destruí-los. Os seguidores de Antônio Conselheiro apenas
defendiam seus lares, mas a nova ordem não podia aceitar
que humildes moradores do sertão da Bahia desafiassem a
República. Assim, em 1897, esforços são reunidos para destruir
os sertanejos. Estes fatos são vistos pela ótica de uma família
com opiniões conflitantes sobre Conselheiro.

FONTE: Disponível em: <http://www.adorocinema.com/filmes/


filme-118416/>. Acesso em: 20 jan. 2013.

AUTOATIVIDADE

Diante do pensamento de Euclides da Cunha, explique em breves


palavras o que você compreendeu do autor. Você acredita que o representante
mais legítimo do Brasil é o litorâneo ou o sertanejo? Justifique a sua resposta.
____________________________________________________________________
____________________________________________________________________
____________________________________________________________________
____________________________________________________________________
____________________________________________________________________
____________________________________________________________________

220
TÓPICO 2 | FILÓSOFOS E SOCIÓLOGOS BRASILEIROS DE DESTAQUE

3 OLIVEIRA VIANA
FIGURA 70 – OLIVEIRA VIANA

FONTE: Disponível em: <http://www.academia.org.br/abl/cgi/


cgilua.exe/sys/start.htm?sid=136>. Acesso em: 15 jan. 2013.

Francisco José de Oliveira Viana é considerado um pensador de postura


conservacionista. O seu modo de entendimento da realidade é divergente
do pensamento de Euclides da Cunha. Oliveira Viana é um defensor de uma
sociedade predefinida em funções e atribuições. Segundo ele, cada um de nós
precisa respeitar as responsabilidades que nos são impostas. De um modo geral,
ele defende a ideia de que as pessoas não devem ser vistas do mesmo modo, seja do
ponto de vista jurídico ou racial. Não há uma linha universal de desenvolvimento
e ascensão intelectual, física, moral ou biológica.

Oliveira Viana não acreditava que houvesse uma evolução unânime das
etnias. Cada etnia ou raça se desenvolve de modo diferente. Aliás, ele considerava
que determinadas raças/etnias jamais alcançariam o patamar de outras mais
evoluídas. Não bastaria copiar o modus vivendi de outro grupo étnico para que
houvesse alguma alteração ou evolução. Era preciso levar em conta outros
aspectos, tais como, espaço geográfico, história, cultura etc.

Não obstante, já podemos inferir aqui uma conclusão decorrente


deste primeiro parágrafo. Oliveira Viana demonstra que o principal ponto
de fraqueza do povo brasileiro na primeira metade do século XX é o elevado
contingente de pessoas negras, isto é, a escravidão no Brasil foi tão intensa
e profunda que a imigração forçada de negros para o país prejudicou-o
demasiadamente.

Era necessário agora investir na imigração europeia, que funcionaria, ao


mesmo tempo, como melhoramento da mão de obra nas indústrias incipientes
e como melhoramento racial por meio da eugenia. Estes dois melhoramentos,
segundo ele, transformariam o Brasil em um país forte e promissor. Aliás, caro(a)

221
UNIDADE 3 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E SOCIAL NO BRASIL

acadêmico(a), lembre-se de que Getúlio Vargas foi um defensor pertinaz da


imigração europeia para o Brasil. Este processo eugênico de branqueamento da
nação fez parte do programa de desenvolvimento nacional da primeira metade
do século XX, que contava, indiretamente, digamos assim, com Oliveira Viana
como um possível mentor intelectual. Outrossim, vale destacar que ele mostrava-
se totalmente contrário à imigração japonesa, sendo, por muitos, definido como
um racista nipônico.

FIGURA 71 – OBRA "REDENÇÃO DE CAM", DE ROBERTO BROCOS


(1895). A AVÓ NEGRA AGRADECE A DEUS PELO NASCIMENTO DE UM
NETO BRANCO

FONTE: Disponível em: <http://www.viomundo.com.br/politica/a-


caixa-machado-de-assis-e-o-branqueamento-do-brasil.html>. Acesso
em: 5 fev. 2013.

Por outro lado, se faz necessário lembrar a você, caro(a) acadêmico(a), que
a visão de sociedade apresentada por Oliveira Viana (e por muitos pensadores
contemporâneos a ele) coaduna-se com aquilo que abordamos recentemente neste
material: “A história do passado deve ser esquecida. O que vale é o agora”. Enfim,
neste caso, "os negros que se danem". Além do mais, Oliveira Viana pensava como
burguês e defendia os interesses de sua classe.

Ao falar sobre o sistema social do Brasil, ele protegia "com unhas e dentes"
a ideia de que o melhor modelo que nós tivemos foi o latifundiário. Além disso,
é muito difícil afirmar se a sua visão de mundo era ingênua ou estrábica, pois
afirmava que durante a sua História o Brasil havia passado por poucas revoluções
ou conflitos e que, justamente por este motivo, o povo era afeito às decisões de
seus superiores, principalmente seus governantes, que sabiam lidar com maestria

222
TÓPICO 2 | FILÓSOFOS E SOCIÓLOGOS BRASILEIROS DE DESTAQUE

e "punho forte" na governança de grandes propriedades de terra. É como se o


povo, de um modo geral, não tivesse a capacidade de se autogerenciar. Dito de
outro modo, é como se o povo fosse um rebanho sem pastor, uma "orquestra sem
maestro".

A ideia de Oliveira Viana, em última análise, se compara à ideia de


um povo destituído de vontade própria e que precisa de um orientador, um
adestrador para canalizar esta vontade. Além disso, como vimos no início, Oliveira
Viana dizia que não devíamos imitar modelos de outras etnias ou raças (mesmo
defendendo a imigração de europeus). Cada lugar, país ou nação devia seguir os
seus próprios rumos. É por isso que, para ele, a ideia de uma nação soberana se
fundava na noção de branqueamento racial (como progresso), de um lado, e de
permanência de uma "monarquia" latifundiária (como ordem), por outro.
O latifúndio cafeeiro, como o latifúndio açucareiro, tem uma organização
complexa e exige capitais enormes: pede também uma administração
hábil, prudente e enérgica. É, como o engenho de açúcar, um rigoroso
selecionador de capacidades. Só prosperam, com efeito, na cultura dos
cafezais, as naturezas solidamente dotadas de aptidões organizadoras,
afeitas à direção de grandes massas operárias e à concepção de grandes
planos de conjunto. [Algo próprio de homens brancos]. O tipo social
dela emergente é, por isso, um tipo social superior, tanto no ponto de
vista das suas aptidões para a vida privada, como no ponto de vista das
suas aptidões para a vida pública. Daí formar-se, nas regiões onde essa
cultura se faz, a base fundamental da atividade econômica, uma elite de
homens magnificamente providos de talentos políticos e capacidades
administrativas. (VIANA, 1933, p. 104).

Veja, caro(a) acadêmico(a), o pensamento deste autor é predominantemente


elitista/racista. O que significa dizer que jamais um homem como Joaquim Barbosa,
atual presidente do Supremo Tribunal Federal, teria condições de assumir tal
cargo, por ter nascido negro. Esta comparação se faz necessária, principalmente
porque esta compreensão reducionista da realidade não pode ser mais acolhida
em nossos dias. O etnocentrismo, que é a noção de que apenas uma etnia ou raça
deve ser "o centro do mundo", deve ser superada e suplantada pela conquista por
mérito ou competência. Julgar uma pessoa apenas pela cor de sua pele é um ato
vil, mesquinho e inaceitável.

Além disso, destacamos outro ponto importante: como Marx abordou em


suas obras, toda a história mundial está marcada pela divisão social entre ricos
e pobres, entre burgueses e proletários. Em nosso país, a coisa não foi diferente.
Deste modo, Oliveira Viana é um ícone desta tradição e superlativação do
"capital" (e seus detentores) sobre o resto do mundo. Diante disso, o cantor MV
Bill compôs uma música que critica, com intensidade, este tipo de pensamento
calhorda e vil, chamada “Só Deus pode me julgar”.

Caro(a) acadêmico(a), preste atenção nesta letra e tire suas próprias


conclusões.

223
UNIDADE 3 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E SOCIAL NO BRASIL

Só Deus Pode Me Julgar

MV Bill

Vai ser preciso muito mais pra me fazer recuar


Minha autoestima não é fácil de abaixar
Olhos abertos fixados no céu
Perguntando a Deus qual será o meu papel
Fechar a boca e não expor meus pensamentos
Com receio que eles possam causar constrangimentos
Será que é isso? Não cumprir compromisso
Abaixar a cabeça e se manter omisso
A hipocrisia, a demagogia
Se entregue a orgia, sem ideologia
A maioria fala do amor no singular
Se eu falo de amor é de uma forma impopular
Quem não tem amor pelo povo brasileiro
Não me representa aqui nem no estrangeiro
Uma das piores distribuições de renda
Antes de morrer, talvez você entenda
Confesso para ti que é difícil de entender
No país do carnaval o povo nem tem o que comer
Ser artista, popstar, pra mim é pouco
Não sou nada disso, sou apenas mais um louco
Clamando por justiça e igualdade racial
Preto, pobre, é parecido, mas não é igual
É natural o que fazem no senado
Quem engana o povo simplesmente renuncia o cargo
Não é cassado, abre mão do seu mandato
Nas próximas eleições bota a cara como candidato
Povo sem memória, caso esquecido
Não foi assim comigo, fiquei como bandido
Se quiser reclamar de mim, que reclame
Mas fale das novelas e dos filmes do Van Damme
Que teve no Brasil, no programa do Gugu
Rebolou, vacilou, agachou e mostrou o...
Volta pra América e avisa pra Madonna
Que aqui não tem censura, meu país é uma zona
Não tem dono, não tem dona, o nosso povo tá em coma
Erga a sua cabeça que a verdade vem à tona
É, mantenho minha cabeça em pé
Fale o que quiser pode vir que já é
Junto com a ralé
Sem dar marcha-ré
Só Deus Pode Me Julgar
Por isso eu vô na fé

224
TÓPICO 2 | FILÓSOFOS E SOCIÓLOGOS BRASILEIROS DE DESTAQUE

Soldado da guerra a favor da justiça


Igualdade por aqui é coisa fictícia
Você ri da minha roupa, ri do meu cabelo
Mas tenta me imitar se olhando no espelho
Preconceito sem conceito que apodrece a nação
Filhos do descaso mesmo após abolição
Mais de 500 anos de anos de angústia e sofrimentos
Me acorrentaram, mas não meus pensamentos
Me fale quem? (quem), Tem o poder? (quem)
Pra condenar? (quem), Pra censurar? (alguém)
Então me diga o que causa mais estrago
100 gramas de maconha ou 1 maço de cigarro
O povo rebelado oculiza na favela
A música do Bill ou a próxima novela
Na tela a sequela, no poder corrupção
Entramos pela porta de serviço, nossa grana não
Tá bom, só pra quem manda bater
Pisando nos humildes e fazendo nosso ódio crescer
CV, MST, CUT, UNI, CUFA, PCC
O mundo se organiza cada um da sua maneira
Continuam ironizando vendo como brincadeira (besteira)
Coisa de moleque revoltado
Ninguém mais quer ser boneco, ninguém quer ser controlado
Vigiado, programado, calado, ameaçado
Se for filho de bacana, o caso é abafado
A gente é que é caçado, tratados como réu
As armas que eu uso é microfone, caneta e papel
A socialite assiste a tudo calada
Salve, salve, salve, Ó Pátria Amada, Mãe Gentil
Poderosos do Brasil
Que distribuem para as crianças, cocaína e fuzil
Me calar, me censurar porque não pude falar nada
É como se fosse o Rabo sujo, falando da Bunda mal lavada
Sem investimento, no esquecimento
Explode o pensamento, mais um homem violento
Que pega no canhão e age inconsequente
Ou pega o microfone com discurso incontundente
(Que te assusta) Uma atitude brusca
Dignificando e vivendo por uma vida justa
Fui transformado no bandido do milênio
O sensacionalismo por aqui merece um prêmio
Eu tava armado mas não sou da sua laia
Quem é mais bandido? Beira-Mar ou o Sérgio Naya
Quem será que irá responder
Governador, Senador, Prefeito, Ministro ou você
Que é caçado, e sempre paga o pato

225
UNIDADE 3 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E SOCIAL NO BRASIL

Erga sua cabeça para não ser decepado


Como pode ser tragédia, a morte de um artista
E a morte de milhões, apenas uma estatística
Fato realista de dentro do Brasil
Você que chorava lá no gueto, ninguém te viu
Sem fantasiar, realidade dói
Segregação e menosprezo é o que destrói
A maioria esquecida no barraco
Que ainda é algemado, extorquido e assassinado
Não é moda, quem pensa incomoda
Não morre pela droga, não vira massa de manobra
Não me idolatro a Mauricinho da TV
Não deixa se envolver porque tem proceder
Pra que? Por quê? Só tem paquita loira
Aqui não tem preta como apresentadora
Novela de escravo, a emissora gosta
Mostra os pretos chibatados pelas costas
Faz confusão na cabeça de um moleque
que não gosta de escola e admira uma Intratec
Click-Cleck, mão na cabeça
Quando for roubar dinheiro público vê se não se esqueça
Que na sua conta tem a honra de um homem
Envergonhado ao ter que ver sua família passando fome
Ordem, progresso e perdão
Na terra onde quem rouba muito não tem punição
É! Mantenho minha cabeça em pé!
Fale o que quiser pode vir que já é!
Junto com a ralé. Sem dar marcha-ré!
Só Deus pode me julgar, por isso, eu vou na fé!

FONTE: Disponível em: <http://www.vagalume.com.br/mv-bill/so-deus-pode-me-julgar.


html#ixzz2L0zAAib4>. Acesso em: 5 fev. 2013.

AUTOATIVIDADE

O nazismo foi concebido com base na ideia do etnocentrismo. Deste


modo, escreva uma redação estabelecendo alguns pontos de ligação entre a
eugenia de Oliveira Viana e Getúlio Vargas com as ideias principais do Partido
Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães (Partido Nazista).
____________________________________________________________________
____________________________________________________________________
____________________________________________________________________
____________________________________________________________________
____________________________________________________________________

226
TÓPICO 2 | FILÓSOFOS E SOCIÓLOGOS BRASILEIROS DE DESTAQUE

4 SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA


Este pensador nacional pode ser considerado como um dos principais
pesquisadores da diversidade social do Brasil. Sua análise, além de ser perspicaz,
é pontual, pois aguça a vontade do leitor de aprofundar-se mais no universo da
multiculturalidade brasileira. Seu maior trunfo foi o de investigar cada momento
histórico do Brasil com uma lupa, isto é, ele tentou compreender como cada
situação da nossa história definiu o que o país é atualmente, dando ênfase em
detalhes históricos que não são pormenorizados pela macro-história.

Dito isso, podemos compreender que a análise de Holanda é mais


sociológica do que a análise do pensador anterior (Oliveira Viana), pois parte de
situações reais e não hipotéticas da vida dos brasileiros, para daí elaborar as suas
considerações. Sua principal obra chama-se “Raízes do Brasil”, e é vista como um
marco da História da Sociologia Brasileira.

Em sua busca de compreensão do estilo brasileiro de ser e viver, ele avaliou


como o brasileiro se define ou se autoanalisa. E nesta busca ele conseguiu encontrar
alguns traços fortes que denominam, genericamente, o imaginário coletivo do
povo brasileiro. A primeira característica que Holanda destaca é a ideia de que o
brasileiro é cordial, ou seja, que ele age motivado por razões afetivas.

Contudo, caro(a) acadêmico(a), é necessário lembrá-lo de que esta análise


feita por Holanda aborda o problema sem afirmar, com precisão, que todos os
brasileiros são cordiais. A ideia de Holanda é destacar como a vida social brasileira
funciona, sem oferecer, por outro lado, uma resposta única e estanque para as
diferentes disposições analisadas. O que importa, para ele, é a capacidade de
tomarmos consciência da existência desta diversidade e compreendê-la.

Voltando ao ponto do brasileiro cordial, podemos deduzir que existem


certos ícones nacionais que representam muito bem este papel. Dentre eles,
destacamos o personagem de Zé Carioca, de Walt Disney; João Grilo, personificado
pelo ator Matheus Nachtergaele, no filme "Auto da Compadecida" e inspirado no
livro homônimo de Ariano Suassuna, e os homens acostumados à boêmia.
FIGURA 72 – ZÉ CARIOCA

FONTE: Disponível em: <www.guiadosquadrinhos.com/


personbio.aspx?cod_per=3191>. Acesso em: 28 fev. 2013
227
UNIDADE 3 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E SOCIAL NO BRASIL

FIGURA 73 – JOÃO GRILO

FONTE: Disponivel em: <https://www.oautodacompadecida.com.


br/2017/10/porque-o-auto-da-compadecida-nao-foi.html>. Acesso em: 19
mar. 2018.

Não obstante, Sérgio Buarque de Holanda descreve a ideia de homem


cordial da seguinte maneira:

Já se disse, numa expressão feliz, que a contribuição brasileira para


a civilização será de cordialidade - daremos ao mundo o "homem
cordial". A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes
tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com
efeito, um traço definido do caráter brasileiro, na medida, ao menos,
em que permanece ativa e fecunda a influência ancestral dos padrões
de convívio humano, informados no meio rural e patriarcal [...]
Nenhum povo está mais distante dessa noção ritualista da vida do
que o brasileiro. Nossa forma ordinária de convívio social é, no fundo,
justamente o contrário da polidez. [...] No domínio da linguística, para
citar um exemplo, esse modo de ser parece refletir-se em nosso pendor
acentuado para o emprego dos diminutivos. A terminação "inho",
aposta às palavras, serve para nos familiarizar mais com as pessoas ou
os objetos e, ao mesmo tempo, para lhes dar relevo [o que caracteriza a
ideia excessivamente personalista de inter-relacionamento no Brasil].
(HOLANDA, 2006, p. 160-162).

Além do conceito de homem cordial, é importante salientar que um dos


pontos mais importantes dos estudos de Holanda é a ideia de que o brasileiro
desenvolveu uma cultura profundamente personalista nas suas relações
interpessoais, que, segundo ele, é decorrente da profunda carga cultural
aportada pelos portugueses e espanhóis em nosso país. Isso significa dizer que
quase tudo aquilo que vemos e fazemos toma uma dimensão exageradamente
pessoal, quando somos elogiados ou quando somos repudiados. Nossas relações
são profundamente fundadas sobre estes dois polos. Quando somos elogiados,
criamos um apreço quase cego pelos elogiadores.

Contudo, quando somos criticados ou cobrados por alguém, nossa


tendência não é a abertura ou o diálogo sobre o problema. Ao invés, criamos um
desdém por tal pessoa, ao ponto de elaborarmos fofocas e maledicências sobre

228
TÓPICO 2 | FILÓSOFOS E SOCIÓLOGOS BRASILEIROS DE DESTAQUE

ela. Esta visão demasiadamente personalista é um dos pontos mais elaborados


por Holanda, pois graças a este entrave relacional, as pessoas não desenvolvem
uma ética do trabalho (seja sobre o desejo de trabalhar ou pela convivência com
os colegas de trabalho).

A própria noção de ética fica obtusa, pois a ideia de ter vantagem em


tudo se sobressai. "Passar a rasteira" para conseguir o que se quer parece ser,
em nosso país, uma máxima praticada com frequência. As aventuras, as ações
não planejadas, a ideia de que "Deus tudo proverá" são procedimentos usados
corriqueiramente pelas pessoas como forma de justificar as ações displicentes por
elas cometidas.

É muito comum encontrarmos pessoas no Brasil que permanecem


poucos meses vinculados a um emprego ou empresa. Elas compreendem que, no
momento em que um funcionário de maior nível (ou até mesmo o próprio chefe),
dentro da empresa, lhes cobra uma postura mais proativa, ele está fazendo uma
intimidação, uma coação (isso não significa dizer que não ocorra). Diante disso,
a pessoa sente-se prejudicada, injuriada e pede, peremptoriamente, a demissão,
pois julga que o ato de seu superior foi profundamente personalista.

Em outras palavras, o trabalho duro não é visto (e tampouco a educação)


como uma via de sucesso, isto é, o trabalho é um lugar de sofrimento, pois ali
as pessoas são julgadas e analisadas e isto não agrada a ninguém. Sendo assim,
nota-se que no imaginário coletivo dos brasileiros impera a noção de que "ter
comida e saúde já é o suficiente". Dito de outro modo, podemos considerar que
o compromisso demasiado com o presente (esquecendo o passado e evitando o
futuro) é uma verdade aceita pela maioria dos brasileiros.

Caro(a) acadêmico(a), sabemos que há uma grande repetição desta frase,


contudo, vale a pena escrevê-la novamente: para muitos brasileiros, a única coisa
que interessa é o agora. Sérgio Buarque de Holanda conseguiu captar a correlação
desta frase com o resto do contexto social do país. Segundo ele, ao mesmo tempo
em que os brasileiros aceitam viver intensamente o agora, eles reportam certas
responsabilidades individuais para outras pessoas ou instituições. E é justamente
por este motivo que, para Holanda, o Estado é tão paternalista e clientelista. As
pessoas recorrem diante de problemas aparentemente insolúveis, em última
instância, ao Estado, pois assim elas poderão suprir as suas carências econômicas e
sociais mais prementes.

Contudo, estas carências decorrem da incapacidade das pessoas de


gerenciarem a própria vida. Entretanto, e aí repousa a "jogada de mestre" do
Estado, os governantes sabem que, quanto mais dependente um povo é, mais fácil
de ser governado ele será. A submissão e a alienação só ocorrem quando as pessoas
aceitam, mesmo que involuntariamente, tais imposições. Mas sobre isso, caro(a)
acadêmico(a), a esta altura da aprendizagem cremos que não deve haver "nada de
novo debaixo do Sol", não é mesmo?! Pois no Brasil "é tudo igual, igual, igual...”.

229
UNIDADE 3 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E SOCIAL NO BRASIL

No Brasil, afirma o autor, a democracia sempre foi um mal-entendido,


já que aqui predominaram formas de dominação personalistas,
clientelistas, autoritárias e, portanto, ibéricas, isto é, distantes de
um padrão ideal democrático e universalista. "Em terra onde todos
são barões não é possível acordo coletivo durável, a não ser por uma
força exterior respeitável e temida". (BERLATTO, 2010, p. 26). (grifo
do original).

DICAS

Sugestão de filme: O AUTO DA COMPADECIDA

As aventuras dos nordestinos João Grilo (Matheus Natchergaele),


um sertanejo pobre e mentiroso, e Chicó (Selton Mello), o
mais covarde dos homens. Ambos lutam pelo pão de cada
dia e atravessam por vários episódios enganando a todos do
pequeno vilarejo de Taperoá, no sertão da Paraíba. A salvação
da dupla acontece com a aparição da Nossa Senhora (Fernanda
Montenegro). Adaptação da obra de Ariano Suassuna.

FONTE: Disponível em: <http://www.adorocinema.com/filmes/


filme-120824/>. Acesso em: 5 fev. 2013.

AUTOATIVIDADE

Com base nas ideias de Sérgio Buarque de Holanda, responda ao que se


pede:

1 A afirmação de que “o brasileiro é cordial” é um mito? Justifique sua


resposta.
____________________________________________________________________
____________________________________________________________________
____________________________________________________________________

2 Por que é tão forte, em nosso país, a ideia de que o trabalho e a educação não
são caminhos para o sucesso? Justifique.
____________________________________________________________________
____________________________________________________________________
____________________________________________________________________

230
TÓPICO 2 | FILÓSOFOS E SOCIÓLOGOS BRASILEIROS DE DESTAQUE

3 Você acredita que o problema da ausência de uma ética interpessoal (o


excesso de fofocas e falta de compromisso com o trabalho) no país é uma
herança histórica ou é algo inato em muitos brasileiros? Justifique sua
resposta.
____________________________________________________________________
____________________________________________________________________
____________________________________________________________________

LEITURA COMPLEMENTAR

O JEITINHO DO HOMEM CORDIAL

OscarPilagallo

Poucos conceitos se prestam a tamanha confusão quanto o de “homem


cordial”, central no livro Raízes do Brasil, do historiador Sérgio Buarque de
Holanda (1902-1982). Logo após a publicação da obra em 1936, o escritor Cassiano
Ricardo implicou com a expressão. Para ele, a ideia de cordialidade, como
característica marcante do brasileiro, estaria mal aplicada, pois o termo adquirira,
pela dinâmica da linguagem, o sentido de polidez – justamente o contrário do que
queria dizer o autor.

A polêmica sobre a semântica teria ficado perdida no passado não fosse o fato
de que, até hoje, muitas pessoas, ao citar inadvertidamente a obra, emprestam à noção
de Buarque de Holanda uma conotação positiva que, desde a origem, lhe é estranha.
Em resposta a Cassiano, o autor explicou ter usado a palavra em seu verdadeiro
sentido, inclusive etimológico, que remete a coração. Opunha, assim, emoção à razão.
O didatismo foi incluído numa nota na segunda edição, de 1947, bastante modificada,
e que seria a definitiva, salvo por pequenas alterações posteriores.

Apesar do zelo do autor, no entanto, o equívoco persistiu. Afinal, o que


haveria de errado na cordialidade brasileira, nesse sentido de afetuosidade típica
de um povo? Não haveria nada condenável se a afabilidade se desse em ambiente
privado, em relações entre familiares e amigos. A expressão “homem cordial”, a
propósito, fora cunhada anos antes, por Rui Ribeiro Couto, que julgou ser esse
tributo uma contribuição latina à humanidade.

O problema surge quando a cordialidade se manifesta na esfera pública.


Isso porque o tipo cordial – uma herança portuguesa reforçada por traços das
culturas negra e indígena – é individualista, avesso à hierarquia, arredio à disciplina,
desobediente a regras sociais e afeito ao paternalismo e ao compadrio, ou seja, não
se trata de um perfil adequado para a vida civilizada numa sociedade democrática.

A questão é lançada logo na abertura do capítulo que aborda o homem


cordial. “O Estado não é uma ampliação do círculo familiar”, afirma o ensaísta.

231
UNIDADE 3 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E SOCIAL NO BRASIL

“Não existe, entre o círculo familiar e o Estado, uma gradação, mas antes uma
descontinuidade e até uma oposição.” Para o homem cordial, no entanto, há uma
extensão natural entre os dois planos. A atitude se manifesta até na linguística,
“com o nosso pendor acentuado para o emprego de diminutivos”. Se tal expressão
já existisse, Buarque de Holanda certamente teria falado no “jeitinho brasileiro”,
pela síntese involuntária que faz de suas ideias.

Escrito em meados da década de 1930, Raízes do Brasil data de um


período de transição política. A República Velha tinha ficado para trás, a ditadura
varguista ainda não se instalara totalmente e a democracia formal era uma
perspectiva remota. Desde o movimento modernista, no entanto, que na década
de 1920 desferira um golpe contra a influência lusitana na cultura, intelectuais
brasileiros procuravam uma identidade brasileira. O livro de Buarque de Holanda
faz parte desse esforço, ao lado de Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freyre.
Como intérpretes do Brasil, ambos são gigantes, embora com visões divergentes:
enquanto Freyre revela certa nostalgia da influência portuguesa, Buarque de
Holanda se regozija por ela começar a ser superada.

Esboçado na Alemanha na virada da década de 1920, quando o autor lá


morou trabalhando como jornalista, o ensaio dá pistas de como a convivência com
o pensamento germânico influenciou o autor. Em Berlim, Buarque de Holanda
tomou contato com a obra de Max Weber, um dos pais da sociologia, e adaptou
seu método para descrever a realidade brasileira, numa obra que mistura, além
da sociologia, história, antropologia e psicologia social.

Politicamente, Buarque de Holanda é mais lembrado como um intelectual


simpático às esquerdas, em grande parte por ter sido, em 1980, membro fundador
do Partido dos Trabalhadores, que nasceu à esquerda. Essa associação, porém,
não reflete sua trajetória. Na época em que publicou Raízes do Brasil, quando
os intelectuais costumavam se dividir entre integralistas e comunistas, Buarque
de Holanda se manteve afastado dos extremos ideológicos, sempre defendendo
uma democracia que representasse avanços sociais.

Na época, isso inexistia no país. “A ideologia impessoal do liberalismo


democrático jamais se naturalizou entre nós”, escreveu. “A democracia no Brasil sempre
foi um lamentável mal-entendido. Uma aristocracia rural e semifeudal importou-a e
tratou de acomodá-la, onde fosse possível, aos seus direitos ou privilégios”.

Passados mais de 70 anos, por mais que o Brasil tenha mudado, suas raízes
continuam visíveis na informalidade descompromissada com a ética que ainda
perpassa setores da vida pública. Mas não é só por isso que a obra merece ser (re)
lida. Se o livro sobrevive com o frescor próprio dos clássicos é também porque
Sérgio Buarque de Holanda, dono de um texto em que nada falta, nem sobra, se
expressa com a elegância, a erudição e a sofisticação dos grandes escritores, que
fazem tais predicados parecerem naturais.

FONTE: Disponível em: <http://www2.uol.com.br/historiaviva/reportagens/o_jeitinho_do_


homem_cordial_imprimir.html>. Acesso em: 5 fev. 2013.

232
TÓPICO 2 | FILÓSOFOS E SOCIÓLOGOS BRASILEIROS DE DESTAQUE

5 FLORESTAN FERNANDES
Florestan Fernandes é considerado um dos principais sistematizadores
do pensamento sociológico do Brasil. Suas principais ideias estão relacionadas
com um problema já abordado por Oliveira Viana no início do século XX, a
saber, o problema racial. Contudo, suas ideias estão relacionadas a uma visão
mais abrangente do conceito de raça no Brasil. Não obstante, ele definia que era
preciso ponderar sobre tal julgamento, utilizando-se as noções de relativismo
e diversidade culturais. Ele se autodenominava um “sociólogo militante”, pois
defendia as causas populares e seguia uma linha de pensamento mais marxista.

Seu interesse intelectual era profundamente nacional, sendo que a sua


primeira viagem para o exterior aconteceu somente após a sua aposentadoria.
Ele acreditava profundamente que era necessário conciliar a prática com a teoria.

Outrossim, Fernandes demonstrava, ao assumir responsabilidades civis


como político e professor, que era possível crer nesta conciliação, mesmo que,
por muitas vezes, ela não viesse a ocorrer de fato. É neste sentido que Florestan
Fernandes é reconhecido como um grande sociólogo brasileiro, pois, ao agir
deste modo, despertava o interesse de muitos estudiosos pelo engajamento e pela
práxis, pois gerava neles um anseio de amplitude social maior, fazendo-os “sair
de suas salas de aula” para conhecer de forma mais direta, e concreta, a sociedade.

Fernandes estudou a sociedade brasileira sob a ótica marxista, aplicando


na sua análise o método dialético fundado em Hegel, mas aprimorado pelo
próprio Marx. Segundo o pensador alemão Karl Marx, a vida social apresenta-
se numa constante contradição de interesses. Sendo assim, por exemplo, temos
os empresários das grandes indústrias que protegem o seu quinhão a todo custo.
Tal proteção precisa ser feita, com toda veemência, na relação com outros grupos
sociais. No caso, segundo Marx (e Fernandes pensa deste modo também), o outro
grupo que se evidencia nesta relação de oposição é o proletariado. Deste modo,
nota-se que há um conflito entre os grupos, isto é, uma relação de tese e antítese,
pois temos, em uma instância, aqueles que querem fazer prevalecer o seu interesse
(empresários como tese), enquanto que, de outro lado, temos pessoas que desejam
opor-se a tal vontade (trabalhadores como antítese). E nesta constante luta de
opostos, a sociedade vai se constituindo naquilo que é. (COSTA, 2005).

Diante disso, Fernandes, pautado em Marx, afirma que nossa


sociedade, assim como toda sociedade capitalista, funda-se na
contradição entre os donos dos modos de produção e aqueles que
vendem a sua força de trabalho para estes donos. A síntese social se dá
na frequente mudança que este conflito gera. Em suma, a sociedade,
segundo Marx e Fernandes, será sempre fruto desta oscilação entre
estes dois opostos, pois, como ele mesmo afirma, “a classe social
alicerça-se sobre a comunidade de interesses de classe e de situações
de classe”. (FERNANDES, 1968, p. 72).

233
UNIDADE 3 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E SOCIAL NO BRASIL

Esta oposição se assevera se levarmos em conta que, dentro da grande


comunidade de operários, por exemplo, há uma forte distinção no Brasil entre
o operário negro e o operário branco. O peso da discriminação se agrava muito
mais sobre o negro. Primeiro, por ser operário e, segundo, por ser negro.

Conforme Florestan Fernandes, o preconceito racial está entre as


maiores dificuldades enfrentadas pelos negros no Brasil. Ele se
traduzia (e se traduz) em todo tipo de resistência aberta e dissimulada
à admissão do negro em condição de igualdade. Em outras palavras,
o preconceito de cor e a discriminação racial teriam atuado como
elementos impeditivos, verdadeiros obstáculos à formação de uma
efetiva sociedade de classes. (BERLATTO, 2010, p. 24).

ATENCAO

Trabalhador negro tem 61% do rendimento do não negro, aponta DIEESE.


Reportagem publicada em 13/11/2012.

A uma semana do feriado paulistano do Dia da Consciência Negra, comemorado no próximo


dia 20, pesquisa realizada pela Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (Seade) e pelo
Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), com base em
dados referentes a 2011, mostra que os trabalhadores negros são maioria em setores como
construção civil e serviços domésticos, que pagam menos, exigem menor qualificação
profissional e têm relações trabalhistas mais precárias. Já em setores como serviços, indústria
e comércio, os não negros predominam. O resultado é que o rendimento médio por hora
dos trabalhadores negros (R$ 6,28) representa apenas 61% do rendimento dos não negros
(R$ 10,30).

Os números da Seade e do Dieese, divulgados nesta terça-feira (13), são da Pesquisa de


Emprego e Desemprego (PED), retratam a situação do trabalho na região metropolitana
de São Paulo e mostram que, apesar da redução das desigualdades ao longo das últimas
décadas, ainda existem diferenças significativas nas condições de trabalho vivenciadas por
negros (pretos e pardos) e não negros (brancos e amarelos).

O estudo analisou cinco setores econômicos: serviços, indústria, comércio, construção civil
e serviços domésticos. De acordo com o levantamento, 8,4% dos trabalhadores negros estão
na construção civil, enquanto a parcela de não negros empregados neste setor é de 4,9%.
Serviços domésticos empregam 10,1% dos negros, ante 5,4% de não negros.

No setor de serviços está a maior parcela de trabalhadores não negros (54,6%), enquanto a
dos negros chega a 48,8%. Na indústria, estão empregados 18,4% dos não negros e 17,2% de
negros. No comércio, as vagas estão com 16,2% dos não negros e 15% de negros.

Em 2011, na Grande São Paulo, os negros representavam cerca de 34% tanto da População
em Idade Ativa (PIA) quanto da População Economicamente Ativa (PEA).

Negros ganham menos em setores que pagam mais


Os negros (pretos e pardos) ganham pouco mais do que 50% do rendimento pago a não
negros (brancos e amarelos) nos setores de serviços e indústria, que são os que melhor
pagam na região da Grande São Paulo.

234
TÓPICO 2 | FILÓSOFOS E SOCIÓLOGOS BRASILEIROS DE DESTAQUE

No setor de serviços, em que o rendimento médio por hora é de R$ 10,03, os negros


ganham R$ 6,77, enquanto os não negros recebem R$ 11,67. Isso significa que o rendimento
por hora dos negros representa 58% do rendimento dos não negros.

Esse quadro se repete na indústria, segundo setor que melhor paga, cujo rendimento médio
por hora é de R$ 9,76. Os negros ganham R$ 6,75 ante R$ 11,26 dos não negros. Nesse setor,
o rendimento médio por hora dos negros representa 59,9% dos não negros.

Por outro lado, no setor de serviços domésticos, em que o rendimento médio por hora é de
R$ 4,83, os negros ganham R$ 4,83 e os não negros R$ 4,84, ou seja, o rendimento médio
por hora dos negros nesse setor representa 99,8% do rendimento dos não negros.

O coordenador de análise da Fundação Seade, Alexandre Loloian, disse que, embora haja
essa diferença significativa, os números já foram piores para os negros. Ele mostrou que, em
2002, o rendimento médio por hora dos negros no setor de serviços representava 55,5%
dos não negros. Na indústria, esse valor era de 53,2%.

No índice geral, o rendimento médio por hora dos trabalhadores negros era de R$ 5,47 em
2002 e, em 2011, ficou em R$ 6,28. “Isso representa uma alta de 14,8% em termos reais”,
disse Loloian. No caso dos trabalhadores não negros, o rendimento médio por hora era de
R$ 10,01 em 2002 e em 2011 ficou em R$ 10 30, um avanço de apenas 2,9%.
“O crescimento da economia nos últimos anos e seus reflexos positivos no mercado de
trabalho da região contribuíram para a melhoria geral do mercado, em especial para os
negros. No entanto, o crescimento econômico por si só não é capaz de garantir igualdade
de oportunidades”, avaliou, acrescentando que é preciso que se atenuem as discrepâncias
socioeconômicas e, mais especificamente, o nível de escolaridade.

FONTE: Disponível em: <http://www.gazetadopovo.com.br/economia/conteudo.phtml?


tl=1&id=1317934&tit=Trabalhador-negro-tem-61-do-rendimento-do-nao-negro-aponta-
Dieese>. Acesso em: 5 fev. 2013.

Aliás, neste sentido, a abordagem sobre a diferenciação de classe e cor,


dada por Fernandes, é clara, por falar que, no Brasil, a posição de classe é definida
segundo critérios de posse e status.
[...] A comunidade de interesses e de situação de classe não impede,
antes condiciona uma relativa diferenciação social dos indivíduos,
de acordo com o modo pelo qual podem valorizar socialmente,
criando destinos sociais relativamente comuns, suas probabilidades
econômicas. [O que implica, invariavelmente numa ideia de status].
No Brasil os “possuidores de bens” são representados (e se avaliam
assim socialmente) como “classes altas”, “ricas” ou “poderosas”.
Sociologicamente, pode-se distinguir entre eles certas gradações como
uma classe alta urbana, uma classe alta rural e uma classe média
urbana. [...] O consenso geral é menos incisivo na graduação social dos
“não possuidores de bens”. No passado recente, o termo povo queria
dizer algo como “gente pobre” ou “os que não têm eira nem beira”.
(FERNANDES, 1968, p. 73).

Rotular as pessoas segundo o seu padrão de vida é algo costumeiro


em nosso país. Por isso, é muito complicado restringirmos a noção de status
adquirido (como já vimos na Unidade 2) ao padrão de vida das pessoas ricas.

235
UNIDADE 3 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E SOCIAL NO BRASIL

Aliás, este status no Brasil, segundo Fernandes, não é legítimo, pois muitas
pessoas não conquistam determinadas posições sociais apenas por mérito, mas
principalmente porque já iniciaram a corrida da ascensão social em pontos de
largada muito diferentes, isto é, as pessoas “ricas” já estão colocadas em posições
bem mais avançadas se comparadas com pessoas “pobres”.

Deste modo, sempre haverá uma abrupta divergência entre os interesses


da classe operária e os da classe burguesa, pois não há igualdade de oportunidades
entre elas. Enquanto a burguesia quer ampliar cada vez mais o seu poder, a classe
operária esforça-se em permanecer viva, superando constantemente a aversão
que lhe é imposta pela “classe rica”.

Como vimos, as ideias de Florestan Fernandes são fortemente marcadas


por uma visão contundente e realista do mundo social brasileiro. Em sua trajetória
acadêmica, ele abordou todos os temas sociais com clareza e perspicácia, deixando
evidente o seu lado sobremaneira crítico de observação social. É por isso que seu
método de análise pode ser considerado como um divisor de águas do pensamento
sociológico brasileiro, ao falar dos problemas sociais sem medo ou constrangimento.

Outrossim, é assaz necessário falar que sua abordagem revela o quanto


é incompatível conciliar modernização e história, ou seja, que não é possível
estabelecer uma visão moderna de sociedade (segundo os moldes estrangeiros)
se as heranças históricas de escravidão e submissão de um povo não forem
enfaticamente dirimidas.

DICAS

Sugestão de filme: Documentário “Além de trabalhador, negro”.

Libertado das senzalas, o povo negro foi largado sem qualquer


política pública de inclusão social. O desenvolvimento da luta
do trabalhador negro por um lugar ao sol, desde a abolição, é o
fio condutor de “Além de Trabalhador, Negro”. O documentário
fala das ações do movimento negro para superar a discriminação
racial nas relações de trabalho. Como estavam fora dos primeiros
sindicatos de operários, geralmente organizados por imigrantes,
os negros criaram organizações próprias e difundiram seus
ideais antirracistas em jornais como “A Sentinela” e “O Clarim da
Alvorada”. [...] O filme também lembra a entrada dos trabalhadores
negros nos sindicatos a partir dos anos 50 e 60, porém sem ocuparem cargos de direção. “Além
de trabalhador, negro” também conta sobre a criação do Movimento Negro Unificado (MNU)
contra a discriminação racial. Nas vozes de importantes lideranças do movimento negro, o filme
busca a identidade e a valorização econômica do povo negro e mostra que a luta de classes e a
luta de raças andam juntas no Brasil.

FONTE: Disponível em: <http://www.piratininga.org.br/novapagina/leitura.asp?id_


noticia=1453&topico=Projeto%20V%EDdeos%20-%20Movimento%20Negro/MN>. Acesso
em: 5 fev. 2013.

236
TÓPICO 2 | FILÓSOFOS E SOCIÓLOGOS BRASILEIROS DE DESTAQUE

AUTOATIVIDADE

Leia com atenção a letra da música “Selvagem”, da banda “Os


Paralamas do Sucesso”, e em seguida faça o que se pede:

A polícia apresenta suas armas


Escudos transparentes, cassetetes
Capacetes reluzentes
E a determinação de manter tudo
Em seu lugar
O governo apresenta suas armas
Discurso reticente, novidade inconsistente
E a liberdade cai por terra
Aos pés de um filme de Godard
A cidade apresenta suas armas
Meninos nos sinais, mendigos pelos cantos
E o espanto está nos olhos de quem vê
O grande monstro a se criar
Os negros apresentam suas armas
As costas marcadas, as mãos calejadas
E a esperteza que só tem quem tá
Cansado de apanhar
A polícia apresenta suas armas
Escudos transparentes, cassetetes
capacetes reluzentes
E a determinação de manter tudo em seu lugar
O governo apresenta suas armas
Discurso reticente, novidade inconsistente
E a liberdade cai por terra
Aos pés de um filme de Godard
A cidade apresenta suas armas
Meninos nos sinais, mendigos pelos cantos
E o espanto está nos olhos de quem vê
O grande monstro a se criar
Os negros apresentam suas armas
As costas marcadas, as mãos calejadas
E a esperteza que só tem quem tá cansado de apanhar

Disponível em: <http://www.vagalume.com.br/paralamas-do-sucesso/selvagem.


html#ixzz2L3u0NTih>. Acesso em: 5 fev. 2013.

Descreva quais são as contradições existentes na letra. Há alguma


possibilidade de conciliação entre os extremos que se apresentam na letra?
Argumente a respeito.
____________________________________________________________________
____________________________________________________________________
____________________________________________________________________
237
UNIDADE 3 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E SOCIAL NO BRASIL

6 DARCY RIBEIRO
Darcy Ribeiro é apontado como um grande antropólogo indigenista, pois,
do mesmo modo que Florestan Fernandes defendeu as causas dos negros no
Brasil, Ribeiro defendeu os valores dos nossos índios.

Neste momento, caro(a) acadêmico(a), é importante que você recorde


aquilo que vimos no início desta unidade, no que se refere ao modo de tratamento
dispensado pelos portugueses aos índios do Brasil. A desvalorização de sua
cultura e a aculturação forçada que sofreram, na época, é algo inimaginável e
indizível. Porém, é muito importante destacar que isso não deixou de acontecer.
Atualmente, é bem provável que a intensidade da ação devastadora do homem
branco sobre o índio seja menor, mas isso não significa que ela deixou de existir.
E é neste ponto que o pensamento de Darcy Ribeiro desempenha um papel
realmente antropológico, no sentido de proteção e respeito pelo modus vivendi
característico do índio brasileiro.

Outrossim, é importante destacar um dado numérico estarrecedor: antes


dos colonizadores portugueses chegarem ao Brasil, o número total estimado de
índios era de 5 milhões e hoje acredita-se que pouco mais de 315 mil índios (segundo
dados do site “Museu do Índio”) habitam o território nacional, o que nos leva à
conclusão de que nenhuma outra etnia foi tão sistemática e progressivamente
aniquilada e destruída na história recente da humanidade.

DICAS

Sugestão de filme: TERRA VERMELHA

O suicídio de duas meninas Guarani-Kaiowá desperta a


comunidade para a necessidade de resgatar suas próprias
origens, perdidas pela interferência do homem branco. Um dos
motivos do desaparecimento gradual da cultura reside no conflito
gerado pela disputa de terras entre a comunidade indígena e os
fazendeiros da região. Para os Kaiowás, essas terras representam
um verdadeiro patrimônio espiritual e a separação que sofreram
desse espaço é a causa dos males que os rodeia. Uma disputa
metafórica é criada. A compreensão e o diálogo buscam espaço
nesse antigo conflito. Enquanto isso, o jovem Osvaldo, que vive
um terrível embate contra o desejo de morrer, vai furtivamente
buscar água no rio que corta a fazenda e conhece a filha do
fazendeiro. Um encontro em que a força do desejo transpassa
e ao mesmo tempo acentua o desentendimento entre as
civilizações.

FONTE: Disponível em: <http://www.filmesbrasileiros.net/terra-vermelha/>. Acesso em: 5 fev.


2013.

238
TÓPICO 2 | FILÓSOFOS E SOCIÓLOGOS BRASILEIROS DE DESTAQUE

Segundo Frans Moonen, a questão indígena no Brasil sempre foi vista com
desdém pelos órgãos responsáveis, como a Funai, por exemplo. De um modo geral,
segundo ele, a instituição fora criada não para proteger os índios, mas, ao contrário,
para proteger a população não indígena (MOONEN, 1988). O desinteresse e a falta
de respeito por esta população é algo recorrente em nosso país, como já sabemos,
desde a colonização. E esta atitude, certamente, não mudará tão cedo, pois
recentemente um grupo de agropecuaristas do Mato Grosso demonstrou que o afã
de conquistar e possuir aquilo que pertence legalmente ao índio não tem limites.

Veja a reportagem, publicada pelo site “Carta Capital”, em 5 de julho de


2012, que fala sobre o assunto:

Damião Paridzané é o líder dos Xavantes que luta contra a invasão dos
fazendeiros na área do Mato Grosso.

Foto: Felipe Milanez

No norte do Mato Grosso, um conflito entre índios e fazendeiros por


uma terra homologada como indígena há 14 anos, porém quase toda invadida
pelos latifundiários, tem ganhado proporções que perpassam a disputa local.
Nas últimas semanas, especialmente após a Rio+20 e seguida de um acórdão
do Tribunal Regional Federal que garante a posse aos índios, os ânimos foram
acirrados e a iminência de violência física aumenta à medida que começa a se
esgotar o prazo para o governo federal promover a retirada de não índios da área.

O território xavante, chamado Marãiwatséde, está no centro de um eixo


de escoamento de soja e gado; e onde o governo federal quer asfaltar a BR-158. O
traçado ficaria fora da reserva, e da Ferrovia Centro-Oeste, que liga as cidades de
Campinorte (GO) e Lucas do Rio Verde (MT).

A disputa por este território expõe a dificuldade do governo em controlar


os conflitos fundiários na Amazônia. Os pequenos posseiros, tradicionais inimigos
dos índios na região, deram lugar aos grandes ruralistas – que se negam a deixar
o território.

239
UNIDADE 3 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E SOCIAL NO BRASIL

A pressão externa tem provocado divisões internas dos Xavantes, que


colocam em risco a vida das principais lideranças. “Nós vamos conseguir,
tenho certeza”, diz o advogado dos fazendeiros, Luiz Alfredo Abreu, irmão da
senadora Kátia Abreu (PSD-TO), uma das principais líderes dos agropecuaristas
no Congresso Nacional. “Eu não tenho medo. Eu quero a terra. Eu morro pela
terra”, rebate o cacique Damião Paridzané.

Liderados por Damião, os Xavante realizaram uma série de protestos


durante a Rio+20, no Rio de Janeiro, no fim de junho. Auxiliados pela Operação
Amazônia Nativa (Opan), foram recebidos pelo Greenpeace no navio da ONG
atracado na cidade durante o encontro internacional. O ato simbólico acabou
ganhando visibilidade internacional, o que irritou profundamente os fazendeiros.

FONTE: Disponível em: <http://www.cartacapital.com.br/sociedade/no-mato-grosso-tensao-


aumenta-entre-xavantes-e-latifundiarios-em-terra-cobicada-por-agronegocio>. Acesso em: 5 fev.
2013.

Diante disso, podemos compreender que, mesmo após 500 anos do


“processo civilizatório” no Brasil, o índio ainda não é visto como primeiro dono
da terra ou, até mesmo, como ser humano. Darcy Ribeiro, como sociólogo,
igualmente questionou o processo de aculturação entre brancos e índios. De um
modo geral, podemos definir como aculturação o processo no qual ocorre um
encontro entre duas culturas diferentes.

Neste encontro há uma troca de costumes, valores e experiências entre as


culturas. Ambas sofrem modificações ou alterações. Dito de outro modo, ocorre
um processo de assimilação entre as culturas. Entretanto, para Ribeiro, isso é pura
enganação, pois, na verdade, se trata de uma relação entre desiguais, uma relação
de dominação. “Essa dominação pode ser de tal forma intensa que não deixa ao
grupo subordinado nenhuma outra alternativa senão aculturar-se”. (OLIVEIRA,
2008, p. 193).

Atualmente, é muito comum encontrar, pelo interior de nosso país, inúmeros


descendentes de índios que desconhecem a sua cultura ancestral: nada sabem
sobre canções ritualísticas, práticas de caça e pesca, e tampouco sabem a língua-
mãe etc. Se sentem desconectados da cultura ancestral e da cultura popular. Não
se sentem inclusos em nenhuma delas, o que gera uma sensação de marginalidade,
abandono e desconexão com o mundo que os rodeia, como se fossem desprovidos
de “cultura” e não se sentem “partícipes” de nenhum grupo social.

Outrossim, ainda nesta linha de pensamento, Ribeiro afirma que há


inúmeros antropólogos brasileiros que agem de maneira inadequada na sua
relação com os indígenas:

240
TÓPICO 2 | FILÓSOFOS E SOCIÓLOGOS BRASILEIROS DE DESTAQUE

A antropologia brasileira não é nada do que possamos nos orgulhar.


[...] Temos antropólogo que é inimigo do índio, temos antropólogo que
é indiferente ao índio, ou antropólogo, o que é muito frequente, que
está interessado em aprender do índio. Ele vai lá, tira do índio o que é
necessário para fazer suas tesezinhas doutorais, para fazer sua carreira
universitária, mas que não quer saber do índio, senão para manipulá-
lo em favor próprio. E muitos deles nunca chegam mesmo a entender,
porque já vão para a aldeia apenas para ilustrar uma tesezinha do
professor estrangeiro para obter o doutorado, e permanece sempre
um alienado. [...] Estes não prestam para nada, nem para a cultura
brasileira, nem para os índios. (RIBEIRO, 1979, p. 82).

A força das palavras de Darcy Ribeiro demonstra o quanto a sua luta


pela população indígena foi intensa. Certamente, dos pensadores da
sociologia brasileira, Ribeiro pode ser considerado como um dos mais
corajosos, por demonstrar suas ideias de maneira clara e incisiva, pois
é preciso, como afirma Moonen, desenvolver uma “antropologia para e
não sobre o índio, que não consta como disciplina em nenhum currículo
universitário”. (MOONEN, 1988, p. 59).

Seguramente, Darcy Ribeiro tentou desempenhar tal papel no resgate da


cultura indígena em nosso país. A ele devemos muito. Neste sentido, reescrevemos
aqui o ponto de vista de Frans Moonen sobre o papel do intelectual brasileiro
(que foi personificado por Darcy Ribeiro) diante do desafio de revelar a verdade
sobre o mundo indígena:
Devemos ter coragem de descrever a realidade nacional como ela é,
e não do modo que aqueles que estão no poder desejam que ela seja
apresentada. Evidentemente, dizer e escrever a verdade nem sempre
é muito apreciado. Daí porque em muitos países, inclusive no Brasil,
os antropólogos críticos não gozam de muita popularidade e às vezes
até são perseguidos. Basta lembrar aqui o fato de que nos últimos 20
anos, várias vezes os antropólogos críticos foram proibidos de entrar
em áreas indígenas, para que a sociedade brasileira não tomasse
conhecimento da situação dramática em que vivem praticamente
todos os grupos indígenas. Proibia-se a pesquisa para esconder a
verdade. (MOONEN, 1988, p. 62).

241
RESUMO DO TÓPICO 2
• Abordamos o pensamento de alguns pensadores importantes do Brasil. Cada
um deles destaca nuances muito interessantes da nossa História e de como o
Brasil se tornou aquilo que é hoje.

• Desde o modo como o índio, o negro e o caboclo foram tratados até o modo
como os próprios brasileiros se veem na atualidade são temas que despertaram
a curiosidade e a reflexão destes pensadores.

• De Euclides da Cunha à Darcy Ribeiro, nos propusemos, mesmo que


superficialmente, a apontar suas ideias fundamentais e suas diretrizes de
entendimento da realidade nacional. O pensamento nacional, por vezes, é
negligenciado.

• Ele não pode ser esquecido ou engavetado. Além disso, é importante destacar
que vários destes pensadores inspiraram-se em pensadores europeus
(essencialmente, em Karl Marx). Contudo, a análise feita por eles está voltada
para nossa realidade.

• O pensamento filosófico e sociológico do país demarca o modo como nós


mesmos nos interpretamos e delimita quem nós somos de verdade. A visão de
mundo de muitos brasileiros desavisados pode implicar em uma concepção de
nação que, no fim das contas, pode ser totalmente equivocada.

• Neste caso, nós não somos exatamente “o sonho dourado” preconizado em


nossa bandeira e hinos nacionais. Ao contrário, as delimitações entre o mundo
real e ideal são bem distantes e, por vezes, profundamente contraditórias. A
nação brasileira é uma representação mental que, normalmente, não condiz
com aquilo que se vê em nosso cotidiano.

• Por este viés, a maioria esmagadora dos principais pensadores brasileiros


contesta a visão comumente propalada de que somos um “país bonito por
natureza” ou de que o “brasileiro é cordial”. Por fim, desde a indefinição do
verdadeiro e legítimo representante da nação brasileira até o descaso atual que
dispensamos ao indígena (como primeiro dono da terra), os pensadores aqui
elencados devem nos ajudar no exercício hermenêutico de compreensão deste
nosso “Brasil tão brasileiro”.

242
AUTOATIVIDADE

Leia a letra da música “Um Índio”, de Milton Nascimento e, em


seguida, responda ao que se pede:

Um Índio (Milton Nascimento)

Um índio descerá de uma estrela


Colorida e brilhante
De uma estrela que virá
Numa velocidade estonteante
E pousará no coração
Do hemisfério sul
Na América, num claro instante
Depois de exterminada
A última nação indígena
E os espíritos dos pássaros
Das fontes de águas límpidas
Mais avançado que as mais avançadas
Das mais avançadas das tecnologias
Virá
Impávido, que nem Muhammad Ali
Virá que eu vi
Apaixonadamente como Peri
Virá que eu vi
Tranquilo e infalível como Bruce Lee
Virá que vi
O axé do afoxé filhos de Gandhi
Virá
Um índio preservado
Em pleno corpo físico
Em todo sólido, todo gás
E todo líquido
Em átomos, palavras, alma, cor,
Em gesto, em cheiro, em sombra, em luz
Em som
Num ponto equidistante
Entre o Atlântico e o Pacífico
Do objeto sim resplandecente
Descerá o índio
E as coisas que eu sei que ele dirá
Fará não sei dizer assim
Assim de um modo explícito
Virá

243
Impávido, que nem Muhammad Ali
Virá que eu vi
Apaixonadamente como Peri
Virá que eu vi
Tranquilo e infalível como Bruce Lee
Virá que vi
O axé do afoxé filhos de Gandhi
Virá
E aquilo que nesse momento
Se revelará aos povos
Surpreenderá a todos
Não por ser exótico
Mas pelo fato de poder
Ter sempre estado oculto
Quando terá sido o óbvio

FONTE: Disponível em: <letras.mus.br › MPB › Milton Nascimento>. Acesso em: 5 fev. 2013.

1 O autor descreve, no decorrer da letra da música, que o índio é o mensageiro de


um novo tempo, de uma nova promessa de vida. Cite os trechos que evidenciam
esta ideia:
__________________________________________________________________
__________________________________________________________________
__________________________________________________________________
__________________________________________________________________

2 Na reportagem que fala sobre a invasão da terra dos índios xavante no MT


é demonstrada uma ideia muito marcante do pensamento indígena na sua
relação com a terra. Cite o trecho que aborda este modo de pensamento.
__________________________________________________________________
__________________________________________________________________
__________________________________________________________________
__________________________________________________________________

3 Realize uma pesquisa sobre a vida dos índios no Estado de Santa Catarina:
Quais são os grupos étnicos que ainda vivem no Estado? Quais são as suas
reservas mais importantes? As culturas permanecem vivas ou elas foram
tragadas pela cultura “branca”? Faça um relatório, apontando, ao final, as
conclusões pessoais.
__________________________________________________________________
__________________________________________________________________
__________________________________________________________________
__________________________________________________________________
__________________________________________________________________
__________________________________________________________________
__________________________________________________________________

244
UNIDADE 3
TÓPICO 3
QUESTÕES SOCIAIS BRASILEIRAS NA
ATUALIDADE: CRIMINALIDADE,
SOCIOLOGIA RURAL,
MOVIMENTOS SOCIAIS, RELIGIÃO E
LIBERTAÇÃO
1 INTRODUÇÃO
Caro(a) acadêmico(a), chegamos finalmente ao último tópico desta
unidade (e, por extensão, deste material). Sabemos que fizemos um longo caminho
de estudos sociológicos e filosóficos a respeito do Brasil e do mundo até aqui.
Acreditamos, sinceramente, que nos esforçamos para despertar a sua curiosidade
sobre estes temas, que, genericamente, não são devidamente discutidos ou
aprofundados no nosso dia a dia.

A Sociologia e a Filosofia são áreas do saber que estão invariavelmente


ligadas a todos nós. Não podemos escapar da sua amplitude de alcance, pois
elas nos tangem continuamente e o tempo todo. Falar sobre o racismo, sobre
a criminalidade ou sobre os movimentos sociais é, a priori, uma tarefa fácil,
contudo, compreender as suas causas é uma tarefa muito mais árdua do que
apenas debater sobre os seus efeitos.

Nosso intento, no decorrer deste material, foi justamente o de incitar a


análise das causas, das origens dos problemas sociais e filosóficos presentes no
nosso entorno. Sabemos, também, que em vários pontos deste material o nosso
posicionamento demonstrou-se decisivo ou impactante. A nossa intenção foi esta
mesma. Deixar você, caro(a) acadêmico(a), um pouco mais perplexo, pois, como
afirma Platão, o aprendizado só acontece, de fato, quando ficamos espantados
com o mundo que nos circunscreve. Só podemos aprender alguma coisa nova se
ficarmos admirados (ou assustados) sobre o objeto de nosso estudo.

Contudo, no momento em que escrevíamos este material, tínhamos em


mente que a nossa escrita deveria ser franca e clara, sem rodeios ou diletantismos,
sem clichês, sem meias-palavras ou “lugares-comuns”, mesmo sabendo que
vez ou outra isso veio a ocorrer. Queríamos criar uma atmosfera de leitura que
transcende do papel e leva cada pessoa a “estar em uma sala de aula”. Como se,
ao ler este material, o estudante se sentisse diante de um professor, discutindo
e interagindo, não numa relação fixa de ensino/aprendizagem, mas como uma
troca de experiências sobre o mundo.

245
UNIDADE 3 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E SOCIAL NO BRASIL

Agradecemos a você, que nos acompanhou até aqui, pela paciência e


pela vontade de aprender, porque, de certo modo, foi o que nos moveu até aqui
também. Neste último tópico queremos apresentar um pouco sobre os problemas
sociais que o Brasil enfrenta atualmente, sob a ótica de alguns pensadores da
Filosofia e da Sociologia Contemporânea. E, mais uma vez, obrigado!

2 CRIMINALIDADE E COMPORTAMENTO
Falar sobre criminalidade implica, logicamente, em falar sobre crime.
Contudo, a noção de crime não é consensual. A utilização banal desta palavra
fez com que o seu sentido real se perdesse. Segundo o Dicionário Aurélio, crime
caracteriza-se como “1. Violação da lei penal; delito; 2. Ato de desobediência ao
que é considerado direito, correto”. (FERREIRA, 2011, p. 265). Estas definições
representam um conjunto de ideias muito curiosas sobre o verdadeiro sentido da
palavra crime.

Genericamente falando, o crime está diretamente ligado à definição 1


do dicionário, pois estamos acostumados a ligar a ideia de crime a uma pessoa
pobre e sem instrução. A violação da lei está mais próxima daquele que é pobre,
pois não se faz, usualmente, em nosso país, qualquer vinculação entre crimes e
pessoas ricas.

Além disso, faz-se comumente uma associação desta pessoa com bairros
pobres e sem infraestrutura. É por isto que há, no Brasil, uma estigmatização
das pessoas que vivem nas favelas. Elas são consideradas como criminosas só
porque vivem nestes lugares. Ou seja, é muito mais fácil rotular uma pessoa como
criminosa só porque ela vive em um determinado lugar, em vez de compreender
as verdadeiras causas da criminalidade.

Outrossim, este estereótipo é muito assíduo, pois é uma maneira de


esconder a verdade acerca do surgimento das favelas no Brasil. Antes, porém, é
importante destacar que este conceito está profundamente ligado à história do país.

De um modo geral, as favelas surgiram no início do século XX, na cidade


do Rio de Janeiro. Tudo começou quando muitas pessoas foram convocadas para
lutar pela incipiente República, na Guerra de Canudos. Muitos se alistaram para
lutar com a promessa do Governo Federal de que, se vencessem a guerra, cada
soldado receberia uma propriedade de terra na cidade do Rio de Janeiro, como
soldo. Após a guerra, como nada fora entregue, as pessoas tiveram que se adaptar
e construir suas casinhas no Morro da Providência, na periferia do Rio de Janeiro.
Ao mesmo tempo em que isso acontecia, o prefeito da época, Barata Ribeiro,
estava promovendo uma verdadeira limpeza no centro da cidade.

Todas as pessoas que viviam em cortiços deveriam abandoná-los e viver


em outros lugares, pois não havia higiene e limpeza suficiente para que as pessoas
continuassem vivendo nestes locais. Esta dupla dicotomia, tendo, de um lado,

246
TÓPICO 3 | QUESTÕES SOCIAIS BRASILEIRAS NA ATUALIDADE: CRIMINALIDADE, SOCIOLOGIA RURAL,
MOVIMENTOS SOCIAIS, RELIGIÃO E LIBERTAÇÃO

prefeito e Governo Federal e, do outro lado, cortiços e soldados, respectivamente,


engendrou a segregação definitiva deste último grupo de pessoas para a região
do Morro da Providência, que posteriormente veio a se chamar Morro da Favella
(com dois éles mesmo). A palavra favella se refere a uma planta originária do
agreste baiano, cheia de espinhos.

Ela representa a ausência de beleza e a falta de esperança do povo que foi


relegado a este descaso. Assim, nasce a ideia de que o espaço dos relegados, dos
“favelados”, é um espaço de violência, de crimes, de “violação da lei”. Porém,
muitos se esquecem de que todos os que estão neste espaço foram forçados a
estarem ali. Não foi escolha, foi um verdadeiro abandono dos governos municipal
e federal. Há uma violência preponderantemente forte sobre os que ali habitam,
pois sofrem sempre uma dupla brutalidade, demarcada pela história e pelas
pessoas que vivem em outros espaços da cidade.

Primeiro, porque definem que o espaço físico da criminalidade é a própria


favela e, depois, simbolicamente definem que “o bode expiatório” é o “favelado”,
o que pode ser definido como uma dogmatização da existência criminal, ou seja,
o crime existe porque existe favela. O dogma surge como uma verdade absoluta
e inquestionável, enquanto o estigma aparece como um “ferro que marca o corpo
do favelado”. O rótulo é criado e a cicatriz é alcunhada.

É por isso que, no Brasil, falar sobre criminalidade não é uma tarefa
fácil. Para quem se recorda do filme “Tropa de Elite”, o capitão Nascimento
(personificado pelo ator Wagner Moura), ao invadir os morros das favelas do Rio
de Janeiro, descobre, na continuação do filme (Tropa de Elite 2), que o espaço do
crime não se circunscreve apenas à favela, mas reside predominantemente entre
os “criminosos de colarinho branco”. Contudo, todos nós compreendemos que o
principal alvo da retaliação policial são os mais pobres, pois seria como se a favela
fosse o próprio símbolo da criminalidade, o único local que aglomera problemas
sociais. (BERLATTO, 2011).

FIGURA 74 – A PLANTA FAVELLA

FONTE: Disponível em: <http://jovempretovelho.blogspot.com.


br/2012/05/uma-planta-chamada-favela.html>. Acesso em: 5 fev. 2013.

247
UNIDADE 3 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E SOCIAL NO BRASIL

FIGURA 75 – IMAGEM DA BARATA (COMO PREFEITO DO RIO DE


JANEIRO) “DEVORANDO” A “CABEÇA DE PORCO”, QUE ERA O
NOME DO PRINCIPAL CORTIÇO DO RJ

FONTE: Disponível em: <http://1.bp.blogspot.com/_


cyAmCqNOQXo/SxarMFF057I/AAAAAAAAADk/6-EMPupza0k/
s320/ilustra%C3%A7%C3%A3o+cabe%C3%A7a+de+porco.jpg>.
Acesso em: 5 fev. 2013.

Por este viés de pensamento, gostaríamos de ressaltar um aspecto muito


importante daquilo que foi falado até aqui no que se refere ao problema do
biopoder, isto é, o poder que é exercido sobre os corpos dos indivíduos. Michel
Foucault, importante pensador francês, já estudado na Unidade 2, descreve uma
relação de submissão e controle sobre o corpo das pessoas, na medida em que
elas sofrem um pesado processo de disciplinarização, no qual elas devem aceitar
a “mecânica do poder”. Os “favelados”, descritos acima, são a personificação
desta ideia, que une estigma e dogma com triste perfeição.

O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o


desarticula e o recompõe. Uma “anatomia política”, que é também uma
“mecânica de poder”, que está nascendo; ela define como se pode ter
domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que façam o que
se quer, mas para que operem como se quer, com as técnicas, segundo a
rapidez e a eficácia que se determina. A disciplina fabrica corpos submissos
e exercitados, “corpos dóceis”. (FOUCAULT, 1987, p. 127).

Além deste ponto de vista histórico-social acerca da criminalidade


no Brasil, existem algumas teorias muito interessantes que discutem sobre a
gênese do criminoso. O criminologista italiano Cesare Lombroso, por exemplo,
foi considerado o pensador que mais defendeu a origem do crime no próprio
criminoso, isto é, ele considerava que o crime é genético.

Segundo suas pesquisas, certas pessoas nasceram com uma inclinação


própria para o crime. Seu pensamento estava fundado nos princípios do
evolucionismo, que justificam que algumas pessoas (e etnias) se desenvolveram

248
TÓPICO 3 | QUESTÕES SOCIAIS BRASILEIRAS NA ATUALIDADE: CRIMINALIDADE, SOCIOLOGIA RURAL,
MOVIMENTOS SOCIAIS, RELIGIÃO E LIBERTAÇÃO

melhor graças à ação gradual do avanço civilizatório e cultural que sofreram


com o passar dos tempos. Além disso, ele afirmava que as pessoas que possuíam
distúrbios sociais ou comportamentais sofriam de desvios atávicos. Sobre isso,
ele mesmo escreve:

Estou convencido de que há um pathos criminogêneo, um morbus que


impele ao delito, qualquer que seja a sua natureza, e contra o qual a pena se
revelará impotente na maioria dos casos; mas essa anomalia é menos comum do
que se poderia supor; estou igualmente convencido. O que mais ordinariamente
se depara na vida é a combinação de certas condições fisiopsíquicas apropriadas
à perpetração do malefício, com certas outras condições sociais que fecundam
esse germe individual, se é que muitas vezes não o fazem produzir-se.

FONTE: Disponível em: <www.espacoacademico.com.br/089/89nobregajr.htm>. Acesso em: 5


fev. 2013.

Todavia, ele acrescenta em um discurso seu, na cidade de Turim, a


seguinte ideia: os criminosos já nascem assim. Ele mesmo explica a
sua descoberta: eis que, de repente, numa triste manhã de dezembro,
encontro no crânio de um malfeitor toda uma longa série de
anomalias atávicas, sobretudo uma enorme fosseta occipital média
e uma hipertrofia da fosseta vermiana, análogas às encontradas nos
vertebrados inferiores. À vista dessas estranhas anomalias, como se
tivesse surgido uma grande planície sob um horizonte em chamas, o
problema da natureza e da origem do criminoso pareceu-me resolvido.
(LOMBROSO, 1893; DARMON, 1991).

FIGURA 76 – CRÂNIOS DE CRIMINOSOS ITALIANOS

FONTE: Disponível em: <http://www.gsgis.k12.va.us/ourschool/AllSchoolRead/


Secrets.htm>. Acesso em: 5 fev. 2013.

Mesmo assim, podemos ver que a conclusão de Lombroso é


demasiadamente indutiva, pois ele acredita que após algumas verificações
particulares é possível chegar a uma conclusão universal, válida para todos. Esse
posicionamento é profundamente perigoso e tendencioso. Contudo, foi com base
nestas explicações que o método de eugenia foi pensado para a purificação de
249
UNIDADE 3 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E SOCIAL NO BRASIL

várias raças ao redor do globo terrestre. Estes processos de purificação racial


evitariam o nascimento de pessoas propensas à criminalidade. Este método, você,
caro estudante, já conhece: seja pelas mãos de Hitler ou pela eugenia à brasileira
(vide Oliveira Viana/Getúlio Vargas).

Contudo, as ideias de Lombroso (1983) não perduraram por muito tempo,


pois atualmente sabe-se que os fatores mais preponderantes para o desenvolvimento
da criminalidade não estão, em si mesmos, no criminoso, mas no meio no qual ele
está inserido, bem como, os fatores sociológicos e psicológicos que desencadeiam
potencialmente o desejo pelo crime são os mais aceitáveis hodiernamente.

Émile Durkheim (1987), por sua vez, acredita que o crime é um evento
normal na sociedade. Ele considera o crime algo normal na medida em que ele é
resultado de um desequilíbrio ou desajuste no ambiente coletivo. Se pessoas estão
passando por dificuldades e não há nenhuma retaguarda por parte do Estado,
elas apelarão ao recurso que estiver disponível, no caso, o crime.

Isso não significa dizer que Durkheim é conivente com o crime, mas ele
nos alerta para a questão de que o crime não é só um problema que compete
ao criminoso resolver, mas que é efeito da ruptura dos laços de solidariedade
orgânica (conceito que já vimos neste material) na sociedade. O pior efeito da
criminalidade, na visão durkheimiana, é a ocorrência da anomia, que significa,
em breves palavras, a ideia de que não existem mais regras a serem seguidas,
que não há mais respeito pela alteridade. Durkheim crê que, na medida em que
estes fatos acontecem, a importância das instituições sociais se desintegra. Isso
representa um verdadeiro caos social, pois, para ele, a relação entre os indivíduos
deve ser respeitada constantemente. Esta desintegração representa, em outras
palavras, um verdadeiro decreto de falência da vida social, pois se não houver
integração e coesão, não haverá solidariedade. (DIMENSTEIN, 2008).

DICAS

Sugestão de filme: TROPA DE ELITE 2

Nascimento (Wagner Moura), agora coronel, foi afastado do


BOPE por conta de uma malsucedida operação. Desta forma, ele
vai parar na inteligência da Secretaria de Segurança Pública do
Estado. Contudo, ele descobre que o sistema que tanto combate
é mais podre do que imagina e que o buraco é bem mais
embaixo. Seus problemas só aumentam, porque o filho Rafael
(Pedro Van Held) tornou-se adolescente, Rosane (Maria Ribeiro)
não é mais sua esposa e seu arqui-inimigo Fraga (Irandhir Santos)
ocupa posição de destaque no seio de sua família.

FONTE: Disponível em: <http://www.adorocinema.com/filmes/


filme-189340/>. Acesso em: 5 fev. 2013.

250
TÓPICO 3 | QUESTÕES SOCIAIS BRASILEIRAS NA ATUALIDADE: CRIMINALIDADE, SOCIOLOGIA RURAL,
MOVIMENTOS SOCIAIS, RELIGIÃO E LIBERTAÇÃO

Outro ponto importante que gostaríamos de destacar para encerrar o


nosso ponto de vista sobre a criminalidade brasileira se refere à distinção entre
comportamento desviante e criminalidade. Howard Becker, importante sociólogo
estadunidense, demonstra que as duas coisas não são iguais, ao dizer que:

O comportamento desviante é criado pela sociedade. Não quero dizer


isto no sentido normalmente compreendido, em que as causas do
desvio são localizadas na situação social do desviante ou em “fatores
sociais” que condicionam seu comportamento. Quero dizer que os
grupos sociais criam o desvio ao estabelecer as regras cuja infração
constitui desvio e ao aplicá-las a pessoas particulares, marcando-as
como outsiders. Sob tal ponto de vista, o desvio não é uma qualidade do
ato que a pessoa faz, mas sim a consequência da aplicação por outrem
de regras e sanções ao “transgressor”. (BECKER, 2008, p. 21-22).

Mas, afinal, o que Becker quis dizer com isso? Ele revela que o ato de
desviar-se daquilo que é padrão ou aceitável pela maioria das pessoas não é algo
que está inserido nas pessoas que cometem o desvio. Mas, ao contrário, o pior
são as sanções e punições que são aplicadas e impostas pelas outras pessoas, que
agem como se fossem vigilantes da regra.

Sendo assim, a amplitude de desvios e seu recíproco leque de punições são


decorrentes da diversidade de grupos sociais que encontramos ou nos quais estamos
inseridos. Por exemplo, um adolescente pode sofrer inúmeras retaliações de seus colegas
de escola por agir de modo diferenciado (ou por não se enquadrar em determinados
modelos preestabelecidos). Donde, surge o bullying. Este mesmo adolescente, por outro
lado, pode ser demasiadamente cobrado pelos seus pais, para que conquiste bons
resultados nas provas escolares, para que consiga um emprego etc.

Esta cobrança, quando não correspondida, pode ser alvo de várias


represálias familiares. Entretanto, é preciso compreender que o comportamento
dito desviante do adolescente não é fruto de um desejo seu, mas do não
cumprimento das regras do jogo social. Este estigma que o adolescente sofre está
associado ao desvio. Contudo, ele nunca foi consultado sobre o que ele realmente
quer ser ou como deseja viver.

Neste caso fictício (mas plausível de ser real), é comum que as pessoas
rotuladas sofram amargamente o peso da incompreensão ou o desejo de
“autodestruição”. É comum encontrarmos casos nos quais a pessoa tira a própria
vida e a vida de pessoas próximas por não ser aceita como é. Durkheim tem uma
frase muito célebre sobre a questão do comportamento que devemos adquirir no
decorrer de nossas vidas na interação com as outras pessoas: “A maioria de nossas
ideias e tendências não são elaboradas por nós, mas nos vêm de fora e não podem
penetrar em nós senão através de uma imposição”. (DURKHEIM, 1987, 90).

Esta inadequação, este desenquadramento gera o desvio, que, como vimos


acima, Becker denomina como comportamento “outsider”: o comportamento
daquele que se sente do lado de fora, que não se sente partícipe da vida social
plenamente. Além disso, podemos inferir que um método assaz eficaz de controle
social e de manutenção da “normalidade” é a fofoca. “Cair na boca do povo” não
é algo que agrada muito às pessoas.
251
UNIDADE 3 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E SOCIAL NO BRASIL

Deste modo, manter-se normal faz com que as outras pessoas “não nos vejam”
e nada falem sobre nós. É por isso que temos que destacar aqui que o crime, como
contravenção, faz parte de um rol de ações que devem ser analisadas e penitenciadas
segundo os critérios do controle social formal. Não obstante, as ações desviantes são
“retaliadas” segundo critérios do controle social informal e – por incrível que pareça –
elas podem ser mais “impetuosas e eficazes” do que as do controle formal. Ir à escola
sem o uniforme, usar uma roupa extravagante, não saber a prática correta de um
esporte, cometer um erro crasso no convívio com seus colegas são alguns exemplos
que podem revelar o quanto uma pessoa pode ser motivo de chacota e humilhada por
não se enquadrar no modelo “padrão de comportamento”. (ELIAS; SCOTSON, 2000).

DICAS

Sugestão de leitura: ELIAS, Norbert; SCOTSON, John. Os


Estabelecidos e os Outsiders. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2000.

FIGURA 77– “DO LADO DE FORA”

FONTE: Disponível em: <http://blogs.estadao.com.br/olhar-sobre-o-mundo/


files/2010/07/P004TF002708.jpg>. Acesso em: 15 fev. 2013.

252
TÓPICO 3 | QUESTÕES SOCIAIS BRASILEIRAS NA ATUALIDADE: CRIMINALIDADE, SOCIOLOGIA RURAL,
MOVIMENTOS SOCIAIS, RELIGIÃO E LIBERTAÇÃO

AUTOATIVIDADE

O bullying é uma das práticas mais terríveis de reprimenda e coação


que existe no ambiente escolar e social. Falar sobre o assunto é sempre motivo
de polêmica ou “desconversa”. Nos EUA, com frequência, os estudantes que
sofrem este tipo de humilhação revoltam-se sobremaneira contra seus colegas
e professores e acabam cometendo crimes hediondos. No seu ponto de vista,
por que isto ocorre? Você acredita que as pessoas que cometem estes crimes
são influenciadas pelo desdém que sofrem ou há algo inato que as impele a
cometer tais ações? Argumente a respeito.
____________________________________________________________________
____________________________________________________________________
____________________________________________________________________
____________________________________________________________________
___________________________________________________________________
____________________________________________________________________
____________________________________________________________________
____________________________________________________________________
____________________________________________________________________
____________________________________________________________________
____________________________________________________________________

3 SOCIOLOGIA DO MEIO AMBIENTE RURAL


Devido à complexidade temática e também em decorrência das inúmeras
influências que a sociologia rural no Brasil recebe de outras áreas, como, por
exemplo, a Geografia e a Economia, ela se tornou um campo de investigação cuja
delimitação não é tarefa simples. Guivant (2010) sugere, em seu estudo, que a
Sociologia do Meio Ambiente Rural no Brasil seja compreendida como resultado
do hibridismo entre a Sociologia Ambiental e a Sociologia Rural.

A sociologia rural no Brasil, por muito tempo, sofreu forte influência das
correntes filosófico-sociológicas marxistas, o que levou à acentuação de temas ligados
ao "êxodo rural, à necessidade de reforma agrária, às ameaças de desaparecimento da
agricultura familiar diante da concentração da propriedade, às relações de trabalho,
ao poder do capital das multinacionais etc". (GUIVANT, 2010, p. 375).

Interessante observar que todos os problemas e dificuldades enfatizados


por estas reflexões não eram vinculados à degradação ambiental. Guivant (2010,
p. 375) ressalta nessa questão que: “Os problemas decorrentes da deterioração
ambiental estão estreitamente ligados aos demais problemas sociais relativos ao
ambiente rural. As formas de plantio e os tipos de insumos empregados no cultivo
que almejam preponderantemente o crescimento econômico estão diretamente
ligados à mentalidade dominante e às políticas públicas destinadas ao campo”.

253
UNIDADE 3 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E SOCIAL NO BRASIL

Conforme Guivant (2010, p. 376):

Três correntes que incluem a questão ambiental podem ser identificadas


na Sociologia rural: (a) a Sociologia rural vinculada a pressupostos
marxistas; (b) a Sociologia rural envolvendo pesquisas de caráter
altamente empírico, sem reflexão teórica significativa e sim normativa,
igual à primeira; e (c) aquela que se refere a pesquisas que buscam o
cruzamento da ótica socioambiental no meio rural com a teoria social
contemporânea em diálogo com a Sociologia ambiental internacional,
como forma de enriquecer e renovar a disciplina.

A prolongada ignorância das questões ambientais na reflexão sociológica


sobre a esfera rural pode ter duas razões. Por um lado, a fé no progresso e no
avanço da sociedade baseada na racionalidade tornou a preservação do meio
ambiente um obstáculo, o que se refletiu também na sociologia clássica. Por outro
lado, a concepção de ciência delimitada e compartimentada limitou a reflexão
sociológica a ignorar outros fatores, tais como os de ordem biológica, física e
natural. (GUIVANT, 2010).

A Sociologia e a Sociologia Rural no Brasil passaram a experimentar uma


reorientação ou uma mudança de paradigmas a partir da década de 1990. Importantes
fatores que contribuíram para as mudanças foram as publicações de Ulrich Beck e
Anthony Giddens, especialmente através do conceito de sociedade de risco.

A Eco 92 foi outro marco na mudança da disciplina, pois contribuiu para a


mudança de tônica na reflexão sociológica, de modo a considerar a influência da
degradação do meio ambiente como elemento constitutivo para a compreensão da
realidade social. (GUIVANT, 2010).

FIGURA 78 – ECO 92

FONTE: Disponível em: <http://cienciahoje.uol.com.br/colunas/terra-em-


transe/rio-20-vai-encarar/image_preview>. Acesso em: 15 fev. 2013.

254
TÓPICO 3 | QUESTÕES SOCIAIS BRASILEIRAS NA ATUALIDADE: CRIMINALIDADE, SOCIOLOGIA RURAL,
MOVIMENTOS SOCIAIS, RELIGIÃO E LIBERTAÇÃO

NOTA

A noção de sociedade de risco aponta para os limites da própria ciência em


criar soluções para os problemas da civilização. Os referidos autores alertam para os perigos
do cientificismo, ou seja, da crença da onipotência da ciência e na sua capacidade de levar
a humanidade à sociedade perfeita. Segundo Giddens e Beck, esta utopia não é realizável,
pois cada nova solução desenvolvida pela ciência, mesmo que resolva um conjunto de
problemas, traz em seu bojo uma série de novos problemas, sobre os quais não se tem
controle. Portanto, eles afirmam que não se pode prever com exatidão os efeitos colaterais
dos avanços científicos. (GIDDENS, 2009; BAUMAN, 2010).

DICAS

Sugestão de leitura: BAUMAN, Zygmund; MAY, Tim. Aprendendo


a pensar com a sociologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010.

Como resultado desse processo, surgiram, ao longo das décadas de 1990


e 2000, diversos programas de pós-graduação no Brasil voltados às questões
ambientais, que passaram a produzir pesquisas sociológicas que incluíssem as
questões ambientais em suas análises. Em 2000 foi criada a Associação Nacional
de Pesquisa e Pós-Graduação em Ambiente e Sociedade (ANPPAS – www.anppas.
org.br). A ANPPAS também passou a editar a revista Ambiente e Sociedade, que se
tornou fórum privilegiado de discussão da temática no Brasil. (GUIVANT, 2010).

Atualmente, a Sociologia do Meio Ambiente Rural no Brasil tem trabalhado


com dois pressupostos básicos. O primeiro é o de que a modernização e o avanço
tecnológico não são necessariamente os responsáveis pela degradação ambiental,
mas podem ser justamente as fontes das soluções necessárias à resolução dos
problemas ambientais. Outra premissa atual consiste em ver o meio ambiente
como socialmente construído, "permeado de crenças, ideologias, discursos, assim
como tendo uma base material". (GUIVANT, 2010, p. 379).
255
UNIDADE 3 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E SOCIAL NO BRASIL

4 TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO
Além dos assuntos ligados à Sociologia do Meio Ambiente e à
Criminalidade Nacional, outro tema que despertou bastante o interesse de vários
pensadores da Filosofia e da Sociologia foi a Teologia da Libertação. A Teologia
da Libertação ficou conhecida como expressão de um movimento religioso
transconfessional, que surpreendeu o pensamento filosófico e sociológico da
América Latina, nos anos 1970.

O marco teórico desse movimento está na publicação do livro “Teologia da


Libertação”, em 1971, pelo peruano Gustavo Gutiérrez, que é sacerdote dominicano.
Contudo, a obra de Gutiérrez e dos teólogos da libertação posteriores não foi fruto
do acaso, mas justamente do desenvolvimento histórico anterior, que precisamos
compreender brevemente para, assim, entender melhor o que a Teologia da
Libertação representou para a América Latina e, consequentemente, também para
a religiosidade e para o desenvolvimento intelectual no Brasil de modo geral.

Conforme Dreher (1999), a primeira metade do século XX foi um tempo


de organização do cristianismo na América Latina, marcado pela busca de
uma "nova cristandade". Foi um tempo de amadurecimento e de estruturação,
o que vale para as diferentes confissões religiosas. Os países periféricos em
relação ao centro do capitalismo, entrementes deslocado da Inglaterra para os
Estados Unidos, sentiram as mudanças na economia mundial. Isso fez surgir
regimes governamentais caracterizados pelo populismo, mas que logo ganharam
expressão na forma de fascismo ou stalinismo. Por essa razão, logo ganhou força
entre os cristãos a ideia de que "o diabo é vermelho".

FIGURA 79 – O DIABO É VERMELHO

FONTE: Disponível em: <http://3.bp.blogspot.com/-KTEWKBBN_


rw/Tm4eZVoXk2I/AAAAAAAAAbA/NaoMnTJKXK0/s1600/diabo_
vermelho.jpg>. Acesso em: 5 fev. 2013.

256
TÓPICO 3 | QUESTÕES SOCIAIS BRASILEIRAS NA ATUALIDADE: CRIMINALIDADE, SOCIOLOGIA RURAL,
MOVIMENTOS SOCIAIS, RELIGIÃO E LIBERTAÇÃO

Nessa perspectiva, socialismo e comunismo não eram vistos com bons


olhos, principalmente pelas lideranças eclesiásticas na América Latina, e o discurso
dominante passa a ter conotações populistas. Para o catolicismo brasileiro valia
a expressão de que "Todo bom brasileiro é bom católico, e todo bom católico é
bom brasileiro" (apud DREHER, 1999, p. 191). O discurso populista no seio das
igrejas na América Latina passou a ser abandonado com a queda dos regimes
governamentais populistas na década de 1950.

Dreher (1999) afirma que a organização do cristianismo no Brasil foi


marcada pela criação de confederações de igrejas, congressos, encontros de
lideranças, organizações episcopais, entre outros. Contudo, o grande esforço de
organização foi voltado para o laicato. Para fazer frente às diversas organizações
seculares, as igrejas investiram na reunião dos fiéis em movimentos.

No âmbito da Igreja Católica Romana, esta iniciativa ficou conhecida como


“Ação Católica”, que teve vários desdobramentos, como juventude operária,
juventude universitária, juventude estudantil e juventude agrária. Todos os
movimentos permaneceram, contudo, sob a tutela da hierarquia eclesiástica.
Devido à força que estes movimentos alcançaram, eles impactaram os governantes
e levaram-nos a negociações.

A partir da década de 1950, a preocupação social das igrejas cristãs


tornou-se mais intensa em decorrência do crescimento da influência marxista/
socialista/comunista, especialmente entre o meio operário. Para divulgar a
nova mentalidade do cristianismo latino-americano, foram criados inúmeros
periódicos que lhe dessem expressão. Exemplos são as seguintes revistas: Revista
Eclesiástica Brasileira (Petrópolis); Teología y Vida (Santiago); Stromata (Buenos
Aires); e Estudos Teológicos (São Leopoldo).

Um marco para o cristianismo mundial e especialmente para a América


Latina foi a eleição do Papa João XXIII, em outubro de 1958. As suas colocações
sobre "a igreja dos pobres" foram fundamentais para os compromissos políticos e
sociais do cristianismo latino-americano.

Conforme argumenta Dreher (1999, p. 193):

As colocações feitas por João XXIII em suas encíclicas e pronunciamentos


coincidiram com uma época de ebulição em toda a América Latina.
Em 1º de janeiro de 1959, Fidel Castro pôs fim ao regime de Fulgêncio
Batista em Cuba. Desde aquele ano, as esquerdas passaram a pensar
que o movimento guerrilheiro tinha chances, que o marxismo
representava a única via para a liberdade e que o socialismo poderia
ser concretizado na América Latina. Camilo Torres, o sacerdote que
julgava não mais poder consagrar os elementos da Eucaristia enquanto
houvesse opressão, e Ernesto Che Guevara, eram modelos.

Contudo, os golpes militares em toda a América Latina, que introduziram


"regimes de segurança nacional" a partir da década de 1960, comprometeram os
sonhos de que sociedades com características socialistas poderiam ser criadas no

257
UNIDADE 3 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E SOCIAL NO BRASIL

continente por meios pacíficos. O retorno a regimes democráticos seria lento e


gradual. No Brasil, ele foi reintroduzido somente em 1985. Por outro lado, esse
período tenso e conturbado também foi ocasião para que se gestasse uma teologia
de maneira muito séria, na busca de "elementos para que o povo de Deus pudesse
sobreviver no deserto, sem perder as esperanças em relação ao Reino de Deus".
(DREHER, 1999, p. 194).

Segundo Dreher (1999, p. 194), no Brasil:

[...] foram pesquisadas a Teoria da Dependência e a Sociologia da


Libertação. O grande pensador teológico desse grupo foi Richard
Shaull, professor do seminário teológico da Igreja Presbiteriana do
Brasil, em Campinas, SP, e, desde 1962, professor em Princeton, nos
Estados Unidos. Shaull reconhece as tendências revolucionárias na
América Latina e fez a tentativa de interpretá-las à luz do Evangelho.
Daí resultou seu livro As transformações profundas à luz de uma Teologia
Evangélica [...]. A violência e a revolução são os temas a partir dos quais
Shaull dirige perguntas à Igreja. [grifado no original].

Nesse contexto, também devem ser lembrados os nomes de outros


representantes da Teologia da Libertação, tais como Emilio Castro, Julio de Santa
Ana, José Miguez Bonino, Rubem A. Alves, Hugo Assmann e Pablo Richard.
Como parte de uma segunda geração de teólogos da libertação ainda devem ser
mencionados os nomes de Leonardo Boff e do argentino Henrique Dussel, cujas
obras serviram de referência para uma escrita da história da igreja na América
Latina a partir da ótica dos oprimidos. (DREHER, 1999).

Nas obras desses pensadores:

A libertação foi vista como uma luta pacienciosa, persistente do povo


latino-americano em situação de perseguição e opressão. Enquanto algumas
pessoas pensavam que os estados de segurança nacional significavam um
retrocesso para a Teologia da Libertação, aconteceu o contrário: a Teologia da
Libertação se espalhou. O movimento popular e as comunidades eclesiais de
base assumiram os pensamentos da Teologia da Libertação, especialmente no
Brasil, mas também no México, El Salvador, Peru, Chile e Bolívia. [...] Por isso,
também é compreensível que a Teologia da Libertação veio a se tornar mais e
mais reflexão sobre a práxis dos pobres, que se haviam organizado em comunidades
e movimentos. [grifado no original].

FONTE: Disponível em: <http://www.cebi.org.br/noticia.php?secaoId=28&noticiaId=2802>.


Acesso em: 22 fev. 2013.

Pode-se concluir, portanto, que a Teologia da Libertação foi um movimento


intelectual e popular com grande repercussão no Brasil e em outros países da
América Latina. A sua gestação ocorreu a partir de um profícuo diálogo entre
a realidade latino-americana, a teologia, a sociologia e a filosofia desse período
histórico e anteriores.

258
TÓPICO 3 | QUESTÕES SOCIAIS BRASILEIRAS NA ATUALIDADE: CRIMINALIDADE, SOCIOLOGIA RURAL,
MOVIMENTOS SOCIAIS, RELIGIÃO E LIBERTAÇÃO

AUTOATIVIDADE

Elabore uma pesquisa sobre Leonardo Boff e sua obra. Boff é considerado
um dos teólogos mais respeitados do Brasil. Suas contribuições são muito
importantes para o entendimento da Teologia da Libertação no Brasil. Pesquise
e saiba mais sobre ele no site: <leonardoboff.com>.

5 MOVIMENTOS SOCIAIS NO BRASIL


FIGURA 80 – MOVIMENTOS SOCIAIS

FONTE: Disponível em: <http://4.bp.blogspot.com/-4yc775ROXF8/


T7JoDF9FdGI/AAAAAAAAAB0/OqTsBWWKx_I/s1600/movimento-social-3.
png>. Acesso em: 5 fev. 2013.

De modo geral, podemos definir que movimento social é a manifestação


de um grupo organizado de pessoas que defendem interesses em comum, sejam
eles de caráter ideológico ou de transformação social.

De acordo com alguns pensadores da sociologia clássica, como Weber


e Durkheim, os movimentos são a revelação da mudança, a propulsão do novo.
Segundo ele, todos os movimentos sociais - independentemente das causas que
defendem - engendram a passagem de uma situação de inércia para uma situação
de movimento, como o próprio nome já intui. Essas mudanças ocorrem por vários
motivos, sendo que o mais recorrente é o da insatisfação: quando um determinado
grupo de pessoas se sente inconformado ou injustiçado diante de alguma realidade
hostil, elas se juntam e buscam resolver os impasses que esta hostilidade produz.

Assim sendo, durante muito tempo ficou clara a ideia de que as pessoas
só seriam capazes de agir em prol de seus interesses se estivessem ligadas a
determinados grupos sociais e engajadas na luta pelos interesses coletivos. A ideia
de classe predominava como caracterização do pensamento geral dos movimentos

259
UNIDADE 3 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E SOCIAL NO BRASIL

sociais. Deste modo, o princípio de pertencimento de classe deveria pesar mais do


que a individualidade do sujeito. (DIMENSTEIN, 2008).

Outrossim, é muito interessante destacar que esta ideia não prevaleceu por
muito tempo, pois a noção de classe dá um caráter demasiado homogêneo às pessoas
vinculadas. Deste modo, muitas pessoas ligadas aos movimentos sociais começaram
a divergir dos preceitos estabelecidos pelas classes às quais pertenciam (lembrando
aqui que, para Marx, só existem duas classes: o proletariado e a burguesia).

Em outras palavras: nem todas as pessoas ligadas a estes movimentos


possuíam interesses uníssonos ou unânimes. Pensar a coletividade significava
abdicar dos interesses pessoais e colocar-se a favor da resolução dos problemas
coletivos. Contudo, uma pergunta começou a instigar muitas pessoas: mas, e se
os interesses privados fossem subsumidos, ainda haveria sentido em continuar
na luta coletiva?

Sendo assim, uma lenta mudança começou a ocorrer, pois percebeu-se


que não se fazia mais necessário o pertencimento a organizações fechadas, como
sindicatos, para que os direitos legítimos dos indivíduos fossem reivindicados.
Bastaria que as pessoas se colocassem como protagonistas de suas próprias
vontades e tudo ficaria resolvido.

Parece, caro(a) acadêmico(a), num primeiro momento, algo muito


simples de ser feito, mas na prática a coisa não é tão fácil assim, pois a História do
Brasil está permeada de acontecimentos que desmentem tais teorias. Colocar-se
contra o Estado ou contra o sistema de controle vigente neste país é algo muito
perigoso. Basta lembrarmos um pouco do conteúdo do Tópico 1 desta unidade,
para recordarmos quantas pessoas foram eliminadas ou negligenciadas em seus
direitos, por se oporem ao sistema colonial, republicano ou militar do Brasil.

Muitos acreditam que esta história não se repetirá novamente em nosso


país, que isso é passado, mas, atualmente, no lugar de um sistema coercitivo e
violento, temos um sistema de monitoramento e vigilância que nos adestra e
domestica, para que não tenhamos opinião ou vida própria. Programas de televisão
que nos alienam, subestimam e aprisionam fazem parte de um conjunto de ações
estrategicamente elaboradas para que não “descubramos que os programados”
somos nós mesmos. Isso significa dizer que, comumente, aceitamos aquilo que
nos é apresentado pela mídia como real e verdadeiro.

Aquilo que é veiculado pela TV tem peso de verdade, independentemente


de quem o comunica. E isso é muito perigoso, pois inúmeras informações que
nos são passadas são aceitas sem o menor senso crítico. Neste sentido, a feminista
Judith Butler afirma que nosso comportamento está fortemente marcado pela
influência normativa da TV. Ela considera que boa parte das coisas que fazemos
ou cremos está delineada pela força de padronização comportamental que a TV
nos impõe, e isto perpassa, até mesmo, a sexualidade.

260
TÓPICO 3 | QUESTÕES SOCIAIS BRASILEIRAS NA ATUALIDADE: CRIMINALIDADE, SOCIOLOGIA RURAL,
MOVIMENTOS SOCIAIS, RELIGIÃO E LIBERTAÇÃO

A teórica e feminista estadunidense Judith Butler (1956-) desenvolveu


o conceito de heteronormatividade, que diz respeito às tentativas de
regrar o que se considera normal (normatizar) nas práticas sexuais, ou
seja, ser heterossexual. Segundo essa autora, entretanto, a feminilidade
e a masculinidade são performances, no sentido de encenação. São
essas performances que concretizam os gêneros e não algo de origem
natural. [É por isso que] no período de Luís XIV [rei da França] era
“natural” homens usarem saltos altos e pó de arroz. Atualmente não é
mais. (BERLATTO, 2011, p. 29). (grifo no original).

FIGURA 81 – O PAPEL DA TV EM NOSSAS VIDAS

FONTE: Disponível em: <http://www.snpcultura.org/fotografias/mafalda_gf_2.


jpg>. Acesso em: 5 fev. 2013.

Assim podemos deduzir que, para Butler, aquilo que é visto como normal
e aceitável nada mais é do que uma imposição midiática, mesmo sabendo que
nossas atuações no mundo social não passam de uma performance. Assumimos
vários papéis e, em cada um deles, assumimos a persona que julgamos ser
mais adequada. Não obstante, hoje não há, do ponto de vista social, classes
propriamente ditas, como classe operária ou classe dos trabalhadores. Aliás, esta
linguagem caiu em desuso.

261
UNIDADE 3 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E SOCIAL NO BRASIL

Atualmente, podemos considerar, segundo Butler, que os movimentos


sociais contemporâneos estão, de fato, consideravelmente desvinculados de
qualquer nuance classista, pois é muito mais aguda a presença de movimentos
que estão destinados a defender interesses de pequenos (ou, às vezes, grandes)
grupos, como o movimento das pessoas portadoras de necessidades especiais (em
suas mais variadas especificidades), o movimento dos Sem Terra e dos Sem Teto,
o movimento feminista, o movimento homoafetivo etc. Isso significa dizer que as
pessoas estão ligadas umas às outras, mas sem interesses econômicos, porém, ao
contrário, o que as une é o caráter cultural de seus interesses. O pensador francês
Alain Touraine foi um dos pensadores contemporâneos que mais argumentou a
favor desta ideia.

Para ele, na sociedade pós-industrial (ou pós-moderna), os conflitos não


se concentram mais no elemento econômico. Os conflitos de classe se
institucionalizaram, abrindo espaço para outras reivindicações sociais
que não são mais de cunho econômico, mas cultural – daí a importância
de movimentos como o feminista, o estudantil, o ecológico, o gay
etc. O objetivo desses movimentos é a democratização de acesso aos
mecanismos decisórios da política. Nesse contexto, o conhecimento
e a informação passam a se constituir os elementos-chave desses
movimentos. [...] Para Alain Touraine, os movimentos sociais constituem
o próprio objeto da Sociologia. (DIMENSTEIN, 2008, p. 260).

DICAS

Sugestão de filme: CRIMINALIZAÇÃO DOS MOVIMENTOS


SOCIAIS (RJ-2008)

O curta-documentário reúne denúncias de violação dos


direitos humanos contra os movimentos sociais, como a
repressão às manifestações do Movimento dos Trabalhadores
Rurais, a criminalização das atividades do Movimento de
Mulheres Camponesas e o drama das pessoas ameaçadas
no campo e na cidade. O relatório também revela que o
Estado brasileiro cria mecanismos para criminalizar essas
organizações em favorecimento de interesses privados.

FONTE: Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=Tt5rwvPej8Y>. Acesso em: 5


fev. 2013.

Sendo assim, após o fim da ditadura militar no Brasil, os movimentos


sociais começaram a tomar uma forma e um rumo mais claros. Houve um
crescente número de pessoas que despertaram o interesse pela defesa de valores e
ideias que julgavam ser de elevada importância, tais como a questão da moradia
para todos. O elevado número de desempregados, o direito a um tratamento de
saúde digno, os direitos femininos etc.

262
TÓPICO 3 | QUESTÕES SOCIAIS BRASILEIRAS NA ATUALIDADE: CRIMINALIDADE, SOCIOLOGIA RURAL,
MOVIMENTOS SOCIAIS, RELIGIÃO E LIBERTAÇÃO

A ordem agora era lutar pela emancipação pessoal e pela garantia do


respeito aos direitos de todos. Com a Constituição Federal promulgada em 1988,
a população percebeu que havia um espaço mais democrático e coletivo para a
defesa dos direitos básicos de cidadania. Além disso, com o passar do tempo,
principalmente nos meados de 1990, muitas pessoas principiaram por defender
a garantia e a manutenção de direitos sociais mais modernos, como a liberdade
sexual e a diversidade religiosa, o que hoje, definitivamente, já é uma realidade
concreta no país.

Entretanto, sabemos que ainda há muito a ser feito em nosso país. Não
podemos esmorecer ou desanimar, pois nosso papel como professores, estudantes
e pensadores, é o de jamais entregar-se diante das adversidades que encontramos
em nosso dia a dia. Com isso, deixamos a você, caro(a) acadêmico(a), esta Leitura
Complementar, que aborda os problemas e os desafios que os movimentos sociais
encararam em nosso país, como encerramento de nosso material didático.

Paz e sucesso sempre!

LEITURA COMPLEMENTAR

A UNIÃO FAZ A FORÇA!

Gilberto Dimenstein

Numa leitura atenta de nosso passado, encontramos uma sociedade


patriarcal e escravagista que cometeu violências indiscriminadas contra várias etnias
e classes sociais a elas subordinadas. Homens e mulheres, negros, índios, imigrantes
brancos e asiáticos, pobres e excluídos, em geral, deveriam ser meros figurantes de
um espetáculo em que as elites legitimam seu poder e dominação social.

Entretanto, a História registrou nos últimos 500 anos a existência de


dezenas de movimentos sociais que lutaram pela ampliação de seus direitos,
contra a violência, por liberdade, em busca de melhores condições vida.

Anarquistas, socialistas e comunistas defendiam um novo modelo de


sociedade com base ideológica diferente do capitalismo implantado no Brasil.
Conforme a produção industrial se desenvolveu, movimentos operários e
sindicais lutaram - e ainda lutam - por maiores salários, melhores condições de
trabalho e pela garantia ao emprego, dentre outras reivindicações. As greves
dos trabalhadores tiveram importante papel no movimento que levou ao fim da
ditadura, em 1985.

No século XX, houve vários momentos em que o movimento estudantil


foi às ruas para se manifestar em torno de importantes questões nacionais. Na
década de 1950, estiveram presentes na campanha “O petróleo é nosso”. No

263
UNIDADE 3 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E SOCIAL NO BRASIL

início dos anos 1960, caravanas culturais organizadas pela UNE - União Nacional
dos Estudantes percorreram o país divulgando atividades do Centro Popular
de Cultura. Durante a ditadura, grandes manifestações estudantis expressavam
o desejo de toda a sociedade por liberdades democráticas. Tiveram também
importante papel na campanha “Diretas já!”, em 1984, e pelo impeachment do
presidente Fernando Collor, em 1992.

Mais recentemente, novas questões passaram a fazer parte das


preocupações sociais, resultando no surgimento de movimentos ecológicos, pelos
direitos das crianças e adolescentes, pela preservação do patrimônio histórico,
pelo respeito à diversidade de orientações sexuais, contra a violência.

Dentre tantas lutas, o movimento feminista se destacou pela perseverança


na luta pela igualdade de direitos. À primeira vista, parece-nos que as mulheres
estavam marcadas pelo imobilismo e pela invisibilidade social. Autossacrifício,
submissão, obediência são estereótipos enganosos que ignoram o verdadeiro
papel da mulher na sociedade brasileira. A visão patriarcal reforçava os papéis
antagônicos de homens e mulheres: cabia aos primeiros desbravar os sertões,
conquistar riquezas, prover o lar, e a elas restaria a tarefa de multiplicar a prole.

No século XIX surgiram as primeiras organizações de mulheres que se


engajaram na luta pelo direito à instrução e ao voto. No Rio Grande do Norte,
Nísia Floresta (1809-1885), abolicionista e republicana, combatia a ignorância
das mulheres e a dependência feminina em relação aos homens. Já no início da
República, com o crescimento do comércio e da indústria, a mão de obra feminina
se incorporou à produção social, possibilitando o surgimento dos movimentos de
libertação.

Em 1932, como resultado de uma luta histórica, o voto feminino foi incluído
no Código Eleitoral. Desde então, as mulheres têm ampliado sua participação
política e tornaram-se agentes transformadores da própria História.

Atualmente, apesar de tantas conquistas, os meios de comunicação


insistem em promover uma imagem extremamente negativa do universo
feminino, ligando a mulher a futilidades, modismo e ideais de beleza duvidosos.

Assim como as mulheres, a grande diversidade de movimentos sociais


que atuam hoje no Brasil demonstra que o atendimento de suas reivindicações
dependerá de sua capacidade de se organizar. Ao enfrentar interesses contrários,
os movimentos vêm transformando interesses particulares em políticas públicas
e incluindo a ampliação dos direitos civis. Dessa forma, participação e cidadania
têm o mesmo sentido.

FONTE: DIMENSTEIN, Gilberto. Dez Lições de Sociologia para um Brasil cidadão. São Paulo:
FTD, 2008, p. 266-267.

264
RESUMO DO TÓPICO 3

• Queremos aprofundar alguns temas que são fundamentalmente


contemporâneos no Brasil. A teologia da libertação, a estigmatização e
segregação das pessoas que vivem nos subúrbios das grandes cidades, a
rotulação da ideia de que o “favelado é criminoso” e a análise conjuntural de
alguns movimentos sociais no país são alguns dos temas que este tópico se
propõe a explicar.

• Nossa abordagem neste tópico visa evidenciar o papel da sociologia na análise


dos fatos e acontecimentos sociais. Atualmente, estamos habituados a definir
o que a sociedade é, sem o menor critério de julgamento e avaliação. Achamos
que aquilo que é apresentado pela mídia tem peso de verdade, como se “o
argumento de autoridade” tivesse sido ressuscitado em nossa atualidade.

• Questionar, indagar e inquirir são verbos que compõem o vocabulário da


sociologia contemporânea. Pensar para além do óbvio é o principal guia de
entendimento deste tópico.

• Salientamos ainda que este tópico não circunscreve toda a complexidade do


momento atual pelo qual o nosso país está passando, mas quer incitar em
nossos acadêmicos o anseio e a vontade de conhecer de modo mais crítico e
menos passivo a nossa “nação brasileira”, pois como afirma o jornalista gaúcho
Eduardo Bueno: “um povo que não conhece a sua história, está condenado a
repeti-la”.

265
AUTOATIVIDADE

Baseado na charge de Mafalda e no texto de Fábia Berlatto (2011, p. 67-


68), descreva com suas palavras, se possuímos ou não liberdade de escolha em
nossas vidas, já que somos influenciados constantemente pela mídia e pelos
“valores e princípios sociais”:

FONTE: Charge de Mafalda. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/741360-


criador-de-mafalda-fala-de-pausa-criativa-ediz-nao-ter-pressa-de-voltar.shtml>.

266
REFERÊNCIAS
ADORNO, Theodor W. ; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento.
Tradução de Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
AGUIAR, Lilian. Era Vargas. O Brasil na Era Vargas. Disponível em: <http://
www.brasilescola.com/historiab/era-vargas.htm>. Acesso em: 5 jan. 2013.
ARANHA, Maria Lúcia Arruda; et al. Filosofando: introdução à filosofia. 3. ed.
São Paulo: Moderna, 2003.
ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando:
introdução à filosofia. 3. ed. rev. São Paulo: Moderna, 2003.
BACON, Francis. Novum Organum. São Paulo: Nova Cultural, 2005.
BAUMAN, Z.; MAY, Tim. Aprendendo a pensar com a Sociologia. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2010.
BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido, sobre a fragilidade dos laços humanos.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
BECKER, Howard. Outsiders. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
______. A Escola de Chicago (conferência). Manual de Estudos de Antropologia
Social. Rio de Janeiro, v. 2, n. 2, p. 177-188, 1996.
BERLATTO, Fábia. Sociologia. Curitiba: Positivo, 2011.
______. Sociologia: ensino médio. Curitiba: Editora Positivo, 2010.
BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude. A reprodução. Rio de Janeiro:
Francisco Alves, 1992.
BRASIL CULTURA. Disponível em: <www.brasilcultural.com.br>. Acesso em: 5
fev. 2013.
BRASIL ESCOLA. Disponível em: <www.brasilescola.com.br>. Acesso em: 5 fev.
2013.
CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. 13. ed. São Paulo: Ática, 2008.
______. Convite à Filosofia. 5. ed. São Paulo: Ática, 1995.
COMTE. Augusto. Curso de filosofia positiva; Discurso sobre o espírito positivo;
Discurso preliminar sobre o conjunto do positivismo; Catecismo positivista. Seleção
de textos de José Arthur Giannotti. Traduções de José Arthur Giannotti e Miguel
Lemos. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
CONSOLIM, Márcia. Émile Durkheim e Gabriel Tarde: Aspectos Teóricos de um
debate histórico (1893-1904). Revista História: Questões & Debates, Curitiba, n.
53, p. 39-65, jul./dez. 2010.
COSTA, Maria Cristina Castilho. Sociologia: introdução à ciência da sociedade.
3. ed. São Paulo: Moderna, 2005.
CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001.
267
DARMON, Pierre. Médicos e assassinos na Belle Époque: a medicalização do
crime. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
DESCARTES, RENÉ. Discurso do método: meditações, objeções e respostas, as
paixões da alma, cartas. São Paulo: Abril, 1973.
DIMENSTEIN, Gilberto. Dez lições de sociologia para um Brasil cidadão. São Paulo:
FTD, 2008.
DREHER, Martin Norberto. A igreja latino-americana no contexto mundial. São
Leopoldo: Sinodal, 1999.
DURKHEIM, Émile. Educação e Sociologia. Lisboa: Edições 70, 2007.
______. Lições de Sociologia. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
______. As regras do método sociológico. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1987.
______. Da divisão do trabalho social. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
ECCLESIAE. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. Disponível
em: <http://www.ecclesiae.com.br/Sociologia/A-%C3%89tica-Protestante-e-o-
Esp%C3%ADrito-do-Capitalismo/flypage.tpl.html>. Acesso em: 19 dez. 2012.
ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.
ELIAS, Norbert; SCOTSON, John. Os Estabelecidos e os Outsiders. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
FERNANDES, Florestan. Sociedade de classes e subdesenvolvimento. Rio de
Janeiro: Zahar, 1968.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Aurélio Júnior: dicionário escolar da
língua portuguesa. 2. ed. Curitiba: Positivo, 2011.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 2007.
______. História da Sexualidade 1: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 2006.
______. Michel. Vigiar e punir: a história da violência na prisão. Petrópolis:
Vozes, 1987.
FREITAS. Wagner Cinelli de Paula. Espaço Urbano e criminalidade: lições da
Escola de Chicago. São Paulo: Método, 2004.
GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
GIDDENS, Anthony. A Constituição da Sociedade. 3. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2009.
______. Mundo em descontrole - o que a globalização está fazendo de nós. 6. ed.
Rio de Janeiro: Record, 2007.
GOFFMAN. Erwing. A representação do eu na vida cotidiana. 10. ed. Petrópolis:
Vozes, 2002.
GUIVANT, Julia S. Sociologia do Meio Ambiente Rural: Hibridismo da Sociologia
Ambiental com a Sociologia Rural. In: MARTINS, Carlos Benedito. Horizontes
das ciências sociais no Brasil: sociologia. São Paulo: ANPOCS, 2010.

268
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das
Letras, 2006.
IANNI, Octavio. Pensamento Social no Brasil. Bauru, SP: Edusc, 2004.
______. O labirinto latino-americano. Petrópolis: Vozes, 1993.
JASPERS, Karl. Introdução ao pensamento filosófico. São Paulo: Cultrix, 2010.
JORGE, Jaime. História da filosofia no Brasil. V. 4. Petrópolis: Vozes, 2002.
KLUCKHOHN, Clyde. Antropologia: um espelho para o homem. Belo Horizonte:
Itatiaia, 1963.
KOYRÉ, Alexandre. Estudos de História do Pensamento Filosófico. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 1991.
LAKATOS, Eva Maria; MARCONI, Marina de Andrade. Sociologia Geral. 7. ed.
São Paulo: Atlas, 1999.
LENHARO, Alcir. Nazismo, o triunfo da vontade. 6. ed. São Paulo: Ática, 1998.
LOMBROSO, Cesare. Le più recenti scoperte ed applicazioni della psichiatria
ed antropologia criminale, Torino, Fratelli Bocca, 1893.Disponível em: <www.
worldcat.org/.../piu-recenti-scoperte-ed-ap..>. Acesso em: 5 fev. 20111113.
LUI, Eduard Henry. Coleção História – Saberes e práticas docentes. V. 3. 1 ed.
Curitiba: Matesc, 2012.
______. Saberes e Práticas Docentes. 1. ed. Curitiba: Mastec, 2012.
______. A ideologia alemã. 4. ed. São Paulo: Hucitec, 1984.
MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos (1844). Primeiro manuscrito.
Disponível em: <http://marxists.org/portugues/marx/1844/manuscritos/cap01.
htm>. Acesso em: 5 nov. 2012.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. Tradução de
José Barata Moura. Lisboa: Editorial “Avante!”, 1997. Disponível em: <http://www.
marxists.org/portugues/marx/1848/ManifestoDoPartidoComunista/cap1.htm>.
Acesso em: 15 nov. 2012.
______. O Capital: crítica da economia política. 3. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988.
MENDES, Altair. Grande Dicionário Enciclopédico da Língua Portuguesa de
Pesquisas Escolares. São Paulo: Pitiguara, 1987.
MILLS, Charles W. A Nova Classe Média. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1976.
MONDIN, Batista. Curso de Filosofia. V. 3. São Paulo: Paulus, 1983.

______. Curso de Filosofia. V. 1. São Paulo: Paulus, 1981.


MONTESQUIEU. O Espírito das leis. São Paulo: Nova Cultural, 2004.
MOONEN, Frans. Antropologia Aplicada. São Paulo: Editora Ática, 1988.
NABUCO, Joaquim. O abolicionismo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
NIETZSCHE, F. Sobre a verdade e a mentira no sentido extramoral. São Paulo:
Abril Cultural, 1978.
269
OLIVEIRA, Lúcia Lippi. Teses (equivocadas?) sobre a questão social brasileira. In:
PAIVA, Vanilda Pereira (org.). Pensamento social brasileiro. São Paulo: Cortez, 2005.
OLIVEIRA, Márcio de. O Estado em Durkheim: Elementos para um debate sobre
sua Sociologia Política. Revista Sociologia Política. Curitiba, v. 18, n. 37, p. 125-
135, out. 2010b.
OLIVEIRA, Pérsio Santos de. Introdução à Sociologia. São Paulo. Ática. 2010a.
______. Introdução à Sociologia. São Paulo: Editora Ática, 2008.
PAIVA, Vanilda Pereira. Pensamento social brasileiro. São Paulo: Cortez, 2005.
PECORARO, Rossano. Filosofia da História. 1. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2009.
PODER JUDICIÁRIO. Guia do eleitor 2010. Disponível em: <www.justicaeleitoral.
jus.br/arquivos/tre-pa-guia-do-eleitor>. Acesso em: 5 fev. 2013.
POSSENTI, Sírio. Os humores da língua. Campinas: Mercado de Letras, 1998.
PRADO, Maria Lígia. O populismo na América Latina. São Paulo: Brasiliense, 2002.
PRAZERES, Luiz Carlos. Extensivo e Terceirão 2: Luiz Carlos Prazeres... [et al].
Ilustrações André Lemes [et al]. – Curitiba: Editora Positivo, 2008.
RIBEIRO, Darcy. Antropologia ou a Teoria do Bombardeio de Berlim. Encontros
com a civilização brasileira, n. 12. Rio de Janeiro, 1979.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. Trad. de Lourdes Santos Machado.
3. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1994.
SELL, Carlos Eduardo. Sociologia Clássica: Marx, Durkheim e Weber. Petrópolis.
RJ: Ed. Vozes, 2009.
SENKEVICS, Adriano. Meritocracia (II): por que o mérito? Disponível em: <http://
letrasdespidas.wordpress.com/2010/10/16/meritocracia-ii-por-que-o-merito/>.
Acesso em: 14 dez. 2012.
SILVA, Luiz Fernando da. Pensamento Social brasileiro. São Paulo: Sundermann,
2003.
TARDE, G. Questions sociales. Essais et mélanges sociologiques, op. cit., site Les
Classiques des Sciences Sociales, p. 137. Disponível em: <ojs.c3sl.ufpr.br/ojs2/
index.php/historia/article/viewFile/.../16147>. Acesso em: 5 fev. 2013.
TRIGO, Luiz Gonzaga Godoi. Pensamento filosófico: um enfoque educacional.
São Paulo: IBPEX, 2009.
VIANA, Oliveira. Evolução do povo brasileiro. São Paulo, Companhia Editora
Nacional, 1933.
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. 6. ed. São Paulo:
Pioneira, 1989.
______.In: GERTH, H. H.: MILLS, C. W. (Org. Introd.) Max Weber. 5. ed. Rio
Janeiro: Jorge Zahar, 1982. (Ensaios de Sociologia).
WIKIPEDIA. A enciclopédia livre. Disponível em:<www.wikipedia.org>. Acesso
em: 5 fev. 2013.
270

Você também pode gostar