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Teoria Sociológica II

Prof.a Franciele Otto Duque

Indaial – 2020
1a Edição
Copyright © UNIASSELVI 2020

Elaboração:
Prof.ª Franciele Otto Duque

Revisão, Diagramação e Produção:


Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI

Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri


UNIASSELVI – Indaial.

D946t

Duque, Franciele Otto

Teoria sociológica II. / Franciele Otto Duque. – Indaial:


UNIASSELVI, 2020.

191 p.; il.

ISBN 978-85-515-0433-8

1. Sociologia. - Brasil. Centro Universitário Leonardo Da Vinci.

CDD 301

Impresso por:
Apresentação
Caro acadêmico! Este é seu Livro Didático de Teoria Sociológica
II. Neste componente curricular você continuará seus estudos de teoria
sociológica, iniciados em Teoria Sociológica I. Se em Teoria I você conheceu
os clássicos da Sociologia, agora é hora de entender como essa ciência
prosseguiu seu percurso e consolidou-se como área de conhecimento,
desenvolvendo pesquisas, teorias e métodos.

Com a difusão da ciência sociológica iniciada a partir da sua


institucionalização nas universidades, muitas investigações foram
realizadas com essa abordagem. No entanto, algumas delas se destacaram
pelo seu caráter contributivo com essa área. Estudaremos três movimentos
que influenciaram os rumos da sociologia em nível mundial: a sociologia
americana (Escola de Chicago), a sociologia alemã (Escola de Frankfurt) e a
sociologia francesa (Norbert Elias e Pierre Bourdieu).

A divisão deste livro está baseada em três unidades, cada uma


sobre uma frente de estudos sociológicos. As unidades dividem-se em
tópicos que seguem uma lógica similar: o primeiro apresenta as bases
teórico-metodológicas da perspectiva sociológica; o segundo apresenta
os principais conceitos desenvolvidos nesse arcabouço; e o terceiro traz os
desdobramentos de suas influências com os principais temas de estudo e
como foram abordados pelos envolvidos.

A primeira unidade trata sobre a sociologia americana, cujo principal


expoente foi a Escola de Chicago. Nela desenvolveu-se a sociologia urbana.
Inicialmente, você conhecerá as dimensões históricas de seu surgimento
e desenvolvimento, as dimensões metodológicas de suas proposições
sociológicas, um autor da primeira geração da escola (Robert Ezra Park), e
um autor da segunda geração (Louis Wirth). Em seguida serão apresentados
alguns conceitos consolidados pelo grupo da Escola de Chicago: a cidade, a
estrutura urbana e a ecologia humana. Quanto aos desdobramentos de sua
sociologia, trataremos dos estudos acerca da criminalidade, seus métodos de
pesquisa empírica e os estudos sobre imigração.

A segunda unidade apresenta a sociologia alemã, cuja importância


está concentrada na Escola de Frankfurt. Ela é conhecida pelo movimento
que consolidou o conceito de indústria cultural. Também começaremos pelas
dimensões históricas que envolvem a escola, as influências filosóficas e as
dimensões metodológicas. No segundo tópico estão apresentados alguns
autores e conceitos desenvolvidos: Horkheimer e a Teoria Crítica, Adorno

III
e a Indústria Cultural, Habermas e o conceito de ação. Para finalizar, os
desdobramentos apresentados de suas análises sociológicas são: estudos
sobre a racionalidade, estudos sobre a arte e alguns outros temas, como a
autoridade, por exemplo.

A terceira unidade apresenta a sociologia francesa, mais precisamente


seus expoentes Norbert Elias e Pierre Bourdieu. Elias, embora seja alemão,
apresentou uma perspectiva sociológica mais aproximada da sociologia
francesa, além de investigar alguns objetos desse campo – como a sociedade
de corte francesa. Para estudar a obra desses autores, no primeiro tópico
temos seus contextos históricos e os aspectos principais de suas teorias
sociológicas (Teoria dos Processos de Civilização – Elias e Teoria da Prática
– Bourdieu). O segundo tópico apresenta conceitos fundamentais para o
entendimento dos autores: figuração, interdependência e processos sociais
(Elias); habitus, campos e capitais (Bourdieu). Para fechar, você verá a relação
entre civilização, kultur e a sociedade de corte francesa, estudo de Norbert
Elias e algumas dimensões da sociologia da educação e da sociologia da
cultura de Pierre Bourdieu.

Esperamos que esse caminho lhe permita entender os rumos que a


sociologia tomou após sua institucionalização como disciplina científica, e
como essas três grandes correntes sociológicas se difundiram e influenciaram
estudos em todo o mundo. Não se esqueça de aproveitar as indicações de
materiais complementares para aprofundar seus estudos, pois existe muito
material disponível sobre todos os temas deste livro didático.

Desejamos um ótimo percurso de estudos sobre as sociologias


americana, alemã e francesa!

Profª. Franciele Otto Duque

IV
NOTA

Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para
você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há
novidades em nosso material.

Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é


o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um
formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura.

O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova
diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também
contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo.

Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente,


apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilidade
de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador.
 
Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para
apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto
em questão.

Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas
institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa
continuar seus estudos com um material de qualidade.

Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de


Desempenho de Estudantes – ENADE.
 
Bons estudos!

LEMBRETE

Olá, acadêmico! Iniciamos agora mais uma disciplina e com ela


um novo conhecimento.

Com o objetivo de enriquecer seu conhecimento, construímos, além do livro


que está em suas mãos, uma rica trilha de aprendizagem, por meio dela você terá
contato com o vídeo da disciplina, o objeto de aprendizagem, materiais complementares,
entre outros, todos pensados e construídos na intenção de auxiliar seu crescimento.

Acesse o QR Code, que levará ao AVA, e veja as novidades que preparamos para seu estudo.

Conte conosco, estaremos juntos nesta caminhada!

V
UNI

Olá acadêmico! Para melhorar a qualidade dos


materiais ofertados a você e dinamizar ainda mais
os seus estudos, a Uniasselvi disponibiliza materiais
que possuem o código QR Code, que é um código
que permite que você acesse um conteúdo interativo
relacionado ao tema que você está estudando. Para
utilizar essa ferramenta, acesse as lojas de aplicativos
e baixe um leitor de QR Code. Depois, é só aproveitar
mais essa facilidade para aprimorar seus estudos!

VI
VII
VIII
Sumário
UNIDADE 1 – ESCOLA DE CHICAGO.................................................................................................1

TÓPICO 1 – A SOCIOLOGIA DA ESCOLA DE CHICAGO.............................................................3


1 INTRODUÇÃO........................................................................................................................................3
2 DIMENSÕES HISTÓRICAS.................................................................................................................4
3 DIMENSÕES METODOLÓGICAS...................................................................................................11
4 PRIMEIRA GERAÇÃO: ROBERT EZRA PARK..............................................................................14
5 SEGUNDA GERAÇÃO: LOUIS WIRTH..........................................................................................18
RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................23
AUTOATIVIDADE..................................................................................................................................24

TÓPICO 2 – CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLOGIA URBANA PARA A


COMPREENSÃO DA SOCIEDADE.............................................................................25
1 INTRODUÇÃO......................................................................................................................................25
2 A CIDADE...............................................................................................................................................25
3 ESTRUTURA URBANA.......................................................................................................................30
4 ECOLOGIA HUMANA........................................................................................................................33
RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................................39
AUTOATIVIDADE..................................................................................................................................40

TÓPICO 3 – OS DESDOBRAMENTOS DOS ESTUDOS DA ESCOLA DE CHICAGO


PARA A SOCIOLOGIA...................................................................................................41
1 INTRODUÇÃO......................................................................................................................................41
2 ESTUDOS SOBRE A CRIMINALIDADE.........................................................................................41
3 MÉTODOS DE PESQUISA EMPÍRICA............................................................................................46
4 ESTUDOS SOBRE IMIGRAÇÃO......................................................................................................49
LEITURA COMPLEMENTAR................................................................................................................53
RESUMO DO TÓPICO 3........................................................................................................................58
AUTOATIVIDADE..................................................................................................................................59

UNIDADE 2 – ESCOLA DE FRANKFURT.........................................................................................61

TÓPICO 1 – A SOCIOLOGIA DA ESCOLA DE FRANKFURT......................................................63


1 INTRODUÇÃO......................................................................................................................................63
2 DIMENSÕES HISTÓRICAS...............................................................................................................64
3 DIMENSÕES FILOSÓFICAS..............................................................................................................69
4 DIMENSÕES METODOLÓGICAS ..................................................................................................74
RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................78
AUTOATIVIDADE..................................................................................................................................79

TÓPICO 2 – CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLOGIA ALEMÃ PARA A


COMPREENSÃO DA SOCIEDADE..............................................................................81
1 INTRODUÇÃO......................................................................................................................................81
2 HORKHEIMER E A TEORIA CRÍTICA...........................................................................................81

IX
3 ADORNO E A INDÚSTRIA CULTURAL.........................................................................................88
4 HABERMAS E O CONCEITO DE AÇÃO........................................................................................94
RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................................98
AUTOATIVIDADE..................................................................................................................................99

TÓPICO 3 – OS DESDOBRAMENTOS DOS ESTUDOS DA ESCOLA DE FRANKFURT


PARA A SOCIOLOGIA.................................................................................................101
1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................................101
2 ESTUDOS SOBRE A RACIONALIDADE......................................................................................101
3 ESTUDOS SOBRE A ARTE...............................................................................................................106
4 OUTROS ESTUDOS...........................................................................................................................110
LEITURA COMPLEMENTAR..............................................................................................................115
RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................................................120
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................121

UNIDADE 3 – SOCIOLOGIA FRANCESA.......................................................................................123

TÓPICO 1 – A SOCIOLOGIA DE PIERRE BOURDIEU E NORBERT ELIAS...........................125


1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................................125
2 DIMENSÕES HISTÓRICAS: ELIAS...............................................................................................126
3 TEORIA DOS PROCESSOS DE CIVILIZAÇÃO: ELIAS............................................................130
3.1 SOCIEDADE GUERREIRA...........................................................................................................132
3.2 SOCIEDADE FEUDAL..................................................................................................................133
3.3 SOCIEDADE DE CORTE ABSOLUTISTA..................................................................................134
3.4 SOCIEDADE BURGUESA.............................................................................................................136
4 DIMENSÕES HISTÓRICAS: BOURDIEU.....................................................................................137
5 TEORIA DA PRÁTICA E TEORIA DA DOMINAÇÃO SIMBÓLICA: BOURDIEU............140
RESUMO DO TÓPICO 1......................................................................................................................146
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................147

TÓPICO 2 – CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLOGIA FRANCESA PARA A


COMPREENSÃO DA SOCIEDADE...........................................................................149
1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................................149
2 FIGURAÇÃO E INTERDEPENDÊNCIA: ELIAS..........................................................................149
3 PROCESSOS SOCIAIS – ELIAS.......................................................................................................153
4 O CONCEITO DE HABITUS – BOURDIEU..................................................................................156
5 OS CONCEITOS DE CAMPOS E CAPITAIS – BOURDIEU......................................................161
RESUMO DO TÓPICO 2......................................................................................................................165
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................166

TÓPICO 3 – OS DESDOBRAMENTOS DOS ESTUDOS DE BOURDIEU E ELIAS


PARA A SOCIOLOGIA.................................................................................................167
1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................................167
2 CIVILIZAÇÃO, KULTUR E A SOCIEDADE DE CORTE FRANCESA....................................167
3 BOURDIEU E A EDUCAÇÃO...........................................................................................................171
4 BOURDIEU E OS ESTUDOS SOBRE A DISTINÇÃO................................................................176
LEITURA COMPLEMENTAR..............................................................................................................180
RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................................................186
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................188

REFERÊNCIAS........................................................................................................................................189

X
UNIDADE 1

ESCOLA DE CHICAGO

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• situar as características e os principais aspectos das bases teóricas e


metodológicas do pensamento sociológico desenvolvido na Escola de
Chicago;

• examinar as principais contribuições das pesquisas desenvolvidas na


Escola de Chicago;

• sistematizar os conceitos e metodologias utilizados na Escola de Chicago;

• analisar os desdobramentos das pesquisas desenvolvidas na Escola de


Chicago, cuja influência persiste nas interpretações contemporâneas da
Sociologia.

PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer da unidade você
encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado.

TÓPICO 1 – A SOCIOLOGIA DA ESCOLA DE CHICAGO

TÓPICO 2 – CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLOGIA URBANA PARA A


COMPREENSÃO DA SOCIEDADE

TÓPICO 3 – OS DESDOBRAMENTOS DOS ESTUDOS DA ESCOLA DE


CHICAGO PARA A SOCIOLOGIA

CHAMADA

Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos


em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá
melhor as informações.

1
2
UNIDADE 1
TÓPICO 1

A SOCIOLOGIA DA ESCOLA DE
CHICAGO

1 INTRODUÇÃO
Este primeiro tópico de seus estudos sobre a Escola de Chicago inicia
abordando os aspectos de base para o entendimento de como essa escola se formou
e sua influência na sociologia mundial, ou seja, por que ainda a estudamos na
contemporaneidade – principalmente quando tratamos do campo da Sociologia
Urbana.

Vamos iniciar pelas dimensões históricas, do que efetivamente trata a


Escola de Chicago, como ela se formou alinhada à Universidade de Chicago.
Após, veremos suas dimensões metodológicas, ou seja, as influências que
desenvolveram nos autores de Chicago, uma linha similar nas escolhas para suas
pesquisas, destacando-se o pragmatismo, o formalismo e as intenções de reforma
social. Os últimos tópicos irão explicitar alguns autores das duas gerações da
Escola de Chicago, com foco principal em Robert Ezra Park (primeira geração)
e Louis Wirth (segunda geração). A passagem desses autores pela universidade
e seus principais temas de pesquisa podem ser encontrados no texto, bem como
sua relação com os demais autores dessas gerações.

Ao longo desta unidade, há diferentes sugestões de materiais para que


você possa aprofundar seus estudos, já que a obra dos autores norte-americanos é
bastante vasta. Você perceberá que houve muitos professores e alunos vinculados
à Escola de Chicago, e que produziram muitas pesquisas – especialmente na forma
de dissertações e teses. Alguns marcaram mais, com pesquisas “famosas”, e outros
menos, mas o legado de todo esse conjunto de trabalhos é muito importante para
o campo da sociologia como ciência.

Portanto, quando algum autor lhe provocar a curiosidade, pesquise


mais sobre ele! Aproveite para conhecer as pesquisas desenvolvidas que mais
lhe chamarem a atenção, pois elas estão sintetizadas aqui, vale a pena buscar
materiais e entendê-las com maior profundidade.

Vamos começar com um pouco de história... Bons estudos!

3
UNIDADE 1 | ESCOLA DE CHICAGO

2 DIMENSÕES HISTÓRICAS
Um primeiro item essencial que você deve saber para situar as terminologias
no campo das Ciências Sociais é que a Escola de Chicago é o núcleo de uma
sociologia norte-americana. Costumeiramente, ao se tratar sobre a sociologia
norte-americana, aparecerá a indicação de uma sociologia bastante pragmática,
cuja ênfase se dá em pesquisas com grande quantidade de dados empíricos e
desenvolvida a partir da Escola de Chicago. Portanto, ao consultar materiais sobre
a sociologia norte-americana, você encontrará menções à Escola de Chicago, que
consolidou a influência mundial dessa linha de análise sociológica.

O objeto principal de análise dessa escola sociológica foi a cidade, o modo


de vida urbano e tudo o que o caracteriza. Ela se torna foco de análise após a
industrialização, que traz do meio rural boa parte de seus habitantes para uma
nova forma de viver, moderna e cuja lógica relacional é totalmente diferente da
que viviam até então. O crescimento urbano provoca novas formas de controle
social, modificando a influência das instituições sociais tradicionais, como família,
igreja e escola.

Antes, o controle social era exercido pela comunidade local, vizinhança,


família, e a partir do crescimento urbano, a divisão do trabalho provoca um controle
social baseado em outra solidariedade – cujas condutas individuais possuem
mais peso nas relações (que passam a ter maior caráter de impessoalidade) e
cuja pluralidade passa a ter maior espaço. Ou seja, mesmo vivendo próximas,
as pessoas podem estar distantes em se tratando da vida na cidade. Os contatos
são rápidos e parciais, as relações transitórias e superficiais. Isso é uma grande
mudança se comparada à vida no ambiente rural até então vivenciada por grande
parte das pessoas antes da industrialização. Essa dinâmica gera um conteúdo
cultural específico das cidades, que se torna objeto de estudo sociológico.

Há, entretanto, uma nova instituição que surge na cidade grande,


especialmente entre os jovens das áreas ou classes menos favorecidas:
a gangue. Certamente que não se trata de uma instituição no sentido
formal, afinal, não se registra gangue na junta comercial. Porém, é
instituição em seu sentido material, ou seja, uma entidade que agrega
um grupo, possuindo um conjunto de regras e que tem por finalidade
a satisfação de interesses coletivos (FREITAS, 2002, p. 37).

Chicago oferece as condições para o surgimento de uma sociologia urbana


na medida em que seu crescimento demográfico acelerou exponencialmente
a partir de 1900. Essa explosão demográfica levou à construção de meios de
transporte e ampliação dos meios de comunicação. Os prédios tomam o espaço
urbano para que haja espaço para todos, gerando um rápido processo de
urbanização. Além disso, acompanhou o crescimento populacional o aumento da
criminalidade e problemas sociais similares.

4
TÓPICO 1 | A SOCIOLOGIA DA ESCOLA DE CHICAGO

FIGURA 1 – CHARGE REPRESENTANDO PROCESSO DE URBANIZAÇÃO

FONTE: <http://www.blogdobraulio.com/2016/06/o-que-e-gentrificacao-e-por-que-se.html>.
Acesso em: 17 jun. 2019.

Nesse contexto está inserida a Universidade de Chicago, berço de propostas


para a sociologia urbana que surgem em um departamento específico da instituição. É
a partir dali que se pode dizer que se originou a Escola de Chicago.

Para conhecer os primórdios históricos da Escola de Chicago, vamos nos


apropriar do resumo publicado por Freitas (2002, p. 49-53):

FUNDAÇÃO DA UNIVERSIDADE E DO DEPARTAMENTO


DE SOCIOLOGIA

A Universidade de Chicago foi fundada sob os auspícios do milionário


americano John D. Rockfeller, que desejava que o meio-oeste americano tivesse
uma instituição universitária de primeira linha para fazer frente às universidades
do leste. O primeiro presidente da Universidade de Chicago foi William Rainey
Harper, que, como Rockfeller, era batista, tendo sido pastor, professor no Baptist
Theological Seminary em Chicago e fundador do The Journal of Religion em 1882.
Harper realizou o que David Downes e Paul Rock chamaram de “pilhagem”,
eis que atraía os profissionais das outras instituições oferecendo-lhes vantagem
salarial, o que muitas vezes representava pagar ao novo contratado o dobro de
seu salário anterior. Harper incentivou a instalação de departamentos novos,
o que resultou na instalação de muitos deles praticamente ao mesmo tempo.
Como resultado desta política, a Universidade de Chicago, inaugurada em 1891,
foi a primeira instituição de ensino norte-americana a ter um departamento de
sociologia, fundado em 1892, sendo também responsável pelo primeiro periódico
importante sobre a disciplina, o American Journal of Sociology, que passou a ser
veiculado a partir de 1895.

O primeiro diretor do departamento de sociologia foi Albion Woodbury


Small, que, embora não tenha ficado conhecido por sua obra escrita, ganhou
notoriedade pelo trabalho que desenvolveu à frente do departamento de

5
UNIDADE 1 | ESCOLA DE CHICAGO

sociologia da Universidade de Chicago, onde demonstrou seu espírito


empreendedor. Segundo Small, antes da Escola de Chicago, a sociologia
americana não era marcada por um corpo substancial de conhecimento, um
ponto-de-vista constituído e nem um método rigoroso de pesquisa.

Quanto ao termo “Escola de Chicago”, foi cunhado ao longo de muitos


anos, sendo que o primeiro a utilizá-lo em sentido similar ao que tem hoje foi
Luther L. Bernard, no texto Schools os Sociology, publicado em 1930. Maurice
Halbawachs, em Chicago, expérience ethnique (1932), reconheceu a existência
de uma escola de sociologia original na Universidade de Chicago. Milla
Alihan, na obra Social Ecology (1938), utilizou o termo “Escola de Chicago” e,
apesar das críticas que fez, identificou-se como uma escola com seguidores,
um arcabouço teórico e estilo próprio.

A denominada ‘primeira Escola de Chicago’ compreende o período de


1915 a 1940. Apesar de Andrew Abbott considerar que esta fase tenha tido seu
término em 1935, Alain Coulon esclarece que ela se estendeu até 1940 e que o ano
de 1935 apenas marcou a perda de influência exercida por membros da Escola
de Chicago na American Sociological Society, quando outro grupo conquistou
o poder nesta associação. Morris Janowitz, na introdução que escreveu para
reimpressão de 1967 do clássico The City, confirma a continuidade do maior
período (1915 a 1940). Coulon esclarece, ainda, que na mesma reunião que
os sociólogos de Chicago perderam poder na American Sociological Society se
decidiu editar, diretamente pela associação, o American Sociological Review, pelo
que a publicação da Universidade de Chicago, o American Journal of Sociology,
deixava de ser a única. A ‘segunda Escola de Chicago’ designa fase posterior à
Segunda Guerra Mundial, indo de 1945 a 1960.

Quando nos referimos à Escola de Chicago, especialmente nesta sua


primeira fase, estamos a falar de uma tradição marcada pelo pragmatismo
filosófico, a observação direta da experiência e a análise de processos
sociais urbanos. A obra de seus sociólogos é caracterizada por três vertentes
principais, a saber: 1) o trabalho de campo e o estudo empírico; 2) o estudo
da cidade, a envolver problemas relativos à imigração, delinquência, crime
e problemas sociais, o que se relaciona diretamente com a teoria ecológica e
que tem em Robert Park, Ernst Burgess e Roderick McKenzie seus maiores
expoentes, sendo que Louis Wirth também se destacou no estudo da cidade,
mas não era propriamente um ecologista, tendo estudado o fenômeno urbano
pela trilha da ideia do ‘urbanismo como estilo de vida’, por ele preconizada;
3) uma forma característica de psicologia social, oriunda principalmente do
trabalho de George Herbert Mead e que veio a ser denominada interacionismo
simbólico. As três vertentes referidas serão consideradas, porém, o enfoque
principal deste trabalho e recairá sobre o estudo da cidade, notadamente pela
lente da teoria sociológica, como destacado na introdução.

6
TÓPICO 1 | A SOCIOLOGIA DA ESCOLA DE CHICAGO

A Universidade de Chicago assumiu posição mundial de destaque em


sociologia. Poucas universidades mantinham centros de pesquisa em ciências
sociais no início dos anos de 1920. Segundo Martin Bulmer, a única instituição
de ensino que se equiparava à Escola de Chicago durante a década de 1920,
em termos de escopo de trabalho e de um corpo docente de elevado nível
internacional, era a London School of Economics and Political Science, que integra a
Universidade de Londres, Inglaterra, embora esta fosse menor que a primeira,
tanto em corpo docente quanto em alunado. A Universidade de Columbia, em
Nova Iorque, só consegue rivalizar a sociologia de Chicago no final da década
de 1930, período que coincide com a perda da influência da Escola de Chicago.

Vejamos uma imagem do prédio da Universidade de Chicago na época:

FIGURA 2 – PRÉDIO DA UNIVERSIDADE DE CHICAGO

FONTE: <https://www.colegioweb.com.br/historia/voce-conhece-escola-de-chicago.html>.
Acesso em: 17 jun. 2019.

Um nome de fundamental importância para o surgimento da Escola de


Chicago foi Albion Small, o primeiro diretor do departamento de sociologia a ser
convidado para tal função. Vamos conhecer suas influências a seguir:

Small (1854-1926) teve um grande papel na instalação da sociologia,


não só em Chicago, mas igualmente no conjunto dos Estados Unidos. Após ter
iniciado estudos de teologia, foi estudar em Berlim – onde conheceu o então
estudante Georg Simmel, que viria a marcar a sociologia alemã e europeia –
e, em Leipzig, de 1879 a 1881, cidade em que estudou a história, a filosofia
e a sociologia alemãs. Voltou depois disso aos Estados Unidos, concluiu seu
doutorado em história em 1889 na Universidade Johns-Hopkins e tornou-se
professor de história do Colby College, cargo em que permaneceu até 1892.

7
UNIDADE 1 | ESCOLA DE CHICAGO

Começou ensinando sociologia, principalmente a alemã. Em 1890, por


sua própria conta, publicou uma obra que, durante 20 anos, seria lida por todos
os estudantes de sociologia dos Estados Unidos, e cujo título seria retomado em
1921 por Robert Park e Ernst Burgess em sua obra de introdução à sociologia,
com a significativa troca da palavra sociology por society: desse modo, ao se
passar da primeira para a segunda geração dos sociólogos de Chicago, passa-
se de um projeto de conhecimento científico da sociedade à construção de uma
teoria que, segundo se julgava, permitiria estudar essa sociedade.

Os escritos de Small não sobreviveram a ele, e seus desenvolvimentos


teóricos – sobretudo a sua classificação das motivações humanas em seis
categorias: a saúde, o bem-estar material, a sociabilidade, o conhecimento,
a beleza e a retidão – não deixaram marcas profundas na sociologia. Hoje
em dia, ele só é lido, como sociólogo, por pesquisadores interessados no
desenvolvimento da sociologia americana. Contudo, deve-se observar que
ele insistia que seus alunos fizessem pesquisas de campo ativas e observações
diretas e que não se entregassem a reflexões teóricas “de poltrona”.

Na obra que publicou em colaboração com George Vincent em 1894,


Small, que chamava seu próprio livro de “guia de laboratório”, consagrou
dois capítulos à conduta empírica da sociologia. Sublinhando a importância
do habitat para as relações sociais, estimulou os estudantes a observar as
comunidades em que viviam, analisar este “mosaico de pequenos mundos”,
estudar a sua história e levantar mapas de suas características. Por outro lado,
propôs a seus colegas do departamento de sociologia usar a cidade de Chicago
como objeto e como campo de pesquisas. Esta ideia, portanto, prefigurava os
princípios de pesquisas sobre a cidade que, 20 anos depois, Park e Burgess
aplicariam de maneira ainda mais sistemática.

[...]

Enfim, a influência decisiva de Small sobre a Sociologia foi sobretudo


de ordem institucional, e todos os seus contemporâneos reconhecem-lhe um
extraordinário talento de administrador e organizador. Por um lado, dirigiu
o departamento de sociologia desde a sua criação, em 1892, até aposentar-
se, em 1924, data em que a sociologia já se tinha implantado firmemente em
Chicago como uma disciplina importante. Por outro lado, seguindo conselhos
do presidente Harper, fundou em julho de 1895 – ou seja, um ano antes de
L’année sociologique de Durkheim – o American Journal of Sociology, do qual seria
redator-chefe por 30 anos, até 1925. Esta revista, que existe ainda quase um
século após ter sido fundada, foi assim a primeira revista sociológica do mundo
e também, durante algum tempo, a única existente nos Estados Unidos, posto
que foi preciso esperar até 1921 para ver a publicação da Sociology and Social
Research, e até 1922 para que a Social Forces aparecesse.

8
TÓPICO 1 | A SOCIOLOGIA DA ESCOLA DE CHICAGO

Albion Small contribuiu também para a fundação, em 1905, da American


Sociological Society, que se transformaria em 1935 na American Sociological
Association. Este elo, estabelecido por Small, entre a associação nacional de
sociologia (cujos trabalhos e debates ele mesmo publicou em sua maioria) e
a revista de sociologia de Chicago teria uma influência considerável sobre a
sociologia americana, fundamentando por muito tempo a liderança da Escola
de Chicago.

FONTE: Coulon (1995, p. 14)

FIGURA 3 – ALBION SMALL

FONTE: <https://prabook.com/web/albion.small/3734829>. Acesso em: 17 jun. 2019.

O interesse por temáticas da vida urbana deu-se entre professores e


alunos da universidade, já que estavam no meio de todas as mudanças sociais e
do crescimento urbano que geravam crimes e delinquência, um dos temas mais
buscados para investigações.

Uma característica importante do trabalho dos sociólogos de


Chicago foi a de terem reunido dados estatísticos e qualitativos que
evidenciavam que o crime era um produto social do urbanismo, o que
representou um novo enfoque teórico, pois, até então, as causas da
criminalidade eram explicadas por diferenças individuais, biológicas
(positivismo biológico) e psicológicas (positivismo psicológico)
(FREITAS, 2002, p. 54).

Muitos professores integraram as pesquisas da Escola de Chicago, que


prezava por uma sociologia pragmática, cujo valor prático pudesse ajudar a
entender a origem dos problemas sociais específicos do meio urbano. Vejamos a
seguir o tempo de atuação de cada um dos nomes mais conhecidos relacionados
à Escola de Chicago.

9
UNIDADE 1 | ESCOLA DE CHICAGO

FIGURA 4 – RELAÇÃO PROFESSORES x PERÍODO: ESCOLA DE CHICAGO

FONTE: <https://www.revistas.usp.br/plural/article/view/68042/70612>. Acesso em: 17 jun. 2019.

No entanto, diante da pluralidade de nomes que se pode observar


vinculados à Escola de Chicago, pode-se afirmar que:

Todavia, é o caso de ressaltar que o escopo da escola de Chicago de


sociologia sobre um âmbito amplo, no qual se destaca a orientação
ou perspectiva de teorização da ecologia humana, que durante muitos
anos foi seguida em seu interior e incentivou grande número de
estudos empíricos, centrados sobretudo na cidade de Chicago; no
período em que vigorou, as formulações que contemplaram de modo
mais específico a temática da estrutura espacial da cidade – por vezes
denominada de “ecologia urbana” e que constitui, hoje em dia, um
capítulo próprio da sociologia urbana – formam um núcleo de um
desenvolvimento muito inspirado e que levou a descobertas originais;
e o estudo das relações entre os diferentes grupos culturais, étnicos e
raciais, no qual se salienta a situação dos negros nos Estados Unidos,
em especial nas grandes cidades do norte do país, introduzido por
Thomas e continuado por Park, teve grande relevo na sociologia
americana (EUFRÁSIO, 1999, p. 37).

No subtópico a seguir entenderemos de maneira breve como funcionava o


programa de pesquisas da Escola de Chicago, quais suas características, para que
nos aprofundemos nos conceitos principais no próximo tópico. Após o estudo
do programa de pesquisas seguiremos pelos autores principais da primeira e
segunda geração desses grupos. Mas antes, uma sugestão importante de leitura!

DICAS

Para estudar de modo mais aprofundado o surgimento da Escola Sociológica


de Chicago, veja o artigo disponível em: https://www.revistas.usp.br/plural/article/
view/68042/70612. A referência é: EUFRÁSIO, Mario A. A formação da Escola Sociológica
de Chicago. Revista Plural: Sociologia, São Paulo, nº 2, USP, 1º semestre de 1995, p. 37-60.

10
TÓPICO 1 | A SOCIOLOGIA DA ESCOLA DE CHICAGO

3 DIMENSÕES METODOLÓGICAS
A Escola de Chicago possui características específicas do ponto de vista
das formas metodológicas utilizadas em suas investigações, que interferiram
também no desenvolvimento das teorias de seus autores. Freitas (2002) explica
que três características peculiares foram o formalismo, o pragmatismo e a reforma
social. Vamos entender melhor cada um deles a seguir.

O formalismo busca identificar uma fórmula da vida social, objetiva


“captar as formas subjacentes de relações sociais e, assim, fornecer uma espécie de
geometria da vida social” (FREITAS, 2002, p. 55). As situações sociais, neste caso,
são tratadas como parte de um quadro maior de processos formais. Como exemplo
podemos citar um juiz que esteja avaliando uma causa, ele pode agir em função
das leis já existentes e não pode criar novas leis naquele momento – portanto, sua
ação individual terá embasamento em processos formais preexistentes. Um dos
autores que desenvolve essa perspectiva é Simmel.

O pragmatismo busca a ênfase no valor prático, sendo este o critério de


verdade, e rejeitando a busca por uma verdade absoluta. Verdadeiro é o que pode
ser feito com êxito, segundo esta corrente (FREITAS, 2002). Pode-se dizer que uma
pessoa pragmática vive sempre pela solução de seus problemas de maneira imediata,
e utiliza as ideias e lógicas de qualquer pessoa sempre para isso – considerando
apenas as que são úteis para esta situação imediata. Os proponentes do pragmatismo
foram John Dewey, Charles A. Peirce, William James e George H. Mead.

Juntos, pragmatismo e formalismo trouxeram um toque especial ao


trabalho sociológico. Era argumentado que o objetivo da pesquisa
é entender o mundo social e que o mundo social, por sua vez, é
fabricado pela experiência prática daqueles que nele vivem. É nesta
experiência que a sociologia deve se concentrar, não em alguma
ordem alternativa predita por uma teoria abstrata. Tal teoria lida
com uma série de “fatos” e processos que são menos sólidos do que o
conhecimento pessoal concreto daqueles que atualmente produzem o
comportamento que é para ser explicado (DOWNES, ROCK, 1998, p.
63 apud FREITAS, 2002, p. 56).

FIGURA 5 – CHARGE EXEMPLIFICANDO PRAGMATISMO

FONTE: <https://aminoapps.com/c/universodiverso/page/blog/pragmatismo/
xGWo_6mh2uxbYzEXz841oZpKKpe3bpxeN5>. Acesso em: 17 jun. 2019.

11
UNIDADE 1 | ESCOLA DE CHICAGO

Também permeou o desenvolvimento da Escola de Chicago a ideia de


contribuição para uma reforma social, por meio de propostas de intervenção.
Dewey, por exemplo, que era do departamento de Filosofia da Universidade, mas
trabalhou em parceria com o departamento de Sociologia, fundou uma escola
primária experimental para utilização de uma nova proposta de currículo, a fim
de melhorar a educação. Sobre as ideias de reforma social:

Pode-se dizer que a sociologia da Escola de Chicago é uma


representante paradigmática dessa mudança, seguindo as tendências
do desenvolvimento da disciplina nessa época: os esquemas teórico-
conceituais deixam de ser elaborados especulativa e aprioristicamente,
para se tentar derivá-los empiricamente (com esperança até numa
construção indutiva) e, em contrapartida, em vez de usar as informações
acumuladas por assistentes sociais como base empírica, os sociólogos
passaram a entrar em contato direto com os objetos de suas pesquisas,
levantando seus próprios dados em combinação com o processo de
construção de suas categorias teóricas. Visavam com isso satisfazer
a exigência de cientificidade e objetividade buscava pela sociologia
nessa fase de consolidação e busca de legitimidade acadêmica e de
solidez teórico-metodológica em face às demais disciplinas sociais
(EUFRÁSIO, 2008, p. 16).

O formalismo, pragmatismo e as intenções de reforma social aparecem


nos dois programas de pesquisa principais que, segundo Eufrásio (2008), se
destacaram na Escola de Chicago: um a partir do autor Thomas (publicando o
artigo Race Psychology – 1912) e outro a partir de Park (publicando The City – 1915).

Thomas propõe o estudo de comunidades de diferentes composições


raciais e das relações entre elas, bem como da aceitação ou imitação da cultura
desses grupos. Deste modo, a abordagem seria de uma psicologia racial e social,
como subcampo da psicologia social. Ele indica que do ponto de vista do método,
a coleta de dados poderia obter material a partir de três princípios: observação
pessoal (viver junto ao grupo, observação participante), registros não planejados
(cartas, diários, jornais etc.) e registros planejados (história, etnologia).

NOTA

Explicando a etnologia, ela pode ser definida como o estudo ou a ciência que
estuda os fatos e documentos obtidos por meio de etnografia – método de coleta de dados
comum no âmbito da antropologia cultural e social, que consiste no estudo descritivo da
cultura de diferentes grupos sociais.

12
TÓPICO 1 | A SOCIOLOGIA DA ESCOLA DE CHICAGO

Park desenvolve uma abordagem cujo objeto principal é a cidade grande,


a partir de uma psicologia social urbana. Acrescidos ao artigo The City foram, anos
mais tarde, as noções de ecologia humana e a teoria ecológica da estrutura urbana
que desencadearam o projeto de pesquisa “A Cidade como Laboratório Social”,
em que Park define um programa de pesquisas empíricas da área de ciências
sociais para entender a cidade. Estudaremos a ecologia humana no Tópico 2.

A partir dessas formulações, tornaram-se viáveis numerosos temas


identificando possibilidades de projetos específicos de pesquisa
empírica; assim, nas duas décadas seguintes aproximadamente
cinquenta dissertações e teses acadêmicas foram completadas (das
quais aproximadamente trinta foram publicadas como livros),
num caso singular de pesquisas coordenadas e sob orientação
compartilhada, com o que se desenvolveu a linha de pesquisa em
sociologia urbana que constituiu o eixo central da pesquisa da escola
de Chicago, cujas aquisições e elaborações marcam até hoje essa sub-
disciplina (EUFRÁSIO, 2008, p. 24).

Dadas as características de programas de pesquisa comuns, orientações


compartilhadas, entre outros, Eufrásio (2008) explica, a partir do autor Bulmer
(1920), nove características presentes na criação e manutenção de uma escola em
ciências sociais. A partir disso é possível definir a Escola de Chicago como tal.
São elas:

1- Uma figura central em torno da qual se organiza;


2- a localização numa universidade importante, bem organizada e com
boa presença na área de estudos e motivada pela comunidade local;
3- as características da cidade ou metrópole e a relação da universidade
com essa cidade;
4- a personalidade dominadora da figura central da escola, para
inspirar admiração, respeito e lealdade;
5- o líder da escola deve ter uma visão intelectual clara e um impulso
missionário;
6- deve haver intercâmbios intelectuais frequentes e intensos entre o líder
e os outros membros do grupo: tal “rede” acadêmica deve ser mais
fortemente unida do que normalmente ocorre (por meio de seminários,
publicações, orientações, núcleos de estudos e discussões etc.);
7- para desenvolver pesquisa empírica deve existir uma infraestrutura
adequada: métodos de pesquisa, boas ideias, ligações institucionais,
apoio financeiro externo etc.;
8- a escola persiste enquanto permanece atuante a geração de seu(s)
fundador(es);
9- deve haver abertura para ideias e influências de outros campos e
boas relações interdisciplinares (EUFRÁSIO, 2008, p. 14).

Essas características aplicam-se à Escola de Chicago e fazem dela uma


grande influenciadora na consolidação das pesquisas na área de sociologia
urbana e sociologia do imigrante. Houve, portanto, duas fortes gerações de
autores envolvidos com essa perspectiva de investigação, cujos principais feitos
conheceremos a seguir.

13
UNIDADE 1 | ESCOLA DE CHICAGO

DICAS

O programa de pesquisas da Escola de Chicago é sistematizado por Eufrásio (2008)


no capítulo A Escola de Chicago de Sociologia: perfil e atualidade. A referência é: EUFRÁSIO,
Mario A. A Escola de Chicago de Sociologia: perfil e atualidade In: LUCENA, C. T.; CAMPOS, M. C.
S. S. (Orgs). Práticas e representações. São Paulo: Humanitas/CERU, 2008. p. 13-28.

4 PRIMEIRA GERAÇÃO: ROBERT EZRA PARK


Um dos autores mais fundamentais para a consolidação da Escola de
Chicago, em sua primeira geração, foi Robert Ezra Park. Ele é considerado um de
seus principais fundadores. Desenvolveu o conceito de ecologia humana, a qual
estudaremos no próximo tópico. Por hora, vamos iniciar com sua biografia.

Robert Ezra Park (1864-1944), um dos fundadores da Escola de


Chicago, estudou na Universidade de Michigan. Seu interesse pelas questões
sociais, especialmente as questões raciais e urbanas, levou-o a trabalhar como
jornalista em Chicago. Depois de ser jornalista, estuda Psicologia e Filosofia
em Harvard. Vai à Alemanha onde permanece por quatro anos estudando com
Simmel e Wilhelm Windelban. Retorna aos Estados Unidos em 1903, tornando-
se assistente em Filosofia em Harvard em 1904-1905.

Park lecionou em Harvard até quando, por um convite de Booker T.


Washington, passou a trabalhar no Instituto Tuskegee, desenvolvendo estudos
sobre questões raciais do sul do país. Ingressou no departamento de Sociologia
da Universidade de Chicago em 1914 onde permaneceu até sua aposentadoria
em 1936. No entanto, Park continuou a lecionar na Universidade Fisk, até sua
morte, ocorrida em Nashville, aos 79 anos de idade. Figura reconhecida nos
círculos acadêmicos, foi presidente da Associação Sociológica Americana e
da Liga Urbana de Chicago, além de membro do Conselho de Pesquisa em
Ciências Sociais.

FONTE: Silva (2009, p. 67)

14
TÓPICO 1 | A SOCIOLOGIA DA ESCOLA DE CHICAGO

FIGURA 6 – ROBERT EZRA PARK

FONTE: <https://www.britannica.com/biography/Robert-E-Park>. Acesso em: 17 jun. 2019.

Park, ao se debruçar sobre a ideia de consolidar uma Sociologia Urbana,


indica que o espaço de investigação desse ramo da sociologia seriam as mudanças
sociais, espaciais e residenciais. A mobilidade de um indivíduo ou grupo, para
ele, mede-se não apenas pela mudança de local, mas pela quantidade e variedade
de estímulos aos quais respondem. Esse autor se aproxima da obra de Durkheim
quando tenta estabelecer o tipo de solidariedade que ocorre nas cidades, em
função da divisão do trabalho. Essa divisão gera, para ele, uma interdependência
entre as pessoas – acompanhada por uma solidariedade social baseada em um
grupo de interesses.

A partir da discussão da divisão do trabalho o autor construirá um


quadro comparativo das diferenças entre a cidade grande e o campo ou
comunidades de vizinhanças. Somente na cidade, para Park, é que se
encontra o fenômeno da multidão, conjunto de indivíduos que perdem
a sua capacidade de manifestação de interesses individuais, torna-se
um ente irracional e, portanto, pode ser manipulada e controlada. A
multidão só é possível na cidade, pois exige alto estágio de mobilidade,
bem como relações modernas e industriais (SILVA, 2009, p. 71).

Para este autor, a cidade é um espaço privilegiado de investigação sobre o


comportamento humano, já que as relações tendem a ser impessoais e racionais,
com a predominância do interesse pessoal – especialmente no que tange ao dinheiro.
Além disso, as relações primárias são substituídas com frequência pelas relações
secundárias, em função da rapidez de meios de transporte e comunicação. Trata-
se da substituição das relações próximas, ocorridas entre família, amigos, vizinhos,
pelas relações mais distantes, geradas no trabalho, relações comerciais, entre outros.

A relação com grupos primários reduz-se e ocorre a perda de funções de


instituições como família e igreja, alterando a vida social e ampliando situações
como vícios e crimes nas cidades (SILVA, 2009). Park trata essa situação como
objeto de investigação, tais como “enfraquecimento da família e da igreja; a crise
e os tribunais; o vício comercializado e o tráfico de bebidas; política partidária e
publicidade [...]” (SILVA, 2009, p. 71).

15
UNIDADE 1 | ESCOLA DE CHICAGO

Seria possível estudar o controle social na cidade não mais realizado pelas
instituições clássicas, mas apoiado em normas jurídicas. Também as tentativas de
repressão ao vício e de controle do tráfico seriam objetos de investigação, já que o
espaço urbano torna-se o campo ideal para sua disseminação.

O controle social – entendido como os mecanismos que estabelecem a


ordem social – manifesta-se, também, na publicidade e propaganda nos espaços
urbanos. São estes os meios de controlar a opinião pública nas sociedades,
especialmente se tratando da organização dos governos que, com a complexidade
das cidades, necessitam administrar os grupos e suas relações secundárias.

Park propõe algumas categorias para comparação da vida na cidade e


no campo, conforme é possível observar a seguir. Se no campo as relações são
fundamentadas nos sentimentos, nas ações de cooperação e no conservadorismo
– por exemplo –, na cidade temos relações movidas a interesse, competição
frequente e excentricidade.

QUADRO 1 – CATEGORIAS PROPOSTAS POR PARK

Cidade Campo/comunidades de vizinhanças


Interesse Sentimento
Mobilidade Isolamento
Divisão do trabalho Simplicidade do trabalho
Raciocínio abstrato Raciocínio
Homem síntese: judeu Homem síntese: campones
Competição Cooperação
Mores ( usos sociais, maneiras de agir Folkways (costumes tradicionais, derivados
racionais) de agrupamentos homogêneos e simples)
Excentricidade Conservadorismo
Aventura Acomodação

FONTE: Silva (2009, p. 74)

Silva (2009) destaca que Park indica que na cidade existem os chamados
tipos temperamentais, frutos das relações sutis causadas pela forte mobilidade
social. Neste sentido, Park destaca três eixos de estudos sociológicos:

• a mobilização do homem individual;


• a região moral;
• o temperamento e contágio social.

Vejamos como Silva (2009, p. 73) descreve cada eixo de acordo com as
obras de Park:

16
TÓPICO 1 | A SOCIOLOGIA DA ESCOLA DE CHICAGO

No primeiro eixo, da mobilização do homem individual, destaca que


a cidade proporciona muitos contatos, mais transitórios e menos estáveis, a
substituição das associações mais íntimas e permanentes da comunidade por
uma relação causal e fortuita, o peso do status, ou seja, da aparência.

A cidade é o ambiente para a emergência de outro temperamento humano


apoiado em elementos do acaso e aventura, funcionando com atração especial
aos “nervos jovens e frescos”. A cidade é sinônimo de um clima moral que lhe dá
liberdade, é o espaço para excentricidade e para a livre manifestação dos talentos.

Do estudo desses tipos excepcionais e temperamentais, deveríamos


distinguir entre as qualidades mentais abstratas em que se baseia a excelência
técnica e as características inatas mais fundamentais que encontram expressão
no temperamento. Esta outra dimensão da cidade como região moral é
importante para os estudos sobre a cidade, pois para Park, a segregação ocorre
não apenas por interesses, mas de acordo com os gostos e temperamentos de
seus habitantes. Assim, pode ser tomada também como apenas um ponto de
encontro, um local de reunião ou um local de moradia. Para entendermos o
surgimento da região moral é necessário perceber o que o autor chama de
teoria dos impulsos latentes do homem.

A verdade parece ser que os homens são trazidos ao mundo com


todas as paixões, instintos e apetites, incontrolados e indisciplinados.
A civilização, no interesse do bem-estar comum, requer, algumas
vezes, a repressão, e sempre o controle, dessas disposições naturais.
No processo de impor sua disciplina ao indivíduo, de refazer o
indivíduo de acordo com o modelo comunitário aceito, grande
parte é completamente reprimida, e uma parte mais encontra uma
expressão substituta nas formas socialmente valorizadas ou pelo
menos inócuas. É nesse ponto que funcionam o esporte, a diversão e
a arte. Permitem ao indivíduo se purgar desses impulsos selvagens
e reprimidos por meio da expressão simbólica. É esta a catarse de
que Aristóteles escreve em sua Poética, e à qual têm sido dadas
significações novas e mais positivas pelas investigações de Sigmund
Freud e dos psicanalistas. (PARK, 1979, p. 65).

Somente a vida na cidade permite “contágio” de tipos excêntricos, em


que os tipos diferentes podem se associar com outros de sua laia, pois a cidade
lhes dá o suporte moral. Dessa forma, a região moral é uma categoria analítica
para se aplicar a regiões onde prevaleça um código moral divergente, por uma
região em que as pessoas que a habitam são dominadas de uma maneira que
as pessoas normalmente não o são, por um gosto, por uma paixão, por algum
interesse que tem suas raízes diretamente na natureza original do indivíduo.

FONTE: Silva (2009, p. 73)

17
UNIDADE 1 | ESCOLA DE CHICAGO

Park introduz a dimensão moral nas análises sobre as relações no meio


urbano, passando de uma abordagem ecologista para uma abordagem culturalista.
Mais adiante, essas duas correntes irão se consolidar e separar autores da Escola
de Chicago, sendo que a vertente ecologista será guiada por Ernest Burgess e a
vertente culturalista por Louis Wirth.

DICAS

Uma obra muito importante para o estudo do autor Park, publicada no


Brasil e muito recente é:
VALLADARES, L. P. A Sociologia urbana de Robert E. Park. Rio de
Janeiro: UFRJ, 2018.

5 SEGUNDA GERAÇÃO: LOUIS WIRTH


Na segunda geração de sociólogos da Escola de Chicago temos Louis Wirth,
que revisitou os clássicos da sociologia e pôs sobre eles suas análises, originando
novas formas de compreender o contexto urbano a partir da sociologia.

Louis Wirth nasceu na Alemanha (1897-1952), mas fez seus estudos nos
Estados Unidos, na Universidade de Chicago. Formado pela primeira geração
dessa escola, este autor iria tornar-se, mais tarde, um de seus mais importantes
professores. Suas principais obras são O Gueto, publicado em 1928, e o texto O
urbanismo como modo de vida. Publicado originalmente no American Journal of
Sociology, em 1928, tornou-se o seu texto mais popular, muito utilizado pela
Antropologia em seus estudos sobre a cidade (SILVA, 2009).

FIGURA 7 – LOUIS WIRTH

FONTE: <https://www.isa-sociology.org/en/about-isa/history-of-isa/isa-past-presidents/list-of-
presidents/louis-wirth>. Acesso em: 17 jun. 2019.

18
TÓPICO 1 | A SOCIOLOGIA DA ESCOLA DE CHICAGO

Para entender o desenvolvimento de seu pensamento, nos basearemos no


autor Silva (2009). Wirth busca entender como o modo de vida urbano funciona,
e para tal divide sua análise em quatro aspectos:

• a cidade e a civilização contemporânea;


• a definição de cidade a partir da sociologia;
• uma teoria sobre o urbanismo;
• a relação entre a teoria do urbanismo e a pesquisa sociológica.

Wirth inicialmente articula a civilização contemporânea com o conceito


de cidade, indicando uma polarização entre o rural – que seria a ligação com
o tradicional – e o urbano – que seria a materialização do que é moderno. A
civilização moderna, portanto, apresentaria uma tendência a viver em cidades,
e estas, por sua vez, se sobrepõem a tudo o que é ligado ao campo, ao rural. Do
ponto de vista evolucionista, a cidade seria a evolução de outros modos de vida,
que não deixam de existir, mas que passam a ser tradicionais, ultrapassados.

Para analisar essa polarização, Wirth revisita o clássico Weber e seu


conceito de tipo ideal, lançando mão de dois tipos ideais: a comunidade rural de
folk e a sociedade urbano-industrial. Segundo ele, esses dois tipos permitem a
análise das associações humanas, pois existe uma tendência dos conglomerados
a se dispor de acordo com esses dois polos, que representam o meio rural (folk) e
o meio urbano (industrial).

ATENCAO

O conceito de Tipo Ideal na obra de Weber é um dos temas de estudo do


componente curricular Teoria Sociológica I. Retome este material para relembrar as
características e o funcionamento desse conceito.

Definida essa polarização e consolidando a cidade como espaço da civilização


moderna, Wirth passa a definir sociologicamente a cidade. Segundo ele, esta
promove uma personalidade humana diferente naqueles que vivem no meio urbano,
por meio das suas instituições, meios de transporte e comunicação. O modo de vida
dos indivíduos na cidade, portanto, deve ser investigado em suas características
peculiares – e analisado a partir das características da urbanidade em que vive.

A análise sociológica do urbanismo deve dar conta da descoberta das


variações nas características essenciais da cidade, bem como deve
ser suficientemente inclusiva para conter quaisquer características
essenciais que os diferentes tipos de cidade têm em comum. Trata-se
então de encontrar no urbanismo o ponto central de investigação de
uma Sociologia Urbana e tratá-lo como um complexo de caracteres
que formam o modo de vida peculiar das cidades (SILVA, 2009, p. 81).

19
UNIDADE 1 | ESCOLA DE CHICAGO

O desenvolvimento e a extensão desse modo de vida peculiar das cidades


mencionado por Wirth é, em suas definições, a urbanização. Esses fatores são
encontrados especialmente em regiões metropolitanas, mas existem em todos os
agrupamentos urbanos. E uma última definição, porém não menos importante,
indica que a cidade é – para Wirth – um “núcleo relativamente grande, denso e
permanente de indivíduos socialmente heterogêneos” (SILVA, 2009, p. 81).

Wirth volta suas análises para a cidade e para o urbanismo por identificar
a ausência de hipóteses sobre esses temas nas análises sociológicas. Para tanto, ele
baseia-se em Park e Weber, e busca analisar a cidade, desenvolvendo os seguintes
postulados, elencados por Silva (2009, p. 82):

- quanto mais densamente habitada, quanto mais heterogênea for


a comunidade, tanto mais acentuadas serão as características
associadas ao urbanismo;
- como o modo de vida urbano se espalha para além da cidade, ele
poderá ser perpetuado sob condições bem diferentes daquelas
necessárias para sua origem;
- a quantidade populacional conduz à alta densidade;
- a heterogeneidade dos habitantes e da vida social resulta tanto do
crescimento próprio dos centros urbanos como da migração.

Wirth também buscou analisar as questões relativas à densidade


populacional, ao tamanho das cidades e tudo o que envolve essa problemática:

Ao detalhar o tamanho do agregado populacional, Wirth afirma que


quanto maior o número de indivíduos participando de um processo de
interação, tanto maior a diferenciação potencial entre eles e tais variações
dão origem à separação espacial entre os indivíduos. Este processo leva
ao afrouxamento dos laços dos grupos primários ou comunitários: em
comunidades (folk) imperam os vínculos de solidariedade, ao passo que
na cidade (city) são os mecanismos formais de controle e a concorrência
que predominam. Na cidade os contatos são muito mais frequentes e
menos intensos. O indivíduo depende de mais pessoas, o que leva a
uma maior segmentação de papéis (SILVA, 2009, p. 82).

Esta segmentação de papéis mencionada na citação anterior também


aparece na especialização dos trabalhos, que traz o utilitarismo para as relações
entre as pessoas, a predominância da segmentação nas relações. Muitas vezes,
o mínimo de comunicação prevalece entre as pessoas, o que torna os contatos e
associações superficiais. Boa parte das cidades, e as norte-americanas na época
das análises ainda mais, são/eram formadas por grupos culturais diferenciados,
cujo modo de vida diferente reflete em uma tolerância ou indiferença, gerando
apenas a mínima comunicação.

Além desses contatos indicados por Silva (2009), como contatos


secundários, é possível identificar nas pesquisas de Wirth outras características
que indicam o urbanismo como forma de organização social.

20
TÓPICO 1 | A SOCIOLOGIA DA ESCOLA DE CHICAGO

A esfera pública amplia seu domínio sobre o indivíduo, na medida em


que funções das instituições familiares passam a ser funções da esfera pública.
A família nuclear passa a predominar em relação aos grupos de parentesco,
refletindo em divergências entre estes núcleos – em função da ênfase maior no
indivíduo. O custo de vida é maior no meio urbano, a necessidade do consumo é
ampliada, e o lazer surge como escape à rotina, nesse contexto. Essa dinâmica gera
o movimento do indivíduo de participação em grupos de interesses semelhantes
aos seus, organizações voluntárias, a fim de atingir seus fins. Os sindicatos são
exemplo desses grupos (SILVA, 2009).

Em função dessas características, para Wirth torna-se difícil prever as


associações que irão ocorrer no meio urbano, pois trata-se de uma busca por
organizações que auxiliarão o acesso aos seus interesses – portanto, é possível
haver incongruências e contradições – diferentemente do meio rural, onde a partir
de alguns aspectos institucionais é possível prever o pertencimento a grupos e a
aproximação com associações.

O urbanismo torna-se objeto sociológico, portanto, em função das


personalidades individuais que são moldadas pelos comportamentos coletivos
estimulados pelas instituições urbanas. “Na cidade, o homem urbano exprime
e desenvolve plenamente sua personalidade, adquire status e consegue
desempenhar a quantidade de atividades que constituem sua carreira na vida”
(SILVA, 2009, p. 86).

O controle social resultante do tamanho, da densidade e da


heterogeneidade das cidades deve processar-se tanto por meio de grupos
formalmente organizados como através dos meios de comunicação.
Nesse sentido, a manipulação das massas através de símbolos e
estereótipos comandados por indivíduos “operando de longe” é um
dos fenômenos urbanos da maior importância (SILVA, 2009, p. 86).

Esses grupos operando de longe se organizam de acordo com interesses,


baseados em uma solidariedade social gerada com base em interações mínimas e
pouca comunicação, mas ainda assim geram uma coesão social – proporcionando
um equilíbrio entre as forças sociais.

Segundo Wirth, a partir do entendimento desses quatro aspectos da


vida urbana é possível estabelecer análises sociológicas a respeito da cidade, do
urbanismo, do modo de vida urbano. Deveria, portanto, ocorrer a construção de
uma sociologia urbana. Ele escreve:

Somente na medida em que o sociólogo tiver uma compreensão


clara do que seja a cidade como entidade social e possuir uma teoria
razoável sobre urbanismo, poderá ele desenvolver um corpo unificado
de conhecimentos, pois aquilo que passa por “Sociologia Urbana”
certamente não o é atualmente. Se, se tomar como ponto de partida uma
teoria sobre urbanismo como delineada nas páginas anteriores, a ser
elaborada, testada e revista à luz de mais análises e pesquisa empírica,
pode-se esperar que seja determinado o critério de relevância e validade
de dados concretos. Esse sortimento heterogêneo de informações

21
UNIDADE 1 | ESCOLA DE CHICAGO

separadas que foram incorporadas em tratados de Sociologia sobre a


cidade poderá, assim, ser filtrado e incorporado num corpo coerente de
conhecimentos. A propósito, somente por meio de uma teoria desse tipo,
o sociólogo escapará da fútil prática de enunciar em nome da ciência
sociológica, uma variedade de julgamentos, às vezes insuscitáveis,
relativos a problemas, tais como pobreza, habitação, planejamento
urbano, higiene, administração municipal, policiamento, mercadologia,
transporte e outros itens técnicos. Embora o sociólogo não possa
solucionar qualquer desses problemas práticos – pelo menos não por
si só – ele poderá, se descobrir sua função apropriada, contribuir para a
sua compreensão e solução. As perspectivas de fazê-lo são mais claras
através de uma abordagem geral, teórica, do que por uma abordagem
ad hoc (WIRTH, 1979, p. 112 apud SILVA, 2009, p. 86).

É dessa maneira que Wirth propõe que haja a construção de uma Sociologia
Urbana, tornando-se um dos precursores dessa abordagem. Uma teoria do
urbano, portanto, seria desenvolvida a partir de pesquisas e investigações que
tratem a cidade como objeto sociológico, considerando suas peculiaridades em
relação ao rural/tradicional.

DICAS

Para complementar seu conhecimento acerca deste autor, o texto mais


conhecido de Wirth sobre o urbanismo pode ser buscado na seguinte publicação: WIRTH,
Louis. O urbanismo como modo de vida. In: VELHO, Otávio (Org.). O fenômeno urbano.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1979. Vale a pena a leitura!

22
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você aprendeu que:

• A Escola de Chicago é o núcleo de uma sociologia norte-americana, cujo


principal objeto de análise desta escola sociológica foi a cidade, o modo de
vida urbano e tudo o que o caracteriza.

• No contexto de uma cidade que sofre explosão demográfica está inserida a


Universidade de Chicago, berço de propostas para a sociologia urbana. É a
partir dali que se pode dizer que se originou a Escola de Chicago.

• Um nome de fundamental importância para o surgimento da Escola de


Chicago foi Albion Small, o primeiro diretor do Departamento de Sociologia a
ser convidado para tal função.

• Do ponto de vista metodológico, a Escola de Chicago sofreu influências do


formalismo, pragmatismo e das intenções de reforma social.

• Um dos autores fundamentais para a consolidação da Escola de Chicago, em


sua primeira geração, foi Robert Ezra Park. Ao se debruçar sobre a ideia de
consolidar uma Sociologia Urbana, Park indica que o espaço de investigação
deste ramo da sociologia seriam as mudanças sociais, espaciais e residenciais.
Um de seus conceitos importantes é o de ecologia humana.

• Na segunda geração de sociólogos da Escola de Chicago temos Louis Wirth, que


revisitou os clássicos da sociologia e pôs sobre eles suas análises, originando
novas formas de compreender o urbano a partir da sociologia. Um de seus
conceitos importantes é a ideia de urbanidade.

23
AUTOATIVIDADE

1 A Escola de Chicago tornou-se célebre na Sociologia ao utilizar metodologias


de forte caráter empírico. É conhecida por privilegiar a pesquisa prática.
Para tal, sofreu influência de algumas perspectivas, citadas a seguir. Sobre
estas perspectivas, associe os itens, utilizando o código a seguir:

I- Formalismo
II- Pragmatismo
III- Reforma Social

( ) Utiliza-se de propostas de intervenção aliadas à pesquisa científica.


( ) Objetiva captar as formas subjacentes de relações sociais e, assim, fornecer
uma espécie de geometria da vida social.
( ) Busca a ênfase no valor prático, sendo este o critério de verdade, e
rejeitando a busca por uma verdade absoluta.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:


a) ( ) III – I – II.
b) ( ) II – I – III.
c) ( ) I – II – III.
d) ( ) III – II – I.

2 A Escola de Chicago é o berço da Sociologia Urbana, desenvolvendo estudos


que tiveram influência mundial nesta área. Sobre a Escola de Chicago,
analise as seguintes sentenças:

I- A Sociologia Rural também é desenvolvida na Escola de Chicago, com


estudos que comparam a vida urbana ao meio rural.
II- O objeto principal de análise desta escola sociológica foi a cidade, o modo
de vida urbano e tudo o que o caracteriza.
III- Robert Park desenvolveu estudos sobre a ideia de ecologia humana e
Louis Wirth estudou o urbanismo.
IV- O crescimento urbano provoca novas formas de controle social,
modificando a influência das instituições sociais tradicionais, como
família, igreja e escola.

Assinale a alternativa CORRETA:


a) ( ) Somente a afirmativa IV está correta.
b) ( ) Somente as afirmativas I e II estão corretas.
c) ( ) As afirmativas I, II e III estão corretas.
d) ( ) As afirmativas II, III e IV estão corretas.

24
UNIDADE 1
TÓPICO 2

CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLOGIA
URBANA PARA A COMPREENSÃO DA
SOCIEDADE

1 INTRODUÇÃO
Agora que você já sabe como se originou a Escola de Chicago, as influências
que sofreu nas dimensões metodológicas e um pouco sobre alguns de seus autores
e pesquisas, é hora de adentrar no mundo dos seus conceitos. Muitas noções
sociológicas foram utilizadas, versões clássicas revisitadas e outras criadas.

A Sociologia Urbana esteve em formação durante o desenvolvimento das


investigações na Escola de Chicago, portanto, além das discussões metodológicas
que estavam em andamento, também se desenvolveu um arcabouço próprio
conceitual – para que a área pudesse ser consolidada como legítima dentro das
pesquisas sociais.

Dentro do espaço que temos para estudo não seria possível esgotar todos
esses conceitos, portanto, novamente sua tarefa é ir além! Procure ampliar os
estudos com as leituras indicadas e pesquisar mais quando algum conceito lhe
chamar a atenção.

Por ora, vamos conhecer a ideia de cidade apresentada por este grupo, a
noção de estrutura urbana e suas características, e a ecologia humana. Este último
marcou fortemente toda a trajetória da Escola de Chicago, portanto, dê especial
atenção a este conceito/teoria.

Desejamos uma ótima leitura!

2 A CIDADE
A cidade, nos estudos de Sociologia Urbana, possui sempre um peso
central nas análises – por ser uma categoria que aglutina a relação entre o
comportamento humano urbano e as instituições nesse espaço. Em se tratando da
Escola de Chicago, o autor clássico acerca do estudo da cidade é Park, conforme
vimos no primeiro tópico desta unidade. A cidade é o espaço de análise do
sociólogo, ela é entendida nesse contexto como laboratório social.

25
UNIDADE 1 | ESCOLA DE CHICAGO

Antes de Park, um outro membro do Departamento de Sociologia,


Charles Richmond Henderson, já havia se interessado por estudar a
cidade, embora seu interesse estivesse mais próximo do humanitário
do que do cientista objetivo. Nos primeiros anos da universidade,
Henderson costumava enviar alunos da pós-graduação para
observarem o que ocorria em várias áreas da cidade. Faleceu em 1916,
sendo sucedido por Ernest Watson Burgess, que havia sido seu aluno
e cuja associação com Park resultou no período de intensa produção
acadêmica e influência da Escola de Chicago (FREITAS, 2002, p. 63).

O artigo que Park escreveu sobre esse tema e que se tornou um marco para
a consolidação de uma tradição de pesquisa fortemente pragmática e de cunho
empírico foi A cidade: sugestões para a investigação do comportamento humano no meio
urbano, em 1915. A publicação ocorreu no periódico American Journal of Sociology,
que – como já vimos – foi o principal meio de comunicação da Escola de Chicago.

No artigo, Park apresenta as potencialidades da etnografia urbana,


indicando que os “métodos pacientes de observação utilizados por antropólogos
como Boas e Lowie para estudo dos povos primitivos poderiam ser ainda mais
vantajosamente empregados na investigação dos costumes, crenças e práticas
sociais do homem civilizado” (FREITAS, 2002, p. 64).

E por meio de métodos como a etnografia seria possível pesquisar


empiricamente a vida social ocorrida na cidade, especialmente suas nuances. Ele
pedia aos seus alunos que observassem tudo o que estava ao seu redor.

A cidade, especialmente a grande cidade, onde mais do que em


qualquer outro lugar as relações humanas tendem a ser impessoais e
racionais, definidas em termos de interesse e em termos de dinheiro,
é num sentido bem real um laboratório para a investigação do
comportamento coletivo (PARK, 1925 apud FREITAS, 2002, p. 64).

Park entendia que a sociologia deveria compreender como as pessoas


reagiam aos fatos, e para tal, sugeriu a participação direta do pesquisador com o
objeto de estudo. Essa experiência prática dentro do rigor científico passou a ser
o método da observação participante (que consiste na coleta de dados por meio
da participação direta do pesquisador no fenômeno social estudado, seja como
observador ou como interventor), e que inova no sentido de permitir o acesso das
próprias percepções ao pesquisador, e não apenas a percepção de outros sujeitos.

Com o estímulo à exploração por esse método, Park e seus colegas na Escola
de Chicago desenvolveram importantes pesquisas, cujas diferentes dimensões
foram analisadas pelos mesmos participantes destes grupos de pesquisa. Assim,
a cidade de Chicago tornou-se um grande laboratório da vida social entre 1920
e 1930, quando os professores guiavam investigações – principalmente sobre a
criminalidade que crescia no espaço urbano.

26
TÓPICO 2 | CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLOGIA URBANA PARA A COMPREENSÃO DA SOCIEDADE

FIGURA 8 – CHICAGO EM 1920

FONTE: <https://www.reddit.com/r/oldcities/comments/77si71/chicago_in_1920/>.
Acesso em: 17 jun. 2019.

Park concebe a cidade como instituição, por isso ela se torna objeto
sociológico, sendo observada como estrutura externa ao indivíduo e que interfere
na sua subjetividade. De forma mais completa:

A cidade (ou seja, “o lugar e as pessoas, com toda a maquinaria,


sentimentos, costumes e recursos administrativos que as acompanham,
a opinião pública e os trilhos de bondes nas ruas, o homem individual
e as ferramentas que ele usa”) pode então ser pensada como “alguma
coisa mais do que uma mera entidade coletiva”; pode ser pensada
“como um mecanismo – um mecanismo psico-físico – no qual e
através do qual os interesses privados e políticos encontram expressão
associada [corporate]”. Grande parte do que comumente se considera
como a cidade “– sua legislação, organização forma, edifícios, trilhos
nas ruas e assim por diante – é, ou parece ser, mero artefato. Todavia,
só quando, e na medida em que, por uso e costume, essas coisas
se associam [...] às forças vitais que residem nos indivíduos e na
comunidade, é que assumem a forma institucional. Como um todo, a
cidade é uma produção. É o produto não-intencional [undesigned] do
trabalho de sucessivas gerações de homens (EUFRÁSIO, 1999, p. 49).

Assim, Eufrásio (1999) destaca que a cidade integra a estrutura física com
elementos espirituais, que são a ordem moral – e todo esse mecanismo é resultado
de um processo histórico. Ambas se moldam, se modificam, conforme interagem.

A organização espacial da cidade, por exemplo, pode ser geométrica


(como em cidades planejadas) – sendo que o planejamento impõe uma
organização específica. No entanto, é difícil controlar a expansão, especialmente
em se tratando de propriedades privadas, seguindo gostos e conveniências
pessoais. Em função disso, a organização pode ser modificada e, portanto, não
controlada. Inicialmente, a geografia local, os meios de transporte etc., podem ser
determinantes para a distribuição populacional – mas conforme a cidade cresce
outro item auxilia essa distribuição: as rivalidades, as simpatias, as necessidades
econômicas, entre outros. Surge, então, a vizinhança, e cada uma delas dá
continuidade aos processos históricos, que se impõem aos indivíduos.

27
UNIDADE 1 | ESCOLA DE CHICAGO

Assim se formam os setores que Park chama de vizinhanças, pequenas


células da comunidade que precede e da qual parte a formação da cidade
(EUFRÁSIO, 1999). Elas são as formas mais elementares das associações urbanas,
existindo sem uma organização formal. Nas cidades grandes, a vizinhança
perde grande parte da sua importância, pois a facilidade aos transportes e meios
de comunicação permite que o sujeito distribua sua atenção, não a mantendo
centrada apenas no seu entorno. Ainda assim, vizinhanças formadas por grupos
segregados nas cidades tendem a existirem em suas margens, ou seja, em seu
entorno – distantes das áreas centrais.

Outro item que auxilia a definição espacial da cidade é a organização


econômica: o comércio é determinante para a formação das cidades, na medida em
que a população se organiza em torno dele. O desenvolvimento industrial estimula
o comércio e os grandes mercados passam a ser centrais no espaço urbano.

Além da análise das organizações espaciais citadinas, Park analisa a


ordem moral disposta nas cidades, e traz a noção de regiões morais. Segundo
ele, grupos com interesses similares formam grupos que possuem regras morais
específicas, e que não se interpenetram com outros grupos. Ele diz:

É inevitável que indivíduos que buscam as mesmas formas de


empolgação [excitement] (sejam corridas de cavalos ou óperas) devam
se encontrar de tempos em tempos nos mesmos lugares. O resultado
disso é que, na organização que a vida da cidade espontaneamente
assume, se manifesta uma disposição da população para se segregar,
não meramente de acordo com seus interesses, mas de acordo com
seus gostos ou seus temperamentos. A distribuição da população
resultante deve ser provavelmente muito diferente daquela trazida
por interesses ocupacionais ou condições econômicas (PARK, 1915
apud EUFRÁSIO, 1999, p. 55).

As regiões morais podem ser regiões habitacionais ou mesmo regiões


de diversão, habitadas por pessoas como um gosto ou interesse comum, e que
possuem um certo isolamento moral por se diferenciar de outros grupos.

Para finalizar este tópico, vamos ao texto do próprio autor:

DICAS

Esse texto é parte da publicação mais determinante de Park


sobre a cidade e está em: EZRA PARK, Robert. A cidade: sugestões para a
investigação do comportamento humano no meio urbano. In: VELHO,
Otávio (Org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1979.

28
TÓPICO 2 | CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLOGIA URBANA PARA A COMPREENSÃO DA SOCIEDADE

Segundo o ponto de vista deste artigo, a cidade é algo mais do que um


amontoado de homens individuais e de conveniências sociais, ruas, edifícios,
luz elétrica, linhas de bonde, telefones etc.; algo mais também do que uma
mera constelação de instituições e dispositivos administrativos – tribunais,
hospitais, escolas, polícia e funcionários civis de vários tipos. Antes, a cidade
é um estado de espírito, um corpo de costumes e tradições e dos sentimentos
e atitudes organizados, inerentes a esses costumes e transmitidos por essa
tradição. Em outras palavras, a cidade não é meramente um mecanismo físico e
uma construção artificial. Está envolvida nos processos vitais das pessoas que a
compõem; é um produto da natureza, e particularmente da natureza humana.

A cidade, como Oswald Spengler observou recentemente, tem sua


cultura própria: “A cidade é, para o homem civilizado, o que é a casa para o
camponês. Assim como a casa tem seus deuses lares, também a cidade tem sua
divindade protetora, seu santo local. A cidade, como a choupana do camponês,
também tem suas raízes no solo”.

Em tempos recentes a cidade tem sido estudada segundo o ponto de


vista de sua geografia, e ainda mais recentemente segundo o ponto de vista de
sua ecologia. Existem forças atuando dentro dos limites da comunidade urbana
— na verdade, dentro dos limites de qualquer área de habitação humana —
forças que tendem a ocasionar um agrupamento típico e ordenado de sua
população e instituições. A ciência que procura isolar estes fatores, e descrever
as constelações típicas de pessoas e instituições produzidas pela operação
conjunta de tais forças, chamamos Ecologia Humana, que se distingue da
Ecologia dos animais e plantas.

Transporte e comunicação, linhas de bonde e telefones, jornais e


publicidade, construções de aço e elevadores — na verdade, todas as coisas
que tendem a ocasionar a um mesmo tempo maior mobilidade e maior
concentração de populações urbanas — são fatores primários na organização
ecológica da cidade.

Entretanto, a cidade não é apenas uma unidade geográfica e ecológica;


ao mesmo tempo, é uma unidade econômica. A organização econômica da
cidade baseia-se na divisão do trabalho. A multiplicação de ocupações e
profissões dentro dos limites da população urbana é um dos mais notáveis e
menos entendidos aspectos da vida citadina moderna. Sob este ponto de vista
podemos, se quisermos, pensar na cidade, vale dizer, o lugar e a gente, com
todos os dispositivos de administração e maquinaria que compreendem, como
sendo organicamente relacionada; uma espécie de mecanismo psicofísico
no qual e através do qual os interesses políticos e particulares encontram
expressão não só coletiva, mas também incorporada.

29
UNIDADE 1 | ESCOLA DE CHICAGO

Muito do que normalmente consideramos como a cidade — seu estatuto,


organização formal, edifícios, trilhos de rua, e assim por diante — é, ou parece
ser, mero artefato. Mas essas coisas em si mesmas são utilidades, dispositivos
adventícios que somente se tornam parte da cidade viva quando, e enquanto, se
interligam através do uso e costume, como uma ferramenta na mão do homem,
com as forças vitais residentes nos indivíduos e na comunidade.

Finalmente, a cidade é o habitat natural do homem civilizado. Por essa


razão, ela é uma área cultural caracterizada pelo seu próprio tipo cultural peculiar:

“É um fato bastante certo, mas nunca inteiramente reconhecido”,


diz Spengler, “que todas as grandes culturas nasceram na cidade. O homem
proeminente da segunda geração é um animal construtor de cidades. Este é
o critério efetivo da história mundial, distinta da história da humanidade:
história mundial é a história dos homens da cidade. As nações, os Governos,
a política e as religiões — todos se apoiam no fenômeno básico da existência
humana, a cidade”.

FONTE: Park (1916 apud VELHO, 1979, p. 26)

DICAS

Se você se interessou pela abordagem da cidade como categoria sociológica,


veja o primeiro capítulo da obra disponível em: http://books.scielo.org/id/z439n/pdf/
oliven-9788579820014-02.pdf.
A referência é: OLIVEN, R. G. A cidade como categoria sociológica. In: OLIVEN, R. G.
Urbanização e mudança social no Brasil [on-line]. Rio de Janeiro: Centro Edelstein, 2010.
Essa leitura apresenta a cidade como categoria sociológica não apenas na Escola de
Chicago, mas a partir de outros autores.

3 ESTRUTURA URBANA
Um dos estudos mais detidos relacionados ao conceito de estrutura urbana
foi desenvolvido por Robert McKenzie, publicado em 1923, cujo desenvolvimento
lhe permitiu a titulação no doutorado junto à Universidade de Chicago.

Ele busca materializar a estrutura espacial da cidade, apresentando itens


bem definidos que podem ser observados em suas estruturas, além de processos
correspondentes a essas estruturas e o desenvolvimento urbano que dela parte.

30
TÓPICO 2 | CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLOGIA URBANA PARA A COMPREENSÃO DA SOCIEDADE

Eufrásio (1999, p. 60) selecionou deste material algumas ideias apresentadas


no capítulo inicial, relativas à organização espacial da cidade. São elas:

- Valorização do solo nas formas de utilizações comerciais, industriais e


residenciais determinam de modo amplo a estrutura da cidade moderna.
- Toda cidade tem seu distrito comercial central, localizado próximo
ao centro geográfico da cidade.
- Subdistritos comerciais tendem a se formar em cruzamentos de ruas
de tráfegos de automóveis e em torno de instituições de vizinhanças.
- As indústrias básicas comumente se localizam em torno da periferia da
área da cidade, enquanto que os estabelecimentos manufatureiros que
empregam mulheres comumente se localizam perto do centro da cidade.
- Os valores dos imóveis distribuem a população de uma cidade em
vários setores residenciais de status econômico e social diferentes.
- Laços raciais e de nacionalidade tendem a subagrupar a população
no interior das várias áreas econômicas.

O estudo de caso empírico que utiliza para embasar suas análises é a


cidade de Columbus, em Ohio, cuja forma é similar a uma cruz em função da
determinação do espaço geográfico natural causada por rios. No entanto, ele
avalia que a maior parte das cidades americanas possui o desenho de uma estrela
ou um círculo, e a partir dessas formas é possível analisar a distribuição espacial
dos imóveis e, por consequência, dos grupos sociais que ali vivem.

FIGURA 9 – MAPA DE COLUMBUS – OHIO – EUA

FONTE: <https://www.columbus.gov/planning/maps/>. Acesso em: 17 jun. 2019.

Para além das determinações geográficas, portanto, é possível identificar


padrões de ocupação do espaço – que determinam a estrutura urbana. McKenzie
identificou nas grandes cidades áreas urbanas separadas por classes de utilização
do solo, e Eufrásio (1999, p. 61) as descreve da seguinte maneira:

31
UNIDADE 1 | ESCOLA DE CHICAGO

- O centro comercial, ponto de convergência das vias de transporte


local, com igual facilidade de acesso de todas as partes da cidade.
- Uma área desintegrada, circundando o setor comercial central,
ocupada por atacadistas, hotéis ruins, lojas e diversões baratas e
por prédios de apartamentos; habitada por trabalhadores diaristas
e imigrantes, é também onde se alojam viciados e criminosos (grifo
do autor).

Ele também descreve áreas que não possuem localização fixa no espaço
urbano, mas que são passíveis de identificação em função de suas características
(EUFRÁSIO, 1999, p. 62):

- Áreas de localização de indústrias: as indústrias mais pesadas se


situam junto à periferia, ao longo de rios e ferrovias e as indústrias
mais leves em terrenos baratos em qualquer parte da cidade, perto
de linhas de bondes, podendo tender a se aproximar do centro
comercial, onde estão as lojas que abastecem.
- Áreas de residências: as áreas que concentram as residências mais
finas se apropriam das partes com mais vantagens agradáveis ou
naturais da cidade; as que concentram residências de padrão médio
situam-se ao lado de grandes avenidas e rodovias com maiores
facilidades de transporte e de ferrovias com serviços suburbanos; e
as áreas de imóveis residenciais de aluguel ficam próximas a áreas
de indústrias e em bolsões entre linhas férreas e junto ao centro.
- Subcentros comerciais: surgem em cruzamentos de vias de tráfego
de automóveis, pontos de transferência ou baldeação onde se
encontram correntes ou fluxos diários de transeuntes que criam
oportunidades para lojas, e em torno de instituições de vizinhanças
(grifo do autor).

Alinhado a esse uso do espaço, McKenzie identifica quatro tipos de


processos e fatores a ele associados que são responsáveis pela formação da
estrutura urbana:

1- A distribuição do comércio, da indústria e da população é determinada pela


ação das forças econômicas que tendem a produzir estruturas semelhantes
no interior das grandes cidades.
2- Há fatores de distribuição das valorizações [dos imóveis, das rendas etc.]
pelas áreas da cidade que atraem ou repelem várias utilizações de solo: se
para residências, ausências de transtornos, acessibilidades e facilidade de
transportes etc., se para lojas varejistas, ruas com trânsito de passagem e
proximidade de residência dos fregueses etc.
3- O crescimento da cidade consiste em deslocamento a partir do ponto de origem
e é de dois gêneros: central (em todas as direções) e axial (ao longo dos cursos
d’água, ferrovias e postos de pedágio que formam a estrutura da cidade).
4- Devido ao crescimento, há distritos que passam por uma transição, de residenciais
para industriais ou comerciais; com isso, aumenta o valor dos terrenos e diminui
o valor dos aluguéis, com o que advém a desintegração da área residencial, a
mudança de seus ocupantes pela venda para a nova finalidade e a mudança
gradativa do tipo de utilização da área, que muda de caráter.

32
TÓPICO 2 | CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLOGIA URBANA PARA A COMPREENSÃO DA SOCIEDADE

4- A população de qualquer cidade se distribui de acordo com o status


econômico em áreas residenciais de vários valores de aluguéis e imóveis; a
renda familiar tende a levar à segregação da população em diferentes distritos
econômicos. Haverá tantas vizinhanças residenciais numa cidade quantos
forem os estratos sociais. A população de diferentes áreas econômicas da
cidade tende a se subagrupar em divisões sociais mais íntimas, devido a
sentimentos racionais e nacionais.

FONTE: Eufrásio (1999, p. 62)

DICAS

As pesquisas sobre estrutura urbana da Escola de Chicago são estudadas com


maior afinco por Eufrásio (2008) no capítulo A versão final da teoria da estrutura urbana
por Burgess em 1929.
A referência é: EUFRÁSIO, Mario A. A Escola de Chicago de Sociologia: perfil e atualidade In:
LUCENA, C. T.; CAMPOS, M. C. S. S. (Orgs.). Práticas e representações. São Paulo: Humanitas/
CERU, 2008. p. 153-184.

Embora no desenvolvimento inicial dessas ideias sobre a estrutura urbana


já existam menções à natureza, formação e desenvolvimento de uma estrutura
urbana, a perspectiva da ecologia humana só nasceu mais tarde com os autores
Park e Burgess, e é ela que estudaremos no subtópico a seguir.

4 ECOLOGIA HUMANA
A cidade, conforme vista no subtópico anterior, pode ter divisões bem
marcadas – que geram a divisão não apenas espacial, mas em regiões morais. Essa
divisão em áreas contribuiu para a elaboração do conceito de ecologia humana,
que possui forte relação com os estudos sobre a criminalidade.

As primeiras análises relacionando o grupo de pertencimento das pessoas


com a criminalidade ocorreram no início do século XIX, com a chamada Escola
Cartográfica. André-Michel Guerry, um de seus autores, apresentou o primeiro
trabalho de ecologia social do crime relacionando três itens: crime, localidade
e fatores sociais. Os estudos sobre os fatores demográficos, situacionais e
ambientais concluíram que as condições da sociedade causavam o fenômeno da
criminalidade (FREITAS, 2002).

33
UNIDADE 1 | ESCOLA DE CHICAGO

É a junção da perspectiva demográfica com a biologia que Park utiliza


para seus estudos iniciais sobre a cidade na perspectiva ecológica – e que
posteriormente estimula estudos de sociologia urbana. Ele apresenta a ecologia
humana da seguinte forma:

Em tempos recentes a cidade tem sido estudada segundo o ponto


de vista de sua geografia, e ainda mais recentemente segundo o
ponto de vista de sua ecologia. Existem forças atuando dentro dos
limites da comunidade urbana – na verdade, dentro dos limites de
qualquer área de habitação humana – forças que tendem a ocasionar
um agrupamento típico e ordenado de sua população e instituições.
À ciência que procura isolar estes fatores, e descrever as constelações
típicas de pessoas e instituições produzidas pela operação conjunta de
tais forças, chamamos Ecologia Humana, que se distingue da Ecologia
dos animais e plantas (PARK, 1925 apud FREITAS, 2002, p. 67).

O conceito de Park ficou conhecido como ecologia humana porque sua


analogia para explicar a organização da vida humana nas sociedades era com
a distribuição dos vegetais na natureza. Nessa perspectiva considera-se que o
comportamento individual é moldado pelos meios físicos e sociais nos quais o
indivíduo vive, e que existem limitações impostas pela sociedade ao livre arbítrio
dos seres humanos.

FIGURA 10 – REPRESENTAÇÃO DAS RELAÇÕES ENTRE AMBIENTE E SOCIEDADE –


PERSPECTIVA DA ECOLOGIA HUMANA

FONTE: <https://www.researchgate.net/figure/Figura-31-Interaccion-del-Sistema-Social-
humano-y-el-Ecosistema-Fonte-Marten-2010_fig1_278667539>. Acesso em: 17 jun. 2019.

Para desenvolver a perspectiva ecológica, Park entendeu que o meio físico


também interfere nas relações das pessoas, não apenas as trocas entre si. Para
tanto, ele utilizou-se de dois conceitos da biologia, que vamos apresentar a partir
da interpretação de Freitas (2002): a) simbiose; b) invasão, dominação e sucessão.

34
TÓPICO 2 | CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLOGIA URBANA PARA A COMPREENSÃO DA SOCIEDADE

a) Simbiose – na biologia é a convivência de diferentes espécies em um mesmo


espaço, ecossistema, em virtude de um benefício mútuo. Para Park, a cidade
era um superorganismo no qual havia relações simbióticas entre as pessoas
que viviam em áreas naturais – mesmo existindo diferenças entre si. Assim
como as plantas possuem suas áreas naturais, na cidade seria possível verificar
áreas naturais a partir de diferentes unidades orgânicas, como grupos de
renda, áreas industriais, áreas comerciais, bairros de imigrantes (Chinatown
– chineses, Little Italy – italianos, entre outros). Nesses grupos seria possível
verificar as relações em simbiose entre os indivíduos de uma área natural e
também entre as próprias áreas naturais. A cidade, portanto, é formada por
várias áreas naturais e suas relações simbióticas.
b) Invasão, dominação, sucessão – as áreas naturais podem sofrer modificações
a partir da invasão de novas espécies, que após a invasão a dominam e
afastam outras formas de vida dela. Park percebe essa sequência também nas
sociedades humanas. As comunidades crescem em termos de utilidades e usos
a partir da invasão de outros grupos, gerando novas segregações e associações.
“Nas cidades, um grupo cultural ou étnico pode tomar um bairro inteiro de
outro grupo, podendo esse processo ter início com a mudança de apenas um
ou alguns moradores” (FREITAS, 2002, p. 69). Também um novo comércio ou
uma grande indústria instalados em um bairro podem modificar o bairro todo.

A teoria ecológica entende que há um processo adaptativo que ocorre


entre meio ambiente, população e organização, por isso considera os elementos
estruturais externos nas análises de seus objetos, como a criminalidade, por
exemplo. O crime não seria um fenômeno individual, e sim ambiental – já que o
ambiente seria formado pelos aspectos físicos, sociais e culturais.

FIGURA 11 – QUADRO SINÓPTICO DA PERSPECTIVA ECOLÓGICA

Ideia básica > a compreensão da sociedade humana através de sua analogia


com a ecologia, especialmente a vida vegetal
Natureza humana > o ser humano fez escolhas racionais, mas seu livre arbítrio está
limitado pelo ambiente físico e social, do qual ele faz parte
Visão da sociedade > a sociedade é um conjunto de comunidades humanas
> a sociedade se baseia no consenso
Leis > são regras da cultura dominante da sociedade e que são
formuladas por suas instituições políticas
Crime > é definido pela lei
Causas da criminalidade > desorganização social
> diversidade étnico-cultural
> transmissão cultural da delinquência
Resposta à criminalidade > intervenção pela prevenção
> técnicas voltadas à alteração do ambiente físico e social
> programas visando aumentar o controle social nas áreas
afetadas pela desorganização social

FONTE: Freitas (2002, p. 89)

35
UNIDADE 1 | ESCOLA DE CHICAGO

Embora reconhecessem a diversidade dos grupos que formam a


sociedade, os autores vinculados à Escola de Chicago tinham uma visão baseada
na perspectiva funcionalista da sociedade, entendendo que “a sociedade está
fundada em um consenso de valores entre seus membros e que a função do Estado
é proteger o interesse social, que seria comum a todos” (FREITAS, 2002, p. 70). Por
conta dessa perspectiva, muitos indicam que estes autores são integracionistas,
ou seja, defendem uma visão a favor da integração social – especialmente na
sociedade urbana.

Também é preciso analisar a ecologia humana sob a ótica dos processos


sociais de competição:

Park e Burgess associam a ideia de ecologia humana ao processo de


interação humana da competição: dentre os quatro grandes tipos
de interação – competição, conflito, acomodação e assimilação -, a
competição é a forma elementar, universal e fundamental. Embora a
interação seja criada pelo contato social, a competição, estritamente
falando, é interação sem contato social; o que faz isso parecer paradoxal
é que na sociedade humana a competição é sempre complicada com
outros processos (de interação), ou seja, com o conflito, a assimilação
e a acomodação. É só na comunidade vegetal que se pode observar o
processo de competição em isolamento, não complicado com outros
processos sociais. A comunidade vegetal é a melhor ilustração do
tipo de organização social que é criado pela cooperação competitiva
porque nela a competição é irrestrita (EUFRÁSIO, 1999, p. 103).

As teorias ecológicas que analisam o meio natural reconhecem a


existência da competição frequente por um lugar no espaço, no ecossistema, e
dessa competição surge certa configuração que só pode ser entendida quando
os elementos (animais, plantas etc.) são olhados a partir do todo e não separado.
Assim também há um processo de acomodação no meio social, quando os
indivíduos tornam-se interdependentes de seus grupos e instituições sociais,
tomando parte da economia biológica do sistema no qual fazem parte. Isso gera
uma organização em função da competição por espaço, gerando uma teia de
relações sociais, e as peculiaridades indicadas a seguir:

Entretanto, as inter-relações dos seres humanos e as interações do


homem e seu habitat, são comparáveis, porém não idênticas às inter-
relações de outras formas de vida animada. O homem, como argumenta
Robert Park (1948), por meio de invenções e recursos técnicos aumentou
enormemente sua capacidade de reagir aos desafios da natureza e
refazer o seu habitat. O homem guarda sua peculiaridade com relação
às outras formas de vida animada justamente porque erigiu, sobre a
base biótica da comunidade, uma estrutura institucional enraizada
no costume e na tradição, a sociedade. Assim, a sociedade humana é
organizada em dois níveis, o biótico e o cultural. Há uma sociedade
simbiótica baseada na competição e uma sociedade cultural baseada
na comunicação e no consenso. As duas sociedades, argumentam
tanto Pierson (1948) quanto Park (1948), são simplesmente aspectos
diferentes de uma sociedade - a superestrutura cultural repousa sobre
a base da subestrutura simbiótica, e as energias que se manifestam
no nível biótico em movimentos e ações revelam-se no nível social

36
TÓPICO 2 | CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLOGIA URBANA PARA A COMPREENSÃO DA SOCIEDADE

superior em formas mais sutis e sublimadas. À ecologia, cabe o estudo


e a explicação deste nível da sociedade comum a todas as formas de
vida animada, o biótico. À sociologia, cabe o estudo e compreensão,
por meio de métodos e teorias moldados ao objeto, da “expectativa
normal do gênero humano, dos mores, aquilo que os homens, numa
situação definida, vieram a esperar” (SANTOS, 2010, p. 166).

Para finalizar, vamos estudar a teoria que utiliza a aplicação da ecologia


humana, desenvolvida por Burgess e apresentada por Freitas (2002, p. 72): a
teoria das zonas concêntricas.

Ernst Burgess, professor da Escola de Chicago de 1916 a 1952, escreveu


The Growth of the City (1925), onde explorou o processo de invasão, dominação
e sucessão. Burgess apresentou um mapeamento de Chicago e concluiu que
as cidades não crescem simplesmente em seus limites. Ao invés disto, elas
tendem a se expandir radicalmente de seu centro em padrões de círculos
concêntricos, que descreveu como “zonas”. Daí a denominação teoria das
zonas concêntricas. Esta teoria é um diagrama da estrutura ecológica que
“representa uma construção ideal das tendências de qualquer cidade a se
expandir radialmente a partir de seu bairro comercial central”.

De acordo com a teoria de zonas concêntricas, a cidade é dividida em


cinco áreas:

A Zona I é o bairro central, com comércios, bancos, serviços etc. Burgess


chamou este distrito de “loop”. A Zona II é a área imediatamente em torno
da Zona I e representa a transição do distrito comercial para as residências.
Normalmente é ocupada pelas pessoas mais pobres. É a chamada “zona em
transição” ou, ainda, “zona de transição”. A Zona III contém residências
de trabalhadores que conseguiram escapar das péssimas condições de vida
da Zona II, sendo composta geralmente pela segunda geração de famílias
imigrantes. A Zona IV, chamada de suburbia, é formada por bairros residenciais
e é caracterizada por casas e apartamentos de luxo. É onde residem as classes
média e alta. A Zona V, denominada exurbia, fica além dos limites da cidade
e contém áreas suburbanas e cidades satélites. É habitada por pessoas que

37
UNIDADE 1 | ESCOLA DE CHICAGO

trabalham no centro e despendem um tempo razoável no trajeto entre casa e


trabalho. Esta área não é caracterizada por residências proletárias. Ao contrário,
normalmente é composta de casas de classe média-alta e alta. O conceito de
subúrbio das cidades norte-americanas é diverso do das cidades da América
Latina. Enquanto nas cidades latino-americanas o subúrbio é usualmente
caracterizado por ser uma área pobre, nos EUA é onde residem pessoas de
alto padrão socioeconômico.

Sobre os moradores da Zona V, veja-se o seguinte comentário de Álvaro


Mayrink da Costa:

“Os commuters são habitantes de áreas suburbanas, que moram mais


afastados do que os trabalhadores especializados, os quais vão de trem rápido
[metrô] diariamente ao Centro da cidade para seu trabalho [como diretores de
grandes empresas] e áreas suburbanas ou “satélites” – dentro de um raio de 30
a 60 minutos de viagem, por trens rápidos, da zona central”.

As cinco zonas crescem e cada uma delas gradualmente se move,


avançando no território da zona adjacente em um processo de invasão,
dominação e sucessão.

DICAS

Uma descrição bastante detalhada da utilização do conceito de


ecologia humana por parte dos integrantes da Escola de Chicago está
no capítulo O conceito de ecologia humana na escola sociológica de
Chicago, da obra: EUFRÁSIO, M. A. Estrutura urbana e ecologia humana:
a escola sociológica de Chicago. São Paulo: Editora 34, 1999. p. 95-129. Se
você deseja se aprofundar no estudo desse conceito é um bom texto para
iniciar seus estudos!

38
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você aprendeu que:

• A cidade, nos estudos de sociologia urbana, possui sempre um peso central nas
análises – por ser uma categoria que aglutina a relação entre o comportamento
humano urbano e as instituições nesse espaço. Em se tratando da Escola de
Chicago, o autor clássico acerca do estudo da cidade é Park.

• Para Park, por meio de métodos como a etnografia seria possível pesquisar
empiricamente a vida social ocorrida na cidade, especialmente suas nuances.

• Park concebe a cidade como instituição, por isso ela se torna objeto sociológico,
sendo observada como estrutura externa ao indivíduo e que interfere na sua
subjetividade.

• Além da análise das organizações espaciais citadinas, Park analisa a ordem


moral disposta nas cidades e traz a noção de regiões morais.

• Um dos estudos mais detidos relacionados ao conceito de estrutura urbana foi


desenvolvido por Robert McKenzie, publicado em 1923, cujo desenvolvimento
lhe permitiu a titulação no doutorado junto à Universidade de Chicago.
Segundo ele, para além das determinações geográficas, é possível identificar
padrões de ocupação do espaço – que determinam a estrutura urbana.

• É a junção da perspectiva demográfica com a biologia que Park utiliza para


seus estudos iniciais sobre a cidade na perspectiva ecológica.

• O conceito de Park ficou conhecido como ecologia humana porque sua


analogia para explicar a organização da vida humana nas sociedades era com
a distribuição dos vegetais na natureza. Nessa perspectiva considera-se que o
comportamento individual é moldado pelos meios físicos e sociais nos quais
o indivíduo vive, e que existem limitações impostas pela sociedade ao livre
arbítrio dos seres humanos.

• Para desenvolver a perspectiva ecológica, Park entendeu que o meio físico


também interfere nas relações das pessoas, não apenas as trocas entre si, por
meio da simbiose e invasão, dominação e sucessão.

39
AUTOATIVIDADE

1 Descreva os principais aspectos dos seguintes conceitos, de acordo com as


perspectivas apresentadas pela Sociologia Urbana:

a) Cidade:
b) Estrutura Urbana:
c) Ecologia Humana:

2 Park se deteve sobre o desenvolvimento do conceito de ecologia humana.


Sobre esse conceito, analise as seguintes sentenças:

I- A Ecologia Humana é a ciência que procura descrever as constelações típicas


de pessoas e instituições produzidas pela operação conjunta de tais forças.
II- Para a teoria da Ecologia Humana foram utilizados alguns termos da
biologia, cujo destaque é no uso da simbiose e das relações entre invasão,
dominação e sucessão.
III- A teoria da Ecologia Humana identifica um processo de acomodação no
meio social, quando os indivíduos tornam-se interdependentes de seus
grupos e instituições sociais, tomando parte da economia biológica do
sistema no qual fazem parte.

Assinale a alternativa CORRETA:


a) ( ) Somente a afirmativa I está correta.
b) ( ) Somente a afirmativa II está correta.
c) ( ) As afirmativas I e III estão corretas.
d) ( ) Todas as afirmativas estão corretas.

40
UNIDADE 1
TÓPICO 3

OS DESDOBRAMENTOS DOS ESTUDOS


DA ESCOLA DE CHICAGO PARA A
SOCIOLOGIA

1 INTRODUÇÃO
Chegamos ao último tópico de seus estudos sobre a Escola de Chicago. Ele
trata dos desdobramentos da sociologia ali praticada, ou seja, da aplicabilidade de
suas teorias e conceitos, vistos até aqui, em pesquisas empíricas e temas de análise
que até hoje são referência para reinterpretações e para autores contemporâneos –
especialmente no campo da Sociologia Urbana.

Como já mencionado, há um conjunto muito amplo de pesquisas realizadas


na Universidade de Chicago no âmbito da Escola de Chicago, portanto, trazemos
aqui apenas alguns temas que foram essenciais para consolidar a Sociologia
Urbana e que são utilizados como base ainda hoje nesse campo.

A primeira parte deste tópico trata sobre os estudos realizados acerca


da criminalidade, cujos dados empíricos foram coletados na cidade de Chicago,
mas que traz dimensões teóricas e metodológicas muito importantes. A segunda
parte apresenta algumas discussões sobre os métodos empíricos inseridos na
pesquisa social por esse grupo, que consolidou a característica pragmática dessas
investigações – e influenciou toda a sociologia mundial. Por último, veremos
os estudos sobre imigração, outro tema de grande relevância na época – cujas
discussões permanecem atuais.

Desejamos que seja possível visualizar a aplicabilidade dos conceitos e


aspectos metodológicos desenvolvidos a partir dessas temáticas de pesquisa.
Vamos lá? Boa leitura!

2 ESTUDOS SOBRE A CRIMINALIDADE


Uma das grandes contribuições da Escola de Chicago diz respeito
aos estudos que envolvem o fenômeno da criminalidade. A partir do estudo
específico desta cidade, cuja criminalidade estava associada a conflitos frequentes
entre grupos de imigrantes, os autores desenvolveram um arcabouço teórico e,
principalmente, metodológico – que contribui com os estudos contemporâneos
sobre a temática.

41
UNIDADE 1 | ESCOLA DE CHICAGO

Destacam-se, nesse contexto, estudos sobre: gangues, organizações


criminosas, delinquência urbana e juvenil, e ladrões.

Boa parte das pesquisas sobre o crime iniciava a partir da busca por
identificar as gangues que ocupavam um determinado território. As gangues
são formadas por grupos de adolescentes, geralmente filhos de imigrantes, que
ocupam as zonas mais pobres da cidade, e se encontram regularmente para
alguma prática – inclusive infrações e crimes. Esses grupos costumam se deslocar
e encontrar outros grupos, hostis, provocando muitas vezes, conflitos.

FIGURA 12 – GANGUE SCREAMING PHANTONS, CIDADE DE NOVA YORK, DÉCADA DE 70

FONTE: <http://f.i.uol.com.br/folha/mundo/images/1517564.jpeg>. Acesso em: 17 jun. 2019.

Park apresenta algumas de suas características:

As gangues florescem na fronteira e os bandos de predadores que


infestam a periferia da civilização mostram as mesmas características
que as que são analisadas nesta obra. As 1300 analisadas em Chicago
são típicas de todas as gangues. Uma gangue é uma gangue, onde
quer que se encontre. Representa um tipo específico de sociedade...
As gangues, como a maioria das demais formas de associação
humanas, devem ser estudadas em seu habitat particular. Surgem
espontaneamente, mas apenas em condições favoráveis e em um meio
definido... Isto é o que torna interessante o seu estudo, convence-
nos de que elas não são incorrigíveis e que podem ser controladas
(COULON, 1995, p. 62).

A função da gangue é identificada como sendo o grupo que dá o que a


organização social não permite que as pessoas tenham, protegendo o indivíduo.
Elas respondem a uma desorganização social, já que surgem no habitat
deteriorado, onde tudo está abandonado.

Os grupos encontram-se nessas condições, unem-se, tomam consciência


e tornam-se um “clube”. Com frequência, posteriormente, tornam-se grupos
de delinquentes. São “grupos instáveis, novos grupos aparecem, os antigos
desaparecem ou reestruturam-se. Uma gangue possui um território próprio que
conhece bem e do qual não se afasta muito” (COULON, 1995, p. 64).

42
TÓPICO 3 | OS DESDOBRAMENTOS DOS ESTUDOS DA ESCOLA DE CHICAGO PARA A SOCIOLOGIA

Essas gangues tornam-se objetos sociológicos, pois, por meio das


interações sociais, desenvolvem uma moral própria. Surgem líderes e a posição
social de cada membro do grupo vai sendo definida, gerando uma ordem social –
que culmina em uma consciência de grupo, ligada a um território.

O estudo mais amplo realizado sobre as gangues foi desenvolvido por


Frederic M. Trasher, publicado em 1927. Suas principais fontes para o estudo das
gangues foram censos, tribunais, observações, documentos pessoais e entrevistas.
Por meio deste material, ele identifica a relação das gangues com os itens:
território, lealdade e hierarquia.

Como ele destaca, a formação da gangue reflete uma dinâmica social,


como, por exemplo, a busca da identidade em razão da modificação da
cidade. A gangue, para um universo significativo de jovens, apresenta-se
como um substituto para o que a sociedade lhes nega. Representa um
grupo em que são aceitos. Representa, pois, inserção, oportunidade e
objetivo comum, ainda que – e exatamente por isso – normas e valores da
gangue se contraponham às da macrossociedade. A prática de infrações
penais pelos membros da gangue, em termos ecológicos, é uma resposta
contida do meio ambiente para aqueles jovens ‘buscando sobreviver em
vizinhanças socialmente desorganizadas’ (FREITAS, 2002, p. 79).

Uma outra característica das gangues indicada por Trasher é de que ela
é a “manifestação de conflitos culturais entre os comportamentos de imigrantes
entre si, por um lado, e, pelo outro, entre essas diferentes comunidades e os
valores de uma sociedade americana pouco atenta a seus problemas – sobretudo
sua pobreza – e que continua estrangeira a eles” (COULON, 1995, p. 66). Por
isso muitas gangues são formadas por pessoas de diferentes nacionalidades, que
sentem-se igualmente em condições de dominação.

Muitas crianças iniciam-se nesses grupos, por vezes desenvolvendo a partir


disso, carreiras criminosas. O início das práticas é com atividades como “matar aula”,
o furto de pequenos itens de pouco valor, vandalismo, que tornam-se rotina desses
grupos e ensinam aos mais jovens comportamentos organizados e delinquentes.

Trasher identificou nas gangues delinquentes características idênticas


às encontradas em organizações formais, como, por exemplo, atividade
dirigida a objetivos, estratificação interna, exclusividade, lealdade
para com o grupo e estabilidade, o que autoriza que este tipo de
agrupamento possa ser reconhecido como uma organização complexa.
Logo, se a gangue de jovens pode apresentar tais características, é
razoável se concluir que as organizações criminosas integradas por
adultos também as possuam (FREITAS, 2002, p. 82).

As organizações criminosas não aparecem apenas nos estudos sobre as


gangues, mas em estudos específicos sobre o tema. Em 1924, a guerra das gangues
em Chicago estava em seu auge, e John Landesco publicou e entregou relatórios para
a Illinois Association for Criminal Justice, que encomendou uma vasta pesquisa sobre a
criminalidade – cuja finalidade era mostrar que havia uma relação entre a organização
social da cidade e o crime, e não uma falência da justiça. Durante sete anos, Landesco
investigou e descreveu a guerra entre gangues, já que tinha contatos entre muitas delas.
43
UNIDADE 1 | ESCOLA DE CHICAGO

DICAS

Para conhecer a descrição das guerras entre gangues


na cidade de Nova Iorque, a partir de histórias contadas pelos
seus próprios líderes, veja o documentário Rubble Kings, lançado
em 1979.

Outro tema que apareceu com frequência, relativo à criminalidade, foi a


delinquência urbana, especialmente juvenil.

Em 1929, Clifford Shaw, Frederic Zorbaugh, Henry McKay e


Leonard Cottrell publicaram uma obra sobre a delinquência urbana
em que, recenseando os domicílios de cerca de 60 mil “vagabundos,
criminosos e delinquentes” de Chicago, mostravam que as taxas de
criminalidade e de delinquência eram variáveis de um bairro para
outro. Os bairros mais próximos dos centros comerciais e industriais,
onde se concentrava a população de mais baixa renda, tinham as mais
altas taxas de criminalidade. Ao contrário, os bairros residenciais da
periferia da cidade, mais ricos, tinham taxas de delinquência muito
baixas (COULON, 1995, p. 74).

Seguindo a linha da criminologia, Shaw e McKay publicam anos depois


um novo estudo, mais amplo (não apenas tendo a cidade de Chicago como foco),
e buscando entender a ecologia da delinquência e do crime, a partir de novas
perguntas, como: 1) As variações das taxas de criminalidade são comparáveis de
uma cidade para outra? 2) Essas diferenças correspondem, em todos os casos, a
diferenças econômicas, sociais e culturais? 3) As taxas de natalidade e as de imigração
modificam as de criminalidade? 4) É possível a existência de tipos de tratamento da
criminalidade diferenciados, segundo as zonas urbanas? (COULON, 1995).

Os estudos indicaram a relação da criminalidade com a desorganização


social, do ponto de vista de estrutura física, inclusive. Nas regiões com maiores
taxas de delinquência, o desemprego e o suicídio eram altos, a população era mais
doente, a mortalidade infantil mais frequente etc. Mas havia também aspectos
culturais e econômicos que envolviam especialmente os grupos de imigrantes.

Em resumo, os autores indicam que para as análises sobre a criminalidade


é preciso levar em conta três fatores: a situação econômica, a mobilidade da
população e a heterogeneidade da composição da população. A pobreza, uma
grande mobilidade e uma grande heterogeneidade levam à ineficácia das
estruturas comunitárias e, por consequência, a um enfraquecimento do controle
social – que abre espaço para o crime (COULON, 1995).

Para finalizar este subtópico, vamos conhecer um pouco mais sobre o


estudo direcionado à investigação da vida dos ladrões.
44
TÓPICO 3 | OS DESDOBRAMENTOS DOS ESTUDOS DA ESCOLA DE CHICAGO PARA A SOCIOLOGIA

Em 1937, Edwin Sutherland publicou um estudo dedicado aos ladrões


profissionais. Tal como se vê pelo próprio subtítulo (segundo o relato de um
ladrão de profissão), o estudo baseava-se no relato autobiográfico de um
ladrão que exercera o ofício por mais de 20 anos.
[...]
Ao descrever o mundo dos ladrões e as técnicas que estes utilizavam
em sua “profissão”, ao evocar a repressão de que eram objeto, mas também os
favores de que se podiam beneficiar, Sutherland traçava ao mesmo tempo um
quadro da ordem social em cujo seio essa “profissão” podia desenvolver-se.
Evocava assim, por exemplo, as propinas pagas pelos ladrões aos advogados,
banqueiros, policiais e, às vezes, aos juízes.
[...]
Para Sutherland, seu livro era interessante por cinco razões:

1- Dava conhecer à burguesia um meio social que esta ignorava.


2- Permitia estudar o quadro e as características do grupo social dos ladrões.
3- Contribuía para a sociologia pondo em evidência o funcionamento das
instituições sociais e o relaxamento moral destas.
4- O estudo mostrava que os métodos punitivos e as reformas administrativas
são impotentes para estrangular a criminalidade.
5- Podia constituir-se em um ponto de partida para estudos ulteriores mais
aprofundados.

[...]
Sutherland, verdadeiro fundador da sociologia da delinquência,
considerava a criminalidade como, antes de mais nada, resultado de um
processo social. Segundo ele, a delinquência não é provocada por um
comportamento psicológico ou patológico; mesmo havendo, é claro, um
componente individual na criminalidade, a influência da organização social
e da herança cultural sobre o indivíduo são fatores determinantes. Segundo
Sutherland, não se nasce desviante ou delinquente, mas fica-se sendo por
“associação diferencial”, por aprendizagem, por se estar exposto a um meio
criminoso que considera como “natural” essa atividade e que impõe ao
indivíduo uma carga de significações sociais e de “definições da situação”: não
se é desviante ou delinquente por afinidade, mas por filiação, o que supõe uma
conversão do indivíduo, confrontado a vários mundos culturais diferentes e
conflitantes, que Sutherland chamou de “organizações sociais diferenciais”,
com integridade e funcionamento próprios. Essa ecologia da delinquência
elaborada em Chicago, especialmente por Sutherland, foi importante na
medida em que veio dar origem, 20 anos depois, às teorias modernas sobre
o desvio, em particular a labeling theory, que, mesmo ultrapassando as
orientações iniciais, apoiou-se sobre o conjunto desses trabalhos.

FONTE: Coulon (1995, p. 78)

45
UNIDADE 1 | ESCOLA DE CHICAGO

3 MÉTODOS DE PESQUISA EMPÍRICA


Uma das grandes contribuições da Escola de Chicago para os estudos
sociológicos mundiais foi o desenvolvimento de pesquisas de base empírica,
baseados no pragmatismo e formalismo que as influenciaram. A coleta de dados era
realizada das mais diversas formas, imprimindo um caráter prático e, muitas vezes,
intervencionista, nas pesquisas sociais. Buscava-se o conhecimento prático direto.

A chamada sociologia qualitativa foi utilizada pelos autores para a análise


de dados coletados via documentos pessoais como autobiografias, correspondência
particular, diários, relatos individuais; e também por trabalho de campo/estudo
de caso a partir de observação, entrevista, testemunho, observação participante.
Ainda incipiente houve o desenvolvimento de uma sociologia quantitativa, que
se expandiria anos mais tarde (COULON, 1995).

Coulon (1995) destaca os seguintes métodos utilizados nos estudos da


Escola de Chicago: documentos pessoais, trabalho de campo e fontes documentais.
Vamos nos basear em sua exposição para compreender cada um deles.

• Documentos pessoais

A obra que inaugurou o uso dessas fontes na sociologia foi The polish peasant
in Europe and in America, de Thomas e Znaniecki, cujo objetivo era descrever a vida
social dos camponeses poloneses em seu país de origem ou emigrados para os
Estados Unidos. Utilizaram para tal correspondências pessoais, autobiografias,
diários íntimos, testemunhos e relatos pessoais.

Esse tipo de abordagem levou em conta a subjetividade dos indivíduos,


aplicando assim o princípio do interacionismo. Com base nessas subjetividades
individuais, aplicando a sociologia científica, eles pretendiam construir tipos
ideais, orientados por Park:

Era esta a forma de investigação que Park exigia de seus alunos, e é


assim que se deve interpretar a sua estranha recomendação no sentido
de considerar a sociologia como uma “forma de jornalismo superior”,
quando, ao mesmo tempo, ele tomava muito cuidado em fazer da
sociologia uma atividade científica autêntica e objetiva. Este paradoxo e
mesmo esta contradição explica-se por uma dupla preocupação: por um
lado, a sociologia devia a si mesma a objetividade, a fim de libertar-se da
assistência social; por outro lado, poderia ser objetiva caso se apoiasse na
subjetividade dos agentes, cujos testemunhos deveriam ser recolhidos
à maneira de um jornalista, que Park fora por vários anos antes de se
tornar professor de sociologia em Chicago (COULON, 1995, p. 86).

Thomas buscou investigar como certos comportamentos dos imigrantes


poloneses em Chicago poderiam ser explicados pelos hábitos de seu país
de origem, pois na época eles eram tidos como incompreensíveis, já que ou
aceitavam passivamente as autoridades americanas, ou consideravam a liberdade
americana sem limites e travavam guerra contra a polícia. Para tanto, métodos

46
TÓPICO 3 | OS DESDOBRAMENTOS DOS ESTUDOS DA ESCOLA DE CHICAGO PARA A SOCIOLOGIA

como históricos de vida e cartas permitiam entender a sua maneira de definir


a situação, buscando o significado subjetivo atribuído pelos sujeitos as suas
próprias ações.

Essa pesquisa pode ter caráter monumental devido a um alto financiamento


que o autor conseguiu, e incluiu muitas viagens para a Europa para a coleta de
dados locais, enquanto Znaniecki trabalhava na coleta de dados dos emigrantes
em Chicago.

As cartas foram material de base para sua pesquisa etnográfica, cujo foco
eram as correspondências trocadas por famílias que moravam nos EUA com
os integrantes que permaneceram na Polônia. Os históricos de vida também
serviram como fonte, sendo solicitado a algumas pessoas que escrevessem sua
autobiografia, e cuja veracidade era verificada na comparação das cartas trocadas
com a Polônia, na época. Outros estudos, como o já mencionado trabalho de
Sutherland, que estudou a vida dos ladrões, também se utilizaram desses métodos.

É possível reconhecer o interacionismo (concepção que prioriza a


análise dos reflexos do mundo exterior no interior dos indivíduos) nesses usos
metodológicos, especialmente no uso das histórias de vida: “deve-se compreender
o que os indivíduos fazem acedendo, desde o interior, ao seu mundo particular,
e antes de mais nada descrever os mundos particulares dos indivíduos cujas
práticas sociais se quer entender e analisar” (COULON, 1995, p. 94).

Burgess destacou uma potencialidade do uso das histórias de vida como


coleta de dados: “a melhor garantia é a espontaneidade e a liberdade de tom da
pessoa que conta a sua história. Nisso reside a superioridade do histórico de vida
com relação às perguntas “secas” que um pesquisador pode fazer” (COULON, 1995,
p. 96). Ele destaca a importância disso nos casos de estudos sobre delinquência, em
que a mentira era recorrente no uso de técnicas como entrevistas.

• Trabalho de campo

A grande contribuição do trabalho de campo dos integrantes da Escola


de Chicago foi o que era chamado à época de observação participativa. Trazendo
para a contemporaneidade, dizemos que é a técnica da pesquisa participante.

Nesse sentido, Park orientava seus alunos a observarem, mas não


participarem, pois prezava por manter a objetividade da pesquisa científica e,
assim, consolidar uma sociologia cujo rigor metodológico lhe garantisse o caráter
de ciência. O distanciamento garantiria a atitude científica. Segundo ele era
preciso separar a sociologia, que explica as relações sociais, da assistência social
ou filantropia, que intervém nos problemas sociais. Mas como ambas estavam
difusas na época, os trabalhos de campo eram entendidos como observação
participante, até por conta do caráter intervencionista que muitas vezes ainda
estava presente.

47
UNIDADE 1 | ESCOLA DE CHICAGO

Algumas pesquisas utilizavam uma imersão total, em que o pesquisador


estava de maneira integral com a comunidade que estudava no momento, outras
apenas por tempo parcial – em que estava presente em apenas algumas situações.
A pesquisa do autor Anderson (apud COULON, 1995), por exemplo, sobre os
hobos (cowboys de fronteira) foi realizada a partir de entrevistas informais (nas
quais ele não se identificou como pesquisador) quando ele se hospedava nos
finais de semana em um hotel de um bairro que os hobos habitavam. Esse trabalho
foi publicado em 1923, sob orientação de Burgess.

A pesquisa de Anderson é representativa de um grande número das


que foram realizadas em Chicago, na medida em que ele conduziu
suas investigações sobre um mundo ao qual ele simplesmente tinha
acesso. Como ele próprio esclareceu, não assumiu o papel de hobo
para poder realizar sua pesquisa, ele próprio não era um hobo em
busca de trabalhos sazonais para sobreviver e que, por isso, tinha
de viajar por todo o país: foi seu encontro com os hobos, em uma
instituição de assistência social na qual trabalhava, que o levou a
realizar essa pesquisa, a qual acabou levando a uma descrição, sem
conceitualização sociológica, de um mundo de hobos em vias de
desaparição (ANDERSON apud COULON, 1995, p. 105).

Outra pesquisa que utilizou esse método foi realizada por Cressey,
publicada em 1929, e que estudou as taxi-dance halls, casas de danças nas quais os
homens pagavam para que mulheres dançassem com eles. Essas casas possuíam
dançarinas e clientes fixos ou esporádicos, e eram associadas muitas vezes a
uma fachada para a prostituição. Cressey notou que as entrevistas formais não
davam conta de muitos aspectos, especialmente em se tratando de atividades
ilícitas envolvendo sujeitos. Assim, valeu-se de observadores e informantes que
participavam das atividades como clientes, não revelando que eram pesquisadores.

A potencialidade desse método de coleta de dados, portanto, consistia


na gama de informações que os pesquisadores podiam observar no espaço
estudado, especialmente nas relações estabelecidas com indivíduos não como
pesquisadores, mas como parte daquele mundo.

• Fontes documentais

O uso de fontes documentais foi um dos marcos das pesquisas da Escola


de Chicago. Reuniram-se dados especialmente sobre a própria Chicago, que Park
utilizou em seus estudos sobre a cidade. Esse acervo foi constituído e ampliado,
por isso há sempre grande volume de dados nas pesquisas sobre Chicago.

“Na maior parte das pesquisas que marcaram a Escola de Chicago, vários
tipos de fonte documental seriam utilizados: arquivos históricos, os jornais
diários, os arquivos dos tribunais, os fichários das agências de assistência social e
de diversas organizações” (COULON, 1995, p. 117).

48
TÓPICO 3 | OS DESDOBRAMENTOS DOS ESTUDOS DA ESCOLA DE CHICAGO PARA A SOCIOLOGIA

Algumas pesquisas podem ser citadas como exemplos do volume de dados


que foi possível atingir com as pesquisas em função desse banco em constante
atualização: 1) Landesco, em 1929, catalogou dados de sete mil criminosos, a
partir do qual pôde entrevistar alguns selecionados, produzir mapas da violência,
entre outros materiais, que geraram um grande mapa do crime organizado; 2)
Wirth, em 1928, estudou o gueto judaico e adiantou o dado de 300 mil judeus
a partir de dados do recenseamento; 3) Reckless, em 1923, utilizou fontes como
fichários de tribunais e arquivos da Sociedade Histórica para investigar os bairros
tradicionalmente delinquentes em Chicago.

A utilização dessas formas de coleta de dados marcou as pesquisas da


Escola de Chicago e, por consequência, sua influência na sociologia mundial. As
pesquisas empíricas vieram à tona com força e tornaram-se a principal marca
dessa escola de autores.

4 ESTUDOS SOBRE IMIGRAÇÃO


Um dos interesses da Sociologia de Chicago foi direcionado às ondas
migratórias que ocorriam na época, nos Estados Unidos, e mesmo em Chicago.
Como pudemos ver até aqui, boa parte dos trabalhos direcionava-se aos fenômenos
urbanos que se relacionavam com a imigração. Os pesquisadores acreditavam que a
sociedade americana poderia assimilar este público e, portanto, buscaram interpretar
as relações existentes entre imigrantes e nativos – do ponto de vista sociológico.

Um dos conceitos presentes nas análises sobre a imigração foi apresentado


por Thomas e é o conceito de atitude. Para ele, a atitude é a subjetividade
individual que traz em si os valores sociais do grupo ao qual o sujeito pertence.

A atitude é o conjunto de ideias e emoções que se transforma em uma


disposição permanente em um indivíduo e lhe permite agir de maneira
estereotipada. Pode ser definida como o processo da consciência
individual que determina a atividade real ou potencial do indivíduo
no mundo social. A atitude é a contrapartida do indivíduo aos valores
sociais, e toda atividade humana estabelece um elo entre esses dois
elementos (COULON, 1995, p. 30).

Esse conceito permitiu uma oposição às ideias disseminadas na época que


defendiam a determinação biológica das diferenças raciais ou étnicas. A teoria
sociológica contribuiu para rejeitar o reducionismo biológico que atribuía o estado
mental de imigrantes a problemas fisiológicos, na medida em que ligou isso às
transformações sociais ocorridas em suas vidas cotidianas (COULON, 1995).

A partir disso, Thomas e Znaniecki seguem buscando entender os


impactos da desorganização social na vida dos imigrantes. Para tal, definem:

49
UNIDADE 1 | ESCOLA DE CHICAGO

Uma organização social é um conjunto de convenções, atitudes e


valores que se impõem aos interesses individuais de um grupo social.
Ao contrário, a desorganização social, que corresponde a um declínio
da influência dos grupos sociais sobre os indivíduos, manifesta-se por
um enfraquecimento dos valores coletivos e por um crescimento e uma
valorização das práticas individuais. A desorganização existe quando
atitudes individuais não encontram satisfação nas instituições, vistas
como ultrapassadas, do grupo primário (COULON, 1995, p. 34).

Essa desorganização era observada pelos pesquisadores na Polônia, na


época, o que provocou grande imigração para os Estados Unidos. Aqui, esses grupos
tentam se reorganizar, não necessariamente assimilando-se totalmente ao grupo que
os acolhe, pois é possível que elementos culturais do grupo original sejam mantidos.
Muitas vezes essa desorganização social conduz ao chamado desvio.

Para Thomas, a reorganização passa pela assimilação, que é desejável


e inevitável, para que haja uma memória comum entre nativos e imigrantes
(COULON, 1995). Assim, ele indicava que os americanos se familiarizassem com
a cultura dos imigrantes, e que os imigrantes aprendessem a língua local, história,
ideais e valores da sociedade nas quais ingressavam.

Park também estudou a desorganização e reorganização social e contribuiu


desenvolvendo um ciclo entre as relações de imigrantes e nativos, cujas etapas
seriam: rivalidade, conflito, adaptação e assimilação.

1- A rivalidade é a forma mais elementar de interação, é universal e


fundamental. A rivalidade é a interação sem o contato social. Caracteriza-
se pela ausência de contato social entre os indivíduos, fator que favorece
o surgimento do conflito, da adaptação e da assimilação, etapas que, ao
contrário da rivalidade, estão ligadas ao controle social. Durante esta
primeira etapa, que acarreta uma nova divisão do trabalho, as relações
sociais são reduzidas a uma coexistência baseada nas relações econômicas,
decisivas na transformação social: a rivalidade é o processo que organiza a
sociedade. Ela determina a repartição geográfica da sociedade e a distribuição
do trabalho. A divisão do trabalho, assim como a vasta interdependência
econômica entre indivíduos e grupos de indivíduos, tão características da
vida moderna, são produtos da rivalidade. Por outro lado, a ordem moral e
política, que se impõe a esta organização competitiva, é produto do conflito,
da adaptação e da assimilação.
2- A segunda etapa é o conflito, que é inevitável quando populações diferentes
são postas em presença. O conflito manifesta uma tomada de consciência,
pelos indivíduos, da rivalidade a que estão submetidos. Enquanto a
rivalidade é inconsciente e impessoal, o conflito, ao contrário, é sempre
consciente e envolve profundamente o indivíduo. É um processo que
sempre acompanha a instalação dos indivíduos em seu novo ambiente: de
um modo geral, pode-se dizer que a rivalidade determina a posição de um

50
TÓPICO 3 | OS DESDOBRAMENTOS DOS ESTUDOS DA ESCOLA DE CHICAGO PARA A SOCIOLOGIA

indivíduo na comunidade; o conflito atribui-lhe um lugar na sociedade.


Trata-se de uma etapa decisiva, na medida em que cria uma solidariedade
no seio da minoria, que entra assim na ordem do político.
3- A adaptação pode ser considerada, tal como a conversão religiosa, como
uma espécie de mutação. Ela representa o esforço que os indivíduos e grupos
devem fazer para ajustar-se às situações sociais criadas pela rivalidade e pelo
conflito. Desse modo, as gangues da fase precedente tornam-se clubes na
adaptação. A adaptação é um fenômeno social relativo à cultura em geral,
aos hábitos sociais e à técnica veiculada por um grupo. Durante esta fase, há
uma coexistência entre grupos que continuam rivais em potencial, mas que
aceitam suas diferenças. As relações sociais são organizadas com o fim de
reduzir os conflitos, controlar a rivalidade e manter a segurança das pessoas.
4- A última etapa, que segundo Park é uma sequência natural da adaptação, é a
assimilação, durante a qual as diferenças entre os grupos são diluídas, e seus
respectivos valores misturados. Os contatos multiplicam-se e tornam-se mais
íntimos, a personalidade do indivíduo transforma-se: há interpenetração e
fusão, ao longo das quais os indivíduos adquirem memória, os sentimentos
e as atitudes do outro e, ao compartilhar sua experiência e sua história,
integram-se em uma vida cultural comum. A assimilação é um fenômeno
de grupo, no qual as organizações de defesa da cultura dos imigrantes, por
exemplo, ou os jornais de língua estrangeira têm um papel determinante.
Portanto, é preciso estimular o desenvolvimento em vez de combatê-los.

FONTE: Coulon (1995, p. 44)

Cada uma dessas etapas, ou processos sociais, correspondem a uma


ordem social na estrutura social, segundo Park:

FIGURA 13 – CORRESPONDÊNCIA PROCESSO SOCIAL X ORDEM SOCIAL, SEGUNDO PARK

Processo social Ordem social


Rivalidade Equilíbrio econômico
Conflito Ordem política
Adaptação Organização social
Assimilação Personalidade e herança cultural

FONTE: Coulon (1995, p. 45)

Park, ao estudar a assimilação, indica que apenas a aceitação comum a


diferentes grupos étnicos não é o suficiente para a manutenção da ordem social,
já que é preciso uma homogeneidade étnica para que haja unidade nacional. A
assimilação de grupos étnicos para ele seria baseada na adoção de uma língua
única e em tradições e técnicas compartilhadas (COULON, 1995).

51
UNIDADE 1 | ESCOLA DE CHICAGO

Os preconceitos raciais encontrados entre esses grupos, para Park,


surgem na desigualdade econômica. Os imigrantes aceitando empregos menos
remunerados tornam-se hostilizados pelos nativos. O que ele entende como
sendo a maneira de reduzir essas questões é a educação, mas uma educação
americanizada, que inculque a língua e a cultura norte-americana. Segundo Park,
seria isso que permitiria um futuro sem conflito para o imigrante.

Mas essa é apenas uma visão, existiram outras formas de pensar as relações
entre imigrantes e nativos, e uma série de pesquisas realizadas por outros autores
da Escola de Chicago sobre o tema – no entanto, nosso espaço não permite esgotar
o tema, portanto, veja a sugestão a seguir.

DICAS

A imigração estudada pela Escola de Chicago pode ser estudada por meio do
artigo disponível em: https://bdtd.ucb.br/index.php/esf/article/view/5130.
A referência é: ZANFORLIN, Sofia Cavalcanti. Migração e Escola de Chicago: caminhos para
uma comunicação intercultural. Esferas, v. 1, n. 3, 2013.

Cabe finalizar este subtópico mencionando os aspectos históricos que


levaram ao encerramento das atividades na Escola de Chicago, essencialmente
definidos pela ascensão da pesquisa quantitativa na universidade. Alguns alunos
do Departamento de Sociologia passaram a estudar estatística e a englobar
métodos quantitativos em suas análises.

Mas a partir de 1940, esses métodos ganham destaque por conta de


pesquisas financiadas pelo exército norte-americano e passam a dominar a
sociologia americana. Autores como Robert Merton e Paul Lazarsfeld ganharam
notoriedade em suas pesquisas, de base funcionalista, nas Universidades de
Columbia e Harvard.

As publicações com base em análises estatísticas passaram a dominar o


campo científico, o que coincidiu com os fatos: Burgess aposentou-se em 1951,
Wirth faleceu em 1952, e Blumer foi para a Universidade da Califórnia. Assim,
a segunda geração da Escola de Chicago extingue-se, mas não seu legado
para a sociologia mundial, que permanece sendo revisitado pelos autores
contemporâneos com frequência.

52
TÓPICO 3 | OS DESDOBRAMENTOS DOS ESTUDOS DA ESCOLA DE CHICAGO PARA A SOCIOLOGIA

LEITURA COMPLEMENTAR

A ESCOLA DE CHICAGO – CONFERÊNCIA DE HOWARD BECKER

Falarei hoje a respeito da Escola de Chicago, mais conhecida por seu nome
do que pelo conteúdo do que efetivamente fez. Mas quero abordar este tema
como uma pequena história dentro de uma história mais ampla da sociologia.
Geralmente conta-se a história da sociologia como a história das grandes ideias
sobre a sociedade e das grandes teorias a respeito da sociedade. Quando estudei
esse assunto, ainda na universidade, meu professor, Louis Wirth, começava por
Heráclito e Tucídides, ou seja, pelos antigos gregos. Outros, mais modestos,
começavam por Maquiavel ou mesmo Khaldun. No entanto, esse é um tipo de
apropriação do passado que não tem muito a ver com a realidade. Poderíamos
apenas dizer, desse ponto de vista, que a história da sociologia, como história
das ideias e teorias, começou, talvez, em algum momento do século XIX. Nomes
como os de Durkheim, Marx, Weber e outros são, de fato, nomes do século XX e
do final do XIX.

Há, contudo, pelo menos duas outras histórias da sociologia que precisam
ser contadas, o que deve ocorrer simultaneamente com a história das ideias.
Uma delas é a história da prática da sociologia, dos métodos de pesquisa e das
pesquisas realizadas, porque não se deve tomar como óbvio que as ideias foram
as forças motrizes ou a principal realização de qualquer escola sociológica. De um
determinado ponto de vista, que defendo com firmeza, a história da sociologia
não é a história da grande teoria, mas a dos grandes trabalhos de pesquisa, dos
grandes estudos sobre a sociedade. A terceira história da sociologia é a das
instituições e organizações, dos locais onde o trabalho sociológico foi realizado,
porque nenhuma ideia existe por si mesma, em um vácuo; as ideias só existem
porque são levadas adiante por pessoas que trabalham em organizações que
perpetuam essas ideias e as mantêm vivas.

[...]

Quanto a isso, eu gostaria de fazer duas distinções. A primeira é sobre


o que se costuma dizer a respeito da Escola de Chicago. A palavra escola gera
muita confusão, porque é possível distinguir pelos menos dois tipos de escola.
Recorro aqui ao trabalho de um estudante da Northwestern University, Samuel
Guillemard, que estudou os compositores contemporâneos e fez essa distinção.
De um lado, temos as chamadas escolas de pensamento e, de outro, as escolas
de atividade. Uma escola de pensamento, na terminologia de Guillemard,
consiste em um grupo de pessoas que têm em comum o fato de que outras
pessoas consideram seu pensamento semelhante; é possível que nunca tenham
se encontrado, mas o que caracteriza uma escola de pensamento é que alguém,
geralmente muitos anos mais tarde, decide que essas pessoas estavam fazendo a
mesma coisa, pensando da mesma maneira, que suas ideias eram semelhantes. É
muito comum na história das ideias definir escolas de pensamento dessa maneira,

53
UNIDADE 1 | ESCOLA DE CHICAGO

frequentemente em relação às circunstâncias históricas em que esse pensamento


se formou. Uma escola de atividade, por outro lado, consiste em um grupo de
pessoas que trabalham em conjunto, não sendo necessário que os membros
da escola de atividade compartilhem a mesma teoria; eles apenas têm de estar
dispostos a trabalhar juntos. Certas ideias vigentes na Universidade de Chicago
eram compartilhadas pela maioria das pessoas, mas não por todas; certamente
não era preciso que todos concordassem com essas ideias para se engajarem nas
atividades que realizavam.

Gostaria agora de introduzir outro importante personagem, Robert E.


Park, que era uma pessoa muito interessante. Ele e Thomas foram, sem dúvida, os
membros mais influentes e autorizados do grupo que organizou as atividades do
Departamento e as manteve de pé. Park nasceu em Omaha, Nebraska, no centro
dos Estados Unidos e fazia parte de uma família de ricos comerciantes. Estudou, se
não me engano, na Harvard University e depois foi para Heidelberg, onde estudou
com Simmel. Logo nos primeiros anos deste século, voltou de Heidelberg com
um doutorado cuja tese era um ensaio sobre as massas e o público como formas
diferentes de organizar a sociedade de larga escala. De volta a Harvard, lecionou
filosofia durante alguns anos. Todavia, Park parece não ter gostado muito da vida
acadêmica, ingressando, então, no jornalismo. Primeiro foi repórter, depois editor
de vários jornais americanos, chegando a ser editor-chefe do Free Press de Detroit, o
mais influente jornal da cidade. Trabalhou durante anos nessa profissão, tornando-
se, posteriormente, ghost writer dos mais famosos líderes negros da época, como
Booker T. Washington, famoso educador. Park escreveu ensaios e livros para
Washington, inclusive seu livro mais conhecido, The Man Farthest Down. Mais
tarde, foi secretário executivo da Organização para a Libertação do Congo Belga.
Ele teve, pois, uma vida muito ativa e movimentada. Escreveu e publicou alguns
ensaios com seu próprio nome, não em revistas de ciências sociais, mas naquelas
de opinião que tratavam de questões sociais. Foi desse modo que chamou a atenção
de Thomas, que, ao conhecê-lo, sugeriu que ele talvez se interessasse em ensinar
sociologia na Universidade de Chicago e lhe ofereceu um cargo por um ano. Há
uma história engraçada sobre Park: ele era um homem rico, como já disse, mas
se vestia muito mal quando chegou a Chicago. Usava um terno velho e Thomas
achou que ele não tinha a aparência adequada para um professor. Assim, Thomas
levou Park até a cidade e comprou-lhe dois ternos. Park costumava contar essa
história como uma piada, dizendo que nunca contou a Thomas que bem poderia
ter comprado os ternos com seu próprio dinheiro!

Ao chegar a Chicago, Park mostrou-se uma pessoa muito dinâmica,


organizando quase toda a Universidade, pelo menos na área de ciências sociais.
Parecia que ele vinha pensando há anos no tipo de trabalho que precisava ser
feito. Logo em seus primeiros tempos em Chicago, Park escreveu um ensaio sobre
a cidade, encarando-a como um laboratório para a investigação da vida social.
Ele tinha uma ideia central sobre a história do mundo naquela época, sobre o que
estava ocorrendo, ideia que resumiu ao dizer: "hoje, o mundo inteiro ou vive na
cidade ou está a caminho da cidade; então, se estudarmos as cidades, poderemos
compreender o que se passa no mundo". Assim, Park organizou seus alunos para

54
TÓPICO 3 | OS DESDOBRAMENTOS DOS ESTUDOS DA ESCOLA DE CHICAGO PARA A SOCIOLOGIA

esse empreendimento. O ensaio que resultou desse trabalho é muito interessante:


consiste em uma série de tópicos, quase todos constituídos de perguntas cujas
respostas se desejava conhecer e que só podiam ser encontradas por meio da
pesquisa empírica. Cada uma dessas questões poderia, por si mesma, servir de
base para toda uma subárea de pesquisa sociológica – aliás, muitas se tornaram
exatamente isso. Por exemplo, uma delas, que muito me impressionou, observava
que "na cidade, todos os tipos de trabalho tendem a se tornar uma profissão, quer
dizer, a ser extremamente organizados, a incluir posições socialmente definidas,
a ter regras de conduta que regulam o trabalho nessa ocupação". Park cita
especificamente a mendicância como uma forma de trabalho muito organizada
nas cidades, resumindo sua posição ao sustentar que "é muito importante e
interessante conhecer a maneira como todos os trabalhos são organizados na
cidade segundo esse modelo". É claro que, em certo sentido, isso se relaciona com
o pensamento de Durkheim exposto em Da Divisão do Trabalho Social, e Park
tinha consciência dessa ligação.

Sob a orientação de Park, duas ou três gerações de cientistas sociais se


formaram e iniciaram sua vida profissional. Ele não teve influência apenas sobre
a sociologia: os historiadores, por exemplo, começaram a estudar a história de
Chicago; os cientistas políticos, as organizações políticas da cidade e a natureza
da máquina política local – um importante estudo sobre os políticos negros em
Chicago foi elaborado; os economistas voltaram sua atenção para a economia da
cidade. Quando Park chegou, o Departamento era de sociologia e antropologia,
de modo que muitos antropólogos de sua geração receberam sua influência,
particularmente Robert Redfield, conhecido por seu trabalho sobre a cultura
folk e as sociedades camponesas. De certa forma, o trabalho de Redfield derivou
diretamente da maneira como Park entendia a relação entre a cidade e o campo.

Há uma longa lista de pessoas que estudaram com Park e participaram


desse trabalho de pesquisa, e eu gostaria de mencionar algumas delas. Nessa
época, eles adicionaram à infraestrutura institucional da sociologia a University
of Chicago Press, uma editora que, sob a direção de Park, publicou uma série de
estudos na área. Muitos dos ensaios mais interessantes de Park foram publicados
como introduções aos livros da série e vários desses livros eram dissertações dos
alunos. Destaco, em primeiro lugar, um nome que estou certo ser bem conhecido
aqui, o de Donald Pierson, que estudou as relações raciais no Brasil a partir,
penso, da leitura do ensaio de Park sobre o homem marginal. Pierson veio para
o Brasil, escreveu um livro muito conhecido e ficou muitos anos orientando
pesquisas em São Paulo.

Acredito ser correto afirmar que cada aluno de Park absorveu uma de
suas ideias e levou-a adiante. O pensamento de Park sobre as relações sociais foi
desenvolvido por autores como Pierson e Wirth, que também se interessou muito
pela teoria do urbanismo e pelo estudo das sociedades urbanas. Um dos temas
considerados mais importantes naquele tempo era o da delinquência juvenil,
que afetava especialmente os filhos dos grupos de imigrantes de Chicago, que
não eram criados da maneira que a população dominante da cidade considerava

55
UNIDADE 1 | ESCOLA DE CHICAGO

apropriada. Muitos deles praticavam pequenos delitos e isso era tido como um
grande problema. A questão era considerada, em parte, como um problema de
reforma: o que vamos fazer com essas crianças? De outro lado, era tida como um
problema de teoria sociológica. Dizia-se que, se concordarmos que a sociedade é
criada por pessoas socializadas e treinadas nas atividades que a farão se mover
– esse conhecido processo circular –, então o fracasso da sociedade em socializar
adequadamente muitas crianças pode ser um presságio de terríveis problemas
que ocorrerão, assim como um índice daqueles que já existem. Alguns alunos
de Park, como Frederic Thrascher, puseram-se a estudar essa questão. Thrascher
escreveu um livro intitulado The Gang, que traz um subtítulo encantador: A Study
of 1,313 Gangs. Não sei como ele conseguiu contar todas essas gangues!

Dois outros alunos de Park, Clifford Shaw e Henry MacKay, iniciaram


uma série de pesquisas de grande porte sobre a delinquência juvenil, cujos traços
centrais eu gostaria de ressaltar. Uma das características do pensamento de Park
– e isso se aplica à Escola de Chicago como um todo – era não ser puramente
qualitativo ou quantitativo. Park era muito eclético em termos de método. Se
achasse que era possível mensurar alguma coisa, ótimo, se não o fosse, ótimo
também. Havia ainda outras maneiras de fazer essas pesquisas. Em certo
momento, ele defendeu a ideia de que o espaço físico espelhava o espaço social,
de modo que se se pudesse medir a distância física entre populações, se saberia
algo sobre a distância social entre elas. É uma metáfora interessante, que levou
ao desenvolvimento de uma área chamada ecologia, não no sentido que usamos
hoje, de preservação do meio ambiente, mas a noção de ecologia na forma usada
pela biologia vegetal daquela época, e que se referia à competição pelo espaço.
Em outras palavras, os biólogos, que estudavam a biologia no mundo e não em
laboratório, estavam muito interessados na concepção darwinista da maneira
como diferentes tipos de animais e plantas ocupavam o território, o espaço físico.
Park considerou que essa ideia podia ser uma excelente metáfora e mandou seus
alunos estudarem o modo como distintos grupos se localizavam na cidade de
Chicago. Naquela época, um aspecto típico das pesquisas era a confecção de
mapas, onde se situavam os diferentes tipos de população, grupos étnicos, raças,
espécies de atividades: em que lugar da cidade, por exemplo, se concentravam as
atividades criminosas? Como explicar esse fato?

A partir dessas questões, Park elaborou noções como a de região moral, a


área da cidade onde uma população se separava das demais. Uma característica
do desenvolvimento das cidades americanas – creio que as cidades sul-
americanas são muito diferentes nesse sentido – sempre foi a ocupação sucessiva
de determinadas áreas por diferentes grupos étnicos, de modo que aquela parte
da cidade se torna ponto de atração dos grupos étnicos de imigração mais recente.
Em uma cidade como Chicago, isso significa que, primeiro vieram os imigrantes
irlandeses, depois os suecos, os alemães e os judeus da Europa Oriental. Cada
um desses grupos, em épocas distintas, sofria a influência dos acontecimentos
em sua terra natal. Houve um certo afluxo de imigração alemã por volta de 1848,
quando se agravou a repressão na Rússia – foi aí que chegou uma grande leva
de imigrantes judeus; depois foram os italianos, os poloneses etc. E era possível

56
TÓPICO 3 | OS DESDOBRAMENTOS DOS ESTUDOS DA ESCOLA DE CHICAGO PARA A SOCIOLOGIA

acompanhar essa sequência por meio dos dados censitários, demonstrando como
as características de uma determinada área da cidade mudavam de ano para ano,
ou a cada dez anos. Outra pesquisa muito importante foi realizada por Robert
Farisson e Warren Danum, que estudaram a incidência e a localização da doença
mental na cidade. A pesquisa mostrou que havia um grande número de doentes
mentais em determinadas áreas da cidade, embora a população dessas áreas se
alterasse de modo significativo.

Outra estratégia de pesquisa, ainda que no contexto de estudos


quantitativos, era qualitativa. Muitos alunos de Park passavam um bom
tempo fazendo pesquisas de natureza quase antropológica em áreas da cidade,
abordando certos fenômenos da mesma. Um dos livros mais famosos nessa linha,
ainda hoje publicado e lido, chama-se The Gold Coast and the Slum, que analisa uma
área próxima ao centro de Chicago onde ficavam as casas mais ricas e alguns dos
piores casebres de toda a cidade. Harvey Zorbaugh pesquisou essa área. Aliás,
não tenho nenhuma dúvida de que um dos resultados de todo esse movimento é
que Chicago passou a ser a cidade mais pesquisada do mundo e provavelmente
o será sempre. Por um bom tempo, estudar sociologia nos Estados Unidos era
estudar a cidade de Chicago. C. Wright Mills, por exemplo, quando estudante
universitário nos anos 30, frequentou a Universidade do Texas, em Austin. Sua
família era de uma pequena cidade texana chamada Waco. Ele nunca tinha saído
do Texas e seu biógrafo, Irving Horowitz, procurou investigar os cursos que Mills
frequentou e os livros que leu para esses cursos, descobrindo que o conhecimento
de sociologia de Mills – porque seu professor tinha sido aluno de Park – consistia
quase inteiramente em estudos sobre Chicago. Foi isso que ele estudou e era isso
que todo mundo estudava quando cursava sociologia na época.

FONTE: BECKER, H. A escola de Chicago. Mana, Rio de Janeiro, v. 2, n. 2, p. 177-188, out. 1996.

57
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você aprendeu que:

• Uma das grandes contribuições da Escola de Chicago diz respeito aos estudos
que envolvem o fenômeno da criminalidade. A partir do estudo específico
desta cidade, cuja criminalidade estava associada a conflitos frequentes entre
grupos de imigrantes, os autores desenvolveram um arcabouço teórico e
metodológico.

• Destacaram-se estudos sobre: gangues, organizações criminosas, delinquência


urbana e juvenil, e ladrões.

• Outra grande contribuição da Escola de Chicago para os estudos sociológicos


mundiais foi o desenvolvimento de pesquisas de forte base empírica, baseados
no pragmatismo e formalismo que as influenciaram.

• Destacam-se os seguintes métodos utilizados nos estudos da Escola de Chicago:


documentos pessoais, trabalho de campo e fontes documentais.

• Boa parte dos trabalhos direcionava-se aos fenômenos urbanos que se


relacionavam com a imigração. Os pesquisadores acreditavam que a sociedade
americana poderia assimilar este público e, portanto, buscaram interpretar as
relações existentes entre imigrantes e nativos – do ponto de vista sociológico.

CHAMADA

Ficou alguma dúvida? Construímos uma trilha de aprendizagem


pensando em facilitar sua compreensão. Acesse o QR Code, que levará ao
AVA, e veja as novidades que preparamos para seu estudo.

58
AUTOATIVIDADE

1 A chamada sociologia qualitativa foi utilizada pelos autores da Escola de


Chicago para a análise de dados coletados via diferentes metodologias,
de forte caráter empírico. Sobre essas metodologias, analise as seguintes
sentenças:

I- O uso de documentos pessoais levou em conta a subjetividade dos


indivíduos, com a finalidade de construir tipos ideais.
II- Park defendia que a observação participante deveria levar a intervenções
sociais no objeto de pesquisa.
III- A observação participante poderia ser de imersão total ou de imersão
parcial, a depender da pesquisa.
IV- Algumas fontes documentais utilizadas pelas pesquisas foram arquivos
históricos, jornais diários e arquivos dos tribunais.

Assinale a alternativa CORRETA:


a) ( ) Somente as sentenças I e II estão corretas.
b) ( ) Somente as sentenças III e IV estão corretas.
c) ( ) As sentenças I, II e IV estão corretas.
d) ( ) As sentenças I, III e IV estão corretas.

2 Duas temáticas importantes nas pesquisas da Escola de Chicago foram


a criminalidade e a imigração. Sobre esses estudos, analise as seguintes
sentenças:

I- As gangues são formadas por grupos de adolescentes, geralmente filhos


de imigrantes, que ocupam as zonas mais pobres da cidade, e se encontram
regularmente para alguma prática – inclusive infrações e crimes.
II- Os estudos indicaram que a criminalidade não possui relação com a
desorganização social, e sim com a individualidade dos sujeitos.
III- Park estudou a desorganização e reorganização social e contribuiu
desenvolvendo um ciclo entre as relações de imigrantes e nativos, cujas
etapas seriam: rivalidade, conflito, adaptação e assimilação.

Assinale a alternativa CORRETA:


a) ( ) Somente a sentença I está correta.
b) ( ) Somente a sentença II está correta.
c) ( ) As sentenças I e III estão corretas.
d) ( ) As sentenças II e III estão corretas.

59
60
UNIDADE 2

ESCOLA DE FRANKFURT

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• situar as características e os principais aspectos das bases teóricas e


metodológicas do pensamento sociológico desenvolvido na Escola de
Frankfurt;

• examinar as principais contribuições das pesquisas desenvolvidas na


Escola de Frankfurt;

• sistematizar os conceitos e metodologias utilizados na Escola de Frankfurt;

• analisar os desdobramentos das pesquisas desenvolvidas na Escola de


Frankfurt, cuja influência persiste nas interpretações contemporâneas da
Sociologia.

PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade de estudo está dividida em três tópicos. No decorrer da
unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o
conteúdo apresentado.

TÓPICO 1 – A SOCIOLOGIA DA ESCOLA DE FRANKFURT

TÓPICO 2 – CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLOGIA ALEMÃ PARA A


COMPREENSÃO DA SOCIEDADE

TÓPICO 3 – OS DESDOBRAMENTOS DOS ESTUDOS DA ESCOLA DE


FRANKFURT PARA A SOCIOLOGIA

CHAMADA

Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos


em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá
melhor as informações.

61
62
UNIDADE 2
TÓPICO 1

A SOCIOLOGIA DA ESCOLA DE
FRANKFURT

1 INTRODUÇÃO
Assim como vimos na unidade anterior, com a relação existente entre a
Sociologia Americana e a Escola de Chicago é possível estabelecer o alinhamento
entre a Sociologia Alemã e a Escola de Frankfurt. Os autores alemães que compõem
a Escola de Frankfurt vincularam-se ao Instituto de Pesquisa Social – situado em
Frankfurt, daí o nome atribuído a esse conjunto de pensadores. Como veremos,
em função de condições históricas, o exílio ocorreu para parte deles – o que fez
com que a sede do Instituto mudasse acompanhando seus diretores, retornando
posteriormente à Alemanha.

Ao falarmos de sociologia alemã, portanto, nos remetemos à Escola


de Frankfurt – cujas demandas teóricas e metodológicas contribuíram para a
consolidação da pesquisa sociológica como campo científico – especialmente a
partir da discussão teórica sobre o uso da chamada Teoria Crítica.

De início, conheceremos aspectos gerais sobre a Escola de Frankfurt,


especialmente sobre sua formação como escola, consolidação e aspectos gerais
das discussões teórico-metodológicas. Estas foram a fundamentação de estudos
sobre comunicação, indústria cultural, artes, autoridade, tipos de racionalidade,
ação social, entre outros. O conjunto de temas presente nas pesquisas dos
frankfurtianos é bastante amplo.

Para entender esses aspectos fundamentais faremos o seguinte traçado:


iniciaremos pelas dimensões históricas (surgimento do Instituto de Pesquisas
Sociais, desenvolvimento e percurso histórico dos autores); seguimos pelas
dimensões filosóficas (a Filosofia esteve muito presente como fundamento para
as obras de Frankfurt, especialmente nas definições de Teoria Tradicional e Teoria
Crítica); e fechamos com as dimensões metodológicas (consolidação da sociologia
crítica como metodologia do campo sociológico e sua aplicabilidade).

Atente-se aos UNIs, presentes ao longo do texto, os quais apresentam


destaques importantes e sugestões de material para aprofundamento de suas leituras.
Assim como na Escola de Chicago, a Escola de Frankfurt também desenvolveu
muitos estudos na forma de dissertações e teses, portanto, quando alguma menção
lhe chamar a atenção, não hesite em buscar este material para leitura.

Vamos começar? Bons estudos!

63
UNIDADE 2 | ESCOLA DE FRANKFURT

2 DIMENSÕES HISTÓRICAS
Se existe um consenso entre os intérpretes das obras da Escola de Frankfurt,
este é o consenso de que as condições históricas vivenciadas pelos autores que
dela fizeram parte foram cruciais para o seu desenvolvimento.

As obras refletem os fenômenos do contexto, e as biografias dos


autores frankfurtianos deixam claras as relações com os momentos históricos –
especialmente nas situações de exílio vivenciadas por essas pessoas. Assim, é
fundamental iniciar nossos estudos com o traçado histórico da Escola, bem como
seus fundamentos e influências filosóficas.

Matos (1993) estabelece uma síntese do trabalho intelectual desenvolvido


na Escola de Frankfurt, traçando suas principais linhas. Ela indica o surgimento
da Escola de Frankfurt datado de 1923, em Frankfurt, buscando uma crítica
radical do tempo que se vivia – e que uniu em torno desse objetivo intelectual de
diferentes influências teóricas.

Max Horkheimer, Theodor W. Adorno, Herbert Marcuse, Walter


Benjamin, Leo Lowenthal, Franz Neumann, Erich Fromm, Otto Kirchkeimer,
Friedrick Pollock e Karl Wittfogel foram alguns dos pensadores que participaram
do círculo frankfurtiano.

O principal objetivo desses autores era:

De diferentes maneiras, traduziram a desilusão de grande parte dos


intelectuais com respeito às transformações do mundo contemporâneo,
seu ceticismo quanto aos resultados do engajamento político
revolucionário, mas também o desejo de autonomia e de independência
do pensamento. Essa é a razão pela qual será indispensável uma
interrogação acerca do movimento revolucionário e sua “arma teórica”,
o marxismo, em particular no que concerne à teoria e à prática do
movimento operário alemão depois da Primeira Guerra Mundial e do
desmoronamento do regime imperial (MATOS, 1993, p. 5).

A revolução social e política tornavam-se menos utópica e mais uma


realidade a ser buscada a partir dos acontecimentos históricos: Revolução Russa
de 1917, proclamação da república na Alemanha Guilhermina em novembro de
1918 e a insurreição em Bremen, de 1923. Também na Polônia, França e Itália
ocorriam nesse período lutas sociais com os operários à frente da busca pela
mudança da ordem social.

No entanto, esse contexto mudou com a ascensão de regimes conservadores:

64
TÓPICO 1 | A SOCIOLOGIA DA ESCOLA DE FRANKFURT

Logo após a Primeira Guerra Mundial, os movimentos de direita


começaram a se organizar na Alemanha, ao mesmo tempo em que as
forças de esquerda, inspiradas pela vitória da Revolução Bolchevique
na Rússia, passaram a ameaçar de perto o poder do grande capital na
Alemanha. Em 1933, porém, a direita, concentrada no Partido Nacional
Socialista, deu a vitória a Hitler em eleição direta, o que abriu caminho
para a perseguição e destruição das organizações dos trabalhadores e
de seus partidos representativos. A ascensão do nazismo, a Segunda
Guerra, o “milagre econômico” no pós-guerra e o stalinismo foram os
fatores que marcaram a Teoria Crítica da Sociedade, tal como esta se
desenvolveu dos anos 20 até meados dos anos 70 (MATOS, 1993, p. 5).

As análises que buscavam compreender a vitória do nazismo e a derrota


das ações revolucionárias eram tidas como rasas e simplórias por autores como
Horkheimer, Adorno, Benjamin e Marcuse, que não se satisfizeram com elas e se
vincularam ao movimento intelectual da Escola de Frankfurt, nascido oficialmente
com a criação de Instituto para a Pesquisa Social, em Frankfurt (1923). Algumas
abordagens apresentadas na época eram, segundo Matos (1993, p. 5):

Economistas viam na inflação crescente e na ausência de um mercado


para exportação as origens do expansionismo alemão. Para os
historiadores, a origem do militarismo estava na humilhação sofrida
com a derrota alemã na Primeira Guerra; e o não-pagamento das
dívidas de guerra seria uma revanche pela perda da Alsácia e Lorena
para a França e pela proibição de a Alemanha manter um exército.
Outros, ainda, viam na tradição que formou o Estado Alemão a fonte
de autoritarismo que prevaleceu na República de Weimar, nome
emblemático que caracterizou o regime político na Alemanha com a
proclamação da república e o fim da monarquia.
A Escola de Frankfurt reconheceu o valor dessas abordagens, mas
não as considerou suficientes para a compreensão do fim do sonho
revolucionário e a vitória final do Totalitarismo, seja ele o nazismo,
o stalinismo ou a “sociedade unidimensional” tecnocrática. Nesse
horizonte, a visão dos frankfurtianos se diferenciou das explicações
políticas, como as de Trotsky, para quem o crescimento das forças de
extrema-direita na Alemanha e o ulterior advento da Segunda Guerra
Mundial deveram-se à incapacidade das lideranças políticas de
esquerda em firmar uma aliança entre social-democratas e comunistas.

Diante disso, a explicação para o totalitarismo para os frankfurtianos é


de ordem metafísica: “é na constituição do conceito de Razão, é no exercício de
uma determinada figura ou modo da racionalidade, que esses filósofos alojam a
origem do irracional” (MATOS, 1993, p. 5).

Buscando uma racionalização dos processos sociais, as estruturas do


pensar científico passam a dominar esses processos, algo que é característico
de uma proposta positivista. “Nessa perspectiva, a realidade social, dinâmica,
complexa, cambiante, é submetida a um método que se pretende universalizador e
unitário, o método científico” (MATOS, 1993, p. 5). O positivismo estaria, portanto,
impondo um método para a compreensão do fenômeno do totalitarismo que
considera apenas a racionalização dos processos sociais, e não as especificidades
do contexto, a partir de uma abordagem crítica das ciências humanas.

65
UNIDADE 2 | ESCOLA DE FRANKFURT

Criticando essa proposta positivista de entendimento da ordem


social, Horkheimer escreve em 1934 (apud MATOS 1993, p. 5) que o valor
de uma teoria depende de sua relação com a práxis. Ou seja, do ponto de
vista sociopolítico, uma teoria social somente é coerente quando está ligada e
considera as possibilidades de transformação revolucionária que existem na
sociedade em estudo. Isso leva a outro pensamento complementar:

A racionalidade da dominação da natureza para fins lucrativos,


colocando a ciência e a técnica a serviço do capital, é a primeira forma
da ditadura, a “ditadura da produção”. Essas observações levaram
Horkheimer e seus colaboradores do Instituto a considerar as relações
entre fascismo e capitalismo. Em 1938 Horkheimer observou que “o
fascismo não se opõe à sociedade burguesa, mas, sob certas condições
históricas, é sua forma apropriada”. O fascismo é a sociedade liberal
que perde seus escrúpulos. Também Marcuse escreveu em 1941 que “o
Terceiro Reich é uma forma de tecnocracia: as considerações técnicas
de racionalidade e eficiência imperialistas sobrepõem-se aos padrões
tradicionais de lucratividade e bem-estar comum”.
Sob a influência das análises de Marx e de sua crítica à economia
política burguesa, a Teoria Crítica da Escola de Frankfurt revela
a transformação dos conceitos econômicos dominantes em seus
opostos: a livre troca passa a ser aumento da desigualdade social; a
economia livre transforma-se em monopólio; o trabalho produtivo,
nas condições que sufocam a produção; a reprodução da vida social,
na pauperização de nações inteiras. Assim, a crítica à razão torna-se a
exigência revolucionária para o advento de uma sociedade racional,
porque o mundo do homem, até hoje, não é o “mundo humano”, mas
“o mundo do capital” (MATOS, 1993, p. 5).

Esse foi o contexto histórico que impulsionou o surgimento e a consolidação da


Escola de Frankfurt e de sua proposta de pesquisa social, baseado no desenvolvimento
de uma Teoria Crítica que foi a base fundamental para todos os trabalhos vinculados.
Vejamos uma imagem do prédio no qual funcionou o Instituto:

FIGURA 1 – PRÉDIO DO INSTITUTO PARA A PESQUISA SOCIAL

FONTE: <https://static.todamateria.com.br/upload/es/co/escola_de.jpg>. Acesso em: 14 ago. 2019.

Agora, vamos conhecer os dados históricos sobre a Escola de Frankfurt em


si, os fatos mais relevantes, a partir da apresentação de Tomás (2009). Esses dados
históricos, o contexto no qual esse grupo de intelectuais se uniu em torno de uma
instituição, foi uma condição essencial para o desenvolvimento do espírito crítico
desse grupo.

66
TÓPICO 1 | A SOCIOLOGIA DA ESCOLA DE FRANKFURT

O reconhecimento desses trabalhos só ocorreu nos anos cinquenta e


foram amplamente difundidos nas décadas que se seguiram. Mas para entender
o desenvolvimento da teoria crítica é preciso entender os anos nos quais o regime
nazista cresceu e se consolidou, assim é possível compreender a importância
desse grupo de pensadores.

O surgimento da Escola de Frankfurt ocorreu após alguns encontros no


formato de reuniões e conferências sobre o tema marxismo, sendo criação dos
jovens intelectuais da época. Esses encontros originaram a fundação chamada
Institut für Sozialforschung (Instituto de Pesquisa Social), em fevereiro de 1923. Entre
as duas guerras mundiais, os intelectuais alemães sofreram uma desorientação
política total, necessitando de uma reorientação teórica, por isso a criação do
Instituto tornou-se ainda mais importante.

De acordo com Tomás (2009, p. 104), esse período na Alemanha, do ponto


de vista histórico, pode ser dividido da seguinte forma:

- Primeiro: revés da revolução socialista de 1919-1920 que deu origem


à República de Weimar sob o controle do partido social-democrata.
Esta revolução mostrou que o futuro não estava nas mãos do
proletariado, para além de se ter passado a uma violência sangrenta
na qual todos os revolucionários e muitos membros da oposição de
esquerda foram assassinados.
- Segundo: que não se passou na Alemanha, mas teve repercussões
importantes neste país, foi a vitória da revolução russa e a
consequente instauração de uma burocracia assustadora.
- Terceiro: a ascensão do fascismo e a consequente instabilidade social
dessa época em crise.

O surgimento da Escola de Frankfurt está vinculado a um contexto


histórico no qual o marxismo é a inspiração. “Os membros observam um drama
do qual eles fazem parte integrante. As primeiras preocupações do Instituto são
a união da filosofia e da análise social, um método dialético e as possibilidades
de transformação da ordem social pela práxis” (TOMÁS, 2009, p. 104). Após a
Primeira Guerra Mundial, o capitalismo gerava grandes monopólios industriais
na Alemanha, enquanto isso o Estado interferia cada vez mais na vida econômica
e o proletariado passava a ser integrado (TOMÁS, 2009).

Assim, a teoria crítica vinha caracterizar os estudos e pesquisas realizados


no Instituto e “demonstra já nessa altura alguns dos seus traços notáveis como
a importância do individualismo, o pessimismo, a vontade de ultrapassar as
contradições sociais pela práxis, o marxismo filosófico (e não dogmático) e o interesse
da psicologia individual para a compreensão da História” (TOMÁS, 2009, p. 104).

Durante sua existência, a Escola de Frankfurt teve uma série de intelectuais


que a compuseram e sofreu ações de censura e exílio.

67
UNIDADE 2 | ESCOLA DE FRANKFURT

Max Horkheimer (1885-1973), Theodor Adorno (1903-1969), Herbert


Marcuse (1898-1978), Walter Benjamin (1892-1940), Erich Fromm
(1900-1980) e Friedrich Pollock (1894-1970) fazem parte do círculo
mais íntimo de intelectuais importantes ligados ao Instituto. Todos
são judeus, filhos de famílias burguesas (comerciantes e médicos),
o que explica o interesse deste grupo pela decadência da burguesia
liberal, pelo antissemitismo e pela revolução. Os membros do
Instituto seguiam os acontecimentos históricos e sociais de perto e a
discriminação crescente contra os judeus fez com que Horkheimer
(diretor do Instituto desde 1931) mudasse as finanças do Instituto para
a Holanda. Com a ideia permanente de um possível exílio foi criado
um anexo em Genebra. Efetivamente, menos de um mês depois da
subida ao poder de Hitler, em janeiro de 1933, o Instituto foi fechado
por “tendências hostis ao Estado”. Todas as obras da biblioteca foram
confiscadas e Horkheimer é oficialmente banido da Universidade
de Frankfurt. Nesta altura, já todos os membros estão em Genebra
e o Instituto muda o nome alemão para o título francês de Société
Internationale de Recherches Sociales, com departamentos em Paris e
em Londres (TOMÁS, 2009, p. 104).

O Instituto, durante essas situações de exílio, sempre tentou ajudar com a


saída dos intelectuais da Alemanha, por meio de vistos, contato com associações
de exílio e bolsas de financiamento. Continuando:

Em 1934 o medo do fascismo chega à Suíça e o centro administrativo


do Instituto exila-se em Nova York. Todos conseguiram escapar para
os Estados Unidos graças aos fundos do Instituto. Todos menos Walter
Benjamin. Partindo demasiado tarde de Paris, acabou por ser apanhado
na fronteira franco-espanhola onde se suicidou sob a ameaça de ser
entregue à Gestapo. As cartas de Benjamin revelam miséria, medo e
profundo reconhecimento por aqueles que tudo fizeram para o tirar da
Europa. Karl August Wittfogel (1896-1988), um membro do Instituto,
especialista da China para o Komintern e militante ativo contra o
nazismo, foi internado num campo de concentração em 1933. Liberto
graças a uma campanha de apoio internacional, o historiador chegou
aos Estados Unidos em 1934 (TOMÁS, 2009, p. 104).

Todas essas vivências criaram no grupo um sentimento de pertencer aos


mesmos objetivos e aos mesmos destinos, que fortaleceram a atuação da Escola
de Frankfurt. Para serem lidos durante o exílio, os intelectuais utilizaram uma
revista publicada até ser proibida pelo regime nazista, quando continuou sua
existência em Paris até a Segunda Guerra Mundial. Ela se chamava Zeitschrift für
Sozialforschung.

Podemos notar a importância do regime nazista para o desenvolvimento


da Teoria Crítica:

O nazismo é para Horkheimer e Adorno – a teoria crítica foi


estabelecida quase exclusivamente por estes dois filósofos – a negação
radical de uma sociedade melhor: desumanização, estigmatização das
diferenças, reificação da vida pela exterminação. A ironia do destino é
que apesar do passado revolucionário e marxista, o Instituto consegue
instalar-se na capital do capitalismo liberal. Se o fascismo marcou a
primeira fase da teoria crítica, o capitalismo americano marcou a

68
TÓPICO 1 | A SOCIOLOGIA DA ESCOLA DE FRANKFURT

segunda. Aliás, para Horkheimer e Adorno são duas experiências


negativas da razão. Em ambos os países, os intelectuais observam uma
sociedade de massa onde a dominação se transmite na socialização, o
que os leva a desenvolver o conceito de “indústria cultural”, na qual a
cultura se transforma em ideologia e se reduz à distração das massas
(TOMÁS, 2009, p. 105).

TUROS
ESTUDOS FU

Estudaremos o conceito de “indústria cultural” no Tópico 2 desta Unidade.

Após toda essa situação histórica envolvendo inúmeros exílios, o Instituto


retoma seu funcionamento em Frankfurt apenas em 1950. Durante a reconstrução
econômica do país, houve também a institucionalização da sociologia como um
curso superior. Ao mesmo tempo, a Teoria Crítica chega a sua maturidade com A
dialética do esclarecimento (1944), de Adorno e Horkheimer, Minima moralia (1951),
de Theodor Adorno e Teoria tradicional e teoria crítica (1970), de Max Horkheimer.

Você pode aprofundar o estudo das dimensões históricas a partir do


artigo indicado a seguir. Após, iniciaremos o estudo dos fundamentos filosóficos
que influenciaram o pensamento frankfurtiano.

DICAS

Este artigo é sugerido porque apresenta dimensões históricas a partir dos


autores que participaram da Escola de Frankfurt, portanto, é possível estudar os autores em
seu contexto. Para tanto, acesse: http://www.pidcc.com.br/artigos/052014/11052014.pdf. A
referência é: NASCIMENTO, J. F. A Escola de Frankfurt e seus principais teóricos. PIDCC, ed.
III, nº 5, Aracaju, fev. 2014, p. 244-249.

3 DIMENSÕES FILOSÓFICAS
A Escola de Frankfurt sofreu grande influência da Filosofia, assim como
inúmeras correntes sociológicas. Boa parte de seus autores possui formação nessa
área e a discussão central da Teoria Crítica aparece em oposição à ideia de uma
Teoria Tradicional, embasada na Filosofia.

69
UNIDADE 2 | ESCOLA DE FRANKFURT

A Teoria Crítica é uma proposta de interpretação do mundo, especialmente


da ordem social, cujo conceito central é a racionalidade. A racionalização do
mundo é discutida a partir da metodologia da sociologia crítica. Em síntese, é isso,
mas veremos que ela possui inúmeras dimensões e é uma teoria bastante densa e
complexa. Iremos estudá-la com mais detalhes no próximo tópico, acompanhada
do autor Horkheimer.

A Teoria Tradicional, a qual propõe-se como oposição à Teoria Crítica,


fundamenta-se na teoria cartesiana. Vamos retomar, a partir das explicações de
Matos (1993), os aspectos importantes do pensamento de Descartes que originam
uma crítica frankfurtiana.

Descartes é considerado o fundador da modernidade, pois modifica o


pensamento da época medieval interpretando que os seres humanos não são
subalternos ao divino e dependentes dele. Ou seja, ele exalta a razão humana
como forma de viver, como explicação única que pode resistir às ilusões dos
sentidos, aos erros da ciência etc. é possível duvidar de tudo, até mesmo do
próprio pensamento – mas, ao fazer isso, estamos pensando. Assim, a única
verdade é o pensamento, a racionalidade humana. É de autoria de Descartes a
frase “Penso, logo existo”.

Diante disso, Descartes passa a analisar o conhecimento e começa


por refutar a tradição, o passado, a memória. Nessa análise ele afirma que a
erudição acaba por acumular nas pessoas os equívocos do passado, que vamos
recebendo desde a infância – quando ainda não conseguimos fazer uso total da
nossa racionalidade. Diante desse acúmulo de equívocos a mente humana vai se
enchendo de erros, a ponto de não sabermos mais separar certo de errado.

Descartes não confia nos dados dos sentidos: nos sentidos e nos
dados dos sentidos não há estabilidade, permanência, identidade.
Se olho para o Sol, por exemplo, sou levado a concluir que o Sol é
do tamanho que meus olhos veem. Mas, pela razão calculadora, sei
que é infinitamente maior. Ora não podemos “confiar duas vezes em
quem já nos enganou uma vez”. E mais: os dados dos sentidos estão
em permanente metamorfose, transformam-se, às vezes de maneira
imperceptível (MATOS, 1993, p. 19).

Assim, Descartes também indica o quanto é importante distinguir o sono


da vigília, pois mesmo nos sonhos muitas vezes estamos fazendo coisas como se
estivéssemos acordados. No entanto, ele nota que o que resta é o pensamento,
porque em ambas as situações dois mais dois são quatro. A partir de outros
exemplos, ele mostra como acordado ou adormecido o que resta é o pensamento
como fonte da razão humana. É a razão, portanto, que deve ser aplicada para que
se chegue ao conhecimento.

70
TÓPICO 1 | A SOCIOLOGIA DA ESCOLA DE FRANKFURT

Para Horkheimer, autor vinculado à Escola de Frankfurt (o qual


estudaremos adiante), esta é a base da Teoria Tradicional, que envolve “todo o
pensamento da identidade, da não-contradição, que se esforça em reconduzir a
alteridade, a diversidade, a pluralidade, tudo o que é outro em relação a ela, à
dimensão do mesmo, como faz a ciência cartesiana” (MATOS, 1993, p. 20). Tudo
o que é contraditório é irracional, porque é confuso e, portanto, impensável.

No entanto, a crítica busca colocar em suspenso qualquer juízo sobre o


mundo, reconhecendo a possibilidade da contradição. Mesmo o pensamento e a
razão passam a ser interrogados, nesse caso, e move seu foco de análise para as
possibilidades do conhecimento na ciência, na moral e na arte.

A partir da adoção da perspectiva crítica, a teoria frankfurtiana passa


a ter outras influências da Filosofia: Kant, Hegel e Marx. Vejamos como eles
influenciaram as abordagens da Escola de Frankfurt.

Kant (2015) trata sobre os limites do exercício da razão quando tratamos


de conhecer a natureza, pois para ele a razão só pode ser aplicada quando em um
fenômeno localizado no espaço-tempo. Ele apresenta essa ideia na obra Crítica
da Razão Pura. Apenas os fenômenos podem ser objeto da ciência, e com isso ele
afasta a ideia de contradição do campo científico.

Para Kant, a contradição só ocorreria quando a ciência transgredisse seus


limites, buscando explicar fenômenos não localizados em um espaço-tempo.
Como ela não o faz, a contradição não seria possível.

“A ciência deve renunciar à explicação da existência de Deus, da


imortalidade da alma e da liberdade dos homens, porque essas ideias não se
oferecem no espaço e no tempo. Quando a razão teórica pretende explicá-las, cai
em antinomias que não podem ser superadas” (MATOS, 1993, p. 21).

Ainda sobre a contradição, temos a seguinte contribuição de Hegel:

A essa modalidade do pensamento Hegel responde com a crítica ao


princípio da identidade e ao exercício formalizador do entendimento
kantiano, considerando que as coisas e os seres históricos e sociais
não possuem uma identidade permanente, mas se constituem por sua
negação interna. “Este homem é um escravo” é um juízo compreendido
diferentemente por Kant e por Hegel. Para Kant, primeiramente
existe a identidade do conceito de homem, em sua não-contradição; a
identidade do conceito de escravo; e só depois o enfrentamento social
que define o homem como escravo. Já em Hegel, o homem enquanto
liberdade é negado em sua humanidade por ser escravo, mas, enquanto
escravo carente de liberdade e autonomia, não deixa de ser homem, isto
é, espiritualidade. Ao afirmativo e positivo kantianos, Hegel responde
com a dialética, o pensamento do negativo, da contradição que não
separa sujeito e objeto, natureza e cultura (MATOS, 1993, p. 21).

71
UNIDADE 2 | ESCOLA DE FRANKFURT

Ou seja, a identidade como um processo de construção da negação interna


é o destaque para Hegel. É ela que gera a contradição, como no exemplo: “a
natureza é a cultura que não se sabe cultura, que ainda não tem consciência de si,
não se negou na experiência imediata de ser natureza. O processo de constituição
da consciência é, também, a história da emergência dos seres culturais” (MATOS,
1993, p. 21). É esse ser e não ser – negação de si – que gera a contradição, o
sofrimento, a dúvida.

Já Marx parte da dialética de Hegel, que considera a ideia, o espírito, como


ponto de partida para o real – e substitui o espírito pela matéria, destacando a
importância das condições de produção para o desenvolvimento do real. É o
que você estudou no componente curricular Teoria Sociológica I, sobre as bases
do pensamento de Marx: o real existe a partir das condições econômicas, pois é
nestas que são produzidos os meios de existência da humanidade.

Esses três filósofos, Kant, Hegel e Marx são fundamentais para o


desenvolvimento da ideia de crítica, e fundamentam a discussão sobre o conceito
de teoria e o de dialética – a partir da qual foi questionado porque as insuficiências
da teoria revolucionária se transmitiram para a realidade histórica.

Também Marx é evocado quando surge a discussão sobre a participação


política e a efetivação da teoria crítica nas atividades revolucionárias:

Marx escreveu, nas Teses sobre Feuerbach: “Os filósofos já


interpretaram o mundo; trata-se, agora, de transformá-lo”. O século
XX tomou o sentido literal do texto, como um convite ao ativismo
revolucionário, sem se perguntar o que significam interpretação,
mundo e transformação no pensamento de Marx. Houve, para a
Teoria Crítica, queda da teoria em ideologia, isto é, sua conversão em
estratégia política, simetricamente oposta ao trabalho da reflexão. Esse
foi o motivo pelo qual, comentando Marx, Adorno observou: “posto
que a filosofia não conseguiu transformar o mundo, cabe continuar a
interpretá-lo” (MATOS, 1993, p. 21).

Outra corrente filosófica que aparece com frequência quando tratamos


da Escola de Frankfurt é o positivismo. Para os integrantes dessa escola, a Teoria
Tradicional está alinhada com essa corrente, pois tem uma função social positiva
– ou seja, permite avaliar a realidade por meio de um sistema conceitual e lógico
transmitido pela tradição.

A pesquisa sociológica nesse contexto tradicional segue um processo


lógico baseado no positivismo: primeiro, observação dos fenômenos; segundo,
comparação; terceiro, construção de conceitos gerais (TOMÁS, 2009).

72
TÓPICO 1 | A SOCIOLOGIA DA ESCOLA DE FRANKFURT

E
IMPORTANT

O positivismo é uma corrente filosófica que influenciou o surgimento da


sociologia, que entende a ordem social como uma evolução – apresentando a ideia de que
os grupos precisam passar por três estágios: teológico, metafísico e positivo. Seu principal
expoente foi Auguste Comte, que desenvolveu a nomenclatura “Física Social” para a nova
ciência que surgia, que posteriormente tornou-se a sociologia.

A Teoria Crítica recusa essa maneira de buscar conhecimento, pois reconhece


a importância da história, ou seja, o indivíduo precisa ser analisado em relação ao
seu contexto histórico. Os seres humanos são resultantes da história e, portanto, os
fenômenos precisam ser analisados com tudo aquilo que lhes é contemporâneo.

A maneira de pensar nos laços sociais como naturais, trazida pelo


positivismo, também é recusada na medida em que os relacionamentos são
analisados por uma ótica histórico-social.

Para mudar a tradição é necessário não só a praxis, como também


rupturas irreparáveis. A teoria crítica quer ultrapassar o pensar
tradicional propondo desta forma uma nova Aufklärung. “Ultrapassar”
é a palavra-chave da atitude crítica. Compreender e ultrapassar
as contradições sociais (como por exemplo, liberdade individual/
mundo coletivo; autonomia/heteronomia) numa orientação negativa
(contra todos os dogmas positivistas). A teoria crítica não trabalha
com definições, mas com noções, porque uma definição não tem
contradição. Ora a realidade é contraditória (TOMÁS, 2009, p. 106).

Assim, em oposição ao positivismo, a sociologia crítica propõe o seguinte


método, de acordo com Tomás (2009):

• Perceber o fenômeno observado na sua época.


• Reconstruir o discurso científico e o discurso do bom senso ligados ao fenômeno
analisado.
• Esclarecer a ideologia escondida no fenômeno porque é a ideologia que ilustra
a união entre a sociedade e os atores.

Seguiremos com o próximo tópico entendo de maneira mais aprofundada


o que é esse método proposto pela sociologia crítica. Antes, veja uma indicação
de livro, caso deseja avançar com os estudos sobre as fundamentações filosóficas
da Escola de Frankfurt.

73
UNIDADE 2 | ESCOLA DE FRANKFURT

DICAS

Se você deseja se aprofundar nas bases filosóficas que fundamentaram a


abordagem da Escola de Frankfurt, leia: MATOS, O. C. F. A Escola de Frankfurt: luzes e
sombras do Iluminismo. São Paulo: Moderna, 1993.

4 DIMENSÕES METODOLÓGICAS
Uma das noções que aparece com frequência nos estudos de Frankfurt
e que destaca a forma como seus autores pensam a sociologia, ou os métodos
sociológicos é a ideia de uma sociologia crítica. A palavra que designa essa
dimensão é Sozialforschung, termo que pode ser entendido como “investigação
social” ou “ investigação que leva ao social”.

Essa terminologia aparece ao longo de todo o percurso da Escola de Frankfurt,


problematizando o que é dado pela sociologia da época – a ideia de fato social como
objeto dessa área da ciência. Como a Sozialforschung está alinhada com a Teoria
Crítica, ela discute o que pertence ao social e quais as condições de possibilidade
das investigações desse tipo. Os frankfurtianos mobilizam-se em torno da ciência
sociológica e também da Filosofia Social problematizando essas questões.

E
IMPORTANT

Vamos recordar o conceito de fato social? Durkheim o apresenta como sendo


o conjunto de valores, normas culturais e estruturas sociais que transcendem o indivíduo
e podem exercer controle social, ou seja, determinam as maneiras de agir, pensar e sentir
na vida de um indivíduo.

Vamos entender, a seguir, a partir de Assoun (1991), o desenvolvimento


de uma sociologia crítica na Escola de Frankfurt, permeado por essa noção de
investigação social apresentada nominalmente como Sozialforschung.

Em um primeiro momento, antes da década de 1930, a economia dominava


essa fatia de investigação social, portanto a Sozialforschung era “o estudo da textura
econômica das entidades sociais” (ASSOUN, 1991, p. 42). A sociologia científica
se debruçava para esse tipo de problemática nesse período.

74
TÓPICO 1 | A SOCIOLOGIA DA ESCOLA DE FRANKFURT

Há que se lembrar efetivamente que os grandes empreendimentos


sociológicos foram produzidos no começo dos anos 1920 (Durkheim,
Weber, Marx) e que nunca a esperança duma sociologia científica foi
mais explícita. É aí que nasce entre outras, sob o efeito do resto de
movimentos desligados da social-democracia alemã, a ideia de uma
ciência social de que o marxismo é um dos referentes. Grünberg, o
primeiro diretor do Instituto, concebe o marxismo como o modelo
privilegiado do Sozialwissenschaft, mas assim tinha tendência a
reduzi-lo a uma metodologia científica, e mesmo indutiva, que não
andava longe de uma tendência positivista (ASSOUN, 1991, p. 42).

Weil, patrono do Instituto, também nessa época defende sua tese sobre
planejamento socialista, e um dos principais sociólogos do Instituto, Wittfogel,
estuda a China a partir de uma abordagem positivista e economista. Ou seja, tudo
convergia para que o modelo adotado fosse este, baseado em análises econômicas
e fundamentados em uma filosofia positiva.

No entanto, o que diferenciou a investigação social de Frankfurt foi o


uso crítico e audacioso das categorias sociológicas. A Teoria Crítica influencia a
metodologia sociológica do ponto de vista de sua objetividade, propondo uma
nova concepção epistemológica, conforme a explicação a seguir:

Trata-se com efeito de ultrapassar o dualismo entre sociologia e


filosofia social: está aí exatamente o efeito principal da Teoria Crítica
sobre a objetividade sociológica. Segundo esta representação dualista,
dominante na sociologia, temos por um lado a disciplina sociológica,
que estuda as diferentes maneiras concretas que os homens têm de
viver juntos, quer dizer as formas concretas da socialização, e por outro
a filosofia social, que se pronuncia especulativamente sobre o grau de
realidade e o valor destes fenômenos. É esta maneira de ver que a Teoria
Crítica tem como efeito declarar insustentável. A filosofia social não
deve ficar como em depósito no reservatório dos problemas da ciência
social, como um tesouro estéril de grandes princípios. Ela opõe a isso
a ideia de um desenvolvimento no qual estão sempre dialeticamente
imbricadas a teoria filosófica e a prática científica especializada. Por
outras palavras, a filosofia enquanto intervenção teórica orientada para
o universal, para o essencial, é capaz de dar impulsos vivificantes às
investigações particulares (ASSOUN, 1991, p. 43).

A filosofia social, portanto, aparece como base para a sociologia


crítica a partir da direção de Horkheimer no Instituto – com a perspectiva de
complemento teoria e prática. A filosofia social busca entender o destino dos
seres humanos não apenas como indivíduos, mas também como membros de
uma comunidade, participando das formas de vida social. Nota-se em Hegel essa
ideia quando ele menciona que o particular se completa com a universalidade,
e a individualidade se completa pelo todo coletivo. Nesse caso, é como se a
harmonia indivíduo e sociedade ocorresse a partir da consequência de uma
harmonia estrutural do real e do relacional.

Como já vimos, a Escola de Frankfurt possui como uma de suas influências


nas bases filosóficas o pensamento hegeliano e, nesse caso, seus autores
problematizam essa perspectiva:
75
UNIDADE 2 | ESCOLA DE FRANKFURT

Com efeito, a partir de Hegel, a ligação entre individualidade e


totalidade social foi quebrada. Esta quebra não pode ser ignorada pela
filosofia social, como de certa maneira a marca da perda da Identidade
na ordem social. Mas ela tem de pôr a novas expensas a questão da
possibilidade desta “transfiguração” do indivíduo na totalidade social
(ASSOUN, 1991, p. 44).

Na prática sociológica, as consequências dessa abordagem crítica entre


indivíduo e sociedade podem ser notadas a partir do primeiro tema de trabalho
do Instituto, que foi a mentalidade de um grupo específico – os operários
qualificados e os empregados na Alemanha. Apenas uma sociologia empírica não
daria conta do tema, pois há um grande problema teórico de fundo, posto como
a questão da relação entre a vida econômica da sociedade, o desenvolvimento
psíquico dos indivíduos e as transformações nas regiões culturais. É possível
perceber a questão metafísica alma/corpo, tão tradicional, aqui exposta sob as
relações entre ideologia e economia.

Assoun (1991) mostra como as questões filosóficas podem, portanto,


ser transcritas para o plano social, que é o movimento que se fez inicialmente
para o desenvolvimento de uma metodologia própria da Escola de Frankfurt. A
pergunta do ponto de vista sociológico seria: Que relações podem-se estabelecer
para tal grupo social em tal época e em certos países, entre o seu papel no processo
econômico, a transformação da estrutura psíquica dos seus membros particulares
e as ideias e instituições que agem sobre essa estrutura psíquica tomada como
conjunto na totalidade social, e que são produzidas por ela?

A partir dessa pergunta norteadora desenvolveu-se a metodologia de


trabalho, que consistiu em (ASSOUN, 1991):

1º A exploração das estatísticas, das relações e documentos das organizações.


2º O exame da literatura sociopsicológica sobre a questão.
3º Questionários que asseguram a conexão permanente entre as hipóteses de
investigação e a realidade (cerca de três mil questionários foram distribuídos
aos operários com temas da educação, racionalização da indústria, perspectiva
da guerra etc.).

Os resultados deste inquérito são claros, mas revelam-se uma


desilusão para a esquerda intelectual e política. Segundo as análises
dos questionários, existem cada vez mais dominados e cada vez
menos dominantes. A miséria material e a pauperização cultural dos
dominados é evidente. No entanto, estes querem parecer-se como os
dominantes, que admiram e veneram. Na realidade, é a classe burguesa
que lhes serve de ideal. A classe operária adapta-se rapidamente ao
capitalismo, o que faz do movimento revolucionário de trabalhadores
uma utopia total. Pior ainda, a notável ambivalência da maioria
poderia abrir a porta à extrema direita. Note-se também que os
métodos de análise de inquéritos ainda não estavam suficientemente
desenvolvidos. Todos os questionários foram preenchidos e em
seguida quantificados à mão. Os membros do Instituto renderam-se
à evidência que a pesquisa empírica não é suficientemente eficaz para
satisfazer a ambição da teoria crítica (TOMÁS, 2009, p. 106).

76
TÓPICO 1 | A SOCIOLOGIA DA ESCOLA DE FRANKFURT

Esse estudo não foi publicado, mas é possível observar a partir dele a
maturação metodológica da Teoria Crítica na sociologia alemã e o surgimento
dos princípios da Escola de Frankfurt. É possível perceber a Teoria Crítica no
trabalho sociológico quando (ASSOUN, 1991):

1- Em primeiro lugar, o problema teórico geral é relacionado com uma questão de


cristalização sociológica.
2- A aproximação permite transpor ou traduzir a questão genérica de filosofia
social para uma questão determinada, na linguagem da sociologia.
3- Uma vez formulada essa questão, prepara-se uma metodologia de tratamento
ad hoc.

A sociologia crítica se propõe, portanto, a investigar uma problemática


formulada pela Teoria Crítica. “Desse modo, a Teoria Crítica procura dar a si
própria um corpo experimental que lhe permita intervir no território da realidade
social. Desse modo, o projeto de explicação positivo é sustentado por um projeto
crítico de fundo” (ASSOUN, 1991, p. 45).

Horkheimer propõe, portanto: “Perseguir através dos mais finos métodos


científicos as grandes questões filosóficas que são as suas, precisar e transformar ao
longo do trabalho as questões em função do objeto, encontrar novos métodos sem por
isso perder de vista o Universal” (HORKHEIMER, 1931 apud ASSOUN, 1991, p. 45).

Essa metodologia proposta pela Escola de Frankfurt permeará seus


trabalhos e algumas discussões epistemológicas acontecerão conforme se pensa
a relação entre teoria e material empírico nas pesquisas ali desenvolvidas. A
sociologia crítica teve o alinhamento de um arcabouço conceitual para sua
consolidação e são esses conceitos que estudaremos no próximo tópico.

77
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você aprendeu que:

• A Escola de Frankfurt nasceu em fevereiro de 1923 sob o seu nome oficial


Institut für Sozialforschung (Instituto de Pesquisa Social). Essa fundação foi
criada depois de terem sido organizadas algumas reuniões e conferências sobre
o marxismo pelos jovens intelectuais de Frankfurt.

• A Teoria Tradicional, a qual propõe-se como oposição à Teoria Crítica,


fundamenta-se na teoria cartesiana.

• A Teoria Crítica é uma proposta de interpretação do mundo, especialmente da


ordem social, cujo conceito central é a racionalidade.

• A Teoria Crítica recusa a maneira positivista de buscar conhecimento, pois


reconhece a importância da história, ou seja, o indivíduo precisa ser analisado
em relação ao seu contexto histórico.

• A Escola de Frankfurt apresenta e destaca a forma como seus autores pensam a


sociologia, ou os métodos sociológicos, por meio da proposta de uma sociologia
crítica.

• A filosofia social é a base para o surgimento da sociologia crítica, a partir da


direção de Horkheimer no Instituto de Pesquisa Social – trazendo a perspectiva
de complemento teoria e prática para essa ciência.

78
AUTOATIVIDADE

1 Uma das dimensões filosóficas que influenciou o desenvolvimento da


Escola de Frankfurt foi a busca pela distinção da Teoria Tradicional, de
princípios cartesianos, pela Teoria Crítica, de princípios marxistas. Sobre as
diferenças entre ambas, associe os itens, utilizando o código a seguir:

I- Teoria Tradicional
II- Teoria Crítica

( ) É uma proposta de interpretação do mundo, especialmente da ordem


social, cujo conceito central é a racionalidade.
( ) Baseia-se no pensamento cartesiano, defendendo a razão como forma de
obtenção do conhecimento.
( ) Reconhece a possibilidade da existência da contradição, mesmo utilizando-
se a razão e o pensamento.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:


a) ( ) I – I – II.
b) ( ) II – I – II.
c) ( ) II – II – I.
d) ( ) II – II – II.

2 A proposta metodológica estabelecida pelos autores da Escola de Frankfurt


para a sociologia é a consolidação de uma sociologia crítica. Sobre essa
metodologia, analise as seguintes sentenças:

I- As bases da sociologia crítica são positivistas.


II- A sociologia crítica recebeu forte influência da filosofia social.
III- A sociologia crítica propõe estudar de modo empírico temas estabelecidos
pela Teoria Crítica.

Assinale a alternativa a CORRETA:


a) ( ) Somente a afirmativa I está correta.
b) ( ) Somente as afirmativas I e II estão corretas.
c) ( ) Somente as afirmativas I e III estão corretas.
d) ( ) Somente as afirmativas II e III estão corretas.

79
80
UNIDADE 2 TÓPICO 2

CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLOGIA
ALEMÃ PARA A COMPREENSÃO DA
SOCIEDADE

1 INTRODUÇÃO
A partir de seu estudo sobre as dimensões fundamentais que constituíram
a Escola de Frankfurt – históricas, filosóficas e metodológicas – você poderá
contextualizar e entender alguns de seus conceitos e teorias e os principais
autores que os desenvolveram. Dizemos autores principais porque grande parte
das obras frankfurtianas foram desenvolvidas em conjunto, com a participação
de pelo menos dois autores.

Este tópico está organizado para apresentar os autores e os principais


fundamentos teóricos que se desenvolveram no contexto da Escola de Frankfurt.
Há muitos outros que perpassarão sua leitura, por isso fica novamente a dica de
aprofundamento nos estudos a partir dos materiais complementares e de pesquisas
próprias sobre os autores e temas que forem aparecendo ao longo de sua leitura.

Iniciaremos por Horkheimer e, com ele, estudaremos as bases da Teoria


Crítica – proposta teórica e metodológica que permeou toda a sociologia de
Frankfurt. Após, entenderemos o uso do conceito de indústria cultural e a
participação do autor Adorno. Para finalizar, estudaremos o conceito de ação sob
a ótica de Habermas. Por meio desse caminho será possível identificar a utilização
desses conceitos principais e sua presença nas pesquisas da Sociologia Alemã.

Bons estudos!

2 HORKHEIMER E A TEORIA CRÍTICA


Como foi possível perceber em seus estudos até aqui, a chamada Teoria
Crítica permeia tanto as discussões teóricas quanto as discussões metodológicas
da Escola de Frankfurt. Sua proposição inicial foi feita por Max Horkheimer,
primeiro diretor do Instituto de Pesquisa Social, portanto, ao estudá-la é
imprescindível entendermos as propostas e abordagens do autor.

81
UNIDADE 2 | ESCOLA DE FRANKFURT

FIGURA 2 – MAX HORKHEIMER

FONTE: <http://cdn.shopify.com/s/files/1/1828/7185/articles/Horkheimer_1024x1024.
jpg?v=1505915093>. Acesso em: 14 ago. 2019.

Vamos começar por uma síntese de sua biografia, baseada em Matos


(1993). Note que a biografia de Horkheimer muitas vezes se mescla com a história
da própria Escola de Frankfurt.

Max Horkheimer, filho de um industrial chamado Mortitz Horkheimer,


nasceu em 1885 (Stuttgart), destinado a continuar os negócios da família. Era
judeu, assim como boa parte dos intelectuais que compuseram o grupo da Escola
de Frankfurt, o que justifica a inclinação para a investigação de alguns temas,
como o autoritarismo, por exemplo.

Ele se aproximou inicialmente da área de letras, escrevendo romances,


inclusive, o que o fez entre 1913 e 1914 viver em Londres e Bruxelas, para um
aperfeiçoamento nas línguas inglesa e francesa. Nesse período ele frequentemente
esteve na companhia de seu amigo Friedrich Pollock, por meio do qual passou a
estar nas universidades de Munique Freiburg e Frankfurt.

É nesse estar nas universidades que ele se aproxima da psicologia,


orientado por Adhemar Gelb (teórico da Gestaldt théorie – Teoria da Forma),
para então se aproximar da Filosofia. É na Filosofia que ele defende sua tese de
doutorado, sobre o pensamento de Kant, orientado por Hans Cornelius. O título
de sua tese foi Contribuição à antinomia da faculdade de julgar teleológica.

Logo após, aproxima-se da obra de Marx e Engels e, por meio do amigo


Pollock conhece o Instituto de Pesquisa Social. Assim, em 1923, ele participa da
constituição do instituto, tornando-se seu diretor em 1931, após o historiador Carl
Grünberg. Isso só foi possível porque nesse período Horkheimer já era titular da
Universidade de Frankfurt – à qual o instituto era vinculado (embora se mantendo
com recursos próprios).

82
TÓPICO 2 | CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLOGIA ALEMÃ PARA A COMPREENSÃO DA SOCIEDADE

Sob a direção de Horkheimer, o Instituto passou a ter uma publicação


periódica, a Revista para a Pesquisa Social (Zeitschrift für Sozialforschung). Nesse
mesmo período, ele foi forçado ao exílio:

O Instituto para a Pesquisa Social, que devia ter-se denominado Instituto


para o Marxismo – ideia abandonada, em parte, pelo antimarxismo
dominante nos meios acadêmicos da época -, foi fechado quando,
em março de 1933, Hitler chegou ao poder e o “círculo de Frankfurt”
foi considerado responsável por “tendências hostis ao Estado”. Na
ocasião, Horkheimer se encontrava em Genebra, na Suíça, onde havia
um anexo do Instituto, e passou a dirigi-lo, agora no exílio forçado. Ao
mesmo tempo, mais dois pequenos anexos do Instituto eram criados:
um em Londres e outro em Paris, em 1933, orientado pelos sociólogos
da cultura, Halbwachs e pelo filósofo Bergson (MATOS, 1993, p. 73).

Horkheimer passou a publicar seus escritos em Zurique, utilizando o


pseudônimo Heinrich Regius, enquanto a revista do instituto era publicada pela
Editora Félix Alcan. Ele se fixou nos Estados Unidos em 1934 e por lá ficou até
1948, quando com o fim da Segunda Guerra Mundial voltou para a Alemanha.

Sua disciplina de cátedra tratava da metafísica materialista, na época


compreendida nos meios universitários como uma mescla entre judaísmo e
comunismo, e foi restabelecida apenas em 1949. No ano seguinte o instituto
retomou suas atividades. “Horkheimer tornou-se diretor do Departamento de
Filosofia e, em seguida, Reitor da Universidade de Frankfurt (1951 – 1953), época
em que recebeu o Prêmio Goethe” (MATOS, 1993, p. 73).

Voltou aos Estados Unidos em 1954 e retomou a docência na Universidade


de Chicago. Quando se aposentou, em 1958, foi para Montagmola, na Suíça.
Mesmo com todas essas mudanças nunca perdeu o contato com o Instituto e com
seu anexo americano. Entre 1967 e 1970 trabalhou pela reedição de suas obras e
de colegas da Escola de Frankfurt. Faleceu em 1973.

Feita esta introdução biográfica, podemos nos concentrar no texto


fundamentador para a Teoria Crítica, publicado por Horkheimer e Adorno em
1937, e intitulado Teoria tradicional e teoria crítica. Ele foi marcante para a história
da Escola de Frankfurt e tornou-se um clássico para a sociologia, que é revisitado
até hoje para os estudos sobre o tema.

Ao separarmos as palavras que nominam essa perspectiva de análise,


vamos entender pontualmente o que se pretende com o uso de cada uma
delas. Teoria diz respeito a um conjunto de proposições sobre um domínio do
conhecimento, e ela torna-se válida quando essas proposições coincidem com
acontecimentos e dados da realidade.

A teoria é desenvolvida a partir da racionalidade, por isso deve colocar a


sua própria relação com a realidade em análise. Ela é elaborada a partir da divisão
do trabalho, já que os cientistas possuem essa relação hierárquica, e é preciso
reconhecer que existe relação entre o trabalho científico e o restante da vida social.

83
UNIDADE 2 | ESCOLA DE FRANKFURT

Assim, Horkheimer problematiza a função social da teoria: “Na época atual..., não
é nas ciências da natureza, baseada na matemática apresentada como Logos eterno,
que o homem pode aprender a conhecer-se a si próprio; é numa teoria crítica da
sociedade tal como ela é, inspirada e dominada pela preocupação de estabelecer
uma ordem conforme a razão” (HORKHEIMER apud ASSOUN, 1991, p. 34).

A teoria, portanto, precisa ser reconhecida como um conjunto de proposições


contextualizadas, desenvolvidas em meio a relações de trabalho e às relações dos
indivíduos com esse campo. Para tal, contribui a postura crítica, que se opõe à
concepção tradicional de teoria, e que reconhece os dados como resultado de um
trabalho executado na sociedade, não apenas nas reflexões dos cientistas.

Para tal empreendimento, a Teoria Crítica busca dar conta das estruturas
presentes no trabalho humano, baseando-se na experiência, e defendendo a ideia
de uma organização social conforme a razão e os interesses da coletividade. Assim,
ela visa a uma transformação global da sociedade e, para tanto, tenta fortalecer
as lutas às quais está ligada. A Teoria Crítica é oposicional, mesmo mantendo a
exigência teórica de buscar as leis da realidade, ela reconhece como sua função de
provocar a mudança na história.

E
IMPORTANT

Veja que a Teoria Crítica possui uma proposta fundamentada no materialismo


histórico-dialético de Marx – que você estudou em Teoria Sociológica I. Seus pressupostos
reconhecem a importância da história no desenvolvimento da estrutura social. Além de
analisar a ordem social a partir da história, ela também propõe intervenções, modificações
para que a organização social seja coletiva e racional.

De acordo com Mogendorff (2012, p. 155), é possível estabelecer uma


divisão entre três momentos da Teoria Crítica, que seriam:

• Primeiro período (anos iniciais): materialismo interdisciplinar,


focado na pesquisa embasada por uma teoria social que tinha
como base a crítica da economia política marxista, aliando teoria
filosófica à prática científica e seguindo uma junção “entre pesquisa
social, análise crítica e ação revolucionária”.
• Segundo período (1940-1951): a problemática passa a ser vista sob a
ótica de uma “crítica da razão moderna”.
• Terceiro período: ocorre a retomada do projeto inicial de uma
“ciência social crítica”.

“Em 1944, quando Horkheimer e Adorno lançaram “Dialética do


iluminismo”, texto no qual aparece o conceito de indústria cultural, estavam mais
próximos do terceiro período, de uma ciência social crítica, embora estivessem
circunscritos à crítica à razão moderna” (MOGENDORFF, 2012, p. 155).
84
TÓPICO 2 | CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLOGIA ALEMÃ PARA A COMPREENSÃO DA SOCIEDADE

Esse último período também é marcado pelo olhar de Habermas para a


Teoria Crítica, quando esta sofre um reajustamento. Surge a necessidade, a partir
de problemas teóricos e metodológicos, de justificar a relação da teoria com a
prática sociopolítica. Busca-se tornar científica a crítica, especialmente quando ela
se volta à própria teoria. Novas discussões epistemológicas são realizadas para
que ocorra esse empreendimento.

Surge assim em primeiro plano a autorreflexão por meio das ciências


hermenêuticas. Esta volta a tornar-se consciente da ligação das atividades
de conhecimento com o processo social. É neste ponto reflexivo que em
certa medida vem refugiar-se a Teoria Crítica. Poder-se-ia dizer que ela
perdeu a sua autonomia filosófica: já não procura unicamente afirmar
a sua não-identidade, mas deve tornar-se o movimento de reflexão
crítica e hermenêutica das ciências. Afirma desse modo a sua vocação
de “racionalidade prática” (ASSOUN, 1991, p. 37).

E
IMPORTANT

As chamadas ciências hermenêuticas são compostas por uma área da Filosofia


destinada a estudar a Teoria da Interpretação, ou seja, o significado das palavras e dos textos

É também Habermas que traz à reflexão a ideia de interesse do


conhecimento, entendendo que muitas vezes o conhecimento é subordinado a
um interesse social (quando tratamos da produção de conhecimentos científicos,
por exemplo, é possível observar que algumas áreas são privilegiadas na
obtenção de financiamentos para a pesquisa – pois existe um interesse social no
desenvolvimento dessas pesquisas, em detrimento de outras áreas).

Seria a ciência crítica que desvelaria esse tipo de interação entre o


conhecimento e o interesse social – que permite a reprodução social e mantém a
dominação de grupos sociais.

O seu trabalho inicial pretendia repor a possibilidade de uma teoria


crítica politicamente significativa, guiado pelo problema da relação
entre teoria e prática. Assume o debate sobre a metodologia das ciências
sociais, tentando ultrapassar a mera preocupação hermenêutica e a
falácia das crenças positivistas, que distinguia o conhecimento objetivo
da ação humana interessada. Habermas tentou possibilitar a unidade
entre teoria e prática, expandindo o sentido de prática política, como
a constituição de uma vida conjunta que permita a realização plena
do potencial humano. Habermas afirma a importância de reabilitar a
esfera pública, uma vez que, através de um modelo de comunicação
pública poder-se-ia realizar o ideal de orientação racional da sociedade.
Através da teoria crítica, as pessoas poderiam se tornar conscientes do
seu potencial por realizar e assim lutar contra aqueles que obstam à
realização plena desses ideais (FONTES, 2019, p. 129).

85
UNIDADE 2 | ESCOLA DE FRANKFURT

É com base nesses preceitos que se desenvolveu a Teoria Crítica como


proposta metodológica e de ratificação da sociedade. Poucas vezes se viu
na história da sociologia uma proposta científica como meio de análise e que
propusesse uma intervenção, uma identificação de problemas da ordem social
mobilizando a esfera política e pública para sua resolução.

A partir disso desenvolveu-se um arcabouço de conceitos e noções que


foram consolidados nas pesquisas e análises da Escola de Frankfurt, o qual
estudaremos no próximo tópico. Mas, antes de prosseguir, veja uma indicação de
leitura para aprofundamento sobre o tema Teoria Crítica.

DICAS

Para aprofundar seus estudos sobre a Teoria Crítica, procure realizar a


leitura do artigo disponível no link: http://faje.edu.br/periodicos/index.php/Sintese/article/
view/3917/4278. A referência é:
FONTES, Paulo Vitorino. Repensando os fundamentos da Teoria Crítica de Frankfurt e os
seus dilemas teóricos, epistemológicos e políticos. Revista Síntese, Belo Horizonte, v. 46, n.
144, p. 121-147, jan./abr. 2019.

Para finalizar, vamos ao texto do próprio autor, Max Horkheimer. É


importante que você procure não apenas intérpretes, e sim os textos originais dos
teóricos ao estudar teoria sociológica, não se esqueça disso!

A TEORIA CRÍTICA ONTEM E HOJE

Gesellschaft um Übergang – Frankfurt, 1972

Como nasceu a Teoria Crítica? Gostaria de dar a entender,


primeiramente, a diferença entre a Teoria Tradicional e a Teoria Crítica. O que
é a Teoria Tradicional? O que é a teoria no sentido da ciência? Permitam-me
dar uma definição bem simplificada da ciência: a ciência é uma tal ordenação
dos fatos de nossa consciência que ela permite, finalmente, alcançar cada vez,
em um lugar exato do espaço e do tempo, aquilo que exatamente deve ser
esperado ali. O mesmo vale para as ciências humanas: quando um historiador
afirma algo com pretensão à cientificidade, deve-se estar em condições de
encontrar sua confirmação nos arquivos.

A exatidão é, nesse sentido, o objetivo da ciência. Entretanto, e aqui


aparece o primeiro tema da Teoria Crítica, a própria ciência não sabe por que
põe em ordem os fatos justamente naquela direção, nem por que se concentra

86
TÓPICO 2 | CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLOGIA ALEMÃ PARA A COMPREENSÃO DA SOCIEDADE

em certos objetos e não em outros. O que falta à ciência é a reflexão sobre


si mesma, o conhecimento dos móveis sociais que a impulsionam em certa
direção: por exemplo, em ocupar-se da Lua e não do bem-estar dos homens.

[...] Quando a Teoria Crítica surgiu, nos anos 20 partiu da ideia de uma
sociedade melhor. Ela se comportava de maneira crítica em relação à sociedade,
como em relação à ciência. O que eu disse da ciência não vale somente para ela,
mas também ao indivíduo particular [...]. Não sabe dizer por quais razões se
ocupa com paixão de tal coisa e não de outra.

Na origem, nossa Teoria Crítica era muito crítica – tal como está
amplamente exposta na Revista para a Pesquisa Social –, como é o caso do
início, em particular em relação à sociedade dominante, pois esta havia [...]
produzido o que é aterrorizador no fascismo e no comunismo terrorista. Eis
por que colocávamos nessa época nossas esperanças na revolução, pois era
certamente impossível que a situação se tornasse pior na Alemanha após
uma revolução do que era no nacional-socialismo. Se a “sociedade justa”
era realizada por uma revolução dos dominados, como Marx concebeu, o
pensamento também deveria tornar-se mais juntos. Com efeito, ele não teria
mais então que depender da luta consciente ou inconsciente das classes entre
si. Todavia tínhamos consciência – e aí está um momento decisivo na Teoria
Crítica da época, como na de hoje – de não poder determinar antecipadamente
a sociedade justa. Podíamos dizer o que era o mal na sociedade da época, mas
não podíamos dizer o que seria o bem; poder-se-ia apenas trabalhar para que,
ao fim, o mal desaparecesse. Devo agora descrever como se caminhou dessa
Teoria Crítica inicial à Teoria Crítica atual. A primeira razão foi constatar que
Marx se equivocara em diversos pontos. Nomearei aqui apenas alguns: Marx
afirmou que a revolução seria o resultado de crises econômicas cada vez mais
agudas, crises ligadas a uma pauperização crescente da classe operária em
todos os países capitalistas. Isso, pensava-se, deveria conduzir finalmente o
proletariado a pôr fim a esse estado de coisas e criar uma sociedade justa.
Começamos a perceber que essa doutrina era falsa, pois a situação da classe
operária é sensivelmente melhor que na época de Marx. De simples trabalhadores
manuais que eram, inúmeros operários tornaram-se funcionários, com um
estatuto social mais elevado e um melhor nível de vida [...]. Segundo, as crises
econômicas de impasse estão cada vez mais raras. Podem, em larga medida,
ser contornadas graças a medidas político-econômicas. Por último, aquilo que
Marx esperava da sociedade justa é falso – não fosse por outra razão –, e este
enunciado é importante para a Teoria Crítica, porque a liberdade e a justiça
tanto estão ligadas quanto opostas. Quanto mais justiça, menos liberdade.
Se quisermos caminhar para a equidade, devem-se proibir muitas coisas aos
homens, notadamente de espezinharem uns aos outros [...].

Se a tradição, as categorias religiosas e, em particular, a justiça e a


bondade de Deus não forem transmitidas como dogma, como verdades
absolutas, mas como a nostalgia daqueles capazes de uma verdadeira tristeza,

87
UNIDADE 2 | ESCOLA DE FRANKFURT

e isso precisamente porque essas doutrinas não podem ser demonstradas e


porque essa dúvida é seu lote, a mentalidade teológica, ou pelo menos sua
base, poderá ser conservada de uma forma adequada. A introdução da dúvida
na religião é um momento necessário para salvá-la.

Há duas teorias da religião decisivas para a Teoria Crítica hoje, embora


sob uma forma modificada. A primeira é aquela que um grande, um imenso
filósofo designou como a maior intuição de todos os tempos: a doutrina do
pecado original. Se podemos ser felizes, cada instante é pago pelo sofrimento
de inúmeras criaturas humanas ou animais. A cultura atual é o resultado de um
passado pavoroso. Seria suficiente pensarmos na história de nosso continente,
no que as Cruzadas, as guerras de religião e as revoluções tiveram de
assustador. A Revolução Francesa, sem dúvida conseguiu grandes progressos.
Mas, se olharmos bem tudo o que sucedeu a homens inocentes, veremos que
por esse progresso pagou-se caro. A nossa alegria, a nossa felicidade, devemos
todos associar à tristeza, à consciência de que dividimos uma culpa [...]. A
segunda é uma proposição do Antigo Testamento: “Não se pode dizer o que é
o bem absoluto; tu não podes apresentá-lo”. Os homens que vivem com essa
consciência têm uma comunidade de pensamento com a Teoria Crítica.

FONTE: Matos (1993, p. 88)

3 ADORNO E A INDÚSTRIA CULTURAL


Um dos conceitos fundamentais nas análises da Escola de Frankfurt foi
a noção de Indústria Cultural – e também um dos mais famosos. Quando se
estuda sobre os frankfurtianos, independentemente da área de conhecimento,
parte desse estudo sempre passará pela indústria cultural. Campos relacionados
à comunicação retomam com frequência essa ideia, especialmente em sua relação
com a cultura de massas.

Esse conceito foi apresentado por Horkheimer e Adorno na obra Dialética


do Iluminismo, embora apareça em mais textos posteriormente. Horkheimer você
já conhece, vimos quem ele é no tópico anterior. Antes de estudar o trabalho dessa
dupla, vamos conhecer Adorno?

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TÓPICO 2 | CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLOGIA ALEMÃ PARA A COMPREENSÃO DA SOCIEDADE

FIGURA 3 – THEODOR W. ADORNO

FONTE: <https://static.todamateria.com.br/upload/ad/or/adorno.jpg>. Acesso em: 14 ago. 2019.

A base dessa apresentação será o texto de Matos (1993, p. 76). Adorno


foi filho de pai alemão e mãe italiana, nascido em Frankfurt em 1903, com nome
completo Theodor Wiesengrund Adorno.

Seu pai era judeu assimilado, negociante de vinhos. Sua mãe era cantora
lírica até casar-se, e filha de uma cantora alemã e de um oficial do exército francês.
Em função disso, Adorno cresceu em um meio de musicistas e amantes da música,
destinando-se logo cedo para a estética musical, aprendendo piano e composição.
Também estudou a Filosofia, conhecendo Kant por meio de seu amigo Kracauer,
especialista em sociologia do conhecimento (obra famosa: de Cagliari a Hitler –
relações entre cinema e nazismo).

Mudou-se para Viena em 1925, ficando até 1928. Estudou composição e


técnica pianística, frequentou os meios de vanguarda e dirigiu o jornal Anbruch
(O Começo). Nesse período conheceu Horkheimer, pois após Viena retornou a
Frankfurt. Ele já havia visto Horkheimer em um seminário sobre o pensamento
de Husserl, ministrado por Hans Cornelius – que o orientou na defesa da tese A
transcendência do objetal e do neomático na fenomenologia de Husserl, em 1924.

Já para seu doutoramento, Adorno redigiu a tese Kierkegaard, construção


da estética, defendida em 1931 e publicada em 1933, tornando-se Privatdozent
(livre-docente) na Universidade de Frankfurt. Ao Instituto de Pesquisa Social ele
vinculou-se apenas em 1938.

Adorno também sofreu o exílio, tal como Horkheimer:

Ao contrário de Horkheimer, não se exila logo. Entre 1933 e 1937 passa a


maior parte do tempo no Merton College, em Oxford. Quando se exila nos
Estados Unidos, aproxima-se ainda mais de Horkheimer, e os dois passam
a trabalhar em colaboração, sendo o primeiro fruto a obra Dialética do
Iluminismo (Dialektik der Aufklärung), publicada em 1947 em Amsterdã.
Com o fim da guerra, Adorno é um dos que mais desejam o retorno
a Frankfurt, tornando-se diretor-adjunto do Instituto para a Pesquisa
Social e seu co-diretor em 1955. Por fim, em 1958, com a aposentadoria de
Horkheimer, Adorno torna-se o novo diretor (MATOS, 1993, p. 76).

89
UNIDADE 2 | ESCOLA DE FRANKFURT

Em 1966 publica a obra Dialética Negativa, e somadas às discussões sobre a


crítica da ciência contemporânea feitas em parceria com Popper, seu desempenho
o auxilia a chegar a posição de reitor da Universidade de Frankfurt, em 1968.
As rebeliões estudantis desse mesmo ano o deixaram em difícil posição, pois
representava a autoridade que estava sendo contestada. “Como artífice da Teoria
Crítica da Sociedade, esperava-se dele o antiautoritarismo e a encarnação do anti-
Estado, por isso o movimento estudantil acusou-o de estar ao lado do poder”
(MATOS, 1993, p. 76).

Suas obras completas começaram a ser editadas em 1969, pela editora


Suhrkamp, no mesmo ano em que faleceu, na Suíça.

Agora sim, conhecendo a história de Adorno, seguimos com a indústria


cultural. Antes de mais nada é importante mencionar que os frankfurtianos
elaboraram uma crítica à indústria cultural. Para eles, tudo se inicia com a
ideia disseminada pela modernidade de que é possível que os seres humanos
desenvolvam um projeto coletivo que os liberte dos seres míticos e das opressões
sociais, permitindo a todos uma vida justa e realizações individuais.

No entanto, a história mostrou que havia contradições nesse projeto,


problemas, conflitos e sofrimentos existenciais, especialmente no contexto
histórico da época – permeado por governos totalitários. O ser humano autônomo
acaba por sucumbir aos interesses sistêmicos, se transformando em refém do que
eles chamam de barbárie tecnológica (RÜDIGER, s.d.). Nas palavras dos autores:

O aumento da produtividade econômica, que por um lado produz


as condições para um mundo mais justo, confere por outro lado
ao aparelho técnico e aos grupos sociais que o controlam uma
superioridade imensa sobre o resto da população. O indivíduo se vê
completamente anulado em face dos poderes econômicos. Ao mesmo
tempo, estes elevam o poder da sociedade sobre a natureza a um nível
jamais imaginado. Desaparecendo diante do aparelho a que serve o
indivíduo se vê, ao mesmo tempo, melhor do que nunca provido por
ele. Numa situação injusta, a impotência e a dirigibilidade da massa
aumentam com a quantidade de bens a ela destinados. A elevação do
padrão de vida das classes inferiores, materialmente considerável e
socialmente lastimável, reflete-se na difusão hipócrita do espírito. Sua
verdadeira aspiração é a negação da reificação. Mas ele necessariamente
se esvai quando se vê concretizado em um bem cultural e distribuído
para fins de consumo. A enxurrada de informações precisas e diversões
assépticas desperta e idiotiza as pessoas ao mesmo tempo (ADORNO;
HORKHEIMER, 1947 apud RÜDIGER, s.d., p. 134).

Em síntese, tudo se transforma em artigo de consumo, inclusive a cultura,


que se torna mercadoria. A subordinação da consciência à racionalidade capitalista
e o processo de transformação da cultura em mercadoria é que compõem a
indústria cultural. Não se trata dos produtos em si, como televisão, imprensa etc.,
mas de uma forma de uso desses produtos. “A expressão designa uma prática
social, através da qual a produção cultural e intelectual passa a ser orientada em
função de sua possibilidade de consumo no mercado” (RÜDIGER, s.d., p. 138).

90
TÓPICO 2 | CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLOGIA ALEMÃ PARA A COMPREENSÃO DA SOCIEDADE

Esse fenômeno se inicia a partir da adaptação de obras de arte para um


padrão de gosto chamado bem-sucedido, que poderíamos entender como um gosto
comum, e desenvolver técnicas para colocar essas obras no mercado. A publicidade
é parte do aparato da indústria cultural: “A colonização pela publicidade pouco
a pouco o tornou mecanismo de mediação estética do conjunto da produção
mercantil, momento este em que a produção cultural toda é forçada a passar pelo
filtro da mídia enquanto máquina de publicidade” (RÜDIGER, s.d., p. 134).

Para além das obras de arte, o mesmo fenômeno atinge outros itens de
produção cultural. A música, por exemplo, também passa pelo mesmo movimento:
a uniformização apresenta-se para uma audição de massas, já que a indústria elege
o que é música popular e estabelece um processo eficaz de venda a partir disso.

Em síntese, sempre que um produto cultural passa a ter uma fórmula


popular, associada ao êxito de consumo, a indústria promove e repete sempre
o mesmo padrão. Essa prática da indústria cultural torna-se um sistema que
promove a passividade social (MATOS, 1993). A arte passa a ser um instrumento
de reprodutibilidade técnica e quais itens serão reproduzidos são definidos por
esse sistema.

FIGURA 4 – CICLO DE DESENVOLVIMENTO DA INDÚSTRIA CULTURAL

FONTE: <https://www.coladaweb.com/wp-content/uploads/2014/12/20170901-industria-
cultural.jpg>. Acesso em: 14 ago. 2019.

Associado a isso surge a ideia de que os seres humanos são dependentes


dos bens que podem comprar e dos modelos de conduta difundidos pelos meios
de comunicação. Essas são as bases do consumismo, que encaixa na estratégia de
utilização da capacidade de bens e serviços conforme o consumo estético massificado.

91
UNIDADE 2 | ESCOLA DE FRANKFURT

Para Adorno e Horkheimer, a “cultura de massa” não é nem cultura


nem é produzida pelas massas: sua lei é novidade, mas de modo a
não perturbar hábitos e expectativas, a ser imediatamente legível
e compreensível pelo maior número de espectadores ou leitores.
Evita a complexidade, oferecendo produtos à interpretação literal,
ou melhor, minimal. Assim, a mídia realiza uma caça à polissemia,
pela demagogia da facilidade – fundamento da legitimidade desse
sistema de comunicação. Adorno critica a “indústria cultural” não por
ser democrática, mas por não o ser. A mídia transmite uma cultura
agramatical e disortográfica, de tal forma que a educação retorna à
condição do segredo, conhecimento de uma elite: “A luta contra a
cultura de massa só pode ser levada adiante se mostrada a conexão
entre a cultura massificada e a persistência da injustiça social”
(MATOS, 1993, p. 70).

Segundo Rüdiger [s.d.], os pensadores de Frankfurt foram os primeiros a


perceber que, além da religião, família e escola estavam perdendo sua influência
socializadora para as empresas de comunicação. O capitalismo passa a participar
da formação da consciência, quando converte bens culturais em mercadoria.

“A velhíssima tensão entre cultura e barbárie, arte série e arte leve, foi
superada com a criação de uma cultura de mercado em que suas qualidades se
misturam e vêm a conformar um modo de vida nivelado pelo valor de troca das
pessoas e dos bens de consumo” (RÜDIGER, s.d., p. 139). As obras de arte, as
ideias, as pessoas, passam a ser criadas e negociadas como bens descartáveis.

Um exemplo bastante claro utilizado pelos frankfurtianos é o da televisão,


mecanismo que busca evitar a reflexão. Catástrofes são apresentadas seguidas de
reportagens que as amenizam pelo seu conteúdo leve. As entrevistas são recortes
da realidade. A forma de apresentação dos telejornais não permite reflexão, pela
rapidez da mídia. Enfim, para os autores, a autonomia do pensamento é atacada
com o modus operandi da televisão.

FIGURA 5 – CHARGE SATIRIZANDO AS MÍDIAS TELEVISIVAS

OH, PODEROSO DA MÍDIA OBRIGADO PELA ESTA TIGELRA DE TAPIOCA


DE MASSA, OBRIGADO ARTIFICIALIDADE DAS MORNA REPRESENTA MEU
POR ELEVAR A EMOÇÃO, SOLUÇÕES RÁPIDAS CÉREBRO. EU OFEREÇO
REDUZIR O PENSAMENTO, E PELA MANIPULAÇÃO EM HUMILDE SACRIFÍCIO.
E ANIQUILAR A TRAIÇOEIRA DOS DESEJOS MANTENHA SUA LUZ
IMAGINAÇÃO! HUMANOS PARA FINS OSCILANTE PARA
COMERCIAIS. SEMPRE.

FONTE: <https://evolucaosertaneja.files.wordpress.com/2015/05/calvin-e-a-tv.
jpg?w=414&h=214>. Acesso em: 14 ago. 2019.

92
TÓPICO 2 | CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLOGIA ALEMÃ PARA A COMPREENSÃO DA SOCIEDADE

Para evitar a barbárie, Adorno e seus colegas defenderam o retorno à


arte e à gratuidade da fruição estética. Os meios de comunicação de massa são o
oposto da obra de pensamento, que é a obra cultural legítima – que leva a pensar
e a refletir. A publicidade converte tudo em entretenimento, enquanto a cultura e
a arte trazem a essência dos direitos humanos.

Cultura é pensamento e reflexão. Pensar é o contrário de obedecer. A


indústria cultural cria um simulacro de participação na cultura quando,
por exemplo, desfigura a Sinfonia nº 40 de Mozart em chorinho. Assim
adulterada, não é Mozart nem tampouco ritmo popular. Tanto a sinfonia
quanto o samba veem-se privados de sua força própria de bens culturais
considerados em sua autonomia. O direito à cultura é o direito de acesso
aos bens culturais, e a compreensão desses bens é o ponto de partida
para a transformação das consciências (MATOS, 1993, p. 71).

Dessa forma, a cultura torna-se objeto de estudos da Escola da Frankfurt,


a partir de uma perspectiva da Teoria Crítica. Para Adorno e Horkheimer, os
fenômenos de mídia não podem ser estudados de forma autônoma, e sim em sua
inserção na crise da cultura moderna provocada pelo progresso do capitalismo
(RÜDIGER, 1999).

Para Rüdiger (1999, p. 31), é possível identificar os princípios seguidos


pela reflexão da Escola de Frankfurt sobre a indústria cultural, a partir da
perspectiva crítica:

1- A perspectiva de interpretação se interroga sobre a estrutura e função da


cultura mercantil no contexto do processo global da sociedade.
2- A hipótese básica é a de que essa cultura produz e reproduz em termos
econômicos, técnicos e espirituais as categorias e contradições sociais
dominantes.
3- Os fenômenos de indústria cultural são tratados como fatos sociais que devem
ser julgados de acordo com certos critérios de valor imanentes descobertos
através de uma reflexão histórica.
4- A crítica considera o homem como sujeito e situa a indústria cultural em relação
aos mecanismos existentes entre estrutura social, as formas de consciência e o
desenvolvimento psíquico do indivíduo.
5- Finalmente, sustenta-se que os estímulos produzidos na esfera da indústria
cultural são um fenômeno histórico e que a relação entre esses estímulos e a
resposta é pré-formada e pré-estruturada pelo destino histórico do estímulo
tanto quanto do sujeito a que ele responde.

O estudo da indústria cultural permitiu obras extensas, portanto, seguem


duas sugestões de materiais para aprofundamento. Você também pode procurar
conhecer as obras de teoria da comunicação que se basearam na indústria cultural
para desenvolver seus estudos.

93
UNIDADE 2 | ESCOLA DE FRANKFURT

DICAS

A trajetória da Teoria Crítica e suas análises voltadas à Indústria Cultural são


sistematizadas por Francisco Rüdiger no texto A Escola de Frankfurt e a trajetória da crítica
à indústria cultural, que você pode consultar no link: https://periodicos.fclar.unesp.br/
estudos/article/viewFile/903/767.

DICAS

O mesmo autor publicou um livro sobre Adorno, A Teoria Crítica e a


comunicação, que pode auxiliar seus estudos, cuja referência é:
RÜDIGER, F. Comunicação e teoria crítica da sociedade: Adorno e a Escola de Frankfurt.
Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999.

4 HABERMAS E O CONCEITO DE AÇÃO


Outro conceito importante utilizado pelos autores da Escola de Frankfurt
é o conceito de ação. Em específico, ele foi objeto de análise de Habermas, autor
considerado da segunda geração da Escola, e que desenvolveu uma teoria sobre
a modernidade – sendo considerado um clássico na sociologia contemporânea.
Vamos conhecê-lo melhor para então prosseguir com o estudo de sua obra.

FIGURA 6 – JÜRGEN HABERMAS

FONTE: <https://images.wook.pt/getresourcesservlet/
GetResource?zGV1ec7MWFnEoY+1t2IbUe7Sfr5HvHZy4VOBpjE2YeY=>. Acesso em: 14 ago. 2019.

94
TÓPICO 2 | CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLOGIA ALEMÃ PARA A COMPREENSÃO DA SOCIEDADE

Jürgen Habermas é um autor alemão nascido em 1929, ainda vivo, filósofo


contemporâneo e um dos mais influentes pensadores sobre a modernidade e pós-
modernidade. Como sociólogo do pós-guerra, é influente a partir da elaboração da
sua teoria da razão comunicativa, e por isso um dos mais importantes intelectuais
contemporâneos.

Ele nasceu em Düsseldorf, e durante sua juventude já apresentava


inclinação para tratar com questões sociais. Estudou Filosofia, Literatura Alemã
e Economia nas Universidades de Göttingen, Zurique e Bonn. Suas preocupações
políticas tornam-se evidentes em sua tese de doutorado, quando estudou a
participação estudantil na política alemã, a partir de dados empíricos.

Após esse doutoramento, Habermas escrevia textos para jornais alemães


esporadicamente, e estes chamaram a atenção de Adorno, que o convida em 1956
para trabalhar como assistente no Instituto de Pesquisas Sociais, na Universidade
de Frankfurt. A partir disso, Adorno passa a influenciar a perspectiva crítica da
sociedade desenvolvida por Habermas.

Horkheimer, na época diretor do instituto, não simpatizou com a


orientação marxista e politicamente engajada de Habermas, portanto, ele mudou-
se para Marburg e pleiteou sua livre-docência com a tese Mudanças Estruturais do
Espaço Público. Após a obtenção de mais esse título, Habermas retorna a Frankfurt
em 1964 e assume a direção do Instituto de Pesquisas Sociais.

Habermas defende os violentos protestos estudantis ocorridos na


Alemanha nessa época (década de 1960), sendo a favor da participação política
por meio da desobediência civil. É hostilizado pela esquerda alemã por se afastar
de movimentos radicais e publicar textos contra lideranças estudantis.

Assim, passa a ensinar Filosofia em Heidelberg e Sociologia em Frankfurt,


transferindo-se para os Estados Unidos em 1968, lecionando na New School for
Social Research de Nova Iorque. Entre 1971 e 1980, dirigiu o Instituto Max Planck de
Starnberg, na Baviera. Um ano depois, publica a obra Teoria da Ação Comunicativa.

Em 1983, ele conquistou a cátedra de Filosofia na Universidade Johann


Wolfgang Von Goethe, em Frankfurt, na qual permaneceu até sua aposentadoria,
em 1994. Recebeu diversos prêmios e distinções, dentre eles o Prêmio Cultural de
Hessen, em 1999, e o Prêmio da Paz do Comércio Livreiro Alemão, em 2001.

Feita essa contextualização histórica, podemos afirmar que Habermas


fundamenta grande parte de suas teorias na linguagem, que para ele constitui-se
o traço distintivo dos seres humanos, e é, portanto, o fundamento da hominização.
Para defender essas teorias ele se apropria de Mead (apud ARAGÃO, 2002) e
argumenta que se a passagem da interação mediada por gestos para a interação
mediada por símbolos é o que torna o ser humano um ser social, então a instituição
da linguagem foi fundamental para estabelecer o ser humano como tal.

95
UNIDADE 2 | ESCOLA DE FRANKFURT

A lógica encontrada pelo autor é a seguinte: o que nos distingue da natureza


é a racionalidade, e também o que nos distingue da natureza é a linguagem,
portanto, nossa racionalidade se manifesta por meio do uso da linguagem, e
através dela podemos conhecer e analisar aspectos da razão humana.

A linguagem tornou-se fundamento básico de acesso à razão nas teorias


habermasianas porque – além da dificuldade metodológica de acesso analítico à
consciência como produtor de conhecimento –, a filosofia interpretada pela teoria
crítica da Escola de Frankfurt concebia uma visão unilateral de razão, manifesta
na razão instrumental (ARAGÃO, 2002). Esse conceito trata da obtenção de fins
através do uso das pessoas como meios, e essa característica manipuladora e
objetivante surge em decorrência das duas Grandes Guerras e dos regimes nazista
e stalinista vivenciados pelos estudiosos frankfurtianos (ARAGÃO, 2002).

Habermas não concordava com apenas essa forma de interpretar a razão e


buscou construir um conceito heterogêneo à razão instrumental, que culminou no
conceito de razão comunicativa. Assim, a linguagem permite descobrir estruturas
de racionalidade, pois envolve pelo menos dois participantes, tem como objetivo
o entendimento e, por isso, pode-se analisar uma razão intersubjetiva e não
apenas uma razão instrumental.

A razão instrumental é a ação racional relativa a fins, ou seja, é o uso da


razão humana para obtenção de finalidades, de utilidades, a partir de estratégias
(instrumentos). Ela difere da razão comunicativa que busca a comunicação o
diálogo, uma ação para o entendimento e desenvolvimento das ações sociais.

O aspecto da linguagem que importa para o pensamento habermasiano é a


utilização das sentenças com intenção comunicativa, que se torna uma ação social.

E
IMPORTANT

Antes de prosseguir, vamos retomar o conceito de ação social? É uma ação


que quanto ao sentido visado pelo agente ou os agentes, se refere ao comportamento de
outros, orientando-se por este em seu curso. Assim, é uma maneira de agir que possui um
sentido compartilhado socialmente, e cuja referência é o outro. Você pode revisar esse
conceito no material da unidade curricular Teoria Sociológica I, quando tratamos sobre o
autor Max Weber.

Em suas análises, Habermas pretende demonstrar que a racionalidade de uma


ação é função da extensão em que pode ser justificada, ou seja, elas têm pretensões
à verdade, à correção moral, à propriedade, à sinceridade e à compreensibilidade. A
ação possui um significado inerente por trazer a intenção do agente com relação à
realidade objetiva, social e subjetiva. Assim, ela ganha conteúdo cognitivo, normativo e
expressivo e pode, por isso, ser avaliada criticamente (INGRAM, 1993).

96
TÓPICO 2 | CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLOGIA ALEMÃ PARA A COMPREENSÃO DA SOCIEDADE

De acordo com Ingram (1993), Habermas parte inicialmente suas análises


teóricas do conceito de ação, que posteriormente alia ao de razão e classifica as
ações em: teleológica, normativa, dramatúrgica e comunicativa:

• Ações teleológicas: definidas como aquelas realizadas por uma pessoa em busca
de um objetivo. São estratégicas e incluem pelo menos outra pessoa no cálculo
dos meios e fins. Esse tipo de ação é racional por que os agentes calculam qual a
melhor estratégia para atingir um determinado fim e, assim, eles se relacionam uns
com os outros compreendendo-os como meios ou obstáculos para a realização de
seus fins. Também chamadas de ações instrumentais. São frequentes nas relações
estabelecidas entre as pessoas no contexto do mercado de trabalho.
• Ações normativas: a intenção das ações normativas é atender às expectativas
recíprocas por meio do ajuste de conduta aos valores e normas compartilhados
na sociedade. Os objetivos individuais podem ser neutralizados pelos deveres
sociais e padrões de gosto, que são legitimados na forma de um código
normativo compartilhado. Para ser considerada racional, esse tipo de ação
deve se conformar com os padrões de comportamento aceitos pela sociedade e
defender os interesses gerais das pessoas afetadas. Essas ações apresentam-se
em situações nas quais as normas sociais precisam ser evocadas para a solução
de conflitos, como em uma disputa judicial, por exemplo.
• Ações dramatúrgicas: são revestidas pela personalidade do agente, estratégicas
no sentido de obter uma resposta determinada de certa audiência. Essas ações
são baseadas na sinceridade dos agentes, envolvidas por seu caráter verdadeiro.
São racionais se forem sinceras e se não permitirem que um dos agentes seja
enganado. Essas ações pressupõem um consenso entre as pessoas envolvidas,
quando se estabelecem acordos nas relações sociais.
• Ações comunicativas: ocorrem quando duas pessoas pretendem chegar a um
acordo voluntário, coordenando esforços para uma cooperação mútua. Nas
outras ações não é necessário que os agentes desejem necessariamente chegar
livremente a um acordo, porém na ação comunicativa utiliza-se a linguagem
para obter um acordo em torno de temas problemáticos, por isso não é uma
ação estratégica. Esse tipo de ação é frequente nas relações familiares, em que
todos buscam o bem comum para uma convivência harmônica.

A partir dessa classificação, Habermas analisa as ações sociais, que estão


relacionadas com sua maneira de apresentar a razão humana, o que veremos no
próximo tópico.

DICAS

Os estudos sobre a teoria da ação de Habermas estão publicados em:


HABERMAS, J. Teoria do agir comunicativo. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

97
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você aprendeu que:

• A Teoria Crítica busca dar conta das estruturas presentes no trabalho humano,
baseando-se na experiência e defendendo a ideia de uma organização social
conforme a razão e os interesses da coletividade. Ela visa a uma transformação
global da sociedade, para tanto, tenta fortalecer as lutas às quais está ligada.

• Poucas vezes se viu na história da sociologia uma proposta científica como


meio de análise e que propusesse uma identificação de problemas da ordem
social mobilizando a esfera política e pública para sua resolução, tal como
ocorre na Teoria Crítica.

• A subordinação da consciência à racionalidade capitalista e o processo de


transformação da cultura em mercadoria é que compõem a indústria cultural.

• Sempre que um produto cultural passa a ter uma fórmula popular, associada
ao êxito de consumo, a indústria promove e repete sempre o mesmo padrão.
Cria-se também a ideia de dependência do produto, com isso origina-se o
comportamento consumista.

• Habermas indica que o que nos distingue da natureza é a racionalidade,


e também o que nos distingue da natureza é a linguagem, portanto, nossa
racionalidade se manifesta por meio do uso da linguagem.

• O aspecto da linguagem que importa para o pensamento habermasiano é a


utilização das sentenças com intenção comunicativa, que se tornam uma ação
social – que pode ser classificada em teleológica, normativa, dramatúrgica e
comunicativa.

98
AUTOATIVIDADE

1 O texto fundamentador da Teoria Crítica foi publicado em 1937, e seu título


era Teoria Tradicional e Teoria Crítica, de autoria de Horkheimer e Adorno.
Sobre a Teoria Crítica, analise as seguintes sentenças:

I- Ela propõe uma transformação global da sociedade e, para que isso


aconteça, busca fortalecer lutas às quais está ligada.
II- Ela defende que a sociologia deve seguir os preceitos positivistas e, por
isso, não intervir nas realidades que estuda.
III- Ela reconhece como parte de sua função, além de analisar a realidade, ser
base para a modificação da história.

Assinale a alternativa CORRETA:


a) ( ) Somente a afirmativa I está correta.
b) ( ) Somente a afirmativa II está correta.
c) ( ) Somente as afirmativas I e III estão corretas.
d) ( ) As afirmativas I, II e III estão corretas.

2 Descreva os principais aspectos dos seguintes conceitos, de acordo com as


perspectivas apresentadas pela Sociologia Alemã:

a) Indústria Cultural:
b) Ação Social:

99
100
UNIDADE 2 TÓPICO 3

OS DESDOBRAMENTOS DOS
ESTUDOS DA ESCOLA DE
FRANKFURT PARA A SOCIOLOGIA

1 INTRODUÇÃO
Para o estudo do último tópico deste livro didático, temos a seleção de
alguns temas de pesquisa que foram importantes para a consolidação da Escola
de Frankfurt como uma escola de pensamento sociológico, cujos materiais são
revisitados com frequência e utilizados por autores contemporâneos das mais
diversas áreas. É comum que as obras da Sociologia Alemã estejam presentes em
análises das áreas de Comunicação, Economia, Artes, Filosofia, entre outras.

Assim, este tópico está estruturado de maneira que iniciamos pelos


estudos sobre a racionalidade. A racionalidade esteve bastante presente
especialmente na segunda geração da escola, com Habermas. Ele desenvolveu os
conceitos de razão instrumental e razão comunicativa, representativas do Mundo
Sistêmico e Mundo da Vida. Dessa forma, ele busca explicar a modernidade,
conforme estudaremos.

Após, vamos aos estudos sobre a arte, a estética e conheceremos o


autor Marcuse. E, para fechar, os estudos sobre autoridade desenvolvidos
na Escola também serão apresentados. Também são temáticas revisitadas na
contemporaneidade por profissionais da sociologia, tamanha a influência que
exerceram no campo.

Dessa maneira, encerramos nossos estudos iniciais sobre a Sociologia


Alemã com alguns dos principais temas de análise dessa escola sociológica
consolidada. Desejamos uma ótima leitura!

2 ESTUDOS SOBRE A RACIONALIDADE


O conjunto de estudos sobre a racionalidade humana, desenvolvidos
principalmente por Habermas no contexto da Escola de Frankfurt, influencia até
hoje grande parte dos trabalhos sociológicos que busca entender a humanidade
em suas relações.

101
UNIDADE 2 | ESCOLA DE FRANKFURT

Habermas segue o desenvolvimento da ideia de ação comunicativa


articulando dois outros conceitos importantes para as análises sociológicas:
razão instrumental e razão comunicativa. Eles estão associados por meio de
uma teoria da modernidade, que explica as relações entre o mundo sistêmico
e o mundo da vida. Em cada um deles predomina uma forma de razão, como
veremos neste subtópico.

A questão da razão comunicativa enquanto elemento de compreensão


da sociedade está ligada diretamente às teorias sobre a argumentação. Para
Habermas, a razão prática tem função de fornecer argumentos para apoiar as
crenças subjacentes às decisões de agir. Assim, para que a ação seja racional, o
agente precisa ter uma crença que pode ser justificada racionalmente.

Ao agirem individualmente, os sujeitos são racionais quando resolvem


suas necessidades pessoais, porém quando estão na esfera societária são racionais
somente se resolvem os conflitos por meio da argumentação. Nesse processo, os
agentes só deixam ser persuadidos para o acordo por meio da força do melhor
argumento (INGRAM, 1993). Novamente, vemos aí as teorias da linguagem nos
estudos habermasianos.

O entendimento, objetivo maior da ação comunicativa, só pode ser


alcançado desde que os participantes do processo reconheçam intersubjetivamente
as pretensões de validade lançadas pelo sujeito falante e agente. Essas pretensões
de validade são avaliadas e, assim, compreendidas e submetidas à crítica, no que
tornam-se expressões racionais.

Quando realizam um proferimento, uma fala, os agentes supõem que


existem padrões comuns, por meio dos quais decidem se pode haver um consenso
entre eles. Para chegar a um entendimento, os agentes passam por quatro etapas:

• o intérprete deve conhecer as condições nas quais o proferimento é válido, ou


seja, reconhecer as condições dessa pretensão de validade;
• esse conhecimento leva o intérprete a saber quando a ação dos participantes
está coordenada, de forma a construir um consenso, e quando se desintegram
devido à falta de consenso;
• ele só pode compreender o sim ou não do agente conhecendo as razões
implícitas que levaram os participantes a assumirem tais posições, em torno
das quais os processos de entendimento revolvem;
• o próprio intérprete precisa estar no processo de afirmar pretensões de validade,
para que o falante defenda a validade de uma expressão (ARAGÃO, 1992).

A ação comunicativa distingue-se da ação instrumental porque uma


ação que contenha eficácia é mediada pelo entendimento linguístico, ou seja, os
agentes que estão interagindo pretendem que seus atos de fala tenham validade,
assim, intersubjetivamente eles reconhecem pretensões de validez criticáveis.

102
TÓPICO 3 | OS DESDOBRAMENTOS DOS ESTUDOS DA ESCOLA DE FRANKFURT PARA A SOCIOLOGIA

A força que motiva esse entendimento parte de uma racionalidade que


se manifesta nas condições de um consenso obtido comunicativamente, e não
de uma racionalidade de tipo teleológica – que apenas apresenta um aspecto
utilitarista no qual os agentes são utilizados para o alcance a determinados fins
(ARAGÃO, 2002).

Porém, o agir comunicativo só é possível porque o agente é inserido em


um universo cultural por membros de um grupo que compartilha um conjunto de
sentidos simbólicos e de normas sociais. Assim o indivíduo é inserido no "mundo
da vida", conceito utilizado por Habermas e que se relaciona diretamente a sua
teoria da ação comunicativa.

O mundo da vida possui duas dimensões: uma transcendental e


uma empírica. A dimensão transcendental é a parte que permite a existência
da possibilidade de entendimento, por ser o pano de fundo das práticas
comunicativas – através do conjunto de sentidos predeterminados de que
os agentes se utilizam para compreender, interpretar e agir sobre os mundos.
Esses sentidos predeterminados são originários dos objetos simbólicos criados
pelos seres falantes, e que um grupo toma por referência, criando assim uma
tradição cultural compartilhada. Esse mundo intersubjetivo, enquanto sistema de
referências, permite aos agentes o entendimento sobre algo no mundo, e constitui,
portanto, o "mundo da vida" (ARAGÃO, 2002).

O mundo da vida possui características que devem ser destacadas: I)


caráter não problemático, pois é aceito sem questionamento pelo senso comum;
II) existe um a priori social embutido na intersubjetividade do entendimento
mútuo na linguagem, pois o mundo da vida é comum a todos; III) os limites do
mundo da vida não podem ser transcendidos, apesar das situações mudarem
constantemente (ARAGÃO, 1992).

Os sujeitos falantes e agentes criam o contexto social da vida, direta


ou indiretamente, produzindo objetos simbólicos que corporificam
estruturas de conhecimento pré-teórico: a) sob a forma de expressões
imediatas: atos-de-fala, atividades dirigidas a metas e ações
cooperativas; b) sob a forma de sedimentações dessas expressões
imediatas: textos, tradições, documentos, obras de arte, objetos de
cultura material, bens, técnicas, etc.; e finalmente, no nível de maior
complexidade, c) sob a forma de configurações geradas indiretamente:
as instituições, os sistemas sociais e as estruturas de personalidade. Esse
conjunto de objetos forma uma realidade estruturada simbolicamente,
anteriormente a qualquer abordagem teórica desse mesmo domínio
de objetos. A esta realidade pré-estruturada simbolicamente, a
esse conjunto de sentidos gramaticalmente pré-determinado,
Habermas denomina "mundo-da-vida" [...] Esse "mundo-da-vida"
intersubjetivamente partilhado forma o pano-de-fundo para a ação
comunicativa, ou seja, ele forma, a partir da junção dos três mundo, um
sistema de referência que é pressuposto nos processos comunicativos,
pois define aquilo sobre o que possivelmente pode haver qualquer
entendimento (ARAGÃO, 1992, p. 44).

103
UNIDADE 2 | ESCOLA DE FRANKFURT

Habermas distingue o mundo da vida do mundo sistêmico, em que


especifica formalmente a distinção entre as esferas da reprodução social – material
e simbólica – e as funções de integração da sociedade – sistema e social, além das
duas interações com essas esferas – ação instrumental e ação comunicativa.

O sistema limita as decisões do sujeito através de mecanismos de mercado


ou burocráticos, relacionados à sobrevivência política e econômica do indivíduo.
O mundo da vida contribui para o indivíduo realizar ações em torno de valores
compartilhados e manter sua identidade social.

Exemplificando, as famílias e as esferas de acesso público (cultural, social


e político) pertencem ao mundo da vida, enquanto o mundo sistêmico manifesta-
se nas empresas e órgãos do Estado. No entanto, não se pode dissociar as funções
reprodutivas materiais da família ou as funções reprodutivas simbólicas da
comunidade empresarial – há uma sobreposição de funções, que Habermas
reconhece como válida (INGRAM, 1993).

Podemos sintetizar as diferenças da seguinte forma:

QUADRO 1 – QUADRO COMPARATIVO MUNDO DA VIDA X MUNDO SISTÊMICO

MUNDO DA VIDA MUNDO SISTÊMICO


Integração social Reprodução social
Família, Esferas Públicas Empresas, Estado
Razão comunicativa Razão instrumental
Ação comunicativa Ação estratégica (instrumental)

FONTE: A autora

A racionalidade instrumental, para Habermas, é proveniente das esferas


científicas e técnicas, que trazem em si uma essência de dominação por consistir na
organização e na escolha adequadas de meios para atingir fins determinados. Assim,

[...] na medida em que a racionalidade instrumental da ciência e da


técnica penetra nas esferas institucionais da sociedade, transforma
as próprias instituições, de tal modo que as questões referentes às
decisões racionais baseadas em valores, ou seja, em necessidades
sociais e interesses globais, que se situam no plano da interação,
são afastadas do âmbito da reflexão e da discussão. A racionalidade
instrumental, na trajetória de ampliação de seu campo de atuação,
substituiu de forma crescente o espaço da interação comunicativa
que havia anteriormente no âmbito das decisões práticas que diziam
respeito à comunidade. Dessa forma, caem por terra as antigas formas
ideológicas de legitimação das relações sociais de poder. Com esse tipo
de racionalidade não se questiona se as normas institucionais vigentes
são justas ou não, mas somente se são eficazes, isto é, se os meios são
adequados aos fins propostos, ficando a questão dos valores éticos e
políticos submetida a interesses instrumentais e reduzida à discussão
de problemas técnicos (GONÇALVES, 1999, p. 130).

104
TÓPICO 3 | OS DESDOBRAMENTOS DOS ESTUDOS DA ESCOLA DE FRANKFURT PARA A SOCIOLOGIA

Para Habermas, ocorre a colonização do mundo da vida pelo mundo


sistêmico, em que a racionalidade instrumental passa a querer operar nas esferas
do mundo da vida. O pensamento administrativo, econômico – em busca de
dinheiro e poder, por exemplo –, passa a estar presente também nas relações
familiares, de amizade e demais relações mais íntimas entre as pessoas.

Com esse processo, Habermas defende que se produzem três ilusões: que
a linguagem é um meio de conhecimento verídico e transparente; que a interação
comunicativa se caracteriza pela pura reciprocidade; e que os indivíduos são
plenamente conscientes dos seus motivos, que funcionam como pressupostos
contrafactuais subjacentes à ação comunicativa (INGRAM, 1993).

A complexidade do mundo sistêmico, para ele, amplia-se de acordo com


a complexidade das estruturas institucionais de uma determinada sociedade.
A estratificação de classes organizadas em torno do Estado – a distribuição
de funções políticas – produz a separação entre o mundo da vida e o mundo
sistêmico. O que completa essa separação é a lei formal, em que o mercado, por
exemplo, eleva-se e torna-se um sistema autorregulado que distribui mercadorias
de acordo com as leis da oferta e da demanda (INGRAM, 1993).

Com a sociedade de classes, o sistema torna-se cada vez mais independente


do mundo da vida, pois para que houvesse um mundo vivo racionalizado seria
pré-condição haver integração social.

Para finalizar, o quadro a seguir sintetiza as principais características do


agir comunicativo e agir instrumental, permitindo sua comparação:

QUADRO 2 – QUADRO COMPARATIVO AGIR COMUNICATIVO X AGIR INSTRUMENTAL

Agir comunicativo Agir instrumental


Agir: falar ou atuar com o outro. Agir: atuar apenas sobre o outro.
Ações orientadas para o (pelo) entendimento Ações orientadas para o sucesso
mútuo
Perspectiva de 1a pessoa ou do agente Perspectiva de 3a pessoa ou do observador
Razão comunicativa Razão instrumental
Agir comunicativo – entendimento mútuo Agis estratégico
Interação social reside na própria linguagem Interação social reside na própria influência de
um sujeito sobre outro
Consenso Adequação de meios e fins

FONTE: <https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/10808/10808_3.PDF>. Acesso em: 14 ago. 2019.

Se você deseja ampliar seu conhecimento neste tema, segue a indicação de


um compilado de obras do autor Habermas.

105
UNIDADE 2 | ESCOLA DE FRANKFURT

DICAS

A editora Edições 70 possui publicada uma coleção de alguns textos de


Habermas, intitulada Obras Escolhidas de Jürgen Habermas. As obras trazem:
Volume I – Fundamentação Teórico-Linguística da Sociologia.
Volume II – Teoria da Racionalidade e Teoria da Linguagem.
Volume III – Ética do Discurso.
Volume IV – Teoria Política.

3 ESTUDOS SOBRE A ARTE


Um dos temas que permeou as análises da Escola de Frankfurt com relativa
frequência foi a temática artística. Para os autores, a arte é a maneira do sujeito se
desconectar das estruturas que o condicionam – ela permite uma experiência de
liberdade e, por isso, deve ser objeto de análise nas pesquisas sociais. Além disso,
tornou-se mercadoria diante da amplitude da indústria cultural.

A temática artística sempre esteve pouco presente na Sociologia e os


estudos da Escola de Frankfurt lançam sobre ela um olhar sociológico de grande
valia, que impactam a análise desse campo. Os trabalhos de pesquisa social que
consideram algum aspecto das artes utilizam com frequência os fundamentos
lançados pelos frankfurtianos.

Alguns dos teóricos frankfurtianos analisaram a arte, inclusive do ponto


de vista das relações arte, cultura erudita, cultura de massas, entre outros, e um
deles foi Herbert Marcuse. Antes de conhecer seu ponto de vista, vamos apreender
a história de vida de Marcuse, a partir da exposição de Matos (1993).

FIGURA 7 – HERBERT MARCUSE

FONTE: <https://revistacult.uol.com.br/home/wp-content/uploads/2018/07/reproducao_
marcuse.jpg>. Acesso em: 14 ago. 2019.

106
TÓPICO 3 | OS DESDOBRAMENTOS DOS ESTUDOS DA ESCOLA DE FRANKFURT PARA A SOCIOLOGIA

Hebert Marcuse nasceu em Berlim, Alemanha, também em uma família


de judeus assimilados, como boa parte de seus colegas da Escola de Frankfrut.
Participou do Partido Social-Democrata Alemão entre 1917 e 1918, integrando um
Conselho de Soldados.

Marcuse conheceu a Filosofia em Berlim e Freiburg, com Husserl e


Heidegger, foi onde se doutorou com a tese Romance de artista (Kunstlerroman).
Após, trabalhou em editoras em Berlim, e quando voltou a Freiburg estudou sob
a orientação de Heidegger uma tese que foi publicada em Heidelberg como A
ontologia de Hegel e a função da historicidade.

Após essa publicação, Marcuse entrou em contato com o Instituto de


Pesquisas Sociais, conhecendo Horkheimer. “Participou da revista A Sociedade
(Die Gesselschaft), de Hilferding, e dos Cadernos Filosóficos (Philosophische Hefte),
de Maximilien Beck, assim como da Revista do Instituto para a Pesquisa Social”
(MATOS, 1993, p. 77).

Marcuse foi exilado, a partir de 1933, primeiro em Genebra e depois em Paris,


assumindo com Horkheimer e Adorno a direção da Revista para a Pesquisa Social.
Em 1934, foi para os Estados Unidos e lecionou na Universidade de Columbia e na
Universidade de San Diego. Contribuiu com a obra Autoridade e Família, publicada
em 1936, e depois distanciou-se do instituto. Ao término da guerra, Horkheimer
retornou à Alemanha e Marcuse optou por permanecer nos Estados Unidos até
1950 – trabalhando no Departamento de Estado. A partir disso:

Retornou à Universidade de Columbia como professor convidado do


Departamento de Sociologia e do Instituto Russo. Sua colaboração
no Centro de Pesquisa Russo de Harvard, Massachusetts (1952-
1954), resultou na publicação da obra O marxismo soviético (1958).
Em 1954 tornou-se professor de política e filosofia na Universidade
de Boston, onde permaneceu até 1965, participando do programa de
estudos sobre a obra História das ideias, de Brandeis. Durante esse
período foram publicados Eros e a civilização (1955) e A ideologia na
sociedade industrial (Onde Dimensional Man) (1964), obras que lhe
valeram a celebridade.
Trocando Massachusetts pela Califórnia, lecionou na Universidade de
San Diego e começou a se caracterizar como uma das referências mais
importantes da Nova Esquerda americana (MATOS, 1993, p. 78).

Marcuse foi bastante ativo em movimentos, participando dos movimentos


estudantis de 1968, no movimento Black Power, em debates da Universidade Livre
de Berlim em 1967, Colóquio da Unesco em 1968, entre outros. Tornou-se uma
celebridade mesmo após seu afastamento da Escola de Frankfurt. Faleceu em 1978,
na Alemanha, onde estava viajando a trabalho, como um cidadão americano.

Marcuse revisita a obra de Marx para desenvolver suas análises. Um


conceito forte que ele reinterpreta é o conceito de trabalho – que constitui o ser
humano e no capitalismo leva à alienação. Ele busca entender a relação entre a arte e
o trabalho. Mas também embarca nas obras de Freud, buscando a relação trabalho,
subjetividade a arte na sociedade industrial (CHAVES; RODRIGUES, 2014).
107
UNIDADE 2 | ESCOLA DE FRANKFURT

Embora Marcuse (1955/1969) reconheça a cisão entre arte e trabalho


como um dado histórico, ele adverte que a contraposição não pode
ser hipostasiada, pois é resultado de uma cultura que supervaloriza a
arte, como expressão estética diferenciada, e, por isso perde a tensão
com a possibilidade de essa manifestação da cultura reverter-se em
uma mercadoria da indústria cultural. Esse movimento encobre
aspectos importantes da realidade como o fato das obras de arte
serem sucumbidas aos valores e às normas da sociedade capitalista
(CHAVES; RODRIGUES, 2014, p. 13).

Para Marcuse, a beleza das obras de arte não pode ser relacionada
a contextos históricos específicos, pois se fosse dessa maneira cairíamos no
relativismo. Assim, ele sugere pensar certas qualidades da arte ao longo de
todas as mudanças de estilo e períodos históricos, que seriam, conforme Chaves
e Rodrigues (2014), caráter político da arte, o fato dela ser revolucionária, a
universalidade, a alteridade, a transcendência, a forma estética, o belo e a
possibilidade de instigar a sensibilidade.

Aliado a isso, ele traz o debate sobre a unidimensionalidade da sociedade,


ou seja, uma sociedade que constitui indivíduos para a adaptação, uma sociedade
totalitária mais consolidada do que todas as instituições – que conduz os indivíduos
à passividade. “A sociedade unidimensional aparece como uma totalidade que
atinge a todos, sem exceção. Essa percepção é fruto da relação de troca e da abstração
objetiva a que a vida social obedece” (CHAVES; RODRIGUES, 2014, p. 14).

Para Marcuse, a arte não precisa configurar os interesses de uma classe


e sua verdade não se localiza nas relações de produção existentes, como afirma
Marx, mas a arte é política porque na sua forma estética rompe com a consciência
dominante e revoluciona a experiência.

Para Marcuse, o potencial político da arte não está associado a quem


escreveu ou para quem a obra é destinada. Se ela foi escrita para ou
pela classe trabalhadora ou para a revolução, esta não é a questão
principal. O potencial político da arte é qualidade de sua forma
estética: “Se alguma arte existe para qualquer consciência coletiva, é
a dos indivíduos unidos na sua consciência da necessidade universal
de libertação – qualquer que seja a sua posição de classe” (CHAVES;
RODRIGUES, 2014, p. 14).

Marcuse afirmava que a arte poderia ser engajada, e aos que entendiam
que a realidade da época só poderia ser modificada por meio de radicalismo
político – e que a arte apenas era romântica e elitista – ele dizia que a arte era
parte do processo revolucionário.

A arte pode ser revolucionária em vários sentidos. Em sentido


restrito, quando apresenta uma mudança radical no estilo e na técnica
(vanguarda), “antecipando ou refletindo mudanças substanciais na
sociedade”, como aconteceu com o expressionismo e o surrealismo,
que “anteciparam a destrutividade do capitalismo monopolista”. Mas
também a arte pode ser revolucionária em sua configuração estética,
quando apresenta ausência de liberdade do existente e indica as forças

108
TÓPICO 3 | OS DESDOBRAMENTOS DOS ESTUDOS DA ESCOLA DE FRANKFURT PARA A SOCIOLOGIA

que se rebelam contra isso; quando rompe com a realidade reificada


e aponta horizontes de transformação; quando subverte as formas de
percepção e compreensão e deixa transparecer um teor de verdade, de
protesto e de promessa na linguagem e na imagem. Dentre os exemplos
dessa estética revolucionária, o autor menciona a obra As afinidades
eletivas, de Goethe, que apresenta a denúncia da realidade existente
e deixa aparecer a imagem da libertação, e as narrativas de Beckett e
de Kafka, que dão forma ao conteúdo, o qual aparece transformado,
alienado e mediatizado (CHAVES; RODRIGUES, 2014, p. 15).

Marcuse também analisa as relações entre indivíduo e sociedade a partir


da arte, buscando entender o modelo de análise do materialismo histórico-
dialético e seus efeitos nessa relação.

Para o autor, a polarização do materialismo vulgar levou à preferência


intransigente do realismo como modelo de arte progressista e ao
descrédito do romantismo, considerado reacionário. Ele pondera que
ir à interioridade da subjetividade também pode fazer que o indivíduo
emerja do emaranhado das relações de troca da sociedade burguesa.
A subjetividade se constitui na história e na objetividade, mas ela não
é idêntica a existência social. “Sem dúvida, as manifestações concretas
da história são determinantes pela sua situação de classe, mas essa
situação não é a causa do seu destino” (p. 18). Assim, se a subjetividade
é refletida ela pode analisar a própria particularidade histórica que a
constituiu (CHAVES; RODRIGUES, 2014, p. 15).

Existem ainda alguns itens que Marcuse analisa quando estuda a arte:
sua universalidade – ela articula a humanidade em todas as pessoas que podem
ser livres, portanto, não pode ser associada a uma classe em particular; os
personagens representam tendências do desenvolvimento da sociedade como um
todo – não apenas de uma classe específica; a existência na arte de uma alteridade
ligada à autonomia, pela possibilidade de comunicar verdades que não podem
ser comunicadas por outras linguagens, entre outros.

A arte está ligada a uma percepção do mundo que aliena os indivíduos


de sua existência funcional e da realização de seu desempenho
funcional – a arte está voltada para a emancipação da sensibilidade, da
imaginação e da razão em todas as áreas de subjetividade e objetividade.
Mas esse sucesso supõe um grau de autonomia que arranca a arte da
potência de mistificação do dado e a libera, permitindo-lhe exprimir a
verdade que lhe é própria. Na medida em que o homem e a natureza
são constituídos por uma sociedade não-livre, seu potencial reprimido
e deformado só pode ser representado sob a forma que distancia e
destaca. O mundo da arte é o de um princípio de realidade diferente,
o da alteridade; e é por sua alteridade que a arte preenche uma função
cognitiva: comunica verdades que não são comunicáveis em nenhuma
outra linguagem, ela contradiz (MATOS, 1993, p. 110).

Você pode estudar mais sobre os estudos de Marcuse acerca da arte e


estética a partir do artigo sugerido a seguir.

109
UNIDADE 2 | ESCOLA DE FRANKFURT

DICAS

Sobre a arte nas análises de Marcuse, acesse: http://www.redalyc.org/articulo.


oa?id=309330671003. A referência é:
CHAVES, J. C.; RODRIGUES, D. R. Arte em Herbert Marcuse: formação e resistência à
sociedade unidimensional. Revista Psicologia & Sociedade, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p.
12-21, 2014.

Investigue também sobre outras obras de Marcuse, além de desenvolver


escritos em parceria com outros autores da Escola de Frankfurt, ele possui uma
boa quantidade de artigos e livros publicados sobre outros temas da sociologia.

4 OUTROS ESTUDOS
A sociologia crítica passou por dificuldades de aplicação empírica em seus
primeiros estudos, enquanto ajustava seus fundamentos epistemológicos para
que as pesquisas baseadas em suas teorias atingissem o rigor científico necessário
para sua legitimação como metodologia das ciências sociais. Isso ocorreu, em
parte, em função da linha positivista dominante na ciência da época, que colocava
a Teoria Crítica à prova diante de investigações empíricas.

Nesse sentido, os estudos cruciais para essa consolidação da Teoria Crítica


como método se deram em torno da temática da autoridade. As dimensões da
autoridade constituem-se, assim, um objeto sociológico importante no contexto
da época, pelas quais perpassam os estudos contemporâneos sobre esse tema –
pois a Teoria Crítica deixou sua marca nas análises sobre o tema.

Foi após o exílio europeu e americano, conforme você estudou nas


dimensões históricas apresentadas no primeiro tópico, que surgem os estudos
sobre autoridade na Escola de Frankfurt. O Instituto sofria a pressão da crise
social que seus integrantes buscavam diagnosticar, ou seja, a própria história
trazia novamente à tona o problema da legitimação da dominação – um dos itens
de estudo dos frankfurtianos.

Os estudos sobre a autoridade partiram da ideia de que este era um


fenômeno de limites incertos, e que se todas as relações humanas fossem
colocadas sob o signo da autoridade seria um conceito vazio, momentos isolados
na história que representavam a vida social. Para evitar esse esvaziamento era
preciso que a autoridade fosse colocada em relação a outros conceitos da teoria,
desenvolvendo assim uma estrutura teórica (ASSOUN, 1991). Vejamos essa
explicação com mais detalhes:

110
TÓPICO 3 | OS DESDOBRAMENTOS DOS ESTUDOS DA ESCOLA DE FRANKFURT PARA A SOCIOLOGIA

Estamos perante a advertência de que este estudo da autoridade não


diz respeito a um fenômeno isolado, mas que é no fundo o processo
de totalização social agarrado através do artifício que a autoridade
serve precisamente para nomear. O conceito de autoridade não é
necessariamente homogêneo: enquanto conceito geral, contém elementos
de significação antitéticos que o conceito adquiriu ao longo das mudanças
históricas. Resta saber por que é que este fenômeno se confirma
privilegiado para cristalizar a teoria social (ASSOUN, 1991, p. 47).

A definição apresentada para autoridade é: “a aptidão, consciente ou


inconsciente, para se integrar ou para se submeter, a faculdade de aprovar a
situação presente como tal, em pensamento ou em ação, de viver na dependência
de ordens impostas e de vontades estranhas” (ASSOUN, 1991, p. 47).

Enquanto função social, a autoridade pode ser explicada como uma


relação em que está presente a submissão a uma autoridade, o indivíduo se
integra com o todo social dependendo de imposições. A Teoria Crítica, portanto,
olha para esse fenômeno para entender como ocorre a socialização do indivíduo
nessa totalidade cultural, e que gera essa adesão a uma autoridade.

O problema crítico, em resumo, era a legitimidade da dominação. O


momento histórico denotava ainda mais força a essa problemática, pois várias
“autoridades” totalitárias emergiam, regimes como o nazismo e o fascismo
– baseados na autoridade de um indivíduo – detinham força e com facilidade
angariavam novas pessoas a eles submetidas.

Nos estudos sobre autoridade é possível verificar como o trabalho na


Escola de Frankfurt era coletivo. A fundamentação teórica foi elaborada por
Horkheimer, Fromm e Marcuse (filosofia, psicologia social e política da história
intelectual). Criou-se a partir disso uma tipologia, “autoritário – revolucionário
– ambivalente”, e um questionário. Após, gerou-se conhecimento a partir da
publicação de diferentes monografias sobre o tema (TOMÁS, 2009).

A partir disso, definem-se três conclusões, sob o ponto de vista dos três
autores citados há pouco (TOMÁS, 2009, p. 105):

- Horkheimer: para ele, o sujeito é determinado pelas relações de


dominação que caracterizam a sociedade de uma certa época. A
obediência e a submissão sempre tiveram um lugar central na
educação da criança. A educação autoritária faz parte da socialização.
Segundo o sociólogo: “Os indivíduos não emitem um juízo pessoal a
cada instante. Pelo contrário, submetem-se em geral a um pensamento
superior, para cujo nascimento puderam aliás contribuir.”
- Fromm: o autor quer compreender o comportamento motivado
pelo inconsciente baseado na relação entre o efeito da infraestrutura
socioeconômica com as pulsões psíquicas fundamentais. A
importância do Pai como figura de autoridade põe em evidência
uma ética repressiva. O psicanalista explica como o indivíduo
absorve esta posição de dominação conduzindo à vontade de evasão
em direção às autoridades coletivas. A autoridade individual (na
educação parental), ao tornar-se coletiva, transforma-se numa
negação da autonomia.

111
UNIDADE 2 | ESCOLA DE FRANKFURT

- Marcuse: conclui, que para que exista uma democracia (que ele
e Horkheimer veem como a polis grega sem a escravatura), a
sociedade tem de ser racionalmente organizada. Existe por isso um
tipo de autoridade legítima: a autoridade da razão. No entanto, a
autoridade política que domina o homem moderno parece cada vez
mais irracional.

O corpo teórico consolidado e o corpo empírico um tanto fragmentado


caracterizam essa pesquisa, e Assoun (1991) reconhece nela a primeira súmula da
sociologia crítica. Essa pesquisa foi o símbolo da Teoria Crítica atuando em parceria
com a sociologia, em um objeto sociológico bastante amplo e que, por isso, seria alvo
de críticas da sociologia positivista. No entanto, essa parceria permitiu o surgimento
de uma sociologia crítica. Tomás analisa essas pesquisas do seguinte modo:

Estes primeiros trabalhos são relativamente primitivos do ponto de


vista metodológico. No entanto, do ponto de vista das interrogações os
inquéritos são inventivos. Mais importante, estes trabalhos servirão de
inspiração para os trabalhos críticos posteriores. Depois da eliminação
da esperança revolucionária, Horkheimer e Adorno assumem uma
posição verdadeiramente pessimista, a qual toma a forma de uma
concepção desiludida da história insistindo sobre o preço que a
humanidade tem de pagar em nome do progresso. A teoria crítica é
inseparável da crise de identidade do indivíduo e dos valores culturais
que provêm do liberalismo (TOMÁS, 2009, p. 49).

Conforme avançam os anos, especialmente no período “americano”


do Instituto, algumas contradições começam a aparecer. A Teoria Crítica
necessitava de espaço para atuar com sua crítica, e não ficar amarrada aos
métodos empiristas defendidos pela sociologia positivista. No entanto, como
você estudou na Unidade 1 deste livro, a sociologia norte-americana possuía
forte caráter empirista e pragmático.

Essa situação gerou uma adaptação por parte da Teoria Crítica, se antes ela era
defendida com total autonomia (mesmo em terras norte-americanas as publicações
saíam em alemão), a partir de então surgem trabalhos mistos nos quais essa teoria
é mais uma inspiração do que uma metodologia. Mas foi a ocasião para cultivar a
investigação empírica e fortalecer esse espaço nas análises da Teoria Crítica.

Acompanhando os estudos sobre a autoridade seguiram-se outros, tão


importantes quanto, como o estudo sobre o antissemitismo realizado em 1943-
1945, que pode ocorrer a partir de doações do American Jewish Committee (Comitê
Judeu Americano). A ideia da pesquisa era de 1939, mas ela só pôde ser executada
a partir dessa contribuição financeira.

O objetivo do trabalho era determinar a presença de antissemitismo


entre os operários americanos e conseguiu muitos dados, apresentados em uma
relação de quatro volumes (totalizando 1300 páginas). Esse material foi entregue
em 1944 ao Jewish Labor Committee (Comitê Judeu do Trabalho). Os dados foram
obtidos em Nova Iorque, Detroit e Califórnia, com o apoio de grandes centrais
sindicais (ASSOUN, 1991).

112
TÓPICO 3 | OS DESDOBRAMENTOS DOS ESTUDOS DA ESCOLA DE FRANKFURT PARA A SOCIOLOGIA

Estavam à frente da coleta de dados Gurland, Massing, Lowenthal, Pollock


e Weil, portanto, os economistas da Escola de Frankfurt passavam a aparecer mais
fortemente nas pesquisas – e a quantificação dos dados é colocada em ênfase,
com a participação do Gabinete de Pesquisa Social aplicada de Paul Lazarsfeld,
por intermédio de Herta Herzog. Assim, a linguagem apresentada pela Escola de
Frankfurt é uma linguagem da sociologia quantitativa, algo raro até então.

Acompanhando esse trabalho havia um conjunto ainda maior, um


programa de pesquisas sobre o preconceito, para o qual foi criado um departamento
de investigação científica por Horkheimer a partir de uma conferência em Nova
Iorque, em 1944. Resultou na obra Studies in Prejudice. Esse tema permitia o uso de
todos os métodos da problemática crítica e permitiu uma inovação metodológica:

O aproximar da ideologia antissemita, em virtude do seu


funcionamento inconsciente, requeria um método de aproximação
indireta que foi resolvido de maneira original. Em vez de testar o
antissemitismo com questionários diretos explícitos, quis-se agarrar
ao vivo o comportamento ou habitus antissemitas. Para este fim, 270
operários de fábrica desempenharam o papel de agentes do inquérito,
tendo memorizado séries de questões que serviam de testemunho
revelador quando de incidentes antissemitas. Foi assim que 566
entrevistas puderam ser utilizadas com a credibilidade resultante da
sua inserção na própria prática (ASSOUN, 1991, p. 49).

Esse foi o estímulo para uma pesquisa que deveria tratar de um campo
ideológico mais vasto, desde as técnicas de agitação política, problemas do
antissemitismo, estabelecimentos de ensino, até mesmo aos conjuntos ideológicos
dos antigos combatentes. Esse material é o balanço do período americano do
instituto e foi publicado em cinco volumes no ano de 1950, no seguinte formato,
conforme Assoun (1991, p. 49):

1) Dynamics of Prejudice: A Psychological and Sociological Study


of Veterans (Dinâmica do preconceito: um estudo psicológico e
sociológico dos antigos combatentes), por Bruno Bettelheim e
Morris Janowitz (1950).
2) Anti-Semitism and Emotional Disorder (Anti-semitismo e
perturbações afetivas: uma interpretação psicanalítica), por Nathan
W. Ackerman e Marie Jahoda (1950).
3) The Autoritarian Personality (A personalidade autoritária) por T. W.
Adorno, Else Frenkel-Brunswik, Daniel J. Levinson e R. Nevitt Sanford.
4) Prophets of Deceit (Falsos profetas), por Leo Lowenthal e Norbert
Guterman (1949).
5) Rehearsal for Destruction (Antevisão da destruição), por Paul
Massing (1949).

É com essa relação de estudos que finalizamos esta unidade, lembrando o


quanto é importante que você prossiga conhecendo de modo mais aprofundado
as pesquisas realizadas na Escola de Frankfurt. Seu legado é amplo e, como
você pôde perceber, além da interdisciplinaridade que ocorria nas abordagens
dos fenômenos (economia, psicologia, sociologia, filosofia etc.), também foram

113
UNIDADE 2 | ESCOLA DE FRANKFURT

inúmeros os autores vinculados a essa escola de pensamento. As marcas da Escola


de Frankfurt são tão duradouras que a referência à sociologia alemã sempre
perpassa esse conjunto teórico e metodológico.

Para encerrar, segue uma sugestão de artigo, que articula as contribuições


da obra frankfurtiana com as análises da sociedade contemporânea – e um texto
complementar que trata da crítica à Escola de Frankfurt, nada mais concreto para
entendermos os desdobramentos da sociologia alemã para os dias atuais.

DICAS

Para o texto mencionado sobre a análise da sociedade contemporânea a partir


da Escola de Frankfurt, acesse o link: http://revistas.unisinos.br/index.php/ciencias_sociais/
article/download/csu.2015.51.2.01/4785.
A referência é: LEISTNER, R. M. O debate da Escola de Frankfurt e suas contribuições para
uma reflexão crítica da sociedade contemporânea. Revista Ciências Sociais Unisinos, São
Leopoldo, v. 2, n. 51, p. 110-122, maio/ago. 2015.

DICAS

Se você deseja aprender sobre as influências da Escola de Frankfurt no Brasil,


inicie pelo artigo: CAMARGO, S. A Escola de Frankfurt e seus principais teóricos: os primeiros
anos da “Escola de Frankfurt” no Brasil. Revista Lua Nova, São Paulo, n. 91, p. 105-133, 2014.
Você também pode acessar o link: http://www.scielo.br/pdf/ln/n91/n91a05.pdf.

114
TÓPICO 3 | OS DESDOBRAMENTOS DOS ESTUDOS DA ESCOLA DE FRANKFURT PARA A SOCIOLOGIA

LEITURA COMPLEMENTAR

AS VOZES CRÍTICAS (IN: A ESCOLA DE FRANKFURT E SEU LEGADO)

As vozes insurgentes contra a Escola de Frankfurt não são poucas. A


mais famosa delas talvez seja a de Umberto Eco. Em 1964 (posteriormente seria
publicada uma edição revista em 1977), o intelectual italiano lançou “Apocalípticos
e integrados”, sobre o qual falaremos a seguir. Quando, em 1969, Adorno afirma
que “tiveram de se passar trinta anos para que a teoria crítica da indústria cultural
se afirmasse; [e] ainda hoje numerosas instâncias e agências tentam sufocá-la, por
prejudicar os negócios” (in Rüdiger, 1999, p. 7), não imaginava que mais de trinta
anos depois de proferir essa constatação a teoria crítica da indústria cultural
continuaria sendo posta em xeque. Rüdiger (1999, p. 7) vai além, afirmando que
“a crítica à indústria da cultura parece ter sido jogada às traças pela maior parte
dos praticantes dos estudos culturais e pesquisadores da comunicação”. Entre as
diversas acusações, o anacronismo e a posição elitista de seus teóricos, a defesa da
cultura erudita e a rejeição da cultura de massa são algumas das mais recorrentes.

Retornando a Umberto Eco, em seu já citado livro ele classifica os


frankfurtianos como “apocalípticos”, adjetivo usado largamente na crítica à Escola
de Frankfurt (os integrados do título seriam os funcionalistas). Segundo o autor,
os apocalípticos seriam responsáveis por esboçar teorias sobre a decadência,
enquanto aos integrados, pela falta de teorização, só lhes restaria produzir e afirma:
“O Apocalipse é uma obsessão do dissenter, a integração é a realidade concreta dos
que não dissentem [grifo do autor]” (Eco, 1979, p. 9). Para o teórico, caberia aos
apocalípticos o papel de consolar o leitor, já que, em meio à catástrofe, se elevariam
os “super-homens”, ou seja, aqueles acima da média, que olhariam para o mundo
com desconfiança. Para Eco (1979), essa atitude seria um convite à passividade.

Os apocalípticos seriam responsáveis também por difundir conceitos-fetiche,


como o da indústria cultural, por exemplo. Segundo o autor, o conceito-fetiche tem a
capacidade de bloquear o discurso e mostra uma recusa em aceitar a própria história
e a perspectiva de que a humanidade saiba se colocar frente a ela. Segundo Eco, pode-
se afirmar que a indústria cultural remonta ao invento de Gutenberg e à utilização
dos tipos móveis para imprimir as primeiras cópias dos livros.

O autor classifica as formulações da Escola como “pseudomarxistas” e


critica a posição dos frankfurtianos de não procederem a um estudo concreto
dos produtos, assim como de seu consumo, e de trabalharem com conceitos
difusos e imprecisos de cultura de massa, sobre o qual não se sabe exatamente
o que significa cultura e o que se chama indistintamente de massa, fazendo-se
preciso reelaborar essa noção do homem de cultura, perdido em meio à crítica
apocalíptica à indústria cultural.

115
UNIDADE 2 | ESCOLA DE FRANKFURT

Em meio à discussão sobre os apocalípticos, Eco levanta a contradição da


cultura de massas, uma vez que a comunicação massiva propõe às massas um
consumo de modelos culturais da burguesia, pondo em xeque tanto a mensagem
massificante como o homem massa. Dessa maneira, como a própria cultura de
massa, afirma o autor, as generalizações contradiriam as premissas.

Assim como Rüdiger (1999) apontou anteriormente quais eram as


principais críticas à Escola de Frankfurt, Eco (1979, p. 44) arrola a seguir algumas
proposições sobre a “verdadeira” cultura de massa:

• a cultura de massa não nasce necessariamente de um regime capitalista, mas de


um regime industrial; entre seus defeitos constam “o conservatismo estético,
o nivelamento do gosto pela média, a recusa das propostas estilísticas que não
correspondem ao que o público já espera”;
• a cultura de massa preencheu uma lacuna junto àqueles que não tinham acesso
aos bens culturais;
• o acúmulo de informação trazido pelos mass media pode sim gerar um ganho
qualitativo;
• as formas de entretenimento ditas “menores” (como histórias em quadrinhos
eróticas, lutas etc.) não deveriam ser considerados como uma forma de
decadência de costumes;
• uma homogeneização do gosto serviria para “unificar as sensibilidades nacionais”;
• a difusão de obras integrais a preços baixos e em grandes tiragens é uma ação
válida para a cultura;
• a repetição à exaustão de certos bens culturais afeta a recepção dos mesmos,
tornando-se, de tão batidos, quase que slogans;
• os mass media têm um poder de mobilização das massas frente ao mundo,
provocando certas subversões culturais;
• por fim, os mass media não são em si conservadores, já que introduzem uma
renovação estilística.

Para Eco, acima de tudo, os fenômenos culturais de massa são fruto de um


contexto industrial, sofrendo as consequências dessa condição. Para o autor, o erro
dos apocalípticos reside em “pensar que a cultura de massa seja radicalmente má,
justamente por ser um fato industrial, e que hoje se possa ministrar uma cultura
subtraída ao condicionamento industrial” (Eco, 1979, p. 49).

O problema estaria em pensar na cultura de massa como algo


essencialmente bom ou mau. Para Eco, o verdadeiro problema reside em aceitar
que se vive em uma sociedade industrial na qual os meios de massa são uma
realidade. A partir de tal premissa, o teórico questiona qual seria então o modo
pelo qual os mass media poderiam servir para transmitir valores culturais.

Na perspectiva de Jesús Martín-Barbero (2003), não se pode dissociar a


Escola de Frankfurt da experiência nazista, uma experiência radical, que por sua
vez estaria na base da radicalidade do pensamento desses autores. O capitalismo
mostraria, a partir do nazismo, seu caráter totalizante. Por essa razão, entende

116
TÓPICO 3 | OS DESDOBRAMENTOS DOS ESTUDOS DA ESCOLA DE FRANKFURT PARA A SOCIOLOGIA

Barbero (2003, p. 75), a impossibilidade de os frankfurtianos fazerem economia


e sociologia sem fazer filosofia. “É o que significa a crítica e o lugar estratégico
atribuído à cultura”, afirma. A partir do momento em que os processos de
massificação passam a ser vistos como parte dos conflitos da sociedade, uma
transformação se opera:

Em lugar de ir da análise empírica da massificação à de seu sentido na


cultura, Adorno e Horkheimer partem da racionalidade desenvolvida pelo
sistema – tal e como pode ser analisada no processo de industrialização-
mercantilização da existência social – para chegar ao estudo da massa
como efeito dos processos de legitimação e lugar de manifestação da
cultura em que a lógica da mercadoria se realiza (BARBERO, 2003, p. 75).

Para o autor, a Escola de Frankfurt é responsável por dois grandes feitos: levar
a problemática cultural para o campo da filosofia, bem como transformá-lo num ponto
de partida para os teóricos de esquerda refletirem sobre as contradições sociais.

Barbero aproxima a Escola de Frankfurt da reflexão crítica latino-


americana para encetar um debate com ela e mostrar as diferenças de realidade
sociocultural. Para o autor, Benjamin – como voz dissidente da Escola de Frankfurt
– foi também a voz mais lúcida, principalmente por mostrar “algumas chaves
para pensar o não pensado: o popular na cultura não como sua negação, mas
como experiência e produção” (BARBERO, 2003, p. 76).

O autor acredita que a conceituação da indústria cultural é resultado de


uma cuidadosa reflexão, e não de definições rápidas e rasteiras. Comenta, ainda
que uma das maiores contribuições da obra de Horkheimer e Adorno é a noção
de “unidade do sistema”, afirmação essa polêmica, principalmente pela ideia
generalizante que carrega, assim como afirmava Eco (1979), e pelo que Barbero
(2003) chama de “pessimismo cultural”.

Adorno, segundo Barbero (2003, p. 80), se coloca numa posição tal que
muitas vezes o leitor não sabe de que lado o crítico se encontra. “Que sentido tem
tudo o que foi afirmado sobre a lógica da mercadoria, que sentido tem criticar a
indústria cultural se ‘o que parece decadência da cultura é seu puro chegar a si
mesma’?” (Adorno in BARBERO, 2003, p. 80). Segundo o autor, Adorno, ao fazer
da arte o único caminho para a verdade, omite a pluralidade das experiências
estéticas e, ao se colocar num lugar mais elevado, parece se distanciar do estudo
das contradições das massas.

O autor ressalta que Benjamin “não investiga a partir de um lugar fixo,


pois toma a realidade como algo descontínuo” (BARBERO, 2003, p. 84). Ao se
afastar desse centro, Benjamin percebe que o caminho está em pensar a experiência
[grifo do autor] e para isso traça uma análise da modernidade a partir daquilo
que vê acontecer no mundo, seja nas artes ou na rua.

117
UNIDADE 2 | ESCOLA DE FRANKFURT

Para Barbero (2003, p 84), a popularidade de “A obra de arte na era de sua


reprodutibilidade técnica” talvez seja seu maior inimigo, uma vez que o texto
tem sido lido de diversas – e principalmente errôneas – maneiras, ou por ser lido
de modo isolado do restante da obra ou por confundir a morte da aura com o
próprio fim da arte. “Tratar-se-ia então, mais do que de arte ou de técnica, do
modo como se produzem as transformações na experiência e não só na estética”,
conclui. Para Benjamin, ao contrário de Adorno, a técnica aliada às massas seria
capaz de emancipar a arte.

***

A aceitação da perspectiva frankfurtiana no campo da comunicação no


Brasil passou por diversos períodos. Após uma primeira fase de descoberta e
incorporação desses teóricos nos anos 1970, os mesmos foram sendo relegados a
segundo plano, recebendo inclusive a alcunha de apocalípticos. Posteriormente,
na década de 1980 – tendo como ponto de referência a obra de Adorno –, seriam
tachados de pessimistas, e a crítica à indústria cultural, esvaziada de seu conteúdo.
Já na década seguinte, a teoria foi dada como caduca: “A referência às suas teses
transformou-se num procedimento ritual, através do qual eles preparam o terreno
para expor outras concepções teóricas e metodológicas” (Rüdiger, 1998, p. 15). Para
o autor, ainda, esse tipo de posicionamento é fruto de uma leitura apressada e de
um falso entendimento de que os autores frankfurtianos eram contra a cultura
popular e contra a tecnologia, quando na verdade eram críticos a esse sistema.

E os anos 2000, como ficam nessa perspectiva? É interessante observar que


em 2011 a obra de Walter Benjamin entrou em domínio público no Brasil (setenta
anos depois da sua morte, de acordo com a lei do direito autoral). Unicamente
de “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” já foi publicada uma
nova tradução (Francisco de Ambrosis Pinheiro, Zouk, 2012) e há outra sendo
preparada (Gabriel Valladão Silva, com introdução de Márcio Seligmann-Silva,
pela L&PM Editores, com previsão de publicação em 2013). As novas traduções
de uma obra, especialmente do idioma original, são de suma importância para o
estudo e a divulgação do tema, uma vez que a renovação dos leitores é facilitada,
especialmente de obras há muito esgotadas ou traduzidas indiretamente de
outras línguas. Em termos de perpetuação da Escola, observa-se também o que se
pode chamar de uma quarta geração de pensadores (The Frankfurt School, 2010),
encabeçada pela figura do filósofo alemão Rainer Forst, que não por acaso teve
sua tese de doutorado orientada por Jürgen Habermas.

A partir de uma revisão bibliográfica, vimos alguns dos pontos mais


polêmicos que cercam a dialética do esclarecimento e as críticas em relação à
indústria cultural, especialmente na visão de dois autores, Umberto Eco e Jesús
Martín-Barbero, um com um olhar europeu e o outro com uma visão latino-
americana.

118
TÓPICO 3 | OS DESDOBRAMENTOS DOS ESTUDOS DA ESCOLA DE FRANKFURT PARA A SOCIOLOGIA

Ao pensarmos o legado da Escola de Frankfurt, é interessante sempre


retomar o ponto de partida dos próprios teóricos, seu contexto social e histórico,
para entender como é possível que, prestes a completar 90 anos da inauguração
do Instituto de Pesquisas Sociais, seus textos continuem sendo estudados com
tanta atenção. Benjamin foi o grande teórico da modernidade. Já a teoria estética
de Adorno e seus estudos sobre a música foram ofuscados pela força de sua crítica
à indústria cultural e pela polêmica que suscitou. Tanto Adorno como Benjamin
exerceram sua produção intelectual em grande parte por meio do ensaio.

Tanto um como o outro se deparou com um regime de exceção que os fez


imigrar. Depois da Segunda Guerra, Adorno ainda retornou para a Alemanha,
onde viveu até morrer em 1969. Benjamin sucumbiu e se suicidou em 1940, em
Port Bou. Críticos da anestesia cultural, ambos devem ser relidos sempre.

FONTE: Mogendorff (2012, p. 157)

119
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você aprendeu que:

• Habermas segue o desenvolvimento da ideia de ação comunicativa articulando


dois outros conceitos importantes para as análises sociológicas: razão
instrumental e razão comunicativa.

• Ao agirem individualmente, os sujeitos são racionais quando resolvem suas


necessidades pessoais, porém quando estão na esfera societária são racionais
somente se resolvem os conflitos por meio da argumentação.

• A ação comunicativa distingue-se da ação instrumental porque uma ação que


contenha eficácia é mediada pelo entendimento linguístico.

• O mundo da vida possui duas dimensões: uma transcendental e uma empírica.


Ele é colonizado pelo mundo sistêmico. O mundo sistêmico é a esfera de
reprodução material da sociedade.

• Nas análises frankfurtianas, a arte é a maneira do sujeito se desconectar das


estruturas que o condicionam – ela permite uma experiência de liberdade e,
por isso, deve ser objeto de análise nas pesquisas sociais.

• A autoridade, tema de pesquisa do Instituto, é assim definida: a aptidão,


consciente ou inconsciente, para se integrar ou para se submeter, a faculdade
de aprovar a situação presente como tal, em pensamento ou em ação, de viver
na dependência de ordens impostas e de vontades estranhas.

CHAMADA

Ficou alguma dúvida? Construímos uma trilha de aprendizagem


pensando em facilitar sua compreensão. Acesse o QR Code, que levará ao
AVA, e veja as novidades que preparamos para seu estudo.

120
AUTOATIVIDADE

1 As análises sobre a razão comunicativa do autor Habermas possuem forte


relação com sua perspectiva de entendimento das relações humanas no
mundo moderno. Pensando nos conceitos que fazem parte dessa análise e
em suas definições, associe os itens, utilizando o código a seguir:

I- Razão Instrumental
II- Razão Comunicativa
III- Mundo da Vida
IV- Mundo Sistêmico

( ) Composto pelas esferas públicas, família, amizades.


( ) Composto pelo mercado (empresas) e pelo Estado.
( ) É estratégica e procura a reprodução social.
( ) Busca a comunicação e integração entre as pessoas.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:


a) ( ) I – II – III – IV.
b) ( ) II – I – III – IV.
c) ( ) III – IV – I – II.
d) ( ) IV – III – II – I.

2 Os estudos sobre a autoridade foram fundamentais para a consolidação


da estrutura empírica proposta pela sociologia crítica. Sobre esses estudos,
analise as seguintes sentenças:

I- Nas relações autoritárias, o indivíduo se integra com o todo social


dependendo de imposições alheias.
II- Os trabalhos da Escola de Frankfurt desenvolveram uma tipologia para
análise: autoritário, revolucionário e ambivalente.
II- O momento histórico dos estudos sobre autoridade auxiliou a coleta de
dados empíricos, pois estavam em vigência regimes totalitários na Europa.

Assinale a alternativa CORRETA:


a) ( ) Somente a afirmativa I está correta.
b) ( ) Somente a afirmativa II está correta.
c) ( ) Somente as afirmativas I e III estão corretas.
d) ( ) Todas as afirmativas estão corretas.

121
122
UNIDADE 3

SOCIOLOGIA FRANCESA

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• situar as características e os principais aspectos das bases teóricas e


metodológicas do pensamento sociológico francês, especialmente dos
autores Norbert Elias e Pierre Bourdieu;

• examinar as principais contribuições das pesquisas desenvolvidas por


Norbert Elias e Pierre Bourdieu;

• sistematizar os conceitos e metodologias utilizados por Norbert Elias e


Pierre Bourdieu;

• analisar os desdobramentos das pesquisas desenvolvidas por Norbert


Elias e Pierre Bourdieu, cuja influência persiste nas interpretações
contemporâneas da Sociologia.

PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer da unidade você
encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado.

TÓPICO 1 – A SOCIOLOGIA DE PIERRE BOURDIEU E NORBERT ELIAS

TÓPICO 2 – CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLOGIA FRANCESA PARA A


COMPREENSÃO DA SOCIEDADE

TÓPICO 3 – OS DESDOBRAMENTOS DOS ESTUDOS DE BOURDIEU E


ELIAS PARA A SOCIOLOGIA

CHAMADA

Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos


em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá
melhor as informações.

123
124
UNIDADE 3
TÓPICO 1

A SOCIOLOGIA DE PIERRE BOURDIEU E


NORBERT ELIAS

1 INTRODUÇÃO
Caro acadêmico, neste tópico abriremos a unidade com os fundamentos
necessários para a compreensão do pensamento e obras dos autores que
representam a sociologia francesa: Norbert Elias e Pierre Bourdieu. Elias na
verdade é alemão, mas a sua abordagem sociológica e, especialmente, seus
estudos sobre a sociedade de corte francesa (que desencadearam as teorias acerca
do processo civilizador) o aproximam muito mais de uma sociologia francesa do
que da escola alemã de teoria sociológica.

No caso da sociologia francesa não temos uma escola, um conjunto de


autores que formem uma tradição de teorias e métodos, como na Escola de
Chicago e na Escola de Frankfurt – representantes da sociologia americana e da
sociologia alemã. No entanto, temos estudos e autores que se desenvolveram em
torno do pensamento e da obra de Elias e Bourdieu, por isso são estes que você
estudará ao longo desta unidade.

Para começar, as dimensões históricas nas quais os autores estiveram


envolvidos são apresentadas para que você compreenda como esse contexto
influencia a formação do pensamento deles. Além disso, você conhecerá os
principais fundamentos das teorias sociológicas que mais impactaram a área
de pesquisas sociais de cada autor: Teoria dos Processos de Civilização (Elias) e
Teoria da Prática e Teoria da Dominação Simbólica (Bourdieu).

Lembre-se de aproveitar os materiais complementares para conhecer a


obra dos autores, buscando ler intérpretes e obras originais. Há diversos livros
traduzidos de ambos autores para o português, pois a sociologia francesa é ainda
na contemporaneidade uma referência forte nos estudos sociológicos brasileiros.

Vamos começar? Bons estudos!

125
UNIDADE 3 | SOCIOLOGIA FRANCESA

2 DIMENSÕES HISTÓRICAS: ELIAS


Vamos conhecer esse autor a partir da obra de Brandão (2003): Norbert
Elias, embora seja classificado como um autor que desenvolveu um pensamento
sociológico na escola francesa, na verdade é alemão, nascido em Breslau, hoje
Wroclaw (Polônia), que na época era território alemão – em 1897. Era filho de
judeus e alistou-se no exército alemão, trabalhando na telegrafia durante a
Primeira Guerra Mundial.

FIGURA 1 – NORBERT ELIAS

FONTE: <https://image.slidesharecdn.com/norbertelias-130505214533-phpapp01/95/norbert-
elias-1-638.jpg?cb=1367790368>. Acesso em: 18 out. 2019.

Após retornar e finalizar o serviço militar, ele se matriculou nos cursos


de medicina e filosofia, desistindo da carreira médica no primeiro semestre e se
dedicando unicamente ao aprendizado da filosofia em Heidelberg e em Freiburg.
Tornou-se Doutor em Filosofia em 1924, com o estudo Ideia e indivíduo – Uma
investigação crítica acerca do conceito de História.

Durante a República de Weimar houve um período de grande inflação,


o que fez com que os rendimentos da família Elias fossem reduzidos, e Norbert
passou a ter que sustentar a si e sua família. Como não tinha experiência, aceitou
um emprego em uma fábrica de produtos metálicos. Essa situação, ele afirma
posteriormente, alinhada com a experiência da guerra, o fizeram trocar os estudos
da filosofia pela sociologia.

Entre 1925 e 1930 ocorre uma melhora na economia e Elias retorna para
a Universidade de Heidelberg, preparando sua tese de habilitation, orientado por
Alfred Weber (irmão de Max Weber), cujo tema era a sociedade de corte francesa
nos séculos XVII e XVIII, publicada apenas em 1969 – com o título A sociedade de
corte (uma de suas obras mais famosas).

Em 1933, Hitler é nomeado chanceler na Alemanha, no mesmo período


em que Elias apresentava sua tese de habilitation, que lhe permitiria ser assistente
de cátedra de Karl Mannheim – na Universidade de Frankfurt. O concurso foi
interrompido devido às novas leis do regime de Hitler, que impediam a atuação
de profissionais judeus.

126
TÓPICO 1 | A SOCIOLOGIA DE PIERRE BOURDIEU E NORBERT ELIAS

Essa situação obrigou Elias a fugir para a França, em 1933, e depois para
a Inglaterra, em 1935, onde naturalizou-se. Lá, ele escreve seu primeiro artigo
como exilado, publicado em um jornal de Paris, editado em língua alemã por
refugiados – no qual analisa a expulsão dos calvinistas da França no século XVII.
Para muitos autores esse texto já apresenta as bases de sua teoria das relações
sociais entre ‘estabelecidos e outsiders’.

Com as dificuldades de um refugiado na Inglaterra, ele sobreviveu a partir


de um fundo para refugiados, o que o permitiu estudar e pesquisar na biblioteca
do Museu Britânico, o que originou a obra Processo Civilizador. Após esse trabalho
eclode a segunda guerra, e alguns exilados alemães, como ele, mudam-se para
Cambridge. Nesse momento, ele já era pesquisador visitante da London School of
Economics. No ano seguinte foi classificado como inimigo estrangeiro e preso até
o final da guerra.

Depois de todos esses percalços, vivendo na Inglaterra, ele se aproximou


da psicanálise e, a partir de amigos, foi convidado a fazer uma conferência sobre
as relações entre a psiquiatria e a sociologia em um evento dessa área, o que
ajudou a torná-lo mais conhecido. Apenas em 1954 ele foi aceito como docente
na Universidade de Leicester, tornando-se posteriormente professor adjunto até
a sua aposentadoria, em 1962.

Seu verdadeiro reconhecimento teórico veio posterior a isso, já que com


menos compromissos intelectuais ele pôde dedicar-se mais ao desenvolvimento
de suas obras. Acrescentou uma longa introdução ao Processo Civilizador para
explicar sua articulação com a sociologia, ao mesmo tempo é publicada Os
estabelecidos e os outsiders e A sociedade de corte. Isso desencadeou uma série
de convites para diferentes falas em universidades, que o fez publicar uma
quantidade significativa de artigos e receber o Prêmio Adorno, concedido pela
Universidade de Frankfurt. Faleceu em 1990, em Amsterdã.

A principal contribuição de Elias para a sociologia diz respeito à


análise sobre os costumes e evolução destes e a maneira como impactam o
desenvolvimento da civilização e as relações sociais que são modificadas
conforme ocorre o processo civilizador. Ele enxerga nos manuais de civilidade
um rico material para entender os costumes em um dado momento histórico (por
isso a importância da história em suas obras), desde a maneira de se alimentar, de
se lavar, de urinar, de cuspir, entre outros.

Tudo o que é de natureza animal é repelido e o controle sobre isso se dá


tornando essas ações menos visíveis ou confinando-as à esfera íntima (HEINICH,
2001). A nudez não é mais mostrada, os odores corporais são disfarçados, não
se come mais com as mãos, e sim com os garfos. “Esta constatação permite,
em primeiro lugar, que Elias demonstre que estas funções ditas naturais são
totalmente modeladas pelo contexto histórico e social” (HEINICH, 2001, p. 14).

127
UNIDADE 3 | SOCIOLOGIA FRANCESA

A modelagem dessas funções provoca mudanças na sensibilidade das


pessoas, já que as manifestações corporais dos outros tornam-se um incômodo
e as suas próprias causam incômodo e pudor, contribuindo para novas regras
de conduta que impactam a sensibilidade. A esse estudo das modificações na
maneira de viver, Elias direciona seus estudos para observar o nível coletivo –
que ele chama de sociogênese – e o nível individual – ou psicogênese.

Assim, o estudo das formas do saber-viver e das suas alterações


revela apenas uma parte simples e acessível de uma mudança mais
fundamental da sociedade considerada, uma evolução que é possível
observar não só ao nível coletivo – a sociogênese – como ao nível
individual – a psicogênese – já que cada indivíduo deve percorrer por
sua própria conta, em resumo, o processo de civilização que a sociedade
no seu conjunto percorreu; porque a criança não nasce civilizada. É
aquilo que Elias, passando aqui da história para a antropologia, chama
a lei fundamental sociogenética. A história de uma sociedade reflete-se
na história interna de cada indivíduo (HEINICH, 2001, p. 15).

A evolução dos costumes deve ser entendida como um processo de


longa duração (daí a ideia de uma sociologia processual) com movimentos de
aceleração, de estagnação ou regressão. Não é possível perceber o fenômeno de
forma individual, apenas em escala coletiva. Como exemplo, o início do uso do
garfo, que se consolidou em duas gerações – um movimento de aceleração.

O método histórico que Elias propõe é a comparação de documentos


de épocas diferentes, verificando a evolução do processo de recalcamento das
funções corporais e da interiorização dos sentimentos relativos a isso. Após, ele
começa a se perguntar sobre as causas de tais fenômenos, identificando que todas
as condutas que eram alcançadas pelas classes mais baixas eram modificadas,
funcionando como mecanismo de distinção.

Historicamente, as novas maneiras, mais civilizadas, começaram por


ser elaboradas pela aristocracia da corte, e depois transmitiram-se a
outras categorias sociais. Foi em parte este mecanismo: apuramento
de hábitos da corte, difusão destes hábitos às camadas mais baixas,
ligeira deformação social, desvalorização enquanto sinal distintivo,
que manteve o movimento dos modos de comportamento do estrato
superior (HEINICH, 2001, p. 15).

Elias utiliza o método histórico de análise de longa duração e o


problematiza da seguinte forma:

A questão posta por Elias, é a seguinte: uma vez que todos os fenômenos
históricos, tanto atitudes humanas como instituições sociais, realmente
se ‘desenvolveram’ em alguma época, qual o método histórico mais
adequado para estudá-las, o relativismo histórico ou o estatismo
histórico? Com o intuito de responder a essa questão, Elias primeiro
define o que ele chama de estatismo histórico. Para ele, essa expressão
refere-se ao método de análise histórica que tende a descrever todos
os movimentos históricos como algo estacionário e sem evolução. O
relativismo histórico, por sua vez, é o método de análise da história
que a enxerga apenas em transformação constante, sem chegar à

128
TÓPICO 1 | A SOCIOLOGIA DE PIERRE BOURDIEU E NORBERT ELIAS

ordem subjacente a esta transformação e às leis que governam a


estrutura histórica. A opção metodológica de Elias é revelar a ordem
subjacente às mudanças históricas, sua mecânica e mecanismos
concretos, de forma que essa proposta signifique uma terceira opção,
que caminhe entre essas duas outras, ou em suas próprias palavras,
encontrar meios e maneiras intelectuais de traçar o curso entre o
Cila deste estatismo e o Caribde do relativismo histórico, ou seja, a
análise dos processos históricos, dentro de uma perspectiva de longa
duração, perspectiva essa que englobe longos períodos da história das
sociedades (BRANDÃO, 2003, p. 66).

Essa nova proposta que Elias indica como sendo um meio-termo entre
ambas, ele utiliza para analisar o que chama de curva da civilização, ou seja, o
fenômeno da civilização dentro de uma perspectiva de longa duração. Ele indica
que essa curva não é a única possível, mas que esse processo civilizatório tende
a mundializar-se, no que ele é questionado por outros autores, que indicam essa
perspectiva como determinista, já que as dimensões históricas e sociais teriam
uma direção marcada dentro da civilização.

Respondendo a isso, Elias afirma que existe um sentido para a história,


mas que esse sentido só pode ser percebido a posteriori, ou seja, apenas em uma
análise do passado é possível notar a direção que a história tomou. No mais, ele
complementa indicando que as interconexões funcionais realizadas pelos seres
humanos muitas vezes são cegas, sem finalidade ou involuntárias. Com isso, ele
indica que as figurações formadas, pelos e entre os indivíduos na sociedade, são
processos não planejados nem intencionais. As relações de interdependência,
que emergem dessas figurações, podem até ser intencionais, mas, mesmo assim,
“poderão produzir consequências não intencionais, ou terem sido originadas
de outras interdependências humanas não intencionais” (ELIAS, 1997, apud
BRANDÃO, 2003, p. 67).

Nós vamos conhecer os conceitos de figuração e interdependência no


Tópico 2, complementando o entendimento sobre a teoria dos processos de
civilização desenvolvida por esse autor, que veremos a seguir.

Para fechar, cabe destacar o papel que o cientista social possui para
Norbert Elias, que é o de investigar processos sociais de longo curso, de longa
duração, pois como cientista especializado, o sociólogo pode apreender algumas
transformações sociais e processos de civilização por meio da análise de seu
desenvolvimento a partir de várias gerações.

129
UNIDADE 3 | SOCIOLOGIA FRANCESA

DICAS

Para conhecer melhor a teoria sociológica de Elias, procure a obra Introdução


à Sociologia. No Brasil está publicada pela Editora Edições 70, com edição de 1980.

3 TEORIA DOS PROCESSOS DE CIVILIZAÇÃO: ELIAS


Como vimos, a grande teoria sobre a sociedade apresentada por Norbert Elias
envolve seu conceito de processo de civilização. Para ele, é a partir desse entendimento
que é possível interpretar a ordem social e as relações entre os indivíduos.

DICAS

O estudo sobre a civilização é apresentado por Norbert Elias na obra O


processo civilizador, em dois volumes. O primeiro trata sobre “Uma história dos costumes”
e o segundo sobre “Formação do Estado e Civilização”. Leitura recomendada para o
aprofundamento sobre a teoria dos processos civilizadores do autor.

Ao analisar estudos contemporâneos, Elias afirma que muitos deles


estabelecem uma relação entre a organização das sociedades ocidentais sob
a forma de Estados e o comportamento chamado de civilizado. A partir disso,
ele analisa que a civilização deve ser compreendida como uma “mudança
no controle das emoções, que guarda estreita relação com o entrelaçamento e
interdependência crescente das pessoas” (ELIAS, 1999 apud BRANDÃO, 2003, p.
70). Para entender a sociedade, portanto, seria preciso pesquisar o núcleo de seus
processos de civilidade.

Elias é um autor que também gosta dos trabalhos com bases empíricas
e, para comprovar essa sua perspectiva, utilizou dois aspectos: a história dos
costumes das pessoas na vida cotidiana e a formação dos Estados Nacionais.
Também a interdependência entre esses dois fenômenos é indicada pelo autor
como importante foco de análise.

Com isso, o autor complementa seu conceito de civilização, afirmando


que ela deve ser entendida “como processo contínuo, não acabado e sem a
possibilidade de definirmos uma causa única, algum tipo de ponto zero para o
início do processo civilizador” (BRANDÃO, 2003, p. 70).

130
TÓPICO 1 | A SOCIOLOGIA DE PIERRE BOURDIEU E NORBERT ELIAS

Aqui, é importante ressaltar que Elias apresenta a civilização como um


processo, ainda não acabado, no qual nós mesmos estamos envolvidos. As
características de uma dada civilização acompanham uma estrutura particular de
relações humanas e correspondentes formas de comportamento.

A civilização não é fruto de causa única, pois os movimentos individuais


na rede de processos sofrem muitas reações, gerando movimento e tensões nessa
rede social. O ponto zero para identificar o início do processo de civilização não
existe na historicidade do pensamento humano, pois cada movimento é explicado
a partir de outro movimento e não por uma primeira causa, pois os movimentos
são dinâmicos.

A partir desses três argumentos, Elias refuta teorias sociológicas que se


baseiam no raciocínio da causalidade, pois para ele não basta identificar causas,
é preciso verificar a interdependência pela qual uma estrutura se insere na
estrutura de uma sociedade geral. Assim, ele também apresenta sua análise sobre
as relações entre indivíduo e sociedade nas teorias sociológicas:

Na teoria dos processos de civilização proposta por Elias, constitui um


erro querer separar as transformações gerais sofridas pelas sociedades e
as alterações ocorridas nas estruturas de personalidade dos indivíduos
que a formam, visto que a relação entre esses dois tipos de alterações é
uma relação de correspondência mútua. Um dos pontos essenciais da
teoria de Elias é mostrar a impossibilidade de pensarmos os conceitos
de indivíduo e de sociedade como duas categorias separadas e/
ou antagônicas. Para Elias, “as estruturas de personalidade e da
sociedade evoluem em uma inter-relação indissolúvel”, sendo que as
mudanças “nas estruturas de personalidade é um aspecto específico
do desenvolvimento de estruturas sociais” (BRANDÃO, 2003, p. 72).

Ao pensar o desenvolvimento do indivíduo, Elias apresenta o processo


de civilização como consequência de uma mudança na conduta e sentimentos
humanos com rumos bastante específicos, nem sempre intencionais ou planejados
– mas também não totalmente aleatórios e desordenados, quando vistos sob o
ponto de vista histórico.

Para explicar, ele utiliza o percurso das relações sociais existentes na


sociedade guerreira, na sociedade feudal, na sociedade de corte absolutista e
finaliza na sociedade burguesa. Estas representam o avanço de uma figuração
para outra, a transição de uma figuração social para outra.

131
UNIDADE 3 | SOCIOLOGIA FRANCESA

DICAS

Estudaremos o conceito de “figuração” no Tópico 2 desta unidade. Por hora


é importante que você conheça a definição: para Elias, figuração social refere-se à teia de
relações de indivíduos interdependentes que se encontram ligados entre si a vários níveis e
de diversas maneiras (ELIAS, 1992 apud BRANDÃO, 2003, p. 61).

Elias possui objetivos ao realizar essa análise: “Entre os muitos objetivos


de Elias também está o de explicitar quais os mecanismos sociais, históricos,
políticos e econômicos, que possibilitaram a existência de tais sociedades, bem
como as forças de coesão e/ou as forças de distensão, as quais ele irá chamar
de forças centrífugas, que possibilitaram a sucessão, naquela sequência, desses
diferentes tipos de sociedades ou figurações sociais” (BRANDÃO, 2003, p. 73).

Vamos seguir acompanhando o desenvolvimento do pensamento de Elias


sobre o percurso de transição das quatro figurações sociais já indicadas.

3.1 SOCIEDADE GUERREIRA


FIGURA 2 – SOCIEDADE GUERREIRA

FONTE: <http://1.bp.blogspot.com/-UzMsj_-fDlY/TsJO4hVQPYI/AAAAAAAAAUM/up2ICnzK8w4/
s1600/eso.jpg>. Acesso em: 18 out. 2019.

Caracterizada por uma economia de troca (escambo), ausência de moeda,


pequena diferenciação de funções e baixo grau de controle dos impulsos e das
paixões. A sociedade guerreira era dominada pelos cavaleiros, cuja única forma
de moderação de atitudes era a coerção direta e física, a partir do perigo de serem
vencidos por um inimigo superior. No mais, eram inclinados a explosões de
violência ou explosões de alegria, e movidos para a busca de novos territórios:

132
TÓPICO 1 | A SOCIOLOGIA DE PIERRE BOURDIEU E NORBERT ELIAS

O que move a sociedade guerreira, grosso modo, é a constante


conquista de novas terras, através do conflito belicoso. Segundo Elias,
os momentos de paz, por menores que fossem nessa sociedade, irão
afetar diretamente o controle das emoções dos indivíduos. Nessa
sociedade, ilustra Elias, não havia poder central suficientemente
forte para obrigar as pessoas a se controlarem. Mas se nesta região
ou naquela o poder de uma autoridade central crescia, se em uma
área maior ou menor as pessoas eram forçadas a viver em paz entre
si, a modelação das emoções e os padrões da economia dos instintos
lentamente mudavam (BRANDÃO, 2003, p. 75).

A conquista de terras representava poder político e social para o


senhor dessas terras, mas também a necessidade de administrar esse território,
obrigando-o a oferecer partes para parentes ou servidores. O movimento
inevitável a partir disso seria a independência gradativa dessas pessoas que, em
atitudes de rebeldia produziam novos combates, levando a sociedade guerreira
a um processo de feudalização, gerando, para Elias, uma nova figuração social.

3.2 SOCIEDADE FEUDAL

FIGURA 3 – SOCIEDADE FEUDAL

FONTE: <https://image.slidesharecdn.com/sociedadefeudal-170927200257/95/sociedade-
feudal-11-638.jpg?cb=1506542613>. Acesso em: 18 out. 2019.

Com o aumento da população e a descentralização do poder do rei, a


quantidade de terras a serem conquistadas diminui, surgindo os chamados
feudos. Neles, as relações sociais modificam-se e surge uma nova estrutura social.
Vejamos nas palavras de Elias:

133
UNIDADE 3 | SOCIOLOGIA FRANCESA

O processo de feudalização nada mais foi do que uma dessas mudanças


compulsivas na rede de dependências. Em toda parte e numa dada
fase, no Ocidente a dependência dos grandes em relação aos serviços
prestados tornou-se maior do que a dependência de seus vassalos
quanto à proteção. Esse fato reforçava as forças centrífugas numa
sociedade, na qual cada pedaço de terra sustentava seu proprietário.
Essa foi a forma simples desses processos, no curso das quais, em toda
a hierarquia da sociedade guerreira, os antigos servidores foram se
tornando, em número crescente, proprietários independentes da terra
que lhes fora confiada, e os títulos nobiliárquicos, baseados em serviço,
tornaram-se as designações simples de posição na escala social, em
correspondência com o tamanho da propriedade e o poder militar
(ELIAS, 1993 apud BRANDÃO, 2003, p. 76).

A sociedade feudal continuava tendo uma economia baseada no escambo,


mas que foi sendo gradativamente substituída pelo uso da moeda. Também
caracterizam esse período uma maior diferenciação de função se comparado com
a sociedade guerreira, pressão por falta de terras, aumento demográfico ligado ao
surgimento de cidades e do comércio (BRANDÃO, 2003).

Os moradores das cidades preferiam que os senhores feudais contratassem


guerreiros para defender suas terras e passaram a pagar por isso. Surgem aí os
impostos, que geram concentração de capital para os senhores das terras. Com a
expansão do comércio surge a burguesia e, para os antigos guerreiros, sobravam
poucas oportunidades de fontes de renda. Assim, nota-se a formação da sociedade
de classes.

A monetarização permitia aos senhores feudais e aos reis a cobrança de


impostos, enriquecendo-os. O rei não precisa mais pagar seus guerreiros com
terras, o que torna esses guerreiros dependentes dessa autoridade. Ele passa a
distribuir salários e não terras – tornando-se latifundiário e possuidor de um
poder sólido gerado pelo monopólio da tributação. Surge uma nova figuração
social, a sociedade de corte absolutista.

3.3 SOCIEDADE DE CORTE ABSOLUTISTA


FIGURA 4 – SOCIEDADE DE CORTE

FONTE: <http://4.bp.blogspot.com/_I6_w6-SDUMo/S6P9Fr_4B9I/AAAAAAAABVI/Kz5RfHBR6_o/
s400/mussini.jpg>. Acesso em: 18 out. 2019.

134
TÓPICO 1 | A SOCIOLOGIA DE PIERRE BOURDIEU E NORBERT ELIAS

Nessa figuração social temos a centralização do poder em um monarca


absoluto, dada pela pacificação e consolidação dos territórios. É um período
de controle dos impulsos e das paixões individuais e de onde, segundo Elias,
herdamos grande parte dos costumes e padrões de comportamento que
chamamos de civilizados.

A sociedade de corte absolutista foi o locus social onde mais se


desenvolveu o controle dos impulsos e das paixões pelos indivíduos,
e de onde, segundo Elias, herdamos boa parte dos nossos costumes e
padrões de comportamento que chamamos de civilizados ou corteses.
Foi nessa sociedade que foram modelados ou, pelo menos, preparadas,
grande parte das proibições que ainda hoje se percebem. Recebemos,
dessa sociedade, parte do selo comum que nos caracteriza como uma
civilização específica (BRANDÃO, 2003, p. 79).

Essas formas de conduta eram uma maneira de distinção da nobreza da


época com relação às demais classes, especialmente a burguesia emergente. O
controle das emoções também se torna uma marca diferencial, nesse caso. Essa
distinção representa a dependência da nobreza com relação ao monarca.

A nova forma de conduta resulta dessa dependência, pois o nobre não é


mais senhor de suas terras, de seu castelo, e sim um homem da corte, que vive nela
para servir ao monarca. Por isso, estando agora cercado de pessoas, o nobre deve
comportar-se de acordo com a sua posição e a dessas outras pessoas. “Necessita
aprender a ajustar seus gestos em relação às diferentes posições das pessoas
da corte, usar com perfeição a linguagem, e também controlar exatamente os
movimentos dos olhos” (BRANDÃO, 2003, p. 81). Temos aí uma figuração social
que exige autodisciplina e uma reserva imposta às pessoas.

Essa sociedade produziu, e ao mesmo tempo é fruto, se assim


podemos dizer, de um mecanismo que Elias denomina de ‘mecanismo
régio’. Tal mecanismo social consistia na equivalência de forças entre
a nobreza, que perdia poder social com a expansão do setor monetário
da economia, e a burguesia, que ascendia socialmente em razão dos
mesmos fatores. O monarca absoluto podia ou não ter consciência
de tal mecanismo, porém, sua sobrevivência social dependia da
manutenção do mesmo (BRANDÃO, 2003, p. 81).

Esse mecanismo régio, ou equilíbrio de forças entre a nobreza e a


burguesia, mantinha o poder e a hegemonia do monarca intactos. Para Elias, ele é
formado de maneira não planejada, no curso dos processos sociais, assim como os
processos de civilização. A luta pelo poder social e prestígio dentro dos domínios
do monarca, operada pela nobreza e burguesia, gera a próxima figuração social,
o advento da sociedade burguesa.

135
UNIDADE 3 | SOCIOLOGIA FRANCESA

3.4 SOCIEDADE BURGUESA


FIGURA 5 – SOCIEDADE BURGUESA

FONTE: <https://www.gestaoeducacional.com.br/wp-content/uploads/2019/05/Burguesia2.png>.
Acesso em: 18 out. 2019.

Elias apresenta a Revolução Francesa como marco para o advento da


burguesia, já que a queda do poder absoluto da monarquia ocorreu também pela
luta dos burgueses por uma nova distribuição dos monopólios de tributação,
já que eles pagavam impostos e a nobreza (que não trabalhava) estava isenta,
caracterizando um privilégio.

A burguesia não defende a extinção dos monopólios de tributação, mas


apenas que as oportunidades geradas por eles sejam de interesse de toda a
sociedade e não interesse individualizado. Surge o primeiro princípio para um
regime democrático.

Olhando essa última figuração social e comparando-a com as outras,


podemos afirmar que:

Para Elias, o processo de civilização comporta diferentes relações


de interdependência existentes em seu interior, fazendo com que o
processo de civilização não se realize de forma homogênea e retilínea.
Esse mesmo processo de civilização possui uma direção específica,
porém essa direção não é perceptível para os próprios indivíduos
que participam desse processo. Tal direção só se torna perceptível
a posteriori, como resultado da utilização de um método de análise
histórica e sociológica, no qual a observação dos dados empíricos
de uma dada figuração social são vistos – e analisados – tomando-se
como referência um grande espaço temporal, ou seja, dentro de uma
perspectiva de longa duração (BRANDÃO, 2003, p. 84).

É com base nessa análise que Elias defende um método histórico como
forma de compreender as figurações sociais, ou seja, as diferentes estruturas
e relações entre as pessoas. Vamos estudar essa proposta elisiana no próximo
subtópico, com vistas a apreender a teoria social proposta a partir dos estudos
desse autor.

136
TÓPICO 1 | A SOCIOLOGIA DE PIERRE BOURDIEU E NORBERT ELIAS

4 DIMENSÕES HISTÓRICAS: BOURDIEU


Pierre Bourdieu nasceu em 1930 em um pequeno vilarejo da província
do Béarn, região rural do sudoeste francês, próxima da Espanha. Seu pai era
originário de uma família de camponeses, mas havia se tornado funcionário
público dos correios, sendo carteiro na mesma região. Sua mãe, Noémie, também
era de família campesina, porém com nível social um pouco mais elevado.
Bourdieu fez seus primeiros estudos no Liceu de Pau (capital do Béarn).

FIGURA 6 – PIERRE BOURDIEU

FONTE: <https://colunastortas.files.wordpress.com/2013/09/d29a5-bourdieu2.
jpg?resize=400%2C600>. Acesso em: 18 out. 2019.

A partir de uma bolsa de estudos, acessa o Liceu Louis-le-Grand em Paris,


melhor curso preparatório para a École Normale Supérieure de Paris, um centro
de formação da elite intelectual francesa – para o qual é aprovado e passa a
frequentar em 1951. Diploma-se nessa instituição em Filosofia, no ano seguinte é
admitido como docente no Liceu de Moulins, cidade central da França.

A Argélia, colônia francesa no Norte da África, busca sua independência a


partir de 1955 – o que gera uma situação de guerra e consequente convocação de
Bourdieu para o serviço militar. Essa mudança para a Argélia é fundamental para
a ‘conversão’ do autor para a sociologia, pois enquanto lá esteve, desenvolveu a
etnologia da sociedade cabila (população local), com extenso trabalho de campo
– estando professor assistente na Faculdade de Letras de Argel. É sua primeira
grande experiência com material empírico dessa profundidade, por isso a
atribuição à conversão para a sociologia se dá nesse período.

Em 1960, em função do agravamento do conflito e das posições liberais


que assume ante a guerra da independência, Bourdieu é obrigado a voltar para a
França e assume o cargo de professor assistente na Faculdade de Letras de Paris
(Sorbonne). Casou-se dois anos depois e dessa união teve três filhos.

137
UNIDADE 3 | SOCIOLOGIA FRANCESA

Em 1961 é nomeado professor da Faculdade de Letras de Lille, onde inicia


cursos e conferências sobre os clássicos da sociologia e sobre a sociologia norte-
americana. Em 1964, segue para a Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais
(EHESS), passando a orientar teses e estudos científicos. Nessa instituição funda
o Centro de Sociologia da Educação e da Cultura em 1967, dirigindo por mais de
30 anos uma equipe de pesquisadores desse núcleo.

Iniciando em 1964, por mais de duas décadas dirigiu a coleção Le sens


commun para a editora parisiense Minuit, publicando obras clássicas e traduzindo
e divulgando autores contemporâneos como Goffman, Bernstein, Labov etc. Em
1975, criou o periódico Actes de la Recherche en Sciences Sociales, uma das mais
importantes publicações em Ciências Sociais no mundo.

Em 1981 é eleito professor titular do Collège de France. A partir de 1990,


Bourdieu assume um papel combativo nos movimentos sociais antiglobalização
e de apoio a desempregados, trabalhadores do campo, imigrantes ilegais e
intelectuais perseguidos no mundo.

Bourdieu foi agraciado com a medalha de ouro do CNRS (Centre National


de la Recherche Scientifique), um dos mais importantes símbolos da comunidade
científica francesa. Faleceu em 2002, vítima de câncer.

O pensamento sociológico de Pierre Bourdieu tem sido objeto de diversos


estudos e reconhecido em escala mundial. Suas obras são caracterizadas pela
densidade e variabilidade de assuntos: campesinato, arte, escola, patronato,
política, consumo, mídia, cultura etc.

Apesar de seu construto teórico estar situado no campo das Ciências


Sociais, como já mencionado, a formação de Bourdieu realizou-se em Filosofia,
campo que forneceu a ele suas influências teóricas iniciais. Por conta disso, o
autor utilizou e rejeitou elementos de diversas correntes teóricas, desde a filosofia
das ciências – na tradição de Bachelard –, estendendo-se ao marxismo e ao
diálogo com seus contemporâneos – Althusser, Habermas e Foucault (THIRY-
CHERQUES, 2006).

A chamada conversão de Bourdieu às Ciências Sociais ocorreu durante


estudos que realizou enquanto prestava serviço militar e lecionava na Faculdade
de Argel (1958-60). A situação que lhe chamou atenção naquele momento foi
a agricultura argelina, pois esta encontrava-se em transição, passando de um
sistema tradicional ao capitalismo moderno.

Cabe ressaltar que, apesar de muitos autores terem classificado sua


abordagem como estruturalista, Bourdieu criticava a filiação teórica unilateral e
afirmava que o pesquisador deveria aproveitar a multiplicidade de conhecimentos
das mais diversas abordagens. Ademais, ele sugeria um "pluralismo
metodológico", de forma que o pesquisador confrontasse os resultados obtidos
por diferentes métodos de investigação (WACQUANT, 2007).

138
TÓPICO 1 | A SOCIOLOGIA DE PIERRE BOURDIEU E NORBERT ELIAS

Em se tratando do estruturalismo, o pensamento bourdieusiano rejeita


seu reducionismo, que nega as práticas dos agentes e afirma o determinismo
das estruturas. À filosofia das ciências, ele se opõe às tipologias que cristalizam
as situações, recusando-se a aplicar sistemas classificatórios aos seus objetos de
pesquisa. Considerando o descritivismo como etapa do processo de investigação,
Bourdieu rejeita a fenomenologia. Do marxismo, ele absorve as ideias de luta
pela dominação e do individualismo metodológico rejeita a ideia de que o
fenômeno social é unicamente produto das ações individuais. Defendendo que a
objetividade da investigação não é atingida por ser o objeto um ente que pensa e
que fala, ele opõe-se também ao positivismo (THIRY-CHERQUES, 2006).

Partindo da teoria dos campos sociais, Bourdieu analisa o campo no qual


o próprio sociólogo está inserido, o campo científico. Ele possui uma grande parte
de sua obra voltada à análise da sociologia e de seus fundamentos científicos.

Pierre Bourdieu discutiu e analisou o campo de atuação do sociólogo,


a prática da sociologia e os usos sociais dessa ciência. Sua principal obra nesse
sentido foi Le métier de sociologue, de 1968, escrita em parceira com Jean Claude
Passeron e Jean Claude Chamboredon, em que debate como romper com as
visões do senso comum para atingir o espírito científico. A primeira tarefa do
sociólogo seria, efetivamente, afastar-se das ideias difundidas pelo senso comum,
que podem distorcer os resultados de uma pesquisa. Para os profissionais da
Sociologia existe maior dificuldade em cumprir essa tarefa, pois também são
socialmente situados.

Desse modo, deve haver constantemente um elevado nível de vigilância


epistemológica por parte do sociólogo, pois a reflexão epistemológica torna-se
indispensável. Além disso, Bourdieu defende que a função social da sociologia é de
permitir o desvelamento das estratégias de dominação, fornecendo instrumentos
de compreensão do mundo social que permitirão aos agentes lutar contra todas
as formas de dominação (BONNEWITZ, 2003).

Segundo ele, esse campo dispõe de certa autonomia, pois as pressões


externas são mediatizadas pelas pressões do campo e, quanto mais autônomo for
o campo, maior a sua capacidade de refração. Todo campo é um campo de luta
para transformar a disposição das forças, os agentes criam o espaço e o espaço
existe pelos agentes e relações objetivas entre eles. Para clarificar, como exemplo
pode-se utilizar o campo econômico, no caso em que a inserção de uma grande
empresa pode redefinir todo o espaço econômico, conferindo-lhe uma certa
estrutura, bem como um grande cientista pode o mesmo com o campo científico
– como Einstein o fez (BOURDIEU, 2004).

A obra de Bourdieu passa ainda por outras temáticas, tais como as funções
sociais das práticas culturais (L’Amour de l’art, em 1966), os professores universitários
(Homo academicus, 1984), a alta burguesia (La noblesse d’etat, 1989), a exclusão social
(La misère du monde, 1993), entre outros. Além disso, passou por uma fase de forte
engajamento político, nos anos 1990, quando publicou livros visando alimentar os
debates sociais e ideológicos, sobretudo com Sur la television, 1996.

139
UNIDADE 3 | SOCIOLOGIA FRANCESA

Existe uma corrente de crítica voltada a esse autor em função da


quantidade de objetos diferenciados a que ele se destinou analisar. No entanto,
independentemente de seus objetos sociológicos, ele possui contribuições muito
significativas para a sociologia contemporânea, e vamos iniciar conhecendo
duas teorias que perpassam seu pensamento: a Teoria da Prática e a Teoria da
Dominação Simbólica.

DICAS

Para entender como Bourdieu analisa o trabalho metodológico na Sociologia,


recomendamos a leitura de O ofício de sociólogo: metodologia da pesquisa na sociologia,
publicado pela Editora Vozes, com diferentes edições.

5 TEORIA DA PRÁTICA E TEORIA DA DOMINAÇÃO


SIMBÓLICA: BOURDIEU
Bourdieu é um dos autores contemporâneos que enfrenta, assim como
Elias, a dicotomia indivíduo e sociedade presente na sociologia desde o seu
surgimento. Para ele não é uma perspectiva objetivista ou subjetivista que poderá
superar essa questão, e sim uma nova forma de compreender a sociedade,
intitulada conhecimento praxiológico. É dessa forma de conhecer o mundo que
surge a Teoria da Prática.

Bourdieu defende o conhecimento praxiológico porque este considera as


relações dialéticas entre as estruturas e as disposições estruturadas. Efetivamente,

[...] o conhecimento praxiológico não se restringiria a identificar


estruturas objetivas externas aos indivíduos, tal como faz o objetivismo,
mas buscaria investigar como essas estruturas encontram-se interiorizadas
nos sujeitos constituindo um conjunto estável de disposições estruturadas
que, por sua vez, estruturam as práticas e as representações das práticas.
Essa forma de conhecimento buscaria apreender, então, a própria
articulação entre o plano da ação ou das práticas subjetivas e o plano
das estruturas, ou, como repetidamente refere-se o autor, o processo de
"interiorização da exterioridade e de exteriorização da interioridade"
(NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2006, p. 26).

Essa ideia de interiorização da exterioridade e de exteriorização da


interioridade fundamenta o conceito de habitus, a base para sua teoria da ação. É
uma ideia bastante presente em suas obras.

140
TÓPICO 1 | A SOCIOLOGIA DE PIERRE BOURDIEU E NORBERT ELIAS

E
IMPORTANT

Estudaremos o conceito de habitus e seu funcionamento no Tópico 2, mas


do ponto de vista conceitual, nas palavras de Bourdieu, ele é: “um sistema de disposições
duráveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes,
quer dizer, enquanto princípio de geração e de estruturação de práticas e de representações
que podem ser objetivamente “reguladas” e “regulares” sem que, por isso, sejam o produto
da obediência a regras, objetivamente adaptadas a seu objetivo sem supor a visada
consciente dos fins e o domínio expresso das operações necessárias para atingi-las e, por
serem tudo isso, coletivamente orquestradas sem serem o produto da ação combinada de
um maestro” (BOURDIEU, 2004, p. XL).

O conhecimento praxiológico operacionalizado na noção de habitus seria,


portanto, a alternativa para o problema do subjetivismo – tendência a ver a
ordem social apenas como produto consciente e intencional da ação individual
– e do objetivismo – tendência a tomar a ordem social como realidade externa
e que determina os indivíduos de fora para dentro, transcendendo o indivíduo
(NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2006).

Segundo o autor, esse conhecimento "tem como objeto não somente o


sistema das relações objetivas que o modo de conhecimento objetivista constrói,
mas também as relações dialéticas entre essas estruturas e as disposições
estruturadas [...]" (BOURDIEU, 1983, p. 35). Assim, essa forma de conhecimento
articula, sobretudo, o plano da ação (práticas subjetivas) e o plano das estruturas
através do conceito de habitus, enquanto processo de interiorização da
exterioridade e exteriorização da interioridade.

DICAS

Para avançar na ideia de Teoria da Prática, você pode buscar duas obras: Razões
Práticas (Editora Papirus, 2017) ou Esboço de uma Teoria da Prática (Editora Celta, 2002).

Para que você entenda a Teoria da Prática de Bourdieu é fundamental


entender como ele pensa a estrutura da sociedade. Ele rompe com a ideia de
uma sociedade no formato de pirâmide, o que até então era mais comumente
apresentado pelos sociólogos. Para ele é preciso pensar a ordem social como
um espaço múltiplo de posições, descrevendo a sociedade em termos de espaço
social, o que permite analisar a dimensão relacional das posições sociais.

141
UNIDADE 3 | SOCIOLOGIA FRANCESA

O pensamento bourdieusiano foge, dessa forma, das explicações clássicas


para as desigualdades trazidas pela tradição sociológica e encabeçadas por Karl
Marx e Max Weber. Para as concepções marxistas, a sociedade está dividida em
classes sociais que se opõem segundo um critério econômico. Para as concepções
derivadas de Weber, a sociedade é analisada em termos de estratos, definidos
a partir dos seguintes princípios de classificação: poder, prestígio e riqueza
(BONNEWITZ, 2003). Essas duas concepções são sintetizadas e superadas pela
abordagem que utiliza as noções de espaço e campos sociais, na intenção de evitar
se inserir nessas dicotomias.

A teoria do espaço social pressupõe que os agentes são definidos pelas


suas posições relativas no espaço, formando assim um espaço multidimensional.
Esse espaço é definido por coordenadas, correspondentes a valores de diferentes
variáveis e que posicionam o agente (capitais). A posição dos agentes na estrutura
do campo é dada pelo volume global de seus capitais, outro conceito utilizado
por Bourdieu.

E
IMPORTANT

Para Bourdieu, os capitais são os princípios de diferenciação que determinam


o posicionamento do agente social no campo, podem ser acumulados por meio de
operações de investimentos, transmitidos pela herança e permitem extrair lucros segundo
a oportunidade que o seu detentor tiver de operar as aplicações mais rentáveis. Alguns
exemplos são capital social, capital cultural, e capital econômico.

Os capitais (por estarem vinculados à posição social do indivíduo) podem


ser conservados ou aumentados, por isso os agentes sociais mobilizam estratégias
para conservar ou para se apropriar de capital, procurando manter ou elevar
seu volume para, consequentemente, manter ou elevar sua posição social. Por
esse motivo são ativados mecanismos de reprodução que mantêm conservada a
ordem social e a perpetuam.

Para Bourdieu, a reprodução das estruturas sociais baseada na disputa


por esses capitais serviu de base para a construção de uma de suas obras – escrita
em conjunto com Jean Claude Passeron – mais influentes, em especial no campo
educacional, La Reproduction (1970). Nessa obra ele “preocupa-se em apreender
a contribuição do sistema de ensino aos processos mais gerais de reprodução
social” (CATANI; CATANI; PEREIRA, 2001, p. 128) e desenvolve o conceito de
estratégia, que divide na seguinte tipologia: estratégias de investimento biológico,
estratégias de sucessão, estratégias educativas, estratégias de investimento
econômico e estratégias de investimento simbólico. Segundo Bonnewitz (2003):

142
TÓPICO 1 | A SOCIOLOGIA DE PIERRE BOURDIEU E NORBERT ELIAS

• As estratégias de investimento biológico relacionam-se ao controle de


fecundidade e às estratégias profiláticas, objetivando facilitar a ascensão social
da prole e manter a saúde (patrimônio biológico).
• As estratégias de sucessão garantem a transmissão de patrimônio material
entre gerações com o mínimo de perda possível.
• As estratégias educativas produzem agentes capazes a receber a herança do
grupo e transmiti-la.
• As estratégias de investimento econômico perpetuam ou aumentam os capitais.
• As estratégias de investimento simbólico conservam e aumentam o capital de
reconhecimento social.

Cabe lembrar que essas estratégias nem sempre são conscientes, pois
resultam da conjunção do habitus com práticas anteriores. Na obra O Poder
Simbólico (1989), Bourdieu discute como a produção e a reprodução da vida
social são influenciadas pela dimensão simbólica, que defende ser uma dimensão
fundamental na análise da realidade social.

Para estudar as dimensões simbólicas, ele buscou sintetizar três tradições


sociológicas e filosóficas (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2006):

• A primeira, que tem em Durkheim seu maior representante sociológico, toma


os sistemas simbólicos como estruturas estruturantes, como elementos que
organizam o conhecimento ou mais amplamente a percepção que os indivíduos
têm da realidade.
• A segunda, cuja origem se encontra no estruturalismo linguístico de Sausurre
e que teve em Lévi-Strauss um dos seus grandes expoentes, analisa os sistemas
simbólicos como estruturas estruturadas, ou seja, como realidades organizadas
em função de uma estrutura subjacente que se busca identificar.
• A terceira tradição, representada sobretudo pelo marxismo, concebe os sistemas
simbólicos, antes de mais nada, como instrumentos de dominação ideológica, ou
seja, como recursos utilizados para legitimar o poder de determinada classe social.

Bourdieu não se filia a essas tradições, embora seja influenciado por elas.
Ele procura desenvolver uma teoria de síntese, afirmando que a organização e
a lógica da percepção dos indivíduos podem ser cientificamente identificadas,
pois as produções simbólicas (língua, ciência, religião, arte, moral etc.) funcionam
como estruturas estruturantes (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2006).

Elas funcionam dessa forma porque também são estruturadas e, por


isso, reproduzem as estruturas de dominação social e hierarquias presentes na
sociedade. As produções simbólicas podem ser produzidas ou apropriadas por
um grupo, por um corpo de especialistas ou mesmo por um campo de produção
e circulação relativamente autônomo.

Quando se refere aos campos de produção e circulação relativamente


autônomos, Bourdieu consolida mais um de seus conceitos, o conceito de campo.
Para o autor, na medida em que as sociedades apresentam uma divisão social do

143
UNIDADE 3 | SOCIOLOGIA FRANCESA

trabalho mais complexa, alguns domínios de atividade se tornam relativamente


autônomos (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2006). Os agentes contribuem para a
conservação ou transformação da estrutura do campo no qual estão envolvidos,
pois eles se enfrentam com meios e fins diferenciados conforme sua posição na
estrutura, o que o caracteriza como campo de forças e de lutas.

E
IMPORTANT

Também vamos estudar com mais afinco o conceito de campo no Tópico 2,


mas por ora: os campos se apresentam à apreensão sincrônica como espaços estruturados
de posições (ou de postos) cujas propriedades dependem das posições nesses espaços,
podendo ser analisadas independentemente das características de seus ocupantes (em
parte determinados por elas) (BOURDIEU, 1983).

Desenvolvendo sua teoria da dominação, Bourdieu afirma que a cultura


é o meio pelo qual as elites garantem sua dominação e, por ser um sistema de
significações hierarquizadas, torna-se móvel de luta para grupos sociais que
querem manter distintivos entre classes sociais (BONNEWITZ, 2003). Essa teoria
é desenvolvida na obra La distinction, no ano de 1979.

Os conflitos ocorrem porque a cultura dominante tem a legitimidade de


definir o mundo social e, consequentemente, garantir a reprodução da sociedade.
Assim, ele defende que as lutas de classes são lutas simbólicas, cujo conflito
encontra-se na imposição de categorias de percepção do mundo social de acordo
com o interesse dos agentes dominantes. Os agentes passam a consumir bens
culturais inscritos numa vontade de distinção social, e procuram em geral o que
é socialmente legítimo como superior.

Essa é a base para o que Bourdieu chama de violência simbólica, em que:

Os indivíduos que sustentam as formas dominadas da cultura podem,


por outro lado, da mesma forma como ocorre no interior de um campo
específico, adotar uma de duas estratégias diferentes. A primeira, mais
comum, consiste em reconhecer a superioridade da cultura dominante
e, em alguma medida, buscar se aproximar ou mesmo se converter
a essa cultura. [...] A segunda consiste em se contrapor à hierarquia
cultural dominante visando reverter a posição ocupada pela cultura
dominada. [...] Bourdieu se mostra cético, no entanto, em relação às
possibilidades de sucesso dessa segunda estratégia. As crenças, os
valores e as tradições que compõem o que se denomina habitualmente
cultura popular não constituiriam, do ponto de vista dele, um sistema
simbólico autônomo e coerente, capaz de se contrapor efetivamente à
cultura dominante. (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2006, p. 38).

144
TÓPICO 1 | A SOCIOLOGIA DE PIERRE BOURDIEU E NORBERT ELIAS

A hierarquização dos bens simbólicos constitui, para Bourdieu, a base


das hierarquias construídas pelos grupos sociais, reforçando as estruturas de
dominação social e restringindo a mobilidade social desses mesmos grupos.
Como os capitais incorporados no habitus, definem o posicionamento do agente
no espaço social, ele está em relação de homologia com os consumidores dos
mesmos bens simbólicos, permitindo assim um recorte teórico que Bourdieu
chama de classe (CATANI; PEREIRA, 2002). Portanto, nessa perspectiva, as
classes não são algo pré-construído, os agentes são classes potenciais por estarem
em relação de homologia.

Dessa maneira é possível o trabalho do sociólogo, estabelecendo recortes a


partir dos conceitos e a partir do material empírico, em especial. Bourdieu destaca
que seus conceitos só funcionarão com as práticas identificadas a partir de dados de
material empírico. Por isso, no próximo tópico, estudaremos com mais detalhes os
dois conceitos principais da teoria sociológica do autor: habitus e campos.

DICAS

Para estudar a Teoria da Dominação Simbólica, inicie com as seguintes obras:


O Poder Simbólico (Editora Bertrand Brasil, 2011) e Economia das Trocas Simbólicas (Editora
Perspectiva, 7. ed., 2013).

145
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você aprendeu que:

• A principal contribuição de Elias para a sociologia diz respeito à análise sobre


os costumes e evolução destes e a maneira como impactam o desenvolvimento
da civilização e as relações sociais que são modificadas conforme ocorre o
processo civilizador

• A evolução dos costumes deve ser entendida como um processo de longa


duração com movimentos de aceleração, de estagnação ou regressão; portanto,
a análise sociológica deve ser processual.

• O método histórico que Elias propõe é análise de longa duração, baseada


na comparação de documentos de épocas diferentes, verificando a evolução
do processo de recalcamento das funções corporais e da interiorização dos
sentimentos relativos a isso.

• A civilização, para Elias, deve ser compreendida como uma mudança no


controle das emoções, que guarda estreita relação com o entrelaçamento e
interdependência crescente das pessoas. Para explicar, ele utiliza o percurso
das relações sociais existentes na sociedade guerreira, na sociedade feudal,
na sociedade de corte absolutista e finaliza na sociedade burguesa. Estas
representam a transição de uma figuração social para outra.

• Apesar de muitos autores terem classificado sua abordagem como estruturalista,


Bourdieu criticava a filiação teórica unilateral e defendia o pluralismo
metodológico.

• Bourdieu defende o conhecimento praxiológico porque este considera


as relações dialéticas entre as estruturas e as disposições estruturadas,
solucionando a dicotomia indivíduo e sociedade.

• Para Bourdieu, a sociedade deve ser entendida em termos de um espaço


social multidimensional, no qual os agentes são definidos pelas suas posições
relativas no espaço, organizadas pela posse de capitais.

• A reprodução das estruturas sociais baseada na disputa por posições sociais


a partir dos capitais fez com que os agentes desenvolvessem: estratégias
de investimento biológico, estratégias de sucessão, estratégias educativas,
estratégias de investimento econômico e estratégias de investimento simbólico.

• Desenvolvendo sua teoria da dominação, Bourdieu afirma que a cultura é o


meio pelo qual as elites garantem sua dominação e, por ser um sistema de
significações hierarquizadas, torna-se móvel de luta para grupos sociais que
querem manter distintivos entre classes sociais.

146
AUTOATIVIDADE

1 Norbert Elias desenvolveu sua teoria sociológica com base na análise dos
processos civilizadores, utilizando a análise de longa duração para explicar
as mudanças de figurações sociais ocorridas ao longo dos períodos históricos.
Sobre a Teoria dos Processos de Civilização, analise as seguintes sentenças:

I- Elias afirma que o processo civilizador possui uma direção que culmina em
um final, que seria a sociedade científica.
II- Um dos materiais empíricos mais importantes para a análise da civilização
foi a história dos costumes da vida cotidiana.
III- Elias afirma que existe uma forte relação entre o desenvolvimento da
civilização e o aumento do controle emocional dos indivíduos.
IV- O processo de civilização, para Elias, ocorre a partir da modificação
consciente e planejada dos sentimentos e condutas humanas.

Assinale a alternativa CORRETA:


a) ( ) Somente a sentença I está correta.
b) ( ) Somente as sentenças I e IV estão corretas.
c) ( ) Somente as sentenças II e III estão corretas.
d) ( ) As sentenças II, III e IV estão corretas.

2 Pierre Bourdieu desenvolveu diferentes teorias que contribuíram para as


análises sociológicas, dentre as quais estão a Teoria da Dominação Simbólica
e a Teoria da Prática. Na Teoria da Prática, ele apresenta o modo de interpretar
o mundo a partir do conhecimento praxiológico. Sobre essa perspectiva
teórica, analise as seguintes sentenças:

I- Em Bourdieu, o conceito de base que fundamenta a Teoria da Prática é o


conceito de capitais.
II- O conhecimento praxiológico busca superar a dicotomia existente entre
objetivismo e subjetivismo nas ciências sociais.
II- Para o conhecimento praxiológico, a análise sociológica deve ocorrer
apenas com foco a identificar as estruturas externas ao indivíduo.
IV- A Teoria da Prática é fundamentada no conceito de habitus, que representa
as dimensões objetivas sendo mobilizadas nas disposições subjetivas do
agente social.

Assinale a alternativa CORRETA:


a) ( ) Somente a sentença III está correta.
b) ( ) Somente as sentenças II e IV estão corretas.
c) ( ) Somente as sentenças I e III estão corretas.
d) ( ) As sentenças I, II e III estão corretas.

147
148
UNIDADE 3
TÓPICO 2

CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLOGIA
FRANCESA PARA A COMPREENSÃO DA
SOCIEDADE

1 INTRODUÇÃO
Agora que você já conheceu o contexto histórico que envolveu Elias
e Bourdieu, e os fundamentos de suas principais teorias sociológicas, vamos
conhecer mais pontualmente alguns dos conceitos mais utilizados por eles. Ambos
consolidaram um vasto conjunto conceitual, que não conseguiríamos estudar por
completo nesta unidade curricular, portanto, prossiga com seus estudos para
conhecer mais noções de cada autor.

Por ora, vamos estudar de Norbert Elias os conceitos de figuração (que em


algumas obras é traduzida como ‘configuração’), interdependência e processos
sociais. Especialmente, os dois primeiros expressam a discussão de Elias sobre a
relação indivíduo e sociedade – tão presente na sociologia.

De Bourdieu, passaremos pelos conceitos de habitus, campos e capitais. O


habitus e os campos é que representam, para esse autor, a dicotomia indivíduo e
sociedade, que ele busca solucionar com a proposta praxiológica.

Desejamos uma ótima leitura!

2 FIGURAÇÃO E INTERDEPENDÊNCIA: ELIAS


Como vimos no tópico anterior, a teoria social proposta por Norbert Elias
– a sociologia configuracional ou figuracional – possui como conceito central a
figuração. Nas palavras do próprio Elias, o conceito de figuração “refere-se à teia
de relações de indivíduos interdependentes que se encontram ligados entre si a
vários níveis e de diversas maneiras” (ELIAS, 1992 apud BRANDÃO, 2003, p. 61).

As ações desse conjunto de relações e indivíduos interferem “de maneira


a formar uma estrutura entrelaçada de numerosas propriedades emergentes, tais
como relações de força, eixos de tensão, sistemas de classes e de estratificação,
desportos, guerras e crises econômicas” (ELIAS, 1992 apud BRANDÃO, 2003, p. 61).
Temos, portanto, por um lado, uma teia de interdependência entre indivíduos e,
por outro, uma estrutura formada pelas ações desses indivíduos interdependentes.

149
UNIDADE 3 | SOCIOLOGIA FRANCESA

Estabelecendo uma análise das relações e funções sociais é possível


notar um conjunto de relações interdependentes que ligam os indivíduos em
uma formação. E é o conjunto dessas formações que forma o que Elias chama
de figuração. As figurações são produzidas pelas sociedades em seu contexto
histórico específico e mudam conforme esse contexto. Para exemplificar, Elias
utiliza a dança:

Elias, muitas vezes, utiliza imagens a fim de deixar mais claro um


conceito; no caso do termo figuração, faz menção à dança, independente
do estilo, se tango, rock ou outro. A dança, segundo ele, não pode ser
pensada sem uma pluralidade de indivíduos dependentes e orientados
reciprocamente uns aos outros. Além disso, não é entendida como
uma construção mental e, portanto, como uma mera abstração ou algo
que existe para além do indivíduo – ainda que possa ser entendida
como relativamente independente daqueles que estão tomando parte
de uma determinada peça, jamais é entendida como independente dos
indivíduos enquanto tais (LANDINI, 2005, p. 6).

A partir do uso do conceito de figuração para as análises sociais, Elias


objetiva que os seres humanos deixem de ser encarados como unidades totalmente
autônomas, e que se reconheça que são unidades semiautônomas, pois são
dependentes umas das outras, de diferentes maneiras. Ele explica:

Embora não possuam um começo absoluto, não tendo nenhuma


outra substância a não ser seres humanos gerados por mães e pais,
as sociedades humanas não são simplesmente um aglomerado
cumulativo dessas pessoas. O convívio dos seres humanos em
sociedades tem sempre, mesmo no caos, na desintegração, na maior
desordem social, uma forma absolutamente determinada. É isso que o
conceito de figuração exprime. Os seres humanos, em virtude de sua
interdependência fundamental uns dos outros, agrupam-se sempre na
forma de figurações específicas. Diferentemente das configurações de
outros seres vivos, essas figurações não são fixadas nem com relação
ao gênero humano, nem biologicamente (ELIAS, 2006, p. 26).

O uso correto desse conceito se dá, para Elias, a partir de dois pontos:
primeiro, a natureza das transformações que dada figuração social pode sofrer,
pois toda a figuração complexa e integrada deve surgir de figurações inicialmente
menos complexas e menos integradas; segundo, a necessidade do distanciamento
para a correta compreensão da autonomia e dinâmica de uma figuração social,
pois para ele não é possível perceber os conflitos existentes na interdependência
das relações de uma figuração enquanto se estiver envolvido nela. Ou seja, para
o sociólogo, seria impossível realizar uma análise coerente das figurações sociais
estando ou sendo parte do grupo que a integra.

As figurações são apresentadas por Elias como processuais, em fluxo


permanente e, como tal, esses fluxos não são planejados nem intencionais. Além
disso, é preciso considerar três aspectos essenciais no entendimento do conceito
de figuração (BRANDÃO, 2003):

150
TÓPICO 2 | CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLOGIA URBANA PARA A COMPREENSÃO DA SOCIEDADE

• Os seres humanos precisam ser entendidos como interdependentes, já que


suas vidas são desenvolvidas dentro das figurações sociais, portanto, sofrem
um processo de coerção por parte destas, que são construídas pelos próprios
seres humanos e entre eles.
• As figurações, sendo processuais, estão em fluxos constantes, realizando trocas
de diferentes ordens – sejam rápidas e efêmeras ou lentas e profundas.
• Os processos de trocas ocorridos nas figurações possuem dinâmicas próprias e
participam delas os motivos e intenções individuais, mas as dinâmicas dessas
trocas não podem ser reduzidas às motivações isoladas do indivíduo.

Para Elias, a melhor forma de visualizar a figuração é olhando para a


própria sociedade, quando se observa que nessa figuração maior, que é o conjunto
das relações sociais que a formam, vemos figurações menores, como as relações
entre pequenos grupos, as relações entre as classes etc.

FIGURA 7 – REPRESENTAÇÃO EM IMAGEM DAS REDES QUE FORMAM A FIGURAÇÃO

FONTE: <http://3.bp.blogspot.com/_44fPDMi1Gzc/TALX2nZsLEI/AAAAAAAAFYI/dloMBfoK_m0/
s1600/a%C3%A7%C3%A3o+social.jpg>. Acesso em: 18 out. 2019.

Um dos objetivos da sociologia de Elias é eliminar a antítese existente


entre os conceitos de indivíduo e sociedade, e também discutir a mudança – já
que as figurações estão sempre em fluxo. “Assim como mudam as figurações
formadas na dança – ora se tornam mais rápidas, ora mais lentas –, as figurações
maiores, às quais chamamos sociedades, também mudam, ora de forma mais
repentina e efêmera, ora de forma mais gradual e possivelmente mais duradoura”
(LANDINI, 2005, p. 6).

Para Elias também é essa noção que pode evitar a redução processual na
sociologia, que é a tendência a reduzir processos a estados, do ponto de vista
conceitual. Isso aconteceria nas distinções que são feitas entre o indivíduo e
suas atividades, entre estruturas e processos, objetos e relações (LANDINI,
2005). Conceitos como normas, valores, classes, papéis sociais, muitas vezes
são apresentados como independentes dos indivíduos, o que ele defende não

151
UNIDADE 3 | SOCIOLOGIA FRANCESA

ser correto. Por isso a ideia de figuração seria tão importante, já que considera
as relações entre as pessoas. Na citação a seguir, o intérprete de Elias, chamado
Mennell, explica como funcionariam essas redes de figurações:

Obviamente, o mapeamento de interconexões sociais entre pessoas


individuais torna-se impraticável se o objeto de interesse é a sociedade
mais extensa, formada por centenas, milhares ou milhões de membros.
[...]. Mas a imagem de uma rede complexa pode ser guardada na
mente. As várias formas de unidades sociais coletivas das quais os
sociólogos falam, tais como famílias, vilas, cidades, fábricas, escolas,
burocracias e classes, podem ser entendidas como várias formas de
nós e entrelaçados, redes mais ou menos conectadas e atadas por meio
de redes mais dispersas. Essas redes, nas quais as pessoas são presas
em alianças, conflitos e balanços flutuantes de poder, têm dinâmicas
próprias, cujas características nem sempre são fáceis de perceber, tanto
por sociólogos quanto pelas próprias pessoas nelas emaranhadas. O
entrelaçamento das ações leva à emergência de padrões e processos
aparentemente independentes de qualquer ação individual e além de
seu controle (MENNELL, 1998 apud LANDINI, 2005, p. 7).

Portanto, ele reconhece que existem processos que vão além do controle
do indivíduo, mas que não devem ser tratados como independentes, já que se
efetivam apenas nas relações entre as pessoas.

Esse conceito de figuração está ligado a outro – chamado interdependência.


Vejamos como Elias apresenta essa relação:

A rede de interdependências entre os seres humanos é o que os liga. Elas


formam o nexo do que aqui é chamado de configuração, ou seja, uma
estrutura de pessoas mutuamente orientadas e dependentes. Uma vez
que as pessoas são mais ou menos dependentes entre si, inicialmente
pela ação da natureza e mais tarde através da aprendizagem social,
da educação, socialização e necessidades recíprocas socialmente
geradas, elas existem, poderíamos nos arriscar a dizer, apenas como
pluralidades, apenas como configurações (ELIAS, 1994, p. 249 apud
BRANDÃO, 2003, p. 62).

Assim, ligado à figuração está o conceito de interdependência, que Elias


apresenta como fundamental para a análise das interconexões da vida social,
quando reconhece que cada indivíduo possui em si, desde a infância, influências
de uma multidão de indivíduos interdependentes.

Para a sociologia, isso se torna objeto sociológico da seguinte maneira:

Elias entende que o problema mais importante da sociologia é saber


de que maneira e por que razões os homens se ligam entre si e formam
em conjunto grupos dinâmicos específicos. Esse problema só será
resolvido a partir da “determinação das interdependências entre
indivíduos”, interdependências essas que fazem parte do conceito
elisiano de sociedade (BRANDÃO, 2003, p. 64).

152
TÓPICO 2 | CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLOGIA URBANA PARA A COMPREENSÃO DA SOCIEDADE

Existem duas características importantes quando tratamos do conceito


de interdependência (BRANDÃO, 2003): primeiro, mesmo quando as relações
são intencionais é possível que elas produzam consequências não intencionais
(podem surgir consequências sociais não planejadas a partir do cruzamento de
ações de muitas pessoas); segundo, as relações intencionais de interdependência
podem surgir de outras interdependências não intencionais.

Para Elias, portanto, a importância dos conceitos de figuração e


interdependência para a sociologia se dá porque essa ciência deve preocupar-
se em investigar e compreender os processos e estruturas de interpenetração
entre as figurações sociais, e as figurações formadas pelas ações de pessoas
interdependentes, ou seja, pela sociedade.

DICAS

Para se aprofundar mais no conhecimento dos conceitos de figuração e


interdependência, busque a tese desenvolvida por Luci Silva Ribeiro, intitulada Processo e
figuração – um estudo sobre a sociologia de Norbert Elias. Ela foi defendida em 2010 no
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP. Pode ser acessada no link: http://
repositorio.unicamp.br/jspui/handle/REPOSIP/280478.

3 PROCESSOS SOCIAIS – ELIAS


Um dos conceitos presentes na teoria sociológica de Norbert Elias é a ideia
de processos sociais, que fundamenta sua proposta de sociologia processual.
Como vimos, a análise sobre a civilização está centrada na observação do processo
civilizacional, ou seja, um percurso de longa duração, e não um fenômeno
individual localizado em um curto espaço de tempo.

Assim, Elias define os processos sociais como “transformações amplas,


contínuas, de longa duração, de figurações formadas por seres humanos, ou de
seus aspectos, em uma de duas direções opostas” (ELIAS, 2006, p. 27). O período
de longa duração ele apresenta como sendo acima de três gerações.

Nesse processo de transformação geralmente uma figuração social


está em ascensão, enquanto outra está em declínio. Como exemplos, ele cita a
diferenciação entre funções sociais, por ora maior ou menor, o aumento ou
diminuição de capital social, aumento ou diminuição da compaixão por outras
pessoas, entre outros.

153
UNIDADE 3 | SOCIOLOGIA FRANCESA

Elias apresenta os processos sociais como reversíveis, explicando dessa


forma:

Surtos em uma direção podem dar lugar a surtos contrários e ambos


podem ocorrer simultaneamente. Um deles pode tornar-se dominante,
ou caber ao outro manter o equilíbrio. Assim um processo dominante,
direcionado a uma maior integração, pode, por exemplo, andar de par
com uma desintegração social. Inversamente, um processo dominante
de desintegração social, por exemplo o processo de feudalização, pode
conduzir a uma reintegração sob novas bases, a princípio parcial e
a seguir dominante; portanto, a um novo processo de formação do
Estado (ELIAS, 2006, p. 28).

Alinhado a isso, ele afirma que os instrumentos conceituais utilizados


nas teorias sociológicas também são pares conceituais e exemplifica: integração
e desintegração, engajamento e distanciamento, civilização e descivilização,
ascensão e declínio. Esses pares indicam a direção dos processos sociais e
diferenciam as análises dos conceitos históricos, que para ele são “focados na
apreensão de detalhes únicos e não direcionados da vida em conjunto dos seres
humanos no passado” (ELIAS, 2006, p. 28).

Momentos de distanciamento e momentos de integração podem ser


observados desde sempre na história, e Elias usa como exemplo o processo de
industrialização: o primeiro surto de industrialização caminhou em paralelo com
o declínio da produção artesanal; o segundo surto (automatização da produção)
ocorreu enquanto havia o declínio da produção fabril.

Esses pares de conceitos podem servir para determinar a direção dos processos
sociais, mas também podem indicar oposições e tensões estruturais no interior do
próprio movimento processual. Eles são importantes para determinar as fases ou
estágios de um processo social. “No processo de desenvolvimento da humanidade
até agora, uma fase posterior frequentemente apresenta, em relação à fase anterior,
uma ruptura na dominância decisiva de um centro de poder, cujos representantes
anteriormente disputavam com outros centros de poder” (ELIAS, 2006, p. 30).

Elias ilustra a partir do exemplo do Império Romano:

O desmoronamento do antigo Império Romano pode servir como um


modelo instrutivo e empírico de um processo social em cujo decurso,
com aceleração crescente, tendências de desintegração e descivilização
sobrepuseram-se a tendências de integração e civilização. Somente
pelo encolhimento do Império foi possível, por cerca de um milênio,
conter as tendências de desintegração crescente em seu lado oriental,
que atuavam tanto interna como externamente. A integração
posterior, reconstituída, no espaço europeu central e ocidental oferece
exemplos dos tipos mais variados para processos de longa duração
de formação do Estado e para o incremento da divisão de funções,
intimamente ligado a ele. Esses processos caminhavam paralelamente
a um deslocamento gradual de poder, desfavorável a grupos humanos
estruturados segundo forças centrífugas (a nobreza feudal) e favorável
aos senhores em posição central (príncipes territoriais, reis) e às
cidades inicialmente autônomas e fortificadas (ELIAS, 2006, p. 30).

154
TÓPICO 2 | CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLOGIA URBANA PARA A COMPREENSÃO DA SOCIEDADE

Essa situação histórica é exemplo de um processo social não planejado,


já que os resultados dessas lutas de poder poderiam levar a diferentes caminhos
para os grupos envolvidos. Por isso Elias afirma que uma teoria sociológica
deve considerar os processos de formação do Estado no passado e no presente,
analisando os resultados das disputas de poder e do processo social ali envolvido.

Portanto, os impulsos desses processos sociais estão ligados à


monopolização por um grupo de meios de poder (ou meios de satisfação das
necessidades sociais). Podem ser meios de produção, de orientação, de organização,
ou mesmo de violência física. Para explicar essa relação com os processos
sociais, Elias faz uma reflexão usando o exemplo dos processos interestatais e
intraestatais, aproveitando para propor o tipo de análise sociológica que julga ser
coerente para essas investigações:

Esta é uma das razões pelas quais o fulcro do que se entende por
processo social deslocou-se na segunda metade do século XX,
principalmente em relação ao século XIX. No século XIX e início do
XX, o foco dos sociólogos ao utilizarem esse conceito, ou outros a
ele aparentados, limitava-se geralmente aos processos intraestatais
— portanto, por exemplo, à dinâmica de processos sociais ligados à
monopolização intraestatal dos meios de produção. Processos sociais
interestatais apareciam implicitamente como não estruturados,
talvez até como um campo de problemas para além do domínio de
pesquisa sociológica. Transformações da realidade social mostram
agora mais claramente que essa separação de processos intraestatais
e interestatais corresponde decerto à divisão das disciplinas, mas não
à própria coisa. A integração crescente da humanidade aponta cada
vez mais inequivocamente para a interdependência de processos intra
e interestatais. A isso corresponde ao fato de que o campo de tarefas
da sociologia não se restringe aos processos sociais intraestatais,
por exemplo à dinâmica dos processos de industrialização ou dos
conflitos sociais de um Estado singular. Processos de formação ou
de desintegração do Estado, de integração e desintegração estatal
e supraestatal podem servir como exemplos de processos sociais
cuja estrutura e transcurso influenciam fortemente a estrutura e
o transcurso de processos de Estados singulares, mas que não se
deixam mais esclarecer e determinar diagnosticamente pela limitação
do campo de investigação. Pode servir como exemplo o poderoso
processo de integração que, atualmente, leva todas as sociedades
singulares da humanidade a uma dependência cada vez mais estreita
umas das outras. Ele merece a atenção dos sociólogos. Como no
caso de muitos outros surtos de integração, com isso aumentam
inicialmente as tensões e os conflitos entre as unidades participantes
que, sem serem consultadas e frequentemente à revelia, tornam-se
dependentes umas das outras. Uma teoria dos processos sociais não
pode ignorar processos desse tipo, ou seja, processos que englobam
a humanidade. Antigamente, o conceito de humanidade referia-se a
uma imagem ideal distante, sempre pacífica e harmônica. Hoje, refere-
se a uma realidade rica em conflitos e tensões. Na teoria e na prática, o
processo social de uma humanidade que se integra ou se autodestrói
com alguma velocidade constitui o enquadramento universal para
a investigação de todos os processos sociais específicos. Só assim se
abrirá caminho para a discussão de outros problemas relativos aos
processos sociais (ELIAS, 2006, p. 31).

155
UNIDADE 3 | SOCIOLOGIA FRANCESA

Esses outros problemas que envolvem os processos sociais mencionados


por Elias nessa longa reflexão/citação envolvem a relação entre os processos e as
ações individuais, por exemplo. Ele apresenta os processos e os seres humanos
como inseparáveis, reconhecendo que o ser humano realiza ações individuais em
processos já em andamento, nunca sendo um começo. E reconhece também que os
processos não são totalmente independentes das ações humanas. A “autonomia
relativa dos processos baseia-se na vida em comum de uma pluralidade de seres
humanos mais ou menos dependentes uns dos outros e que agem uns com os
outros ou uns contra os outros” (ELIAS, 2006, p. 31).

Os processos sociais, portanto, são continuamente dependentes do


entrelaçamento dos seres humanos singulares e seus grupos. É essa interdependência
que resulta em mudanças na convivência social, modificações não planejadas e
não previstas, que modificam os próprios processos e podem ser estudados pelos
sociólogos a partir da proposta eliasiana de análise de longa duração.

DICAS

Para aprofundar seus estudos sobre o conceito de processos sociais, bem


como a proposta de uma sociologia processual, veja o artigo disponível no link: http://
www.uel.br/grupo-estudo/processoscivilizadores/portugues/sitesanais/anais9/artigos/
mesa_debates/art27.pdf.
A referência é: LANDINI, T. S. A Sociologia Processual de Norbert Elias. Anais do... IX Simpósio
Internacional Processo Civilizador. Ponta Grossa/PR, 2005.

4 O CONCEITO DE HABITUS – BOURDIEU


Como já apresentamos no Tópico 1, o conceito de habitus foi muito
importante para o desenvolvimento da teoria sociológica de Bourdieu,
especialmente quando ele busca pensar a sociedade em termos praxiológicos, e
não com a dicotomia tradicional entre indivíduo e sociedade. As disposições, ou
habitus, possuem em si tanto as dimensões da ação do agente social quanto da
estrutura que o cerca.

Na verdade, a palavra “habitus” tem como origem histórica a tradição


escolástica medieval, sendo a tradução latina da noção grega de "hexis", utilizada
por Aristóteles. Hexis referia-se a “um estado adquirido e firmemente estabelecido
do caráter moral que orienta nossos sentimentos e desejos numa situação e,
como tal, a nossa conduta” (WACQUANT, 2007, p. 65). Com o filósofo Tomás
de Aquino a noção se expande, adquirindo o sentido de disposição durável
suspensa a meio caminho entre potência e ação propositada. Émile Durkheim
utilizou-se da noção para designar um estado geral dos indivíduos, interior e

156
TÓPICO 2 | CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLOGIA URBANA PARA A COMPREENSÃO DA SOCIEDADE

profundo, que orienta suas ações de forma durável. Desse modo, outros autores
posteriormente apropriaram-se do conceito de habitus em seus estudos, tais como
Marcel Mauss, Max Weber, Thorstein Veblen, Edmund Husserl, Alfred Schutz,
Maurice Merleau-Ponty e até mesmo Norbert Elias.

Por consequência de sua formação em Filosofia, Bourdieu esteve envolvido


nos debates filosóficos em torno da noção de habitus, porém em sua teoria do
mundo social esse conceito passa por uma renovação e assume um caráter
delineado pela Sociologia. Isso porque em Bourdieu é o conceito de habitus que
articula o individual e o coletivo, além de dar a coerência entre a sua concepção
de sociedade e de agente social individual (BONNEWITZ, 2003).

FIGURA 8 – CHARGE DEFINIÇÕES DE HABITUS

FONTE: <http://sociologiailustrada.com/wp-content/uploads/2018/11/01-23.png>.
Acesso em: 18 out. 2019.

157
UNIDADE 3 | SOCIOLOGIA FRANCESA

Portanto, o conceito de habitus surge da necessidade empírica de apreender


as relações de afinidade entre o comportamento dos agentes e as estruturas e
condicionamentos sociais. Como já mencionado anteriormente, é nas pesquisas
realizadas na Argélia que Bourdieu executou as experiências de campo e os
trabalhos teóricos que o levaram a elaborar sua proposta para o conceito de habitus.

Considerando que o habitus é um sistema de disposições, estas são


engendradas em condições determinadas e inegavelmente ajustadas a outras
condições.

E
IMPORTANT

Quando tratamos sobre as disposições, estamos nos referindo a atitudes,


inclinações para perceber, sentir, fazer e pensar, interiorizadas pelos indivíduos em razão
de suas condições objetivas de existência, e que funcionam então como princípios
inconscientes de ação, percepção e reflexão (BONNEWITZ, 2003).

Dessa forma, é pelo desajustamento que o habitus torna-se manifesto.


Quando os argelinos dos anos 50 e 60 são lançados ao universo urbano – após
serem arrancados de seu universo rural – ocorre que suas disposições passam
a se ajustar ao novo ambiente, porém a partir de experiências anteriores já
interiorizadas, originando uma espécie de senso prático de orientação no mundo
social.

Assim, o habitus é formado por dois aspectos: um objetivo – a estrutura – e


um subjetivo – a percepção dos indivíduos. A partir dessa experiência, o conceito
é retirado de seu contexto inicial e adquire alcance universal, definindo-se como
noção mediadora que capta, nas palavras da já famosa fórmula: a interiorização da
exterioridade e a exteriorização da interioridade, ou seja, o modo como a sociedade
torna-se depositada nos indivíduos e guia suas respostas às solicitações do
mundo social (WACQUANT, 2007).

O habitus constitui-se em um sistema de disposições duradouras adquirido


pelo indivíduo durante o processo de socialização, cuja interiorização permite
que determinados comportamentos e valores sejam efetivados sem a necessidade
de lembrar-se explicitamente das regras que os regem antes de agir.

Nesse sentido, o habitus pode ser dividido em primário e secundário. O


habitus primário é fruto das ações pedagógicas recebidas na infância, as mais
precoces e mais antigamente adquiridas, em que predomina a influência da
família. Consequentemente, produz as disposições mais duradouras. Bourdieu
defende em suas obras o conceito de habitus de classe, pois segundo ele, toda

158
TÓPICO 2 | CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLOGIA URBANA PARA A COMPREENSÃO DA SOCIEDADE

família ocupa uma posição no espaço social e no momento da socialização


recebemos uma educação ligada a essa posição, para que possamos reproduzir
espontaneamente as relações sociais existentes no momento da aprendizagem.

Portanto, sujeitos situados em condições sociais diferentes vão adquirir


disposições diferentes (BONNEWITZ, 2003). O habitus não é imutável, ele recebe
estímulos externos que vão sobrepondo-se ao programa inicial constituído no
habitus primário. Esse processo cumulativo traduz-se no habitus secundário,
formado essencialmente pela instituição escolar.

Do ponto de vista teórico e analítico, os componentes formadores do


habitus são três: ethos, hexis e eidos, de acordo com Thiry-Cherques (2006):

• Ethos – designa os valores em estado prático, que regulam a conduta moral


diária dos seres humanos de maneira inconsciente.
• Hexis – refere-se às interiorizações inconscientes do indivíduo ao longo de sua
história em relação às posturas e disposições do corpo, uma aptidão corporal
adquirida.
• Eidos – relaciona-se ao modo de apreensão intelectual da realidade, um modo
de pensar específico.

{
Ethos: valores (dimensão normativa).

HABITUS Hexis: posturas (dimensão existencial).

Eidos: pensamentos (dimensão cognitiva).

Bourdieu objetiva, com a utilização do conceito de habitus, resolver a


dicotomia entre subjetivismo e objetivismo, constante em diversas análises
sociológicas e cuja resolução tornou-se a principal característica da sociologia
contemporânea. Ele argumenta que existem três possibilidades de conhecimento
do mundo social: fenomenológica, objetivista e praxiológica.

A forma fenomenológica – representada, por exemplo, pela


Etnometodologia ou pelo Interacionismo Simbólico – restringir-se-ia a captar
a experiência primeira do mundo social como vivida cotidianamente pelos
membros da sociedade, descrevendo as ações e interações sociais, mas não
questionando a respeito das condições objetivas que poderiam explicar o curso
dessas interações e as condições de possibilidade dessa experiência subjetiva.
Dessa forma, para Bourdieu, o problema dessa concepção é não chegar às bases
sociais e conferir ao indivíduo excessiva autonomia na condução de suas ações
(NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2006).

O conhecimento objetivista contrapõe-se à corrente fenomenológica e


rompe em relação à experiência subjetiva imediata. Essa experiência é tida como
estruturada por relações objetivas que ultrapassam o plano da consciência e da

159
UNIDADE 3 | SOCIOLOGIA FRANCESA

intencionalidade individuais. Bourdieu concorda parcialmente com essa ruptura,


que funcionaria como base para o conhecimento científico do mundo social,
além de permitir fugir da concepção de que os indivíduos são seres autônomos e
plenamente conscientes do sentido de suas ações.

Entretanto, Bourdieu discorda do objetivismo em outros aspectos,


especialmente na tendência que ele teria de conceber a prática apenas como execução
de regras, não considerando o processo pelo qual essas regras são produzidas
e reproduzidas socialmente. Dessa forma, considerar-se-iam as propriedades
estruturantes da estrutura sem analisar os processos de estruturação, conduzindo à
omissão de como, na prática, essas regras operam como princípios estruturantes das
ações e representações dos sujeitos (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2006).

O conceito de habitus seria então a mediação entre as dimensões objetiva


e subjetiva do mundo social, conciliando a oposição aparente entre realidade
exterior e realidades individuais. Assim, diante desse aspecto relacional, pode-se
afirmar que o individual, o pessoal e o subjetivo são simultaneamente sociais e
coletivamente orquestrados, tornando-se um conjunto de esquemas de percepção,
apropriação e ação, que é experimentado e posto em prática, na medida em que
o campo estimule.

A relação dialética entre subjetivismo e objetivismo está manifesta na


relação conceitual entre habitus e campos, pois os segundos são as estruturas e
conjunturas que pressionam e influenciam os primeiros. Nesse sentido, há uma
interdependência entre habitus e campos, pois o habitus não é autossuficiente para
a geração da ação: ele necessita de impulso externo e não pode ser considerado
isoladamente dos campos nos quais evolui (WACQUANT, 2007).

Para Bourdieu, a maioria das ações dos agentes sociais é produto do


encontro de um habitus e de uma conjuntura, ou seja, um campo. Em função dessa
relação, nosso próximo estudo é sobre a noção de campo.

DICAS

Há um artigo que sintetiza os principais aspectos do conceito de habitus,


publicado por Löic Wacquant, sociólogo que trabalhou por um longo tempo com Bourdieu.
Está disponível em: https://www.metodista.br/revistas/revistas-ims/index.php/EL/article/
view/126/136.
A referência é: WACQUANT, L. Esclarecer o habitus. Educação e Linguagem, ano X, n. 16,
p. 63-71, jul./dez. 2017.

160
TÓPICO 2 | CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLOGIA URBANA PARA A COMPREENSÃO DA SOCIEDADE

5 OS CONCEITOS DE CAMPOS E CAPITAIS – BOURDIEU


Na medida em que as sociedades tornam sua divisão social do trabalho mais
complexa, ocorre um processo de autonomização de certos domínios de atividade da
realidade social. Esses domínios são os campos, certos espaços de posições sociais nos
quais determinado tipo de bem é produzido, consumido e classificado.

A relação entre o habitus e o campo é dialética: enquanto o habitus de


certa forma é determinado pelo campo, a estrutura das posições do campo é
determinada pelos habitus dos agentes integrantes deste. A relação de homologia
entre habitus permite a formação dos diversos campos sociais, bem como – sendo
o habitus produto de uma filiação social – ele se estrutura em relação a um campo.

É através dos campos que ocorre o processo de diferenciação que distingue


as funções sociais, tais como as funções religiosas, econômicas, educacionais,
políticas, entre outras.

Nas palavras de Bourdieu, os campos se apresentam à apreensão


sincrônica como espaços estruturados de posições (ou de postos) cujas
propriedades dependem das posições nesses espaços, podendo ser analisadas
independentemente das características de seus ocupantes (em parte determinados
por elas) (BOURDIEU, 1983).

FIGURA 9 – IMAGEM REPRESENTATIVA DE CAMPO

FONTE: <https://k16.kn3.net/taringa/7/0/9/3/1/8/6/acadeee/7EB.jpg?8337>. Acesso em: 18 out. 2019.

Cada campo possui uma lógica própria de regulação e, em geral, possui


mecanismos de refração para as lógicas de outros campos. Quando mais
autônomo for um campo social, maior sua capacidade de refração. Um campo
pode ser considerado um mercado em que os agentes se comportam como
jogadores, buscando acumular capitais que os permitam ter acesso às estruturas
de dominação da hierarquia vigente (BONNEWITZ, 2003).

No interior dos campos constituintes da realidade social, os indivíduos


que os compõem passam a estabelecer disputas em torno do controle da produção
do campo, bem como da legitimidade de classificarem e hierarquizarem os

161
UNIDADE 3 | SOCIOLOGIA FRANCESA

bens produzidos. Ao longo da história do campo, determinados indivíduos ou


instituições ocupam posições dominantes e adotam estratégias de conservação
dessa dominação, objetivando manter a estrutura que os beneficia.

Porém, os indivíduos e instituições participantes das posições


inferiorizadas no campo tendem a adotar outras estratégias: ou reconhecem sua
inferioridade e aceitam a estrutura hierárquica vigente, ou buscam contestar e
aplicar estratégias de subversão a essa estrutura (NOGUEIRA; NOGUEIRA,
2006). Assim, compreende-se que uma das características dos campos é ser palco
de disputas entre dominantes e pretendentes cujo objeto de desejo é a legitimidade
das decisões.

Enquanto estruturas objetivas, os campos podem ser analisados


independentemente das características de seus ocupantes, pois são microcosmos
sociais, com valores, objetos e interesses específicos.

Efetivamente, existem propriedades universais inerentes a todos os


campos, que são a doxa e o nomos. A doxa é o senso comum que predomina
no campo, aquilo sobre o que todos os agentes estão de acordo. Já o nomos
é o sistema de leis gerais que governam o campo, invariantes e que regem o
funcionamento deste. Cada campo possui um nomos diferente e, ao longo do
avanço histórico das sociedades, novos campos vão surgindo a partir dessa
diferenciação. Tanto a doxa como o nomos são aceitos como legítimos no seu
campo de origem (THIRY-CHERQUES, 2006).

CAMPOS
{
Doxa: senso comum.

Nomos: leis gerais.

A coexistência dos diversos campos sociais estrutura o espaço social,


enquanto a posição dos agentes no campo é dada pelo seu volume de capitais,
definindo assim uma posição relativa que determina a dominação ou a submissão
a outros agentes.

Os capitais são os princípios de diferenciação que determinam o


posicionamento do agente social no campo, podem ser acumulados por meio de
operações de investimentos, transmitidos pela herança e permitem extrair lucros
segundo a oportunidade que o seu detentor tiver de operar as aplicações mais
rentáveis (BONNEWITZ, 2003). Em suas obras, Bourdieu distingue quatro tipos
de capital: econômico, cultural, social e simbólico.

• Econômico: diz respeito ao conjunto de bens econômicos, tais como a riqueza


material e os meios de produção.
• Cultural: é definido pelo conjunto de qualificações intelectuais produzidas e
transmitidas pela família e pelo sistema escolar. O capital cultural pode ser encontrado
sob três formas: em estado incorporado (disposições duradouras do corpo), objetivo
(posse de bens culturais) e institucionalizado (títulos escolares e acadêmicos).

162
TÓPICO 2 | CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLOGIA URBANA PARA A COMPREENSÃO DA SOCIEDADE

• Social: corresponde ao conjunto de acessos e relações sociais disponíveis ao


agente ou ao grupo, incluindo relacionamentos e redes de contato.
• Simbólico: é, em geral, a síntese dos outros capitais; ele relaciona-se ao modo
como um indivíduo é percebido pelos outros e aos rituais de reconhecimento
social, envolvendo prestígio, honra e boa reputação.

A distribuição desigual de capitais faz com que todo campo esteja em


permanente conflito, com indivíduos e grupos dominantes defendendo seus
privilégios em face do inconformismo dos demais indivíduos e grupos. Dessa forma:

Como espaço social, isto é, como estrutura de relações gerada pela


distribuição de diferentes espécies de capital, todo campo pode ser
dividido em regiões menores, os subcampos, que se comportam da
mesma forma que os campos. A dinâmica dos campos é dada pela
luta das classes sociais, na tentativa de modificar a sua estrutura, isto
é, na tentativa de alterar o princípio hierárquico (econômico, cultural,
simbólico...) das posições internas ao campo. As classes ou frações
sociais dominantes são aquelas que impõem a sua espécie de capital
como princípio de hierarquização do campo. Não se trata, no entanto,
de uma luta meramente política (o campo político é um campo como
os outros), mas de uma luta, a maioria das vezes inconsciente, pelo
poder. O campo do poder é uma espécie de "metacampo" que regula as
lutas em todos os campos e subcampos. A sua configuração determina,
em cada momento, a estrutura de posições, alianças e oposições, tanto
internas ao campo, quanto entre agentes e instituições do campo com
agentes e instituições externos (THIRY-CHERQUES, 2006, p. 40).

Para que o agente possa ingressar no campo precisa possuir o capital


específico deste, além de conhecer as regras do jogo e a história do campo,
podendo assim reconhecer seus valores fundamentais e ter o direito de entrada.
O agente passa, então, a aceitar os pressupostos cognitivos e valorativos daquele
campo, que passa a exercer sobre ele uma espécie de encantamento.

Bourdieu intitula esse encantamento como illusio, reproduzindo as


ilusões necessárias ao funcionamento e à manutenção do sistema. A illusio
também é compreendida como a motivação inerente ao indivíduo dotado de um
determinado habitus de campo.

Os campos se articulam entre si, eles não são totalmente autônomos e suas
fronteiras não são completamente delimitadas. Pode haver uma interpenetração
dos campos, em que um determinado campo passa a reger de alguma forma
aspectos do outro (BONNEWITZ, 2003). As inter-relações, influências e
contaminações entre os campos são refratadas de acordo com a autonomia destes,
pois elas passam por um prisma composto por suas próprias regras.

Os limites do campo são dados pelos interesses específicos dos agentes


dotados de habitus e das instituições que fazem parte deste, pois são eles que
respondem às solicitações de investimentos psicológicos e econômicos do
campo. A economia particular de cada campo retribui os investimentos de
tempo, dinheiro e trabalho a cada ação de indivíduos ou grupos participantes da
estrutura (THIRY-CHERQUES, 2006).
163
UNIDADE 3 | SOCIOLOGIA FRANCESA

Para finalizar, segue uma indicação de leitura para aprofundamento em


seus estudos. Cabe lembrar que habitus, campos e capitais são apenas alguns
conceitos trabalhados por Bourdieu, você pode conhecer muitos mais. No
entanto, podemos afirmar que são os mais fundamentais para a compreensão de
sua teoria sociológica.

DICAS

Para se aprofundar na noção de campo, veja o artigo publicado por Afrânio


Mendes Catani, um dos mais importantes intérpretes da obra de Bourdieu no Brasil –
docente da Universidade de São Paulo. Está disponível em: http://www.scielo.br/pdf/es/
v32n114/a12v32n114.pdf.
A referência é: CATANI, A. M. As possibilidades analíticas da noção de campo social.
Educação e Sociedade, v. 32, n. 144, p. 189-202, jan./mar. 2011.

164
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você aprendeu que:

• O conceito de figuração para Elias refere-se à teia de relações de indivíduos


interdependentes que se encontram ligados entre si a vários níveis e de diversas
maneiras. As figurações são apresentadas por Elias como processuais, em fluxo
permanente.

• Ligado à figuração está o conceito de interdependência, que Elias apresenta


como fundamental para a análise das interconexões da vida social, quando
reconhece que cada indivíduo possui em si, desde a infância, influências de
uma multidão de indivíduos interdependentes.

• Elias define os processos sociais como transformações amplas, contínuas, de


longa duração, de figurações formadas por seres humanos, ou de seus aspectos,
em uma de duas direções opostas.

• Em Bourdieu, o habitus constitui-se em um sistema de disposições duradouras


adquirido pelo indivíduo durante o processo de socialização, cuja interiorização
permite que determinados comportamentos e valores sejam efetivados sem a
necessidade de lembrar-se explicitamente das regras que os regem antes de agir.

• Bourdieu apresenta os campos como estruturas que se apresentam à


apreensão sincrônica como espaços estruturados de posições (ou de postos)
cujas propriedades dependem das posições nesses espaços, podendo ser
analisadas independentemente das características de seus ocupantes (em parte
determinados por elas).

• Os capitais, para Bourdieu, são os princípios de diferenciação que determinam


o posicionamento do agente social no campo, podem ser acumulados por meio
de operações de investimentos, transmitidos pela herança, e permitem extrair
lucros segundo a oportunidade que o seu detentor tiver de operar as aplicações
mais rentáveis. Em suas obras, Bourdieu distingue quatro tipos de capital:
econômico, cultural, social e simbólico.

165
AUTOATIVIDADE

1 Descreva os principais aspectos dos conceitos indicados a seguir,


consolidados por Norbert Elias.

a) Figuração:
b) Interdependência:
c) Processos sociais:

2 Descreva os principais aspectos dos conceitos indicados a seguir,


consolidados por Pierre Bourdieu.

a) Habitus:
b) Campos:
c) Capitais:

166
UNIDADE 3
TÓPICO 3

OS DESDOBRAMENTOS DOS ESTUDOS


DE BOURDIEU E ELIAS PARA A
SOCIOLOGIA

1 INTRODUÇÃO
Este é o último tópico de seu livro didático, no qual estudaremos
alguns dos desdobramentos da sociologia francesa para as análises e pesquisas
contemporâneas. Tanto Elias quanto Bourdieu desenvolveram importantes
estudos aplicando seus conceitos e consolidando teorias, com os mais diversos
temas, e são autores fundamentais para a área das ciências sociais.

Em um recorte de suas obras, conheceremos em Elias os estudos


sobre civilização, kultur e a sociedade de corte francesa. Foi a partir da noção
de civilização e kultur (termo alemão) que ele direcionou seus estudos sobre a
sociedade cortesã francesa, chegando assim à ideia de um processo civilizador.

Quanto a Bourdieu, o recorte será em sua sociologia da educação e sua


sociologia da cultura. Ambos tiveram um grande espaço em suas investigações
e é possível visualizar a aplicabilidade dos conceitos já estudados a partir dessas
temáticas ainda na atualidade.

Esperamos que você tenha uma excelente leitura!

2 CIVILIZAÇÃO, KULTUR E A SOCIEDADE DE CORTE


FRANCESA
Uma discussão importante apresentada por Norbert Elias, do ponto de
vista conceitual, é sobre as diferenças de origem e significado de civilização e
cultura nas sociedades alemã e francesa. Ele aplica seu método histórico para
buscar a gênese de determinado fenômeno, nesse caso, da significação dessas
duas palavras. Elas estão ligadas ao desenvolvimento da sociedade de corte
francesa, um dos seus estudos mais populares.

A ideia de zivilisation, na Alemanha, significa algo útil, mas de segunda


classe, algo externo e superficial para os seres humanos. Já kultur é utilizado para
designar fatos intelectuais, artísticos ou religiosos, representando as próprias
realizações e o orgulho por elas. É utilizada também para diferenciar esses fatos
dos políticos, econômicos e sociais.

167
UNIDADE 3 | SOCIOLOGIA FRANCESA

Portanto, a diferenciação que se apresenta é fruto da sociedade alemã do


final do século XVIII, que opunha indivíduos e grupos que falavam francês e
decidiam a política (representantes da zivilisation) e outros intelectuais alemães que
não exerciam influência na política (representantes da kultur). O primeiro grupo
era composto pela nobreza cortesã, civilizada ao modelo francês, e o segundo
grupo um extrato de intelectuais da classe média – formado por burgueses,
funcionários públicos e alguns nobres proprietários de terra (BRANDÃO, 2003).

Essa nobreza cortesã seguia regras rígidas de etiqueta para legitimar sua
‘civilidade francesa’, que era muito criticada pela classe média, tido como um
modo de vida superficial e falso. “Para os indivíduos alemães que se orgulhavam
de serem detentores da Kultur, os nobres cortesãos possuíam uma polidez de
fachada” (ELIAS, 1994 apud BRANDÃO, 2003, p. 87).

Vejamos como a oposição entre zivilisation e kultur interferiu na ordem


social alemã:

A lenta e gradual ascensão desse estrato de intelligentsia alemã de


classe média para, “muito tarde e com reservas”, classe governantes,
transformou a oposição entre os conceitos de Kultur e Zivilisation, de
uma antítese primeiramente social em uma antítese primariamente
nacional, ou seja, dois diferentes conceitos que caracterizavam
distintamente as classes sociais alemãs passaram a diferenciar a
Alemanha dos outros países. Essa oposição expressa a autoimagem
alemã, a qual aponta para as diferenças em autolegitimação, em
caráter e em comportamento total, existentes inicialmente entre as
classes sociais alemãs e, em seguida, entre a nação alemã e outras
nações (BRANDÃO, 2003, p. 88).

Na França, esse processo de ascensão das classes médias burguesas


e intelectuais aos círculos aristocráticos já havia ocorrido no século XVIII,
permitindo que estas discutissem questões de economia e política com as pessoas
influentes. Assim, quando a classe burguesa assumiu o poder muito do que fora
de caráter distintivo e específico da sociedade aristocrata passou a ser de caráter
nacional, e surgiu o conceito de civilisation, um único – e não diferenciado como
zivilisation e kultur, na Alemanha.

Centralização estatal e concorrência entre nobreza da corte e burguesia,


por um lado, e dispersão e concentração em si mesmos de círculos
aristocráticos por outro, levaram as elites francesas a privilegiar um
refinamento das maneiras que a burguesia ascendente na Alemanha
teve tendência a estigmatizar como atributos externos, superficiais
e mundanos, preferindo antes a profundidade, a autenticidade e a
sinceridade dos valores de cultura – esta passava gradualmente de
uma acepção social, que caracterizava uma categoria detentora destas
qualidades, para uma acepção nacional, que englobava todo o povo
alemão (HEINICH, 2001, p. 34).

168
TÓPICO 3 | OS DESDOBRAMENTOS DOS ESTUDOS DE BOURDIEU E ELIAS PARA A SOCIOLOGIA

Nota-se que o conceito de civilização na França é mais abrangente, sendo


utilizado para referir-se a fatos políticos ou econômicos, e a fatos religiosos, técnicos,
morais ou sociais (BRANDÃO, 2003). Refere-se também ao comportamento das
pessoas, realizações e atitudes. Para os franceses, a civilização é tema de orgulho,
designando as maneiras que se opõem à barbárie, distinguindo as elites dentro
de uma sociedade.

Assim, a noção de civilização, tomada num sentido mais geral, tende


a anular as diferenças entre os povos, enquanto a noção alemã de
cultura acentua as diferenças nacionais – aquilo a que chamamos hoje
as culturas nacionais. Por outro lado, a civilização tem um sentido
progressivo, na medida em que corresponde a um processo evolutivo,
ao passo que a cultura é mais redutora, visto que designa produtos
acabados – obras de arte, livros, sistemas religiosos ou filosóficos
reveladores das particularidades de um povo (HEINICH, 2001, p. 23).

É importante ressaltar que o significado do conceito de civilização só pode


ser entendido quando reconhecemos que ele nasce de um conjunto específico de
situações históricas, ou seja, por e para povos que compartilham uma tradição e
situação particulares.

Elias estudou manuais de civilidade ao longo de suas pesquisas, mas


antes disso concentrou-se em compreender a etiqueta da corte francesa, análise
publicada na obra A sociedade de corte, em 1969. Lá, ele explica as transformações
de uma sociedade feudal em uma monarquia absoluta sob um diferente ponto
de vista: o monopólio da coleta de impostos e do uso de armas origina uma
sociedade de corte que consagra a autonomia do soberano com relação à nobreza
e a torna dependente dele (HEINICH, 2001).

O monarca absoluto difere-se do líder carismático que movimenta a


sociedade, apoiando-se nos grupos que o envolvem para manter o equilíbrio, e
para isso a etiqueta de corte contribui substancialmente – fixando precedências e
posições hierárquicas. Assim, essas regras tornam-se um mecanismo de regulação,
de consolidação e vigilância.

Esse fenômeno da etiqueta social imposto na sociedade de corte ganha


força porque o monarca não pode submeter os outros a regras às quais ele mesmo
não está submetido, portanto, ele mesmo se torna prisioneiro dessas regras.
“Considerando que cada diligência, cada gesto, simbolizavam os privilégios
de tais pessoas ou famílias, cada atropelo à etiqueta se arriscava a provocar o
descontentamento e a resistência ativa de outros grupos e famílias privilegiados”
(HEINICH, 2001, p. 25). Garantir que não houvesse esse descontentamento era
garantir que os seus próprios privilégios não fossem comprometidos, por isso
renunciavam às mínimas alterações, conservando toda a estrutura com afinco.

169
UNIDADE 3 | SOCIOLOGIA FRANCESA

FIGURA 10 – SOCIEDADE DE CORTE FRANCESA NO JARDIM DE UM CASTELO

FONTE: <https://www.estudokids.com.br/wp-content/uploads/2015/06/habitos-da-nobreza-
absolutista-1200x675.jpg>. Acesso em: 18 out. 2019.

Elias identifica três grandes princípios paradoxais em que se assenta a


sociedade de corte, conforme Heinich (2001):

• Primeiro: paradoxo da distância e da proximidade. A maior distância social


se manifesta na maior proximidade espacial. Em um palácio da aristocracia,
conviviam os patrões e os criados, e suas vidas se cruzavam a todo momento,
gerando uma figuração social bem específica. Elias analisa o hábitat das elites
parisienses na época clássica, demonstrando como a configuração dos palácios
específicos da nobreza e da grande burguesia reflete a estrutura das relações
internas da casa, entre sexos e entre categorias sociais, além da estrutura das
relações com o meio a que pertencem.
• Segundo: redução da identidade à aparência. O ser social identifica-se com a
representação que é feita dele por si e pelos outros. A realidade de uma posição
é aquilo que se julga que ela é, por isso manter o nível social era tão importante,
especialmente manter a habitação. A grandiosidade das casas mantinha o
status social, era o símbolo da posição e da linhagem da família. Por isso uma
condição para manter-se na aristocracia era associar suas despesas e consumo
ao nível social desejado, oposta à classe da burguesia, que poupava para
assegurar ganhos futuros.
• Terceiro: paradoxo da superioridade na submissão. Apenas aceitando a sua
submissão ao soberano e às formalidades da etiqueta de corte é que a aristocracia
mantém a sua distância com a burguesia, concorrente nesses domínios. A
etiqueta é o instrumento principal, nesse caso, pois garante a distinção do grupo
de outros grupos e mesmo de indivíduos estranhos a esses grupos.

Esse movimento de diferenciação, acompanhado da existência desses


três paradoxos, é o motor do processo de civilização, já que a aristocracia cria
condutas que são ‘imitadas’ por outros grupos e a existência de muitas proibições
com relação a essa conduta alinha-se com o desenvolvimento de processos
psicológicos específicos:

170
TÓPICO 3 | OS DESDOBRAMENTOS DOS ESTUDOS DE BOURDIEU E ELIAS PARA A SOCIOLOGIA

Este processo de distinção entra em conflito com as tendências para a


divulgação das condutas de classe de cima para baixo. Como observa
Roger Chartier, o modelo de Elias ultrapassa uma simples difusão das
elites para os estratos sociais inferiores, fazendo da generalização das
condutas de corte o resultado de uma luta concorrencial que leva os
estratos sociais burgueses a imitarem as maneiras de ser aristocráticas
e que, em contrapartida, obriga a nobreza de corte a aumentar as
exigências da civilidade para lhe conferir um valor discriminatório.
Esta competição pela apropriação ou, pelo contrário, a confiscação
eterna da diferença é o motor principal do processo de civilização, visto
que obriga a que se apure o saber-viver, se multipliquem as proibições
e se aumente ainda mais o limiar das censuras. Este processo gera em si
mesmo as competências psicológicas específicas: a arte de observar os
semelhantes, a arte de manejar os homens, a racionalização e o controle
dos afetos, a incorporação de regras de civilidade – características do
processo de civilização (HEINICH, 2001, p. 28).

Esse processo de civilização, de distinção da nobreza, contribui (junto


a outros fenômenos importantes como urbanização e monetarização) com
a evolução dos costumes na sociedade de corte, e consequente mudança na
estrutura da consciência humana. Cada vez mais a natureza passa a ser vista
como mundo dos objetos, em função da interiorização dos sentimentos, e os seres
humanos passam a se sentir apenas mais um em meio a outros seres, separando
seu interior de tudo o que está fora de si.

DICAS

É na obra Sociedade de Corte que Norbert Elias apresenta suas análises sobre
essa figuração social. No Brasil está publicada pela Editora Zahar, com edição de 2001.

3 BOURDIEU E A EDUCAÇÃO
Uma das grandes contribuições de Bourdieu ocorreu em suas análises
sobre a educação, conforme já mencionado, dado que a abordagem sociológica
permitiu desvelar as desigualdades de capitais que os agentes sociais trazem
para a instituição escolar já na ocasião de seu ingresso, e que são reforçadas pela
estrutura educacional.

Para aplicar suas teorias aos aspectos conceituais desse campo, pode-se
afirmar que a dimensão individual do mundo social, o habitus, encontra-se nos
alunos; enquanto que a dimensão estrutural, o campo, está expressa na instituição
escolar e nos elementos que a compõem.

171
UNIDADE 3 | SOCIOLOGIA FRANCESA

As obras que trouxeram notoriedade mundial a Bourdieu no debate em


torno do campo educacional foram Os Herdeiros (1964) e A Reprodução (1970),
ambas inseridas em uma abordagem sociológica da educação. Inicialmente, as
preocupações desse autor voltaram-se aos mecanismos escolares de reprodução
cultural e social, e mais adiante às estratégias de utilização do sistema escolar
pelos diferentes agentes e grupos sociais (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2006).

Na obra A Reprodução, escrita em colaboração com Jean Claude Passeron,


Bourdieu utiliza-se do conceito de violência simbólica para desvendar os
mecanismos que fazem com que os indivíduos vejam como ‘naturais’ as
representações ou ideias sociais dominantes, e em cuja ação apoia-se a autoridade
existente no campo educacional.

O aspecto polêmico de suas teorias sobre a educação diz respeito ao fato


de que estas constituem uma crítica à perspectiva meritocrática nesse campo
(anterior aos anos 1960), defensora de que a escola era uma instituição neutra
e fornecia condições igualitárias para a competição entre os indivíduos. Assim,
supunha-se que a escola pública e gratuita resolveria os problemas do acesso
à educação e garantiria oportunidades equivalentes entre todos os cidadãos
(NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2002).

O avanço nas carreiras escolares seria, portanto, determinado por mérito


do aluno, e aqueles que se destacassem por seus dons individuais alcançariam
as melhores posições na hierarquia social. Porém, nos anos 1950 ocorre uma
queda dessa forma de otimismo pedagógico, baseada na divulgação de pesquisas
quantitativas (Aritmética Política Inglesa, Relatório Coleman – EUA, Estudos
do Institut National d’Études Démographiques – INED – França) que, de modo
geral, explicitaram empiricamente o peso da origem social sobre os destinos
escolares dos alunos. Esses resultados foram compreendidos como deficiências
passageiras, porém foram suficientes para minar a faceta meritocrática do campo
educacional.

Bourdieu participou dessa discussão sustentado pelos resultados


dos Estudos do INED, elaborando e difundindo uma crítica ao sistema de
ensino francês, afirmando que este promovia a reprodução e legitimação das
desigualdades sociais.

Para ele, os alunos não competem em relações igualitárias por serem


atores socialmente moldados, que possuem elevada bagagem cultural e social
anteriormente construída, e que essa bagagem deve ser considerada no campo
educacional (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2002).

Assim, Bourdieu defende que o habitus primário, constituído nos


primeiros contatos sociais dos agentes (especialmente com a esfera familiar),
interfere diretamente os percursos escolares dos indivíduos. A determinação de
ter ou não sucesso escolar estaria, portanto, associada à origem social e não a um
dom individual existente pela constituição biológica ou psicológica do agente.

172
TÓPICO 3 | OS DESDOBRAMENTOS DOS ESTUDOS DE BOURDIEU E ELIAS PARA A SOCIOLOGIA

Considerando os elementos sociais prévios incutidos no agente, Bourdieu


questiona a neutralidade da escola e defende que o campo educacional representa
e cobra dos alunos posturas e valores compatíveis aos habitus de classe das
culturas dominantes.

A bagagem social e cultural de cada indivíduo é formada na base de um


grupo social, interpelada por campos específicos que se interligam e localizam o
agente num determinado ponto do espaço social, e que participam da constituição
do habitus individual. Por homologia, os agentes com disposições específicas para
a ação se aproximam nesse espaço e constituem, portanto, por meio da conjunção
de seus habitus individuais, um habitus de classe. Nesse sentido:

A ideia de Bourdieu é a de que, pelo acúmulo histórico de experiências


de êxito e de fracasso, os grupos sociais iriam construindo um
conhecimento prático (não plenamente consciente) relativo ao que
é possível ou não de ser alcançado pelos seus membros dentro da
realidade social concreta na qual eles agem, e sobre as formas mais
adequadas de fazê-lo. Dada a posição do grupo no espaço social e,
portanto, de acordo com o volume e os tipos de capitais (econômico,
social, cultural e simbólico) possuídos por seus membros, certas
estratégias de ação seriam mais seguras e rentáveis e outras seriam
mais arriscadas. Na perspectiva de Bourdieu, ao longo do tempo,
por um processo não deliberado de ajustamento entre investimentos
e condições objetivas de ação, as estratégias mais adequadas, mais
viáveis, acabariam por ser adotadas pelos grupos e seriam, então,
incorporadas pelos sujeitos como parte de seu habitus (NOGUEIRA;
NOGUEIRA, 2002, p. 22).

Considerando a educação como campo estrutural, essa lógica indica que


esses grupos passam a adequar suas possibilidades de sucesso ou fracasso no
campo educacional de acordo com suas chances objetivas, partindo dos exemplos
já historicamente construídos.

É possível afirmar, conforme o aparato teórico de Bourdieu, que cada


grupo social se apropria do campo educacional de forma diferente, de acordo
com a necessidade de utilização da escolarização para manutenção ou alteração
de sua posição no espaço social. Os membros de cada grupo social investiriam,
portanto, nesse campo, conforme o grau de suas possibilidades de êxito. Assim,
suas estratégias, baseadas nas possibilidades objetivas de êxito, seriam formadas
pelas aspirações subjetivas somadas às condições objetivas.

Além do habitus de classe, os resultados atingidos pelo indivíduo em seu


relacionamento com o campo educacional também seriam determinados por
outro aspecto, relacionado ao habitus de classe e a sua participação na formação
de um habitus familiar: o capital cultural.

Considerando que Bourdieu defende que no campo educacional a cultura


legítima é a dominante, os habitus dos alunos formados nas famílias ocupantes
das posições sociais hierárquicas mais elevadas teriam disposições compatíveis

173
UNIDADE 3 | SOCIOLOGIA FRANCESA

às exigidas nesse universo, alcançando êxitos constantes em relação às exigências


escolares. Em oposição, as disposições dos alunos de classes socialmente
desfavorecidas não seriam compatíveis com a cultura legitimada nas instituições
escolares, dificultando a decodificação dos códigos escolares e, consequentemente,
levando ao fracasso no percurso de escolarização.

Cabe ressaltar que nesse ponto encontra-se a base da teoria sobre a


reprodução das desigualdades sociais pela escola, uma das mais famosas de
Bourdieu, e bastante discutida no campo pedagógico. A Sociologia da Educação
de Bourdieu, portanto, caracteriza-se por uma redução de "culpa" das origens
econômicas nos destinos escolares, em favor do capital cultural incorporado
(NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2002).

É a posse de capital cultural que passa a ser o elemento do habitus primário


que teria maior impacto na trajetória escolar dos alunos. Esse capital é transmitido
diretamente pelos pais, em especial nos momentos de decisões (continuação ou
interrupção dos estudos, mudança de estabelecimento, escolha de curso superior,
entre outros) e também por pessoas próximas que possuam alguma familiaridade
com o campo educacional (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2002).

As relações de disputa entre os diversos grupos, constituintes dos mais


diversos campos sociais, determinam o que pode ser considerado como cultura
legítima em um determinado momento histórico. A capacidade de legitimação
estaria, portanto, diretamente relacionada à força do grupo social que a sustenta,
ou seja, os grupos socialmente dominantes impõem seu poder ao campo
educacional, que legitima sua cultura.

Como para participar efetivamente de um campo social o agente necessita


compreender a comunicação inerente ao campo, as classes desfavorecidas têm
dificuldades nesse ingresso, pois não foram socializadas na cultura dominante que
determina essas formas de comunicação. Assim, a comunicação pedagógica não é
igualitária, mas reproduz e legitima desigualdades anteriores, que permanecem
nas camadas sobrepostas constituintes do habitus secundário (NOGUEIRA;
NOGUEIRA, 2002).

Para Bourdieu, a escola nega que seu público seja diferenciado, nega que
existam diferentes habitus entre os alunos. Consequentemente, o aluno que não
tiver suas disposições conformadas à estrutura do campo, ou seja, não possuir o
capital específico do campo, pode sofrer o insucesso. Cada campo social possui
um habitus próprio, e apenas quem tiver incorporado o habitus do campo tem
condições de jogar o jogo desse campo e de acreditar na importância desse jogo.
Essa situação é caracterizada como a illusio. Sobre a conformidade dos agentes
aos campos sociais, Catani e Pereira (2002, p. 110) esclarecem, fundamentados em
Bourdieu, que:

174
TÓPICO 3 | OS DESDOBRAMENTOS DOS ESTUDOS DE BOURDIEU E ELIAS PARA A SOCIOLOGIA

Dado que os capitais são as dimensões do espaço social, as relações


nele ocorridas são também relações de força. A posição do agente no
espaço social, determinada pelo volume do capital global possuído
e pelo peso relativo dos capitais particulares na composição total do
capital, implica em uma maior ou menor dominação/ subordinação em
relação às demais posições. Em cada campo específico, quanto maior
o volume do tipo de capital eficiente em todos os jogos do campo,
maior a probabilidade do agente ocupar uma posição dominante.
Visto que as relações de força do espaço social são relações de poder,
os agentes alocados nas posições dominantes no espaço social são
possuidores de uma espécie de capital, o capital simbólico, geralmente
reconhecido como prestígio, fama e aceito como legítimo pelos outros
e, por conseguinte, na qualidade de proprietários de capital simbólico,
possuem o poder de impor as visões do mundo social.

Esses pressupostos teóricos têm possibilitado o desenvolvimento de uma


grande quantidade de estudos empíricos. A título de exemplo, podemos citar os
estudos sobre o campo educacional brasileiro. De forma geral, pode-se dizer que
diversos autores se apropriaram do arcabouço teórico de Bourdieu relacionado à
questão educacional, em suas investigações.

Em artigo sobre as apropriações das obras de Pierre Bourdieu no campo


educacional brasileiro, partindo de periódicos da área, Catani, Catani e Pereira
(2001) distinguem três formas de apropriação das obras desse autor: apropriação
incidental, conceitual tópica e do modo de trabalho.

A apropriação incidental é caracterizada por referências tópicas ao autor


(67% dos artigos consultados no estudo enquadravam-se nessa categoria); a
apropriação conceitual tópica deixa entrever a utilização de citações e conceitos
do autor (18% dos artigos consultados); e a apropriação do modo de trabalho,
constituinte de 15% dos trabalhos consultados no estudo, caracteriza-se pela
utilização sistemática de conceitos e noções do autor e pela preocupação com o
modus operandi da teoria.

Pierre Bourdieu produziu obras significativas para o campo da sociologia


da educação, que possuem desdobramentos em diversas apropriações de outros
autores, que se utilizam principalmente do arcabouço conceitual do autor. Habitus
e campos são conceitos presentes e frequentemente utilizados com a finalidade
de compreender o mundo social, porém também sofreram apropriações para o
campo educacional, enquanto dimensões sociológicas.

175
UNIDADE 3 | SOCIOLOGIA FRANCESA

DICAS

A educação escolar em Bourdieu é apresentada no artigo disponível em:


https://www.redalyc.org/pdf/1891/189126039020.pdf. A referência é: VALLE, I. R. O lugar da
educação (escolar) na sociologia de Pierre Bourdieu. Revista Diálogo Educacional, v. 13, n.
38, p. 411- 437, jan./abr. 2013.

4 BOURDIEU E OS ESTUDOS SOBRE A DISTINÇÃO


Bourdieu desenvolveu análises sobre a cultura como elemento de
distinção social, pois é por meio dela que a dominação social é garantida para
alguns grupos. “A cultura é também um sistema de significações hierarquizadas:
a cultura se torna um móvel de luta entre grupos sociais cuja finalidade é manter
os distanciamentos distintivos entre classes sociais” (BONNEWITZ, 2003, p. 93).

DICAS

As análises bourdieusianas sobre a distinção estão apresentadas na obra A


Distinção, publicada pela editora Zouk (2.ed., 2011), com diferentes edições no Brasil. É uma
obra que também vale a leitura se você quiser conhecer a maneira como o autor trabalha
com dados empíricos.

Essas investigações são feitas por esse autor observando as práticas


culturais e sua relação com a cultura dominante. Cabe lembrar que, no sentido
sociológico, a cultura corresponde ao conjunto de valores, normas e práticas
adquiridos e compartilhados por uma pluralidade de pessoas (BONNEWITZ,
2003). Ela também possui as propriedades para ser um capital, por isso Bourdieu
fala em capital cultural.

Ele fala também na existência de um campo relativamente autônomo, que


é o campo cultural, que funciona como um mercado – pela lei da oferta e procura.
Os produtores culturais produzem códigos simbólicos, organizados em sistemas
culturais, que constituem o universo simbólico da pintura, cinema, arte etc. Esse
universo simbólico permite a autonomia desse campo:

176
TÓPICO 3 | OS DESDOBRAMENTOS DOS ESTUDOS DE BOURDIEU E ELIAS PARA A SOCIOLOGIA

Hoje, o campo da produção cultural é autonomizado. É constituído


de múltiplos produtores especializados. As análises e as doutrinas em
competição são o fruto do trabalho desses especialistas. Isso lembra
que a cultura não é simplesmente um conjunto de obras, mas também
uma elaboração de percepções do mundo, uma maneira particular de
descrevê-lo e compreendê-lo. A cultura é um conjunto de esquemas de
percepção. Estes são elaborados ou formulados por indivíduos que têm
um capital cultural elevado e uma autoridade legítima reconhecida: por
exemplo, intelectuais consagrados, jornalistas importantes, dirigentes
de movimentos representativos influentes, como sindicatos, grupos de
pressão. As crenças, valores, construções doutrinárias, teorias sociais
se desenvolvem inicialmente no seio de meios restritos. Mas a difusão
destas representações para o conjunto da sociedade e sua aceitação
não são automáticas (BONNEWITZ, 2003, p. 97).

Os conflitos simbólicos entre as classes ocorrem, portanto, para que ocorra


a difusão de seu aparato cultural, para que suas interpretações de mundo se tornem
a chamada cultura legítima. “O móvel dos conflitos simbólicos é a imposição da
definição legítima do mundo social que permite garantir a reprodução da ordem
social” (BONNEWITZ, 2003, p. 97).

Para Bourdieu, a cultura dominante é a cultura da classe dominante, e o


espectro cultural das demais classes apenas existe de fato, mas não de direito.
Com isso, a luta de classes toma a forma de uma luta simbólica, já que é nesses
conflitos simbólicos que está a imposição de uma visão de mundo de acordo com
os interesses de um determinado grupo. Ele refere-se tanto à posição no espaço
social (dimensão objetiva) quanto às representações dos agentes sobre o mundo
social (dimensão subjetiva).

Em meio a estss lutas, os grupos definem o que é legítimo para o grupo social,
pois isso é que define a busca por mudança ou por manutenção da ordem social:

A realidade social é também uma relação de sentido, e não somente


uma relação de força: toda dominação social, a menos que recorra pura
e continuamente à violência armada, deve ser reconhecida, aceita como
legítima. Isto supõe a mobilização de um poder simbólico, poder que
consegue impor significações e as impor como legítimas, dissimulando
as relações de força que estão no fundamento da sua força. Desse ponto
de vista, as relações sociais são também relações de concorrência entre
arbítrios culturais (culturas) (BONNEWITZ, 2003, p. 99).

Como existe uma cultura legítima, o consumo de bens culturais promove


processos de distinção social. As classes dominantes consomem mais livros, museus,
óperas, não como reflexo apenas da desigualdade econômica, mas também como
reflexo da luta de classes no terreno cultural – como estratégia de distinção.

177
UNIDADE 3 | SOCIOLOGIA FRANCESA

Hoje, o campo da produção cultural é autonomizado. É constituído


de múltiplos produtores especializados. As análises e as doutrinas em
competição são o fruto do trabalho desses especialistas. Isso lembra
que a cultura não é simplesmente um conjunto de obras, mas também
uma elaboração de percepções do mundo, uma maneira particular de
descrevê-lo e compreendê-lo. A cultura é um conjunto de esquemas de
percepção. Estes são elaborados ou formulados por indivíduos que têm
um capital cultural elevado e uma autoridade legítima reconhecida: por
exemplo, intelectuais consagrados, jornalistas importantes, dirigentes
de movimentos representativos influentes, como sindicatos, grupos de
pressão. As crenças, valores, construções doutrinárias, teorias sociais
se desenvolvem inicialmente no seio de meios restritos. Mas a difusão
destas representações para o conjunto da sociedade e sua aceitação
não são automáticas (BONNEWITZ, 2003, p. 97).

Os conflitos simbólicos entre as classes ocorrem, portanto, para que ocorra


a difusão de seu aparato cultural, para que suas interpretações de mundo se tornem
a chamada cultura legítima. “O móvel dos conflitos simbólicos é a imposição da
definição legítima do mundo social que permite garantir a reprodução da ordem
social” (BONNEWITZ, 2003, p. 97).

Para Bourdieu, a cultura dominante é a cultura da classe dominante, e o


espectro cultural das demais classes apenas existe de fato, mas não de direito.
Com isso, a luta de classes toma a forma de uma luta simbólica, já que é nesses
conflitos simbólicos que está a imposição de uma visão de mundo de acordo com
os interesses de um determinado grupo. Ele refere-se tanto à posição no espaço
social (dimensão objetiva) quanto às representações dos agentes sobre o mundo
social (dimensão subjetiva).

Em meio a estss lutas, os grupos definem o que é legítimo para o grupo social,
pois isso é que define a busca por mudança ou por manutenção da ordem social:

A realidade social é também uma relação de sentido, e não somente


uma relação de força: toda dominação social, a menos que recorra pura
e continuamente à violência armada, deve ser reconhecida, aceita como
legítima. Isto supõe a mobilização de um poder simbólico, poder que
consegue impor significações e as impor como legítimas, dissimulando
as relações de força que estão no fundamento da sua força. Desse ponto
de vista, as relações sociais são também relações de concorrência entre
arbítrios culturais (culturas) (BONNEWITZ, 2003, p. 99).

Como existe uma cultura legítima, o consumo de bens culturais promove


processos de distinção social. As classes dominantes consomem mais livros, museus,
óperas, não como reflexo apenas da desigualdade econômica, mas também como
reflexo da luta de classes no terreno cultural – como estratégia de distinção.

Assim, o conhecimento e o consumo destes bens são classificantes,


no sentido em que os agentes sociais se classificam e se opõem
reciprocamente no momento em que se consagram a esta ou àquela
prática e manifestam seus gostos. O campo cultural funciona como
um sistema de classificação fundado sobre uma hierarquia que vai do
mais legítimo ao menos legítimo, ou, para usar a linguagem corrente,

178
TÓPICO 3 | OS DESDOBRAMENTOS DOS ESTUDOS DE BOURDIEU E ELIAS PARA A SOCIOLOGIA

do distinto para o vulgar. Esse sistema permite aos agentes sociais


conduzir estratégias de distinção em relação aos membros de outras
classes. As ocasiões de exibir a distinção são inesgotáveis, mesmo nas
práticas mais banais: roupas, decoração de interiores, turismo, lazer,
esporte, cozinha. (BONNEWITZ, 2003, p.105).

Essa estratégia de distinção gera, entre os grupos sociais, diferentes


formas de se relacionar com os bens culturais e com seu consumo. Portanto, a
relação com a cultura é diferente segundo as classes:

• Classe dominante: procura manter sua posição por uma estratégia de


distinção, definindo e impondo aos demais grupos o ‘bom gosto’. A distinção
funciona segundo a lógica: quando uma prática cultural ou de consumo se
difunde entre os demais grupos, a classe dominante a substitui por outra
prática reservada a seus membros. Um exemplo é a democratização do tênis
(esporte), acompanhada por um abandono deste esporte por parte das classes
dominantes, de um modo geral.
• Pequena burguesia: possui ‘boa vontade cultural’, respeitando a cultura
dominante e buscando adquiri-la, imitando as práticas legítimas e investindo
em revistas, cinema, música que os aproximem do gosto pela cultura legítima
e os distancie das classes populares.
• Classes populares: sua distinção fundamenta-se na recusa a se assimilarem
com a pequena burguesia, ou seja, assuntos que envolvam esta classe são
banidos e recusados.

Cada grupo utiliza, portanto, a cultura como estratégia de distinção de


alguma forma, desenvolvendo uma hierarquia social com base no consumo de
bens e práticas culturais – o que Bourdieu analisa ao tratar de uma teoria da
dominação cultural. É uma temática de estudos que perpassa toda a sua obra.

DICAS

Para conhecer mais sobre a perspectiva de Bourdieu acerca da sociologia, veja


o documentário A sociologia é um esporte de combate, lançado em 2001 e pode ser
acessado no link: https://www.youtube.com/watch?v=TlbAd2hwQms

Para finalizar seus estudos sobre a sociologia francesa, vamos conhecer


um texto recente (2018) da autora Setton, que discute o uso do conceito de habitus
pelos dois autores até aqui apresentados, Elias e Bourdieu.

179
UNIDADE 3 | SOCIOLOGIA FRANCESA

LEITURA COMPLEMENTAR

USOS E APROXIMAÇÕES DO CONCEITO DE HABITUS EM


NORBERT ELIAS E PIERRE BOURDIEU

Não são muitas as reflexões que se aventuraram a comparar teóricos


da envergadura de Norbert Elias e Pierre Bourdieu. Por certo, trata-se de uma
iniciativa de balanço ou primor científico que poucos se arriscaram a fazer.
Todavia, em um ensaio aproximativo, julgo necessário e produtivo me atrever
nessa direção.

Com essa intenção, em pesquisa realizada em julho de 2016, na Biblioteca


François Mitterrand, em Paris, num esforço de localizar estudos com propósitos
semelhantes, encontrei apenas um. Trata-se do artigo intitulado  N. Elias et
P. Bourdieu: analyse conceptuelle comparée, escrito por Jean-Hugues Déchaux e
publicado nos Archives Européennes de Sociologie, em 1993. Não obstante, tal texto
não parece ter alcançado vida própria ou estimulado outros colegas a realizar
projetos análogos.
[...]

Segundo Bourdieu:

Os condicionamentos associados a uma classe particular de condições de


existência produzem habitus, sistemas de disposições duráveis e transponíveis, estruturas
estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes (...). (Bourdieu,
{1980} 2009, p. 87, grifos do original).

Vale ressaltar ainda que tal conceito passou por algumas inflexões
na obra de Bourdieu. Se no livro  O senso prático  ({1980} 2009) o autor define
a noção de forma mais rígida e fechada, em várias outras ocasiões, como nos
livros Réponses {1992}, Razões Práticas ({1994} 1996) e Meditações Pascalianas ({1997}
1998), sobretudo, revisita o uso anterior para uma versão mais ampliada. Por
exemplo, a noção de  habitus clivado  passou a existir na obra de maturidade do
autor, visando explicar o descompasso, sempre considerável, entre as relações
primeiras com o mundo social e a trajetória completa dos indivíduos. Se o
conjunto de estratégias continua a ser reenviado a uma unidade de um princípio
unificador, o  habitus  revisitado seria caracterizado pela heterogeneidade e
multiplicidade que se ajustaria a um grau variável de consciência. Uma dialética
entre disposições e ocasião se efetuaria em cada indivíduo. O habitus, de acordo
com a circunstância, perderia seu automatismo. Concordando com  Fabiani
(2016), esse aprimoramento seria menos uma fragilidade do que um maior poder
analítico atribuído ao conceito.

Contudo, julgo que a proximidade entre os autores não se reduz a


definições relativas aos processos de socialização grupal ou individual. Tendo a
considerar, como Déchaux (1993), que os quadros de análise dos dois sociólogos

180
TÓPICO 3 | OS DESDOBRAMENTOS DOS ESTUDOS DE BOURDIEU E ELIAS PARA A SOCIOLOGIA

se avizinham e, portanto, forjam noções semelhantes. Ademais, creio que a


aproximação entre eles pode se realizar pelo eixo dos processos e/ou mecanismos
de dominação social, estratégias no interior das quais observamos as condições
de possibilidade de mudanças ou reprodução da ordem, a partir do processo
socializador de um habitus.

É sabido que os autores desenvolveram pesquisas em que as escalas de


observação sempre foram distintas. Elias, numa perspectiva de longa duração de
quatro séculos, observa o ritmo lento e tenso, apesar de constante, de mudanças
do comportamento. Bourdieu, partindo de realidades empíricas contemporâneas,
traça o desenvolvimento oculto de uma dominação simbólica, essa tributária de
uma composição de disposições e representações sociais. Fruto de uma educação
homeopática, as disposições de habitus, em ambos os autores, são responsáveis
pelo sentido evidente do mundo social, base pela qual se permite o ocultamento
do caráter arbitrário das construções sociais.

Habitus,  nomus, identidade e/ou cultura são formas de expressar a capacidade


integradora das doxas, das crenças e dos consensos sociais, em ambos os autores.

No caso do habitus como noções paralelas à de identidade e à de cultura,


seria possível afirmar que os autores desenvolvem uma ideia comum sobre
a integral natureza social do homem. Em ambos a vocação teórica, empírica e
analítica da noção se faz presente, pois revela a mediação entre mundo mental e
social, entre indivíduo e sociedade.

Citando essas ideias em Elias:

(...) A natureza profundamente arraigada das características nacionais


distintivas e a consciência da identidade - nós nacional estreitamente ligada a elas podem
servir de exemplo ilustrativo na medida em que o habitus social do indivíduo fornece um
solo em que podem florescer as diferenças pessoais e individuais. A individualidade de
determinado inglês, holandês, sueco ou alemão representa, em certo sentido, a elaboração
pessoal de um habitus social - e nesse caso, nacional, comum. (Elias, {1987} 1994a, p.
172, grifos do original).

Do ponto de vista de Bourdieu:

(...) Precisamos de construir uma teoria materialista capaz de retomar ao


idealismo (...) “o lado ativo” do conhecimento prático que lhe foi abandonado pela
tradição materialista. Tal é a função da noção de habitus que restitui ao agente um poder
gerador e unificador, construtor e classificador, lembrando ao mesmo tempo que essa
capacidade de construir a realidade social, ela é socialmente construída não é a de um
sujeito transcendental, mas a de um corpo socializado, investindo na prática princípios
organizadores socialmente construídos e adquiridos no decorrer de uma experiência social
situada e datada. (Bourdieu, {1997} 1998, p. 120, grifos do original).

181
UNIDADE 1 | SOCIOLOGIA FRANCESA

No que se refere ao primado do passado, as disposições adquiridas numa


relação primeva com o mundo, os sociólogos explicam essa força, a partir das
posições ou das formas de ser, agir e pensar em configurações ou campos sociais.
Não obstante a natureza plástica do conceito, considerada por ambos, insistem
em historicizá-lo. Como alertou Elias,

(...) O habitus social, e, portanto, a camada desse habitus que constitui o caráter


nacional, certamente não é um enigma. Como formação social, ela é, à semelhança da
língua, sólida e firme, mas também é flexível e está longe de ser imutável. (Elias, {1987}
1994a, p. 171, grifos do original).

Ou na mesma direção, como Bourdieu afirmou:

Como não ver que o grau em que um habitus é sistemático (ou, pelo contrário,
dividido, contraditório), constante (ou flutuante ou variável), depende das condições
sociais da sua formação e do seu exercício, e que pode e deve, portanto, ser medido e
explicado empiricamente? (Bourdieu, {1997} 1998, p. 54, grifo do original).

Em ambos, Elias e Bourdieu, perpassa uma imagem de espaço social


fortemente estruturado e hierarquizado de acordo com o volume de bens em
disputa. É espaço de posições no seio do qual se desenvolvem relações de luta
pelo monopólio, pela aquisição ou pela proteção de um bem. Seja o prestígio e/
ou o status na sociedade de corte ou a posse de um capital cultural, nas sociedades
capitalistas, trata-se sempre da competição de uma propriedade, material ou
simbólica, tendo em vista uma forma de dominação legítima. Nessa direção, é
significativo salientar que, para eles, o poder não é um atributo dos indivíduos,
mas sim relativo às posições que ocupam na organização social. Baseadas em
relações de sentido, as relações de dominação resultariam de uma construção
arbitrária de valores sociais.

Citando Elias:

O poder não é amuleto que um indivíduo possua e o outro não; é uma


característica estrutural das relações humanas - de todas as relações humanas. (Elias,
{1970} 1999, p. 81, grifo do original).

No caso de Bourdieu:

Deixando de se encarnar em pessoas (...) o poder diferencia-se e dispersa-se (...);


não se realiza e não se manifesta senão através de todo um conjunto de campos unidos
por uma verdadeira solidariedade orgânica (...). Mais precisamente, exercer-se de maneira
invisível e anônima, através das ações e reações (...). (Bourdieu, {1997} 1998, p. 87-88,
grifos do original).

182
TÓPICO 3 | OS DESDOBRAMENTOS DOS ESTUDOS DE BOURDIEU E ELIAS PARA A SOCIOLOGIA

Dessa forma, os autores qualificam a dinâmica das relações sociais


como uma  configuração  e/ou um  campo, em que os agentes, em constante
interdependência, disputariam formas de distinção. Vista como espaço de
tensão e equilíbrio de forças, a sociedade é compreendida também como lugar
de aprendizado e cumplicidade entre os parceiros em disputa. Trata-se então
de uma compreensão relacional dos grupos em que ação e reação social estão
intimamente articuladas.

Outro aspecto que aproximaria o conceito de habitus em Elias e Bourdieu


estaria na sua natureza cognitiva. Diferentemente de Déchaux (1993), creio que,
além de ideias e conhecimentos, o  habitus  regula o conjunto de uma economia
psíquica. Ora instância de controle, ora um conjunto de disposições cognitivas e
motoras, o habitus, em Elias e Bourdieu, traduz uma sorte de autocontroles que os
agentes se impõem, produto das relações de interdependência social.

Cabe lembrar que, como categoria do pensamento, ora consciente


ora inconsciente, Elias considerou a categoria  tempo  como parte integrante
do habitus social dos indivíduos.

Nas palavras de Elias:

Essa consciência sumamente elaborada e implacável do tempo, própria dos


membros das sociedades mais diferenciadas e mais complexas, e que constitui um componente
de seu habitus social, não é mais surpreendente, portanto, do que a capacidade que tinham os
membros dos grupos de caçadores (...). (Elias, {1984} 1998a, p. 116).

Nesse sentido, tanto para o sociólogo alemão como para o sociólogo


francês, o mundo social, fortemente estruturado, reflete uma ordem que é produto
da correspondência entre seus diferentes agentes, por meio de um habitus. Este
é um operador analítico que constrói a ordem e as instâncias de ajustamento.
Seria importante observar ainda que, buscando qualificar a dinâmica consensual
e de evidência do funcionamento das sociedades, Elias e Bourdieu fazem uso de
metáforas que se aproximam. Isto é, a analogia do relógio utilizada por Elias, em
seu livro Sobre o Tempo ({1984}, 1998a), é expressiva e está diretamente relacionada
à metáfora usada por Bourdieu em seus escritos em  O senso prático  (Bourdieu,
{1980} 2009), acerca da imagem da vida social a partir de uma orquestração sem
maestro. Em outras palavras, uma ordem autoproduzida de ser, agir, pensar e
sonhar pela correspondência do habitus.

Em Elias, mais especificamente:

Entre outros exemplos, citemos a formação da consciência moral, das modalidades


de controle das pulsões e afetos numa dada civilização, ou o dinheiro ou o tempo. A cada um
deles correspondem maneiras pessoais de agir e sentir, um habitus social que o indivíduo
compartilha com outros e que se integra na estrutura de sua personalidade (...). (Elias,
{1984} 1998a, p. 19).

183
UNIDADE 1 | SOCIOLOGIA FRANCESA

E, agora em Bourdieu:

[Habitus] como princípios geradores e organizadores de práticas e de representações


que podem ser objetivamente adaptadas ao seu objetivo sem supor a intenção consciente de fins
e o domínio expresso das operações necessárias para alcançá-los, objetivamente “reguladas”
e “regulares” sem em nada ser o produto da obediência a algumas regras e, sendo tudo isso,
coletivamente orquestradas sem ser o produto da ação organizadora de um maestro. (Bourdieu,
{1980} 2009, p. 87, grifos do original).

No que se refere às semelhanças dos autores em suas percepções


sobre  habitus  e comportamento, baseando-se em Pascal,  Bourdieu ({1997} 1998)
afirma que o costume é uma autoridade e se transforma em lei de maneira oculta
e velada. A força do costume legitima arbitrariamente o uso da força mesmo
quando ela não é utilizada. Regidos por uma lógica ou um sentido de jogo, seus
participantes não se apercebem que estão agindo conforme o que está estabelecido.
Portanto, seria possível afirmar que o sentido comum é um sentido que associa
evidências partilhadas por todos e assegura um consenso  primordial  sobre o
sentido do mundo tanto no aspecto cognitivo como no comportamental.

Elias concordaria com essas proposições ao afirmar que:

Além disso, os símbolos linguísticos que se desenvolvem através do


uso que um grupo humano faz deles não se reduzem a sua função de meios
de comunicação. Eu gostaria apenas de lembrar aqui que, no meio humano, os
símbolos especificamente sociais adquiriram uma função de meios de orientação
e, portanto, de conhecimento. (Elias, {1984} 1998a, p. 20).

Segundo  Bourdieu ({1993} 1999), a  illusio  é, pois, uma adesão visceral


inconsciente, uma forma de autocontrole que se realiza na rotina e está nas
coisas que se faz por sua evidência e  verdade. Tendo a propriedade (biológica)
de ser aberto ao mundo, o agente social está suscetível de ser condicionado pelo
mundo, moldado pelas condições materiais e culturais de existência em que
se está colocado desde a origem; um processo de socialização e controle das
pulsões do qual a própria individuação é produto, forjando a singularidade do
eu nas e pelas relações sociais.

Sem a intenção de reduzir a grandeza dos autores a estas observações,


seria relevante destacar também a aproximação entre eles a partir do caráter
arbitrário dos sistemas simbólicos na medida em que, por serem evidentes e
verdades sociais construídas, conseguem mascarar a coerção homeopática e
inconsciente dos seus consensos.

Diferentemente de Émile Durkheim (2009), Elias e Bourdieu consideram


os sistemas simbólicos (como a linguagem, a religião e/ou a ciência) não apenas
como instrumentos do conhecimento da vida social e ou ferramentas que
permitem a comunicação de sentidos entre os indivíduos, como apontei acima.
Os sistemas simbólicos, por servirem a esses domínios, podem também cumprir

184
TÓPICO 3 | OS DESDOBRAMENTOS DOS ESTUDOS DE BOURDIEU E ELIAS PARA A SOCIOLOGIA

um papel ideológico na medida em que a função lógica de ordenação do mundo


pode se subordinar à criação de divisões e às hierarquizações sociais (Elias, {1969}
2001a; Bourdieu, 1989).

Dessa forma, o conceito de  habitus  e seu processo de construção oculto


e homeopático revela uma peculiaridade dos universos simbólicos e morais
que, produzidos, reproduzidos pelos grupos e interiorizados por eles e pelos
indivíduos, podem ser potenciais elementos de uma dominação simbólica - e,
em última instância, uma violência simbólica. Em outras palavras, uma violência
branda e sutil, desconhecida e oculta de formas de poder, responsável pela
manutenção de uma estrutura social arbitrária. Raciocínio original que denuncia
as articulações entre produção cultural e dominação política em ambos os autores
(Elias e Scotson, {1965} 2000; Bourdieu, 1982a; Setton, 2012).

Por fim, gostaria de concluir essas ponderações com considerações acerca


do difícil processo de se socializar, sinalizado por ambos os sociólogos. Ou
seja, para eles, a ação de se adaptar ao mundo a partir da renúncia aos desejos
é sempre conflituosa e tensa. Elias e Bourdieu nos trazem reflexões próximas
das experiências de sofrimento e dor de se autocontrolar, de agir conforme as
expectativas do mundo exterior, num movimento pré-reflexivo.

FONTE: SETTON, M. G. J. Socialização de habitus: um diálogo entre Norbert Elias e Pierre Bourdieu.
Revista Brasileira de Educação, v. 23, 2018. Disponível em: https://www.redalyc.org/jatsRepo/
275/27554785056/html/index.html. Acesso em: 6 nov. 2019.

185
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você aprendeu que:

• A diferenciação de termos por Elias opunha indivíduos e grupos que falavam


francês e decidiam a política (representantes da zivilisation) e outros intelectuais
alemães que não exerciam influência na política (representantes da kultur).

• A nobreza cortesã seguia regras rígidas de etiqueta para legitimar sua


‘civilidade francesa’, no que era muito criticada pela classe média, tido como
um modo de vida superficial e falso.

• O monarca absoluto difere-se do líder carismático que movimenta a sociedade,


apoiando-se nos grupos que o envolvem para manter o equilíbrio, e para isso a
etiqueta de corte contribui substancialmente – fixando precedências e posições
hierárquicas. Assim, essas regras tornam-se um mecanismo de regulação, de
consolidação e vigilância.

• Elias identifica três grandes princípios paradoxais em que se assenta a sociedade


de corte: paradoxo da distância e da proximidade, redução da identidade à
aparência, paradoxo da superioridade na submissão.

• O processo de civilização contribui (junto a outros fenômenos importantes


como urbanização e monetarização) com a evolução dos costumes na sociedade
de corte e mudança na estrutura da consciência humana.

• Bourdieu questiona a neutralidade da escola e defende que o campo educacional


representa e cobra dos alunos posturas e valores compatíveis aos habitus de
classe das culturas dominantes.

• Cada grupo social apropria-se do campo educacional de forma diferente, de


acordo com a necessidade de utilização da escolarização para manutenção ou
alteração de sua posição no espaço social.

• Bourdieu analisa a educação por uma redução de "culpa" das origens


econômicas nos destinos escolares, em favor do capital cultural incorporado.

• Ao analisar a cultura, Bourdieu indica a existência de um campo relativamente


autônomo, que é o campo cultural, que funciona como um mercado – pela lei
da oferta e procura. Os produtores culturais produzem códigos simbólicos,
organizados em sistemas culturais, que constituem o universo simbólico.

186
• Para Bourdieu, a cultura dominante é a cultura da classe dominante, e o
espectro cultural das demais classes apenas existe de fato, mas não de direito.

• Os grupos sociais utilizam a cultura como estratégia de distinção de alguma


forma, desenvolvendo uma hierarquia social com base no consumo de bens e
práticas culturais.

CHAMADA

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187
AUTOATIVIDADE

1 Os estudos sobre a sociedade de corte francesa foram essenciais ao


desenvolvimento da teoria sociológica sobre a civilização, de Elias, e
contribuem com a sociologia ainda na atualidade. Sobre esses estudos,
analise as seguintes sentenças:

I- É possível relacionar a evolução dos costumes na sociedade de corte com a


mudança na estrutura da consciência humana.
II- O desenvolvimento da sociedade de corte contribui para o processo de
exteriorização dos sentimentos individuais.
III- O monarca precisa seguir as leis de civilidade da corte porque estas
tornaram-se um sistema de regulação das posições hierárquicas.

Assinale a alternativa CORRETA:


a) ( ) Somente a sentença III está correta.
b) ( ) Somente as sentenças I e III estão corretas.
c) ( ) Somente as sentenças II e III estão corretas.
d) ( ) As sentenças I, II e III estão corretas.

2 Duas áreas temáticas sobre as quais Bourdieu se debruçou em seus estudos


foram a sociologia da educação e a sociologia da cultura. Sobre seus estudos
nessas áreas, analise as seguintes sentenças:

I- No campo educacional, os estudantes não competem em relações


igualitárias por serem atores que possuem elevada bagagem cultural
anteriormente construída.
II- A determinação de ter ou não sucesso escolar está associada à origem social e
não a um dom individual existente pela constituição biológica do estudante.
III- O habitus primário, constituído nos primeiros contatos sociais dos agentes,
interfere diretamente nos percursos escolares dos indivíduos.

Assinale a alternativa CORRETA:


a) ( ) Somente a sentença I está correta.
b) ( ) Somente a sentença II está correta.
c) ( ) Somente as sentenças I e III estão corretas.
d) ( ) As sentenças I, II e III estão corretas.

188
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